Anais Do II Simposio Villa-Lobos - 2012 PDF
Anais Do II Simposio Villa-Lobos - 2012 PDF
Anais Do II Simposio Villa-Lobos - 2012 PDF
APOIO REALIZAO
Realizao
Universidade de So Paulo
Reitor: Prof. Dr. Joo Grandino Rodas
Vice-Reitor: Prof. Dr. Hlio Nogueira da Cruz
Secretrias
Luciana Del Sole Queiroz
Sueli Monteiro Garcia da Silva
Maria Helena de Jesus Silva Morais
Secretria de Eventos
Edilena Aparecida Batista Colombo
Apoios
Catalogao na Publicao
Servio de Biblioteca e Documentao
Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo
COMISSO CIENTFICA DO II SIMPSIO VILLA-LOBOS
COMISSO ORGANIZADORA
Ciro Visconti
Denis Hallai
Denise Ogata
Gabriela Lusvarghi
Joel Miranda Bravo de Albuquerque
Juliano Abramovay
Lucas Vieira
Luciano Csar Morais
Milena Bravo
Rodrigo Felicssimo
Walter Nery Filho
VILLA-LOBOS, 125 ANOS DEPOIS
importadas dos centros atingiram seus limites cognitivos. Garcia Canclini, em estudo sobre
essa nova perspectiva das culturas latino-americanas, observou que:
Essas transformaes dos mercados simblicos em parte radicalizam o projeto
moderno, ede certo modo levam a uma situao ps-moderna entendida como
ruptura com o anterior. A bibliografia recente sobre esse duplo movimento ajuda
a repensar vrios debates latino-americanos, principalmente a tese de que as
divergncias entre o modernismo cultural e a modernizao social nos
transformariam numa verso deficiente da modernidade canonizada pelas
metrpoles. Ou ao contrrio: que por ser a ptria do pastiche e do bricolagem,
onde se encontram muitas pocas e estticas, teramos o orgulho de ser ps-
modernos h sculos e de um modo singular. Nem o paradigma da imitao,
nem o da originalidade, nem a teoria que atribui tudo dependncia, nem a que
preguiosamente nos quer explicar pelo real maravilhoso ou pelo surrealismo
latino-americano, conseguem dar conta de nossas culturas hbridas (Canclini,
Culturas hbridas, 2001, pp. 23-4).
dentro dessa concepo que o II SVL pretende oferecer espao para essa troca de
ideias, para que em torno da msica de Villa-Lobos se possa rediscutir nossos projetos de
Nao articulados como cultura, educao, poltica, identidade, cidadania, cincia e
conhecimento. Vivemos a experincia de democratizao h pouco mais de duas dcadas e
estamos em um momento particularmente favorvel onde nossa tnue estabilidade assume
grande destaque diante da crise econmica mundial. Somos a bola da vez, conforme se fala
informalmente. Que no meio de tantos descaminhos a Msica possa servir como eixo para tal
discusso algo realmente muito especial e espero que todos possam desfrutar ao mximo
esses trs dias no nosso II Simpsio Villa-Lobos.
Sumrio
PALESTRAS
Palestra 2
Os ndios de Villa-Lobos
Leopoldo Waizbort
USP/CNPq / waizbort@usp.br
Villa-Lobos's Indians
Abstract: With "Villa-Lobos's Indians" I would like to test an argument: how the composer represents
musically the "Indian" (also: modalities of representation, therein included the problem of
appropriation) and what role, importance and meaning that it have in its artistic creation and
expression.
"Os ndios de Villa-Lobos" um texto que ainda no foi escrito, por ora
apenas um argumento para ser testado no "2o. Simpsio Villa-Lobos". Aqui vai ele de
modo rpido, sinttico e incompleto.
O que se pretende indagar como os "ndios" e o "indgena" aparecem na
msica desse compositor nacional. O ndio um elemento importante da expresso e
da imaginao artstica no Brasil, presente em todas as formas artsticas (literatura,
pintura, dana, escultura, msica). Mas, o que representado, ou como se d essa
representao? Essa a chave que se pretende explorar. Pois desde a carta de Pero Vaz,
passando pelos jesutas, pelos picos do sc. XVIII, os romnticos do sc. XIX e os
variados "modernos" do sc. XX, o ndio e o indgena sempre apareceram em
destaque, oferecendo um mvel privilegiado para a atribuio de sentidos definitrios
terra, ao povo, nao e a seus equivalentes funcionais.
A busca da expresso de uma realidade prpria, desde o sculo XIX a
realidade da nao, sempre foi vista de maneiras variadas: uns enfatizavam a ptria,
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outros os ndios, outros os sertanejos, outros os negros, outros uma substncia ou
elemento, uma espcie de "esprito" ou "alma" que nos era prpria. Em Villa-Lobos,
encontramos muitos desses elementos, como por exemplo a celebrao da ptria,
potencializada no perodo do vnculo orgnico com o Estado; o indianismo,
multifacetado e presente em vrios momentos, e a essncia indefinida e indefinvel, a
"alma brasileira" - como enuncia o ttulo do "Choros No. 5". Conforme as situaes,
Villa-Lobos modulava e enfatizava uma ou outra das variadas possibilidades, mas
tambm as misturava e tirava disso a sua marca prpria, desenvolvendo dessa maneira
o seu modo de compor, e tambm, em parte, de exprimir (ou representar)
musicalmente o Brasil (pois o seu compor no se limita a isso, embora isso constitua
um aspecto significativo de seu compor).
Assim como ocorrera com os romnticos, essa empresa tinha um carter
construtivo e visava contribuir para o estabelecimento da nao e do povo, em um
movimento de afirmao. Nas primeiras dcadas do sculo XX, era claro aos homens
de pensamento no Brasil que j possuamos uma literatura nossa, mas faltava-nos uma
msica prpria. Tanto os compositores procuravam, em alguma medida, responder a
esse desafio, como os intelectuais, por seu lado, teorizavam a esse respeito - sendo
Mrio de Andrade, de longe, o mais significativo deles, e Villa-Lobos, o msico.
Quase cem anos depois da independncia poltica, seria preciso concretizar a
independncia tambm em termos musicais. Como isso poderia se realizar?
Uma resposta poderia partir da seguinte indagao: quais temas que os nossos
romnticos exploraram e que depois deles foram explorados por Villa-Lobos?
Decerto, a celebrao da natureza, grandiosa, variada e sublime; o indianismo; o
exotismo abarcando todo esse leque. No sculo XIX (sigo aqui Antonio Candido, de
onde tirei as citaes a seguir), a utilizao do ndio como alegoria do Brasil, que
vinha j desde muito antes, foi assumida com novo vigor e muito positivamente;
Capitrano de Abreu chamava a ateno para a "tendncia [...] de identificar o ndio
aos sentimentos nativistas". Assim, o ndio aparece, para os nossos romnticos, como
um elemento e um modo fundamentais de sentir e exprimir a ptria, e isso, embora
no exclusivamente, vai alimentar ainda um Villa-Lobos, no sculo seguinte.
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E que ndio esse? Naturalmente, um ndio imaginado e idealizado, mas
tambm concebido em funo do modo concreto como a sociedade nacional via o
ndio. Digamos que o ndio de Villa-Lobos est a meio caminho entre o indianismo
dos romnticos e o indianismo presente no movimento modernista: como procurarei
argumentar, h mais de um modo como os ndios aparecem na msica de Villa-Lobos
- e esse talvez seja o principal aspecto a sublinhar. Tambm os romnticos figuraram
o ndio de mais de uma maneira, mas predominou a ideia de elev-lo posio do
homem branco, atribuindo-lhes aquelas qualidades que o branco valorizava - o
mesmo branco que os dominava. Os modernistas da terceira dcada do sculo XX,
por sua vez, invocaram a dimenso primitiva, visceral, "autntica", inclusive em
virtude dos conhecimentos trazidos pelos viajantes do sculo XIX e pelos
antroplogos, que comeavam a aparecer. Nesse sentido, a posio de submisso
subvertida, e o ndio aparece com brilho novo (basta lembrar a poesia de Oswald de
Andrade).
Em Villa-Lobos, h mais de um ndio, ou seja, o ndio no aparece sempre do
mesmo modo, no h um padro nico ou mesmo predominante na representao do
ndio. O elemento primitivo e selvagem, ou mesmo "fauve", presente em "Le sacre du
printemps", ofereceu um modelo, uma justificao e uma legitimao para uma de
suas formas. Mas ela no a nica, pois sabemos que nem sempre Villa-Lobos
comps como em alguns dos "Choros".
Vale a pena procurar definir com maior nitidez as figuraes do ndio em
Villa-Lobos. Tomemos um exemplo: em 1849, um dos nossos romnticos lanava a
seguinte pergunta: "Por que tero a Esccia e Alemanha a presuno de s elas
possurem esses rios, lagos, matas, montes e vales misteriosos donde surgem essas
imagens lnguidas, transparentes, areas, qual nvoa que sempre encobre a natureza
desses torres? / No. Ns tambm aqui temos os nossos mitos: gnios dos rios, lagos,
matas, montes e vales." A resposta e a pergunta valem, tal e qual, como uma
justificao do tipo de msica que Villa-Lobos realizou em obras como "Uirapuru" e
"Amazonas" (assim "Eroso", um pouco posterior), que em nada se afastam dessa
perspectiva romntica. Ela oferece mesmo um enquadramento perfeito, em termos
temticos e narrativos. A afirmao do "nosso", encarnado na nossa natureza e nas
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nossas figuras, mitolgicas e histricas, um programa que, realizado literariamente
naqueles meados do sculo XIX, se realizar musicalmente no sculo seguinte. Em
ambos os casos, busca-se a afirmao de uma identidade prpria, que no somente se
distingue da Europa modelar, mas que possui um valor prprio e independente. Se,
poca de Villa-Lobos, a autonomia poltica no uma questo, a esttica no deixa de
ser, e seus caminhos so complexos.
Nessa modalidade, o "poema sinfnico", ou o "bailado", oferecem o
enquadramento caracterstico, tambm aqui muito prximo do que se vira em
Stravinsky - assim como o roteiro da "Sagrao", o roteiro de "Amazonas" ("Sobre
um conto indgena de Raul Villa-Lobos", lemos na partitura) insiste no primitivismo e
no exotismo de uma situao distante e indefinida.
Mas esse no foi o nico modo como o ndio e o indgena apareceram e foram
informados na msica de Villa-Lobos. Outra modalidade, da maior importncia, foi a
incorporao de melodias indgenas, recolhidas por viajantes ou antroplogos. Essas
melodias migraram para a msica de Villa-Lobos de maneiras variadas, mais ou
menos literalmente, conforme o caso, e acabaram ocasionalmente sendo assimiladas
com tal intensidade, que adquiriram uma forma nova e mesmo estrutural em algumas
composies suas. Nesse sentido, basta lembrar duas delas, coletadas por Roquette
Pinto em sua estadia entre os Parecis, em 1912: "En-mcoc-c-mk" e "Nozani-
n". Essas duas melodias, recolhidas em fonogramas e depois transcritas,
transformaram-se em chaves para a compreenso de uma modalidade da incorporao
do ndio e do elemento indgena em Villa-Lobos, que nada tem a ver com a forma j
mencionada, com o mito. Agora, o ndio aparece como um ser histrico e concreto,
como uma voz viva e em carne e osso, embora distante e distinta. Voz viva registrada
pelo fongrafo, mediada pela tecnologia, recolhida, gravada, reproduzida - e somente
ento ouvida, transcrita, composta.
Outra modalidade a utilizao de textos em nheengatu, o mais das vezes
oriundos de Poranduba amazonense, de J. Barbosa Rodrigues (1890) (provvel
herana da biblioteca paterna). Aqui, mesclam-se a lngua, como elemento de
sincretismo, com o mito de origem indgena, para configurar um exotismo prprio,
que mistura o compreensvel com o incompreensvel e disso extrai a sua substncia
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histrica e a converte em msica. De certa forma situada entre as duas formas
indicadas anteriormente, eis mais uma modalidade da representao.
Ainda outra modalidade a catequese jesuta, que oferece importante matriz
da incorporao do indgena em Villa-Lobos. Isso aparece de modo exemplar na
Sinfonia No. 10 "Amerndia", subtitulada "Sum, o pai dos indgenas". De maneira
paradoxal, nessa sinfonia, dedicada ao ndio, o ndio suplantado pelo jesuta: esse
quem domina a obra, e domina o ndio. Nela, pacificado e cristianizado, o ndio
(des)aparece sob a gide da dominao religiosa.
A religio, como unidade e ligao, a instncia que precede a unidade dada
pelo estado nacional: a comunidade religiosa antecede, anuncia e legitima a
comunidade da nao. o que explica em grande parte o encanto que o Anchieta
catequisador exerce sobre Villa-Lobos: o jesuta homogeneiza, ou seja, realiza a
operao central para a identidade nacional. Ele , por assim dizer, um predecessor do
Estado como concretizao de uma identidade nacional e, mais que isso, um
antecessor do maestro Villa-Lobos, que quatro sculos depois de Anchieta
homogeneiza musicalmente a nao. No toa que o jesuta utiliza o canto, como o
maestro. A aculturao que foi a catequese dos ndios encontra a sua contraface
histrica na musicalizao das massas, ela mesma uma outra aculturao, que criaria
agora no mais o cristo (abolindo do pago), mas o cidado brasileiro (instaurando
um civismo universalizado, abolindo uma nao carente de universalizao).
A empresa, seja nos jesutas, seja em Villa-Lobos, repousa na instituio
escolar. a escola que pode oferecer e moldar um critrio identitrio, inculcando-o no
mais profundo das almas. A variedade das etnias e das culturas sintetiza-se na religio
do jesuta e na msica do maestro. Esta, ademais, ao incorporar aquela - e a carga
simblica do jesuta primordial e fundador (a identidade to forte, que Villa-Lobos,
ao criar a ABM, escolheu Anchieta como patrono da Cadeira No. 1, ou seja, a sua) -
apresenta-se no somente como atualizao da anterior, mas como sua verdadeira
superao. Seria a a realizao mais plena e mais potente da superao do nosso
atraso, das cesuras que a histria colonial nos deixou e que a independncia e a
repblica no foram capazes nem de apacentar, nem de resolver. A desigualdade e a
estrutura estamental, que a poltica no resolveu e que perduram, a msica de Villa-
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Lobos pretendeu solver. Podemos nos perguntar, ao ouvir a "Sinfonia Amerndia", se
o coro que ali canta no o coro do canto orfenico de Villa-Lobos, aquele canto que
daria forma nao brasileira e que educaria o cidado, inculcando no indivduo os
mais nobres valores cvicos e ptrios.
H ainda outras modalidades de representao e apropriao, que no esto
aqui inventariadas, mas que so contempladas na pesquisa em curso sobre o assunto.
Por ora, apenas indico o problema e o encaminhamento da problematizao.
Podemos assinalar a confluncia, em Villa-Lobos, de um discurso musical
exoticista com a definio nacional: temos um "outro" que tambm "ns". O ndio
e no "ns", e essa dupla face precisa ser considerada na anlise. A nao, o Brasil,
variado e compe-se de uma variedade que reconhecida como tal: ele no
homogneo (o problema da variedade das "raas" e de sua soluo uma questo de
destaque no perodo em que Villa-Lobos viveu - dos enfoques mais biolgicos do
sculo XIX, passando pela sociologia de Gilberto Freyre e outros, at a poltica do
Estado Novo). Nesse sentido, o ndio um "outro" face ao compositor branco, urbano
e ocidental. Por outro lado, a nao, para ser nao - para subsumir-se a um "Brasil"
como coletivo genrico -, precisa ser homognea e incluir o "outro" em um "ns". A
passagem do "outro" ao "ns" um problema, que pode ser encaminhado de variadas
formas. Pode-se ignorar o "outro". Pode-se transformar o outro em "ns" trazendo-o
at ns, como aqueles romnticos que atribuiam caractersticas ocidentais aos ndios.
Pode-se marcar a diferena e subsumi-la ao universal, como uma espcie de variao
ou mesmo adorno secundrios. Pode-se incorpor-lo, buscando diminuir seus
elementos especificantes e traz-lo para o padro da homogeneidade (a aculturao
dos ndios, a miscigenao etc., forjando um "povo" brasileiro miscigenado). Pode-se
realar e manter a diferena, firmando uma nao no-homognea. As possibilidades
so muitas. Qual a adotada por Villa-Lobos? Ou mesmo: adota ele apenas uma?
Certamente, a que prevalece aquela na qual o ndio permanece um outro,
mas incorporado-ocidentalizado. Mas isso feito de um modo especfico: ele
representado segundo os padres da msica do ocidente ("topoi" simblicos e
composicionais). Ele um "ndio brasileiro", e essa expresso - para alguns um
oxmoro - j sugere que a categoria "Brasil", mais ampla e central, incorpora em si a
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do "indgena". Este parte daquele; e trata-se, portanto, de faz-lo realmente parte:
aparecendo na msica brasileira, por exemplo. O "Brasil" uma confluncia (no
necessariamente consumada, e bem consumada) de diferentes fatores - como se v
naquele "Grfico planisfrico etnolgico da origem da msica no Brasil", que Villa-
Lobos anexou ao Guia prtico e a seu texto sobre "Educao musical" no Boletn
Latino-Americano de Msica.
Mas, como pensar a representao do ndio/indgena/nativo na msica, que
considerada um meio no-representacional? Como se d essa representao? Quais
so os procedimentos (musicais e extra-musicais) de que o compositor lana mo para
tanto? Parece-me importante sublinhar que os procedimentos musicais no so
suficientes para tanto; a representao necessariamente carece de uma sntese deles
com procedimentos extra-musicais; e o resultado precisamente uma representao
musical.
A primeira coisa a anotar que Villa-Lobos lana mo de procedimentos
distintos, que preciso tentar identificar, e ponderar em que medida a representao
est vinculada forma de representao. O ndio, como um "outro", implica uma
construo de alteridade, na qual um "ns" tambm se constroi. Um processo duplo
de identidade, portanto. Como se d a construo musical dessa alteridade? (E da
identidade do compositor, que se constitui na mesma medida que a constroi o outro?)
Se isso se concretiza musicalmente, significa que uma representao musical em
ao, assim como uma "imaginrio musical" atuante - e que precisa se haver com o
"imaginrio cultural" no qual o "ndio" existe para o compositor. A tarefa, ento,
consiste em mapear tanto esse imaginrio musical, como as tcnicas concretamente
(musicalmente) envolvidas.
O processo de representao envolve, em alguma medida, um processo de
dominao simblica (e portanto concreta): o ndio "" aquilo representado, tal como
representado, reduzido quela representao. Portanto, estamos falando da "produo"
de um ndio. Os ndios de Villa-Lobos.
H decerto um nexo entre a representao simblica e a dominao poltica.
No caso especfico de Villa-Lobos, a representao do ndio est ligada: a)
possibilidade de confeco de uma msica que encontre espao no universo da
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msica de concerto europeia-internacional; b) a ideia de uma nao (e de sua msica)
na qual o ndio parte, mas parte como subsumido a um universal homogeneizante.
H, evidentente, um elemento de contradio, pois por um lado o ndio e precisa se
tornar "brasileiro", como parte da nao, enquanto por outro ele "diferente", e
portanto um "outro". Essa contradio se mantem na ideia do estatuto diferenciado do
ndio no estado brasileiro, na tutela etc. Isso presente, em Villa-Lobos, de um modo
muito claro, quando considera a msica dos ndios "manifestao precria de ordem
esttica" (como se l no mencionado texto sobre "Educao musical").
H uma longa tradio de emprstimos e apropriaes, por parte da msica
ocidental, de elementos de culturas musicais "outras", "estranhas" (exticas, orientais
etc.). Essa apropriao tambem um ato de poder, ato de por um outro ao seu dispor.
No caso: mobilizar (e instrumentalizar) o outro em favor de uma msica "nossa",
como meio, inclusive, de "revigorar" a nossa msica ou de capacit-la a novos
domnios expressivos; tambm como uma maneira de poder inserir a "nossa" msica
no circuito internacional das msicas nacionais e cosmopolitas.
As questes que pedem resposta so muitas. Trata-se de representao ou de
apropriao? Trata-se de emprstimos que Villa-Lobos realiza da "msica indgena"?
Como Villa-Lobos chega msica indgena, e como sai dela? Ou mesmo: e quando
ele nem chega a ela, e representa o ndio sem msica indgena? Lembremos que a
prpria expresso "msica indgena" j uma construo, um rtulo, uma maneira de
nos achegarmos a um fenmeno que sonoro, mas sobretudo cultural: os
antroplogos nos ensinam que, para a cultura indgena, a "msica" no algo
discreto e distinto do rito, da performance, da cosmologia. Somos ns que temos a
categoria "msica", com a qual categorizamos o que o outro faz.
Para terminar: um tratamento comparativo parece-me fundamental para poder
avaliar aquilo que Villa-Lobos faz. Tanto podemos comparar a "Sinfonia Amerndia"
com a "Sinfonia ndia" (1935-36) de Carlos Chvez, como as canes de Villa-Lobos
com aquelas de Arthur Farwell (1877-1952) e Charles Wakefield Cadman (1881-
1946) e Maurice Delage (1879-1961) - para no falar de Charles Ives ("The Indians",
presentes em vrios "Sets" para orquestra de cmara).
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Referncias Bibliogrficas
Born, Georgina e Hesmondhalgh, David. "Introduction: On Difference,
Representation, and Appropriation in Music" in Born, Georgina e
Hesmondhalgh, David (Eds.). Western Music and Its Others. Difference,
Representation, ans Appropriation in Music. Berkeley etc., University of
California Press, 2000, pp. 1-58.
Candido, Antonio. Formao da literatura brasileira. Momentos decisivos. 8a. ed.,
Belo Horizonte/Rio de Janeiro, Itatiaia, 1997, vol 2.
Moreira, Gabriel Ferro. O elemento indgena na obra de Villa-Lobos: observaes
msico-analticas e consideraes histricas. Dissertao de mestrado,
Florianpolis, 2010.
Villa-Lobos, Heitor. "Educao musical" in Boletn Latino-Americano de Msica,
Ao VI, Tomo VI, pp. 495-588, 1946.
17
Palestra 3
18
vasta obra de cmera compreendendo quatro quartetos de cordas, trios,
sonatas, diversas obras vocais e grandes ciclos para piano).
A esse respeito, Luiz Heitor comentava, no inicio da dcada de 40:
1
Corra
de Azevedo, Lus Heitor: a Msica no Brasil de 1930 a 1940, in Msica e Msicos do Brasil
(1950: 382-83). Nesse mesmo texto, ele comenta: Ligado ao definitivo estabelecimento do compositor
Villa-Lobos, no Rio de Janeiro, depois de suas peregrinaes pela Europa e tentativa de fixao em So
Paulo, vamos encontrar outro aspecto novo da vida musical brasileira no decnio 1930-1940; o cultivo
do canto coral e a intensa e agudssima organizao pedaggica destinada iniciao musical da
infncia escolar, compreendendo a seleo dos elementos dotados de aptides especficas. No Brasil,
at ento, o povo ignorava a alegria de cantar em conjunto [] Foi Villa-Lobos que ps em moda o
canto coletivo, fundando o seu Orfeo dos Professores, de maravilhosa eficincia tcnica e produzindo
enorme srie de composies, em que os efeitos contidos com a voz humana atingem limites extremos
que s a incomparvel maestria desse homem de gnio poderia conceber. Os catlogos de nossas
editoras musicais, que at ento desconheciam, por completo, o repertorio coral, passam a mencionar
uma enorme produo, assinada por todos nossos compositores, com especialidade Barroso Neto,
Mignone e Lorenzo Fernandes. Fundaram-se outros grupos corais, no Rio e nos estados, muito
contribuindo para esse movimento salutar a propagao dos mtodos de iniciao musical pela
primeira vez aplicados nas escolas do Distrito Federal.
2
Uma exceo parece ser o poema sinfnico Papagaio de moleque, datado de 1932, ano do qual
datada a transcrio para orquestra do Rudepoema.
3
Ver: Tacuchian, Ricardo - Villa-Lobos, uma reviso, in: Brasiliana n.29, agosto 2009, Rio de
Janeiro; e o clssico Villa-Lobos, compositor brasileiro de Vasco Mariz (1949, com as importantes
19
interessantes o lugar ocupado no somente por works in progress dos anos 30 e
40, (como o Guia Prtico e as Bachianas) como tambm por transcries e/ou
recomposies de obras dos anos 1920 e - surpreendentemente - dos anos 1910, o
que parece denotar, - no limiar de uma nova fase de reorientao composicional -,
um momento de pausa, marcado por um olhar retrospectivo, e por uma reavaliao de
sua obra passada.
De fato, entre a composio do Momoprecoce4 (1929) e de Magdalena (1947),
Villa-Lobos escreveu um conjunto de obras que apresentam, como peculiaridade, o
fato de sua construo estar baseada na reutilizao e transcrio de composies
mais antigas. Esse fato, que no novo na Histria da Msica com exemplos
notrios em Haendel, Bach e Mozart foi identificado nos anos 40 por Lisa
Peppercorn5, no caso da sute Descobrimento do Brasil. Neste texto sero examinados
alguns desses trabalhos realizados nos anos 30 e 40, - notadamente o 5 Quarteto de
Cordas [1931], Caixinha de boas festas [1932]6, Descobrimento do Brasil [1937], e
Magdalena [1947] -, assim como os primrdios da srie das Bachianas Brasileiras,
cujo processo de gestao, e gradual ordenamento, apresenta afinidades com o
processo de elaborao daquelas obras.
2. Transcries
20
a) transcries de obras de Bach: preldios e fugas do Cravo Bem Temperado,
inicialmente para piano e violoncelo (1930-31), posteriormente transpostas para coro
a capella (1932-37), e finalmente para orquestra de violoncelos (1940-41); e a
transcrio para orquestra sinfnica, em 1938, de grandes obras para rgo (Fantasia
e Fuga n.6, Preldio e Fuga n.6 e Toccata e Fuga n.3).
b) transcries para coro a capella, realizadas entre 1932-37, destinadas
ao Orfeo dos Professores da SEMA, de peas para teclado do repertrio clssico
(Haydn, Mozart Beethoven, Schubert, Schumann, Mendelssohn, Chopin e
Rachmaninov).
Em relao a suas prprias obras, as transcries podem ser subdivididas em
duas categorias:
a) transcries diretas: peas do Guia Prtico transcritas para banda,
para canto e piano na coleo Modinhas e Canes II, e para orquestra na sute
Saudade da Juventude 7 ; a importante transcrio para orquestra, em 1932, de
Rudepoema; a orquestrao das Bachianas Brasileiras n. II e n. IV, - a partir de peas
para piano, e para piano e violoncelo -, escritas entre 1930 e 1941.
b) novas composies, consistindo da reunio de transcries de obras
compostas em perodos diversos, entre as quais: 5 Quarteto de cordas [1931],
Caixinha de boas festas [1932], Descobrimento do Brasil [1937] e Magdalena [1947].
Enquanto o 5 Quarteto de Cordas - subtitulado Quarteto brasileiro n 1-
consiste (em trs de seus quatro movimentos) de transcries de peas de uma nica
coleo para piano dos anos 20 - as Cirandinhas, datadas de 1926 - o bal sinfnico
Caixinha de boas festas basicamente composto por peas de trs colees dos anos
1910; as sutes II e III do Descobrimento do Brasil consistem essencialmente de
transcries para orquestra de canes para canto e piano da dcada de 1910,
enquanto Magdalena (1947), intencionalmente um pot-pourri, entrelaa livremente
composies das dcadas de 10 (Ibericrabe, Izath), 20 (Cirandas e Choros 11) e 30
(Guia Prtico, Valsa da Dor, Impresses Seresteiras).
7
Villa-Lobos, Heitor: Guia Prtico, Vol. I. Edio crtica da Academia Brasileira de Msica, Rio de
Janeiro, 2009.
21
Examinando-se o conjunto das transcries orquestrais de Villa-Lobos, nesse
perodo, particularmente impressionante observar o quanto ele retrabalhou obras dos
anos 10: peas para piano das colees Petizada (1912)/ Brinquedo de roda (1912)/
Carnaval das Crianas (1919) na Caixinha de boas festas (ver anexo I), e Alegria na
horta (1918) (da Sute Floral) na 1 Sute do Descobrimento do Brasil; as melodias
para canto e piano a Virgem (1913), Lenda rabe (1914), Cascavel (1917) e Festim
pago (1919), nas 2 e 3 Sutes do Descobrimento do Brasil; na 3 Sute do
Descobrimento do Brasil, Villa-Lobos tambm reaproveita uma obra orquestral
datada de 1918, a Marcha religiosa n.3, na seo mediana da Impresso Ibrica; em
Magdalena, a pea para piano Ibericarabe (1914) descrita na edio da Casa Arthur
Napoleo, como uma reduo para piano do 2 movimento da Suite oriental, obra
no localizada - torna-se a Emerald song para canto e orquestra, enquanto a Dana
do amor do 2 ato da opera Izath (1914) d inicio cena The forbidden orchid
(entrelaada 2 seo da Valsa da Dor, e seo 55 do Choros 11).
Uma observao suplementar a respeito do fato dos trabalhos orquestrais de
Villa-Lobos, nos anos 1930, estarem menos direcionados a obras novas do que ao
retrabalho de obras anteriores, parece se aplicar ao caso do poema sinfnico Tdio
da alvorada (1916), cuja transformao no Uirapuru, em 19348, foi dissecada por
Luiz Fernando Vallim, Paulo de Tarso Salles e Maria Alice Volpe9, processo que
provavelmente fornece a chave para a compreenso da transformao de Myremis10
(1917) em Amazonas11 em 1929.
Por outro lado, parece particularmente convincente e fecundo o argumento de
Guilherme Bernstein Seixas12 de que uma melhor cronologia das obras de Villa-
Lobos poderia ser obtida por um lado atravs do critrio das caractersticas
8
A ltima pgina do manuscrito autgrafo do Uirapuru (no Museu Villa-Lobos) indica: Fim, Rio
1917, reformado em 1934.
9
Ver Vallim (2002), Salles (2009) e Volpe (2010).
10
So numerosos os programas de concerto assinalando, entre 1918 e 1925, a execuo de Myremis no
Rio e em So Paulo. Por sua vez, Mario de Andrade admirador de Amazonas refere-se a ela como a
remanipulao do Amazonas, como assinalado por Salles [2009: 27]
11
A demonstrao cabal da vinculao Amazonas-Myremis foi dada por Salles [2009] analisando a
primeira pagina do esboo manuscrito de Myremis (Museu Villa-Lobos) que se inicia pelas notas MI-
RE-MI(MI).
12
Bernstein, Guilherme: Os Choros e as Bachianas como princpios composicionais, in: Brasiliana
n. 29, agosto 2009.
22
estilsticas, e, por outro, utilizando como proxy da data de concluso das obras, as de
suas primeiras audies. Esse critrio se aplica particularmente bem s verses finais
dos Choros 6, 9 e 11, cujas 1s audies mundiais s ocorreram em 194213. Isso
parece particularmente claro, no caso dos Choros 6, - cujo efetivo orquestral de
grandes propores no condiz com a descrio ditada por Villa-Lobos a Suzanne
Demarquez, em seu estudo de 1929 sobre o compositor para a Revue Musicale14-, de
que o Choros 6 era escrito para: um curioso conjunto constitudo por clarineta,
trompete, bombardino e violo.
Em relao aos Choros 11, a afirmao de Lisa Peppercorn de que a obra foi
recomposta de memria 15 , nos anos 40, estimulada pela presena de Arthur
Rubinstein no Rio de Janeiro, parece consistente com as diferenas entre a partitura
atual e a nica pgina conhecida do manuscrito autgrafo de 1928 (na marcao de
ensaio 43, na partitura, que reproduzido em fac-smile no estudo de Demarquez
sobre os Choros16): a parte solista do piano coincide nas duas verses, porm existem
diversas diferenas de realizao na parte orquestral.
Num artigo, em 1943, - no qual identificou as numerosas inconsistncias de
datao existentes nas catalogaes ento correntes da obra de Villa-Lobos17, Lisa
Peppercorn desenvolveu uma crtica severa reutilizao, com novos ttulos, de obras
mais antigas pelo compositor. Nesse texto, Peppercorn sinalizava no Descobrimento
do Brasil a origem - na dcada de 1910 - dos movimentos Alegria, Adagio
Sentimental e Cascavel nas Sutes I a III, notando igualmente que a forma final
para orquestra, assumida pela Bachianas n.2, correspondia transcrio e reunio de
13
Ver programas de concerto Festival Villa-Lobos15 e 18 de julho 1942, Teatro Municipal Rio de
Janeiro.
14
Demarquez, Suzanne: Villa-Lobos in Revue Musicale, 1929, n 10, pp. 1 a 22.
15
Lisa Peppercorn (1943), reproduzido em Jorge Coli: In Paris in 1928 for example, he planned to
write a piece for piano and orchestra which he called Choros 11. A few sketches were about all he
jotted down. Yet, twelve years later when his friend Arthur Rubinstein happened to be in Rio de Janeiro
and asked the composer to write him a piece for piano and orchestra, Villa-Lobos set to work saying
that he had only to rewrite Choros 11, since the complete score had been lost after his return from
Europe. The fact is, however, that the composition had probably taken shape in his mind in Paris that
year, but for some reason only a few sketches were actually put in paper. This is sufficient for him to
say that the composition was written, because he feels he can rely on his memory no matter how much
time may pass between the spiritual conception and the writing down of his idea. Villa-Lobos calls this
re-writing a work.
16
Demarquez, Suzanne: Les Choros de Villa-Lobos in Musique-Revue Musicale mensuelle, n 4,
15/01/1929, pp. 707-713.
17
Msica viva.
23
3 peas para canto e violoncelo (Canto do capadcio, Canto da nossa terra,
Trenzinho do caipira) e uma pea para piano (Lembrana do serto), escritas no
incio da dcada de 1930. Mario de Andrade, - ao mesmo tempo em que reagiu
elogiosamente ao artigo, particularmente na questo das inconsistncias na cronologia
das obras de Villa-Lobos -, expressou a esse respeito um ponto de vista diferente da
autora:
Lisa Peppercorn inicia o seu estudo com uma prova muito pormenorizada
de que Villa-Lobos rearranja frequentemente as suas obras em solues
instrumentais completamente diversas das em que elas foram
originalmente concebidas [] se nos assusta um bocado ver peas
concebidas, ao menos pelo que indica o ttulo, dentro de uma determinada
ordem de sentimentos, e depois dirigidas a outra ordem de sentimentos
muito diversa, carece no esquecer que Villa-Lobos tem no passado,
exemplos ilustres em que se apoiar [Mario cita exemplos de Haendel e
Bach]. Mas nem de longe quero tocar nesses assuntos. Deus me livre. Isso
nos levaria mais uma vez ao insolvel problema de saber se a msica
exprime os nossos sentimentos ou no. E ainda mais, se os exprime a
ponto de os tornar inteligveis [] na verdade essas adaptaes de Villa-
Lobos o de Haendel no me assustam nada [] pelo menos sob o ponto
de vista moral. Porm, o caso dessas sucessivas transcries que Villa-
Lobos faz duma obra sua, no fenmeno individual. manifestao
contempornea muito frequente18.
Mario de Andrade concorda com Peppercorn que esse processo torna difcil
discernir na obra do compositor qualquer coisa que se possa chamar legitimamente
uma evoluo, mas ao mesmo tempo declara: [] No sei se o crtico ter
exatamente razo. H sempre uma evoluo, na obra de Villa-Lobos.
24
transcries para piano e violoncelo, de preldios e fugas do Cravo Bem Temperado,
ao mesmo tempo em que comps novas obras - peas isoladas para piano solo, e para
piano e violoncelo que seriam incorporadas, bem mais tarde, s Bachianas II e IV.
Entre 1932 e 1937, esses preldios e fugas seriam transcritos para coro a capella,
destinados ao repertrio do Orfeo dos Professores da SEMA20. Em 1938, Villa-
Lobos realizaria a transcrio, para orquestra, de trs grandes obras para rgo de
Bach: Fantasia e Fuga n 6, Preldio e Fuga n 6, e Tocata e Fuga n 3.
Dois programas de concerto, realizados no Rio de Janeiro em 1936 e 1938,
fornecem informaes preciosas sobre a Bachianas Brasileiras n I, mas tambm
sobre o lento processo de elaborao da srie:
1) o programa de 13/XII/1936, promovido pela Cultura Artstica no Teatro
Municipal, sob a regncia de Villa-Lobos21, apresenta como Bachianas Brasileiras
(sem numerao) os dois ltimos movimentos da atual Bachianas I, executados por
uma orquestra de altos (1 estante) e violoncelos (e no ainda uma orquestra de
violoncelos), e explicando que se tratava de uma srie recente:
20
Publicados na Coleo Escolar.
21
Biblioteca do Museu Villa-Lobos.
22
No Salo da Casa da Itlia (13 concerto da Sociedade propagadora da msica sinfnica e de
cmera. Arquivo Mario de Andrade, IEB/USP, cuja indicao agradeo Prof. Flvia Camargo Toni.
25
c) que o concerto em outubro de 1938 constitua a efetiva 1 audio da obra,
e que a composio do 1 movimento (Introduo Embolada) era recente:
Cumpre notar que esta a primeira audio integral dessa srie, que se
compe de 3 partes: Introduo, Preldio e Fuga. Porque ela vinha sendo
levada parcialmente, sem a introduo, parte que s agora foi terminada
pelo maestro Villa-Lobos, para ser executada pela Sociedade
Propagadora.
d) foi tambm nesse concerto, que a Bachianas I foi executada pela primeira
vez por uma orquestra de violoncelos. Pode-se conjecturar que a ideia da
transformao da formao original (para violas e violoncelos) da Bachianas I numa
orquestra exclusivamente composta de violoncelos, tenha surgido a partir da notcia
de uma execuo ento recente, em Buenos Aires, que mencionada no texto do
programa:
26
1a audio da Aria da Bachianas V em 1939, e com as transcries dos Preldios e
Fugas do Cravo Bem Temperado em 1940-4123.
Outro aspecto que deve ser considerado,- levando em conta a informao, em
outubro 1938, da existncia de apenas 3 Bachianas naquela data-, a datao de 1938
atribuda s Bachianas VI e III, especialmente essa ltima que -, segundo depoimento
de Peppercorn em 1943 -, ainda no estava escrita, apesar da Bachianas IV ter sido
estreada no ano anterior. Utilizando o precedente do Rudepoema, tradicionalmente
catalogado dentro de um intervalo cronolgico (1921-26) , e admitindo-se o inicio da
composio da Bachianas III em 1938 ( conforme indicado no manuscrito autografo
do Museu Villa-Lobos) seria provavelmente mais adequado tambm dat-la
utilizando o intervalo 1938-1945. Esse mtodo poderia ser igualmente adequado para
outras composies, em relao s quais, ficou comprovado24 que a data da verso
final da obra difere da data da sua primeira verso: por exemplo datar o Uirapuru
como 1916-34 e Amazonas como 1917-1929.
4. Referncias bibliogrficas
23
Sob regncia de Edoardo de Guarnieri, no Teatro Municipal do RJ em 1941.
24
Por Vallim (para Uirapuru) e Salles (para Amazonas).
27
28
ANEXO II MAGDALENA
29
30
MESAS REDONDAS
31
Mesa 1 - Brancas & Pretas: o piano de Villa
Resumo: o presente artigo parte da qualificao de Villa-Lobos como um dos poucos compositores da
primeira metade do sculo XX a contemplar em sua produo para piano solo e com igualdade de
consistncia e qualidade tanto obras de grande envergadura e demanda tcnica como peas de
menores dimenses e de propsitos didticos. Ao reconhecer a textura como um dos aspectos aos quais
Villa-Lobos mais direcionou sua inventividade, este trabalho tece um estudo sobre a srie de peas
didticas Cirandinhas, pretendendo no somente investigar os meios pelos quais o compositor adequou
seus prolferos recursos texturais s restries impostas pelos propsitos didticos, mas tambm
reconhecer os contributos que esta bem-sucedida adequao ofereceu pedagogia pianstica e
visualizar, comparativamente, recursos texturais equivalentes em obras de maiores dimenses e
demandas tcnicas.
32
direcionadas ao instrumentista j desenvolto como peas voltadas ao iniciante,
sobretudo criana. Se nos ativermos primeira metade do sculo XX, podemos
reconhecer um pequeno nmero de compositores que manifestaram essa disposio
em conciliar em suas produes piansticas obras de grande envergadura e demanda
tcnica e peas de menores dimenses e de intenes didticas, dentre os quais
citamos Claude Debussy (1962-1918), Sergei Prokofiev (1891-1953), Dmitry
Kabalevsky (1904-1987) e Bla Bartk (1881-1945). Entretanto, plausvel que
apenas Bartk seja, de fato, o nico compositor deste perodo comparvel a Villa-
Lobos quanto ao equilbrio entre a consistncia de sua produo didtica e a
relevncia de suas obras de maior porte1. No por acaso, Stewart Gordon afirma que
a dedicao de Bartk a escrever material didtico resultou na produo do mais
significativo corpo de peas didticas do incio do sculo XX (Gordon, 1996: 454-
5), bem como reconhece a srie Mikrokosmos de propostas reconhecidamente
didticas como a ltima das obras primas do compositor hngaro, apresentando em
seu ltimo volume peas que utilizam toda a gama de dificuldades tcnicas e
musicais encontradas no estilo maduro de Bartk (Gordon, 1996: 455). De fato,
Bartk transps o desafio de contemplar vrios nveis de demandas piansticas no
apenas em todo o escopo de sua produo, mas tambm em uma nica coleo de
peas. Pois h, em Mikrokosmos, uma progressividade gradual e sistemtica que no
se observa em nenhuma coleo de peas de Villa-Lobos, mas as obras do compositor
brasileiro apresentam uma complementaridade que, juntas, atendem igualmente a
variados nveis de exigncias piansticas.
No catlogo do Museu Villa-Lobos, disponvel no site desta instituio, esto
registradas aproximadamente setenta obras para piano solo (considerando as colees
e sries como unidades, as quais se desmembram em mais de duzentas peas)2. Nele
se observa o alto grau em que a produo pianstica de Villa-Lobos permeia toda a
1
Prokofiev e Debussy esto entre os compositores que mais contriburam ao repertrio para piano solo
na primeira metade do sculo XX, e suas grandes obras encontram-se dentre as mais acatadas pelos
pianistas em seus programas de concerto. Dedicaram, porm, poucas obras aos iniciantes. Em sentido
inverso, Kabalevsky comps muitas peas didticas, entretanto suas obras de maiores dimenses e
exigncias no se estabeleceram no repertrio de concerto e foram estigmatizadas como peas para
estudantes.
2
http://www.museuvillalobos.org.br/. Catlogo completo das obras de 2009 (362 pginas), baseado na
edio de 1989. Obra para piano solo (p. 126-150). Acessado em 25/10/2012.
33
trajetria criativa do compositor, bem como a relevante quantidade de obras de
francas intenes didticas. Neste universo, citamos Brinquedo de Roda (1912),
Carnaval das Crianas (1919-1920), Cirandinhas (1925), Francette et Pia (1929) e
os onze volumes do Guia Prtico (1932-1949).
Destacam-se, nos diversos nveis e categorias da produo para piano solo de
Villa-Lobos, a qualidade, a inventividade e a variedade de suas escrituras (a despeito
das muitas crticas que supem um inadequado tratamento pianstico nas suas obras
ao invs de nelas reconhecerem a ousadia composicional e a abordagem do piano em
suas diversas possibilidades texturais). A fecunda explorao pianstica efetuada por
Villa-Lobos surpreende quando contextualizada sua prpria inabilidade ao
instrumento, conforme atestou o pianista brasileiro Souza Lima nos seus Comentrios
sobre a obra pianstica de Villa-Lobos:
34
pianisticamente Villa-Lobos e colaborou enquanto intrprete de muitas suas obras,
fatos que tornam inegvel sua contribuio ao pianismo do compositor. Entretanto,
h neste pianismo uma variedade de recursos que dificilmente pode ser creditada a
algum que no ao prprio compositor e seu esprito criador.
H uma absoluta consistncia entre a escritura pianstica de Villa-Lobos em
suas peas de cunho didtico e as restries fsicas e intelectuais impostas pelos
intrpretes aos quais elas so destinadas: as crianas. Esta consistncia fruto da
conjugao da atrao do compositor pelo piano da qual sua obra o mais enftico
testemunho a seu interesse sincero (e at mesmo ideolgico) pelo universo infantil.
Segundo Turbio Santos, sempre houve, dentro do temperamento inquieto de Villa-
Lobos, um espao sentimental protegido, sereno, voltado para a infncia (Santos,
2000: s/p). Tambm Vasco Mariz reconheceu o entusiasmo do compositor pela
juventude, sua paixo pela infncia e sua crena de que o convvio com as crianas a
melhor maneira de se reeducar o esprito (Mariz, 1994:170).
