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A Chegada e A Difusão Dos Cordofones de Cordas Dedilhadas No Brasil, Por Humberto Amorim

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (UNIRIO)

CENTRO DE LETRAS E ARTES (CLA)


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA (PPGM)
DOUTORADO EM MÚSICA

DA PENÍNSULA IBÉRICA MEDIEVAL AO SÉCULO XVII: A CHEGADA E A DIFUSÃO


DOS CORDOFONES DE CORDAS DEDILHADAS NO BRASIL

HUMBERTO AMORIM

Rio de Janeiro, 2015


DA PENÍNSULA IBÉRICA MEDIEVAL AO SÉCULO XVII: A CHEGADA E A
DIFUSÃO DOS CORDOFONES DE CORDAS DEDILHADAS NO BRASIL

por

HUMBERTO AMORIM

Tese submetida ao Programa de Pós


Graduação em Música do Centro de Letras e
Artes da UNIRIO, como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutor, sob a orientação
do Professor Dr. Silvio Merhy.

Rio de Janeiro, 2015


Amorim, Humberto.
A524 Da península Ibérica medieval ao século XVII: a chegada e a difusão dos
cordofones de cordas dedilhadas no Brasil / Humberto Amorim, 2015.
290 f. ; 30 cm

Orientador: Silvio Merhy.


Tese (Doutorado em Música) – Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

1. Instrumentos de corda – Brasil – Séc. XVI-XVII. 2. Violão.


3. Historiografia. I. Merhy, Silvio. II. Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro. Centro de Letras e Artes. Curso de doutorado em Música.
III. Título.

CDD – 787
Autorizo a cópia da minha tese "Da península ibérica medieval ao século XVII: a chegada e a difusão
dos cordofones de cordas dedilhadas no Brasil", para fins didáticos.
Àquele que tem o poder de realizar, por sua força agindo em nós, infinitamente mais que tudo
que possamos pedir ou pensar.
(Ef 3, 20)
AGRADECIMENTOS

Aos meus familiares, Marina, Francisco, Silvio, Graça, Silvio Jr., Julieta, Juliana,
Giovanna, Glenda, Socorro, Sérgio, Soraia, Vó Isaura e Lu, pelas horas incontáveis de amor e
suporte.

Ao meu orientador, Silvio Merhy, ser humano admirável e um musicólogo culto e


preciso nas orientações. O grande mestre conduz o voo evitando quedas e alargando
horizontes, inspirando tanto na presença quanto na ausência. Tê-lo comigo nesta aventura foi,
por isso, um privilégio único.

Aos professores membros das bancas de ensaio I e II, qualificação e defesa de tese,
Clayton Vetromilla, Gilson Antunes, Mario da Silva, Ricardo Tacuchian, Celso Ramalho e
Cláudia Caldeira, pensadores e músicos de primeira grandeza e que incluíram decisivas
contribuições à redação final. E ao professor José Nunes Fernandes, pela revisão na
formatação da tese.

À Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), especialmente


ao Departamento de Arcos e Cordas Dedilhadas (03), pela licença de dois anos que me
permitiu aprofundar significativamente o alcance da pesquisa.

À Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), especialmente aos


professores do IVL e do PPGM, onde, cercado por amig@s, professores e colegas
inspiradores, cumpri cinco dos meus seis títulos acadêmicos e pude renovar, sempre, a chama
do coração aprendiz.

Aos colegas Jorge Santos, Elodie Bouny e Luiza Bonfim, pelo auxílio na tradução dos
textos em línguas estrangeiras. E também a Tiago Morin, Adriana Ballesté e Fabiano Borges
pelos arquivos compartilhados.
E, sobretudo, às centenas de autores citados ao longo das páginas seguintes. Minhas
pegadas só foram possíveis porque encontrei pistas e veredas abertas ao longo do caminho. A
tod@s eles, a mais sincera gratidão e respeito.
SOBRE CALÇAS E BERMUDAS

Erro de Português
Quando o português chegou/ Debaixo de uma bruta chuva/ Vestiu o índio / Que pena!
Fosse uma manhã de sol/ O índio tinha despido/ O português.
(Oswald de Andrade)

Na Europa Medieval, confeccionavam-se calças.

E lá, como tais, eram usadas para aquecer populações com invernos por vezes bem
rigorosos. Certo dia, as vestimentas foram trazidas para o Brasil em navios portentosos. Mas
o povo daqui vivia nu, sob um sol majestoso de janeiro a janeiro.

Por que usá-las?

Porque a “civilização” não podia mais nos escapar. Havíamos sido, enfim, descobertos.
Porém, o Sol tropical – alheio - teimava em ser incauto e inculto por estas terras, torrando
raios de vida e suor.

O povo, então, teve uma ideia: por que não dobrar as calças até as coxas?

Deste modo, o seu uso se adequaria às novas necessidades, ao novo tempo, ao novo lugar.
Assim foi feito e por muito tempo não houve sujeito, moça ou curumim qualquer que, ao
vestir as calças, não teimasse em dobrá-las acima dos joelhos.

E a calça, enfim, virou bermuda. Pelo menos assim o povo dizia.


E vestia. E usava.

Restou-me, todavia, uma dúvida: daqui a alguns séculos, como o povo do futuro olhará para
este objeto? Seria uma calça? Ou uma bermuda?
Ou ainda uma calça-bermuda?

Que o senhor ou a senhora me responda, por favor!

Pois foi assim que tudo começou...


AMORIM, Humberto. Da Península Ibérica Medieval ao século XVII: a chegada e a difusão
dos cordofones de cordas dedilhadas no Brasil. 2015. Tese (Doutorado em Música) –
Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro.

RESUMO

A tese busca revelar parte dos contextos históricos e socioculturais que envolvem a
chegada e a difusão dos cordofones de cordas dedilhadas no Brasil, abarcando uma faixa
temporal e geográfica que vai da Península Ibérica Medieval ao século XVII brasileiro. O
objetivo é não somente desvelar os personagens, os usos e as imagens simbólicas que
envolveram tais instrumentos musicais neste ínterim, mas também reconhecer quais destas
práticas foram abandonadas (e por qual razão) e quais tiveram desdobramento naquelas que
reconhecemos hoje como práticas correntes (sobretudo do violão) e que foram herdadas a
partir desta tradição. Também é proposto um amplo estudo sobre os problemas terminológicos
que ora limitam o corpus lexical e o alcance/ análise das fontes e ora associam ou distanciam
instrumentos a partir de critérios minimamente fundamentados. A base documental utilizada
se concentra em dicionários históricos, registros iconográficos e exemplos musicais, métodos
e tratados de música antigos, relatos de colonizadores e viajantes, testamentos e inventários,
na documentação jesuítica e de outras ordens religiosas, além da literatura estrangeira e
brasileira que foi possível reunir ao longo dos últimos anos. O referencial teórico se baseia em
alguns dos teóricos que mais têm alicerçado recentes pesquisas sobre historiografia cultural,
dentre eles Chartier (1995, 2002), Bourdieu (1992, 1996, 2002), Foucault (2003), Certeau
(1982), Bloch (2001), Le Goff (1996, 2001) e Catroga (2001).

Palavras-chave: Cordofones no Brasil. Violão. Séculos XVI e XVII.


AMORIM, Humberto. From the Medieval Iberian peninsula to the XVII century: the arrival
and diffusion of the chordophones of strumming strings in Brazil. 2015. Doctoral Thesis
(Doutorado em Música) – Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes,
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

ABSTRACT

This Thesis aims to reveal some of the historical and sociocultural context that involves
the arrival and diffusion of the chordophones of strumming strings in Brazil, covering a
temporal and geographical frame that goes from the Medieval Iberian peninsula to the
Brazilian’s XVII century. The goal is not only to unveil the characters, the application and the
symbolical images that involves these musical instruments in this timeframe, but also
recognize which of these practices were abandoned (and for what reason) and which had an
outspread in what today we recognize as current practices (specially of the guitar) that were
inherited from this tradition. It is also suggested a broad study of the terminological problems
that sometimes limits the lexical corpus and the reach/ analysis of the sources, and sometimes
links or unbinds instruments according to criteria that are minimally reasoned. The utilized
documentary basis concentrates in historical dictionaries, iconographic records and musical
examples, antique musical methods and treaties, reports of colonizers and travelers,
testaments and inventories, the Jesuit's and other religious orders’ documentation, aside from
the foreign and Brazilian literature that were possible to gather along the last years. The
theoretical references are based on some of the theoreticians who have founded more recent
research about the cultural historiography, including Chartier (1995, 2002), Bourdieu (1992,
1996, 2002), Foucault (2003), Certeau (1982), Bloch (2001), Le Goff (1996, 2001) and
Catroga (2001).

Keywords: Chordophones in Brazil. Classical Guitar. Sixteenth and Seventeenth Centuries.


LISTA DE FIGURAS, TABELAS E EXEMPLOS MUSICAIS

Figura 1: Exemplo de Spike bowl lutes: Rebab (pré-1898) da Tunísia, norte da África...........24
Figura 2: Exemplar de um alaúde do século XVI.....................................................................36
Figura 3: Guitarra no Syntagma Musicum................................................................................39
Figura 4: Cordofones de cordas dedilhadas mencionados no Syntagma Musicum...................40
Figura 5: Vihuela de sete ordens publicada no livro Declaración de Instrumentos.................42
Figura 6: Barbitos de Terpandro...............................................................................................46
Figura 7: Cítara etrusca.............................................................................................................50
Figura 8: Cítola reproduzida no livro Syntagma Musicum, de Michael Praetorius..................60
Figuras 9 e 10: Exemplos de pandora e kuitra árabe..........................................................72/73
Figuras 11 e 12: Códices 05 e 08 das Iluminuras do Cancioneiro da Ajuda............................94
Figura 13: Mouro muçulmano e europeu cristão tocando um cordofone.................................95
Figura 14: Divisas da Península Ibérica....................................................................................96
Figuras 15 e 16: Exemplos de cordofones de cordas dedilhadas medievais...........................111
Figuras 17 e 18: Códices 05 e 10 das Iluminuras do Cancioneiro da Ajuda..........................124
Figuras 19 e 20: Miniaturas das Cantigas de Santa Maria.....................................................127
Figuras 21 e 22: Códices 11 e 12 das Iluminuras do Cancioneiro da Ajuda..........................128
Figuras 22 e 23: Códices 16 e 07 das Iluminuras do Cancioneiro da Ajuda..........................129
Figura 24: Códice 13 das Iluminuras do Cancioneiro da Ajuda.............................................129
Figura 25: Viola de cinco ordens de Belchior Dias (1581).....................................................163
Figura 26: Trecho específico onde o embarque de instrumentos musicais nas naus de Pedro
Álvares Cabral é mencionado por João de Barros..................................................................168
Figura 27: Excerto da publicação de João de Barros..............................................................150
Figura 28: Igreja jesuítica na antiga Aldeia de Reritiba..........................................................200

Tabela 1: Linha genealógica do violão realizada a partir das definições do sistema Hornbostel
& Sachs.....................................................................................................................................25
Tabela 2: Genealogia direta da língua portuguesa....................................................................30
Tabela 3: Esquema simplificado de possíveis correspondências entre cordofones em
diferentes línguas......................................................................................................................67
Tabela 4: Quadro de possíveis correspondências dos vocábulos alaúde, guitarra e viola........88
Tabela 5: Lista das instrumentações com guitarra e os seus personagens nas iluminuras do
Cancioneiro da Ajuda.............................................................................................................123
Tabela 6: Cordofones de cordas dedilhadas citados nos inventários e testamentos do Cartório
de Órfãos da Vila de São Paulo entre 1599 e 1705..........................................................189/190

Exemplo musical 1: Afinação da cithara ou cítola segundo Pedro Cerone, em Melopeo


(1613)........................................................................................................................................51
Exemplo musical 2: Excerto do Sarambeque (1916) de Ernesto Nazareth............................263
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO _________________________________________________________________ 12

CAPÍTULO I: PROBLEMAS TERMINOLÓGICOS E AMPLIAÇÃO DO CORPUS LEXICAL


_______________________________________________________________________________ 20

1.1 Os cordofones de cordas dedilhadas: identificando o objeto de estudo _______________________ 20


1.2 Problemas terminológicos: as línguas-mãe da língua-mãe _________________________________ 28
1.3 Os berços dos problemas terminológicos _______________________________________________ 31
1.4 Os cordofones poliglotas e a ampliação do corpus lexical __________________________________ 34
1.4.1 Latim ___________________________________________________________________________ 45
1.4.2 Galego-Português. _________________________________________________________________ 57
1.4.3 Castelhano._______________________________________________________________________ 61
1.4.4 Outros idiomas estrangeiros _________________________________________________________ 69
1.4.5 Tupi-guarani _____________________________________________________________________ 74
1.4.6 Português arcaico: o vocábulo descante ________________________________________________ 83
CAPÍTULO II: CORDOFONES DE CORDAS DEDILHADAS NA PENÍNSULA IBÉRICA
MEDIEVAL ____________________________________________________________________ 90

2.1 Relativizando o mito da origem _______________________________________________________ 90


2.2 Os conflitos medievais na Península Ibérica_____________________________________________ 95
2.3 A documentação medieval sobre cordofones na Península Ibérica __________________________ 98
2.3.1 Jograis, trovadores, soldadeiras e segréis: os personagens e as práticas ______________________ 103
2.3.2 Os cordofones de cordas dedilhadas nos cancioneiros medievais __________________________ 113
2.3.3 As iluminuras do Cancioneiro da Ajuda e das Cantigas de Santa Maria _____________________ 120
2.4 Outras fontes sobre os cordofones na literatura ibérica medieval __________________________ 131
CAPÍTULO 03: A CHEGADA DOS CORDOFONES DE CORDAS DEDILHADAS NO
BRASIL ______________________________________________________________________ 140

3.1 As fontes: uma introdução __________________________________________________________ 140


3.2 Os cordofones de cordas dedilhadas em Portugal – séculos XV e XVI ______________________ 144
3.3 1500-1550: Os primeiros vestígios de práticas musicais no Brasil __________________________ 163
3.4 1550-1600: Os missionários jesuítas e os novos viajantes _________________________________ 172
3.4.1 Os cordofones de cordas dedilhadas na documentação jesuíta _____________________________ 174
3.5 Sínteses das atividades envolvendo cordofones no Brasil do século XVI _____________________ 185
CAPÍTULO 04: DIFUSÃO, DANÇAS E SIMBOLISMOS ____________________________ 188

4.1 Os inventários e testamentos ________________________________________________________ 188


4.2 As práticas musicais em capelas rurais e fora dos ambientes jesuíticos _____________________ 193
4.3 A documentação jesuítica e de outras ordens religiosas __________________________________ 199
4.4 Gregório de Matos: o “Boca do Inferno” ______________________________________________ 207
4.4.1 Os cordofones de cordas dedilhadas na literatura de Gregório de Matos _____________________ 210
4.5 Os bailes, danças, ritmos, peças e gêneros no Brasil dos anos seiscentos e setecentos __________ 227
4.5.1 A viola e os seus artefatos _________________________________________________________ 267
5. CONCLUSÕES ______________________________________________________________ 274

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ___________________________________________ 277

6.1 Endereços eletrônicos citados: _______________________________________________________ 288


12

INTRODUÇÃO

No séc. XIX, ao princípio era o documento; hoje, ao princípio é o problema.


(Glénisson) 1

Boa parte dos estudos sobre as trajetórias do violão no Brasil tem baseado seu ponto
de partida em alguns questionamentos primevos: onde começam as nossas histórias? Onde
identificar o recorte primeiro? O início? 2
Tentaremos, curiosamente, fazer o caminho inverso. Partindo do “fim” para o
“começo”, a fagulha para as linhas que se seguirão advém do seguinte dilema: há razões
para estudar as práticas sociais 3 em torno dos cordofones relacionados historicamente ao
violão nos primeiros séculos da colonização portuguesa no Brasil? Ou, em outras palavras,
é possível aprender algo sobre o violão de hoje olhando para um passado tão remoto? 4
Buscar o elo perdido através das descrições físicas/ sonoras e histórias individuais/
isoladas dos instrumentos parece um exercício dantesco e inesgotável que não nos levaria
aos meios/ fins que buscamos. O que propomos, ao contrário, é revelar os discursos e os
contextos que foram ora moldando e ora transformando o lugar social que o violão e seus
predecessores ocuparam no Brasil entre os séculos XVI e XVII. E, a partir deles, justificar
e compreender, inclusive, algumas de suas mudanças físicas e sonoras.
Apenas descortinando os personagens, os seus discursos, as suas ferramentas e as
suas lutas dentro do campo simbólico é que poderemos, quem sabe, encontrar as respostas

1
In: Furet, 1974, 53.
2
“O violão de seis cordas simples surgiu na Europa no fim do século XVIII. Chegou ao Brasil no começo do
século XIX, fator que levamos em conta para delimitar o início da pesquisa.” (Taborda, 2011, 10); “O violão,
mundialmente conhecido por guitarra e denominado viola em Portugal, chegou ao Brasil no período colonial
trazido pelos jesuítas e colonos portugueses.” (Alfonso, 2009, 19); “A viola, instrumento de 5 cordas duplas,
precursor do violão e popularíssima em Portugal, foi introduzida no Brasil pelos jesuítas portugueses, que a
utilizavam na catequese.” (Dudeque, 1994, 101)
3
Práticas Sociais. Expressão tomada a partir da acepção de Bourdieu: “O conceito central de Bourdieu para
explicar o modo como a prática social existe é o de habitus, [...] um conjunto de esquemas pré-reflexivos
(disposições) de percepção, apreciação e antecipação que foram produzidos no agente social. Estes esquemas
são o resultado de um trabalho de inculcação pela prática (ver fazer e fazer acompanhando os que sabem
fazer) em que o agente social interioriza, de modo sistemático e coerente, as estruturas das relações de poder,
a partir do lugar e da posição que nelas ocupa, e exterioriza em práticas as disposições (os esquemas pré-
reflexivas estruturados) que antes interiorizou [Bordieu, 2002, 163-164; 182]. No entanto, a prática não é
produto da estrutura presente mas antes ‘uma relação dialética entre a estrutura interiorizada pela história do
grupo ou da classe social (habitus) e a estrutura social presente’ [Bordieu, 2002, 166-167]. A eventual
defasagem entre uma e outra implica a necessidade de improvisação social, não se podendo repetir
mecanicamente o que foi praticado no passado [Bordieu, 2002, 178-179].” (Caria, 2003, 34)
4
“Em primeiro lugar, a história não seria mais entendida como uma ‘ciência do passado’, uma vez que,
segundo Bloch, ‘passado não é objeto de ciência’. Ao contrário, era no jogo entre a importância do presente
para a compreensão do passado e vice-versa que a partida era, de fato, jogada.” (Schwarcz in Bloch, 2001, 7
[apresentação à edição brasileira])
13

(ou melhor, as perguntas) que justificam as transformações e posições diversas que tais
instrumentos ocuparam em um tempo, espaço e lugar social.
Por que determinados cordofones se equivaliam socialmente em um dado momento e
passaram a se distinguir em outro? Quais fatores justificam o abandono de alguns
instrumentos musicais e suas práticas e o abraço de outros? Quais foram os personagens e
os ambientes (condições socioculturais) de tais transformações?
Desvelar quais os processos silenciosos dentro das lutas de campo (as relações de
trocas simbólicas, poderes, representações culturais, etc) 5 que levaram alguns destes
instrumentos a ter papéis diferentes e a se distinguir socialmente uns dos outros com o
passar do tempo pode, talvez, nos ensinar mais sobre eles do que fichas terminológicas
“desencarnadas”. É neste sentido que procuraremos considerar os exemplares de
instrumentos antigos, os registros iconográficos, as tablaturas e/ ou partituras apenas como
meios para alcançar o verdadeiro objetivo central da pesquisa: posicionar socialmente os
cordofones no Brasil entre os séculos XVI e XVII.
Para tal propósito, é preciso ter em mente que meios são caminhos. E, inversamente,
caminhos também são meios. Nada, portanto, deve ser tomado como fim (ou resposta
definitiva) em uma pesquisa de tal amplitude e natureza. Por isso mesmo, não será nosso
intuito desenvolver metodologias ou modelos específicos para a análise de cada um dos
parâmetros que abordaremos (o iconográfico, o etnográfico, o repertório, etc.), mas apenas
recolher, a partir deles, os vestígios necessários para compreendermos o papel social dos
instrumentos musicais abordados e dos personagens que os utilizavam.
Veremos que mesmo os “esquecimentos” da história são, na verdade, escolhas e
representações de poder (es). Não podemos negar que o exercício musicológico verdadeiro

5
Trocas simbólicas. Campos simbólicos. Em Economia das Trocas Simbólicas, Bourdieu direciona os seus
estudos para as formas de dominação, (sobretudo as simbólicas) existentes nas sociedades, ou seja, os
mecanismos de reprodução social que tem por objetivo legitimar os grupos dominantes. Para tanto, ele
descreve um campo simbólico (discursos, mensagens e representações que nada mais são do que alegorias
que simulam a estrutura real de relações sociais) e afirma ser necessário ligar o conhecimento da organização
interna deste campo a uma percepção de sua função ideológica e política, o que revelaria, em última
instância, que o sistema de dominação vigente se funda a partir de uma ordenação arbitrária. Assim, a
organização e a fixação de um consenso a respeito das relações sociais representaria, antes de tudo, uma
função lógica necessária que permite à cultura dominante, em uma determinada conjuntura social, legitimar e
sancionar um dado regime de dominação. No campo simbólico, portanto, o que entra em cena é o poder
político e ideológico cujas relações de força, mediadas por sistemas simbólicos muitas vezes irreconhecíveis,
encobrem as condições objetivas e as bases materiais sobre as quais se sustentam tais discursos de poder.
(Bourdieu, 1992)
14

deve nos apontar, fundamentalmente, para o que está circunscrito no silêncio, no oculto, na
pedra angular rejeitada. 6
Tal perspectiva exige uma mudança de olhar sobre os cordofones de cordas
dedilhadas: o trabalho (vital) para esclarecer eventuais diferenças físicas, estruturais ou
sonoras só será aqui explorado quando se prestar ao propósito maior (para a pesquisa) de
reconhecer quais os lugares sociais que ocupavam tais instrumentos e a quais propósitos
(discursos) socioculturais serviam. Eis a engrenagem que nos impulsionará a partir,
sobretudo, do segundo capítulo e que, de certa forma, também justifica a abstração e a
análise lexical que faremos no primeiro.
Desde o pontapé inicial, deve estar claro que o que mais nos interessa não é datar
onde está o começo e tampouco onde será o fim. Pelo contrário, são justamente os
processos socioculturais entre os eventuais recortes que nos movem. A areia movediça
sobre a qual se encontram adormecidos não somente a construção dos usos, regras e
costumes em torno de um determinado objeto social, mas sobretudo os desdobramentos
que tornaram possíveis eleger historicamente determinadas práticas, abandonar outras, ou
ainda transformar algumas delas em novas práticas.
Se encontrarmos, no plano das hipóteses, razões que justifiquem minimamente a
empreitada, poderíamos ainda nos fazer uma arguição subsequente: é possível identificar
alguns dos vestígios sobre os cordofones no Brasil na esteira dos últimos cinco séculos
passados? Se sim, como descortinar os documentos que tão pouco nos deixam saber sobre
os papeis desempenhados por este(s) instrumento(s) - o plural logo será justificado – no
raiar da cultura e sociedade brasileira pós-descobrimento? E, não obstante, como interrogar
tais fontes? 7
Não à toa começamos esta aventura com tantas perguntas difíceis e improváveis
futuras respostas. Contrariar a busca pela gênese mágica do princípio 8 nada mais é do que

6
Ao comentar as predisposições que condicionam os indivíduos a escolher o seu passado, Fernando Catroga
sugere que a memória não seria mais do que um “processo psicológico” que vem sempre acompanhado “pelo
que se olvida, pois, quer se queira quer não, escolher é também esquecer, silenciar e excluir” (Catroga, 2001,
26). E vai além quando afirma que “a convocação do acontecido não é escrava da ordenação irreversível,
causal ou analógica em relação ao presente. Os seus nexos são ditados por afinidades eletivas, e estas
determinam que cada presente construa a sua própria história, não só em função da onticidade do que
ocorreu, mas também das necessidades e lutas do presente”. (Ib., 22)
7
Afinal, “nenhum objeto tem movimento na sociedade humana exceto pela significação que os homens lhe
atribuem, e são as questões que condicionam os objetos e não o oposto” (Le Goff in Bloch, 2001, 8
[prefácio])
8
“É necessário desmistificar a instância global do real como totalidade a ser restituída.” (Foucault, 2003,
329). “Para seu ‘grande desespero, os homens não costumam mudar de vocabulário a cada vez que mudam
de hábitos’. Essa concepção do tempo implica a renúncia ao ‘ídolo das origens’, ‘à obsessão embriogênica’, à
15

lembrar que o início de algo sempre remete a outro mais longínquo, que sempre remete a
outro, e outro... E que dentro da esfera de um “início”, há múltiplos e paralelos outros
possíveis “inícios”. Assim, nada nos resta além do que um limitado olhar sobre a jornada.
A Espiral Eterna (1971), título de uma das mais conhecidas peças para violão do
cubano Leo Brouwer (1939), nomina bem o labirinto sem fim que sempre conecta algo a
algo e relativiza as dimensões passado, presente e futuro. Nada, tampouco um instrumento
musical, poderia ter uma existência “desencarnada” 9 no tempo e no espaço. E Certeau já
antevira que o gesto do historiador é aquele que conduz as ‘ideias’ aos lugares (1982). E,
porque não dizer, os lugares aos seus (e outros) lugares.
É impossível, por isso, precisar exatamente onde começa a história do violão
brasileiro. Contudo, é mais tangível (e talvez mesmo necessário) investigar em que
circunstâncias sociais e condições de possibilidade se moldaram as práticas de séculos
passados 10 e, sobretudo, em quais pontos seus desdobramentos nos aproximam (ou não) de
nossas ferramentas correntes.
Partindo de tal pressuposto, nossa pesquisa se divide em três objetivos primordiais:
1) Reconhecer como chegaram e se difundiram os cordofones de cordas dedilhadas
ocidentais no Brasil entre os séculos XVI e XVII;
2) Compreender as razões (condições de possibilidade) que, por um lado, levaram
tais instrumentos musicais a ter alguns das suas práticas abandonadas, e, por outro, a
encontrar ressonância nos hábitos que conhecemos e praticamos ainda hoje no violão.
3) Finalmente, para além de estudar quais eram efetivamente os cordofones de cordas
dedilhadas a que se referiam os viajantes e pesquisadores entre os séculos XVI e XVII,
revelar quais os papeis que tais instrumentos representavam a partir de suas práticas: em
que mãos estavam, a quais discursos serviam, qual o seu lugar nas trocas de representações
simbólicas e lutas de poder dentro do campo musical e social.
São propósitos que se remetem tanto ao que permaneceu quanto ao que foi
“esquecido”: duas faces aparentemente opostas, mas igualmente solidárias na construção
de qualquer discurso ou escolha histórica.

ociosa ilusão segundo a qual ‘as origens são um começo que se explica’, à confusão entre ‘filiação’ e
‘explicação’.” (Le Goff in Bloch, 2001, 24 [prefácio])
9
“A crítica indica bem o perpétuo mal-estar dos historiadores perante uma história da filosofia [e, porque não
dizer, uma história da música] que postula a liberdade absoluta da criação intelectual, totalmente desligada
das suas condições de possibilidade, e a existência autônoma das ideias, deslocadas dos contextos onde são
elaboradas e onde circulam” (Chartier, 2002, 70)
10
“O passado surgiu ali, inicialmente, como o ‘ausente’. O entendimento da história está ligado à capacidade
de organizar as diferenças ou as ausências pertinentes e hierarquizáveis porque relativas às formalizações
científicas atuais” (Certeau, 1982, 89)
16

Eis a nossa pedra (ou recorte) fundamental, embora reconheçamos, desde já, a
irredutibilidade das práticas aos discursos. 11 Em um levantamento como o proposto, “a
formalização da pesquisa tem, precisamente, por objetivo produzir ‘erros’ – insuficiências,
falhas - cientificamente utilizáveis” (Certeau, 1982, 85). Por conseguinte, o objetivo
primordial não será sempre responder ou esclarecer as questões. Antes, na verdade,
suscitá-las.
Isto posto, podemos partir para as indagações seguintes: há documentos, fontes
primárias e pesquisas suficientes para nos sugerir um panorama sobre as práticas dos
cordofones nos primeiros séculos pós-descobrimento? E, se sim, sobre quais grupos,
lugares e/ ou relações de poder elas estão relacionadas e foram constituídas?
A busca por tais respostas deveria necessariamente passar por duas averiguações
anteriores:
1) Por um lado, investigar as práticas musicais dos autóctones que aqui viviam antes/
durante a chegada de Pedro Álvares Cabral (1467/1468-1520) e se alguma espécie de
cordofone já pertencia aos seus universos culturais. Se descobrirmos que sim, a questão
seguinte seria compreender de que modos tais instrumentos musicais se relacionaram com
os ocidentais no choque entre culturas tão distintas;
2) Por outro, poderíamos aportar com Cabral no dia 22 de abril de 1500 e, a partir da
visão eurocêntrica do descobrimento (afinal, só nos restaram os relatos dos colonizadores e
viajantes estrangeiros), procurar desvelar quais práticas musicais foram trazidas e
estimuladas pelos portugueses nas inóspitas (para eles) terras de Vera Cruz. Para tanto, é
também necessário examinar as pegadas destes instrumentos na Península Ibérica,
especialmente em Portugal (algo realizado no segundo e terceiro capítulos).
Mas como analisar o papel da música no ambiente sociocultural dos diversos povos
indígenas que habitavam Pindorama 12 se a sua cultura era baseada na oralidade e não nos
restaram nem relatos escritos diretos e nem tampouco exemplares de instrumentos do
período sobre o qual encetamos nossa pesquisa? De antemão, uma limitação se anuncia:
tudo o que sabemos sobre a prática musical dos nossos primeiros habitantes, os índios, nos
foi legado pelos colonizadores portugueses e/ ou por viajantes estrangeiros. E depois do

11
“Toda análise cultural deve levar em conta esta irredutibilidade da experiência ao discurso, resguardando-
se de um uso incontrolado da categoria de texto, indevidamente aplicada às práticas (ordinárias ou rituais)
cujas táticas e procedimentos não são, em nada, semelhantes às estratégias produtoras dos discursos”
(Chartier, 1995, 189)
12
Palavra derivada do Tupi-guarani e que significa “Terra das Palmeiras”. Era a designação pela qual os
índios se referiam às terras brasileiras antes do descobrimento.
17

ano de 1500. Tal fato nos será decisivo para o posterior e necessário relacionamento dos
discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. 13
Em contrapartida, a partir desta data e mais especialmente a partir da segunda metade
do século XVI, sob a ótica dos colonizadores portugueses (e também dos viajantes de
outras nações) nos foi legada uma documentação que, se não farta, pelo menos nos sugere
o vulto dos universos simbólicos aos quais estava associada a música em solo brasileiro
neste período. E sobre o nosso objeto de estudo inicial - os cordofones cujas práticas
podem ser relacionadas ao violão -, é possível mesmo sugerir a sua presença e algumas de
suas prováveis características desde os anos iniciais a partir do descobrimento, conforme
veremos ao longo dos capítulos.
Antes de apresentar e questionar as fontes resta ainda uma inferência: como
acabamos de expor, nossas primeiras práticas musicais documentadas se estabeleceram
principalmente a partir da relação entre colonizadores (os portugueses) e colonizados (os
índios). É sobre as práticas de tais personagens, sobre as suas relações e, mais
especificamente, sobre o papel da música nas “lutas do campo” 14, que procuraremos nos
debruçar. Somente tais veredas poderão nos levar a algumas das “leis silenciosas”
circunscritas sobre os antecedentes que calam nos discursos históricos. 15
O referencial teórico se concentrará em alguns dos teóricos que mais têm alicerçado
recentes pesquisas sobre musicologia e historiografia cultural. Dentre outros citados com
menos frequência, despontam Chartier (1995, 2002), Bourdieu (1992, 1996, 2002),
Foucault (2003), Certeau (1982), Bloch (2001), Le Goff (1996, 2001) e Catroga (2001).
Buscaremos aplicar os conceitos historiográficos de tais autores na análise das fontes
primárias (documentos, periódicos, partituras, objetos iconográficos) e também sobre os

13
“A relação que pode estabelecer-se entre lugares determinados e discursos que nele se produzem.”
(Certeau, 1982, 23)
14
“Por isso esta investigação sobre as representações supõe-nas como estando sempre colocadas num campo
de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. As lutas
de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos
quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu
domínio.” (Chartier, 2002, 17)
15
“Mas receptível é apenas a teoria que articula uma prática, a saber, a teoria que por um lado abre as
práticas para o espaço de uma sociedade e, que, por outro lado, organiza os procedimentos próprios de uma
disciplina. Encarar a história como uma operação será tentar, de maneira necessariamente limitada,
compreendê-la como a relação entre um lugar (um recrutamento, um meio, uma profissão, etc.),
procedimentos de análise (uma disciplina) e a construção de um texto (uma literatura). É admitir que ela faz
parte da "realidade" da qual trata, e que essa realidade pode ser apropriada ‘enquanto atividade humana’,
‘enquanto prática’. Nesta perspectiva, gostaria de mostrar que a operação histórica se refere à combinação de
um lugar social, de práticas ‘científicas’ e de uma escrita. Essa análise das premissas, das quais o discurso
não fala, permitirá dar contornos precisos às leis silenciosas que organizam o espaço produzido como texto.”
(Certeau, 1982, 65)
18

textos da literatura específica de violão que levantamos (revistas, artigos, teses,


dissertações, livros). A ideia central consiste, sempre, na tentativa de conduzir as ideias aos
seus lugares, revelar os contextos e, ao invés de marcar a história do violão brasileiro
apenas com cortes e recortes iniciais/ finais, priorizar o entendimento dos processos e
caminhos que os possibilitaram.
Não nos concentraremos em esmiuçar os conceitos que cooptamos, uma vez que
todos estes autores – propositadamente – foram citados na introdução. Se, com isto,
falhamos em demonstrar o caminho que procuraremos dar à pesquisa, provavelmente
também fracassaríamos na explicação dos fundamentos que nos orientam. Antes, na
verdade, intentamos que o (a) leitor (a) sinta a presença e dialogue com tais pensadores no
próprio bojo do texto (como propusemos até aqui), o que representa, sob nossa ótica, uma
forma mais efetiva de corroborar as referências teóricas.
O mesmo pressuposto se aplica também à revisão bibliográfica: centenas de autores e
documentos foram fichados e serão apresentados, interrogados e citados ao longo das
páginas seguintes, ora confrontando ou reafirmando hipóteses e ora revelando as lacunas
sobre as quais podemos nos debruçar. O propósito é fazer com que a revisão não esteja
lacrada em um item específico, de forma compacta e descontextualizada, mas sim imersa
na própria dinâmica dos apontamentos, críticas e discussões discursivas que se darão nos
capítulos.
Por tal razão, boa parte das citações de revisão bibliográfica e menções ao referencial
teórico estão concentradas em notas de rodapé, o que justifica, por um lado, a significativa
quantidade de aparições do recurso, e, por outro, o caráter mais fluido e direto que
procuramos dar ao corpo do texto.
Para a análise sobre a chegada e a difusão dos cordofones de cordas dedilhadas em
território brasileiro (o que se deu entre os séculos XVI a XVII), a base documental
utilizada se concentra em dicionários históricos, registros iconográficos e exemplos
musicais, métodos e tratados de música antigos, relatos de colonizadores e viajantes,
testamentos e inventários, na documentação jesuítica e de outras ordens religiosas, além da
literatura estrangeira e brasileira que foi possível reunir ao longo dos últimos anos. Muitas
de tais fontes são ainda inéditas ou raras e guiarão nossa aventura pelo terceiro e quarto
capítulos.
Para revelar os contextos e os discursos sobre tais objetos, documentos e
testemunhos, no entanto, é necessário mapear os traços genealógicos da herança musical
19

que nos foi legada pelos portugueses e povos da Península Ibérica em relação aos
cordofones de cordas dedilhadas. Esta será a aventura do segundo capítulo.
Mas, antes mesmo de identificar alguns dos caminhos que nos trouxeram estes
instrumentos musicais, é fundamental reconhecer sobre qual (is) objeto(s) estamos nos
referindo e como iremos classificá-los sistematicamente, propósito para o qual nos
auxiliarão as diversas publicações de Hornbostel & Sachs, além do completo estudo realizado
por Ballesté (2009). Esta será parte da aventura do primeiro capítulo.
Não obstante, é preciso enfrentar o que talvez venha sendo o maior desafio para as
pesquisas sobre o tema de um modo geral: os problemas terminológicos que ora limitam o
corpus lexical e o alcance/ análise das fontes e ora associam ou distanciam instrumentos a
partir de critérios minimamente fundamentados. Para tanto, será fundamental mergulhar no
estudo dos dicionários primevos e compreender quais idiomas participaram mais
diretamente da consolidação da língua portuguesa.
Para se ter uma breve noção do impasse, visualizemos os seguintes termos: Aláude,
barbitus, cedra, cítara, chelys, chítara, cithara, cítola, descante, fides, fidicula,
guararápeuva, guitarra, guitarra mourisca, guitarra latina, lira, lyra, séstro, testudo,
vihuela, vihuela de peñola, viola, violão, dentre tantos outros.
Agora imaginemos que todos eles (alguns tão pouco familiares a nós) guardam
relação direta com a trajetória dos cordofones de cordas dedilhadas no Brasil e são citados
nos documentos e relatos que se seguirão. Como conectar (ou desconectar) instrumentos
musicais com nomenclaturas aparentemente tão diversas?
As perguntas não são apenas aventuras. Antes, são convites para um abismo sem
fundo.

Bom mergulho... Bom voo...

E boa sorte.
20

CAPÍTULO I: PROBLEMAS TERMINOLÓGICOS E AMPLIAÇÃO DO CORPUS


LEXICAL

Guitarra. 16 Instrumento que procede da Arábia, segundo a opinião mais geral, e que
nos foi importado pelos mouros árabes procedentes da Ásia e África. As formas da
Guitarra têm sido numerosas antes de chegar ao seu estado moderno, e o mesmo
acontece com os diversos nomes que tem recebido, causando o desespero dos
musicólogos. (Pedrell, 1897, 212) 17

1.1 Os cordofones de cordas dedilhadas: identificando o objeto de estudo

Identificar o objeto de estudo a partir de um sistema não será uma proposta com
finalidade em si mesma, apenas um meio para alcançar outra hipótese mais decisiva: a de
que na transição da Idade Média para o Renascimento, na Europa e no Brasil, instrumentos
musicais diversos (e por vezes com nomenclaturas diferentes) foram entendidos
socialmente como um único instrumento, uma vez que representavam e desempenhavam
os mesmos papeis sociais. Ou que, na via contrária, um único instrumento era entendido (e
chamado) por vários termos, uma vez que desempenhava papeis sociais variados e era
utilizado por personagens cotidianos distintos.
Assim, muito mais do que suas características ou diferenças físicas (e mesmo
sonoras), seriam as práticas sociais em torno dos instrumentos na “vida real” que os
aproximariam ou os distanciariam uns dos outros. Tal perspectiva muda completamente o
enfoque sobre os cordofones de cordas dedilhadas no Brasil entre os séculos XVI e XVII,
pois o olhar passa a se concentrar não em suas propriedades específicas e diversidades de
construção, mas sim nos fatores, circunstâncias e condições de possibilidade que levaram
tais instrumentos a ocupar (ou não) determinados espaços sociais.
Tendo isto em conta e à guisa de introdução, podemos reconhecer uma plêiade
considerável de sistemas de classificação de instrumentos musicais concebidos desde a
Antiguidade. Alguns dos mais conhecidos são:
- O grego, de Aristides Quintilianus;
- O árabe, sobre o qual pouco se sabe;

16
Termo espanhol correspondente a violão.
17
Tradução livre de: “Instrumento que procede de la Arabia, según la opinión más generalizada, y que nos
fue importado por los moros árabes procedentes de Asia y África. Las formas de Guitarra han sido
numerosas antes de llegar al estado moderno, y lo mismo los diversos nombres que ha recibido, causando la
desesperación de los arqueólogos.” (Pedrell, 1897, 212)
21

- O chinês pa yin, escrito no séc. III a.C e o mais antigo cujo conteúdo se conhece;
- O indiano, publicado em sânscrito no século IV;
- O do compositor alemão Michael Praetorius (1571-1621), descrito no II volume do
Syntagma Musicum (1618-1619);
- O do francês Marin Mersenne (1588-1648), apresentado em sua obra L’Harmonie
Universelle (1636);
- O do pesquisador e construtor de instrumentos belga Victor-Charles Mahillon
(1841-1924), redigido em seu Eléments d’acoustique musicale et instrumentale (1874);
- E finalmente o Sistema de Hornsbostel-Sachs 18, publicado no Systematik der
Musikinstrumente e no qual nos basearemos para definir/ dividir as nomenclaturas ora
empregadas aos nossos objetos de estudo.
Desenvolvido pelo erudito austríaco Erich von Hornbostel (1877-1935) e pelo
musicólogo alemão/ americano Curt Sachs (1881-1959), cujos respectivos sobrenomes
batizam o sistema de classificação, tal método foi publicado inicialmente no Zeitschrift für
Musik, em 1914, tendo acréscimos em edições posteriores (como a de 1940) e, por fim,
sendo revisado para uma versão em inglês publicada no Galpin Society Journal, em 1961,
quando ambos os autores já haviam falecido. Um dos méritos do sistema (e uma das razões
que o fez sobrepujar o de Mahillon) foi a possibilidade de seu “uso para a classificação de
instrumentos provenientes de culturas não europeias ocidentais, expandindo sua aplicação
a qualquer origem e cultura” (Moura, 2011, 19). É adotado pelo Dicionário Grove de
Música e tem sido o mais usualmente aceito e utilizado em pesquisas desta natureza. 19
Hornbostel-Sachs se baseiam, por um lado, em uma classificação inspirada no
sistema decimal de Dewey 20 (1851-1931), e, por outro, no sistema de Mahillon 21 (1841-

18
Outros importantes sistemas foram publicados posteriormente ao de Hornbostel-Sachs e merecem menção:
o do engenheiro russo naturalizado norte-americano Nicholas Bessaraboff (1894-1973), publicado no livro
Ancient European Musical Instruments, an organological study of the musical instruments in the Leslie
Lindsey Mason Collection at the Museum of Fine Arts, Boston, de 1941; o do etnomusicólogo francês André
Schaeffner (1895-1980), publicado em Origine des instruments de musique: Introduction ethnologique à
l´histoire de la musique instrumentale, de 1936; o do musicólogo alemão Hans-Heinz Dräger (1909-1968),
publicado em Prinzip einer Systematik der Musikinstrumente, de 1948; e ainda o de Olsen (1980), que
propunha a incorporação dos corpophones – categoria baseada nos sons produzidos pelo corpo humano; e o
de Dournon (1993), que procurou integrar o esquema numérico proposto por Hornbostel-Sachs com a divisão
primária sem ambiguidade proposta por Schaeffner. Para mais detalhes, conferir o item 2.2 “Agrupamentos
Hierárquicos” em (Pires Filho, 2009, 16-22) e, sobretudo, o item 1.3.2 “Organologia” em (Ballesté, 2009, 67-
74).
19
“Permanece como o método mais utilizado por profissionais de etnomusicologia e organologia para
classificar instrumentos musicais.” (Moura, 2011, 19); “O sistema mais usual (Hornsbostel e Sachs)” (Pires
Filho, 2009, 16); “O sistema de Hornbostel & Sachs é largamente utilizado em museus e bibliotecas de
música, que eventualmente fazem algumas adaptações” (Ballesté, 2009, 71).
20
“A ‘Classificação Decimal de Dewey’ (CDD ou DDC na sigla em inglês, também conhecido como
Sistema Decimal de Dewey) é um sistema de classificação documentária desenvolvido por Melvil Dewey
22

1924), concebido em 1874 e cujo critério fundamental para a divisão dos instrumentos é “o
tipo de vibração causado pelo material usado no corpo vibratório, a partir do qual o som é
produzido” (Pires Filho, 2009, 18). Em outras palavras, são os diferentes meios pelos quais
os instrumentos produzem o som que os categorizam. O fator determinante para a
classificação “se baseia na vibração do instrumento”. (Ballesté, 2009, 70).
Assim, seguindo tal princípio, Hornbostel-Sachs criaram quatro classes principais de
instrumentos musicais (e que foram ampliadas para cinco em 1940): 22
(1) 23 Idiofones; instrumentos rígidos nos quais o som se produz pela vibração do seu
próprio corpo: “a matéria do instrumento em si, devido à sua solidez e elasticidade, produz
os sons, sem a necessidade de membranas esticadas ou cordas.”; 24
(2) Membranofones; nos quais o som se produz pela contração e descontração de
uma membrana: “o som é produzido por membranas esticadas.”; 25
(3) Cordofones; nos quais as vibrações da(s) corda(s) são as responsáveis pela
produção sonora: “uma ou mais cordas são esticadas entre pontos fixos.”; 26
(4) Aerofones; instrumento nos quais a vibração de uma coluna de ar produz o som:
“o próprio ar é o vibrador no sentido primário.”; 27
(5) Eletrofones; instrumentos nos quais o som é produzido por uma corrente elétrica.
(Sachs, 1940).
Conforme podemos constatar, os cordofones (ou cordófonos), dentro de tal sistema,
são caracterizados pela vibração de uma ou mais cordas tensionadas/ esticadas entre dois
pontos fixos e encontram-se, por sua vez, divididos em duas classes:

(1851-1931) em 1876; foi modificado e expandido ao longo de vinte e duas revisões que ocorreram até 2004”
(Moura, 2011, 19). “O sistema Dewey Decimal Classification – CDD, que pretende abarcar todas as áreas do
conhecimento, [...] é organizado hierarquicamente, de forma decimal, com base em disciplinas e
subdisciplinas divididas em dez classes principais, subdivididas em outras dez classes, que se dividem
novamente em dez classes e assim sucessivamente. [...] um sistema de classificação para livros em
bibliotecas que é utilizado até hoje.” (Ballesté, 2009, 85)
21
“Sachs e Hornbostel elogiam e tomam como ponto de partida a divisão principal dos instrumentos usada
por Mahillon, baseada nos princípios da produção do som, mas criticam a forma como foram deduzidas as
subdivisões, que são baseadas na forma de execução [que podem, em um mesmo instrumento, variar ao
longo do tempo ou serem híbridas]” (Ib., 70).
22
A quinta categoria – os eletrófonos - foi somente incluída por Sachs em 1940, no livro The History of
Musical Instruments (p. 447-467), visando atender aos instrumentos musicais cuja produção sonora se media
a partir de sinais de corrente elétrica. Já em 1937, no entanto, Francis William Galpin (1858-1945)
introduzira uma classificação, em seu livro A Textbook of European Musical Instruments, que considerava
tais instrumentos em níveis e subníveis.
23
Números que identificam as categorias dos instrumentos dentro do sistema.
24
The substance of the instrument itself, owing to its solidity and elasticity, yields the sounds, without
requiring stretched membranes or strings. (Hornbostel & Sachs, 1961)
25
The sound is excited by tightly stretched membranes. (Hornbostel & Sachs, 1961)
26
One or more strings are stretched between fixed points. (Hornbostel & Sachs, 1961)
27
The air itself is the vibrator in the primary sense. (Hornbostel & Sachs, 1961)
23

(31) Os cordofones simples ou cítaras, que detém um suporte de corda (s) único ou
um suporte de corda(s) e um ressonador que podem ser destacados um do outro sem
destruir o aparato produtor do som 28, como os berimbaus;
(32) Os cordofones compostos, que possuem um suporte de cordas e um ressonador
organicamente unidos e que não podem ser separados sem necessariamente destruir o
instrumento. 29
Na numeração, o 3 corresponde à categoria geral (3 = cordofones) e o 1 corresponde
a subcategoria (1 = cordofones simples), resultando no número 31 dentro do sistema. O
mesmo raciocínio vale para o número 32, que classifica, por consequência, os cordófonos
compostos. A cada nova subclassificação, um número é adicionado na sequência.
A partir de tais definições, não é tarefa árdua imaginar que parte considerável dos
instrumentos de cordas esteja agregada dentro dos cordofones compostos, que são
subdivididos em três classes de acordo com a forma como as cordas correm pela caixa de
ressonância: (321) Os Alaúdes 30; (322) As Harpas 31; (323) E as Harpas-Alaúdes. 32
Os Alaúdes (321) são caracterizados por ter cordas paralelas ao tampo e à caixa de
ressonância e pertencem à classe que mais nos interessa por nela estarem concentrados o
violão e boa parte dos instrumentos cujas práticas estudaremos na pesquisa. Dentro de suas
subdivisões (que são três), estão inseridos os Alaúdes com Mão 33 (321.3), nos quais as
cordas estão conectadas diretamente a uma “mão” através de um braço plano ligado à caixa
de ressonância.
Dentro das duas subclasses dos Alaúdes com Mão (321.3), por sua vez, estão os
Spike Lutes (321.31), nos quais a “mão” do instrumento perpassa a sua caixa de
ressonância:

28
Simple chordophones or zithers (31) – The instrument consists solely of a string bearer, or of a string
bearer with a resonator which is not integral and can be detached without destroying the sound-producing
apparatus. (Hornbostel & Sachs, 1914, 22)
29
Composite chordophones (32) – A string bearer and a resonator are organically united and cannot be
separated without destroying the instrument. (Hornbostel & Sachs, 1914, 22)
30
Lutes (321) – The plane of the strings runs paralell with the sound-table. (Hornbostel & Sachs, 1914, 22)
31
Harps (322) – The plane of the strings lies at right angles to the sound-table; a line joining the lower ends
of the strings would point towards the neck. (Hornbostel & Sachs, 1914, 23)
32
Harp lutes (333) – The plane of the strings lies at right angles to the sound-table; a line joining the lower
ends of the strings would be perpendicular to the neck. Notched bridge. (Hornbostel & Sachs, 1914, 23)
33
Handle Lutes (321.3) - The string bearer is a plain handle. Subsidiary necks, as e.g. in the indian
prasarini vina are disregarded, as are also lutes with strings distributed over several necks, like the
harpolyre, and those like the Lyre-guitars, in which the yoke is merely ornamental. (Hornbostel & Sachs,
1914, 22)
24

Figura 1 – Exemplo de Spike bowl lutes: Rebab (pré-1898) da Tunísia, norte da


África. Fonte: University of Michigan, Ann Arbor, Michigan.

E também os Alaúdes com Braço 34 (321.32), nos quais o braço é conectado ou


esculpido a partir da caixa de ressonância, como um pescoço. Nestes, finalmente, estão
inseridos os Alaúdes ou Guitarras com Braço e Caixa de Fundo Plano 35 (321.322), nos
quais há “uma caixa de ressonância constituída por um tampo inferior e outro superior,
unidos por uma lateral de madeira (costilha, [também chamada de ilharga])” 36 (Ballesté,
2009, 131). Eis, portanto, a subclasse na qual se inserem o violão (guitarra), a viola de
arco, o violino, dentre outros instrumentos.
É preciso ressaltar que, no Brasil, recorrentemente os violões e seus familiares mais
próximos são classificados como instrumentos de cordas dedilhadas 37 (em oposição aos
instrumentos de cordas friccionadas) na quase totalidade das pesquisas e livros sobre o
tema. Tais divisões se referem às diferentes maneiras pelas quais os instrumentos são
executados (suas formas de execução).

34
Necked Lutes (321.32) – The handle is attached to or carved from the resonator, like a neck. (Hornbostel
& Sachs, 1914, 23)
35
Necked box lutes or necked guitars (321.322) - NB Lutes whose body is built up in the shape of a bowl are
classified as bowl lutes. Violin, Viol, Guitar (Hornbostel e Sachs, 1914, 23).
36
“Nessa classe se incluem a viola e a guitarra, mas não o alaúde tradicional, pois este se encaixa na classe
alaúdes arcados com braço e corpo em forma de meia esfera.” (Ballesté, 2009, 131).
37
Terminologia tal usual que nomina o departamento 03 da Escola de Música da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), na qual lecionamos: Departamento de Arcos e Cordas Dedilhadas. Notem como a
contraposição entre “Arcos” (instrumento de cordas friccionadas) e “Cordas Dedilhadas” explicita a
nomenclatura mais corrente no Brasil.
25

Como já observado, este não foi um dos critérios primordiais adotados por
Hornbostel & Sachs, que inicialmente se alicerçam nos meios pelos quais os corpos
sonoros vibram para dividir as cinco classes principais e, depois, em aspectos da
constituição física dos instrumentos para dividir as subclasses e os seus respectivos níveis.
Se, até aqui, não há remissão direta ao número de cordas e à afinação para a
classificação dos instrumentos, pelo menos os autores não desconsideraram as formas de
execução em seu sistema, criando um numeral sufixo que pode ser adicionado a qualquer
divisão dentro da classe dos cordofones. O número correspondente aos instrumentos
tocados com o dedo (os de “cordas dedilhadas”), por exemplo, é o cinco (5). 38
Com tais informações, agora podemos apresentar uma linha genealógica para nos
auxiliar a compreender a numeração e o posicionamento do violão dentro do sistema
Hornbostel & Sachs. Os destaques em negrito representam os numerais correspondentes à
especificação de cada classe/subclasse:
(3) CORDOFONES;
(32) CORDOFONES COMPOSTOS;
(321) ALAÚDES;
(321.3) ALAÚDES COM MÃO;
(321.32) ALAÚDES COM BRAÇO;
(321.322) ALAÚDES OU GUITARRAS COM BRAÇO E CAIXA;
(321.3225) ALAÚDES OU GUITARRAS COM BRAÇO E CAIXA TOCADOS COM OS
DEDOS (EX: VIOLÃO).
Tabela 1: Linha genealógica do violão realizada a partir das definições do sistema Hornbostel & Sachs. 39

38
Suffixes for use with any division of this class (chordophones): - 4 sounded by hammers or beaters; - 5
sounded with the bare fingers; - 6 sounded by plectrum; - 7 sounded by bowing; - 71 with a bow; - 72 by a
wheel; - 73 by a ribbon [band]; - 8 with keyboard; - 9 with mechanical drive. (Hornbostel e Sachs, 1914, 23-
24).
39
Para um estudo complementar do sistema Hornbostel & Sachs, recomendamos a visita ao sítio eletrônico:
http://www.wesleyan.edu/vim/svh.html
Acesso em 05/12/2013, às 16h45min.
Nele, é possível ter acesso ao texto/tabela da revisão do sistema Hornbostel & Sachs publicada em 1961, em
inglês, no Galpin Society Journal, uma referência importante para quem desejar conhecer as definições
originais (e boa parte delas exemplificadas) de todas as classes e subclasses. Também recomendamos a
leitura dos capítulos I e III da tese de doutorado da pesquisadora Adriana Ballesté: Proposta de organização
conceitual de instrumentos musicais de cordas dedilhadas luso-brasileiros no século XIX (2009), com
referências completas expostas na bibliografia. É a pesquisa mais completa sobre terminologia, organologia e
definição de conceitos envolvendo cordofones já realizada no Brasil. Nela, a autora apresenta um mapa
conceitual da família dos cordofones que pode complementar a análise feita por nós aqui, uma vez que inclui
também outras classes/subclasses e os seus respectivos critérios de divisão dentro do sistema de Hornbostel
& Sachs (Ballesté, 2009, 107). A autora também propõe fichas terminológicas para instrumentos de cordas
dedilhadas às quais recorreremos algumas vezes, já que muitos dos instrumentos abordados pela
pesquisadora no séc. XIX são também os pesquisados por nós a partir do século XVI.
26

Com isso, chegamos ao ponto que nos interessa e que justifica a nomenclatura que
adotaremos a partir de agora na pesquisa. Nas ocasiões em que nos referirmos ao nosso
objeto de estudo, utilizaremos a expressão cordofones de cordas dedilhadas, cuja
linhagem se insere, dentro do sistema de Hornbostel & Sachs, na família dos cordofones
(03) e, mais especialmente, dentre os instrumentos que estão concentrados na subclasse dos
“alaúdes ou guitarras com braço e caixa tocados com os dedos” (321.322.5), ou seja, que
possuem uma caixa de ressonância constituída por dois tampos (um inferior e outro
superior), unidos por uma lateral de madeira (ilharga) e/ou que apresentam um formato de
oito e/ou pera.
Reconhecer a linhagem do violão e de seus familiares próximos dentro do sistema
mais usual não significa, todavia, que as problemáticas terminológicas estejam plenamente
resolvidas. O próprio Sachs reconheceria a impossibilidade de uma classificação
completamente lógica e consistente como a das plantas e dos animais (Sachs, 1968). 40
Muitos dos instrumentos que iremos mencionar e relacionar por algum motivo ao
violão e à viola dedilhada, por exemplo, não estão inseridos dentro dos alaúdes ou
guitarras com braço e caixa. Alguns tampouco dentro dos alaúdes. E uma minoria não
pertence nem à classe dos cordofones. Então, como conectar em uma pesquisa tantos
instrumentos diversos em sua natureza conceitual?
A pergunta parece complexa, mas a resposta é aparentemente direta: a par de suas
famílias ou classes, o critério último para relacionar ou não os instrumentos na pesquisa
serão as práticas sociais de tais objetos na sociedade, visualizados a partir da relação de um
tempo, de um lugar e de manifestações de poder (qualidades inerentes a qualquer discurso
humano, sobretudo o histórico). 41 Intentamos, portanto, não exilá-los da prática ou
“estabelecê-los como objetos ‘abstratos’ de um saber”, mas compreendê-los a partir do
universo do seu uso (Certeau, 1982, 80).
Contudo, os argumentos que relacionam os instrumentos a partir de suas práticas
contrariam a própria essência do sistema que adotamos como parâmetro inicial: “Somente a

40
But a completely logical classification is an impossibility because instruments are the artificial
contrivances of man. They do not lend themselves to a consistent system as do plants and animals. (Sachs,
1968)
41
“Em história, é abstrata toda ‘doutrina’ que recalca sua relação com a sociedade. Ela nega aquilo em
função de que se elabora. Sofre, então, os efeitos de distorção devidos à eliminação daquilo que a situa de
fato, sem que ela o diga ou o saiba: o poder que tem sua lógica; o lugar que sustenta e ‘mantém’ uma
disciplina no seu desdobramento em obras sucessivas, etc. O discurso ‘científico’ que não fala de sua relação
com o ‘corpo’ [p. 70] social não seria capaz de articular uma prática. Deixa de ser científico. Questão central
para o historiador: essa relação com o corpo social é precisamente o objeto da história; não poderia ser
tratada sem também colocar em questão o próprio discurso historiográfico.” (Certeau, 1982, 69-70)
27

inalienável natureza de um instrumento define sua classificação, não o uso que algumas
pessoas gostam de fazer dele. Afinal, um avestruz é uma ave embora não possa voar;
mesmo um cavaleiro ocasional não se converte num cavaleiro de corrida.” (Sachs, 1942,
382). 42
O fato invalida o uso do sistema Hornbostel & Sachs na pesquisa? Ou, em
contrapartida, diminui a importância de considerar nossos objetos de estudo a partir de suas
práticas sociais?
Certamente que não, afinal, os próprios autores do método Hornbostel & Sachs
previram a incompletude de qualquer método de classificação. O sistema será decisivo
para nominar classes de instrumentos e visualizar de forma mais ampla os seus aspectos de
construção e identidade sonora. Toda vez que nos referirmos a um cordofone de cordas
dedilhadas (tangidas), por exemplo, o leitor terá, pelo menos, uma indicação geral mais
ampla sobre as suas características físicas e sobre que tipo de objeto está em cena. Neste
sentido, o sistema nos serve plenamente.
Se as relações que faremos através de suas práticas, entretanto, contrariam o próprio
método e interligam classes e subclasses distintas, ora, isto não é mais do que um exercício
historiográfico que retira dos próprios modelos a capacidade de evidenciar os desvios. 43 E
a busca pelas “diferenças” é, em última instância, um objetivo que permeará todas as
etapas e processos da pesquisa. Paradoxalmente, neste caso, as diferenças são, na verdade,
os pontos de união mais verdadeiros (ou, mais precisamente, os menos falsos).
Alaúdes, guitarras, violas, cítaras, cítolas, machetes, bandolins, harpas e todas as suas
inúmeras variantes terminológicas; ou ainda cravos, flautas, pandeiros, entre tantos
outros... Onde as práticas sociais em torno de tais instrumentos se interligarem com aquelas
que foram apropriadas no violão, sobretudo as decisivas para a construção dos conceitos
através dos quais enxergamos o instrumento hoje, elas serão postas dentro do campo
desejável de nossa pesquisa.
Somente assim, cremos, faz sentido reconstituir algumas das “pegadas” do violão no
território brasileiro: relacionando as suas práticas atuais com as antecessoras e revelando os

42
Only the inalienable nature of an instrument decides its classification, not the use that some people like to
make of it. After all, an ostrich is a bird though he does not fly anymore; nor does an occasional rider
convert him into a steed. (Sachs, 1942, 382)
43
“De seus próprios modelos ele [o historiador] obtém a capacidade de fazer aparecer os desvios. Se, durante
algum tempo ele esperou uma ‘totalização’, e acreditou poder reconciliar diversos sistemas de interpretação,
de modo a cobrir toda a sua informação, agora ele se interessa prioritariamente pelas manifestações
complexas destas diferenças. [p. 88] Deste ponto de vista, o lugar onde ele se estabelece pode ainda, por
analogia, trazer o venerável nome de ‘fato’: o fato é a diferença.” (Certeau, 1982, 87-88)
28

contextos de tais construções simbólicas não somente à luz das diferentes funções,
personagens e práticas do próprio instrumento, mas também na relação com as práticas de
outros objetos coetâneos. 44
Mas antes de mergulhar no proceloso mar que representa tal tentativa de “operação
historiográfica” (Certeau, 1982), é preciso ir aos berços de um dos maiores problemas
(senão o maior) nas pesquisas relacionadas ao tema: a profusão e a confusão terminológica
que identificam os cordofones de cordas dedilhadas no Brasil (desde o descobrimento) e na
Península Ibérica (desde a Idade Média). Uma questão que envolve não somente a
diversidade da nomenclatura em si, mas também outros fatores decisivos (as mudanças de
sentidos de tais termos ao longo dos séculos, quem os utilizou, em que circunstâncias,
como foram traduzidos, etc).
E um destes berços está irremediavelmente ligado à nossa língua-mãe. Ou, melhor
pontuando: às línguas-mães de nossa língua-mãe.

1.2 Problemas terminológicos: as línguas-mãe da língua-mãe

Veremos, mais adiante, como a Península Ibérica (faixa territorial tomada quase que
em sua totalidade pelos países de Portugal e Espanha) foi um palco efervescente para
conflitos intensos e duradouros entre povos de diferentes culturas e procedências.
Naturalmente, tais lutas não eram meramente pela soberania dos espaços e limites
geográficos, mas também pelo domínio das representações culturais (entendidas aqui como
as formas pelas quais um determinado grupo se apresenta e se modela para si e para os
outros45). Os embates e trocas representativas entre culturas distintas foram, por exemplo,
um dos aspectos mais decisivos para fomentar a criação e a circulação de cordofones
diversos em Portugal e na Espanha.
Se levarmos em conta que “o que está em jogo é uma posição de hegemonia que é,
antes de mais, a hegemonia de um léxico” (Chartier, 2002, 31), não se torna uma tarefa

44
“É possível entender esses desvios na medida em que se compreende a função de cada instrumento e suas
relações. O alaúde e a teorba são instrumentos com uma função musical muito próxima da viola e da guitarra;
a flauta é um instrumento acompanhado pela viola; a harpa, a cítara e o cravo são instrumentos de
acompanhamento que conviveram com os instrumentos de cordas dedilhadas durante o século XIX [na
verdade, como veremos adiante, desde o século XVI]. Logo, é muito compreensível que ao organizar
conceitualmente esses instrumentos apareçam conexões derivadas de suas funções (ex: instrumento de
acompanhamento) ou de características (ex: possuir cordas).” (Ballesté, 2009, 132-133)
45
“[...] de um lado, os mecanismos da dominação simbólica, cujo objetivo é tornar aceitáveis, pelos próprios
dominados, as representações e os modos de consumo que, precisamente, qualificam (ou antes
desqualificam) sua cultura como inferior e ilegítima, e, de outro lado, as lógicas específicas em
funcionamento nos usos e nos modos de apropriação do que é imposto” (Chartier, 1995, 185)
29

árdua imaginar que, na Península, um dos aspectos mais significantes das lutas de
representação tenha se dado justamente no nível da língua.
Dentre os povos que ao longo da Idade Média disputaram o poder na Península
Ibérica, indubitavelmente os romanos desempenharam um papel vital na constituição
linguística do território. A sua língua oficial era o latim, então subdividido em dois: o latim
clássico (forma escrita), corrente entre as classes dominantes e/ou os que possuíam acesso
à educação dos nobres; e o latim vulgar, mais difundido e praticado pelas classes
subalternas. 46
Como o latim vulgar era transmitido oralmente e atingia um contingente
populacional maior, tornou-se inevitavelmente a forma linguística mais sujeita e propensa
às adaptações e mutações decorrentes do contato entre os diferentes povos e as suas
respectivas culturas. A dominação romana não impediu, portanto, a mescla do latim com
os vários substratos linguísticos presentes na Península antes, durante e depois do seu
período hegemônico.
Após a era romana, veremos que os domínios peninsulares passaram também pelos
germânicos e muçulmanos (árabes/ mouros), que, embora não tenham tido o mesmo
sucesso dos romanos na imposição de suas línguas, foram povos que também contribuíram
para as transformações que ali se processaram. O caráter vívido das trocas linguísticas
originaria a criação de variados dialetos, que, de forma geral, foram denominados de
romanços. 47
Alguns destes romanços iriam pouco a pouco se sedimentar e constituir esboços de
novas línguas, baseadas, sobretudo, no tronco fundamental do latim vulgar. Eis, assim, o
cerne das línguas denominadas neolatinas ou ibero-românicas. Na Península Ibérica, como
frutos desta simbiose léxica, podemos destacar o castelhano, o catalão e o galego-
português (este último ascendência direta da língua portuguesa).

46
Tal romanização deixou marcas visíveis na cultura portuguesa, especialmente em relação à língua, uma vez
que a latina (praticada pelos romanos) foi a base para o desenvolvimento da portuguesa: “A língua
portuguesa originou-se a partir do Latim que era a língua falada na região do Lácio (atual Roma). Os
Romanos ao conquistarem as regiões próximas levavam sua cultura e sua língua: o Latim. [...] A língua
portuguesa deriva do latim vulgar [uma vez que o latim escrito era privilégio apenas dos nobres à época do
Império Romano], com a queda do Império Romano, as invasões provocaram o surgimento das variações
linguísticas, dentre elas o galego-português.” (Oliveira, 2010, 04)
47
O termo advém do latim romanice, cujo sentido significa “falar à maneira dos romanos”. Um exemplo são
os dialetos moçárabes, resultantes do contato linguístico entre o árabe (dos muçulmanos) e o latim (dos
cristãos), praticados, sobretudo, no sul da Península em meados do século XI.
Fonte: http://www.linguaportuguesa.ufrn.br/pt_2.3.php
Acesso em: 05/09/2013, às 17h01min.
30

Entre os séculos XI e XII, com o crescimento da reconquista cristã sobre os domínios


muçulmanos, o galego-português passa a ser mais escrito e falado nas áreas lusitanas
concentradas na faixa ocidental da Península, que correspondem atualmente aos territórios
de Portugal e também da Galícia (ou Galiza), na Espanha.
Durante os séculos XII e XIII, o galego-português transpassaria o seu período mais
fértil, com a escrita de algumas das mais notáveis obras da literatura medieval nesta língua,
conforme veremos a seguir. No entanto, a partir do século XIV, acentuaram-se as
diferenças entre o português praticado no sul (especialmente na região de Lisboa) e o
galego praticado no norte (mais notadamente na região da Galícia, na Espanha). 48
A fundação do Reino de Portugal, o reconhecimento de sua independência e a
estabilização das fronteiras seriam passos paulatinos até a posterior e definitiva separação
das línguas 49, fato ocorrido processualmente até o estabelecimento do português como a
língua oficial da nação portuguesa durante o reinado de D. Dinis (1261-1325). 50 Em suma,
os caminhos para tal afirmação podem ser sintetizados a partir do seguinte esquema:

LATIM VULGAR (romanos) > ROMANÇOS (dialetos oriundos das mesclas lexicais entre
povos diversos) > GALEGO-PORTUGUÊS (Galícia e Portugal) > PORTUGUÊS (Portugal)

Tabela II: Genealogia direta da língua portuguesa.

O português arcaico pode, portanto, ser dividido em dois períodos:


1) Preponderância do galego-português entre os séculos XII e XIV 51;
2) Progressiva separação entre o galego e o português entre os séculos XIV e XVI. A
partir de então – e sob a influência da literatura portuguesa renascentista (especialmente a

48
Região na qual o galego ainda é praticado como uma variante da língua espanhola.
49
“Na verdade, pode dizer-se que, paralelamente à independência do reino de Portugal, é a progressiva e
lenta deslocação do centro político da Hispânia cristã do noroeste galego-leonês para Castela (nomeadamente
após a conquista de Toledo em 1085 e, posteriormente, a conquista de Sevilha em 1248) que conduzirá
gradualmente à ruptura desta unidade, ao potenciar o desenvolvimento das duas línguas que mais
imediatamente correspondiam a entidades políticas autônomas, o Português e o Castelhano.”
Fonte: http://cantigas.fcsh.unl.pt/sobreascantigas.asp
Acesso em: 05/09/2013, às 17h06min.
50
“O latim era, aliás, não só a língua dos teólogos, mas também a dos juristas. Só a partir do reinado de D.
Dinis os documentos oficiais passaram a ser redigidos em português.” (Lemos, 1997 [1979], 11). D. Dinis,
“O Lavrador”, reinou em Portugal no ínterim compreendido entre 1279 e o ano de seu falecimento, 1325.
51
“O período que medeia entre os séculos X e XIV constitui, pois, a época por excelência do Galego-
Português. É, no entanto, a partir de finais do século XII que a língua falada se afirma e desenvolve como
língua literária por excelência, num processo que se estende até cerca de 1350, e que, muito embora inclua
também manifestações em prosa, alcança a sua mais notável expressão na poesia que um conjunto alargado
de trovadores e jograis, galegos, portugueses, mas também castelhanos e leoneses, nos legou.”
Fonte: http://cantigas.fcsh.unl.pt/sobreascantigas.asp
Acesso em: 05/09/2013, às 17h07min.
31

produção de Camões) - o português se sedimenta com a publicação das primeiras


gramáticas e dicionários 52 e começa a adquirir muitos dos traços atuais, dando início à
chamada “fase moderna” da língua (do séc. XVI em diante).
Mas por quais razões estamos tateando as pegadas de nossa língua-mãe?
A justificativa é dupla:
1) Para entender a terminologia utilizada para descrever os cordofones aparentados
ao violão no Brasil quinhentista, vamos precisar recorrer ao latim (que foi largamente
utilizado em textos oficiais e relatos jesuíticos) e aos primeiros dicionários bilíngues da
língua portuguesa, o que faremos já no próximo item;
2) Os primeiros escritos oficiais e textos literários não latinos escritos no território
peninsular foram redigidos ainda em galego-português ou castelhano, idiomas oriundos do
latim vulgar. E alguns deles são particularmente importantes por concentrarem
informações textuais e relatos iconográficos que nos remetem diretamente à prática e às
características dos cordofones de cordas dedilhadas, em Portugal e na Espanha, nos séculos
imediatamente anteriores ao descobrimento.
Por tais razões, não faria sentido remeter-se ao latim, ao castelhano, ao português
arcaico ou ao galego-português sem reconhecer, ao certo, que conexão estas línguas
apresentam com o português atual que conhecemos e praticamos. Sem isto, também não
seria possível compreender o berço dos problemas terminológicos que assolam as
pesquisas sobre a chegada e a difusão dos cordofones no Brasil.
Ao reconhecer e agregar termos de outras línguas antes desconsiderados, portanto,
poderemos, quem sabe, ter um olhar mais amplo sobre o espectro das práticas sociais em
torno de tais instrumentos musicais.
E este será o nosso próximo passo.

1.3 Os berços dos problemas terminológicos

Já observamos como a intersecção do latim com outras línguas vulgares foi decisiva
para a constituição paulatina do português enquanto idioma. Ao abordar as origens

52
Referências à Grammatica de Lingoagem Portuguesa, publicada em 1536 e de autoria do padre Fernão de
Oliveira, cuja proposta se fundava no conceito clássico de gramática: a arte de falar e escrever bem; e ao
Dictionarium ex Lusitanico in Latinum Sermonen, publicado em 1562 e de autoria do humanista Jerónimo
Cardoso (c.1500- c.1569). Este dicionário é classificado por Telmo Verdelho, catedrático da Universidade de
Aveiro, como o livro que marca “o início da dicionarização da língua portuguesa”. (Verdelho, [s.d], 3).
Publicação disponível online em: http://clp.dlc.ua.pt/Publicacoes/Dicionarios_breve_historia.pdf
Acesso em: 05/09/2013, às 17h08min.
32

renascentistas da lexicografia portuguesa, Verdelho não somente reafirma tal condição,


mas também lista as principais publicações responsáveis pela sedimentação da língua:
1) O dicionário bilíngue (latim-português/ português-latim) do humanista Jerónimo
Cardoso (c.1500-c.1569), publicado em 1562, e que anota “o início da dicionarização da
língua portuguesa”; 53
2) O dicionário bilíngue de Agostinho Barbosa (1590-1649), publicado no ano de
1611 em edição única; 54
3) O dicionário latim/ português/ espanhol de Amaro Reboredo (1580/5-1653[?]) 55,
posto à luz em 1621 no “âmbito de um manual escolar para o estudo do latim”; 56
4) A lexicografia dos Jesuítas, dentre as quais se destaca o dicionário bilíngue (latim-
português/ português-latim) de Bento Pereira (1605-1681), publicado em 1634 com o título
de Prosódia; 57

53
Dictionarium ex Lusitanico in Latinum Sermonen (1562). “Neste dicionário, Cardoso promoveu a primeira
alfabetação do ‘corpus’ lexical vernáculo e deu assim origem, com maior ou menor interferência, a todos os
subsequentes dicionários do português [...]. O pequeno dicionário de Cardoso deve ser assim considerado
como o padrão inicial da lexicografia do português. Não obstante a modéstia das suas dimensões, oferece um
‘corpus’ lexical interessante e muito significativo para a época, composto por cerca de 12.100 formas
diferentes, distribuídas por um pouco mais de 12.000 entradas a que foram ainda acrescentadas 728 na
segunda edição (1569).” (Verdelho, [s.d.], 3-4)
Publicação disponível online em: http://clp.dlc.ua.pt/Publicacoes/Dicionarios_breve_historia.pdf
Acesso em: 05/09/2013, às 17h13min.
54
“Para além do seu ‘corpus’ latino ser autorizado, oferece muitos exemplos de acumulação sinonímica na
parte portuguesa e uma frequente textualização das entradas, com prejuízo da ordenação alfabética.” (Ib., 4)
55
“Não sabemos a data exacta de nascimento de Reboredo, porque os livros de baptismo desta época de
Algoso estão desaparecidos, mas acreditamos que este tenha ocorrido depois de 1580 — talvez entre 1580 e
1585- [...].” (Fernandes, [s.d], 12). “Amaro de Reboredo deve ter falecido depois de 1653, em Viseu, com
mais de 70 anos, pois o seu último livro foi publicado nesse ano e não faz qualquer referência a uma edição
póstuma nem apresenta quaisquer outros nomes responsáveis pela edição.” (Fernandes, [s.d.], 15). Excetos da
publicação: Amaro de Roboredo, gramático e pedagogo português seiscentista, pioneiro na didáctica das
línguas e nos estudos linguísticos, de Carlos Assunção Gonçalo Fernandes. Disponível online no endereço:

http://dlac.utad.pt/7.%20Methodo%20Grammatical_Estudo%20Introdut%F3rio.pdf
Acesso em: 06/09/2013, às 17h15min.
56
“(Lisboa, Pedro Craesbeeck, 1621, 444 ps), publicada no âmbito de um manual escolar para o estudo do
latim, com o título Raízes da lingua latina mostradas em hum tratado, e diccionario: isto he, hum
Compendio do Calepino com a composição, e derivação das palavras, com a ortografia, quantidade e frase
dellas. [...] Esta obra oferece-nos o primeiro convívio lexicográfico entre o português e o castelhano,
correspondendo certamente a uma conjuntura interlinguística de dominação por parte da monarquia dual
(entre 1580 e 1640) o ainda que de modo pouco sistemático, as equivalências castelhanas aparecem em
anotações esporádicas e muito abreviadas. (Verdelho, [s.d.], 4)
Publicação disponível online em: http://clp.dlc.ua.pt/Publicacoes/Dicionarios_breve_historia.pdf
Acesso em: 05/09/2013, às 17h16min.
57
“Era um volumoso manual escolar composto por um dicionário amplíssimo de latim-português, ao qual se
juntou, a partir de 1661, um dicionário de português-latim Tesouro da língua portuguesa (que fora
primeiramente publicado autônomo em 1647) e ainda um conjunto de textos paralexicais. [...] Neste conjunto
deve salientar-se o Tesouro, como fonte de referência para a fixação da nomenclatura lexical portuguesa [...];
contribuiu certamente para modelar a tradição ortográfica, e foi o primeiro ‘corpus’ do léxico português
formado a partir do patrimônio textual.” (Ib., 5)
33

5) Ainda sobre o legado dos jesuítas, devemos ressaltar a dicionarização das línguas
de missão, item especialmente importante para nós, uma vez que a identificação da
terminologia tupi-guarani utilizada para designar instrumentos musicais (portugueses e/ ou
nativos) também pode alargar nossa visão sobre a chegada e a difusão dos cordofones no
Brasil entre os séculos XVI a XIX; 58
6) E finalmente o Vocabulario Portuguez e Latino do clérigo Rafael Bluteau (1638-
1734), publicado em 10 volumes entre os anos de 1712-1728, e considerado “a obra mais
monumental da lexicografia portuguesa.” 59
Em suma, tal digressão já nos permite sugerir que a identificação e compreensão dos
termos utilizados para designar cordofones nos primeiros séculos do Brasil colonizado
passa, necessariamente, pela referência direta a, pelo menos, cinco idiomas: o latim; o
espanhol; o galego-português; o tupi-guarani (além de outras línguas ou dialetos nativos); e
o português arcaico.
Identificar e compreender em tais línguas as correspondências dos termos que
designavam os cordofones de cordas dedilhadas representa, por um lado, o passo inicial
para desembaraçar a emaranhada e confusa teia terminológica que acompanham os estudos
sobre o tema, e, por outro, a chance para trabalharmos com um volume de material e
referências que ainda não havia sido possível antes de tais correspondências serem
mapeadas e identificadas.
Para o cumprimento de tal meta, iremos nos embasar não somente nos dicionários
históricos bilíngues e trilíngues já citados (e que são as publicações que mais nos
aproximam da terminologia musical utilizada na Península Ibérica e no Brasil entre os
séculos de transição da Era Medieval para a Renascentista), mas somaremos também o
glossário galego-português do Projeto Littera 60, os termos e definições levantadas a partir

58
“Desde a sua instalação em Portugal, nos meados do séc. XVI, [os jesuítas] empenharam-se na produção
de manuais escolares, especialmente voltados para a formação linguística, e criaram assim uma estudiosa
escola de gramáticos e dicionaristas. Entre eles, avultam os dicionaristas das línguas de missão, no Brasil e
no Oriente [...].” (Ib., 5)
59
“O autor, Rafael Bluteau (1638-1734), nasceu em Londres, de família francesa, teve formação francesa e
italiana (doutorou-se em Roma), beneficiando de uma enriquecedora experiência de multilinguismo. Enviado
para Portugal aos 30 anos como clérigo teatino aprendeu muito rapidamente a língua portuguesa e começou a
usá-la numa intensa actividade oratória. Tornou-se um dos arautos da vernaculidade e da normalização
lexical e ortográfica, (Prosas portuguezas 1728).” (Ibid., 6)
60
Mais completo estudo já realizado sobre as cantigas profanas galego-portuguesas, o Projeto Littera é uma
“base de dados [que] disponibiliza, aos investigadores e ao público em geral, a totalidade das cantigas
medievais presentes nos cancioneiros galego-portugueses, as respectivas imagens dos manuscritos e ainda a
música (quer a medieval, quer as versões ou composições originais contemporâneas que tomam como ponto
de partida os textos das cantigas medievais). A base inclui ainda informação sucinta sobre todos os autores
nela incluídos, sobre as personagens e lugares referidos nas cantigas, bem como a ‘Arte de Trovar’, o
34

da bibliografia e documentação pesquisada, as gramáticas/ dicionários das missões


jesuíticas na América do Sul que reunimos e, sobretudo, os estudos organológicos do
espanhol Felipe Pedrell (1897; 1901) 61 e do português Ernesto Vieira (1890; 1899),
publicações de referência sobre o tema.
Com isso, esperamos criar um corpus terminológico que aponte para as nuances
idiossincráticas das diversas línguas que estiveram no berço da chegada e difusão dos
cordofones de cordas dedilhadas no Brasil colônia.