A viso de Villa-Lobos de que a prtica musical uma virtude a ser oferecida
criana, independente de existncia ou no de intenes profissionais desta para
com a msica, foi representada pelo controverso projeto de implantao do Canto
Orfenico que, por fim, vinculou o compositor a um governo de temerrios ideais
nacionalistas, ao qual a msica se apresentava como um instrumento de educao no
apenas artstica, mas, sobretudo, moral e cvica. Trata-se de um aspecto que,
conforme declarao da segunda esposa de Villa-Lobos, Sra. Arminda Neves
dAlmeida (Dona Mindinha), contribuiu para que o compositor fosse ainda menos
compreendido:
35
Diante do exposto, o estudo que se segue pretende ressaltar alguns recursos
composicionais de Villa-Lobos, acatando como vis analtico a textura e como objeto
uma das obras piansticas mais representativas das propostas didticas do compositor:
a srie Cirandinhas. O objetivo investigar, a partir de peas que por suas propostas
didticas no apresentam a grandiloquncia e a profuso de obras de maior porte, as
solues texturais de Villa-Lobos.
4
Para Berry, o termo componente remete genericamente a qualquer ingrediente ou fator textural
conforme indicado no contexto imediato de considerao (BERRY, 186). Grosso modo, componentes
36
compositores. Elas se destacam tambm pelos contrastes propostos por suas sees,
um aspecto nem sempre presente em peas de pequenas dimenses. Isso atesta que
Villa-Lobos, ao escrever para criana, no vinculou suas peas ao esteretipo de
pequenos estudos ou exerccios, o qual possivelmente restringiria cada uma delas a
um determinado e nico material.
Com esta obra, de aparente simplicidade, o compositor props uma infinidade
de possibilidades de explorao do piano no que concerne a utilizao da
simultaneidade de materiais musicais sem transgredir os limites impostos pela
proposta didtica, proporcionando prtica pedaggica do piano frutferos
desenvolvimentos. Por conta justamente de seus propsitos didticos, estas peas
apresentam densidade relativamente baixa (em geral, se limitam a, no mximo, 3
componentes texturais simultneos) mas apresentam elevada compresso de
densidade, dada a restrio de espao textural5. Obviamente, suas solues texturais
se valem de um espao textural restrito prevendo a pouca desenvoltura dos iniciantes
em grandes amplitudes de intervalos ou registros ao piano, ou seja, em situaes que
exijam grandes aberturas de mo ou amplos movimentos laterais de brao. No por
acaso, Villa-Lobos restringiu, nestas peas, suas estruturas verticais a notas duplas
(estabelecendo pequenos intervalos) ou acordes de no mximo trs notas (e de
mbitos sempre inferiores a uma oitava), bem como reservou as mudanas de registro
s situaes cadenciais, principalmente as finais, que se valem de longas figuras de
valor, rallentandos e fermatas e, portanto, oferecem ao pianista iniciante tempo
suficiente para efetuar com segurana amplos movimentos laterais de braos.
Vale ainda salientar que estas peas se destacam por incorporarem melodias
folclricas (justamente as cirandinhas) de tal maneira a inseri-las em complexos
texturais que a despojam das sonoridades de seus respectivos contextos originais sem
envolv-las em texturas musicais arquetpicas das ortodoxias composicionais
ocidentais.
podem ser entendidos como linhas, camadas ou vozes, sendo a textura definida pela quantidade,
qualidade e interaes destes componentes soando em simultaneidade.
5
Segundo as definies de Berry, densidade o aspecto quantitativo da textura, o nmero de
elementos concorrentes em um tecido musical (Berry, 1987: 184). Compresso de densidade a
relao entre o nmero de componentes e a dimenso do espao textural no qual eles ocorrem, sendo
portanto espao textural a extenso, o campo, o mbito, a abrangncia de uma determinada textura
(Berry, 1987: 199).
37
Algumas solues texturais nas Cirandinhas e seus equivalentes em obras
de maior envergadura.
38
Figura 1: Cirandinha n.11 Nesta rua tem um bosque.... (comp. 27-37). Pedal de nota reiterada (comp.27-34) e
pedal com dois sons intercalados (comp.35-37).
Observa-se que o recurso de notas pedais pode ser diludo em, por exemplo,
um componente textural verticalizado em acordes e fragmentado por pausas. o que
ocorre na seo B da Cirandinhas n.7 Todo o mundo passa (Figura 2), na qual um
componente acrdico preserva, em sua linha mais aguda, a alternncia das notas L e
Si, estabelecendo um pedal de duas notas que percorre as harmonias referentes aos
graus I e V da tonalidade de R Maior.
Figura 2: Cirandinha n.7 Todo mundo passa (comp. 8-11 ). Pedal de duas notas alternadas implcito em
figuraes de acompanhamento harmnico.
39
Figura 3: Impresses seresteiras (comp. 84-89). Pedal por meio de notas reiteradas, em textura de grandes
amplitudes verticais.
Figura 4: Prole do Beb n.2 / VII O Passarinho de panno (comp.72-76 ). Pedal como elemento unificador em
texturas complexas e dinmicas.
40
Figura 5: Hommage Chopin Nocturne (comp. 12-20). Pedal de duas notas intercaladas em processo de
adensamento textural.
Figura 6: Cirandinha n 11 Nesta rua tem um bosque.... (comp. 1-5 ). Ostinato em relao de inter-dependncia
homo-direcional ao componente inferior.
6
A independencia e interdependencia interlineares representam o grau de autonomia entre os componentes
de uma textura, e so expressaspor fatores essenciais: direcional, intervalar e conformidade ou disparidade
rtmica (Berry, 1987: 213). Situam-se dentre os fatores texturais qualitativos mais determinantes.
41
O gatinho de papelo (Figura 7) oferece-nos um exemplo bastante similar ao
anterior. Apresenta, j em seu incio, um componente ostinato (que bem poderia ser
considerado um pedal de duas notas intercaladas, no fosse a definio de um padro
rtmico claramente identificvel), em torno do qual construdo um complexo textural
de grande demanda tcnico-pianstica.
Figura 7: Prole do Beb n 2 / VII O Passarinho de panno (comp. 1-13 ). Ostinato em complexo textural.
42
Lobos, afirma que a importncia da concepo textural diminui na medida em que
determinada obra apresente elementos organizadores voltados para as relaes
tridico-tonais (Salles, 2009: 70). Entretanto, ainda que Villa-Lobos no abdique
absolutamente de uma orientao tonal em suas peas didticas, ele no raro dilui esta
orientao por meio de tratamentos que recusam os arqutipos texturais tonais tais
como figuraes de acordes ou arpejos, valendo-se de recursos como reiteraes de
notas ou continuados movimentos escalares. So situaes nas quais que se subvertem
as definies de homofonia e polifonia.
Cirandinhas n 12 Que lindos olhos que ella tem... (Figura 8) nos oferece um
explcito exemplo no qual, se no se pode falar em uma franca polifonia, tampouco se
reconhece uma homofonia tpica das texturas de melodias acompanhadas, dada a
independncia de direo, ritmo e articulao de seus dois componentes.
Figura 8: Cirandinha n 12 Lindos olhos ella tem (comp. 18-23). Textura entre homofonia e
polifonia.
43
Figura 9: Cirandinha n 7 Olha o passarinho Domin (comp. 67-74 ). Textura entre homofonia e
polifonia.
Dobramentos e Paralelismos
44
Figura 10: Cirandinha n 7 Olha o passarinho Domin (comp. 1-8). Paralelismo de 3as.
Figura 11: Prole do Beb n 2 / IX O Lobosinho de vidro (comp. 113-121 ). Componentes em densos
paralelismos.
45
Ativao de texturas simples
Figura 12: Cirandinhas n 9 Carneirinho, Carneiro. (comp. 30-34). Ativao de textura simples por
meio de valorizao de contratempo.
Figura 13: Cirandinhas n 1 Zangou-se o cravo com a rosa. (comp. 29-32). Ativao de textura
simples por meio de agrupamentos assimtricos no componente de acompanhamento.
46
A Baratinha de papel (Figura 14) demonstra como, em peas mais ousadas,
uma simples textura monofnica pode ser dinamizada por meio de acentuaes
assimtricas.
Figura 14: Prole do beb n 2/I . (comp. 1-4 ). Ativao de textura simples por meio de acentuaes assimtricas.
Figura 15: Cirandinhas n 12 Lindos olhos ella tem. (comp.1-3). Textura resultante de componentes
complementares.
47
Figura 16: Prole do Beb n.2 / VII O Passarinho de panno (comp.1-12). Textura resultante de
componentes complementares.
Por fim, a restrio de espao textural em peas didticas torna ainda mais
vlido um recurso empregado tambm em peas mais avanadas: a sobreposio de
camadas em um mesmo espao textural. Observamos, na Cirandas n 12 Que
Lindos olhos que ella tem... o compartilhamento de um mesmo espao textural por
dois componentes concorrentes.
Figura 17: Cirandinhas n 12 Lindos olhos ella tem. (comp.13-15). Componentes concorrentes
compartilhando um mesmo espao textural.
48
O popular Choros (n 5) Alma Brasileira apresenta o mesmo recurso, agora
com amplitudes de oitavas.
Figura 18: Choros n 5 Alma Brasileira. (comp. 26-28). Componentes concorrentes compartilhando
um mesmo espao textural.
5. Consideraes Finais
49
seu pblico infantil com louvvel respeito: ofereceu a ele, ao invs de peas
composicionalmente ingnuas, pequenas obras portadoras de sofisticados recursos
composicionais, ainda que evidentemente adequados aos seus propsitos.
A srie das Cirandinhas proporciona um notvel testemunho de que, em suas
peas didticas, Villa-Lobos foi aquele mesmo Villa-Lobos das obras mais
grandiosas, definido por Renata Botti como um arteso de texturas (Botti, 2003a, p.
80). Com isso, no exagero afirm-lo como um dos poucos compositores do sculo
XX que souberam aplicar em peas direcionadas a crianas e iniciantes um elaborado
pensamento composicional, sem abdicar da simplicidade e economia necessrias a
peas com este propsito, e tampouco se submeter a lugares-comuns texturais.
6. Referncias Bibliogrficas
50
VILLA-LOBOS, Heitor. Prole do Beb no. 1. Partitura. So Paulo: Irmos Vitale,
2009.
VILLA-LOBOS, Heitor. A Prle do Bb no. 2. Partitura. Paris: Max Eschig, s/d.
http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1276802448_ARQUIVO_art
igorecuperadoanpuh17%5B1%5D.pdf. Artigo de Maristela Barros Pinto
intitulado Luclia Guimares Villa-Lobos histria de vida de uma mulher
musicista e artista e seu trabalho silencioso junto ao mestre Villa-Lobos,
apresentado no XIV Encontro Regional da ANPUH-RIO, em 2010. Acessado
em 30/10/2012.
http://www.museuvillalobos.org.br/. Catlogo completo das obras. Acessado em
25/10/2012.
51
Paradigmas Semntico-Musicais nas Canes para Voz e Piano de
Heitor Villa-Lobos Propostas para uma Interpretao
Nahim Marun
Instituto de Artes da UNESP - So Paulo / nmarun@uol.com.br
Resumo: Anlise de alguns paradigmas encontrados nas canes para voz e piano de Villa-Lobos,
partindo-se de alguns conceitos filosficos desenvolvidos por Marc-Mathieu Mnch e de Nicolas
Mees. A hiptese agrupou analogamente canes de Villa-Lobos, baseadas em poemas de lngua
portuguesa histrica, sobre escritos rsticos da zona rural, sobre textos afro-brasileiros, canes sobre
linguagem ou temtica indgena, obras baseadas no cancioneiro infantil e criaes sobre textos de
poetas da literatura erudita, de origem portuguesa ou brasileira. As profundas relaes semiticas entre
a origem da palavra e a composio musical podem apontar caractersticas importantes do estilo
musical do compositor e tambm sugerir alguns aspectos relevantes para a performance de sua obra.
Palavras-chave: II Simpsio Villa-Lobos; Canes para voz e piano; Anlise musical; Paradigmas e
estilo; Interpretao musical.
Semantical and Musical Paradigms in Villa-Lobos Songs for voice and piano:
Proposals for Interpretation
Abstract: Analysis of some paradigms found on Villa-Lobos songs, thought after some philosophical
concepts developed by Marc-Mathieu Mnch and Nicolas Mees. The hypothesis used similarities to
group together some Villa-Lobos songs, based on poems of ancient portuguese literature, on
countrysides rustic writings, on african-brazilians themes, on indians subjects, on children's themes
and also works based on poetry of important writers of brazilian or portuguese literature. The deep
semiotic relationships between the lyrics sources and the craft of the composition can point important
features in Heitor Villa-Lobos musical style and they can also raise some relevant issues for its
performance.
Keywords: II Simpsio Villa-Lobos; Songs for voice and piano, Paradigms and style; Musical
analysis, Musical performance.
As Origens da Pesquisa
52
Brasil na Frana, em 2005, com recitais inteiramente dedicados Villa-Lobos.
Posteriormente, entre 2008-2009, o duo registrou do mesmo compositor, o CD gua
de Fonte, com o ciclo completo das catorze Serestas, o primeiro caderno das
Modinhas e Canes e as Deux Paysages, lanado pelo selo Clssicos, de So Paulo.
O processo de criao interpretativa foi bastante intenso, e demonstrou que as
canes de Villa-Lobos se relacionavam com seus textos de uma maneira muito
particular e interessante. Em um primeiro momento, o duo optou por imbuir-se na
intensidade da msica e da poesia para posteriormente encontrar, construir e depurar
algumas ideias que se colocaram fundamentais para sua interpretao. Importante
ressaltar que a grande maioria desses caminhos no apareciam anotados na partitura
impressa, e foram encontrados atravs das vrias relaes potico-musicais
subliminares.
Refletiu-se sobre os andamentos adequados para cada obra, a construo do
carter de cada grupo, as opes pelo uso do tempo rubato ou estrito, as nfases na
pulsao ou na mtrica do compasso e a amplitude da palheta dinmica para cada
caso particular. Outras questes tcnicas surgiram, oriundas das partes individuais. Na
parte vocal, considerou-se a intensidade do vibrato, as variaes timbrsticas e os
possveis maneirismos na pronuncia dos textos. Pianisticamente, considerou-se a
aplicao dos pedais para se valorizar o carter timbrstico de cada obra, bem como
sobre aspectos qualitativos e quantitativos dos toques, dos contrastes dinmicos e do
fraseado musical.
De parte desse processo criativo, surgiu um projeto deste pianista para um ps-
doutoramento na Universit Paris-Sorbonne (Paris IV) em 2009/2010, com
orientao da musicloga Danile Pistone, denominado Reviso crtica de trinta e
trs canes de Heitor Villa-Lobos publicadas pela editora Max-Eschig. O autor
comparou os manuscritos e transcries disponveis no museu Villa-Lobos e na
Biblioteca Nacional da Frana - BnF, com suas respectivas edies, presentes no
mercado editorial.
53
Os Conceitos Filosficos de Marc-Mathieu Mnch, as relaes
paradigmticas de Nicolas Mees e suas conexes com as canes de Heitor
Villa-Lobos
2
O
foco deste artigo so as canes com texto em portugus; assim sendo, no abordaremos obras
sobre textos em lngua francesa, de forte influncia impressionista, como L'Oiseau (1910), Les Mres
(1914), La Cigogne (1915) e Historiettes (1920), anteriores ao perodo parisiense do compositor,
quando tomou contato com a nova esttica francesa, liderada pelas ideias de Jean Cocteau (1889-1963).
54
um sistema usado como metalinguagem do outro. (Mees, 1992: p.3). Segundo o
filsofo francs Marc-Mathieu Mnch:
Mnch define a obra de arte como uma expresso material especfica, parte
de um sistema interativo que inclui o domnio ficcional do criador e de um receptor
disposto a colaborar a uma percepo global da obra, deixando nascer assim um
efeito especfico, designado efeito de vida (Journeau, 2009: p.57). O conceito de
Mnch depende da coeso dos elementos artsticos envolvidos. Conjuntamente com
os estados de alma (sentimentos) e aspectos formais (razo), a coerncia da obra de
arte provoca associaes de imagens (imaginao), ou seja, determinaes exgenas
que so diretamente transportadas para a msica por diversas analogias mentais.
Um dos fatores que conferem grande coeso msica de Villa-Lobos o
comprometimento filosfico de sua msica com os valores intrnsecos da cultura
brasileira da sua poca e de outrora, sejam eles sentimentais, racionais ou imagticos.
As clulas, motivos e temas, altamente identificveis dentro dos valores nacionais,
apontam para significados mltiplos, remetendo-nos ao conceito lingustico da
isotopia3. Sua forma, estrutura e texturas musicais so construdas partir de vrios
sintagmas, que se relacionam, se reelaboram e se transfiguram continuamente,
promovendo uma percepo sinestsica no receptor, elevando sua criao musical
categoria de obras de arte capazes de tocar no s uma faculdade do esprito, mas de
entrar de uma tal forma dentro da conscincia que o estmulo original toca todas as
faculdades, colocando-as em total relao (Journeau, 2009: p.41). A musicloga
Danile Pistone faz uma reflexo elucidativa sobre o conceito de Mnch:
55
poder modificar a escuta. Assim sendo, em uma segunda escuta, a
experincia ser totalmente diferente, pois j ser uma lembrana. O
pblico escuta com sua experincia de vida, com sua cultura. (apud
Journeau, 2009: p.61-2).
56
Figura 1. Candido Igncio da Silva. Modinha Busco a campina serena (sc. XIX), c.14-18.
Figura 2. Villa-Lobos. Chansons Typiques Brsiliennes - Tu passaste por esse jardim (1919), c.5-11.
Propostas interpretativas
57
ser aplicados cuidadosamente, para no se carregar o discurso musical com
previsibilidades aggicas e arrebatamentos romnticos excessivos, que tirariam a
simplicidade e a naturalidade da interpretao. O andamento tempo deve ser
retomado levemente pelo pianista nos stacattos, com discreta liberdade na execuo
das colcheias, lembrando uma pequena cadenza, maneira da guitarra. O
acompanhamento deve se espelhar no estilo clssico europeu e empregar uma palheta
dinmica reduzida. O timbre da linha vocal expressivo e nostlgico, com liberdade
aggica semelhante ao bel canto clssico-romntico, explorado por Vincenzo Bellini
(1801-1835). O uso do vibrato deve ser sbrio, mas ao mesmo tempo deve comunicar
um sentimento nobre e melanclico, caracterstico das modinhas imperiais brasileiras.
O segundo tipo aborda canes baseadas em textos simples e rsticos, comuns
na zona rural brasileira. Os textos de Viola quebrada, Itabaiana, Adeus Emma, Papai
Curumiassu e Cabca de Caxang, das Chansons Typiques Brsiliennes e Na corda
da viola, do ciclo Modinhas e Canes II so correspondidos por uma linha meldica
vocal que polariza alguns centros tonais, sem grandes saltos virtuossticos. O
acompanhamento pianstico segue a simplicidade e a simetria da linha meldica
principal e explora ostinatos musicais que reproduzem os maneirismos tpicos dos
violeiros do interior do pas. As harmonias mudam sobre notas pedais, criando um
ambiente musical muito recorrente e cclico.
Propostas interpretativas
58
59
Propostas interpretativas
60
reticente e melanclico, mas quando alude aos seus rituais mgicos, incisivo e
ameaador.
O quarto grupo traz canes com linguagem ou temtica indgena, que
correspondem em Villa-Lobos a um estilo ritualstico, com emprego sistemtico de
escalas musicais exticas aos ouvidos da poca. Manoel Correia do Lago aponta uma
peculiaridade da obra de Villa-Lobos, quanto a presena de um grupo relativamente
pequeno de temas musicais, mas que apresentam muita recorrncia. Ao longo de
obras e pocas distintas, os temas indgenas, notadamente dos cantos Parecs,
registrados em 1912 por Roquette Pinto, passariam a ser presena constante na sua
obra. (Correia do Lago, 2003: p.107-108). Segundo observaes de Correia do
Lago:
61
primitivista da linguagem musical. Na parte vocal, apropriado buscar-se um
timbre claro e metlico, caracterstico do canto dos indgenas. O timbre vocal dos
nativos brasileiros bastante peculiar e pode servir de inspirao para a criao de
personagens baseados nessa temtica. Tarasti (1995: p.223) sugere que o cantor
aplique a tcnica do microtonalismo durante a interpretao da melodia, fazendo
assim referncias tcnica vocal utilizada pelos indgenas.
O penltimo grupo que abordaremos trata de canes que traduzem a
imprevisibilidade caracterstica da infncia, com fortes referncias as cantigas de
roda, ou a sua ambientao musical. Villa-Lobos explora uma msica leve, simples e
descompromissada, plena de surpresas e fantasias. Esse tipo de recorrncia temtica
salientado por Correa do Lago: a referncia j se observa nas colees para piano
da dcada de 1910 Petizada (1912) e Brinquedos de Roda (1912) e que culmina,
nos anos 30, com a elaborao do Guia Prtico. (2003: p.108). Encontramos
exemplos significativos do cancioneiro infantil, harmonizados nas sries de Modinhas
e Canes volume I e II: A Gatinha Parda e Manda Tiro, Tiro L.
Propostas interpretativas
Enfatizar a mtrica da frmula de compasso, com seus respectivos apoios nos
tempos principais e leveza nos tempos secundrios. Os intrpretes devem escolher
tempos geis que favoream a delicadeza do discurso musical. Pode-se eleger
algumas direcionalidades para o fraseado, com uso discreto do rubato, para no
descaracterizar as fortes intenes rtmicas. Os rallentandos e fermatas, quando
solicitados pelo compositor, podem ser bem valorizados para se estabelecer contraste
rtmico com a retomada do tempo primo. Sugere-se um timbre vocal claro, sem
vibratos excessivos e que favorea a simplicidade e o bom humor do personagem.
O ltimo grupo de canes que abordaremos so baseadas em obras de poetas
renomados da literatura brasileira, como Abgar Renault (1901-1995), Carlos
Drummond de Andrade (1902-1987), Dante Milano (1899-1991), David Nasser
(1917-1980), Manuel Bandeira (1886-1968), Ribeiro Couto (1898-1963), Ronald de
Carvalho (1893-1935), entre outros. Nesse grupo, os paradigmas so menos
coligveis por uniformidade temtica, pois Villa-Lobos traduz as particularidades de
cada poesia com peculiar argcia psicolgica e musical. Comentaremos a seguir,
62
algumas obras do requintado ciclo das Serestas como Abril, Cantiga do Vivo,
Serenata e Vo, assim como Manh na Praia e Tarde na Glria, das Deux Paysages.
As particularidades mencionadas determinam propostas interpretativas tambm
distintas para cada cano. A melodia geralmente demanda grande expressividade
vocal e muita preparao tcnica do solista e a escrita instrumental do
acompanhamento sofisticada, com frequentes intervenes importantes do piano.
Vejamos alguns exemplos como na introduo da cano Abril, n.9 da coleo
das Serestas. Nesse caso, o piano representa metaforicamente os relmpagos e troves
da tempestade (c.1 a 9), que logo em seguida se diluem em gotculas dgua (c.10 e
11). Villa-Lobos delega ao canto a funo de expressar textualmente a calma da
bonana trazidas pela estiagem. Pode-se obter um interessante efeito de pedal
sustentando-se a nota Re b grave do compasso 7 com o pedal central, at sua completa
extino na seo musical seguinte (menos animado). O efeito permite uma
superposio das camadas expressivas, permitindo que a memria da primeira parte
continue na segunda parte da cano, como uma reminiscncia da tempestade.
63
Na Seresta n.13, Serenata, Villa-Lobos escreve uma parte pianstica com
caractersticas de obra solista, que pode nos remeter ao lirismo da primeira seo do
Choros n.5 - Alma Brasileira para piano solo, explorando uma harmonia rica que
estiliza, com sofisticao, os conjuntos seresteiros populares. Aps a introduo em
estilo tpico dos chores, evocando violes, bandolins e cavaquinhos, surgem os
seresteiros cantando e os violes suplicando que continuam metaforicamente tecendo
seu rico contraponto com a melodia vocal, por toda a cano.
4
Segundo o Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa: Anfora a repetio de uma palavra ou grupo
de palavras no incio de duas ou mais frases sucessivas ou de versos, para enfatizar o termo repetido.
Anttese figura pela qual se opem, numa mesma frase, duas palavras ou dois pensamentos de sentido
contrrio. Metfora a designao de um objeto ou qualidade mediante uma palavra que designa outro
objeto ou qualidade que tem com o primeiro uma relao de semelhana. Metonmia figura de
retrica que consiste no uso de uma palavra fora do seu contexto semntico normal, por ter uma
64
Vejamos o crescendo metonmico, nos aspectos dinmicos e harmnicos da
Seresta n.7, Cantiga do Vivo, ao traduzir o emocionante texto de Carlos Drummond
de Andrade: uma sombra veio vindo, veio vindo, me abraou. A mesma figura de
linguagem pode ser vinculada ao fraseado da linha do baixo, quando se refere
sombra, que pouco a pouco se aproxima.
65
66
Figura 10. Villa-Lobos Deux Paysages, n.2 - Tarde na Glria (1946), c.25-32.
67
68
Tabela 1. RESUMO: Alguns paradigmas estilsticos e interpretativos em canes de Villa-Lobos
Canes (exemplos) Linguagem Musical Texto Aspectos Estilsticos e
Interpretativos
- Estilo caracterstico das
modinhas da corte brasileira e
Lund da Marquesa (MC1)
Harmonia tonal, melodia com portuguesa,
Tu Passaste por este Jardim (CTB) fraseado curvilneo, amplo, - Influncias do Bel Canto
Portugus tpico do Brasil Italiano,
sentimental e evocativo.
Plida Madona (CTB) colonial. - Andamento moderato,
Acompanhamento discreto com
ritmo tranquilo. - Rubatos moderados e tempos
flexveis,
- Fraseado curvilneo,
- Uso moderado do vibrato vocal.
Abreviaturas: CTB - Chansons Typiques Brsiliennes, TPI - Trois Pomes Indigenes, MC1 ou 2 - Modinhas e Canes I e II,
S Serestas, DP - Deux Paysages.
69
Concluso
1- Referncias Bibliogrficas
70
JOURNEAU, Vronique Alexandre, dir. Music et effet de vie. Paris: LHarmattan,
2009.
MARIZ, Vasco. A cano de cmara no Brasil. Porto: Livraria Progredir, 1948.
MARUN, Nahim. Reviso crtica das canes de Villa-Lobos. So Paulo: Cultura
Acadmica, 2010.
MEES, Nicolas. propos de logique et de signification musicale (1991). Paris:
Analyse musicale 28, p.1-4, 1992.
MEES, Nicolas. Les rapports associatifs comme determinants du style, version
revue (2006). Paris: Analyse musicale 32, p. 9-13, 1993.
MNCH, Marc-Mathieu. Leffet de vie ou le singulier de lart. Paris: Champion,
2004.
PISTONE, Danile. Matriaux, structure et vie musicale. In: JOURNEAU, Vronique
Alexandre, dir. Musique et effet de vie, Paris: LHarmattan, 2009, p.59-76.
TARASTI, Eero. Villa-Lobos the life and works 1887-1959. Jefferson, North
Carolina: McFarland & Company, 1995.
71
Mesa 2 Histria, Nacionalismo e Identidade em Villa-Lobos
Resumo: Desde o Ensaio sobre a Msica Brasileira, publicado por Mrio de Andrade em 1928 j
ficava patente o papel central que Villa-Lobos viria a assumir na construo de uma msica e de uma
identidade nacionais. A influncia do pensamento de Mrio de Andrade pode ser percebida no apenas
no direcionamento esttico de importantes compositores do sculo XX, mas tambm na produo
musicolgica e historiogrfica da poca, com a construo quase mtica que se fez de Villa-Lobos
como o grande gnio musical brasileiro. Assim, o presente trabalho prope abordar a recepo da
figura de Villa-Lobos por meio do comentrio e discusso de alguns textos clssicos de crticos e
historiadores da msica brasileira.
72
do passado uma questo que est ligada no apenas habilidade tcnica do
compositor, mas tambm ao papel do crtico e da ideologia. Com efeito, diz Weber
(2001: 354), desde o incio, a ideologia do cnone musical foi manipulada para fins
sociais e polticos. Desse modo, um dos principais problemas com os quais o
historiador da msica se v confrontado diz respeito elucidao do papel social e
poltico desempenhado por determinados autores e obras considerados cannicos.
O caso da msica de Villa-Lobos e de sua recepo nos livros de histria da
msica brasileira na primeira metade do sculo XX parece ser exemplar nesse sentido,
uma vez que a sua msica , via de regra, interpretada como a expresso mais acabada
do carter nacional brasileiro.1
73
preocupando-se em destruir a arte do passado e do presente (CERNICCHIARO,
1926: 574).
Que desastre [...] para um jovem de engenho notvel e fecundo, que nos
primeiros alvores de sua carreira de compositor, a sua arte se que se
pode chamar de arte aquela que no tem em vista a forma e a beleza se
reduza a toda e qualquer novidade brotada de sua estranha fantasia, a
uma coisa vaga e indeterminada, e ideias hostis nobre escola da arte,
verdadeira e sincera. [...] J no h dvidas de que a fatal influncia do
modernismo que nos infesta e que no tardar a desaparecer
idealidade feita de dogmas e pedantismos e que jamais consegue deliciar
voluptuosamente a coletividade [...] conduz o hbil Villa-Lobos ao
caminho no qual somente a vaidade, o oportunismo e a falta de convico
encontram refgio. Por esta razo, a histria no pode se pronunciar
acerca da obra de Villa-Lobos, pois se dissesse que esta feita de clareza,
de sentimento, de inspirao, de forma, de lgica, de esprito sereno e
tcnica excelente, estaria dizendo uma mentira. A posteridade prefere as
obras-primas iluminadas pelo gnio fecundo da arte sincera e meldica,
ao invs das estranhezas contrapontsticas, as ideias barrocas da moda, e
que com a moda desaparecem (CERNICCHIARO, 1926: 574).
74
3- A influncia da Semana de Arte Moderna: as leituras de Renato Almeida e
Mrio de Andrade
75
parecido a espritos ligeiros e frvolos (ALMEIDA, 1926: 139). Pelo contrrio, ela
brota de uma necessidade profunda dos homens de seu tempo, que consistia em ir
alm das formas usadas e gastas da msica romntica. possvel perceber no texto de
Renato Almeida uma grande valorizao da msica como arte autnoma, que
encontra sua justificativa nela mesma, e no mais numa pretensa imitao da natureza
ou dos sentimentos:
Renato Almeida defende uma msica pura: analogamente ao que ocorrera nas
artes plsticas, em que as cores e as formas foram libertados pela arte abstrata,
tambm o som deveria se tornar um valor absoluto, no sendo mais simples
expresso formal, mas fora livre, capaz de despertar a emoo pela maravilha de
seu toque, sem acessrios ou roupagens. (ALMEIDA, 1926: 151). Dessa forma,
poder-se-ia rebater a crtica de Cernicchiaro (segundo o qual faltava a Villa-Lobos um
conhecimento aprofundado dos mestres do passado) argumentando-se que, no projeto
moderno, a originalidade que est em jogo: Imitar o passado o apangio dos
espritos menores e das pocas infecundas [...]. Os modernos so admirveis sempre
porque so livres e realizam sua maneira, esto com sua poca e desafiam todos os
reacionrios e conservadores (ALMEIDA, 1926: 157-58).
Para Almeida, justamente o que chama a ateno em Villa-Lobos a sua
qualidade de criador. Dotado de uma personalidade exorbitante, Villa-Lobos
domina a arte e se recusa a aceitar as frmulas, mesmo as que cria, pelo anseio
constante de sensaes novas, onde seu esprito se sinta cada vez mais livre
(ALMEIDA, 1926: 165-66).
O historiador afirma que Villa-Lobos um compositor que pode ser tambm
caracterizado como sendo profundamente brasileiro. No se trata de um simples
76
paisagista, preocupado em copiar a natureza, tampouco de um folclorista que vivesse
aproveitando os motivos populares para estilizaes. Pelo contrrio, a
personalidade exorbitante de Villa-Lobos tem a animar sua arte o esprito da
terra, no fulgor da natureza, na melancolia do homem, enfim, na incerta psique
brasileira, a um tempo audaciosa e tmida, violenta e retrada(ALMEIDA, 1926:
169).
Almeida deixa claro que a arte brasileira no deve se confundir com o mero
aproveitamento dos motivos populares. O compositor que deseja fazer msica
brasileira deve aspirar a algo maior: revelar o nosso esprito em toda a sua sugesto,
no seu ritmo, no seu ambiente (ALMEIDA, 1926: 172).
Um aspecto interessante no texto de Almeida a caracterizao de alguns
aspectos do carter nacional do brasileiro: este seria dotado de uma elevada
sensibilidade musical que nos tornaria perfeitamente aptos a criar uma msica
nacional livre, filha do nosso ambiente e reflexo da varivel e mltipla psique
brasileira. Para tanto, seria necessrio nos livrarmos das escolas e dos
preconceitos estrangeiros, das cpias e das imitaes, sentirmos por ns mesmos,
com toda a fora e barbrie de um temperamento jovem, neste mundo jovem que
habitamos (ALMEIDA, 1926: 178). Assim, ele exorta os compositores a realizar
essa arte independente, aproveitando toda a riqueza formidvel de ritmos, essa
abundncia prodigiosa de cor, essa exuberncia da natureza magnfica
(ALMEIDA, 1926: 178-79).
Quanto a Villa-Lobos, o historiador reconhece que ainda no era possvel
determinar com exatido qual seria a sua influncia na arte brasileira. Mas enxerga
nela a promessa de realizao desse objetivo: A sua msica pode no ter ainda a
forma definitiva de nossa grande realizao musical, mas uma das maiores
contribuies para esse esforo libertador, que reintegrar na nossa msica o
maravilhoso ritmo brasileiro (ALMEIDA, 1926: 173). E conclui:
77
prodigiosa que nos oferece o destino. Nelas as nossas mos rudes
modelaro a esttua do nosso ideal, que ser perptua, imperecvel e
perfeita. (ALMEIDA, 1926: 174)
[...] por mais respeitoso que a gente seja da crtica europeia carece
verificar de uma vez por todas que o sucesso na Europa no tem
importncia nenhuma pr Msica Brasileira. [...] No caso de Vila-Lobos
[sic], por exemplo, fcil enxergar o coeficiente guass com que o
exotismo concorreu por sucesso atual do artista. [...] Ningum no
imagine que estou diminuindo o valor de Vila-Lobos no. Pelo contrrio:
quero aument-lo. Mesmo antes da pseudo-msica indgena de agora
Vila-Lobos era um grande compositor. A grandeza dele, a no ser pra uns
poucos [...] passava despercebida. Mas bastou que fizesse uma obra
extravagando bem do continuado pr conseguir o aplauso (ANDRADE,
1962: 14)
Para ele, uma arte nacional j est feita na inconscincia do povo. O artista
tem s que dar pros elementos j existentes uma transposio erudita que faa da
msica popular, msica artstica (ANDRADE, 1962: 16). Mrio de Andrade critica
de maneira virulenta os compositores que insistiam em escrever msica universal. Ele
insiste em sublinhar a todo momento o papel social da msica e a necessidade de sua
adequao sua poca, o que correspondia nacionalizao das artes. O critrio
histrico para a Msica Brasileira de sua poca, portanto, deveria ser o da
manifestao musical que sendo feita por brasileiro ou indivduo nacionalizado,
reflete as caractersticas musicais da raa. Onde que estas esto? Na msica
popular. (ANDRADE, 1962: 20).
Se o Ensaio tinha um formato quase de manifesto, o aspecto propriamente
histrico ser aprofundado num texto de 1939 dedicado a Oneyda Alvarenga, e
posteriormente publicado sob o ttulo Aspectos de Msica Brasileira. Ali encontramos
Carlos Gomes como principal representante do internacionalismo musical que
78
caracterizou o sculo XIX brasileiro; Levy e Nepomuceno como profetizadores da
nossa brilhante e inquieta atualidade ainda que de modo deficiente (ANDRADE,
1975: 32). Villa-Lobos aparece aqui j como uma das figuras mais importantes da
msica universal contempornea. Sua originalidade e importncia estariam
justamente no fato de ter abandonado o internacionalismo afrancesado de maneira
consciente e sistemtica, para se tornar o iniciador e figura mxima da fase
Nacionalista em que estamos (ANDRADE, 1975: 33).
5 Mariz abre o livro com os dizeres: O povo brasileiro sempre foi musical. Alis, os seus elementos
formadores o foram em grande escala. [...] Trs raas concorreram para a ecloso do tipo brasileiro: a
branca, a negra e a vermelha. Dos ndios ele comenta apenas que tiveram pouca interferncia na
concretizao da msica nacional brasileira, dos negros ele ressalta a contribuio rtmica, alm de
afirmar que eles teriam impresso acentuada lascvia nossa dana e nela introduziram um carter
dramtico ou fetichista. Por fim, a influncia branca (portuguesa, espanhola, francesa e italiana), que
teria sido a mais relevante segundo ele: Esse chover sucessivo de liras populares estrangeiras sobre o
povo brasileiro veio alimentar-lhe, ainda mais, o pendor pela msica. Todo esse copioso e variadssimo
material amalgamou-se e, no ltimo quartel do sculo passado [sc. XIX], produziu os primeiros
espcimes eruditos da msica brasileira. Apesar da natureza esmagadora, cheia de contrastes e de
exuberncias, o nacionalismo musical no Brasil s se afirmou, em linhas vigorosas, com Heitor Villa-
Lobos (MARIZ, 2005: 21-22).
79
Ensaio sobre a msica brasileira e a defesa incondicional do nacionalismo em
msica.
Quanto imagem de Villa-Lobos, encontramos aqui pela primeira vez os
mitos em torno dos anos de formao6 daquele que estava predestinado a ser nosso
gnio musical maior, o desbravador, aquele que aplainou o caminho espinhoso da
brasilidade para as novas geraes e que conseguiu realizar a expresso musical do
Brasil. (MARIZ, 2005: 27):
80
acadmicos. Os comentrios a respeito das obras so sempre marcados por um
carter profundamente ufanista: o sentido profundo da srie de Choros seria a
glorificao da terra natal (AZEVEDO, 1956: 265), um reflexo da msica popular e
da voz da natureza. Para sustentar seu ponto de vista, o musiclogo cita um
comentrio do prprio compositor aos Choros N 6 : o clima, a cor, a temperatura, a
luz, os pios dos pssaros, o perfume do capim melado entre as capoeiras, e todos os
elementos da natureza do serto, serviram de motivos de inspirao a esta obra
(VILLA-LOBOS apud AZEVEDO, 1956: 265). Publicado nos ltimos anos de vida
do compositor, Azevedo conclui seu exame ressaltando o seu mpeto criativo: suas
obras continuam a florir, trazendo aquele perfume sutil da terra natal que ele foi o
primeiro a ir buscar no mago da alma popular e da natureza do Brasil.
(AZEVEDO, 1956: 272).
5- Consideraes Finais
6- Referncias Bibliogrficas
81
ALMEIDA, Renato. Histria da Musica Brasileira. 1 Ed. Rio de Janeiro: F.
Briguiet & Comp., 1926.
______. Histria da Musica Brasileira. 2 Ed. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Comp.,
1942.
ANDRADE, Mrio de. Aspectos de Msica Brasileira. 2 Ed. So Paulo: Martins;
Braslia: INL, 1975.
______. Ensaio sobre a msica brasileira. So Paulo: Martins, 1962.
AZEVEDO, Luiz Heitor Corra de. 150 Anos de Msica no Brasil (1800-1950). Rio
de Janeiro: Jos Olympio, 1956.
CERNICCHIARO, Vincenzo. Storia dela Musica nel Brasile: dai tempi coloniali
sino ai nostri giorni (1549-1925). Milano: Fratelli Riccioni, 1926.
CHAUI, Marilena. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritria. So Paulo:
Fundao Perseu Abramo, 2000.
CONTIER, Arnaldo Daraya. Msica e Ideologia no Brasil. So Paulo: Novas Metas,
1978.
GURIOS, Paulo Renato. Heitor Villa-Lobos: o caminho sinuoso da predestinao.
2Ed. Curitiba: Edio do autor, 2009.
MARIZ, Vasco. Villa-Lobos: o homem e a obra. 12. Ed. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 2005.
WEBER, William. The History of Musical Canon. In: COOK, Nicholas; EVERIST,
Mark. Rethinking Music. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 336-355.
82
Retoricidade e tpicas na msica de Villa-Lobos
Nome Accio T. C. Piedade
UDESC / acaciopiedade@gmail.com
Resumo: Proponho olhar a msica de Heitor Villa-Lobos sob a perspectiva da retrica e da teoria das
tpicas. Argumento aqui que o compositor trabalha o nvel da significao musical de forma muito
particular, muitas vezes utilizando tpicas da msica brasileira. De incio, tratarei de questes tericas
sobre a teoria das tpicas, especialmente no contexto dos estilos musicais nacionais. Em seguida,
apresentarei alguns universos de tpicas da musicalidade brasileira e, finalmente, mostrarei alguns
exemplos de como as tpicas aparecem em Villa-Lobos. Argumentarei que a noo de retoricidade
ilumina a compreenso de sua linguagem musical, concluindo que a densidade de tpicas um trao
importante de seu estilo.
Abstract: In this paper I propose an analysis of the music of Brazilian composer Heitor Villa-Lobos
under the perspective of musical Rhetoric and the theory of musical topics. I argue that the composer is
using topics of Brazilian music in a special way. The paper starts by addressing the theoretical
adaptation of the theory of musical topoi in the context of National musical styles. Then I present the
universes of Brazilian topics and discuss excerpts of works of Villa-Lobos in order to show how they
appear there and to argue that rhetoricity and density of topical meaning are important characteristics
of his style.
1- Introduo
Neste incio do sculo XXI, a obra de Heitor Villa-Lobos tem sido analisada
no Brasil sob uma renovada perspectiva que vem resgatando seu brilho original, mas
a compreenso de seu estilo continua sendo uma tarefa difcil. Isto talvez seja
decorrente de sua grande independncia criativa em relao a outros compositores
brasileiros de sua poca, pois se sabe que j na primeira dcada do sculo XX Villa-
Lobos estava trabalhando em uma linha que seria similar quela que viria a ser
preconizada pelo modernismo musical de 22 e pelo pensamento de Mrio de Andrade
(LUPER, 1965), que orientou o desenvolvimento de uma msica nacional brasileira.
Seu estilo tinha na poca muito mais proximidade com Stravinsky, Debussy e Bartk,
respirando idias que estavam no ar (ANTOKOLETZ, 2009), a esttica primitivista e
a dissoluo do tonalismo funcional, do que qualquer outro compositor brasileiro
83
desta dcada. Esta aparente incoerncia ou surpresa em relao continuidade do que
se supe ser uma linha evolutiva da composio brasileira, Villa-Lobos despontando
ali como um foguete desviante, certamente traz dificuldades na fixao de sua
imaginao musical no solo estvel (ou talvez, montono) da msica brasileira do
perodo.
Outra dificuldade para compreender Villa-Lobos talvez seja o fato de sua
msica ser profundamente tramada em termos semiticos, densamente povoada por
registros da cultura. De fato, o prprio Villa-Lobos fez declaraes nas quais se
coloca como um compositor que pinta impresses, paisagens, emoes, sua msica
sendo um veculo para a expresso de fenmenos entendidos como exteriores
obra (apud WISNIK, 1977, pp. 37-8). Seguindo esta via, a anlise da obra de Villa-
Lobos pode procurar novas perspectivas para se reportar a este nvel que transborda
em sua msica. Acredito que aquilo que vem sendo chamado de teoria das tpicas
pode contribuir muito neste esforo e, baseando-me em uma recente comunicao
(PIEDADE, 2012b), pretendo aqui trazer alguns comentrios sobre o uso desta teoria
neste contexto brasileiro e fazer um mapeamento preliminar de universos de tpicas
em Villa-Lobos.
84
repertrio clssico, muitas vezes explicitamente prescritos nas partituras, como os
termos scherzando ou fantasia, outras vezes implcitos ou tcitos, cabendo ao analista
especialista sua identificao. As tpicas, fortemente calcadas em aspectos scio-
culturais, portam significados que so compartilhados e reconhecidos pela audincia
na sua poca, se ligando tambm ao mundo literrio. Elas derivam de gestos
convencionais e de gneros familiares da comunidade que se situa na base da ao
afetiva das tpicas, cobrindo a expresso de um mundo complexo de comunicao,
fantasia e mito.
Este esforo musicolgico constitui uma nova perspectiva na investigao da
significao em msica que, a meu ver, deve ser aplicada no estudo de outros
universos musicais para alm da msica do perodo de prtica comum da msica
europia. Nesta direo, tenho tentado adapt-la para o caso da msica brasileira,
enfocando particularmente a msica popular e de concerto no perodo de transio
entre o sculo XIX e XX e nas primeiras dcadas do sculo XX (PIEDADE, 1997,
2011). A motivao para isso que penso que a teoria das tpicas uma ferramenta
poderosa para investigar a diversidade de repertrios musicais no interior de um
universo cultural delimitado, como aquele de uma msica considerada "nacional".