1.4 Os cordofones poliglotas e a ampliação do corpus lexical

Embora o título tenha caráter anedótico, a verdade é que um dos fatores que
potencializou a problemática terminológica, na Península Ibérica e no Brasil, foi
justamente a convivência simultânea de diversas línguas no processo de sedimentação da
língua portuguesa.
Se identificar a natureza dos instrumentos musicais e as suas diferenças por vezes
sutis já era um desafio dantesco na transição da Idade Média para o Renascimento,
imaginem se tais designações/características fossem misturadas em uma mesma panela
com um punhado de idiomas distintos.
Foi justamente o que aconteceu no Brasil a partir de 1500, quando os portugueses
desembarcaram com uma língua ainda em construção e carregada de influências várias e
aqui encontraram nativos praticando também línguas e dialetos permeados de sutilezas. E
tal encontro se deu em um território que também seria palco de inúmeras invasões
estrangeiras (espanholas, holandesas, francesas, etc.) ao longo do novo século que se
descortinava. Este “despertar”, pouco contado, é bem mais múltiplo do que se imagina.

pequeno tratado de poética trovadoresca que abre o Cancioneiro da Biblioteca Nacional. O texto editado das
cantigas dá ainda acesso a um conjunto de informações destinadas a facilitar quer a sua leitura, quer o seu
enquadramento histórico (glossário, notas explicativas de versos, toponímia, antroponímia, notas gerais).” A
base de dados está disponível online no seguinte endereço: http://cantigas.fcsh.unl.pt/index.asp
Acesso em: 30/04/2013, às 17h24min.
61
Compositor profícuo e intenso pesquisador, Pedrell escreveu cerca de 20 publicações distintas sobre
aspectos diversos da música (especialmente a espanhola, da qual aborda desde o folclore musical castelhano
do século XVI até tratados sobre os instrumentos antigos), além de vários artigos e outros escritos que,
somados, lhe conferiram a outorga de criar a moderna musicologia espanhola. Seu livro sobre a organografia
musical espanhola é particularmente importante para a pesquisa pelo fato de Pedrell ter estudado e analisado
com propriedade os tratados mais antigos de que dispunha, conforme ele próprio nos explica: “Tres libros
hemos de utilizar, principalmente, para la investigación organográfica musical de descripción y
construcción de instrumentos. Es el primero el famoso libro llamado Declaración de instrunentos musicales,
compuesto por fray Juan Bermudo, é impreso em Osuna el año 1555. El segundo, el famoso Melopeo y
Maestro, de Cerone, impreso en Ñapóles el año 1613. Y el tercero, la Escuela Música, de fray Pablo
Nassarre, impresa la primera parte en Zaragoza el año 1724, y la segunda (particularidad digna de notarse)
en la misma ciudad el año anterior, 1723.” (Pedrell, 1901, 13-14)
35

Se, por um lado, quase a totalidade dos documentos pré-descobrimento que dizem
respeito ao nosso objeto de estudo não estão escritos em português, por outro, é preciso
ressaltar que mesmo durante os séculos XVI e XVII, muitos dos relatos que utilizaremos
ainda se encontram em outras línguas (ou sob a sua influência direta). Os documentos
jesuíticos oficiais (escritos em latim) são apenas um exemplo do quão profundo é o nosso
desafio.
Antes de seguir, é preciso destacar dois fatores:
1) O violão, tal qual o concebemos hoje, ainda não existia antes do século XIX,
mesmo século em que o vocábulo seria incorporado oficialmente à língua portuguesa.
Todo nosso interesse e esforço em resgatar traços da memória dos cordofones de cordas
dedilhadas neste período consistem em reconhecer quais foram as práticas sociais de tais
instrumentos que se desdobraram naquelas reconhecidas posteriormente no violão. E, parte
não menos decisiva, quais foram as que se perderam no esquecimento. Em outras palavras,
quais os discursos sociais e relações de poderes que motivaram o abraço de algumas
práticas e o abandono de outras;
2) Adiante, também observaremos que os documentos, a literatura e os relatos
colhidos nos três primeiros séculos pós-descobrimento, revelam-nos que os cordofones
cujas práticas e usos foram majoritariamente incorporados ou abandonados pelo violão no
momento de sua afirmação na sociedade brasileira enquanto instrumento individual (dada
somente no século XIX), são justamente o alaúde, a vihuela/viola e a guitarra. Assim, antes
de seguirmos para os termos correspondentes, é necessário fazer uma breve síntese e
distinção sobre tais instrumentos:
Sobre o alaúde, Pedrell e Vieira nos dizem o seguinte:
Laúd – Instrumento derivado, em seu nome e forma, do e’oud (caixa bombada)
árabe. Descreve-se este instrumento (que parece de origem persa) já no Libro de
Música de Alfarabi (século X). O Sr. D. Juan Facundo Riaño teve a boa ideia de
reproduzir em uma de suas obras o debuxo de um laúd, admirável pela correção
de linhas, retirado de um relicário do século XVI conservado na Real Academia
de la Historia. Nos Dicionários organológicos especiais o leitor poderá estudar a
história deste instrumento, excluída aqui por ser bem conhecida. (Pedrell, 1901,
51) 62

62
Tradução livre de: “Laúd. - Instrumento derivado, por su nombre y forma, del e'oud (caja bombada)
árabe. Descríbese ya este instrumento (al parecer de origen persa) en el Libro de Música de Alfarabi (siglo
x). El Sr. D. Juan Facundo Riaño tuvo el buen acierto de reproducir en una de sus obras el dibujo de un
laúd, admirable por la corrección de líneas, sacado de un relicario del siglo xvi, conservado en la Real
Academia de la Historia.62 En los Diccionarios organográficos especiales podrá estudiar el lector la historia
de este instrumento, que huelga aquí por ser muy conocida.” (Pedrell, 1901, 51)
36

Figura 2. Exemplar de um alaúde do século XVI. Fonte: (Pedrell, 1897, 253)

Alaúde. Instrumento de cordas dedilhadas, de origem árabe, que os cavalleiros


cruzados quando regressaram do Oriente no século XII pozeram em grande voga
na Europa. Durante os séculos XV, XVI e XVII foi o favorito dos salões:
acompanhavam-se com elle os menestréis, dedilhavam-n’o as damas, evocaram-
n’o depois os poetas românticos em substituição da lyra clássica.
O alaúde tinha o tampo harmônico em forma de pera como as guitarras
portuguezas; as costas eram bombeadas como as do bandolim, e o cravelhame
chato, inclinado para traz em angulo com o braço. Até ao século XIV tinha só
quatro cordas simples, e o braço era desprovido de tastos ou pontos que
indicassem as divisões da escala: esses pontos foram adicionados no meado
d’aquelle século e as quatro cordas simples tornaram-se duplas, isto é, ficaram
sendo quatro pares afinados em uníssono. Depois as dimensões do alaúde
augmentaram e o numero de cordas também. Cada par de cordas denominava-se
uma ordem: no século XVI os alaúdes mais usuaes eram os de seis ordens – doze
cordas. [...]
Havia ainda um alaúde pequeno só com cinco ordens, denominado tiple de
laude.
O alaúde fazia parte da orchestra, juntamente com a viola, bandolim e a theorba,
quando as primeiras óperas appareceram no século XVII; mas todos estes
instrumentos de cordas dedilhadas, cujo principal emprego era acompanhar as
vozes nos recitativos, com os seus contínuos arpejos deviam produzir uma
harmonia confusa, mal definida, por isso foram em pouco tempo substituídos
vantajosamente pelo cravo, reforçado pelo violoncello e contrabaixo.
O nome d’este instrumento em árabe, êud, junto ao artigo definido el, deu origem
à palavra élude que durante a edade media passou por muitas mudanças na
Europa; as primeiras foram: leut, leuth, luit, lut, luc, lucs, lus, e luz; d’aqui
nasceu liuto para os italianos, laud para os hespanhoes e allemães, lut para os
francezes. Em portuguez chamou-se-lhe sempre laude, e é a denominação que
centenas de vezes lhe dá o catalogo da bibliotheca musical de D. João IV; o
prefixo a foi-lhe addicionado por euphonia ou para tornar a palavra mais
conforme com a sua origem.
O alaúde foi um instrumento de tal modo vulgarizado que em França os
fabricantes de instrumentos músicos, excepto órgãos e pianos, ficaram com o
nome de luthiers.
(Vieira, 1899[1890], 41-43)

Já sobre a guitarra, uma série de autores deixaram diferentes testemunhos. Raphael


Bluteau, o clássico dicionarista do início do século XVIII, descreve o instrumento nos
seguintes termos:
37

GUITARRA. Deriva-se do francês Guitarre, e esta do grego Chitaros, que no


Dialeto Dórico, (segundo a observação de Erociano) significava o mesmo que o
que os anatômicos chamam o Tórax do homem, com o qual tem alguma
semelhança as costas da Guitarra. É instrumento músico de cordas. Vid. Viola.
Cithara, ae. Fem.” (1713, IV/159) 63

Bluteau descreve uma possível genealogia terminológica do instrumento a partir do


francês e, mais remotamente, do grego. Indiretamente, o autor também assemelha guitarra,
viola e cithara ao recomendar a leitura destas entradas para obtenção de maiores detalhes.
Todavia, o dado mais interessante é o que classifica o verbete como um “instrumento
músico de cordas”, algo aparentemente comum, mas que, na verdade, revela uma
expressão que iria identificar especificamente cordofones de cordas dedilhadas até, pelo
menos, a primeira metade do século XVIII (veremos mais detalhes sobre o fato no item 4.5
do último capítulo).
Outros autores lusos e brasileiros também não apresentam mais do que uma rasa
introdução sobre este cordofone. Mário de Andrade, por exemplo, afirma que é um
“Instrumento de cordas dedilhadas ou tangidas, de origem espanhola, tendo coexistido com
o alaúde e a vihuela durante o Renascimento, permanecendo, entretanto, essencialmente
popular”, acrescentando ainda que “em Portugal é o tradicional acompanhador dos fados, e
no Brasil veio dar origem ao violão”. (1989, 256)
Castagna cita as publicações que considera mais elucidativas sobre o tema,
ponderando ainda que existiram guitarras de 4 e 5 ordens durante o século XVI, mas as
segundas prevaleceram ao longo do século XVII:
Emílio Pujol traz bons estudos acerca desse instrumento na Espanha, publicados
em Luys de Narváez (Los seys libros del Delphin, 1945, ‘Vihuela, laud y
guitarra’, p. 7-9) e em Alonso [de] Mudarra (Tres libros de musica en cifra para
vihuela, 1949, cap. I – ‘La Vihuela en la musica instrumental del siglo XVI’, p 1-
15), enquanto Ernesto Veiga de Oliveira (Instrumentos musicais populares
portugueses, 1965, p. 123-134) acrescenta informações importantes sobre o seu
uso em Portugal. No séc. XVI existiam guitarras de 4 e 5 ordens (pares de
cordas), mas no séc. XVII prevalece o segundo tipo. (1991, III/534-535, nota
380)

Mais uma vez, é Pedrell quem nos concede uma síntese mais completa:
Guitarra. […] No século XV se diferenciava pouco da forma que hoje tem, se
bem que era menor e contava, no máximo, com sete cordas dispostas em quatro
ordens, a saber, três cordas duplicadas e uma simples, que era a prima, as quais
se tangiam de modo rasgueado para acompanhar as danças e canções do povo.
A forma da guitarra e o seu número de cordas variaram muito durante a Idade
Média. [...]

63
Grafia original: “GUITARRA. Derivase do Francez Guitarre, e esta do grego Chitaros, que no Dialecto
Dorico, (segundo a observação de Erociano) significava o mesmo, q o que os anatomicos chamaõ o Thorax
do homem, com que tem alguma semelhança as costas da Guitarra. He instrumento musico de cordas. Vid.
Viola. Cithara, ae. Fem.” (Bluteau, 1713, IV/159)
38

Mersenne (Harmonie Universelle) ofereceu em 1636 a imagem de uma guitarra


de quatro ordens (três duplas e uma simples), dizendo que já não se usava em sua
época. Apresenta na continuação a imagem da guitarra de cinco cordas duplas,
afinada desta maneira:

A Guitarra seguiu estável com as suas quatro ordens de cordas até que o famoso
poeta e maestro de capela Espinel (provavelmente por volta dos anos de 1570),
lhe acrescentou a quinta ordem, dando assim maior importância ao instrumento,
afinado desta forma:

A guitarra começou a ser cultivada com mais esmero por pessoas de classes
sociais mais abastadas a partir daquela época. A um catalão, coube a honra de ser
o autor do primeiro método de Guitarra, o famoso médico Juan Carlos Amat, que
nasceu em Monistrol por volta do ano de 1572 e em 1596 ofereceu ao público
em Barcelona sua Guitarra española y Vandola en dos maneras de
Guitarra,Castellana y Cathalana de cinco Ordenes (un tomito en 8.º) [...]
Embora um pouco mais tarde, enfim, a antiga afinação da guitarra é suplantada
com o acréscimo de uma sexta corda às cinco primitivas, nesta disposição:

(Pedrell, 1897, 212- 213) 64

De acordo com Morais, “este instrumento é descrito por dois teóricos alemães do
princípio do século XVI, nomeadamente Sebastian Virdung (1511) e Martin Agricola
(1528) ao qual chamam Quintern ou Ghiterna.” (2006, 394). O pesquisador português
segue ponderando que “já em 1467, o teórico franco-flamengo Johannes Tinctoris (c.1435-
1511?), que esteve ao serviço do rei ‘Ferdinandi Neapolitani’, descreve um instrumento
semelhante.” Tinctoris expõe suas impressões sobre tal instrumento musical com as
seguintes palavras:
A Guitarra é muito raramente usada por causa do seu som tênue. Quando a ouvi
tocar na Catalunha, era para acompanhar canções amorosas, mais

64
Tradução livre de: “Guitarra. […] En el siglo XV se diferenciaba poco de la forma que hoy tiene, si bien
era más pequeña y sólo constaba, à lo más, de siete cuerdas en cuatro órdenes, es à saber, tres cuerdas
duplicadas y una sencilla que era la prima, las cuales se tañían rasgueado, para acompañar las danzas y las
canciones del pueblo. La forma de la guitarra y el número de cuerdas variaron mucho durante la Edad Media.
[…] Mersenne (Harmonie Universelle) dio en 1636 el dibujo de una guitarra de cuatro órdenes (tres dobles y
una sencilla), diciendo que ya no se usaba en su época. Presenta à continuación el dibujo de la guitarra de
cinco cuerdas dobles, afinada de esta manera: […] La Guitarra siguió estacionaria con sus cuatro órdenes de
cuerdas, hasta que el famoso poeta y maestro de capilla Espinel (probablemente por los años de 1570), le
añadió la quinta orden, dando así mayor importancia al instrumento, afinado de esta suerte: […] La guitarra
empezó à ser cultivada com más esmero por personas de categoria social, à partir de aquella época. A un
catalán, le cabe la honra de ser autor del primer método de Guitarra, al famoso médico Juan Carlos Amat, que
nació en Monistrol por los años de 1572 y en 1596 dio al público en Barcelona su Guitarra española y
Vandola en dos maneras de Guitarra, Castellana y Cathalana de cinco Ordenes (un tomito en 8.º) […]
Aunque algo más tarde, privó, al fin, el antiguo templado de la guitarra añadiendo una sexta cuerda à las
cinco primitivas del instrumento en esta disposición: […]” (Pedrell, 1897, 212- 213)
39

frequentemente [usadas] pelas mulheres que pelos homens. (Tinctoris, 1950 [c.
1487], 25) 65

O relato é precioso não somente pela menção nominal à guitarra ainda no século XV,
mas sobretudo pelas características que Tinctoris associa ao cordofone: um instrumento
musical utilizado na Catalunha mais para o acompanhamento de canções amorosas (e,
portanto, profanas) devido ao seu discreto volume sonoro e que era empunhado
predominantemente por mulheres. Este último dado é particularmente relevante, já que as
atividades musicais de pessoas do gênero feminino raramente são retratadas diretamente na
bibliografia que sobreviveu. Contudo, a descrição de Tinctoris pode sugerir que alguns
cordofones possivelmente tiveram uma utilização mais ampla (e até predominante) pelas
mulheres em determinadas regiões da Península Ibérica.
No segundo tomo de seu Syntagma Musicum (1619), o compositor alemão Michael
Praetorius (1571-1621) nos legou o desenho de alguns cordofones de cordas dedilhadas
utilizados em seu tempo, entre eles uma guitarra de seis cordas (cinco duplas e uma
simples), instrumento que, embora ainda pouco usual naquele período 66, revela como
guitarras com este bojo já circulavam na Europa no início do século XVII:

Figura 3: Guitarra no Syntagma Musicum: (Praetorius, 1619, II Tomo/ Tabela XVI/ Figura IV)

65
Tradução livre de Manuel Morais para: “[...] Ghiterre autem usus: propter tenuem ejus sonum: rarissimus
est. Ad eamque multo sepius Catalanas mulieres carmina quaedum amatoria audivis concinere: quam viros
quicpiam ea personare.” (Morais, 2006, 394)
66
“Instrumento muy distinto del de una Guitarra usada por aquel tiempo cuyo clavijero se parecía al de la
Pandora, instrumento inventado en Padua, à fines dl siglo XV.” (Pedrell, 1897, 213)
40

Figura 4: Cordofones de cordas dedilhadas mencionados no Syntagma Musicum: (Praetorius, 1619, II Tomo/
Anexo - Tabela XVI)

Fuertes, em sua Historia de la Música Española, distingue a guitarra da vihuela não


somente pelas distintas classes que primordialmente manipulavam os instrumentos (como
faz Pedrell), mas pela dessemelhante natureza das cordas (de tripa ou metal) utilizada em
cada um deles:
A notável diferença da vihuela para a guitarra, segundo Sebastian Castellanos 67,
consistia no fato de que esta se tocava com cordas de tripa, e aquela com cordas
de metal feridas com plectro de pena de ave [puntero de pluma], de metal [pua
metálica] ou de outro material. Esta diferença seria para as vihuelas de mano,
porque nas de arco as cordas não podem ser se não de tripa: de maneira que as
vihuelas de mano com cordas de metal, e tocadas com plectro, foram, sem
dúvida, o que hoje são as nossas bandurrias e sonoras, embora um pouco
maiores, mas não foram o que agora são as nossas guitarras. (1857, IV/206) 68

67
LOSADA. D. Basilio Sebastian Castellanos de. Discursos historicos arqueológicos sobre el origen y
decadencia de la poesía, música, y baile Español. Madrid: Imprenta de D. Antonio Perez Dubrull, 1854.
68
Tradução livre de: “La diferencia notable de la vihuela á la guitarra, según Sebastian Castellanos,
consistia en que esta se tocaba con cuerdas de tripa, y aquella con cuerdas de metal huidas con puntero de
pluma ó pua metálica ó de otra materia. Esta diferencia seria en las vihuelas de mano, porque las de arco no
pueden ser las cuerdas sino de tripa: de manera, que las vihuelas de mano con cuerdas de metal, y tocadas
41

Finalmente sobre a vihuela, primeiramente é preciso dizer que os vocábulos vihuela


(espanhol) e viola (português) são correlacionados diretamente por diversos autores iberos
e brasileiros dedicados a estudar os cordofones de cordas dedilhadas entre os séculos XV e
XVI. Pedrell, por exemplo, sublinha em seu Diccionario técnico de la música: “Diremos
para terminar que Vigola, Vigolón, Figolón, Viola ó Vihuela y aún más nombres, todos
significaban, antiguamente una misma cosa” (1897, 494). Vieira também os toma como
sinônimos: “Viguela, Vihuela. Viola” (1897, 522). E finalmente Taborda pontua que a
vihuela, “instrumento que floresceu e se difundiu principalmente na Espanha durante o
século XVI, chegou a Portugal com o nome de viola (a viola da mano).” (2011, 25-26)
Pedrell ainda nos apresenta, ao lado de algumas características físicas e sonoras da
vihuela, as suas correlações e distinções em relação ao alaúde e à guitarra:
Dissemos […] que ‘os nomes de Guitarra y Vihuela não devem confundir-se
com uma só denominação quando se trata de tempos antigos. 69 A guitarra era
então instrumento pobre e popular, que se tocava rasgueada, e a vihuela rica e
aristocrática que se tangia ponteada. Com o passar do tempo, a guitarra foi pouco
a pouco invadindo o terreno da vihuela 70 e em princípios do século atual [XIX]
já eram um só instrumento, sendo que as antigas guitarras, guitarros ou
guitarrillos foram relegadas às classes mais baixas em algumas províncias, quase
em seu estado primitivo’. A guitarra, de todo modo, era menor que a vihuela, e
em princípio só tinha quatro cordas duplas, as quais o famoso Espinel
acrescentou a quinta, introduzindo, ademais, outras melhoras mecânicas de
acordo com a técnica deste instrumento, muito avançada em sua época, e que
acentuaram a aprovação, por assim dizer, do alaúde e a guitarra, hoje quase
completamente idênticos. A vihuela recebe em todos os tratados antigos o nome
genérico de vihuela de mano para distingui-la da chamada vihuela de arco, que
era um instrumento muito diferente. Libro de vihuela de mano intitula Luis
Milan o que publicou em Valencia no ano de 1536. Como a vihuela de mano se
encordoava com sete cordas, o livro Declaración de instrumentos, de Juan
Bermudo, impresso em Granada em 1555, apresenta o interessantíssimo desenho
de uma vihuela de este gênero, importante para além de um conceito, porque
contradiz a assertiva do P. Kircher, alinhado nisto com Luis Milan, afirmando
que a cítara espanhola ou guitarra não teve em nenhuma época mais do que seis
cordas. A vihuela de mano do livro do P. Juan Bermudo apresenta uma sétima
corda adicional. (Pedrell, 1897, 494) 71

con plectro, fueron sin duda alguna lo que hoy son nuestras bandurrias y sonoras, aunque poco mas
grandes, pero no lo que son nuestras guitarras.” (Fuertes, 1857, IV/206)
69
Fuertes ratifica tal perspectiva: “Es pues indudable que de la vihuela no salió la guitarra, tanto por no ser
instrumento enteramente igual, cuanto porque al mismo tiempo y en el siglo XIV teniamos ya guitarras
árabes y latinas, y vihuelas de arco y de mano”. (Fuertes, 1857, IV/207)
70
“Nos confirma mas esta creencia, el que lamentándose Covarrubias en su Tesoro de la lengua castellana
[a obra, publicada em 1611, foi o primeiro dicionário monolíngue escrito em língua castelhana], de que en su
tiempo se abandonase el estudio de la vihuela por el de la guitarra, dice que era una gran pérdida, porque
en aquella se podia poner todo género de música punteada, y esta no era mas que un cencerro tan fácil de
tañer, especialmente en lo rasgado, que no habia mozo de caballos que no lo tocase.” (Fuertes, 1857,
IV/206)
71
Tradução livre de: “Hemos dicho [...] que ‘los nombres de Guitarra y Vihuela no deben confundirse bajo
una solo denominación, cuando se trata de los tiempos antiguos. La guitarra era entonces instrumento pobre
y popular, que se tocaba rasgueado, y la vihuela rico y aristocrático que se tañía punteado. Andando el
tiempo la guitarra fue poco à poco invadiendo el terreno de la vihuela y à principios del siglo actual [XIX]
42

O instrumento citado por Pedrell encontra-se no libro quarto (fol. CX) da


Declaración de instrumentos musicales, obra do frade espanhol Juan Bermudo (1510-
1565) impressa em Ossuna, em 1555. Nela, tal cordofone é apresentado com a seguinte
descrição: “Demonstracion de la vihuela de siepte ordenes que se tangam todos los
semitonos estando fixos los trastes.” (1555, IV/CX).
Vejamos o exemplo:

Figura 5. Vihuela de sete ordens publicada no livro Declaración de Instrumentos. Fonte: (Bermudo, 1555,
CX)

Bermudo ainda explicita a existência de variados tipos de vihuelas circulando na


Espanha de sua época, mas pondera que o tipo mais comum (que também poderia ser

ya era un solo instrumento, quedando relegadas al pueblo bajo en algunas provincias, las antiguas
guitarras, guitarros ó guitarrillos casi en su estado primitivo.’ La guitarra, de todos modos, era más
pequeña que la vihuela, y en un principio solo tenía cuatro cuerdas dobles à las cuales el famoso Espinel
añadió la quinta, introduciendo, además, otras mejoras mecánicas, de acuerdo con la técnica de este
instrumento, muy adelantada en su época, que acentuaron la homologación, por decirlo así, del laud y la
guitarra, hoy casi completamente idéntica. La vihuela recibe en todos los tratados antiguos el nombre
genérico de vihuela de mano para distinguirla de la llamada vihuela de arco, que era instrumento muy
distinto. Libro de vihuela de mano intitula Luis Milan el que publicó en Valencia el año 1536. En cuanto à la
vihuela de mano encordaba con siete cuerdas, el libro Declaración de instrumentos, de Juan Bermudo,
impreso en Granada en 1555, presenta el interesantísimo dibujo de una vihuela de este género, importante
por más de un concepto, porque contradice la aserción del P. Kircher, de acuerdo en esto con Luis Milan,
cuando afirma que la citara española ó guitarra no ha tenido en ninguna época más que seis cuerdas. La
vihuela de mano del libro del P. Juan Bermudo presenta una séptima cuerda adicional.” (Pedrell, 1897, 494)
43

chamado de guitarra e bandurra) tinha “seis ordens de cordas: as quais chamam sexta,
quinta, quarta, terceira, segunda e prima.” 72 (1555, 28-28v) O espanhol define as
características organológicas deste instrumento em um longo e decisivo relato histórico 73,
sintetizado por Morais - mais um autor a aceitar a paridade terminológica entre vihuela e
viola – com as sequentes palavras:
No nosso País, desde o século XV até aos inícios do XIX, o vocábulo viola é
sobretudo usado para designar um cordofone de mão de caixa em forma de oito,
tampo harmônico (ou ‘tampão de duas metades’), fundo chato ou ligeiramente
abaulado (feito em duas metades), ou em tiras (‘costilhas’) de meia-cana, boca
(‘laço’) ornamentada com roseta rasa (‘laço de talha raso’) ou funda (‘laço de
talha fundo’), braço (ou ‘pescoço’) longo terminando por um cravelhal em pá
com cravelhas dorsais, ou do tipo usado pelo alaúde ou pela guitarra (do séc.
XV, em foice) com as cravelhas laterais, escala (‘rotolo’ ou ‘espelho’) rasa com
o tampo e dividida cromaticamente por trastes móveis (de tripa) ou fixos (de
madeira, marfim ou osso), cavalete fixo colado sobre o tampo harmônico. Este
instrumento pode ser montado com quatro, cinco, seis ou sete ordens de cordas
duplas (ou triplas no séc. XVIII), de tripa de carneiro ou de metal. (Morais, 2006,
395-396)

No 8º volume de seu Vocabulario Portuguez & Latino, o padre Raphael Bluteau


(1638-1734), principal dicionarista da lexicografia portuguesa antiga, apresenta uma
definição das características da viola que se coaduna àquela exposta por Morais. O relato é
de 1721:
Viôla. Instrumento Musico de cordas. Tem corpo concavo, costas, tampo, braço,
espelho, cavalete para prender as cordas, & pestana para as dividir, & para as pòr
em proporção igual; tem onze trastos, para se dividirem as vozes. & para se
formarem as consonancias. Tem cinco [ordens de] cordas, a saber, a primeira, a
segunda, & corda prima, a contraprima e o bordão. Ha violas de cinco
requintadas, violas de cinco sem requinte, violas de arco, &c. Chamãolhe
commummente Cithara, posto que o instrumento, a que os Latinos chamàrão
Cithara, podia ser muito diverso do que chamamos Viola. (Bluteau, 1721,
VIII/508).

Embora esta não seja a perspectiva mais aceita pelos historiadores, é preciso destacar
que, etimologicamente, o termo viola pode ter derivado de guitarra (cithara), conforme
defendem alguns autores 74 além de Bluteau (“chamam-lhe comumente cithara”). O

72
“Porque ay muchos generos de vihuelas solamente tractare dela que conmúnmente es dicha vihuela, de
guitarra, y de bandurra, [...] La vihuela común tiene seys ordenes de cuerdas: las quales llaman sexta,
quinta, quarta, tercera, segunda, y prima. Esta vihuela en vazio, sin hollar traste alguno tiene desde la sexta
hasta la prima vna quincena, que son dos diapaßones, o dos octavas [...].” (Bermudo, 1555, 28-28v)
73
Conferir: (Bermudo, 1555, ff. 28-28v; ff. 29v-30v; ff. 103v-104; ff. 109-109v.) e (Morais, 2006, 405-407).
74
Sobre a etimologia do termo viola, Morais, citando vários autores, explica: “Etimologicamente o vocábulo
Viola (escrito também com as grafias Violla ou Viula) é provavelmente de origem provençal, se bem que
alguns autores defendam a proveniência latina de fidicula, diminutivo de fide, ou ainda de chitara. Neste caso
o termo pode ser proveniente do grego kithara, ou do ‘árabe ocidental Kittarâ ou qitárâ; também pelo
vocábulo latino cithara, [...] o proprio nome é identico, pois guitarra não é mais do que a modificação de
cithara’; ‘[...] cítara, especie de alaude ou lira; [...] pelo lat. cithara, por via culta’. Alguns etimologistas
propõem que o termo viola, ainda que tenha sido tomado da langue d’oc, tenha chegado até nós por via da
Itália. De qualquer modo e como acima já referimos, não é só em Portugal que se usa este vocábulo para
44

próprio Bermudo, em 1555, já considerava a correspondência entre os vocábulos vihuela,


guitarra e bandurra ao descrever minuciosamente o primeiro deles. Nos capítulos terceiro e
quarto, iremos observar como os termos guitarra e viola foram usados sem diferenciação
na literatura brasileira e portuguesa entre os séculos XV e XVII. São fatores que nos
revelam que tais definições categóricas precisam ser relativizadas em função das práticas
que as regeram, afinal, “uma palavra vale bem menos por sua etimologia do que pelo uso
que se faz dela.” 75
Talvez a distinção entre este ou aquele cordofone fizesse mais sentido se
estivéssemos escrevendo sobre a história do alaúde, da vihuela ou ainda de qualquer outro
instrumento musical antigo, mas para a trajetória do violão (sobre a qual, direta ou
indiretamente, convergiram muitos dos caminhos dos cordofones de cordas dedilhadas
anteriores), este é um fator menos decisivo, sobretudo pela impossibilidade de se dissociar
as práticas de tais instrumentos daquelas que resultaram no violão.
Ou seja, não é possível escrever uma “história do violão” (e ainda mais
especialmente no Brasil) a partir de uma referência isolada, tomando apenas um destes
cordófonos como ponto de partida. É preciso considerá-los todos, especialmente no campo
das práticas sociais. E se ainda pairar alguma dúvida sobre a validade de tal perspectiva,
basta constatar que o violão moderno se apropriou indistintamente da literatura do alaúde,
da vihuela e da guitarra.
A propósito, ao escrever sobre as variantes da viola da mão (ou vihuela da mano) no
século XVI, Budasz revela como é impossível distinguir completamente a trajetória de um
destes instrumentos musicais com aquela percorrida pelo violão:
Principal instrumento acompanhador dos romances, cantigas, tonos e modas,
além de ótimo veículo para a música solo, a viola de mão tinha na sua
versatilidade a sua maior virtude. Suas variantes no século XVI incluíam um
instrumento de quatro ordens de cordas, de seis ordens (conhecida na Espanha
como vihuela), e, no século seguinte, de cinco ordens (muitas vezes chamada
guitarra barroca). Este último instrumento originaria mais tarde a viola caipira
brasileira, as diversas violas regionais portuguesas, bem como a guitarra
espanhola, ou violão. Nomes de tocadores que se especializaram na viola de
cinco ordens durante os séculos XVII e XVIII, como João de Lima, Felipe Nery
de Trindade e Manuel de Almeida Botelho, aparecem com destaque em um
manuscrito de 1757 de Domingos do Loreto Couto, historiógrafo pernambucano.
(Budasz, 2004, 9)

designar sobretudo um cordofone de mão de caixa em forma de oito. Neste período, no reino de Nápoles, este
instrumento era também chamado Viola, Viola a mano, ou ainda Viola Napolitana, cujo repertório poderia
ser indistintamente tocado neste tipo de instrumento de caixa em forma de oito ou no periforme alaúde. Caso
semelhante se passa na Catalunha, onde o vocábulo viola é nome genérico de uma família de cordofones de
caixa em forma de oito (com mais ou menos enfranque) cujas cordas podem ser dedilhadas, palhetadas ou
friccionadas com um arco.” (Morais, 2006, 394-395)
75
(Le Goff in Bloch, 2001, 30-31, pref.)
45

Dentro de tal contexto, talvez seja possível iluminar o começo deste túnel inóspito a
partir de um glossário onde identifiquemos, idioma por idioma, os termos correspondentes
aos três cordofones de cordas dedilhadas (guitarra, vihuela/ viola, alaúde) que mais
interessam ao nosso estudo e que foram citados nos dicionários e/ ou documentos
históricos que pesquisamos.
Levando em consideração a disposição cronológica e o fato de ter sido a língua-base
para o desenvolvimento das subsequentes, o passo inicial para tal propósito deve ser dado
necessariamente em direção ao latim.

1.4.1 Latim

São sete os termos latinos que se referem aos cordofones de cordas dedilhadas nos
dicionários portugueses e/ou documentos históricos e cujas práticas podem, direta ou
indiretamente, ser relacionadas com as que foram herdadas pelo violão no Brasil: a)
Barbitos; b) Chelys 76; c) Cithara; d) Fides; e) Fidicula; f) Lyra; g) Testudo. Aqui, faz-se
necessário dissecar cada termo individualmente.

Barbitos

A) Barbitos (i, us, um, im, on). 77 O termo original inicialmente não remete a uma
relação direta com os cordofones de cordas dedilhadas que circularam no Brasil a partir do
século XVI, conforme nos sugere a definição do Diccionario Musical, de Ernesto Vieira:

Barbitos. Especie de Lyra dos gregos. Tinha nove cordas e era mais alta no
tamanho do que a cithara média; as suas cordas eram duplamente mais
compridas do que as da pectia (cithara pequena), e por consequencia resoava
oitava a baixo em relação a esta. Chamava-se-lhe por isso também barymitos,
que quer dizer instrumento de cordas graves. (Vieira, 1899 [1890], 88) 78

76
Embora o termo original seja grego, aqui ele será mantido dentro dos termos latinos, uma vez que suas
recorrências se dão nos dicionários bilíngues (português-latim/ latim-português) que pesquisamos.
77
As letras entre parênteses (i, os, um, im) representam variações gráficas da palavra que foram encontradas
nos documentos históricos e que o leitor poderá observar ao longo do texto. Assim, é preciso ter em mente
que um mesmo termo, por vezes, era grafado com pequenas variações (Ex.: Barbitus, Barbiti, Barbitos,
Barbitum, Barbitim, etc.). Algumas vezes, representando diferenças no gênero e/ ou número, outras porque a
própria palavra tinha mesmo mais que uma acepção, e outras, ainda, por mero erro de grafia nos documentos.
78
Em seu Diccionario técnico de la música, Felipe Pedrell ratifica tal acepção: “Barbitos ó Barbiton.
Nombre de un instrumento policorde de grandes proporciones y muy antiguo, que algunos han confundido
con la Lira, compuesto de nueve cuerdas de lino más gruesas que las de la Lira ordinaria, y que producían
sonidos graves. Pulsábase con los dedos ó con ayuda de un plectro. Créese que es el instrumento que
Horacio llama LESBIO, atribuyendo su invención à Alceo. Según Ateneo, se llamaba también BARMOS, y
atribuye su invención à Anacreonte, como otros la atribuyen à Terpandro. Téocrito le llama instrumento
policorde, y Polux asegura que se llamaba, asimismo, BARYMITE. El BARBITOS y el llamado PECTIS,
sonaban à la octava, el último à la octava aguda. […] El BARBITON, parece que sólo estuvo en uso entre
los pueblos griegos del Asia menor, los de gran Grecia y los de Sicilia.” (Pedrell, 1897, 44)
46

Pedrell chega mesmo a reproduzir uma imagem de tal instrumento, supostamente o


“gran barbitos policarde de Terpandro”, copiado de uma das pinturas de Herculanum:

Figura 6. Barbitos de Terpandro. Fonte: (Pedrell, 1897, 44)

No entanto, o próprio Pedrell sinaliza uma definição distinta para o verbete barbitos
major, termo latino que, segundo o pesquisador, foi o “nombre dado por el P. Meersenne à
una especie de pequeño bajo de viola de seis cuerdas” (1897, 44), acepção que foi adotada
pelos dicionários latino-portugueses e também pela documentação jesuítica que foi
produzida no Brasil ao longos dos anos quinhentos e seiscentos.
Raramente citado nas pesquisas brasileiras sobre o tema, o termo barbitus é
mencionado em todos os dicionários primevos da nossa língua. Alaúde seria a tradução
simples e imediata para o português, conforme podemos atestar já na obra pioneira de
Jerônimo Cardoso: “Barbitus, i, & barbitum, i. O alaude.” (1619 [1562], 24).
Esta mesma acepção encontraremos no dicionário de Agostinho Barbosa, que ao
traduzir do português para o latim a palavra alaúde, confere a ela ainda outros dois
sinônimos (citando, inclusive, exemplos literários): “Alaúde, instrumento musico. [1]
Testûdo; [...]- [2] Chelys [...]; - [3] Barbitos [...]”. (1611, 53)
O mesmo ocorre no dicionário de Bento Pereira, que, além da tradução, chega a
transcrever alguns dos exemplos: “Barbitos, vel Barbitus, i, dub. G. O alaude. 2. B.
Ouid.[…]. Non facit ad lacrymas barbitos ulla meas.” (1723 [1634], 90). E ainda no
47

mesmo dicionário, em seu anexo “Tesouro da língua portuguesa”, nos diz: “Alaúde.
Chelyx, is., Barbitos, i, vel Barbiton Testudo, inis. (Ib., anexo/10).
Por fim, transcrevemos aqui a definição de Rafael Bluteau para a palavra alaúde,
que, muito embora realizada já no início do século XVIII, ainda nos deixa visualizar a
correspondência dos termos latinos e gregos ao termo português: “Alaúde. Instrumento 79

musico de cordas, que entre outras differenças tem o corpo mais redondo, que viola.
Testudo, mis. Fem. Chitara, ae. Fem. Cic. Os Poetas muitas vezes usaõ de Chelys, yos.
Fem. que no grego responde à palavra latina, Testudo.” (1712, I/209)
Apesar de Covarrubias (1539-1613) também considerar a correspondência entre a
vihuela e os termos latinos barbitus, barbitos e lyra em seu Tesoro de la Lengua
Castellana (1611) 80, fica claro que, na transição entre as eras Medieval e Renascentista na
Península Ibérica e nos séculos iniciais do período pós-descobrimento no Brasil, o termo
Barbitos e suas variantes principalmente se referiam ao alaúde, instrumento que é também
citado nos dicionários históricos com outros sinônimos. Sobre mais um deles, Chelys, nos
debruçaremos agora.

Chelys

B) Chelys (is, yos, ius, ij). Como observamos no item anterior, Chelys foi um
correspondente para o termo alaúde nos dicionários de Barbosa (1611), Pereira (1634) e
Bluteau (1712). Este último nos diz, ainda, que o vocábulo era praticado usualmente por
poetas e que, em grego, correspondia à palavra latina Testudo (sobre a qual nos deteremos
adiante). Tal correspondência é ratificada por Pedrell: “Chélys. Variação da lira dos
hebreus que, ao que parece, era o mesmo instrumento chamado TESTUDO.” (1897, 78) 81

79
Aqui uma nota se faz necessária: em grande parte dos documentos escritos entre os séculos XIV e XVIII
que pesquisamos, a grafia da letra “f” se confunde com a grafia da letra “s”. Na verdade, elas geralmente são
grafadas de modo igual, com a sutil diferença de um traço pequenino (por vezes mesmo imperceptível) que
acompanha o corpo da letra “f” e que é inexistente na letra “s”. Nos campos de busca dos livros virtuais, só
encontramos determinadas palavras ou expressões se trocarmos a letra “s” pela “f” (por exemplo, ao invés de
procurar por “Testudo”, devemos pesquisar por “Teftudo”; “ifntrumento” ao invés de “instrumento”; e assim
por diante). Isso é um dado importante para quem deseja dedicar-se a pesquisas sobre o tema ou ao mergulho
mais aprofundado em tais documentos. Também é preciso lembrar que, no português arcaico (e isso
observaremos mesmo nos documentos do século XIX), os finais de frase em gerúndio geralmente são
grafados como na atual forma futura dos verbos e ainda com o acento deslocado para a última letra (Ex.:
“usaõ”, na verdade, corresponde ao nosso atual “usam”). Veremos muitos destes exemplos nos documentos
que se seguirão.
80
Primeiro dicionário monolíngue escrito em castelhano.
81
Tradução livre de: “Variedad de la lira de los hebreos que, según parece, era el mismo instrumento
llamado TESTUDO.” (Pedrell, 1897, 78).
48

O dicionário pioneiro de Cardoso alarga, para nós, a extensão do significado


conferido à palavra: “Chelys, is. A viola. Chelius, ij. O que tange viola.” (Ib., 24).
Acepção que, por sua vez, também é considerada por Pereira: “Chelys, yos, vel ys. O
cagado, ou tartaruga, ou concha de tartagura, ou cithara.” (Ib., 158). Pereira ainda
complementa em seu Tesouro da Língua Portuguesa: “Viola. Lyra, ae. Chelys, is.” (Ib.,
anexo/146).
Finalmente, Vieira não somente reitera a sinonímia entre chelys e viola, como
também justifica a correspondência no período renascentista: “Chelys. Synonymo de Lyra,
ou especialmente a Lyra de Mercurio. Na época da Renascença, em que se affectava imitar
a arte grega, deu-se este nome a uma espécie de viola.” (1899 [1890], 139)
Assim, podemos deduzir que as duas acepções mais comuns para o termo Chelys nos
dicionários históricos da língua portuguesa são alaúde e viola, embora os dicionaristas
também considerem os vocábulos lyra e cithara como sinônimos do termo. Sobre este
último, nos ateremos agora.

Cithara

C) Cithara (ae). Palavra com sinonímia mais ampla, o termo cithara é o retrato da
qualidade imprescindível que nos é exigida ao reunir e confrontar tais termos: a análise
revelada nos contextos. Ou, em outras palavras, o estudo das práticas. Somente quando os
usos nos quais os instrumentos musicais estão inseridos se revelam, é que podemos ter
alguma clareza sobre qual o sentido referido por aquele que o utiliza. Sem este mergulho,
os vocábulos se tornam um labirinto sem saída. E o verbete cithara exemplifica tal fato
como nenhum outro.
Pedrell classifica o verbete nos seguintes termos:
Cithara (lat.) Equivale à CÍTARA. Vem de Kithara e se chama geralmente
Cítara ou Cítola. No século XIV, davam-lhe os nomes latinizados de Guiterna
ou Guinterne, em francês Guitarre, em inglês Gittern e em italiano Cetra. Temos
exposto várias opiniões sobre este instrumento. A mais correta, sob o ponto de
vista moderno, é a que o considera com cordas de metal e parecido com a
guitarra portuguesa de nossos dias. Alguns podem chamá-lo, também, de Lyra.
(1897, 92) 82

82
Tradução livre de: “Cithara (lat.) Equivale à CÍTARA. Viene del Kithara y se llama generalmente Cítara ó
Cítola. En el siglo XIV se le daban los nombres latinizados de Guiterna ó Guinterne, en francés Guitarre, en
inglés Gittern y en italiano Cetra. Hemos expuesto varias opiniones sobre este instrumento. La más
acertada, bajo el punto de vista moderno, es la que lo considera con cuerdas de metal y perfectamente
parecido à la guitarra portuguesa de nuestros días. Algunos suelen llamarle, también, Lyra.” (Pedrell, 1897,
92)
49

Embora não se atenha às práticas do instrumento, o autor relaciona o termo com


outros tantos que identificam cordofones de cordas dedilhadas: kithara, cítola, guiterna,
guinterne, guitarre, gittern, cetra, guitarra portuguesa e lyra. No entanto, uma enorme
confusão se estabelece na relação com o verbete cítara (entrada grafada sem a letra h
depois do t), pois, apesar de tal termo admitir sinonímia com a cithara (grafada com h e
um cordofone aparentado à guitarra), ele também alude a um instrumento que é citado
desde, pelo menos, a Grécia europeia antiga, conforme nos indica o próprio Pedrell:
Cítara, Cetera, ó Cetra, Chitarra tedesca, Chitarra inglese (it.). Quando a
CÍTARA se introduziu na Grécia Europeia, só tinha, como a lira dos dórios,
quatro cordas. Cítaras de cinco ou seis cordas precederam à Citara heptacordo
de Terpandro, que se difundiu, rapidamente, por toda a Grécia. Recebeu nova
forma na época de Cepión, discípulo de Terpandro, que lhe deu o nome de
Asiade ou Asiática.
Diferentes autores do século VII confundem a CÍTARA então usada com a Rota
e o Saltério em forma de triângulo. San Isidoro escreve (Orig. II, 3, 22) que a
CÍTARA imita em sua forma o pescoço e o peito do homem e se diferencia de
outros instrumentos de ponteio, em que o corpo sonoro da CÍTARA se encontra
ao pé das cordas. Tocava-se antigamente com as duas mãos, apoiada sobre o
peito. Variou pouco a pouco de forma, modificou-se a postura com a qual se
segurava o instrumento e passou a se pontear com um plectro ou simplesmente
com os dedos. 83
Foram caindo em desuso muitas variantes da CÍTARA, que convém descrever
como o fizemos em artigos especiais, entre outras as CÍTARAS de 4, 5, 6 e até
12 ordens. Entendia-se por ordem de cordas as duplas e afinadas em uníssono em
que se encordoavam as diferentes variantes deste instrumento. (Pedrell, 1897,
91) 84

83
Já Ernesto Vieira apresenta três acepções para o termo (todas grafadas com a letra h). Na primeira delas,
sua descrição se coaduna à de Pedrell: “1. Cithara. Um dos mais antigos instrumentos de que a archeologia
musical faz menção; era uma espécie de Lyra, com a qual os escriptores antigos a confundiam differentes
vezes, distinguindo-se em ter maiores proporções. Parece que teve origem na Assyria porque é n’esse paiz
que se constata a sua existência mais antiga. D’aqui passou ao Egypto e à Grecia, onde o numero de cordas
foi sucessivamente elevado e a sua construcção aperfeiçoada. ‘Segundo Plutarco a cíthara recebeu uma nova
fôrma no tampo, de Cepion, discípulo de Terpandro. Construida em melhores condições acústicas do que
primitivamente, tornou-se por isso mais pesadas, e deixando de se poder sustentar com a mão esquerda
enquanto a direita feria as cordas com o plectro, foi necessário suspendel-a no hombro por uma larga fita.
Desta então as duas mãos, ficando livres poderam dedilhar as cordas, e o plectro foi abandonado. Estas
modificações foram realisadas principalmente entre os gregos da Asia e da Italia, sempre mais avançados na
cultura da musica que os seus congêneres da Attica, Laconia, Messenia, Elida e Beocia.’ (Fétis, Hist. Geral
da mus). Havia diversos instrumentos do gênero da cithara, cujos nomes mais frequentemente citados pelos
escriptores gregos eram o barbitos, a pectis, e a phorminx.” (Vieira, 1899 [1890], 145)
84
Tradução livre de: Cítara, Cetera, ó Cetra, Chitarra tedesca, Chitarra inglese (it.). Cuando la CÍTARA se
introdujo en la Grecia europea, sólo tenía, como la lira de los dorios, cuatro cuerdas. Cítaras de cinco ó seis
cuerdas precedieron à la Citara heptacordo de Terpandro, que se difundió, rápidamente, por toda la Grecia.
Recibió nueva forma en la época de Cepión, discípulo de Terpandro, que le dio el nombre de Asiade ó
Asiática. Diferentes autores del siglo VII confunden la CÍTARA usada entonces con la Rota y el Salterio en
forma de triángulo. San Isidoro escribe (Orig. II, 3, 22) que la CÍTARA imita en su forma el cuello y el pecho
del hombre y se diferencia de otros instrumentos de punteo, en que el cuerpo sonoro de la CÍTARA se
encuentra al pie de las cuerdas. Tañíase antiguamente con las dos manos, apoyada sobre el pecho. Varió
poco à poco de forma, modificóse la postura en que se tenía el instrumento y se punteó con un plectro ó
simplemente con los dedos. Fueron cayendo en desuso muchas variantes de la CÍTARA, que conviene
describir como lo hacemos en artículos especiales, entre otras las CÍTARAS de 4, 5, 6 y hasta 12 órdenes.
Entendíase por orden de cuerdas las dobles y afinadas al unísono en que se encordaban las diferentes
variantes de este instrumento. (Pedrell, 1897, 91)
50

O dicionarista chega a reproduzir uma imagem do instrumento que, segundo ele,


representa um exemplar da cítara na melhor época etrusca:

Figura 7. Cítara etrusca. Fonte: (Pedrell, 1897, 91)

Esta última correspondência fez com que os pesquisadores brasileiros do tema


desconsiderassem o vocábulo como representante de algum dos cordofones de cordas
dedilhadas ocidentais que chegaram ao Brasil a partir do século XVI. Todavia, os
dicionários primevos da língua portuguesa definem o termo como sinônimo de alguns
instrumentos musicais, entre eles a viola e o alaúde.
Barbosa, ao traduzir o vocábulo harpa do português para o latim, escreve: “Arpa.
Cithara, ae.” (Ib., 107); já Cardoso, o primeiro dicionarista, agrega duas acepções para o
termo: “Cithara, ae. A viola, ou harpa.” (Ib., 35b); Pereira, por sua vez, vai ainda mais
longe ao lhe conferir três significados: “Cithara, ae, f. g. A cithara, ou viola, ou harpa.” 85
(Ib., 170); e finalmente Bluteau aproxima o vocábulo cithara do alaúde: “Instrumento
musico, pouco divérso de alaude; tem cordas de lataõ, & tócase [tocasse] com huma penna
[plectro de pena]. Chitara, ae. Fem. ‘Tomou a espôsa huma Chitara na maõ’.
Vieira.Tom.I.pag.912.” (1712, II/ 331).
Ora, de acordo com nossos primeiros dicionaristas, cithara poderia nominar, então,
instrumentos tão diversos quanto a própria cítara, o alaúde, a harpa e a viola. E, neste
último caso, era tanto aceito o sentido de viola como instrumento próximo ao alaúde (ou

85
As três acepções confirmadas ainda por outros vocábulos próximos: “Citharifta, ae, m.g. O que toca a
cithara, ou viola. [...]. Citharizo, as, avi, atum. Tocar cithara, ou viola, ou harpa. Citharoedus, i, m.g. O
tangedor de cithara, ou viola, ou harpa.” (Pereira, 1723 [1634], 170)
51

seja, cujo modo de execução se dá através dos dedos ou plectros, como acabamos de
constatar em Bluteau), quanto (embora menos comum) o sentido de viola tocada com um
arco, como consta em Pereira, em seu Tesouro da Língua Portuguesa: “Viola de arco.
Cithara, ae.” 86 (Ib., anexo/146).
Mas o que nos interessa, afinal, é reconhecer que nos séculos finais da Idade Média e
nos séculos iniciais pós-descobrimento o termo poderia também designar cordofones de
cordas dedilhadas similares à viola, à guitarra ou ao alaúde. Ernesto Vieira corrobora tal
hipótese em seu Diccionário Musical:
2. Cithara. A cíthara usada na Europa durante a Edade média e até ao século
XVIII, era muito differente da cithara grega. Consistia n’uma especie de guitarra:
denominava-se também cestro, citola, citra, cítula, cistro, cistre, (em fr.) sistre,
sistro e guitarra allemã. Miguel Praetorius, escriptor allemão dos princípios do
século XVII, na celebre obra Syntagma musicum, menciona cinco espécies de
citharas: 1º A cithara commum de quatro pares de cordas: instrumento
illiberabile, sutoribus et sartoribus usitatum, (instrumento grosseiro usado por
sapateiros e remendões). 2º A cithara de cinco cordas afinadas de três maneiras
diversas. 3º A cithara de seis pares de cordas. 4º A grande cithara de seis cordas.
5º A grande cithara baixa de doze cordas. (1899 [1890], 145)

Em Melopeo, Pedro Cerone (1613) afirma que a cythara ou citola apresentava seis
cordas, duas das quais são dobradas, uma em oitava e outra em uníssono. O autor lhe
confere a afinação seguinte:

Exemplo musical 1. Afinação da cithara ou cítola segundo Pedro Cerone, em Melopeo (1613). Fonte:
(Vieira, 1899 [1890], 145)

Constatar esta relação é uma informação decisiva não somente porque o vocábulo
aparece na documentação jesuítica produzida no Brasil ao longo do século XVI, mas
também porque será mencionado em inventários paulistas nas primeiras décadas do século
XVII, conforme veremos no terceiro capítulo. 87 Até o século XVIII, dicionaristas ainda
consideravam tal sentido, segundo nos testifica Silva: “Instrumento músico, de braço mais

86
Para o sentido de viola tocada com os dedos e/ou plectros, Pereira assim traduz do português para o latim :
“Viola. Lyra, ae. Chelys, is.” (1723 [1634], 146, anexo “Tesouro da língua portuguesa”)
87
Uma cithara avaliada em 1280 réis consta no inventário de Francisco Ribeiro, em 22/08/1615, na Vila de
São Paulo. Outra sitra/cíthara avaliada em 480 réis consta no inventário de Francisco Lexo, em 19/02/1632,
na Vila de Santana do Parnaíba. De acordo com Castagna (1991), que levantou os registros inéditos, “o mais
provável é [que] essa cítara que veio parar em São Paulo fosse do tipo que tinha braço e caixa de ressonância,
ancestral da atual guitarra portuguesa, e que naquele tempo também era chamada de guitarra”. (Castagna,
1991, III/672)
52

longo que a viola, com cordas de arame, e trastos de latão huns inteiros, e outros de meia
largura do braço.” (1789, I/279).
Já entre os séculos XIX e XX, pesquisadores e dicionaristas brasileiros e portugueses
foram cristalizando uma acepção para o vocábulo que o distancia de instrumentos
antecessores e/ ou similares ao violão. É o caso de Mário de Andrade 88, Tomás Borba/
Fernando Lopes Graça 89 e do próprio Ernesto Vieira. 90
Do século XIX em diante, a imagem simbólica mais comumente atrelada ao
vocábulo no Brasil (aquela que vem à mente das pessoas quando o verbete é suscitado), é a
que associa o termo a um instrumento bíblico cujas primeiras fontes são tão remotas
quanto as dificuldades em reconhecer sua procedência: “Por que fugiste secretamente e me
enganaste, em vez de me avisares para te fazer uma despedida com festa, cantos, tímpanos
e cítaras?” (Gn 31, 27)
Nos próximos capítulos, observaremos algumas aparições do vocábulo com alguns
destes diferentes significados. E a análise dos contextos será fundamental para discernir
quando o uso do termo faz referência aos cordofones de cordas dedilhadas cujas práticas
realmente nos interessam.

Fides

D) Fides (is, ium). De acordo com Pedrell, um “instrumento de cordas, a mesma lira
de Cícero e Virgílio. As cordas da lira.” 91 (1897, 176). Inicialmente, o termo faz
referência, portanto, a um instrumento musical da Antiguidade correspondente à lira.
Contudo, conforme já observamos, houve desde o período pré-renascentista o hábito
de incorporar às culturas europeias (e consequentemente em suas colônias) caracteres das
artes grega e latina. Os primeiros dicionaristas em língua portuguesa reverberaram tal
prática.

88
“Família de instrumentos de cordas pinçadas com os dedos ou plectros, ou percutidas com baquetas ou
martelos. A caixa de ressonância das cítaras pode ter formatos diversos como um tubo, retângulo, trapézio ou
triângulo, com orifício para saída do som ou com uma cabaça aclopada para aumentar a reverberação. As
cordas, em geral, acompanham todo o comprimento da caixa de ressonância.” (Andrade, 1989, 143)
89
“Finalmente, a cítara tende, nos últimos séculos, para uma evolução formal, que vai tornando definitiva em
alguns países do Norte e pretende espalhar-se por toda a Europa; é a cítara chamada horizontal, que, quanto
ao seu dispositivo, não tem ponto algum de contato já com a primitiva nem com o cistre, que o antecedeu.”
(Borba/Graça, 1962, I/325-326)
90
“A cithara moderna, muito usada no Tyrol, na Austria, Baviera, Suissa e parte da Italia, é um instrumento
similhante ao nosso psalterio.” (Vieira, 1899 [1890], 145)
91
Tradução livre de: “instrumento de cuerdas, la misma Lira según Cicerón y Virgilio. Las cuerdas de la
lira.” (1897, 176)
53

Cardoso, por exemplo, confere a seguinte tradução ao vocábulo: “Fides, is. A corda
da viola.” 92 (Ib., 69) Barbosa, no entanto, já lhe confere explicitamente sentido duplo: 1) O
do próprio instrumento “Viola: Lyra, ae. Fides, fidis.”; 2) E o de corda do instrumento:
“Corda de viola. Fides, fidis.” Acrescentando ainda que “Fides tambem se toma pella
guitarra.” (Ib., 1093). Um relato intrigante porque, neste caso, o dicionarista dá a entender
que se reportava a instrumentos musicais diferentes quando cita a viola e a guitarra.
Ambas as acepções são também prescritas por Pereira: “Fides, is [...]. A viola, a
cithara, & qualquer instrumento musico de cordas; item, as cordas do instrumento.” (Ib.,
351). Finalmente, Bluteau nos revela que, no início do século XVIII, o vocábulo havia
perdido terreno na língua portuguesa, sendo acidentalmente citado na tradução da palavra
“FIDEOS. Fidéos. Na opiniaõ de alguns derivase do plural Latino, Fides, fidium, que
significa cordas de viola, ou de outro instrumento musico, porque Fideos saõ pedacinhos
de fios de maça coada por huns alguidares, cheos de buraquinhos. [...] (Bluteau, 1713,
IV/108).
Fides, portanto, é um vocábulo latino que foi interpretado por nossos dicionaristas
pioneiros tanto como a viola (ou guitarra e, menos comumente, a cithara) quanto como
pelas cordas de tais instrumentos. É um termo que aparece ocasionalmente nos documentos
pesquisados dos séculos XVI e XVII que se referem às atividades musicais no Brasil. A
partir do século XVIII, como vimos em Bluteau, o termo cai em desuso e deixa de ser
lembrado em documentos oficiais ou literários brasileiros.

Fidicula

E) Fidicula (ae). Termo próximo e ligado diretamente ao anterior, fidicula nada mais
é do que o diminutivo de fides, conforme nos ratifica Pedrell: “Lira pequena, segundo
Cícero” (1897, 176) 93. Alguns estudos em língua castelhana costumam correlacioná-lo ao
termo guitarra, como no caso de Fuertes/ Cebrian 94:
Pouca é a diferença que uns e outros [pesquisadores] apresentam em relação ao
tempo de sua origem [da guitarra], ora como sendo inventada pelos mouros ou
pelos espanhóis cristãos; mas é muito provável que se equivoquem quando se

92
Embora também possamos deduzir que, implicitamente, o dicionarista aceitasse a tradução do termo como
simplesmente “viola” (o instrumento), uma vez que traduziu os vocábulos “Fidicen, inis” como “O tangedor
de viola” e “Fidicina, ae.” como “A tangedora de viola”. (Cardoso, 1619, 69)
93
Tradução livre de: “Lira pequeña, según Cicerón”. (1897, 176)
94
Fuertes esclarece em seu próprio livro que esta passagem é, na verdade, tomada da introdução da obra de
“D. Felix Ponzoa y Cebrian, literato y anticuario dintinguido, y sobresaliente aficionado, en la guitarra,
[que] ha escrito unas suscintas nociones de armonía y composición aplicadas á este instrumento, cuyo
autógrafo conservamos en nuestro poder como un recuerdo de amistad y hermandad artística.” (Fuertes,
1857, IV/207)
54

observa que no idioma latino que usavam os romanos quando fizeram da


Espanha uma província sujeita ao universal poder de Roma, já estava admitida a
palavra fidícula significando guitarra, segundo está declarado pela respeitável
academia da língua; e até mesmo citara, que vem a ser a guitarra modificada,
vemos frequentemente usada nos textos sagrados e profanos que chegaram até
nós desde muitos séculos antes da ruína do último rei godo em Guadalete...
(1857, IV/208) 95

Já nos dicionários primevos da língua portuguesa, sua tradução mais imediata seria
“violinha” ou “pequena viola”. Apenas Cardoso, como já havia acontecido com o vocábulo
fides, considera-lhe também o sentido de cordas do instrumento: “Fidicula, ae. A corda de
viola.” (Ib., 69).
Os dois dicionaristas subsequentes, Barbosa e Pereira, apontam para a primeira
acepção: “Fidicula, ae, p.c. Diminutivum [de viola].” (Ib., 1093); “Fidicula, ae, f. g. dim.
A violinha, o trasto de cordas, &c.” 96 (Ib., 351). O termo não é citado no dicionário de
Bluteau, o que anota o seu desuso (a par do que ocorrera com o vocábulo fides) a partir do
início do século XVIII.

Lyra

F) Lyra. Termo que nominou cordofones diversos desde a Antiguidade, mas que
predominantemente, entre os séculos XVI e XVII, referiu-se à viola de cordas dedilhadas e
à guitarra.
2. Lyra. Entre os séculos XVI e XVII, quando o renascimento das artes em Italia
attingia o maior desenvolvimento pela imitação e pelo estudo da antiguidade,
appareceram diversos instrumentos que pretendiam também imitar a lyra dos
gregos e que à falta de outra similhança tinham a do nome; os que se tornaram
mais conhecidos foram os seguintes: Lyra da braccio (lyra de braço), que se
segurava com o braço direito como a guitarra; tinha sete cordas simples e dois
bordões. [...] Pedro Cerone, auctor do Melopeo (1613), menciona unicamente a
lyra moderna, que era talvez a lyra media e a mais usual, dizendo que tinha sete
cordas. Todas as differentes espécies de lyra desappareceram completamente nos
princípios do século XVIII. (Vieira, 1899 [1890], 320)

95
Tradução livre de: “Poca es la diferencia que unos y otros [pesquisadores] presentan en cuanto al tiempo
de su origen [da guitarra], ora fuese inventada por los moros, ó por los españoles cristianos; pero es muy
verosímil que se equivoquen, si se atiende à que en el idioma latino que usaban los romanos cuando hicieron
de la España una provincia sujeta al universal poder de Roma, ya estaba admitida la palabra fidícula que
significa guitarra, segun está declarado por la respetable academia de la lengua; y aun la de cítara, que
biene á ser la guitarra modificada, la vemos frecuentemente usada en los textos sagrados y profanos que han
llegado hasta nosotros desde muchos siglos antes de la ruina del último rey godo en Guadalete…” (1857,
IV/208)
96
Pereira reafirma a tradução em seu Tesouro da Língua Portuguesa: “Violinha. Fidicula, ae.” (Pereira,
1723 [1634], 146, anexo).
55

Importante não confundir com o vocábulo lira (com o i trocado pelo y), atualmente
associado a um instrumento de outra natureza, mas cujo termo, nos séculos em questão
(XVI e XVII), detinha um significado pejorativo. 97
Entre os dicionários primevos da língua portuguesa, Cardoso, o autor pioneiro,
traduz o vocábulo do latim para o português valendo-se de seu significado mais usual:
“Lyra, ae. A viola” (Ib., 107). No entanto, já na tradução do português para o latim 98, o
dicionarista considera, além de viola, outros dois sinônimos: “Descante 99. Lyra, ae.” (Ib.,
289); “Guitarra. Lyra, ae.” (Ib., 307); “Viola. Lyra, ae.” (Ib., 341b).
Os dicionários posteriores nos ajudam pouco na resolução da questão. Barbosa
considera Lyra para dois vocábulos em português (descante e guitarra) 100; já em Pereira,
também observamos a tradução por dois sinônimos (viola e guitarra). 101
Um leitor arguto pode questionar se os termos dicionarizados estavam efetivamente
em uso. A resposta virá na quantidade maciça de citações que tais vocábulos vão suscitar
na documentação jesuítica que levantamos sobre os cordofones de cordas dedilhadas entre
séculos XVI e XVII.
Tal fato nos revela, por um lado, a possível pluralidade do significado do termo e,
por outro, a dificuldade viva de se distinguir com exatidão entre instrumentos próximos e
que ainda se encontravam em permanente estágio de transformação e desenvolvimento.
Assim, da mesma forma que é possível ventilar que o termo poderia designar cordofones
distintos, também não é inimaginável postular que, neste caso, guitarra, viola e descante se
refiram a um só instrumento (aqui reunidos pelo vocábulo Lyra).
Bluteau, já no início do século XVIII, aponta para a transição do sentido do termo
antigo para o atual na língua portuguesa (no qual, por um lado, o termo “lira” passa a
representar o instrumento mitológico e bíblico cuja raiz é impossível precisar, enquanto,
por outro, lyra no sentido de viola/ guitarra/ descante passa paulatinamente a cair em
desuso):

97
Lira, ae, f.g. O rego, vaidade, ridicularia, coufa futil, &c. alii, a margem. I. L. Colum. (Pereira, 1723
[1634], 495). Contudo, a partir do século XIX alguns autores aceitaram a correspondência terminológica
entre lyra e lira como um cordofone de cordas dedilhadas aparentado à viola ou à guitarra. È o caso de
Fuertes: “La lira, dicen unos, es la vihuela y la cítara, otros que es la viola y la guitarra. Unos que se toca
con el plectro, otros que con el arco, otros que con los dedos: y la lira, citara, vihuela, viola y guitarra son
tenidas por muchos autores como una misma cosa, siendo para nosotros muy diferentes aunque derivadas
unas de otras.” (1857, IV/205)
98
O dicionário bilíngue apresenta dupla tradução: latim/ português e português/ latim.
99
Termo que investigaremos mais depuradamente na seção de Português-Arcaico.
100
“Discante. Lyra, ae. Barbitus, i”. (Ib., 397); “Guitarra. Lyra, ae.” (Ib., 588).
101
“Lyra, ae, f.g. A viola [...].” (Ib., 507); Guitarra. Lyra, ae. Guitarrinha. Lyra minor. (Ib., anexo/87)
56

LYRA. Instrumento Musico tam antigo, que nem da sua figura, nem do numero
das suas cordas consta certeza alguma. Tem para si os Mythologos, que
Mercurio, filho de Athlante, & Maya, fora o inventor della, & que a dera a
Orpheo (outros dizem a Apollo). Em pinturas, & medalhas antigas se representa
a lyra quasi de figura circular. Hygino lhe dá outra figura. Dizem outros que era
triangular, & que a Lyra tinha a figura de dous SS oppostos hum ao outro.
Querem alguns que a Lyra dos Gregos fosse o mesmo que a nossa viola. Hus
[uns] fazem a lyra de tres cordas, outros de quatro, & outros de sete. A Lyra
moderna tem o braço, & os trastos largos, cubertos de quinze cordas, das quaes
as feis primeiras fazem só tres fileiras. Blafio Vigenero, in Amphionem
Pbiloftrati, confunde a lyra dos Antigos com a cithara, & com philosoficas
accommodações taõ engenhosamente appopprîa a composição, & harmonia do
Universo com este Musico instrumento [...]. (1716, V/220-221) [grifo nosso]

Para nós, o importante é reconhecer que, entre os séculos XVI e XVII, Lyra era um
dos sinônimos possíveis para viola/ guitarra/ descante em solo brasileiro. E que, com esta
acepção, aparecerá algumas vezes nos documentos que investigaremos nos próximos
capítulos.

Testudo

G) Testudo (inis). O último termo que reunimos e investigamos em latim é também


aquele cujos possíveis sinônimos mais se distanciam entre si. Testudo, entre os séculos
XVI e XVII, poderia significar tanto o instrumento alaúde quanto fazer referência a uma
pessoa, digamos, em estado vexatório, conforme nos indica Cardoso: “Testudo. p. p. inis.
O cagado, ou alaúde, ou abobada, ou vay & vem.” (Ib., 231b). Na tradução do português
para o latim, o termo ainda é descrito pelo dicionarista como o correspondente direto de
alaúde: “Alaude. Testudo, inis. Alb.” (Ib., 261), embora vocábulos próximos também
reafirmem as definições curiosas do termo. 102
Vieira não somente ratifica a correspondência entre os verbetes testudo 103 e alaúde,
como também explica a razão pela qual se sustenta a sinonímia:
Testudo. A lyra primitiva dos gregos era formada com uma casca de tartaruga,
por isso os poetas latinos chamaram-lhe algumas vezes testudo, nome que em
latim é dado à tartaruga. ‘Tuque, testudo, resonare septem Callida nervis’.
(Horacio, Ode III) Os auctores latinos dos séculos XVI e XVII chamaram
também testudo ao alaúde, cuja forma convexa era egualmente parecida com a
casca da tartaruga. (1899, 495) 104

102
“Testudinatus, a u. Cousa abobodada.” [talvez por isso, remetia-se também à forma física do alaúde e,
porque não dizer, das...]; “Testudineus, a.um. Cousa de cagado.”; “Testudineus gradus. O andar soberbo, ou a
passada vagarosa, como de cagado.” (Cardoso, 1619, 231b). E ainda em Pereira: “Testudineus, a, um.
Cousa de cagado, de tartaruga, ou de aboboda, ou semelhante a cagado, &c.” (Pereira, 1723 [1634], 893).
103
O alaúde “também muitas vezes era designado com o nome latino de testudo por causa da similhança com
a casca de tartaruga.” (Vieira, 1899[1890], 43)
104
A relação com a lira primitiva e o formato da casca de tartaruga é reiterada por Pedrell: “Testudo. Lira
primitiva formada con el caparazón de la tortuga. De aquí el nombre de este instrumento (del latin testudo,
inis). Su forma, como se adivina, era redondeada en su extremidad inferior, al contrario de la cítara antigua
57

O vocábulo, que não é citado individualmente no dicionário de Barbosa, tem sua


diversidade de significados reafirmada por Pereira, que assim o define: “Testudo, dinis,
f.g. O cagado, a tartaruga, manta de guerra, ou vaivem, machina de bater os muros,
esquadram fechado, cuberto com os escusos, a abobada do edificio; item, o alaude,
instrumento musico; item, a Lyra constellaçam; item, dor de cabeça.” (Ib., 893).
Nas primeiras décadas do século XVIII, Bluteau nos revela que o termo já adquirira
o seu significado atual, passando a nominar apenas as pessoas com testa proeminente:
“TESTÛDO. Cabeçudo. Vid. no seu lugar.” (1721, VIII/138).
Com isso, temos base para iniciar o nosso glossário de termos correspondentes a
partir das palavras latinas:
- Alaúde: Barbitus, Chelys, Testudo, Cithara (menos comum);
- Guitarra: Lyra, Fides, Fidicula (“pequena guitarra”);
- Viola: Lyra, Fides, Fidicula (“violinha” ou “pequena viola”), Cithara, Chelys
(menos comum).
Sigamos, então, para a próxima língua.

1.4.2 Galego-Português.

Com obras escritas na transição do século XIX para o XX, dois pesquisadores são
vitais para uma melhor compreensão sobre os instrumentos musicais que circulavam na
Península Ibérica durante a Idade Média. São eles:
1) O já citado compositor e musicólogo espanhol Felipe Pedrell (1841-1922), cuja
relevância para o nosso objeto de estudo se concentra especialmente em duas publicações:
1) Emporio Científico e Histórico de Organografía Musical Antigua Española (1901); 2)
Diccionario técnico de la Música (1897).
2) A filósofa alemã Carolina Michaëlis de Vasconcellos (1851-1925) 105, que no
segundo volume de seu estudo sobre o Cancioneiro da Ajuda (1904) 106, embora não trate

que era una caja sonora, rectilínea por la base, y más variada que la lira por lo que toca al número de
cuerdas. Dice Pausanias que en su tiempo (por el año 175 de la era cristiana) las forestas de la arcadia
estaban llenas de jaballes, osos y tortugas descomunales, con las cuales se podían construir liras tan
grandes como las que se hacían con las tortugas de la India.” (1897, 450)
105
Doutora Honoris Causa em Filosofia, “nasceu em Berlim, fez estudos particulares de romanística e
instalou-se em Portugal em 1876, depois de casar com o crítico de arte Joaquim de Vasconcelos. Tendo a sua
residência no Porto, mudou-se durante cinco meses para Lisboa no ano seguinte, a fim de fazer a transcrição
do Cancioneiro da Ajuda [...]” (Castro, 2004, 5). Exceto do artigo apresentado por Ivo Castro no Colóquio
comemorativo do centenário da edição de Vasconcellos em Lisboa, FLUL. Disponível online no endereço:
http://www.clul.ul.pt/files/ivo_castro/2004_edies_do_Canc._Ajuda.pdf
Acesso em 06/09/2013, às 18h51min.
58

especificamente sobre música, nos oferece uma análise em contexto de como os


instrumentos eram inseridos e utilizados pelo corpus social. É uma publicação posterior à
de Pedrell e na qual, portanto, a pesquisadora já pôde aproveitar os avanços realizados pelo
musicólogo espanhol, sobre o qual, inclusive, declarou: “A elle [ao livro de Pedrell] deverá
recorrer d’oravante quem desejar instruir-se a fundo sobre os instrumentos musicaes
usados no sec. XIII na península.” (1904, II/640)
Em um dos subcapítulos anteriores (1.2 – Problemas terminológicos), foi possível
delinear alguns dos caminhos seguidos para a afirmação e o posterior declínio da prática da
língua galego-portuguesa e identificar a faixa territorial na qual ela foi mais utilizada.
Também constatamos que a base de dados do Projeto Littera 107 é, atualmente, um
importante espaço virtual para o conhecimento e análise do cancioneiro galego-português
(do qual extrairemos muitas informações nos próximos subcapítulos). E não somente por
permitir o acesso à totalidade das cantigas dos três principais cancioneiros medievais
profanos e por reproduzir as imagens dos códices (que nos revelam preciosas informações
sobre as práticas musicais do período), mas também pelas informações sobre os autores,
personagens, lugares, notas explicativas e ainda por conter um glossário que permite fazer
a correspondência terminológica entre o galego-português e o português.
Assim, ao pesquisar o vocabulário contido no glossário e nas cantigas e cruzá-lo com
as informações colhidas nos livros de Pedrell e Vasconcellos, foi possível constatar que os
termos cítola e suas variantes (cítula, citolar, citolom, citolon) fazem referência a
instrumento(s) diretamente relacionado(s) ao nosso objeto de estudo. A correspondência
fica clara quando visualizamos as traduções de tais vocábulos para o português:
“CÍTOLA - Cordofone dedilhado com plectro”.
“CITOLAR – Tocar a cítola.”
“CITOLOM - Tem-se interpretado ‘citolom’ como uma grande cítola, mas é possível
que o termo designe a viola de arco, mais volumosa e bojuda que o instrumento que se
associa à palavra ‘cítola’ (cordofone dedilhado com plectro).” 108

A partir de então, sua pesquisa só iria concluir com a entrada na tipografia (em 1900) e a posterior publicação
(em 1904) do II vol. de sua edição crítica e comentada do Cancioneiro da Ajuda. O I vol. já havia sido
encaminhado para a tipografia em 1895.
106
Um dos estudos que mais nos revelam sobre o papel da música nos cancioneiros portugueses: em sua
clássica edição crítica, a autora relaciona a prática musical entre os cancioneiros, cita diversos instrumentos e
nos deixa antever o contexto dos seus usos nos documentos (especialmente no II volume, dedicado a
investigações bibliográficas, biográficas e histórico-literárias expressas em mais de 1.000 páginas textuais).
107
http://cantigas.fcsh.unl.pt/apresentacao.asp
Acesso em: 14/05/2013, às 18h56min.
108
Fonte: site do Projeto Littera: http://cantigas.fcsh.unl.pt/glossario.asp?letra=C
59

Ao glossário do Projeto Littera, soma-se o índice remissivo do livro de


Vasconcellos. Nele, podemos verificar como o termo era disseminado de tal forma que
poderia definir uma prática, um instrumento musical e mesmo um nome próprio, acepções
que, contudo, sempre guardam algum nível de relação com o cordofone (o jogral Cítola,
por exemplo, era assim chamado porque tocava o instrumento). Vejamos os significados da
autora para cítola e suas variantes:
“cítola, cítula, citolon, guitarra dos jograes.”
“Cítola, alcunha de um jogral de Alfonso X.”
“citolar, tocar guitarra.” (1904, II/960)
Ao citar o livro de Cerone 109, Pedrell faz uma distinção entre os instrumentos
tocados por “pluma, arco e com a ponta dos dedos”, deixando-nos antever de que modo
eram articulados o alaúde e a cítola: “Também a cítola ou cítara se toca com pluma
[subtipo de plectro], mas, porém, sem vento e sem teclas... Os [instrumentos] de arco são
as lyras, vihuelas de arco, violones, rabeles ou rebequines. Outros são tocados com a ponta
dos dedos, como os laúdes, arpas, tiorbas, etc.” 110 (1901, 14)
Ernesto Vieira, por sua vez, admite a correspondência entre a cítola e a cithara,
termo que, como vimos no item anterior, poderia nominar tanto a viola, a guitarra ou o
alaúde entre as últimas centúrias da Idade Média até meados do século XVIII: “Citola,
Citra, Citula. O mesmo que cithara”. (1899 [1890], 147)
Em seu Diccionario técnico de la música, Pedrell também aceita esta paridade
terminológica, explicando ainda que cítola foi, na verdade, o nome espanhol antigo da
cítara.
Cítola. Nome espanhol antigo da CÍTARA. Segundo Fétis, o nome de CÍTOLA,
mencionado pelos poetas da Idade Média, foi usado como diminutivo da
CÍTARA ou do CISTRO daquela época e significa, sem dúvida, o KLEIN
CITHER mencionado pelos antigos autores alemães [...] A CÍTOLA se parecia
muito com a GUITERNA, mas sem o corpo nem o braço [mástil] tão prolongado
como os deste instrumento.
Muito reconhecido era este instrumento quando já no século XIII os fabricantes
desta classe de instrumentos se chamaram CITOLEROS (CITOLEURS, francês),
nome abandonado, depois, pelo de LUTHIER (fr.). (1897, 92) 111

Acesso em 10/07/2013.
109
Melopeo y Maestro, do italiano Pietro Cerone (1566-1625), publicado em Nápoles em 1613.
110
Tradução de: También la citóla ó cythara se tañe con pluma [subtipo de plectro], mas, empero, sin viento
y sin teclas... Los de arquillo son las lyras, vihuelas de arco, violones, rabeles ó rebequines. Otros hay que se
tocan con punta de dedos, como los laúdes, arpas, tiorbas, etc. (Pedrell, 1901, 14)
111
Tradução livre de: “Cítola. Nombre anticuado español de la CÍTARA. Según Fétis, el nombre de CÍTOLA,
mencionado por los poetas de la Edad Media, ha debido usarse como diminutivo de la CÍTARA ó del
CISTRO de aquella época y significará, sin duda, el KLEIN CITHER mencionado por los antiguos autores
alemanes […]. La CÍTOLA se parecía mucho à la GUITERNA, pero sin el cuerpo ni el mástil tan
prolongado como los de este instrumento. Privaría mucho este instrumento cuando allá en el siglo XIII los
60

Uma figura deste instrumento se encontra no livro Syntagma Musicum, de Michel


Praetorius:

Figura 8. Cítola reproduzida no livro Syntagma Musicum, de Michael Praetorius. Fonte: (Pedrell, 1897, 92)

Portanto, o que podemos depreender das citações é que o termo Cítola designava um
cordofone (“a guitarra dos jograis”) dedilhado com o auxílio de um plectro (palheta) e que
também admitia o vocábulo cithara, dentre outros, como sinônimo. Tais informações são
decisivas para distinguirmos, mais adiante, entre os diferentes tipos de cordofones que
circulavam na Península Ibérica.
Não obstante, este foi provavelmente o instrumento mais popular no período que
compreende a realização dos cancioneiros medievais profanos escritos em galego-
português, conforme podemos depreender da seguinte citação de Vasconcellos:
Entre todos, o mais importante, verdadeiramente popular no território gallaico-
português, e que por isso mesmo é mencionado a miúdo, era a cítola, cítula (de
cithãra), espécie de guitarra, ou guiterna, parecida à viola de arco, a Fiedel dos
germanos. Esse era typico de modo tal que deu nome a um executante, do
serviço del rei D. Alfonso X112 [o já citado jogral “Cítola”]. De cítola também
foi derivado o verbo citolar, para designar o mester principal dos jograes em
geral, e especialmente de alguns nossos conhecidos como Lourenço, Lopo,
Juião, Picandom. (1904, II/640)

fabricantes de esta clase de instrumentos se llamaron CITOLEROS (CITOLEURS, francés), nombre


abandonado, después, por el de LUTHIER (fr.).” (Pedrell, 1897, 92)
112
“É o próprio rei quem nos informa das queixas levantadas pelo seu jogral Cítola, por não lhe pagarem
devidamente as suas soldadas: Cítola vi andar -se queixando, de que Ihi non dan sas quitações (CV 71).”
(Vasconcellos, 1904, II/640)
61

A leitura integral dos cancioneiros profanos galego-portugueses (Cancioneiro da


Ajuda, Cancioneiro da Vaticana e Cancioneiro da Biblioteca Nacional), sobre os quais nos
ateremos mais atentamente no capítulo seguinte, nos permitiu constatar que o termo cítola
só aparece diretamente em uma das cantigas: Foi a cítola temperar [afinar], de Martim
Soares113. Os termos correlatos, no entanto, são mais frequentes: o verbo citolar é usado 06
vezes em 04 diferentes cantigas 114; enquanto a palavra citolom, por sua vez, é usada outras
06 vezes em 05 distintas cantigas. 115
Nos subcapítulos seguintes, desvelaremos alguns dos contextos, personagens e
discursos socioculturais relacionados à cítola, bem como analisaremos com mais
profundidade os cancioneiros e gêneros nos quais o termo é citado.