Alm disso, creio que durante o referido perodo da histria da msica brasileira
ocorreu a consolidao de gneros musicais que ainda hoje so estveis e operativos
como pilares de boa parte da msica brasileira. Lembro aqui que entendo gnero
musical a partir do estudo de Bakhtin sobre os gneros de fala (BAKHTIN, 1986; ver
PIEDADE, 2003, 2007), o qual a meu ver contempla a flexibilidade e o carter
dialgico dos universos musicais.
Porm, logo de incio apresenta-se o problema de definir o que msica
brasileira, o que acaba levando ao prprio conceito de nao, e ao falar de msica
"nacional" corro o risco de dar de encontro com tantas inconsistncias na questo
daquilo que considerado brasileiro ou no. Para alm da conceito geopoltico de
Estado-nao, muitos cientistas sociais concordam que a idia de nao arbitrria e
mesmo imaginria (ANDERSON, 1983). Embora sendo mera legislao e pura
conveno racional, uma nao freqentemente tomada como coisa objetiva no
mundo e justamente essa essencializao acaba levando a paradoxos e problemas
85
tericos. No pretendo aqui divergir para a problemtica da nao, j fartamente
estudada (ver BALAKRISHNAN, 1996), e por isso adoto uma posio pragmatista:
apesar de ser uma construo social, uma nao real na medida em que algo
fortemente experimentado pelas pessoas e, de fato, ela consenso tcito pelo menos
entre aqueles que nela vivem, sendo para eles um importante conceito nas suas vidas e
identidades. Ora, uma condio para se aplicar a teoria das tpicas a delimitao de
um contexto scio-cultural e histrico estvel, e quando se quer tratar de tpicas
nacionais o problema comea com a noo de nao. Assim, considerando essa
dimenso pragmtica da nao e a pertinncia da idia de comunidades histrica e
geograficamente situadas que compartilham um mundo musical, creio que se pode
falar de repertrios considerados como originrios do estado-nao Brasil como sendo
msicas brasileiras. Isto permite a construo de um contexto que no se restringe a
um perodo histrico especfico mas a um conjunto de musicalidades de uma
comunidade contempornea vivendo em seu territrio (PIEDADE, 2011).
Lembro que a musicalidade, como a identidade, um conceito contrastivo, de
maneira que somente pode existir uma musicalidade brasileira na medida em que
exista tambm uma musicalidade outra, por exemplo, argentina ou norte-americana. E
essa contrastividade se aplica tambm no interior da categoria musicalidade
nacional, pois h sempre vrios diferentes idiomas regionais que podem constituir
estilos musicais individuais que pertencem musicalidade entendida como tpica de
um pas. Por exemplo, no caso das tpicas da msica argentina (ver PLESCH, 2012),
certamente h uma musicalidade prpria no tango e outros gneros rio-platenses
(DOMINGUEZ, 2011) e se pode conceber que estes faam parte de uma categoria
mais ampla entendida como musicalidade argentina, a qual entretanto pode abarcar
estas musicalidades mas certamente no est limitada a elas. O mesmo pensamento
pode ser aplicado para se pensar qualquer relao de estilos e musicalidades nacionais
e regionais.
A dimenso retrica uma importante faceta da musicalidade, sendo parte do
esforo de construo e manuteno das suas identidades. algo corriqueiro na
musicologia falar em estilo francs ou estilo andaluz, ou ainda dizer que uma
passagem musical remete msica cigana ou chinesa, etc., enfim, mesmo um lugar
86
comum este tipo de comentrio. Ora, justamente a que entram as tpicas, pois elas
so os cristais desses lugares comuns, as topoi aristotlicas, os esteretipos que
embasam essas apreciaes. De onde se pode trazer a retrica para a base da
musicalidade, abordando sua constituio isotpica, onde tpicas e figuras so
elementos ativos (ver PIEDADE 2012a).
As musicalidades internas de uma nao constituem os diferentes universos de
tpicas a que me refiro, partindo do conceito desenvolvido por AGAWU (1991): um
universo de tpicas um conjunto musical-simblico, ele mesmo constitudo por
diversas tpicas correlacionadas, conjunto que pode ser isolado de dentro de uma
musicalidade mais ampla tal como entendida uma musicalidade entendida como
tpica de uma nao. Ou seja, universo de tpicas um termo genrico para reunir
algumas estruturas musicais e idias culturais e literrias as quais faz sentido separar
de outros universos. Estes elementos estruturais-culturais servem para conferir
retoricidade no texto musical, estando mo de compositores e intrpretes na sua
intencionalidade expressiva.
Em resumo, segundo esta concepo, as tpicas so os tijolos que formam a
cadeia isotpica, base sobre a qual a produo de sentido convencional, o cho dos
lugares comuns. Os ouvintes recebem a isotopia, as tpicas, sem surpresas, o tecido
musical tomado como pertinente, prprio, sem surpresas, correto. Na verdade a
que as tpicas entram em ao, e neste sentido pode-se dizer que sua efetividade
ocorre ao menos em parte de forma inconsciente, ou pelo menos, lgico-racional. Ou
seja, o ouvinte no ouve e decodifica "ah, isto uma tpica pastoral, logo eu absorvo
todos os significados inerentes a este gnero", mas sim essa cadeia semntica o
trespassa sem surpresa, visto que composta de lugares comuns, no sentido da
Retrica Geral do Grupo M (DUBOIS, 1970). Ocorre que as tpicas podem ter uma
salincia varivel, um grau de retoricidade maior ou menor. A retoricidade na msica
pode ser entendida portanto como a densidade de contedo retrico que se apresenta
em um trecho, em uma obra, ou mesmo em todo um repertrio musical.
Assim, podemos aplicar a teoria das tpicas nesta comunidade cultural e
historicamente situada que se entende enquanto uma nao, mesmo recortada por
diversos e divergentes estilos internos. E da se pode investigar a musicalidade
87
brasileira, como qualquer outra. Em seguida tratarei dos universos de tpicas na
musicalidade brasileira, apresentando pequenos exemplos musicais. Note-se que as
tpicas flutuam acima da fronteira popular-erudito, e deste modo tratarei da
musicalidade brasileira e do estilo de Villa-Lobos sem me ater a esta distino.
88
No exemplo acima, alm da "baixaria", o tema faz uma clara referncia a outro
universo de tpicas da musicalidade brasileira: as tpicas nordestinas. Fonte de
inspirao para compositores nacionalistas, a musicalidade geral do nordeste
brasileiro gerou muitas expresses musicais tomadas como profundamente brasileiras,
tais como o gnero baio e as vrias frmulas meldicas empregando de forma muito
particular o modo mixoldio ou o drico. A melodia do exemplo acima um caso
deste tipo, e entretanto este tema francamente nordestino dialoga com as linhas de
baixo que evocam o universo poca-de-ouro, que um conjunto musical-simblico
completamente diferente. Esta espcie de polifonia um exemplo de dupla remisso a
diferentes universos de tpicas que causa a confrontao de distintos mundos de
89
significado, provocando um tipo de excesso que uma caracterstica importante da
linguagem musical de Villa-Lobos, como vou concluir ao final deste trabalho.
O Preldio das Bachianas Brasileiras N. 2 (1933) comea com uma atmosfera
escura nas cordas, de onde surge um saxofone tenor solo que, pelo timbre, traz uma
aluso ao mundo do choro. O saxofone no choro uma contribuio importante de
Pixinguinha que estava em consolidao naquele momento. Essa remisso seguida
por um solo de trombone repleto de glissandi, emulando um estilo de canto poca-de-
ouro e ao mesmo tempo apontando para o modo de tocar este instrumento nos bailes
de gafieira, que estava em consolidao na poca em que esta composio foi escrita.
Nesta obra, as cordas, o saxofone solo e o trombone solo costuram a salincia
meldica. Aqui est presente o universo de tpicas poca-de-ouro, mas logo surge
uma seo central cheia de aluses meldicas, harmnicas e rtmicas a outro universo,
o das tpicas caipira, seguindo-se um retorno ao material inicial. Esta sucesso de
universos de tpicas pode causar a impresso de incongruncia expressiva, isto
devido ao carter escuro e densidade lrica da primeira e ltima sees em
contraposio simplicidade danante e inocente da segunda. Isto certamente parte
das intenes retricas de Villa-Lobos, algo que est curiosamente expresso no sub-
ttulo deste preldio, O Canto do Capadcio, o qual aparece traduzido na partitura em
diversas lnguas (Edies Ricordi) como "cano do campons". Ocorre que
"capadcio" era uma palavra usada no sentido de "malandro", o que aponta muito
mais para outro universo, o das tpicas brejeiro (PIEDADE, 2011).
A evocao do universo caipira traz um aspecto crucial do Brasil interiorano,
particularmente da regio Sudeste, onde houve a construo cultural desta figura e
modo de vida caipira, qual atribuda simplicidade, sinceridade, proximidade com a
natureza, entre outros aspectos culturais (OLIVEIRA, 2009). Villa-Lobos conhecia
perfeitamente este universo de tpicas e o colocou em ao em diversas obras, como
no Trenzinho do Caipira ou no Plantio do Caboclo, parte do Ciclo Brasileiro:
90
91
92
qual a idia de nobre selvagem proeminente. Em Villa-Lobos, o universo indgena
do o da floresta densa e remota, muito mais selvagem, s vezes brutal, o que
coerente com os ideais do movimento modernista de 1922 (BHAGUE, 2006) e com
a esttica primitivista (GORGE, 2000), o ndio aqui sendo muito mais o ndio livre e
anrquico de Macunama. Villa-Lobos ele mesmo foi chamado de ndio branco, um
compositor selvagem aos olhos europeus (CHIC, 1987). O fato que o universo de
tpicas indgenas muito importante no estilo de Villa-Lobos, particularmente nas
obras onde o compositor emprega melodias ditas "autnticas", como no caso das Trs
Danas Caractersticas (africanas e indgenas), onde h o uso de melodias dos ndios
Caripuna, supostamente coletadas pelo prprio compositor (ver MOREIRA, 2010).
4- Concluses
93
5- Referncias Bibliogrficas
94
PIEDADE, A. T. C. "Msica e Retoricidade". Anais do IV Encontro de Musicologia
de Ribeiro Preto. So Paulo: USP, 2012a.
PIEDADE, Accio T. C. "Rhetoricity in the music of Villa-Lobos: musical topics
Brazilian early XXth-century music". International Conference on Music
Semiotics in Memory of Raymond Monelle (CD-ROM). The University of
Edinburgh, 2012b.
PLESCH, Melanie. Topic theory and the rhetorical efficacy of musical nationalisms:
the Argentine case. International Conference on Music Semiotics in Memory
of Raymond Monelle (CD-ROM). The University of Edinburgh, 2012.
SALLES, P. T. Villa-Lobos: Processos Composicionais. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2009.
RATNER, L. G. Classic music: Expression, form, and style. New York: Schirmer
Books, 1980.
SISMAN, E. R. Mozart: The Jupiter Symphony, no. 41 in C major, K. 551.
Cambridge: Cambridge University Press, 1993.
WISNIK, Jos Miguel. O Coro dos Contrrios: a msica em torno da semana de 22.
So Paulo: Duas Cidades, 1977.
95
Mesa 3 - Sinfonizando o Brasil: Coro & Orquestra
Resumo: O Choros n 7 Settimino uma das obras mais elogiadas de Villa-Lobos, tanto em sua
bibliografia nacional quanto internacional. tambm uma obra muito tocada e conhecida, o que fez
com que surgisse, entre os intrpretes, quase uma tradio em sua execuo que se afasta um pouco
daquilo que foi prescrito pelo compositor. Um dos maiores desvios refere-se incomum indicao de
dinmica ou intensidade dos sons adotada pelo autor em toda a obra, que se caracteriza pela constante
diferenciao de nveis sonoros entre os instrumentos empregados, por diversas razes. Costuma-se
ignorar ou reduzir esta diferenciao, igualando as intensidades e dando obra um aspecto mais
tradicional e agradvel de ouvir. Algumas indicaes de andamento tambm deixam de ser observadas
com rigor. Questionamos e identificamos algumas destas prticas em favor de uma interpretao mais
fiel ao texto original da obra.
96
Villa-Lobos (Neves, 1977: 53). Paulo de Tarso Salles, em seu recente livro de estrito
cunho analtico, afirma que o compositor concentrou-se nas possibilidades do
material de forma muito mais sistemtica (Salles, 2009: 125). Mesmo Lisa
Peppercorn, entre diversos autores internacionais, no faz qualquer restrio obra:
97
instrumentos, escrito com valores rtmicos cujas duraes equivalem exatamente ao
dobro dos valores de sua apario inicial, entretanto sob uma indicao metronmica
diferente: semnima igual a 132, ou seja, o dobro da indicao inicial. Portanto, a
escuta do tema, em ambos os casos, deve ser equivalente em relao ao tempo,
revelando um preciosismo que no permite vislumbrar um compositor descuidado,
intuitivo, que no domina seu mtier. Deve ser lembrado que o retorno do tema ao
final, j detectado por Mrio de Andrade em 1929, passou despercebido a Jos Maria
Neves (Cf. Neves, 1977: 53) e a relao de tempo mencionada nem sempre
observada pelos intrpretes da obra.
justamente da popularidade do Choros 7 e a frequncia de suas execues
que vm alguns de seus maiores problemas, criando-se quase uma
tradiointerpretativa que no leva em conta inmeras indicaes prescritas pelo
compositor, inobservncia que sua j mencionada imagem de intuitivo somente
contribui para aumentar. Junte-se a isto que as execues brasileiras costumam
utilizar as mesmas partes manuscritas com numerosas incorrees e omisses.
O maior prejuzo penaliza as indicaes de dinmica e, em seguida, as
indicaes de andamento. No primeiro caso, notvel o grau de diferenciao das
intensidades prescritas entre instrumentos que compartilham o mesmo trecho musical.
A maioria delas tem o propsito de ressaltar as vozes de maior importncia meldico-
temtica, ou buscar o equilbrio entre as diferenas de poder sonoro dos instrumentos
empregados, tais como o saxofone alto o de maior poder sonoro para o qual o
compositor prescreve dinmicas cuidadosamente, ou o fagote, com quem generoso,
compensando sua menor sonoridade.
Entretanto, h alguns procedimentos que at poderiam ser rotulados de
idiossincrticos, pois enfatizam elementos nem sempre temticos que contradizem o
restante do conjunto na intensidade e/ou na harmonia provocando certa
estranheza quando devidamente realizados, porm contribuindo de maneira
significativa para enriquecer a sonoridade geral e criar novas cores. Dentre eles,
destacamos um, de natureza temtica, a entrada do clarinete no trecho seguinte, qual
o compositor d ainda maior relevo atravs da dinmica, observando, porm, que tal
entrada j poderia ser ouvida se tocada com menor intensidade:
98
Figura 1
99
Figura 2
Figura 3
100
fagote, o destaque dinmico convencional de uma melodia acompanhada, arruinando
as intenes do compositor.
Figura 4
101
Figura 5
102
se baseou o compositor, em princpio, ou mesmo da msica de cmara tradicional,
porm mais distante da produo contempornea na qual almejava inserir-se.
Muito se deve, tambm, a leituras superficiais dos intrpretes que, com
frequncia, conhecem suas partes individuais, mas no tm conscincia das
indicaes de intensidade dos demais instrumentos do conjunto, sendo raros aqueles
que tm conhecimento da partitura geral da obra e sua riqueza de detalhes. Quanto aos
inmeros desvios da escrita tradicional que ali se encontram, so simplesmente
atribudos notria ausncia de revises das partes e partituras, descuidos do
compositor e/ou razes similares.
Em relao s indicaes de andamento ocorre situao semelhante: no se
costuma observar com rigor as numerosas, e s vezes sutis, mudanas de andamento
prescritas pelo compositor. Um dos melhores exemplos apresenta-se logo ao incio da
obra, no compasso 17, onde est indicado Um pouco mais e semnima igual a 120,
determinando assim o tempo de toda a seo seguinte que relativamente longa.
Como esta seo tambm possui algumas passagens de difcil execuo para os
instrumentos de sopro, tornou-se comum realiz-la um pouco mais lento, deixando-se
de observar a mudana de andamento do compasso 17. Deve ser mencionado que
tambm h algumas indicaes de andamento sem referncias metronmicas,
facultando aos intrpretes sua escolha, mas a acurada observao das indicaes,
anteriores e posteriores, pode sugerir boas solues.
Encontra-se ainda uma aparente contradio ligada ao mesmo tema: ao final
da seo acima mencionada, cujo andamento semnima igual a 120, h a indicao
Um pouco menos, sem referncia de metrnomo, e logo em seguida Menos ainda,
porm com indicao de semnima igual a 144, em compasso , onde a msica
sugere o movimento de valsa lenta. Ao contrrio de contradio ou descuido do
compositor, cremos que ele passou a pensar num tempo unitrio por compasso, tpico
de valsas, portanto Menos ainda que o tempo anterior, e a indicao de semnima
igual a 144 somente se refere a sua subdiviso. Tal como a cuidadosa relao de
andamento do tema ao incio e final da obra, vista no incio do nosso texto, questes
desta natureza necessitam alguma reflexo e no deixam de ser vulnerveis aos
(pre)conceitos amplamente difundidos sobre o compositor.
103
O compositor surpreende uma vez mais com a incluso de um grand Tamtam,
que deve soar escondido, quando j se caminha para o final da obra, lembrando-se
que o uso de tal instrumento um procedimento raro em formaes camersticas da
mesma natureza. Num contexto ff, ele tem o cuidado de restringir o misterioso som do
instrumento invisvel ao nvel do mf. Anteriormente, violino e violoncelo tm a
indicao de tocar com sordina virada (imitando cornemuse), algo que os
intrpretes atuais desconhecem o que seja, com exceo de alguns poucos
instrumentistas que sugerem solues para o problema que, por sua vez, merece ser
estudado com rigor.
A obra oferece ainda inmeras oportunidades de constatar a eficcia do
trabalho de Villa-Lobos, talvez em sua melhor fase composicional, mas limitamo-nos
aos aspectos abordados. So justamente estes que nos impem uma concluso
desconfortvel: a de que ainda no tivemos a oportunidade de ouvir o Choros 7 na sua
integralidade, tal como foi escrito originalmente, graas s deformidades que as
sucessivas execues musicais foram-lhe impondo, fugindo ao controle do prprio
compositor que o dirigiu muitas vezes, por razes diversas sobre as quais somente
podemos especular. Seria necessrio que a obra tivesse a possibilidade de ser
executada por intrpretes de qualidade, que desconhecessem ou ignorassem as ditas
tradies, e tivessem o compromisso de realizar todas as indicaes prescritas pelo
compositor.
Referncias Bibliogrficas
ANDRADE, Mrio de. Villa-Lobos. In: BATISTA, Marta Rossetti; LOPEZ, Tel
Porto Ancona; LIMA, Yone Soares de (Orgs.). Brasil: 1 tempo modernista,
documentao. So Paulo: IEB-USP, 1972, 363-367.
NEVES, Jos Maria. Villa-Lobos, o choro e os choros. So Paulo: Ricordi, 1977.
NBREGA, Adhemar. Os choros de Villa-Lobos. Rio de Janeiro: Museu Villa-Lobos
MEC, 1975.
PEPPERCORN, Lisa M. Heitor Villa-Lobos: Leben und Werk des brasilianischen
Komponisten. Zrich: Atlantis, 1972.
SALLES, Paulo de Tarso. Villa-Lobos: processos composicionais. Campinas:
Unicamp, 2009.
104
Missa So Sebastio: unidade, rapsdia ou engenho?
Resumo: Textos sobre interpretao musical tm frequentemente sabor de ensaio. Ensaio como espao
do provisrio. Este no foge a este perfil. Falar sobre Vila Lobos tambm tem quase sempre esse
mesmo carter. Pelo ainda pequeno volume de estudos sobre sua gigantesca obra, mas tambm pelas
armadilhas musicais que ele deixa no caminho de seus intrpretes. O discurso sobre meu processo de
aproximao da Missa So Sebastio e a dificuldade que encontrei em construir um arco que a fizesse
respirar como uma obra. Como abordar a imensa quantidade de novas ideias que, mesmo quando so
transformaes umas das outras, se apresentam como forte novidade, merc de sua colocao no fluxo
da obra? Tais dificuldades so resultado de uma complexidade ou de uma linearidade invisvel?
Esclarecer alguns desses aspectos, este o mbito e o foco deste trabalho, que afinal das contas eu
ensaio, mais como arte que comunicao.
Abstract: Literature on musical interpretation often has a rehearsal2 feel to it: rehearsal as the domain
of the provisory. This text does not differ from that. Discussing Villa-Lobos usually leads to that as
well, due partly to the still low volume of studies on his gigantic oeuvre, but also due to the musical
traps he leaves in the way of his interpreters. The discourse I present is about my process of
approaching the Missa So Sebastio and the difficulties I faced in building an arch that would give it
artistic depth. How to address the immense quantity of ideas -- so many strong novelties, even when
deriving from simple transformations, due to their placement in the overarching flow? Do such
difficulties result from complexity, or do they result from an invisible linearity? The focus and scope of
this text is to cast light on some of these aspects.
Todo texto sobre interpretao tem sabor de ensaio. Pela afirmao sempre
necessariamente provisria, mas tambm pela busca exasperada de chegar a um
resultado bem acabado com o sentido mais definitivo possvel em sua vida fugaz,
quando ser ultrapassado por nova interpretao. parte do jogo. Falar sobre Villa-
Lobos tem quase sempre esse mesmo carter. Pelo ainda pequeno volume de estudos
sobre sua gigantesca obra, mas tambm pelas armadilhas musicais que ele deixa no
1
Agradecimentos a minha orientanda de Iniciao Cientfica, Mariana Trento, pela atualizao e
aprofundamento do levantamento dos temasdo Gloria e do Credo citado neste trabalho.
2
In Portuguese, the word "Ensaio" can mean both "Essay" and "Rehearsal".
105
caminho de seus intrpretes. Vou falar sobre meu processo de aproximao da Missa
So Sebastio e a dificuldade que encontrei em construir um arco que a fizesse
respirar como uma obra. Composta com a aparncia de uma colcha de retalhos,
interpret-la no uma fcil tarefa mesmo para regentes experientes como Cleofe
Person de Matos ou Matthew Best. H circunstncias de tempo que no se explicam
atravs das sugestes de andamento, h problemas na vocalidade, na colocao do
texto, nas respiraes que nos deixam preocupados no detalhe, a ponto de trazer
enorme dificuldade em pensar a obra em seu todo, em fazer com que a memria a
abranja de forma sinttica e propositiva. Como abordar a imensa quantidade de novos
temas que, mesmo quando so transformaes uns dos outros, se apresentam como
absoluta novidade, merc de sua colocao no fluxo da obra? Tais dificuldades so
resultado de uma complexidade ou de uma linearidade invisvel? Por onde andar So
Sebastio?
Esclarecer alguns desses aspectos, este o mbito e o foco deste trabalho, que
afinal das contas eu ensaio, mais como arte que comunicao.
Meu trabalho em torno da Missa So Sebastio para vozes iguais de Heitor Villa-
Lobos exemplifica bem um tipo de caminho, onde uma certa sntese chega de maneira
intuitiva depois de um exaustivo perodo de anlise e reflexo.
Eu passei muitos anos trabalhando na anlise da obra, de 1994 a 2005. Meu primeiro
contato, via partitura, havia me deixado curioso diante da beleza das idias musicais
em constante sucesso. A qualidade e a dificuldade do enigma proposto desfiaram-me
intensamente. A prpria edio Vitale, com visveis problemas na indicao dos
andamentos, aumentava o desafio (Villa-Lobos,1979).
Pedi Biblioteca do Museu Villa-Lobos uma cpia dos manuscritos da Missa.
Comparei-os detalhadamente, encontrei algumas das indicaes desejadas.
Meus problemas eram dois:
106
entrever intenes formais amplas ou mesmo elementos unificadores
palpveis;
Explicando melhor: as indicaes de Villa-Lobos na Missa podem ser vistas luz das
diferentes correntes tericas de poca, recuperveis nos tratados e manuais de ento,
sendo que em diferentes pocas certos tratados foram muito mais disseminados,
praticamente dominando o ambiente. A posio do Adgio, por exemplo, muda na sua
proximidade com o Lento e o Andante. O Allegro Assai e o Vivo frequentemente se
confundem ou trocam de posio e Andantinos e Moderatos idem, entre outras
possibilidades.
As frequentes mudanas de andamento contribuam tambm para a fora de
identidade de cada nova ideia, assim como as mudanas de frmula de compasso, o
uso constante das quilteras e a presena de hemolas, muitas vezes confundindo a
percepo das frmulas de compasso e a colocao do texto. At mesmo as mudanas
107
de intensidade, frequentemente bruscas e associadas apario de novas ideias ou sub
ideias, reforaram sempre essa viso quase caleidoscpica da obra: durante boa parte
do trabalho, o que eu via era uma espcie de colcha de retalhos, e apenas o estilo do
contraponto parecia ser o elo, fraco demais, da unidade da obra.
Aqui vale dizer da clara influncia do pensamento renascentista sobre a obra.
Palestrina se faz presente tanto no contraponto cristalino quanto no estilo de seus
motetos, que so construdos em sucesses de ideias novas conforme os diferentes
trechos do texto, sendo o moteto um gnero sacro irmo do madrigal.
Tal procedimento, ampliado no barroco na forma cantata, pode por exemplo ser
observado na criao de sees musicais de acordo com a diviso em sees do texto.
O que orienta o processo composicional a Teoria dos Afetos, sendo que cada
mudana afetiva no texto corresponde a uma nova mudana musical que a expresse.
Como disse, tal procedimento empregado em todo o Perodo barroco, mas quero
chamar ateno especial para a Missa em Si menor de Bach. Para Villa-Lobos, o
vero (as frias) de 1936/37, est cravado na poca do canto orfenico e tambm das
Bachianas Brasileiras, portanto a invocao da Missa em Si menor no casual em
meu raciocnio. Seja apoiado sobre Palestrina seja sobre Bach, fica sempre a questo:
as novas ideias apresentadas sequencialmente no so to fluidas e transparentes
como no primeiro e nem to grandes no tempo para de fato se constiturem em partes
separadas.
O que chama ateno na Missa S. Sebastio a importncia e a fora de cada nova
ideia que, embora no se possa cham-las de temas (por no se desenvolverem), cada
uma delas tm quase sempre um potencial de tema muito forte. Alguns deles tm
energia e riqueza material suficiente para sustentar obras de peso, fugas reais a muitas
vozes, sinfonias, motetos temticos, obras de cmara, etc. Tal intensidade dessas
ideias me afastam - sem desprez-las - das hipteses de inspirao renascentista ou
barroca. Tal inspirao est l. Mas no explica tudo. Voltaremos a esta questo mais
frente.
108
obra uma respirao profunda, conectada a um grande arco de concepo, to brutal
era a conseqncia que isso tudo tinha para mim enquanto intrprete.
Eu estava de frente para as partes maiores da missa, o Gloria e o Credo, e
buscava entender porque o Gloria apresentava 16 novas ideias em 200 compassos,
relao que se adensa no Credo, com 23 novas ideias em 232 compassos. H uma
variao importante na densidade, compreendida como quantidade de informao
nova por tempo decorrido. H uma contrao na densidade do Glria para o Credo.
Vejo, a partir desses dados, uma intencionalidade direcional de aumento da densidade
atravs da apresentao de novas ideias. Como disse, creio que cada uma delas tem
fora para suportar uma sinfonia, e da resulta uma densidade psicolgica tambm
enorme, sem tempo para a memria. Como se fossem muitos rostos passando na
multido das ruas do Rio de Janeiro de ento. Mais uma hiptese interpretativa? Tal
hiptese, quase flmica, pode passar por outras imagticas prximas: uma viagem no
bondinho de Santa Thereza?
Mas e se, em vez de imagens visuais, pensando no contexto de uma vida
mergulhada no canto orfenico; escrevendo obras pedaggicas e arranjos para uso em
sala de aula e nos orfees; considerando mesmo que a Missa foi escrita para o Orfeo
dos Professores: no se seria o caso de se pensar em ecos de memria ou de ideias de
sua reconhecidamente frtil imaginao, como se fora uma parada de coros, um
encontro de coros?
Uma penltima hiptese: quem sabe trata-se de uma sucesso de obras muito
curtas, como os epigramas matinais de Lorenzo Fernndez, outro freqentador da
imaginao educativa, seu parceiro no campo do canto Orfenico e amigo dileto?
Certa tarde, ainda, em um concerto de msica de cmara interpretado por msicos da
Orquestra Sinfnica do Estado de So Paulo, ouvi uma bonita, madura e bem
construda verso do Quinteto para sopros de Villa-Lobos. Durante o concerto fui
ficando inquieto, a Missa So Sebastio comeou a se imiscuir em meu pensamento, e
eu comecei a ouvir ambas as obras ao mesmo tempo. Uma ao vivo e a outra
internamente. No comeo fiquei irritado, queria escutar o timo concerto que estava
sendo apresentado. Mas a Missa se imps e de repente eu compreendi o que estava se
passando: havia algum elemento coincidente no esquema formal do Quinteto de
109
sopros e da Missa. Percebi ento que ambas as obras estavam construdas como
rapsdias. Eu no devia buscar elementos unificadores do discurso, devia buscar o
discurso enquanto forma. Ento tempos se definiram com maior liberdade, as
respiraes, os pontos de parada entre as semi-partes, especialmente no Glria e no
Credo, que apresentavam os maiores desafios. Tudo foi ganhando sentido e cheguei,
naquele tempo, finalmente, a uma concepo da obra que me convencia. Que rapsdia
estava sendo contada? A da vida de So Sebastio, anunciada no incio de cada parte
da missa como virtuoso, soldado romano, defensor da igreja, Mrtir, Santo e protetor
do Brasil? Seriam esses recitativos propostos por Villa-Lobos para preceder as seis
partes da missa quando cantada como oratrio (fora do servio do culto), espcie de
chave lxica para compreenso da obra? Ou a rapsdia a da prpria cidade de So
Sebastio do Rio de Janeiro em seu processo de desenvolvimento e crescimento?
Talvez a prpria vida de Villa-Lobos contada pelo rapsodo Villa-Lobos?
Esse conjunto de hipteses, possveis ao intrprete em seu mtier, tem em comum
unirem perguntas possveis a respostas possveis. Todas so hipteses do movimento
dos fragmentos.
De qualquer forma, posso dizer que o trabalho investigativo musicolgico que eu e
Susana fizemos, somado ao esmiuar da obra, anlises harmnicas, fraseolgicas
(muitas vezes a frase musical se desentende com a diviso do compasso), busca de
relacionamentos convincentes entre texto e msica( seja no mbito dos significados,
seja na colocao do texto na msica, nitidamente forada em muitos trechos, criando
inclusive problemas de vocalidade), identificao dos conflitos passo a passo, tudo
somado, acabou me conduzindo a uma pergunta certa do ponto de vista do intrprete:
o que faz a obra respirar? O que lhe dar vida no palco? Sem alguma idia
convincente sobre o arco integrador da obra eu provavelmente teria feito uma leitura
aborrecida, retalhada, talvez apenas corretamente solfejada.
O que retiro da que se a vertente analtica mais metdica se faz necessria, uma
vertente sintetizante mais intuitiva tambm se faz. Acredito que, embora qualquer
uma das duas possa conduzir um intrprete a uma boa concepo, o que acontece de
fato que a maior parte do tempo e das vezes elas so complementares. Conceber
interpretativamente uma obra pensar do menor elemento s estruturas mais gerais
110
sem perder o sentido do todo nem do detalhe. E ento a concepo da obra chega
atravs de uma compreenso global.
Como disse, no h um guia ou um mtodo para ao caminho da intuio em
anlise musical. Mas, no meu caso, s vezes eu consigo abrir uma porta
voluntariamente, deixando o pensamento divagar, criar uma espcie de olhar
divergente, provavelmente fazendo outra coisa que no msica. Enquanto isso eu
chamo a pergunta que estou me fazendo de modo apenas lateral, como que
ligeiramente desinteressado. Muitas vezes d certo. Memria e intuio entram em
trabalho em separado, como que em uma espcie de pensamento polifnico, as vozes
caminham em paralelo e independentes, e a sntese se realiza.
Referncias Bibliogrficas
111
Mesa 4 - Educao Musical
Resumo: Este trabalho tem por objetivo discutir a presena de mulheres como professoras de msica e
regentes de orfees na primeira metade do sculo XX. O canto, como base da educao musical em
instituies escolares, possui uma longa histria no Brasil. Na histria da educao musical brasileira, a
presena de Villa-Lobos foi to marcante que ofuscou as verses anteriores de ensino musical pelo
canto coletivo, fixando uma memria que associa o incio da educao musical no Brasil implantao
nacional da disciplina Canto Orfenico, durante o governo de Getlio Vargas. As relaes de gnero
mostraram-se uma categoria de anlise pertinente, a partir da constatao de que a maioria desses
professores de canto orfenico era constituda por mulheres, cujas biografias e atividades raramente
foram perpetuadas na documentao escrita. Em seus escritos sobre msica, no entanto, essas
professoras-autoras deixaram importantes relatos sobre as prticas educativas durante o perodo de
vigncia do canto orfenico como disciplina escolar.
Keywords: Villa-Lobos; women music teachers; history of music education; biography; school choral
singing.
112
No campo especfico da Histria da Educao, entre as fontes que utilizam as
memrias podem tambm ser includos textos gerados e perpetuados nas instituies
escolares: dirios de classe, relatrios, programas de curso, correspondncia
institucional, discursos proferidos em ocasies comemorativas. Muitos deles possuem
carter biogrfico (principalmente nas homenagens e nos discursos de acolhida ou
despedida de uma instituio ou conselho, por exemplo) ou autobiogrfico (ainda a
ttulo de exemplo, os discursos de agradecimento em situaes de posse em cargos
administrativos, os memoriais apresentados em concursos, ou mesmo a defesa e os
esclarecimentos em situaes de conflito, que no so incomuns nos ambientes
escolares).
Nessas modalidades de textos, gerados pelas mais diversas ocasies prticas
de relato do cotidiano, comemorao ou de conflito, pode-se, por vezes, ouvir as
vozes dos professores pronunciando-se sobre sua atividade profissional, sobre a
instituio a que esto ligados e, no raras vezes, sobre suas expectativas, frustraes
e satisfaes. Em tais situaes, a sua posio de educador que legitima a opinio ou
o testemunho proferido.
Tornam-se, assim, fontes privilegiadas para o estudo da histria da educao,
especialmente em alguns subtemas, tais como a profissionalizao docente, as
disputas institucionais, a histria das prticas educativas. Esta abordagem no se
contrape ao uso de fontes oficiais, tais como leis, regulamentos e decretos, que
permitem anlises das situaes histricas a partir das aes daqueles que ocupam
postos de poder. O uso de fontes biogrficas e autobiogrficas geradas por
professores, combinado anlise de fontes oficiais e de discursos dos detentores de
poder poltico, trazem novos atores e novas questes, o que termina por abrir outras
dimenses pesquisa histrica.
no quadro dessas reflexes que este texto proposto. Em que medida uma
pesquisa sobre as mulheres professoras de msica pode contribuir para os estudos
sobre a educao musical no Brasil, em perspectiva histrica? Em que medida a
produo escrita sobre msica por mulheres professoras pode dialogar com a pesquisa
em torno de Villa-Lobos, o articulador e principal personagem da educao musical
brasileira entre os anos 30 e 50?
113
Pierre Nora, em Memria e histria, destaca o carter de continuidade da
memria, em contraposio operao intelectual que a torna inteligvel, a histria.
114
abordagens, em que importam igualmente a escolha das temticas e a escolha das
fontes.
Hoje, o canto orfenico e a msica na escola podem ser mais facilmente
entendidos enquanto prtica de abrangncia nacional, porm com problemas e
discusses locais, na medida em que os estudos localizados confirmam algumas
prticas, discutem os repertrios, analisam o tempo escolar (e a distribuio da
atividade musical dentro desse tempo), fornecem levantamentos dos livros didticos e
identificam os professores e suas formaes musicais e pedaggicas.
115
Em nossa pesquisa, identificamos uma grande quantidade e diversidade de
textos, com os mais diferentes estatutos: manuais e livros didticos, biblioteca
pedaggica, coletneas de canes e hinrios, textos tcnicos voltados a aspectos
terico-analticos musicais (solfejo, harmonia, teoria), estudos musicolgicos, anlises
de repertrio musical, textos de divulgao, depoimentos, entre outros. Neste texto,
trataremos apenas das publicaes relacionadas educao formal (nossa pesquisa de
doutorado abordou tambm o ensino especializado de msica, o ensino tcnico e as
obras de divulgao).
As professoras-autoras que identificamos estiveram ligadas escola primria e
secundria, incluindo o curso normal, com obras publicadas entre 1924 e 1958 (data
estabelecida como marco final da pesquisa). So elas, em ordem alfabtica: Branca de
Carvalho (em coautoria com Arduino Bolivar), Ceio de Barros Barreto, Celeste
Jaguaribe, Henriqueta Rosa Fernandes Braga, Judith Morisson Almeida, Laura
Jacobina (em coautoria com Octavio Bevilacqua), Leonila Linhares Beuttenmller,
Luiza Ruas1, Maria Amorim Ferrara, Maria Elisa Leite Freitas (um dos livros em
coautoria com Samuel Teitel), Maria Moritz (em coautoria com Walter Schultz),
Mariza Lira, Olintina Costa, Yolanda de Quadros Arruda2. As modalidades de escrita
e os tipos de publicao dos 29 ttulos analisados podem ser vistos no seguinte
grfico:
1
Ressalvando que no tivemos acesso ao livro Teoria da Msica, desta autora. O subttulo Guia de
classe, assim como a data de publicao, sugeriram a relao com a escolarizao formal, que no
podemos dar como certa.
2
Uma listagem completa de autores e obras pode ser consultada no primeiro captulo de nossa tese de
doutorado: Entre palcos e pginas: a produo escrita por mulheres sobre msica no Brasil (1907-1958)
(IGAYARA, 2011).
116
LIVROS
LIGADOS
ESCOLARIZAO
FORMAL
(1924-1958)
MANUAIS
DE
CANTO
3
4
ORFENICO
(3)
15
7
TEORIA
E
SOLFEJO
OU
COMPLEMENTO
AO
CANTO
ORFENICO
(4)
Figura 1 - Livros ligados escolarizao formal, com autoria de mulheres professoras de msica.
Fonte dos dados: Inventrio comentado: Textos sobre msica escritos por mulheres (Brasil, 1907-
1958) (IGAYARA, 2011, p. 55-78)
Uma anlise simples dos dados acima permite perceber que a maioria da
produo publicada a partir de 1924 (antes, portanto, da expanso nacional do canto
orfenico promovida pelo governo Vargas) dedicada atividade prtica musical,
quer seja voltada aquisio de habilidades de leitura e entoao, praticada como
exerccio de solfejo, quer seja voltada performance, tais como os hinos e canes
que eram apresentados em festas e comemoraes escolares.
Em texto recente apresentado no IX Congresso Luso-brasileiro de Histria da
Educao, demonstramos como a participao em situaes festivas, com o intuito de
abrilhantar a festa, no era vista de maneira consensual pelas professoras de msica.
Maria Amorim Ferrara, autora de Notas de uma professora de msica escolar,
considera que a perspectiva de abrilhantar a festa uma necessidade da escola e,
portanto, uma das funes legtimas da msica escolar. J Ceio Barreto, autora de
Coro. Orfeo, critica o treino mecanizado e as exibies, que poderiam ser
impedimentos para o pleno desenvolvimento musical dos alunos (IGAYARA-
SOUZA, 2012). Das duas diferentes opinies pode-se chegar a uma concluso: a
msica na escola esteve voltada performance, com destaque para os hinos cvicos,
que vo ganhando importncia nas coletneas e hinrios, conforme nos aproximamos
da dcada de 40.
117
Embora tenha sido grande a produo de material didtico contendo hinos e
cantos escolares, desde a Primeira Repblica, no observamos a participao de
mulheres na autoria deste tipo de livro antes de 1925, data da publicao do 1 volume
do Cancioneiro Escolar, por Branca de Carvalho e Arduino Bolivar.3 So tambm
publicadas em coautoria outras coletneas de canes e hinos escolares inventariados
nesta pesquisa (SCHULTZ; MORITZ, 1942 e JACOBINA; BEVILACQUA, 1948).
A publicao de hinrios e coletneas de canes prova a participao de
professoras como produtoras de material didtico. Muitas vezes, a partir do material
publicado (textos, melodias, cantos orfenicos, hinos) que se pode recuperar a atuao
de algumas dessas professoras e perceber que a formao pedaggica geralmente
complementada por uma formao pianstica. As referncias so esparsas, quase
sempre meras citaes, pistas de uma atuao que, pela caracterstica da prpria
atividade, fornecia momentos de maior exposio, alguns deles registrados em fotos,
notcias em jornais, meno em boletins internos das instituies em que trabalhavam.
Pelas fontes consultadas, percebe-se que a maioria dessas atuaes teve uma
abrangncia limitada presena local ou regional, o que no deixou de ser
considerado relevante para a comunidade em que se situava.
O papel central desenvolvido pela cidade do Rio de Janeiro, como sede do
Distrito Federal, facilitou a localizao de muitas mulheres professoras, inclusive
daquelas que so procedentes de outros estados e que fixaram residncia na capital
federal. Em Minas Gerais, que j adotava a msica na escola antes do programa
nacional, foram localizadas ativas professoras-autoras ligadas msica escolar, entre
elas Branca de Carvalho, Maria Amorim Ferrara e Anglica Rezende Garcia, assim
como em cidades paulistas.
Outras professoras foram localizadas na publicao Msica para a Escola
Elementar, publicado pelo INEP em 1955. Com exceo do diretor do SEMA, Sylvio
Salema Garo Ribeiro (que tambm autor de diversas canes), percebe-se que a
publicao foi realizada a partir do trabalho de uma comisso de mulheres, algumas
3
As coletneas de Alexina de Magalhes Pinto, principalmente Cantigas das Crianas e do Povo e
Danas Populares (1916) foram publicadas como literatura infantil. Embora estejam ligadas
escolarizao promovida na 1 Repblica, no so propostas como livros didticos, e sim como livros
familiares, para serem lidos por crianas e adultos.
118
delas autoras das melodias e/ou textos das canes presentes na coletnea, como
Lucilia Villa-Lobos (primeira esposa do compositor Heitor Villa-Lobos), Maria Dulce
Sampaio Antunes, Cacilda Borges Barbosa, Olga Behring Pohlmann, Irene Catharina
Pereira Lyra, Edila Sousa Aguiar Rocha. Alm da comisso citada na apresentao,
no interior da publicao identificamos outras autoras de melodias e/ou textos:
Geraldina Teixeira Rodrigues, Esmeralda da S. Tavares, Francisca N. de
Vasconcellos, Duhilia Madeira, Maria Graa Conrado (letra).
A partir do Decreto-Lei 4545 de 31/7/1942, que dispe sobre o ensino e a
execuo do Hino Nacional, cresceram os Hinrios e as publicaes que se
propunham a analisar o texto e a msica, s vezes sugerindo atividades que
facilitassem a correta execuo, uma vez que o decreto instituia que obrigatrio o
ensino do desenho da Bandeira Nacional e do canto do Hino Nacional em todos os
estabelecimentos de ensino primrio, secundrio, normal e profissional, cabendo o
ensino do hino ao professor de msica.
O Hinrio Cvico de Olintina Costa um exemplo. Apresentado como
complemento ao canto orfenico, traz, para cada hino, uma breve anlise musical,
indicando a tonalidade, compasso, andamento, durao da introduo (em nmeros de
compassos) e indicao do incio do canto, por exemplo: o canto comea no 3
tempo do 10 compasso (anacruse) com a nota Lb (tnica da tonalidade) (COSTA,
s/d, p. 35). Apresenta ainda snteses biogrficas, vocabulrio e um questionrio.
Ceio de Barros Barreto tambm voltou-se para a execuo do Hino
Nacional em Estudo sobre Hinos e Bandeira do Brasil (1942). Detalha os erros mais
frequentes observados na execuo cantada e, com isso, torna-se uma fonte
importante para o estudo das prticas musicais escolares, pois indica o certo e o
errado, como no seguinte exemplo:
119
O carter obrigatrio e prioritrio dado aos hinos na prtica orfenica faz com
que eles estejam presentes em todas as coletneas destinadas prtica musical escolar
que se seguiram ao decreto-lei de 1942, geralmente como primeira parte do livro, no
caso de se tratar de uma coletnea com temtica mais ampla. Entre as autoras
estudadas, isso pode ser verificado, por exemplo, nas coletneas publicadas em
coautoria que fazem parte de nosso inventrio: a de Walter Schultz e Maria Moritz,
Cantos da nossa terra (SCHULTZ MORITZ,1942) e os dois volumes Vamos Cantar
para a primeira e segunda sries do curso ginasial (JACOBINA; BEVILACQUA,
1948).