1.4.3 Castelhano.

Como já observamos, o castelhano é uma língua que se sedimentou a partir do


cruzamento do latim vulgar românico com os vários dialetos germânicos e muçulmanos
(árabes/ mouros) praticados inicialmente no norte da Península Ibérica (região de Castela).
Com a expansão progressiva do reino de Castela para o centro e o sul da Península a partir
do século X, o idioma rapidamente se difundiu a tal ponto que, já no século XIII, havia se
tornado a língua majoritária na faixa territorial que hoje compreende a Espanha.
Portanto, parte substancial da literatura ibérica concebida entre os séculos XIII e XVI
foi escrita neste idioma. Em seu El Libro del Buen Amor (provavelmente redigido entre os
anos de 1330-1343 e que investigaremos mais adiante), Juan Ruiz (c.1282/3–c.1350), o
Arcipreste de Hita 116, nos adiciona algumas nomenclaturas ainda não mencionadas em

113
Cantiga presente tanto no Cancioneiro da Vaticana (identificada com o número 971) quanto no
Cancioneiro da Biblioteca Nacional (identificada com o número 1363). Tem como temática uma sátira
(Cantiga de Escárnio e Maldizer) às parcas habilidades do jogral Lopo que “citolava mal e cantava peior”,
segundo descrição do próprio Martim Soares.
Fonte: http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=1394&nl=1&tr=1&pv=sim
Acesso em 10/07/2013.
114
São elas: 01) Jograr Saco, nom tenh'eu que fez razom, de Fernão Pais de Tamalancos; 02) Lourenço
jograr, hás mui gram sabor, de João Garcia de Guilhade; 03) Lourenço nom mi quer creer, de Pedro Amigo
de Sevilha; 04) Muito te vejo, Lourenço, queixar, de João Garcia de Guilhade.
115
São elas: 01) Com alguém é 'qui Lopo desfiado, de Martim Soares; 02) Lopo jograr, és gargantom,
também de Martim Soares; 03) Lourenço, pois te quitas de rascar, de João Garcia de Guilhade; 04)
Lourenço, soías tu guarecer, de João Peres de Aboim; 05) Ora quer Lourenço guarir, de João Garcia de
Guilhade.
116
Arcipreste é um título conferido a alguns vigários (sacerdotes responsáveis por uma paróquia/Igreja) e que
lhes confere primazia sobre outros vigários. Geralmente, há um arcipreste vigário responsável por uma
determinada região, província ou jurisdição na qual estão circunscritas as suas igrejas e seus respectivos
sacerdotes. Foi o caso do sacerdote Juan Ruiz, Arcipreste de Hita, povoado de Andalucía, na Espanha
(situado na província de Guadalajara, a 77 quilômetros de Madrid). Homem culto, além de poeta e sacerdote
com profundo conhecimento teológico, Juan Ruiz era também especialista em direito canônico e civil. Seu El
62

outras línguas: a guitarra latina; a guitarra mourisca; a vihuela de péndola (ou seja,
tocada com plectro de pena de ave), além de um “corpudo laud”, instrumento musical já
conhecido.
Ao apresentar sua análise sobre a guitarra mourisca 117 e a guitarra latina 118,

Pedrell nos auxilia a entender as suas possíveis procedências e também a distinguir e/ ou


associar tais instrumentos aos outros dois citados – o alaúde e a vihuela de péndola:
Guitarra mourisca. – Um livro, e não uma simples notícia, poderia ser escrito
com os dados históricos e artísticos que são fornecidos sobre este instrumento. O
Arcipreste de Hita [Juan Ruiz], como bom conhecedor, faz a distinção necessária
entre a guitarra mourisca e a guitarra latina. Parece que os mouros da
Espanha, procedentes dos árabes da Ásia e da África, introduziram-na em nosso
país [Espanha]. Mas não puderam, talvez, cultivar aqui a guitarra, que por isto
se chamaria, quiçá, latina, instrumento derivado da antiga Kithara, introduzida
na Espanha pelos romanos. Se assim for, quando o tampo inferior perdeu sua
forma abaulada [acaparazonada] alisando-se como o superior? De qualquer
forma, parece [p. 51] que a guitarra mourisca, segundo o modo em que devia
cantar-se, afinava-se em ré-sol-ré-lá ou em mi-lá-si-mi, afinação que tinha
relação com os modos do sistema pitagórico.
Este tipo de guitarra, com o tampo inferior em forma de concha, usa-se ainda na
Argélia com o nome de kouitra, nome que se modifica de acordo com os
dialetos: é mais suave na Tunísia e sobretudo em Alexandria, onde a letra t se
pronuncia como o th dos ingleses; e, pelo contrário, mais dura em parte do
Marrocos, onde é chamada simplesmente de Kitra. Da Kitra dos marroquinos à
guitarra do nosso país, a diferença é pequena. De todas estas analogias pode
concluir-se, talvez, que a antiga kithara foi introduzida na Espanha pelos
romanos e que a árabe pode, quem sabe, ter se modificado no sentido indicado,
alisando o tampo inferior do instrumento, em princípio côncavo. Os franceses
parecem ter tomado dos mouros da Espanha a guitarra chamada morache ou
enmorache, muito difundida durante os últimos tempos da Idade Média. As
desinências de tais nomes acusam visivelmente a procedência. (Pedrell, 1901,
50-51) 119

libro del buen amor foi provavelmente escrito durante os treze anos de cárcere (1330-1343) no convento de
São Francisco, em Guadalajara, prisão motivada pelo fato de alguns de seus escritos terem desagradado
profundamente um de seus superiores, o arcebispo cardeal de Toledo, Dom Gil.
117
Em seu Diccionário técnico de la música, o mesmo Pedrell sintetiza a descrição sobre a “Guitarra
morisca. Llamada en Francia, donde parece se difundió mucho, Morache y Enmorache. Los franceses
parece que la tomaron de los moros de España procedentes de los árabes de Asia y Africa. La guitarra
morisca se llamó también, Arpolira y Colachón.” (1897, 214)
118
Ainda em seu Diccionário técnico de la música, Pedrell também apresenta uma síntese sobre a “Guitarra
latina. Nombre dado antiguamente à la guitarra española para no confundirla con la morisca que tenia gran
semejanza con el Laud.” (1897, 214)
119
Tradução livre de: “Guitarra morisca. - Un libro, que no una simple noticia, podría escribirse con los
datos históricos y artísticos que suministra este instrumento. El Archipreste de Hita, como buen conocedor,
hace la distinción obligada entre la guitarra morisca y la guitarra latina. Los moros de España, procedentes
de los árabes de Asia y de África, parece que la introdujeron en nuestro país. Pero; no pudo, acaso,
cultivarse aquí la guitarra, que por esto llamaríase, quizá, latina, instrumento derivado de la antigua
kithara, introducida en España por los romanos. Si es así, cuándo perdió la tabla inferior su forma
acaparazonada alisándose como la superior? Sea como quiera, parece que [página 51] la guitarra morisca,
según el modo en que debía cantarse, templábase en re-sol-re-la ó bien en mi-la-si-mi, templado que tenía
relación con los modos del sistema pitagórico. Esta clase de guitarra, con la tabla inferior en forma de
caparazón, úsase todavía en Argelia con el nombre de kouitra, nombre que se modifica según los dialectos,
más dulce en Túnez y sobre todo en Alejandría, en donde la letra t se pronuncia como la th de los ingleses,
más dura, por lo contrario, hacia la parte de Marruecos, donde se la llama sencillamente kitra. De la kitra
de los marroquíes á la guitarra de nuestro país, la diferencia es poco sensible. De todas esas analogías
63

Ou seja, segundo Pedrell, a guitarra mourisca provavelmente foi introduzida na


Espanha pelos mouros/ árabes do norte da África e/ ou da região mais próxima da Ásia,
enquanto a guitarra latina deriva-se da antiga khitara, que foi legada aos espanhóis pelos
romanos (fato que justificaria o seu codinome - latina). Ainda sobre a guitarra mourisca,
Pedrell nos oferece detalhes sobre as suas afinações mais usuais (ré-sol-ré-lá; mi-lá-si-mi)
e suas respectivas correlações com os modos pitagóricos, deixando-nos antever, por
consequência, o número de cordas do instrumento: quatro (04). Por fim, nos revela que
houve uma transformação do seu tampo inferior, inicialmente abaulado (côncavo) e
posteriormente plano (reto, tal qual o tampo superior, onde repousam as cordas do
instrumento).
Especificamente sobre a guitarra latina, por sua vez, nos diz o seguinte:
Guitarra latina. A guitarra primitiva seguiu mais ou menos estável com as suas
quatro ordens de cordas até que o famoso poeta e maestro de capela Vicente
Espinel acrescentou a quinta ordem, por volta dos anos 1570. Quando a guitarra
invadiu o terreno da vihuela, o número de cordas foi aumentado para seis. Não
devem confundir-se sob a mesma denominação esses dois instrumentos. A
vihuela, que chegou a ter sete ordens 120, era instrumento cultivado pelas classes
aristocráticas e se tocava ponteando; a guitarra, pobre e popular, se tangia
rasgueando. Em princípios do século XVIII já eram um só instrumento, ficando
as antigas guitarras ou guitarros relegadas às classes mais baixas, em algumas
províncias, quase em seu estado primitivo. (Pedrell, 1901, 52) 121

Se aceitássemos narrar os fatos a partir de uma história linear, duas informações


despontariam pertinentes para conectarmos a trajetória de tais instrumentos musicais com a
do violão: 1) A que sugere ter sido o poeta e músico espanhol Vicente Espinel (1550-1624)
o introdutor da quinta corda da guitarra por volta dos anos de 1570; 2) A que indica que a

puede concluirse, quizá, que la antigua kithara fué introducida en España por los romanos y que la árabe
pudo, acaso, modificarse en el sentido indicado, alisando la tapa inferior del instrumento, al principio
cóncava. Los franceses parece que tomaron de los moros de España la guitarra llamada morache ó
enmorache, muy difundida durante los últimos tiempos de la Edad media. Las desinencias de tales nombres
acusan visiblemente la procedencia.” (Pedrell, 1901, 50-51)
120
“Primeiramente descrita no tratado de J. Bermudo”. (Pedrell, 1901, 14). “VIHUELA DE SIETE
ÓRDENES. -Nos habla el P. Bermudo de ‘una vihuela de siepte órdenes de cuerdas’. Usábanla los
tañedores de su época- tanto es así que consigna este dato: ‘En algunas obras cifradas del claro Guzmán
hallaréis esta viola’ (sic por vihuela, instrumento llamado indistintamente con ambos nombres). Mucho se
ha hablado de la vihuela de mano que el P. Bermudo presenta en grabado ad hoc y tiene, como se ha dicho,
una séptima cuerda adicional. En otra parte de este estudio, hemos señalado esta particularidad.” (Pedrell,
1901, 96)
121
Tradução livre de: “Guitarra latina. - La guitarra primitiva siguió poco más ó menos estacionaria con
sus cuatro órdenes de cuerdas, hasta que el famoso poeta y maestro de capilla Vicente Espinel le añadió la
quinta orden, allá por los años 1570. Cuando la guitarra invadió el terreno de la vihuela, aumentáronse
hasta seis el número de cuerdas. No deben confundirse bajo una misma denominación esos dos instrumentos.
La vihuela, que llegó á tener siete órdenes, era instrumento cultivado por las clases aristocráticas y se
tocaba punteando; la guitarra, pobre y popular, se tañía rasgueando. A principios del siglo XVIII ya eran un
solo instrumento, quedando relegadas al pueblo bajo, en algunas provincias, las antiguas guitarras ó
guitarros casi en su estado primitivo.” (Pedrell, 1901, 52)
64

sexta corda foi só possivelmente incorporada quando guitarra e vihuela, no início do


século XVIII, passaram progressivamente a ocupar o mesmo “terreno” (ou seja, tornaram-
se um só instrumento). Ainda dentro de tal linha de raciocínio, a informação mais decisiva
diria respeito ao que, na verdade, diferenciava tais instrumentos durante os últimos séculos
da Idade Média e o início do Renascimento: o seu uso distinto por classes sociais também
distintas. Por um lado, a aristocrática e ponteada vihuela; por outro, a pobre, popular e
rasgueada guitarra.
Tal distinção é reafirmada por Subirá quando ele pontua que os instrumentos se
diferenciavam, entre outras razões, pelas classes sociais a que serviam: “a guitarra não
difere da vihuela pela forma nem pelo tamanho, mas apenas pelo número de cordas, o
modo de execução – rasgueado naquela e ponteado nesta – o repertório e as classes sociais
a que se destinam”. (Subirá, 1953, 205). Por sua vez, na célebre Declaración de
Instrumentos Musicales, Juan Bermudo afirmaria que “la guitarra que entonces tenia por lo
general cuatro cuerdas – se conseguía con solo quitar a la vihuela la prima y la sexta
cuerdas” (Apud Subirá, Ib.). Temos, assim, um convite expresso para escrever uma história
dual, baseada eu uma ampla bibliografia que cria, naturaliza e reproduz tais conceitos e que
basicamente se ancora nas características antagônicas de dois instrumentos que
supostamente foram se moldando pouco a pouco até finalmente desembocar no violão.
A descrição da guitarra mourisca (de caixa ovalada e cordas metálicas
executadas geralmente com plectro) de las voces aguda, de los puntos arisca,
leva a crer que o instrumento possuía sonoridade gritante, mais apropriada ao
acompanhamento rasgueado 122. A guitarra latina, com suas cordas de tripa
pinçadas geralmente com os dedos, deveria soar com mais doçura. (Taborda,
2011, 24)

Mas o fato é que a história não foi tão linear quanto aparenta. Primeiro, porque os
usos de tais instrumentos musicais certamente não foram estanques (sabemos, por
exemplo, que a inevitável circularidade dos objetos na sociedade deveria permitir que as
guitarras também fossem usadas por nobres, ao passo que a vihuela também estivesse nas
mãos de personagens mais populares). Depois, porque não existiram apenas, por um lado,
guitarras latinas e mouriscas entre os séculos XIII e XIV, do mesmo modo que, por outro,
também não existiram apenas guitarras e vihuelas entre os séculos XV e XVI circulando
na Península Ibérica. Havia dezenas de outros cordofones de cordas dedilhadas (e mais

122
“O termo espanhol rasgueado, traduzido em português como rasgado, refere-se à técnica (e ao estilo) de
execução da mão direita, na qual os dedos, com movimento em bloco alternando os sentidos ascendente e
descendente, atingem todas as cordas, metaforicamente rasgando-as. No ponteado, os dedos da mão direita
articulam individualmente as diferentes cordas, respeitando a individualidade das vozes.” (Taborda, 2011,
25)
65

ainda de vocábulos que os identificavam) com características, funções e práticas próximas


e que não foram sequer mencionados na bibliografia brasileira. Só o poema de Juan Ruiz,
por exemplo, cita nada menos que 07 deles: a guitarra mourisca, a guitarra latina, o laud,
a vihuela de peñola, a cítola, a cítola albordada, o medio caño e o orabin. 123
Apenas dois dos instrumentos aludidos nos apresentam uma nomenclatura familiar: o
alaúde e a vihuela de peñola. Sobre o primeiro, mais informações já foram oferecidas
anteriormente na análise dos termos latinos e, como o próprio Pedrell sugere, seus dados
históricos são mais difundidos e acessíveis em estudos e publicações diversas.
Já sobre a vihuela de peñola, cumpre notar que o instrumento se distinguia da vihuela
por ser tocada com a ajuda de um plectro:
Vihuela de péndola ó péñola. Variante da cítara ou outro instrumento que por
corrupção ou extensão se chamou vihuela de péndola ou péñola, porque o seu
plectro era feito com uma pena de ave [cañón de una pluma]. (Pedrell, 1901, 54)
124

O fato de o autor sugerir que a vihuela de peñola tenha sido uma variação da cítara
também é um fator destacável, uma vez que ratifica o ponto de vista de que as variações e
transformações entre os instrumentos musicais medievais na Península Ibérica foram muito
mais sensíveis e amplas do que se imagina. Aqui, deve-se pontuar que o termo cítara (que
dentre as suas possíveis acepções, como já vimos, referia-se a um cordofone de cordas
dedilhadas), é identificado diretamente com a vihuela de péndola, a par do que ocorrerá
também com a cítola galego-portuguesa.
O embaralhamento dos termos é ainda reiterado pela constatação de que dentro dos
próprios domínios castelhanos o vocábulo viola também foi amplamente utilizado na Idade
Média. Vieira, por exemplo, o toma como sinônimo para vihuela 125 e Pedrell nos afirma
que o mesmo instrumento era “chamado indistintamente com ambos os nomes.” 126 Não à
toa, alguns termos musicais do período, em castelhano, remetem a palavras que nos são
muito familiares em português, conforme podemos atestar no índice terminológico que
Vasconcellos nos apresenta em seu estudo sobre os cancioneiros:
“cítara, nome castelhano do instrumento de música que os antigos galego-
portugueses chamavam cítola.” (Vasconcellos, 1904, II/960)

123
O poema está reproduzido no 2º capítulo, no item 2.4: Outras fontes sobre os cordofones na literatura
ibérica medieval.
124
Tradução livre de: “Vihuela de péndola ó péñola. Variante de la cítara ó otro instrumento que por
corrupción ó extensión se llamó vihuela de péndola ó péñola, porque hacía de plectro el cañón de una
pluma [ou seja, uma pena de ave].” (Pedrell, 1901, 54)
125
“Viguela, Vihuela, s. f. hesp. Viola.” (Vieira, 1897, 522)
126
“viola» (sic por vihuela, instrumento llamado indistintamente con ambos nombres)”. (Pedrell, 1901, 96)
66

“viola, instrumento de música.” (Ib., 994)


“violar, tocar viola.” (Ib., 994).
Já vimos também, em latim, como o termo cithara (cítara) 127 poderia, no fim da
Idade Média, corresponder aos vocábulos alaúde, guitarra e viola. Acabamos de vê-lo,
também, como correspondente direto para a cítola galego-portuguesa e a vihuela (viola) de
péndola castelhana. É o termo que melhor exemplifica a confusão terminológica que houve
na transição da Era Medieval para a Renascentista em relação aos cordofones de cordas
dedilhadas.
Se aceitarmos todas as acepções possíveis para cithara, teríamos consequentemente
que aceder para o fato de que alaúde, cítara, cítola, guitarra, vihuela e viola são termos
que identificam aparentados cordofones de cordas dedilhadas nas línguas latina,
castelhana, galego-portuguesa e, por consequência, a portuguesa. E aproximados a tal
ponto que muitas vezes foram tomados como sinônimos (embora não necessariamente
tenham sido os mesmos instrumentos), especialmente quando, na Península Ibérica e no
Brasil pós-descobrimento, serviram aos mesmos interesses e funções sociais.
Eis o fator que justifica, para os cordofones que precederam o violão em solo
brasileiro, o emprego de uma terminologia tão diversa nos documentos musicológicos que
investigamos. Problemas terminológicos que só iriam ser contornados em meados do
século XIX e que assolaram (e ainda assolam) indistintamente os estudos sobre o tema.
A viola, que inicialmente Vasconcellos revela se tratar apenas de um instrumento de
música, é, na verdade, sobre a qual nos dá mais detalhes em outra passagem: “Em Castella
vejo mais usado o verbo violar 128, tanto pelos poetas épicos [Libro de Apollonio, p. 426]
como por Alfonso X [Cantiga de Santa Maria n. 08], em harmonia com o uso provençal, e
com a popularidade da viola.” (1904, II/640) E ainda: “Nos textos castelhanos a cítola
apparece também; mas a viola é citada com mais frequencia como instrumento favorito de
jograes e juglaresas (Apollonio 426, Fernan Gonzalez 682).” (Ib.).
A contraposição entre cítola e viola no texto da autora novamente nos convida para
mergulhar em uma contraposição reduzida: por um lado, cítola e guitarra mourisca em
uma linhagem, com cordas metálicas, sonoridade mais aberta, modo de execução
rasgueado e tocadas com palheta; por outro, guitarra latina, viola e vihuela, supostamente
com cordas de tripa, sonoridade mais doce, modo de execução ponteado e tocadas com os
dedos.

127
Cítara. Chitara, ae. (Pereira, 1723 [1634], 48, anexo).
128
São exemplos as Cantigas de número 1009, 1104, 1105, 1202 do Cancioneiro da Vaticana (CV).
67

1) CÍTARA (LATIM) - GUITARRA MOURISCA (CASTELHANO) – CÍTOLA (GALEGO-


PORTUGUÊS).
2) CÍTARA (LATIM) - GUITARRA LATINA (CASTELHANO) – VIOLA/VIHUELA (GALEGO-
PORTUGUÊS/CASTELHANO)
Tabela 3: Esquema simplificado de possíveis correspondências entre cordofones em diferentes línguas.

Mas é só lembrarmos que a vihuela de peñola destacava-se por ser executada com
um plectro de puma que irremediavelmente voltamos a quebrar tal ciclo e a admitir que
não é possível tomar tais descrições como absolutas e tampouco subjugá-las um valor
muito maior do que a mera pretensão reducionista e didática. Esquema algum, pelo menos
desta natureza, irá alcançar ou traduzir as trocas simbólicas e as transformações que
resultaram no violão.
O que se pode afirmar com um pouco mais de segurança é que as relações entre tais
instrumentos musicais se deram em um sentido geográfico mais amplo, cujos
desdobramentos alcançaram tanto a Espanha quanto Portugal (e não apenas uma região
peninsular mais específica).
Outro vestígio documental a revelar as confusões terminológicas que identificavam
os cordofones de cordas dedilhadas no Brasil dos primeiros séculos encontra-se no anexo
do volume VIII do emblemático Vocabulário Portuguez e Latino (1712-1728) de Rafael
Bluteau. Nele, o autor nos apresenta um dicionário castelhano/ português com o objetivo
de “facilitar a los curiosos” e no qual podemos constatar três informações preciosas:
1) Viola (em castelhano) é traduzida por guitarra (em português);
2) Vihuela (em castelhano) é traduzida por viola (em português);
3) Guitarra é um vocábulo com o mesmo sentido em castelhano e português, mas
guitarrilla (em castelhano) é traduzida por violinha (em português).
Ou seja, o que fica patente é que os termos viola, guitarra e vihuela foram utilizados
com sentidos muito próximos (muitas vezes como sinônimos) nos dicionários de língua
portuguesa/ castelhana até, pelo menos, o início do século XVIII.
Vejamos mais alguns exemplos:
“Viola. Guitarra.” (Bluteau, 1721, anexo/24)
“Viguela.òVihuela. Viola.” (Ib., 185)
“Bordon de Vihuela. Bordão de viola.” (Ib., 47)
“Guitarra. Id. Guitarrilla. Violinha.” (Ib., 103)
68

No entanto, para que tais dados ganhem sentido para a pesquisa, é preciso estabelecer
uma conexão mais clara com as informações que possam nos levar a uma melhor
compreensão da trajetória dos cordofones no Brasil.
E o que se observa é que, à exceção da cítola, todos estes vocábulos (cítara, guitarra,
vihuela e viola, além de seus correspondentes em outras línguas já apresentados e
esmiuçados, barbitus, chelys, testudo, lyra, fides, fidicula, entre outros) representam
cordofones mencionados em significativa quantidade de documentos levantados sobre a
música do Brasil colônia no século XVI e, portanto, configuram-se em uma herança
terminológica que certamente recebemos a partir dos cruzamentos e simbioses político-
linguísticas ocorridas na Península Ibérica no período imediatamente anterior ao
“descobrimento”. Eis a chave-mestra para alargamos o alcance do estudo sobre a chegada e
a difusão dos cordofones de cordas dedilhadas no Brasil a partir de 1500.
Levando em consideração que os limites geográficos estavam em permanente
transformação na região peninsular durante o período medieval, não é difícil imaginar o
quão os vocabulários latino, castelhano, galego-português e português influenciaram-se
reciprocamente no processo de sedimentação das línguas. E o quão, inevitavelmente, o
mesmo processo permearia a música e os instrumentos:
[...] até meados do sec.XVI, a música e os instrumentos musicais dos vários
povos e culturas presentes na Península Ibérica se influenciaram mutuamente,
conservando cada grupo as particularidades e identidade que lhes eram próprias,
quando lhes era possível, e adoptando de outros, mercê de condicionantes de
ordem vária, o que melhor correspondia à necessária mudança e adaptação a
novas situações [...]. 129

Com isto, o caminho para compreender a relação entre tantos vocábulos


aparentemente distintos nas línguas portuguesa, latina e espanhola começa a ficar menos
obscuro. Tudo indica que cítara, guitarra, viola e vihuela (e seus correspondentes já
apresentados) representavam instrumentos cujas práticas sociais se correspondiam, no
Brasil, até pelo menos meados do século XVIII (o dicionário de Bluteau é de 1721).
Mais uma vez, contudo, deve-se pontuar: o fato de haver objetos com usos similares
pela sociedade em um determinado período não os torna necessariamente os mesmos
instrumentos musicais do ponto de vista organológico, apenas indicam que eles serviam
aos mesmos interesses, ambientes e personagens sociais.

129
Excerto do artigo de Domingos Morais intitulado Origem dos Instrumentos Musicais Populares
Portugueses, disponível online no endereço: http://attambur.com/Instrumentos/Portugueses/InstrPortug.htm
Acesso em 10/09/13, às 18h16min.
69

Como proposta de síntese didática, podemos sugerir que os instrumentos musicais


mais citados nos documentos, literatura e escritos em castelhano na Idade Média
peninsular e no Brasil pós-descobrimento somam, ao nosso glossário específico de
cordofones de cordas dedilhadas, os seguintes termos: guitarra mourisca, guitarra latina,
viola, vihuela, vihuela de peñola e guitarra.
Como acabamos de ver, muitos destes termos coexistiram e identificavam
instrumentos musicais ora com características muito próximas e ora com características
bem distintas. Uma “história” que se quer dual em duplo sentido: primeiro, porque se
escora em polaridades; depois, porque, a esta altura, está claro que diferentes termos
poderiam nominar um único objeto enquanto, em contrapartida, o mesmo vocábulo poderia
designar cordofones bem diversos.
Aqui, o ponto chave da pesquisa se apresenta uma vez mais: é preciso destacar que
não estamos defendendo a hipótese de que as idiossincrasias e particularidades dos
instrumentos não devem ser investigadas e detalhadas, muito menos que se tratavam dos
mesmos objetos e/ ou tampouco que tinham as mesmas características físicas e sonoras.
Apenas que as práticas sociais que os envolviam, na sociedade brasileira dos três primeiros
séculos pós-descobrimento (e mesmo em parte da Era Medieval ibérica), eram
correspondentes a tal ponto que não havia distinção clara entre eles em dicionários,
citações literárias, documentos oficiais, etc.
Agora, enfim, temos o embasamento necessário para identificar, relacionar e
investigar as práticas e os usos dos cordofones na Península Ibérica e no Brasil partindo de
uma terminologia ampliada e com a perspectiva de atingir um volume documental
consideravelmente maior. 130

1.4.4 Outros idiomas estrangeiros

Por fim, ainda é preciso ressaltar que termos de outros idiomas também foram
mencionados nos documentos que abordam as práticas musicais ocorridas entre nós
durante os séculos XVI e XVII, o que se deve, sobretudo, ao fato do Brasil ter sido palco
de invasões estrangeiras de diversas nacionalidades nos dois séculos pós-descobrimento e

130
Este primeiro enfoque - o de reconhecer e distinguir as características físicas dos instrumentos – fica aqui
expresso como recomendação para pesquisas futuras. Ao estudar os cordofones de cordas dedilhadas no
Brasil do século XIX, Ballesté (2009) nos ofereceu um caminho seguro para desenvolver fichas
terminológicas que evidenciam as idiossincrasias instrumentais com propriedade. É um modelo sobre o qual
certamente podemos nos basear para identificar/ analisar/ distinguir a proliferação de cordofones existentes
na Península Ibérica pré-descobrimento e no Brasil dos três primeiros séculos pós-descobrimento.
70

ainda pelo fato de por aqui terem aportado ordens religiosas e viajantes de diferentes países
(jesuítas, capuchinhos, beneditinos, franciscanos, etc) neste mesmo período. Mais tarde, no
início do século XIX, a migração da família real portuguesa para o Brasil (que também
abriu caminhos para uma migração europeia mais intensa) foi outro fator determinante para
tal proliferação.
Por tal razão, eventualmente aparecerão nos capítulos vindouros alguns termos
correspondentes aos vocábulos guitarra/ viola/ violão (ou equivalentes) em outras línguas,
tais como: guitare (francês); guitar (inglês); gitarre (alemão); chitarra (italiano); gitaar
(holandês) e assim por diante. Dentre os que escapam à sinonímia destes três nomes mais
comuns, mas que também são cordofones de cordas dedilhadas mencionados na literatura,
os mais relevantes estão descritos no dicionário histórico de Pedrell:

Baldosa

Instrumento de cordas da família do alaúde cuja genealogia aparentemente se conecta


a uma série de outros cordofones com sinonímia próxima e cuja nomenclatura procede da
língua italiana. Citada na poesia do Arcipreste de Hita, a baldosa/ valdosa/ badosa também
é aludida em diversos registros espanhóis ao longo do século XVI. Pedrell a define nos
seguintes termos:
Baldosa. Segundo o Diccionario de la Academia, certo instrumento musical
usado antigamente, e segundo o Dicionário técnico, biográfico e histórico da
música, de Parada y Barreto, foi o nome dado antigamente aos címbalos. Nota-
se, desde logo, a semelhança dos termos Baldosa, Badosa, Bandosa, Balsosa ou
Valdosa com a Bandose (V.), instrumento de cordas da família do alaúde da
época de Carlo Magno, com a GUITARRA ou ALAÚDE indígena chamado
BANZAS, com o BANJO americano e com a BANDORA ou BANDOSA dos
russos da Ukrania.
O nome do instrumento, do italiano BALDOSA, pode comprovar-se, quiçá,
citando estes versos de Pulci: chi sonava tamburo,/ e chi nacchera, Baldosa, e
cicuirenna, e zufoletti,/ e tutti affusolati gli scambietti. E talvez sua natureza
como instrumento de corda pelo seguinte texto de nosso Luis Gálvez de
Montalvo: ‘Aquí Erión los hizo sentar en ricas sillas de marfil, y él con ellos, al
son de una suave baldosa, así les dijo, puestos los ojos en la inmensa beldad de
las figuras.’
Mais dados. Segundo o que publicou há anos o maestro Barbieri em El
Averiguador: ‘Em 25 de Agosto de 1587, o Receptor geral da igreja de Toledo
mandou pagar ‘à Luis Ribera mil cento e vinte e dois maravedis porque ele foi
tañendo la valdosa no dia e oitava de Nossa Senhora de Agosto deste ano’. Em
23 de Agosto de 1590, o mesmo Receptor mandou pagar “à Rodrigo de Ayllón
setenta e nove reais para ele e seus companheiros que foram tocando as vihuelas
de arco na procissão do dia de Nossa Senhora de Agosto e sua oitava: dá-se treze
reais a mais do que para Jerónimo de Cáceres, porque se acrescentou mais um no
lugar da valdosa que falta.’ Por último, em 1º de julho de 1591, o mesmo
Receptor mandou pagar ‘à Juan Ribera dois ducados, porque tocou a valdosa na
procissão do dia e oitava de Corpus Christi este ano.’
71

Acrescentamos, ainda, que a BALDOSA ou BADOSA é citada na famosa poesia


do Arcipreste de Hista, Juan Ruiz, descrevendo a recepção oferecida à Don
Amor: ‘GAYTA, et EXABEVA, et el finchado ALBOGON,/ CINFONIA, et
BADOSA en esta fiesta son’…
Por todos os documentos autênticos apresentados sabemos que havia na Espanha
um instrumento musical chamado VALDOSA, BALDOSA ou BADOSA, cujas
aplicações precisas não aparecem em nenhum dos muitos livros de músicos dos
quais dispomos. (Pedrell, 1897, 40-41) 131

Bandalón e Bandola

O bandalón é um cordofone que se assemelharia ao sistro (ver descrição abaixo).


Segundo Pedrell, o instrumento “consta de seis cordas quádruplas, as primeiras de aço, as
segundas e terceiras de bronze, as outras três de seda trançada com fios de metal, e as
quatro restantes de bronze. Eis aqui como se afina este instrumento:” 132

(Pedrell, 1897, 42)


Já a bandola seria um pequeno instrumento de 04 cordas, parecido no formato com
um alaúde. Pouco se sabe sobre suas características, origens e desdobramentos.

Bandora

131
Tradução livre de: “Baldosa. Según el Diccionario de la Academia, cierto instrumento músico usado
antiguamente, y según el técnico, biográfico é histórico de la música, de Parada y Barreto, nombre dado
antiguamente à los címbalos. Nótese, desde luego, la semejanza de los términos Baldosa, Badosa, Bandosa,
Balsosa ó Valdosa con la Bandose (V.), instrumento de cuerdas de la familia del laud de la época de Carlo
Magno, con la GUITARRA ó LAUD indio llamado BANZAS, con el BANJO americano y con la BANDORA ó
BANDOSA de los rusos de la Ukrania. El nombre del instrumento, del italiano BALDOSA, puede
comprobarse, quizá, citando estos versos de Pulci: E chi sonava tamburo, / e chi nacchera, Baldosa, e
cicuirenna, e zufoletti, / e tutti affusolati gli scambietti. Su gênero, acaso como instrumento de cuerda, por el
texto siguiente de nuestro Luis Gálvez de Montalvo: ‘Aquí Erión los hizo sentar en ricas sillas de marfil, y él
con ellos, al son de una suave baldosa, así les dijo, puestos los ojos en la inmensa beldad de las figuras.’
Más datos. Según los que publicó años há el maestro Barbieri en El Averiguador: ‘En 25 de Agosto de 1587,
el Receptor general de la iglesia de Toledo mandó pagar ‘á Luis Ribera mil ciento veynte y dos maravedís
que ha de haber, porque fue tañendo la valdosa (sic) el día y octava de Nuestra Señora de Agosto deste año.’
En 23 de Agosto de 1590 el mismo Receptor mandó pagar ‘á Rodrigo de Ayllón setenta y nueve reales que
ha de haber para él y sus compañeros que fueron tañendo las vihuelas de arco en la procesión del día de
Nuestra Señora de Agosto y su octava: dásele trece reales más de lo que se libraba à Jerónimo de Cáceres,
porque se añadió uno más en lugar de la valdosa que falta’. Por último, en 1º de Julio de 1591 el mismo
Receptor mandó pagar ‘á Juan Ribera dos ducados, porque tañó la valdosa en la procesión del dia del
Corpus Christi y su octava este año.’ Añadamos, todavía, que la BALDOSA ó BADOSA se cita en la famosa
poesía del Arcipreste de Hita, Juan Ruiz, describien do el recibimiento hecho à Don Amor: GAYTA, et
EXABEVA, et el finchado ALBOGON,/ CINFONIA, et BADOSA en esta fiesta son… Por todos los
documentos auténticos anteriores sabemos que había en España un instrumento músico llamado VALDOSA,
BALDOSA ó BADOSA, cuyas aplicaciones determinadas no parecen en ninguno de los muchos libros de
música de que podemos disponer.” (Pedrell, 1897, 40-41)
132
Tradução livre de: “Consta de seis cuádruples cuerdas, las primeras de acero, las segundas y terceras de
latón, las otras tres de seda retorcida con hilo de metal, y las cuatro restantes de latón. He aquí como se
afina este instrumento:[...]” (Pedrell, 1897, 42)
72

Sobre a bandora, Pedrell (1897, 43) afirma que é uma espécie de alaúde russo,
procedente da Ucrânia. Destaca ainda a proximidade terminológica não somente entre a
bandora e a bandosa 133, mas também com a banzas (espécie de guitarra indiana) e com o
próprio banjo norte-americano.

Pandora

Instrumento com terminologia italiana, mas que também admite as variantes:


pandura, pandure ou pandore (frança). De acordo com Pedrell, foi um cordofone de
cordas dedilhadas “intermediário entre a guitarra e o alaúde, com cordas de bronze e cujo
número variava entre oito e dezoito, com a ponte oblíqua e que se tocava com pena de ave
[pluma] ou plecto. Foi confundido com a Kuitra árabe, nome alterado de Kitârah.” (1897,
345-346) 134

133
O mesmo Pedrell ratifica a correspondência: “Bandosa. Instrumento de cuerdas de la familia del LAUD,
del cual habla Aimery de Peyrac, abate de Moissac, en su manuscrito de la Vida de Carlos Magno.” (1897,
43)
134
Tradução livre de: “[…] intermediario entre la guitarra y el laud, con cuerdas de latón cuyo número
variaba entre ocho y diez y ocho, con el puente oblicuo y que se tocaba con pluma ó plectro. Se ha
confundido con la Kuitra árabe, nombre alterado de Kitârah.” (Pedrell, 1897, 345-346)
73

Figuras 9 e 10: Exemplos de pandora e kuitra árabe. Fonte: (Pedrell, 1897, 346) 135

Chiterna

De procedência italiana, pouco sabemos sobre tal cordofone. Pedrell (1897, 81)
afirma que a chiterna detinha quatro ou cinco ordens de cordas e era um tanto quanto
aplanada como a pandora.

Canon meo

Cordofone de cordas dedilhadas mencionado na literatura ibérica já nas primeiras


décadas do século XIV, segundo nos indica Pedrell: “Canon (Meo). Instrumento de cordas
ponteadas. O rei D. Alfonso de Aragão, em 1329, pedia ao rei de Castela que lhe enviasse
dois músicos que tocassem a xabeba ou exabeba (flauta) e o Meo Canon.” (1897, 66) 136

Também foi citado no célebre poema do Arcipreste de Hita, conforme observaremos no


próximo capítulo.

Cistro, Cistre, Citre, Cistre, Cithre (francês), Cithare ó Chitarra tedesca (italiano),
Sistre, Sistro, Cestro, Sestro, Citra, Cítula.

Responsáveis por confusões terminológicas diversas, os termos acima foram


utilizados primordialmente no século XVI e indicam, de acordo com Pedrell (1897, 91),
uma espécie de alaúde achatado e de fundo oval e piriforme. Assim eram chamados por
derivação da palavra cítara, não sendo mais, no entanto, do que uma das tantas variantes
da cítola. Esta acepção é particularmente importante para a história dos cordofones de
cordas dedilhadas no Brasil, uma vez que uma destas variantes consta no documento que
identifica a embarcação de instrumentos musicais nas naus que, comandadas por Pedro
Álvares Cabral, acabaram por chegar a terras brasileiras depois de um desvio de rota,
conforme veremos em detalhes no capítulo terceiro. 137

135
Sobre as imagens, Pedrell afirma: “He aqui el dibujo de la Kuitra que, aunque semejante à la pandora,
difiere, sin embargo en que este último instrumento es más achatado, en que el borde del cuerpo sonoro
forma festón y en que el cordal está colocado más oblicuamente que el de la pandora.” (1897, 346)
136
Tradução livre de: “Canon (Meo). Instrumento de cordas punteadas. El rey D. Alfonso de Aragón, en
1329, pedia al rey de Castilla que le enviara dos musicos que tocasen la xabeba ó exabeba (flauta) y el Meo
canon.” (Pedrell, 1897, 66)
137
Pedrell ainda detalha algumas outras características sobre o instrumento: “El mástil del CISTRO tenía diez
y ocho trastes. Las cuerdas, de latón, punteábanse con un tallo de pluma, como las de la MANDORA y las de
la MANDOLINA. Eñcordábase de varias maneras. Los franceses solían disponer la encordadura formando
cuatro series de cuerdas al unísono, triplicadas las tres primeras y doblada la otra: estas series de cuerdas
afinábanse en Re, clave de sol, 4ª línea, Do, Sol y La, intervalos descendentes de la nota Re, prima del
74

Neste caso (e em todos os mencionados anteriormente), os termos serão investigados


em particular, no intuito de se desvelar os seus contextos sociais e sobre a quais
instrumentos musicais, de fato, se referem.
Para fechar este ciclo, entretanto, resta-nos ainda compilar a terminologia das línguas
e dialetos indígenas e do próprio português arcaico.

1.4.5 Tupi-guarani

Outros não deixaram lembrança alguma, desaparecendo como se não tivessem existido.
Viveram como se não tivessem vivido, e seus filhos também, depois deles.
(Eclo 44, 9)

“ ‘Quem construiu Tebas das sete portas?’ – perguntava o ‘leitor operário’ de Brecht. As fontes não nos
contam nada daqueles pedreiros anônimos, mas a pergunta conserva todo o seu peso.”
(Ginzburg, 2006, 11) 138

Quando os europeus desembarcaram em solo brasileiro, a escrita não era uma


ferramenta imprescindível ou vital para a sobrevivência da cultura indígena, que, até então,
havia sido perpetuada através da oralidade (e ainda o é, em muitos casos). Foram os
estrangeiros, especialmente os jesuítas, que infundiram a necessidade de tal prática para a
catequese e a “humanização dos bárbaros”.
A consequência imediata de tal fato é que as informações sobre os habitantes
originários do Brasil nos foram legadas por fontes indiretas: os documentos jesuíticos, os
relatos de viajantes e de outras ordens estrangeiras (religiosas ou não) constituem o corpus
disponível para avaliarmos o papel da cultura indígena e de seus personagens na complexa
e sutil teia de possibilidades que se descortinava com o novo choque de realidades tão
distintas. Restou-nos, apenas, a visão eurocêntrica do processo, que foi (e ainda é) tão
amplamente reproduzida em nossa musicologia:
Não exageramos ao afirmar que o elemento ameríndio teve, relativamente, pouca
interferência na concretização da música nacional brasileira. [...] A mão-de-obra
vermelha, que se revelara inadequada em virtude da indolência e do pronunciado
anseio de liberdade dos indígenas. [...] A influência branca, ou seja, portuguesa,
espanhola, francesa e italiana, foi a mais relevante. (Mariz, 1983, 27, introdução)

Embora a música dos indígenas praticamente não deixasse vestígios em nossa


música, constituindo até hoje um fenômeno exótico, não se pode iniciar uma
história da música brasileira sem breves referências a seu respeito. (Kiefer, 1977,
9 – introdução)

instrumento. Los italianos sextuplicaban, à menudo, las series de cuerdas del CISTRO, encordándolo, à
veces, con nueve ó diez series de cuerdas dobladas ó triplicadas.” (Pedrell, 1897, 91)
138
No prefácio à edição italiana.
75

Ao conectarmos tais citações com o relato do padre jesuíta Antônio Blasquez, de


1557, intitulado “carta da Bahia” e endereçado ao provençal de Portugal, não é difícil
constatar a gênese dos discursos que foram apropriados por nossos musicólogos para
reproduzir o papel dos índios na formação cultural brasileira a partir de 1500:
Suas camas são umas redes podres com a ourina [urina], porque são tão
preguiçosos que ao que demanda a natureza se não querem levantar. E dado caso
que isto bastara para imaginar em o inferno, todavia ficou-se-nos mais imprimido
com uma invenção que vimos sahindo d'esta, a qual é esta: Vinham seis
mulheres nuas pelo terreiro, cantando a seu modo, e fazendo taes gestos e
meneios que pareciam os mesmos diabos. Dos pés até à cabeça estavam cheias
de pennas vermelhas; em suas cabeças traziam umas como carochas de penna
amarella. Em as espaldas levavam um braçado de pennas que parecia coma de
cavado, e por alegrar a festa tangiam umas frautas que têm, feitas das canellas
dos contrários, para quando os hão de matar. (Blasquez, 1931 [1557], 173-174)

Por um lado, a “preguiça” e a “indolência” como características intrínsecas do


“elemento” nativo (como se o exercício de uma atividade imposta e sem qualquer relação
com a sua cultura primeva fosse algo para ser assimilado sem qualquer choque ou
resistência); por outro (e talvez de forma ainda mais dramática), vemos claramente qual
não foi o olhar dos europeus sobre as representações culturais nativas que aqui
encontraram – as mulheres nuas no terreiro, cantando do seu jeito e gesticulando de tal
modo que pareciam “diabos”, com suas penas vermelhas e amarelas, além de flautas feitas
de osso humano. 139
O ponto chave não é somente apresentar/ questionar o retrato naturalizado e
reproduzido desta imagem, espelho da relação histórica esmagadora entre as culturas
“dominante” e “dominada”, mas investigar se há indícios possíveis e suficientes para,
através dos próprios relatos eurocêntricos, redimensionar o papel desempenhado pelos
povos indígenas na construção cultural brasileira a partir de 1500, mais especialmente no
que diz respeito à sua relação com os instrumentos musicais (e de forma ainda mais
particular, aos cordofones de cordas dedilhadas).
É o próprio padre Antonio Blasquez, em um novo relato de 1565, quem sugere
abertura para novas interpretações, ao nos revelar que os instrumentos nativos e europeus
estavam nas mãos das crianças indígenas: "os que tangiam [tocavam] eram os meninos

139
Em um exercício musicológico pueril, vamos imaginar um texto com alguns adjetivos trocados e/ou
inseridos (estão expressos em negrito) para o relato do padre Antonio Blasquez retratando a cultura indígena:
“Vinham seis mulheres nuas e livres pelo terreiro, cantando a seu modo, e fazendo taes gestos e meneios que
pareciam mesmo deusas. Dos pés até à cabeça estavam cheias de belas pennas vermelhas; em suas cabeças
traziam umas como carochas de penna amarella. Em as espaldas levavam um braçado de pennas que parecia
coma de cavado, e por alegrar a festa tangiam umas frautas que têm, feitas criativamente das canellas dos
contrários. Muito podemos aprender sobre as danças, a música e os costumes deste povo, tão diversos
dos nossos.” Qual não teria sido a nossa história se os primeiros retratos culturais sobre os “gentios” fossem
assim feitos?
76

brasis" 140 (Ib., 211). E continua adiante: “todo o regosijo era ver os Indiosico Brasis
tangerem suas flautas” (Ib.).
Ora, somente o fato destes instrumentos (aparentemente nativos: “suas flautas”)
estarem nas mãos dos índios em uma cerimônia de grande solenidade religiosa (as
“vésperas litúrgicas”) já denota a possibilidade da interação ter atravessado o mero
doutrinamento catequético. É possível que tenha havido trocas de representações culturais
mais sensíveis e que, na esteira da imagem simbólica sobre os índios que aprendemos a
aceitar como natural desde sempre, tenhamos deixado de lado em nossa história musical.
Já vimos que uma das características mais fortes destas trocas de representações
culturais se dá no nível linguístico. Também encontramos indícios velados de tais
interações em um dos relatos de Fernão Cardim, escritos entre 1583 e 1590 e expressos em
sua viagem e missão jesuítica:
[...] debaixo da ramada se representou pelos indios um dialogo pastoril, em
lingua brasilica, portugúeza, e castelhana, e tem ellès muita graça em fallar
línguas peregrinas, maximé a castelhana: houve boa musica de vozes, frautas,
danças, e d’alli em procissão fomos até á igreja [...]. (Cardim, 1847, 30) [grifo
nosso]

Segundo o padre missionário, o diálogo pastoril fora apresentado em três línguas:


provavelmente o tupi-guarani (a “brasílica”); o português e o castelhano. Não
coincidentemente temos aqui, ao lado da língua nativa, a presença dos dois idiomas que, a
partir do latim vulgar, mais influenciaram a terminologia musical que adotamos para os
cordofones de cordas dedilhadas no Brasil a partir de 1500. Além disso, o relato sugere que

140
[...] Todo este espaço que duraram as vésperas, que não foi pouco, por serem ditas com grande
solemnidade, viu-se sempre na gente de fora mostras de muito sentimento, ou fosse porque a novidade do
negocio o pedia, ou a musica e melodia do canto fazia subir a sua consideração a cousas maiores, ou
finalmente a contricção dos seus pecados os movia a ter sentimento delles. Houve nestas vésperas tres coros
diversos: um de canto de órgão, outro de um cravo e outro de flautas de modo que, acabando um, começava o
outro, e todos, certo, com muita ordem quando vinha a sua vez. E dado que o canto do órgão deleitava
ouvindo-se e a suavidade do cravo detivesse os ânimos com a doçura da sua harmonia, todavia quando se
tocavam as flautas se alegravam e se regosijavam muito mais os circumstantes, porque, além de o fazer
mediocremente, os que as tangiam eram os meninos Brasis, a quem já de tempo o padre Antônio
Rodrigues tem ensinado. Foi para o povo tão alegre este espectaculo que não sei como o possa encarecer, e
muitos dos que estavam na egreja não o podiam crer, como de facto não o creram si não tiraram a limpo a
verdade com os seus próprios olhos, e isto, além de ser motivo para devoção, era-o também para dar
muitas graças ao Senhor, que não se falava então na cidade em outra cousa sinão na boa criação e
ensinamento destes meninos. [...] Emfim, foi tão concertada e festejada, assim de cantores como de tudo o
mais, que não havia mais que pedir; mas, como acima disse, todo o regosijo era ver os Indiosicos Brasis
tangerem as suas flautas, e assim me disse o Bispo, porque paravam elles um pouco, que avisasse o Padre
que os tinha a seu cargo para que os fizesse tanger, porque nisto parece que punham muita parte do seu
contentamento. Acabada a procissão, emquanto se revestia Sua Senhoria, se tocou um pouco o cravo, com
que muito se consolaram e provocaram á devoção os circumstantes, e logo depois disto se começou a missa
de pontificai e a seus tempos tangiam as flautas e aos seus cantavam os cantores os seus motetes, tudo, certo,
com muito primor e graça. [...] (Blasquez, 1931 [1565], 436-437-438) [grifos nossos].
77

isto era algo desejado e comum pelos indígenas (“têm eles muita graça em falar línguas
peregrinas”).
Vemos traços claros de uma possível apropriação da cultura “dominante” pela
“dominada” (afinal, eram os índios que aprendiam as línguas estrangeiras), mas também é
possível perceber, ainda que de forma mais sutil, a via de mão dupla no processo. Ou o
auto também não foi encenado (e ouvido) por todos na língua “brasílica”?
O problema, entretanto, não reside tanto em reconhecer a reciprocidade das
influências, mas enfrentar a questão incontornável da documentação indireta:
É bem mais frutífera a hipótese formulada por Bakhtin de uma influência
recíproca entre a cultura das classes subalternas e a cultura dominante. Mas
precisar os modos e os tempos dessa influência significa enfrentar o problema
posto pela documentação, que no caso da cultura popular é, como já dissemos,
quase sempre indireta. (Ginzburg, 2006, 18)

Em uma conferência (que acabou sendo cancelada e o texto publicado


posteriormente) preparada para as celebrações do tricentenário de José de Anchieta, o
indianista e general José Vieira Couto de Magalhães nos apresenta um panorama das
línguas/ dialetos indígenas predominantes no Brasil na metade do século XVI:
Em 1553, anno em que Anchieta chegou ao Brazil, uma única nação dominava
quasi toda a costa desde o Amazonas até o Prata, além de grandes regiões do
interior, e era a nação tupi-guarani, falando dois dialectos de uma mesma lingua,
o tupi e o guarani, tão semelhantes entre si como o portuguez o é ao espanhol.
Quando digo uma nação, não quero dizer que tivessem elles um só governo;
eram uma nação somente, porque tinham quasi a mesma lingua, as mesmas
crenças religiosas, os mesmos costumes e a mesma conformação physica. Estes
conheciam o que chamamos hoje Brazil, do Amazonas até mais ou menos á
bahia dos Patos, debaixo do nome de Pindorama, que quer dizer Região das
Palmeiras; ao interior, não occupado por elles, denominavam Tapuirama, que
quer dizer região de ranchos ou de aldeias. (Magalhães, 1900, 250-251)

Ainda que indireta, não é tão parca a documentação que nos revela o quão os
viajantes e missionários jesuítas se empenharam no aprendizado das línguas nativas dos
países para os quais foram enviados em missão, embora seus esforços visassem, acima de
tudo, o alcance de uma forma mais efetiva de “educar” e “catequizar” e não propriamente
uma troca representativa com a cultura local (que, de qualquer modo, sempre acontece em
algum nível). Ao estudar a lexicografia dos Jesuítas, Verdelho nos reafirma tal perspectiva:
Desde a sua instalação em Portugal, nos meados do séc. XVI, [os jesuítas]
empenharam-se na produção de manuais escolares, especialmente voltados para
a formação linguística, e criaram assim uma estudiosa escola de gramáticos e
dicionaristas. Entre eles, avultam os dicionaristas das línguas de missão, no
Brasil e no Oriente [...]. 141

141
Ib. Artigo disponível online no endereço: http://clp.dlc.ua.pt/Publicacoes/Dicionarios_breve_historia.pdf
Acesso em 11/09/2013.
78

Na América do Sul, as publicações de pelo menos dois padres jesuítas 142 indicam a
veracidade da informação: 1) A Arte de grammatica da lingoa mais usada na costa do
Brasil, de José de Anchieta (1534-1597), estudo de 58 páginas, escrito em português e
publicado em Coimbra no ano de 1595; 2) E o Tesoro de la lengua guarani, de Antonio
Ruiz de Montoya (1585-1652), com 407 folhas, escrito em espanhol e publicado em
Madrid no ano de 1639. 143
O estudo de Anchieta, como o próprio nome sugere, é mais voltado para identificar
os traços gramaticais e de pronúncia da língua, sendo, portanto, menos direcionado para a
descrição do vocabulário. São raras as remissões aos instrumentos musicais 144 e os
cordofones só são citados (em português) para exemplificar como se devem pronunciar
palavras em tupi-guarani. 145
Já no Tesoro do padre Montoya, que descreve seu estudo da língua a partir do
contato com os nativos nas missões do Paraguai (onde se falava o dialeto guarani que,
como vimos, também era praticado pelos índios do território brasileiro no século XVI), é
possível identificar alguns vocábulos que aparentam relação direta com cordofones de
cordas dedilhadas, embora curiosamente guitarra e viola não sejam citadas (traduzidas)
diretamente no dicionário.
A partir do radical mbaracá (maracá) 146, nominavam-se grande parte das atividades,
instrumentos e acessórios musicais, tais como: afinar (“templar”); “quebrar” a corda; a

142
Analisaremos com mais critério o papel dos jesuítas quando adentrarmos o terceiro capítulo, que buscará
desvelar os contextos nos quais os cordofones de cordas dedilhadas foram utilizados pelos personagens
sociais brasileiros do século XVI. Por ora, apenas nos concentraremos nas idiossincrasias de vocabulário que
podem somar termos ao nosso glossário geral de pesquisa.
143
O mesmo padre Antonio Ruiz de Montoya publicaria, no ano seguinte (1640), obra complementar
intitulada Catecismo de la lengua guarani, onde, pelo próprio título, contatam-se os propósitos que moviam
os jesuítas na escrita de dicionários, gramáticas e livros nas línguas nativas dos países para os quais eram
enviados em missão.
144
Um dos poucos exemplos: Ayopî, tanger trombeta, ou frauta [...]. (Anchieta, 1595, 6)
145
“Ge, Gi, pronunciãose como no Português, gesto, gibão, vt. Augê, agíb. Excipe os compostos, & os da
conjugação, como se disse nos do ce, ci, que se pronúciáo como no Português, guerra, guitarra, vt. àngaetê,
àngetê, aimonhang, monhàngeme, monhangi.”(Anchieta, 1595, 5a) [grifo nosso]

146
A descrição de maracá é encontrada no livro do viajante italiano André Thevet (1502-1590), publicado em
1561, na Itália, sobre o título de Historia dell'India America detta altramente Francia Antartica e que tem
uma excelente tradução comentada para o português de Estevão Pinto, realizada em 1944: “Os selvagens
fazem do cohyne [planta frutífera da região conhecida popularmente como “cabaceira”, em alusão ao seu
formato] vasos de beber. E também um certo objeto, tanto quanto possível estranho e misterioso. Assim,
esvaziando o coco, enchem-no de grãos de milho ou de outros vegetais, atravessando-o com uma vareta toda
adornada de belas plumas, da qual fincam uma das extremidades no solo. Cada oca, cada família possui dois
ou três desses objetos, a que prestam grande reverência, acreditando os pobres idólatras, quando manejam e
fazem soar o coco, que é Tupã quem lhes fala. Esperam assim, por esse meio, principalmente os pajés,
receber a revelação divina. Julgam os selvagens que existe, nesse fruto, alguma coisa de sobrenatural, motivo
pelo qual o adoram sensivelmente, sacolejando o instrumento e fazendo-o chocalhar.” (Pinto in Thevet, 1944
79

“ponte” da guitarra; os trastes; tocar de forma “rasgada”; entre outros. Vejamos os


exemplos:
Mbaracá. Calabazo con cuentas dentro, que sírve de instrumento para cantar, y
de áhi ponen nombre a todo instrumento musico. Ambopú mbaracá .l. ambaracá
mbopú, tocar instrumentos. Mbaracá çã, cuerdas. Ambaracaçã moa tyrõ, ymboîo
îabo, templar. Oîoîa catúmbaracá, estàn templados los instrumentos. [...]
Mbaracáçã oçóg, quebrou-se la cuerda. [...] Mbaracacã mendá, puente de
guitarra &c. Mbaracãi cuáquâhába, trastes. Aîapi pimbaracaçã, poner los dedos
en las cuerdas. Añatoimbaracaçã, tocar rasgado [...]. (Montoya, 1639, 212)
Mbaracá.racapé, la tapa de la guitarra, o instrumento musico. (Ib., 348)

O fato, no entanto, é que como não houve e/ ou não sobreviveram relatos indígenas
diretos, tais expressões tiveram seu uso limitado a dicionários e gramáticas jesuíticas, uma
vez que os documentos oficiais das missões jesuíticas na América do Sul foram escritos em
latim, português ou castelhano, o que, em última instância, nos impede de vislumbrar e
avaliar em quais contextos reais/ sociais se usou a terminologia nativa. Só vamos encontrá-
los novamente em alguns poucos relatos de viajantes estrangeiros que por aqui passaram e
deixaram suas impressões sobre os costumes e a cultura indígena.
A constatação de que o uso deste vocabulário foi feito de forma documental tão
restrita nos impede de aprofundar algumas questões ainda tão nebulosas:
A) Os índios já fabricavam e praticavam cordofones de cordas dedilhadas antes da
chegada dos portugueses? (Ou, melhor perguntando, tais objetos já faziam parte de sua
cultura?);
B) Se sim, qual foi o nível de relação entre os instrumentos nativos e os
“importados” no processo de cruzamento das representações culturais?;

[1561], 321-322). Ainda no mesmo livro, o tradutor Estevão Pinto confere a seguinte explicação para o
termo: “O maracá era, realmente, a representação mística do pajé. A cerimônia, de que fala Thevet, é
minuciosamente descrita por H. Staden (pag. 153 e 154). Esse instrumento mágico-religioso, espécie de
chocalho feito de cabaça, assemelha-se, no tamanho, a um ovo de avestruz, ou a um melãozinho oco (cheio
de milho miúdo, de grãos negros, ou de pedras), atravessado por um pau. O pau servia de cabo; pintavam-no,
os índios, de vermelho, nas festas religiosas, adornando-o de plumas multicores. Às vezes, abria-se na
abóbora um orifício, que imitava uma boca (Léry, pág. 110; G. Soares de Sousa, pág. 383; Évreux, pág. 384;
Abbeville, pág. 48). Diz Hoehne que a vareta era feita com a brejaúba (Astrocaryum Ayri, Mart.). Mais
adiante (fl. 104), Thevet faz referência a uma espécie de cabaça, ou cuietê, chamada cohyne, com a qual os
índios faziam seus maracás. A cohyne é a Crescentia cuyete. Além da boca, pintavam os índios, no coité dos
maracás, cabelos, olhos e narizes (Cartas Avulsas, pág. 97; Anchieta, pág. 331 e 332; Nóbrega, pág. 99).
Nesse costume de dar forma humana ao chocalho percebemos os primeiros indícios da idolatria, de
influência, a princípio europeia, depois africana. Évreux, de fato, afirma que conheceu certo pajé, possuidor
de uma boneca, cujo maxilar inferior era móvel. Concitava o feiticeiro a que as mulheres tupinambás
trouxessem legumes a fim de serem mastigados pela boneca; a semente, assim triturada, tinha o poder mágico
de reproduzir-se facilmente.” (Thevet [n.t.], Ib., 266) Diante de todo o exposto, fica mais fácil compreender a
razão pela qual, a partir de um sentido místico, o termo representava o radical sobre o qual se construíam
todas as palavras musicais adjacentes.
80

C) Se os “meninos brasis” aprendiam e tocavam com tanta desenvoltura, não teriam


eles desenvolvido os mecanismos básicos para tais habilidades anteriormente, diante dos
elementos e objetos musicais de sua própria cultura?
D) Afinal, que instrumentos eram estes que estavam em suas mãos? Os seus ou os
dos portugueses? Ou ambos?
O fato de termos mais questionamentos do que respostas, todavia, ainda não é um
dado alarmante. Ela nos remete às palavras precisas de Le Goff ao apresentar a Apologia
da História, de Marc Bloch: “São as questões que condicionam os objetos e não o oposto.”
(Le Goff in Bloch, 2001, 8, pref.)
Fugir do enfrentamento por falta de armas (fontes) é, de certa forma, corroborar para
a perpetuação das leis silenciosas que circunscrevem aquilo que permaneceu e aquilo que
foi esquecido. “Não se recua diante da responsabilidade. E, em matéria intelectual, horror
da responsabilidade não é sentimento muito recomendável.” (Ib., 11)
Castagna nos dá uma ideia não somente de quão diversas podem ter sido as práticas
musicais de nossos primeiros habitantes, mas também do quão foram irremediavelmente
pouco documentadas:
Afora os tupinambás e os tapuias [tribos indígenas mais recorrentemente citadas
ao longo do século XVI], poucos mais tiveram sua prática musical descrita pelos
autores daquele tempo. Existiram, contudo, centenas de tribos diferentes, muitas
das quais nem chegaram ao nosso conhecimento. Fernão Cardim, em 1584, já
computava mais de 90 nações, cujos nomes arrolou cuidadosamente. (Castagna,
1991, 33)

Ainda segundo o autor, tratava-se de uma herança cultural construída ao longo de


dez mil anos e que fora subjugada, então, à nova realidade da cultura dominante:
“Historiadores modernos avaliam em mais de um milhão de índios a população do Brasil
na época do descobrimento, mas que já vinha se formando há cerca de 10 mil anos” (Ib.).
Em síntese, os índios representavam mais de um milhão de habitantes espalhados em
mais de noventa nações distintas pelo território brasileiro do século XVI. E em relação à
sua cultura (que estimamos ter sido tão diversa quanto os números predizem), continuamos
a ter apenas as perguntas.
Sobre os cordofones, por exemplo, só vamos encontrar termos nativos e indícios da
existência de instrumentos musicais próprios entre os índios nos tardios séculos XIX e XX,
em pesquisas de estudiosos como o já citado Magalhães, que assim escreveu em 1900
[1876]:
Tendo assistido muitas vezes a estas festas e danças [cateretê e cururu] ao som da
viola, que era instrumento indígena de três cordas de tripa, a que elles chamam
guararápeuva, têm a vantagem de importar em maior exercício physico e
81

intellectual, por causa do canto e do verso, do que as danças europeias. (Ib., 271-
272)

Apesar de identificar um suposto instrumento indígena ancestral de três cordas de


tripa chamado de guararápeuva (e que foi citado outras duas vezes em seu texto) 147, o fato
da descrição do indianista ter sido feita já no último quartel do século XIX, distancia em
pelo menos três séculos o relato das práticas efetivas com cordofones em solo brasileiro no
século XVI. Não há como assegurar, por isso, que haja conexão lógica e direta entre
instrumentos de tempos históricos tão distantes entre si. Tinhorão vai ainda mais longe ao
relativizar a fonte:
Como se pode comprovar através de uma relativamente ampla e em certo sentido
minuciosa literatura dos primeiros cronistas da terra brasileira, entre os quinze a
vinte instrumentos musicais indígenas documentadamente referidos e descritos
jamais se incluiu qualquer espécie de viola ou qualquer outro instrumento de
cordas. Assim – e embora Couto de Magalhães não indique a fonte em que se
baseou para sua afirmação – se alguma vez existiu uma viola indígena chamada
guararápeva, isso só serviria para indicar uma capitulação cultural dos índios,
pois à adoção do instrumental de origem europeia seguia-se, logicamente, o
abandono das formas musicais primitivas, e a sua substituição pelas que mais se
adaptavam à escala pela qual se afinava o mesmo instrumento. (Tinhorão, 1972,
22)

Não estamos tão certos 148, porém, que a cooptação cultural tenha se dado de forma
tão simples e imediata, como sugere Tinhorão, tampouco que os “primitivos” instrumentos
indígenas tenham sido suprimidos de forma tão peremptória pelos portugueses (ou mesmo
que fossem, que não tenham encontrado caminhos para uma resistência “invisível”).
Há alguns indícios contrários que apontam muito mais para a absorção parcial das
práticas culturais indígenas – ainda que com finalidade pedagógica - do que a sua imediata
negação. A apropriação da língua tupi para apresentação de autos dramáticos é somente um
exemplo:
Possuo também, em manuscripto, um drama, ou auto, em tupi, que elle [padre
José de Anchieta] fazia os meninos representarem no palco do collegio de S.
Paulo, onde são personagens diversos indios, anjos e demônios: o objectivo era
também trazer os aborígenes para o seio do christianismo [...]. (Magalhães, 1900
[1876], 278-9)

147
“O versejar desses Homeros do povo é, em geral, extremamente melancholico, e, como eu disse atraz, é
pena que S. Paulo não tenha ainda tido um Silvio Romero ou um Garrett para colligir e publicar o seu
cancioneiro popular, com versos e musica, emquanto a musica e o versejar italiano, que não são nacionaes, os
não vêem extinguir como a poética e indígena viola ou guarará-peiva já está quase extincta pela prosaica e
fúnebre symphonia.” (Magalhães, 1900 [1876], 280-1). “Julgo que devíamos fazer a mesma cousa no Brazil;
no entretanto o facto é o seguinte: danças européas, com musicas ás vezes detestáveis que impedem aos
visinhos de dormir, todos podem fazer; dançar, porém, o caatereté brazileiro com a viola ou guararü-pewa,
com o pandeiro ou enquá, com os versos ora satyricos, ora amorosos dos bardos caipiras, sem previa licença
da policia, eqüivale a ser dispersado á força, ou ir para a cadeia!...” (Ib., 281) [grifos nossos]
148
Afinal, “a história se encontra desfavorável às certezas.” (Le Goff in Bloch, 2001, 11, pref.)
82

Outros documentos corroboram a perspectiva de que os índios também construíam e


utilizavam seus próprios instrumentos musicais. É o caso do relato do explorador e escritor
francês André Thevet (1502-1590), um frade franciscano que viveu em terras brasileiras
entre novembro de 1555 e janeiro de 1556 observando a natureza e as tribos indígenas que
habitavam os arredores da Baía de Guanabara. Dois anos depois de deixar o Brasil, tornou-
se cosmógrafo do rei francês Henrique II e publicou a sua célebre Singularidades da
França Antarctica, a que outros chamam de América (1557-1558).
Em uma das passagens do livro, Thevet revela que os índios possuíam flautas,
tamboris e outros instrumentos com os quais cantavam “a seu modo” um tipo de música
“agradável aos ouvidos” e que era capaz de excitar e “despertar os ânimos adormecidos”.
Não obstante, que fabricavam seus próprios instrumentos com cocos, ossos de animais e/
ou dos próprios inimigos.
Quando os selvagens tornam, vitoriosos, às suas choças, mostram, todos, sinais
de alegria, fazendo soar as flautas e tamboris, ou, então, cantando a seu modo.
Coisa, aliás, agradável aos ouvidos. Fabricam-se os instrumentos com uns certos
cocos, ou com ossos de animais, ou ainda, com os próprios ossos dos inimigos.
As armas de guerra são ricamente forradas e decoradas com alguns belos
penachos, — o que ainda hoje fazem os índios, não sem razão, uma vez que esse
foi sempre um costume de longos anos. Flautas, tamboris e outros instrumentos
parecem despertar os ânimos adormecidos, ou excitá-los, a exemplo do que faz o
fole com o braseiro meio extinto. (Thevet, 1944 [1557], 237)

Mas Thevet não foi o único. Jean de Léry (1536-1613), Hans Staden (c. 1525-1576)
e outros viajantes, missionários e cronistas também descreveram os instrumentos musicais
dos tupinambás. Vejamos a síntese dos registros realizada por Estevão Pinto:
A respeito dos instrumentos musicais dos tupinambás, cf. Léry, pág. 215. À
corneta de osso humano dava-se o nome de memi ou membi. Staden fala de
trombetas feitas de cabaços (pág. 158), talvez semelhantes às dos jurunas. Mais
inf. em G. Soares de Sousa (pág. 290), Cardim (pág. 38 e 339, o qual se refere às
trombetas feitas com o crânio das onças) e Évreux (pág. 39). O tambor era outro
instrumento conhecido dos tupinambás; a toada desse instrumento devia ser um
pouco monótona, observando G. Soares de Sousa que os índios não dobravam as
pancadas (pág. 383). Julga Métraux que o tambor é, entre os tupinambás, de
origem andina (La civ. mat., pág. 224). (Pinto in Thevet, 1944, 237)

São questões que estarão novamente em pauta ao longo do terceiro capítulo. Por ora,
o que fundamentalmente interessa é incorporar, ao nosso glossário sobre os cordofones de
cordas dedilhadas, os poucos termos indígenas que podem nos auxiliar nas buscas e nas
análises dos documentos com os quais iremos nos defrontar daqui por diante. Neste
sentido, são dois os nossos acréscimos:
1) Guararápeuva – possível viola indígena com três cordas de tripa citada pelo
indianista Couto de Magalhães em 1876;
83

2) Mabracá (Maracá) – radical que nominava um objeto sonoro com caráter sagrado
para os tupis e a partir do qual se somam outras letras para nomear diversos instrumentos,
acessórios e atividades musicais (inclusive as relativas à guitarra).
Não é muito, mas é um ponto de partida. Quem sabe não são as fagulhas necessárias
que permitirão o alcance de dados mais precisos e futuras descobertas.

1.4.6 Português arcaico: o vocábulo descante

Não é tão difícil imaginar, a esta altura, o quão a língua portuguesa incorporou
massivamente a terminologia das línguas que estiveram presentes nos intrincamentos de
sua gênese (especialmente o latim, o galego-português, o castelhano e, no Brasil, o tupi-
guarani). Muitos dos termos que analisamos acima são os mesmos que adotamos ainda
hoje para nos referirmos a cordofones de cordas dedilhadas no Brasil e em Portugal.
No entanto, ainda é preciso considerar as sutis mudanças de sentido realizadas dentro
do percurso de um mesmo idioma.
Devemos ter em mente, por um lado, que uma língua é um organismo em constante e
dinâmica transformação (o seu caráter latente pressupõe que muitos termos são
abandonados enquanto outros são agregados permanentemente ao vocabulário); por outro,
também não podemos esquecer que mesmo quando as palavras perduram, seus sentidos
são menos rígidos e não necessariamente seguem sempre os mesmos trilhos do trem.
Palavras são sensíveis às circunstâncias sociais, geográficas, culturais, políticas, ao choque
entre realidades distintas, etc.
Como já sublinhamos, Le Goff nos alertou para o fato de que “uma palavra vale bem
menos por sua etimologia do que pelo uso que se faz dela.” 149 Esta distância entre o uso e
o significado é um limbo purgatório que Chartier tão brilhantemente classificou como o
“espaço das possíveis reformulações e deturpações.” 150
Se há, todavia, um espelho menos embaçado da sociedade, ei-lo em seu vocabulário
lexical e em sua cultura, as únicas dimensões que se encontram apenas um passo atrás das
práticas que sujeitam o corpus social à sua verdadeira e volátil realidade. Uma realidade tal
qual o “ar”: viva e imprescindível, mas que, no entanto, não se toca e nem se vê.

149
(Le Goff in Bloch, 2001, 30-31, pf.)
150
“É preciso, ao contrário, postular que existe um espaço entre a norma e o vivido, entre a injunção e a
prática, entre o sentido visado e o sentido produzido, um espaço onde podem insinuar-se reformulações e
deturpações” (Chartier, 1995, 182)
84

A paradoxal “jaula flexível” sobre a qual todos (e cada um) podem exercitar a sua
contraditória “liberdade condicionada.” 151 Descobrir os sentidos vários que uma
determinada palavra conquista ao longo do tempo não é mais do que mergulhar na
paradoxal e saborosa descontinuidade contínua do historicismo humano. Palavras são
“monumentos”. Mas alguns monumentos também precisam ser negados para sobreviver.
No caso específico dos termos que identificam os cordofones de cordas dedilhadas
no Brasil a partir do século XVI, temos na palavra descante um exemplo clássico da
“monumentalização” de um vocábulo a partir dos seus usos e desusos, das suas
transformações e esquecimentos. Veremos com mais clareza o quão um termo pode ter
sentidos diferentes em tempos diferentes (ou em um mesmo tempo) e o quão interrogar um
documento sem tomar tal descontinuidade como ponto de partida pode nos levar a erros
musicológicos e interpretativos sutis.
Inicialmente, é preciso sublinhar que a acepção mais conhecida para o termo é aquela
que o associa a um estilo de composição polifônica que teve seus primórdios na Escola de
Notre-Dame, grupo de “compositores polifônicos que exerciam a sua actividade em Paris,
Beauvais, Sens e outras localidades do Centro-Norte da França.” 152 (Grout/Palisca, 2001,
105). A edição concisa do Dicionário Grove de Música reitera tal perspectiva ao definir o
vocábulo da seguinte forma:
descante [discante, descanto] (1) Tipo de polifonia medieval estruturado em um
cantochão da parte de tenor (cantus firmus); é caracterizado por um contraponto
nota-contra-nota em movimento contrário e pela alternância das consonâncias
(8ª, 5ª e 4ª). Originou-se como uma técnica de improvisação, mas em fontes
escritas posteriores é encontrado em partituras de canto gregoriano no organum,
onde contrasta com um estilo mais melismático, e em cláusulas e conductus [...].
(1994, 263)

Façamos agora uma acariação entre este sentido e aqueles que lhes conferiram os
nossos primeiros dicionaristas:
1) Ainda no século XVI, a palavra descante é traduzida por Cardoso, do português
para o latim, com o seguinte sentido: “Descante. Lyra, ae” (Cardoso, 1619 [1562], 289).
Devemos lembrar que para o próprio Cardoso o vocábulo lyra correspondia, por sua vez,

151
“Assim como a língua, a cultura oferece ao indivíduo um horizonte de possibilidades latentes – uma jaula
flexível e invisível dentro da qual se exercita a liberdade condicionada de cada um.” (Ginzburg, 2006, 20-21)
152
“A arte da composição polifônica do século XII a meados do século XIV desenvolveu-se originalmente
no Norte da França, irradiando depois para outras zonas da Europa. As mais altas realizações do organum
tiveram origem principalmente no trabalho da escola de Notre Dame; o organum também se cantou noutras
regiões da França e em Inglaterra, Espanha e Itália, mas menos sistematicamente e numa forma menos
desenvolvida do que em Paris, onde era, provavelmente, improvisado pelos cantores em ocasiões festivas. O
grosso da música, quer da missa, quer dos ofícios, continuava a ser o canto monofônico; ainda encontramos
peças monofônicas compostas de novo nos mesmos manuscritos que contêm organa e outras peças
polifônicas.” (Grout/Palisca, 2001, 105)
85

tanto ao termo guitarra quanto ao termo viola. 153 Inicialmente, portanto, descante se torna
correspondente possível para os termos lyra, guitarra e viola;
2) No princípio do século XVII, o termo é traduzido com duplo sentido por Fernão
d’Alvares do Oriente, em sua Lusitania Transformada: “Descante. Viola pequena.
Descantar, cantar, cantar ao descante” 154 (Oriente, 1781 [1607], 536). Como um
cordofone, o vocábulo incorpora viola pequena (ou “violinha”) como uma possível
acepção;
3) Ainda no início do século XVII, Barbosa amplia sutilmente o seu significado, mas
ainda caminhando na mesma direção dos cordofones de cordas dedilhadas: “Discante.
Lyra, ae. Barbitus, i”. (Barbosa, 1611, 397). Além do vocábulo lyra, aqui o termo também
é traduzido do português para o latim tendo barbitus como acepção possível. Barbitus que,
como vimos, foi tomado por alaúde pelos primeiros dicionaristas. Assim, descante
ampliaria suas possíveis correspondências para os termos lyra, viola, violinha, guitarra,
barbitus e alaúde. Até aqui, não enfrentamos problemas novos, afinal, estamos apenas
diante de mais um termo com sinonímia ampla e que precisa ser investigado com critério;
4) No entanto, já a partir da descrição realizada por Pereira em 1634, começamos a
observar uma mudança de sentido caminhando para outras direções. O termo descante ou
discante não é mais citado neste dicionário como um cordofone de cordas dedilhadas, o
que sinaliza para um possível desuso do significado, no Brasil, já em meados do século
XVII. Ao traduzir o verbo descantar no anexo Tesouro da língua portuguesa, Pereira
confere a seguinte acepção para o termo: “Descantar. Vide Reprehender.” (Pereira, 1723
[1634], anexo/55)
5) Bluteau, por sua vez, volta a dar um sentido musical para o termo em 1712,
embora não mais representando qualquer cordofone especificamente: “DESCANTE.
Concerto de instrumentos músicos. Musicorum instrumentorum, ou fidicinum concentus,
ûs. Masc. Fidicines, um. Significa os que tangem instrumentos de cordas. Huma dança de
Phocas curiosa.” (Bluteau, 1712, III/103). Aqui, além da curiosa dança de focas, vemos
dois sentidos musicais para o vocábulo: descante como sinônimo tanto de um concerto
musical quanto daqueles que tangem (tocam) instrumentos de cordas.
Em síntese, fazendo uma digressão do sentido que a palavra tomou ao longo dos
séculos XVI e XVIII, podemos visualizar duas acepções musicais mais nítidas:

153
“Guitarra. Lyra, ae.” (Ib., 307); “Viola. Lyra, ae.” (Ib., 341b)
154
Impressa em Lisboa por Luiz Estupiñan no ano de 1607 e reimpressa pela Regia Officina Typografica em
1781.
86

1) A primeira identifica o termo como um cordofone de cordas dedilhadas com


sinonímia ampla e que pode ser, de acordo com o dicionarista que o emprega,
correspondente aos vocábulos lyra, viola, violinha, guitarra, barbitus e alaúde. Tal
significado parece ter sido mais corrente nos séculos XVI e início do XVII, conforme
indicam os dicionários pioneiros de Cardoso (1562), Oriente (1607) e Barbosa (1611). O
sentido possivelmente perdeu força, no Brasil, já em meados do próprio século XVII em
diante, quando não é mais citado nos dicionários de Pereira (1634) e Bluteau (1712);
2) A segunda confere ao termo o sentido de um concerto com instrumentos musicais
ou que identifica o grupo dos que tangem instrumentos de corda, significados que lhe
foram atribuídos por Bluteau no início do século XVIII (1712). Um século após, no
primeiro quartel do século XIX, Antonio de Moraes e Silva publica uma edição
“recopilada de seu dicionário reafirmando, dentre outras, a acepção de Bluteau para a
palavra: “Concerto de instrumentos, e talvez acompanhado de vozes. [...]” (Moraes e Silva,
1823, 571).
Mas o ponto em questão não é apenas fazer um passeio digressivo sobre os diferentes
significados que a palavra incorporou e/ ou abandonou ao longo de quatro séculos, mas
identificar como tais publicações (os dicionários históricos) concorreram (ou não) para a
cristalização de seus diversos sentidos. Ou, em outras palavras, qual foi o significado
adotado como “monumento” para o vocábulo? E por quê?
Neste quesito, a volumosa obra de Bluteau alcançou um patamar que não foi atingido
por nenhum dos outros dicionaristas. Segundo o site da Biblioteca Nacional de Portugal, “o
grande Vocabulário, conhecido pela designação metonímica de Bluteau, é o primeiro
dicionário autorizado pela memória escrita e pelo patrimônio literário. Repercutiu-se como
obra instituidora em toda a subsequente elaboração lexicográfica portuguesa.” 155
Ora, a partir da citação, não se torna tarefa hercúlea adivinhar qual dos sentidos
conferido ao termo descante ganhou mais aceitação e repercussão a partir do século XVIII
em diante: de um lado, seu significado como cordofone de cordas dedilhadas parece
paulatinamente cair em desuso (confirmando o caráter vivo e movediço da língua); do
outro, o dicionário “eleito” de Bluteau (que, de fato, é o estudo mais completo dentre os

155
Excerto do artigo: 300 anos do Vocabulário de Bluteau: o estudo e a ilustração da língua, publicado no
site da Biblioteca Nacional de Portugal e disponível online no endereço:
http://www.bnportugal.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=694:mostra--300-anos-do-
qvocabularioq-de-bluteau--28-nov&catid=162:2012&Itemid=729&lang=en
Acesso em 30/07/2013, às 19h36min.
87

citados) 156 cristaliza um entendimento para a palavra que se tornará parâmetro às


publicações subsequentes.
Com efeito, em muitos documentos que encontramos (mesmo nos séculos XVI e
XVII, mas sobretudo do XVIII em diante), o sentido ao termo que mais se aplica é aquele
conferido por Bluteau e Moraes e Silva (o de “concerto de instrumentos, e talvez
acompanhado de vozes”).
Contudo, em outra não menos significativa quantidade de documentos
(especialmente nos séculos XVI e XVII), o sentido não é aplicável e torna-se necessário
resgatar o significado que lhe dedicaram alguns de nossos primeiros dicionaristas -
Cardoso, Oriente e Barbosa: o de um cordofone de cordas dedilhadas com ampla e
imprecisa sinonímia (lyra, guitarra, viola, pequena viola, barbitus, alaúde). Vejamos um
exemplo no relato do Pe. Fernão Cardim, escrito ainda no século XVI:
[...] em todo o tempo do baptismo houve boa musica, e motetes, e de quando em
quando se tocavam as frautas: depois disse missa solemne com diacono e
subdiacono, officiada em canto d'orgão pelos indios, com suas frautas, cravo, e
descante: cantou na missa um mancebo estudante alguns psalmos e motetes, com
extraordinária devoção. (Ib., 31)

Naturalmente, o sentido que mais se aplica ao termo, neste caso, é o de um cordofone


compatível com a viola de cordas dedilhadas (mesmo porque, além das vozes, flautas,
órgãos, cravos e violas, outros instrumentos não eram comumente utilizados nos ofícios
religiosos, como veremos no terceiro capítulo).
Nos próximos capítulos reproduziremos exemplos similares, o que sinaliza para o
fato de que uma interpretação equivocada dos vocábulos e seus sentidos (ou seja, fora dos
contextos de suas práticas) pode impedir que boa parcela de documentos seja aproveitada
nas pesquisas sobre o tema (lacuna recorrentemente reproduzida). Ou que, mesmo quando
considerados, eles sejam analisados de forma limitada.
Ao considerar o termo descante (bem como todos os termos anteriormente
investigados em outras línguas) como correspondente a um cordofone de cordas
dedilhadas, descortinamos a possibilidade de agregar uma documentação imprescindível na
busca pelo reconhecimento de alguns dos papeis sociais que tais instrumentos
desempenharam na Península Ibérica medieval e no Brasil dos séculos XVI e XVII.

156
A questão não é deixar de reconhecer a importância da publicação e, sim, apontar para o fato de que uma
obra, quando vertida em documento “oficial”, pode suprimir/dificultar o alcance das informações que ficaram
às margens do processo, entre os documentos que não estão entre os “eleitos” para marcar e reproduzir os
condicionamentos históricos.
88

Nesta primeira etapa da pesquisa, identificamos o nosso objeto de estudo (os


cordofones de cordas dedilhadas), mapeamos os limites e os propósitos da pesquisa
(compreender como chegaram e se difundiram tais instrumentos no Brasil a partir de 1500
e quais foram os seus papeis representativos dentro do corpus social) e, sobretudo,
ampliamos a terminologia referente aos cordofones, ao mergulhar no estudo das línguas
que antecederam e/ ou conviveram com o português nos séculos imediatamente anteriores
ou posteriores ao descobrimento.
Em síntese, as possíveis correspondências terminológicas de outras línguas para a
portuguesa em relação aos vocábulos alaúde, guitarra e viola são as seguintes:

1) ALAÚDE: barbitus, chelys, chítara (embora menos comum), descante,


testudo.
2) GUITARRA: descante, fides, fidicula (pequena guitarra), lyra, vihuela,
viola.
3) VIOLA: chitara, chelys (menos comum), descante, fides, fidicula
(violinha), guararápeuva, guitarra, lyra, vihuela.
Tabela 4: Quadro de possíveis correspondências dos vocábulos alaúde, guitarra e viola.

Todos estes vocábulos serão encontrados nos documentos que se seguirão nos
próximos capítulos, o que representa uma significativa ampliação do corpus lexical
disponível para consultas e pesquisas.
Muitas vezes, as citações acentuarão possíveis diferenças entre este ou aquele
instrumento; em outras, elas nos revelarão que vocábulos diversos eram utilizados para
designar o mesmo instrumento, como é o caso dos termos guitarra e viola, que ora foram
usados como sinônimos e ora para nominar cordofones diferentes:
Mas instrumentos diferentes eram conhecidos pelo mesmo termo assim como
termos distintos nomeavam instrumentos iguais. Budasz (2001, 11) afirma que
os termos utilizados para designar ‘guitarra’ e ‘viola’, por exemplo, parecem ter
sido frequentemente trocados um pelo outro e ‘[...] pode ser dado como certo que
em meados do século XV, o termo viola, assim como vihuela e muitas variantes
da palavra guitarra, eram usados para designar vários tipos de instrumentos
dedilhados ou de arco [...]’. Essas trocas provocam até hoje uma ‘confusão
terminológica’ como afirma Castro (2007). (Ballesté, 2009, 2)

No entanto, não é preciso um olhar musicológico tão aguçado para perceber que o
foco não deve residir em distinguir, a priori, um instrumento do outro pelas suas
características físicas, o que representaria pular (mas sem asas) em um abismo ainda mais
profundo (descante, como exemplo, é sinônimo para os três termos), mas sim reconhecer
89

suas diferenças a partir dos papeis e lugares sociais que tais instrumentos ocupavam. E
onde, neste sentido, os termos se aproximavam ou se distanciavam uns dos outros.
Para entender e mapear os caminhos que trouxeram parte substancial destes
instrumentos musicais para o território brasileiro, também foi necessário investigar alguns
dos termos que, na Península Ibérica do período medieval, referiam-se aos cordofones de
cordas dedilhadas. Assim, incorporamos na pesquisa os vocábulos galego-portugueses
(cítola e viola) e os castelhanos (guitarra, guitarra mourisca, guitarra latina, vihuela, etc.)
aos do próprio português.
Deste modo, temos as centelhas vitais para as análises do segundo e terceiro
capítulos, que tratarão especificamente sobre os cordofones na Península Ibérica e a
respectiva transição de tais instrumentos musicais para o Brasil a partir do descobrimento.
90

CAPÍTULO II: CORDOFONES DE CORDAS DEDILHADAS NA PENÍNSULA


IBÉRICA MEDIEVAL

Se isto assim continua, onde irá parar não sei!