As coletneas de canes e hinos, como vimos, so a maior parte das
publicaes com autoria ou coautoria de professoras de msica, que cumpriam com
uma dupla funo: fornecer material acessvel aos diversos nveis de ensino e formar
um repertrio escolar que estivesse de acordo com os valores e ideias buscados pela
presena da msica como disciplina escolar. Este repertrio estava em construo, e
as prprias publicaes trazem informaes sobre o uso e sobre as disputas em torno
do repertrio escolar.
Em Vamos Cantar, de Laura Jacobina Lacombe e Otvio Bevilacqua, os
autores afirmam na Introduo que Os alunos devero possuir o volume de canto
orfenico de Villa-Lobos, onde podero ir lendo, pouco a pouco, os [exerccios]
indicados em cada lio. Os outros, que ainda so inacessveis leitura, podero ser
aprendidos por audio (LACOMBE; BEVILACQUA, 1948, p. 9). Percebe-se,
portanto, que mesmo uma nova publicao escolar fazia referncia s obras de Villa-
Lobos, demonstrando sua primazia sobre outros cancioneiros. Mas pode-se tambm
perceber que a leitura musical convivia com a prtica por audio, em um dos
muitos exemplos em que os textos de professores comentam as prticas efetivamente
realizadas em sala de aula.
Na mesma publicao, os autores comentam o repertrio de bom gosto,
deixando claro que a escolha das canes escolares buscava utilizar a msica como
ndice de civilizao, contrapondo-se a outros repertrios que no seriam adequados
aos escolares.
120
Cada escolar brasileiro deve cuidar de aprender muito bem as msicas
que lhe so ensinadas, no s para seu prprio prazer, como para poder
pass-las adiante, aos que ainda no as conhecem corretamente.
Assim contribuir para que, em nosso pas, se propague o gosto por
uma arte que ndice de civilizao.
No seu repertrio, onde, em grande parte, estar a msica brasileira,
no figuraro somente hinos e canes cvicas que s devem ser cantadas
com o mximo cuidado e respeito, mas, tambm, a msica popular, alegre,
mesmo gaiata, s vezes, to divertida e espirituosa.
Cantando repertrio escolhido, de bom gosto, a mocidade concorre,
tambm, para que no tome vulto e venha a imperar, mais tarde, aquela
outra msica produzida por gente de maus costumes, refletindo, portanto,
ms palavras e maus hbitos. Compete a cada jovem brasileiro zelar pelo
canto popular de seu pas, onde est a parte mais interessante de seu
folclore to apreciada pelos estrangeiros. (LACOMBE; BEVILACQUA,
1948, p. 81, grifos dos autores)
Percebe-se, assim, que a construo desse repertrio era feita a partir da seleo
de canes que pudessem promover o ideal de civilizao, constituindo um
repertrio folclrico/popular infantil e brasileiro legitimado pelos seus autores, que se
apresentam como detentores dos critrios de seleo, avaliao e apresentao de
canes apropriadas prtica musical escolar.
Trs manuais de canto orfenico com grande circulao foram escritos por
mulheres. Um deles, Noes de Msica e Canto Orfenico, foi adotado no Colgio
Pedro II em 1941, a partir do programa oficial de 1940, com autoria de Maria Elisa
Leite Freitas e Samuel Teitel. Os outros dois foram publicados pela Companhia
Editora Nacional: Elementos de Canto Orfenico, por Yolanda de Quadros Arruda, e
Aulas de canto orfenico, por Judith Morrison de Almeida.
No podemos apresentar os nmeros de exemplares que confirmariam a
veiculao dessas publicaes, nem indicar precisamente as datas das primeiras
edies, pela falta de dados, mas do livro de Arruda, por exemplo, foram localizadas
mais de 41 edies, a partir de 1949. A ltima edio encontrada de 1964 e h
notcias de edies sem data. As informaes biogrficas das autoras so muito vagas,
mas sabe-se que Yolanda de Quadros Arruda foi professora de canto orfenico nos
cursos primrio, secundrio e normal, entre 1935 e 1961, e que foi regente do orfeo
do Colgio Canad, em Santos.
121
A empresa paulista Companhia Editora Nacional foi a principal editora de
livros para o secundrio, depois da Reforma Capanema. Ocupou, com relao ao
ensino secundrio, o mesmo papel que teve a Editora Francisco Alves com relao
escolarizao primria, pois ambas as casa editoras tiveram um papel preponderante
no estabelecimento de um mercado de livros didticos. O livro de Judith Morisson de
Almeida, que era destinado s quatro sries do curso ginasial, teve grande circulao
durante as dcadas de 50 e 60, mas apesar disso, a autora de Aulas de canto orfenico
no consta dos principais dicionrios biogrficos ou outras obras de referncia.
A formao de professores foi outra das atividades que motivou grande parte
das publicaes encontradas nesta pesquisa. Entre elas, podem ser destacadas as obras
Coro. Orfeo de Ceio de Barros Barreto (1938), Notas de uma professora de
msica escolar, de Maria Amorim Ferrara (1938), e O Orfeo na Escola Nova, de
Leonila Beutenmller (1937).
Sobre esta ltima autora, alm das prprias publicaes e dos textos de
apresentao, muito pouco se pode saber sobre sua atividade e sobre sua biografia,
alm de que foi aluna de Villa-Lobos e de Frei Pedro Sinzig. Apesar disso, o livro
bastante citado na literatura pedaggica sobre o canto orfenico, e nele podem-se
encontrar programas de curso e relatos de atividades vivenciadas pela aluna. Com
uma redao bastante desigual e concluses ingnuas, o relato uma das poucas
fontes em que se percebem de maneira muito viva as atividades em sala de aula
durante o perodo em que vigorou o canto orfenico.
122
musicistas, a ltima sempre em Belo Horizonte, enquanto Ceio B. Barreto fixou-se
no Rio de Janeiro, j em uma segunda fase da carreira iniciada em Pernambuco, onde
atuou como professora e iniciou-se como autora, entre outros, de Cantigas de quando
eu era pequenina (1930).
Ainda que tenham sido personalidades influentes, ocupando postos de grande
reconhecimento em instituies docentes, as duas professoras e regentes de orfees
no foram biografadas com maior profundidade, embora constem em dicionrios
biogrficos. A diferena que, participando ativamente de um momento de forte
institucionalizao da msica, atuaram em mltiplas frentes: como professoras de
msica nos diversos ciclos, incluindo o curso normal, como regentes de orfees, como
articulistas na imprensa peridica e na imprensa especializada, como autoras de livros
para a formao de professores, entre outras atividades. E ainda outra diferena
marcante para os estudos histricos: foram constitudos e preservados os seus
arquivos pessoais, ainda que em duas situaes bem distintas: como acervo pblico,
abrigado na Biblioteca Alberto Nepomuceno da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (Ceio de Barros Barreto), ou como acervo particular, em posse da famlia
(Maria Amorim Ferrara).
123
mulher ocupando-se de futilidades perde a sua importncia como membro
da sociedade, para s tornar-se um objeto de divertimento para os ricos e
de peso para os remediados. (LACOMBE, 1962, p. 65)
124
professora brasileira. Na apresentao, assinada pelo Ministro Darcy Ribeiro, l-se
que:
125
elaboram explicaes e como essas representaes so apreendidas, so algumas das
propostas de trabalho a partir dos pressupostos da histria cultural.
126
trabalharam a partir de princpios pedaggicos que dialogaram com a cincia da
poca, sobretudo a Psicologia, influenciando a Pedagogia e a Didtica, e a
Antropologia, dando novo carter aos estudos folclricos e etnogrficos.
Neste panorama, do ponto de vista da biografia de Villa-Lobos, a narrativa do
entusiasmo com a educao encontra coerncia, mas a transformao da vontade e
empolgao de Villa-Lobos em um movimento concreto de educao nacional pela
msica apaga ou joga para um segundo plano os aspectos prticos e polticos
envolvidos na questo.
Na continuidade do relato de Luiz Heitor, nesse livro que tem por objetivo
fazer um balano da atividade musical no Brasil, por volta do meio do sculo XX, as
aes que levaram Villa-Lobos direo da Superintendncia de Educao Musical
so mais detalhadas, e a reiterao de que o governo prestigiou e apoiou as iniciativas
de Villa-Lobos (ento em atividade, pois a redao do texto de 1944 a 1951)
contribui para uma idealizao de suas aes, ocultando sua real posio no campo: a
de detentor de um dos mais altos cargos polticos na rea especfica, correspondendo
a ele uma das mais altas faixas salariais do funcionalismo pblico.4
127
segundo os planos de Villa-Lobos, e sob a sua direo, veio coroar essa
obra (AZEVEDO, 1956, p. 269. Grifos nossos). 5
5
H uma discrepncia nas fontes, com relao s datas de criao do CNCO, sendo citados os anos de
1942 e 1943. Como o decreto que o institui de novembro de 1942, entende-se que os cursos
comearam efetivamente no ano de 1943.
128
folclorsticas da msica popular nacional (msica, literatura e dana).
(SCHARTZMAN; BOMERY; COSTA, 1984, p. 92-93). 6
6
Documentos do Arquivo Gustavo Capanema, GC 37.00.00/5-3, GC 37.00.00/5-A-5, GC 42.05.12/2,
CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentao em Histria Contempornea do Brasil da Fundao
Getlio Vargas, Rio de Janeiro)
129
escola, influentes na medida de seu poder de influncia no campo educacional e
musical como um todo.
As aes e as posies ocupadas e criadas por Villa-Lobos poderiam ser
vistas, assim, como estratgias no processo de institucionalizao que conduziam
constituio e autonomizao do campo musical. Por esta perspectiva relacional
existente no campo, possvel analisar a produo das mulheres como conjunto,
mesmo que nem sempre se tenha muitas informaes sobre suas trajetrias pessoais e
profissionais. Parte-se, portanto, para uma anlise mais prosopogrfica do que
particularizada, com o objetivo de entender essa produo feminina em um estado
determinado do campo musical e educacional brasileiro, em que as mulheres, graas
formao recebida, ao habitus adquirido e ao estado do campo, foram capazes de
assumir posies objetivas de atuao, ainda que a explicao para essas posies
fossem verbalizadas a partir da retrica do desinteresse, da misso, do servio nao
e do dom.
7- Consideraes finais
130
unifique o ensino da msica escolar, realizando suas belas finalidades
educativas. (FERRARA, 1938, p. 11).
8- Referncias Bibliogrficas
131
Alberto Nepomuceno. Escola de Msica da Universidade Federal do Rio de
Janeiro.
ARRUDA, Yolanda de Quadros. Elementos de Canto Orfenico. So Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1949.
AZEVEDO, Luiz Heitor Corra. 150 anos de Msica no Brasil (1800 1950) RJ:
Jos Olympio Editora, 1956 1a ed.
BARRETO, Ceio de Barros. Estudo sobre Hinos e Bandeira do Brasil. Rio de
Janeiro: Carlos Wehrs e Cia, 1942.
Coro. Orfeo. So Paulo: Companhia Melhoramentos, 1938. (Biblioteca de
Educao, v. 28.
Estudo sobre Hinos e Bandeira do Brasil. Rio de Janeiro: Carlos Wehrs e
Cia, 1942.
BEUTTENMLLER, Leonila Linhares. O orfeo na escola nova. RJ: Irmos
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BOURDIEU, Pierre. As regras da Arte. So Paulo: Companhia das Letras, 1996.
BUENO, B; CATANI, D.; SOUSA, C.. A vida e o ofcio dos professores. So
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CHARTIER, Roger. Histria cultural entre prticas e representaes. Lisboa:
Difel, 1990.
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133
Que mistura este Villa! Digno de um estudo muito profundo!1:
algumas aproximaes e distanciamentos entre as propostas de
educao musical de Liddy Chiaffarelli Mignone e Heitor Villa-
Lobos
Ins de Almeida Rocha
Colgio Pedro II Campus Centro
Resumo: Liddy Chiaffarelli Mignone foi contempornea de Heitor Villa-Lobos e promoveu aes de
grande expressividade no cenrio da educao musical no Brasil. Busco aqui, apresentar de que forma
os trabalhos desenvolvidos pela educadora se aproximaram ou se distanciaram do canto orfenico
proposto pelo compositor. Para tanto, consultei diferentes fontes histricas, privilegiando cartas que ela
escreveu para seu amigo Mrio de Andrade, pois trata-se de fonte indita e relevante. Embasada em
estudos de autores ligados Histria da Cultura Escrita, como Petrucci, Castillo Gmez, Sierra Bls e
Chartier, analiso a correspondncia ativa da educadora considerando o seu contedo, a materialidade
do escrito e as representaes sobre a educao musical do perodo. Contrapor a correspondncia
pessoal com outras fontes diversificadas permitiu compreender como a educadora musical concebia a
Iniciao Musical em relao com o Canto Orfenico proposto pelo compositor.
What blend this Villa is! Worthy of a very profound study!: some similarities
and differences between the music education proposals of Liddy Chiaffarelli
Mignone and Heitor Villa-Lobos
Abstract: Liddy Chiaffarelli Mignone was contemporary of composer Heitor Villa-Lobos and
promoted actions of great expressiveness in the music education scenario in Brazil. The objective of
the present study is to show the similarities and differences between the works developed by the
educator and the choral practice proposed by the composer. In order to do so, I have consulted various
historical sources, favoring letters which she wrote to her friend Mrio de Andrade, once they are
inedited and very relevante material. Based in studies by authors connected to the History of Written
Culture, such as Petrucci, Castillo Gmez, Sierra Bls and Chartier, I analyze the correspondence of
the educator considering its content, materiality, and the representations of the music education of the
period. Comparing the personal correspondence with other diversified sources has enabled me to
comprehend how Liddy Chiaffarelli Mignone conceived the Music Iniciation in relation to the
Choral Practice proposed by the composer.
Keywords: Liddy Chiaffarelli Mignone; Heitor Villa-Lobos; History of Music Education; Music
Iniciation; Choral Practice.
1
Carta escrita por Liddy Chiaffarelli no Rio de Janeiro, em 6 de julho de 1941, Instituto de Estudos
Brasileiros (IEB) da Universidade de So Paulo (USP), Fundo Pessoal Mrio de Andrade (FPMA),
catalogao: MA-C-CPL, no. 2022. Utilizo a forma atualizada de transcrio por entender que a funo
das citaes facilitar o acesso ao contedo das cartas e as alteraes que realizo no interferem nessa
compreenso. Atualizei a ortografia, fiz correes gramaticais e eliminei marcas de escrita, como os
traos que a missivista utiliza quando deseja mudar de assunto e no faz pargrafo. Retirei os traos
que sublinham palavras e s os mantive quando forneceram dados para a anlise. Os termos ilegveis
so sinalizados no texto entre colchetes: [ilegvel].
134
1- Introduo
Dentre as 107 cartas escritas por Liddy Chiaffarelli Mignone, entre 1937 e
1945 para Mrio de Andrade e arquivadas no Instituto de Estudos Brasileiros da
Universidade de So Paulo, ela menciona comentrios sobre Villa-Lobos em apenas
seis delas. Esses breves depoimentos, contudo, so mostras do convvio e
proximidade com o compositor.
No presente texto, busco refletir sobre de que forma os trabalhos
desenvolvidos pela educadora se aproximam ou se distanciam do canto orfenico
proposto por Heitor Villa-Lobos. Utilizo diferentes fontes histricas, mas as cartas
que ela escreveu para seu amigo Mrio de Andrade constituem uma fonte privilegiada
para a historiografia da educao musical no Brasil, por seu ineditismo. A
correspondncia pessoal de Mrio de Andrade esteve lacrada por cinquenta anos, para
atender ao pedido do escritor e, ento, foi disponibilizada para os pesquisadores.
Assim, o acesso a novas informaes, ilumina antigas questes e suscitam novos
questionamentos.
2
Carta escrita por Liddy Chiaffarelli no Rio de Janeiro, em 6 de julho de 1941, IEB/USP, FPMA,
catalogao: MA-C-CPL, no. 2022.
3
Carta escrita por Liddy Chiaffarelli no Rio de Janeiro, em 27 de julho de 1941, IEB/USP, FPMA,
catalogao: MA-C-CPL, no. 2025. Liddy Chiaffarelli Mignone no oferece elementos para que se
possa identificar em qual projeto esto trabalhando.
135
Embasada em estudos de autores ligados Histria da Cultura Escrita, como
Armando Petrucci, Antonio Castillo Gmez, Vernica Sierra Bls e Roger Chartier,
venho analisando a correspondncia ativa da educadora em seu contedo,
materialidade do escrito, distanciamento e aproximao de regras epistolares e nas
representaes que as cartas pessoais evidenciam sobre a educao musical do
perodo. Essa uma perspectiva de anlise que, apesar de ponderar sobre a
importncia do contedo do texto escrito, amplia as possibilidades de anlise,
considerando esses outros aspectos destacados. H que considerar, entretanto, a
importncia de se confrontar a essa correspondncia com outras fontes diversificadas,
pois as informaes que as cartas contm no podem ser consideradas como verdades
absolutas e devem ser analisadas em contraponto com dados de outras fontes
historiogrficas. Utilizo para tanto, diferentes tipos de textos escritos, tanto
manuscritos4 como impressos.
Diante do exposto, volto-me para as fontes, guiada pelo pensamento de
Armando Petrucci (2003: p.8), quando afirma que h que se olhar para os
documentos, impondo-lhe algumas questes que possam caracterizar melhor o
registro escrito analisado, ou seja, ao refletir sobre a correspondncia da educadora e
outras fontes escritas, observo quem o autor, quando escreveu, como, em que
materialidade e com que objetivos.
Por outro lado, para se compreender melhor as atividades desenvolvidas por
Liddy, h que observ-las tendo como perspectiva o contexto no qual estava inserida
e as prticas em educao musical de seu perodo. Assim acredito poder identificar as
aproximaes e distanciamentos entre aes pedaggicas que empreendeu e o projeto
do canto orfenico. Em que se assemelham? Em que medida o nacionalismo se fez
presente na Iniciao Musical?
4
Os manuscritos de Liddy Chiaffarelli Mignone foram doados por Maria Josephina Mignone, pianista
e viva de Francisco Mignone, para o Espao Cultural Amlia Conde no Conservatrio Brasileiro de
Msica Centro Universitrio, aps a morte do maestro. Constam diferentes tipologias de escritos,
dentre anotaes para aulas de Iniciao Musical, resultados dos testes com crianas, questes e pontos
para os exames do Curso de Especializao para Professores de Iniciao Musical, caderno de
anotaes das atividades do Centro de Estudos para a Iniciao Musical da Criana, dentre outros.
136
2- Iniciao Musical e Canto Orfenico: coexistncia de duas propostas de educao
musical
5
Liddy Chiaffarelli Mignone publicou textos em peridicos, alm de dois livros: CHIAFFARELLI,
Liddy; FERNANDEZ, Marina Lorenzo. Iniciao Musical: treinos de ouvido, ritmo e leitura. Rio de
Janeiro: Edies Tupy, 1947 e MIGNONE, Liddy Chiaffarelli. Guia para o professor de Recreao
Musical. So Paulo: Ricordi Brasileira, 1961.
137
Liddy Chiaffarelli, que estudou canto com Mademoiselle Yvonne Bourron6,
tambm se apresentou nessas sries de concertos cantando e tocando piano.
Na casa da Rua Padre Joo Manuel funcionou a escola pianstica de Luigi
Chiaffarelli que tambm recebia outros professores para lecionar e se apresentar nos
concertos. Liddy Chiaffarelli ministrava aulas de piano para alunos iniciantes,
preparando-os para serem orientados em um nvel mais avanado por seu pai.
Heitor Villa-Lobos tambm freqentou esse espao. Antes de 13, 15 e 17 de
fevereiro de 1922, ou seja, como ensaio para os festivais da Semana de Arte Moderna,
alguns msicos estiveram na casa dos Chiaffarelli preparando o repertrio. O relato
de Ernani Braga, pianista que interpretou uma das msicas de Villa-Lobos,
testemunho do convvio do compositor nessa residncia. , tambm, um registro
muito representativo do confronto entre o novo e a tradio que caracterizou a esttica
modernista brasileira.
Ernani Braga tocou a Fiandeira, para Luigi Chiaffarelli e Villa-Lobos
ouvirem. O compositor reagiu fortemente afirmando no reconhecer aquela verso
como sendo de obra de sua autoria. Ernani Braga justificou a interpretao:
6
Yvonne Bourron nasceu na Frana e veio para o Brasil para trabalhar como governanta em casa de
uma famlia rica e como acompanhante das filhas para que elas praticassem o idioma francs. Sua boa
formao musical proporcionou-lhe condies para que mudasse de profisso reunindo grande nmero
de alunos. Ela encomendava partituras de Paris e mantinha suas alunas atualizadas e com acesso a um
variado repertrio que inclua Duparc, Faur, Moussorgsky, Rimsky Korsakov, Borodine, Schumann,
Schubert, Bach, Christoph Gluck, Brahms. Ver: OCTAVIO, Laura Oliveira Rodrigo. Elos de uma
Corrente: seguidos de novos elos. 2. Ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1994: 186-188.
138
ltima pgina. O auditrio gostou daquela pea to viva, to
extravagante e... to curtinha. Por isso aplaudiu muito, no dando tempo
a Villa-Lobos de protestar. Chiaffarelli depois me felicitou por eu ter
encontrado a frmula exata de resolver o problema. Alm de mestre
admirvel de arte pianstica, era Chiaffarelli sutilssimo na arte da ironia
(BRAGA, 1966: 69).
139
priorizava a conscincia sonora, a vivncia esttica musical e o movimento corporal
para o aprendizado da msica.
Nessa mesma dcada, 1930, Heitor Villa-Lobos, implantou o projeto que
adotava a prtica do canto orfenico em todo o pas, o que demandou grande esforo
de equipe e a formao de professores para atender demanda. Em 1932, foi criado o
Curso para Professores de Canto Orfenico, de nvel superior, que formava em curta
durao, profissionais habilitados para trabalhar nas escolas (FUKS, 1991; SANTOS,
1996; SOUZA, 1999).
Apesar de msicas crticas que o projeto recebe, considero que algumas ideias
sobre educao musical publicadas por Villa-Lobos so ainda bastante interessantes,
como o caso desta passagem:
140
implantao de uma prtica musical coral nas escolas de forma mais sistematizada e
cobrindo todo o territrio nacional.
importante lembrar que a dcada de 1920 havia sido marcada por um intenso
movimento na rea pedaggica no pas, com debates e reformas de ensino em
diferentes estados 7 . Os vencedores da Revoluo de 1930 mantiveram grande
preocupao com questes relacionadas educao e, com a postura centralizadora
que caracterizou esse governo, buscavam articular um modelo pedaggico que
atendesse s novas demandas. Assim, foi criado o Ministrio da Educao e Sade,
em 1931, e um conjunto de medidas governamentais movimentou o cenrio
educacional com incentivo a novas reformas e valorizao dos congressos da
Associao Brasileira de Educao (ABE). O Manifesto dos Pioneiros, publicado em
1932, aps a IV Conferncia Nacional de Educao, foi uma resposta a disputas de
poder internas na ABE e pode ser entendido como reflexo de uma relao cada vez
mais prxima entre intelectuais envolvidos com a educao e o Estado, pois atendia
solicitao do governo para que os educadores fornecessem bases da poltica
educacional (XAVIER, 2002: 15-16).
Esse contexto favoreceu e ofereceu referncias para algumas aes no ensino
de msica. Em 1930, Villa-Lobos apresentou seu projeto de educao musical
Secretaria de Educao do Estado de So Paulo, sendo aplicado pelo ento interventor
federal Joo Alberto (FUKS, 1991: 102), entretanto, no Rio de Janeiro que o
compositor ampliou e desenvolveu de forma mais sistemtica sua ao atravs do
Servio de Educao Musical e Artstica (SEMA), criado por Ansio Teixeira no
Departamento de Educao da Prefeitura do Distrito Federal. O projeto teve como
forte sustentao a figura do prprio presidente da Repblica, Getlio Vargas, que
utilizou o Departamento de Imprensa e Propaganda para apoiar as iniciativas de Villa-
Lobos (HORTA, 1994: 187).
Marco Antonio Carvalho Santos, em sua Dissertao de Mestrado, analisa a
hegemonia da proposta do canto orfenico e sintetiza a ao do compositor:
7
Sobre a organizao da educao na Repblica e as reformas pedaggicas desse perodo, ver:
VEIGA, Cynthia Greive. Repblica e educao no Brasil (1889-1971). In: ____. Histria da
educao. So Paulo: tica, 2007: 237-322.
141
Empenhou-se a fundo no seu projeto do canto orfenico, escrevendo
copiosamente sobre ele, quando pouco ou quase nada escreveu sobre a
sua prpria obra de composio. O resultado foi um movimento como no
se conhecia na rea de educao musical no Brasil. Pela amplitude da
mobilizao de professores, alunos, msicos e pblico, pela considerao
de mltiplos aspectos musicais, pedaggicos, polticos e administrativos
ligados concretizao do projeto, Villa-Lobos revelou, alm de seu
talento musical, uma capacidade de trabalho e organizao
impressionantes. No se tratava de tarefa para um nico homem, e Villa-
Lobos conseguiu reunir no s importantes apoios polticos, mas uma
equipe dedicada e competente. Contudo, ao final do Estado Novo o
trabalho entra em declnio at se extinguir sem sofrer uma crtica
sistemtica nem ser substitudo por outra proposta. Apenas foi parando e
deixando um vazio nunca preenchido. No houve, desde ento, um projeto
nacional de educao musical (SANTOS, 1996: 1-2).
142
O projeto do canto orfenico de Villa-Lobos j encontrava um campo propcio
para sua implantao, uma vez que se constata j haver uma cultura de prticas
musicais nas escolas, inclusive regulamentadas por legislao.
Vejamos agora alguns aspectos relacionados Iniciao Musical que possam
contribuir para entendermos como as duas propostas coexistiram. Apesar de ter
surgido em uma escola vocacional, esse curso no ficou restrito apenas a esse
segmento, pois foi levado, tambm, para a escola de formao geral e outros espaos.
Destaca-se a valorizao de uma prtica musical objetivando despertar e desenvolver
a potencialidade musical do aluno e, para tal, a figura do professor com slida
formao era valorizada. A prpria Liddy Chiaffarelli Mignone declarou:
Muitos so os registros escritos nos quais Liddy Mignone revela como ela
aplicava os conhecimentos de psicologia ao ensino da msica. So evidncias do
pensamento renovador que marcou a educao brasileira no incio do sculo XX e
ficou conhecido como o movimento Escola Nova.
143
Com a grande difuso de novas pesquisas nas reas de Biologia e Psicologia
relacionados criana, a educao no sculo XX adotou novos pressupostos,
embasados por saberes dessas cincias, orientando os novos mtodos de ensino, a
organizao de classes, a arquitetura das escolas, a ocupao de espaos fsicos dos
edifcios escolares. Ampliaram-se, tambm, as possibilidades de aprendizado da
criana com a aplicao dos novos conhecimentos sobre aspectos fsicos, cognitivos e
emocionais do desenvolvimento infantil. Os trabalhos desenvolvidos por Liddy
Chiaffarelli Mignone, tambm demonstram a aplicao desses conhecimentos e desse
carter de renovao pedaggica.
oportuno enfatizar a importncia que Liddy Mignone delegava ao aspecto da
prtica musical, do agir musicalmente (MIGNONE, 1955: 68). A educadora
assinalava o desenvolvimento da musicalidade do aluno como prioridade, no entanto,
ressaltava como consequncia dessa prtica musical o desenvolvimento de aspectos
extramusicais, tais como: a ateno, a disciplina espontnea e a afirmao de sua
personalidade. Muito embora destacasse a importncia da msica para o
desenvolvimento do aluno como um todo, sua grande preocupao era como dar
criana, em primeirssimo lugar, a alegria de viver a msica, e os meios de se
expressar por seu intermdio (MIGNONE, [1953-1962]: 1)8. Para tal, utilizava
diversos jogos e brinquedos musicais, alm de um amplo repertrio de msicas
folclricas para que ele se sentisse motivado a fazer msica, prazerosamente.
Alm de bibliografia atualizada que a educadora teve acesso 9 , algumas
psiclogas, psiquiatras e artistas plsticos foram importantes contatos que marcaram
sua trajetria profissional e contriburam para as caractersticas de suas aes
pedaggicas:
8
Manuscrito de Liddy Chiaffarelli Mignone pertencente ao arquivo do Conservatrio Brasileiro de
Msica no Rio de Janeiro. A data provvel foi atestada pelo contedo do texto que se refere ao Centro
de Estudos fundado em 1952.
9
Consta na listagem de livros doados para a Biblioteca do Conservatrio Brasileiro de Msica Centro
Universitrio, pelo Centro de Estudos para a Iniciao Musical, criado pela educadora, autores que
escreveram sobre psicologia, pedagogia e Escola Nova, tais como : Ansio Teixeira, Loureno Filho,
Johnn Dewey, Edward Clapard, dentre outros.
144
dentro de uma escola de msica estava realmente bom, mas que era
preciso levar a msica a todas as crianas do Brasil, no s como
experincia vocacional mas especialmente como experincia esttica.
(MIGNONE, 1955: 69)
As atividades do Centro foram mltiplas (...) entre essas uma das mais
importantes foi a elaborao de programas para os diversos ramos da
Iniciao Musical. Alm do programa para as escolas vocacionais temos
agora, para: a) jardins de infncia, b) parques infantis, c)
estabelecimentos nos quais feita a recuperao da criana excepcional,
d) escolas primrias. (MIGNONE, 1955, p. 69)
145
portadoras de necessidades especiais. A Iniciao Musical, que primeiramente foi
implantada em uma escola vocacional, passou, com o tempo, a ser disseminada em
outros espaos de ensino de msica, como escolas de formao geral, ensino infantil e
fundamental, clubes, hospitais, instituies teraputicas e programas de rdio e
televiso. Em texto publicado na Revista CBM, que ela revela como a ao do Centro
de Estudos foi importante nesse processo e na elaborao de programas que se
adequassem s mudanas:
10
Utilizo a nomenclatura do perodo analisado. Escola Primria corresponde aos Anos Iniciais do
Ensino Fundamental.
146
Sobre as prticas de escrita, devemos considerar que este um dos poucos
textos encontrados no qual ela se refere ao canto orfenico. Seja dentre a
correspondncia para Mrio de Andrade, nos manuscritos com anotaes para suas
aulas, nos textos datilografados ou impressos, ela pouco se trata do projeto do Canto
Orfenico de Heitor Villa-Lobos. Por qual motivo ela pouco fala sobre esse tema?
Seria uma temtica muito delicada para constar em um texto impresso para o pblico
ter acesso? Esse silncio seria uma evidncia de certo pudor em tratar publicamente
desse assunto?
Uma vez mais retomo as reflexes de Castillo Gmez sobre anlise da escrita
e leitura, para compreender esse silncio. Ele recomenda que o estudo de textos
escritos:
Sendo assim, devemos considerar o espao no qual foi impresso esse texto, ou
seja, trata-se de um texto para ser publicado na revista da instituio na qual a
educadora trabalhava e que tinha circulao dentre professores, msicos e pais de
alunos. A certeza de que sua escrita teria essa exposio, pode ter feito com que ela
escolhesse cuidadosamente as palavras e minimizasse possveis crticas, calculando os
riscos que poderia correr ao expor as informaes.
H, como os registros escritos demonstram, um cuidado no uso das palavras e
uma lacuna que se pode observar e que nos interessa nesse momento em que
pensamos sobre a coexistncia de diferentes propostas em um mesmo perodo. Trata-
se da ausncia da Iniciao Musical nas escolas pblicas. Por quais motivos essa
metodologia, que foi to bem aceita nas escolas da rede privada, seja nos Jardins de
Infncia11 ou na Escola Primria, no foi aceita na rede pblica, mesmo em um
perodo com tantos discursos em prol da educao musical de todo o cidado?
11
Utilizo a nomenclatura do perodo analisado. O Jardim de Infncia corresponde atual Educao
Infantil.
147
Acredito que essa ausncia no se deu por mero acaso. O diploma conferido
pelo Conservatrio Brasileiro de Msica para os professores de Iniciao Musical,
mesmo que em nvel de especializao e reconhecido pelo MEC, no era aceito pelas
autoridades como documento que os habilitasse a fazer concurso pblico12. Mesmo
com todos os esforos do deputado Pascoal Carlos Magno, o processo que solicitava
esse reconhecimento oficial no foi deferido13, e apenas os diplomas conferidos pelo
Conservatrio Nacional de Canto Orfenico eram aceitos. Este conservatrio era a
nica instituio que habilitava professores para a prtica do canto orfenico de Villa-
Lobos (SANTOS, 1996).
Seria um jogo de foras polticas? Talvez, mas podemos pensar que houvesse
tambm uma incompatibilidade da Iniciao Musical para uma escola pblica
identificada com o projeto do canto orfenico, unificando massas de alunos em um s
canto, em um s tempo, no podendo aceitar uma metodologia que se propunha a
atender diferenas e a valorizar tempos individuais.
12
Entrevista com Ceclia Fernandez Conde, educadora musical, compositora, ex-aluna de Liddy
Chiaffarelli Mignone, concedida no Conservatrio Brasileiro de Msica Centro Universitrio, em 7
de maro de 1996, autora.
13
Idem.
148
grandeza. Em certos momentos era forte como a lembrana do seu
Macunama!! (...)14
14
Carta escrita por Liddy Chiaffarelli e Francisco Mignone em Roma, no dia 22 de abril de 1938,
IEB/USP, FPMA, catalogao: MA-C-CPL, no. 2005.
149
no oferece a mesma dimenso da mensagem que a leitura da mesma citao no
manuscrito original.
Ainda sobre o uso do papel, sobre a ocupao dos espaos em branco da folha,
e sobre a materialidade do escrito, podemos pensar que o fato de estar escrevendo
para Mrio de Andrade, implica diretamente na escolha dos aspectos que descreve,
nas palavras que utiliza, na forma com imprime a tinta sobre a pgina a ser enviada.
O lugar social que ela ocupa, o tipo de relacionamento entre os correspondentes, a
imagem que ela deseja projetar de si, e o conhecimento do pensamento de seu
interlocutor determinam o tipo de escrita. Vernica Sierra Bls (2003), analisando
manuais epistolares, assim nos explica:
150
Mignone, Manuel Bandeira, Toms Tern, Mariatereza Tern, S Pereira, Magdalena
Tagliaferro, Villa-Lobos eram as presenas mais constantes que a correspondncia
estudada revela.
Analiso aspectos das redes de sociabilidade15 nas quais a educadora musical
participou, a partir do pensamento de Sirinelli (1986: 248) quando considera o uso do
termo redes para se referir a estruturas que permitem a criao de microcosmos, que
fomentam o intercmbio e o fortalecimento de laos nos quais se estabelecem
relaes afetivas de afinidades e/ou repulsa.
Em outra carta, Liddy Chiaffarelli sinaliza o grupo de convivncia:
151
modelo de brasilidade as canes da cultura popular. Assim, possvel constatar no
livro publicado por Liddy Mignone, em 1961 18 , recomendao de coletneas,
cancioneiros e livros adotados pelos professores de canto orfenico, alm de outros
livros publicados por autores ligados a esta proposta, como se pode ver no quadro
abaixo:
18
Ver: MIGNONE, Liddy Chiaffarelli. Guia para a recreao do professor de recreao musical.
So Paulo: Ricordi Brasilieira, 1961.
152
Torna-se oportuno, refletir sobre o tipo de nacionalismo que observa tanto na
proposta pedaggica de Villa-Lobos, quanto na Iniciao Musical de Liddy
Chiaffarelli. Pensemos, primeiramente em como se pode inserir, portanto, a produo
de Heitor Villa-Lobos, e outros compositores contemporneos como Oscar Lorenzo
Fernndez e Francisco Mignone, em uma categoria nacionalista e, mais
especificamente, em uma fase singular do nacionalismo na msica brasileira. H que
destacar neste caso o uso caracterstico que se fez do folclore, ou como alguns
preferem chamar, da cultura popular. Enquanto os compositores de geraes
precedentes foram muito mais influenciados por matrizes da msica europeia, esse
grupo j ofereceu novas solues para a construo de uma msica com
caractersticas mais brasileiras. Os compositores que marcaram essa fase do
nacionalismo musical, voltaram-se para o universo da cultura popular, dando outro
tratamento aos elementos da msica erudita, imbricados com ritmos, intervalos,
escalas, harmonias e formas populares brasileiras.
Retomo, aqui, a questo entre a tradio e o novo, pois, como alerta Jos
Maria Neves (1981: 10), apesar de certo compromisso em busca do novo, esses
compositores no foram capazes de produzir uma nova linguagem musical. A
gerao de nacionalistas contemporneos a Villa-Lobos
153
H que se ressaltar, contudo que o popular valorizado por esses msicos era
uma cultura muito especfica que Jos Miguel Wisnik traduziu como a msica do
povo bom-rstico-ingnuo do folclore (WISNIK, 1983: 131). A msica popular
produzida pelas massas urbanas e a produo emergente da indstria cultural em
expanso, no entanto, causava estranheza e, por vezes, repulsa.
Sob a gide dessa concepo de nacionalismo musical, ganha espao o projeto
do Canto Orfenico de Villa-Lobos e a Iniciao Musical de Liddy Mignone.
Para Villa-Lobos, por sua vez, nenhuma outra arte exerce, sobre as camadas
populares, influncia to poderosa como a msica e, em seu projeto, ela deveria
concorrer para o levantamento do nvel artstico e da Independncia da Arte no
Brasil (VILLA-LOBOS, 1937: 10). O projeto, implantado nas escolas pblicas do
pas, tinha como objetivos a disciplina, a educao cvica, moral e artstica. Fora
concebido para uma coletividade e preconizava a prtica do canto em grupo,
promovendo grandes concentraes de pessoas cantando a uma ou mais vozes,
concretizando o encontro de grandes massas, unificadas na msica. O prprio Villa
assim define esses eventos nacionalistas:
154
caractersticas deste curso, e do pensamento de Liddy Chiaffarelli Mignone, para
melhor compreender essa questo, pois h aspectos que se configuram em sentidos
opostos.
A Iniciao Musical se propunha a desenvolver a musicalidade do aluno,
potencializando suas habilidades em um ambiente de aprendizado coletivo.
Atividades ldicas e com movimentos corporais eram valorizadas e o canto coletivo
era praticado visando o aprendizado, mas sobretudo, ampliar as possibilidades de cada
um no fazer musical. O Canto Orfenico concebia a prtica musical como uma forma
de educar e disciplinar com nfase no civismo. O canto em grandes conjuntos, com
grandes massas de pessoas cantando o mesmo repertrio, era valorizado como prtica
musical no projeto idealizado por Villa-Lobos, ao passo que a prtica musical da
Iniciao Musical buscava atender a caractersticas individuais de cada criana e de
desenvolvimento de cada faixa etria.
O uso de repertrio de msica brasileira e folclrica era um ponto em comum,
todavia a Iniciao Musical apropriava-se apenas de msicas de cunho folclrico
infantil ao invs das canes cvicas cantadas tambm pelos grupos orfenicos.
Enquanto Villa-Lobos utilizava o folclore, hinos ptrios e canes cvicas, Liddy
estimulava o uso de cirandas, marchas, danas, acalantos, brinquedos cantados, enfim
apenas o cancioneiro infantil do folclore brasileiro. No caso da Iniciao Musical,
possvel observar um ponto em comum com os projetos realizados por Mrio de
Andrade, quando esteve frente do Departamento de Cultura So Paulo. Talvez sua
amizade e proximidade com o escritor, significasse um reforo utilizao desse
repertrio. Nos Parques Infantis, ligados Diviso de Educao e Recreio desse
Departamento, cabia s instrutoras ensinar jogos infantis e promover a prtica de
brinquedos tradicionais brasileiros (DUARTE, 1985: 82).
Uma questo se impe aqui, ao pensar sobre o uso desse repertrio e as
aproximaes e diferenas ressaltadas. Recorro ao pensamento do socilogo Pierre
Bourdieu, quando pondera que o estudo de uma obra ou de um aspecto em particular
da obra de um indivduo deve determinar previamente as funes de que se reveste
este corpus no sistema das relaes de concorrncia e de conflito entre grupos
situados em posies diferentes no interior de um campo intelectual que, por sua vez,
155
tambm ocupa uma dada posio no campo do poder (BOURDIEU, 1987: 186).
Por isso, ao pensar na oposio que se estabelece nessas duas metodologias
desenvolvidas no perodo em questo, h que se identificar como elas se relacionam
com o poder institudo.
Sendo assim, mesmo utilizando um repertrio nacionalista, caracterizado pelas
msicas do cancioneiro popular, no se pode afirmar que se tratasse da mesma forma
de conceber as ideias nacionalistas, j que o canto praticado na Iniciao Musical no
tinha a funo nem o forte carter cvico que o canto orfenico adotou. Considero,
portanto, que a Iniciao Musical se apresentou como uma alternativa para o ensino
de msica e, conscientemente ou no, como uma forma de resistncia contra a
ideologia do Estado Novo, com a qual Villa-Lobos tanto se identificou.
4- Consideraes Finais
156
necessrio a utilizao de outras fontes para uma anlise mais aprofundada. As
lacunas que a escrita epistolar apresenta, demanda esse movimento: cotejar as cartas
com outros tipos de manuscritos e impressos. Nesse conjunto destaco que os manuais
escolares so fontes que podem revelar muito sobre as prticas cotidianas escolares,
os conhecimentos priorizados e os saberes que circulavam nas aulas de msica.
Quanto s aproximaes observadas entre a Iniciao Musical e o Canto
Orfenico, destaco a importncia que as duas propostas atriburam ao som, msica e
seus elementos constitutivos no processo de ensino e aprendizagem. Muito mais que
decorar regras, memorizar smbolos, o que importava era sensibilizar o aluno para o
fenmeno sonoro e musical.
Ambas as propostas valorizaram o ensino de msica na escola de formao
geral e no apenas em escolas profissionais e vocacionais. A msica importante
para a educao de todos. Para tanto, a formao de professores tambm foi foco de
ateno dos dois educadores, embora com caractersticas diferenciadas. Enquanto a
Iniciao Musical adotou o modelo de formao de professores em nvel de
especializao, o Canto Orfenico, devido urgncia de habilitao de profissionais
para essa funo, se viu impelida a adotar outros modelos, no qual uma equipe tcnica
de supervisores era pea fundamental para o funcionamento da dinmica planejada.
No que se refere ao nacionalismo, observa-se uma das principais diferenas
entre as duas propostas. A Iniciao Musical utilizou o cancioneiro brasileiro infantil,
mas no adotou o repertrio cvico. J o Canto Orfenico, apesar de tambm utilizar
o cancioneiro infantil, e o repertrio de msicas de matriz da cultura popular, utilizou
inmeros hinos e canes cvicas de cunho disciplinador.
Por fim, ressalto a dualidade individual versus coletivo nas duas propostas. A
Iniciao Musical era um curso eminentemente coletivo, no qual o grupo era
importante para o desenvolvimento das atividades, mas a individualidade de cada
aluno era respeitada e atendida nesse ambiente em grupo. J o Canto Orfenico
valorizava o coletivo, a unificao das massas pelo canto e pela msica, tendo como
grande smbolo emblemtico as grandes concentraes orfenicas.
157
5- Referncias Bibliogrficas
158
ROCHA, Ins de Almeida. Canes de amigo: redes de sociabilidade na
correspondncia de Liddy Chiaffarelli Mignone para Mrio de Andrade. Rio
de Janeiro: Quartet/FAPERJ, 2012.
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XAVIER, Libnia Nacif. Para alm do campo educacional: um estudo sobre o
manifesto dos pioneiros da educao nova (1932). Bragana Paulista: EDUSF, 2002.
159
Mesa 5 - Por uma Esttica da Escuta: as paisagens sonoras de Villa
Resumo: Ao examinarmos algumas das obras mais experimentais da segunda fase composicional de
Villa-Lobos tais como a Prole do Bebe n. 2 deparamos com diversas possibilidades de escuta e anlise.
As ideias de textura, objeto sonoro, gesto e processo, assim como as ferramentas de anlise mais
formalizadas tais como a teoria dos conjuntos de A. Forte so algumas das categorias comumente
utilizadas para analisar os materiais e procedimentos utilizados por Villa-Lobos nestas obras. Neste
texto, sem negar a validade destas ferramentas, nos propomos a abordar O Cavalinho de Pau (pea 8
da Prole n. 2) sob uma perspectiva complementar, a partir das ideias de molecularizao e de devir-
criana formulada pelos filsofos franceses Gilles Deleuze e Felix Guattari (Deleuze, G. e Guattari, F.
1997). Nos propomos ainda a explicar e descrever como Villa-Lobos agencia estas ideias atravs de um
processo de justaposio de cenas infantis.