Veremos ainda pela rua de guitarra o próprio rei. 157

2.1 Relativizando o mito da origem

Boa parte dos pesquisadores que tem se dedicado ao estudo da genealogia histórica
dos cordofones, tanto no Brasil quanto na Espanha ou em Portugal, concordam em
considerar os muçulmanos (árabes/ mouros) como os prováveis responsáveis pela
introdução/ difusão da maioria de tais instrumentos na Península Ibérica.
Também neste ponto é quase total o acordo entre os autores: a guitarra teve sua
origem no Oriente e entrou na Europa pela Espanha graças ao contato com os
árabes. Certamente em nenhum caso são fornecidas provas definitivas, mas a
afirmação se repete continuamente nos livros que se ocupam do tema,
geralmente acrescendo que se trata de uma origem obscura. (Marcos, 1975, I/38)
158

É o caso ainda do etnólogo português Ernesto Veiga de Oliveira (1910-1990):


“Geiringer [...] considera esta guitarra latina de origem arábico-persa, chegado à Europa a
seguir ao alaúde, encontrando-se em Espanha desde o século XII [...]” (1982, 190); do
etnomusicólogo português Domingos Morais: “Os Mouros [...] trouxeram-nos
instrumentos, músicas e danças que podemos encontrar nas iluminuras das Cantigas de
Santa Maria e no Cancioneiro da Ajuda.” (1995, 2) 159; e do professor da Universidade de
São Paulo (USP), Ivan Vilela: “Quando os árabes chegaram à Península Ibérica, no ano de
722 [711], os instrumentos de cordas dedilhadas presentes na Península eram as harpas
celtas e as cítaras greco-romanas.” O pesquisador conclui afirmando que o “oud, também
conhecido por alaúde árabe, foi o primeiro instrumento de cordas dedilhadas com braço
onde as notas podiam ser modificadas que chegou à Europa.” (2011, 116).
No entanto, esta não é a única interpretação possível para justificar a entrada, a
difusão e a miscigenação dos cordofones que antecederam o violão na Península Ibérica.
Nickel é categórico ao defender que “a introdução de um tipo acabado de guitarra na

157
Ditoso Fado de Rosa Damasceno representado em 1869, no ainda existente e ativo Theatro da Trindade,
em Lisboa (POR). Referências em: (Vasconcellos, 1902, II/907).
158
Tradução livre de: También en este punto es casi total el acuerdo entre los autores: la guitarra tiene su
origen en Oriente y entró a Europa por España gracias al contacto con los árabes. Ciertamente no se
aportan en ningún caso pruebas definitivas, pero la afirmación se repite continuamente en los libros que se
ocupan del tema, añadiendo por lo general que se trata de un origen ‘oscuro’. (Marcos, 1975, I/38)
159
Artigo disponível online em: http://attambur.com/Recolhas/PDF/InstrumentosMusicaisPP.pdf
Acesso em 02/12/2013, às 16h10min.
91

Espanha através dos árabes não se pode demonstrar”, assim como não é possível assegurar
“a diferença entre guitarra indígena [ou latina] e mourisca” (1972, 29). 160 Por tais razões,
seria mais adequado pensar no desenvolvimento inicial da guitarra na Espanha a partir dos
seus próprios povos originários, já que, segundo o autor, é “pouco provável que os mouros
tenham sido os responsáveis pela introdução da guitarra na Europa.” 161 (Ib., 209)
Sachs, por sua vez, crê em uma possível origem da guitarra a partir do
entroncamento com a fidula, instrumento musical medieval que antecedeu a viola de arco
(1967, 212). 162 Dissertando sobre a origem de ambos os instrumentos, o autor questiona se
a guitarra não teria sido, na verdade, uma fidula ponteada. Ou se, em contrapartida, a
fidula não teria sido um instrumento de ponteio que passou a ser tocado com arco. 163 (Ib,,
62)
Mas Nickel e Sachs não são os únicos. Lamaña é ainda mais assertivo ao apontar
uma possível relação direta entra a fidula do século XII e a guitarra do século XIII. Ao
analisar os instrumentos musicais que constavam no salão principal do palácio do antigo
arcebispo de Santiago de Compostela, Diego Gelmirez, o pesquisador afirma ter
encontrado três tipos distintos de fidulas, uma delas com a caixa de ressonância idêntica à
da guitarra que circulou na Espanha ao longo da centúria seguinte:
[…] fidulas várias em forma oval (tipo a), em forma de pera (tipo b) e com corpo
estrangulado e ombros retos caídos (tipo c); este último tipo resulta
particularmente interessante porquanto a forma de sua caixa é idêntica a das
guitarras que encontramos no século seguinte, o que constitui um inegável

160
Excerto traduzido livremente de: “Die Einfuhr einer fertigen Guitarre durch die Araber nach Spanien
lässt sich nicht nachweisen. Die Diferenzierung zwischen einheimischer Guitarre und maurischer wo bei
noch nicht festgestellt wurd, ob mit ‘guitarra’ schon eine Guitarre in unserem Sinne gemeint ist, lässt eher
auf eine bodenständige Entwicklung schliessen.” (Nickel, 1972, 29)
161
Tradução livre de: “Es wird noch unwahrscheinlicher dass die Mauren für dyie Einfuhr der Guitarre nach
Europa verantwortlich gewesen sein sollen.” (Nickel, 1972, 209)
162
“Die Guitarre – deren Fiedelamstammung ebenfalls glaubhaft gemacht werden kann […]” (Sachs, 1967
[1930], 212)
163
Rey Marcos chega a descrever um instrumento musical com características próximas à guitarra e que era
tocado indistintamente com arco e/ou com plectro, o que se configura, pelo menos na teoria, em um ponto de
encontro possível entre a fidula e a guitarra: […] “Se trata de los instrumentos tañidos con arco o con
plectro que desde el siglo IX abundan en la iconografía europea. Las características externas que unen a
estos tipos instrumentales se pueden resumir en: clavijero plano y circular; hombros rectos, perpendiculares
al mástil o inclinados; costados rectos que se incurvan para acabar en punta; sujeción inferior de las
cuerdas, generalmente alrededor de un botón que sobresale del extremo inferior. Son variables el modo de
tañido (plectro o arco), los agujeros de la tapa, el uso del puente, y el tamaño. Los ejemplares más
importantes que pueden citarse son: miniaturas del Psalterio de Sttugart (principios del siglo IX), con diez
representaciones; miniaturas del Psalterio de Utrecht (c.832); frescos de S. Martín de Fenollar (Francia,
siglo XII); Museo diocesano de Barcelona, Manuscrito catalán c. 1100. Tanto H. Nickel como C. Sachs
opinan que se trata de ejemplares construidos en una sola pieza de madera. Nickel piensa que esta forma es
el resultado de la evolución de las técnicas de construcción a partir de instrumentos del tipo de los ‘laúdes
coptos’. Sachs se inclina hacia un parentesco con los instrumentos asiáticos de Turquia y Rusia.” (Marcos,
1975, II/46-47)
92

testemunho da íntima relação que existiu em todo tempo entre a guitarra e as


fidulas ou violas, segundo nos faz observar o Dr. Sachs. (1973, 25) 164

O próprio Lamaña vai mais longe quando sugere que “em princípios do século XIII
(ou quiçá em fins do século XII) encontramos na Espanha novos instrumentos ponteados já
caracterizados e definidos, todos derivados da fidula ou viola ponteada” 165 (1973, 62). E
quais seriam estes instrumentos? O pesquisador lista três: 1) A vihuela, instrumento
musical pulsado e mais tarde denominado vihuela de péñola; 2) A cítola, muito citada nos
cancioneiros galego-portugueses (conforme veremos adiante) e que teve na baldosa uma
variante posterior; 3) E finalmente a guitarra, cordofone posterior aos citados
anteriormente e que, de acordo com o pesquisador, teria sido fortemente influenciado pela
cultura islâmica dos árabes e persas.
Nosso atual critério é que, em princípio, a guitarra não foi outra coisa se não uma
fidula ponteada do tipo C [...] aperfeiçoada e fortemente influenciada pela cultura
musical árabe-persa, cujo resultado foi o tipo de guitarra que encontramos em
fins do século XIII reproduzido em várias miniaturas das Cantigas de Alfonso, o
Sábio, no Cancioneiro da Ajuda. (Ib., 65) 166

O verbete guitarra do Diccionario de la Música Labor, escrito por Pena e Anglés,


também apresenta uma perspectiva paralela às de Sachs e Lamaña, reconhecendo a
influência árabe-persa na formação de um instrumento musical híbrido, com características
tanto da cultura latina quanto da islâmica:
[…] parece mais provável que as primitivas cedras ou cítaras (instrumentos de
marcado caráter latino e europeu), na Espanha e particularmente em Andaluzia,
durante os séculos XII e XIII e sobre a influência sudeste, sofreram uma certas
modificações e adaptações de caráter árabe-persa, aparecendo assim um novo
instrumento com inegáveis características latinas e islâmicas, o qual encontramos
perfeitamente representado nas miniaturas do códice das Cantigas de Alfonso X
o Sábio, e que corresponde seguramente ao que se chamou então com o nome
árabe de qitâra (cithara em latim) e que ao espanholizarse terminou com o
[nome] de G. (Guitarra Latina), e em francês, com o de guitare ou quiterne.
(Pena/Anglés, 1954, 1179) 167

164
Tradução livre de: “[…] fidulas varias en forma oval (tipo a) en forma de pera (tipo b) y con cuerpo
estrangulado y hombros rectos caídos (tipo c); este último tipo resulta particularmente interesante por
cuanto la forma de su caja es idéntica a la de las guitarras que encontramos en el silgo siguiente, lo que
constituye un indudable testimonio de la intima relación que existió en todo tiempo entre la guitarra y las
fídulas o violas, según nos hace observar el Dr. Sachs.” (Lamaña, 1973, 25)
165
Tradução livre de “[…] a principios del siglo XIII (o quizás a finales del siglo XII) encontramos en
España nuevos instrumentos punteados ya caracterizados y definidos, derivados todos de la fídula o viola
punteada”. (Lamaña, 1973, 62)
166
Tradução livre de: “Nuestro actual criterio es que, en principio, la guitarra no fue otra cosa que una
fidula punteada del tipo C… perfeccionada y fuertemente afectado por la cultura musical árabe-persa, y
resultado de ello fue el tipo de guitarra que encontramos a finales del siglo XIII reproducido en varias
miniaturas de las Cantigas de Alfonso el Sabio, en el Cancionero de Ajuda, etc.”. (Lamaña, 1973, 65)
167
Tradução livre de: “[…] parece lo más probable que las primitivas cedras o cítaras (instrumentos de
marcado carácter latino y europeo), en España y particularmente en Andalucia, durante los siglos XII y XIII
y bajo la influencia sudoriental, sufrieran unas ciertas modificaciones y adaptaciones de carácter árabe-
persa, apareciendo así un nuevo instrumento con indudables características latinas e islámicas, el cual
93

Em síntese, dois caminhos podem ser considerados mais plausíveis para o


aparecimento e a difusão dos cordofones de cordas dedilhadas (e mais particularmente da
guitarra e seus predecessores diretos) na Península Ibérica: 1) Através da cultura islâmica,
com a chegada dos árabes/ mouros/ persas, sobretudo a partir da invasão muçulmana
ocorrida no início do século VIII; 2) Ou através dos próprios povos autóctones espanhóis, a
partir do desenvolvimento de um tipo específico de fidula, instrumento musical que
precedeu a viola de arco168.

encontramos perfectamente representado en las miniaturas del códice de las ‘Cantigas’ de Alfonso X el
Sabio, y que corresponde seguramente al que se llamó entonces con el nombre árabe de qitâra (cithara en
latín) y que al españolizarse terminó con el de G. (Guitarra Latina), y en francés, con el de guitare o
quiterne.” (Anglés-Pena, 1954, 1179)
168
De modo geral, considera-se fidula como um termo que designa qualquer instrumento de cordas e arco
medieval e, de forma mais comumente, como predecessor direto da viola (ou vihuela) de arco. Contudo,
alguns autores também relacionam o vocábulo como um antecessor da viola da gamba e mesmo da viola de
arame. São os casos de Candé e Dourado:
“FÍDULA. Término que designa a las diferentes clases de instrumentos de arco de la Edad Media (a partir
del siglo IX, cuando el arco hizo su aparición en Europa). Estos instrumentos de formas diversas estaban
tensados por entre una y cinco cuerdas y se sostenían de diversas maneras, apoyando la caja sobre la
espalda o sobre la rodilla. Estas fídulas son los antepasados de las violas da gamba. Se utiliza hoy en día la
palabra fídula como nombre genérico de los instrumentos de arco, tanto en la música popular de Europa
como en las músicas eruditas tradicionales de África y de Asia, principalmente de los países de influencia
islámica. Para la etnomusicología todo instrumento de mástil y cuerda frotada es una fídula (fiddle en
inglés).” (Candé, 2002, 106)
“Fídula1. Um dos ancestrais da VIOLA DE ARAME. 2. (it.) Um dos nomes antigos para FIDLE. (Dourado,
2004, 130). Fiddle (ingl. lat. vitulu: bezerro; al. Fiedel) Termo relacionado ao espírito de festejo e regozijo,
passou a designar um instrumento semelhante à RABECA. De modo geral, pode também referir-se a
qualquer instrumento de cordas e arco, como os da família do violino. (Ib.)”
94

Figuras 11 e 12: Códices 05 e 08 das Iluminuras do Cancioneiro da Ajuda (manuscrito datado em princípios
do século XIV). Personagens: Mestre-trovador à esquerda, jogral com vihuela de arco ao centro, rapariga
com pandeiro redondo e de soalhas exteriores no primeiro exemplo e supostamente cantando no segundo
exemplo. No primeiro exemplo, o chapéu na personagem sentada à esquerda indica o contorno da letra M,
de Mestre-Trovador. Fonte: http://cantigas.fcsh.unl.pt/iluminuras.asp

Mas mesmo considerando a segunda hipótese, reconhecer as significativas


apropriações que os cordofones peninsulares receberam da cultura islâmica árabe-persa é
um consenso para a maioria dos pesquisadores que se dedicam ao estudo do tema,
conforme acabamos de observar. Assim, ainda que não tenham sido os responsáveis diretos
pela inclusão dos cordofones de cordas dedilhadas na Península Ibérica, faz sentido
conjecturar que os povos muçulmanos fronteiriços à Espanha foram decisivos para o seu
95

desenvolvimento e difusão, através dos imbricamentos e influências recíprocas que se


sucederam a partir de seu estabelecimento na região peninsular.

Figura 13: Um mouro muçulmano e um europeu cristão: duas religiões e procedências, um mesmo
instrumento. Fonte: Cantigas de Santa Maria, de Alfonso X el Sabio, (ca. 1260-1275). Biblioteca del
Monastério de El Escorial (Madri, ES).

Mas em que circunstâncias ocorreram tais trocas simbólicas?

2.2 Os conflitos medievais na Península Ibérica

No mapa a seguir, podemos ter uma ideia do posicionamento dos territórios


(destacados em cores) que compõem a Península, situada no sudoeste europeu: Espanha
(85%); Portugal (15%); o pequeno país de Andorra (<1%); uma parcela mínima do sul da
França (<1%); e Gibraltar (território britânico ultramarino que também ocupa menos de
1% das suas dimensões). 169

169
Valores aproximados das porcentagens dimensionais dos territórios que compoem a Península.
96

Figura 14 - Divisas da Península Ibérica - Fonte: http://wikitravel.org/pt/Península_Ibérica

Foi justamente através deste último, mais precisamente do estreito de Gibraltar, que
em 711, na batalha de Guadalete (nome do rio que margeou a contenda), os muçulmanos
cruzaram as fronteiras da Península arrasando a resistência dos exércitos visigodos que lá
imperavam desde o século V. A ocupação muçulmana direta perduraria quase oito séculos
até a rendição definitiva para os cristãos, ocorrida em 1492. 170
No entanto, os cruzamentos históricos são bem menos lineares do que aparentam.
Marcada por tensões permanentes entre os próprios muçulmanos 171, a presença ativa dos
judeus 172 e sobretudo pelos embates constantes com os cristãos 173 (que ainda no século

170
Os últimos territórios sob os domínios Mouros foram tomados em 1492, com a perda de Granada para
Isabel I de Castela e Fernando II de Aragão. Tais personagens, conhecidos historicamente como os “Reis
Católicos”, haviam unificado a Coroa de Castela e o Reino de Aragão casando-se em 1469, lançando, assim,
as bases para a criação do Reino da Espanha.
171
Sobretudo entre os povos berberes do noroeste da África (mouros) e as lideranças árabes do Oriente
Médio.
172
“A partir do ano 711 d.C. os muçulmanos invadiram a Espanha. Por incrível que pareça os judeus
continuaram a prosperar em meio de califados e ditadores árabes que ocupavam mais a área Ocidental de
Península Ibérica. Nesta época surgiram os judeus eruditos, médicos, físicos, poetas, convertendo, assim, no
maior centro da cultura judaica no mundo. É impossível discorrer sobre a história e cultura judaica sem
passar pela Península Ibérica. [...] Este crescimento e prosperidade chegou até o século onze e doze, período
em que ocorreram as invasões romanas. Até este período os judeus tiveram ampla difusão em Portugal, que
não só espalharam por todo o território, influenciando a constituição demográfica. A influência judaica foi
não somente étnica, mas também se projetou nos aspectos culturais, políticos e sociais.” (Marcelo
Guimarães, 2002, s.p) Artigo disponível em: http://anussim.org.br/a-presenca-dos-judeus-na-peninsula-
iberica/
166
Conferir em: REILLY, Bernard F. Cristãos e muçulmanos: a luta pela Península Ibérica (The contest of
Christian and Muslim Spain), trad. Maria José Giesteira. Lisboa: Teorema, 1998.
97

VIII iniciaram as lutas para tentar reaver os territórios perdidos), a Península Ibérica foi um
palco privilegiado para influências recíprocas entre povos e etnias de diferentes culturas.
Por consequência, não é difícil vislumbrar o quão Portugal, que tem o seu atual
território concentrado integralmente dentro da outrora disputada e fervilhante região
peninsular, também teve uma história marcada pela presença de culturas variadas.
Lutaram pela soberania das suas terras, em distintos momentos (algumas vezes
concomitantemente), os celtas (galaicos e lusitanos), o Império Romano, os povos
germânicos 174 (vândalos, alanos, búrios, suevos e visigodos) e, como já vimos, também os
muçulmanos (árabes/ mouros), que lá sofreram contínua resistência dos cristãos até a
fundação do Reino de Portugal no ano de 1.139, o posterior reconhecimento da
independência no ano de 1143 175 e finalmente a estabilização das fronteiras no ano de
1249 176, quando os muçulmanos perderam o controle da cidade de Faro para as tropas
cristãs de D. Alfonso III.
Contudo, embora Portugal seja o mais antigo Estado Nação estabelecido no
continente europeu 177, traços de tais instabilidades e conflitos ainda perdurariam durante
todo o restante da Idade Média.
Por tal razão, quando nos referimos aos cordofones de cordas dedilhadas que
circulavam em terras lusitanas na era medieval, é mais apropriado não pensar em limites
territoriais rígidos e reconhecer que os instrumentos e a produção literária do período
refletem, na verdade, uma instabilidade política, geográfica, linguística e cultural mais
ampla, que se dava em praticamente todo o território peninsular.
Não é o nosso propósito investigar a fundo como germinaram e floresceram as
condições de possibilidade que fomentaram trocas representativas entre diferentes culturas
na Península Ibérica (o que, embora seja um objeto de estudo recomendado, fugiria ao
escopo de nossas possibilidades documentais, espaciais e físicas), mas apenas identificar
como este ambiente diverso foi o cenário ideal para o florescimento de distintos

174
Com a queda do Império Romano, a partir de 476 d.C., os suevos e visigodos fundariam os primeiros
reinos cristãos dentro dos limites do futuro território português.
175
Foi com a assinatura do Tratado de Zamora, firmado em 1143 entre D. Afonso Henriques (do recém-
proclamado Reino de Portugal) e o seu primo Afonso VII (De Leão e Castela), que Portugal obteria o
reconhecimento de sua independência.
176
Foi no ano de 1249 que findou em Portugal a chamada Reconquista (ou “Conquista Cristã”), movimento
ibérico-cristão que iniciou ainda no século VIII e que visava a recuperação das terras perdidas para os
muçulmanos em 711, como já foi observado. Em Portugal, a Reconquista foi finalizada bem antes do que na
Espanha, onde somente em 1492 Isabel I de Castela e Fernando II de Aragão tomaram Granada, então o
último território peninsular sob os domínios dos mouros muçulmanos.
177
Informações consultadas em: (Herculano, 1875 [1846-1853], tomos I-VIII); (Jenkins, Sofos, 1996, 145).
98

instrumentos e práticas musicais, argumento comungado por alguns de nossos principais


pesquisadores. 178
Para ter uma ideia, basta citar que antes da chegada dos muçulmanos e dos
posteriores imbricamentos já mencionados, os únicos cordofones dos quais se têm notícia
circulando na Península são as harpas celtas e as cítaras greco-romanas (Oliveira, 1982).
Com a proliferação dos cordofones simples e compostos na faixa territorial que hoje
compreende a Espanha e Portugal, vimos que iniciaria uma das maiores problemáticas nos
estudos concernentes ao tema não somente nos países iberos, mas também no Brasil: a
diversidade da nomenclatura.
No primeiro capítulo, observamos que tal fato se deu (e se dá) a tal ponto que, em
muitos momentos, não sabemos ao certo sobre a qual instrumento se refere um
determinado documento ou relato histórico.
Para mapear minimamente o berço das múltiplas terminologias referentes aos
instrumentos predecessores àqueles que aportaram no Brasil junto com os portugueses no
final do século XV/ início do XVI e, sobretudo, entender a genealogia imediata de algumas
das práticas medievais que acompanharam os cordofones trazidos por nossos
colonizadores, intentaremos, a partir de agora, desvelar/ questionar alguns dos mais antigos
relatos/documentos conhecidos sobre o tema na Península Ibérica.

2.3 A documentação medieval sobre cordofones na Península Ibérica

Os primeiros relatos escritos sobre cordofones circulando na atual região da


Península Ibérica foram escritos em latim. O Himnario latino-visigodo, concebido no
século VII sob a inspiração dos hinos ambrosianos (S. Hilario, Prudencio e os de igrejas
particulares), é considerado “uma das joias da primitiva liturgia espanhola” (Pedrell, 1901,
36), configurando-se como um desdobramento dos primeiros passos da liturgia e poesia
eclesiástica ibérica (delineada a partir do IV Concílio de Toledo). A obra apresenta uma
seção de hinos gerais com temáticas diversas e que abordam, de forma geral, situações
cotidianas da vida.

178
“A Península Ibérica foi, desde tempos remotos, palco de invasões e entrelaçamentos das etnias mais
diversas. Por lá estiveram iberos, celtiberos, tartessos, fenícios, romanos, godos, visigodos, suevos (no
Noroeste) e, por fim, árabes” (Vilela, 2011, 114). “A partir do enlace cultural de mouros, cristãos e judeus
sefarditas, inúmeros instrumentos foram gestados. A fusão que se processou nesse período na Península
Ibérica foi tal que, por volta do século XIII, é acolhida na península a guitarra latina.” (Ib., 116)
99

Dentro de tal produção, reconhecida por sua excelência literária e formas rítmicas,
destaca-se o Pro Nubentibus, hino valioso por elencar instrumentos musicais em algumas
de suas estrofes:

HYMNUS DE NUBENTIBUS
[...]
Coreis timphanis exulta musica,
Et redde Domino vota perennia
Qui crucis gloria eruit animas,
Quas coluber momorderat.
Pusilla copula adsume fistulam,
Liram et tibiam, prestepe canticam
Voce organica carmen melodía
Gesta psalle divitica.
Fecunda Domine presentes nuptias
Prole dignissima, qui tibi serviant,
Et tuo nomini gratias referant,
Benedictique permaneant,
Cithara jubila, cimbala concrepa,
Cinara resona, nablum tripudia
Excelso Domino qui regit omnia
Per cuneta semper saecula.
Amen.
(Pedrell, 1901, 37-38)

Embora reconheçamos que os vocábulos citados representem instrumentos musicais


bem diferentes daqueles homônimos que circulavam na Península Ibérica entre o fim da
Idade Média e o início do Renascimento 179, a cithara e a liram, termos que posteriormente
se associariam também aos cordofones de cordas dedilhadas, já eram mencionados na
literatura ibérica quase 08 séculos antes da chegada dos portugueses ao Brasil.
Já as primeiras notícias sobre personagens empunhando cordofones e circulando
entre as regiões da Espanha (em O Cantar de Mio Cid) 180 e de Portugal (na Crônica Geral
de Espanha de 1344) 181 se concentram a partir do século XII, embora haja indícios de que

179
De las transformaciones sucesivas del psalterio nació el piano. La lyra y su perfeccionamiento la cítara
son los principales instrumentos de la antigíiedad clásica. Distingüese del nebel, trigono, pectus, etc., en que
todas las cuerdas son de igual longitud. El barbitos era una lira de mayores proporciones, y forminx y
pectides, formaban dos variantes de la lira y del nebel ó arpa, respectivamente. Todo lo restante dela
definición es una alusión á los instrumentos de membranas de formas triangulares ó cuadradas. (Pedrell,
1901, 85)
180
A Crônica del Cid (“O Cantar de Mio Cid”) provavelmente foi escrita entre os anos de 1180/1190, uma
vez que o texto aborda os anteriores conflitos entre os reinos de Castela e de Aragão. É uma crônica
biográfica de Rodrigo Diaz de Vivar, nobre cavaleiro espanhol que viveu no século XI, período em que a
Península Ibérica ainda encontrava-se dividida entre reinos cristãos e muçulmanos. O emblemático cavaleiro
se tornaria, assim, a figura lendária modelar a encarnar o ideal da Reconquista Cristã.
181
A Cronica General (“Cronica Geral de Espanha de 1344”), por sua vez, foi “a primeira tentativa realizada
em Portugal de uma história geral da Península [...], cuja iniciativa se deve com toda a probabilidade a D.
Pedro, Conde de Barcelos, filho bastardo de D. Dinis [...]. O documento inclui além da notícia da fundação
do Condado Portucalense, o relato do reinado dos sete primeiros reis de Portugal, estando incompleto do de
100

ainda no século XI, pelo menos, jograis anônimos tenham efetivamente trabalhado na
região peninsular:
Não esqueço que vemos jograes (anonymos) citados com data muito anterior,
como se houvessem trabalhado no ultimo decennio do sec. XI. Segundo a
Cronica General e a Cronica del Cid, vários figuraram nas bodas e tornabodas
182
das filhas do Campeador com Ramiro de Navarra e Raimundo Berenguer de
Barcelona, e também quando Alfonso VI casou as herdeiras com os condes de
Borgonha e Tolosa [passagem descrita na Crônica General, p. 358].
Recompensados com pannos, sellas e ricos ‘guarnientos’ apparecem
classificados como jograes de boca e de peñola; i. é. [isto é] a meu vêr, como
recitadores (respectivamente: cantores) e instrumentistas (= tocadores de guitarra
de peñola); e não, conforme entendem outros, como decidores repentistas e
escritores. (Vasconcellos, 1904, II/717)

É interessante o fato de Vasconcellos relacionar os jograis com a função de


recitadores/ cantores e tocadores de guitarra de peñola, perspectiva que se ratifica quando
analisamos alguns dos versos do Libro de Alexandre, obra anônima presumivelmente
escrita entre o fim do século XII e a primeira metade do século XIII 183 e na qual iremos
encontrar um jogral que, sabendo recitar bem, ganhou a atenção do rei tangendo a sua
viola:
[…] Un juglar de grant guisa - sabiá bien su mester-,
omne bien razonado que sabiá bien leer,
su vïola tañiendo vino al rey veer;
el rey, quando lo vió, escuchól volenter. […]
(Anônimo, Libro de Alexandre, 30) 184

Ainda na primeira metade do século XIII, Gonzalo de Berceo 185 apontou a presença
de cedras (cítaras) 186 e alaúdes graves entre os instrumentos musicais mencionados em sua
obra Duelo de la Virgen:

D. Alfonso IV, durante o qual foi realizada. Apresenta já apreciável relevo literário, sobretudo nos passos em
que utiliza como fontes algumas narrativas em prosa baseadas em romances épicos jogralescos.” (Lemos,
1997 [1979], 11)
182
“No tempo de D. Alfonso II de Aragão (1180) a Aljama dos sarracenos de Tortosa queixava-se porque os
jograes [sic], acompanhados de cantadeiras, invadiam todas as casas onde se celebrava algum casamento,
quer de ricos quer de pobres, exigindo no fim a paga dos seus serviços. — Andan de boda en boda clérigos e
juglares. E o Arcipreste [de Hita] quem o disse, ainda em meado do sec. XIV”. (Vasconcellos, 1904, II/638)
183
“El libro de Alexandre es una obra anónima castellana de tema universal, las hazañas de Alejandro
Magno (356 a. J.C.), grand calidad literaria de sua autor y enorme extensión, 2675 tetrástrofos monorrimos
o estrofas de cuardear vía. El manuscrito P [códice de Paris] consta, por sua parte, de 2.639 estrofas,
mientras que O [códice de Osuna] tiene sólo 2.510, 10.700 versos alejandrinos, en conjunto. Sobre su fecha
no hay acuerdo preciso, fuera de los límites muy generales de la primeira mitad del siglo XIII: tiene que ser
posterior a 1182, fecha del poema latino de Gautier de Châtillon, Alexandreis, que traduce en buena parte, y
anterior a 1250, fecha aproximada del Poema de Fernán González, en el que influye. Es necesario tener en
cuenta que el éxito de la Alexandreis fue instantáneo. Tan sólo siete anõs después de su finalización influyó
en el epitafio del rey Enrique II de Inglaterra (1189).” (Alvar e Megías, 2002, 754)
184
Disponível online no seguinte endereço: http://www.edu.mec.gub.uy/biblioteca_digital/libros/anonimos/
Acesso em 06/12/2014, às 17h38min.
185
Gonzalo de Berceo (fim do século XII – c. 1264) foi o primeiro representante do chamado Mester de
Clerecía, uma escola medieval de homens letrados, sobretudo sacerdotes, cuja principal motivação se
concentrava na difusão da cultura latina. Não somente ajudou a depurar a língua castelhana, como também
101

Tornaron al sepulcro vestidos de lorigas,


Diciendo de sus bocas muchas sucias nemigas
Controbando 187 cantares que non valían tres figas
Tocando instrumentos, cedras, rotas e gigas.
(Berceo, [s.d], estrofe 176, p.248) 188
Já no Libro de Apollonio, também uma obra medieval anônima da literatura
castelhana e que muito provavelmente foi escrita na segunda metade do século XIII
(Lopes, 1976) 189, a personagem Tarsiana (filha de Apollonio) revela os seus dotes de
juglaresa (soldadeira) na cena em que é descrita uma ida sua ao mercado:
Prisso una viola buena e bien temprada
E salió al mercado á violar por soldada [...]
Tornó al Rey Tarsiana faciendo sus trobetes,
Tocando su viola, cantando sus versetes.
(Pedrell, 1901, 43)

O fato é que, ao longo da Idade Média, já eram comuns no ambiente sociocultural


peninsular os cantos solenes, marciais, religiosos ou profanos (que reverberavam
apropriações recíprocas) com acompanhamento de cordofones de cordas dedilhadas desde,
pelo menos, a invasão dos árabes/ mouros.
Disse […] dom Basilio Sebastian Castellanos, referindo-se a outros autores, que
quando os árabes se apoderaram da Espanha, já tínhamos poesia antiga e
moderna; o alaúde do trovador soava entre mãos hábeis, os cantos solenes e
populares faziam as delícias do povo, não suspenso para empunhar o escudo e a
lança [el lanzon], mas em vez disso, aos cantos de festa sucederam os marciais, e
os religiosos se enriqueceram com as inspiradas trovas dos defensores da
religião. Que invasores e nativos cantavam, e embora suas canções tivessem
origem e propósito completamente diferentes, a poesia espanhola se adornava
com as ricas inspirações de uns e outros. Que a galanteria, alma da poesia e da
música espanhola dos séculos medievais, havia se entronizado na Espanha já na
corte dos últimos reis visigodos, e a mulher era antes em nosso solo um objeto de
adoração mundana cujos interesses o espanhol queimava com profusão o suave e
balsâmico incenso, como comprovam os antigos romances de Cava e Don

foi o primeiro poeta conhecido a escrever no idioma. Além disso, abriu as portas para uma poesia de cunho
mais “erudito”, em contrapartida àquela desenvolvida pela poesia épica popular e a dos jograis. Clérigo e
homem culto, sua obra se divide em três linhas principais: vida de santos; obras marianas; e obras com
temáticas religiosas mais amplas (doutrinais, dogmáticas, etc).
186
Pedrell faz a seguinte relação entre os instrumentos: “Cedra. Anticuado. Cítara.” (1897, 74)
187
Sobre a expressão controbando, Pedrell afirma que “Así decían de um laúd bajo ó grave- grant laud tunbal
(Cancionero de Baena, pág. 289)” (1901, 120)
188
Obra disponível online no seguinte endereço:
http://www.vallenajerilla.com/berceo/claveriagarcia/duelo.pdf
Acesso em 08/12/2014, às 19h21min.
189
Lopes circunda o poema por volta de 1260. Embora pouco se saiba sobre o seu autor, a obra foi
provavelmente concebida por um clérigo em função de sua erudição (escrita em versos alejandrinos,
compostos por 14 sílabas que apresentam rima consoante uniforme e são compostas por 02 partes de 07
sílabas divididas por uma cesura ou pausa entre elas. Também integra o chamado Mester de Clerícia, uma
escola medieval de homens letrados, sobretudo sacerdotes, cuja principal motivação se concentrava na
difusão da cultura latina).
102

Rodrigo, a galanteria dos cavaleiros cristãos mencionados no romancero del


Cid, e a dos árabes depois de dominar a Espanha. (Fuertes, 1857, IV/28-29) 190

E o florescer da música instrumental e de canções profanas e religiosas não foi algo


que se limitou à Era Medieval, mas que, pelo contrário, ganhou contornos ainda mais
nítidos a partir do período pré-renascentista na Península Ibérica, com o surgimento de
personagens musicais cotidianos como o célebre Pedro Palomares, um singular tocador da
guitarra de cinco ordens, e os Perazas, família de dois irmãos, Juan e Nicolás, e seus seis
filhos que, juntos, eram virtuosos em diversos instrumentos, entre eles o alaúde, a guitarra
e a bandurra. 191
E tal florescimento não se limitou à Espanha, uma vez que, nesta época, “os
portugueses não foram inferiores aos castelhanos ou catalães nem na música profana e nem
na eclesiástica.” 192 Já entre os séculos XVI e XVII, por exemplo, a faixa peninsular que
compreendia Portugal fervilhava em um ambiente sociocultural onde a música e o uso dos
instrumentos musicais atravessavam gêneros e estratos sociais, o que permitiu o
aparecimento de, por um lado, compositores clássicos da envergadura de Duarte Lobo,
Filipe de Magalhães, Frei Manuel Cardoso, João Lourenço Rebelo, Diogo Dias Melgás,
Estêvão Lopes Morago, Francisco Martins, dentre outros. E, por outro, de uma sólida
cultura de cantigas profanas e religiosas que eram acompanhadas, sobretudo, por
cordofones de cordas dedilhadas.
Tais documentos e dados abrem espaço para colocarmos em cena alguns dos
personagens sociais mais relacionados ao uso de cordofones na literatura ibérica dos

190
Tradução livre de: “Dice […] don Basilio Sebastian Castellanos, refiriéndose á otros autores, que cuando
los árabes se apoderaron de España, teníamos ya poesía antigua y moderna; el laud del trobador sonaba
entre manos hábiles los cantos ya solemnes ya populares hacian las delicias del pueblo, no suspendiéndose
para enpuñar el escudo y el lanzon, sino que al contrario, á los cantos de fiesta sucedieron los marciales, y
los religiosos se enriquecieron con las inspiradas trovas de los defensores de la religión. Que invasores y
naturales cantaban, y si bien sus canciones tenían un origen y objeto enteramente diferentes, la poesía
española se engalanaba con las ricas inspiraciones de unos y otros. Que la galantería, alma de la poesía y
de la música de los siglos medios, se habia entronizado ya en España en la corte de los últimos reyes godos,
y la mujer era en nuestro suelo un objeto de adoración mundana ante cuyas aras el español quemaba con
profusión el suave y balsámico incienso, como lo comprueban los antiguos romances de la Cava y don
Rodrigo, la galantería de los caballeros cristianos citados en el romancero del Cid, y la de los árabes
después de dominar la España.” (Fuertes, 1857, IV/28-29)
191
Estes personagens musicais cotidianos são citados com outros em um excerto de uma das poesías de Lope
de Vega (1562-1635) transcrita por Fuertes: “Lope de Vega hace mención de algunos aficionados y
profesores que mas sobresalieron en su tiempo, en los siguientes versos: ‘Habla Doña Ana de Zuazo y canta/
que todo encanta cuando canta y habla./ Pude Doña Maria de los Cobos/ mover las piedras otra vez en
Tebas/ con los Perazas singulares hombres/ Ysasi vive por la tecla insigne;/ y en la música Risco, Lobo, Y
Cotes./ Gracia tuvo del cielo Palomares/ en cinco cuerdas; grandes fuerzas tiene’.” (Fuertes, 1857, II/209)
192
“Los portugueses en dicha época no fueron inferiores à los castellanos y catalanes ni en la música
profana ni en la eclesiástica.” (Fuertes, 1857, II/209)
103

séculos anteriores ao descobrimento: os jograis, trovadores, soldadeiras (juglaresas) e


segréis.

2.3.1 Jograis, trovadores, soldadeiras e segréis: os personagens e as práticas

O erudito Marquês de Pidal oferece uma extensa e bem fundamentada ideia dos jograis
daquela época e da importância de suas composições nestes termos: ‘Não se
compreenderia bem a importância destes cantares e o modo com que se compunham e
conservavam na memória e na tradição oral dos povos, se não déssemos uma ideia dos
cantores e compositores destes poemas populares, dos que os retinham e conservavam
com cuidado na memória como necessidade e circunstância precisa de sua profissão.
Falo dos Jograis. (Fuertes, 1857, I/100) 193

Derivada do provençal joglar, substantivação do adjetivo latino joculáris, a palavra


jogral se referia, na lírica medieval, a um personagem de origem popular (ou seja, que não
pertencia à nobreza) e que atuava tanto nas praças públicas quanto nos palácios senhoriais,
espaços de atuação onde ganhava a vida recreando o público ou a corte com música,
literatura, charlatanices ou ainda com ilusionismos, acrobacias e mímicas. (Pidal, 1956).

A característica dos jograis de transitar entre camadas sociais distintas é também


reafirmada por Fuertes:

Quando um jogral chegava enriquecido com estas histórias e narrações a um


castelo e batia às suas portas tocando seu alaúde, uma nova vida parecia de
repente animar os habitantes daquelas solitárias torres. O castelhano e sua família
sem distinção de sexos, classes nem idades, reuniam-se ao redor do cantor que
lhes exaltava os afetos e sentimentos que mais lhes dominavam e interrompiam a
monotonia de sua vida uniforme e solitária. A chegada do jogral era uma
verdadeira festa de família, e todos se esmeravam em o festejar e o favorecer, e
em pedir que cantasse ou recitasse as histórias que mais se conformavam com as
suas inclinações.
A guerra, o amor e as empreitadas da cavalaria eram os assuntos mais comuns de
seus cantos e de suas fábulas; às vezes contavam também as histórias e
acontecimentos recentes que mais excitavam a curiosidade pública, e iniciavam
desta maneira as narrações sobre as quais mais adiante haveria de se escrever a
crônica ou a história.
Nos palácios dos reis eram igualmente bem recebidos; e nas cortes de Castela,
tão célebre e reconhecida naqueles tempos, obtinham grande favor e
consideração: depois os jograis logo foram um adorno necessário e constante dos
palácios dos reis e senhores principais.
Mas o verdadeiro teatro dos jograis, onde eram recebidos com entusiasmo e
aplauso, e onde eles próprios recebiam inspirações e alento, eram as reuniões
populares. A multidão se extasiava com seus cantos, fábulas e romances; os
aprendiam e os recitavam à sua maneira, dando-lhes assim popularidade e
aplauso, fomentando, sem suspeitar, um dos ramos mais importantes da nossa

193
Tradução livre de: “El erudito marques de Pidal dá una estensa y bien razonada idea de los juglares de
aquella época, y de la importancia de sus composiciones, en estos términos: ‘No se comprenderia bien la
importancia de estos cantares y el modo con que se componían y conservaban en la memoria y en la
tradición oral de los pueblos, si no diésemos una idea de los cantores y compositores de estos poemas
populares, de los que los retenian y conservaban con cuidado en la memoria como necesidad y circunstancia
precisa de su profesión. Hablo de los juglares’.” (Fuertes, 1857, I/100)
104

poesia nacional: a poesia dos romances [cancioneiros]. (Fuertes, 1857, I/101-


102) 194

Especificamente em relação à música, os jograis eram mais associados aos atos de


tocar e cantar, mas alguns também compunham melodias e/ ou poemas e eram
responsáveis por fazer adaptações/ incursões/ transformações nas canções e textos já
conhecidos 195 (e que nem sempre eram muito bem quistas pelos seus autores, como
veremos adiante). Tais personagens também tiveram decisivo papel na introdução e
difusão do latim vulgar, do castelhano e do galego-português em todas as camadas sociais
(especialmente as mais baixas, que não tinham acesso ao estudo formal conferido à
nobreza da época) 196.

A partir do século XIII/XIV, acentua-se o caráter pejorativo do termo, que passa a


ficar mais restrito aos artistas de rua itinerantes, enquanto nas cortes palacianas vai sendo
paulatinamente substituído por outro nos séculos seguintes – menestrel. O distinto valor
simbólico conferido ao jogral pela atuação em cada um destes espaços (a praça e o palácio)
fica exposto no seguinte relato:

194
Tradução livre de: “Cuando enriquecido con estas historias y narraciones llegaba un juglar à un castillo
y llamaba à sus puertas tocando su laud, una nueva vida parecía de repente animar à los habitantes de
aquellos solitarios torreones. El castellano y su familia sin distinción de sexos, clases ni edades, se reunían
al rededor del cantor que iba à exaltar en ellos los afectos y sentimientos que más les dominaban, y à
interrumpir la monotonía de su vida uniforme y solitaria. La llegada del juglar era una verdadera fiesta de
familia, y todos se esmeraban en festejarle y favorecerle, y en pedirle que cantase ó recitase las historias que
mas se conformaban con sus inclinaciones. La guerra, el amor y las empresas de caballería eran por lo
común el asunto de sus cantos y de sus fablas: à veces contaban también las historias y lances recientes que
mas escitaban la pública curiosidad, y principiaban de esta manera las narraciones sobres las cuales mas
adelante se había de escribir la crónica ó la historia. En los palacios de los reyes eran igualmente bien
recibidos; y en las córtes de Castilla, tan célebre y nombrada en aquellos tiempos, obtenían un gran favor y
consideración: después fueron ya los juglares un adorno necesario y constante de los palacios de los reyes y
señores principales. Pero el verdadero teatro de los juglares, donde eran recibidos con entusiasmo y
aplauso, y donde ellos mismos recibían inspiraciones y aliento, eran las reuniones populares. La multitud se
extasiaba con sus cantos, fablas y romances; los aprendía y recitaba à su manera, les daba así popularidad y
aplauso, y fomentaba sin sospecharlo; uno de los ramos más importante de nuestra poesía nacional, la
poesía de los romances.” (Fuertes, 1857, I/101-102)
195
“Ao lado deste conjunto de senhores, designados especificamente trovadores, e para quem a arte de trovar
era entendida, pelo menos ao nível dos grandes princípios, como uma atividade desinteressada, encontramos
um não menos notável conjunto de jograis, autores oriundos das classes populares, que não se limitam ao
papel de músicos e instrumentistas que seria socialmente o seu, mas que compõem igualmente cantigas, e
para quem a arte de trovar constituía uma atividade da qual esperavam retirar não apenas o reconhecimento
do seu talento mas igualmente o respectivo proveito [sustento].” Fonte:
http://cantigas.fcsh.unl.pt/sobreascantigas.asp
196
“[…] à los juglares se les debe no solo la introducción de la lengua vulgar en todas las clases de la
sociedad, sino el gusto à la música popular, y la afición à eternizar los hechos héroicos de nuestros grandes
hombres, desterrando la lengua latina, como completamente se desterró en el reinado del Sábio rey,
escribiéndose las historias, códigos, poesías, ciencias y libros sagrados, en romance vulgar ó lengua
castellana.” (Fuertes, 1857, I/103-104)
105

Na península como nos outros países o jogral já era, antes da época trovadoresca,
figura obrigatória nos regozijes públicos, principalmente em casamentos de
príncipes, recepções solemnes, coroações de reis. Os que, seguindo a moda
antiga, exhibiam no sec. XIII publicamente, na praça, as suas habilidades,
jogando a bola, a espada, paus e pratos, saltando por arcos, andando na corda
bamba, fazendo dançar macaquinhos, imitando, convenientemente mascarados,
as vozes de animaes, tocando instrumentos rústicos, bailando e cantando, com o
eterno refram: ‘Datz, Datz! que joglar sui!’ eram desprezados pela inferioridade
das suas artes e licenciosidade da sua vida. Gozavam de mais estima aquelles
cujo mester principal era tanger instrumentos de sala — harpa, rota, guitarra,
viola, psalterio, órgão, laúde — executando composições artísticas de trovadores
e servindo a esses de secretários e emissários, em contacto contínuo com homens
de bem no paço e nas casas dos grandes. E isso no povo todo, com excepção
apenas dos próprios trovadores, cujos serventes eram; porque esses eram seus
detractores naturaes, conforme mostrei. (Vasconcellos, 1904, II/638)

Para realizar esta rica síntese sobre a atuação dos jograis, Vasconcellos se baseou na
compilação e análise de documentos primários (indicando textualmente cada um deles).
Algumas de suas informações podem nos sugerir ou indicar dados pertinentes:
1) Eram personagens, de fato, muito requisitados dentro da sociedade (“figura
obrigatória nos regozijes públicos”);
2) Atuavam como espécies de mediadores entre as classes (estavam nas “praças” e
nas “casas dos grandes”), muito embora houvesse um valor implícito diverso para cada
espaço de atuação social;
3) Eram mais reconhecidos os que tangiam “instrumentos de sala”, que eram
predominantemente compostos pelos cordofones que circulavam à época (harpa, rota,
guitarra, viola, saltério, alaúde, cítola), informação preciosa e que investigaremos mais a
fundo adiante;
4) Embora fossem anteriores aos trovadores, os jograis de maior prestígio eram não
somente os que tocavam os instrumentos acima citados, mas os que estabeleciam uma
relação profissional com tais personagens (seus “secretários” e “emissários”).
É possível que tal relação nos revele mais sobre o contexto das práticas sociais que
envolveram os cordofones na Península Ibérica e, mais especialmente, em Portugal,
sobretudo por nos permitir visualizar com mais clareza o papel dos cordofones nas lutas do
campo. Mas, antes disso, precisamos nos perguntar quem foram, enfim, os trovadores?
Depois dos jograis, outras designações começam a nominar poetas-músicos na
literatura ibérica medieval e já no século XII aparecem os primeiros relatos sobre os
106

“trovadores” 197, artistas de origem nobre advindos do sul da França, na região de


Provença, bem próxima aos limites da Península Ibérica.
Dos jograis naceram os trovadores, gente em geral mais instruída e erudita;
motivo pelo qual estes foram aumentando sua reputação, ao passo que a maior
parte daqueles foi perdendo-a não somente pelos seus conhecimentos mais
limitados, mas por sua conduta e seu modo insolente e chocarrero de pedir e de
cantar; que os levaram ao desprezo público, merecendo nas Leyes de partida a
nota de enfamádos [...]. Havia diferentes tipos de jograis, como já
demonstramos, desde o mais sublime até o mais baixo e vil; e isto no mesmo
reinado de Alfonso X. (Fuertes, 1857, I/103) 198

Por receberem a educação conferida à nobreza, detinham uma cultura geral ampla e
seus textos poéticos eram refinados, não tardando para que o estilo dos trovadores
provençais que cruzaram as fronteiras peninsulares influenciasse a arte escrita dos
castelhanos e dos luso-galegos 199: “[...] nas cortes dos primeiros reis de Portugal (como
também na de Castela e Leão) florescia a poesia dos trovadores e jograis, uma poesia em
galego-português já requintada e consciente da sua qualidade artística [...].” (Lemos, 1997
[1979], 11).
Embora fossem mais poetas do que músicos, tais personagens também compunham,
entoavam as suas cantigas e alguns poucos ainda tocavam, conforme podemos depreender
da seguinte citação:
Quanto à sua actividade [dos trovadores], testemunhos não contados
documentam que a maior parte inventava não só o texto, mas também a musica
das suas canções: mot e sô (Wort und Wise). A fama de alguns deriva até
especialmente das melodias que compunham. Peire d'Alvernia p. ex. foi aquell
que fes li meilhors sons de vers que anc fosson faiehs. E como rara excepção

197 Termo proveniente da língua occitana (em occitano, trobador; em francês, troubadour), de origem
românica e também chamada de língua provençal por se remeter à região de Provença. É praticada no sul da
França, em alguns poucos vales alpinos da Itália e em Val d’Aran, na Espanha: “Nas origens da arte
trovadoresca galego-portuguesa está, indiscutivelmente, a arte dos trovadores provençais, movimento
artístico nascido no sul de França em inícios do século XII, e que rapidamente se estende pela Europa cristã.
Compondo e cantando já em língua falada (no caso, o occitânico) e não mais em Latim, os trovadores
provençais, através da arte da canso, mas também do fin’amor que lhe está associado, definiram os modelos
e padrões artísticos, mas também genericamente culturais, que se irão tornar dominantes nas cortes e casas
aristocráticas europeias durante os séculos seguintes. Acompanhando, pois, sem dúvida, um movimento
europeu mais vasto de adoção dos modelos occitânicos, a arte trovadoresca galego-portuguesa assume, no
entanto, características muito próprias [...] e que a distinguem de forma assinalável da sua congênere
provençal, desde logo pela criação de um gênero próprio, a cantiga de amigo.” Fonte:
http://cantigas.fcsh.unl.pt/sobreascantigas.asp
198
Tradução livre de: “De los juglares nacieron los trovadores gente en lo general mas instruida y erudita;
por cuyo motivo estos fueron aumentando su reputación, al paso que la mayor parte de aquellos la fue
perdiendo no solo por sus menos conocimientos, sino por su conducta y su modo insolente y chocarrero de
pedir y de cantar; lo cual les acarreó el desprecio público, mereciendo en las Leyes de partida la nota de
enfamádos. […] Había diferentes especies de juglares, como hemos demostrado ya, desde la mas sublime
hasta la mas baja y vil; y esto, en el mismo reinado de Alonso X.” (Fuertes, 1857, I/103)
199
Assim como expressam os versos iniciais da cantiga de amor de D. Dinis: "Quer’eu em maneira de
proençal/ Fazer agora um cantar d’amor [...]”. Tal cantiga está presente tanto no Cancioneiro da Biblioteca
Nacional (520b) quanto no Cancioneiro da Vaticana (V 123), publicações que analisaremos mais adiante.
107

vemos citados os que não possuíam este saber (verbigracia Uc Brunet). A


maioria cantava também. Entre todas as vozes, a melhor era a de Peire Vidal
(cantaua meills dome del mon). Os poetas que tocavam instrumentos (viola)
parece, comtudo, que não eram muito numerosos. 200 Para essa arte, lá estavam
os jograes-serventes. 201 (Vasconcellos, 1904, II/678-679)

Quando Lemos afirma que “florescia a poesia dos trovadores e jograis” e


Vasconcellos estabelece novamente uma relação profissional entre eles (“jograis-
serventes”), temos indícios de que a articulação social de (ou entre) tais personagens foi, de
fato, algo importante não somente à arte poética, mas também para as realizações musicais
do período.
Também é preciso considerar a atuação dos “segréis”, personagens cuja função na
poesia trovadoresca galego-portuguesa e castelhana se aproxima da do jogral, mas que
possivelmente exerciam com menor frequência a condição de executantes. 202
Ao analisar aprofundadamente os cancioneiros da poesia trovadoresca (sobre os
quais nos deteremos mais à frente), Vasconcellos nos oferece um panorama claro sobre a
posição dos jograis e trovadores dentro do campo de trocas/ lutas em meados do século
XII/XIII: a descrição de suas funções; a sua relação com outras personagens sociais (como
os reis e magnatas que “poetavam” e os soberanos e barões que não escreviam); e também
as qualidades que eram exigidas aos jograis-serventes no exercício do seu ofício:
Em casa de reis, magnates e cavalleiros-trovadores a posição dos jograes era um
pouco diversa da que occupavam junto de soberanos e barões que não poetavam.
Estudar as obras compostas pelo seu senhor, cantá-las e tangê-las, primeiro
entre-muros, em seguida em casa de outros nobres amadores e no paço real, eis a
sua principal funcção. Para os admittir como familiares, os trovadores, desejosos
de verem não só postas bem em evidencia as bellezas rítmicas e musicaes das
suas obras, mas também corrigidas no acto da execução certas desigualdades de
que uma ou outra padecesse, exigiam dos jograes conhecimentos theoricos e
practicos não só nos ramos todos da joglaria, mas também na arte de trovar.
Numa cantiga, um dos adversários de Lourenço resume os principaes requisitos
ou as sabedorias necessárias ao jogral afim de guarecer com el rei, nos três
verbos: trobar, cantar, citolar [CV 1012]. 203 (Vasconcellos, 1904, II/644-645)

200
Segundo informa Vasconcellos, nas biografias de tais trovadores não se especializa instrumento algum.
Mesmo violar (o instrumento mais usual entre eles, como veremos adiante), ocorre raras vezes. A autora
chega a numerar o aparecimento nos documentos: “(Biogr. b., 21, 42, 93)”. (Vasconcellos, 1904, II/678 -679)
201
A autora cita alguns exemplos da parceria entre trovadores e jograis: Aimeric de Pegulhan foi acolhido
por Quilhem de Berguedan; Savarie de Mauleon deu amparo a muitos. (Vasconcellos, 1904)
202
“Com relação à actividade do segrel vimos que os magnates exigiam que tivesse, como o jogral-villão,
uma voz cultivada, trazendo igualmente bem decorado grande numero de cantares, esmerando-se em não
commetter erros, o além d'isso que mostrasse garbo no porte, nos gestos, e no modo de dizer, e Índole alegre,
sem exquisitices importunas de pedante. Nenhum apparece sobraçando a cítola; nunca se emprega o termo
citolar com respeito a elles.” (Vasconcellos, 1904, II/658)
203
CV = Cancioneiro da Vaticana. O número – neste caso 1012 - se refere não à paginação, mas sim ao
título correspondente dentro do Cancioneiro no qual podem ser averiguadas as informações em questão. A
relação vale, também, para as citações vindouras. Uma descrição mais detalhada dos Cancioneiros será
realizada no próximo subcapítulo.
108

Já vimos anteriormente como os “instrumentos de sala” eram predominantemente os


cordofones e aqui vemos a aparição do verbo “citolar” como um dos três domínios
primordiais (“trobar”, “cantar”, “citolar”) aos jograis que desejassem ascensão e prestígio
social. Naturalmente, o verbo faz referência à cítola (que também aparece nos cancioneiros
com a grafia de “cítula” ou “citolon”), que, como já vimos, era considerada a “guitarra dos
jograis.” 204
Agora comparemos a citação anterior com as informações seguintes:
Erros que os entendidos notassem nas obras de um trovador, quando tangidas e
cantadas pelo seu jogral, esses eram pelo auctor attribuidos impreterivelmente ao
servente. Ameaçado do pau [CV 1106], de pontapés [CV 974], de lhe quebrarem
a cítola na cabeça [CV 973], ou de lhe diminuírem a ração de vinho e cevada, o
executante era então tratado de péssimo artista, de jograron, deturpador do texto
e da melodia. Não decorava como devia; não temperava bem a viola [CV 971];
em logar de tanger suavemente, rascava no cepo e bradava em vez de cantar 205,
tendo perdido a bella voz que Deus lhe dera — voz de cabeça à maneira árabe,
bem se vê - por excessos bacchicose libidinosos a que, de certo, se entregava.
(Vasconcellos, 1904, II/646)

Além de nos oferecer precioso relato sobre termos específicos da época em relação
aos cordofones (como a expressão “rascar no cepo”, que significava “tanger mal a cítola”)
206
, outros dois pontos, pelo menos, podem ser destacados:
1) A relação entre trovadores (patrões) e jograis (serventes) mais uma vez se
evidencia, revelando-nos, inclusive, que estes não tinham vida fácil e que eventualmente
uma cítola poderia acabar-lhes na cabeça. 207 Temos, assim, mais um atestado do lugar
ocupado pelos instrumentos nas lutas do campo e, sobretudo, a comprovação peremptória
de que o jogo não era jogado de forma neutra por seus participantes. Mais do que os
próprios personagens, havia uma topografia de interesses atuando, ainda que
invisivelmente;
2) Passa quase desapercebidamente que, dentre as acusações que poderiam receber
os jograis se não cumprissem satisfatoriamente o seu papel, uma delas era a de que não
“temperavam bem a viola” (que significava não afinar bem o instrumento). O testemunho,

204
No índice remissivo anotado do II volume de seu livro sobre os cancioneiros portugueses, Vasconcellos
define assim o termo: “cítola, cítula, citolon, guitarra dos jograes” (1904, II/960). Logo a seguir, na mesma
página, define também o verbo: “citolar, tocar guitarra”.
205
“CV 971, 974, 976 (jograroti); 973, 1106 (rascar); 1106 (cepo); 971 (bradador); 973 (garganton); 972,
973, 1010, 1107, 1109 (citolon).” (Vasconcellos, 1904, II/646)
206
No índice remissivo já citado, Vasconcellos traduz a expressão: “Rascar no cepo = tanjer mal a cítola.”
(1904, II/986)
207
Inevitavelmente se faz vívida, aqui, a seguinte passagem de Roger Chartier:“Explicar em história não é
mais do que desvendar uma intriga” (Chartier, 2002, 82). Ou, em outras palavras, organizar o relato em
intriga inteligível.
109

retirado de uma cantiga do Cancioneiro da Vaticana (971), põe em cena mais um


cordofone – a viola - citada aqui juntamente com a cítola.
Como já foi observado, a literatura e cancioneiros ibéricos recorrem ao uso de uma
profusão de cordofones desde o século XI, pelo menos. Mas nenhum deles foi tão
mencionado quanto estes dois: a viola e a cítola. Eram instrumentos que cumpriam a
mesma função social (como a maioria absoluta dos outros): a de acompanhamento musical
para as cantigas poéticas de trovadores e jograis.
Não seria despropositado sugerir que esteja aqui um dos berços imediatos da herança
que nos foi legada para uma das práticas mais associadas aos cordofones no Brasil desde o
século XVI – a função de acompanhador para canções profanas e ritos religiosos (este
último também uma prática comum entre os jograis). 208
Mas se a viola e a cítola foram os instrumentos que mais estiveram às mãos dos
trovadores e jograis, quais eram os critérios para distinguir o seu uso? Mais uma vez, são
os distintos valores simbólicos sociais atribuídos aos objetos que justificam a diferenciação
de suas práticas:
Nos textos castelhanos a cítola apparece também; mas a viola é citada com mais
frequencia como instrumento favorito de jograes e juglaresas (Apollonio 426,
Fernan Gonxalez 682). O Arcipreste caracteriza a citola como imprópria para
cantigas arábigas [árabes]; própria apenas para musicas de taberna, troteras,
saltos de velhacos (sotar con bellacó), concertos de pastores, bailadas de serranas
(estr. 1186— 1187, 1490 e 993). Nas prosas latinas da Galliza do sec. XI (1105,
1122, 1144, 1169), a cítara tão pouco é citada com frequência; algumas vezes
como de obra grega (grezisca, grizisca). Cf. Cap. VIII, § 381. (Vasconcellos,
1904, II/640)

O fato de a cítola aparecer aqui como imprópria para as cantigas árabes nos revela
não somente que os instrumentos eram utilizados socialmente de acordo com critérios que
possivelmente levavam em consideração diversos fatores (a tradição dos costumes, as suas
características físicas e sonoras, os espaços onde eram utilizados - como “a taberna”, só
para ficar em exemplos mais axiomáticos), mas também nos evidencia como a influência

208
“Ainda de outra poesia parece inferir-se que em tempos del rei os jograes costumavam executar nas
egrejas composições sacras, a que davam o titulo de lais, talvez por seguirem musicalmente o gosto bretão,
embora não se acompanhassem sempre na rota céltica, nem na harpa de Tristan, mas antes na usual viola ou
violeta:
Un iograr que seu nome/ Era Pedro de Sigrar/ Que mui ben cantar sabia/ E mui melhor violar,/ et en todalas
eigreias/ da Virgen que non á par/ un seu lais sempre dizia [...]/ aquel lais que el cantaua/ era da Madre de
Deus (CM 8)”. (Vasconcellos, 1904, II/510)
“Alfonso occupou-se também de trovadores e jograes da Provença. P. ex. de um trovador de Gasconha que
motejava de todo o mundo. Preso por Simão de Montfort promette trovar exclusivamente versos sacros, em
louvor da Virgem (CM 363). Já fallei de Pedro de Sigrar, jogral devoto de S. Maria de Eocamador, a qual fez
descer uma candeia (= vela) sobre a sua viola por elle tocar o cantar lais (CM 8) deante da sua imagem, com
enti'anhada afeição”. (Vasconcellos, 1904, II/762)
110

muçulmana (árabes/ mouros) foi algo realmente marcante na constituição cultural da


Península (e não somente no âmbito dos cordofones).
E quando Vasconcellos nos reafirma que na região de Castella foi “mais usado o
verbo violar, tanto pelos poetas épicos (Apoll. 426) como por Alfonso X (CM 8), em
harmonia com o uso provençal e com a popularidade da viola” 209 (1904, II/649), o sinuoso
entrelaçamento cultural fica ainda mais exposto, uma vez que aqui também constatamos a
referência ao “uso provençal” (que remete à região de Provença, no sul da França, da qual,
como vimos, são oriundos os primeiros trovadores). Aliás, a corte de Alfonso X foi um
exemplo vívido de apropriações sociais entre diferentes culturas:
Vários trovadores de fama visitaram os domínios de Alfonso X e inclusive lhe
dedicaram algumas obras. Mas se a influência europeia foi grande, não foi menor
a das correntes que chegavam pelo Sul. Não se trata somente de árabes;
frequentemente os documentos apontam a um Oriente mais distante. Livros
como o ‘Lapidario’ e o ‘Saber de Astronomía’ mostram uma filosofia muito
influenciada pela Índia. Ademais estão os testemunhos gráficos das mesmas
miniaturas. No ‘Libro de Ajedrez’ – concluído em Sevilha no ano de 1283 –
predominam os tipos e trajes orientais em quase todas as miniaturas. Damas com
vestidos transparentes, homens com pele negra, trajes e chapéus bizarros
mostram como o miniaturista tenta capturar no livro a sociedade que se movia
pelos palácios sevilhanos. (Marcos, 1975, I/38-39) 210

O Libro de Ajedrez, de Alfonso X, cujo códice (T I 6) se encontra na Real Biblioteca


del Monasterio de San Lorenzo de El Escorial, em Madri (ES), apresenta-nos alguns
cordofones de cordas dedilhadas entre as figuras reproduzidas em suas miniaturas: duas
harpas primitivas de ângulo (f. 9 e 22); dois alaúdes com visível influência árabe (f. 18 e
68), além de uma viola com bordão e um instrumento musical similar ao que aparece nas
Cantigas de Santa Maria (f. 31v.). Vejamos alguns destes exemplos:

209
Algumas das referências a este uso estão no Cancioneiro da Vaticana: CV 1009, 1104, 1105, 1202.
210
Tradução livre de: “Varios trovadores de fama visitaron los dominios de Alfonso X e incluso le dedicaron
algunas obras. Pero si el influjo europeo fue grande, no lo fue menos el de las corrientes que llegaban por el
sur. No se trata sólo de árabes; frecuentemente los documentos apuntan a un Oriente más lejano. Libros
como el ‘Lapidario’ y el ‘Saber de Astronomía’ muestran una filosofía muy influida por la India. Además
están los testimonios gráficos de las mismas miniaturas (21). En el ‘Libro de Ajedrez’ – terminado [p.39] en
Sevilla el año 1283 – (22) predominan los tipos y atuendos orientales en casi todas las miniaturas. Damas
con vestidos transparentes, hombres de tez negra, trajes y sombreros extraños muestran cómo el miniaturista
intenta plasmar en el libro la sociedad que se movía por los alcázares sevillanos.” (Marcos, 1975, I/38-39)
111

Figuras 15 e 16: Exemplos de cordofones de cordas dedilhadas medievais. Fonte: Libro del Ajedrez
(manuscrito de 1283) de Alfonso X, folio 18 R. Fonte: Biblioteca del Monasterio de San Lorenzo del
Escorial (Madri, ES).

Diante deste exórdio, torna-se uma tarefa menos imaginativa compreender o


ambiente profuso que permitiu a germinação de diversas práticas e instrumentos musicais.
Diversidade que também exigia dos jograis versatilidade e domínios variados:
Os de voz avantajada primavam como cantadores. Alguns eram eximios num só
instrumento: viola (violeiros) 211, cedra (cedreiros), tromba (trombeiros),
atambores. Mas o costume exigia que o jogral consummado tocasse vários, de
sopro, de percussão, e de corda 212. Nem o mais entendido podia comtudo tanger

211
Um exemplo encontra-se no “Poema de Fernan gonzalez 682”. (Vasconcellos, 1904, II/639).
212
“O trovador provençal Guiraut de Calanson queria que o jogral fosse pratico em nove instrumentos
diversos, sabendo taboreiar (tocar o tambor); tauleiar (bater as tablas ou tavoas i. é as castanholas); far brugir
semfonia; sitolar; mandurcar; arpar; tocar o monocordio, o psalterio, a sedra, rota, gigua, estivas, lyras e o
112

todos aquelles que se usavam em Hespanha; tal era a profusão das espécies, de
proveniência pre-romana, latina, germânica, árabe. Era a viola de arco e de
pennula (<pinnula cast. pendola peñola), a guitarra morisca, a guitarra latina, a
harpa, o psalterio, a rota, o laude, a giga, o rabé ou arrabil, a cedra, cítola e citara.
[...] (Vasconcellos, 1904, II/639)

De certo modo, vemos também aqui um paralelismo com as práticas dos primeiros
músicos profissionais no Brasil (sobretudo no séc. XIX), que também precisavam dominar
múltiplos instrumentos para subsistir. Aos jograis, era exigido o domínio dos instrumentos
de sopro, percussão e, sobretudo, dos cordofones. A quantidade destes últimos circulando
na Península é significativa a tal ponto que nem “o mais entendido” dos jograis seria capaz
de tanger a todos.
Se levarmos em conta que alguns destes cordofones tinham aparência, modos de
execução e sonoridade próximas, embora naturalmente guardassem também suas
particularidades e especificações próprias, é possível verificar que a confusão
terminológica referente a tais instrumentos se iniciou ainda bem antes de suas respectivas
chegadas ao Brasil.
Ainda pouco vimos como havia distinções regionais para o uso da viola ou da cítola
dentro da própria Península. Agora vemos que os jograis dominavam diversos cordofones
de cordas dedilhadas com a mesma função social (acompanhar cantigas) e que, dentre eles,
estavam a viola de pennula, a guitarra mourisca, a guitarra latina, o alaúde, a vihuela, a
cítola, a cedra e a cítara, dentre outros. Deduzir que desde então instrumentos variados
eram possivelmente nomeados pelo mesmo termo e diferentes termos poderiam ser usados
para o mesmo instrumento, não é, a nosso ver, refazer um caminho para o tesouro
escondido atrás do arco-íris. Eis aqui, indubitavelmente, os traços de mais uma de nossas
heranças, conforme veremos detalhadamente no 3º capítulo.
Todavia, uma vez mais reafirmamos que, para além de suas especificações, o que
mais nos interessa são as práticas e as funções que os envolviam e como tais dimensões
podem nos ajudar a compreender a chegada e a difusão dos cordofones no Brasil e a sua
possível relação também com as primeiras práticas concernentes ao violão em solo
brasileiro.
Em síntese, pudemos visualizar neste item como o território peninsular foi um
ambiente efervescente e no qual se processaram uma profusão de trocas entre povos de
diferentes culturas, resultando, por consequência, também na criação de práticas,
instrumentos musicais e terminologias diversas.

temple (tímpano). Outros mencionam trompas, corns (buzinas) o grailles (cornetas).” (Vasconcellos, 1904,
II/639)
113

Também identificamos minimamente o papel social preponderante dos cordofones na


cultura peninsular entre os séculos XI e XIV: o de acompanhador de cantigas poéticas
profanas e também religiosas, já que estudiosos apontam para o fato de que havia pouca
distinção entre tais práticas no âmbito da língua vulgar. 213
Mapeamos ainda alguns dos personagens que até então os empunhavam (os
trovadores, jograis e menestréis) e finalmente reconhecemos, na atividade destes últimos,
alguns traços das heranças que recebemos sobre as práticas que caracterizariam os
cordofones nos primeiros séculos do Brasil colonial, algo que investigaremos com minúcia
mais à frente (o uso dos cordofones como acompanhadores de canções profanas e ritos
religiosos, os executantes multi-instrumentistas, entre outros).
Agora, para buscar uma conexão mais aprofundada com estas práticas, iremos nos
concentrar nos aspectos que envolvem o uso de tais instrumentos na Península Ibérica no
período “pré-descobrimento”. E os documentos que mais nos oferecem perspectivas para
tal compreensão são os cancioneiros castelhanos e portugueses.

2.3.2 Os cordofones de cordas dedilhadas nos cancioneiros medievais 214

Nos cancioneiros medievais, os cordofones são citados largamente e perpassam todos


os gêneros (das cantigas de amor às cantigas religiosas). É surpreendente, entretanto,
verificar como tais documentos ainda são pouco utilizados como fontes para uma melhor
compreensão das características e das práticas que envolviam estes instrumentos na
Península Ibérica e também na conexão com o legado que foi trazido ao Brasil com o
descobrimento.
Uma vez que já conhecemos o instável e conflitante cenário político que delineavam
Portugal e, de modo mais amplo, a Península Ibérica entre os séculos X e XIV; que já
identificamos alguns dos primeiros personagens sociais (trovadores, jograis, jogralesas [ou
soldadeiras] e segréis) relacionados à prática dos cordofones em tal período e região; e que
mapeamos a conexão do português com as línguas que lhe precederam (o latim, o

213
Lástima es que dichas cántigas profanas no parezcan, porque pudiera ser que por las melodías de ellas,
se averiguase en que se diferenciaba de la música sagrada, la profana de los españoles del siglo XIII. En
nuestro modo de entender, se diferenciaría muy poco de la sagrada compuesta en idioma vulgar, por tener
un mismo origen, y por ser cantadas y compuestas por los mismos juglares autores de las profanas: y el no
parecer las melodías de estas, será sin duda porque la mayor parte de ellas eran improvisadas y cantadas de
memoria no teniendo necesidad de escribirlas por lo muy popular que dicha música se haría. (Fuertes, 1857,
I/100)
214
Livros manuscritos feitos por iniciativa de nobres, reis (e posteriormente humanistas) e que reuniam um
número significativo de cantigas trovadorescas medievais. Eram, portanto, compilações/coleções posteriores
das cantigas (também manuscritas) galego-portuguesas.
114

português arcaico, o castelhano e, especialmente, o galego-português), temos agora os


subsídios necessários para analisar um dos patrimônios literários mais significativos da
Idade Média peninsular: as cantigas trovadorescas castelhanas e galego-portuguesas.
O Cancioneiro de Baena 215, compilado por Juan Alfonso de Baena em 1445, é o
mais antigo cancioneiro escrito em língua castelhana que se conhece. Nele, já podemos
constatar o alaúde e a vihuela sendo mencionados nos versos del dezir de Alfonso Alvares:
Laúd, rrabé nin vyuela
Non he ojos de tañer,
Antes he tal desplazar
Que nada non me consuela.
(Pedrell, 1901, 78)

Outros importantes cancioneiros castelhanos foram escritos após o de Baena: o


Cancionero de Lope de Stúñiga (século XV); o Cancionero General de Hernando del
Castillo (1511); e o Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (1516), este último
apresentando poesias em português (idioma preponderante) e em espanhol. Em todos eles,
cordofones de cordas dedilhadas são mencionados em diferentes circunstâncias.
No Cancionero de Lope de Stúñiga, por exemplo, encontraremos no Testamento em
versos de Alfonso Henriquez um alaúde “bem encordado” citado entre os desejos
requeridos para o momento do seu sepultamento:
Sea de la sepultura
La noble Donna Theresa,
Vestida como francesa
La somera cobertura;
Un laud bien encordado,
Desligados sus cabellos,
Pos endecha los trebellos
Cantando bien acordado.
(CLS, 1872, 181-182)

Embora pairasse uma confusa profusão de termos no período, é importante ressaltar


que os alaúdes e as vihuelas foram os cordofones mais recorrentes entre os cancioneiros
castelhanos, diferentemente dos cancioneiros escritos em galego-português, onde a viola e
a cítola são mais comuns.
O Cancionero General de Hernando del Castillo (1511) reafirma tal perspectiva
quando nos revela Don Diego Lopez dedicando metaforicamente uma de suas poesias a um
alaúde negro e suas cordas verdes e quebradas:
527. OTRA SUYA [de Don Diego Lopez]

215
Oferecido a João II de Castela, o Cancioneiro de Baena apresenta o bojo poético produzido entre os
reinados de D. Enrique II, D. Juan I e, em menor proporção, de D. Juan II. Seu manuscrito original encontra-
se na Bibliothèque nationale de France (BnF).
115

Á UN LAÚD NEGRO, Y LAS CUERDAS VERDES


Y QUEBRADAS.

Traygo, como veys, tristura


do plazer nunca s' alcanza,
después que quebró ventura
las cuerdas del esperança.
(CHC, 1882, 574)
Já em outro poema do mesmo cancioneiro, alaúde e vihuela aparecem acompanhados
pelas flautas, uma trinca de instrumentos musicais considerados “muy amigos” al galán:
88. COPLAS
QUE HIZO SUERO DE RIBERA SOBRE LA GALA.
[…]
Flautas, laúd y vihuela
al galán son muy amigos;
cantares tristes antigos
es lo más que lo consuela:
no calçar más de una espuela,
ni requerir el establo;
d' aquestas cosas que hablo
dévese tener escuela.
(CHC, 1882, 203)

Alaúdes e vihuelas seguem sendo mencionados no Cancioneiro de Hernando del


Castillo 216, enquanto a guitarra é aludida uma única vez, de modo pejorativo (seu uso foi
considerado pelo autor uma característica antagônica às pessoas de boa estirpe):
Los que son de buena liña,
no de seso de guitarra,
no motejan como tina,
ni grossero que desgarra:
y porque vos no soys digno
de lo que bondad concierta,
fuerza es, pues soys mohino,
de vos dar en descubierta.
(CHC, 1882, 418)

Tal fato revela os distintos valores simbólicos e sociais que eram possivelmente
atribuídos a tais cordofones (alaúde, vihuela e guitarra) já no início do século XVI.
Taborda pondera que “enquanto a guitarra tornou-se confidente das emoções da plebe, a
vihuela foi instrumento palaciano, veículo para composições de obras que viriam a

216
Em um poema de Rodrigo Cota que reproduz o diálogo entre um velho e o amor, ambos os instrumentos
(alaúde e vihuela) voltam a ser apontados: [AMOR] […] ¡O marchito corcobado! / á tí era más anexo / del
yjar contino quexo, / que sospiro enamorado: / y en lu mano provechoso / para en tu Haca salud, / más un
trapo lagañoso / para el ojo lagrimoso, / que vihuela ni laúd. (CHC, 1882, 307). Já entre as obras de Gómez
Manrique reunidas no Cancioneiro, veremos novamente os alaúdes sendo referidos: E como los tañedores /
discantan con los laudes, / assí con grandes Dolores / recontando sus loores / discantavan las virtudes; / y
luego fueron cerradas / las puertas, y levantadas / las puentes con sus cadenas, / y mis angustias y penas / á
la sazón redobladas. (CHC, 1882, 168). Por fim, no diálogo entre Don Cárlos de Guevara (Pregunta) e
Salazar (Respuesta), um alaúde é citado no fim do imbróglio: [...] que para el laúd do yaze / hazen del, señor,
si os plaze, / muchas cuerdas quando acierta. (CHC, 1882, 630).
116

enriquecer enormemente a música instrumental do período” (2011, 25). Entretanto, como


constatamos no capítulo anterior, a categorização é mais válida como exercício didático do
que propriamente como um resgate histórico das práticas.
No Cancioneiro General de Garcia de Resende, o alaúde também é mencionado nas
trovas que Afonso Valete dedica ao próprio Garcia de Resende, deixando-nos subentender
que o compilador da obra não somente tocava alaúde, mas também tangia “tudo com
traques”:
Trovas que Afonso valete fez em Tomar a Garcia de rresende sem lhas mãdar.

[...] Sacabuxa, irmão de jaques,


muyto farto de bordões,
& tanje tudo com traques,
home que faz almadraques ou feyroês.
[...] Dyzem que tangeis laud,
& tocays bem os bemoles,
& pousays em rretrapoles
abaixo de gamaud.
Se tangeys por becoadrado
emflamado como chama,
pareçeys odre apojado
como mama. [...]
(Guimarãis, 1917, V/386 -387)

A par do castelhano, contudo, o galego-português foi a língua dominante na faixa


ocidental da Península Ibérica até meados do século XIV. Levando em consideração a
volatilidade das fronteiras e a instabilidade política da região 217, a área onde
preponderantemente se estabelece e desenvolve a arte trovadoresca galego-portuguesa
compreendia, geograficamente e culturalmente, o reino de Portugal e também os de Galiza,
Leão e Castela (que foi unificado ao de Leão a partir de 1230). 218 Tais cantigas medievais
foram produzidas em um período que abarca, em linhas gerais, os 150 anos situados entre
as décadas finais do século XII até meados do XIV.
No entanto, nosso conhecimento das cantigas galego-portuguesas só foi possível
através de compilações posteriores reunidas, sobretudo, em quatro grandes cancioneiros: o

217
“Convém, pois, ter presente, que quando falamos de poesia medieval galego-portuguesa falamos menos
em termos espaciais do que em termos linguísticos, ou seja, trata-se essencialmente de uma poesia feita em
Galego-Português por um conjunto de autores ibéricos, num espaço geográfico alargado e que não coincide
exatamente com a área mais restrita onde a língua era efetivamente falada.”
Fonte: http://cantigas.fcsh.unl.pt/sobreascantigas.asp
218
A faixa ocidental peninsular a qual nos referimos pode ser observada em um mapa linguístico cronológico
disponível no endereço virtual:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Linguistic_map_Southwestern_Europe.gif
117

Cancioneiro da Ajuda (CA); o Cancioneiro da Biblioteca Nacional (CBN)219; o


Cancioneiro da Vaticana (CV); e as Cantigas de Santa Maria, que é, dentre estes, o único
conjunto não profano e que compreende 420 cantigas religiosas (em louvor à Virgem e aos
seus milagres) atribuídas ao rei Alfonso X, “o sábio” rei de Castela e Leão entre os anos de
1252 e 1284.
Para nós, as cantigas sacras são particularmente importantes por revelarem uma das
heranças trazidas para o Brasil a partir do século XVI: o hábito de se acompanhar serviços
religiosos com cordofones de cordas dedilhadas. Em uma das poesias, por exemplo, a
descrição do jogral Pedro de Sigrar, “que muito bem cantar sabia e muito melhor violar”,
deixa notar que em tempos del rei Alfonso X, os jograis costumavam executar nas igrejas
composições sacras que denominavam de lais: 220
Cantiga VIII: A Virgem Santa Maria
[...] Un iograr que seu nome
era Pedro de Sigrar
que mui ben cantar sabia
e mui melhor violar,
et en todalas eigreias
da Virgen que non á par
un seu lais sempre dizia,
-----------------------
aquel lais que el cantava
era da Madre de Deus. [...]
(Vasconcellos, 1904, II/510)

Aqui, o uso da viola é revelado em um contexto religioso, no acompanhamento do


canto praticado em igrejas e que servia, portanto, a um repertório sacro (os lais) geralmente
oferecido em honra à Virgem Maria. É uma prática semelhante àquela que aconteceria no
Brasil a partir da segunda metade do século XVI, com a chegada dos jesuítas e a cooptação
dos estudantes e meninos índios para as atividades musicais dos ofícios religiosos. Já em
julho de 1552, por exemplo, o padre Manuel da Nóbrega afirma em carta endereçada ao
padre Simão Rodrigues que os meninos órfãos de Lisboa “acustumavão cantar pelo mesmo

219
Também denominado Cancioneiro Colocci-Brancuti em referência ao trabalho de compilação realizado
sob as ordens de Angelo Colocci no início do século XVI (do qual deriva o termo Colocci) e também ao
conde Brancuti, de Cagli, sobre o domínio do qual foi descoberto, em 1878, o cancioneiro português que hoje
pertence à Biblioteca Nacional de Portugal (e do qual, naturalmente, deriva o termo Brancuti).
220
Assim chamavam tais composições “talvez por seguirem musicalmente o gosto bretão, embora não se
acompanhassem sempre na rota céltica, nem na harpa de Tristan, mas antes na usual viola ou violeta”
(Vasconcellos, 1904, II/510).
118

toom dos Indios, e com seus instromentos, cantigas na lingua em louvor de N. Senhor, com
que se muyto athraião os corações dos índios” 221 (Nóbrega, 1552, 373).
O relato assinala não somente uma rara menção à utilização de instrumentos
musicais indígenas em atividades coordenadas por jesuítas, mas também a prática de usar
tais instrumentos em cantigas sacras e ofícios religiosos, tal qual acontecia na Península
Ibérica nos séculos precedentes da Era Medieval. A relação fica ainda mais expressa
quando analisamos as correspondências envolvendo a polêmica entre o padre Manuel da
Nóbrega e o bispo Pedro Fernandes Sardinha sobre a permissão para o uso dos
instrumentos indígenas em cerimônias religiosas. Escandalizado com tal prática, o bispo
Sardinha mandou a seguinte carta ao Provincial da Companhia em Portugal, o padre Simão
Rodrigues:
Eu, querendo de alguma forma procurar fazer o ofício de bom pastor, admoestei,
no primeiro sermão que fiz logo que cheguei a esta costa, que nenhum homem
branco usasse os costumes gentílicos, porque, além de serem provocativos, são
tão dissonantes da razão, que não sei quais são os ouvidos que podem ouvir tais
sons, e tanger tão rústico. Os meninos órfãos, antes que eu viesse, tinham o
costume de cantar todos os domingos e festas cantares de Nossa Senhora ao
tom gentílico, e de tanger certos instrumentos que estes bárbaros tangem e
cantam quando querem beber seus vinhos e matar seus inimigos. Falei sobre
isso com o Padre Nóbrega e com algumas pessoas que sabem a condição e
maneira destes gentios [...] e disse que estes gentios se gabavam de ser os
melhores, pois os padres e meninos tangiam seus instrumentos e cantavam a seu
modo. Digo que os padres tangiam, porque em companhia dos meninos vinha um
padre sacerdote, Salvador Rodrigues, que tangia, dançava e saltava com eles.
(Sardinha, 1552, 358-359) 222

Em resposta, o padre Nóbrega defendeu o uso dos instrumentos musicais indígenas


como um modo de atraí-los aos serviços religiosos e distanciá-los de outros costumes mais
nocivos, como beber e matar os seus pares:
Se nos abraçarmos com alguns custumes deste gentio, os quais não são contra
nossa fé catholica, nem são ritos dedicados a idolos, como hé cantar cantigas de

221
Carta do Padre Manoel da Nóbrega ao Padre Simão Rodrigues. S/l, s/d [Bahia, final de julho de 1552].
Apógrafo em português, de original perdido, no ARSI, Bras 15 I, ff. 62-63. Publicado em Monumenta
Brasiliae, I /367-375. Transcrito em: (Castagna, 1991, II/39) e (Holler, 2006, 77)
222
Carta do Bispo D. Pedro Fernandes Sardinha ao Padre Simão Rodrigues. S/l, s/d [Bahia, julho de 1552].
Original não localizado. Tradução para o espanhol no ARSl, Bras 3 l, ff 102-102v. Publicado em: (Leite,
Monumenta Brasiliae, I/357-367). Transcrito em: (Castagna, 1991, II/36) e (Holler, 2006, II/75-76).
Tradução de Castagna a partir do texto em castelhano encontrado no ARSI: “Yo queriendo en el alguna
manera de procurar hazer el officio de buen pastor, amonesté, en el primir sermón que hize luego como llegé
a esta cuesta, que ningún hombre blanco uzase de las costumbres gentílicas, porque, ultra que ellas son
provocativas a mal, son tan disonantes de la razón, que no sé quáles son las orejas que pueden oyr tales
sonos y rústico tañer. [p. 359] Los ninos huérfanos antes que yo viniesse tenían costumbre de cantar todo los
domingos y fiestas cantares de nuestra Señora al tono gentílico, y tañeren ciertos instrumentos que estes
bárbaros tañen y cantan quando quieren beber sus vinos y matar sus inimigos. Platicé sobre esto com el
Padre Nobrega y com algunas personas que sabem la condición y manera destos gentiles, em especial com
el que lleva ésta, que se llama Pablo Díaz, y allé que estos gentiles se alaban que ellos son los buenos, pues
los Padres y ninos tañian sus instrumentos y cantavan a su modo. Digo que Padres tañian, porque en la
compañia de los niños venía hun Padre sacerdote, Salvador Rodriguez; tañia.”
119

Nosso Senhor em sua lingoa pello seu toom e tanger seus estromentos de musica
que elles [usam] em suas festas quando matão contrairos e quando andão
bebados; e isto pera os atrahir a deixarem os outros custumes esentiais e,
permitindo-lhes estes, trabalhar por lhe tirar os outros. (Nóbrega2, [1552], pp.
406-407) 223

Escapando à polêmica, o fato que mais nos interessa é reconhecer que os meninos
órfãos de Lisboa trazidos ao Brasil “tinham o costume de cantar todos os domingos festas e
cantares de Nossa Senhora ao tom gentílico [dos índios]”, revelando o paralelismo que
havia entre as práticas que ocorriam na colônia portuguesa recém-descoberta e aquelas que
já aconteciam três séculos antes, na Península Ibérica, conforme atestam as Cantigas de
Santa Maria. Em ambos os contextos, os cordofones foram usados como instrumentos
musicais de acompanhamento para canções de temática cristã.
Por sua vez, os três conjuntos profanos (CA, CBN, CV) foram reunidos em
momentos distintos: o Cancioneiro da Ajuda é o mais antigo e foi compilado nas primeiras
décadas do século XIV (sendo, portanto, o único cancioneiro contemporâneo da última
geração de trovadores); já os Cancioneiros da Biblioteca Nacional e da Vaticana são
manuscritos copiados na Itália nas primeiras décadas do século XVI sob os auspícios do
humanista Angelo Colocci e a partir de um provável cancioneiro medieval anterior que se
perdeu. Ambos, no entanto, só viriam a ser descobertos/ divulgados em meados do século
XIX. 224
A trinca de cancioneiros profanos soma em torno de 1680 cantigas
(aproximadamente 2.100 se somadas às cantigas religiosas de Santa Maria) e que foram
compostas por mais de 180 distintos trovadores e jograis. Tal produção pode ser dividida
em três gêneros principais:
1) As cantigas de amor, gênero de registro aristocrático, mais diretamente
influenciado pelo canso e fin’amor dos trovadores provençais, e apresentado por um eu
lírico masculino cuja temática sentimental e melancólica geralmente canta as virtudes,

223
Carta do Padre Manoel da Nóbrega ao Padre Simão Rodrigues. S/l, s/d [Bahia, final de agosto de 1552].
Original na Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora, CXVI / 1-33, ff. 194v-197. Publicado em
Monumenta Brasiliae, I/400-409. Transcrito em: (Castagna, 1991, II/46) e (Holler, 2006, II/83).
224
“[...] deu-se a descoberta em 1840 na Biblioteca do Vaticano do Cod. lat. 4803, cuja riqueza em poetas e
poemas novos (cerca de 1200 cantigas) não podia senão alargar os percursos que a erudição trovadoresca
penosamente ia seguindo. Por outro lado, tinham sido encontradas na Biblioteca de Évora 11 folhas soltas de
morfologia, escrita e conteúdo idênticos ao Cancioneiro, e que por isso foram a ele reunidas em 1843.”
(Castro, 2004, 3) “Em 1878 foi descoberto, em poder do conde Brancuti, em Cagli, um novo cancioneiro
português, que veio a ser conhecido por Colocci-Brancuti e hoje da Biblioteca Nacional.” (Ib., 5). Artigo
disponível online no seguinte endereço:
http://www.clul.ul.pt/files/ivo_castro/2004_edies_do_Canc._Ajuda.pdf
Acesso em 02/12/2013, às 19h13min.
120

belezas e sofrimentos de um amor inatingível, não correspondido ou indiferente (a relação


do poeta servidor com a sua senhor no cognominado “amor cortês”);
2) As cantigas de amigo; gênero mais burguês e popular, de origem autóctone e que
remonta às antigas tradições da canção em voz feminina no território galego-português,
adaptadas, então, ao contexto cortês e palaciano dos trovadores e jograis medievais. As
temáticas são apresentadas no eu lírico feminino (embora fossem mais usualmente
cantadas por homens) e reportam-se, geralmente, às belezas do corpo da mulher, à sua
iniciação erótica ao amor, às alegrias, iras ou tristezas advindas da chegada, enganos ou
partida de um amigo ou amado;
3) As cantigas de escárnio e maldizer, gêneros satíricos que representam mais de ¼
da produção que nos foi legada e que eram utilizados quando trovadores e jograis
intentavam “dizer mal” de alguém, ora diretamente (nas cantigas de maldizer) ora
implicitamente/ subliminarmente (nas cantigas de escárnio), geralmente valendo-se de
palavras ou frases de duplo sentido. A temática do gênero circundava em torno de um
variado leque de motivos cotidianos (morais, sexuais, políticos, etc.) e eram, muitas vezes,
ilustrações vivas dos embates travados por espaços representativos dentro do campo social.
Com tais informações, temos os subsídios necessários para analisar mais
especificamente as cantigas e as iluminuras presentes nos cancioneiros medievais.