1- Molecularizao1
160
molecularizada, que enquanto tal deve captar foras (idem, p.158). Assim, quando
o artista opera no nvel molecular ele se afasta do que j est elaborado enquanto
matria molar e cria a partir de uma matria molecularizada o som puro e
desterritorializado - que o que ainda no tem forma, no est sistematizado e por
isso ainda no adquiriu consistncia. O agenciamento criativo do artista que vai
consolidar esta matria em novas configuraes sonoras. Partimos de um texto do Mil
Plats (idem, p. 158 a 160) em que Deleuze e Guattari discorrem sobre a modernidade
na arte:
Por conta destas ideias, nos interessa focalizar a obra de Villa-Lobos nos
momentos em que ela tende a superar o paradigma da nota (molar) em favor do
paradigma do som (molecular). Nestes momentos possvel perceber Villa-Lobos
lidando diretamente com o som ou partindo da ideia de tornar sonora alguma
imagem, ideia ou sensao a partir de metforas visuais, ttulos etc. num processo que
se assemelha manipulao experimental e ldica da criana. Muitas vezes, estes
processos envolvem a construo e o encadeamento de texturas complexas a partir da
sobreposio de camadas. Segundo Salles (Salles, 2009, p.77):
161
manipulou as justaposies dos materiais mais diversos demonstra seu
apreo em empilhar elementos, cristaliz-los e, lentamente, distorc-los.
2- Devir-criana2
Para ns, ao compor este ciclo de peas - no por acaso intitulado a Prole do
Bebe 3 - Villa-Lobos, em alguns momentos, se aproxima de um agenciamento
molecular conforme descrito acima por Deleuze/Guatarri. Estes momentos podem ser
analisados como resultados de devires infantis atravs dos quais Villa-Lobos
opera os processos de molecularizao - tais como a ludicidade, a imaginao e a
2
Para Deleuze e Guatarri todo um devir-mulher, um devir-criana atravessam a msica, no s no
nvel das vozes (a voz inglesa, a voz italiana, o contra-tenor, o castrato), mas no nvel dos temas e dos
motivos: o pequeno ritornelo, o rond, as cenas de infncia e as brincadeiras de criana/.../ Os
marulhos, os vagidos, as estridncias moleculares esto a desde o incio, mesmo se a evoluo
instrumental/.../ lhes d uma importncia cada vez maior, como o valor de um novo limiar do ponto de
vista de um contedo propriamente musical: a molcula sonora (Deleuze, G, Guatarri, F, 1997, p. 63
MP4).
3
Com respeito aos ttulos das obras de Villa-Lobos podemos ler em Ferraz (2002, p.14): Seus
ttulos/.../dizem respeito frmula composicional, ao guia das sonoridades escolhidas como ponto de
partida.
162
liberdade de ao e de expresso que caracterizam a atitude exploratria,
experimental e maqunica da criana. Sabemos que a criana quando brinca imagina,
transforma e d vida a objetos e brinquedos, recontextualizando diversos materiais.
Na pea que analisamos, Villa-Lobos parece estar contaminado por estes devires
infantis em seu projeto de dar vida sonora a um cavalinho de pau. E , em grande
parte, atravs de um agenciamento ldico, imaginativo e corporal com o piano e os
sons que ele pode produzir que Villa-Lobos atinge este resultado. No se trata,
obviamente, de um processo de resgate de supostas memrias da infncia de Villa-
Lobos. Sobre a diferena entre a memria da infncia e o devir-criana
Deleuze/Guatarri afirmam que:
4
Deleuze define o ritornelo como um conjunto de matrias de expresso que traa um territrio.
notvel que Deleuze inicie o seu texto A cerca do ritornelo descrevendo um processo de
territorializao de uma criana atravs do canto: Uma criana, no escuro tomada de medo,
tranquiliza-se cantarolando/.../ a cano salta do caos a um comeo de ordem no caos... (Deleuze, G.
e Felix Guattari, 1997, p. 116).
163
distorcem, deformam, quebram e transformam materiais molares em pura matria
sonora, molecularizada.
Ligados ainda a esta ideia de reiterao possvel perceber a gestualidade e os
padres digitais, desenvolvidos e variados que resultam de um devir ldico e
inventivo envolvendo o corpo do msico e o instrumento. H tambm as
sobreposies de materiais heterogneos que criam texturas e timbres inusitados, e a
deformao bem humorada ldica de materiais idiomticos conhecidos (melodias
folclricas em processos de desterritorializao e consequente molecularizao). No
nvel horizontal do devir temporal temos a justaposio, por vezes abrupta, de
momentos distintos de sonoridade homognea configurados de modo a evocar uma
sucesso de cenas, em muito, semelhante a uma maquinao infantil. Nesta
sucesso de cenas possvel reconhecer aluses aos diversos movimentos do
cavalinho: galopes rpidos, saltos, passeios elegantes, trotes, etc. A gestualidade
pianstica neste caso est a servio destes devires.
4- Anlise
164
165
166
Esta estrutura composta por 3 blocos diferentes justapostos se repete
literalmente nos prximos 8 compassos.
A B A C A B A C
c.1 c.2,3 c. 4 c. 5 a 8 c. 9 c. 10,11 c. 12 c. 13 a 16
Galope salto livre Galope trote Galope salto livre Galope trote
no lugar no lugar tropeado no lugar no lugar tropeado
5
Nesta escala temos o primeiro tetracorde diminuto ( T, S, T, S) e o segundo em tons inteiros.
167
motivo 1 (figura 6) que se estabelece enquanto uma onda que, dinamicamente
desenha os caminhos deste passeio.
figura 6, c. 29 a 31.
168
introduz uma apojatura em direo ao E, Villa-Lobos introduz um processo de
saturao (que ir se repetir outras vezes mais frente de formas mais radicais)
reiterando 3 vezes um mesmo gesto meldico (figura 9) e, mais uma vez
interrompendo o fluxo meldico num tipo de procedimento que remete s
brincadeiras repetitivas das crianas.
169
nota), por movimento contrrio de afastamento (por exemplo, na figura 11: 2a - 4a - 7a
ou 2a 3a 4a).
170
passeio. Um ataque na nota E em rff (memria do E tropeado da introduo) seguido
de um desdobramento do motivo 1 (crescendo de p a f) compem cada um destes trs
impulsos (figura 13).
171
Nos 6 compassos seguintes Villa-Lobos faz uma explorao timbrstica radical
no extremo grave do piano (figura 15). Neste trecho ocorre um processo de
molecularizao. Sob este ponto de vista, o material molar significativo (o zigue-
zague e o material do motivo 1 se torna som puro. Ao mesmo tempo, h um processo
de acumulao de energia agenciado pela repetio das figuras e um crescendo em
direo a ff. Nos prximos 2 compassos (c. 61 e 62), uma vertiginosa subida em
direo ao registro agudo funciona como um impulso para o prximo trecho.
172
No trecho que vai do c. 69 at o c. 98 Villa-Lobos investe novamente - desta
vez de uma forma bem mais radical - no processo de deformao da melodia
folclrica. O esprito ldico e brincalho, relacionado no incio do artigo ao conceito
de devir-criana, se revela nas sonoridades ruidosas resultantes deste processo. Sob o
nosso ponto de vista, Villa-Lobos brinca de destruir a cano. Os procedimentos
utilizados anteriormente entram em jogo novamente: as fragmentaes, as
transformaes modais e as interpolaes de trechos da melodia. Somam-se ainda
outros procedimentos que se aproximam ainda mais da ideia de molecularizao
criando uma mquina de sons (no para reproduzir sons), que moleculariza e
atomiza, ioniza a matria sonora. Vale destacar o uso de dissonncias speras
agenciadas na forma de apojaturas (que tm origem no material simtrico do acorde
reiterado anteriormente) e a enunciao da melodia em 7as paralelas (figura 17). Estas
7as por sinal j aparecem no primeiro compasso, junto com o motivo 1 e fazem parte
do material bsico da pea.
173
A partir do c. 103 se estabelece um acorde baseado em quartas (C, F, Bb) e
comea um processo de intensificao que agenciado atravs de trs procedimentos
simultneos: a) um crescendo constante e inexorvel que atinge o ffff e s cessa no
ltimo sistema; b) um processo de adensamento harmnico que culmina, na mo
direita, no quase cluster oitavado Eb, F, Gb, G, A; c) e uma expanso gradual da
tessitura, que culmina em fff no c. 119 onde se alternam o cluster da mo direita e as
2as C/D oitavadas (duas oitavas abaixo do C central) + A/G (figura 18). Neste
momento, o material molar originalmente evocativo do movimento do cavalinho,
transformado num material molecular puramente sonoro (portanto, afastado de suas
referncias musicais anteriores) que enfatiza as ressonncias decorrentes dos choques
entre notas muito prximas. Alm destes 3 procedimentos, a reiterao exagerada dos
elementos produz uma saturao que contribui para esta sensao de mergulho no
sonoro.
174
5- Concluso
Nosso intuito neste texto foi demonstrar como, atravs de alguns de seus
procedimentos composicionais mais tpicos, Villa-Lobos se aproxima da ideia de
molecularizao conforme delineada por Deleuze e Guattarri. Para ns, este tipo de
processo fundamenta e est implcito em grande parte da produo musical
contempornea em que o paradigma da nota tem sido substitudo pelo paradigma do
som6 atravs de uma gradativa valorizao do timbre e do rudo. Neste contexto os
compositores (e improvisadores) passam a articular as suas ideias musicais, cada vez
mais, a partir de uma manipulao direta dos sons complexos. Para ns, em Villa-
Lobos, evidente o prazer ldico de lidar com o som como uma matria plstica,
concreta que pode ser manipulada atravs da reiterao, repetio, estratificao,
deformao, destruio etc. Alm disso, a ideia - presente na obra analisada - de
tornar sonoras certas foras como a intensidade, a velocidade, a saturao, a impulso,
a movimentao, a ludicidade (devir-criana), a imagem evocada pelo ttulo, tambm
contribui para confirmar esta tendncia, para ns evidente nestas obras experimentais
de Villa-Lobos, de um pensamento musical fortemente voltado para as potncias do
sonoro.
6- Referncias bibliogrficas
6
Segundo Makis Solomos: De Debussy msica contempornea deste incio do sc. XXI, do rock
eletrnica, dos objetos sonoros da primeira msica concreta eletroacstica atual//o som se
tornou uma das apostas centrais da msica (e das artes). Reler a histria da msica desde o sculo
passado significa, em parte, ler a histria movimentada da emergncia do som, uma histria plural,
pois que composta de vrias evolues paralelas, as quais, todas, levam de uma civilizao do tom
para uma civilizao do som (Solomos, Makis. apud, Guigue, D. 2011, p. 19).
175
Villa-Lobos: umas pistas para uma escuta historicamente informada.
Didier Guigue
UFPB/CNPq/didierguigue@gmail.com
Resumo: Tomo o Choros n. 6 e a Introduo ao Choros como exemplos sonoros para ouvir e discutir
alguns aspectos da concepo esttica de Villa-Lobos. Mais especificamente, convoco os conceitos de
"paisagem hi-fi" de Murray-Schafer, e "musique concrte" de Pierre Schaeffer, para mostrar como, no
s nos trechos escolhidos mas de modo geral no ciclo completo dos Choros, se colocam diversos
binmios tradicionalmente discutidos acerca deste compositor: cultura/natura, ordem/caos, e
brasilidade/modernidade. Neste ltimo ponto, fao tambm referncia ao conceito de "viso ednica"
do Brasil, nos moldes que apontou Leonardo Martinelli.
176
Nessas alturas, a respeito desta tal "brasilidade", achei oportuno lembrar uma
interessante colocao de Leonardo Martinelli:
Dentro desta contextualizao, o que queria trazer aqui nesta mesa redonda,
so algumas observaes de um musiclogo na sua prtica da escuta da
msica, e de como esta pode constituir o ponto de partida da atividade de
anlise.
1
Srgio Buarque de Holanda (1902-1982) publicou em 1959 Viso do paraso: os motivos ednicos
no descobrimento e colonizao do Brasil. Nesta obra, Holanda se debrua sobre os motivos
ednicos presentes em diferentes fontes histricas compreendidas entre os sculos XV e XVIII. Neste
contexto, o descobrimento das Amricas e o seu processo de colonizao foram o ponto de partida para
a ideia do Novo Mundo enquanto materializao terrena do Jardim do den bblico (Martinelli, op.
cit.: 76). Holanda analisa de que forma o pas desempenhou papel central na consolidao desta ideia.
2
Alguns musiclogos situem a composio desta obra em poca ulterior, no final dos anos trinta ou
inicio dos anos quarenta (cf. http://www.villalobos.ca/choros-intro).
3
Nbrega sustenta que se a partitura fosse executada sem anncio do ttulo, a saborosa melodia que a
flauta faz ouvir [...] levaria o ouvinte medianamente arguto a identificar a fonte de inspirao do
tema. (op. cit.:55-56).
177
enquadrada por uma ambientao sonora que enfatiza o rudo, o "caos" sonoro pelo
qual o compositor almeja simular uma paisagem sonora idealizada essencialmente,
por meio de superposies defasadas de padres rtmicos. Reproduzo aqui a anlise
de Paulo de Tarso Salles:
178
nenhum aspecto objetivo nem tem sabor descritivo. (Villa-lobos, apud.
Nbrega, op. cit.:55, grifo meu).
3- Referncias Bibliogrficas
179
A Escuta e a escuta de obras de Villa-Lobos
Carole Gubernikoff
UNIRIO/ carole.gubernikoff@gmail.com
Resumo: A obra de Villa-Lobos vem sendo objeto de pesquisas e de artigos que demonstram a
potencia de sua obra aps um longo perodo de anlises circunstanciais e de carter biogrfico. A
partir de uma histria da escuta centramos na escuta atual, do incio do sculo XXI , as questes que
envolvem a produo de Villa-Lobos.
Palavras-chave histria da escuta, o modelo Beethoven, novas perspectivas.
Abstract: Villa-Loboss production has been the object of several articles and research projects that
assure its power after a long period of biographical character and analysis due basically to
circumstances. From a history of musical listening we move to twenty first century changes on Villa-
Lobos listening.
1- Introduo
180
2- A escuta, uma histria
Para entrar no tema da escuta das obras de Villa-Lobos, vou me permitir uma
digresso sobre os diferentes aspectos que esta temtica (a da escuta) tem tomado e
como ela tem sido problematizada para depois focalizar no ambiente da performance
e da pesquisa sobre Villa-Lobos. Na verdade, meu ltimo projeto de pesquisa junto
ao CNPq, se intitula, Escuta, Lugar da Multiplicidade Musical e ele d continuidade
a um projeto anterior que se ocupava da Reescrita. Estes dois temas me parecem
relevantes quando nos concentramos sobre a obra de Villa-Lobos. O conceito de
reescrita j vinha carregada de questes que envolviam a escuta e por sua vez, j se
desdobravam de questes mais antigas, mas que sempre voltavam mesma questo: o
que faz com que as obras musicais resistam e como elas se constituem enquanto
existncia. Como se d um devir que transforma uma ordem orgnica, as orelhas que
captam os rudos em uma funo esttica capaz de produzir obras. A origem destas
questes se encontra em minha tese de doutorado, quando tratei do tempo e da
durao. Porque a escuta e o tempo? Para mim, a temporalidade se impe como
questo ao longo do devir da escuta e ambos esto ligados pela questo do devir
sonoro. Em minha tese de 1993 defini a durao musical como algo que se dirige
escuta, cujo destino a escuta, no que vulgarmente chamado de tempo real,
concreto em oposio a um tempo virtual, que no se experimenta e que aparece
como elemento de calculo t nas equaes matemticas. Mas, tanto no tempo como na
escuta h um devir no sonoro e se perguntarmos por eles, no saberemos o que seja.
Aqui, vou parafrasear Santo Agostinho: Se me perguntarem pela escuta, no sei o
que seja. Se no me perguntarem, sei.
Logo, tenho trabalhado, desde os anos 90, com o conceito de que a msica
eletroacstica nos revelou que a escuta tem sido um tema reprimido pela teoria
musical e que quando aparece, vem travestido de percepo musical ou melhor, de
percepo de intervalos, proponho abordar a escuta no como aquela idealizada pelos
msicos, e que se espera do compositor que escuta tudo, mas como um tema que
no problematizado a no ser como disciplinaridade e ensignao, um neologismo
criado por Gilles Deleuze em Mil Plats. No captulo chamado de Por uma teoria
dos signos, descreve a ensignao como o processo de escolarizao cuja funo,
181
mais do que ensinar, inserir o estudante no signo, transformando a multiplicidade
em identidades. Portanto, isto que nos parece totalmente natural, ir a um concerto,
escutar ou ouvir, encontra uma literatura com grandes dificuldades de identificar na
msica a sua escuta.
Em 1992 foi realizado um seminrio no IRCAM, em Paris, onde o tema da
escuta foi problematizado e em seguida publicado em um livro organizado por Peter
Zsendy, A Escuta. Na introduo ao livro que transcreve os debates, Peter Zsendy
apresenta a questo a partir de uma orelha atual, onde dominam o que ele chama de
prteses auditivas: a gravao, os discos, os computadores, os microfones e as caixas
de som. Em seguida, separa a msica de concerto, que inclui a composio
eletroacstica, onde atua uma escuta dirigida, concentrada, de outras escutas e outras
musicalidades. Assim, podemos definir que existe um campo chamado de msica de
concerto onde se constituiu historicamente a construo da escuta concentrada e
dirigida a obras musicais. A prpria noo de obra musical um outro campo em que
a multiplicidade se transforma em identidade e, na maioria dos casos, reduz as foras
nele contidas a esquemas. Neste mesmo texto Zsendy aponta um debate subjacente
questo da escuta: se ela se inscreve nas obras musicais, ou seja, se ela est contida
nas obras, ou se ela autnoma e exercitada atravs de nossos instrumentos de
escutar. Duas posies: numa, o som independe da escuta; noutra, o som, ou pelo
menos a msica, parte integrante dos processos composicionais. Ou seja, uma escuta
dirigida composio, que por sua vez produz obras dirigidas a um pblico com
endereamento certo.
A msica de concerto tem como caracterstica principal no apenas uma
existncia produzida dentro de determinadas circunstncias, mas, principalmente a
partir de determinadas circunstncias. Zsendy lembra ainda a hiptese de Theodor
Adorno, de que as obras musicais so o nico dado concreto com o que se pode
construir uma histria da escuta musical. Entretanto, esta maneira de reconstruir esta
histria da escuta dependeria de uma escuta analtica, apta a desvendar os mistrios da
histria e da constituio de um repertrio referencial.
Lydia Goehr, filsofa e sociloga da msica, assim como Theodor Adorno,
seu modelo, confessa no prefcio de seu livro, O museu imaginrio de obras
182
musicais, sua uma tese de doutorado a partir da qual o livro foi publicado, foi
motivada por fortes lembranas. Na infncia, frequentava concertos com sua famlia
o que a estimulava a um tipo de escuta divagante, prprio de uma criana, ao
percorrer com os olhos e a imaginao o cenrio da sala de concerto. Os bustos e
rostos dos grandes compositores afixados em torno da sala de concertos a deixavam
intrigada e se perguntava porque, no centro desta sala particular, se encontrava o rosto
de Beethoven. Da mesma maneira que o rosto de Beethoven emoldurava a
imaginao da filsofa, a histria da msica e consequentemente da escuta musical
tem em Beethoven um marco. Tudo parece se passar antes ou depois de Beethoven.
Ningum se oporia a dizer que h um Bach antes e um Wagner depois, outros marcos
referenciais, mas a centralidade de Beethoven se confirma na maneira como
contada a histria da formao do pblico de concerto.
Tudo na histria do pblico da msica de concerto gira, coincidentemente, em
torno do final do sculo XVIII e inicio do sculo XIX, anos em que a figura de
Beethoven emerge. para este momento que a msica se emancipa da encomenda
e do mecenato. Lydia Goehr enfatiza muito este aspecto, trazendo como testemunho
as dedicatrias das peas e as encomendas oficiais. Documentos famosos desta
subalternidade so as dedicatrias subservientes de oferecimento dos madrigais de
Monteverdi, as cantatas obrigatrias para o servio dominical luterano de Bach, assim
como a Oferenda Musical, ou o emprego bem remunerado de Haydn junto aos
Esterahzy. Com isto, Lidya Goehr defende a ideia que a obra musical como a
conhecemos hoje, no existia e que seria necessrio o advento do pblico burgus de
concerto, simbolizado por Beethoven, para que esta noo se concretizasse.
Entretanto, podemos assistir a grandes triunfos de compositores que tiveram enorme
aceitao em sua prpria poca e que foram reverenciados pelos ouvintes. Em Olhar,
Escutar, Ler, de Claude Levy-Strauss encontramos uma anlise sobre a recepo de
obras de arte no incio do sculo XVIII e na msica, principalmente na obra de
Rameau. Ele se detm principalmente em dois pontos. O sucesso de pblico e de
crtica informada da pera Castor e Plux e considera a teoria dos trs tipos de
acordes, de tnica, dominante e subdominante, como uma metodologia estruturalista,
chegando a admitir que Rameau seria responsvel por sua criao. Neste caso temos,
183
contrariando as hiptese da no existncia de obras artsticas antes do advento do
sculo XIX, encontramos uma nova teoria e um pblico.
Porm, uma questo vem perturbar esta bela histria linear. Beethoven ficou
surdo e a apreciao das obras produzidas no final de sua vida sofreram grande
dificuldade de aceitao. Zsandy nos lembra as crticas proferidas por A. B. Marx a
Beethoven quando associa as 47 repeties do mesmo motivo no quarteto op.135 em
F Maior como um trao dos nervos auditivos doentes. H uma outra perspectiva
na qual a surdez atua como um trao positivo que o libera para as extremas ousadias
de suas ltimas obras. Esta questo da ousadia presentes no ltimo perodo criativo de
Beethoven levanta ainda a questo de que na sensao musical h um insonoro, da
prpria composio, que como gostaria Levy Strauss de se referir, estrutura a
composio musical. Tenho a pretenso de acreditar que estes fatores histricos so
importantes para procuramos situar a figura histrica e a escuta em obras de Villa-
Lobos, na passagem para o sculo XX.
184
por suas ligaes com a cultura europeia e suas peras italianas. Mas, o que ela
salienta bem claramente o que ela chama de mistrio da utilizao, por parte de
Villa-Lobos, da esttica modernista, hoje chamada de ps tonal, com grandes pontos
de confluncia com a produo de Bela Bartok, Seguei Prokofiev, Igor Stravinsky,
Maurice Ravel e Edgard Varse.
185
Inquirido em como teve acesso a estas melodias esquecidas, responde que um
papagaio o havia ensinado, e como os papagaios vivem muito tempo, as haviam
guardado (Nasser, 2008).
Ouvir o que os papagaios contam pode ser inverossmil, mas ouvir
atentamente aos papagaios e transformar a escuta de seus silvos em msica
verossmil, principalmente se for uma melodia pentatnica, como muitas encontradas
em seu repertrio. Outra observao importante de Vnia Nasser a referncia que
David Appleby, bigrafo de Villa-Lobos em livro lanado em 2002, faz a 77 livros
sobre ele, todos com opinies e verses diferentes. Logo, podemos considerar esta
fase da recepo da msica de Villa-Lobos centrada nos casos e nas narrativas
bizarras que provariam a genialidade do compositor, uma vez que sua competncia
composicional permanecia sob as suspeitas levantadas por Mario de Andrade foi
predominante ao longo do sculo XX.
186
de Willy no encaravam a msica de Villa-Lobos como de vanguarda. A adeso
tardia de Willy Villa-Lobos se deu bastante nos moldes anteriores, tachando-o de
genial e grande e no trouxe novas perspectivas, uma vez que o tratamento dado a
Villa-Lobos j tinha mudado radicalmente.
O outro fator que considero importante, foi o surgimento dos cursos de ps
graduao em msica, aps o incio dos anos 90. Nestes cursos se misturaram
docentes e pesquisadores de diferentes formaes, alguns oriundos de cursos no
exterior e outros de diferentes formaes inter e trans disciplinares no Brasil. O rigor
da pesquisa cientfica, uma exigncia maior no contedo e a introduo de
metodologias menos imprecisas no tratamento das informaes musicolgicas e da
anlise musical passaram a conferir maior credibilidade aos estudos sobre Villa-
Lobos. Houve tambm um maior aprofundamento dos estudos relativos aos anos
considerados da modernidade do sculo XX. Se, ainda de acordo com o texto de Peter
Zsendy, a msica de Arnold Schoenberg, Alban Berg e Anton Webern, a partir dos
anos dez e vinte do sculo XX, impuseram uma nova escuta, um melhor entendimento
dos procedimentos empregados por Igor Stravinsky e Bela Bartok, da herana do
pianismo de Franz Lizst e de Claude Debussy e da revelao do sonoro que foi a
ultrapassagem do som instrumental temperado em obras de Edgard Varse, foram
fatores importantes.
No incio do sculo XX, a tendncia a valorizar os contedos oriundos da
msica popular tambm uma constante, seja em fontes mais folclricas seja em
fontes urbanas, como o jazz em obras de Stravinsky, mas tambm Gershwin e Darius
Milhaud. Em oposio aos excessos do ultra romantismo houve uma simplificao da
escrita que era pregada e exercida por Eric Satie, Darius Honneger e por Francis
Poulenc, alm da economia do ps guerra a partir de 1918 ter imposto novas
combinaes camerstica, algumas inusitadas. Todas estas caractersticas do
repertrio musical composto aps a primeira guerra mundial esto presentes em Villa-
Lobos no mesmo perodo. No seminrio Villa-Lobos de 2009, tive a oportunidade de
confrontar uma leitura do livro sobre composio musical, de Vincent DIndy com a
adoo de uma harmonia de fundo modal e diatnico, utilizando acordes sustentados
por pedais que conduzem a audio, como est descrito no livro. Todos estes fatores
187
nos levam concluso que o fenmeno Villa-Lobos, mesmo que surpreendente est
em acordo com as necessidades de seu tempo. Que seja surpreendente que seja no
Brasil, uma questo de perspectiva. E porque no no Brasil?
Villa-Lobos surge num cenrio conservador mas onde haviam instituies
atuantes e um ambiente musical cultivado, mesmo que pequeno, como o comprova a
pesquisa desenvolvida por Manoel Correa do Lago sobre o crculo formado em torno
da pianista Nininha Guerra. As obras que eu considero de referencia para o
surgimento tanto de Stravinsky quanto de Villa-Lobos estavam disponveis: os russos
nacionalistas, principalmente Modest Mussorsky e Nicolai Rimsky Korsakov, a
msica de Wagner, ou pelo menos a conscincia das questes harmnicas, e Claude
Debussy. Os mesmos elementos que alimentam a esttica de Debussy esto presentes
nas primeiras obras de Villa-Lobos, como nos esclarece Paulo de Tarso Salles em seu
livro sobre a tcnica composicional de Villa-Lobos. Da mesma maneira que Claude
Debussy, muitas vezes com ironia, citava o Acorde de Tristan, Villa-Lobos, com ou
sem transformaes ou ironias, fazia o mesmo. O ritmo era fundamental na concepo
das obras de Debussy, que se assinava ritmista-colorista, e podemos ver o mesmo com
Villa que tinha um manancial inesgotvel de ritmos na cultura popular, rural ou
urbana, sem mencionar os autores clssico-romnticos em que a rtmica um fator
importante, como Beethoven e Brahms. Nestes dois a utilizao de material folclrico
abundante e podemos dizer o mesmo de Chopin e Lizst, com Mazurkas e Czardas.
As anlises que Paul de Tarso Salles tem desenvolvido dos quartetos de Villa-Lobos,
comparando-os com quartetos de Haydn demonstra uma nova atitude em relao ao
folclore das frases de efeito do compositor. Mesmo Arnaldo Estrella, um dos
intrpretes de sua obra, no podia aceitar que ele se baseasse realmente nos quartetos
de Haydn, mas uma leitura de uma atenta tambm uma escuta e Villa se dedicou
confessadamente a esta atividade.
Durante os primeiros anos de composio, em suas fases iniciais, Villa-Lobos
poderia estar isolado no Rio de Janeiro e no Brasil, mas em pouqussimo tempo
passou a viver e a frequentar os ambientes musicais mais sofisticados em Paris e
depois nos Estados Unidos e em diferentes pases, que, de acordo com Paulo Roberto
Gurios, foi sua maneira de afirmar sua identidade brasileira. Encontramos no
188
youtube uma gravao extraordinria do Choros VI, com Villa regendo a Orquestra da
Radio da Repblica Democrtica da Alemanha, em Berlim. Seu andamento
significativamente mais rpido que as demais gravaes o que retira qualquer trao de
sentimentalismo e transmite o carter impetuoso do regente. Um aspecto da
personalidade de Villa-Lobos particularmente importante para mim. Ele nunca se
sentiu isolado, no triste sentido dado por socilogos do sculo XX que cunharam
nossa cultura como dependente econmica, social e psicologicamente.
Todas estas consideraes se do em torno de uma escuta das foras
composicionais que moldaram o estilo de Villa-Lobos e sua obras. A investigao de
como Villa-Lobos absorveu a fora de compositores de seu tempo, com quem
conviveu, e a absoro dos estilos e tcnicas de compositores como Bach e Haydn,
est em andamento. Cabe a ns, ouvintes e pesquisadores do incio do sculo XXI,
encontrar as relaes entre suas obras e o momento atual da composio musical, em
que as oposies entre nacionalistas e vanguardistas acabaram, a separao entre
msica popular e msica produzida para alimentar as salas de concerto est entrando
em novas fases de mtua alimentao, em que o modelo da sala de concerto com o
busto de Beethoven reinava absoluto est sendo invadido por meios de reproduo em
massa que multiplicam ao infinito estas figuras em Ipods, Ipads, IPhones, mps3 e 4
com a dessacralizao e potencializao da escuta em planos inesperados e
surpreendentes. Mas, como sempre, desde o incio de minhas pesquisa eu me
pergunto: que msica vai resistir a tantas reprodues, interpretaes e anlises.
4- Referncias bibliogrficas
189
TRAVASSOS, Elizabeth Modernismo e msica brasileira, Rio de Janeiro, Jorge
Zahar, 2000
ZSENDY, P. Lcoute, Paris, Harmattan, 1998
190
Mesa 6 - As canes de Villa
1- Introduo
191
afinidades, permitindo uma interpretao da linguagem musical em funo do
contedo semntico dos poemas.
As relaes entre os dois sistemas, musical e verbal, podem ser vistas e
exploradas em diferentes perspectivas. Agawu (1992) prope quatro modelos
baseados, respectivamente, na ideia de assimilao, interao, justaposio e
independncia entre os sistemas musical e verbal. Parte central no estudo e na
interpretao das canes de arte, as representaes musicais de elementos textuais
podem ser observadas a partir das caractersticas dos procedimentos composicionais e
do objeto representado.
O presente trabalho tem como objetivo observar essas relaes nas partes
instrumentais de um grupo de obras vocais de Heitor Villa-Lobos a partir do conceito
de persona e de suas representaes musicais. A presente discusso pretende refletir
sobre as seguintes perguntas: a) quais procedimentos musicais contribuem para a
representao de personae?; b) como elas so mencionadas no texto?; e c) que tipo de
contribuio a aplicao do conceito de persona pode trazer para a interpretao de
Abril, Festim Pago e Modinha, de Heitor Villa-Lobos?
2- O conceito de persona
192
sugeridas atravs de mudanas na tonalidade, modo, tempo, textura harmnica,
ritmos, dinmicas, registros e desenhos motvicos.
193
4- Representaes de personae em Abril, Festim Pago e Modinha
4.1- Abril
194
Em contraste, a partir do compasso 10 (ver Figura 2), notou-se o uso do
registro agudo, de uma articulao diferente (staccatto) e de uma dinmica mais
estvel (entre p e pp) para a caracterizao da chuva mais fina.
A associao persona da chuvarada foi facilitada pela meno textual
explcita ao elemento caracterizado no prprio texto: depois da chuvarada sbita.
No entanto, o mesmo no pde ser feito com relao segunda persona identificada:
a chuva mais fina intermitente.
195
relevante notar, a partir dessa ltima leitura, que Villa-Lobos emprega trs
padres de caracterizaes sucessivamente e o faz antes mesmo das primeiras
palavras do texto serem cantadas. Segundo essa viso, a persona um nico elemento
cambiante, caracterizado por procedimentos musicais que possuem uma funo
temporal (pois o fenmeno muda com o tempo), a qual est associada primeira
palavra do texto, o advrbio de tempo depois. Do ponto de vista da interpretao, nos
parece importante enfatizar que as grandes mudanas ocorridas na pea ocorrem no
momento anterior ao canto, anterior emisso das prprias palavras sobre o qual a
msica foi composta. A representao instrumental faz com que haja um momento
anterior ao texto, a partir de indcios e no de evidncias, e cria um transcorrer
temporal que extrapola o prprio texto. Nesse sentido, Villa-Lobos cria uma dimenso
para a cano que maior que o poema, no tempo e na representao dos elementos.
196
Por outro lado, a persona faunos febris est associada a um material
cromtico, de duraes mais rpidas, que aparece no registro mais agudo do piano
(ver Figura 4, compasso 3). Em ambos os casos, o elemento que justifica essa
associao aparece mais tarde: a persona tambores aparece em ao sonoro bater dos
tambores retezos e os faunos em correm faunos febris. Vale ressaltar que o
conceito de persona aqui representa elementos plurais, tambores e faunos.
Do ponto de vista interpretativo, pode-se citar dois pontos importantes: a)
assim como em Abril, a caracterizao dos dois elementos tambm ocorre antes das
menes textuais; e b) as representaes das duas personae ocorrem simultaneamente.
A simultaneidade de mltiplos personae possibilita a sugesto do ambiente de
desordem, que est diretamente relacionado ao prprio ttulo da cano, Festim
Pago.
197
4.3- Modinha
198
Podemos interpretar esse procedimento como o de uma representao
instrumental de uma persona? Para levar essa ideia adiante, temos que compreender a
relao do instrumento violo com o gnero modinha, sobre o qual Villa-Lobos faz
referncia no ttulo. As caractersticas da cano confirmam a associao: incluem a
presena de saltos na linha vocal, de acompanhamento de violo e de texto de
temtica sentimental (APPLEBY, 1983, p. 68-69).
A partir dessa ideia, a interpretao da parte do piano caminharia em direo
personificao do violo. O piano faria parte da cano que contm o texto, mas no
do texto, pois no o ilustra. O piano compartilha a cano resultante do texto com a
voz e assume o papel de uma persona: um instrumento ligado cultura brasileira e,
principalmente, esttica nacionalista.
5- Consideraes finais
199
Esperamos que as consideraes acima possam colaborar para as discusses
sobre as diversas possibilidades de representao musical de elementos textuais e
sobre as possibilidades de interao dos sistemas verbal e musical na interpretao
das trs canes.
6- Referncias Bibliogrficas
200
Mesa 7 - Nos limites da Anlise
Resumo: O objetivo deste trabalho apresentar um estudo de Anlise em peas para piano de Villa-
Lobos da dcada de vinte, observando o tratamento do autor quanto expanso da sonoridade. Situa-se
no campo da Anlise/Performance, a que tanto procura a concepo para uma interpretao como
realiza anlises atravs de interpretaes. As observaes apontam para se considerar como Villa-
Lobos contribuiu com a sua criao para a expanso da sonoridade da msica ps-tonal, o que o coloca
como um dos compositores representativos do sculo vinte, especialmente pelo tratamento de textura e
timbre.
Abstract: This work presents an analysis focused in Villa-Lobos piano pieces of the twenties,
concentrating the observation in how the composer treats the sound in expansion. It is at
Analysis/Performance field, the analytical activity that so looks for a performance conception as well
as the one that works analysis through performances. The aspects that have been observed here points
out how the Villa-Lobos composition can be considered as a contribution to the sound expansion in
post-tonal music mainly because the treatment of texture and timbre.
1- Introduo
201
lembrem-se que os diversos formatos de Anlise muitas vezes privilegiam dimenses
separadamente, sejam elas de contornos rtmicos, de alturas, de texturas ou de
timbres.
A base da Anlise precisa estar bem definida: se ir comear pela partitura, se
pela audio sem partitura, se ter por ponto de partida idias do compositor sobre a
pea, se atravs da comparao entre uma ou mais interpretaes, se ir seguir alguma
ou mais teorias ou um ou mais mtodos de trabalho. Assim, a Anlise se desenvolve
entre Teoria da msica, Teoria da composio, Esttica musical, Histria, Sociologia,
Performance e Ensaio crtico, como ainda se distribui em diferentes combinaes.
Entre essas muitas facetas, selecionamos para esta apresentao a chamada
Anlise/Performance aquela que tanto procura a concepo para uma
interpretao como tambm a que realiza anlises atravs de interpretaes, um dos
aspectos da Anlise, antes reservado ao compositor e partitura, que agora leva em
conta o trabalho do intrprete. Anlise e interpretao, impossvel deixar de
enfatizar a importncia dessa conexo, observa Paulo Costa Lima
(http://www.paulocostalima/anlise).
O que chamamos de performance em msica, tem sido alvo de estudos de
variados tratamentos nas ltimas dcadas, tais como investigaes das reas de
psicologia, cognio, histria e ligaes anlise/performance. Sendo este ltimo o
aspecto que nos interessa aqui, consideremos uma breve reviso do que se tem escrito
sobre o tema.
Nicholas Cook intitulou um artigo Palavras sobre msica ou Anlise versus
performance, no qual discute a variedade de idias que tm acompanhado essas
atividades atravs da histria. Palavras, de um lado, msica de outro. Apresenta ento
sua opinio de que, ao no se fazer a to usada separao palavras/msica, ser
possvel alcanar dois benefcios: primeiro, desenvolver modelos de relacionamentos
entre concepes analticas e performances originais (em relao s geralmente
conhecidas) e em segundo lugar, facilitar o desenvolvimento do que vem sendo
conhecido como estudos de performance (Cook, 1999: 9-11).
Um dos responsveis pela associao Anlise/Performance Wallace Berry,
que no livro Music Structure and Performance (1989), sintetiza como a anlise leva
202
performance, considerando apenas a anlise estrutural. Mais tarde, essa idia
ampliada para a recproca do processo, pois so consideradas anlises a partir de
performances (gravaes) e a procura de uma interao entre elas, principalmente
com Nicholas Cook, Joel Lester e John Rink (Rink, Ed. 2005: 197).
Joel Lester faz esclarecedora observao quanto juno de Anlise e
Performance:
2- Villa-Lobos e Anlise
203
um especfico para Anlise, que se distribui entre Caratersticas
estilsticas/Tendncias estticas, Musicologia e Piano (Bittencourt, 99: 38-47).
3- Sonoridades de Villa-Lobos
204
que caracterizam sua criao 1 . significativa a contribuio de Villa-Lobos
literatura de piano solo, atravs da coleo A Prole do Beb I e II e do Rudepoema,
objetos deste estudo.
Para demonstrar o tratamento que Villa-Lobos promove expanso da
sonoridade, salientamos aqui dois aspectos: bordes e faixas sonoras.
3.1- Bordes
O que mais se nota nas peas A Prole do Beb so camadas formadas por
linhas independentes. Em todas as peas esto presentes as repeties de desenhos
ritmico-meldicos conhecidos como ostinatos, termo que se refere s sucessivas
repeties de um padro musical (Schnapper, 2001: 782). Esses ostinatos aqui esto
considerados com o nome de Bordes, segundo a classificao realizada por Ernst
Widmer, que vai desde um som at os conjuntos de faixas sonoras (Widmer, 1982, p.
14-16). Villa-Lobos cria bordes para constituir a textura, aos quais vai acrescentando
acordes, linhas meldicas e as canes conhecidas em superposies, formando uma
grande polifonia.
- os bordes esto presentes nas dezessete peas, so bases para linhas meldicas,
ritmos e acordes, como elementos formadores das texturas;
- as texturas so desenvolvidas em planos independentes, criando novos interesses
polifnicos;
- as linhas meldicas de canes tradicionais ou no, so superpostas aos planos
polifnicos, como mais um ornamento da textura e do timbre; (Pascoal, M.L.
2005:104).
1
So composies de Villa-Lobos na dcada de vinte, os Choros, no total de quatorze, o Quatuor
(Quarteto Simblico); o Noneto (Impresso rpida de todo o Brasil), os Doze Estudos para violo; as
Sinfonias n. 3 a 5. e as Cirandas, para piano.
205
Na pea Villa-Lobos A Prole do Beb Pobrezinha (I, 6), os bordes so
constitudos por uma clula de quatro sons sobre dois acordes, clula essa que
repetida em movimentos ascendente/descendentes, durante a pea inteira.
Na apresentao, audio de
2
Todos os exemplos apresentados so da gravao do pianista Andr Hamelin.
206
3.2.1- Por acumulao
Os sons da faixa sonora apresentada a seguir, so trabalhados em movimentos rpidos
e alternados de mos, como Toccata. No caso da Figura 1. Villa-Lobos, A Prole do
Beb II, 9. O lobosinho de vidro, a textura valorizada na interpretao e tratada pela
acumulao de material:
Fig. 1. Faixa sonora. Villa-Lobos A Prole do Beb II, 9. O lobosinho de vidro, c. 1-10. 3
3
Aqui est apresentada uma anlise da dimenso vertical. Os nmeros acima das pautas se referem aos
compassos. Este trecho repetido vrias vezes durante a pea. Como parte da anlise schenkeriana
proposta por Felix Salzer, os grficos de vozes condutoras apresentam o movimento harmnico-
contrapontstico nos pontos que formam a estrutura e simbolizam o processo da audio estrutural.
Privilegiam as vozes que conduzem o discurso (Salzer, Felix. 1982: 142-3 e 206-7).
207
4- Consideraes finais
A observao do material e de como foi tratado nas texturas e nos timbres nas
peas de Villa-Lobos A Prole do Beb I e II e Rudepoema mostraram
principalmente:
5- Referncias Bibliogrficas
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Analysis, 23/ii-iii, 2004/5: 267-286.
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Gravao:
Heitor Villa-Lobos. As trs Marias. Prole do beb n. 1. Prole do beb n. 2.
Rudepoema. Andr Hamelin, piano. Hyperion/CDA 67176. London: 2000.
209
Estudo da gnese composicional de
Rudepoema de H. Villa-Lobos
Silvio Ferraz
Universidade Estadual de Campinas/ silvioferraz@iar.unicamp.br
210
A necessidade de se forjar um compositor mestio, nascido de uma terra
mida, de matas confusas e escuras, de uma sol forte e uma malemolncia cabocla, na
linha dos ditos do Conde de Boufon no sculo XVIII, foi alm do que devia e acabou
por forjar tambm a imagem negativa do compositor pouco cuidadoso, que escrevia
uma msica espelho das as foras caticas e naturais das selvas tropicais. Foi assim
que textos e mais textos realando os cabelos revoltos, o modo pouco polido, a
maneira desleixada, acabaram tambm levando construo (isto em mo dupla, tais
construes tambm desenhando o prprio perfil do compositor) da imagem de uma
obra que tal qual seu criados tambm deveria estar cheia de pequenos erros, de faltas
formais e detalhes ora abusivos ou faltantes.
Passado o primeiro momento de desenho do gnio romntico nascido nas
selvas amaznicas do subrbio carioca, um novo momento passou a ser esboado
quando, munidos de ferramentas atualizadas de anlise musical os analistas mudam
de posio e Villa-Lobos ganha notoriedade de compositor meticuloso, um
matemtico que vislumbra simetrias na mais simples escala musical, que se vale de
mecanismos os mais rebuscado indo de citaes prprias s vanguardas dos anos 50.
Villa passa de gnio romntico a precursor das vanguardas, lado a lado com seu
colega Edgar Varse, com quem se encontra no final dos ano 1920.
Com a fora das tcnicas das novas escolsticas analticas, tal leitura algbrica
contribuiu para desfazer de um certo modo o compositor de cabelos revoltos,
compositor cuja msica era como a fria de um leo das selvas americanas e das
onas africanas. Desfez, mas ainda sem abrir mo da imagem do compositor
desleixado, da ideia de que sua obra est cravadas de erros. Uma leitura que se de um
lado nunca refere exatamente partituras e rascunhos, por outro desenha o compositor
como se aqueles aos quais se contrape fossem os deuses da perfeio. A imagem do
desleixado Villa-Lobos sempre colocada em contraponto a Debussy, Ravel,
Stravinksy, Varse, como se estes fossem imaculados. Ou seja, uma retomada dos
equvocos da antiga leitura acrescido agora de outro equvoco, o vislumbre de um
Villa-Lobos to meticuloso e calculista como Iannis Xenakis, Pierre Boulez ou
Karlheinz Stockhausen (como se estes tambm, por sua vez, fossem realmente to
211
calculistas e meticulosos e suas partituras no estivessem tambm carregadas de
pequenos equvocos de cpias).
De certo modo estamos diante de um literatura ressentida que ao falar de
Villa-Lobos tem de se sempre acrescentar que ele era falho: Embora no tenha sido
um bom pianista e muito menos um virtuoso, sua obra para piano... (Mariz, p. 132),
uma frase que pode-se dita de Ligeti, de Schoenberg, Webern, Varse, Xenakis, que
compuseram obras extremamente relevantes do repertrio piansticos sem serem
pianistas, embora este modo de ressentimento no faa parte de suas biografias.
Mas temos de perdoar, analistas musicais no escrevem msica e trabalham
sobre a imagem construda, ou na construo de uma imagem, desconhecendo
vicissitudes do processo composicional. Alm do que suas anlises raramente revelam
algo do processo composicional escondido por trs de uma obra e que possa vir a
gerar outras obras.
no sentido de dar nfase a uma anlise que gere msicas e no juzos quanto
a Villa-Lobos que lano aqui esta pequena proposta analtica para a composio de
Rudepoema tendo em mos os rascunhos do compositor, suas entrevistas de poca na
Revue Musicale, e lembrando a todo tempo seus dilogos: Igor Stravinsky, Edgard
Varse e Florent Schmidt.
1
Villa-Lobos vive neste endereo de Paris em dois momentos distintos, no ano de 1923 e entre 1926 e
1930, quando retorna ao Brasil, para somente na dcada de 50 adotar novamente Paris como residncia.
212
Sugestiva, o Noneto dentre outras obras tambm de reconhecido valor na construo
da escritura villalobeana.
Tal contemporaneidade e envelopamento de uma srie marcante na obra do
compositor, acaba por determinar o necessrio vnculo analtico entre tais obras. Seja
na anlise de cada uma das partituras, seja na anlise de rascunhos e escritos do
compositor so constantes as remisses.2
O contato com os rascunhos de Rudepoema e com sua primeira verso
publicada, logo pe em questo o atributo de compositor desleixado. O rigor com que
o compositor escolhe seus acordes, apagando-os inmeras vezes e a existncia de
pouqussimas discrepncias (do tipo desleixo) existentes entre os rascunhos e a verso
final logo desfazem esta imagem. Corrobora ainda para o desfazimento desta imagem
(ao menos neste perodo) a razo de Villa-Lobos ter seu cotidiano dividido com os
principais intrpretes da poca, bem como ter de preparar materiais orquestras
constantemente, e de conviver com compositores franceses frente aos quais imagina-
se ele no fosse bobo de deixar que a imagem de desleixado se fizesse forte. neste
sentido que uma cpia da obra Pribaoutki, realizada por Villa-Lobos em 1920 a
pedido de Vera Janacopoulos, apresenta pouqussimos lapsos se comparada com a
partitura editada, sendo alguns destes lapsos presentes no prprio material publicado
das partes instrumentais a partir das quais Villa-Lobos compila sua partitura geral.
O contato com os rascunhos tambm revela um compositor que toma decises
cruciais entre a verso manuscrita e a edio. No se trata de erros mas de um
trabalho normal de compositor que realiza variaes mesmo s vsperas da
publicao. O prprio Stravinsky formulou diversas verses da Dana do Sacrifcio,
de sua Sagrao da Primavera. Em Rudepoema Villa-Lobos simplesmente reala
camadas distintas em diversos momentos da passagem da partitura manuscrita para a
edio final, como faz ao elevar de meio tom uma frase meldica, realando sua
caracterstica de notas pretas em contraponto s brancas da textura de fundo.
2
Por tratar-se de um texto introdutrio ao tema, me valho aqui apenas dos rascunhos de Rudepoema e
Prole do Beb n2, dos textos de poca (sobretudo aqueles veiculados pelo prprio compositor) e de
partituras de obras citadas nos rascunhos.
213
Figura 3: Passagem do rascunho evidenciando o emprego de notaes distintas para realar melodia principal
sobre fundo de textura fixa. Observe-se tambm a melodia acrescentada em terceiro pentagrama superior a qual
transposta de meio tom na verso publicada, configurando harmonia de colorido octatnico.
Figura 4: Uso de notao especial para indicar teclas apenas abaixadas e detalhamento de notao de
pedal.
214
No so poucos os depoimentos de inadequaes na notao ou de
inadequaes tcnicas, sobretudo entre crticos e intrpretes brasileiros. Mas fica
sempre a pergunta do porque sua obra ter tido tamanho sucesso entre intrpretes
virtuoses. Mais uma blague sobre o compositor. De fato, o prprio Villa deve se
alimentou desta falsa imagem. E seus interpretes tambm, visto o destaque que
ganhavam ao enfrentar uma obra considerada impossvel. Sem dvida a obra
pianstica de Villa-Lobos, tal qual em Rudepoema e Prole 2, exige uma destreza
tcnica quase insupervel, mas h de se ter em conta os intrpretes com os quais o
compositor vivia e a prpria exigncia e oportunidade que abriam para que
desenvolvesse uma escrita complexa (Rubisntein, Vera Janacopoulos, Pablo Casals).
Quanto aos depoimentos sobre a forma musical em Villa-Lobos, estes talvez
sejam os mais infelizes, visto que muitas vezes so retomados por analistas e at
mesmo por compositores, razo pela qual vale um grande parntese a propsito. Na
dcada de 1920 Villa-Lobos vive em Paris e tem grande contato com a obra de
Stravinsky, de Milhaud (a qual j conhecia bem desde 1917). No final da dcada
conhece Edgar Varse, com quem estabelece amizade a partir de 1926, sendo
encarregado da organizao de concerto em que se do duas estreias francesas da obra
do francs. Esta nova msica que Villa vem a conhecer no pactua mais da velha
forma musical, seu paradigma outro. Circula em Paris as propostas de estudos
formais advindas da escola russa, atravs dos escritos e aulas de Pierre Souvtchinsky,
principal responsvel pela organizao das Six Leon de Musique de Stravinsky obra
que traz uma aula inteira dedicada a este pensamento sobre o tempo musical. A
construo formal com base nas relaes de causa-efeito, as construes lineares ou
mesmo dialticas (como a velha forma sonata)3 j no so mais as normas desta nova
gerao de compositores. Se muitos anos depois um compositor como Guerra Peixe
ainda critica o modo de quase colagem com o qual Villa-Lobos trabalha, no devemos
ver nisto mais do que uma declarao inserida em um contexto poltico especfico, j
que o prprio Guerra-Peixe tambm praticava formas no ortodoxas de composio
musical. De fato o modo como Villa-Lobos trabalha a forma musical bastante
distante daquela adotada pelos alunos de Koellreuter, estes ligados a uma msica que
3
Interessante trabalho sobre a forma em Rudepoema foi exposto por Rodolfo Coelho de Souza (2010).
215
referia constantemente a tradio. O paradigma de forma presente em Villa no
mais aquele do sculo XVIII e dificilmente pode ser compreendido atravs por
anlises formais tradicionais ou ser visto atravs da tica dialtica que impera em uma
corrente como a do serialismo.
A supresso da relao causa-consequncia, e da relao dialtica pertinente
anlise dos desenvolvimentos em uma sonata, trazem a uma obra como Rudepoema
todo um outro quadro de leitura e compreenso do espao musical que abre. Mesmo
imerso em experimentaes, na imagem de que a forma nasce junto com a msica
(ideia bastante cara a Edgard Varse), Villa segue quase que risca um tratado
tradicional. De fato seu revoluo se constri a partir do primeiro livro do Cours de
Composition Musicale de Vincent DIndy. Neste livro adotado na Escola Nacional de
Msica e constantemente citado pelos musiclogos responsveis pela obra de Villa-
Lobos, distingue-se claro o mtodo de desenvolvimento (DIndy, 1912, p. 43-45)
daquele de desdobramento (DIndy, 1912, p. 83-90), o primeiro aplicvel a material
temtico de caracterstica clssico-romntica, o segundo prprio para as melodias de
cunho popular, mais simples e geralmente circunscritas a um campo de alturas
bastante reduzido (de um tricorde a um exacorde, mas com nfase nos tetracordes).
Tal aspecto da melodia popular, limitada a poucas notas, acaba por fazer com que
qualquer melodia do gnero relacione-se a qualquer outra falseando um modo de
variao, armadilha para analistas. Tambm permite ao compositor o emprego de
campos harmnicos distintos, a proto-melodia4 de 3 a 5 notas deixa ao compositor um
campo aberto que permite construir escalas as mais variadas tendo em vista o hbito
de escalas de 7 ou 8 tons (hepta e octatnicas), relativas aos antigos modos maior e
menor. Talvez a resida as estratgias de tentativas, a escrita quase experimental (no
sentido Schaefferiano do compositor que experimenta, de faz e refaz com base no
em projeto a priori mas com base em tentativas e encontros) de Villa-Lobos na busca
pelos acordes de Rudepoema (busca estampada nas pginas quase rasgadas a borracha
do rascunho).
4
Um tipo de organizao proto-meldica ou mesmo pr-organizacional - melodias muito pequenas,
latncias de melodias [...] demasiadamente pequenas para que sejam representativas da prpria
melodia e cuja repetio no significa exatamente organizar. 4 So seriaes, sugerindo um
encadeamento que pode ser interrompido em qualquer ponto (BRANDEL, 1961, p. 55).
216
O conhecimento de Villa-Lobos quanto a tal questo relativa aos modos de
desenvolvimento prprio aos motivos ou temas lricos e os motivos populares (Cf.
SALLES, 2012, p. 25-43 e DIndy, 1912) fica claro quando colocadas lado a lados as
composies anteriores ao perodo de Rudepoema com aquelas dos anos entre 1921 e
1927. Villa saber articular dois modos composicionais em paralelo, o clssico-
romntico empregando inclusive formas tradicionais com o uso de temas lricos e a
forma livre mais contempornea onde emprega proto-melodias (os temas populares,
conforme DIndy, ou ainda episdios meldicos e melopias, conforme o prprio
Villa-Lobos).
Figura 5: Caractersticas dos fragmentos meldicos empregados em Rudepoema: cps. 1-3, giro em
torno de f#. cp.7-8, giro em torno de do#, cp. 3-5, giro5 em torno de do# com finalizao sobre l, cp.
31-32, giro em torno de si natural.
5
Vale observar que este carter de canto gregoriano remete por sua vez ao canto indgena tal qual
Villa-Lobos o concebe e que em muito se aproxima viso de Jean de Lery quanto ao Caninde Yune
(Lery, J. 1557[1957], pp.334 e 337)
217
deixados pela compositor em seu rascunho so os diversos ttulos dado a trechos dos
rascunhos, Choros n8, Prole, Prole do Beb 2, e por fim o R de Rudepoema, que
figura a lpis colocado quase que em um segundo momento, momento em que reuniu
os fragmentos sob o ttulo de uma obra s. Tal aspecto de reunio de fragmentos
tambm evidente se confrontada a composio de Rudepoema com os dois livros da
Prole, conforme observa Maria Lucia Pascoal em seu verdadeiro catlogo de objetos e
texturas (Pascoal, 2005). Podemos dizer que em Rudepoema toda esta sorte de objetos
e texturas compe cada uma das partes da pea.6
De fato nesta e em outras peas de Villa-Lobos no estamos diante apenas de
um mpeto selvagem, sem controle, um selva revolta, como o prprio compositor
assume publicitariamente a respeito de sua pea. Estamos diante de um pensamento
de poca no que diz respeito ao tempo musical e superao da relao causa-efeito a
qual Villa incorpora e encontra traos de proximidade com a imagem que criava de
uma msica vinda das entranhas da floresta aliada ao que ele chamava por estrutura
cientfico-musical.7
Para uma abordagem analtica da gnese composicional e para uma
aproximao ao modo composicional de Villa-Lobos talvez o caminhos seja no a
consulta direta e exclusiva da partitura, mas sim o conjunto formado por partitura
impressa final, rascunhos ou manuscritos, cartas do perodo, notcias e crticas em
revistas especializadas, notas de concerto.
3. Os cadernos de Rudepoema
218
completas em folhas nicas demonstram um pouco a pea ser realizada a partir da
reunio de fragmentos disparatados muitas vezes com ordem invertida em sua verso
final.
FOLHAS PAGINAS E CORRESP.COM NUM MVL OBS
FOLHAS IMPRESSA
Folha 1 1 fl. p1 e 2 p. 3-4 e p.3+5 1994-21- Elementos
0063 apresentados em
ordem diferente da
partitura final.
Ttulo: Prole do
Beb 2
8
Nos arquivos do MVL esta folha encontra-se em meio aos rascunhos atribudos Prole do Beb 2.
219
A existncia de cadernos distintos, com materiais bastante diferentes embora
relacionveis, caracteriza um modo de composio por justaposio, sobreposio e
entrelaamento, encontrvel sobretudo em Igor Stravinsky, posteriormente em
Messiaen, e que distingue-se da composio por desenvolvimento linear caracterstica
das formas do classicismo. O tempo em Villa-Lobos constitudo pelo ritmo das
alternncias, bastante diferente do tempo rememorativo e dialtico de uma sonata
clssica, seguindo as distines entre os tempos barroco, clssico e moderno,
conforme formulao de Souvtchinsky, Brelet e Stravinsky.
A partir de um material disposto em cadernos distintos o compositor realiza
uma combinatria tendo em vista momentos de maior ou menor contraste (transies
quase diretas atravs de notas repetidas; cortes atravs de objetos rpidos e transies
por sobreposio). assim que um grande trecho escrito em uma determinada ordem
assumir ordem distinta na composio final, procedimento que Villa-Lobos pode
realizar facilmente tendo em vista a maleabilidade do material meldico e harmnico
que emprega.
Nos rascunhos as marcas da montagem esto nos diversos ttulos que figuram
em suas pginas, o R. abreviando o ttulo, que figura em quase todas pginas. Restos
de anotaes com ttulo Prole do Beb (n2), na primeira pgina de Rudepoema,
pgina que corresponde ao compasso 39 da partitura editada.
220
Figura 6: Excertos dos rascunhos de Rudepoema com as diversas indicaes de Rudepoema, Prole do
Beb 2 e Choros 8. As anotaes em vermelho foram provavelmente realizadas no momento da
compilao de material.
221
Figura 7: Primeiras quatro pginas dos rascunhos de Rudepoema. A ordem final est indicada pelo
compositor com o uso de sinais e cruz celta, Segno e letras (A, B, C, X10).
222
(Villa-Lobos Museu: 1974, p. 235). Poderia dizer o mesmo de Prole do Beb n2,
cujos rascunhos tambm mostram um quebra cabea. E o compositor no se
constrange em deixar as marcas de sua montagem. So diversos os indcios que
atravessam a partitura final publicada. Talvez o mais marcante seja a dupla notao de
frmula de compassos empregada pelo compositor e que raramente figuram em uma
mesma folha de rascunho, mas que muitas vezes esto em uma mesma pgina da
publicao. Um procedimento tambm recorrente em Prole do Beb n2.
Ao deparar-se com tais discrepncias de notao na partitura vale recorrer aos
rascunhos para logo encontrar ou uma montagem ou o acrscimo de compassos, como
nesta passagem nos cp. 31 a 33 da partitura impressa em que constam no rascunho
apenas a partir do compasso 33, sendo o verso da folha, a pgina anterior do
rascunho, referente aos compassos 39 a 52.
223
Figura 9: Folha 1, frente e verso dos rascunhos de Rudepoema, material reordenado na verso final,
com acrscimo de compassos.
4. Consideraes finais
Figura 10: Pgina do rascunho de Rudepoema com sinais de composio rpida atravs da reiterao
da camada textura.
225
ao modo gregoriano. Esta tcnica foi recentemente evidenciada nas anlises de obras
de Villa-Lobos com recursos da teoria de classes de alturas de Babbit, Forte e Strauss,
conforme demonstram os trabalhos de Paulo de Tarso Salles (2009, 2012) e a recente
anlise de O Passarinho de Pano (do ciclo da Prole do Beb n2) realizada por
Walter Nery Filho (2012). Este procedimento de derivao meldica foi sistematizado
realmente nos escritos de Messiaen, que nutria grande admirao por Villa-Lobos, e
apresentado em seu Technique de mon Langage Musicale.
O que buscamos assim foi evidenciar, a partir dos rascunhos, o modo
contemporneo de escrita de Villa-Lobos e sua sincronia com as estratgias
composicionais que marcariam a msica do ps-guerras, isto sem contar as invenes
de colorido tmbrico do compositor, que equiparam seu Rudepoema e Prole do Beb
n2 aos Estudos para piano que G. Ligeti escreveria a partir do incio dos anos 80.
Tudo isto faz de Villa-Lobos, no um compositor meticuloso, mas sim
rigoroso, de uma escrita rpida e eficiente, ao que talvez se deva a repercusso de sua
obra entre os principais intrpretes da msica de concerto da primeira metade do
sculo XX, e destaca o seu perodo composicional entre 1920 e 1930 como aquele
talvez mais prximo s transformaes ocorridas na msica de concerto daquele
sculo.
6- Referncias Bibliogrficas
226
PASCOAL, Maria Lucia. A Prole do Beb n.1 e n.2 de Villa-Lobos: estratgias da
textura como recurso composicional. Permusi, n 11, Belo Horizonte: UFMG,
2005
PEPPERCORN, Lisa. Villa-Lobos: The music. Londres: Kahn&Averill. 1991.
SALLES, P. T. Quarteto de Cordas n 02 de Villa-Lobos: Dilogo com a forma
cclica de Franck, Debussy e Ravel. Revista Msica Hodie. V.12 - n.1, 2012.
Goinia: UFGO, p. 25-43.
SALLES, Paulo de Tarso. Villa-Lobos: processos composicionais. Campinas:
Edunicamp. 2009.
WRIGHT, Simon. Villa-Lobos. New York: Oxford University Press, 1992
SOUZA, R.Coelho. Hibridismo, consistncia e processos de significao na msica
modernista de Villa-Lobos. Ictus, vol.11-2. Salvador: Ufba. 2010.
STRAVINSKY, Igor. The Rite of Spring: Sketchbooks. Nova York: Dover, 1969.
VILLA-LOBOS, H.. Encontro com Villa-Lobos. Cadernos de Estudo: Anlise
Musical n 4,. S.Paulo: Atravez, 1991.
227
SEMINRIOS
228
Seminrio 1 sexta-feira
Resumo: O objetivo desse artigo discutir a virada nacionalista de Villa-Lobos nos anos vinte, levando
em considerao elementos culturais presentes no contexto brasileiro, tais como o pensamento esttico de
Graa Aranha e a produo musical nacionalista j existente, que procuravam realizar um enraizamento
da produo cultural brasileira antes mesmo do contato dos modernistas com a vanguarda francesa. Sem
descartar o papel dos primitivistas na nfase dada pelos artistas brasileiros temtica da brasilidade,
sobretudo aps 1924, propomos uma hiptese que vai alm da teoria da dependncia cultural, procurando
demonstrar que a expresso da brasilidade por Villa-Lobos possui antecedentes anteriores a seu encontro
com Cocteau em 1923, referentes a elementos musicais, estticos e polticos presentes no contexto
nacional e capazes de acionar o projeto nacionalista.
Villa-Lobos in the 1920s: from universalist modernism to the search for Brazilian
identity
Abstract: The aim of this paper is to discuss Villa-Loboss turn to nationalism in the 1920s, taking into
account cultural elements present in the Brazilian context, such as the aesthetic thought of Graa Aranha
and the nationalist musical production already in existence, which sought to root Brazilian cultural
production even before the modernists made contact with the French avant-garde. Without discarding the
role of the primitivists in the emphasis by Brazilian artists on the theme of Brazilian identity especially
after 1924 , we will propose a hypothesis that goes beyond the theory of cultural dependence. We will
attempt to demonstrate that Villa-Loboss expression of national identity has antecedents that pre-date his
encounter with Cocteau in 1923 and relate to musical, aesthetic and political elements present in the
national context and able to set the national project in motion.
229
Neste sentido, a dissoluo da velha ordem imperial foi acompanhada pela
remodelao da capital do pas, que se torna, assim, um smbolo de pompa e poder,
civilizao e progresso sem que houvesse qualquer tentativa de incorporar elementos
oriundos das classes populares. Ao novo grupo social em ascenso, os cafeicultores
paulistas, interessava regenerar o Rio de Janeiro de seu passado colonial, o que se
concretiza atravs da lei da vacina obrigatria e da reforma urbana promovida pelo
prefeito Pereira Passos.
As mudanas materiais e a regenerao promovida pelo Estado revelam,
contudo que na Repblica Velha os princpios liberais foram compatibilizados com as
arcaicas estruturas de poder da realidade nacional antes escravocrata e latifundiria,
depois coronelista e oligrquica. Assim, a ideologia impessoal do liberalismo
democrtico transposta pelos intelectuais e adaptada realidade do pas, de modo que
s assimilamos efetivamente esses princpios at onde coincidiram com a negao pura
e simples de uma autoridade incmoda, confirmando nosso instintivo horror s
hierarquias e permitindo tratar com familiaridade os governantes, como salientou
Srgio Buarque de Holanda (1979: 119).
Ao mesmo tempo em que se dava a compatibilizao da nova ordem poltica
com as heranas do passado, o modo de vida e a mentalidade da elite carioca
continuavam voltados para novas modas e os padres culturais importados da Europa.
Ao lado da nova estrutura urbana, escritores da nova ordem defendiam
agressivamente valores cosmopolitas, identificando-se com a vida e os estilos artsticos
e literrios parisienses (impressionismo, simbolismo e parnasianismo especialmente)
que imitavam, inserindo dessa forma o Rio de Janeiro na Belle poque. Olavo Bilac
sada a demolio da antiga cidade, que considera imunda, retrgrada e emperrada.
Celebra a vitria da higiene, do bom gosto e da arte (Sevcenko 1985: 30). Ainda que
algumas divergncias tenham se revelado entre certos escritores como Bilac e Raul
Pompia - e os poderosos, a Repblica das Letras voltou-se para Paris e os literatos
que se dedicaram a produzir para o sorriso da elite carioca, com as antenas estticas
voltadas para a Europa, como observou Jos Murilo de Carvalho (1987: 39-40). Sua
230
linguagem bacharelesca, artificial e idealizadora espelhava, para o crtico Joo Luiz
Lafet, a conscincia ideolgica da oligarquia rural instalada no poder1 (1974:13).
Numa abordagem semitica, pode-se considerar que a produo artstica desses
escritores da Repblica Velha possui uma relao de indicialidade2 com o contexto em
que est inserida e neste sentido as obras desses escritores representam, como ndices, a
viso de mundo de uma elite ps-colonial, mas ainda atrelada ordem que emanava
da Europa, chamada de a Civilizao. Trata-se, assim, de uma elite identificada com
os valores e padres estticos europeus, que desconhecia completamente a cultura
popular nativa, em suas diferentes expresses, e os elementos no europeus que
compunham a nao.
No campo musical, ocorria um fenmeno semelhante desde a ltima dcada do
sc. XIX, quando Leopoldo Miguez assumiu a direo do Instituto Nacional de Msica,
procurando impor uma esttica moderna diante do conservadorismo reinante. Como
esclarece Paulo R. Gurios, para esse compositor, modernas eram as estticas de
Wagner e Saint-Saens, enquanto conservadora era a insistncia no canto lrico
italiano. A atuao de Miguz na direo do INM, abolindo a cadeira de canto lrico,
dispensando professores de canto e recolocando os de piano em cargos menores, como
o de acompanhador, fizeram com que os defensores do bel-canto passassem a
constituir a oposio ao establishment musical no Rio de Janeiro (Gurios 2003).
Conforme Gurios (2003) e Avelino Pereira (1995) esclarecem em seus
trabalhos, as estticas de Wagner e a de Saint-Saens eram vistas como signos da
modernidade neste contexto pelo fato de Miguz e Nepomuceno, que veio a ser o
diretor seguinte do Instituto (doravante INM), terem complementado suas formaes
musicais nos grandes centros europeus justamente quando esses compositores europeus
eram glorificados, tendo Nepomuceno chegado a assistir ao nascimento da proposta
esttico-musical de Debussy, trazendo partituras desses mestres em sua bagagem.
1
importante, todavia, reconhecer a existncia de um grupo de escritores, chamados de dissidentes
figuras como Lima Barreto e Euclides da Cunha - que no se enquadravam na ordem reinante. Mas,
eram uma minoria constituindo, antes, uma sub-corrente.
2
Na teoria geral dos signos de C. Peirce, o ndice um signo visto em relao ao objeto que representa,
definido a partir da similaridade que apresenta com esse objeto, podendo at mesmo participar do
carter do objeto. Para o semioticista, um signo cujas qualidades so semelhantes s do objeto e
excitam sensaes anlogas na mente para a qual uma semelhana (Peirce apud Noth 1995: 82), tal
como ocorre com fotografias, retratos e pinturas mais acadmicas.
231
A gerao de Villa-Lobos se formou num contexto marcado por esses debates.
Como Wisnik salientou (1983), havia um hiato entre a gerao de Luciano Gallet e
Villa-Lobos e a de Henrique Oswald, Levy, Miguez e Nepomuceno, que havia se
formado ainda no Segundo Reinado, em condies mais favorveis para a produo
musical erudita, j que os fluxos culturais e musicais entre a capital do Imprio e os
grandes centros europeus eram mais constantes e duradouros, o que contribuiu para o
florescimento da msica sinfnica e de cmera promovidas por diversas sociedades
existentes na capital.
Apesar da decadncia republicana detectada por Mrio de Andrade, que
apontou um esmorecimento da atividade musical erudita na ltima dcada do sc. XIX,
Wisnik observa que o processo de formao dos compositores da gerao mais jovem
passa por uma transio, uma readaptao importante, j que os novos representantes da
fase inicial do modernismo tornaram-se compositores modernos sem sair do Brasil
(2003: 53). No precisavam mais viajar para assimilar as grandes novidades
cosmopolitas, na medida em que novos canais de informao, mais aptos que os do
sculo anterior, cumprem a funo de atualizar o campo artstico brasileiro. Quando
Villa-Lobos e Gallet despontam, acrescenta Wisnik, haviam mudado no s os
procedimentos tcnicos da composio, insinuando um novo universo sonoro, mas as
prprias condies em que se forjavam os msicos (...) (2003:54), j que a reforma
iniciada por Miguez no INM tornara possvel uma assimilao mais rpida e criativa das
novidades.
Heitor Villa-Lobos no chegou a terminar seus estudos secundrios, mas em
1904 comeou a ter aulas de violoncelo num curso noturno no INM, que fazia parte de
um projeto dos professores dessa instituio para manter e ampliar o espao da msica
erudita na capital da Repblica. sabido que aps um perodo de viagens entre 1905 e
1912, o compositor carioca volta a atuar como msico de orquestra em sociedades
sinfnicas, cinemas e cafs. Embora convivesse ao mesmo tempo com msicos
populares, os chores, que em grande parte consistiam em funcionrios pblicos que
tocavam em festas nas casas da periferia da cidade e tocasse violo, um instrumento
tpico desses grupos, sua formao erudita e seu trabalho em orquestras separavam-no
dos msicos amadores populares, conforme apontou Gurios (2003).
232
Este outro pertencimento ao universo das elites, a despeito de ocupar a mesma
posio socioeconmica que os chamados chores, fez com que afastasse a msica
popular urbana de sua produo musical at cerca de 1920, buscando ser um msico
srio, algo que na dcada de 1910 significava estar longe dos maxixes e de toda msica
popular urbana depreciada pela elite culta e cosmopolita. O que significava, ento, para
ele ser um msico moderno? Como respondia ao establishment musical da Repblica
Oligrquica?
O padro esttico republicano, adotado pelos professores do INM, conforme
visto anteriormente, baseava-se numa adeso s estticas ps-romnticas em suas
vertentes francesa e alem. A anlise de suas primeiras obras, apresentadas a partir de
1915 (Sinfonias n 1 e 2, o poema sinfnico Naufrgio de Kleonicos e a pera Izaht),
revela como procurou responder ao padro esttico vigente, incorporando-o em sua
pera atravs da fuso do lirismo de Puccini com as concepes wagnerianas de
leimotiv, ao passo que nesse poema sinfnico utilizou uma linguagem identificada por
diversos musiclogos como muito prxima do ps-romantismo francs.
Contudo, Villa-Lobos queria ir alm do padro vigente, imposto pela gerao de
Miguez / Nepomuceno. Como destacaram Gurios e Wisnik, a msica produzida pelo
compositor carioca em sua primeira fase marcada pela utilizao de tcnicas
composicionais e elementos da esttica de Debussy, como a escala de tons inteiros,
empregada em suas Danas Caractersticas Africanas, onde se fundem virtuosismo
como modalidade de interpretao, selvageria caracterstica e refinamento debussysta
como reas de conotao implicadas na escolha estilstica (Wisnik, 1983: 151), numa
conciliao de surpresa e previsibilidade, periodicidade redundante no plano rtmico e
ambiguidade harmnica, dualidades em que Wisnik percebeu uma oscilao entre a
exaltao de sua vitalidade e a adeso condenao dos modernistas aos exageros do
sentimentalismo romntico.
Para compreender esse dualismo apontado por Wisnik nessa obra de Villa-Lobos
preciso compreender melhor os ideais de modernidade de sua gerao, que iam alm
daqueles defendidos pela gerao anterior e com os quais dialogou. Como espero
demonstrar a seguir, o dualismo de Villa-Lobos o mesmo que o de Mrio de Andrade
233
em suas poticas da juventude, explicitado tambm no seu curso de esttica musical,
cujos manuscritos foram deixados por seus alunos.
Mesmo em sua luta contra o sentimentalismo romntico, M. de Andrade evitou a
defesa do purismo esttico, tal como havia sido feita pelos setores mais radicais do
modernismo europeu. A leitura atenta dos citados manuscritos3 produzidos em torno de
1925 para suas aulas de esttica no Conservatrio Dramtico e Musical de So Paulo,
revela que o pensador admitia a existncia de uma arte que realiza unicamente o belo
(...), mas considerava essa arte hedonstica precria, por realizar-se unicamente com os
fatores formais do belo, esquecendo-se de que a arte era expresso e conhecimento
(Mrio de Andrade 1995:32).
Antes de iniciar as aulas sobre a esttica musical propriamente dita, Mrio de
Andrade tratava dos assuntos gerais da esttica, do belo e da arte e definia inicialmente
a arte, de um prisma subjetivo, como expresso livre e sem interesse imediato do
esprito (1995:28), o que j levou alguns leitores desatentos a considerarem que ele
defendia a ideia da arte-pura. Uma leitura cuidadosa, no entanto, revela que Mrio
estava consciente do fato das expresses artsticas, na modernidade, tenderem a se
tornar livres, autnomas. Contudo, chamava a ateno de seus alunos para a relatividade
dessa liberdade ao afirmar que: isto no quer dizer liberdade absoluta, coisa inexistente
e absurda, pois que o prprio preconceito da liberdade absoluta destri a liberdade da
Arte que uma expresso (1995:27) E complementa: A expresso sujeita-se a um
despotismo de circunstncias que a fazem nascer e a determinam e organizam (idem,
ibidem).
Resgatando o nexo entre a arte e a realidade do indivduo que a engendra, Mrio
sustenta a teoria de que a arte expresso psicolgica, fruto de uma impulso lrica
do artista. Mas, essa impulso no deveria ser confundida com a externalizao de
sentimentos afetados. Como Travassos salientou, as questes relativas tese da
expresso e o combate ao sentimentalismo (...) nos textos de Mrio de Andrade, do
continuidade discusso das manifestaes autnticas de sensibilidade (1997: 34).
Tais discusses que levaram conteno das emoes ostensivas vinham ocorrendo,
3
Os manuscritos foram recuperados por Flvia Camargo Toni e pela equipe do Instituto de Estudos
Brasileiros da USP (IEB/USP) e publicados em 1995 com o ttulo de Introduo Esttica Musical, tal
como Mrio havia indicado em carta a Manuel Bandeira.
234
segundo Travassos, desde o sc. XIX na Frana4. Os modernistas deram, neste sentido,
uma continuidade discusso sobre a autenticidade da expresso da sensibilidade e
quando se opuseram entrega desenfreada aos sentimentos, reforaram a tendncia de
conteno. A sensibilidade moderna, tal como procuram definir no exacerbada como
a oitocentista, mas consiste numa ardncia como que escondida porque inteiramente
interior5 (tal como Mrio colocou numa carta a Manuel Bandeira em 1925).
A distino entre comoo e sentimento tornou possvel que Mrio sustentasse
sua crtica ao sentimentalismo romntico por um lado, ao passo que de outro
considerava a arte como expresso, isto , exteriorizao das comoes, o que lhe
permite opor-se frieza dos parnasianos. Cumpre afirmar que utilizou as descobertas
das psicofisiologias de seu tempo e procurou estar a par das pesquisas dos psiclogos-
fisiologistas, sobretudo os franceses, a respeito dos aspectos materiais da fisiologia da
emoo e da arte. No pensamento mrio-andradiano os diferentes conceitos utilizados
parecem estar todos interligados e assim a questo da necessidade da arte (e a recusa da
arte-pura) est imbricada com seu conceito de arte-expresso. Este, por sua vez,
desemboca na discusso sobre o que o aspecto subconsciente ou intuitivo, no racional,
da expresso artstica. Esse tema retornar nas crticas musicais de Mrio, bem como
em suas discusses com Guarnieri e Villa-Lobos, pois ele tende a ver o artista-criador
como algum que se aplica s necessidades superiores do esprito para se expressar e
se comunicar e assim est fadado a uma vida dupla que reflete o desdobramento de sua
personalidade atravs da arte que refletiria sua natureza mais profunda e intuitiva6.
4
Travassos cita a obra de Anne Vincent-Buffault sobre a presena das lgrimas na literatura francesa
entre os sculos XVIII e XIX, onde a autora demonstrou que no sc. XIX houve uma redefinio da
exposio da sensibilidade segundo um critrio de reteno das lgrimas. Na Frana ps-revolucionria
passou-se a tomar precaues contra a encenao do sentimento, to comum no sculo anterior,
indagando-se a sinceridade da expresso dos afetos.
5
Essa carta foi citada por Elizabeth Travassos, mas a autora no informa suas fontes (Ver em Travassos
1997: 34).
6
Num artigo sobre Villa-Lobos de 02/07/1930, publicado no Dirio Nacional de So Paulo, o autor de
Macunama salienta que Villa-Lobos e o Brasil tornaram-se uma coisa s na compreenso do mundo
(1966: 146), opinio que no considera inteiramente correta, j que h na obra do grande compositor um
nmero enorme de invenes exclusivamente pessoais, que so dele e no do Brasil ou por outra: que so
do Brasil apenas porque so exclusivamente de VL e ele nosso ( idem, ibidem). Assim, ao mesmo
tempo em que Mrio valoriza a expresso pessoal do autor dos Choros, desnaturalizando sua criao
musical, percebe que ele realiza a terceira fase do nacionalismo (a da inconscincia nacional),
preconizada no Ensaio sobre a Msica Brasileira, j que seu nacionalismo seria inconsciente, fruto da
coincidencia entre a sinceridade do hbito e a sinceridade da convico.
235
No campo literrio, o combate ao sentimentalismo dos romnticos e frieza dos
versos parnasianos havia levado tentativa de definio, em ensaios dos anos vinte
(como em A Escrava que No Isaura), de uma sensibilidade moderna distinta do
sentimentalismo do sculo XIX e tambm da frieza da arte acadmica. Na interpretao
de Elizabeth Travassos, quando reclamavam da preferncia por certas emoes como
as do amor (pelos romnticos) pediam o alargamento da sensibilidade (1997:30); por
outro lado, em seu combate ao parnasianismo, duvidavam da sinceridade das emoes
expressas de forma estereotipada atravs de versos bem medidos.
A crena na possibilidade de expresso da sensibilidade moderna leva os
modernistas nos anos vinte defesa da arte como expresso de uma sensibilidade
caracterstica dos tempos modernos. Travassos procura compreender a tese mrio-
andradiana da arte como expresso no mbito da dupla frente de luta (dos modernos):
contra o sentimentalismo, de um lado; e contra a ausncia de vida e sentimento, de
outro (1997:38). E esse mesmo dualismo que est presente tambm nas obras da fase
inicial de Villa-Lobos, analisadas por Wisnik (1983), sobretudo nas Danas Africanas,
nas Historietas e no Quarteto Simblico, em que o compositor utiliza uma dico
baseada no colorido timbrstico, numa harmonia de atritos que decorre tambm de uma
necessidade mais colorstica do que propriamente harmnica, e numa suspenso (em
alguns pontos) do encadeamento tonal (...) (Wisnik 1983: 142). Seria essa a expresso
de uma sensibilidade moderna para a gerao de Villa-Lobos, Mrio e Gallet?
Cabe aqui resgatar as divergncias entre os atores sociais, j que Villa
empenhava-se, durante a Semana de Arte Moderna, em 1922, em explicitar as intenes
simblicas que guiavam o uso desses procedimentos composicionais em seu Quarteto
Simblico para flauta, saxofone, celesta e harpa, ao passo que Mrio segue a concepo
de Combarieu da msica como arte de pensar sem conceitos, por meio de sons, opondo-
se s intenes descritivas do compositor. Para Mrio tais intenes poderiam levar a
um julgamento mais leviano que dar-lhe-ia s composies uma inteno
programtica (Mrio de Andrade apud Wisnik 1983: 143).
Todavia, como o problema do significado dessas obras fica, como notou Wisnik,
no campo oscilante que est entre as intenes e os meios (idem, ibidem), a obra
admite duas leituras possveis: a de Mrio que se nega a reduzir o significado musical
236
ao verbal e a de seu autor, que procurava desencadear sugestes, tal como em muitas
criaes de Debussy em que no h um programa, mas ttulos que deixam a obra
oscilante entre a msica expressiva e a msica pura.
Se, por um lado Villa-Lobos apresentava nos saraus realizados por Laurinda
Santos Lobo, em 1921, obras esteticamente alinhadas ao impressionismo, como o
Quarteto Simblico e A Fiandeira, que viriam a ser apresentadas no ano seguinte na
Semana de Arte Moderna em So Paulo, por outro rompia com o cosmopolitismo da
elite republicana ao apresentar obras caracteristicamente nacionais, visando seu
aproveitamento nas festas do centenrio da independncia, como A Lenda do Caboclo,
Viola e Serto no Estio, obras que incluam uma elaborao dos ritmos da msica
popular (Gurios 2003), algo que s viria a ser valorizado pelos modernistas a partir de
1924.
Alm dessas peas, apresentadas nos concertos de 1921, verificam-se outras
obras, alinhadas esttica nacionalista, elaboradas antes de seu contato com a
vanguarda primitivista francesa em 1923, tais como a maioria das Canes Tpicas
Brasileiras (dez delas compostas em 1919) nas quais Bruno Kiefer viu seu esforo de
auto-afirmao nacional (1981: 49) processando-se atravs de vrias irrupes ao
longo do perodo inicial de sua produo. Segundo o autor, nesse tmido comeo da
busca de um caminho prprio, j se d a incluso de elementos da msica popular
carioca dos chores em peas compostas no incio do perodo em foco (1981: 45).
Alm das mencionadas canes, destaca-se a Sute Popular Brasileira, para violo, de
1908-12, que inclui a Valsa-Choro, descrita por Kiefer como triste e molenga, (...) com
seus baixos cantantes, traos bem nossos (idem, ibidem).
Outra pea considerada por Kiefer como outra irrupo da fora telrica do
compositor consiste no poema sinfnico Uirapuru, de 1917, em que se d uma
compatibilizao entre a uma linguagem moderna emanada da Civilizao e
caractersticas telricas realizadas aqui, em parte, por elementos descritivos como, por
exemplo o canto do (pssaro) Uirapuru (1981:46), alm do uso de instrumentos
tipicamente brasileiros na percusso, como reco-reco e coco.
Mas no se pode falar que Villa-Lobos tenha seguido uma trajetria direcionada
seguindo qualquer linha evolutiva. Chama a ateno o fato dessas irrupes de
237
brasilidade aparecerem ao lado do que Kiefer considerou as poderosas foras de
dependncia do ambiente da velha Europa (1981: 47), numa luta que s tender para o
lado nacionalista mais tarde. De qualquer modo, tanto ao incluir elementos da msica
popular urbana, quanto outros, de origem no-europeia (africanos e indgenas como nos
Choros n3), ainda que sua atitude fosse ambivalente, na medida em que no rejeitava a
ordem moderna, estava indo alm do padro esttico da Repblica Velha, cuja elite
cosmopolita se mantinha voltada apenas para os padres de modernidade produzidos
nos centros hegemnicos do Primeiro Mundo.
Como explicar essa inteno de Villa-Lobos de estar alm do padro esttico
republicano, sem destacar os elementos culturais j existentes na cultura brasileira, que,
ainda como uma subcorrente dissidente, viriam a se tornar dominantes somente aps a
crise republicana explicitada pelo tenentismo, pela revolta do Forte em 1922 e pela
prpria descoberta da dimenso social do movimento modernista pelos prprios atores
sociais?
238
antes dele, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade tinham passado pela mesma
experincia, sentindo que tanto o pblico francs ansiava por algo extico quanto os
artistas europeus esperavam que cada um trouxesse algo de seu prprio pas, uma
contribuio particular ao todo da cultura universal.
Portanto, Villa-Lobos ao entrar em contato com Jean Cocteau (1889- 1963),
lder da vanguarda parisiense que se inclinava em direo ao primitivismo, sofre um
processo de transformao colocado em marcha por uma srie de mecanismos sociais
de atribuio de valor (Gurios 2003), na medida em que tinha o projeto de ser aceito e
mesmo aclamado pelo establishment musical parisiense que a essa altura tendia a
valorizar o primitivo, o extico e a criticar os rumos da civilizao que parecia ter
desmoronado num conflito gigantesco. Villa-Lobos, tal como outros artistas brasileiros,
reconhecia e admirava a civilizao. Mas ser que realmente deixou seus objetivos
serem formulados a partir de ento pelos artistas europeus, como sugeriu Paulo Gurios
(2003)? Ou o projeto de nacionalizao da arte brasileira surge a partir de uma
necessidade do pas e de seus prprios elementos culturais?
Seguindo a interpretao de Eduardo Jardim de Morais, preciso salientar que j
existiam elementos no pensamento do escritor e filsofo Graa Aranha (1868- 1931)
que iriam tornar possvel a germinao, aps 1924, de um projeto de nacionalizao da
cultura brasileira levando os artistas dos mais diversos campos a uma busca dos
fundamentos da brasilidade e a uma valorizao das tradies nativas. Para Morais
(1978), a reviravolta operada no segundo tempo modernista, com o abandono da
esttica futurista e a compatibilizao entre o passado e o presente, no pode ser
compreendida sem que se reconhea a importncia das palavras de ordem de Elsio de
Carvalho nas mentes dos intelectuais cariocas e das categorias filosficas de Graa
Aranha integrao e intuio que desaguaram em duas vertentes radicalmente
diferentes do modernismo a integralista de Plnio Salgado e a intuitiva de Oswald de
Andrade.
Em A Brasilidade Modernista, Morais (1978) procurou demonstrar como a
tematizao da brasilidade no se deveu apenas a fatores externos dimenso cultural,
como a conjuntura poltica e social da crise da Repblica Velha, nem influncia do
primitivismo das vanguardas europeias sobre os nossos modernistas, podendo-se incluir
239
a Villa-Lobos. Segundo ele, a formulao da problemtica da brasilidade tem suas
razes ligadas tradio do pensamento brasileiro (1978:12), pois muitas vezes na
histria cultural do pas esta questo foi retomada, de modo que querer destacar o surto
de brasilidade de 24 da dimenso nacional, para compreend-lo em funo do
primitivismo francs implica no esquecimento da justa apreciao da histria cultural do
pas, acrescenta (1978: 16).
Na verdade, a discusso sobre a brasilidade estava presente desde o romantismo,
sendo debatido pela elite culta do pas em diversos momentos, tendo sido retomado no
segundo tempo do movimento modernista. O legado de Graa Aranha foi fundamental
para essa retomada da questo da brasilidade e assim, para a reviravolta que o
modernismo sofreu a partir de 1924, quando a descoberta da brasilidade tornou-se seu
ponto central, que assim convergiu para aquilo que passou a ser valorizado pela
vanguarda francesa aps a Primeira Guerra.
Tendo atuado como lder dos jovens modernistas durante a Semana de 1922
em So Paulo, Graa Aranha participou diretamente do festival como seu organizador e
mentor intelectual. Sua conferncia inaugural na abertura da Semana, intitulada A
emoo esttica na arte moderna pode ser considerada uma smula das concepes a
respeito da arte presentes em A Esttica da Vida, obra escrita no ano anterior, de uma
abrangncia filosfica que ultrapassa os limites da discusso desse artigo.
Contudo, o que interessa aqui o diagnstico feito pelo pensador dos problemas
nacionais, com o qual os modernistas concordaram em sua leitura dos diferentes
momentos de nossa histria cultural. Aranha indicou que, num primeiro momento de
nossa histria cultural, as elites rejeitaram as razes que deveriam prend-las ao solo da
nao e no momento seguinte construram uma falsa cultura, bacharelesca, artificial,
completamente desenraizada do solo do pas. A teraputica indicada consistia na
definio de trabalhos morais que possibilitariam a superao do dualismo e a
integrao da alma brasileira no cosmos universal.
Para isso, Aranha elaborou um projeto de cultura nacional que visava essa
integrao com o universal, tendo como antecedente o enraizamento da cultura no solo
nacional, ou como por vezes colocou, a integrao da inteligncia com a natureza.