2.3.3 As iluminuras do Cancioneiro da Ajuda e das Cantigas de Santa Maria

É surpreendente constatar que, ainda hoje, um dos estudos que mais nos revelam
sobre o papel da música nos cancioneiros seja justamente uma publicação com mais de um
século de existência: a clássica edição crítica e comentada do Cancioneiro da Ajuda
realizada por Carolina Michaëlis de Vasconcellos (1851-1925) 225, uma obra publicada em
1904 e na qual a autora relaciona a prática musical entre os cancioneiros, cita instrumentos
e nos deixa antever o contexto dos seus usos nos documentos (especialmente no II volume,
dedicado à investigações bibliográficas, biográficas e histórico-literárias expressas em mais
de 1.000 páginas textuais).

225
Doutora Honoris Causa em Filosofia, Vasconcellos “nasceu em Berlim, fez estudos particulares de
romanística e instalou-se em Portugal em 1876, depois de casar com o crítico de arte Joaquim de
Vasconcelos. Tendo a sua residência no Porto, mudou-se durante cinco meses para Lisboa no ano seguinte, a
fim de fazer a transcrição do Cancioneiro da Ajuda [...]” (Castro, 2004, 5). A partir de então, sua pesquisa só
iria concluir com a entrada na tipografia (em 1900) e a posterior publicação (em 1904) do II vol. de sua
edição crítica e comentada do Cancioneiro da Ajuda. O I vol. já havia sido encaminhado para a tipografia em
1895.
121

Em relação ao nosso objeto de estudo, é especialmente relevante que Vasconcellos,


embora investigue e relacione a produção dos quatro cancioneiros, tenha se dedicado mais
exclusivamente à transcrição/ análise do manuscrito do Cancioneiro da Ajuda, uma vez
que é neste documento que se encontram as iluminuras, conjunto de 16 ilustrações (além
de outras tantas inacabadas) que exemplificam a prática musical dos jograis, trovadores,
soldadeiras e os seus instrumentos musicais mais correntes.
Tal documento foi descoberto apenas em inícios do séc. XIX, em Lisboa, na
biblioteca do Real Colégio dos Nobres (ativo entre 1761 e 1837) e de onde seria
transferido, em 1832, para a Biblioteca Real do Palácio da Ajuda, que batiza sua
nomenclatura atual. Como já foi observado, é o mais antigo entre os cancioneiros
(provavelmente redigido entre os fins do sec. XIII e o início do XIV) e pouco se sabe sobre
o percurso que o levou ao Colégio dos Nobres.
Não obstante, é também o mais incompleto dos manuscritos, fato justificado por três
fatores:
1) São compiladas “apenas” 310 composições 226 quase que exclusivamente de um
único gênero - as cantigas de amor 227 (em comparação direta, somente no Cancioneiro da
Vaticana há cerca de 1200 cantigas divididas entre todos os gêneros profanos);

226
Eis aqui a lista de autores do CA dispostos em ordem alfabética com a respectiva quantidade de cantigas
compostas por cada um deles: Afonso Lopes de Baião (2 cantigas); Airas Carpancho (4 cantigas); Anônimo 4
(10 cantigas); Anônimo 5 (1 cantiga); Anônimo de um autor de Santarém (3 cantigas); Bonifaci Calvo (2
cantigas); Estêvão Faião (2 cantigas, sendo que uma pode ser de autor anônimo); Estêvão Travanca (1
cantiga); Fernão Garcia Esgaravunha (15 cantigas); Fernão Gonçalves de Seabra (12 cantigas, sendo que uma
delas pode ser de autoria de Airas Veaz); Fernão Padrom (3 cantigas); Fernão Velho (8 cantigas); João
Garcia de Guilhade (12 cantigas); João Lopes de Ulhoa (11 cantigas); João Nunes Camanês (3 cantigas);
João Peres de Aboim ou Anônimo (6 cantigas); João Soares Coelho (22 cantigas); João Soares Somesso (17
cantigas); João Vasques de Talaveira (4 cantigas); Martim Moxa (5 cantigas); Martim Soares (22 cantigas);
Anônimo I ou Martim Soares (2 cantigas); Mem Rodrigues Tenoiro ou Afonso Fernandes Cebolhilha (2
cantigas); Nuno Fernandes Torneol (12 cantigas); Nuno Rodrigues (2 cantigas, sendo que uma pode ser de
Nuno Porco); Paio Gomes Charinho (15 cantigas); Paio Soares de Taveirós (9 cantigas); Pedro Anes Solaz (4
cantigas, sendo 2 de escárnio e maldizer); Pero Garcia Burgalês (29 cantigas); Pero Gomes Barroso (2
cantigas); Pero da Ponte (5 cantigas, sendo que uma pode ser de Sancho Sanches); Rui Fernandes de Santiago
(3 cantigas); Rui Pais de Ribela (13 cantigas); Rui Queimado (15 cantigas); Vasco Gil (13 cantigas);Vasco
Praga de Sandim (13 cantigas); Vasco Rodrigues de Calvelo (10 cantigas).
227
No Cancioneiro da Ajuda, a preponderância das cantigas de amor deixa mais nítida a influência do estilo
provençal e cortesão (que, como vimos, adveio dos trovadores e gêneros praticados no sul da França,
especialmente o canso e o fin’amor), o que também é reafirmado pelo fato das cantigas de amigo serem mais
ligadas às tradições galego-portuguesas e as cantigas satíricas apresentarem um enredo peculiar e próprio,
como o próprio nome sugere. Como exemplo da influência dos trovadores franceses, podemos citar a cantiga
de amor CA 126 - Punhei eu muit'em me quitar, de Fernão Garcia Esgaravunha, na qual o refrão é
literalmente escrito em francês, enquanto as estrofes em galego-português. Também é preciso lembrar que no
CA só foram reunidas as composições anteriores ao reinado e à produção de D. Dinis (que, assim como
Alfonso X, era, além de rei, também poeta trovador). D. Dinis iniciou seu reinado em 1279. Por
consequência, podemos deduzir que todas as cantigas de amor coletadas no CA são anteriores a este ano.
122

2) A parte musical não foi escrita, embora houvesse um espaço reservado para tal
logo abaixo da primeira estrofe de cada cantiga;
3) Muitas das já citadas iluminuras ficaram apenas esboçadas ou desenhadas.
Se, por um lado, a incompletude do Cancioneiro da Ajuda 228 nos representa uma
sensível e dolorosa lacuna (especialmente pela ausência da parte musical), por outro, é
preciso destacar outros três fatores que lhe conferem especial valor:
1) Mais de 60 das cantigas copiadas no manuscrito são exclusivas e não se
encontram nos outros dois cancioneiros profanos;
2) É o único documento remanescente do período coevo a alguns dos autores das
cantigas;
3) A grafia gótica e, sobretudo, a riqueza decorativa de suas iluminuras não
encontram paralelo nos outros cancioneiros profanos conhecidos e representam um rico
testemunho sobre a prática musical de trovadores, jograis e soldadeiras.
É justamente na observância deste último item - as iluminuras - que talvez resida o
ponto de maior interesse do Cancioneiro da Ajuda para os estudiosos dos cordofones na
Península Ibérica nos séculos anteriores ao descobrimento, sobretudo se levarmos em conta
que ocorrências musicais são raramente citadas textualmente no manuscrito: a leitura
integral, cantiga por cantiga, nos permitiu encontrar apenas 05 referências ao canto nas
poesias. 229 E menções diretas a instrumentos musicais são ainda mais raras. 230
Mas se, por um lado, os instrumentos são pouco lembrados textualmente no
Cancioneiro da Ajuda, por outro, os 16 códices das iluminuras remediam tal falta e nos
apresentam formações instrumentais diversas e que podem ser dispostas em dois grupos
(aqui excetuamos o canto, presente em todos os exemplos):
1) Duos:
- Saltério e castanholas (04 ocorrências: códices 01, 03, 04 e 15);
- Guitarra e castanholas (03 ocorrências: códices 07, 13, 14);
- Guitarra e pandeiro (02 ocorrências: códices 12 e 16);

228
Para se ter uma ideia, basta pontuar que no manuscrito do CA estão em branco os seguintes fólios: 15v,
17v, 28v, 47v, 51, 54v, 55, 58v, 60v, 61v, 65v, 70v, 77 (este com desenhos, inscrições e rubricas), 81, 86v,
87 (este também com desenhos, inscrições e rubricas), 87v.
229
Eis aqui as cinco referências com os números que as identificam no Cancioneiro da Ajuda, seguidos do
título, gênero e autor, respectivamente: CA 132 - Fiz meu cantar e loei mia senhor, Amor, Rui Queimado; CA
211 - Neguei mia coita des ũa sazom, Amor, Fernão Gonçalves de Seabra (“Enos Cantares”); CA 247 - Que
mui de grad'eu querria fazer, Amor, Paio Gomes Charinho (“Cantar e som” são citados); CA 305 - Quem viu
o mundo qual o eu já vi , Género incerto, Martim Moxa; CA 306 - Algũa vez dix'eu em meu cantar, Amor,
Martim Moxa.
230
“Nas cantigas, só de passagem se nomeia um ou outro estormento ou estromento como o adufe, as
trombas, os atambores e atabaes.” (Vasconcellos, 1904, II/639-640)
123

- Viola de arco e pandeiro (01 ocorrência: códice 06);


- Viola de arco e harpa (01 ocorrência: códice 09);
- Harpa e guitarra (01 ocorrência: códice 11).
2) Solos:
- Guitarra (02 ocorrências: códices 05 e 10);
- Harpa (01 ocorrência: códice 02);
- Viola de arco (01 ocorrência: códice 08).
Para direcionar o olhar ao nosso objeto de estudo, nos deteremos apenas sobre os
códices nos quais a guitarra aparece. Seguindo a ordem de aparição no cancioneiro, as oito
(08) ilustrações, suas instrumentações e os seus respectivos personagens podem ser
representados a partir da seguinte tabela:
Códice 05 - Mestre, jogral com guitarra; soldadeira.
Códice 07 - Mestre; jogral com guitarra; soldadeira (ou rapaz?) com castanholas.
Códice 10 - Mestre; jogral com guitarra; rapaz escutando ou cantando.
Códice 11 - Mestre; jogral com guitarra; jogral com harpa, sentado no chão.
Códice 12 - Mestre; jogral com guitarra; soldadeira com pandeiro, sentada.
Códice 13 - Mestre; jogral com guitarra; soldadeira com castanholas.
Códice 14 - Mestre; jogral com guitarra; soldadeira com castanholas.
Códice 16 - Mestre; jogral com guitarra; soldadeira com pandeiro.
Tabela 5: Lista das instrumentações com guitarra e os seus personagens nas iluminuras do Cancioneiro da
Ajuda.

É interessante notar os instrumentos musicais que fazem duo com a guitarra no


acompanhamento do canto: o pandeiro, a castanhola e a harpa. Excetuando este último
(que ocorre apenas 01 vez), os instrumentos percussivos somam 05 ocorrências em 06
possíveis. E são justamente aqueles (pandeiro e castanhola) que estarão ao lado da viola
nas práticas musicais profanas que se realizarão no Brasil a partir da segunda metade do
século XVI, conforme nos atestarão a documentação jesuítica e a produção literária
(especialmente a de Gregório de Matos) nos capítulos seguintes. Aqui também se nota,
portanto, uma proximidade entre as práticas que se realizavam na Península Ibérica entre a
Idade Média e o Renascimento e aquelas que seriam comuns em território brasileiro a
partir do descobrimento.
Especificamente em relação às iluminuras, os códices 05 (o primeiro a evidenciar a
presença da guitarra) e 10 são os que oferecem os cordofones de contornos mais nítidos:
124

Figuras 17 e 18: Códices 05 e 10 das Iluminuras do Cancioneiro da Ajuda – Trovador Mestre, Jogral com
guitarra, soldadeira. Fonte: http://cantigas.fcsh.unl.pt/iluminuras.asp

Podemos identificar três personagens nas ilustrações e que são, em linhas gerais, as
mais comuns nas iluminuras:
1) O Mestre-Trovador, à esquerda, sentado em um escabelo, vestido em trajes
nobres e geralmente em posição de quem ensina, escuta ou bate o compasso;
2) O Jogral executante, ao centro, empunhando uma guitarra e com o olhar atento
voltado para o trovador;
125

3) A Soldadeira (ou “rapariga”), à direita, no primeiro exemplo vestida de forma


sóbria e a “cantar com voz que devemos supor fresca e um tanto acre, como laranjas em
março”. (Vasconcellos, 1904, II – 161). 231 No segundo exemplo aparece sentada (tal qual
o mestre-trovador) e executando um pandeiro.
Especificamente em relação ao nosso objeto de estudo, é particularmente notável a
semelhança entre os cordofones de cordas dedilhadas que são empunhados pelos jograis
nas iluminuras do Cancioneiro da Ajuda e aqueles encontrados em algumas das miniaturas
que constam no códice das Cantigas de Santa Maria. 232
Pesquisadores têm usualmente nominado este instrumento musical de guitarra latina
(embora não se saiba ao certo quem primeiramente o batizou como tal e seus créditos
geralmente se destinem a Juan Ruiz, que o cita em seu Libro de Buen Amor). Não obstante,
a bibliografia dedicada ao tema tem recorrentemente referido-se a este cordofone como o
antecessor direto da viola de cordas dedilhadas. É o caso, por exemplo, de Geiringer e
Oliveira:
“Geiringer [...] considera esta guitarra latina de origem arábico-persa, chegado à
Europa a seguir ao alaúde, encontrando-se em Espanha desde o século XII; além
disso, na sua forma primitiva, ela possuiria fundo convexo, que só mais tarde
teria sido substituído pelo fundo chato que é um dos seus traços característicos
fundamentais. Em qualquer caso, no século XIII, a guitarra latina prefigura a
forma essencial da vihuela ou viola quinhentista, que seria compreensivelmente
o seu prolongamento direto. E a nossa viola actual, que o mesmo é
essencialmente que essa viola quinhentista, teria desse modo como protótipo e

231
Para uma visualização ainda mais completa das personagens das iluminuras, transcrevemos aqui a análise
integral de Vasconcellos sobre a qual nos baseamos: “À esquerda vemos sentado num escabello, coberto de
alcatifa, um personagem, de saia comprida, ou saia e manto, muita vez de perna cruzada, em attitude e com
gestos de quem ensina, bate o compasso, ou escuta. Deve representar o mestre-trovador [...]. Em face d'elle,
occupando o centro, está postado o jogral executante, de saio curto, tocando um instrumento de corda: viola,
de arco, ou guitarra de pennula (cítara na linguagem dos trovadores). Em uma das scenas (6), movendo o
arco com alegre paixão, esse menestrel esboça um passo de dança que faz recordar o verso do arcipreste: Ca
vihuela de arco fax dulces bayladas. Geralmente (5 a 14, e 16), está em pé; sentado só quando o tamanho do
instrumento assim o exige: no chão, com harpa (9 e 11), ou num escabello baixo e singelo, sustentando no
regaço um psalterio (1-4). Nestes casos o jogral apparece mudado para a direita, tendo cedido o seu logar à
terceira figura: a bailadeira ou cantadeira que na maioria dos casos está collocada à direita. Honestamente
vestida, com roupagens roçagantes que lhe escondem os pés, o corpo em gracioso movimento, a rapariguita,
de braços mais ou menos levantados, faz vibrar as castanhetas (3, 4, 7, 13 - 15), sacode o característico
pandeiro de guisos (6, 16) ou está queda, de mãos vazias, a cantar com voz que devemos suppôr fresca e um
tanto acre, como laranjas em março (5, 8). Numa occasião a pequena sentou-se de cansada (12). Em outra, é
substituída por um moço, espécie de meniao de coro ou monaguilho, ou então o fidalgo - aprendiz que canta
(7). Também occorre um segundo jogral accompanhar o tocador de rabeca com os sons da sua harpa. (1)”
(Vasconcellos, 1904, II/160-161).
232
“Una de las fuentes más importantes y, sin duda, una de las más conocidas para el estudio de los
instrumentos musicales de la Edad Media europea, es el libro de las ‘Cantigas de Santa María’, hecho por
mandato del Rey Alfonso X el Sabio. De los varios manuscritos que de esta obra se conservan, el más
interesante para la Organologia musical es el que se encuentra en la Real Biblioteca de El Escorial, con la
signatura b I 2. Puede fecharse con toda seguridad en el siglo XIII, y muy posiblemente hacia 1261.”
(Marcos, 1975, 36)
126

longínquo antepassado a guitarra latina do Arcipreste de Hita, ou seja, o velho


instrumento jogralesco do Cancioneiro da Ajuda. (Oliveira, 1982, 190) 233

Baseado nas miniaturas das Cantigas de Santa Maria, Rey Marcos descreve os
aspectos básicos de sua construção em três itens:
1) “Corpo: ombros inclinados em linha reta, curvas laterais para dentro [que sugerem
o formato de um oito], parte inferior acabada mais ou menos em ponta”;
2) “Cordas: quatro ou cinco, sujeitas a uma ponta na extremidade inferior, cavalete
de dois traços, tocadas com plectro”;
3) “Adornos: roseta central, linha pontilhada no contorno, ou linha contínua, ou nada,
dois pontos abaixo da roseta, um ponto, dois ou nenhum acima da roseta.” (Marcos, 1975,
I/36). 234
Também é possível supor um fundo plano e anéis laterais [aros laterales], embora
sejam características que não estejam completamente perceptíveis nos debuxos. Vejamos
os exemplos:

233
Lamaña, por exemplo, considera equivalentes os termos “guitarra latina” e “guitarra”. (1973, 65)
234
Tradução livre de: Podemos describir este instrumento como: - cuerpo: hombros rectos, caídos, curvas
laterales hacia adentro, parte inferior acabada más o menos en punta; - cuerdas: cuatro o cinco, sujetas a
una punta en el extremo inferior, puente de dos pies, tocadas por plectro; - adornos: roseta central de
agujeros, línea de puntos en el contorno, o línea continua, o nada, dos puntos por debajo de la roseta, un
punto, dos o ninguno por encima de la roseta. (Marcos, 1975, I/36)
127

Figuras 19 e 20: Miniaturas das Cantigas de Santa Maria. Biblioteca de El Escorial. b I 2 – Cantiga 150 e
Cantiga 10.

Duas questões podem ser desdobradas a partir das imagens:


1) A primeira refere-se ao número de cravelhas. Em muitas das iluminuras, não foi
desenhada a “mão” no fim do “braço” do cordofone, o que deixa em aberto qual era o seu
padrão quantitativo de cordas. Rey Marcos, baseado na análise das miniaturas das Cantigas
de Santa Maria, considera possíveis quatro ou cinco cordas (nos exemplos acima, é mais
plausível considerar 04 cravelhas). Em duas das figuras do Cancioneiro da Ajuda (códices
05 e 10), aparecem nitidamente quatro 04 reguladores de afinação, sugerindo que se
tratava, pelo menos até a segunda metade do século XIII, de uma guitarra composta por 04
cordas.
2) Uma postura de mão direita que ora não nos deixa visualizar com nitidez a posição
dos dedos e ora intercala gestos que, por um lado, nos fazem supor que os dedos estão
reunidos (como se segurassem um pequeno objeto tal qual um plectro) e, por outro,
128

posturas de antebraço ligeiramente curvadas e salientando polegar e indicador levemente


separados (como se estivessem ponteando as cordas com o mindinho apoiado no tampo).
Nos 04 exemplos já mostrados (02 das Cantigas de Santa Maria e 02 do Cancioneiro
da Ajuda), a guitarra surge como o único instrumento a acompanhar a voz. Podemos
sugerir, em um exercício hipotético, que a técnica de execução era realizada com os dedos
da mão direita articulados (ponteados) e sem a ajuda de um plectro (palheta). Contudo, é
preciso ressaltar que quando a guitarra não está sozinha, ela surge acompanhada ou por um
instrumento de percussão (castanholas ou pandeiros) ou por outro instrumento harmônico
(a harpa), ambos com volume de som comparativamente bem maior que o seu (e não
esqueçamos que ainda havia o canto). Tais características são observáveis nos Códices 07,
11, 12, 14 e 16 e podem nos indicar que, nestes casos, a técnica de execução era realizada
com a ajuda de um plectro (palheta).

Figuras 21 e 22: Códices 11 e 12 das Iluminuras do Cancioneiro da Ajuda.


Fonte: http://cantigas.fcsh.unl.pt/iluminuras.asp
129

Figuras 22 e 23: Códices 16 e 07 das Iluminuras do Cancioneiro da Ajuda.


Fonte: http://cantigas.fcsh.unl.pt/iluminuras.asp

Mas é preciso ressaltar que este padrão de guitarra é um referencial que não se
repetirá com clareza nas iluminuras seguintes. Embora possamos vislumbrar outras
ocorrências, as quatro cravelhas não voltam a figurar nitidamente em nenhum dos códices
do Cancioneiro da Ajuda e o polegar separado do indicador, por sua vez, somente
reaparece com exatidão no Códice 13:

Figura 24: Códice 13 das Iluminuras do Cancioneiro da Ajuda: Mestre-trovador (esquerda), jogral com
cordofone de cordas dedilhadas (centro), soldadeira tocando castanholas (direita).
130

Fonte: http://cantigas.fcsh.unl.pt/iluminuras.asp

Tal percepção entre duas formas de execução (uma com o plectro/ palheta e outra
com os dedos articulados/dedilhados) se coaduna à análise feita por Vasconcellos que,
além de pontuar a notável elegância dos instrumentos 235, os feitios variados das guitarras
236, também nos afirma que em razão do “debuxo ser quase sempre incompleto, só de
contornos, não se reconhece se a guitarra é mourisca ou latina, de três ou de quatro
cordas.” (Vasconcellos, 1904, II/161, nota 3).
Ora, dentre tantos termos utilizados até então para designar cordofones de cordas
dedilhadas próximos ou mesmo iguais no período em questão (alaúde, vihuela, viola,
cítara, cítola, cedra, etc.), vemos agora a separação mais nítida entre dois tipos específicos
de guitarra: a guitarra mourisca e a guitarra latina, que Vasconcellos lamenta não poder
identificar com precisão nas iluminuras e sobre os quais também não nos oferece maiores
detalhes.
Temos identificados, portanto, dois instrumentos e duas possíveis formas de
execução. Um convite sinuoso para mergulharmos em mais uma história das antíteses,
dualista e segregada. Isto porque, a esta altura, uma tentação dupla se apresenta para os
estudiosos do tema: primeiro, o perigo de relacionar deliberadamente uma coisa com a
outra com o intuito de supostamente definir, distinguir e interligar dois cordofones e duas
maneiras de tocar; segundo, o de tomar esta história como linear, criando uma linhagem
direta de tais instrumentos para a vihuela (instrumento musical supostamente palaciano e
de elite) e para a guitarra (supostamente popular e associado às emoções da plebe),
reforçando a naturalização de mais uma dualidade que existiu muito mais no plano das
teorias do que no das práticas.
O que a análise de essência esquece são as condições sociais da produção (ou da
invenção) e da reprodução (ou da assimilação) das disposições e dos esquemas
classificatórios que são empregados na percepção artística [...] No esquecimento
da história da qual é o produto. (Bourdieu, 1996, 322)

O cerne da questão deve se concentrar em outro nível e a pergunta que deveria ser
feita, portanto, não é propriamente qual destes instrumentos foi fisicamente mais
aparentado ou não com o violão, mas sim quais foram as práticas musicais efetivas que
herdamos deles a partir do ano de 1500? Mesmo porque já vimos (e veremos ainda mais)

235
“Os instrumentos são de notável elegância, principalmente as harpas e psalterios, mas também as violas
de arco e as guitarras de pennula.” (Vasconcellos, 1904, II/161)
236
“Nas poucas vinhetas que restam do CA apparece apenas, conforme apontei, a harpa, o psalterio, a
guitarra de feitios variados, o pandeiro, e as castanholas.” (Vasconcellos, 1904, II/639-640) [grifo nosso]
131

que a guitarra latina e a guitarra mourisca não foram os únicos cordofones de cordas
dedilhadas circulando na Península Ibérica no período anterior ao descobrimento.

2.4 Outras fontes sobre os cordofones na literatura ibérica medieval

Quem primeiro nos descreve algumas das características de parte dos cordofones de
cordas dedilhadas que circulavam na Península Ibérica nos séculos precedentes ao
descobrimento é Juan Ruiz (c.1282/3–c.1350), Arcipreste de Hita 237, em seu El Libro del
Buen Amor, obra provavelmente escrita entre 1330 e 1343 durante os anos em que esteve
de cárcere. Na apresentação de uma de suas mais recentes edições (2009, Linkgua
ediciones S.L.), o livro é descrito nos seguintes termos:
El libro del buen amor mescla elementos ascéticos e mundanos com notória
influência muçulmana; tem uma linguagem rica, plena do sentido de humor, de
refrãos e modismos populares próprios da fala coloquial da época. O texto
contém, ademais, testemunhos relevantes sobre as guitarras mourisca e latina,
instrumentos hoje quase desconhecidos. (Presentación, 2009, 11) 238

Os “testemunhos relevantes” aos quais se referem o texto estão concentrados no


poema De cómo clérigos e legos, e flaires e monjas, e dueñas, e joglares salieron a recebir
a don Amor (cujo motivo poético foi motivo de desagravo para os seus superiores). Parte
da poesia contém uma rara menção/ descrição de boa parte dos instrumentos musicais mais
usuais da época. No entanto, ao analisar o documento, a maioria dos pesquisadores
transcreve apenas os quatro versos nos quais as guitarras latina e mourisca são citadas,
criando uma falsa impressão de que os cordofones de cordas dedilhadas do período se
concentravam em torno de tal dualidade.
A transcrição do trecho com as referências musicais completas não somente anuncia
a presença de nada menos do que 07 cordofones de cordas dedilhadas (destacados em
negrito), como também nos ajuda a perceber como a descrição deles pode ser visualizada a
partir da comparação com as características dos outros instrumentos musicais aludidos:
[...] Rescíbenlos los árbores com ramos et con flores

237
Arcipreste é um título conferido a alguns vigários (sacerdotes responsáveis por uma paróquia/Igreja) e que
lhes confere primazia sobre outros vigários. Geralmente, portanto, há um arcipreste vigário responsável por
uma determinada região, província ou jurisdição na qual estão circunscritas as suas igrejas e respectivos
sacerdotes. Foi o caso do sacerdote Juan Ruiz, Arcipreste de Hita, povoado de Andalucía, na Espanha
(situado na província de Guadalajara, a 77 quilômetros de Madrid). Homem culto, além de poeta e sacerdote
com profundo conhecimento teológico, Juan Ruiz era também especialista em direito canônico e civil. Seu El
libro del buen amor foi provavelmente escrito durante os treze anos de cárcere no convento de São Francisco,
em Guadalajara, prisão motivada pelo fato de alguns de seus escritos terem desagradado profundamente um
de seus superiores, o arcebispo cardeal de Toledo, Dom Gil.
238
Tradução livre de: “El libro del buen amor mezcla elementos ascéticos y mundanos con notoria influencia
musulmana; tiene un lenguaje rico, lleno de sentido del humor, de refranes y modismos populares proprios
del habla coloquial de la época. El texto contiene, además, testimonios relevantes sobre las guitarras
morisca y latina, instrumentos hoy casi desconocidos.”
132

De diversas maneras, de diversos colores,


Recibenlo los omes, et dueñas com amores,
Con muchos instrumentos salen los atambores.
Allí sale gritando la guitarra morisca,
De las voces aguda, de los puntos arisca,
El corpudo laud que tiene punto a la trisca,
La guitarra latina con ésos se aprisca.
El rabé gritador con la su alta nota,
Cab’ él el orabín 239 taniendo la su rota,
El salterio con ellos más alto que la mota,
La vihuela de péndola con aquéstos y sota.
Medio caño 240 et arpa con el rabé morisco,
Entr’ ellos alegranza el gálipe francisco
La rota dis' con ellos más alta que un risco,
Con ella el tamborete, sin él non vale un prisco.
La vihuela de arco fas' dulces de bailadas,
Adormiendo a veses, muy alto a las vegadas,
Voses dulses, sabrosas, claras et bien pintadas,
A las gentes alegra, todas las tiene pagadas.
Dulce caño entero sal' con el panderete,
Con sonajas de asófar fasen dulce sonete,
Los órganos y disen chanzones e motete,
La adedura albardana 241 entre ellos se entremete.
Dulçema, e axabeba, el finchado albogón,
Zinfonia e baldosa en esta fiesta son,
El françés odrecillo con éstos se compón',
La neciancha mandurria allí fase su son.
Trompas e añafiles salen con atambales,
Non fueron tiempo ha placenterías tales,
Tan grandes alegrías nin atán comunales,
De juglares van llenas cuestas e eriales.
[...] (Ruiz, 2009, 166-167)
Em sua Historia de la Música Española, Fuertes ratifica a perspectiva dualista no
entendimento da poesia, apontando as diferenças em relação à afinação e ao número de
cordas entre a guitarra mourisca, que “constaba de cuatro cuerdas acordadas en estos
términos: 6, 8, 9, 12, que excluian el tono menor”, e a guitarra latina, “que constaba de
cinco cuerdas acordadas de la misma manera que en nuestros días.” (1855, I/105) É o

239
Pedrell classifica o orabín como “instrumento musico de cuerda, de la família del Laud, introducido,
probablemente em España por los moros. Sic, en la mayor parte de los Diccionarios consultados.” (1897,
328)
240
Segundo Pedrell, o “Canon (Meo) [foi] Instrumento de cordas punteadas. El rey D. Alfonso de Aragón,
en 1329, pedia al rey de Castilla que le enviara dos musicos que tocasen la xabeba ó exabeba (flauta) y el
Meo canon. (Pedrell, 1897, 66). Já Chavarri o define como um “salterio en forma triangular”. (2008 [1927],
77)
241
De acordo com Terreros (1758), o termo adedura albardana faz referencia à citóla albardana. Pedrell
afirma que esta era “la calificación dada à la cítola em la poesia del Arcipreste de Hita, Juan Ruiz, tantas
veces citada” e que “úsase en el sentido de chocarrera, trubana, etc.”. (Pedrell, 1897, 93). Já para Fuertes, a
cítola albardana era “uma espécie de vihuela grande” (Fuertes, 1857, IV/198). A cítola também é citada pelo
Arcipreste, sem o subtítulo, em outro trecho do poema: El pastor lo atiende fuera de la carrera /Tanniendo
su zamponna et los albogues esmera, /Su mozo el caramillo fecho de cañavera / Taniendo el rabadán su
citóla trotera. (Pedrell, 1901, 47)
133

mesmo caso de Taborda, que não somente corrobora tal percepção, como também
distingue número de cordas, afinações próprias e modos de execução distintos para as duas
guitarras:
[...] a descrição da guitarra mourisca (de caixa ovalada e cordas metálicas
executadas geralmente com plectro) de las você aguda, de los puntos arisca, leva
a crer que o instrumento possuía sonoridade gritante, mais apropriada ao
acompanhamento rasgueado. A guitarra latina, com suas cordas de tripa
pinçadas geralmente com os dedos, deveria soar com mais doçura. O termo
espanhol rasgueado, traduzido em português como rasgado, refere-se à técnica (e
ao estilo) de execução da mão direita, na qual os dedos, com movimento em
bloco alternando os sentidos ascendente e descendente, atingem todas as cordas,
metaforicamente rasgando-as. No ponteado, os dedos da mão direita articulam
individualmente as diferentes cordas, respeitando a individualidade das vozes.
(2011, 24-25)

Como se observa, pesquisadores iberos e brasileiros vêm não somente naturalizando


e reproduzindo uma terminologia que se associa aos cordofones de cordas dedilhadas
utilizados na Península Ibérica nos séculos anteriores ao descobrimento (guitarra latina e
guitarra mourisca constam, por exemplo, em praticamente todos os livros, teses,
dissertações, artigos, dicionários e/ou publicações diversas que abordam ou tangenciam a
história do violão), como também associando a eles formas de execução e outras
características distintas, desconsiderando, contudo, que havia um punhado de outros
termos designando cordofones de cordas dedilhadas circulando no mesmo lugar, período e
sociedade. E que, muitas vezes, cumpriam funções similares e eram manuseados (e
manipulados) pelos mesmos grupos. O poema de Juan Ruiz é apenas mais um indício
(dentre tantos) de que as práticas que se relacionam aos cordofones neste período medieval
são muito mais amplas do que nossa musicologia tem alcançado.
Neste ponto, uma pergunta se faz necessária: a terminologia que empregamos para
tais instrumentos musicais é, de fato, adequada? E, se sim, podemos relacioná-la com
segurança às práticas de performance (como características de construção, execução,
número de cordas, afinação, repertórios relacionados, etc.) ou às práticas sociais (sua
posição nos jogos de interesses, discursos simbólicos e relações de poderes) que envolviam
tais cordofones?
O fato é que quando nominamos um instrumento musical, também nominamos
presumivelmente a história que o acompanha. Rey Marcos, a propósito, afirma que “se
aceitamos o nome de ‘guitarra latina’, devemos descartar um caminho evolutivo [do
violão] através dos árabes” (Marcos, 1975, I/38) 242, afinal, estudos de C. Geiringer (1924)

242
Tradução livre de: “[…] si aceptamos el nombre de ‘guitarra latina’, tendremos que desechar un camino
de evolución a través de los árabes.” (Marcos, 1975, I/38) Ainda para Rey Marcos, “es más razonable
134

realizados ainda nas primeiras décadas do século XX já apontavam para o fato de que o
adjetivo latinus equivale, na verdade, a indígena. Assim, uma suposta guitarra latina (ou
autóctone) iria contrapor-se a outra de procedência estrangeira, a guitarra mourisca.
Alguns estudiosos são ainda mais taxativos ao responder negativamente, inclusive
recusando os vocábulos historicamente associados aos cordofones em questão. Ao
comentar o trabalho de E. Kroher, por exemplo, Nickel o critica peremptoriamente pela
nomenclatura com que se refere aos instrumentos dos Cancioneiros, afirmando que “as
Cantigas não falam nem de ‘guitarra latina’ nem de ‘guitarra morisca’.” (1972, 26-27) 243
Juan José Rey Marcos, por sua vez, alega que “aceitar o adjetivo ‘latina’ ou ‘morisca’
significa supor uma procedência concreta e toda uma linha evolutiva” (1975, I-37) 244, o
que, em se tratando de tais cordofones, torna-se uma tarefa arriscada e possivelmente
infrutífera, uma vez que os dados levantados historicamente ainda não são suficientes para
respostas definitivas. Lamaña, finalmente, esclarece que em hipótese alguma se deve
subentender que Juan Ruiz quis aclarar ou nominar os instrumentos musicais das Cantigas
(1973, 25).
Não podemos esquecer que El Libro del Buen Amor não apresenta debuxo ou figura
de quaisquer dos cordofones mencionados e que as possíveis associações com as
miniaturas que constam nas Cantigas de Santa Maria e no Cancioneiro da Ajuda devem
ser realizadas a partir de tais ressalvas. Desconsiderar esta prerrogativa é aventurar-se em
um exercício musicológico tão seguro quanto caminhar por um longo terreno de areia
movediça (algo realizado por nós ao longo do primeiro capítulo).
Conforme bem frisou Marcos, “o problema que em torno deste instrumento se
apresenta é evidentemente o de sua origem.” (1975, I/38). 245 Mas é preciso lembrar que o
embaralhamento da nomenclatura não se esgota entre os vocábulos guitarra latina ou
guitarra mourisca. Anglés, por exemplo, faz a seguinte relação: “cedra ou cítola
(modificada) = guitarra latina”. (1958, 455) No capítulo anterior, constatamos a
promiscuidade terminológica que definia nomes de instrumentos ora próximos e ora
diversos.

pensar en un camino a través de los árabes que en una evolución en Europa a partir de la forma de ‘fídula’.
Por tanto, el nombre de ‘guitarra latina’ no puede aplicarse en justicia a este instrumento.” (1975, II/48)
243
Tradução livre de: “[…] die Cantigas sprechen weder von einer ‘guit.mor.’ noch von einer ‘guit. Lat’.”
(Nickel, 1972, 26-27)
244
Tradução livre de: “En nuestro caso, aceptar el adjetivo ‘latina’ o ‘morisca’, significa suponer una
procedencia concreta y toda una línea evolutiva.” (Marcos, 1975, I/37)
245
Tradução livre de: “El problema que en torno a este instrumento se plantea, es evidentemente el de su
origen.” (Marcos, 1975, I/38)
135

São fatos que ratificam a perspectiva de estudar a história dos cordofones de cordas
dedilhadas a partir de seus usos sociais. Porque interessa mais, no fundo, o que foi herdado
enquanto prática (e este é um terreno onde as identificações são mais possíveis do que, por
outro lado, estabelecer características e diferenças meramente físicas e baseadas em
vestígios incompletos).
Além do mais, mesmo que pudéssemos realizar uma descrição e distinção mais
precisa entre um e outro instrumento musical, isto ainda não seria o bastante para clarificar
a história dos cordofones no Brasil. A razão é simples: a trajetória destes objetos na
Península Ibérica (e ainda mais no restante da Europa) não é completamente paralela à
trajetória dos mesmos no Brasil.
O alaúde que circulava em cortes e ruas europeias – ainda que fisicamente igual aos
exemplares que podem ter sido trazidos para o Brasil – não pode ser considerado, contudo,
o mesmo objeto que circulou em solo brasileiro do ponto de vista sociológico, já que aqui
cumpria outras funções e finalidades sociais.
Do mesmo modo, quando se fala em vihuela na Península Ibérica do século XVI,
supõe-se um instrumento palaciano com um dos repertórios instrumentais mais ricos e
diversos de seu tempo. Porém, quando encontramos vihuelas mencionadas em solo
brasileiro na documentação jesuítica do século XVI, podemos nos referir a este objeto com
o mesmo sentido?
Se respondermos que sim, então onde estiveram nossas cortes, palácios, elites,
concertos, compositores e intérpretes? Fica patente que a história destes instrumentos (ou
de quaisquer outros que foram trazidos após o descobrimento) não é paralela na Europa e
no Brasil. E, por tal razão, sujeitá-la unicamente à égide da organologia é correr o risco de
vesti-la com a armadura inapropriada, engessando-a já no ponto de partida da investigação.
Em outras palavras, a história destes instrumentos no Brasil não é uma continuidade linear
da história destes instrumentos na Europa. E, portanto, não deve ser encarada como tal.
Por outro lado, inegavelmente algumas das práticas sociais em torno destes objetos
nos alcançaram (bem como outras foram abandonadas e/ ou não puderam ser incorporadas
na realidade brasileira). E é justamente sobre tais premissas que devemos nos debruçar.
Por tal razão, as controvérsias terminológicas só são decisivas para apontar o
caminho que, na verdade, não se deve seguir (ou, pelo menos, para nos alertar que este não
é o único ponto de partida possível). Interessa-nos muito mais identificar, nos usos, que um
destes instrumentos musicais apresentava afinação similar àquela empregada na guitarra
espanhola (o violão) do século XIX (como sugeriu Fuertes) e que já havia dois modos de
136

execução diversos associados aos cordofones de cordas dedilhadas identificados na


Península Ibérica em período anterior ao descobrimento (o ponteado e o rasgueado), uma
vez que estas são práticas também reconhecidas no uso que se fez da viola já nos dois
primeiros séculos da colonização brasileira.
Em sua produção poética (que estudaremos mais detalhadamente nos capítulos
seguintes), Gregório de Matos ilustra bem, por exemplo, como as duas maneiras de tanger
o instrumento já eram distinguidas no Brasil ao longo do século XVII:
Mas eu ponho isso à viola
Na postura do cruzado:
Diz, que são de sete pontos,
Mas como eu tanjo rasgado,
Nem nesses pontos me meto,
Nem me tiro desses trastos. [...]
Não te rasgo, nem ponteio,
Não te ato, nem desato,
Que pelo tom, que me tanges,
Pelo mesmo tom te danço.
(Amado, 1999, 1070)

A relação entre os modos de execução que se praticavam na Península Ibérica e


posteriormente no Brasil, identifica, portanto, que não herdamos apenas alguns dos
instrumentos musicais ocidentais dos povos iberos, mas também (e sobretudo) algumas das
práticas e técnicas que se relacionavam a eles.
Voltando ao poema do Arcipreste de Hita, não há como negar a significativa
variedade de cordofones de cordas dedilhadas que ele menciona: a guitarra mourisca, a
guitarra latina, o laud, a vihuela de peñola, a cítola, a cítola albordada, o medio caño e o
orabin, um número considerável, especialmente se levarmos em conta o suposto
conhecimento musical técnico que o autor detinha sobre os instrumentos musicais de seu
tempo. 246
Tal profusão é reiterada na Crônica Rimada (ou Poema de Alfonso XI), que,
excetuando a poesia do Arcipreste, é considerada “a obra poética mais extensa e
importante da primeira metade do século XIV” 247 sob o ponto de vista da organografia

246
“El Archipreste sabía música, y podría asegurarse que la cultivaba y la profesaba en el sentido técnico de
esta palabra. Consta por las repetidas declaraciones de instrumentos que se hallan en el poema: por la
selección que hace de los que convienen á los cantares de arábigo, por el hecho de haber compuesto letras y
sin duda la música de danzas para las troteras y cantaderas mudejares y, finalmente, por las repetidas
alusiones que de la práctica de la música hace en varias partes del poema, especialmente cuando dice: Sé
fazer el altibajo, et sotar á qualquier muedo.” (Pedrell, 1901, 46)
247
Tradução livre de “[…] la obra poética más extensa y importante de la primera mitad del siglo xiv, á
excepción de la del Archipreste de Hita […].”(Pedrell, 1901, 63)
137

musical na Península Ibérica. Nela, observaremos o laúd, a vihuela, a guitarra serranista


248 e o já citado médio canon sendo tangidos por jograis e donzelas em seus cantares:
[...] Estas palabras desian
Donsellas en sus cantares:
Los estormentos tannían
Por las Huelgas los jograres.
El laúd yvan tanniendo,
Estromento falaguero,
La vihuela tanniendo,
El rabé con el salterio.
La guitarra serranista
Estromento con rasson,
La exabeba morisca,
Allí en medio canon.
La gaita que es sotil
Con que todos plaser han.
Otros estormentos mil
Con la farpa de Don Tristan
Que da los puntos doblados,
Con que falaga el logano,
E todos los enamorados
En el tiempo del verano.
(Pedrell, 1901, 64)

Há ainda outro documento, mais tardio, que lista um número considerável de


instrumentos musicais que circulavam na Península Ibérica na transição da Era Medieval
para o Renascimento: El Triunfo del Amor, de Juan del Enzina (1469-1529), escritor e
músico considerado o fundador do teatro lírico-literário moderno na Espanha. 249 Entre os
cordofones de cordas dedilhadas mencionados, estão presentes a cítara, a baldosa, as
vihuelas e os laudes de oro:
Aquí estaba el Trobeceno
Y Támiras y el Tebano
Con su cítara en la mano […].
Fué la música muy alta
Y los músicos sin cuento:
De ningún buen instrumento
Hubo en estas fiestas falta.
Sacabuche, chirimías
Órganos y monacordíos
Módulos y melodías

248
Definida por Chavarri como “Pequeña y rústica.” (2008 [1927], 77)
249
“Juan del Enzina [ou Encina, na grafia atual], doble fundador de nuestro teatro lírico-literario moderno,
como buen poeta y peregrino músico, no podía menos de presentarnos una enumeración instrumental en
alguna de sus composiciones poéticas. En efecto, siguiendo á los malos imitadores del Petrarca, escribió un
Triunfo de la Fama, que tiene algún interés histórico, y un Triunfo de Amor. Lo único curioso que este
último poema contiene, es una enumeración de los instrumentos musicales usados en la época del autor
(1468- 1534) [sic] y otra de los músicos que toman parte en el festín que se describe en la composición.”
(Pedrell, 1901, 78)
138

Baldosas y linfonías (sic),


Dulcemelos, clavicordios,
Clavecímbalos, salterios
Harpa, manaulo250 sonoro:

Vihuelas, laudes de oro


Do cantaban mil misterios:
Atambores y atabales.
Con trompetas y añafiles,
Clarines de mil metales,
Dulzainas, flautas reales,
Tamborinos muy gentiles.

El tañer con el cantar


Era muy bien acordado,
Y no menos concertado
El concierto del danzar [...].
(Pedrell, 1901, 78-80)

Os três poemas reproduzidos perpassam uma linha temporal que vai de meados do
século XIV ao início do século XVI, período imediatamente anterior ou paralelo à chegada
das caravanas portuguesas ao Brasil. Somando os cordofones de cordas dedilhadas
apontados em apenas três (!) documentos, temos uma lista com 14 designações distintas:
guitarra mourisca, guitarra latina, guitarra serranista, laud, vihuela, vihuela de peñola,
cítara, cítola, cítola trotera, cítola albordada, adedura albardana, baldosa, medio canon e
orabin. Alguns deles não tiveram desdobramentos na própria Península Ibérica ao longo
dos séculos seguintes, tampouco chegaram a figurar entre os instrumentos musicais
trazidos para o território brasileiro no período pós-descobrimento. Mas o mesmo pode ser
dito sobre suas práticas? Também elas não teriam sido incorporadas na própria tradição
europeia que paulatinamente fomos incorporando, negando e/ ou transformando?
Não se sabe ao certo até que ponto, pois ainda não temos identificados os vestígios
necessários para aclarar como de fato se sucederam as inúmeras trocas simbólicas e
representativas que resultaram nos cordofones de cordas dedilhadas que conhecemos a
partir do século XVI e cujos traços da tradição incorporada ao violão são mais factíveis de
se reconhecer.
O único fato assertivo é que parte desta herança (e confusão) terminológica foi
absorvida pelas práticas musicais que ocorreram no Brasil a partir dos anos quinhentos:
viola, vihuela, guitarra, alaúde, cítara e todas as suas incontáveis variantes (muitas vezes
confundidas ou tomadas como sinônimos em um mesmo idioma) serão instrumentos/

250
[sic] Manaulo se refere, na verdade a monaulo, que nomeava uma antiga flauta simples de um só tubo.
(Pedrell, 1901, 80)
139

termos mencionados em diferentes línguas na documentação jesuítica já no século XVI, no


Brasil, cumprindo funções similares e estando presentes nos mesmos ambientes e
contextos sociais.
Uma profusão de vocábulos que perduraria de forma difusa, tanto lá quanto cá, pelo
menos até meados do século XIX e cujo despertar remonta a períodos bem mais
longínquos do que supúnhamos até então, conforme Pedrell ratifica:
A parte da história geral da música, assim como a de nossa história musical
espanhola referente à organografia, há de apresentar, forçosamente, grandes
vazios e não poucos erros. Os nomes dos instrumentos musicais surgem em
latim, em baixo-latim, em árabe, em galego, em castelhano, em catalão e não
poucas vezes em idiomas ou dialetos estrangeiros e com ortografia caprichosa e
bárbara, do que resulta que muitas vezes não é possível tirar uma conclusão
precisa em respeito ao instrumento de que se trata. Da Idade Média se conservam
muitos nomes e também muitos debuxos de instrumentos em vários códices;
mas, como é natural, nem aos nomes acompanham as descrições
correspondentes, nem aos debuxos os nomes. Desde o Renascimento, já não é
tão grande a confusão produzida por dois ou mais instrumentos distintos terem o
mesmo nome. Pode afirmar-se que, apesar do muito que se publica sobre a
matéria nos tempos modernos, ainda não estão descritos satisfatoriamente os
instrumentos musicais anteriores ao século XV, nem se pode dizer quais foram
seus verdadeiros nomes de origem, porque sobre isto os pesquisadores e
filólogos tem introduzido grandíssima confusão. (1901, 16) 251

Assim, o segundo capítulo encerra ancorando-se muito mais em questões abertas do


que em respostas acabadas. Jogar luz sobre a incompletude dos dados e vestígios não é,
todavia, esgotar as possibilidades dos passos seguintes. Ao contrário, é tomar a lacuna
como ponto de partida para compreender em que circunstâncias tais cordofones e as suas
diversas terminologias e práticas foram incorporadas na realidade brasileira a partir de
1500.

251
Tradução livre de: “La parte de la historia general de la música, lo mismo que la de nuestra historia
musical española referente á la organografía, ha de presentar, forzosamente, grandes vacíos y no pocos
errores. Los nombres de los instrumentos músicos suelen hallarse en latín, en bajo-latín, en árabe, en
gallego, en castellano, en catalán y no pocas veces en idiomas ó dialectos extranjeros y con ortografía
caprichosa y bárbara, de lo cual resulta que muchas veces no es posible sacar una conclusión precisa
respecto al instrumento de que se trata. De la Edad media se conservan muchos nombres y también muchos
dibujos de instrumentos en varios códices; pero, como es natural, ni á los nombres acompañan las
descripciones correspondientes, ni á los dibujos los nombres. Desde el Renacimiento, ya no es tan grande la
confusión producida por llevar el mismo nombre dos ó más instrumentos diferentes. Puede afirmarse que, á
pesar de lo mucho que se publica sobre la materia en los tiempos modernos, todavía no se hallan descritos
satisfactoriamente los instrumentos músicos anteriores al siglo XV, ni puede decirse de ellos cuáles fueron
sus verdaderos nombres de origen, porque en esto han introducido grandísima confusión los glosadores y los
filólogos.” (Pedrell, 1901, 16)
140

CAPÍTULO 03: A CHEGADA DOS CORDOFONES DE CORDAS DEDILHADAS


NO BRASIL

Senhor:
Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a
nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também
de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que - para o bem
contar e falar - o saiba pior que todos fazer.
Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo que, para
aformosear nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu.

(Excerto da carta escrita em 01 de maio de 1500 por Pero Vaz de Caminha, escrivão de D. Manuel) 252

3.1 As fontes: uma introdução

O estabelecimento das fontes solicita, também, hoje, um gesto fundador, representado,


como ontem, pela combinação de um lugar, de um aparelho e de técnicas. Primeiro
indício deste deslocamento: não há trabalho que não tenha que utilizar de outra maneira
os recursos conhecidos e, por exemplo, mudar o funcionamento de arquivos definidos,
até agora, por um uso religioso ou ‘familiar’. (Certeau, 1982, 81)

Pouco sabemos sobre as representações musicais que aconteciam nas terras recém-
descobertas antes da chegada dos portugueses. Não sobreviveram fontes diretas,
documentos ou instrumentos dos povos autóctones que aqui viveram nos séculos
precedentes e as parcas informações que sobreviveram advém exclusivamente de fontes
europeias.
A partir do século XVI, tais relatos podem ser relacionados basicamente a quatro
categorias de personagens que descreveram o que aqui encontraram com diferentes
finalidades (Castagna, 1991):
1) Os viajantes. No século XVI, proliferaram os livros que narravam relatos de
viagens com o objetivo de informar os leitores sobre lugares pouco (ou nada) conhecidos
ou explorados. Geralmente, em maior ou menor grau, tais publicações despertavam grande
interesse pelas descrições pitorescas, fantásticas e/ ou curiosas de fatos supostamente
vividos por seus narradores oculares. Na centúria do descobrimento, destacam-se alguns
nomes: o franciscano francês André Thevet (1502-1590); o aventureiro e mercenário
alemão Hans Staden (1525-1579); e o missionário francês Jean de Léry (1536-1613).
Este último, por sinal, foi provavelmente o autor da transcrição de cinco melodias
tupinambás recolhidas em 1556 253 durante viagem missionária realizada para a França

252
Disponível online no endereço eletrônico:
http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/carta.pdf
Acesso em 22/08/14, às 09h44min.
141

Antártica, colônia francesa então estabelecida na Baía de Guanabara (atual Rio de Janeiro)
e tomada pelos portugueses em 1567. No século posterior, destacam-se as obras do
humanista holandês Caspar Van Baerle (Gaspar Barleus) e do francês Jean-Pierre Moreau.
2) Os missionários. A maior prerrogativa dos missionários europeus nas terras
recém-descobertas foi trabalhar na “conversão” dos povos autóctones, doutrinando-os
conforme suas crenças e costumes. Para acelerar tal processo, apressaram-se em registrar e
aprender tudo o quanto possível sobre a cultura dos nativos. Dentre os religiosos que
estiveram no Brasil, destacam-se os capuchinhos (com destaque para Claude D’Abbevile e
Yves D’Evreux) e, sobretudo, os jesuítas (com Fernão Cardim, José de Anchieta, Cristóval
Gouveia, Jácome Monteiro, entre outros). Ambos os grupos deixaram registros sobre a
música da nação tupinambá.
3) Os bandeirantes. Personagens que desbravavam novas terras e descreviam o que
nelas encontravam com o intuito de facilitar a sua povoação/ exploração futura. O
português Gabriel Soares de Souza (1540-1591) foi o único caso emblemático no Brasil do
século XVI, coordenando expedições que buscavam encontrar minas preciosas no sertão
do rio São Francisco e que resultou no memorial Tratado Descritivo do Brasil. Embora
tenha permanecido cerca de três séculos no ostracismo, o texto foi redigido em 1587 e nos
legou informações preciosas sobre a prática musical de várias nações indígenas.
4) Os cronistas. Foram responsáveis por relatar acontecimentos e histórias do
período, algumas delas tendo as nações indígenas como esteio. Geralmente realizavam
cópias ou resumos de documentos pré-existentes, o que pode sugerir um alcance temporal
ainda mais antigo para os relatos. São os casos dos portugueses Damião de Góis (1502-
1574) e Simão de Vasconcellos (1597-1671).

253
Embora Léry tenha descrito o uso e o significado de tais melodias, a originalidade do material não é
consenso entre musicólogos, conforme indica o pesquisador Hugo Leonardo Ribeiro: “As questões ligadas à
autenticidade desses veneráveis registros não são poucas. As notações surgiram apenas a partir da 3ª ed. da
História de uma viagem feita à Terra do Brasil, em 1585 (a 1ª ed. é de 1578), quase duas décadas após a
estadia de Léry no Brasil. Nada menos que um naufrágio em que diz ter perdido seus pertences e,
posteriormente, um cerco decorrente da guerra entre católicos e huguenotes franceses (o Massacre de São
Bartolomeu é um desses dias), estão como antecedentes do surgimento das notações, a partir da mencionada
edição. Se Montaigne pode escrever inteligentemente sobre os índios brasileiros, sem nunca aqui ter estado
presente, não seria impossível que os fragmentos tivessem sido colhidos entre marinheiros normandos e
índios na própria França, e não necessariamente por Léry. Em adição, nas inúmeras edições de sua famosa
obra, ‘correções’ foram feitas a torto e a direita, em suma, criando um problema bibliográfico gigantesco. E
essa história não fica aqui: os fragmentos que interessaram tanto a Mersenne, a Malherbe, a Peiresc, a
Sagard, a Rousseau, a Fétis, no curso de séculos, teriam de esperar até 1889 para chegarem à musicologia
brasileira, pelas mãos do bibliófilo Eduardo da Silva Prado. E não apenas isso: nenhum outro registro de
música indígena teria sido feito ou sobreviveu, no Brasil, antes das viagens de Spix e Martius e a publicação
do apêndice musical de Viagem ao Brasil, em torno de 1831.” Fonte:
http://www.hugoribeiro.com.br/biblioteca-digital.php
Acesso em 23/08/2014, às 15h21min.
142

Após tal preâmbulo, é necessário identificar com quais grupos étnicos a música do
período se relaciona. Os relatos apontam para três categorias:
1) Os indígenas. Segundo dados da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o Brasil
detinha cerca de três milhões de índios em 1500, dos quais 02 milhões habitavam a região
litorânea e 01 milhão ocupavam o interior do território. Uma população que foi
sedimentada ao longo de, pelo menos, 11 mil anos (desde 9.500 A.C) 254 e com um número
estimado de 1400 tribos que falavam cerca de 1300 línguas/ dialetos diferentes, muitos dos
quais nem chegamos a conhecer. O relato mais antigo que nos alcançou é o do jesuíta
Fernão Cardim, que apontou para a existência de mais de 90 nações diferentes em 1584
(quando a população litorânea de índios já havia sido reduzida em 90 %, com 200 mil
pessoas). Contudo, os relatos que sobreviveram nos deixam antever com menos
obscuridade apenas as práticas rituais das nações tupinambá e tapuia.
2) Os negros. Se a música indígena despertou o interesse e a curiosidade de
viajantes, missionários e cronistas, o mesmo não se pode dizer da música dos negros
importados para o Brasil como escravos sobretudo a partir da segunda metade do século
XVI, quando o alvará de 25 de março de 1559 destinado ao capitão da Ilha de São Tomé
autorizou o embarque de africanos do Congo para o Brasil, fixando o número de até 120
escravos por engenho e pagando 1/3 dos direitos.
No Brasil, a cultura desses povos foi considerada estranha à comunidade e as
manifestações dessa espécie [sic], via de regra, foram sistematicamente
ignoradas. Os negros, além disso, mais facilmente submetidos ao domínio dos
seus senhores do que os escravos, dependiam de permissões para se reunirem em
suas festas e rituais, as quais nem sempre eram concedidas. Não os havia nos
sertões com liberdade de culto, como entre os indígenas, em várias ocasiões
atentamente observados por viajantes. Refugiaram-se, muitas vezes, em
quilombos, mas de suas práticas nesses locais (especialmente da música), pouco
sabemos, já que não foi possível nem interessante aos homens brancos registrá-
los com detalhes. Escravos africanos começaram a chegar no Brasil já na
primeira metade do século XVI, mas o seu número somente passou a ser
significativo após a instalação do Governo Geral, em 1549. Até o final do século
XVI, a maior parte dos trabalhadores negros que vinha para a colônia era de
origem banto, trazidos de Angola, Congo e Guiné. Os sudaneses não eram ainda
frequentes entre os escravos importados nessa época, começando a chegar em
grande quantidade apenas no século seguinte. Não podemos saber, ao certo, até
que ponto a música desses povos foi reproduzida no continente americano nos

254
A inferência é baseada no fóssil humano conhecido como “Crânio de Luzia”: “Material recuperado na
gruta conhecida como Lapa Vermelha IV [em 1975], durante uma missão de pesquisa franco-brasileira
coordenada pela arqueóloga Annette Laming-Emperaire e com a participação de pesquisadores do Museu
Nacional. Datações deste crânio e do sítio em que foi encontrado sugerem uma antiguidade entre 11 mil e
11.500 anos a partir de datações do C14. Este é o esqueleto mais antigo descoberto nas Américas,
popularmente conhecido como Luzia. Apresenta características peculiares na morfologia craniana, que vêm
sendo interpretadas como evidências de uma migração anterior à ocupação do continente americano por
populações com características morfológicas próximas das populações asiáticas atuais.” Fonte:
http://www.museunacional.ufrj.br/exposicoes/antropologia-biologica/cranio-humano-de-individuo-feminino
Acesso em 23/01/2015, às 16h56min.
143

dois primeiros séculos de colonização e como se relacionou com as novas


condições sociais que encontraram naquele período. (Castagna, 1991, 37-38)

Diante das ínfimas fontes, só resta aos pesquisadores pontuar a lacuna e indicar a
necessidade de se “conhecer melhor a participação dos índios e dos negros na execução da
música religiosa desse período”, perspectiva que poderia abrir “um novo caminho para o
estudo histórico da prática e da função social da música no Brasil colonial” (Holler, 2006,
74). Contudo, é possível identificar indícios de trocas simbólicas (ainda que marcadas pela
submissão dos mais “fracos”) entre matrizes culturais africanas, indígenas e europeias no
Brasil já no século XVII, conforme nos sugere o relato do viajante neerlandês Johan
Nieuhof (1618-1672), que esteve no Brasil entre 1640 e 1649 e deixou notar alguns sinais
de tal fusão em sua obra Memorável Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil (publicada em
1682, em Amsterdam).
3) Os europeus, sobretudo os portugueses, espanhóis, holandeses e franceses, que
aqui praticaram música de caráter religioso (preponderante) e de festas coletivas (um
pouco mais raras):
Em relação à música de raízes históricas europeias, podemos afirmar que a
principal categoria foi a da música de caráter religioso (Missas, Ofícios Divinos,
Procissões, Festas, Autos religiosos, Música devocional, de Catequese, etc.),
seguida pela música de festas coletivas (canções, danças), bem menos frequente.
Mas é necessário considerar que essa música europeia foi praticada em núcleos
administrativos diferentes, como os domínios franceses - França Antártica (1555-
1567) e França Equinocial (1612-1615) - os domínios holandeses - a Vila de
Santos (em 1591), a cidade de Salvador (em 1624), o Brasil Holandês (1630-
1654) - e, principalmente os domínios portugueses (mas espanhóis entre 1580-
1640), diferentemente denominados Terra de Santa Cruz, América Portuguesa,
Terra do Brasil e Brasil, nos primeiros séculos de colonização. (Castagna, 2003,
1)

Também é preciso desvelar onde primordialmente tais grupos desenvolviam suas


práticas culturais. Entre os espaços nos quais atividades musicais foram documentadas e/
ou relatadas por europeus, destacam-se: 1) Os territórios das tribos indígenas; 2) Os
aldeamentos, especialmente aqueles coordenados pelos jesuítas (que nos legaram um
número considerável de textos); 3) Os núcleos urbanos (cidades, vilas, arraiais e
povoados); 4) Os núcleos rurais (sobretudo os engenhos e as regiões de pastagens,
extrativismo, mineração e outros tipos de exploração bandeirante).
Embora haja uma considerável quantidade de estudos sobre aspectos pontuais da
música colonial no Brasil entre os séculos XVI e XVII, não há ainda uma única publicação
que reúna, concatene e relacione criticamente as informações disponíveis nas variadas
fontes acima citadas. O trabalho de maior envergadura, sem dúvida, é o do pesquisador
Paulo Castagna, que além de ter escrito diversos artigos relevantes sobre o tema, ainda
144

levantou e analisou um número colossal de documentos sobre o período em questão em sua


dissertação de mestrado (1991). 255
Castagna cita três tipos de fontes básicas das quais se podem extrair informações
musicais nos dois primeiros séculos pós-descobrimento:
1) A iconografia musical, categoria na qual se inserem pinturas, esculturas,
desenhos, ilustrações em papel, aquarelas, etc.
2) Os documentos oficiais, nos quais se encontram os inventários, testamentos,
certidões, provisões, recibos, contratos, alvarás, patentes, leis, decretos, regimentos,
constituições, entre outros.
3) Os relatos descritivos, textos que apontam para os usos e costumes locais e no
qual se enquadram os célebres livros de viagens (já citados anteriormente); os livros
científicos (concebidos por naturalistas), entre eles o do holandês Willem Piso (1611-1678)
e o do alemão George Marcgraf (1610-1644); as publicações dos historiadores de ofício,
como Pero de Magalhães Gandavo (c. 1540-1579), o padre jesuíta Simão de Vasconcelos
(1597-1671) e Sebastião da Rocha Pita (1660-1738); as obras literárias, destacando-se as
de Bento Teixeira (1560-1618) e as de Gregório de Matos (1636-1696); os relatos dos
missionários (especialmente os dos jesuítas), que nos legaram cartas, ânuas e
quadrimestrais; os relatórios de bandeirantes e sertanistas, dois quais são exemplos o do
padre dominicano espanhol Gaspar de Carvajal (1500-1584) e o do português Gabriel
Soares de Souza (1540-1591), além de textos diversos de autores isolados, tais como
diários de bordo, relações, cartas pessoais, etc.
Diante de tantas janelas ainda abertas e pouco exploradas sobre a música e os seus
personagens nestes dois primeiros séculos pós-descobrimento, o propósito de nossa
investigação será manter o foco apenas sobre os documentos e fontes que citam os
cordofones de cordas dedilhadas. O objetivo não é descrever, identificar ou diferenciar
fisicamente os instrumentos, mas antes reconhecer a quais interesses sociais serviam, em
que ambientes circulavam e nas mãos de quem estavam sendo tocados. Para uma
compreensão mais ampla do panorama geral da música neste ínterim, recomendamos a
leitura de duas pesquisas correlatas: Castagna (1991) e Holler (2006).

3.2 Os cordofones de cordas dedilhadas em Portugal – séculos XV e XVI

255
Toda a produção intelectual e artística de Paulo Castagna está disponibilizada no site do autor, inclusive a
sua dissertação de mestrado. É um material imprescindível para pesquisas desta e de outras naturezas e que
foi concebido por um de nossos mais prolíficos e gabaritados musicólogos:
http://paulocastagna.com/producao/
145

Moço - Que vos praz?


Escudeiro - A viola 256

Antes de detalhar a investigação da documentação, é necessário resgatar as possíveis


correspondências entre os vocábulos que designavam cordofones de cordas dedilhadas na
Península Ibérica na transição da Era Medieval para a Renascentista e que construímos a
partir da análise comparativa dos documentos e dicionários históricos que apresentamos ao
longo do 1º capítulo:
4) Alaúde: barbitus, chelys, chítara (embora menos comum), descante, testudo;
5) Guitarra: descante, fides, fidicula (pequena guitarra), lyra, vihuela, viola;
6) Viola: chitara, chelys (menos comum), descante, fides, fidicula (violinha),
guararápeuva, guitarra, lyra, vihuela.
7) Outros cordofones mencionados: Baldosa, Bandalón, Bandola, Bandora, Canon
meo, Chiterna, Pandora, além do Cistro e suas dezenas de possíveis variantes
(Cistre, Citre, Cistre, Cithre (francês), Cithare ó Chitarra tedesca (italiano), Sistre,
Sistro, Cestro, Sestro, Citra, Cítula).
A remissão é decisiva uma vez que grande parte de tais termos emergirão dos textos
produzidos no (ou sobre) o Brasil ao longo do século XVI. E não somente pelos membros
da Companhia de Jesus, mas também em cartas de navegação, textos literários, relatos de
viajantes e cronistas, entre outros.
Suscitar tais vocábulos é ainda importante para compreendê-los no contexto
específico de Portugal, o berço de nossa herança instrumental e linguística mais imediata e
um lugar no qual a nomenclatura utilizada para designar os cordofones de cordas
dedilhadas também apresentou particularidades que não podem ser desconsideradas, uma
vez que grande parte delas foi incorporada na realidade brasileira a partir dos anos
quinhentos.
Espelhando o que ocorrera na Península Ibérica durante a Idade Média, o ponto de
partida deve considerar que muitas vezes um termo poderia nominar uma série de
instrumentos musicais em Portugal: “pelo menos desde meados do século XV a inícios do
XIX, que o vocábulo Viola é empregue como nome genérico de uma família de
instrumentos de corda com braço [...].” (Morais, 2006, 393) 257

256
(Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira, 1523, 17)
257
Manuel Morais cita ainda uma série de tais instrumentos em seu artigo A Viola de Mão em Portugal:
Cordofones de corda dedilhada (ou palhetada): Violas de mão[...]; Port. viola, violla ou viula, viola de mão;
viola de sete cordas, viola de seis ordens, viola francesa, violão, viola acustica, guitarra; Esp. vihuela,
vihuela de mano, vihuela commun, vihuela de quatro órdenes, vihuela de cinco órdenes, vihuela de siete
146

Mas não é tudo. Vimos no 1º capítulo como, em princípio, os vocábulos alaúde,


guitarra, vihuela e viola poderiam designar, na Europa, cordofones distintos já no início do
século XVI. Contudo, em terras lusas, o embaralhamento terminológico também parece ter
alcançado tais termos. Morato afirma que as violas de mão portuguesas são as “que em
Espanha chamaõ Guitarra” (1762, 89) e Morais pondera que “em alguns documentos
portugueses do século XV (e esporadicamente também nos do início de quinhentos)
aparecem emparelhados os vocábulos guitarra e violla [e ocasionalmente também o
alaúde]” (Ib., 394).
Um dos mais antigos registros a apontar a circulação destes instrumentos em terras
lusas se encontra na Carta Régia de 15 de janeiro de 1442, assinada pela chancelaria de D.
Alfonso V, em Lisboa. No raro documento, que trata sobre o dízimo imposto à madeira
lavrada que entrava e saia de Santarém, há a denúncia de que algumas pessoas estavam
sendo taxadas também pelos alaúdes, guitarras e harpas (além de outros equipamentos) que
entravam e saiam da vila por barcas. O requerente, então, pede que o instrumentário só seja
tributado quando for transportado com finalidade comercial.
E saiba, Senhor, a vossa mercê que per o foral da portagem da dita villa vós
haveis dizima de toda madeira lavrada e por lavrar que fôr e vier em barcas per o
rio, e acontece (‘aqueece’) muitas vezes que alguns, quando vão nas barcas ou
vem para a dita villa, trazem alguns alaúdes e guitarras e harpas (‘arpas’), e
assim também (‘medees’) trazem alguns alguma arca ou escaninho (‘ezcanino’)
em que trazem suas cousas, e os tanoeiros (‘tonoeyros’) que vêm á dita villa
adubar a louça e trazem sua ferramenta; e os vossos rendeiros da dita portagem
lhes levam a dizima das ditas cousas, dizendo que todo é madeira lavrada, e que
hão de haver d'ella dizima, da qual cousa vem escândalo ao vosso povo, e a vós
nem pouco serviço. Praza, Senhor, á vossa mercê mandar que de taes cousas não
levem dizima quando não forem para vender; e em isto. Senhor, nos fareis
mercê. Mandamos que não levem dizima de nenhumas ‘arpas’, alaúdes e
guitarras que algumas pessoas trouverem para si, e não para vender; e isso
mesmo das arcas e escaninhos em que alguns trouverem suas cousas, nem das
ferramentas dos tanoeiros. (Barros, 1922, IV/209) 258

O relato revela que alaúdes, guitarras e mesmo harpas eram usados de tal modo
cotidianamente pelos cidadãos que entravam e saiam de Santarém que taxá-los seria “um
escândalo ao vosso povo”. E mostra ainda que carregá-los como objetos de uso pessoal em
viagens de barco de curta duração era uma prática comum em Portugal ainda na primeira
metade do século XV. É um indício não tão raso de que instrumentos musicais similares
podem ter sido recorrentes também nas grandes navegações portuguesas, inclusive naquela

órdenes, vigüela ou biguela, biguela hordinaria, guitarra, guitarrilla, guitarra de cinco órdenes, guitarra
española; Cat. Viola de mà (?), It. (Napoles) viola, viola a mano (o vero liuto), chitarra; Fra. guiterne,
guiterre, guitere, guitarre; Ingl. gittern, gitteron, guitar; Al. guitare). (2006, 393-4)
258
Carta regia de 15 de janeiro de 1442, dada em Lisboa (Chancell. de D. Alf. V, liv XXIII, fol. 91 v.°; Liv.
X da Estremadura, fol. 33)
147

dirigida por Pedro Álvares Cabral em 1500, uma suposição que investigaremos mais
detalhadamente no próximo item.
Assim, os termos guitarra e alaúde já haviam despontado na documentação
portuguesa quando o vocábulo viola é mencionado pela primeira vez isoladamente. Foi em
uma petição apresentada em 1459 às cortes lisboetas e na qual El Rei proibia que o referido
instrumento fosse tocado entre as nove da noite e o raiar do sol, em virtude dos supostos
desacatos e roubos promovidos nas fazendas pelos violeiros e seus companheiros de
noitada. 259
Ajuntam-se dez homens E levom huma violla E tres e quatro estam tamgendo E
camtando E os outros Entom escallam as cassas E Roubam os homens de suas
fazemdas, E [...] Em virtude deste desacatos, mandou elrei que [...] das nove
horas da noute até manhãa chãa sol saydo fôsse achado com viola ou outro
instrumento de tanger pela cidade, vila ou logar, fôsse prêso e perdesse a viola e
as armas e vestidos que trouxesse, [...]. (Almeida, 1925, III/302-303)

Ainda no reinado de D. Alfonso V (que durou efetivamente de 1448 até o ano de sua
morte, em 1481) 260, poderemos constatar a presença de tangedores de alaúdes nas cortes
portuguesas. Os profissionais eram contratados e pagos pela casa real com o dinheiro
recolhido dos encargos impostos à população e tinham direito a receber moradia ou
pensão, além de vestuário e comida. 261 Porém, não detinham as mesmas regalias dos
oficiais de primeira patente (fidalgos, cavaleiros e escudeiros) e não lhes era permitido
faltar um dia sequer ao trabalho sem a devida licença do rei, sob a pena de comprometer os
proventos integrais do mês.
[...] havia no paço capellães, cantores, médicos, cirurgiões, officiaes d’armas,
trombetas, charamelas, tamborins, tangedores de alaúde, rabecas e outros
officiaes menores. Estes, por um só dia que deixassem de servir na corte sem
licença do rei, perdiam os proventos do mez; e não lhes era applicavel a regra
estabelecida para os fidalgos, cavalleiros e escudeiros, os quaes, não tendo na
côrte officio especial, ganhavam a moradia do mez só com servir quinze dias
[Provisão de 22 de outubro de 1474]. Porém a esta moradia andava junta a

259
Curiosamente, a mesma cena se repetiria com poucas mudanças cerca de quatro séculos depois no Brasil,
mas especificamente no Rio de Janeiro, onde os chorões eram levados em cana se os guardas (“secretas”)
eventualmente descobrissem calos nos dedos daqueles que tocavam pelas noites cariocas no fim do século
XIX.
260
D. Alfonso V (1432-1481) foi o 12º rei de Portugal. Filho de D. Duarte I (a quem sucedeu), foi elevado ao
trono com apenas 06 anos de idade, em 1438, com a regência concedida primeiro à sua mãe, D. Leonor de
Aragão, e depois ao seu tio, D. Pedro, duque de Coimbra. Assumiu efetivamente o comando em 1448 quando
atingiu a maioridade e passou a se concentrar na expansão do reino para o norte da África, ação que o
conferiu o célebre codinome O Africano. Após fracassar na conquista de Castela para o rei Fernando II de
Aragão e regressar derrotado para Portugal em 1477, passaria os últimos anos de sua vida com sintomas de
depressão até, por fim, abdicar ao trono em favor do filho, D. João II, em 1481. Morreria pouco depois, no
mesmo ano, logo após regressar a Sintra (sua cidade natal).
261
“Como os salários das pessoas que pertenciam á casa real, representavam um encargo que a classe
contribuinte é que vinha afinal a supportar, porque todas ellas recebiam moradia ou pensão, além de vestuário
e cevada, o povo requeria a Àffonso V, nas cortes começadas em Coimbra em 1472 e acabadas em Évora no
anno seguinte, que reduzisse ao numero necessário a gente sobeja na corte.” (Barros, 1885, I/581)
148

obrigação, que lhes tornavam effectiva quanto a natureza das relações com
Castella o exigia, de possuírem Cavallo e armas para o serviço militar. 262
(Barros, 1885, I/582)

Guitarras, violas e alaúdes só seriam citados conjuntamente em 11 de dezembro de


1477, no Sínodo Bracarense, quando o bispo D. Luís Pires protagonizou um novo
impedimento para se tocar tais instrumentos, agora na cidade de Braga. Os três vocábulos
são dispostos seguidamente e embora não seja possível precisar se faziam referência a
cordofones similares ou distintos, o documento revela que esta terminologia já era
empregada em Portugal concomitantemente desde, pelo menos, a segunda metade do
século XV:
[...] mandamos e estreitamente defendemos, sub penna descuminhom assy
homens como molheres, eclesiásticos e seculares que por conprir sua devaçon
quiserem teer vigília em alguua egreja ou moesteiro, capela ou irmida, non seja
ousado fazer nem conssentir, nem dar lugar que se hy façam jogos, momos,
cantigas nem bailhos nem se vistam os homens em vistiduras de molheres nem
molheres em vestiduras de homens, nem tangam sinos nem canpanas nem
orgoons nem alaudes, guitarras, viollas, pandeiros nem outro nem huum
estormento nem façam outras desonestidades pellas quaaes muitas vezes
provocam e fazem viir a ira de Deus sobre sy e sobre a terra. [...] 263 [grifos
nossos]

É importante observar que a censura é destinada a grupos categóricos bem amplos:


homens e mulheres, eclesiásticos e seculares. É um fato que nos faz acreditar que as
práticas que envolviam tais instrumentos (não somente o ato de tocar, mas também sua
inserção em jogos, bailes, cantigas, etc) eram disseminadas livremente entre personagens e
ambientes sociais diversos. Não menos destacável é constatar que a reprimenda moral em
torno dos cordofones se justifica através da coerção religiosa (“desonestidades que
provocam a ira de Deus”), algo que também se repetirá no Brasil décadas depois, a partir
da segunda metade do século XVI.
Mas notícias de músicos pagos em terras lusas não se limitavam às cortes. Um
regimento da câmara de Coimbra datado em 1517, por exemplo, revela-nos que
instrumentistas paramentados foram remunerados pelo desfile realizado em meio à
clerezia, na procissão do Corpo de Deus. Aos tangedores de órgãos, 200 réis. Aos de viola

262
“Avisos do mordomo d'el-rei de 10 de março de 1478 e 8 de maio de 1480, nos Ined., pag. 510 e 532.”
(Ib.)
263
Constituiçom XXVI.a: Que os que fazem vigílias nas egrejas non façam jogos nem cantem nem bailhem.
Biblioteca Pública de Braga, Ms. 871, Sínodo de D. Luís Pires, Bragam 11 de dezembro de 1477. Documento
transcrito originalmente por Garcia (1982, 99) e reproduzido também por Morais (2006, 396). Este último
afirma ainda que textos semelhantes são encontrados no Sínodo de D. Diogo de Sousa, Braga, 15 de
dezembro de 1505, constituição 48 (Garcia, 179) e no Sínodo de D. Diogo de Sousa, Porto, 24 de Agosto de
1496, constituição 55 (Garcia, 398-399).
149

e arrabis, 50 réis. O registro é transcrito por Henrique da Gama Barros, no 1º volume de


sua História da administração pública em Portugal:
As regateiras e vendedeiras do pescado e da fructa lá vão correndo pela procissão
com as duas pelas, ao som de musica 264, não juntas, mas cada uma para seu
lado. [...]
Agora principia a clerezia. No meio d'ella vão tocando uns órgãos, e é a cidade
que paga duzentos réis para jantar ao tangedor d'elles e aos quatro homens que os
levam. Fecha a procissão a Gaiola, junto da qual se vêem quatro anjos com boas
luvas e cocares, e sapatos brancos, tangendo com violas e arrabis. A despeza com
os anjos está também a cargo da cidade, que paga a cada um cincoenta réis.
(Barros, 1885, I/530-531)

Os dados são relevantes em vários sentidos: 1) Mostram atividades musicais pagas


fora dos limites das cortes e das igrejas, ainda que a procissão na rua tenha sido de franca
inclinação religiosa; 2) Sugere que executantes de órgão eram melhores posicionados
socialmente do que os de viola (afinal, aparentemente, receberam três vezes mais pelo
mesmo serviço); 3) Revela uma conexão entre as práticas musicais que foram
desenvolvidas no Brasil já na segunda metade do século XVI, quando a presença de
instrumentos musicais (inclusive cordofones) foi muito comum em procissões de caráter
religioso.
Já em 1549 (ano da chegada dos jesuítas no Brasil), por exemplo, uma carta do padre
Manuel da Nóbrega descreve uma “procissão com grande música, a que respondiam as
trombetas” e na qual “ficaram os índios espantados de tal maneira, que depois pediram ao
Padre [Juan de Azpicuelta] Navarro que lhes cantasse como fazia na procissão.” (Nóbrega,
1549, 129). 265 Entretanto, uma diferença substancial deve ser pontuada: no Brasil, não há
registros de remuneração para tais atividades musicais (que eram realizadas, de forma
geral, pelos meninos órfãos de Lisboa trazidos para cá, pequenos índios e estudantes outros
dos colégios e casas jesuíticas). Provavelmente, tudo foi debitado na conta da fé no caso
brasileiro.
Voltando aos cordofones no contexto luso, um dos pontos mais decisivos é
reconhecer que, especificamente em Portugal, havia uma paridade aceita entre os
vocábulos viola e guitarra identificando um único instrumento musical de cordas

264
Barros esclarece que “a música, do que se fala no regimento, é sempre ou tamboril ou gaita”. (1885,
I/530)
265
Carta do Padre Manoel da Nóbrega ao Padre Simão Rodrigues. Bahia, 9 de agosto de 1549. Original na
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1-5, 2, 38, ff. 3-5. Publicado originalmente em Monumenta Brasiliae,
vol. 1, 118-132. Transcrito ainda em: (Castagna, 1991, II/19) e (Holler, 2006, II/61). São dezenas de relatos
similares na documentação jesuítica produzida a partir da chegada ao Brasil. Aqueles que envolvem
cordofones de cordas dedilhadas serão analisados na sequência do capítulo.
150

dedilhadas. Morais não somente ratifica tal entendimento, como também descreve as suas
possíveis características físicas:
Devido ao bilinguismo praticado na corte portuguesa desde os inícios de
Quinhentos, a viola é, ocasionalmente, a partir de meados deste século também
chamada guitarra, se bem que o vocábulo mais usado para a designar continue a
ser o primeiro. Assim, os termos viola (ou violla) e muito mais raramente
guitarra, são indistintamente empregues para designar o mesmo tipo de
instrumento músico: um cordofone de mão de corda dedilhada (ou
eventualmente palhetada), [...] de caixa em forma de oito e braço longo,
pertencente ao grupo das violas de mão. (2006, 396)

Tal “bilinguismo” entre os termos viola e guitarra a partir de meados do século XVI
pode ser facilmente demonstrado na literatura portuguesa do período, especialmente
através dos versos de Gil Vicente (c.1466 - c.1536) e Luis de Camões (1524-1580).
O primeiro deles, Gil Vicente, foi um poeta e dramaturgo oriundo da cidade
portuguesa de Guimarães. Sua produção marca um momento de transição entre a Idade
Média e o Renascimento e é delineada sobretudo por autos e farsas, características que
somadas o renderam o título de um dos pioneiros do teatro português.
Sua obra de maior destaque é a farsa de Inês Pereira, “representada ao muito alto e
mui poderoso rei D. João, o terceiro do nome em Portugal, no seu Convento de Tomar, era
do Senhor de MDXXIII [1723]” e que foi baseada no mote “mais quero asno que me leve
que cavalo que me derrube”. (Vicente, 1523, 2) 266 Contudo, especificamente nesta obra, o
bilinguismo apontado por Morais ainda não encontra ressonância. Nos diálogos
protagonizados pelos 11 personagens 267, o vocábulo viola é mencionado 07 vezes
enquanto guitarra não consta nem uma vez sequer no texto original.
Escudeiro:
Oh que boas vozes tem
Esta viola aqui!
Deixa-me casar a mi,
Depois eu te farei bem.
(Vicente, 1523, 18) 268

266
Há uma edição moderna disponível online pela Universidade da Amazônia (UNAMA) no seguinte link:
http://docente.ifrn.edu.br/paulomartins/livros-classicos-de-literatura/a-farsa-de-ines-pereira-de-gil-vicente.-
pdf
Acesso em 26/01/2015, às 13h54min.
267
São eles: Inês Pereira; sua Mãe; Lianor Vaz; Pêro Marques; os Judeus Latão e Vidal; um Escudeiro com
um seu Moço; um Ermitão; Luzia e Fernando.
268
Eis os outros 06 exemplos aqui transcritos: 1) [...] Vidal - Vós, amor, quereis marido/ Mui discreto, e de
viola? Latão - Esta moça não é tola,/ Que quer casar per sentido [...]. (Ib,, 16); 2) Vidal - O marido que
quereis,/ De viola e dessa sorte,/ Não no há senão na corte/ Que cá não no achareis. (Ib., 14); 3) Vem o
Escudeiro, com seu Moço, que lhe traz uma viola, e diz, falando só: Escudeiro: Se esta senhora é tal/ Como
os Judeus ma gabaram/ Certo os anjos a pintaram,/ E não pode ser i al. (Ib., 14-15); 4) Escudeiro: [...] Sei
bem ler / E muito bem escrever / E bom jogador de bola,/ E quanto a tanger viola,/ Logo me vereis tanger /
Moço, que estais lá olhando?(Ib., 17); 5) Moço - Que vos praz? Escudeiro - A viola. (Ib., 17); Inês: Vá-se
muitieramá!/ Que sempre disse e direi:/ Mãe, eu me não casarei/ Senão com homem discreto,/ E assi vo-lo
151

Aqui, vale sublinhar uma rápida menção para a expressão “de boas vozes”, que se
referia à qualidade sonora destacável do instrumento musical em questão. Embora tenha
caído em desuso a partir do século XX, foi uma sentença muito comum nos relatos sobre
os cordofones no Brasil até meados do século XIX, conforme atesta anúncio de venda no
Diário do Rio de Janeiro de 29 de janeiro de 1857: “Violão. Vende-se um com muito boas
vozes, em bom estado, por 10$000; na rua Formosa n. 103.” 269
Voltando à produção de Gil Vicente, iremos observar a paridade entre os vocábulos
guitarra e viola somente na farsa Juiz da Beira (1525), definida pelo próprio autor nos
seguintes termos:
Esta farsa que se adiante segue é o seu argumento desta maneira: diz o autor que
este Pero Marques como foi casado com Inês Pereira se foram morar onde ele
tinha sua fazenda, que era lá na Beira onde o fizeram juiz. E porque dava algũas
sentenças disformes por ser homem simpres, foi chamado à corte e mandaram-
lhe que fizesse ũa audiência diante del rei. Foi representado ao muito nobre e
cristianíssimo rei dom João, o terceiro em Portugal deste nome, em Almeirim, na
era do Senhor de 1525. 270

Ao longo dos diálogos realizados entre o porteiro, o ferreiro, o sapateiro (calçado), o


moço, o escudeiro, o bailador, o preguiçoso, o amador, o brigoso, além de Ana e do
próprio juiz (Pero Marques), a viola é mencionada 03 vezes enquanto a guitarra apenas 01
vez. Tal fato ratifica o entendimento de que, em Portugal, os dois vocábulos eram tomados
como sinônimos já na transição da Era Medieval para a Renascentista, mas com o uso
preponderante do termo viola. O único excerto onde a guitarra é mencionada encontra-se
na passagem:
Juiz:
[...] Dai dai ò demo a cancela
e quem a trougue da feira
eu nam saberei aqui ser
dou eu já ò fogo a guitarra
quem tinha esta zanguizarra?[...]
(Ib., 221c)

Em contrapartida, o vocábulo viola foi o instrumento musical mais recorrente na


produção de Gil Vicente (citado 10 vezes em seus autos). Os exemplos mais significativos

prometo/ Ou antes o deixarei./ Que seja homem mal feito,/ Feio, pobre, sem feição,/ Como tiver discrição,/
Não lhe quero mais proveito./ E saiba tanger viola,/ E coma eu pão e cebola./ Sequer uma cantiguinha!/
Discreto, feito em farinha,/ Porque isto me degola. Mãe: Sempre tu hás de bailar/ E sempre ele há-de
tanger?/ Se não tiveres que comer / O tanger te há-de fartar? (Ib., 12)
269
(Diário do Rio de Janeiro, Edição de 29 de janeiro de 1857, p. 3)
270
Texto original disponibilizado integralmente pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no
seguinte link: http://ww3.fl.ul.pt/centros_invst/teatro/pagina/Publicacoes/Pecas/Textos_GV/juiz_da_beira.pdf
Acesso em 09/11/2014, às 19h34min.
152

na farsa Juiz da Beira se encontram no diálogo protagonizado pelos personagens Moço e


Escudeiro:
Moço:
[...] Senhor juiz há seis anos
que estou co este escudeiro
já ‘gora fora barbeiro
se nam foram seus enganos.
Ao tempo que vim par’ele
estava mais melhorado
mas agora mal pecado
mau pesar é feito dele
e da viola e do cavalo
e da cama e do vestido
e do meu tempo servido
e doutras cousas que calo.
(Ib., 224a-b)

Indagação que, por sua vez, seria respondida pelo acusado nos seguintes termos:

Escudeiro:
Vedes-m’aqui sem a moura
trosquiado sem tisoura
vedes-m’aqui sem cavalo
sem sela sem manjadoura
e sem galinha nem galo.
Nam praza a Deos co a viola
que assi se tornou mourisca 271
e eu fico à carraquisca
en los campos verdes sola.
Porém prazendo a Jesu Cristo
quero-m’ir fazer sobr’isto
dous pares de trovezinhas
ou comer por essas vinhas
pois o demo me fez isto.
(Ib. 224c) 272

Já na produção de Luiz Vaz de Camões (c. 1524-1580), autor do épico poema Os


Lusíadas 273 e considerado quase unanimemente como o maior nome da literatura
portuguesa, o bilinguismo entre os termos guitarra e viola também é observável. Em um
Auto chamado de Filodemo (1587), composto durante sua permanência na Índia e
dedicado ao vice-rei Dom Francisco Barreto, a guitarra é mencionada 02 vezes enquanto a

271
Curioso notar como o personagem Escudeiro (cujas palavras denunciam a procedência moura) pontua que
a viola, uma vez abandonada por Deus, tornou-se mourisca, lembrando uma das sete denominações (guitarra
mourisca) utilizadas por Juan Ruiz para descrever cordofones de cordas dedilhadas dois séculos antes, no
Libro de Buen Amor.
272
O último exemplo onde consta o vocábulo viola em Juiz da Beira se encontra no seguinte excerto: [...]
Ana: Que vos dixe eu então? Escudeiro: [...] Senhora eu vo-lo haverei./ Vou e vendo ũa viola/ e um gibão de
fustão/ e botas de cordovão/ que tinham inda boa sola/ que durariam um Verão. [...] (Ib, 223c)
273
Escrito em 1572, o poema épico é dividido em dez cantos repartidos em oitavas. A epopeia narra, de
forma geral, as guerras, as navegações e os feitos portugueses.
153

viola dá o ar da graça em 04 oportunidades. 274 Em sua passagem mais reveladora, esta


última aparece como acompanhante das cantigas descritas pelo personagem “seu moço”:
[...] A viola, Senhor, vem
Sem primas nem derradeiras.
Mas sabe o que lhe convém?
Se quer, Senhor, tanger bem,
Há de haver mister terceiras.