Somente pela afirmao do aspecto particular da nacionalidade que se poderia
240
alcanar o universal. O enraizamento seria, assim, realizado atravs de uma renovao
das artes que, desprendendo-se de suas funes representativas e mimticas, poderia
exprimir a emoo humana que se eleva ao sentimento vago da unidade infinita do
universo (Aranha, apud Moraes 1978:27).
Tal oposio esttica naturalista, e ao academicismo (sobretudo no campo das
artes visuais), demonstra a assimilao do sentido geral de renovao a partir de seu
contato com as vanguardas europeias. A preocupao com o esprito moderno, ideia
popularizada pelos futuristas, resultante desse intercmbio direto. Segundo Teles
(1983), G. Aranha retornou ao Brasil em 1921 trazendo a notcia do Congrs de lEsprit
Moderne, que os dadastas e futuristas estavam programando para o ano seguinte e
chamou a ateno do grupo modernista de So Paulo com a sua Esttica da Vida
(1921), elogiada num artigo de Cndido Mota Filho.
A anlise da conferncia de Aranha que inaugurou a Semana de Arte Moderna
em 1922, revela os pontos comuns entre o escritor e o grupo modernista que lutava
desde 1917 pela atualizao da produo artstica brasileira em So Paulo. Se por um
lado G. Aranha trouxe, na qualidade de membro prestigiado da Academia Brasileira de
Letras, um maior respaldo ao movimento, por outro lado tambm absorveu, de seu
contato com os jovens escritores (Oswald, Mrio e Menotti del Picchia), uma postura
mais combativa com relao arte acadmica em geral.
Na mencionada conferncia de 1922 (intitulada A Emoo Esttica na Arte
Moderna), chegou a afirmar que no sabia como justificar a funo social da
Academia, j que ela suscita o estilo acadmico, constrange a livre inspirao, refreia
o jovem e rdego talento que deixa de ser independente para se vazar no molde da
Academia (Aranha in Teles 1983: 285). O contato com o contexto cultural brasileiro,
to diferente do que conhecera em Paris, leva o escritor a desenvolver essa crtica que o
aproxima da luta travada pelo grupo paulista.
Se na Esttica da Vida G. Aranha j considerava as noes de beleza e harmonia
como restries arbitrrias no domnio da arte e procurava refutar igualmente as teses
que afirmavam a funo ldica da arte, na conferncia que inaugura a Semana defende
claramente a renovao esttica no apenas nas artes plsticas e na literatura como
tambm na msica, vendo na magia da arte de Villa-Lobos a mais sincera expresso
241
do nosso esprito divagando no nosso fabuloso mundo tropical (Aranha apud Teles
1983: 285). Na reflexo de G. Aranha, a msica que surge no Brasil com a obra de
Villa-Lobos moderna por estar integrada natureza tropical, do mesmo modo como a
poesia de Guilherme de Almeida e de Ronald de Carvalho espelham, segundo ele, o
dinamismo brasileiro manifesto em uma fantasia de cores, de sons e de formas vivas e
ardentes (...) (Aranha apud Teles 1983: 284).
Neste sentido, Graa Aranha levanta a temtica da brasilidade que no segundo
tempo modernista veio a se tornar o centro da reflexo esttica do grupo paulista, a
despeito das diferenas entre seus membros. Comparando-se A emoo esttica na Arte
Moderna com a conferncia proferida na segunda noite da Semana de Arte Moderna por
Menotti del Picchia (Arte Moderna), percebe-se que a oposio s frmulas acadmicas
o ponto de contato entre eles; mas a nfase de Menotti recai sobre a necessidade de
atualizao da arte brasileira para que se adequasse a seu tempo, uma poca identificada
pelo autor com as inovaes tcnicas, a velocidade do mundo moderno, a violncia e o
sangue dos movimentos sociais. Essa temtica foi, como demonstrou Eduardo Jardim
de Moraes (1983), um dos pontos centrais da primeira fase do movimento que reunira
em So Paulo o grupo moderno desde 1917. Mas em Aranha, embora seu discurso
tivesse chocado o pblico por seu lado iconoclasta, conforme testemunho do msico
Ernani Braga (1966), a meta era a integrao entre cultura e natureza, algo que s viria a
ser enfatizado pela maioria dos modernistas aps seu contato com os primitivistas
franceses.
De qualquer modo, no que diz respeito ao campo da msica, as irrupes de
brasilidade na produo musical inicial de Villa-Lobos, apontadas por Bruno Kiefer
(1981), so suficientes para que se possa aproximar o autor dos Choros do pensamento
esttico de Graa Aranha, compreendendo-se porque o autor da Esttica da Vida no
cogitou em convidar outro compositor para participar da Semana de 1922, tendo
escolhido justamente aquele que ousara ir alm do padro esttico republicano, seja por
meio de seu alinhamento com o impressionismo, seja atravs da incluso de um
material sonoro popular.
Cumpre ainda lembrar que no campo especfico da msica erudita outras
irrupes de brasilidade haviam ocorrido antes das mencionadas por Kiefer na obra de
242
Villa-Lobos anterior a 1922. Refiro-me sobretudo produo de Alexandre Levy
(1864-1892) que, como indicou o musiclogo Jos M. Neves, j antes de sua partida
para a Europa, em 1887, (...) interessara-se pela temtica nacional, compondo as
Variaes sobre um Tema Brasileiro, originalmente para piano e depois orquestradas
(1981: 20). Tais variaes, baseadas na cano infantil Vem c, Bitu seguiram o
caminho aberto por Braslio Itiber da Cunha (1848-1913) com sua rapsdia A
Sertaneja, para piano, composta sobre um tema gacho, que veio a ser considerada a
primeira obra nacionalista composta no Brasil.
Alm das obras compostas no final do sc. XIX com traos de brasilidade,
preciso destacar que a preocupao nacionalista presente nos discursos de Levy,
relatada por Joo Gomes de Arajo, colega do compositor na poca de sua estada em
Paris, segundo o qual Levy discorria sobre a arte dos sons, dizendo que cada nao
tinha a sua msica caracterstica e que o Brasil um dia haveria de revelar a sua (Arajo
apud Neves 1981: 20), sendo preciso um estudo da msica popular de todo o pas, para
que se chegasse a conhecer essa msica caracterstica.
Ainda segundo Neves (1981), Levy foi dos pioneiros na utilizao de temas
folclricos em suas obras, o que fez com muito critrio e boa tcnica (1981:21).
Contudo, veio a falecer aos 24 anos de idade, no tendo tempo e amadurecimento para
levar a cabo todos os seus projetos (idem, ibidem). Algumas obras nacionalistas de
Levy, como o Tango Brasileiro, e a Suite Brasileira s vieram a ser estreadas aps o
falecimento de seu autor, em 1892. Com isso Alberto Nepomuceno (1864-1920), veio a
ser considerado o pioneiro do nacionalismo musical, j que aps seus estudos em Roma
e Berlim estreou peas de ntida tendncia nacionalista, como a Galhofeira, onde
utilizou elementos meldicos e rtmicos da dana popular urbana (Neves 1981:21), tal
como Villa-Lobos faria na dcada seguinte.
Ainda que no seja possvel neste trabalho estender demais o argumento, dando
mais exemplos de irrupes nacionalistas no campo musical anteriores a 1922/24,
gostaria apenas de apontar a continuidade existente entre essa subcorrente do
romantismo e o nacionalismo modernista que desponta aps 1924 com toda sua fora.
243
3. Concluso
7
Tais trabalhos esto indicados na bibliografia a seguir.
244
4. Referncias Bibliogrficas
245
Darius Milhaud e Villa-Lobos: identificaes
Lina Maria Ribeiro de Noronha
Instituo de Artes UNESP/ UNISANTOS/linamrnoronha@gmail.com
Resumo: Na dcada de 1920, delineou-se uma aproximao esttica entre Villa-Lobos e Milhaud, visto
que ambos compartilharam do mesmo crculo vanguardista. Os dois foram influenciados por parmetros
estticos do Neoclassicismo, envolveram-se com trabalhos educacionais e buscaram o uso de referncias
musicais de carter popular ou folclrico como meio de valorizao do elemento nacional, alm de terem
vivido nos mesmo ambientes, no Rio de Janeiro e em Paris. Esse trabalho prope-se a investigar a
identificao existente entre suas atuaes enquanto artistas-intelectuais que se projetaram de forma
marcante no perodo entreguerras, poca considerada o apogeu do nacionalismo. Para tal, apoiamo-nos
nas interpretaes propostas por Jane F. Fulcher, sobre as respostas dos compositores franceses poltica
cultural do governo nacionalista do incio do sculo XX.
1- Milhaud
246
Um aspecto que Corra do Lago (2010: 236-243) trata como uma possvel
interferncia de Milhaud no cenrio musical brasileiro a questo do incentivo ao
nacionalismo. Se a absoro da msica popular brasileira se concretizou de maneira
explcita nas suas peas somente aps seu retorno Paris, tambm o texto em que
Milhaud criticou os compositores locais por no valorizarem a msica nacional foi
escrito quando ele j se encontrava na Frana. No artigo Brsil1, publicado em 1920,
na Revue Musicale (traduzido para o portugus e publicado no Brasil na Revista Ariel,
em 1924), foi explcito o estmulo aos compositores brasileiros para que assumissem
uma atitude de enaltecimento da msica nacional, espelhando-se em autores como
Nazareh e Tupinamb.
Segundo Corra do Lago, se Darius Milhaud utilizou alguns motivos meldicos
ou rtmicos de origem brasileira nas peas que comps quando residiu no Rio de
Janeiro, foi s depois de regressar a Paris que a assimilao da msica brasileira se
concretizou plenamente.
1
Reproduzido em Notes sur la musique (MILHAUD, 1982).
247
Milhaud havia se tornado o mais destacado representante do Groupe des Six, cujo
programa eminentemente nacionalista (em prol de uma msica francesa) ele parecia
estar transpondo para o caso brasileiro [...] (CORRA DO LAGO, 2010: 243).
Tratando-se dessa ligao de Milhaud com o Brasil e com a msica brasileira,
consequncia da sua presena ativa no cenrio musical carioca durante o perodo de
fevereiro de 1917 a novembro de 1918, surge quase que naturalmente a idia de que
Milhaud e Villa-Lobos tiveram algum contato naquele momento. Tambm
posteriormente, durante as viagens de Villa-Lobos Paris, onde Milhaud era ento um
compositor de importante atuao. Sabe-se, por exemplo, que os dois compositores
estiveram presentes em concerto um concerto de 1918 regido por Alberto Nepomuceno
no Rio de Janeiro, no qual houve a estreia da Primeira Sinfonia de Cmara, de Milhaud
e do Primeiro Concerto para Violoncelo e Orquestra, de Villa-Lobos (CORRA DO
LAGO, 2009: 13).
Na verdade, a conexo entre esses dois compositores aparece com bastante
frequncia em textos que abordam a msica brasileira das dcadas de 1910 e 19202. Os
trabalhos sobre Villa-Lobos tambm muitas vezes mencionam Milhaud3. Na literatura
sobre Milhaud, o nico autor brasileiro que se estende sobre essa questo Manoel
Corra do Lago.
Pesquisar a obra de Milhaud conduz a Villa-Lobos quase que obrigatoriamente.
As razes me parecem bastante bvias. Se Milhaud vem ao Rio de Janeiro na dcada de
1910, um possvel encontro com Villa-Lobos provoca curiosidades e suposies, visto
que ambos eram compositores que se projetariam em suas carreiras na dcada seguinte.
Se nas leituras sobre Milhaud e o Brasil, Villa-Lobos sempre aparece de alguma
maneira, surge tambm uma inevitvel questo: qual a ligao que se pode estabelecer
entre esses dois compositores que dividiram durante algum tempo o mesmo cenrio
artstico-musical, tanto no Rio de Janeiro como em Paris?
2
Como exemplo, podemos citar: Sevcenko (1992),Travassos (2000), Martins (1995) ou Machado (2007).
3
Aqui podemos mencionar Salles (2009), Gurios (2003b) e Tarasti (1995).
248
2- O contato entre Milhaud e Villa-Lobos
4
No perodo da Segunda Guerra Mundial, Milhaud exilou-se nos EUA. Trabalhou por um longo perodo
como professor no Mills College, na Califrnia. Existem apostilas escritas por Milhaud, e nunca
publicadas, no acervo desta instituio.
249
Podemos citar o trecho em que Salles menciona a superposio de acordes
explorando a politonalidade como um recurso que aparece em Villa-Lobos a partir de
1917, o que o faz supor que essa tcnica pode ter sido sugerida a Villa-Lobos em
alguma conversa com Milhaud (SALLES, 2009: 39, grifo nosso). Ou mais adiante,
ainda falando sobre a politonalidade: [...] se esse elemento pode ser imputado a
alguma influncia recebida por Villa-Lobos, talvez ela tenha vindo de algum
comentrio feito por Milhaud em sua passagem pelo Brasil (SALLES, 2009: 170,
grifo nosso).
A politonalidade, tcnica caracterstica da escrita de Milhaud durante o
entreguerras, no foi trazida ao Brasil por ele. Quando Milhaud veio ao Rio de Janeiro,
Alberto Nepomuceno, por exemplo, j havia escrito Variations, op. 29, para piano,
composta entre 1902 e 1912, pea na qual a tcnica politonal foi utilizada (NORONHA,
1998: 57).
Outro exemplo de tentativa de estabelecimento de conexes entre Milhaud e
Villa-Lobos pode ser visto na comparao, feita por Tarasti (1995: 324-334), do
Noneto, de Villa-Lobos, com LHomme et son Dsir. Apesar de afirmar que ambas so
obras irms, pelas similaridades que encontra entre as duas, o autor lista mais
diferenas do que semelhanas, com o objetivo de destacar a originalidade do estilo
composicional de Villa-Lobos. Tarasti menciona Milhaud como tendo sido um dos
primeiros europeus, juntamente com Rubinstein, a descobrir Villa-Lobos. Os
elementos citados pelo autor como pontos de contato entre as duas peas so, na
verdade, bastante genricos e comuns ao estilo da poca: a explorao timbrstica do
coro, o destaque percusso, o uso de melodias e ritmos de carter nacional. Tais
elementos no nos permitem, portanto, afirmar como evidente a influncia de um sobre
o outro, nem entender as semelhanas entre as peas como fruto do contato entre os dois
compositores.
Considerando-se tais aspectos, as possveis influncias de Milhaud sobre Villa-
Lobos, no passam de especulaes: possveis, mas no comprovadas por algum contato
maior entre os dois.
250
Milhaud chegou a conhecer Villa-Lobos no Brasil, o que fez at com que
alguns estudiosos atribussem a modernidade das obras do brasileiro ao
contato com o francs; mas em sua biografia, Notes sans musique 5 , h
referncias apenas superficiais figura de Villa-Lobos, que parece no ter
sido prximo dele (GURIOS, 2003a: 156).
Da mesma forma, essa falta de dados que indique uma maior proximidade entre
os dois compositores tambm serve para que se questione quando se discorre sobre uma
possvel influncia de Villa-Lobos sobre Milhaud. Aqui, pode-se tomar como exemplo
um trecho do livro The composer as intellectual:
5
A autobiografia de Milhaud foi publicada pela primeira vez em 1949 com o ttulo Notes sans musique.
Esse texto foi revisto, ampliado e reeditado com o ttulo Ma vie heureuse, em 1973.
251
19136, pode-se supor que existe erro na informao da data de sua composio e que
essa obra tenha sido escrita, ou ao menos reescrita, aps a ida de Villa-Lobos Paris.
Salles questiona ainda o motivo que levaria Villa-Lobos a apresentar essa pea
apenas em 1929 se ela j estivesse pronta desde 1917, visto que, at pelo prprio nome,
a obra denota uma temtica que interessaria ao pblico francs da dcada de 1920 pelo
carter extico a embutido. Se Villa-Lobos vai Paris pela primeira vez em 1923,
no teria nenhuma razo para deix-la guardada por tanto tempo.
Ainda que se aceite a data de 1917 para a composio dessa pea, um outro
aspecto pode ser considerado quanto falta de embasamento existente para que se
afirme a influncia de Amazonas sobre a obra de Milhaud: no era o estilo de obra que
ento chamaria a ateno de Milhaud. O ritmo sincopado e o exotismo meldico da
msica popular era o que atraa o interesse de Milhaud naquele momento. Por isso ele
valorizava autores como Nazareth e Tupinamb e demonstrava desinteresse pelo Villa-
Lobos do perodo 1917-1918.
Sobre essa viso de um estrangeiro em relao msica brasileira, tratada como
uma fonte de exotismos, Mrio de Andrade discorre em seu Ensaio sobre a Msica
Brasileira, em uma clara aluso ao artigo Brsil, publicado por Milhaud em 1920:
6
O primeiro contato de Villa-Lobos com as obras de 1912-1923 de Stravinsky um assunto abordado
por diversos autores e permite amplas discusses. Sobre A Sagrao da Primavera, Corra do Lago cita
Bhague para dizer que efetivamente Villa-Lobos s a conheceu em 1923. (CORRA DO LAGO, 2010:
83).
Corra do Lago menciona que tanto Claudel quanto Rubinstein referem-se em seus textos ao fato
de terem presenciado a execuo ao piano, em verso a quatro mos, na casa dos Veloso-Guerra, dA
Sagrao da Primavera. Mas no existe nenhuma meno a respeito da presena de Villa-Lobos durante
essa execuo, que se deu em 1918. A apresentao pblica desta obra no Brasil ocorreu apenas aps a
Segunda Guerra Mundial (CORRA DO LAGO, 2010: 24). fato que, se Milhaud teve um intenso
convvio com os Veloso-Guerra durante sua permanncia no Rio de janeiro, Villa-Lobos, apesar de
conhec-los, no mantinha um contato to ntimo ou regular com esses msicos.O fato de que, em 1918-
20, o Crculo Veloso-Guerra estivesse informado da msica de Stravinski e extremamente a par da
msica de Debussy, Ravel, Satie e particularmente das grandes ousadias de linguagem que Milhaud
estava adotando em suas obras compostas no Rio no implica necessariamente uma absoro
equivalente dessas informaes por parte de Villa-Lobos (CORRA DO LAGO, 2010: 85).
252
Na msica, mesmo os europeus que visitam a gente perseveram nessa
procura do esquisito apimentado. Se escutam um batuque brabo muito que
bem, esto gozando, porm se modinha sem sncopa ou certas efuses
lricas dos tanguinhos de Marcelo Tupinamb, isso msica italiana! Falam
de cara enjoada. E os que so sabidos se metem criticando e aconselhando,
o que perigo vasto (ANDRADE, 1962: 15).
4- O retour Bach
Eu havia observado, e isso foi um sinal para mim, que em um pequeno dueto
de Bach escrito em cnone quinta, tinha-se realmente a impresso de duas
tonalidades seguindo-se, superpondo-se (MILHAUD, 1998: 59).
7
O trecho do dueto a que Milhaud se refere, com as tonalidades identificadas conforme a sua concepo,
pode ser encontrado no artigo Polytonalit et atonalit, publicado por Milhaud em 1923 na Revue
Musicale, e reproduzido em Notes sur la Musique (MILHAUD, 1982: 174).
253
relevncia, segundo os seus critrios. A msica de Bach seria de tal forma universal
que faria parte de uma espcie de inconsciente coletivo musical. Villa-Lobos afirmou
ter encontrado traos do contraponto bachiano at mesmo na msica folclrica brasileira
(TARASTI, 1995: 170). Refere-se a Bach tambm para justificar o fato de recorrer a
melodias folclricas quando explica que esse recurso similar ao que Bach fez quando
aproveitou o material meldico dos corais protestantes em suas peas. Para Villa-Lobos,
tanto o folclore nacional quanto o coral protestante remetiam a uma cultura entendida
como popular, autntica, nacional.
Na dcada de 1920, Milhaud comea a escrever seus textos crticos. Foi tambm
a que ele se projetou como compositor no cenrio artstico parisiense, atuando dentro
do crculo que incluia Satie, Cocteau e os outros compositores do Groupe des Six. Ele
ento se firmou como um artista-intelectual dentro do contexto nacionalista do
entreguerras.
nesse perodo que Villa-Lobos vai Paris e passa a ter contato com a
vanguarda artstica parisiense. Gurios (2003b) narra o contato inicial de Villa-Lobos
com esse crculo. Destaca em especial o atrito que ele teve com Jean Cocteau, logo aps
a sua chegada, como sendo um episdio que mostra o que significou, na carreira de
Villa-Lobos, essa ida Paris. Esse embate teve um peso simblico porque aconteceu
entre um artista estrangeiro, de um pas perifrico, tentando achar seu lugar no grande
centro de produo artstica e cultural da dcada de 1920 e o outro, artista j
estabelecido como figura de prestgio e destaque na vanguarda parisense. Mais que
uma questo puramente esttica, estava sendo colocada em jogo toda uma srie de
contedos culturais, legitimidades, representaes e hierarquias (GURIOS, 2003b:
82). A cena mencionada, conforme narrada por Gurios, se passou no estdio de Tarsila
do Amaral. Aps ouvir Villa-Lobos executar uma pea ao piano, Cocteau criticou-o
pelo seu estilo debussysta, que era justamente o que fazia com que ele fosse considerado
moderno enquanto estava no Brasil, e o que o ajudou a se projetar no cenrio nacional.
No Brasil, ele era o compositor que ousava compor de acordo com as revolucionrias
idias de Debussy (GURIOS, 2003b: 90).
254
Mas por que a crtica de Cocteau a Villa-Lobos? Porque Debussy era, naquele
momento, uma das figuras execradas por Cocteau e compor no estilo que remetesse a
ele era o que deveria ser evitado. O poeta j havia publicado Le Coq et lArlequin, obra
de 1918, na qual ele divulgava suas diretrizes estticas a favor da tradio nacional e da
msica verdadeiramente francesa, contra as vaguezas do estilo de Debussy.
Execrava a msica germnica e proclamava a valorizao da msica popular, do estilo
circense, da clareza e da simplicidade.
Cocteau exaltava o estilo de Satie e dava diretrizes estticas ao Groupe des Six,
cujos compositores ocupavam um lugar de destaque na cena vanguardista da dcada de
1920. Portanto, para ele, msica ao estilo debussysta significava msica ultrapassada,
qual era necessrio se opor para se afirmar enquanto moderno.
Diante desse quadro, pode-se entender a conexo de Villa-Lobos, a partir de
1923, com a esttica musical da vanguarda francesa, qual pertencia Darius Milhaud.
Delineou-se na dcada de 1920 uma aproximao esttica entre Villa-Lobos e Milhaud
pelo fato de ambos compartilharem do mesmo crculo vanguardista e serem
influenciados pelos mesmos ideais apregoados por Cocteau, com consequncias
bastante evidentes e conhecidas na mudana de estilo pela qual o brasileiro passou. O
que influencia Villa-Lobos deixa de ser Debussy e passa a ser Stravinsky. Segundo
Gurios (2003b), foi a partir desse episdio que Villa-Lobos mudou sua postura
enquanto compositor e passou a buscar um estilo em que a msica de carter nacional se
evidenciasse. Assim, Villa-Lobos comeou a retratar em suas composies toda uma
srie de representaes a respeito de sua nao (GURIOS, 2003b: 98).
A brasilidade era vista como um exotismo na Frana, o que interessava quela
vanguarda. Da o sucesso dos artistas brasileiros em Paris que passaram a valorizar o
uso de elementos caracteristicamente nacionais em suas obras.
A transformao pela qual Villa-Lobos passou foi um reflexo do seu respeito e
aceitao ao que lhe foi mostrado pelas novas diretrizes estticas da vanguarda francesa.
Villa-Lobos acatou a definio de Brasil e o papel de compositor brasileiro que lhe foi
atribudo na Europa (GURIOS, 2003b: 100).
A mudana que a influncia da vanguarda francesa provocou em Villa-Lobos
fez com que ele se rendesse ao pensamento esttico desse grupo, ao qual Milhaud
255
tambm pertencia, e buscasse se afirmar, a partir de ento, como um compositor de
caractersticas verdadeiramente nacionais. Era um nacionalismo resultante das novas
diretrizes estticas francesas. Continuou existindo a mesma atitude que j existia no
perodo anterior, de assimilao da cultura francesa, tida como modelar. Antes, Villa-
Lobos era valorizado como um compositor que escrevia ao estilo de Debussy. A partir
de 1923 ele assumiu a atitude nacionalista pregada por aquele crculo vanguardstico. O
papel hegemnico da cultura francesa se mostrou simbolicamente na discusso entre
Cocteau e Villa-Lobos.
8
Conceito utilizado segundo as teorias do campo de produo simblica, da dominao simblica
expostas por Pierre Bourdieu (2011).
256
sessenta anos, ou atravs das de Debussy, se ele tem trinta anos (Milhaud,
1982: 98-99).
O que Corra do Lago destaca nesse trecho, como sendo destacado por Milhaud
dentro da produo de Villa-Lobos, denota claramente uma nfase dada ao vis
nacionalista deste compositor. As obras mencionadas so representativas desse estilo. E
a admirao pelo trabalho com o canto orfenico, representante mximo da atuao
nacionalista de Villa-Lobos, s refora essa atitude.
Para a poltica cultural francesa do entreguerras, era importante o papel da arte e
da educao na valorizao, descoberta e manuteno de uma cultura de identificao
nacional. A msica aparece nesse contexto com um lugar de destaque no campo da
produo simblica.
essa ligao entre os dois compositores que transparece quando se faz uma
leitura dentro do contexto do nacionalismo exacerbado em que ambos viveram,
sobretudo nas dcadas de 1920 e 1930. Ambos tinham uma concepo universalista
sobre o que eles consideravam a verdadeira msica, da a referncia a Bach como um
parmetro universal. Ao mesmo tempo, ambos tinham uma postura nacionalista,
atuao alinhada a esse posicionamento e at mesmo um patriotismo bastante evidente.
Villa-Lobos refere-se msica como a mais alta expresso do sentimento nacional, mas
ao mesmo tempo como a arte que tem a capacidade de expressar valores universais
(TARASTI, 1995: 156). Milhaud afirma que a arte no tem ptria, e no entanto
tambm diz que cada pas traz consigo todo um passado que pesa sobre os artistas, e
as grandes oposies de raa encontram-se em todos os msicos (MILHAUD, 1982:
194-195).
257
A busca por uma msica de carter nacional e do seu prprio espao de atuao
no campo da produo musical foram comuns aos dois compositores na dcada de
1920. A influncia que ambos sofreram da poltica educacional da Alemanha do perodo
da Repblica de Weimar transparece no trabalho que cada um deles desenvolveu ao
longo da dcada seguinte, em que apareceram como compositores de carreiras
estabelecidas e atuao junto a aes culturais governamentais de carter nacionalista.
As mudanas na poltica cultural francesa na dcada de 1930 permitiram a
Milhaud, enquanto artista-intelectual, uma participao ativa na poltica cultural oficial,
sobretudo durante o perodo da Frente Popular (1936-1937), poca em que existiu a
preocupao em levar a cultura francesa erudita s massas. Segundo Fulcher (2005:
206-207) havia, nesse perodo, a concepo de grandes espetculos, com o intuito de
atingir um pblico bastante numeroso. A educao e a arte eram vistas como aspectos
centrais na afirmao da identidade nacional francesa. Neste perodo, uma das medidas
governamentais, tomada com o intuito de popularizar a cultura francesa, foi a criao de
novos grupos culturais e musicais. Inclua-se a a proliferao das sociedades de canto
orfenico, grupos amadores tradicionalmente formados por operrios, existentes na
Frana desde o sculo XIX. Em 1937, foi fundada inclusive uma gravadora, chamada
Le Chant Du Monde, cujo intuito era difundir entre as classes operrias a msica
popular, a erudita e obras de inspirao folclrica (FULCHER, 2005: 213).
Conforme Fulcher (2005, p. 219), Milhaud foi um dos colaboradores da
Fdration Musicale Populaire, um ramo da Maison de Culture e importante
mecanismo de ao cultural governamental. Esse fato exemplifica como a postura
adotada pelos compositores do Groupe des Six na dcada de 1920 passou a ser usada
pelos mecanismos oficiais de ao cultural na dcada seguinte e esses artistas-
intelectuais tiveram ento atuaes de destaque na cultura vanguardista nacional
(FULCHER, 2005: 224).
Na dcada de 1930, enquanto artista que assumiu um lugar significativo no
campo da produo simblica, atuando junto poltica cultural oficial, Milhaud tambm
se envolveu com trabalhos educacionais e buscou o uso de msicas de carter popular
ou folclrico, assim como de melodias de origem provenal (FULCHER, 2005: 230).
258
O que nos interessa em particular exatamente a conexo entre Villa-Lobos e
Milhaud que se pode estabelecer pelas questes centradas na valorizao do elemento
nacional, na atuao de ambos enquanto artistas atuantes no campo da produo
simblica dentro de um contexto de exacerbado nacionalismo, como o que existiu no
perodo do entreguerras.
Na Frana, houve um nacionalismo renovado pela vanguarda ligada a Jean
Cocteau. Seu livro, Le Coq et lArlequin, foi uma espcie de manifesto em prol da
msica francesa verdadeiramente nacional. Nele, Cocteau deixou claro sua concepo
nacionalista, de defesa da msica francesa: Eu peo uma msica francesa da Frana
(COCTEAU, 2009: 60).
Analogamente, no Brasil, tivemos Mrio de Andrade e seus textos, que
incitavam os compositores a buscarem o carter nacional na msica. Seu discurso como
paraninfo dos formandos do Conservatrio Dramtico e Musical de So Paulo um
exemplo dessa exaltao nacionalista:
259
No seriam os cnticos de candombl [...] exticos para um msico formado
nos conservatrios de So Paulo ou do Rio de Janeiro? [...] No seria
extico o canto dos ndios Pareci, gravado por Roquette-Pinto e usado por
Villa-Lobos no Choros n. 3? Por certo que sim, e a atrao que essas
sonoridades exerciam sobre os homens cultos era semelhante quela que fez
Milhaud encantar-se pelos maxixes cariocas (TRAVASSOS, 2000: 39).
7- Referncias Bibliogrficas
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BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simblicas. 7. ed., So Paulo:
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CORRA DO LAGO, Manoel Aranha. O crculo Veloso-Guerra e Darius Milhaud
no Brasil: modernismo musical no Rio de Janeiro antes da Semana. Rio de
Janeiro: Reler, 2010.
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1949). Monografia (Ps-doutoramento). IEB, USP, So Paulo, 2009.
FULCHER, Jane F. The composer as intellectual: music and ideology in France 1914-
1940. New York: Oxford University Press: 2005.
GURIOS, Paulo Renato. Heitor Villa-Lobos: o caminho sinuoso da predestinao.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003a.
260
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msico brasileiro. Mana, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 81-108, abr. 2003b.
Disponvel em: <http://www.scielo.br/pdf/mana/v9n1/a05v09n1.pdf>. Acesso
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MACHADO, Cac. O enigma do homem clebre: ambio e vocao de Ernesto
Nazareth. So Paulo: Instituto Moreira Salles, 2007.
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______. Notes sur la Musique: essais et chroniques. (Ed. Jeremy Drake), Flammarion:
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NEGWER, Manuel. Villa-Lobos: o florescimento da msica brasileira. So Paulo:
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NORONHA, Lina Maria Ribeiro de. Politonalidade: discurso de reao e trans-
formao. So Paulo: Annablume/ FAPESP, 1998
SALLES, Paulo de Tarso. Villa-Lobos: processos composicionais. Campinas:
UNICAMP, 2009.
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu exttico na metrpole: So Paulo, sociedade e cultura
nos frementes anos 20. So Paulo: Companhia das Letras, 1992.
TARASTI, Eero. Heitor Villa-Lobos: the life and works, 1887-1959. Jefferson, North
Carolina: McFarland & Company Publishers, 1995.
TRAVASSOS, Elizabeth. Modernismo e Msica Brasiliera. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar, 2000.
261
Seminrio 2 sbado
Resumo: A linguagem musical de Villa-Lobos foi durante muito tempo categorizada como sendo
disparatada, ainda que bem sucedida guisa de um feliz acaso. Mas os recentes estudos tm demonstrado
justamente o contrrio. A Caixinha de Msica Quebrada faz uso sistemtico de deslocamentos
mtricos, e uma combinao de camadas que contm entre outras colees, trades sobrepostas e
pentatonias cromaticamente intercaladas. Nesse artigo so utilizados os conceitos de Deslocamento
Rtmico e de Hemiola, para ilustrar as estratgias rtmicas que compem a sua polirritmia, alm da
teoria dos conjuntos com o objetivo de destacar as principais colees sonoras.
Abstract: The musical language of Villa-Lobos has been categorized as being incosnsistent, though
successful due to a happy accident. But recent studies have shown just the opposite. The "Caixinha de
Msica Quebrada" The Broken Little Music Box1 - makes systematic use of metric shifts, and a
combination of layers containing among other collections, superimposed triads and pentatonic scales
chromatically interspersed. In this paper we used the concepts of "Rhythmic Displacement" and
"Hemiola" to illustrate the strategies that builds its rhythmic polyrhythm, and set theory in order to
highlight the main collections.
1. Introduo:
1
Traduo do ttulo segundo a edio de 1948 da Consolidated Music Publishers
2
Joo de Souza Lima (1898-1982), pianista brasileiro
262
Agora que j conhecemos as circunstncias que essa pea foi composta vem a
seguinte indagao: do qu se trata essa msica? Porque uma Caixinha de Msica
Quebrada? Certamente que no vem ao caso porque Villa-Lobos escolheu essa ideia,
mas o ttulo j nos prope um caminho analtico, ou seja, nos mostra com que universo
ele vai dialogar.
A caixinha de msica um dispositivo musical de acionamento mecnico
desenvolvido no sculo XIX, mas que usa os mesmos princpios de outros inventos do
sculo XVIII. A diferena entre esses, e o que importa no nosso caso, que a caixinha
de msica normalmente faz parte de um objeto de uso utilitrio ou decorativo, como por
exemplo um porta-joias, e que a melodia reproduzida nesse tipo de aparato geralmente
de carter muito popular com um acompanhamento regular. Portanto a ideia em questo
de uma engenhoca que toca uma melodia bastante conhecida. Outra caracterstica
importante que devido as dimenses reduzidas da assim chamada caixinha de msica,
as notas so extremamente agudas. Mas Villa-Lobos prope justamente um contraste
com essa ideia, uma vez que o que ele da caixinha de msica propriamente dita, ele
retira apenas o uso do registro super agudo no piano e as figuras continuas de
acompanhamento para ento criar, justapor e contrapor outros elementos.
2. Anlise:
2.1. Polirritmia:
263
Todavia, devido ao movimento meldico das figuras na mo esquerda as acentuaes
podem ser facilmente sincronizadas com a mo direita, e que resultaria erroneamente
numa simples escrita em compasso ternrio como no exemplo a seguir.
Exemplo 1: Compresso incorreta da acentuao rtmica. (Notao da mo direita 8 abaixo para facilitar
a visualizao)
2 1 2 1 2 1 2 1 2 1 2 1 2 1
Md > > > > > > >
Me > > > > >
3 1 2 3 1 2 3 1 2 3 1 2 3 1
Exemplo 3: Tabela comparativa de acentuaes entre a mo direita (MD) e esquerda (ME).
264
Este tipo de batimento, a polirritmia de 3 contra dois, muito caracterstica de
outro tipo de lminofone: a Kalimba. No possvel saber se Villa-Lobos buscou
qualquer relao entre esse instrumento de origem africana e a caixinha de msica, mas
de qualquer maneira existe essa semelhana idiomtica.
importante notar tambm que a maior parte da linguagem rtmica de Villa-
Lobos est calcada no uso da sincopa, que muito caracterstica da msica brasileira,
mas no caso dessa pea h apenas dois momentos em que este recurso usado: na
passagem do compasso 17 para o compasso 18, com o incio da melodia em modo
mixoldio, e entre os compassos 26 e 27 ao repetir a primeira parte da mesma melodia.
2.2. Simetrias:
265
Exemplo 4: Conjunto [3-4] resultante do padro estabelecido pela alternncia de teclas pretas e brancas.
3
A Escala Pentatnica possui o nmero [5-35] na nomenclatura de Allen Forte, entretanto por se tratar
de uma coleo notavelmente conhecida opto por no usar a referncia de Forte.
266
cromtica, e s no formam uma escala cromtica completa devido as duas excees j
discutidas anteriormente. (dos tricordes [3-5]).
267
para piano de Villa-Lobos segundo o prprio Souza Lima4, o que quer dizer que este
tinha plena conscincia dessa tcnica.
4
SALLES, Paulo. Villa-Lobos: Processos Composicionais. p.51
268
Aqui o compositor aproveita e usa no mais como ostinato, mas melodicamente,
o conjunto [4-7] ao mesmo tempo que procura dividir os deslocamentos cromticos e
diatnicos.
Cada uma dessas partes marcada por um processo predominante bem como por
uma textura. A parte caracteriza-se pela polirritmia da qual j tratamos anteriormente.
J as partes B e C propem um tipo caracterstico de construo villalobiana que o Prof.
Paulo de Tarso Salles descreve em seu livro como sendo uma estrutura essencial da
msica de Villa-Lobos dos anos de 1920.
Embora a pea aqui analisada seja no incio dos nos 1930 o compositor faz uso
deste mesmo recurso. A textura presente nessa obra possui as mesmas caractersticas
daquelas que ambientam melodias folclricas, com por exemplo as 16 Cirandas para
piano (1926).
Aqui possvel observar que existe uma ntida justaposio de trs camadas, um
ostinato, uma melodia modal (mixoldia) e um baixo.
5
SALLES, Paulo. Villa-Lobos: Processos Composicionais. p.41
269
Exemplo 12: Textura da Parte B1: Ostinato, Melodia em Modo Mixoldio e Baixo
270
Do ponto de vista rtmico a seo mais estvel e regular da pea, uma vez que
contrastando com a primeira parte, aqui no h polirritmia. O mais importante nesta
parte , no entanto, a justaposio de elementos.
271
2.4. Cadncias:
6
SALLES, Paulo. Villa-Lobos: Processos Composicionais. p.145
272
3. Consideraes Finais:
7
SALLES, Paulo. Villa-Lobos: Processos Composicionais. p.82
273
4. Referncias:
274
Choros N4 e N7 de Villa-Lobos: dois procedimentos diferentes
envolvendo o uso de eixo de simetria como fator estrutural
Joel Miranda Bravo de Albuquerque
Universidade de So Paulo (USP)-joeltrompa@hotmail.com
Resumo: Este artigo pretende discutir o uso de eixos de simetria como fator estrutural importante em
obras de Villa-Lobos da dcada de 1910 e 20. Foram escolhidas neste trabalho exemplos como os Choros
N4 (1926) e Choros N7 (1924) por apresentarem diversos procedimentos envolvendo tal recurso
composicional. Outros fatores sero abordados como centricidade e os polos do eixo simtrico; simetria
inerente s colees referenciais; eixo fixo e polarizao por excluso; e tipos de movimento axial do
eixo.
Choros No. 4 and No. 7, Villa-Lobos: two different procedures involving the use of
axis of symmetry as a structural factor
Abstract: This article discusses the use of axes of symmetry as a structural factor in important works of
Villa-Lobos in the 1910s and 1920s. Were chosen as examples in this work Choros No. 4 (1926) and
Choros No. 7 (1924) by presenting several procedures involving such compositional resource. Other
factors will be discussed as centricity and the poles of the symmetry axis; symmetry inherent in reference
collections; fixed axis and polarization exclusion, and types of axial movement of the shaft.
275
Podemos representar eixos de simetria desenhando uma linha reta que passa
exatamente pelo meio do conjunto e por um ponto que esteja afastado por um trtono.
Neste caso o conjunto tem eixo de simetria em torno do trtono Sol Rb. Isso mostra
que a nota Sol um centro sonoro por simetria intervalar nesta coleo.
2
Antokoletz aponta que a escala de tons inteiros foi empregada por Debussy como base da maior parte
dos elementos simtricos de seu segundo preldio para piano Voiles (1910). O declnio inicial por tons
inteiros est limitado pela tessitura da oitava Sol# - Sol# que junto com a nota do trtono, R, situada no
centro desta escala simtrica, forma um eixo duplo. (Toda disposio simtrica tem dois pontos de
interseo separados por um trtono; neste caso: Sol# - Sol# e R R). (2006: 8 - 9)
276
277
4- Duas colees com eixo comum, sem notas invariantes
Podemos perceber essa simetria entre notas pretas e brancas a partir do eixo
comum R-Lb (Fig.7). As duas colees compartilham o mesmo eixo de simetria, no
entanto no mantm notas comuns. As duas colees so complementares (juntas
formam a escala cromtica completa).
3
muito recorrente na obra de Villa-Lobos a distino entre as notas correspondentes as teclas pretas e
brancas do piano (que chamaremos aqui somente de notas pretas ou brancas). Essa relao entre
essas colees diatnica e pentatnica uma grande fonte de recursos composicionais envolvendo
simetrias (SALLES, 2009: 45-6).
4
Villa-Lobos explorou o tema indgena Nozani-N tambm em outras obras, com o Choros n3 (1925),
um ano depois (SALLES, 2009: 125-6)
278
Maior) que repousa sobre a dade [F,Lb]. Podemos identificar aqui o modo de F
lcrio, considerando a nota F como referencial deste trecho.
Surge no c.4 (Fig.9) a nota pedal Sib no fagote e em seguida outra escala
diatnica ascendente de notas brancas na flauta que parte de F e repousa em D (F
ldio), destacando esta ltima nota. A relao entre as notas D, Sib e F, sublinhadas
neste trecho por maior tempo de exposio, so importantes, pois reforam o centro
sonoro F por eixo de simetria (Sib est uma quarta justa acima de F e D est uma
quarta abaixo da mesma).
279
Figura 120: Colees diatnicas com eixo comum R-Lb e duas notas invariantes; ausncia de Mib e Sol
para confirmao do eixo.
280
5
Vale destacar que cada eixo tem dois polos. A centricidade pode coincidir com um desses polos, mas
pode ser invertido ao destacar a outra ponta deste eixo, possibilidade que foi explorado por Villa-Lobos
no incio do Choros n4 como veremos na anlise a seguir.
281
Figura 164: Movimento axial anti-horrio do eixo de simetria com manuteno e depois mudana de
polaridade
O tema que conduz os acordes das trompas do incio da obra que chamaremos
de motivo a disposto homogeneamente entre os trs instrumentos, exceto pela
repetio da nota L pela segunda trompa, o que impede a simetria completa entre todas
as vozes, evitando o aparecimento das 12 notas cromticas.
Analisando o trecho inicial da obra, identificando os conjuntos de classes de
intervalos em suas formas primrias, vamos perceber uma sequncia de quatro tricordes
282
verticais (harmnicos) [2,6,8], [1,5,9], [9,0,4] e [3,7,11], ou (026), (048), (037) e
(048) nas formas primrias e trs tetracordes horizontais (meldicos) [1,2,3,4] na
primeira trompa; [5,6,7,9] na segunda trompa; e [8,9,11,0] na terceira trompa ou 4-1
(0123); 4-2 (0124); e 4-3 (0134) respectivamente.
As trompas tocam uma sequncia de quatro acordes, em que aparecem 11 sons
da escala cromtica, com exceo do Sib (SALLES, 2009: 153). Esse procedimento
harmnico chamado por Salles de polarizao por excluso 6 e uma prtica comum
na msica de Villa-Lobos.
Villa-Lobos utiliza o procedimento de polarizao por ausncia como um
mecanismo de organizao formal do incio desta obra. O compositor cria um
antagonismo entre Sib e Mi atravs de um eixo de simetria inversional (Fig.16) gerado a
partir da ausncia alternada de ambas as notas (quando uma aparece, a outra deixa de
ser usada).
A nota Sib fica excluda at o compasso 6, quando a partir deste ponto se torna a
nota referencial da parte A (Fig.17). Notamos porm que a nota M deixa de ser
utilizada desde ento.
6
Uma forma curiosa de chamar a ateno sobre um determinado som exclu-lo durante certo tempo
para ento voltar a ele. Se a eficcia dessa tcnica pode ser discutvel para quem escuta a obra,
especialmente se houver estruturas harmnicas muito densas, ela pelo menos revela uma forma de dispor
os sons ao longo do tempo, de conduzir o fluxo sonoro at determinado objetivo. (SALLES, 2009: 151)
283
Figura 198: Aparecimento da nota Mib como centro sonoro; incio da parte B.
284
Podemos perceber na figura abaixo (Fig.20) essa relao formal gerada a partir
de mudanas texturais, concatenadas com o uso do eixo de simetria inversional por
excluso entre as centricidades Sib e Mib.
285
melodia, formando uma intercoleo7 diatnica/tons-inteiros, onde temos as notas
[F, Sol, L,Si] como invariantes dos dois conjuntos (Fig.22).
Figura 22: Conjunto com eixo de simetria R-Lb; metade tons inteiros, metade cromtico.
7
Segundo Straus (2005: 128) as trs principais colees referenciais diatnica, octatnica e tons inteiros
podem interagir entre si, gerando novas colees, chamadas por ele de intercolees.