E se estas cantigas vossas


Não forem pera escutar,
E quiserdes espirar,
Há mister cordas mais grossas,
Porque não possam quebrar. [...]
(Camões, 1587, 6) 275

A menção às cordas da viola ultrapassa a conotação musical e revela, na verdade, um


sinuoso jogo entre as palavras, conforme nos esclarece Branco:
Lidos sem malícia, estes versos dizem simplesmente que a viola não traz as
cordas dos sons mais agudos (as ‘primas’) e dos mais graves; e que, para tocar a
preceito, são precisas as das alturas médias, nem graves nem agudas. A intenção
é porém outra, posta a claro pelas ‘terceiras’. Porque assim era costume chamar
as alcoviteiras, indispensáveis intermediárias dos amores escondidos. É evidente
que nada obrigava Camões a identificar rigorosamente os petrechos musicais
envolvidos nos seus poemas e autos, e muito menos numa época em que o
instrumental ainda era tão deixado ao sabor das disponibilidades de
circunstância. Por isto mesmo, o derivar com primas, terceiras e derradeiras pode
talvez ser entendido como sinal de que Camões tivesse o conhecimento prático
da execução de instrumentos de corda que convinha aos poetas e escudeiros do
seu tempo, para acompanhamento de versos cantados por eles mesmos ou por
outrem. Tal habilidade era extremamente apreciada, tanto nos palácios dos
fidalgos, pagadores de bons serviços, como nos locais de menor coturno onde se
juntavam as rodas de amigos. (1979, 21)

De acordo com tais dados, parece certo que Camões detinha mesmo conhecimento
técnico sobre alguns cordofones de cordas dedilhadas, já que cita as cordas primas,
derradeiras e terceiras em um interessante trocadilho jocoso. Além disso, o domínio de
instrumentos e habilidades musicais era uma prática que se esperava dos poetas

274
Branco relativiza a questão: “Porém, o leitor nunca fica a saber se a viola é de arco se de corda
dedilhada.” (1979, 20). Contudo, é mais provável que a remissão de Camões aponte para a viola de cordas
dedilhadas não somente pela descrição das cordas, mas também pela expressão típica (“viola na mão”) com a
qual o personagem Filodemo se refere ao instrumento: “Vou, porque vos confesso que neste aso há muita
dúvida entre os Doutores: assi que vos conto que, estando esta noite com a viola na mão, bem trinta ou
quarenta léguas pelo sertão dentro de um pensamento, senso quando me tomou à treição Solina; e antre
muitas palavras que tivemos me descobriu que a senhora Dionisa se levantara da cama por me ouvir, e que
estivera pela greta da porta espreitando quase hora e meia.” (Camões, 1587, 18)
275
Eis aqui a transcrição das outras três passagens nas quais o vocábulo viola aparece: 1) “Vem o
[personagem] moço e traz a viola.” (Ib. 4); 2) “Filodemo: [...] assi que vos conto que, estando esta noite com
a viola na mão, bem trinta ou quarenta léguas pelo sertão dentro de um pensamento [...]”. (Ib., 18); 3)
“Filodemo: Traze me a viola cá.” (Ib., 5). Há uma edição moderna disponível online pela Universidade da
Amazônia (UNAMA) no seguinte link:
http://www.portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/leit_online/luis_c1.pdf
Acesso em 28/01/2014, às 17h34min.
154

portugueses do período (reverberando ainda a herança deixada por jograis e trovadores),


convertendo-se em uma competência aspirada e, por isso mesmo, comum a quase todos
eles.
A suposição ganha contornos ainda mais nítidos quando as guitarras entram em cena
no Auto de Filodemo. E não somente por demonstrar que Camões estava a par do
bilinguismo terminológico já sublinhado, mas também por fazer alusão a outro termo
idiomático referente à afinação do instrumento:
Vilardo: Vossas mercês vêm ao próprio: boa seja a vinda. As guitarras vêm
temperadas?
Amigo: Tudo vem como cumpre: mandai vigiar a Justiça entretanto.
Vilardo: Ora sus: fazei como se temperásseis cabeça de pescada com seu fígado
e bucho, e canada e meia, que nunca meu Pai fez tamanho gasto na sua Missa
nova.
Neste passo se dá a música com todos quatro, um tange guitarra, outro pentem,
e outro telhinha, e outro canta cantigas muito velhas, e no milhor, diz Vilardo.
276

(Camões, 1578, 63) 277

Todavia, para o nosso estudo, o mais decisivo é constatar que recebemos esta
paridade como herança no Brasil, conforme nos revelam as poesias de Gregório de Matos
(1636-1695) 278, o Boca de Inferno. Nelas, os termos viola e guitarra são usados
indistintamente fazendo referência a um único cordofone, conforme veremos mais
detalhadamente no 4º capítulo.
Assim fomos caminhando
sobre os dous cavalos áscuas
alegres como uas páscoas,
ora rindo, ora zombando:
eu que estava perguntando
pela viola, ou rabil,

276
Segundo Branco, “tocar telhinha consistia em fazer entrechocar pedaços de louça ou de telhas, um pouco
à maneira das castanholas. Quanto ao pente(m), é provável que fosse mesmo um pente, com uma superfície
vibrátil justaposta à dentadura, que o executante fazia soar com a boca, tal como se vê numa das gravuras de
Arnold van Westerhout, sob a designação de ‘pettine’. A menos que se tratasse de conchas de vieira usadas
como, segundo Ernesto Veiga de Oliveira, ainda o são (ou eram há poucos anos) em muitas regiões de
Portugal.” (1979, 20)
277
O vocábulo guitarra volta a ser mencionado na produção de Camões nas Trovas conhecidas como
Disparates, versos escritos durante a sua temporada na Índia: “Õ vós, quem quer que me ledes,/ que haveis
de ser avisado,/ que dizeis ao namorado/ que caça vento com redes?/ Jura por vida da Dama,/ fala consigo na
cama, passa de noite, e escarra;/ por falsete na guitarra/ põe sempre: viva quem ama,/ porque calça a seu
propósito.” (Camões, 1815, IV/225)
278
Como as fontes divergem significativamente em torno das datas de nascimento e morte do poeta,
recorremos ao site da Academia Brasileira de Letras, cujas informações são baseadas nas mais recentes
pesquisas sobre o tema: “Gregório de Matos Guerra nasceu na então capital do Brasil, Salvador, BA, em 20
de dezembro de 1636, numa época de grande efervescência social, e faleceu no Recife, PE, pelas mais
recentes pesquisas, em 1695, embora a data tradicionalmente aceita fosse a de 1696. É o patrono da cadeira n.
16 (da Academia Brasileira de Letras), por escolha do fundador Araripe Júnior.” Fonte:
http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=873&sid=190
Acesso em 02/11/14, às 20h47min.
155

quando ouvimos bradar Gil,


que recostado à guitarra
garganteava a bandarra
letrilhas de mil em mil.
(Matos in Peixoto, 1943, I/310-311)
Enquanto o poeta perguntava pela inseparável viola, é surpreendido pelo brado do
amigo Gil garganteando letrilhas 279 recostado à guitarra. Do relato, aparentemente
despretensioso, desponta o detalhe revelador: Gregório cita, em um mesmo poema, os dois
vocábulos sem distingui-los, a par do que ocorrera um século antes com Gil Vicente e Luis
de Camões na literatura portuguesa.
Devemos guardar esta informação porque o reconhecimento do bilinguismo será
decisivo para compreender as fontes a partir do início do século XVII, quando ambos os
vocábulos começam a polarizar os registros na documentação levantada (ao longo do
século XVI, prevaleceu o embaralhamento terminológico em vários idiomas). Todavia,
seja nominado por viola ou guitarra, o que sobressalta dos documentos e registros literários
é a enorme popularidade que este cordofone de cordas dedilhadas havia alcançado em
Portugal a partir de meados do século XV e ainda mais especialmente no decorrer dos anos
quinhentos.
O mais emblemático vestígio a sugerir a dimensão de tal difusão é, sem dúvida, o
relato de Philippe de Caverel (1555-1636), um religioso de Saint Vaast (França) que
integrou a caravana papal que passou por Portugal em 1582. Escrevendo sobre o panorama
musical que encontrou em terras lusas, o monge francês nos legou este precioso relato:
Os mais educados usam a guitarra: eles também conhecem o cistre, a harpa, o
alaúde, a espineta e o orgão, mas não são tão comuns. De todos, a que toca
admiravelmente bem, é uma certa religiosa nas Annonciades de Lisbonne,
misturando sua voz natural, bem afinada e altiva, com a harmonia dos
instrumentos, durante o oficio do vinho, comandado pelo apóstolo: Sicut
exhibuistis, membra vestra servire iniquitati, ità, etc. Conta-se, para mostrar que
os portugueses eram grandes amantes da guitarra, que foram achados os restos
fúnebres do rei Sebastião do Portugal, depois da derrota contra o rei de Fez e
Marroco, e junto aos restos, mais ou menos 10 000 violões, fato incrível, mas
que não foi contestado, já que os portugueses embarcando costumavam tocar
esse refrão : Os Castelhanos matam os touros, os Portugueses matam os Mouros.
(Caverel, 1860, 341-342) 280

279
Ao citar esta passagem, Mário de Andrade esclarece: “Pequena composição poética, geralmente em
quadras, para ser cantada, originalmente na Espanha e difundida em Portugal” (Andrade, 1989, 283).
280
Tradução livre de : […] Les plus polis se servant de la guitere: le cistre, la harpe, le luth, l’espinette et les
orgues leurs sont cogneuz, bien que non si communément. Mais de tous lesquelz jouoint admirablements bien
certaine religieuse aux Annonciades de Lisbonne, mariant sa voix naturelle, bien organisée et haultaine,
avec l’harmonie des instrumens, en l’office divin des jours plus solemnels, practiquant le commandement de
l’Apostre: Sicut exhibuistis, membra vestra servire iniquitati, ità, etc. L’on conte, pour monstrer que les
Portugais son très grands amateurs de leurs guiteres, qu’il a esté trouvé ès despouilles du champ du roy
Sébastien, de Portugal, après la route, en laquelle il fut deffait par le roy de Fez et de Maroc, environ dix
mille guiteres, chose incroiable, mais à laquelle aucuns donnent couleur, parce que les Portugais
156

O autor nos oferece algumas informações relevantes: primeiro, que a guitarra esteve
nas mãos dos “mais educados”, um relato que contraria o mito de que tais cordofones se
limitavam a preencher os anseios da plebe e detinham um caráter essencialmente popular.
E reitera tal paradigma quando situa o instrumento dentro de uma cerimônia religiosa (o
ofício do vinho) da qual participavam personagens com alto grau de formação (uma freira
e um apóstolo).
Depois, ratifica a condição da guitarra como acompanhante de cantigas profanas e
religiosas ao colocá-la empunhada por certa religiosa que cantava e tocava
“admiravelmente bem”. Paralelamente, é ainda um indício de que mulheres instrumentistas
foram muito mais comuns em Portugal (e no Brasil) do que os relatos que sobreviveram
(predominantemente masculinos) deixam transparecer.
Segue nos informando que, apesar de não tão comuns, os portugueses também
conheciam outros cordofones de cordas dedilhadas, citando nominalmente o cistre, a harpa
e o alaúde. Ora, como vimos no primeiro capítulo, cistre foi um dos vocábulos
correspondentes para cithara, que Vieira classificou como “uma espécie de guitarra”
(1899, 145). Se assim for, Caverel teria identificado, em Portugal, três diferentes
instrumentos musicais cujas práticas seriam, direta ou indiretamente, relacionadas ao
futuro violão: o cistre, o alaúde e a própria guitarra.
Contudo, a informação mais decisiva anotada por Caverel diz respeito a este último
instrumento. O autor cita nada menos que dez mil guitarras entre os escombros dos
portugueses derrotados na batalha de Alcácer Quibir, travada entre os comandados do
jovem monarca português D. Sebastião e os exércitos mouros dirigidos pelo rei Mulei
Abde Almélique e o destronado Mulei Mohâmede. A guerra ocorreu em uma campina no
Marrocos, a 04 de agosto de 1578.
Desde então, esta lenda dos números tem sido amplamente reproduzida e foi
naturalizada não somente como uma das derrotas imperiais mais doídas da história
lusitana, mas também como uma franca demonstração da predileção dos portugueses pelos
cordofones de cordas dedilhadas.
O terreno era plano, limitado por um rio cujas águas talvez tenham subido por
causa de uma tempestade de verão. No campo dos cristãos havia dez mil
portugueses, mercenários alemães e italianos, dois mil espanhóis, um inglês
católico e uma tropa de mouros comandada por um jovem sultão. No campo
oposto, um velho sultão defendia seu reino contra o invasor, um rei de vinte e
quatro anos que apoiava seu adversário. Vinte mil homens de um lado, trinta

s’embarquans jouient ordinairement ce refrain: Los casteillanos mactan los toros, los Portugaios mactan los
Moros. [...] (Caverel, 1860, 341-342)
157

mil do outro. Ao cair da noite, jaziam três soberanos. O velho, de uma crise
cardíaca; seu rival, afogado. O terceiro estava irreconhecível, mas testemunhas
juraram que eram dele aquele corpo ensanguentado e aquela cabeça sem nariz.
Os dez mil portugueses tinham perdido seu rei. [...] Quando o sol se ergueu
sobre o campo de batalha, dez mil guitarras permaneceram na areia,
abandonadas em Alcacer-Quibir. (Clément, 2012, 13)

Trata-se claramente de uma metáfora. Mas se a quantidade de cordofones é


aparentemente fantasiosa, não deixa de evocar, de fato, a relação íntima e madura do povo
português com a viola/ guitarra já ao longo do século XVI. Uma proximidade que é
possível comprovar com dados mais realistas a partir de outras fontes.
Talvez a mais relevante delas seja o Regimento de Violeiros portugueses, presente
no capítulo XLI do Livro dos Regimentos dos oficiais mecânicos da mui excelente e
sempre leal cidade de Lisboa, documento escrito/ reformado pelo licenciado Duarte Nunez
em 1572, sob os auspícios e ordens do senado da cidade.
O documento conta que a cada novo mês de janeiro, os oficiais responsáveis pelo
ofício de violeiros deveriam se reunir em uma casa determinada por eles para eleger dois
homens que, ao longo daquele ano, iriam servir como juízes e examinadores da profissão,
além de um escrivão para acompanhá-los e registrar os trabalhos. Uma vez eleitos e
juramentados pela Câmara da cidade, só poderiam voltar a ocupar os mesmos cargos
passados três anos após o fim de seus respectivos mandatos.
O objetivo era claro: qualquer pessoa que desejasse abrir uma tenda (oficina) de
fabricação de instrumentos musicais em Lisboa deveria ser primeiro (e necessariamente)
aprovado no exame dos juízes. Para a realização das provas, cobrava-se tanto dos nativos
(300 réis) quanto dos estrangeiros (600 réis) uma taxa destinada a cobrir os gastos do
ofício (dois terços do valor) e o pagamento dos examinadores (um terço).
Quem se aventurasse, contudo, a abrir uma tenda sem a concessão do direito, poderia
ser preso por 15 dias e ainda ser multado em 2 mil réis (metade para obras da cidade e
metade para o responsável pela acusação, regra de praxe nas multas). No caso de
reprovações, novos exames poderiam ser feitos desde que respeitado o interstício de seis
meses (juízes que não respeitassem tal regra e antecipassem as provas também eram
taxados com o mesmo valor). Uma vez aprovados, ainda assim os construtores (oficiais)
estariam subjugados às visitas de avaliação e eventuais convocações de seus julgadores
durante todos os meses do ano em que a licença vigorava.
A propósito, as regras para os examinadores não eram menos rigorosas: não
poderiam dirimir provas isoladamente (sempre em dupla); eram impedidos de julgar filhos,
parentes, cunhados ou criados, sob pena de invalidar o exame e receber multa de 2 mil réis;
158

tinham que visitar as tendas a cada 30 dias para avaliar os instrumentos musicais (que se
não estivessem de acordo as exigências, deveriam ser levados à Câmara e o respectivo
construtor ser castigado); e se por ventura favorecessem “por peita, qualquer respeito ou
malícia” um candidato que não tivesse condições de ser aprovado, pagariam multa de 4 mil
réis e ainda veriam o sol nascer quadrado por 30 dias.
O regimento também impunha regras de ética e boa vizinhança aos seus oficiais: ao
construtor não era permitido receber em sua oficina aprendiz ou obreiro já abrigado por
outro colega de profissão. Tampouco deveria lhe dirigir a palavra ou lhe mandar recados
por outrem até que se cumprisse integralmente o tempo de obrigação com o seu amo
primeiro. Pena de 2 mil réis para os que não respeitassem tal regra.
Segundo Morais, as exigências eram efetivamente cumpridas e o controle
peremptório teria sido um dos responsáveis diretos pelo alto nível de fabricação das violas
de mão portuguesas nesta época:
Este controlo de qualidade no fabrico dos cordofones empregues em Portugal
neste período era levado a efeito regularmente pelos examinadores, por vezes
mesmo acompanhado de um almotacé. Esta vigilância quase constante no fabrico
destes instrumentos e do material empregue, era feita, como hoje se diz, em
defesa do consumidor. Deste modo se contribuiu para o alto nível na feitura das
violas de mão portuguesas que se conhecem deste período. (2006, 408)

Mas quais, enfim, eram os itens exigidos na avaliação do Regimento de Violeiros? A


resposta se encontra no quarto item do documento, transcrito integralmente a seguir:
[p. 157v] 4. E o offiçial do dito offiçio que tenda houver de ter faraa huma viola
de seis ordens de costilhas de pao preto ou vermelho laurada de fogo muito bem
moldada e laurada tampaõ e fundo de duas metades-ss- junta pelo meo muito
bem feita e marchetada com hum marchete de oito e outro de quatro muito bem
feitos e pelo pescoço arriba levaraõ hum rotulo ou huma trena com humas
encaixaduras com seus remates e seraa grudada com grude de pexe fundo e
tampaõ, e sera forrada per dentro com forros de panno. 281
Item faraa hum laço de talha fundo ou raso muito bem feito.
Item regrara muito bem a dita viola e a limpara e per esta maneira seraa acabada.
Item encordoara a dita viola muito bem segundo pertençer ao tamanho della, e a
apontara, e afinara de maneira que possaõ nella tanger.
[p. 158] Item faraa hum taboleiro de xadres e tavolas acostumado muito bem
desempenado que seia para passar com as casas do taboleiro muito bem
assentadas.
Item faraa huma arpa do tamanho que quiserem bem laurada e bem junta e bem
grudada com grude de pexe e de boom compasso das cordas que naõ vaõ humas
mais largas que outras.

281
No item 12 do mesmo regimento, as exigências em relação à viola de seis ordens são complementadas:
“12. Item mandaõ que os violeiros que tenda teverem façaõ as violas de seis ordens de duas costilhas. E seiaõ
forradas com pioñs ou lenços. E os laços dellas de talha seiaõ de folha. E se os quiserem fazer no tampão
seiaõ forradas de purgaminho.” (f. 158)
159

Item faraa huma viola darco tipre ou contrabaxa qual quiserem laurada de
fogo e do tampaõ cavado de muito boa grossura toda igoal e da regra que venha
conforme ao cavalete que naõ seia muito alto nem muito baixo. 282

O texto indica não somente quais instrumentos musicais precisavam ser


confeccionados (uma viola de seis ordens, uma harpa e uma viola de arco), mas também
determinava as características e os materiais básicos que deveriam ser utilizados em sua
construção. No caso da viola de seis ordens, por exemplo, a madeira das duas costilhas
teria que ser de pau preto ou vermelho, o fundo da caixa em duas metades, o grude de
peixe era a cola exigida para juntar as partes, além das várias indicações de decoração e
acabamento prescritas. Não obstante, o luthier ainda se responsabilizava por regrar,
desempenar, limpar, encordoar e afinar a viola “de maneira que possam nela tanger”.
A propósito, a afinação e o encordoamento eram tão prezados que havia um capítulo
específico (XLII) para regrar a sua produção no livro dos oficiais mecânicos de Lisboa. O
documento, subescrito em 01 de maio de 1615 por Fernão Borges, intitulava-se Regimento
dos que fazem cordas de viola 283 e tinha um conteúdo de multas e recomendações muito
próximo ao contido no Regimento dos Violeiros.
Dentre as exigências, a principal se referia à matéria-prima utilizada na construção:
era intermitentemente proibido usar fios de ovelhas, cabras ou bodes, considerados “falsos
e enganosos” (Ib., 161v). Apenas os fios de carneiros eram permitidos para cordas grossas
ou delgadas, estando sujeitos à multa de mil réis os que não cumprissem a determinação.
284 O artesão deveria estar apto a produzir o encordoamento de instrumentos musicais

282
Livro do Regimento dos officiaes mecanicos da mui excelente e semp leal Cidade de lixa reformados per
ordeñça do Illustrissimo Senado della pllo Ldo Drte nunez do liam. Ano. MDLxxij, P-Lisboa, Arquivo
Histórico da Câmara Municipal de Lisboa, cod. 35, cap. XLI, ff. 157-159. O livro integral foi publicado por
(Correia, 1926) e o Regimento dos Violeiros reproduzido por (Morais, 2006, 438-442).
283
Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Lisboa, cod. 35, cap. XLII, ff. 160-163v. O livro integral foi
publicado por (Correia, 1926) e o Regimento dos que fazem cordas de viola foi reproduzido por (Morais,
2006, 442-447).
284
Os itens 03 e 12 do regimento especificam quais competências eram exigidas do oficial que desejasse
realizar o exame: “3. E todo o offiçial que do dito offiçio de fazer cordas quiser usar saberaa muy bem laurar
e cortir em decoadas limpas e bem temperadas de tal maneira que naõ sejaõ taõ fortes que as queimem nem
taõ brandas que apodreçaõ nellas: as quaes decoadas se faraõ sempre em casa do examinador em cuja casa se
faz o exame. Item saberaa fazer hum maço de cordas delgadas muito bem cortida em decoadas muito limpas
e bem temperadas de maneira que despois de feitas sejaõ muito rijas e boas. Item saberaa fazer grosso para
tanger assi violas de maõ como violas de arco. E arpas em que entraraõ quartas de dous fios ate bordaõ de
vinte fios acrescentando na grossura dous fios a cada corda. O qual grosso se traçeraa na roda ate bordaõ de
dous fios que naõ tenha noo algum. E outro se faraa nos cambos de pedaços muito bem feito e torcido de tal
maneira que despois de acabado fique muito igual sem lombo nenhum nem outro algum defeito como
convem para tanger. [p. 161] Item saberaa fazer hum bordaõ para cutelleiro de cem fios de grossura e huã
corda para torneiro de cincoenta fios e outra para sombreireiro de dezasseis fios. E estas tres cordas com
todas as mais que se fezerem nos cambros seraõ todas feitas de pedaços que os ditos examinadores lhe
apartaraõ para isso. as quaes seraõ muito bem lauradas e poidas de maneira que despois de acabadas naõ
aleuantem ponta alguã nem tenhaõ lombo per onde se cortem nem outro algum defeito.” (Ib., 160v-161) “2.
160

diversos (violas de mão, harpas e violas de arco contrabaixo e tiple) e os trastes dos
cordofones que os necessitassem, mas também saber manusear o seu material para atender
outro tipo de demanda, como fabricar “bordão para cutelleiro” e “cordas para torneiros e
sombrereiros [?]”. (Ib., 161)
No item 12, uma recomendação desmonta a ideia de que a atividade era
predominantemente masculina. Pelo contrário, a passagem afirma que as pessoas que mais
utilizaram o dito ofício foram justamente as mulheres, embora seja perceptível o
preconceito social que o legislador deixa transparecer ao ponderar que juízes e
examinadores homens eram necessários para “meter o ofício em ordem”. Tal fato pode
sugerir que o mesmo se passava entre aqueles (as) que tocavam os instrumentos. Apesar
dos relatos remanescentes sobre tangedores no século XVI mencionarem exclusivamente
personagens do gênero masculino, a ausência dos registros femininos pode se explicar
justamente pela desconfortável submissão sociocultural com a qual as mulheres eram
obrigadas a (sobre)viver.
E porque as mais pessoas que o dito offiçio usaõ saõ molheres e seraa
inconveniente naõ se acharem homens que sejaõ juizes e examinadores para
metter o offiçio em ordem, mandaõ que daqui em diante quando alguma molher
casada com violeiro se quiser examinar do dito officio de fazer cordas naõ use
delle sem seu marido ser tambem examinado. E a que o contrario fezer pagaraa
mil reaes a metade para as obras da Cidade e a outra para quem a accusar. E
todas as mais molheres assim solteiras como casadas poderaõ ser examinadas e
usar do dito offiçio livremente, ainda que seus maridos naõ sejaõ delle
examinados (Ib., 162).

Informações sobre o preço das cordas também foram registradas no documento. O


último item do Regimento conta que, em um abaixo assinado rubricado por todas as
autoridades presentes (11), foram assentados e fixados os valores que deveriam ser
cobrados para cada tipo de corda: “[...] naõ valha mais cada fio de carneiros que tres reais e
cada fio de cubarros que real e meo de cada fio de cucio dous reais, sob pena de quem o
contrario fizer e por mores preços vender os ditos fios, pagar da cadea dous cruzados.” (Ib.,
163v)
Tais informações devem ser cruzadas com as apresentadas por Rodrigues no livro
Documentos para a história da arte em Portugal. Nele, a autora evidencia não somente

Todalas Cordas que fezerem para tanger assim delgadas como grossas andaraõ tam limpas nas decoadas que
despois defeitas naõ tenhaõ cheiro algum mao de mal cortidas ou mal passadas. E seraõ todas feitas em
verdideiras de hum comprimento que tenha cada huma tres varas de comprido. E todas as outras cordas
grossas de qualquer maneira que seiaõ que naõ forem para tangerem com ellas seraõ de seis varas de medir
de comprido cada huma, e o maço das cordas teraa çem trastos cada hum e o offiçial a que forem achadas de
menos comprimento, ou maços de menos trastos pagaraa mil reais a metade para as obras da cidade e a outra
para quem o accusar e perderaa as cordas que se aplicaraõ para a mizericordia.” (Ib., 162)
161

dois fabricantes de cordas ativos em Lisboa na segunda metade do século XVI, mas
também explicita a avaliação de seus bens e os respectivos impostos que recaíam sobre
eles, dados que podem sugerir em que patamar econômico estavam aqueles que se
dedicavam à profissão: “Bernalldo Domingues que faz cordas de viola (fl. 1566-1567;
Bens avaliados em 30.000 rs. que pagará 210 rs.)”; “Johão Martinz que faz cordas de
violas, morador em casas suas (fl. 1566-1567; Bens avaliados em 12.000 rs. de que pagará
84 rs.)”. (1975, XIV/58) Lambertini, em Indústria instrumental portuguesa, ainda
acrescenta mais um oficial ao grupo, Roberto Romano (fl. 1562), mas sem dar detalhes
sobre seus bens, rendas ou impostos. (1914, 6).
Há, portanto, três vestígios nominais de fabricantes de cordas de viola ativos em
Lisboa entre 1562 e 1567, mas é bem provável que este número fosse maior. Oliveira, por
exemplo, lista 04 fabricantes de cordas e 15 violeiros (construtores) em 1552 (1987, 135),
enquanto Brandão pondera que, no mesmo ano, havia 10 pessoas em tendas de fazer cordas
de viola, além de 07 casas de violeiros abrigando duas ou três pessoas cada. (1990, 204)
No âmbito específico dos construtores, Moita corrobora Brandão ao afirmar que a
capital portuguesa detinha 16 violeiros dispersos em 07 tendas já por volta de 1551,
quando sua população circundava em torno de 100.000 habitantes. 285 (1983, 15) Apenas
para ter uma ideia comparativa, Madrid apresentava os mesmos 16 violeiros para um
contingente populacional bem inferior: 40.000 pessoas em 1570. 286 São dados que
sugerem um uso mais efervescente dos cordofones na região peninsular que compreendia a
Espanha. 287

285
Os números não são unânimes. Tendo o livro de Oliveira publicado entre 1554-1555 como base, França
crava, por exemplo, a população lisboeta do período em 80.000 habitantes: “Em meados do século Lisboa
[...] contaria cerca de 80 mil habitantes, com 432 ruas e travessas, 89 becos, e 62 ‘postos’ que viriam a
evoluir do seu estatuto de meio rural para sítios e depois bairros - conforme um Sumário (das) Coisas (…) de
Lisboa, de Cristóvão Rodrigues de Oliveira publicado em 1554 ou 55, e que é uma das primeiras descrições
estatísticas da cidade que se conhecem. De meados para fins de Quinhentos, por desdobramento (quer dizer
por aumento de população fixada), definiram-se doze freguesias além das vinte e três existentes já no século
XIII.” (França, 1980, 18)
286
Bordas afirma que no “último cuarto del siglo XVI [...] se conocen, al menos, 16 violeros sobre una
población que oscila entre 40.000 personas en 1570 y 60.000 ó 70.000, a fines del siglo” (Bordas, 1995, 51)
287
Ainda sobre o panorama de construção de cordofones e cordas na Espanha, Morais expõe que “o oficial
violeiro construía, além das ‘vihuelas, laúdes e harpas’, também instrumentos de tecla, tais como
‘claviorgano, clavizimbalo e monacordio’, em Portugal este tipo de trabalho era executado pelos
Carpinteiros de manicórdios e pelos Carpinteiros organistas. Segundo o censo de 1551 feito por Oliveira
[1987, 130], existiam 4 fabricantes de manicórdio e só 3 de órgão. No manuscrito de Brandão [de 1552] este
tipo de oficiais mecânicos não são mencionados.” (2006, 403). O célebre pesquisador português também
recomenda, para uma compreensão mais ampla do cenário ibérico, que as informações expressas no
Regimento de Violeiros de Lisboa sejam cruzadas com três ordenanzas espanholas (documento equivalente
aos regimentos lusos): as Ordenanzas de Sevilha (1527), nas quais além dos instrumentos de cordas
dedilhadas e friccionadas, exigia-se que os violeiros soubessem também construir instrumentos de tecla; as
Ordenanzas de Granada (1541), documento apresentado publicamente na Plaza de Viuarrambla em 26 de
162

Dentre os registros nominais, Rodrigues e Lambertini 288 listam alguns dos


construtores de viola portugueses em atividade na segunda metade do século XVI: Álvaro
Fernandes, Afonso Rodrigues, António Fernandes, António Lopes, Jerónimo Duarte, João
Tomé e Nicolau Brás, sobre os quais não se sabe muito além do fato de que todos, sem
exceção, atuavam em Lisboa.
No entanto, os mais destacáveis violeiros (construtores) quinhentistas de Portugal
registrados foram, sem dúvida, os membros da família Dias: Amaro Dias, António Dias,
Cristovão Dias, Diogo Dias 289 e, sobretudo, Belchior Dias. Segundo Morais, este último
era “o mais importante violeiro da família Dias, ‘officiaes mecanicos’ que estiveram
activos na cidade de Lisboa a partir de meados de quinhentos”. (2006, 415)
Para nós, Belchior Dias tem particular importância uma vez que é o autor da única
viola original portuguesa comprovadamente construída nos anos quinhentos que
sobreviveu ao tempo. Foi mais precisamente em 1581, em Lisboa, que o construtor
conceberia o cordofone hoje abrigado na Royal College of Music (Nº 171), em Londres, e
que foi definido tecnicamente nos seguintes termos por Morais:
Este belíssimo e sóbrio instrumento, de requintada feitura, faz uso de madeiras
finas (‘de pao preto’ [provavelmente brasileiro]), sendo decorada com marchetos
de ébano e marfim. As suas costas, ligeiramente abauladas, são constituídas por
sete ‘costilhas’ de meia-cana, habilmente unidas entre si por fios de marfim. [p.
414]. A escala, cravelhal em forma de pá, e fundo das ilhargas são ornamentados
com marchetos entrançados de fios de ‘pao preto’/ marfim. Esta viola arma com
cinco ordens de cordas duplas; o tiro de corda é de circa de 553 mm, o que faz
deste instrumento uma ‘viola de cinco requinta’ [...]. É a mais antiga viola
quinhentista que se encontra datada e a única montada com [p. 415] cinco ordens
de cordas, encontrando-se quase toda em estado original, salvo o tampo e o
cavalete que parecem ter sido substituídos na primeira metade do séc. XVIII.
Este instrumento é um esplêndido exemplo da perfeição e do alto nível técnico
de construção a que chegaram os violeiros portugueses quinhentistas, cujas artes
de feitura se mantiveram, quase inalteráveis, até aos finais do séc. XVIII, como
provam as três violas setecentistas de que temos conhecimento. (2006, 413-415)

novembro de 1541 e cujo capítulo 10 apresentava as exigências do exame de violeiros, organistas e outros
ofícios de música; e finalmente as Ordenanzas del oficio de Biguelero (1610), publicadas em Toledo. Não
obstante, Morais ainda sugere que a compreensão do Regimento dos que fazem cordas de viola seja
complementada com as informações contidas nas “ordenzas de los constructores de cuerdas de arpas y
guitarras (Madrid, 1679) bem como com a dos fabricantes de cordas de Roma e de Nápoles.” (Ib., 419)
288
(Rodrigues, 1975, p. 26, 45-47, 50) e (Lambertini, 1914, 6).
289
Viterbo esclarece que Diogo Dias foi nomeado violeiro de D. João III pelo alvará de 24 de março de 1551.
No documento, o rei esclarece que o construtor não receberá “mantimento ou ordenado algum com o dito
officio”, mas “gozará de todos os privilégios e liberdades de que gozão [...] os meus officiaes mecânicos”.
(1904, 276). Morais acrescenta que este violeiro “foi provavelmente o pai, ou parente muito próximo de
Belchior Dias” (2006, 415), o luthier mais notório da família.
163

Figura 25: Viola de cinco ordens de Belchior Dias (1581). Fonte: (Morais, 2006, 414)

A figura representa a fonte que mais nos aproxima de um dos possíveis cordofones
de cordas dedilhadas que foram trazidos para o Brasil ao longo do século XVI. Todavia, o
mais importante para o momento é constatar que os dados apresentados confirmam a
ampla disseminação de violas/ guitarras em Portugal já na transição do século XV para o
XVI, fator que justifica, pelo menos em parte, a rápida absorção de tais instrumentos nos
países alcançados pela expansão marítima portuguesa.
Os portugueses ao descobrirem ‘[...] novas ilhas, novas terras, novos mares,
novos povos [...]’, levaram a viola de mão para lugares desconhecidos como em
1500 para o Brasil (onde ainda hoje se toca uma forma arcaizante deste
instrumento - a ‘viola de cocho’ - cuja origem remonta aos finais do século XV),
ou a outros lugares tão distantes como a Pérsia, a China, onde chegamos em
1513 e, por fim, ao Japão, em 1543. (Morais, 2006, 399)

Por ora, entretanto, nem viola e nem guitarra serão protagonistas dos primeiros
vestígios que nos foram legados sobre a presença de cordofones de cordas dedilhadas em
território brasileiro a partir de 1500. Esta tarefa coube ao séstro, instrumento musical
anunciado acidentalmente nas embarcações chefiadas por Pedro Álvares Cabral.

3.3 1500-1550: Os primeiros vestígios de práticas musicais no Brasil


164

Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não
podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa. Nela, até agora,
não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem
lho vimos. [...] Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a
aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Porém o melhor fruto, que
nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal
semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. (Excerto da Carta de Pero Vaz Caminha)
290

Não há memória dos tempos antigos. E quanto àqueles que vierem depois, tampouco
deles haverá memória junto aos que vierem por último. (Ecl 1, 11)

Embora o escrivão Pero Vaz Caminha tenha mostrado entusiasmo com a abundância
das águas, dos longos arvoredos e do solo fértil, além de acreditar que os recém-chegados
poderiam levar a conversão e a “salvação” àquele povo de tamanha “inocência”, o fato é
que o processo de colonização nos primeiros 50 anos pós-descobrimento parece não ter
interessado efetivamente à coroa portuguesa.
Portugal enfrentava o fim de uma febre de navegações patrocinada por uma
burguesia mercantilista ávida de lucros e que teve nas especiarias e artigos de luxo das
Índias Orientais o seu maior expoente. No Brasil, com o pouco sucesso das expedições em
busca de metais e pedras preciosas nas primeiras décadas (o acúmulo de ouro e prata era o
pressuposto máximo da política mercantil do período), os atrativos da colônia limitaram-se
à exploração do Pau-Brasil e outras madeiras, árvores das quais se extraia tinta para tingir
tecidos e que também foram importadas para a construção de móveis e artefatos variados
na metrópole (incluindo instrumentos musicais e seus acessórios, como os arcos de corda).
291

Outro fator que justifica o eventual desinteresse português foram as feitorias


estabelecidas na costa da África para o comércio de escravos no início do século XVI.
Assim, quando D. João III investe na colonização brasileira, o faz muito mais para proteger
o novo território das constantes tentativas de invasões estrangeiras e também para

290
Disponível em: http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/carta.pdf
291
Morais reitera tal entendimento ao afirmar que “para a sua construção os violeiros empregavam madeiras
finas, como o ‘pao preto ou vermelho’ (pau-preto, pau-brasil, pau-ferro, pausanto, pau-rosa, nomes vulgares
de árvores, sobretudo brasileiras, da família das ebenáceas, das bignoniáceas, faseoláceas-papilionáceas,
das lauráceas, etc., bem como, para os tampos, o pinho de Flandres, Veneza ou de Amburgo, nomes
genéricos para a epicea excelsa e para a epicea abies); que as bocas (“laço”, “lazo”) dos instrumentos eram
abertas no tampo, talhando a madeira (laço raso) ou empregando o pergaminho (“laços de folha de
purgaminho” ou outro material com as mesmas características) para elaborar rosetas fundas.”(2006, 410)
Ora, este é um indício muito forte de que árvores brasileiras foram utilizadas em Portugal para construção de
cordofones de cordas dedilhadas ainda na primeira metade do século XVI, uma vez que grande parte do
interesse econômico português nas primeiras décadas de colonização se limitou justamente à extração de tais
matérias-primas.
165

assegurar as prerrogativas do Tratado de Tordesilhas 292, assinado entre os reinos da


Espanha e de Portugal em 1494.
Castagna sintetiza com precisão os resultados econômicos do primeiro jubileu
brasileiro:
Até 1549, somente tinha vingado a colonização em São Vicente e Pernambuco.
Os impostos que o governo recebia das donatarias que distribuira entre 1534 e
1536 não resultavam em qualquer tipo de lucro e os assédios estrangeiros
vinham trazendo problemas frequentes para a coroa. A instituição do Governo
Geral e a chegada dos missionários em 1549 inaugurou uma nova fase na
conquista da terra, iniciada justamente com a construção da cidade de
Salvador. (Castagna, 1991, 70)

Dentro de tal perspectiva, não é difícil imaginar que o problema das fontes é ainda
mais latente nestas cinco décadas iniciais, uma vez que somente com a chegada dos
jesuítas passou a existir uma documentação mais sistemática e recorrente sobre os usos e
os costumes locais. Contudo, os poucos indícios que nos chegaram apontam para a
circulação de instrumentos musicais portugueses e nativos já nos primeiros contatos entre
os dois povos. A Carta de Pero Vaz Caminha, por exemplo, sinaliza não somente para o
fato de que as embarcações de Pedro Álvares Cabral traziam tais instrumentos ocidentais
em seu bojo, como também que os índios possuíam e tocavam os seus próprios aparatos
musicais:
Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão de ir ouvir missa e
pregação naquele ilhéu. [...] E, depois de acabada a missa, assentados nós à
pregação, levantaram-se muitos deles [os índios], tangeram corno ou buzina
293
, e começaram a saltar e dançar um pedaço [...]. 294 (Carta, 5, Ib.)

Já entre os instrumentos portugueses citados na Carta, podemos identificar gaitas,


trombetas e um tamboril:
Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava entre eles, sem
implicarem nada com ele para fazer-lhe mal. Antes lhe davam cabaças de água, e
acenavam aos do esquife que saíssem em terra. Com isto se volveu Bartolomeu
Dias ao Capitão; e viemo-nos às naus, a comer, tangendo gaitas e trombetas,
sem lhes dar mais opressão. E eles tornaram-se a assentar na praia e assim por
então ficaram. (Carta, 6, Ib.)

292
“O Tratado, assinado em 1494, definia uma linha de demarcação localizada a 370 léguas a oeste do
arquipélago de Cabo Verde, de polo a polo. Caberia a Espanha, as terras do lado ocidental, e a Portugal as do
lado oriental.” Fonte: http://www.historia-brasil.com/colonia/tordesilhas.htm
Acesso em 11/01/2015, às 15h57min.
293
“Bluteau define ‘bosina, ou bozina, ou buzina’ como uma ‘trombeta pastoril, ou ponta de boi, de que
usam os pastores. [...] Antigamente eram de corno, e de marfim’ (2002 [1721], II/165). A definição de
‘buzina’ como ‘corno’ encontra-se na carta de Pero Vaz de Caminha, segundo a qual, logo após a primeira
missa realizada no Brasil levantaram-se muitos índios e ‘tangeram corno ou buzina’ (apud Castagna, 1991, II
/4). Os búzios eram grandes conchas, encontradas no litoral do Brasil desde o Nordeste até São Paulo,
utilizadas como instrumentos de sopro.” (Holler, 2006, 104)
294
Tal relato ratifica que os instrumentos sonoros utilizados pelos índios tinham, neste período, mais relação
com práticas rituais do que com práticas musicais propriamente.
166

Neste dia, enquanto ali andaram, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao
som dum tamboril dos nossos, em maneira que são muito mais nossos amigos
que nós seus. (Carta, 12, Ib.)

Em uma das citações, inclusive, é possível visualizar a música como mediadora de


algumas das primeiras interações entre os povos, embora tenham sido apenas os
instrumentos portugueses a orientar tal perspectiva (em um prenúncio do que iria ocorrer
nas décadas seguintes):
Além do rio, andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros,
sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então além do rio
Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer;
e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a
dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele
muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão,
muitas voltas ligeiras, e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam
muito. E conquanto com aquilo muito os segurou e afagou, tomavam logo uma
esquiveza como de animais monteses, e foram-se para cima. (Carta, 8, Ib.)

Existem vestígios, portanto, da circulação de instrumentos musicais europeus em


território brasileiro desde a chegada de Pedro Álvares Cabral, em 1500. A questão que
mais nos interessa, entretanto, é saber se dentre eles há indícios ou não da presença de
cordofones de cordas dedilhadas. Como vimos no capítulo anterior, havia uma profusão de
tais instrumentos circulando na Península Ibérica desde, pelo menos, o início da Idade
Média. No caso específico de Portugal, tal perspectiva é ainda ratificada por Orozco:
Ainda em Portugal de 1500, verificamos a passagem da era medieval para o novo
regime de relações de produção pré-capitalista e, ao mesmo tempo e por
consequência disto, no âmbito das cidades, das atividades coletivas de
entretenimento à canção a solo com acompanhamento do próprio intérprete à
base de viola. No país colonizador, como reflexo do novo costume, veremos que
a cidade de Lisboa, já nos anos de 1551 e 1552, possuía quinze ou dezesseis
fabricantes de violas. 295 (Orozco, 2001, 11)

Que violas circularam abundantemente em terras lusitanas ao longo do século XVI (e


mesmo antes) não nos restam dúvidas. Mas elas estiveram em solo brasileiro nos primeiros
cinquenta anos pós-descobrimento?
Dentre os notáveis historiadores portugueses do século XVI, um é especialmente
relevante para nos descortinar tal questão: João de Barros (c. 1496-1570) 296, personagem
que aproveitou a sua experiência como Feitor da Casa da Índia por 35 anos para publicar

295
Para levantar tais dados, Orozco se baseou em: TINHORÃO, José Ramos. História social da música
popular brasileira. São Paulo, Ed. 34, 1998. p. 28.
296
“Ligado à corte portuguesa, João de Barros foi Feitor da Casa da Índia por 35 anos. Nessa posição, pôde
consultar documentos e colher relatos de marinheiros e comerciantes do Oriente. Foi o primeiro historiador
português a documentar-se de forma sistemática. Nas Décadas, obra oficial, encomendada por D. João III,
seguiu o modelo de Tito Lívio. Só publicou três Décadas da Ásia (1552, 1553 e 1563), obra que influenciou
Luís de Camões ao escrever Os Lusíadas. O continuador da obra foi Diogo do Couto (1542-1616).”
Apresentação ao artigo publicado por Sylvio B. Pereira na edição de 30 de janeiro de 1925 do Jornal do
Brasil.
167

três livros intitulados Décadas da Ásia. Dada a sua posição, pôde consultar documentos e
recolher relatos diretos de marinheiros e comerciantes do Oriente, além de ter descrito com
minúcia algumas cerimônias portuárias (que incluíam atividades musicais) de chegada e
partida no porto de Lisboa.
João de Barros dedicou-se a escrever apenas sobre as expedições realizadas para a
Ásia e a descrição da descoberta da terra de Vera Cruz só foi incluída em seu primeiro
livro porque se tratava de uma viagem cujo destino pretendia chegar à Índia contornando a
costa africana através do caminho recém-inaugurado pelo navegador português Vasco da
Gama (c. 1568/9-1524). Não houvesse a mudança de rota provocada pelo fatídico temporal
297 sofrido pelas embarcações de Cabral nas paragens das ilhas de Cabo Verde, o seu relato
não nos faria sentido.
O que reveste seu texto de peculiar importância para nós é a descrição da cerimônia
de despedida das 13 naus comandadas por Pedro Álvares Cabral, onde deixa notar que
alguns instrumentos musicais foram embarcados na frota. No capítulo I do livro quinto de
sua Década Primeira, ele nos diz:
A qual despedida, geralmente a todos, foi de grande contemplação, porque a
maior parte do povo de Lisboa, por ser dia de festa e mais tão celebrada por el-
rei, cobria aquelas praias e campos de Belém, e muitos em batéis, que rodeávam
as naus, levando uns, trazendo outros, assim serviam todos com suas librés e
bandeiras de côres diversas, que não parecia mar, mas um campo de flôres, com
a frol [escuma do mar] daquela mancebia juvenil que embarcava. E o que mais
levantava o espírito destas cousas, eram as trombetas, atabáques, séstros,
tambores, frautas, pandeiros, e até gaitas, cuja ventura foi andar em os
campos no apascentar dos gádos, naquele dia tomáram posse de ir sobre as águas
salgadas do mar [8 de março de 1500], nesta e outras armadas, que depois a
seguiram, porque, para viágem de tanto tempo, tudo os homens buscavam para
tirar a tristeza do mar. Com as quais diferenças, que a vista, e ouvidos sentiam, o
coração de todos estava entre prazer, e lágrimas, por esta ser a mais formosa, e
poderosa Armada, que até aquele tempo para tão longe deste Reino partira. A
qual Armada era de treze velas [...]. Seria o numero da gente que ia nesta frota,
entre mareantes, e homens d'armas, até mil e duzentas pessoas, toda gente
escolhida, limpa, bem armada, e provida para tão comprida viagem. (Barros,
1552 [1563], livro V, fol. 55) [grifos nosso]

297
“Ao seguinte dia, que eram nove do mês de Março, diferindo suas velas, que estavam a pique, saiu Pedro
Álvares com toda a frota, fazendo sua viagem às Ilhas do Cabo Verde, para aí fazer aguada, onde chegou em
treze dias. Però antes de tomar este Cabo, sendo entre estas Ilhas, lhe deu um tempo, que lhe fez perder de
sua companhia o navio, de que era Capitão Luiz Pires, o qual se tornou a Lisboa. Junta a frota, depois que
passou o temporal, por fugir da terra de Guiné, onde as calmarias lhe podiam impedir seu caminho, empegou-
se muito no mar, por lhe ficar seguro poder dobrar o Cabo de Boa Esperança. E havendo já um mês que ia
naquela grão [grande] volta, quando veio a segunda oitava da Páscoa, que eram vinte e quatro de Abril, foi
dar em outra costa de terra firme, a qual, segundo a estimação dos Pilotos, lhe pareceu que podia distar para o
oeste da costa de Guiné quatrocentas e cinquenta léguas, e em altura do pólo Antártico da parte do Sul dez
graus.” (João de Barros)
168

Figura 26: Trecho específico onde o embarque de instrumentos musicais nas naus de Pedro Álvares Cabral é
mencionado por João de Barros. Fonte: (Barros, 1552 [1563], livro V, fol. 55)

Figura 27: Excerto da publicação de João de Barros Primeira Década da Ásia. Texto completo: DÉCADA
PRIMEIRA. LIVRO V. Dos feitos, que os Portugueses fizeram no descobrimento dos mares, e terras do
Oriente, no qual se contém o que Pedro Álvares Cabral fez no ano de quinhentos, que deste Reino partiu com
uma grossa Armada; e o que fez João da Nova no ano seguinte de quinhentos e hum com outra de quatro
náus. CAPITULO I. Como ElRey por razão da nova, que Dom Vasco da Gama trouxe da Índia, mandou
fazer uma Armada de treze velas e da qual foi por Capitão mor Pedro Álvares Cabral. (Barros, 1552 [1563],
livro V, fol. 54v)

O relato é especialmente notório por três motivos:


1) Dentre os instrumentos a bordo, constam exatamente aqueles citados por Pero Vaz
Caminha em sua Carta: trombetas, gaitas e instrumentos de percussão, o que confere um
paralelismo ratificador aos dois documentos;
2) Também são citadas as “frautas” (flautas), instrumento muito comum no Brasil
nas atividades musicais descritas pelos jesuítas a partir da segunda metade do século XVI;
3) O autor também anota a presença na embarcação de séstros, um termo inédito e
que é preciso averiguar com mais critério, pois se trata de um vocábulo com nomenclatura
e grafia confusa.
Em seu Diccionário Musical, Ernesto Vieira relaciona o termo cestro com a cithara,
que, como vimos no primeiro capítulo, nomeou na Península Ibérica um cordofone de
cordas dedilhadas aparentado à viola, guitarra e/ ou alaúde na transição entre as eras
Medieval e Renascentista: “A cíthara usada na Europa durante a Edade média e até ao
século XVIII, era muito differente da cithara grega. Consistia n’uma especie de guitarra:
denominava-se também cestro, citola, citra, cítula, cistro, cistre, (em fr.) sistre, sistro e
guitarra allemã”. (Vieira, 1899 [1890], 145)
169

Dentre todos os documentos que tomamos nota ao longo da pesquisa, o termo séstro
somente é citado no livro de Barros. A proximidade gráfica e a rara aparição nas fontes
levaram pesquisadores a acreditar, até agora, que o vocábulo remetia ao sistro, instrumento
musical usado no Antigo Egito e que produzia sons ao ser agitado, tal qual um chocalho.
Foi muito comum até o período Greco-Romano (332 a.C - 395 d.C), mas na transição da
Era Medieval para a Renascentista em Portugal foi usual apenas nas festas de folias de
Lisboa. Além disso, o termo sistro não foi citado em nenhuma das fontes ao longo do
século XVI, no Brasil, o que nos levou a ratificar a correspondência feita por Ernesto
Vieira: a de que o termo séstro pode ser, na verdade, uma das sinonímias possíveis para
cithara (cestro, citola, citra, cítula, cistro, cistre, (em fr.) sistre, sistro e guitarra allemã),
que o autor definiu como “uma espécie de guitarra”.
Mais uma vez, exaurimos os dicionários históricos para buscar indícios que
reafirmassem (ou negassem) a hipótese. Eis, então, a relação entre os dois vocábulos que
nos apresenta Bluteau:
Sestro. Especie de pandeyro, & certo gênero de instrumento de latão, de que usaõ
os homens, & mulheres da folias de Lisboa, seu termo, & outros lugares do
Reyno. Na I part. das Antiguidades de Lisboa, p. 89, pretende Luis Marinho
derivar este nome Sestro, de Cetra, que segundo Diego Mendes de Vasconcellos,
& Resende, não era adarga, mas hum certo gênero de broquel de ferro, ou metal,
que tocado com outros, fazia o som, que hum Poeta Latino declara neste verso:
Ad numerum resonas gaudentem plaudere cetras. O qual som não poderião fazer
as adargas; com que vieraõ a presumir, que destas Cetras se corrompeo a palavra
Sestros. Supposta esta corrupção, o nome próprio de Sestro em Latim, seria
Cetra, ae. (Bluteau, 1720, VII/622)

Embora Bluteau não aponte novidades no sentido do termo, o fato de indicar que, em
latim, o nome próprio de sestro seria cetra nos abre uma nova perspectiva, uma vez que
este último foi um cordofone de cordas dedilhadas com forma piriforme semelhante a do
alaúde e que circulava, com diferentes nomes, em alguns países europeus no século XVI.
Sua raiz terminológica latina se embaralha com uma série de outros vocábulos próximos:
cistre (França), cetra e cetera (Itália e Córsega), cítara (Portugal e Espanha), cittern (Ilhas
Britânicas), cister e cithern (Alemanha e Países Baixos), além das antecessoras cítolas
(citole). Também surge em alguns documentos com a nomenclatura castelhana de cedra.
Dourado nos esclarece tais relações em seu Dicionário de Termos e Expressões da
Música:
Cistre (fr., ing., al.; it. Cetra). Instrumento piriforme semelhante ao alaúde, foi
utilizado na Europa a partir do século XVI. Costumava ser executado com um
plectro e possuía até nove cordas e dimensões diversas, que variavam com a
tradição de cada região. Era geralmente dotado de trastes, e na região média do
170

braço havia uma espécie de corte por onde deslizava o polegar esquerdo, visando
facilitar a execução. (Dourado, 2004, 81) 298

O Poema de Alexandre vai ainda mais longe quando, ao elencar os instrumentos


musicais que eram mais comuns entre os jograis no século XIII, relaciona diretamente a
cedra e a viola:

El pleito de ioglares era fiera nota:


Avie hy symphonía, arba, giga é rota
Albogues é salterio, citóla más que trota,
Cedra é viola que las coytas embota.
(Pedrell, 1901, 43)

Pedrell esclarece algumas das relações entre os três cordofones de cordas dedilhadas
mencionados no Poema de Alexandre:
A cítola não é o nome antigo da cítara, mas um instrumento muito semelhante à
guitarra, sem o corpo tão arredondado nem o braço tão prolongado como os
deste instrumento. Era muito conhecido já no século XIII, quando os
construtores de cítolas se chamavam citoleros e citolantes os que as tocavam. O
autor do Poema de Alexandre não confunde a Cítola com a cedra (cítara), que
menciona na continuação [do poema], e me parece digno de chamar atenção a
diferença que ele estabelece entre ambos os instrumentos, de todos os modos
congêneres. (1901, 44) 299

Diante do exposto, o relato pioneiro de João de Barros pode sugerir inferências em


três direções:
1) Instrumentos musicais eram comumente embarcados em navios portugueses.
Uma vez que Barros descreve uma cerimônia de partida recorrente no porto de Lisboa,
podemos supor que estes objetos sempre acompanhavam as embarcações, pois, para uma
“viagem de tanto tempo”, eram uma das ferramentas utilizadas pelos marinheiros para
“tirar a tristeza do mar”, conforme sugere o próprio autor;
2) Havia cordofones de cordas dedilhadas entre os instrumentos. Dada a
profusão e a popularidade dos cordofones de cordas dedilhadas em Portugal nos séculos
XV e XVI, não é difícil imaginar que tais instrumentos figuravam entre os favoritos dos

298
Dourado segue nos esclarecendo as relações entre os vocábulos: Cetera (it. Cettera). Ver Cetra.
(Dourado, 2004, 75). Citole. Instrumento renascentista que antecedeu o cistre e a cisterna. O termo surge da
mesma raiz latina, cetera ou cetra. O primeiro registro data provavelmente de 1487, em um tratado de Jean
Tinctoris. (Dourado, 2004, 82). Cittern. Instrumento renascentista de formato piriforme com trastes e fundo
chato cujas cordas metálicas eram beliscadas ou pinçadas. (Dourado, 2004, 82) Cístola. Um tipo antigo de
Cistre. (Dourado, 2004, 81).
299
Tradução livre de: La citóla no es nombre anticuado de la cítara, sino um instrumento muy semejante á la
guiterna, sin el cuerpo tan redondeado ni el mástil tan prolongado como los de este instrumento. Privaría
mucho este instrumento cuando allá en el siglo xiii los constructores de citólas se llamaban citoleros y
citolantes los que las tañían. El autor del Poema de Alexandre no confunde la Cítola con la cedra (citara),
que menciona á continuación, y me parece digna de llamar la atención la diferencia que establece entre
ambos instrumentos, de todos modos congéneres. (Pedrell, 1901, 44)
171

navegadores ao longo das viagens. Observamos no capítulo anterior (e Orozco acaba de


nos reiterar) como eram difundidas as canções com acompanhamento de cordofones
tocados com plectro ou com os dedos. Não obstante, por suas características físicas e
sonoras, era também o instrumento musical harmônico ideal para deslocamentos de tal
natureza.
3) Primeira indicação de cordofones sendo trazidos para o território brasileiro.
Os séstros citados pelo historiador sugerem que cordofones foram trazidos para o território
brasileiro já nos anos iniciais a partir do descobrimento, integrando a frota de Cabral que
chegou à terra de Vera Cruz depois de falhar em seus caminhos para as Índias.
A perspectiva encontra respaldo nas notas de Morais, que identifica a presença de
tais instrumentos em Portugal antes de 1500:
Dos instrumentos musicais de que temos notícia antes de 1500 em Portugal,
referimos, nos cordofones sem braço a harpa, a lira, a rota, a cítara, o saltério e
o monocórdio: nos cordofones com braço, o alaúde, a mandora, a bandurra, a
baldosa, a cítola, a cedra, a guitarra e a vihuela; todos eram tocados com os
dedos ou com plectro. Nos cordofones de corda friccionada, o arco, a giga, o
arrabil mourisco, o rabel, a vihuela de arco e a sinfonia (sanfona). (Morais,
1995, 3) 300

É certo que, além dos portugueses, muitas expedições estrangeiras estiveram


presentes no território brasileiro ao longo das primeiras décadas do século XVI. Castagna
(1991) sinaliza para o fato de que os jesuítas não foram nem os únicos missionários
presentes no Brasil e tampouco os únicos que se ocuparam de atividades musicais entre os
indígenas. Rodrigues (1979), por exemplo, escreve sobre o martírio dos franciscanos pelos
índios na costa brasileira entre 1501 e 1521, mas do qual, infelizmente, sobreviveram
somente relatos posteriores. 301 A história não foi diferente com os monges beneditinos
(1580-1611), os capuchinhos bretões e também os judeus holandeses 302, que aqui
chegaram logo após o descobrimento e mantiveram práticas musicais apartadas daquelas
que ocorriam entre os cristãos. 303

300
Excerto do artigo Notas sobre a Música e Instrumentos Musicais Populares Portugueses, escrito por
Domingo Morais em 1995 e disponibilizado no seguinte endereço eletrônico:
http://attambur.com/Recolhas/PDF/InstrumentosMusicaisPP.pdf
301
Segundo Castagna (1991), os primeiros relatos sobre a passagem dos franciscanos só começam a surgir
cerca de um século depois (a partir de 1611) de sua chegada à costa brasileira e, embora alguns cronistas e
jesuítas façam menção ao fato, os próprios historiadores franciscanos desconhecem os seus detalhes. Os
únicos que se dedicaram a tal abordagem foram os frades: Antônio de Santa Maria de Jaboatão (1695-1779) e
Manuel da Ilha (1704-1768).
302
“A liberdade de culto nos domínios holandeses parece ter sido bem maior do que nos domínios
portugueses”. (Castagna, 1991)
303
Entre os beneditinos, destaca-se apenas o trabalho do Frei Miguel Arcanjo da Anunciação Teixeira (1700-
1804). Tavares (2004) também escreveu uma monografia abordando a relação dos beneditinos com a
sociedade colonial. Entre os capuchinhos, restaram-nos os escritos de Claude D’Abbeville (em 1614), Yves
172

Já entre os viajantes desbravadores, pelo menos duas importantes expedições


estiveram no Brasil já na primeira década do século XVI: a de Fernão de Loronha (1501-
1502) e a de Gonçalo Coelho (1503-1505), ambas com a participação do mercador
florentino Américo Vespúcio (1454-1512). 304 O nobre francês Binot Paulmier de
Gonneville também teve sua rota desviada por uma tempestade no Cabo da Boa Esperança
e acabou chegando ao litoral de Santa Catarina em 1504, após vagar semanas pelo
Atlântico. De Gonneville, herdamos os relatos sobre os contatos de sua frota com os índios
carijós. 305
As parcas fontes ainda não nos permitem avaliar que reverberação teve a suposta
presença dos cordofones nas primeiras décadas pós-descobrimento, mas com o depoimento
de Barros, temos pelo menos indícios mais claros de sua presença no território brasileiro já
na primeira metade do século XVI. Não é desmedido imaginar que os cordofones de
cordas dedilhadas, tão amplamente difundidos nos países europeus naquele momento, não
estivessem presentes em algumas das expedições dos missionários e viajantes que citamos.
E a tirar pela narração de Pero Vaz Caminha, na qual fica patente que a música foi
uma das ferramentas utilizadas para a aproximação com os nativos desde os primeiros
contatos, também não é despropositado imaginar que tais instrumentos cumpriram algum
papel social (ainda que discreto) dentro do campo de interesses, representações e relações
possíveis da sociedade colonial do período.

3.4 1550-1600: Os missionários jesuítas e os novos viajantes

E quando fossem tão contumazes, que não aceitassem esta lei de Fé, e negassem a lei de
paz, que se deve ter entre os homens, para conservação da espécie humana, e
defendessem o comércio, e comutação, que é o meio por que se concilia, e trata a paz, e
amor entre todos os homens, por esse comércio ser o fundamento de toda a humana
polícia, peró que os contratantes disseram, em lei, e crença de verdade, que cada um é
obrigado ter, e crer de Deus, em tal caso lhe pusessem ferro, e fogo, e lhe fizessem crua

D’evreux (em 1615) e também de Martin de Nantes (que abarca o período de 1671-1688 e narra a missão dos
capuchinhos franceses instalados em Olinda).
304
“A de Loronha, que esteve no cabo de São Roque, na foz do rio de São Francisco e na baía de Todos-os-
Santos, descobrindo, de volta, a ilha de Quaresma (hoje chamada Fernando de Noronha, forma errônea do
nome do descobridor); a de Coelho, que tocou no Cabo Frio, na ilha de São Sebastião, na de Santo Amaro e
na de Cananeia (Duarte Leite, ‘O mais antigo mapa’, pág. 253 sq.). De ambas as expedições fez parte
Américo Vespúcio, talvez contratado por seus patrícios, comerciantes em Lisboa. Na célebre Lettera dirigida
a Soderini, datada de 4 de setembro de 1504, o florentino afirma que, depois de estar na baía de Todos-os-
Santos mais de dois meses, desceu a costa brasileira por espaço de 260 léguas, até chegar a um porto, onde
foi construída uma fortaleza. Nesse porto ficaram vinte e quatro homens, com mantimentos para seis meses.”
(Pinto in Thevet, 1944 [1561], 161-162)
305
Título original da obra: Campagne du navire l´Espoir de Honfleur 1503-1505. Relation authentique du
voyage du capitaine de Gonneville ès Nouvelles Terres des Indes. Publiée intégralement pour la première
fois avec une introduction et des éclaircissements par M. d´Avezac. Paris: Challamel, 1869.
173

guerra; e de todas estas cousas levava mui copiosos regimentos. (Barros, 1552 (1563),
livro quinto, fol.55v)

Esta terra é nossa empresa.


(Pe. Manuel da Nóbrega, Carta III, 1549)

Holler sintetiza com precisão a importância prática e simbólica do trabalho dos


missionários jesuítas para a Coroa portuguesa a partir da segunda metade do século XVI:
“além de ocupar as terras da colônia, trazia os índios para aldeamentos próximos dos
centros urbanos e tornava-os capazes de desempenhar tarefas para os brancos” (Holler,
2006, 38).
Alguns elementos simbólicos foram decisivos para que a aculturação entre os dois
grupos (jesuítas e indígenas) fosse mais imediata: a língua, as cerimônias religiosas e
também a música. O poder que exerciam tais ferramentas para o doutrinamento dos nativos
parece não ter passado despercebido aos primeiros missionários, entre eles o Pe. Manuel da
Nóbrega:
Para a conversão dos columins, ou crianças gentias, os meios que melhor se
estrearam foram principalmente a musica, o canto e o aparato deslumbrador das
cerimonias, que os enfeitiçava. Feitos acolytos os primeiros piás mansos, todos
os mais caboclinhos lhes tinham inveja, do que se aproveitaram os jesuítas
entrando com elles pelas aldêas em procissões, de cruz alçada, entoando a
ladainha, cantando rezas e arrebanhando muitos; com o que se honravam á vezes
os pais. A musica atrahiu assim á civilisação do meio dos bosques muitos, que se
estavam criando para homens-feras; e Nobrega foi quasi um segundo Orfeo em
nosso paiz. (Varnhagen, 1854, 201-202)

É da biografia do Pe. Nóbrega escrita pelo Pe. Antonio Franco em 1719, inclusive,
que descobrimos um possível indício sobre a presença da viola entre os jesuítas logo nos
primeiros anos de permanência no Brasil:
Algumas vezes, estando em Piratininga com poucos Irmãos, mais afastado de
negócios, se mettia na sachristia com um devoto amigo, que lhe tangia uma
viola às portas fechadas, e elle entretanto se estava desfazendo em lagrimas com
muita serenidade. (Franco, 1931 [1719], 63)

Tais relatos se coadunam com os documentos jesuítas do período, conforme


observamos nas Lettras Quadrimestres de 1557 (que contavam os acontecimentos
ocorridos entre setembro de 1556 e janeiro do ano seguinte). Escrita pelo Pe. Antonio
Blasquez, foi endereçada de Salvador (Bahia) ao fundador da Companhia de Jesus, Pe.
Inácio de Loyola, com os seguintes dizeres:
Logo se fez ao derredor da egreja, dizendo os meninos uma cantiga, e respondeu
o outro coro com as frautas, cousa que parecia muito bem, maxime por ser entre
estes Gentios, que em extremo são affeiçoados á musica e cantares, e emtanto
que os feiticeiros que entre eles chamam santos, usam desta manha quando lhes
querem apanhar alguma cousa. A missa foi também cantada com ajuda de
nossos devotos e dos meninos órfãos; a ella se acharam presentes muitos
174

Gentios que não pouco se maravilhavam desta novidade. (Blasquez, 1931


[1557], 159)

Assim, parece não haver dúvidas que a música era uma ferramenta de aproximação
com os “gentios”. Resta-nos investigar, contudo, se os cordofones de cordas dedilhadas
tiveram algum papel dentro de tal contexto? E, se sim, em qual nível?

3.4.1 Os cordofones de cordas dedilhadas na documentação jesuíta

São as cousas mais difíceis no começo.


(Padre João de Azpicuelta Navarro, Cartas Avulsas I)

São sete os vocábulos citados em situações nas quais os contextos de seus usos
sociais e as possíveis correspondências entre uns e outros podem se notar com mais clareza
na documentação jesuítica: barbiti, cytharae, descantes, fides, lyra, vihuela e viola.
Dentre eles, este último é o mais recorrente. Holler afirma não haver dúvidas “de que
as violas mencionadas nos relatos jesuíticos sejam as violas dedilhadas, e não as violas da
gamba ou da braccio”, argumentando ainda que estes instrumentos “são frequentes nos
relatos jesuíticos desde as últimas décadas do séc. XVI até o final do séc. XVII”. (Holler,
2006, 106)
Castagna, por sua vez, pondera que “as citações desse instrumento em Portugal e em
suas colônias, durante os séculos XVI e XVII, são abundantes, sendo encontradas tanto na
música profana quanto nas funções da igreja” (Castagna, 1991, II/221, nota 173). E vai
além quando diz que “a julgar pela documentação conhecida, pelo menos no séc. XVI, era
o instrumento polifônico ou de harmonia mais difundido entre os povos ibéricos” e que,
“no Brasil, pelo uso pouco frequente do cravo, foi o principal instrumento acompanhador e
de harmonia na música profana até o séc. XVIII [...], utilizado também em igrejas que não
possuíam órgãos”. (Ib.) No século XVI, sua forma mais difundida apresentava 04 ordens
de cordas (três cordas duplas com a prima simples). 306
Embora os jesuítas tenham desembarcado em solo brasileiro em 1549, os relatos
inaugurais de cordofones em seus documentos oficiais tardariam quase 03 décadas para
acontecer. Na Ânua da Província do Brasil, escrita em 16 de dezembro de 1578, o Padre
Ludovido Fonseca evoca o termo barbiti como um dos instrumentos presentes na
cerimônia de entrega de láureas para os alunos do Colégio da Bahia. No evento, além de

306
“O violão foi introduzido no Brasil no século XVI pelos portugueses com o nome de viola ou viola de
arame. O instrumento tinha, então, três cordas duplas e a prima simples.” (Taborda, 2004, 11)
175

discursos e recitações, houve também um concerto de tibiae [flauta] 307 e barbiti [alaúde].
308

Como vimos no primeiro capítulo, o vocábulo barbiti e suas variantes (barbitus,


barbitos, barbitum, barbitim, barbiton) foram citados em todos os dicionários históricos do
século XVI e XVII que pesquisamos 309 tendo “alaúde” como a tradução imediata do latim
para o português. No entanto, Mário de Andrade 310 sugere que não existem referências ou
desdobramentos significativos sobre o alaúde no Brasil a partir do século XVI, argumento
comungado por Castagna (1991) e Holler (2006), dois dos maiores pesquisadores
brasileiros sobre o tema e que defendem que outros cordofones de cordas dedilhadas
citados nos documentos jesuíticos do período em questão se referem, na verdade, à viola.
Há duas hipóteses:
1) O termo utilizado pode reverberar a confusão terminológica que já abordamos no
primeiro capítulo, na qual um único cordofone recebia diversas nomenclaturas (e vice-
versa, um único termo poderia representar diferentes instrumentos de cordas dedilhadas).
Neste caso, barbiti poderia muito bem ter sido utilizado com o sentido de viola, como
defendem Andrade, Castagna e Holler;
2) Por outro lado, o evento descreve um acontecimento formal (uma cerimônia de
láurea) dentro do Colégio da Bahia (frequentado pelos filhos dos mais abastados) e com a
apresentação de um concerto (algo menos usual, uma vez que os cordofones de cordas
dedilhadas são mais comumente citados em ofícios religiosos e na ação catequética dos
pequenos índios), fatores que sugerem que aquela não era uma situação cotidiana 311 e que
instrumentos menos usuais (como um alaúde) podem ter sido utilizados para conferir maior
valor simbólico à cerimônia.

307
“Tibia, ae. A frauta, ou canela da perna.” (Cardoso, 1619 [1562], 233)
308
(Ânua do Padre Ludovido Fonseca, 2, 1578, f. 302v). Fonte: original no ARSI, Bras 15 II, doc. 60, ff.
302-304v. Reproduzida nos anexos de Holler (2006). Texto original em latim: “Quod ad studioru’ rationes
attinet, cum eadem semper fuerit reru’ facies, nihil e’ quod peculiare’ aliqua’ mentionem / faciamus. Hoc
tame’ anno in studiorum instauratione (quonia’ philosophiae professoribus indigebamus) duo domestici / et
tres externi non sine ingenti pompa in nostro templo magistrali laurea post acre examen donati sunt.
Celebri-/tatem hanc in Brasilica hactenus inaudita’ illustrissimq hujus prouinciae gubernator,
Reuerendissimus Episcopus, multiq / [alis] ciuitatis proceres praesentia sua cohonestarunt, miramq
uoluptatem ex habilis orationibus, recitatis Epigrama-/tis, musico concentu tibiarum, et barbiti harmonia
perceperunt. Curriculo philosophici (quod hoc anno initiu’ accepit) au-/ditores feliciter sane
progrediuntur./”
309
Cardoso (1562), Barbosa (1611) e Pereira (1634). Para mais detalhes, ver item 1.4.1.
310
Dicionário Musical Brasileiro (1989, 151).
311
Uma nova cerimônia de láurea no Colégio da Bahia só será citada novamente no século XVII, na Ânua da
Província do Brasil escrita pelo Padre Sebastião Vaz em 1614, na qual, segundo ele, houve “vésperas solenes
cantadas”. (Ânua do Padre Sebastião Vaz, 1615, f. 158v). Reproduzida nos anexos de Holler (2006).
176

Neste caso, a tradução literal não é de todo despropositada (barbiti = alaúde),


especialmente se levarmos em conta que apenas dois instrumentos são citados na ocasião
(a flauta e o alaúde, tipicamente instrumentos que poderiam estar juntos em um eventual
concerto). Além disso, a realização de concertos em eventos religiosos mais pomposos
parece ter sido algo não tão raro no Brasil da segunda metade do século XVI, conforme
nos atesta o padre Fernão Cardim sobre uma cerimônia ocorrida na Capitania de São
Vicente: “Para aumento de piedade, foi instituída este ano a célebre confraria de Nossa
Senhora do Rosário, com pomposa solenidade e concerto musical.” 312
Entretanto, é preciso sublinhar uma ressalva diante da segunda hipótese. Ao longo do
século XVI, em Portugal, os espaços sociais que privilegiavam a realização de concertos
ainda eram poucos e se limitavam, basicamente, aos ambientes da corte e/ ou a alguma
casa senhorial mais abastada. 313 Dentre os documentos que corroboram tal percepção,
encontra-se a seguinte passagem da célebre e já citada farsa Inês Pereira, de Gil Vicente,
na qual a protagonista conclama um marido tocador de viola não disponível em lugar
algum “senão na corte”:
Inês: Enfim, que novas trazeis?

Vidal: O marido que quereis,


De viola e dessa sorte,
Não no há senão na corte
Que cá não no achareis.

Falamos a Badajoz,
Músico, discreto, solteiro.
Este fora o verdadeiro,
Mas soltou-se-nos da noz.
Fomos a Vilhacastim 314
E falou-nos em latim:
- ‘Vinde cá daqui a uma hora,
E trazei-me essa senhora’.

Inês: Assi que é tudo nada enfim!


Vidal: Esperai, aguardai ora! [...]

312
Sobre os Colégios e residências da Companhia de Jesus no Brasil. Padre José de Anchieta. Salvador da
Bahia, 1º de janeiro de 1584. Original no ARSI, Bras 8 I, ff. 3-7v. Transcrito em: (Castagna, 1991, II /203).
Texto original: “Instituta est hoc anno ad pietatem augendam celebris Rosarii confraternitas, cum solemni
pompa et musico concentu paracto.”
313
Perspectiva apresentada por Morais: “Ainda que no Portugal quinhentista a viola de mão esteja dispersa
por todo o país, só encontramos o instrumento tocado de forma erudita num círculo bastante restrito, ligado
quase sempre à corte portuguesa ou a alguma casa senhorial.” (2006, 397)
314
Morais esclarece que “os dois músicos citados neste texto são, respectivamente, Juan de Badajoz (fl.1516-
1522) [também conhecido como Badajoz, el musico, autor de obras polifônicas],violista espanhol,
compositor e músico de câmara dos reis portugueses D. Manuel I e D. João III, e Juan de Villacastim
(fl.1516-1548), o mestre da capela do ‘Venturoso’ [alcunha de D. Manuel I, 14º rei de Portugal],
provavelmente oriundo de Villacastín, lugar situado em Espanha, entre Ávila e Segóvia.” (2006, 398)
177

Voltando à realidade do Brasil quinhentista, o que mais nos interessa não é somente
verificar que os cordofones começam a ter sua presença documentada em solo brasileiro,
mas também reconhecer em que mãos e em quais espaços sociais eles estão inseridos. Na
Ânua do Padre Ludovico Fonseca, os instrumentos musicais são manuseados nas
dependências do Colégio da Bahia, em uma cerimônia oficial dos alunos e como um objeto
que supostamente agrega valor simbólico (com a realização de um concerto) à
programação de um evento formal (a láurea dos estudantes).
Este último ponto é decisivo, uma vez que mais do que identificar quais eram os
ambientes de atuação dos jesuítas, é preciso também distinguir os valores sociais
agregados a cada um deles. Holler aponta os colégios, as casas e os seminários jesuíticos
(além dos aldeamentos próximos a tais centros urbanos), como os lugares onde as trocas
simbólicas entre os grupos aconteciam e as condições de possibilidades dos diferentes
grupos sociais eram delimitadas:
Os principais estabelecimentos jesuíticos no Brasil, entretanto, eram os colégios.
Todos os aldeamentos deveriam estar vinculados a um colégio e, com exceção de
algumas missões, como as do Amazonas, deveriam ser estabelecidos em um
local não muito distante deste. [p.40] As casas (ou residências) eram a princípio
escolas de ler, escrever e contar, voltadas para os meninos índios e os filhos dos
portugueses. Aos poucos começavam a oferecer estudos mais avançados e, com
a dotação real e o reconhecimento oficial, passavam a colégios. Com o
progressivo desenvolvimento dos núcleos urbanos, os colégios tornaram-se
estabelecimentos voltados exclusivamente para a formação dos brancos, com
alguns estudos para os escravos negros, sem a presença dos índios. No Brasil
colonial, os colégios jesuíticos eram praticamente a única possibilidade de ensino
superior, possibilidade esta que desapareceria com sua expulsão e seria retomada
somente no séc. XIX. (Holler, 2006, 39-40)

Os apontamentos de Holler encontram respaldo no relato do padre Fernão Cardim,


que ratifica a condição dos colégios serem destinados aos filhos dos “principais da terra”,
enquanto o ensino e a catequese dos índios paulatinamente passam a ocorrer em casas e
residências dos aldeamentos, marcando, portanto, dois territórios distintos de ensino para
cada um dos grupos sociais:
Os estudantes de humanidades [do Colégio de Olinda] que são filhos dos
principaes da terra, indo o padre á sua classe, o receberam com um breve
dialogo, bôa musica, tangendo e dançando mui bem; porque se prezam os pais de
saberem elles esta arte. O mestre fez [p. 330] uma oração em latim. O padre lhes
distribuiu contas, relíquias etc. (Cardim, 1585, 329-330).

Vale pontuar, portanto, que a primeira notificação sobre a presença de um cordofone


de cordas dedilhadas no Brasil na segunda metade do século XVI ocorreu dentro de um
colégio jesuítico destinado prioritariamente à formação dos brancos e filhos de
portugueses.
178

Aliás, é das imediações do Colégio da Bahia que surgirão novos relatos sobre os
cordofones. Na Informação da Província do Brasil, escrita em 31 de dezembro de 1583, o
padre Cristóval de Gouveia informa que em uma das três aldeias vinculadas ao Colégio, os
missionários (padres, irmãos e ordinários) ensinavam canto e instrumentos aos filhos dos
índios, que, por sua vez, os utilizavam em suas festas e danças juntamente com “tamboriles
e vihuelas”, tal qual fossem “muchachos portugueses”. 315
Como vimos no estudo terminológico do 1º capítulo, os termos vihuela, viola e descante
eram correspondentes e possivelmente se referiam a um único instrumento nos primeiros séculos
de vida musical do Brasil pós-descobrimento. 316 Tal suposição ganha mais relevo quando
observamos os relatos do padre Cardim, escritos em 16 de outubro de 1585, e que descrevem mais
detalhes sobre a já citada visita do padre Cristóval de Gouveia ao Colégio da Bahia:
Quando o padre [Christovão Gouvea] visitou as classes [do Colégio da Bahia,
em 1583], foi recebido dos estudantes com grande alegria e festa. Estava todo o
pateo enramado, as classes bem armadas com guardamecins, painéis e varias
sedas. O padre Manuel de Barros, lente do curso, teve uma eloquente oração, e
os estudantes duas em prosa e verso: recitaram-se alguns epigramas, houve bôa
musica de vozes, cravo e descantes. (Cardim, 1585, 286). 317

O documento escrito por Cardim é um dos mais ricos depoimentos sobre a presença
de cordofones em solo brasileiro no século XVI, embora não faça menção sobre quem
eram os instrumentistas ou como era ensinada/ treinada a execução nos instrumentos

315
(Informação da Província do Brasil do padre Cristóval de Gouveia, 1583, f. 334v). Fonte: original no
ARSI, Bras 15 II, doc. 67, ff. 333-339. Documento reproduzido também em Holler (2006): “Tiene este
Collegio tres Aldeas de Indios Xpianos [traço] libre, a su cargo, que tendran ultra dos mil personas, s. el
Spû.to S. / q dista siete leguas de aqui, S. Juan, que dista ocho, S. Ant.o que dista quatorze, e nellas residen
doze de los / nros de ordinario, Padres seis, y otros tantos hermanos, quatro en cada una, tienen enellas sus
casillas, cubier-/tas de palma, y yglesias capazes, adonde enseñan los Indios las cosas necessarias de su
saluación, yuntamte en cada / una enseñan los hijos de los Indios, a leer y escreuir, hablar Portugues,
tomam bien, y le hablan con graçia, ayu-/dan las missas, y desta manera los hazeen politicos y hombres. En
una dellas les enseñan a cantar, y tiene su ca-/pilla de canto y flautas, para suas fiestas, y hazen sus
danças con tamboriles y vihuelas, con mucha gracia, como si / fueran muchachos Portugueses, y
[Inf.CrGouv, 1583 361] quando hazen estas danças se ponen unas diademas p la cabeça, de plumas de /
paxaritos de uarios colores, y desta manera hazen también los arcos, se pintan el cuerpo, y assi pintados, y
mui / galanos asu modo hazen sus fiestas mui aplazibles […]”. Há também uma cópia incompleta e sem
assinatura no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, com o título “Enformacion de la Provincia del /
Brasil para Nuestro Padre”, datada de 31 de dezembro de 1583, a partir de documento da Biblioteca de
Évora, cód. CXVI / 1-33 afl. 37.
316
“Viguela.òVihuela. Viola.” (Bluteau, 1721, 185, anexo). Ver também o item 1.4.5, no qual o termo
descante é dissecado nos dicionários históricos dos séculos XVI e XVII como um cordofone de cordas
dedilhadas cuja sinomínia poderia ser correspondente aos vocábulos lyra, viola, violinha, guitarra, barbitus e
alaúde, dependendo do dicionarista que o emprega. O entendimento do vocábulo como “viola” é também
sugerido por Holler, (2006, 110-111). Oriente também traduz o termo como “viola pequena” (1607, 536),
assim como Moraes e Silva (1823, 571).
317
(Informação da missão do Padre Cristóvão Gouveia às partes do Brasil ou Narrativa epistolar de uma
viagem e missão jesuítica. Colégio da Bahia, 16 de outubro de 1585). Reproduzido em Holler (2006). Fonte:
cópia de Paulo Prado cedida a Batista Caetano, que não indica seu título, paginação e localização.
Publicações: 1. Revista Trimestral do Instituto Histórico, Lisboa, n. 65, 1847, pp. 1-70; 2. [CARDIM],
Tratados, pp. 281-372. 3. Transcrito em CASTAGNA, Fontes, vol. 2, pp. 213-219, a partir da publicação em
[CARDIM].
179

musicais aludidos. Além da citação acima, ele deixou outros 05 registros, em diferentes
contextos, para os termos viola e descante ao longo de sua narrativa epistolar. O relato
seguinte descreve as atividades musicais realizadas por meninos índios entre os matos,
arvoredos e frescos bosques na ocasião do recebimento do padre visitador (Cristóval de
Gouveia?) na aldeia do Espírito Santo:
Chegando o padre á terra [a aldeia do Espírito Santo, em junho de 1583],
começaram os frautistas tocar suas frautas com muita festa, o que também
fizeram em quanto jantámos debaixo de um arvoredo de aroeiras mui altas. Os
meninos indios, escondidos em um fresco bosque, cantavam varias cantigas
devotas emquanto comemos, que causavam devoção, no meio daquelles matos,
principalmente uma pastoril feita de novo para o recebimento do padre visitador,
seu novo pastor. Chegámos á aldêa á tarde; antes della um bom quarto de légua,
começaram as festas que os indios tinham aparelhadas as quaes fizeram em uma
rua de altíssimos e frescos arvoredos, dos quaes saiam uns cantando e tangendo
a seu modo, outros em ciladas saíam com grande grita e urros, que nos atroavam
e faziam estremecer. Os cunumis sc. meninos, com muitos mólhos de frechas
levantadas para cima, faziam seu motim de guerra e davam sua grita, e pintados
de várias cores, nusinhos, vinham com as mãos levantadas receber a benção do
padre, dizendo em portuguez, ‘louvado [p. 292] seja Jesus Cristo’. Outros
sairam com uma dança d'escudos á portugueza, fazendo muitos trocados e
dançando ao som da viola, pandeiro e tamboril e frauta, e juntamente
representavam um breve dialogo, cantando algumas cantigas pastoris. (Ib.,
291-292) [grifos nossos]

Na citação, três fatores são destacáveis e nos ajudam a enxergar alguns modos de
atuação específicos no uso dos cordofones:
1) Se o relato anterior localizava a atividade musical em uma cerimônia oficial
dentro do Colégio da Bahia e com os instrumentos sendo empunhados por estudantes, aqui,
nos arredores da aldeia do Espírito Santo, o espaço utilizado é a “rua de altíssimos e
frescos arvoredos” e os personagens que manuseiam os instrumentos são os “meninos
índios”. É possível, portanto, situar dois espaços (o colégio e a rua), dois grupos (os
estudantes e os índios) e dois usos distintos (uma cerimônia oficial e uma celebração
informal) em cada uma das ocasiões na qual estão presentes os cordofones;
2) Além disso, quando Cardim relata as atividades musicais realizadas pelos
indígenas, também há a descrição de dois modos diversos de atuação musical: alguns
realizavam uma dança d’escudos à portuguesa ao som da viola, pandeiro, tamboril e
flauta; já outros “cantavam e tangiam a seu modo”, ou seja, de um jeito diferente daquele
praticado (e ensinado) pelos portugueses. Notam-se não somente os traços do convívio das
180

duas práticas (a dos nativos e a dos colonizadores), mas também que os instrumentos
musicais citados serviam a ambos os contextos; 318
3) Por fim, especificamente sobre a viola, é preciso destacar que sua presença no
depoimento a identifica com a prática musical de dois repertórios distintos: primeiro,
acompanhando pandeiro, tamboril e flauta, em uma formação instrumental mais dinâmica
e que servia a danças e trocados; segundo, podemos supor que a viola (único instrumento
harmônico citado) era também a acompanhante das cantigas pastoris (mais lentas e
melódicas) apresentadas entre as recitações de epigramas e diálogos mencionados.
Em outro relato, Cardim segue ampliando a nossa percepção sobre em que espaços
sociais estavam inseridos o uso dos instrumentos. E a presença dos cordofones é
novamente atestada pelo vocábulo descante:
Dia dos Reis [06 de janeiro de 1584] renovaram os votos alguns irmãos. O padre
visitador [na aldeia do Espírito Santo] antes da missa revestido em capa
d'asperges de damasco branco com diacono e subdiacono vestidos do mesmo
damasco, baptisou alguns trinta adultos. Em todo o tempo do baptismo houve
bôa musica de motetes, e de quando em quando se tocavam as frautas. Depois
disse missa solemne com diacono e subdiacono, officiada em canto d'órgão pelos
indios, com suas frautas, cravo e descante: cantou na missa um mancebo
estudante alguns psalmos e motetes, com extraordinária devoção. (Ib., 303)

Aqui, observamos que o canto d’órgão, as flautas, o cravo e o descante são utilizados
para oficiar uma missa solene no Dia dos Reis 319, em um contexto de celebração religiosa.
Novamente são os índios que manuseiam os instrumentos, embora o relato também
identifique um “mancebo estudante” cantando salmos e motetes. 320 Assim, os cordofones
de cordas dedilhadas, já citados nas ruas e dentro de colégios, também ocupariam os
espaços simbólicos destinados ao exercício da fé com o propósito de alicerçar a “conversão
dos gentios”, objetivo primeiro da atuação dos jesuítas na colonização brasileira.

318
Estes dois modos distintos de atuação musical são ainda ratificados por Cardim em outra passagem de seu
texto: “Acabada a missa houve procissão solemne pela aldêa, com danças dos indios a seu modo e á
portugueza: e alguns mancebos honrados também festejaram o dia dançando na procissão.” (Ib., 340)
319
Na tradição cristã, o Dia dos Reis remete ao dia no qual os três reis magos do oriente visitaram Jesus
recém-nascido guiados por uma estrela. A data é comemorada no dia 06 de janeiro e a passagem está descrita
no segundo capítulo do Evangelho de Mateus: “E a estrela que tinham visto no Oriente ia à frente deles, até
parar sobre o lugar onde estava o menino. Ao observarem a estrela, os magos sentiram uma alegria muito
grande. Quando entraram na casa, viram o menino com Maria, sua mãe. Ajoelharam-se diante dele e o
adoraram. Depois abriram seus cofres e lhe ofereceram presentes: ouro, incenso e mirra. (Mt 2, 9-11)
320
Os depoimentos sobre a atuação dos índios nos ofícios musicais religiosos (especialmente em missas) são
muito comuns na documentação jesuítica da segunda metade do século XVI. O próprio Cardim nos deixou
mais dois testemunhos: “[...] disse missa cantada officiada pelos indios em canto d'órgão com suas frautas
[...]”. (Ib., 348). E ainda: “Aos 3 de Maio, dia da invenção da Cruz, houve jubilêu plenario em nossa casa,
missa de canto [324] d'órgão, officiada pelos indios e outros cantores da Sé, com frautas e outros
instrumentos músicos.” (Ib., 323-324)
181

No relato anterior, já havíamos observado como os pequenos índios se dirigiam para


receber a benção do padre dizendo – em português – “louvado seja Jesus Cristo”. Não à
toa, os nativos (principalmente os pequenos) também são chamados a participar dos
eventos religiosos (missas, batismos, celebrações) tocando e cantando, em mais uma
evidência de que a música foi uma poderosa ferramenta para a sua cooptação cultural. Tal
fato é ratificado pelo próximo relato de Cardim, no qual se nota a inclusão do ensino do
canto e dos instrumentos no processo de catequização dos meninos índios:
Em todas estas tres aldêas [do Espírito Santo, de Santo Antônio e de S. João] ha
escola de ler e escrever, aonde os padres ensinam os meninos indios; e alguns
mais habeis também ensinam a contar, cantar e tanger; tudo tomam bem, e ha já
muitos que tangem frautas, violas, cravos, e officiam missas em canto d'órgão,
cousas que os pais estimam muito. Estes meninos fallam portuguez, cantam á
noite a doutrina pelas ruas, e encommendam as almas do purgatório. (Ib., 315)

Outro relato, escrito pelo padre Francisco Soares em 1590 (poucos anos após o de
Cardim), reafirma o fato das aldeias terem uma vida musical em torno da catequese e dos
ofícios religiosos, destacando ainda que o ensino começava com crianças menores de 05
anos e que os meninos índios apresentavam um rápido aprendizado:
Onde residem os nossos [catecúmenos, da Companhia de Jesus] em suas aldeias,
comumente tem missa cantada em canto de órgão, os quais são mui inclinados a
cantar. Há moços que não chegam a 5 anos (e, se eu os não vira, e o padre
Cristóvão de Gouveia, boa testemunha, não o creríamos) que cantam muito
destros seus tiples às missas e mais motetes, e escassamente sabem ler. Tomam
seus ditos [papéis] e representam obras em português com certa graça na
pronunciação, que certo é para ver. E assim, os grandes e gente principal, quando
vão ao coro [da igreja], os tem no colo como coisas de espanto, que assim o é.
Alguns tangem e dançam, a saber, viola, flautas 7 juntas, cravo e órgãos e o que
lhes ensinam tudo tomam. 321

No documento anterior, Cardim também elogiou a capacidade dos índios (“tudo


tomam bem”) em adquirir as habilidades ensinadas pelos missionários (e que incluíam
aprender a “doutrina”, ler e escrever português, além de contar, cantar e tanger). E o fato
de violas serem citadas nos dois documentos (o de Cardim e o de Soares) entre os
instrumentos aprendidos amplia o número de espaços sociais nos quais os cordofones
estavam inseridos no Brasil do século XVI: além das ruas, dos colégios e dos ofícios

321
Algumas coisas mais notáveis do Brasil e alguns costumes dos índios, Padre Francisco Soares, s/d [1590].
Fonte: original na Biblioteca da Real Academia de História de Madrid, Jesuítas, tomo 119, MS 254, ff. 1020-
1026. Documento transcrito em: (Castagna, 1991, II /237-238). Utilizamos a leitura atual realizada por
Castagna e transcrevemos aqui também o texto original: “Onde rezidem os nossos em suas aldeas
commummte tem missa cantada / em canto de orgaõ os quais saõ mui inclinados a cantar ha mossos / q’ não
chegam a 5 annos (e se os naõ vira, e o padre Cristouaõ de / gouuea boa testa naõ o crera q’ cantam mto
destros seus tipres as missas e / mais motetes e escasamte sabem ler tomam seus ditos e representaõ obras / e
portuges cõ certa graça na pronunciacam q’ certo he pa ver e asim / os g.es e gente principal quando vai ao
choro os tem no collo como cousas / de espanto q’ asim o he alguns tamge e damcam .s. viola, frautas 7
iun/tas, cravo, e orgaõs e o q’ lhes ensinam tudo tomam”. (Soares, 1590, 1021v)
182

religiosos, eles comprovadamente também estavam presentes na ação catequética dos


jesuítas.
É ainda possível averiguar que, em alguns momentos, tais espaços e condições de
possibilidade se interpenetram, como na ocasião em que Cardim descreve uma procissão
(realizada, portanto, nas ruas) com temática religiosa (em homenagem às santas relíquias):
Na procissão [dia 3 de maio, na Bahia] houve bôa musica de vozes, frautas e
órgãos. Em alguns passos estavam certos estudantes, com seus descantes e
cravos, a que diziam psalmos, e alguns motetes, e também recitaram epigramas
ás santas relíquias. Com esta solemnidade e devoção, chegámos á capella, aonde
houve completas solemnes. (Ib., 325)

Novamente notamos os descantes nas mãos dos estudantes, que se alternam com os
índios no exercício das tarefas musicais que foram documentadas, sobretudo pelos jesuítas,
no território colonial ao longo do século XVI. Na última passagem em que o padre Cardim
deixa perceber a presença de cordofones em seu texto, novamente os dois grupos são
citados, agora com os nativos oficiando uma missa com “boa capela”:
Ao dia seguinte [17 de outubro], por ser dia das Onze mil virgens, houve no
collegio grande festa da confraria das Onze mil virgens, que os estudantes têm a
seu cargo; disse missa nova cantada um padre com diacono e subdiacono. Os
padrinhos foram o padre Luiz da Fonseca, reitor, e eu com nossas capas
d'asperges. A missa foi officiada com bôa capella dos indios, com frautas, e de
alguns cantores da Sé, com órgãos, cravos e descantes. E ella acabada, se
ordenou a procissão dos estudantes, aonde levámos debaixo do pallio três
cabeças das Onze [p. 337] mil virgens, e as varas levaram os vereadores da
cidade, e os sobrinhos do Sr. governador. (Ib., 336-337)

O relato é praticamente uma síntese dos personagens, espaços e eventos mais comuns
nos quais os instrumentos musicais estavam inseridos no contexto jesuítico: 1) Índios,
estudantes e missionários estão entre aqueles que predominantemente manuseavam os
cordofones de cordas dedilhadas; 2) Colégios, ruas e templos (ou ambientes onde se
realizavam ofícios divinos) surgem como os espaços sociais onde mais frequentemente as
atividades musicais ocorriam; 3) E finalmente missas, procissões e outras celebrações de
caráter religioso foram alguns dos eventos nos quais a música recorrentemente foi utilizada
tanto como ferramenta doutrinadora quanto recreativa.
Assim, pouco a pouco vamos criando um panorama que possibilita revelar os
contextos nos quais a música se inseria com mais frequência ao longo da segunda metade
do século XVI. Ainda é necessário, porém, somar os outros vocábulos correspondentes a
cordofones de cordas dedilhadas citados na documentação jesuítica. Segundo Holler:
Os termos ‘cytharae’, ‘lyrae’ e ‘barbiti’ provavelmente designam instrumentos
dedilhados de uma forma geral; pode-se chegar a uma conclusão sobre seu
significado observando-se as referências a esses instrumentos nos textos em
português. Não são encontradas harpas ou alaúdes nos textos sobre o Brasil do
final do séc. XVI, mas violas aparecem frequentemente; além disso, levando-se
183

em conta que os termos ‘cytharae’, ‘lyrae’ e ‘barbiti’ são mencionados nos


mesmos locais e na mesma época que as violas, supõe-se que se trate dos
mesmos instrumentos. (Holler, 2006, 109)

A suposição de Holler encontra respaldo na correspondência terminológica que


fizemos ao longo do primeiro capítulo, consultando os dicionários históricos do período
em questão. Como vimos, “viola” era uma das traduções diretas possíveis para o vocábulo
“cithara, ae” em dois dos nossos primeiros dicionaristas: Cardoso (1562) e Pereira (1634).
322

Nos documentos levantados, tal termo é citado três vezes ao longo do século XVI. O
padre jesuíta José de Anchieta é autor de dois dos relatos, ambos concebidos no início do
ano de 1584: 1) A Ânua da Província do Brasil de 1583; 2) E o relato Sobre os colégios e
residências da Companhia de Jesus no Brasil.
Na Ânua, escrita no dia 05 de janeiro de 1584, o termo é citado no plural (cytharis)
no contexto de uma “devota cerimônia religiosa” precedida por uma procissão realizada
nos corredores do Colégio da Bahia, pelos estudantes, em homenagem ao dia da Invenção
da Santa Cruz (celebrado em 03 de maio). O depoimento de Anchieta elenca a utilização
dos seguintes instrumentos na ocasião: organo [órgão]; tibiis [flautas] 323; clavichordio
[clavicórdio/cravo] 324; e cytharis [violas]. Vejamos a passagem:
Terminou-se o sacrário de todas as relíquias e foi colocado na capela, onde os
irmãos assistem os exercícios quotidianos, pois o Padre Visitador determinou
que, no dia da Invenção da Santa Cruz [03 de maio de 1584], no qual se expõe o
santo lenço e outras relíquias, para serem visitadas em a nossa igreja, em solene
procissão dos nossos, pelos corredores particulares do colégio [da Bahia],
forrados de ricos tapetes, ornados de várias imagens e de todas as relíquias dos
Santos fossem conduzidas e colocadas, com toda a publicidade, em sacrário
distinto, em cofrezinhos, previamente ornados. Celebrou-se em seguida uma
devota cerimônia, acompanhando o órgão, as flautas, e o clavicórdio e as cítaras
as modulações dos salmos. 325

322
Cardoso, o nosso primeiro dicionarista, agrega duas acepções para o termo: “Cithara, ae. A viola, ou
harpa.” (Cardoso, 1619 [1562], 35 b); Pereira, por sua vez, vai ainda mais longe ao lhe conferir três
significados: “Cithara, ae, f. g. A cithara, ou viola, ou harpa.” (Pereira, 1723 [1634], 170)
323
Plural de “Tibia, ae. A frauta, ou canela da perna.” (Cardoso, 1619, 233)
324
“Não há dúvidas de que o termo se refira ao cravo e não ao clavicórdio. Como afirma Castagna (1991, II/
208) em nota sobre a ânua de Anchieta, o volume sonoro do clavicórdio é extremamente reduzido para que
seja utilizado como acompanhador nessas circunstâncias; além disso, o clavicórdio não é mencionado nos
relatos jesuíticos encontrados (nem, ainda segundo Castagna, em qualquer texto em português até 1700), e
chama ainda a atenção o fato de o uso do cravo ter sido mencionado por Cardim no mesmo local e data da
ânua de Anchieta, ou seja, o Colégio da Bahia em 1583 (Rel.FeCar.2, 1585, 286).” (Holler, 2006, 117)
325
Ânua da Província do Brasil de 1583. Padre José de Anchieta. Bahia, 5 de janeiro de 1584. Original no
ARSI, Fundo Epistolae Nostrorum 95 (Epp. Venerabilium S.I. 1555-1592), ff. 118-119v. Transcrito em:
(Castagna, 1991, II/206-208) e (Holler, 2006, 219-220). Texto original: “Perfectum est omnium reliquiarum
sacrarium, et in sacello ubi fratres quotidianis sacris intersunt fuit collocatum. Satuit nempe Pater Visitator
ut die inuentionis Sanctae Crucis, in quo verû ligmon populo, aliaeque reliquiae in templo nostro visitandae
exponuntur solemni nostrorum supplicatione per domestica deambulacra pulchris tapetibus, variisque
imaginibus et floribus vestitis, omnes sanctorum reliquiae deferrentur, et in sacrario capsulis apprime
184

No segundo texto, escrito no dia 1º de janeiro de 1584 e no qual Anchieta relata as


atividades nos colégios e residências da Companhia de Jesus no Brasil, o termo cytharae
volta a ser mencionado no Colégio da Bahia (mais uma vez) dentro de um contexto
religioso, agora com os estudantes das classes superiores reunindo-se nas sextas-feiras da
quaresma para cantar acompanhados pelo som do órgão e das violas (ou alaúdes):
[Colégio da Bahia] Cresce cada dia o número dos estudantes e melhora o
resultado dos estudos [...]. Os meninos da escola primária, que completam o
número de oitenta, dão mostra incomum de sua virtude. Com muita aplicação,
procuram traçar as primeiras letras, para se poderem transferir depois às aulas de
latim. Atraídos pelos prêmios, envidam grande esforço nas frequentes disputas a
respeito da doutrina cristã, que decoram cantando, e das regras da aritmética.
Incentivados pelo exemplo dos meninos, os estudantes das classes superiores,
reunidos, nas sextas-feiras da quaresma, em nossa igreja, cantaram ao som do
órgão e dos alaúdes [violas] as completas solenes, função a que comparecia
quase toda a cidade. 326

Alguns pontos gerais são destacáveis: o número de estudantes primários (oitenta), o


fato da música também ser utilizada no processo de aprendizagem de outras matérias
(“decoravam a doutrina cristã cantando”) e a menção de que tais eventos eram prestigiados
por “quase toda a cidade”. São fatores que mostram que a música possivelmente
desempenhava um papel social mais amplo e que as atividades musicais do período
extrapolavam os muros dos lugares onde ocorriam. É muito difícil imaginar que não houve
reverberação (não documentada) deste processo também em outros espaços e grupos
sociais, com os instrumentos citados circulando nas mãos de portugueses, escravos e
mesmo dos índios, servindo a outro tipo de repertório que não aquele com finalidade
religiosa e catequética. No século seguinte, pipocarão os relatos em tal direção e é possível
que práticas musicais profanas tenham germinado décadas antes, já ao longo dos anos
quinhentos.

ornatis distincto magna cum celebritate ponerentur. Institutaque ita est devota supplicatio comitante organo,
tibiis, clavichordio et cytharis, psalmorum modulatione.” (f. 118).
326
Sobre os Colégios e residências da Companhia de Jesus no Brasil. Padre José de Anchieta. Salvador da
Bahia, 1º de janeiro de 1584. Original no ARSI, Bras 8 I, ff. 3-7v. Transcrito em: (Castagna, 1991, II/202-
204) e (Holler, 2006, II - 366-367). Texto original: [...]; 1) “Scholasticorum numerus in dies maior censetur
uberiorque ex studio fructus excipitur [...]. Abecedarii pueri, qui octoginta numerum complent, non vulgare
suae virtutis specimen praebent. Laborant diligenter in latinas classes transferantur. Doctrinae christianae
quan habent decantar et arithmeticae regulis frequenti disputatione, praemiis invitati, insudant. Puerorum
exemplô excitati, superiores scholastici, in quadragesimae diebus veneris, in nostro templo aggregati,
solemnes completas musico organo cytharisque conmittantibus de cantarunt, quo tota fere civitas
confluebat.” (f. 4v); 2) “scholam habent abecedaria’ / in qua etiam pueri concinendi arti tibijs, & cytharis
diligenter dant operam, Vespertinas / horas & missae sacra tam in pagis, quam in nostro Collegio diebus
sanctorum reliquijs / sacris organico concentu exornant, adquem illi eligiuntur qui ad uocis concentu’
efforma’du’ / uidentur aptiores.”(f. 4) Há ainda uma segunda citação em latim no mesmo documento.
185

A par das hipóteses, o que este último documento comprova é que cordofones de
cordas dedilhadas eram utilizados como acompanhantes da voz em serviços cristãos
realizados nos ambientes jesuíticos. Também é possível sugerir, a partir dos relatos, que a
proximidade dos contextos (ou seja, do uso social que se fazia dos objetos) leva a crer que
os diferentes termos citados referiam-se, na verdade, a um único instrumento (a viola). Ou,
no máximo, que diferentes cordofones de cordas dedilhadas (a viola, a vihuela e o alaúde)
desempenhavam as mesmas funções e nos mesmos espaços sociais.
O terceiro documento que cita o termo cytharae só aparecerá em 1717, na Narração
do Frei Bartolomeu Pilar. Por sua vez, os termos viola, descantes e lyrae (inédito no século
XVI) continuarão a ser utilizados na primeira metade do século XVII, enquanto fides só
dará o ar da graça no século XVIII. São exemplos que analisaremos à medida que nossos
capítulos avançam.

3.5 Sínteses das atividades envolvendo cordofones no Brasil do século XVI

No século XVI, as fontes que citam os cordofones de cordas dedilhadas diretamente


estão nos documentos jesuíticos que apresentamos. Antes de seguir, faremos uma síntese
do uso destes instrumentos musicais no primeiro século pós-descobrimento, elencando
alguns pontos-chaves para sua melhor compreensão:
1) Os cordofones de cordas dedilhadas citados. Os termos mencionados são cinco:
- Barbiti: (Fonseca, 1578);
- Vihuela: (Gouveia, 1583);
- Cytharae: (Anchieta, 1584);
- Descantes: (Cardim, 1585);
- Violas: (Cardim, 1585; Soares, 1590).
2) Os personagens que os utilizaram. Os documentos revelam que os instrumentos
estiveram nas mãos de, pelo menos, três grupos sociais distintos:
- Os missionários jesuítas (padres, irmãos e ordinários), que ensinavam canto e
instrumentos aos filhos dos índios nas casas/ residências jesuíticas dos aldeamentos:
(Gouveia, 1583); (Cardim, 1585);
- Os estudantes dos colégios, primários e das classes superiores: (Fonseca, 1578);
(Anchieta, 1584); (Cardim, 1585). Os colégios atendiam aos brancos e filhos dos
portugueses (“dos principais”), com alguns cursos para negros escravos (embora não haja
documentação que comprove o uso de cordofones de cordas dedilhadas por este último
grupo ao longo do século XVI);
186

- Os nativos, especialmente os “meninos índios”: (Gouveia, 1583); (Cardim, 1585);


(Soares, 1590), que tinham suas escolas de ler, escrever, contar, cantar e tanger nas casas/
residências jesuíticas dos aldeamentos.
3) Os espaços sociais ocupados. Três ambientes são citados mais recorrentemente:
- Os colégios: em cerimônias de entrega de láureas (Fonseca, 1573), nos corredores
(Anchieta, 1584), nos pátios (Cardim, 1585) e nas classes de aulas (Anchieta, 1584), com
especial destaque para o Colégio da Bahia (citado 06 vezes);
- As aldeias: no ensino dos meninos índios (Gouveia, 1583); nas festas e danças
nativas (Gouveia, 1583); entre as ruas, bosques, matos e frescos arvoredos (Cardim, 1585);
- As igrejas ou espaços destinados às celebrações religiosas (missas, procissões,
solenidades em datas simbólicas): Anchieta (1584); (Cardim, 1585); (Soares, 1590).
4) As finalidades e os usos sociais dos cordofones. Preponderantemente, os
instrumentos foram empregados em ofícios religiosos, direta ou indiretamente marcados
pela presença da igreja jesuítica, suas cerimônias e seus missionários. Mas há também
registros de cordofones de cordas dedilhadas sendo utilizados para o ensino, o
entretenimento e mesmo em ocasiões de concerto:
- Para fins religiosos: utilizados em missas (Cardim, 1585) e (Soares, 1590),
batismos (Cardim, 1585), procissões (Cardim, 1585), completas solenes (Anchieta, 1584),
além de cerimônias especiais e/ ou datas simbólicas para a igreja (Dias dos Reis, Dia das
Onze Mil Virgens, Dia da Invenção da Santa Cruz, Quaresma, etc);
- Para fins de ensino/ catequese. Na instrução dos meninos índios, como suporte para
a ação doutrinadora dos jesuítas: (Gouveia, 1583);
- Para fins de entretenimento. Nas festas e danças de nativos: (Gouveia, 1583),
(Cardim, 1585); e também de estudantes (Cardim, 1585);
- Em apresentação de concertos: (Fonseca, 1578) e (Anchieta, 1584).
5) O repertório executado. Basicamente, os cordofones de cordas dedilhadas
desempenharam a função de acompanhantes musicais ao longo do século XVI. E tal
função se efetivou em, pelo menos, 05 diferentes tipos de repertório:
- No acompanhamento de ofícios religiosos, especialmente nas missas, quando
eventualmente dividiam o posto com o cravo: (Anchieta, 1584), (Cardim, 1585);
- No acompanhamento de canções (“pastoris”) que entremeavam diálogos e
epigramas encenados: (Cardim, 1585);
187

- No acompanhamento da catequese. Os jesuítas também utilizavam as canções


(provavelmente acompanhadas pelas violas) para finalidades pedagógicas (“decoram
cantando” a doutrina cristã): (Anchieta, 1584);
- No acompanhamento de um instrumento solista em concertos. No caso, a flauta em
(Fonseca, 1578). Concertos também são mencionados em (Anchieta, 1584);
- No acompanhamento de formações instrumentais de caráter popular, cuja finalidade
era a festa, a dança e o trocado, com a participação de instrumentos solistas e percussão:
vihuela e tamboril em (Gouveia, 1583); e viola, pandeiro, tamboril e flauta em (Cardim,
1585).
Importante salientar como os instrumentos de percussão reforçam as diferenças do
repertório empregado num espaço e noutro. Em nenhuma ocasião, eles foram citados
participando dos ofícios religiosos, apenas nas festas e danças de caráter mais popular que
ocorriam nas imediações dos aldeamentos, entre ruas, bosques, matas e arvoredos. Tal fato
corrobora a perspectiva de que os cordofones de cordas dedilhadas estavam inseridos em
diferentes universos simbólicos e serviam a repertórios com propósitos distintos.
Muita investigação ainda é necessária para termos um panorama mais amplo e
próximo às práticas musicais do século XVI: a documentação de outros missionários,
viajantes, bandeirantes, cronistas e historiadores ainda precisa ser somada com mais
profundidade aos nossos resultados parciais. Do mesmo modo, outros grupos sociais
(como os escravos negros, os europeus de outras nacionalidades e membros de outras
religiões) foram parcamente investigados. Infelizmente, tais grupos tiveram suas práticas
pouco documentadas e deixaram ínfimos registros sobre a utilização (ou não) de
cordofones de cordas dedilhadas em seus espaços de atuação social.
Contudo, os relatos jesuíticos aqui reunidos e analisados já representam uma porta
aberta para começarmos a compreender como a música e os instrumentos foram situados
no bojo dos jogos de interesses estabelecidos entre os personagens sociais daquele período,
o que nos permitirá ir adiante, ao século XVII, onde tentaremos identificar os
desdobramentos destes primeiros passos.
188

CAPÍTULO 04: DIFUSÃO, DANÇAS E SIMBOLISMOS

Ponhamos isto á viola. A Saudade he viola de cinco; ou porque nas cordas do


coração soaõ os zunidos da Saudade, ou porque nos cinco sentidos se percebe o seu
toque: a vióla de cinco nao ha quem a naõ toque, e he raro o que a sabe. Toca a vióla
o barbeiro na tenda, o official na loja, o lacayo na estrevaria, o mochila na rua, o
pagem na sála, o faceira na janella, o negro na dança, o agoadeiro na taberna, o
pajóla na romaria e finalmente, no seraõ a dama, no estrado a donzella, na grade a
Freira, na galhofa a beata, o estudante no presepio, e o mariola diante do pallio. E
pergunto eu: saberâ algum destes bem, e verdadeiramente, que cousa he vióla? Lá
sera para algum abelha mestra como segredo da harmonia: embrechemos o exemplo
nas Saudades; ahi as achareis tantas como praga, mas isso saõ Saudades de dúzias, e
sentimentos de farta velhacos.
(Frei Lucas de Santa Catarina, 1752, I/132)

4.1 Os inventários e testamentos

O século XVII descortina novos caminhos para a compreensão dos cordofones de


cordas dedilhadas nas duas primeiras centúrias do período colonial. Aos relatos dos
jesuítas, somam-se os documentos de outras ordens religiosas (dos carmelitas e dos
capuchinhos), a literatura luso-brasileira (com destaque para a produção de Gregório de
Matos [1636-1696]), além dos inventários e testamentos registrados no Cartório de Órfãos
da Vila de São Paulo entre 1599 e 1705.
Levantados por Castagna (1991) nos anexos de sua dissertação de mestrado, estes
últimos representam, em pelo menos quatro níveis, um passo adiante para a organização do
conhecimento sobre tais instrumentos naquele período:
1) Pela primeira vez os cordofones são associados a nomes próprios (ou seja, o seu
uso é personificado) e não mais a categorias gerais de grupos sociais (como estudantes,
índios ou missionários). É um dado aparentemente irrelevante, mas que ratifica, na
verdade, uma preciosa inferência: estes instrumentos circulavam na sociedade do período e
estavam nas mãos de personagens “reais” que escapavam ao esquema dos jesuítas-
estudantes-indígenas. Mais do que isso, os inventários citam como portadores dos objetos
não somente pessoas do gênero masculino, mas também mulheres, até então ignoradas nos
relatos jesuíticos do século anterior. São fatos que podem indicar que o uso dos
instrumentos pode ter ido muito além àquele que as fontes conhecidas nos deixam
transparecer;
2) Também será a primeira vez em que valores monetários são atribuídos aos
cordofones. A descrição dos preços pode nos ajudar tanto a estabelecer uma média dos
valores que eram atribuídos aos instrumentos, quanto a ter parâmetros para avaliar qual era
189

o valor real (e simbólico) atribuído aos cordofones na comparação com outros


instrumentos e mesmo com outros objetos cotidianos também citados nos documentos.
3) Também observaremos os primeiros relatos que deixam escapar algumas
características físicas sobre as violas que circulavam no Brasil, notadamente no que diz
respeito ao número de cordas, além de uma menção ao tipo de madeira utilizado em sua
construção.
4) Por fim, embora não seja uma novidade (desde muito antes da chegada dos
instrumentos ao Brasil), é preciso dizer que os inventários e testamentos continuam
reverberando a confusão terminológica que existia no período. O vocábulo “viola”
continua preponderante, mas também são mencionados outros termos correlatos: violla
[com duas letras ele (l), o que será muito comum neste e nos séculos seguintes]; “guitarra”,
“cithara”, “sitra” [também designando cítara].
Para facilitar a visualização dos dados, compilamos as principais informações do
Cartório em uma tabela com 06 itens, na qual as citações aos cordofones aparecem em
ordem temporal de ocorrência (da mais antiga em diante):
NOME DOCUMENTO DATA/LOCAL INSTRUMENTO PREÇO DETALHES FONTE
Macia Roiz Inventário 01/08/1605, São Viola 320 Réis 328 ______ (v. XXX, p.
Paulo 327 34)
Paula Inventário 19/08/1614, São Viola/Guitarra 640 Réis 329 Guitarra e (v. III, p.
Fernandes Paulo viola como 290)
sinônimos.
Franscisco Inventário 22/08/1615, São Cithara 1280 Réis Descrita com (v. IV, p. 28)
Ribeiro Paulo uma roda de
rendas
João do Prado Inventário 23/08/1615, São Viola 1280/ 1360 Descrita com (v. V, p. 80)
Paulo Réis 330 08 tastos de
corda.
Balthazar Inventário Julho/1623, São Viola 1280 Réis Viola de 06 (v. VI, p. 25)
Nunes Paulo cordas
Francisco Inventário 19/02/1632, Sitra/Cíthara 480 Réis 331 (v. XIV, p.
Lexo Santana do IX)

327
A data exata está em (Castagna, 1991, III /656): “São Paulo, entre 01/08/1605 e 04/02/1606”.
328
Valor correspondente a uma pataca. Castagna esclarece que “durante a maior parte dos séculos XVI e
XVII, os principais valores monetários que circulavam no Brasil eram o tostão ($100 réis), a pataca ($320
réis) e o cruzado ($400 réis). [...] Outras moedas europeias, trazidas por expedições francesas, holandesas,
inglesas e espanholas, também circularam, avaliadas por seu peso em ouro e prata.” (Castagna, 1991,
III/670).
329
Valor correspondente, portanto, a duas patacas. Na citação seguinte, o valor (1280 Réis) corresponde a 4
patacas.
330
No Cartório também está registrada a arrematação da viola, que aconteceu 05 dias após (em 28/08/1615) a
inscrição do inventário de João do Prado (realizado no dia 23/08/1615). O registro nos diz: “Foi arrematada
a viola com os oito tastos de cordas em Leonel Furtado em mil e trezentos e sessenta réis que nella lançou
por não haver quem por ella mais désse a qual quantia logo pagou que o curador recebeu e assignou aqui eu
Simão Borges Cerqueira escrivão dos órfãos o escrevi – Quadros – Domingos Martins.” (v. V, p. 88)
Transcrito também em (Castagna, 1991, III/658)
331
O Cartório também registra a venda do instrumento: “Contas (Santana do Parnaíba, 18/08/1632) (vol.
XIV – p.xvi) ‘Uma cithara que se vendeu e se pagou’.” Transcrito em (Castagna, 1991, III/661).
190

Parnaíba
Leonardo do Inventário 03/06/1650, Violla/Viola 320 Réis 332 (v. XLIV, p.
Couto Santana do 150)
Parnaíba.
Sebastião Inventário 24/12/1688, Viola 2000/ 2240 (v. XXII, p.
Paes de Santana do Réis 333 230)
Barros Parnaíba.
Affonso Dias Testamento 20/03/1700, N. Violas ------------ Violas de (v. XXIV, p.
de Macedo S. da Candelária Pinho do 471)
do Utuguassú Reino

Tabela 6: Cordofones de cordas dedilhadas citados nos inventários e testamentos do Cartório de Órfãos da
Vila de São Paulo entre 1599 e 1705. Fonte: (Castagna, 1991)

Dissecando a tabela, podemos extrair os seguintes dados:


1) Nome. São citadas nove pessoas, sendo sete homens e duas mulheres. Estas
últimas são citadas logo no início do século (1604 e 1614), o que nos leva a crer que
grande parte de suas vidas se desenvolveram, na verdade, ao longo do século XVI. Isto
demonstra que o uso dos instrumentos, ao contrário do que sugeriam os documentos do
século anterior, não se restringia às pessoas do gênero masculino, apenas que as práticas
das mulheres não foram devidamente documentadas.
2) Documentos. Fundamentalmente, as citações aos instrumentos se concentram nos
inventários. Nos testamentos era mais comum a presença de missas cantadas. 334 Apenas
um deles (o de Affonso Dias de Macedo) menciona “violas de pinho”.
3) Data/Local. Três vilas são citadas: a de São Paulo, a de Santana do Parnaíba e a
da Nossa Senhora da Candelária de Utuguassú. Os relatos atravessam o ínterim de 1605-
1700, com preponderância de ocorrências na primeira metade do século: sete dos nove
exemplos se concentram até 1650.
4) Instrumentos citados. Viola, violla, guitarra, cithara e sitra são os termos
utilizados para designar possíveis cordofones. Castagna (2000, 216) também elenca a
presença de outros dois instrumentos nos inventários paulistas: um pandeiro (avaliado em

332
Sobre o destino do instrumento, Castagna observa que “esta ‘violla’ provavelmente ficou com a ‘orfã
Joana’, segundo a partilha de valores, na pag, 152 [do livro original]”. (Castagna, 1991, III/673). E na página
150 (v. XLIV), o preço e o endereçamento ao quinhão dos órfãos se ratifica: Quinhão dos órfãos (Parnaíba,
04/08[6]/1650) ‘Hua viola [nota 527] em hua pataqua - $320’.
333
O cartório também dá detalhes sobre a arrematação da viola, que ocorreu no dia 25/12/1688, um dia após
o registro do inventário: “(vol. XXII – p. 236-237) Foi arrematada uma viola por não haver quem por ella
mais désse em Domingos Alvres em dois mil e duzentos e quarenta réis o qual dinheiro se entregou a
Thomaz Fernandes como procurador de José Madeira a quem compete o dito dinheiro e assim com seu tio
Sebastião Sutil de Oliveira de que fiz este termo em que se assignou com o dito juiz eu André Nunes de
Oliveira tabellião que o escrevi. – Manuel Franco de Brito – Domingos Alvres Maciel – Sebastião Sutil.”.
Transcrito em (Castagna, 1991, III/668)
334
Como no de Balthazar Nunes: Testamento (São Paulo, 28/05/1623) (vol. VI – p. 17) ‘um officio de tres
lições com sua missa cantada’ e também no de Macia Roiz: Testamento (São Paulo, 13/07/1605) (vol. XXX
– p. 34) ‘hua missa cantada cõ officio’(Castagna, 1991, III/656-658).
191

meia pataca, ou seja, 160 réis) e duas harpas (uma avaliada em 6000 réis e a outra, velha,
em apenas 160 réis).
5) Preços. As quantias tramitam em uma faixa que vai de 320 (uma pataca) até 2240
réis, o montante pelo qual foi avaliada a viola de Sebastião Paes de Barros.
Na descrição dos inventários, temos o seguinte panorama de valores:
02 violas avaliadas em 320$;
01 chítara avaliada em 480$;
01 viola/guitarra avaliada em 640$;
01 chítara avaliada em 1280$;
02 violas avaliadas em 1280$;
01 viola avaliada em 2000$.

Considerando a possível correspondência entre os vocábulos, tais aportes nos


sugerem dois apontamentos:
1) Os preços reafirmam a perspectiva de que os termos viola e cithara devem se
referir ao mesmo instrumento, pois há paridade nos valores atribuídos a um e outro (o
importe de 480$ e de 1280$ surgem exemplificando ambos os vocábulos);
2) Tirada a média dos valores das 08 violas citadas com preços, chegamos à quantia
de 950$. Em termos comparativos, lembramos que um pandeiro foi avaliado em 160$ no
ano de 1604 e uma harpa em 6000$ no ano de 1688. Seriam necessários mais dados (e em
espaços temporais mais próximos) para uma avaliação precisa, mas tais números podem
sugerir que o valor real e simbólico das violas era um pouco superior ao do pandeiro e
consideravelmente inferior ao da harpa.
6) Detalhes sobre a descrição física dos instrumentos. Poucos são os dados sobre
os instrumentos neste sentido. No inventário de Paula Fernandes (1614), os termos viola e
guitarra são usados, em uma mesma frase, para descrever um único cordofone, ratificando
a paridade aceita já investigada e a confusão terminológica do período335. O de Francisco

335
‘Viola’ – ‘Foi avaliada uma guitarra em duas patacas seiscentos e quarenta réis $640’. “Essa citação
demonstra o quão antiga é a confusão que se faz entre esses dois instrumentos, diferentes tanto na estrutura
quanto na origem. Ernesto Veiga de Oliveira (Instrumentos musicais populares portugueses, 1966, 135, nota
2) esclarece a questão: ‘As palavras portuguesas Viola e Guitarra criam mal-entendidos que convém
esclarecer desde já: Viola, em português, designa o instrumento a que em todos os países europeus compete o
étimo de Guitarra (de caixa com enfranque); Guitarra, em português, designa o instrumento que corresponde
a uma espécie de cistro (sem enfranque). Mas mesmo em Portugal a palavra Viola corresponde a dois
cordofones de mão com enfranque: no Norte, onde subsiste com plena vitalidade o velho instrumento
quinhentista, a palavra Viola designa um cordofone daquele tipo, com cinco ordens de cordas metálicas
duplas; ao Sul, onde esse instrumento se extinguiu, ela designa o seu substituto setecentista, de seis cordas
singelas de tripa. A este último instrumento, no Norte, para o distinguir da Viola de cinco ordens, dá-se o
nome de Violão. O instrumento que em todos os países europeus se designa pela palavra Viola – o ‘alto’ dos
192

Ribeiro (1615) refere-se a uma cithara com “uma roda de rendas e outra meia336”,
provavelmente fazendo menção aos detalhes da roseta/ rosácea da boca do instrumento. O
testamento de Affonso Dias de Macedo (1700) dá detalhes sobre o tipo de madeira (“pinho
do reino”) usado na construção das violas que o dito cujo possuía. E por fim, nos
inventários de João do Prado (1615) e Balthazar Nunes (1623), os números de cordas
mencionados são divergentes: oito “tastos” 337 de cordas para a de João e seis cordas para a
de Balthazar.
Antes de analisar este último dado, observemos como a musicologia brasileira, de
maneira geral, situa o status quo sobre o tema:
O violão foi introduzido no Brasil no século XVI pelos portugueses com o nome
de viola ou viola de arame. O instrumento tinha, então, três cordas duplas e a
prima simples. No século seguinte [XVII], iria ganhar mais uma ordem de cordas
e, na segunda metade dos anos de setecentos [XVIII], ainda mais outra.
Transformou-se assim num instrumento de seis cordas duplas, que se tornaram
simples. Isso exigiu um aumento de tamanho para compensar o menor volume de
som. Tornou-se, assim, viola grande. Ou violão.” (Taborda, 2004, 11)

Contudo, o caminho parece ter sido menos linear do que faz supor a citação, uma vez
que os relatos contidos nos inventários (e posteriormente nos documentos dos séculos
XVIII e XIX) nos orientam para outros três entendimentos:
1) O de que não havia uniformidade no número de cordas dos cordofones de cordas
dedilhadas que circulavam no Brasil já nos séculos XVI e XVII (é uma característica que
reverbera o contexto da região ibérica [de onde os instrumentos chegavam] 338 e que
também perdurará ao longo dos séculos XVIII e XIX). Os inventários citam instrumentos
de 4/8 “tastos” de cordas convivendo com outros de 06 cordas já no início do século XVII;
2) Instrumentos com diferentes números de cordas eram chamados pelo mesmo
vocábulo (no caso, violas);
3) Violas com 06 cordas, que imaginávamos ter circulado no Brasil apenas “na
segunda metade dos anos de setecentos”, já transitavam nos espaços sociais do período

cordofones de arco – é designado em português pela palavra Violetta (e às vezes por Viola, numa terceira
acepção do termo)’. (Castagna, 1991, III/672)
336
“O mais provável é [que] essa cítara que veio parar em São Paulo fosse do tipo que tinha braço e caixa de
ressonância, ancestral da atual guitarra portuguesa, e que naquele tempo também era chamada de guitarra”
(Ib.)
337
Os oito tastos de cordas mencionados possivelmente se referem a 04 ordens duplas, hipótese que é
reafirmada pela confusão da descrição do inventário: ‘Foi avaliada uma viola com quatro tastos de cordas
digo oito tastos de cordas em mil duzentos e oitenta réis 1$280’. (Castagna, 1991, III/658)
338
“A falta de notícias sobre a construção de violas no Brasil até 1700 e, mesmo as dificuldades que havia
para isso, fazem supor que esses, como vários outros instrumentos musicais, eram produzidos em Portugal e
trazidos ao Brasil por comerciantes.” (Castagna, 1991, III/671)
193

desde, pelo menos, o início do século XVII (o inventário de Balthazar Nunes é de 1623),
mais de cem anos antes do que a estimativa dada por Taborda.
Entretanto, o mais importante é reconhecer que tais documentos detectam a presença
dos instrumentos nas mãos de personagens cotidianos das vilas em São Paulo, ou seja,
muito provavelmente mais vinculados às práticas da música profana que foram realizadas
fora de contextos religiosos (pelo menos diretamente). O fato de um pandeiro constar entre
os instrumentos citados nos inventários ratifica tal ponto de vista, uma vez que já
observamos que instrumentos percussivos não constavam em ofícios religiosos, apenas em
festas, danças e trocados realizados por índios e estudantes fora dos templos. Isto ratifica a
suposição de que as práticas relacionadas aos cordofones não se limitaram aos usos que
lhes conferiram os jesuítas e a igreja ao longo da segunda metade do século XVI.
Os poucos documentos que sobreviveram sobre as práticas musicais nas capelas
rurais de engenhos são mais um indício a corroborar tal perspectiva.

4.2 As práticas musicais em capelas rurais e fora dos ambientes jesuíticos

Se ao longo da segunda metade do século XVI pipocaram os relatos das atividades


musicais realizadas pelos jesuítas em solo brasileiro, as primeiras notícias sobre a música
praticada em engenhos só surgem no limiar da centúria, em um contexto que reverberava o
início do enriquecimento da aristocracia colonial através da exploração, sobretudo, do
açúcar e do pau-brasil. 339
Castagna reafirma tal perspectiva e nos apresenta os dois solitários exemplos sobre
práticas musicais que podem ter sido protagonizadas pelas “capelas” 340 de músicos que
estavam sob o comando de um senhorio:
Do período anterior à incorporação de Portugal e seus domínios pela coroa
espanhola [que durou de 1580 a 1640], não se conhece qualquer informe sobre
capelas de música rurais. As notícias só começam a chegar com o
enriquecimento da aristocracia colonial, sendo de 1584 o primeiro indício que
recolhemos. Mais precisamente, de 25 de outubro, festa de Santa Catarina no
Espírito Santo, de onde FERNÃO CARDIM informa que ‘O Sr. Administrador

339
“Reafirmando a questão da exploração sem danos para o erário, a correspondência do governador-geral
Diogo de Menezes (1608-1613) dirigida ao monarca, chama a atenção para o que dava realmente lucro à
Colônia, o pau-brasil e o açúcar: ‘Creia-me V. M. que as verdadeiras minas do Brasil são açúcar e pau-brasil,
de que V. M. tem tanto proveito sem lhe custar de sua Fazenda um vintém’ (Souza, 1939, 144). Assim era o
‘sentido da colonização’ nas colônias tropicais ‘explorar os recursos naturais de um território virgem em
proveito do comércio europeu (Junior, 2004, 29)’.”
340
Castagna esclarece que “a expressão ‘sua capella’, que aparece no texto de Cardim, parece realmente
indicar um grupo de músicos pertencentes à casa dessa personalidade, já que escreve de maneira diferente, ao
mencionar grupos mantidos pelos religiosos, como na descrição da festa das Onze Mil Virgens, a 17 de
outubro do mesmo ano, em Salvador: ‘a missa foi officiada com boa capella de índios, com frautas, e de
alguns cantores da Sé, com órgão, cravos e descantes’.” (Castagna, 1991, 92)
194

[...] fez officiar a missa pelos de sua capella, e os índios também ajudaram com
suas frautas’. O mesmo jesuíta dá este outro relato, que observou pouco tempo
depois: ‘O dia da Virgem disse o Sr. Administrador missa cantada, com sua
capella.” (Castagna, 1991, 92)

Contudo, é somente no início dos anos setecentos que começam a surgir relatos mais
concretos sobre práticas musicais ocorridas em capelas rurais. O primeiro a nos dar
notícias é o viajante francês François Pyrard de Laval (ca.1578 - ca.1623), que esteve na
propriedade de Baltazar de Aragão (o capitão-mór da guerra da Bahia) entre agosto e
outubro de 1610. Lá, ele teria conhecido um conterrâneo francês (das proximidades de
Marselha) sobre o qual nos legou o seguinte depoimento:
Capítulo XXVI – Do Brasil e suas singularidades, e do que ali aconteceu
enquanto o autor lá esteve.
(p.236) [...] Quando estava nesta baía [de Todos os Santos, entre
aproximadamente 12 de agosto e 07 de outubro de 1610] encontrei ainda um
francês, natural de Provença perto de Marselha, que era servidor de um dos
maiores senhores daquela terra, a quem chamavam Mangue La Bote, nome que
os negros de Angola lhe haviam dado e que quer dizer o valente, e grande
capitão, porque havia sido ali vice-rei. Este senhor tinha feito tão valentemente a
guerra contra os negros, que era por eles muito temido. Passava por ter em seu
cabedal mais de trezentos mil escudos e tirava grandes rendimentos de muitos
engenhos de açúcar que possuía. Este francês, que estava em sua casa, era
músico e tangedor de instrumentos; e servia-lhe para ensinar música a vinte ou
trinta escravos, que todos juntos formavam uma consonância de vozes e
instrumentos, que tangiam sem cessar. Este senhor me rogou e solicitou muito
para ficar com ele, e me prometia cem escudos de salário e boa comida, somente
para governar certo número de escravos no trabalho. [...] Eu teria de mui boa
vontade aceito as condições, que Ele me oferecia; mas o mal é que quando se faz
algum concerto com eles e que depois se quer desfazer, eles o não permitem. [...]
(Pyrard, 1679 [1615], II/35) 341

A passagem nos revela que este francês trabalhava no engenho de Balthazar Aragão
como mestre de capela e coordenava as práticas musicais de 20 a 30 escravos, muito
provavelmente com o repertório sendo produzido e consumido (pelo menos parcialmente)
no próprio âmbito da fazenda. Duas informações são importantes:

341
Tradução livre de: “CHAPITRE XXVI. Du Bresil, et des singularitez d’iceluy, et de ce qui y arriva
pendant que l’Auther y estoit. Comme j’estois en cette baye, je reencontré encoré un François natif de
Provence prés Marseille, qui estoit domestique d’un des plus grands Seigneurs de ce país-là, que l’on
appeloit Mangue la bote, qui estoit un nom que les Negres d’Angola luy avoient donné, qui veut dire
levaillant, et grand Capitaine, à cause qu’il y avoit fait si vaillament la guerre contre ces Negres, qu’il estoit
fort redouté entr’eux, & on le tenoit riche de plus de trois cent mil écus; Il tiroit un grande revenu de
plusieurs engins à sucre qu’il avoit. Ce François qui demeuroit avec luy estoit Musicien, & joüer
d’instruments, & ce Seigneur l’avoit pris pour apprendre à vingt ou trente Esclaues, qui tous ensemble
faiscient vn accord de voix & d’instruments dont ils ioüyent à toute heure. Ce Seigneur me pria & solicita
fort de demeurer avec luy, & me promettoit cent écus d’appointement, & bien nourry,seulement pour
commander certain nombre d’Esclaves à leur travail; [...] Pour moy, j’eusse volontiers accepté la condition
qu’il m’offroit, mais le mal est, que quand on est engage avec eux, & qu’apres l’on s’en veut revenir, ils ne le
veulent pas permettre [...].”
195

1) O autor descreve que os músicos tangiam “sem cessar”, o que nos leva a
subentender que o trabalho musical não era compartilhado com outras tarefas (ou seja, o
escravo músico provavelmente atendia apenas às demandas de suas atividades musicais);
2) No fim da citação, Pyrard revela ter recebido um convite para tornar-se assistente
do mestre de capela do engenho e dirigir “um certo número de escravos”. O detalhe
decisivo, contudo, é que ele deixa escapar quanto lhe foi oferecido para a incumbência:
100 escudos, além de moradia e “boa comida”. Tal quantia nos dá uma amostra de quanto
poderia receber um diretor musical em uma capela rural de grande porte, afinal, esta era a
propriedade de um dos “maiores senhores daquela terra” e cujos canaviais lhe garantiam
um patrimônio superior a “300 mil escudos”.
É interessante notar que Pyrard não determina a etnia do número expressivo de
escravos músicos (20 a 30), o que pode sugerir que se tratava de negros (historicamente
mais associados aos engenhos do que os índios). No entanto, Castagna pondera:
Nessa época, o índio ainda era largamente utilizado como mão de obra, por ser
mais barato que o negro. Além disso, os meninos indígenas já eram treinados no
ofício da música pelos jesuítas na Bahia desde, pelo meno, 1550. É mais
provável, portanto, que os músicos da capela de Baltazar de Aragão fossem
indígenas, recolhidos entre as missões baianas e então instruídos na execução da
polifonia europeia pelo seu mestre francês. (Castagna, 1991, 93-94)

Embora os argumentos de Castagna sejam válidos, não podemos esquecer que


também havia um precedente para a utilização de músicos negros (tocadores de viola) na
península ibérica desde, pelo menos, a segunda metade do século XVI. 342 E tudo indica
que tal prática também foi comum no Brasil não somente em ofícios religiosos, mas,
sobretudo, em festividades e recebimentos profanos protagonizados pelos escravos de
origem africana. O clima de “condescendência do senhor de terra harmoniza-se com uma
regra mais ou menos generalizada no Brasil colonial, que consistia em se permitir certas
danças e divertimentos em situações controladas para ‘evitar males maiores’ 343, como o
seriam, por exemplo, as rebeliões.” (Budasz, 2004, 13).
Qual, então, a síntese possível dos personagens sociais citados? Ora, por um lado,
estamos em um engenho de grande porte, o que pressupõe a presença de centenas de
escravos negros e um poderoso senhorio; por outro, temos um mestre de capela europeu
ensinando dezenas de outros escravos músicos (índios e/ ou negros). Ou seja, é possível

342
“Negros tocadores de viola, já aparecem no teatro ibérico durante a segunda metade do século XVI.
Descontando-se o tom racista desta literatura, não há como negar-se a presença nos palcos do negro músico,
treinado na música ibérica e conhecedor de certos estilos africanos, que explorava as possibilidades de
combinações formais, rítmicas, instrumentais e timbrísticas entre aqueles dois mundos.” (Budasz, 2004, 11)
343
(Priore, 1994, 85).
196

que o branco europeu, o escravo negro e o empregado índio tenham compartilhado


atividades musicais inseridos em um mesmo ambiente e contexto social.
Assim, se Castagna estiver correto, podemos supor que alguns engenhos com capela
musical se transformaram em potenciais lugares privilegiados para a ocorrência de trocas
culturais simbólicas entre os três diferentes grupos que predominavam no Brasil de então:
os brancos (representados pelo senhorio e o mestre de capela); os negros (representados
pelos escravos e mucamas de origem africana); e os índios (representados pelos possíveis
músicos cooptados a preços ínfimos). Não é possível mensurar o nível e a profundidade de
intersecção entre eles, mas os poucos relatos que sobreviveram revelam, sem dúvida, que
houve cruzamento das práticas entre os diferentes grupos sociais.
É preciso ressaltar que também temos notícias sobre atividades musicais em capelas
rurais no período do domínio holandês no Brasil, quando Raphael de Jesus (então um dos
mais ricos portugueses a viver na colônia) narra as realizações do governador João
Fernandes Vieira em Pernambuco, no ano de 1640:
Para que os officios Divinos se celebrassem, & frequentassem os Sacramentos
com liberdade, & com pompa, comprava ao Hereje permissões, & sustentava em
sua caza capela de Musicos escolhidos, & diversos ternos de charamelas. (Jesus,
1679, v. I, livro V, 3)

Mas foi com o Brasil livre do controle holandês e reverberando o impulso econômico
provocado pela criação de gado, a exploração do açúcar e do pau-brasil, que os relatos
sobre atividades musicais em capelas rurais aumentaram na segunda metade do século
XVII. Os engenhos, autossuficientes, muitas vezes detinham maior número de moradores
do que pequenas vilas, uma vez que precisavam ter, no mínimo, entre 100 e 200 escravos
negros para os trabalhos operacionais, sem contar com as mucamas (que cuidavam das
atividades cotidianas sob a supervisão da “senhora”), os administradores mestiços
(responsáveis pela ordem, vigilância e controle dos servos), além da família do próprio
senhorio (Calmon, 1935).
Além das apropriações entre os grupos heterogêneos que compunham a dinâmica
própria dos engenhos, não é difícil imaginar como o crescimento destes núcleos também
permitiu o cruzamento das atividades musicais que ocorriam em seu âmbito com aquelas
realizadas em outros espaços sociais (vilas, aldeias e ambientes religiosos que escapavam
aos limites da fazenda). É neste contexto que veremos citações aos músicos de
propriedades rurais também nos relatos de padres jesuítas.
O relato do padre João Felipe Bettendorf é um exemplo emblemático: “[...] Logo que
o Padre Superior, Pero Luiz, entrou em o Collegio do Maranhão commigo [em 1681 ou
197

1682], achamos o extrangeiro Pascoal Pereira, nosso amigo antigo, com seus charameleiros
para nos dar as boas vindas.” 344
O que observamos aqui é a constatação de que músicos pertencentes (“seus
charameleiros”) a um particular (“o estrangeiro Pascoal Pereira”) realizam um recebimento
musical festivo dentro de um estabelecimento jesuítico oficial (o Colégio do Maranhão). E
o fato do padre Bettendorf mencionar o personagem como um “antigo amigo” sugere que a
prática de convidar músicos profanos para ofícios dentro de ambientes religiosos pode ter
sido comum (da mesma maneira como, inversamente, muitas vezes estudantes e índios
coordenados pelos padres foram tocar seus instrumentos nas ruas em procissões e
festividades, como já foi observado em exemplos anteriores).
O padre Bettendorf ainda deixaria outro vestígio sobre as práticas musicais de
particulares advindos de engenhos ao citar as missas solenes que ele cantava com a ajuda
dos “domésticos de Diogo Pereira”, os tocadores de violas e rabecas a quem o sacerdote
intitulou de “meus músicos”. (Ib., 593). Analisaremos em detalhe tal depoimento no
próximo item, mas já é possível sugerir que o uso de violas em capelas rurais deve ter sido
comum e anterior aos relatos que se conhecem, uma vez que a importação de instrumentos
de teclas (órgãos e cravos) para ambientes não religiosos (como engenhos, vilas e aldeias)
era uma realidade menos natural por três motivos: 1) O maior custo financeiro; 2) A maior
dificuldade de locomoção; 3) E a mão de obra mais rara (por ser um instrumento mais
difundido e de fácil acesso, certamente havia muito mais “tocadores de viola” do que
tecladistas dentre os índios e escravos cooptados para os ofícios musicais daquele período).
No limiar entre os séculos XVII e XVIII, ainda encontraremos vestígios de ofícios
musicais em engenhos nas atividades do Padre Belchior de Pontes (que rezou uma missa
com Bendito cantado na capela de uma fazenda) e no testamento de Antonio Machado do
Passo (escrito em 1705 e no qual ele declara uma dívida credora de outra fazenda no valor
de 16.800 réis, importe referente ao ensino musical de dois meninos). 345 Dois fatores

344
Crônica da Missão do Maranhão. Padre João Felipe Bettendorf. S/l [Maranhão], 25 de maio de 1698.
Original não localizado. Publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro,
n. 72, 1909, pp. 1-697 [citação na página 347]. Transcrita em (Castagna, 1991, II - 491-507) e (Holler, 2006,
II - 440-459).
345
“Outras notícias de capelas rurais obtivemos de escritos do século XVIII, mas ainda referentes ao período
que estamos estudando. O Padre Belchior de Pontes, em fins do século XVIII, esteve na capela de uma
fazenda a uma légua de Carapicuiba, onde residiam mais de 500 pessoas, para rezar uma missa pela saúde da
mulher do senhor daquelas terras, Maria Leite de Mesquita. Manuel da Fonseca informa que ‘Acabada a
Missa, ouvindo cantar o Bendito, que, segundo o louvável costume introduzindo nas fazendas, no fim della se
costuma cantar, brotou nestas palavras: Em casa, onde se cante tão bem o Bendito, não há morte, prepare se
para trabalhos’. É também da Capitania de São Vicente que nos chegou esta notícia, encontrada no codicilho
do testamento de Antonio Machado do Passo, feito em Itu, a 14 de novembro de 1705: ‘Declaro que me deve
198

tornam este último dado relevante: 1) A constatação de que havia contato entre músicos de
diferentes engenhos (afinal, as músicas de uma fazenda iam ser ensinadas aos meninos de
outra); 2) Este era um trabalho cobrado (e é preciso ressaltar que 16.800 réis não era uma
quantia tão módica para os padrões do período).
O padre luso-brasileiro Nuno Marques Pereira (1652-1728), escritor de cunho
moralista, também viveu a transição entre os dois séculos e nos deixou um registro sobre a
“música pastoril de pretos” protagonizada por 12 escravos, “machos e fêmeas”, que ele
encontrara nas proximidades de uma fazenda de engenho. No relato, podemos não somente
reconhecer a menção musical, mas também o duro trabalho escravo que era imposto aos
negros pelo senhorio:
Tendo caminhado naquelle dia até quasi ás quatro da tarde: ouvi perto da estrada,
por onde se descia a hum valle, a musica pastoril de pretos, que parecia se
estavaõ suavizando do jugo do trabalho; porém como era dia Santo, suppús que
naõ estarião em tal occupaçaõ. Encaminhey para aquella parte os passos, para
tomar informação onde me ficaria mais perto a casa, em que passasse a noite: e
dahi a pouco avistey doze escravos, entre machos, e fêmeas, todos trabalhando
em huma lavoura, na occupaçaõ de cavar. Cheguey, saudey-os, e lhes perguntey
se era dia Santo? Ao que me responderaõ, que bem sabiao que não era dia de
trabalho: porém que seu senhor os mandara para aquelle serviço, e lhes dizia que
se comião naquelles dias, tambem havião de trabalhar; e se algum o repugnava
fazer, o castigava: e porque erão cativos, naõ queriao experimentar mayor rigor,
por serem pretos, pobres, humildes, e desamparados por sua grande miseria.
(Pereira, 1760 [1731], 148-149) 346

Em suma, aqui estão concentrados alguns dos poucos relatos diretos que
sobreviveram sobre a presença de cordofones de cordas dedilhadas em capelas e/ ou
fazendas rurais nos séculos XVI e XVII. Certamente, tais domínios foram espaços
privilegiados para trocas representativas ainda pouco documentadas e conhecidas.
Castagna aponta possíveis causas para o número parco de referências, embora pondere que
o aumento da prática musical no período sugira que havia uma quantidade bem maior de
capelas com atividades musicais em fazendas e engenhos:

a fazenda de Cornelio Rodrigues Arzão que Deus tem dezesseis mil e oitocentos réis do ensino de dois
meninos de minhas musicas’. ”(Castagna, 1991, 96)
346
As supostas razões pelas quais os negros escravos deveriam também trabalhar em domingos e dias santos
é justificada por Pereira em outra passagem de seu livro: “Pois Senhor: (lhe disse eu) Como, sendo hoje dia
Santo, os consentis trabalhar, e deixais de os mandar ouvir Missa, quebrando dous Preceitos: hum Divino, e
outro Ecclesíastico? Respondo: (me disse o morador) Duas saõ as causas: A primeira, porque saõ de tal
condição estes escravos, que se os mando ouvir Missa, vão metter-se por outras fazendas, com folguedos
similhantes a esses que ouvistes em casa desse morador, onde estivestes, e o reprehendestes destes calundús,
e feitiçarias. A segunda causa he, porque quando os mando á Missa, tomão-se de bebidas, e fazem varias
brigas, desaguizados, e travessuras; e poucas vezes vem para casa, sem que lhes suceeda algua cousa destas.
Em cujos termos, resolvo que mayor acerto he, visto dar-lhes eu o sustento, e o vestido, occupá-los: porque
também he certo, que o escravo ocioso ordinariamente cria vicios; e destes resultão mayores offensas de
Deos.” (Pereira, 1760 [1731], 155)
199

É possível supor que a preocupação com o trabalho na terra e mesmo os


problemas decorrentes de uma região hostil aos europeus, principalmente nos
arredores de São Paulo, dificultassem a manutenção de grupos de cantores e
instrumentistas em casas de engenhos. Mas, a julgar pela proliferação que
tiveram nesses dois séculos e pela comprovada extensão da prática musical no
Brasil daquela época, cremos que a quantidade de capelas rurais foi bem maior
que aquela apresentada pelos escritores. (Castagna, 1991, 97)

Tais dados somados àqueles oferecidos pelos inventários e testamentos ratificam a


perspectiva de que as violas e instrumentos que cumpriam as mesmas funções já se
encontravam amplamente difundidos fora dos ambientes jesuíticos a partir, pelo menos,
das décadas iniciais dos anos seiscentos. Agora vejamos como estas referências se cruzam
com a documentação jesuítica que continuou a ser produzida ao longo do século XVII no
Brasil.

4.3 A documentação jesuítica e de outras ordens religiosas

O primeiro relato sobre a presença de cordofones de cordas dedilhadas na


documentação jesuítica do século XVII advém da Aldeia de Reritiba, com a Relação da
Província do Brasil escrita pelo Padre Jácomo Monteiro, em 1610. Segundo Serafim Leite,
esta aldeia foi um dos estabelecimentos jesuíticos mais antigos do Espírito Santo e sua
fundação foi anterior ao ano de 1581 (Leite, 1939-1949, I/248). O padre Monteiro nos
revela que às margens do rio Reritiba havia uma “aldeia de gentio com perto de três mil
almas” na qual houve um movimento catequético fervoroso e cuja atividade reverberou ao
longo dos séculos XVII e XVIII. Vejamos o depoimento:
Dos Gaitacases à Capitania do Espírito Santo vão 30 léguas, no meio das quais
está um rio chamado Reritiba, na língua da terra Rio das Ostras, por haver ali
muitas e boas. Dele pera o Sul começa a Capitania de Pero de Gois, que foi a
primeira povoação de Portugueses nesta paragem. Junto a este rio está uma
Aldeia de gentio, que temos a nosso cargo, e terá perto de três mil almas, aonde
nos fizeram mil festas por mar e por terra, já a seu modo, já à portuguesa,
esperando-nos uma légua antes da Aldeia, a qual toda estava de uma e outra
banda, cercada de palmeiras que pera o dia se trouxeram, aonde os Principais
Morubuxabas, vestidos ao natural, com os giolhos em terra, nos davam as boas
vindas, acompanhados de colomins, bem empenados, e mui bons dançantes e
tangedores de frautas, violas, e com bandeiras, arcabuzaria, e mil outras
invenções. 347

O complexo da antiga Aldeia de Reritiba é hoje chamado de Santuário Nacional de


Anchieta, em menção ao fato de lá ter sido o local de falecimento do Padre José de
Anchieta (09 de junho de 1597). A cidade de Anchieta localiza-se a 80 km da capital,

347
Relação da Província do Brasil. S/a [Padre Jácomo Monteiro]. S/l, s/d [1610]. Original no ARSI, Vitae
153, ff. 54-66v. Publicado em: (Leite, 1938-1949, VIII - 393-425). Transcrito em: (Holler, 2006, II - 387).
200

Vitória, no litoral sul do Espírito Santo. Lá, ainda está de pé a antiga igreja dos jesuítas,
com parte de seus traços originais preservados:

Figura 28: Igreja jesuítica na antiga Aldeia de Reritiba. Fonte: Portal Jesuítas Brasil –
www.jesuitasbrasil.com

Porém, a mais importante informação que podemos extrair da citação reafirma


justamente outro aspecto: a de que serviços musicais profanos (como recebimentos e
festas) aconteciam paralelamente aos ofícios religiosos na sociedade do período. O relato
de Monteiro nos deixa visualizar “mil festas” realizadas – “ao seu modo e ao modo
português” - por “curumins dançantes e tangedores [tocadores] de flautas e violas”. É mais
um indício daquilo que insinuavam os inventários e testamentos que analisamos.
Tal perspectiva segue sendo reforçada na documentação jesuítica, mas com uma
particularidade: as festas em espaços profanos guardam sempre algum vínculo com
temáticas religiosas que se revelam antes, durante ou depois do evento descrito. Assim, em
um caso sui generis, as práticas se cruzam (a profana e a religiosa). É o que observaremos
na Ânua da Província do Brasil de 1611 (sem indicação de autor), na qual é narrada uma
procissão realizada em Pernambuco em ação de graças à chuva. O cortejo festivo e musical
é realizado em um espaço profano (as ruas). Todavia, carrega símbolos “da fé, da
conversão das almas, do zelo e do amor divino” desfilando no topo de um carro triunfal
que, em sua parte de baixo, é acompanhado por cantores, “lyricines e tibicines.” 348 Ou
seja, não foi um acontecimento completamente profano. Nem religioso.

348
Ânua da Província do Brasil de 1611. S/a. S/l, março de 1612. Original no ARSI, Bras 8 I, doc. XXVI, ff.
116-119. Transcrita em (Holler, 2006, II/236). Texto original em latim: “... Ad / latera adstabant Angeli
uestibq conspicui, ad pedes haeresis, idolatria, peccatu’, et hum-/ani generis aduersariq catenis alligati
submisso uultu, sub tristiqß facie conscipiebantr’, / nec chorus musicus inde aberat: ita uero pie procedente
agmine ad maximu’ templum, / per quod transitus erat, aliq similiter triumphans currus non minori
201

No entanto, o que mais nos interessa é a indicação da presença dos instrumentistas no


séquito: os lyricines e os tibicines. Aqui, novamente poderemos constatar a decisiva
importância das correspondências terminológicas que fizemos entre os instrumentos nos
primeiros séculos pós-descobrimento com base nos dicionários históricos do período.
Vejamos como Holler analisou um dos vocábulos:
A tradução literal para ‘lyricines’ seria ‘tangedores de lira’. Em nenhum outro
texto encontra-se qualquer referência a esse termo, usado aqui provavelmente
pelo caráter mais ornamental que prático da presença dos instrumentos no carro
triunfal. (2006, 109)

No entanto, ao resgatarmos o sentido do termo no dicionário do humanista Jerônimo


Cardoso (escrito em 1562 e republicado em 1619), veremos que a tradução imediata do
vocábulo lyra é, na verdade, “viola”. Só tal fato já poderia nos reorientar a percepção sobre
o “caráter ornamental” e não prático da presença dos instrumentos. Mas o autor ainda
ratifica a reconstrução de tal óptica quando traduz os termos lyricines e tibicines do latim
para o português:
Lyricen, inis. O tangedor de viola.
Lyricina, ae. A tangedora de viola.
(Cardoso, 1619 [1562], 107b)

Tibicen, inis.p.p. O tangedor de frauta.