8
A oitava pode ser subdividida simetricamente por complexos de ciclos de intervalos, sendo o Ciclo 1
(C1) uma subdiviso por semitons, o Ciclo 2 (C2) uma subdiviso por tons, o Ciclo 3 (C3) teras
menores, e assim por diante. Ver Sistema de ciclos de intervalos elaborado por Antokoletz (2006: 81).
286
coleo de tons inteiros (C2), neste caso a partir do eixo Si-F. Parece provvel que
Villa-Lobos tinha conscincia dessas relaes de simetria entre colees e ciclos de
intervalos, o que sugere que os materiais musicais aproveitados nas obras mencionadas
teriam sido concebidos segundo os princpios norteadores do raciocnio feito por Villa-
Lobos (Idem; Ibidem). O Manuscrito P38.1.1 revela o interesse de Villa-Lobos por
colees simtricas e relao entre ciclos intervalares j em 1916, antes do contato com
as obras de Stravinsky (1918).
Esse interesse por ciclos intervalares aparece j em 1915 na Dana n2, op. 57,
das Danas Africanas (Fig.24). Temos nos dois ltimos compassos do trecho abaixo um
ciclo intervalar 2 (C2) descendente em figuras de colcheias em oposio a dois ciclos 2
ascendentes em semnimas em torno do eixo simtrico Sol#-R.
A defasagem das escalas de tons inteiros por conta da figurao colcheia contra
semnima gera um encontro de C2 ascendente contra C4 descendente (Fig.25), que na
verdade o C1 ascendente contra C2 descendente que vimos na Tabela Prtica
multiplicado por dois.
287
9- Concluso
Vimos neste trabalho como Villa-Lobos utiliza os eixos de simetrias entre
intervalos de alturas em diversos nveis estruturais, desde a marcao formal da obra,
gerao de centros sonoros em sees ou trechos meldicos. Observamos tambm o
processo de amadurecimento deste procedimento, surgindo primeiramente a partir de
simetrias inerentes de colees referenciais diatnica, octatnica, acstica e tons-
inteiros. Mas logo o compositor encontraria na oposio entre notas brancas e
pretas e tambm na relao entre ciclos intervalares outras fontes muito prsperas
para gerao de simetrias intervalares.
288
Resumo: Neste artigo procuro apresentar a manipulao de colees harmnicas como estratgia
composicional de Heitor Villa-Lobos, especialmente no seu Choros n10 (1926). A criao de um espao
de interao entre colees diatnicas (ora modais, ora quase-tonais), pentatnicas e octatnicas nessa
obra, no apenas permite a construo de um estgio intermedirio entre essas colees tradicionais
fazendo surgir novas possiblidades musicais derivadas das propriedades dessas escalas, como sugere uma
percepo muito particular da modernidade e de suas implicaes sobre as temticas relacionadas
brasilidade. Num dilogo com os estudos de Pieter Van den Toorn sobre Stravinsky e com meu prprio
trabalho de mestrado, apresento uma abordagem analtica que pretende contemplar tanto aspectos da
tcnica composicional quanto da narratividade simblica presente nessa composio.
1- Introduo
289
msico. Quando percebemos que so consideradas nacionalistas obras to dspares
quanto Choros n2 (1922) e as Bachianas Brasileiras n4 (1930/1941) questionamo-nos
a respeito da qualidade heurstica que a terminologia carrega, especialmente numa
perspectiva musical. Ao mesmo tempo, ao se falar sobre aspectos tcnicos da obra de
Villa-Lobos, por falta de critrios objetivos, ia-se de clamores por total irracionalidade a
categorizaes confusas que punham vinho novo em odres velhos, com abordagens
analticas pouco elucidativas. Ento, sendo a necessidade de analisar a obra villalobiana
uma demanda sria, exigida pela sua relevncia, e na ausncia de meios, tais solues
foram funcionaram como paliativos para a conscincia dos musiclogos das primeiras
dcadas aps a morte de Villa-Lobos.
Tal confuso analtica, contudo, no era privilgio apenas da abordagem desse
compositor. Peeter van den Toorn na introduo de seu livro The Music of Igor
Stravinsky (TOORN, 1983), comenta como as pesquisas anteriores obtiveram pouco
resultado por estarem focando seu objeto de pesquisa com lentes carregadas de uma m
compreenso da proposta musical de Stravinsky. As buzzwords da anlise do msico
russo eram ainda mais variadas: politonalidade, bitonalidade, pantonalidade, etc., frutos
de um olhar enviesado por concepces tonais tradicionais. A procura de Toorn pela
inteireza da potica stravinskiana - aquilo que faz uma obra sua ser reconhecida como
tal, sua idiomaticidade - levou-o a encontrar sua Pedra de Roseta, a escala octatnica,
coleo fundamental para a msica de Stravinsky durante as suas diferentes fases
criativas. A mesma pergunta da pesquisa de Toorn ressoa hoje sobre a nossa pesquisa
sobre a msica de Villa-Lobos: o que faz a msica de Villa-Lobos soar do jeito que soa?
notvel que os comentrios que apontavam a irracionalidade de Villa-Lobos tinham -
excetuando aqueles da crtica conservadora - a inteno de valorizar o potencial criativo
do compositor e reconhecer a significncia da sua obra, na falta de critrios mais
satisfatrios. Entretanto, assim como em Stravinsky, a natureza modernista da obra de
Villa-Lobos demanda uma compreenso muito especifica dos recursos composicionais
empregados pela sua musicalidade de forma idiossincrtica, para uma avaliao critica
significativa.
O Choros n10 (1926) para orquestra e coro uma obra muito rica e heterognea
onde a anlise pode render bons insights a respeito de processos composicionais, bem
290
como de sua expresso esttica mais ampla, no que diz respeito ao uso de material
popular num discurso simblico. Numa obra que conta com material indgena a
melodia Ena Mokoc c-Mak coletada por Roquete-Pinto (ROQUETE-PINTO, 1938),
com caractersticas cromticas; material de referncia africana a melodia de roda
Uma, duas angolinhas usada por Villa-Lobos em vrias obras com referncia
africanidade - e a melodia popular Rasga o Corao de Anacleto de Medeiros, que
compe a parte popular/urbana da composio, podemos observar como Villa-Lobos
trabalha nessas trs frentes, interagindo os materiais harmnicos, referenciais
simblicos, chegando a sonoridades contemporneas como o octatonismo, com
amostras ocasionais de seu gosto pela msica impressionista.
291
Numa construo que evoca a magnitude das florestas (c.1-5), seu rudo de
fundo com a evocao de canto de pssaro na flauta, um dos recursos preferidos de
Villa-Lobos na representao desse ambiente natural o compositor dispe um
ambiente altamente cromtico (contem 11 sons da escala cromtica, exceto D)
particionado de maneira muito original. No aspecto vertical, o acorde inicial (c.1 depois
da anacruse) fundamentado por uma estrutura quartal, Mi-L-R-Sol, [a] o tetracorde
0279, conjunto presente em diversas formaes pentatnicas 1 . Em sua regio
intermediria, observamos a trade de Eb em primeira inverso [b], conectada nota Sol
da estrutura quartal [a] como uma projeo dessa estrutura. Por fim, a estrutura, um
tricorde 014 [c] insere a nota F# ao conjunto anterior, legando uma sonoridade de
acorde maior/menor para a trade em b. Considerando todas as trs formaes - o
tetracorde pentatnico [a], a trade de Eb [b] e o conjunto 014 [c] - temos a coleo R-
1
Apenas como alguns exemplos do uso de estruturas quartais na elaborao de sonoridades pentatnicas,
Choros Bis, c.27 e Saudades das Selvas Brasileiras I, c.34.
292
Mib-Mi- F#-Sol- L- Sib, que forma um hexacorde octatnico da terceira coleo de
Toorn2, mais a nota R. No aspecto horizontal, temos a melodia da flauta, tambm
constituda por um hexacorde octatnico, agora da segunda coleo, e sem notas
estranhas ao conjunto3.
Assim, logo na abertura de Choros n10, Villa-Lobos situa a obra no patamar da
modernidade contempornea, ao evocar a sonoridade octatnica na dimenso meldica
e harmnica do trecho analisado. Entretanto, mais notvel o meio pelo qual o
compositor compe o cenrio octatnico na harmonia: por meio de uma estrutura
complexa, que envolve interao entre paradigmas pentatnicos(a) e diatnicos(b). Na
apresentao do segmento da escala octatnica II, consegue um ambiente altamente
cromtico, na construo do que Antokoletz chama de Cromatismo Polimodal, um
cromatismo alcanado pela sobreposio de diferentes colees (ANTOKOLETZ,
1984: 232).
Ao compasso 6 (fig.2), Villa-Lobos abdica da sonoridade cromtica e reduz
seus meios escala diatnica de D, sobre a qual sobrepe trades formando acordes
com sexta acrescentada caractersticos da msica popular urbana. Elaborando
movimentos entre o I e V graus, subverte o jogo funcional pela quebra de ritmo
harmnico obtida pelo uso das tercinas, ao fim cadenciando sobre o V. Aqui uma
sonoridade de diatonismo impressionista com traos da msica popular se faz presente.
Aps essa seo de pouca densidade cromtica, retorna melodia octatnica da coleo
II (c.13), agora no clarinete, e sem o suporte harmnico da estrutura a/b/c do c.1.
2
A terceira coleo octatnica formada pelas notas Mib-Mi-F#-Sol-L-Sib-D-Rb .
3
A segunda coleo octatnica formada pelas notas Mib-F-F#-Sol#-L-Si-D-R
293
A dinmica formal dessa seo pode ser definida como o estabelecimento de um
ambiente denso cromaticamente, com sonoridades octatnica resultantes, seguido por
uma queda brusca da densidade cromtica no c.6, onde temos essa seo diatnica, com
uma tonalidade estilizada evocando a msica popular. Esse pequeno ternrio
encerrado no c. 13 com a recapitulao do canto do pssaro octatnico, sem toda a
complexidade cromtica dos primeiros compassos, mas sendo seguida, nos c.15-16, por
um trecho de alta densidade cromtica, onde a interao entre elementos diatnicos,
pentatnicos, octatnicos e cromticos vo ainda mais alm.
A seo que se segue ainda carrega elementos mais complexos que a anterior;
com diversos acontecimentos distintos em cada extrato da orquestra. J na estrutura de
destaque delegada aos metais, observamos Villa-Lobos interagir tetracordes diatnicos
(a) e no-diatnicos (b) na construo de uma coleo complexa que dialoga com
sonoridades funcionais, como que se situando de forma ambivalente entre um
diatonismo distorcido e um octatonismo que, na quebra de sua simetria, valoriza notas
com certa funcionalidade. Aqui, observamos tambm a nfase nota Sol, nota piv de
toda a introduo, aqui sustentada insistentemente por uma das trompas (fig.3).
294
Nessa seo, Villa-Lobos expressa uma grandiloqncia prpria de aberturas
orquestrais: enquanto lega aos metais as notas longas e fora dinmica, nas cordas explora a
agilidade e uma grande gama de alturas. Contudo, embora as estruturas sejam aparentemente
dspares, elas se comunicam por meio das interaes e dos conjuntos que so mapeados por
elas.
Dos compassos 15 a 16, Villa-Lobos elabora uma figurao ascendente nos violinos que
se trata da primeira citao de Ena Mokoc c-Mak, com seu apelo cromtico, na obra. As
interaes entre estruturas pentatnicas e octatnicas do trecho j foram analisadas por
Antokoletz (1984:233), mas, em minha opinio, foram vistas aparte de uma considerao ampla
desta obra e da composio villalobiana como um todo. De fato, os pontos de apoio dos grupos
de quatro semicolcheias so as notas Mi-Sol-L-Si-R, escala pentatnica de Mi no 5 modo
(0357A), mas os procedimentos pentatnicos vo alm dessa referncia pontual apontada pelo
autor (fig.5). Cada uma das notas dos grupos de quatro semicolcheias mantm correspondncia
com a nota do grupo seguinte, na formao de colees pentatnicas de diferentes rotaes,
correspondendo, no final, ao total cromtico. Por outro lado, o que visto por Antokoletz como
quebra de padro da escala octatnica 1 ou seja, a insero da nota R no segundo tetracorde
(Sol-F#-Mib-R) forma a coleo harmnica do primeiro compasso da composio, um
hexacorde da coleo III, acrescido da nota R, no dilogo com estruturas pentatnicas. O
mesmo padro repetido na considerao do terceiro e quarto tetracordes (encabeados por Si e
R) sugerindo uma dependncia em fatores pragmticos advindos das estruturas da escala
pentatnica de Mi e do jogo com teclas brancas e pretas aplicado por Villa-Lobos. O resultado
o aparecimento de tetracordes simtricos 0134 e 0145. Na viola e segundo violino, os mesmo
tetracordes so elaborados, em outra rotao e com outro perfil meldico (tecla
branca/preta/branca/preta).
295
296
vises possveis para abordar o elemento modernista desse trecho. Entretanto, a anlise
de outras obras como Choros n8 (c.44-45), Rudepoema (c.553-554) e Passarinho de
pano (c.72-73), tem mostrado uma recorrncia na escolha dos tetracordes simtricos
0134 e 0145 em contexto muito semelhante ao aqui observando, levando-nos a hiptese
de um recurso muito especfico de Villa-Lobos.
297
298
russa de Igor Stravinsky, na qual o compositor estava adicto a toda forma de
fragmentos 0235, de carter folclrico [russo] (TOORN, 1987, p.74. Essa
identificao explica em parte o carter buclico e selvagem que a melodia impinge
msica, contribuindo para a assimilao do sentimento arcaico desejado.
299
4
Utilizado tambm na introduo de Choros n6 (1926).
301
6- Concluso: os Choros e o Choros n10
302
303
das trs raas, onde os campos da forma e harmonia, representantes mor da cultura
europeia tradicional, so despedaados, e em seus lugares novas combinaes so
propostas, frutos da aplicao de ideias originais de Villa-Lobos sobre materiais
musicais exgenos. Talvez, seja a heterogeneidade a caracterstica mais evidente da
msica modernista de Villa-Lobos, a interao entre materiais e o jogo entre o naive
diatnico e a complexidade cromtica com propsitos formais. Nesse caso, como
analistas, nos sobra o papel de taxonomistas frente a um material por demais rico,
tentando juntar partes de forma coerente para entender o seu autor. Talvez, mas
esperemos mais que isso.
7- Referncias Bibliogrficas
304
Seminrio 3 domingo
The compositional use of the Pareci Indian theme on the second movement of
Villa-Lobos' Choros No. 10
Abstract: This paper is a fragment of an ongoing doctoral thesis research and weaves analytical
considerations about the compositional use of the Pareci Indian theme known as En-mokoc-c-mak on
the second movement of Choros No. 10. The main argument defended here suggests that the macro-
structure on this section of the piece could be based on the fundamental characteristic of repetition also
present on the original theme and on the concept Villa-Lobos held about the Indian musicality. An
hermeneutic approach is also taken by relating musical elements to the representation of the indigenous
and civilized archetypes, and how these references are correlated and bring about new possible
significations. This approach allows for the suggestion of a correlation of the piece with Anthropological
theories about the concept of culture ahead of it's own epoch.
1- Consideraes iniciais
305
e de grande porte. Com durao aproximada de treze minutos, na gravao francesa
conduzida pelo compositor (1958), a obra possui dois movimentos de durao
semelhante, sendo o primeiro apenas instrumental (compassos 1-148), e o segundo para
a formao completa (compassos 149-270). Em toda a pea, o compositor faz uso de
um tema indgena Pareci1 recolhido em fonograma por Roquette Pinto em 1912 e
disponibilizado em CD em coleo restaurada pelo Museu Nacional (Pereira &
Pacheco, s/d). no segundo movimento, no entanto, que o uso do tema indgena se
intensifica, e onde reside o foco de minha investigao.
Antes de adentrar nos argumentos analticos, cabe aqui colocar alguns
esclarecimentos iniciais. Embora alguns autores refiram-se a uma tpica indgena na
msica de Villa-Lobos (Piedade, no prelo; Moreira, 2010) e eu concorde com seus
argumentos, optei neste trabalho por utilizar termos menos definidores como referncia
ou aluso, seguindo orientaes da banca do exame de qualificao. Isso tanto porque
Villa-Lobos representa apenas uma parte de meu objeto de estudo e entender sua
relao com a questo indgena foge ao mbito de minha pesquisa, quanto pela
complexidade e profundidade da teoria das tpicas2, cuja adaptao para parmetros
brasileiros modernistas igualmente excederia os objetivos do trabalho. Acredito ser
possvel usar essa referncia terminolgica em relao obra de Villa-Lobos, mas, por
uma questo de precauo terica, optei por no utilizar suas implicaes.
No segundo movimento do Choros No. 10, como j identificaram outros autores
(Salles, 2009; Wisnik, 1982), h elementos que aludem a musicalidades indgena,
europia e africana ou melhor, percepo que Villa-Lobos teria dessas
musicalidades, que se relacionava tambm com as percepes de seu pblico-alvo, em
especial as elites europias (Coelho de Souza, 2010). Nessa obra, pode-se identificar
1
Conforme
a
Enciclopdia
dos
Povos
Indgenas
no
Brasil,
disponibilizado
online
pelo
Instituto
Socioambiental
(ISA),
maior
ONG
que
lida
com
questes
relativas
aos
ndios
do
pas
e
que
realiza
um
trabalho
ao
meu
ver
bastante
comprometido
com
sua
causa,
os
ndios
Pareci
ou
Pares,
em
escrita
atual
so
originrios
de
uma
vasta
rea
na
regio
no
Mato
Grosso
e
hoje
tm
uma
populao
de
cerca
de
2.000
pessoas.
O
nome
lhes
foi
atribudo
no
sculo
XX
e
referia-se
a
diferentes
povos
falantes
da
lngua
Aruak,
que
se
auto-denominam
Halti,
termo
que
significa
gente.
Maiores
informaes
sobre
esse
povo
em
http://pib.socioambiental.org/pt/povo/paresi/2033.
2 Sobre teoria das tpicas, ver, entre outras referncias: HEPOKOSKI, James & WARREN,
Darcy. Elements of Sonata Theory: Norms, Types, and Deformations in the Late-Eighteenth-Century
Sonata. Oxford University Press, 2006.
306
uma dicotomia entre o que Coelho de Souza (2010) chama de referncia ao selvagem e
ao civilizado, em anlise do Rudepoema que extrapola os limites da pea especfica. Ele
elenca caractersticas musicais desses campos:
308
Choros No.10 de Villa-Lobos (compassos 149-150).
Esse motivo sofre uma alterao significativa pouco depois de sua apresentao
inicial: torna-se diatnico, forma na qual ser usado na maior parte do segundo
movimento do Choros No. 10. O Exemplo 2 ilustra a primeira ocorrncia do tema em
sua forma diatnica, na entrada do coro, cantado pelo naipe de tenores que outra vez
relembra caractersticas do registro original do fonograma, agora de forma mais literal
pelo uso da voz humana. Aos dois compassos do tema seguem-se outros dois
compassos de uma figura de acompanhamento que funciona quase como um contra-
sujeito, sustentando sucessivas entradas do tema em cnone em diferentes
transposies. Essa figura de acompanhamento aparentemente uma criao original do
compositor, no se relacionando com padres meldicos encontrados no fonograma
original, ou no que se preservou dele at os dias de hoje. A letra adicionada , tambm,
criao de Villa-Lobos, e aparentemente no se baseia nas slabas entoadas no
fonograma, mas remetem a sonoridades que o compositor associa a uma lngua indgena
inventada. Ao longo da pea, ele brinca com essas sonoridades, alterando as vogais
repetidas em cada frase, de forma similar ao que se faz na cano infantil O sapo no
lava o p.
Exemplo 2: motivo indgena diatonizado apresentado pela primeira vez pelos tenores (c. 166-171).
309
indicao contrria tese de Wisnik. A diatonizao pode ser entendida como lugar de
interao cultural, atribuindo identidade indgena imaginada pelo compositor a
capacidade de re-interpretar significaes da sociedade nacional segundo seus prprios
termos: capaz de alterar parte de sua aparncia superficial a partir de influncias
externas, mas sem perder sua prpria lgica fundamental ou maneira de conceber o
mundo. Essa tese ser corroborada por outros elementos apresentados posteriormente.
Villa-Lobos cria um novo tema pseudo-indgena, que pode ser considerado uma
variao do primeiro, mostrado no Exemplo 3, que tem sua primeira ocorrncia no
compasso 190 e serve como contraste seccional com o primeiro tema, mantendo o
mesmo carter. Esse segundo tema usado comedidamente em relao ao primeiro.
Dessa forma, embora haja alguma surpresa meldica na textura que remete sonoridade
indgena, a referncia continua clara.
Exemplo 3: segundo tema (pseudo-) indgena utilizado no Choros No. 10, segundo movimento,
compassos 190 a 194.
Uma variao desse segundo tema indgena ocorre em uma parte central do
segundo movimento, entre os compassos 230 e 237, tomando o carter de
acompanhamento percussivo para a entrada de um surpreendente solo de trompete e
depois um solo similar de flauta entre os compassos 246 e 251 novamente permitindo
variao na textura e manuteno da referncia ao indgena. Aqui essa referncia pode
ser entendida at como mais direta, justamente pelo carter percussivo e simples do
padro mantido pelo coro, que provavelmente fazia parte do imaginrio do compositor e
de sua platia sobre a msica indgena. interessante notar que, justamente nessa seo,
o cromatismo do tema original retomado paralelamente e de forma discreta pelas
cordas. A concomitncia de colees referenciais em diferentes camadas aqui o
310
diatonismo e o cromatismo , conforme Branda Lacerda (2012), uma tcnica
recorrente na obra do compositor e que dialoga com recursos utilizados por outros
compositores modernistas. Aqui, essa tcnica pode corroborar a anlise hermenutica
sobre a possvel afirmao da continuidade da cultura indgena nessa obra de Villa-
Lobos, atribuindo ao ndio a capacidade de manter suas caractersticas culturais
originais a despeito de superficiais adaptaes advindas do contato com a sociedade
nacional. O Exemplo 4 mostra o incio dessa seo.
Exemplo 4: tema indgena cromtico nas cordas e elemento percussivo no coro (c. 230-231)
Alm desses materiais que fazem referncia direta sonoridade indgena como
provavelmente concebida por Villa-Lobos e seu pblico, h dois outros importantes
ncleos temticos que compem o segundo movimento do Choros No. 10: uma melodia
com carter sequencial derivada do primeiro tema indgena, a que chamarei de melodia
cantabile; e a melodia da cano popular Rasga o Corao, segundo ttulo dado
composio original Iara, de Anacleto de Medeiros e que posteriormente recebeu letra
de Catullo da Paixo Cearense (a letra foi retirada da obra de Villa-Lobos depois da
primeira edio, por questes de direitos autorais).
O Exemplo 5 mostra a primeira ocorrncia da melodia cantabile derivada do
tema indgena inicial, que acredito estar relacionada a elementos representativos do que
seria um arqutipo do civilizado ou do europeu na obra. Ela se contrape aos temas
relacionados ao arqutipo do indgena especialmente por conter elementos musicais que
311
a ligam ideia de desenvolvimento: construo frsica que se relaciona com o conceito
de sequncia e a presena de um contraponto feito a partir da inverso da melodia
principal, faltando uma nota. Ritmicamente ela tambm menos marcada, com a
transformao das semicolcheias do tema indgena inicial em tercinas de colcheias, o
que lhe agrega um carter cantabile e traz, assim, aluso ao estilo operstico europeu. O
registro agudo em que ela ocorre tambm a diferencia do original, grave, tornando-a
menos prxima do que poderia ser um registro vocal natural do tema original, e
portanto a liga ideia de voz impostada, lrica. Embora apresentada na seo
instrumental inicial, essa melodia repetida em diferentes momentos durante o segundo
movimento do Choros No. 10, principalmente pelo coro.
312
313
O tema indgena, seja em sua forma original cromtica, em sua forma derivada
diatnica ou em suas transformaes para segundo ou terceiro temas, est presente no
segundo movimento do Choros No. 10 do primeiro ao ltimo compasso. Repetido
incessantemente, esse elemento constitui o elo de ligao entre as partes de um todo, a
textura de base sobre a qual ocorrem todos os outros elementos presentes na obra,
muitos dos quais derivados dele mesmo.
Harmonicamente, a estrutura desse movimento tambm extremamente esttica,
fazendo uso das colees de F# menor (escalas natural, harmnica e meldica), que se
misturam gradativamente durante a pea, gerando cada vez mais tenses por suas notas
conflitantes. Embora o acorde de F# menor seja claramente mais enfatizado, existe
uma ambiguidade de centro com sua relativa maior, L, realada por ser a nota de
repouso da melodia Rasga o Corao, muito embora a melodia possua notas das trs
escalas menores de F# menor. Durante boa parte da pea repete-se a sequncia
cadencial de engano Si menor Mi maior F# menor (ii-V-vi em L), corroborando
essa relao. Os padres rtmicos, tambm, mantm-se por longo tempo e se parecem
entre si, aludindo novamente ao carter de repetio. Pode-se considerar que essa
estaticidade harmnica e rtmica relaciona-se ao arqutipo do indgena nessa obra no
apenas representado pontualmente, mas tomado como elemento gerador ou fora motriz
da pea toda.
Pode-se pensar mesmo em uma mudana de paradigma composicional, no qual o
compositor se coloca, imaginariamente, na posio do outro, buscando construir sua
obra a partir da perspectiva desse outro. O segundo movimento do Choros No. 10 um
enorme crescendo que se d principalmente pela repetio de elementos e sobreposio
de texturas, algo que pode ter relao com a ideia de msica ritualstica na acepo do
compositor. Essa postura de imaginar-se no lugar do outro se relaciona ao
desenvolvimento da etnografia, na qual essa atitude s passou a ser esperada a priori do
pesquisador dcadas depois da data de concluso do Choros No. 10 (especialmente a
partir da segunda metade do sculo XX com a obra de Geertz, 1978). Creio que a
construo dessa obra permite tal anlise hermenutica, mesmo que ela possivelmente
contrarie falas do prprio compositor (das quais sabemos que devemos duvidar,
especialmente no caso de Villa-Lobos) e seu conhecimento dessas teorias ainda
314
incipientes. Devemos lembrar que o campo das artes no se baseia apenas na
compreenso racional do mundo, e que na histria no so raros os casos de
concomitncia de adventos de ideias novas, sem que haja contato direto entre seus
criadores.
significativo, tambm, que o segundo movimento do Choros No. 10 se inicie
com um elemento de provenincia indgena tocado por um instrumento solo, e culmine
em uma soma complexa de texturas sobre a qual paira uma melodia popular urbana.
Ritmicamente tambm h um crescendo de complexidade nesse processo, com a
incluso de sncopas sobre a estrutura inicial de figuraes rtmicas simples e com
nfase nos tempos fortes, alm da utilizao de instrumentos de origem africana que
poderiam estar aludindo a esse terceiro arqutipo, aqui pouco discutido. Como j
notaram outros autores (Salles, 2009; Wisnik, 1982), a sonoridade da segunda metade
do movimento em diante lembra uma escola de samba ou talvez os blocos de samba
da poca. Faz-se ainda necessrio comparar padres musicais presentes nessa obra a
estudos desse repertrio para confirmar esse argumento. De toda forma, notvel que o
elemento indgena inicie e sustente esse crescendo que culmina com uma melodia
popular urbana, de forma onipresente como textura de base que ora aparece pelo
silenciamento de outras camadas, ora fica encoberta pela complexidade sonora. Esse
procedimento permite a interpretao de que a pea aludiria cultura indgena como
base formadora da msica popular brasileira urbana, que seria a soma de vrias
influncias na obra possivelmente representadas tambm pelo arqutipo do europeu
ou civilizado e do africano mas que teria na msica indgena seu elemento fundador
central.
Tambm notvel que, a despeito de todas as camadas adicionadas ao tema
indgena original, depois que ele diatonizado, ele incessantemente repetido em sua
forma primeira ou nos temas dele derivados, com pouca ou nenhuma alterao alm de
sucessivas transposies dentro de uma mesma coleo escalar. Em um paradigma de
composio ocidental erudita, poderamos esperar que a adio de novas camadas
texturais e novos elementos provocariam algum impacto nessa camada de base. Mas ela
permanece constante a despeito de tudo que ocorre sobre ela. Novamente, o
comportamento musical do elemento de referncia indgena abre espao para uma
315
interpretao de sentido que coloca essa obra de Villa-Lobos em sintonia com ideias da
Antropologia advindas dcadas depois. poca de composio do Choros No. 10, a
cultura era compreendida como algo esttico, uma tradio a ser preservada, que
perderia suas caractersticas fundamentais quando exposta a influncias externas. Foi
com esse paradigma de cultura que muitos outros compositores nacionalistas e
modernistas criaram suas obras, a exemplo de Bartk. Dcadas depois, como delineado
preliminarmente por Geertz (1978) e posteriormente desenvolvido por outros autores,
como Hall (2000) e Latouche (1994), o conceito de cultura foi mudando para ser
entendido como algo dinmico, em constante transformao, e aos povos de culturas
tradicionais foi sendo atribuda, conceitualmente, cada vez mais, a capacidade de
reinterpretar elementos externos sua prpria maneira, movendo-se com integridade em
relao aos seus princpios fundamentais, mas capaz de renovar suas formas no contato
com novas influncias. Esse princpio de continuidade e dinamismo cultural foi sendo
compreendido como um processo histrico constante, que tem sido apenas acentuado
de forma muitas vezes agressiva pela globalizao. Autores do fim da segunda metade
do sculo XX, como Ianni (1992) e Hall (2000), ao apontarem a massiva imposio da
cultura ocidental sobre culturas tradicionais, concordam que esse movimento tem
tambm provocado o nascimento de novas identidades culturais, pelas inditas
interpretaes a respeito do ocidente nascidas dessas culturas tradicionais.
Voltando ao Choros No. 10, o fato de que a textura que remete ao elemento
indgena se mantm a despeito da sua coexistncia com outros elementos com eles
interage, s vezes se altera, mas sem perder suas caractersticas principais permite
interpretar que o conceito de cultura que Villa-Lobos teria em relao referncia
indgena, ao compor essa pea, consciente ou inconscientemente, seria compatvel com
um conceito de cultura que s seria difundido dcadas depois da composio da obra.
316
4- Consideraes finais
5- Referncias Bibliogrficas
317
MOREIRA, Gabriel Ferro. O elemento indgena na obra de Villa-Lobos: Observaes
msico-analticas e consideraes histricas. Dissertao de mestrado
apresentada Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), 2010.
PEREIRA, Edmundo & PACHECO, Gustavo (eds.). Rondnia 1912: gravaes
histricas de Roquette-Pinto. CD da Coleo Documentos Sonoros. Museu
Nacional do Rio de Janeiro, s/d.
PIEDADE, Accio T. C. Rhetoricity in the music of Villa-Lobos: musical topics in
Brazilian early XXth-century music. Edinburgh: no prelo, artigo gentilmente
cedido pelo autor.
SALLES, Paulo de Tarso. Villa-Lobos: Processos Composicionais. Campinas: Editora
Unicamp, 2009.
SZENDY, Peter. A History of Our Ears. New York: Fordham University Press, 2008.
VILLA-LOBOS, Heitor. Choros No. 10: pour choeur mixte & orchestre. Partitura.
Paris: Ed. Max Eschig, 1975.
____________________. Villa-Lobos par lui mme. CD, EMI France col. Classics,
No. 4, remasterizado, 1991. Gravao realizada em 1958 com a Orchestre
National de la Radiodiffusion Franaise.
WISNIK, Jos Miguel. Getlio da Paixo Cearense (Villa-Lobos e o Estado Novo). In:
SEQUEFF, nio & WISNIK, Jos Miguel. O nacional e o popular na cultura
brasileira. 2a. ed. So Paulo: Ed. Brasiliense, 1983 (2a ed. - 1a ed. 1982),
pp.129-191.
318
Partes de contrabaixo das sinfonias de Villa-Lobos: uma discusso
sobre idiomatismo
Alexandre Rosa
Unesp/alex7rosa@hotmail.com
Sonia Ray
UFG/soniaraybrasil@gmail.com
Resumo: O presente trabalho trata de uma discusso sobre idiomatismo na escrita para contrabaixo nas
Sinfonias 4, 6 e 7 de Heitor Villa-Lobos. O objetivo principal destacar os elementos idiomticos do
contrabaixo explorados pelo compositor nestas obras, selecion-los e discuti-los para que sirvam como
base para melhor preparao de msicos para o trabalho em orquestras profissionais no Brasil. A
metodologia adotada foi de breve fundamentao terica da escrita idiomtica seguida de anlise da
escrita das partes do contrabaixo com demonstrao e discusso de trechos escolhidos dentre as obras
selecionadas. A principal concluso deste texto que, ainda que no se tenha at o momento evidncias
do contato do compositor com algum contrabaixista que o ajudasse a elaborar a escrita idiomtica, a sua
maneira de tratar o contrabaixo se insere dentro de grande simplicidade com pouca explorao da real
capacidade do instrumento.
Keywords: orchestral double bass; Villa-Lobos symphonies; idiomatism on the double bass.
1- Introduo
320
contrabaixista o estudo de suas obras orquestrais. Esta maneira de utilizar o contrabaixo
em suas sinfonias pode ter sido influenciada pelos seus estudos de tratados orquestrais
como o de Vincent dIndy ou ainda pelos seus estudos individuais de partituras
orquestrais as quais tinha acesso. O que se percebe em sua escrita para o contrabaixo
uma tendncia dos compositores europeus que desde o final do sculo XIX vinham
trabalhando com a extenso dos recursos orquestrais e aprofundamento dos registros
graves dos instrumentos existentes (GOUBAULT, 2009).
321
322
Exemplo 3: Sinfonia 4 de Villa-Lobos. Quarto movimento, parte do fugato que vai do compasso 252 ao
324.
Neste movimento destaca-se ainda o divise a duas vozes dos compassos 407 ao
compasso 448. Nesta passagem Villa-Lobos usa o naipe de contrabaixos para traar um
longo ostinato de transio para a seo final da sinfonia. Mais uma vez a dificuldade
o equilbrio das vozes (exemplo 4).
Exemplo 4: Sinfonia 4 de Villa-Lobos. Quarto movimento. Parte do ostinato dos contrabaixos que vai do
compasso 407 ao 448.
Exemplo 5: Sinfonia 6 de Villa-Lobos. Quarto movimento. Parte do ostinato dos contrabaixos que vai do
compasso 2 ao 49.
324
Novachord e volumosa seo de sopros. Os exemplos 7, 8 e 9 abaixo mostram outras
possibilidades exploradas pelo compositor, diferentes das anteriores:
Exemplo 7: Sinfonia 7 de Villa-Lobos. Primeiro movt., c. 1-11. Divisi de contrabaixos a cinco vozes.
Exemplo 8: Sinfonia 7 de Villa-Lobos. Primeiro movt., c. 79 - 86. Divisi de contrabaixos a quatro vozes.
Exemplo 9: Sinfonia 7 de Villa-Lobos. Primeiro movt., c. 12 - 17. Divisi de contrabaixos a trs vozes no
registro mais grave.
325
A escrita do contrabaixo contribui para esta pesada orquestrao com uma
textura que contempla uso de oitavas e divisis at ento nunca efetuados em nenhuma
parte orquestral brasileira como o a 5 vozes com glissandi (exemplo 7), a 4 vozes com
tremolo (exemplo 8) e a 3 vozes no registro mais grave (exemplo 9).
3- Consideraes finais
4. Referncias
BORM, Fausto. Duo Concertant: Danger Man de Lewis Nielson. Per Musi. v.2. 2000.
Belo Horizonte: UFMG, 2000. P;89-103.
BRADETICH, Jeff. Double Bass: the ultimate challenge. Idaho: Music For All to Hear,
2009.
BUKOFZER, Manfred. Music in the Baroque Era. New York: W.W. Norton, 1947.
GOUBAULT, Christian. Histoire de linstrumentation et de lorchestration: du baroque
llectronique. Paris: Minerve, 2009.
PLANYAVSKY, Alfred. Geschichte Des Kontrabass. Tutzing: Hans Schneider, 1984.
VILLA-LOBOS, A. (Org.). Villa-Lobos, Sua Obra. 4 ed. Rio de Janeiro:
MEC/DAC/Museu Villa-Lobos, 2009.
326
Procedimentos Interpretativos para o naipe de Trompete nos Choros
n6
Antonio Marcos S. Cardoso
UFG/tonico@cardoso.mus.br
Resumo: Os Choros constituem o maior conjunto de obras composto por Heitor Villa-Lobos, reunindo
em uma srie todo o gnio criativo do compositor, do violo solo ao efetivo orquestral de grandes
dimenses. Nesse universo, destacamos nos Choros sinfnicos o naipe de trompetes do Choros n6 e as
possibilidades interpretativas dos respectivos instrumentos no universo da orquestra sinfnica. A anlise
interpretativa aborda as partes dos trompetes e sua relao com a orquestrao, em aspectos pertinentes ao
timbre, articulao, dinmica e ritmo, incluindo sugestes de pontos de respirao e agrupamento de
notas. Os grficos apresentados so resultados de gravaes dos trechos destinados aos trompetes e de
observaes de Cds produzidos por renomadas orquestras, todos processados atravs de programas de
edio e manipulao de udio. Isso proporciona a visualizao do objeto em termos de energia sonora,
ou seja, a observao do comportamento das articulaes e das dinmicas tais como variao da
intensidade do som permite-nos corroborar nossas sugestes interpretativas. As alteraes impostas
partitura visam proporcionar mais personalidade ao trompete e adequ-la ao formato de um instrumento
do sculo XXI. A reviso bibliogrfica permite que as palavras do prprio Villa-Lobos guiem o leitor
pelos aspectos tcnicos e psicolgicos da obra, e complementados por estudiosos do assunto, apresentam
um quadro terico que contextualiza aspectos estticos das obras citadas.
327
1- Introduo
1
Entrevista concedida por correio eletrnico em 03/11/2006 s 13:22.
2
Os trechos analisados foram gravados pelos instrumentos indicados na partitura.
328
2- O objeto
3
Durante o perodo, o catlogo de suas obras registra mais trs apresentaes da obra sob regncia de
autor: 26/11/42. Em Los Angeles, no Philarmonic Auditorium, com a Janssen Symphony of Los Angeles,
sob regncia de autor; 18/05/51. Na cidade de Helsink, com a Helsingfors Stadsorkester; 11/12/53. Na
cidade de Havana, Cuba, no Teatro Auditorium. Com a Orquestra Filarmnica de La Habana.
4
Notas escritas para trompete em Si bemol.
329
330
331
O primeiro e segundo trompetes retornam em c.44 (n.6-2) em unssono e forte.
Os dois compassos apresentados finalizam um crescendo iniciado nos primeiros
compassos da obra, com as cordas em pianississimo. Segundo Neves: Um grande
cresecente conseguido nas repeties dessa ideia musical (...) (NEVES, 1977, p.
50). Ao final, todos os instrumentos encontram-se em forte e, para ressaltar o grande
volume sonoro da orquestra, Villa-Lobos escreveu esses dois compassos oitava acima,
tessitura que associada dinmica escrita, permite que os trompetistas toquem na
intensidade sugerida com liberdade (Figura 6).
5
Grfico de intensidade sonora, onde h intensidade sonora. Como h = h e h = f , logo h = f. Portanto
a dinmica para os trompetes no trecho a ltima dinmica escrita: f (forte).
332
h
h =
333
sejam decrescidas. Segundo Pablo Casals, transcrito por Blum: Se voc continuar com
o forte no ouvir o acento (BLUM, 1977, p. 51). Nesse exemplo, as notas pontuadas
devem ser decrescidas, independente do valor. Caso a colcheia pontuada seja
sustentada, o acento perde a caracterstica e a semicolcheia acentuada se perde entre as
notas longas (Figura 11).
Figura 40 solo.
334
tambm em semnimas. Tercinas no flautim, flautas e sax reforam o movimento
descendente. Segundo Nbrega: Aqui, (...) comea novo episdio, cujo ambiente
formado por um desenho ondulante de tercinas , que se distribui pelos instrumentos
(...) (NOBREGA, 1974, p. 57). O trompete solo deve confiar na dinmica sugerida
pelo compositor para permitir que se oua todo o movimento rtmico e harmnico do
trecho, atentando para o crescendo na mudana de nota e aps o salto, sugerimos voltar
dinmica mezzo-forte aplicando essas sugestes em todo o trecho at o nmero 13.
A pequena interveno do primeiro e segundo trompetes, em c.116 (n.13+2),
acontece em meio ao tema exposto pelos primeiros violinos. Tema que segundo Neves:
[] interrompido de quando em quando por exclamaes orquestrais (NEVES,
1977, p. 50). A interrupo escrita para os trompetes pode ser forte, preparando a volta
do tema com os trombones e a tuba, assim como uma escala em semicolcheias nas
madeiras com dinmica forte. A intensidade da orquestra permite ao trompetista tocar
mais forte sem se distanciar do contexto.
335
Figura 43
336
O acompanhamento do solo (Figura 16) constitudo de notas curtas separadas
por pausas nos metais. As cordas apresentam colcheias em stacatto ( . ) (Figura 17). A
caracterstica rtmica contrasta com a fluidez da melodia do trompete. Deste modo,
nossa sugesto interpretativa para que o trompetista toque o trecho com tenutas ( - )
em todas as notas para no se criar pausas ou silncios, observando a mesma concepo
para se manter dentro de uma coerncia musical em todo o solo.
O solo se repete a partir do nmero 21 (c.210) com mesmo carter para tema e
acompanhamento. Porem, em c.206, quatro compassos antes o primeiro trompete
finaliza o solo e o segundo, terceiro e quarto trompetes, utilizando surdinas e sem
indicao de dinmicas, apresentam as colcheias que estiveram com as cordas em todo
o Meno mosso, que neste momento so repetidas por toda a orquestra. O trompetista
deve estabelecer sua intensidade de acordo com a intensidade da orquestra. Para o xito
na interpretao do trecho integrar-se na sequncia das colcheias com um staccato ( . )
que projete a nota sem aumento da intensidade sonora (Figura 18).
O solo para primeiro trompete (Figura 19) faz parte de uma valsa iniciada no
nmero 28 (c.286), onde segundo Neves: A orquestrao lembra ainda uma vez a
sonoridade das bandas das cidades do interior. As cordas fazem os acordes, enquanto
os floreios e ornamentos passam das flautas aos clarinetes (...) (NEVES, 1977, p. 51).
Nesse ambiente que o trompete desenvolve sua parte junto aos violoncelos e baixos
fornecendo o baixo meldico da valsa. Sugerimos que o trompetista observe o mezzo-
337
forte permanecendo na funo harmnica no trecho, que mesmo repetido quatro vezes
com diferentes variaes na orquestrao no altera a funo do solo.
338
(SEIXAS, 2007, p. 128). Apesar da importncia atribuda por Seixas ao ostinato, a
dinmica forte destinada aos metais permite que os instrumentistas toquem forte.
Porm, devem diminuir a partir de c.445 para que a nova melodia do primeiro obo,
requinta e sax seja ouvida (Figura 31). Segundo Nbrega, neste ponto a orquestra
prepara um novo episdio (NOBREGA, 1974, p. 59).
339
segundo e no nono compassos depois do nmero sessenta e um, temos ( - ) e ( > ),
enquanto para os outros instrumentos observamos ( . ).
No final da obra, os quatro trompetes fazem parte do que Neves descreve como
sendo a descrio do tema inicial, (...) [tocando] longos acordes no acompanhamento,
(...) enquanto as madeiras executam caprichosos floreios (NEVES, 1977, p. 52).
Reiteramos a sugesto para que, nas notas longas com acento ( > ), a articulao seja
340
caracterizada pelo decrescendo rpido, neste caso, para que a polirritmia entre as semi-
colcheias (flautas, obos e clarinetas) e as tercinas (fagotes, contra-fagote, tuba,
violoncelo e contrabaixos).
3- Consideraes Finais
4- Referncias Bibliogrficas
BLUM, D. Casals and the Art of Interpretation. Los Angeles, Califrnia, EUA:
University of California Press, 1977.
Museu Villa-Lobos. Villa-Lobos, sua obra (3 rev. atual. e aum. ed.). Rio de Janeiro,
RJ, Brasil: MinC - SPHAN/Pr-Memria/Museu Villa-Lobos, 1989.
NEVES, J. M. Villa-Lobos, o Choro e os Choros (1 ed.). So Paulo, SP, Brasil:
Ricordi, 1977.
NOBREGA, A. Os Choros de Villa-Lobos (2 ed.). Rio de Janeiro, RJ, Brasil:
MinC/Fundao Nacional Pr-Memria/Museu Villa-Lobos, 1974.
SEIXAS, G. B. Procedimentos composicionais nos Choros orquestrais de Heitor
Villa-Lobos. Rio de Janeiro, RJ, Brasil: Tese de Douturado UNIRIO, 2007.
VILLA-LOBOS, H. Estudo Tcnico Esttico e Psicolgico, No publicado, 1950.
_______________(Compositor). (2003). Villa-Lobos Choros 1 -7. [Gran Canaria
Philarmonic Orchestra, Artista, & A. Leaper, Regente] ASV Living Area.
341