Tibicina, ae. A tangedora de frauta.
(Cardoso, 1619 [1562], 233)

Portanto, é mais pertinente acreditar que os termos se referem à presença de violas e


flautas (aliás, uma formação recorrente em relatos anteriores) na procissão em homenagem
à chuva descrita na Ânua de 1611.
Aliás, o perigo de uma interpretação errônea também circunda o vocábulo descante,
que aparece com distintas acepções nos dois documentos em que é mencionado na
primeira metade do século XVII (1614 e 1621). No primeiro deles, a Carta do padre
Henrique Gomes, o verbete é utilizado com o sentido de instrumento musical para
descrever as doutrinas realizadas aos domingos, que eram precedidas por saídas às ruas nas
quais padres, mestres e estudantes tinham a missão de “ajuntar” pessoas com “boas
músicas” para participar da celebração na Igreja:
Não é menos o fervor que se enxerga em as doutrinas, as quais se fazem todos os
domingos à tarde na nossa Igreja, depois de o Padre, que as tem a cargo, ir pelas

elegantia, et mag-/nitudine alteri uenienti sese tulit obuiq; uertici fides, animarum conuersio, zelus, et /
diuinus amor cu’ insignibq, suo quisqß in solio, insidebat, ima psaltes, lyricines et / tibicines em um carro
triunfal occupabant. Illi luculento carmine egregie Ignatiis facta, et Libitina dig-/nissima enco’mia
buccinantes gratias soluere im’ortales, nec captiui, et concatenati / obiurgationibq [canuere]. hi cantq
miscebant auribq iucundissimos: hic comes, deinde in / uia currus pone subsecutus est aliu’. [...] Demu’ in
maiori altari, [martir] /”.
202

ruas com os mestres e estudantes, ajuntando quantos podem; e, assim com isso,
como com boas músicas, que sempre há, descantes, órgãos, e às vezes frautas
e charamelas, há de ordinário grande concurso, e se enche a Igreja como para
qualquer prègação. Na mesma forma correm em Pernambuco, salvo o variarem-
se por diversas Igrejas, por estar a povoação da vila mais espalhada que a desta
cidade. 349 [grifo nosso]

Note-se que mais uma vez os espaços profanos e sagrados (a rua e a igreja) se
confundem em um mesmo contexto, orientados direta ou indiretamente pelos ofícios
religiosos. Em relação ao termo descante, o fato de estar elencado entre outros
instrumentos reafirma o seu entendimento nesta direção (os relatos são muito próximos,
inclusive, aos do padre Fernão Cardim). Neste caso, aplica-se a paridade sinonímica entre
os verbetes descante e viola.
Em contrapartida, na Relação do padre Mateus de Aguiar, escrita em 25 de dezembro
de 1621, o significado da entrada não é tão nítido e pode se aplicar tanto à tradução de um
cordofone de cordas dedilhadas que lhe conferem Cardoso (1562) e Barbosa (1611), ou à
acepção de canto que lhe atribui Oriente (1607) ou finalmente ao conceito de um concerto
de instrumentos músicos que lhe é dado por Bluteau (1712) e Moraes e Silva (1823). 350

Miremos a passagem:
E tanto que se acabou de fazer a Igreja e tudo o demais, aos 2 de Fevereiro, dia
de Nossa Senhora das Candeias, depois de jantar, se deu princípio às obras
novas, armando o primeiro taipal. E para o solenizar, se arvorou um formoso
mastro com sua bandeira branca de vinte palmos em quadra, ao som de um
tambor, e de muitas arcabuzadas e mosquetadas, que com muita destreza
disparavam os mancebos da terra, entressachando sua música e descante e
repiques de sinos e um Te Deum Laudamus do Padre Vigário, com todos os
músicos de sua capela. Tudo o qual fazia suave e deleitosa harmonia, e diziam
os homens que já com tais mostras de alegria estavam firmes do bem que tanto
desejavam e nem faltaram, em seus intervalos, algumas danças de mancebos que
o faziam mui destramente. 351 [grifo nosso]

Para Holler, “nesse trecho o sentido de ‘descante’ obviamente não se refere a


instrumentos, mas a cantos” (2006, 111). É possível, embora também não seja fora de todo
o propósito considerar qualquer uma das outras duas acepções. De qualquer maneira, a
citação reitera como as atividades musicais profanas eram endossadas e/ ou decorrentes de
celebrações em torno da igreja nos relatos jesuíticos.

349
Carta do Padre Provincial Henrique Gomes ao Padre Assistente Antônio de Mascarenhas. Bahia, 16 de
junho de 1614. Original no ARSI, Bras. 8, ff. 169-174. Publicado em: (Leite, 1938-1949, V - 5-24).
Transcrita em (Holler, 2006, II - 154) e (Castagna, 1991, II/264-265).
350
Ver item 1.4.5: O Português arcaico: o vocábulo descante.
351
Relação da nova Residência que se fez em Porto Seguro por ordem do Padre Provincial Domingos Coelho
aos 25 de Dezembro de 1621 annos. Padre Mateus de Aguiar. Original no ARSI, Bras 8, ff. 317-319.
Publicado em: (Leite, 1938-1949, V /229-236). Transcrito em: (Holler, 2006, II/396).
203

O quinto (e último) documento da Companhia de Jesus a citar cordofones de cordas


dedilhadas no século XVII é também o relato mais rico e esclarecedor em relação aos
instrumentos e práticas musicais 352: a Crônica da Missão do Maranhão, escrita pelo Padre
João Felipe Bettendorf no limiar da centúria, em 25 de maio de 1698.
Ao descrever as “cousas que succederam à missão em tempo do governo do padre
romano Pero Luiz Gonsalvi”, Bettendorf revela que integrou uma comitiva recebida pelo
Padre Gonçalo de Veras em uma residência do Caeté com as “danças dos moradores” que
fizeram “festa com as suas violas”:
[...] deste modo fomos bellamente até a residencia do Caeté, onde o Padre
Gonçalo de Veras, que tambem era vigario da vara para os brancos, nos
agasalhou com toda a satisfação, não faltando as dansas dos moradores que, á
boca da noite, vieram com suas violas fazer festa a seu vigario geral e
juntamente a mim que ia em sua companhia. 353 [grifo nosso]

Embora, na prática, isto não represente uma novidade, é preciso notar que esta é a
primeira vez que aqueles que empunhavam violas são chamados de “moradores”
(contrapondo-se as categorias de estudantes, índios e missionários), o que corrobora uma
sutil mudança em duplo sentido: 1) Atividades musicais profanas passam a ser mais
frequentes e documentadas; 2) As condições (e mesmo o vocabulário) para descrever tais
atividades e os seus personagens mudam e/ ou ampliam ao longo dos anos seiscentos.
Aqui, os moradores (não necessariamente vinculados a nenhum colégio ou casa jesuítica)
são os protagonistas e o cunho religioso do recebimento não é decisivo.
Novo testemunho reforça o fato de que a descrição do uso dos instrumentos não se
limitava mais ao eixo estabelecido entre jesuítas-estudantes-indígenas nos anos quinhentos.
Ao descrever as próprias atividades em uma Igreja na aldeia de Inhuaba (na capitania de

352
Nesse período tem-se o relato mais rico em referências a instrumentos, a Crônica da Missão do Maranhão,
do Padre João Felipe Bettendorf, datada de 1698. Além da Crônica, as cartas ânuas escritas pelo Padre
Bettendorf são prolíficas em informações sobre prática musical, o que parece indicar uma inclinação pessoal
do Padre Bettendorf pela música, [p. 72] característica comum a alguns padres de origem germânica. Na
Crônica são feitas várias referências a índios músicos (geralmente chamados de ‘charameleiros’ ou ‘mestres
de capela’) levados nas missões para que atraíssem os selvagens; na missão à Serra de Ibiapaba de 1565, logo
após a chegada dos padres, fizeram-se ‘os ofícios divinos com canto de órgão com os índios músicos e
charameleiros que lá se achavam, vindos de Pernambuco, onde antes moravam’ (Cro.JoBett, 1698, 96). A
mesma Crônica descreve as atividades do Padre Gonçalo de Veras nas aldeias do Maranhão, ‘não tendo
outros romeiros que os rapazes que lhe serviam e tocavam as flautas do tempo do sacrifício da Missa, por ser
um deles Tabajara da serra, que sabia tocar, e ter além destes uns índios charameleiros da mesma nação’ (p.
224) e, em torno de 1670, a visita do Padre Superior às missões do Maranhão, acompanhado por ‘um índio,
por nome Thomazio, trombeteiro’ (p. 260). (Holler, 2006, 71-72)
353
Crônica da Missão do Maranhão. Padre João Felipe Bettendorf. S/l [Maranhão], 25 de maio de 1698.
Original não localizado. Publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro,
n. 72, 1909, pp. 1-697 [citação na página 301]. Transcrita em: (Castagna, 1991, II/491-507) e (Holler, 2006,
II/440-459).
204

Cametá, no Rio Tocantins), o próprio Padre Bettendorf nos deixa visualizar que cantava as
suas missas solenes ancorado pelos “domésticos de Diogo Pereira”:
E foi cousa para se notar muito que ao mesmo tempo que tudo eram umas
tristezas pelas outras partes, naquelle logar [“Inhuana, aldêa de riba, no 2º
semestre de 1695”] cantasse eu missas solemnes, ajudado dos domesticos de
Diogo Pereira, que eram os meus musicos, e acompanhavam canto com suas
rabecas e violas, que tocavam com muita destreza, e sobre todos elles Manoel
Pereira, filho morgado de Diogo Pereira, que, na ausencia do Padre João Justo,
me acompanhava, explicando-lhe eu a logica e physica até o fim das cousas. (Ib.,
593 [IHBG])

O rico relato nos apresenta uma série de informações relevantes:


1) Os responsáveis pelo acompanhamento musical da missa solene são os
empregados de Diogo Pereira. Até então, só tínhamos visto meninos índios e estudantes
sendo os protagonistas secundários dos ofícios religiosos;
2) Dois instrumentos são citados para acompanhar o canto na ocasião: as violas e as
rabecas. Estas últimas substituindo as flautas (“frautas”), mais comuns nos relatos que
descrevem as atividades musicais (religiosas ou não) dos índios;
3) O Padre pontua a “destreza” daqueles que tocavam os instrumentos e destaca,
entre eles, Manoel Pereira (o filho do patrão, Diogo Pereira). Castagna sublinha a
particularidade da presença do filho do proprietário desempenhando um ofício musical
considerado pouco digno até então (Castagna, 1991). Tal menção amplia ainda mais a lista
de personagens sociais que estão no centro de afazeres musicais nos dois primeiros séculos
da colônia: patrões, domésticos (escravos?), estudantes, indígenas e missionários.
Por sinal, as atividades musicais e pedagógicas destes últimos (especialmente dos
padres), embora menos frequentes, permanecem aduzidas ao longo do século XVII. 354

Bettendorf, que já vimos narrar a sua própria experiência na aldeia de Inhauba, também
assinala o trabalho didático de outro sacerdote no entorno da pequena Igreja de Nossa
Senhora da Luz:
Não é crível quanto sentiram os visinhos de nossa roça a mudança do Padre
Diogo da Costa para o Collegio [do Maranhão, entre 1690 e 1692], porque sabia
fazer ornamentos de papel para a egrejinha de Nossa Senhora da Luz, que lá
temos, que pareciam ornamentos das mais ricas e engraçadas télas do Reino, e
como tambem sabia cantar e tocar admiravelmente bem a viola, ensinou os
rapazes a cantarem e tocarem, suspendia os ouvintes quando se cantavam as
Ladainhas e Salve Rainha á honra da Virgem Senhora Nossa da Luz, cuja

354
“Em alguns documentos do séc. XVII também se encontram referências à prática musical por padres
jesuítas, embora com menor frequência. A Ânua da Província do Brasil de 1670 a 1679, do Padre Felipe
Coelho, menciona a morte do Padre Gondiçalus Pereira em 1679, descrito no documento como ‘pintor,
alfaiate, torneiro e músico’ (An.FeCoel, 1679, f. 243v) [...]. Em sua Crônica, o Padre Bettendorf cita o Padre
João Maria Gorzoni, na Aldeia de Cairitiba, em ca. 1670, ’que tocava uma gaitinha, [...] perfeitamente bem
por solfa’ (Cro.JoBett, 1698, 270); cita também o Padre Diogo da Costa, que se mudou para o Colégio do
Maranhão entre 1690 e 1692, e ‘sabia cantar e tocar admiravelmente bem a viola’.” (Holler, 2006, 161)
205

imagem se venéra naquella roça, que era a que os primeiros padres puzeram em
nossa egreja do Maranhão, donde eu a tinha mudado muitos annos havia, quando
nos veiu a nova, tambem de vulto, que hoje temos em Maranhão. (Ib., 478
[IHBG])

O relato expõe, portanto, a primeira alusão nominal à viola sendo ensinada por um
padre jesuíta: Diogo da Costa, que a tocava “admiravelmente”, “ensinava rapazes” e
“suspendia os ouvintes” nos cantos em honra da Virgem.
Mas o século XVII também nos legou os primeiros relatos de missionários de outras
ordens religiosas, fato decisivo para constatarmos que também houve um movimento
musical no Brasil (ou em direção ao Brasil) que escapou aos interesses e condições de
possibilidade estabelecidas pelos jesuítas.
O primeiro deles é o do padre Dionigio de Carli (1627-1695), de Piacenza (Itália),
missionário com viagens para a África, América, Ásia e a própria Europa. Seu livro, O
Mouro transportado à ilustre cidade de Veneza, foi escrito em 1687 e nos oferece as
seguintes informações sobre o embarque de instrumentos musicais em frotas de navegação
acompanhadas por sacerdotes capuchinhos:
Livro primeiro.
Navegação ao mundo novo, e à cidade de Pernambuco. Cap. IV. [...]
Numa ordem inalterável, praticavam-se diariamente estas coisas no navio
[português, antes de chegar à ilha de madeira, em 1667]: tocava-se com tambores
a alvorada e com o sino a Ave-Maria; todos os rapazes (eram doze) iam juntos
dar o seu bom dia ao capitão; ao se vestirem, tocavam as trombetas em concerto,
fazendo os mesmos para os oficiais e depois para toda a brigada, enquanto se
preparavam os Sacerdotes, que eram seis, para celebrar a santa missa, que, para
assisti-la, concorriam todos devotamente, com a coroa, rosário ou ofício nas
mãos. Nação verdadeiramente devota esta, entre todas as outras. Terminada a
missa almoçavam, para melhor resistirem ao balanço do mar. Voltavam, depois,
cada qual à sua função, escrivães, dispenseiros, dando a todos a sua ração e água
muito bem medida, geralmente suja e contaminada, sapateiros, costureiros,
carpinteiros e cozinheiros. Entre os passageiros, que eram mais de 50, haviam
os que dormiam, os que jogavam, os que tocavam guitarras, chamadas
violas pelos portugueses, os que conversavam, que pescavam e faziam
cordas. [...] Enquanto o capitão jantava, tocavam as trombetas em concerto e, em
seguida, davam-se graças à S. D. M., recreando-se, então, por algum tempo, [...]
(Carli, 1687, 16). 355 [grifo nosso]

355
Original em italiano: “Per ordine inalterabile si pratticava da tutti giornamente questo in Vascello Sonata
la Diana cò Tamburri, e l’Ave Maria con la Campana, tutti li Ragazzi (erano dodeci) vniti si portauano à
dar il buon giorno ao Capitano; nel vestirei del quale in concerto sonauano le trombe; e doppo à gl’officiali,
e poscia à tutta la brigata; nel qual mentre si preparauano li Sacerdoti, ch’erano sei, per celebrate le Sante
Messe, all’assistere delle quali concorreuano tutti devotamente con la Corona, Rosario, ò Officio nelle nani:
natione veramente frà tutte l’altre devotissíma. Terminate le Messe, si faceua colatione, per più resistere al
moto del Mare; poscia ciascuno ripigliava il suo proprio esercito, chi di Soriuano, chi di Dispensiero, nel
dar à tutti la sua ratione, e l’istess’acqua à misura, e per lo più puzzolente, e verminosa; chi di Calzolaio:
chi di Sarto, di Falegnaune, di Fabro, di Cuoco, e simile. De Passaggieri, chi dormiua, chi giuocana, chi
sonaua, essendoui più di 50. Chitarre, da Portoghesi chiamate Viole; chi discorreua, chi pescaua, chi
sfaceua, e faceua delle corde; [...] Mentre poi pransava il Capitano, toccauano le Trombe in concerto,
doppo vnitamente se rendeuano le gratie à S.D.M., e rioreati per qualche poco di tempo, [...]”. Transcrita em
(Castagna, 1991, III/482-483).
206

É interessante notar que as guitarras (violas para os portugueses) são mencionadas no


depoimento como um passatempo para as longas viagens (a par do que ocorrera quando
João de Barros descreveu a partida das naus de Pedro Álvares Cabral em 1500: “porque,
para viagem de tanto tempo, tudo os homens buscavam para tirar a tristeza do mar”). Aqui,
dentre os 50 passageiros indicados, houve os que dormiram, jogaram, conversaram,
pescaram e os que tocaram guitarras e fizeram cordas. É mais um vestígio de como os
cordofones de cordas dedilhadas eram instrumentos musicais comuns (pela praticidade de
locomoção e popularidade em culturas europeias diversas) nas embarcações que partiam
do Velho Continente com destino à África, Ásia e América.
O segundo relato acontece quase uma década depois, com a Relação da Viagem do
padre Frutuoso Correia ao Maranhão, escrita em 26 de maio de 1696. Também narrando
episódios ocorridos durante as expedições marítimas, o sacerdote descreve uma missa
cantada pelos religiosos das Mercês com a finalidade de “mitigar as saudades da música do
Reino”:
Aos 25, dia de Nossa Senhora da Encarnação, em que as nâos da India havião de
dar à vella com os navios do Brazil, Cacheo, Cabo Verde, e o nosso, cantou o P.
Comissario dos Mercês Missa a Nossa Senhora que oficiarão os seus Religiozos
com Harpa, Baxão e viola para mitigar as saudades da muzica desse Reyno; no
fim da missa preguey sobre o Grande Patrocinio da Senhora, pois viamos unidos
na invocação da Nao Piedade em Esperança. 356

Dois fatores podem ser sublinhados: 1) Os instrumentos citados para acompanhar a


missa: harpa, baixão e viola, uma formação muito incomum em comparação aos relatos
jesuíticos nestes dois séculos iniciais, o que pode sugerir a existência de um cenário
musical mais diverso fora dos âmbitos e domínios da Companhia de Jesus; 2) A presença
da harpa, rara nos textos jesuíticos, dividindo a condição de acompanhante com o baixão
(?) e a viola.
Após interpretar os dados levantados em testamentos e inventários, na documentação
jesuítica do período e em capelas de fazendas e engenhos rurais, observamos como, no
Brasil, foram ampliadas as categorias de personagens sociais que tiveram em mãos
cordofones de cordas dedilhadas ao longo do século XVII. Tais instrumentos passam a
estar nas mãos não somente de estudantes e meninos índios controlados por missionários
jesuítas, mas também nas de homens e mulheres que se dividiam entre moradores,

356
Relação da viagem do Padre Frutuoso Correia ao Maranhão. São Luís, 26 de maio de 1696. Original no
ARSI, Bras, 9, ff. 416r- 419v. Publicado em: (Leite, 1938-1949, vol 9, apêndice C, pp. 386-392). Página 387
no trecho da citação. Transcrito em: (Holler, 2006, II/437) e (Castagna, 1991, II/488-489).
207

escravos, domésticos, patrões, estrangeiros e viajantes embarcados, reverberando um


aumento significativo das práticas sociais dirimidas por personagens da colônia mais
ligados (ou também ligados) à música profana.
É do bojo de tal contexto social que emergirá uma das figuras literárias que mais
contribuíram para ampliar o entendimento sobre os cordofones nos anos seiscentos: o poeta
Gregório de Mattos (1636-1696), também conhecido como “Boca do Inferno”.

4.4 Gregório de Matos: o “Boca do Inferno”

As fontes e documentos sobre as práticas musicais realizadas no Brasil entre os


séculos XVI e XVII vão, pouco a pouco, nos insinuando a presença cada vez mais maciça
dos cordofones de cordas dedilhadas em todos os nichos da sociedade do período. Os
relatos - antes concentrados predominantemente em ofícios religiosos tendo estudantes e
meninos índios como protagonistas - vão timidamente surgindo nas mãos de novos
personagens e em novos contextos sociais.
Timidez, no entanto, que Gregório de Mattos (1636-1695) não respeitará. É o poeta,
cuja pena afiada lhe rendeu o apelido de “Boca do Inferno”, quem irá escancarar a
presença da viola e seus instrumentos pares na música profana protagonizada por negros e
mulatos, em descrição de danças e festividades que revelam as primeiras manifestações
dos caracteres afro-brasileiros em nossa cultura.
Poeta, sacerdote, jurista e um cronista singular de sua época, sua produção
compreende poemas líricos, sacros, eróticos e, sobretudo, satíricos, gênero que o rendeu a
alcunha ilustre. Embora sua poesia seja considerada a maior expressão literária do Barroco
brasileiro, seus escritos não foram publicados durante o seu percurso de vida 357 e só
chegaram a nós através de compilações realizadas por alguns de seus maiores admiradores,
dentre os quais se destacam D. João de Alencastro 358 e Manuel Pereira Rabelo. 359

357
“Ao seu tempo a imprensa estava oficialmente proibida no Brasil, mas, mesmo que fosse publicada na
Metrópole, como ocorreu com outros poetas do período colonial, grande parte de sua obra satírica e a
totalidade da francamente pornográfica seriam, obviamente, expurgadas.” Fonte: site da ABL, Ib.
358
D. João de Lencastre (1646-1707), Joao de Alencastro na grafia da época, nasceu e morreu em Lisboa e
foi um administrador colonial português. Foi governador da Bahia e governador-geral do Brasil no interstício
1694-1702. Admirador das poesias de Gregório de Mattos, esforçou-se para protegê-lo enquanto pôde, mas
foi obrigado a mandá-lo degredado para Angola para afastá-lo da vingança do sobrinho de seu antecessor no
governo-geral do Brasil, Antônio Luís da Câmara Coutinho, que havia sofrido deveras com as sátiras do
“Boca do Inferno”.
359
Letrado e licenciado que supostamente viveu na primeira metade do século XVIII e que escreveu a obra
Vida do doutor Gregório de Matos Guerra, manuscrito que é aceito como a primeira biografia romanceada
do poeta. Entretanto, em seu livro As artes de enganar: um estudo das máscaras poéticas e biográficas de
Gregório de Mattos (Rio de Janeiro, Topbooks, 2000), o professor de Literatura Brasileira da Universidade
Federal do Ceará, Adriano Espínola, aventa a hipótese de que o licenciado Rabelo não seria mais do que
208

Mattos foi um homem de experiências singulares: filho de uma família aristocrática


influente 360, ele estudou humanidades no Colégio dos Jesuítas, mudou-se para Portugal em
1650 e, dois anos depois, ingressou nos estudos jurídicos da Universidade de Coimbra,
onde se formou em Cânones em 1661. Casou-se pela primeira vez em Lisboa, com
Michaela de Andrade, herdeira de uma tradicional família de magistrados, influência que o
abriu as portas para ocupar diversos cargos importantes na área. Após ficar viúvo e
desgostoso com a vida na metrópole, regressa ao Brasil depois de 32 anos em terras
portuguesas.
Em 1682, já na Bahia, assume o cargo de vigário-geral e de tesoureiro-mor da Sé,
mas logo é deposto de suas funções eclesiásticas por insubordinação (recusava-se a usar
batina e a acatar certas ordens de seus superiores). Livre da sujeição direta, o poeta passa a
viver com a viúva Maria dos Povos (com quem teve um filho) e se entrega à vida boêmia,
desregrada e promíscua, passando a retratar e satirizar sem pudor os mais diversos
ambientes e personagens de seu tempo, especialmente aqueles que o repudiavam e que o
aborreciam.
A sagacidade, sarcasmo e virulência de suas críticas e retratos sociais logo lhe
renderam diversos opositores e o poeta foi degredado em circunstâncias pouco claras para
Angola em 1694, onde chegou a advogar em Luanda e a se envolver em uma rebelião de
militares. Perdoado em 1695, retornou ao Brasil e se estabeleceu em Pernambuco,
falecendo em Recife no mesmo ano do regresso, aos 59 anos, com poucos recursos,
querido e supostamente reconciliado com o cristianismo.
Durante os anos mais ferinos de sua pena, poucos o escaparam. Por um lado, não
poupou às contradições de uma elite representada pelo governo, os nobres senhores de
terra e o clero, a improvisada burguesia que explorava sem escrúpulos a colônia; por outro,
também retratou com acidez os costumes das classes menos abastadas, encarnadas pelas
festividades, danças e representações culturais de negros e mulatos que ocorriam em
espaços sociais considerados menos privilegiados (ruas, bordeis, terreiros, praças, etc.). 361

uma persona criada pelo próprio Gregório, suposto autor de sua própria biografia. Espínola se baseia nas
pesquisas que realizou na Torre do Tombo, onde não encontrou documento algum que comprovasse a
existência de Rabelo.
360
Seu pais foram Maria da Guerra, respeitável matrona, e Gregório de Matos, fidalgo da série dos
Escudeiros do Minho, em Portugal.
361
“Mattos não era nenhum moralista. Estava preocupado, isso sim, em ridicularizar da maneira os costumes
da nova aristocracia mestiça, os ‘Adãos de Massapé’, que agora se destacavam no cenário político e
econômico da Bahia. Mattos adota perante aquela classe uma postura de arrogante superioridade, quando não
abertamente racista, o que se torna ainda mais evidente quando escreve sobre negros e mulatos. Mas Mattos
não perdia a oportunidade de buscar diversão e prazer justamente no meio desses últimos. E seus escritos
209

O poeta circulou em ambos os terrenos, configurando-se em uma espécie de mediador


social e observador crítico privilegiado, o que torna a sua produção a mais rica fonte sobre
as práticas musicais do Brasil seiscentista. 362
Mas embora seu veneno tenha transitado do governador corrupto ao mulato
indolente, de padres pederastas e comerciantes larápios a personagens cotidianos como
mulheres adúlteras e homens traídos, não podemos, somente por isso, conceber a sua
poesia como transgressora ou revolucionária. Hansen (2004) nos alerta que, em seu caso, a
sátira não se contrapõe à moral, uma vez que atinge a todos em uma espécie de correção
que, ao contrário, busca preservar classes e hierarquias, normas e privilégios. Sua produção
poética é, portanto, um retrato social que procura equilibrar as contradições sistêmicas de
seu tempo sem necessariamente substituí-las ou superá-las.
Em relação especificamente à música, Budasz esclarece que “Gregório e seu irmão
Eusébio 363 foram treinados musicalmente já no ambiente familiar, o que não era incomum,
pois a educação das famílias abastadas da colônia incluía alguma instrução musical, muitas
vezes realizada à viola” (2004, 9). E vai além quando considera o poeta “o primeiro crítico
musical do Brasil”, 364 assinalando ainda que a formação recebida confere “mais peso aos
seus comentários” (Ib., 7).

contextualizam a música nas farras nos bordeis e chácaras do recôncavo, nos saraus das casas elegantes e nas
festas promovidas pelas irmandades religiosas constituídas por negros e mulatos.” (Budasz, 2004, 13)
362
“Retratando baianos e portugueses de todas as esferas, a obra poética de Gregório de Mattos é uma ótima
fonte de informação sobre a música ouvida nas ruas, casas, conventos e bordéis do Brasil seiscentista. Além
de comentar e criticar funções musicais e teatrais, de mencionar instrumentistas e cantores, de citar nomes de
peças instrumentais e de descrever coreografias, Mattos usava romances e tonos espanhóis como base para
novas composições. Cantava e variava também modas profanas em português, ou, no dizer dele próprio,
canções que os ‘chulos’ cantavam. Nuno Marques Pereira atribuía tais modas à invenção do demônio – ele
próprio um exímio tocador de viola.” (Ib., 7)
363
Eusébio de Matos (1629-1692) estudou humanidades no colégio dos jesuítas, onde, ao lado do irmão, foi
discípulo do padre Antonio Vieira, de quem herdou a cátedra de filosofia e retórica. Reconhecido pela sua
enorme cultura, destacava-se em seus discursos e textos pelo refinamento e sutilezas na construção das frases
e desenvolvimento dos argumentos. Seus pares o chamavam de o “inspirado” pelo notável dom poético (a
Biblioteca Nacional possui alguns de seus manuscritos). Era ainda admirável desenhista, pintor, compositor
(sobretudo de hinos religiosos e cantos profanos) e músico, tocando com desenvoltura tanto a harpa quanto a
viola. Por desavenças, migrou da ordem dos jesuítas para a dos carmelitas, onde assumiu o nome de Eusébio
da Soledade. Dentre a sua produção que não se perdeu e nos alcançou, sobressaem Ecce Homo (um
monumento de erudição resultante das pregações realizadas no Colégio da Bahia nas sextas-feiras à noite);
diferentes coleções de Sermões; Oração Fúnebre e Dez Estâncias, conjunto de obras que ainda carecem de
uma investigação detalhada.
364
Budasz chega a descrever os episódios em que Mattos critica frades desafinando ou relata suas impressões
sobre um concerto de canto e violoncelo realizado por freiras dominicanas em Portugal. Também ratifica a
suposição de que a formação musical dos filhos de famílias aristocráticas era algo comum no Brasil
seiscentista citando o exemplo de “Salvador Correia de Sá e Benevides, o brasileiro mais poderoso do século
XVII, [que] fez questão de que seu filho e suas duas filhas aprendessem a tocar a viola com o pernambucano
Francisco Rodrigues Penteado” (Budasz, 2004, 9). Contudo, pondera que nem o professor Penteado e nem os
irmãos Mattos poderiam ser considerados, por isso, músicos profissionais.
210

Como já observado, sua produção poética foi compilada depois de sua morte e o que
foi preservado encontra-se dividido em dezenas de códices espalhados, dentre os quais se
destacam os guardados na Biblioteca Nacional, no Palácio do Itamarati e na Faculdade de
Letras da UFRJ. Muitos autores questionam a autenticidade de parte de suas poesias
baseados nesta dispersão de fontes e registros, o que evidencia a persistente ausência de
uma edição crítica capaz de preencher as diversas lacunas em relação à catalogação,
análise e compreensão de sua obra.
Os grandes esforços realizados por Afrânio Peixoto [AP] 365 e James Amado [JA] 366
contornaram parte de tais faltas e suas edições ainda são, de forma geral, as compilações
mais confiáveis e completas disponíveis sobre o tema. Especificamente em relação à
música, as publicações de Rogério Budasz 367 são consultas obrigatórias e inescapáveis.
Assim, para facilitar a remissão às fontes nas análises dos poemas que se seguirão,
passaremos a utilizar somente as iniciais de cada autor e o número de página
correspondente às citações.
Para nós, a produção de Gregório de Matos é particularmente relevante em, pelo
menos, três níveis:
1) Reproduz dezenas de citações nominais aos cordofones de cordas dedilhadas
(especialmente a guitarra e a viola), desmascarando, de modo especial, a presença de tais
instrumentos em espaços sociais onde antes só tínhamos registros ocasionais;
2) Revela e descreve de modo singular alguns dos personagens que os manipulavam;
3) Evidencia parte dos repertórios, gêneros, danças e peças que eram associadas e
acompanhadas por estes instrumentos ao longo dos anos seiscentos e setecentos no Brasil.

4.4.1 Os cordofones de cordas dedilhadas na literatura de Gregório de Matos

Era o doutor Gregório de Matos consumado solfista, e modulando as melhores letras daquele tempo, em que
a solfa portuguesa aventejava a todas as da Europa, tangia graciosamente. [...]
(JA, 1999, 1262)

As palavras acima são do licenciado Manuel Pereira Rabelo, suposto primeiro


biógrafo do poeta. O texto original, se fidedigno, foi provavelmente escrito no início do

365
AP: PEIXOTO, Afrânio. Gregório de Matos: Obras Completas. São Paulo: Edições Cultura, 1943. Tomo
I: Sacra, Lírica, Graciosa; Tomo 2: Satírica. (Reedição das Obras de Gregório de Mattos. Rio de Janeiro:
Officina Industrial Graphica, 1929-1933, 6 volumes).
366
JA: AMADO, James. Gregório de Matos: Obra Poética. Rio de Janeiro: Record, 1990. 2 volumes.
(Reedição da Crônica do Viver Baiano Seiscentista feita em verso pelo Doutor Gregório de Mattos de
Guerra. Salvador: Janaína, 1969, 7 volumes).
367
BUDASZ, Rogerio. A música no tempo de Gregório de Mattos. Curitiba: DeArtes/UFPR, 2004.
211

século XVIII com o intuito de abrir o códice manuscrito das poesias de Gregório de Matos
então elaborado por Rabelo. Republicado na íntegra como apêndice das edições preparadas
por James Amado (1969/1990/1999), é em seu bojo que, além dos atributos como
“solfista” e “modulador das melhores letras daquele tempo”, iremos encontrar a
irremediável associação do Boca de Inferno a uma viola de cabaça:
Com estas prendas fazia apreço particular de uma viola, que por suas curiosas
mãos fizera de cabaço, freqüentando divertimento de seus trabalhos: e nunca sem
ela foi visto nas funções, a que seus amigos o convidavam; recreando-se muito a
brandura suave de suas vozes. Por esta viola, a que havia deixado na Madre de
Deus, fazia extremos tais, receando que sem ela o embarcassem: mas o vigário
Manuel Rodrigues, a quem feriam nalma suas desgraças, prontamente lhe
mandou com um ligeral donativo para as cordas dela.
Dom João, chegada a hora de embarcar, o mandou vir à sua presença, e tratando-
o com humanidades de príncipe lhe pediu que evitasse as ocasiões de sua
perdição ultimada; porque era lástima que um sujeito, a quem o céu enriquecera
de talento para melhor fama, comprasse o seu descrédito com o decrédito
irremediável de tantos. Decorosamente o fez embarcar, não se olvidando de
recomendá-lo ao Governador de Angola, Pedro Jaques de Magalhães, a quem
com a causa daquele degredo insinuava os perigos, que em qualquer parte corria
a sua pessoa.” (Manuel Pereira Rabelo in JA, 1999, 1264)

Rabelo pontua que Gregório de Matos sentia um apreço particular pelo instrumento,
construído por suas próprias mãos e sem o qual “nunca foi visto” nos divertimentos e
funções em que figurava como convidado. Segundo o relato, a relação seria tão estreita que
o único receio do poeta, ao ser degredado para Angola no fim de sua vida (já sem saúde,
recursos e prestígio social), era que o embarcassem para tão longe sem a sua inseparável
viola. 368
Exagero ou não, é incontestável o fato de que suas poesias revelam uma proximidade
singular entre o aedo e os cordofones de cordas dedilhadas que circulavam na Bahia de seu
tempo, conforme podemos constatar nos dois exemplos seguintes:
[...] Houvera de encomendar-vos
Outro amor por minha conta,
Se acaso cantar soubera,
Como sei tanger viola. [...]
(AP, 1943, 283) 369

[...] E eu da viola empossado

368
Segundo Budasz, a viola de cabaça mencionada “provavelmente seria o mesmo instrumento denominado
banza no mundo afro-atlântico dos séculos XVII e XVIII. O banza, ou banjar, originaria o banjo norte-
americano (que até o início do século XIX ainda era construído a partir de uma cabaça) e a viola de cabaça,
ainda hoje tocada em certas partes do Brasil. (Budasz, 2004, 7)
369
Reproduzida apenas na edição de Afrânio Peixoto, a poesia é descrita com o seguinte título: XXIV - A
uma certa Dama, que deixou a um seu melhor amante, por se casar comum tal Cristão novo, e muito
paroleiro. (AP, 1943, I-282). Poesia no contexto: [...] Sim, seja Amor pobre cego;/ Tenha sanfonina embora;/
Porém não traga cachorro/ Para enganar as cachopas./ Houvera de encomendar-vos/ Outro amor por
minha conta,/ Se acaso cantar soubera,/ Como sei tanger viola./ Mas enquanto Deus não quer/ Que saiba
destas galhofas,/ Deus vos dê, para emendar-vos,/ Graça, que é o penhor da glória. (AP, 1943, 283)
212

cantava como um quebrado,


tangia como um crioulo,
conversava como um tolo,
e ria como um danado.[...]
(JA, 1999, 451) 370

Com pouca modéstia, o poeta enfatiza suas qualidades de tangedor e afirma que,
“empossado de uma viola”, era capaz de tocá-la “como um crioulo” (uma associação que
investigaremos adiante com mais profundidade). Ao que tudo indica, o instrumento
realmente foi um decisivo canal através do qual Gregório se relacionou socialmente com
os diversos ambientes e personagens que, ao longo de sua vida, estiveram à sua volta. Mais
do que isso, a viola e o papel foram seus maiores confessores, sobre os quais se debruçou
sem reservas e sem travas sobre as contradições e particularidades de seu tempo.
Contudo, se seus versos foram salvos por equevos, o mesmo não se pode dizer da
música que praticou:
Os contemporâneos de Gregório de Matos, por exemplo, tiveram a preocupação
de registrar os versos que o poeta teria cantado, mas a nenhum deles ocorreu
anotar as melodias que foram entoadas. É correto imaginar que pouca gente teria
conhecido o código musical no Brasil seiscentista, porém é mais provável que
esse tipo de música não foi grafada porque não existiu essa necessidade.
(Castagna, 1991, 98)

As poucas pistas diretas que sobreviveram sobre a música secular praticada no tempo
de Matos se encontram nos cancioneiros ibéricos do período que reproduzem algumas das
canções parodiadas pelo poeta:
Embora as fontes brasileiras de música secular da época de Mattos tenham
desaparecido ou aguardam ser reveladas, parte do repertório citado por Gregório
de Mattos e tocado pelos violistas brasileiros dos séculos XVII e XVIII
sobrevive em fontes portuguesas. Algumas das canções parodiadas por Mattos
são encontradas em cancioneiros espanhóis do período. (Budasz, 2004, 45) 371

370
Poesia integral entre as páginas 448-454. Também reproduzida em (AP, 1943, 310-311). Citação em
contexto: [...] Olá, ô! chegou o Tudesco:/ e já ele entre nós vinha/ posto sobre uma tainha,/ feito Arião ao
burlesco:/ riu-se bem, falou-se fresco,/ e eu da viola empossado/ cantava como um quebrado,/ tangia como
um crioulo,/ conversava como um tolo,/ e ria como um danado.[...] Em nota de rodapé, Emanuel Araújo
esclarece que “Arião = Arion. músico ambulante que, protegido de Apolo, foi salvo de afogamento no mar
por delfins enviados pelo deus.”(JA, 1990, 199)
371
Budasz classifica tais fontes em duas categorias. Na Música Instrumental, cita três códices: 1) P-Cug.
Secção de Música da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, códice M.M. 97: Cifras de viola por
varios autores. Recolhidas pelo Ldo Joseph Carneyro Tavares Lamacense. Códice do início do século XVIII,
com música em tablatura para viola, bandurra e rebeca. ; 2) P-Lcg. Serviço de Música da Fundação Calouste
Gulbenkian, Lisboa. Códice não catalogado do início do século XVIII com música em tablatura para viola,
bandurra e cravo.; 3) P-BRp. Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Braga. Códice MS 964. Livro de
órgão de fins do século XVII. Para a categoria de Música Vocal, cita outras três referências: 1) E-SCu.
Biblioteca Xeral de la Universidade de Santiago de Compostela. Manuscrito Guerra, contendo tonos
humanos de autores diversos, c1680.; 2) E-OL. Biblioteca pública de Olot, Gerona: I-VIII. Cancioneiro de
Olot, vários autores.; 3) D-Mbsb. Bayerische Staatsbibliothek, Munique: Ms. E200 1620-25. Cancioneiro de
la Sablonara, vários autores, c1620-1625. (Budasz, 2004, 45)
213

Mas se as partituras que circularam no Brasil seiscentista não sobreviveram ou não


foram ainda encontradas, pelo menos nos restaram as dezenas de relatos poéticos que
relacionam personagens e lugares sociais diversos aos cordofones de cordas dedilhadas. O
vocábulo viola/ violla, por exemplo, é mencionado nada menos que 09 vezes nos códices
de Gregório de Matos (ora em epígrafes e ora na própria poesia), como no poema lírico em
que o autor alivia a saudade da amada cantando “coplas” acompanhadas pelo instrumento:
COPLAS
Cantava o Autor, tocando na sua viola, para alívio da saudade, que lhe motivava o ausentar-se a sua dama,
as seguintes coplas.

Já vos ides! Ai meu bem!


Já de mim vos ausentais?
Morrerei de saudades,
Se partís e me deixais.
[...]
(AP, 1943, 370)

As primeiras referências ao instrumento começam a surgir: aqui ele aparece


empunhado pelo próprio autor (de família influente e um “branco honrado”, como ele
próprio se definira em uma de suas poesias) e acompanhando canções populares profanas.
Mas Gregório não se limitava a retratar as próprias desilusões amorosas. Tampouco
se valia apenas do gênero lírico para isto. Ao descrever a viagem da mulher de um tal Faria
para Angola, não poupou o sujeito das ironias de sua pena:
Ao mesmo governador subtilmente remoqueia o poeta o descuidar-se de sua honrada supplica sobre a mercé
ordinária, lembrando-lhe, que á dera a hum soldado ridículo chamado o Faria, por quem naquelle tempo
cantavão os chulos

‘A MULHER DO FARIA VAY PARA ANGOLLA’

[...] Assim que a Mulher vai para Angola,


E ele fica na infame lupanária, [prostíbulo]
Sua ausência cruel pondo à viola: [...]
(JA, 1999, 162-163) 372

A poesia já não é lírica e sim de contornos satíricos. A viola já não está nas mãos do
poeta e sim nas de um soldado desamparado. E, embora importe menos que a mulher do
pobre Faria tenha partido e lhe deixado em vexatória situação, o mesmo não podemos dizer
do lugar escolhido por ele para afogar as suas mágoas: o prostíbulo. E por qual razão?
Porque a viola já não se encontra em colégios e casas de meninos e padres jesuítas, mas em

372
Poesia em contexto (integral): Sei eu, Senhor, que Vossa Senhoria/ Mandou dar ao Faria um bom
vestido,/ Sendo, que mais o tinha merecido/ A mulher do mesmíssimo Faria/ Provo: todo o prazer, gosto, e
alegria,/ Que se tem do Faria deduzido,/ O deu sempre a Mulher, nunca o Marido./ Que ela ia pra Angola, e
ele não ia./ Assim que a Mulher vai para Angola,/ E ele fica na infame lupanária,/ Sua ausência cruel pondo
à viola:/ Tiro por conseqüência temerária,/ Que à Mulher se lhe deve dar a esmola,/ Que em crítico se diz
mercê ordinária. (JA, 1999, 162-163)
214

“inferninhos” onde os homens cotidianos iam buscar amparo e/ ou diversão. Assim, à


medida que o instrumento passa a ocupar tais espaços, também vão se cristalizando as
imagens simbólicas negativas que o associam a ambientes e personagens à margem da
sociedade, marcando um ponto de conexão entre as práticas de então e aquelas que
perduraram, pelo menos, até o início do século XX.
E este não parece ser um caso isolado. Pelo contrário, é muito provável que os
principais bordéis da cidade contratassem um “violista” particular para entreter as
peripécias amorosas protagonizadas em seus recintos. Pelo menos é o que nos sugere a
epígrafe de outro poema, onde um dito Fernão Roiz, ao invés de se concentrar em seu
ofício, acabou por deixar o “passarinho escapar da gaiola”, o que o levou a tomar um
veemente “sacode” do poeta:
Sacode zeloso o poeta a Fernão Roiz Vassalo, que se contratava com esta celebrada
catona, sendo o violista das putas daquelle destrito: porque vindo dançar com
algumas em presença do mesmo poeta lhe sahio o membro por entre os trapos da
barguilha. (JA, 1999, 1026) 373

Com isso, Gregório revela que ele próprio era um frequentador ocular de tais
espaços, digamos, reveladores. Mas como em nada era bobo, sabia acender velas tanto para
o diabo quanto para Deus. E se ora a viola é retratada entre as delícias e perigos de um
ambiente fervilhante e promíscuo, ora surge nos angelicais versos que ele dedica a uma
religiosa do Convento da Rosa, em Portugal, a quem denomina de “a violante do céu”:
Viola na Rosa estais,
Por dar a rosa fragrância:
Viola na consonância
Sois, quando, musa, cantais.
Ao céu e à terra agradais
Pois tudo em vós floresceu;
E sempre me pareceu
Cantareis com vossa esposa.
Sê viola antes da Rosa
Depois violante do Céu.
(AP, 1943, 35)

373
Poesia em contexto (integral): 1. Vêem vocês este Fernando,/guar-te dele, que te espreita,/ que é moço,
que logo arreita/ ou bailando, ou não bailando:/ e quem lhe disse, que quando/ para bailar o convido,/ posto
que saia luzido,/ e posto que airoso andasse,/ queria eu, que bailasse/ com o seu fariseu saído? 2. Não vêem
o grande despejo,/ com que o demo do priapo/ saiu pelo roto trapo,/ qual faminto percevejo? eu tenho
grande desejo/ de ver bailar o Gandu/ mais duro, que um Berzabu, [Belzebu]/ e se o seu lhe soluçou,/ pois
que me não respeitou,/ por que não o mete no cu? 3. Não sabia, que a Vermelha/ corria por conta, e risco/
dos Guapos de São Francisco,/ a quem tudo se ajoelha?/ não sabe a história velha/ por toda esta
Cachoeira?/ pois se sabe, foi asneira,/ que a quem andava a bailar,/ a saísse a vigiar/ com pica vigiadeira./
4. Ou cosa a barguilha em pena/ deste agravo, que me fez,/ ou corte o xesmeninês, [atavios, adornos]/ ou não
baile com Elena:/ que em tudo isto o condena/ o Sancho, que desconfia/ de ver tal aleivosia,/ pois com
trincos bailadores/ quer levantar-se as maiores/ co’a mulher, que se lhe fia. (JA, 1999, 1026-1027)
215

Em versos afáveis (bem diferentes daqueles dedicados a Fernão Roiz), o poeta


demonstra admiração pela musa (uma madre freira da ordem dominicana) que, aos seus
olhos, torna-se uma viola em consonância quando canta. É um relato importante não
somente por sugerir que houve música acompanhada por instrumentos em ambientes
religiosos (algo já lautamente documentado), mas, sobretudo, pela constatação de que isso
ocorria também em conventos para mulheres (algo inédito até então), com as próprias
freiras realizando os ofícios musicais ordinários. E, mais uma vez, não é um exemplo
solitário, pois na epígrafe de outro poema são mencionadas, no mesmo convento, as
atividades musicais de outras três irmãs:

Ouvindo o poeta cantar no mesmo convento a Dona Maria Freyra de veo branco a quem tocava
rabecão sua irmã a Dona Branca, Dona Clara outro instrumento.
(JA, 1999, 1217) 374

A citação corrobora dois fatores: 1) Que a música em convento de freiras (pelo


menos na metrópole) não era algo incomum, assim como o fato das próprias religiosas
tocarem instrumentos variados (canto, rabecão, viola, entre outros); 2) Que Gregório
parece ter sido um frequentador assíduo (e entusiasmado) dos eventos musicais que
ocorriam em tais ambientes durante a sua permanência em Portugal.
Com isso, torna-se visível como os retratos sociomusicais realizados pelo poeta
atingiam personagens e espaços diversos (o prostíbulo e o convento; o corno e a freira; a
colônia e a metrópole), os quais, muitas vezes, são abordados com aspectos particulares, a
começar pelo vocabulário empregado. Tais exemplos também asseveram a sua capacidade
de circular sem ressalvas por ambos os universos, absorvendo e cruzando as
especificidades de múltiplos e distintos signos culturais.
É através dessa diversidade que, em sua produção, veremos o poeta empunhando a
viola ora na casa de uma filha enlutada pela morte da mãe:
Huma tarde entrou o poeta em casa desta dama, que estava no interior enojada pela morte de sua mãe, e como
era homem divertido, tangeu numa violla, que acaso vio, pondo a violla os sentimentos de barbora [Babu]: e
Ella enfurecida lhe disse algumas injurias.

[...] Agastaste-vos deveras,

374
Poesia em contexto: “3. Branca, se por vários modos/ airosa o arco conspira,/ inda que a todos atira,/ é
Branca o branco de todos:/ mas deixando outros ápodos/ dignos de tanto esplendor,/ vibrando o arco em
rigor/ parece em traje fingido/ Vênus, que enfim a Cupido/ atirar setas de amor. [...] 5. Entoando logo um
solo/ Em consonância jucunda/ Prima, terceira, e segunda/ a lira formam de Apolo:/ vaguei um, e outro
Pólo,/ mas foi diligência vã,/ porque a cara mais louça/ cotejando-a nas brancuras/ co’as três Irmãs
formosuras,/ não vi formosura irmã.” (JA, 1999, 1218). Afrânio Peixoto também reproduz uma epígrafe na
mesma direção de James Amado: “VIII A três freiras do Convento da Rosa, todas irmãs, a quem ouviu o
Autor cantar, e a uma tanger rabecão.” (AP, 1943, 168)
216

Vendo, que ali se tangia


Em uma casa enojada
tão enlutada, e sentida. [...]
(JA, 1999, 569) 375

E ora em um passeio entre amigos pelo bairro baiano do Rio Vermelho:


A uma jornada que fez o Autor ao Rio Vermelho com outros amigos, convidado pelo Coronel Domingos
Borges de Barros.
(AP, 1943, I/308)

Assim fomos caminhando


sobre os dous cavalos áscuas
alegres como uas páscoas,
ora rindo, ora zombando:
eu que estava perguntando
pela viola, ou rabil376,
quando ouvimos bradar Gil,
que recostado à guitarra
garganteava a bandarra
letrilhas de mil em mil.
(AP, 1943, I/310-311) 377

Uma conexão que revela o quanto a colônia ainda reverberava a circulação dos
mesmos instrumentos e terminologias empregadas na metrópole entre os séculos XVI e
XVII. A Península Ibérica ainda era, ao lado da crescente influência dos negros africanos,
o principal manancial de matéria-prima para a gênese musical que começava a se
sedimentar, pouco a pouco, no Brasil. Para ter uma ideia de tal fato, basta evocar o número
significativo de gêneros, ritmos, bailes e danças ibéricas mencionadas por Gregório em sua
produção. As comédias espanholas, por exemplo, foram tão amplamente citadas,

375
Poesia em contexto: [...] Agastaste-vos deveras,/ Vendo, que ali se tangia/ Em uma casa enojada/ tão
enlutada, e sentida./ Deus me não salve a minha alma,/ Se eu então vos conhecia,/ Porque vós não sois
magreira,/ E por ética vos tinha./ Levantei-me da cadeira/ sem saber, o que fazia,/ que me tinha perturbado/
tão supitânea visita.[...] (JA, 1999, 569) Poesia integral entre as páginas 569-570. Afrânio Peixoto reproduz
uma epígrafe ligeiramente diferente em sua edição: “XVIII Sentida Babú pela morte de sua Mãe, lhe entrou
o Autor em casa a dar-lhe o pêsame; e achando sobre a mesa uma viola, se pôs a tocar nela, e a cantar.”
(AP, 1943, I/271)
376
Na definição de Bluteau “Arrabîl, ou Rabil, ou Rabel” era “Instrumento pastoril de côrdas, de arco a
modo de Rebecca pequena” (Bluteau, 1712, I-43). Para Castagna, estes “termos são muito frequentes na
poesia portuguesa e espanhola antiga, mas tal instrumento não é descrito em uso no Brasil.” (Castagna, 1991,
III/537).
377
Poesia em contexto: [...] “Que é do Gil? não aparece./ E o Guedes? fica sem besta./Eia pois, vamo-nos
desta,/que o sol trepa, e a calma cresce;/ quem não aparece, esquece;/ vamo-nos sem conclusão;/ com que
eu na rede um cação,/ e os dous nas duas cavalas/ fazíamos duas alas,/ e as alas meio esquadrão./ Assim
fomos caminhando/ sobre os dous cavalos áscuas/ alegres como uas páscoas,/ ora rindo, ora zombando:/
eu que estava perguntando/ pela viola, ou rabil,/ quando ouvimos bradar Gil,/ que recostado à guitarra/
garganteava a bandarra/ letrilhas de mil em mil.” (AP, 1943, 310-311). James Amado, que reproduz a
poesia integral entre as páginas 448-454 de sua edição, revela-nos uma epígrafe um pouco diferente:
“Descreve o poeta huma jornada, que fez ao rio vermelho com huns amigos, e todos os acontecimentos.” (JA,
1999, 448)
217

parodiadas ou glosadas pelo poeta (19 vezes, pelo menos) 378 que acabaram lhe rendendo a
alcunha de plagiador:
Perplexo com os inúmeros empréstimos de Góngora, Quevedo e Lope de Vega
encontrados na obra atribuída a Gregório de Mattos, Sílvio Júlio não hesitou em
chamá-lo de plagiador descarado. Entretanto, recursos literários como a
paráfrase, paródia e combinatorialidade, eram utilizados pelos melhores autores
do século XVII. (Budasz, 2004, 17)

Com tamanha inspiração em tais autores, não é de se espantar que a guitarra barroca
de origem espanhola 379 (consolidada nos séculos XVII e XVIII por autores como Gaspar
Sanz, Ruiz de Ribayaz, Francisco Guerau e Santiago de Murcia) tenha perpassado
significativamente a produção de Gregório de Matos. A influência do cancioneiro espanhol é tão
significante e declarada que na seguinte citação de Ay verdades que en amor, de Lope de Vega, o
Boca de Inferno reproduz os versos copiados sem traduzi-los (intercalando castelhano e português)
e ainda assinala que foi para casa cantando para a amada (Brites) “ao som da sua guitarra”:

Descreve o poeta o melindre, com que esta galharda dama sahio a ser vista do mesmo poeta depois de muytos
rogos sem effeyto de varias pessoas, e somente a peditório de Genebra.
(JA, 1999, 697)

[...] Vimos p’ra casa, e cantei


ao som da minha guitarra
‘ay, verdades, que en amor
Siempre fuistes desdichadas.’
E Brites me respondeu
tão doce, como tirana:
en vano llama la puerta,
quien no ha llamado en la alma. […]
(JA, 1999, 698)

Castagna esclarece que “no séc. XVI existiam guitarras de 4 e 5 ordens (pares de
cordas), mas no séc. XVII prevalece o segundo tipo” (Castagna, 1991, III/535). Budasz vai
mais longe ao afirmar que deste instrumento descende a viola caipira brasileira, as diversas
violas portuguesas e a guitarra espanhola (violão), listando ainda uma série de tocadores
que, no Brasil, especializaram-se na guitarra de cinco ordens entre os séculos XVII e XVIII
(Budasz, 2004, 9).
Como vimos no capítulo anterior, entre os séculos XV e XVI, pelo menos, havia uma
paridade aceita entre os vocábulos viola e guitarra em Portugal. O mais provável, por isso,
378
Dentre os célebres autores citados pelo Boca do Inferno, encontram-se: Lope de Vega, Calderón de la
Barca, Jacinto Cordero, Agustin Moreto y Cabaña, Luiz Velez de Guevara, Fernando de Rojas, Juan Perez de
Montalban, Juan de Matos Fragoso, Antonio Hurtado de Mendoza, Francisco Bances Candamo e Andrés de
Claramonte. Segundo Budasz, o poeta foi decisivamente “influenciado pelos mestres espanhóis da Época de
Ouro, Góngora, Gracián, Calderón e sobretudo Quevedo”. (Budasz, 2004, 17)
379
“Instrumento de cordas dedilhadas ou tangidas, de origem espanhola, tendo coexistido com o alaúde e a
vihuela durante o Renascimento, permanecendo, entretanto, essencialmente popular. Em Portugal é o
tradicional acompanhador dos fados, e no Brasil veio dar origem ao violão”. (Andrade, 1989, 256)
218

é que Gregório de Matos os tenha usado como sinônimos (tal qual fizeram Gil Vicente e
Luis de Camões), adequando-os de acordo com as rimas e necessidades poéticas, afinal,
em passagem alguma de sua produção, o vate chega a descrever características próprias ou
diferenças entre eles.
Se, contudo, algum pesquisador aventar a possibilidade de os termos representarem
instrumentos musicais distintos, deverá respaldar-se em três prerrogativas:
1) Além de possuir uma formação musical sólida, ele próprio tocava viola. Não era
um autor alheio escrevendo sobre instrumentos com formas e sonoridades próximas.
Tinha, portanto, as plenas condições de identificar as idiossincrasias próprias de cada um
dos cordofones citados;
2) Tal fator é reforçado pelo fato do poeta ter vivido mais de três décadas em
Portugal, tendo a chance de acompanhar de maneira ocular a disseminação destes
instrumentos na região. Certamente ele teve um acesso muito maior do que no Brasil à
diversidade de cordofones que circulavam na Península Ibérica do seu tempo;
3) A enorme influência que lhe exerciam os autores espanhóis torna-se mais um
indício claro de que o vocábulo guitarra não é usado inadvertidamente em sua produção,
afinal, foi desta fonte que ele bebeu - como em nenhuma outra - para compor os seus
poemas tão musicais (e musicados). A música, naturalmente, poderia não passar incólume
a este processo.
Mas embora Gregório tivesse as condições técnicas para reconhecer as eventuais
diferenças entre dois (ou mais) cordofones de cordas dedilhadas diversos, o mais provável
é que o poeta tenha usado os vocábulos como sinônimos com o intuito de criar rimas para
os seus versos (guitarra e viola abrem diferentes perspectivas de combinações).
Controvérsias à parte, o fato é que o termo guitarra aparece nada menos do que nove
vezes em sua produção poética (o mesmo número de vezes que o verbete viola/ violla),
ampliando a nossa percepção sobre a presença dos cordofones de cordas dedilhadas no
período e revelando que também “andavam postas” sobre a guitarra os mais diferentes
temas, expectativas e anseios dos personagens cotidianos do Brasil seiscentista. Vejamos
dois exemplos:
XLII
Morrendo o cavalo de Pedro Alvres de Neiva

Pedro Alves nesta porfia


Afirma que tal não disse;
Porem se ele esta parvoice
Diria, e mais que diria,
Que outras lhe ouviu a Baía
219

Tão gordas, tão bem dispostas,


Que hoje à guitarra andam postas
Donde chegam à julgá-lo
Mais besta que o seu cavalo,
Pelo trazer sempre às costas.
(AP, 1943, II/232) 380

Às duas mulatas prezas finge o poeta, que visita nestes dous sonetos interlocutores. Falla com a may.
FALLA O POETA COM A FILHA.

Perg. Bertolinha gentil, pulcra, e bizarra,


Também vos trouxe aqui o Papagaio?
Resp. Não, Senhor: que ele fala como um raio,
E diz, que minha Mãe lhe pôs a garra.

Perg. Isso está vossa Mãe pondo à guitarra,


E diz, que há de pagá-lo para Maio.
Resp. Ela é muito animosa, e eu desmaio,
Se cuido no Alcaide, que me agarra. [...]
(JA, 1999, 879) 381

É a guitarra entrecortando o fatídico caso de um tal Pedro Alves (“mais besta que o
seu cavalo”) e também o diálogo entre o poeta e a filha de uma mulata, cuja mãe animosa
pôs sobre a guitarra a conta do papagaio. As imagens cotidianas em que figuram o
instrumento se ampliam e perpassam desde a crítica a certo padre ambicioso até uma
viagem de navio feita pelo poeta para se divertir com os amigos:
A outro vigario de certa freguezia, contra quem se amotinavam os fregueses por ser muyto ambicioso.
(JA, 1999, 219)

[...] Mas oh se Deus a todos nos livrara


De Marão com poder, vilão com vara!
Fábula dos rapazes, e bandarras,
Conto do lar, cantiga das guitarras. [...]
(JA, 1999, 220) 382

380
James Amado também reproduz o poema com uma ligeira diferença na epígrafe: Loucuras que fazia este
sugeyto [Pedralves] com hum Cavallo ruço, que lhe comprou o thio: e morte do mesmo cavallo. (JA, 1999,
672)
381
Poesia em contexto na versão de Afrânio Peixoto: Poeta: Bartolinha gentil, pulera e bizarra,/ Também
vos trouxe aqui o papagaio?/ Bartola: / Não, senhor, que ele fala como um raio,/ E diz que minha mãe lhe
pôs a garra./ Poeta: Isso está vossa mãe pondo a guitarra,/ E diz que há de pagá-lo para maio./ Bartola: Ela
é muito mimosa, e eu desmaio/ Quando cuido ao alcaide que me agarra./ Poeta: Temo que haveis de ser
displicente/ Por todas estas ruas da Baía,/ E que vos há de ir ver o vosso amante./ Bartola: Quer me veja,
quer não, estimaria,/ Que os açoites se deem ao meu galante,/ Porque também sei ver, e vê-lo-ia. (AP, 1943,
II/13-14) Peixoto também reproduz o poema com uma ligeira diferença na epígrafe: X -Fala agora com a
filha da sobredita, chamada Bartola. (AP, 1943, II/13)
382
Poesia integral reproduzida entre as páginas 219-221. Em contexto: [...] Sois tão grande velhaco,/ Que a
pura excomunhão meteis no saco:/ Já diz a freguesia,/ Que tendes de Saturno a natureza,/ Pois os Filhos
tratais com tal crueza,/ Que os comeis, e roubais, qual uma harpia;/ Valha-vos; mas quem digo, que vos
valha?/ Valha-vos ser um zote, e um canalha:/ Mixelo hoje de chispo,/ Ontem um passa-aqui do Arcebispo./
Mas oh se Deus a todos nos livrara/ De Marão com poder, vilão com vara!/ Fábula dos rapazes, e
bandarras,/ conto do lar, cantiga das guitarras. [...] (JA, 1999, 220). Também reproduzida em (AP, 1943,
II/337).
220

Descreve a viagem, que intitulou dos argonautas da Cajaiba para a Ilha de Gonçallo Dias, onde com seus
amigos hia divertir-se

[...] Fomos seguindo a viagem


tão folgazões, tão alegres,
que até as duas guitarras
iam folgando de ver-se. [...]
(JA, 1999, 467) 383

No entanto, o mais decisivo é notar qual o valor simbólico que o instrumento passa
paulatinamente a ocupar na sociedade colonial do período. Neste quesito, o que se observa
é que em torno da viola e da guitarra (que inicialmente predominavam nas mãos de padres,
estudantes e famílias aristocráticas) começa também a se criar um estigma de instrumento
associado aos costumes e práticas não recomendadas e reprimidas socialmente. Tocar
guitarra, por exemplo, é elencado como um dos itens que integram os maus hábitos
ensinados pelos pais aos filhos no seguinte poema do Boca de Inferno:
ROMANCE 384
Queyxa-se a Bahia por seu bastante procurador, confessando, que as culpas, que lhe increpão, não são suas,
mas sim dos viciosos moradores, que em si alverga.
(JA, 1999, 39)

[...] Contados são, os que dão


a seus escravos ensino,
e muitos nem de comer,
sem lhes perdoar serviço.
Oh quantos, e quantos há
de bigode fernandino, 385
que até de noite às escravas
pedem salários indignos.
Pois no modo de criar
aos filhos parecem símios, 386
causa por que os não respeitam,
depois que se veem crescidos.

383
Poesia em contexto: [...] Tocou-se logo a trombeta,/ que um búzio era potente,/ um sinal de haver
chegado/ a capitânia do Ostende./ Deu-nos uns poucos de apupos,/ e vendo, que Chico desce,/ embarcou-se,
e socorreu-nos;/ com China, e melado quente./ Fomos seguindo a viagem/ tão folgazões, tão alegres,/ que
até as duas guitarras/ iam folgando de ver-se./ Assim chegamos à Ilha,/ e sobre areias de neve/ dezoito
chancas saltavam,/ com que a Ilha se estremece. [...] Achamos uma Mulata,/ que estava ali num casebre,/
que eu não fretei, por ser Nau/ já carregada por prenhe./ Tornamo-nos a embarcar/ algum tanto
descontentes,/ porque em toda a Ilha achamos/ dois maracujás somente. (JA, 1999, 467-468). Poesia integral
entre 466-468.
384
Título expresso na edição de 1969 de James Amado. De acordo com Tinhorão, “entre as modalidades de
versos cantados, o poeta-músico Gregório de Matos cultivava predominantemente, ao lado das glosas e
cantigas, coplas e chansonetas, os romances que lhe permitiam contar, no estilo popular-tradicional das
redondilhas maiores, ora factos engraçados ora acontecimentos variados, sempre com fundo de
acompanhamento à viola”. (1990, 47)
385
Emanuel Araújo, em nota da edição de James Amado, esclarece que a expressão faz menção a um “bigode
espesso e grande. Relativo a Dom Fernando I, rei de Portugal de 1345 a 1383”. (JA, 1999, 47)
386
Castagna esclarece que o termo “refere-se aos moradores da Bahia”. (1991, III/534)
221

Criam-nos com liberdade


nos jogos, como nos vícios,
persuadindo-lhes, que saibam
tanger guitarra, e machinho.
As Mães por sua imprudência
são das filhas desperdício,
por não haver refestela,
onde as não levem consigo.
(JA, 1999, 46-47); (AP, 1943, II/84)

O procurador da Bahia se defende com o argumento de que as culpas que lhe


atribuem sobre a não manutenção da ordem são, na verdade, consequência dos atos de seus
viciosos moradores. Através da poesia, Gregório oferece um retrato (e uma crítica) da
estrutura familiar e social dos engenhos: senhores que exploram os escravos de dia e as
escravas de noite; pais e mães refestelados que criam filhos na liberdade dos jogos e vícios,
dentre os quais consta a persuasão para tocar guitarra e machinho. 387
O fato é que os cordofones de cordas dedilhadas mais citados na bibliografia
brasileira do século XVII (a viola e a guitarra) passam a circular e a se disseminar tanto
nos ambientes da “alta” quanto da “baixa” cultura, em uma espécie de vida dupla que foi
expressa de forma precisa por Budasz:
Embora a viola estivesse associada ao repertório da Corte e fosse estimada pela
aristocracia e burguesia abastada luso-brasileira, o instrumento levava uma
espécie de vida dupla já no século XVII. Na descrição de Francisco Manuel de
Melo 388, exilado na Bahia durante os anos de 1655 a 1658, a viola, um

387
“Raphael Bluteau [op. cit., 1716, V-234] dá, tanto para o ‘Machete’, quanto para o ‘Machinho’, o
significado de ‘Viola pequena’. Antônio de Moraes Silva (Dicionário da língua portuguesa, 1789, II/40) traz
apenas ‘violinha, descante’, enquanto José da Fonseca e J. I. Roquete (Dicionário da língua portuguesa, c.
1948, 645) ‘violinha’. Domingos Vieira (Grande dicionário português, 1973 [1873?], IV/12) informa que
‘Machinho’ é ‘Espécie de Machete ou viola pequena’ e (p.10) que ‘Machete’ é ‘Espécie de cavaquinho,
muito usado na Ilha da Madeira etc.’ Luis da Câmara Cascudo (Dicionário do folclore brasileiro, 1988, 451)
é mais claro: ‘Machete, machio, machinho, machetinho, instrumento de cordas, espécie de cavaquinho, vindo
de Portugal, possivelmente da ilha da Madeira, onde também lhe chamam braguinha. É pequeno, armado
com quatro ou cinco cordas duplas, afinadas em quintas’. Finalmente, Renato Almeida (História da música
brasileira, 1942, 310, nota 353) transcreve um texto de Luis da Câmara Cascudo, mas sem citar a fonte, que
vale a pena anexar a esta nota: ‘O Cavaquinho, também com êste nome em Portugal, é de origem da Ilha da
Madeira, onde o chamam Braguinha. O Braguinha tem 17 trastos, 51 centímetros de comprimento, com
quatro cordas de tripa, às vezes a primeira de aço, à nó, afinando na segunda inversão do acorde de sol-maior.
Essa história de afinação não é dogma. A nossa é diversa, e vai andando, de Estado para Estado. O Braguinha
ainda é conhecido por Braga, etc. Todos êsses informes encontro-os no livro do Sr. Carlos M. Santos,
Tocares e Cantares da Ilha (Estudo do Folclore da Madeira). Funchal, 1937, 33-34). O nome por que é
conhecido (no Continente chamam-lhe cavaquinho) motivou suspeitas de ser originário de Braga, etc. A
razão era outra e é apontada. Braguinha vem de ser tocado pelos homens que usavam a braga, antigo traje dos
nossos camponeses. Diga-se ainda que o Braguinha tem sido, há muitos anos, exportadíssimo para a América
do Norte e do Sul, ilhas de Sandwich, etc. Outro instrumento legitimamente madeirense, o Rajão é
universalmente famoso pelo seu nome de crisma Ukelele. [...] O Cavaquinho é português, nacionalisado
pelos nossos seresteiros. Instrumento de modinha e samba, jamais ultrapassou seu limite, valorizado nos
conjuntos tradicionalmente malandros da música carioca. Desde 1676 que os madeirenses vêm para o Brasil.
E a saudade da ilha inesquecível emigra no bôjo ressonador dos cavaquinhos...’.” (Castagna, 1991, III/535)
388
MELO, Francisco Manuel de. Carta de guia de casados. Lisboa: Europa América, 1992 [1636]. P. 67
222

‘excelente instrumento’, era bastante apreciada também por ‘negros e patifes’.


(2004, 11)

O fato de Melo contrapor a categoria aristocracia/ burguesia à de negros/ patifes é


emblemática. Negros e mulatos (e consequentemente suas práticas culturais) são lançados,
como um todo, para o lado “sujo” do processo. E, por tal razão, é preciso novamente
desvelar o olhar e a posição de quem faz e reproduz a análise para não incorrer no erro de
simular uma essência universal “à custa de uma dupla des-historicização, tanto da obra
como do olhar sobre a obra” (Bourdieu, 1992, 319). Neste sentido, é preciso lembrar que
Gregório não era um personagem neutro dentro das lutas de representação que eram
travadas dentro do campo social:
Mattos adota perante aquela classe uma postura de arrogante superioridade,
quando não abertamente racista, o que se torna ainda mais evidente quando
escreve sobre negros e mulatos. [...] Mas Mattos não perdia a oportunidade de
buscar diversão e prazer justamente no meio desses últimos. E seus escritos
contextualizam a música nas farras nos bordeis e chácaras do recôncavo, nos
saraus das casas elegantes e nas festas promovidas pelas irmandades religiosas
constituídas por negros e mulatos. (Budasz, 2004, 11-13)

Proveniente de uma família de recursos e crescido com base em uma sólida e ampla
formação burguesa tradicional (que o levaram a escrever uma tese doutoral em latim, hoje
disponível nos arquivos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro), o olhar de Gregório
sobre os negros, mulatos e suas práticas culturais nada mais é do que um retrato espelhado
da visão mais ampla com que tais personagens eram vistos pelas classes dominantes do seu
tempo.
Mas ao mesmo tempo em que os depreciava, Boca de Inferno gostava de estar entre
eles. É o paradoxo do “fogo amigo”, que tão nitidamente vemos expresso nos versos que o
poeta dedica aos atributos de uma mulata que por ele passa na garupa do cavalo do amante
no dia da festa de São Gonçalo:
A huma Mulata dentuça, que tambem vivia escandalizada, vindo hum dia da festa de Sam Gonçallo, onde
com outras dançou a Mangalaça, a garupa de seu Amasio passando pelo poeta lhe pedio huns versos.

1. Por estar na vossa graça/ mando os versos, que quereis:/ mas vós que me pedireis,/Úrsula, que
não vos faça?/ Veio aqui a Mangalaça/ uma com outra mixela [meretriz]/ fazer uma refestela,
[folia, festa]/ e entre tanta pecadora/ nunca Mangalaça fora,/ se não viésseis vós nela. (JA, 1999,
1016)
[...]
4. Só vós, Úrsula bizarra,/ entre uma e outra borracha 389/ cantáveis como gavacha 390/
sustenidos de guitarra:/ deu-vos o sumo da parra/ numa fábrica estrangeira,/ pois num palafrém

389
Em nota na edição de James Amado, Emanuel Araújo esclarece o sentido do termo “borracha”: “saco
bojudo de couro, com bocal, para conter líquidos, em especial vinho. Entenda-se, pois: estar embriagado.”
(JA, 1999, 1017)
390
Também em nota, Emanuel Araújo confere o seguinte significado para o termo “gavacha”: “pessoa
miserável e mal vestida”. (JA, 1999, 1017)
223

lazeira/ formastes, com dar um zurro,/ para vosso amigo um burro,/ para vós uma liteira. (JA,
1999, 1017)
[...]
6. As mais sobre o seu palmilho/ como iam com tanto ardil,/ cuidei, que eram de Madril,/ onde há
festa do trapilho:/ eu nunca me maravilho/ de ver, que Moças honradas/ vão a pé grandes
jornadas:/ porém, maravilha encerra,/ que as Mulatas desta terra/ andam sempre cavalgadas.
7. Bem fez o vosso Mandu/ dar-vos lugar consoante,/ pois levando as mais diante,/ vos pôs atrás
do seu cu:/ da Bahia até o Cairu/ não vi justiça fazer [1018]/ tão razoada a meu ver,/ e portanto
creio eu,/ que quem hoje o cu vos deu,/ vos mande amanhã beber.
[...]
10. Deixai essas galhofinhas,/ e retirai-vos de ambófias 391/ que isto de andar em bazófias/ é mui
próprio de putinhas:/ cosei em casa as bainhas,/ fazei costuras, e rendas,/ que mulheres de altas
prendas/ tratam só do seu remendo:/ isto só vos encomendo,/ senão: minhas encomendas. (JA,
1999, 1018)

Mais do que uma personagem do mundo real, a mulata Úrsula é uma figura arquétipa
para a qual convergem múltiplas e contraditarias questões da sociedade da época. Ela é
retratada em um contexto no qual surgem os seguintes adjetivos: putinha, dentuça, bizarra,
embriagada (borracha), pessoa miserável e mal vestida (gavacha), etc. O ambiente é de
folia (refestela), festa de trapilho, ambófia, bazófia e galhofinha. Dentre os personagens
citados estão a meretriz (mixela), a pecadora, o amasio e as moças honradas (supostamente
injustiçadas). Haja “sustenidos de guitarra” para uma só mulata!
Contudo, o mais decisivo é aquilo que de fato o incomoda: a mulata, por seus
atributos (requeridos, aliás, por alguém do mesmo nível social do poeta), caminha sempre
cavalgada, enquanto as “honradas” têm que se contentar com grandes jornadas a pé.
Gregório recomenda que a “putinha” deixe de andar em bazófias (que ele próprio
frequentava) e se concentre em fazer bainhas, costuras e rendas, atividades típicas das
“prendadas”. Aqui, uma vez mais, o contraponto se instala: de um lado, a candura das
“mulheres de altas prendas”; de outro, o ardil das “mulatas desta terra”. E os (pré)
conceitos do poeta se tornam tão flagrantes como o seu sinuoso linguajar.
Se a guitarra foi indiretamente associada à mulata Úrsula, o mesmo não acontece no
caso do mulato Quiringa, no qual o próprio poeta empunhará o instrumento para retratar a
briga deste personagem com um mouro. O detalhe é que a cena acontece dentro da cadeia,
onde estão todos presos (inclusive Gregório):
A huma pendencia que teve o mulato Quiringa com hum mouro na cadeya, pela qual foy castigado: estando o
poeta nessa occasião também prezo.
(JA, 1999, 928)

[...]
4. O Quiringa valentão
Por unir esta pendência,

391
Por fim, Araújo nos elucida: “ambófia: por embófia, ‘embuste’, ‘ardil’, ‘impostura’.” (JA, 1999, 1018)
224

Se não ganhou indulgência,


Teve um ano de perdão:
Pôs-se em pé o velhacão
Recebendo as alabanças [louvores],
E eu entre tantas mudanças
A guitarra lhe cantei:
‘servio na moxinga 392 a El-Rei
Un Quiringa con dos lanças’.
(JA, 1999, 929)

Aqui, constatamos mais um exemplo do vocábulo guitarra sendo utilizado como


sinônimo de viola, uma vez que o poeta menciona que cantou empunhado de uma guitarra,
mas, na verdade, sabemos que o seu instrumento inseparável era uma viola de cabaça. O
fato de ter preservado versos em castelhano (mesclados com o português) ratifica a escolha
pelo termo mais comum na região espanhola. Não podemos esquecer que nos dicionários
históricos, notadamente no de Bluteau, o verbete viola (em castelhano) é traduzido por
guitarra (em português):
“Viola. Guitarra.” (Bluteau, 1721, 24, anexo)
“Guitarra. Id. Guitarrilla. Violinha.” (Bluteau, 1721, 103) 393
Seja como for, a inferência mais decisiva não se relaciona à correspondência do
vocábulo (ou não), e sim aos valores simbólicos que começam a ser atribuídos e
relacionados, no Brasil, aos cordofones de cordas dedilhadas neste período. Tais
instrumentos passam a figurar em situações cotidianas que ocorrem em festividades
populares, bordéis, ruas e cadeias; a estar nas mãos de personagens negros e mulatos
associados às camadas mais baixas da sociedade; e a representar um repertório profano que
causava desconforto na nascente (e já tão refratária) burguesia aristocrática brasileira. A
vida dupla imposta ao instrumento pela classe dominante é sinalizada pelo moralista Nuno
Marques Pereira, que cantava cantigas devocionais ao som da viola ao mesmo tempo em
que se horrorizava com o cunho erótico e lascivo dos gêneros e danças que proliferavam
no Brasil dos séculos XVII e XVIII:
O moralista Nuno Marques Pereira não tinha dúvidas de que boa parte dos males
que afligiam a colônia portuguesa na América no início do século XVIII devia-se
à proliferação de canções profanas no toque dos violeiros da época. Contudo,

392
Emanuel Araújo esclarece em nota que por moxinga deve-se ler “muxinga, ‘surra’, ‘coça’, ‘surra de
açoite’.” (JA, 1999, 929)
393
No anexo do volume VIII do emblemático Vocabulário Portuguez e Latino (1712-1728) de Rafael
Bluteau, que apresenta um dicionário castelhano/português com o objetivo de “facilitar a los curiosos”, o
verbete Viola (em castelhano) é traduzido por guitarra (em português), enquanto o verbete Guitarra é um
vocábulo com o mesmo sentido em castelhano e português. Em contrapartida, guitarrilla (em castelhano) é
traduzido por violinha (em português). Ou seja, o que fica patente é que os termos viola, guitarra (e também
vihuela) foram utilizados com sentidos muito próximos (muitas vezes como sinônimos) nos dicionários de
língua portuguesa/castelhana até o início do século XVIII, pelo menos.
225

Pereira via menos perigos no instrumento em si do que no repertório, pois ele


próprio conta que cantava cantigas devocionais acompanhando-se à viola.
Pereira escandalizava-se com as letras de cunho erótico e teria achado
igualmente ofensivas as alusões profanas em peças como o arromba do inferno,
ou o duplo sentido de denominações de danças do tipo sarambeque, arromba e
gandu. (Budasz, 2004, 7)

Era um olhar “classista” que não deixava escapar nem mesmo os negros e mulatos
mais bem posicionados socialmente, como no caso de Lourenço Ribeiro, clérigo que ousou
desdenhar publicamente dos poemas do Boca de Inferno e recebeu a seguinte resposta:
V
MILAGRES DO BRASIL
Ao padre Lourenço Ribeiro, homem pardo que foi vigário da freguesia de Passé.
Lourenço Ribeiro, clérigo e pregador, natural da Baía, e, segundo se rosnava, mulato, dava-se muito a
compor trovas, que cantava nas sociedades ao som da cítara: este homem teve a indiscrição de mofar e
desdenhar publicamente dos versos de Gregório de Matos. Chegou isto aos ouvidos do poeta, que ofendido
da fatuidade do cabrito, resolveu logo tirar a desforra, o que fez na seguinte sátira, à qual deu o título acima.

Um branco muito encolhido,


Um mulato muito ousado,
Um branco todo coitado,
Um canaz todo atrevido;
O saber muito abatido,
A ignorância e ignorante
Muito ufana e mui farfante,
Sem pena ou contradição:
Milagres do Brasil são.

Que um cão revestido em padre,


Por culpa da Santa Sé,
Seja tão ousado que
Contra um branco honrado ladre;
E que esta ousadia quarde
Ao bispo, ao governador,
Ao cortesão, ao senhor,
Tendo naus e maranhão:
Milagres do Brasil são.
[...]
(AP, 1943, 126)

A par do notório preconceito contra o “cão revestido em padre” que ousou ladrar
contra um “branco honrado”, é também preciso destacar que, na epígrafe, a descrição dada
de Lourenço Ribeiro é a de um pregador que compunha trovas e as “cantava nas
sociedades ao som da cítara”, em uma clara utilização do termo como sinônimo de viola/
guitarra. Além deste, outros cordofones de cordas dedilhadas foram citados ocasionalmente
na poesia de Gregório de Matos: o alaúde 394; a lira 395; a bandurillha 396; e a guitarrinha/
guitarrilha.

394
“Ao capitão Joze Pereyra por alcunha o Sette Carreyras louco com caprichos de poeta sendo elle
ignorantíssimo. 1. Amigo Senhor José,/ não me fareis uma obra;/ porque se a graça vos sobra,/ me fazeis
226

Definido por Bluteau como diminutivo de guitarra e sinônimo de “violinha”, este


último vocábulo parece fazer menção a um “instrumento diferente de machinho ou
machete, uma vez que Gregório de Matos também o menciona” (Castagna, 1991, III/537).
O termo aparece na produção do poeta em dois momentos. No primeiro deles, reporta-se às
capacidades do amigo Fernando ao tirar o som de uma guitarrinha:
XXIII
Despede-se o Poeta de Pernamerim, muito saudoso sobre um cavalo chamado o ‘Tainha’.
(AP, 1943, 279)

[...] Adeus, amigo Fernando,


Que ao som de uma guitarrinha,
Atraís a vossa casa
Toda à Angola e toda à Mina.
(AP, 1943, I/281) 397

No segundo, um rico registro nos “descreve a jocozidade com que as mulatas do


Brasil baylão o Paturi”:
Ao som de uma guitarrilha,
que tocava um colomim [curumim]
vi bailar na Água Brusca
as Mulatas do Brasil:
Que bem bailam as Mulatas,
que bem bailam o Paturi!
(JA, 1999, 447) 398

O poema é uma paráfrase de uma das mais conhecidas poesias de Luis de Góngora y
Argote (1561-1627), um dos expoentes do Siglo de Oro na literatura barroca castelhana.
Tal fato talvez justifique a razão pela qual o vocábulo viola foi preterido por guitarrilha

graça, e mercê:/ fazei-me uma obra, em que/ honra me deis aos almudes,/ e se em vossos alaúdes,/ que
Apolo vos temperou,/ não cabe o pouco, que eu sou,/ caberão vossas virtudes. 2./ Fazei-me uma obra,
enquanto/ a Musa se me melhora,/ que eu prometo desde agora/ pagar-vos tanto por tanto:/ que como Deus
é bom Santo, [281]/ e não há ovo sem gema,/ sereis do meu plectro o tema,/ porque, a/ quem me faz um
verso,/ não serei eu tão perverso,/ que lhe não faça um poema.” (JA, 1999, 280-281). Também reproduzido
em (AP, 1943, I - 317)
395
“TERCETOS - A um amigo, havendo-se-lhe respondido pelos mesmos consoantes a um Romance que
fizera às fêmeas de Pernamerim. Gostou da vossa lira a minha Musa, Gostou, sim, pela vida de uma Tona,
Que à custa do seu sangue se me escusa. [...]” (AP, 1943, II - 327)
396
(JA, 1999, 172)
397
Poesia em contexto: [...] Adeus, amigo Fernando,/ Que ao som de uma guitarrinha,/ Atraís a vossa casa/
Toda à Angola e toda à Mina. Adeus, Inácia, adeus flor,/ Que na vossa almofadinha/ Cantaveis sem tom nem
som/ Todos os Kiries da missa./ Adeus, Antonico, que/ Cantando em doce harmonia,/ O mesmo fizera eu/ A
ter garganta tão fina. [...] (AP, 1943, I/281). Poesia integral entre as páginas 279-281.
398
Poesia em contexto: Ao som de uma guitarrilha,/ que tocava um colomim/ vi bailar na Água Brusca/ as
Mulatas do Brasil:/ Que bem bailam as Mulatas,/ que bem bailam o Paturi! [448]/ Não usam de
castanhetas,/ porque cos dedos gentis/ fazem tal estropeada,/ que de ouvi-las me estrugi:/ Que bem bailam
as Mulatas,/ que bem bailam o Paturi./ Atadas pelas virilhas/ cuma cinta carmesim,/ de ver tão grande
barrigas/ lhe tremiam os quadris./ Que bem bailam as Mulatas,/ que bem bailam o Paturi./ Assim as saias
levantam/ para os pés lhes descobrir, / porque sirvam de ponteiros/ à discípula aprendiz,/ Que bem bailam
as Mulatas,/ que bem bailam o Paturi. (JA, 1999, 447-448)
227

(diminutivo de guitarra), uma terminologia mais comum na região de Córdoba (cidade


natal do poeta espanhol) e que aproximaria, portanto, os versos do poeta baiano do seu
contexto e inspiração original. 399
Tal poema é valioso não somente por identificar um curumim tocando uma pequena
guitarra, mas por associar ambos a uma dança denominada Paturi, protagonizada por
mulatas que estalavam os dedos, levantavam as saias e quebravam os quadris. A descrição
põe em relevo um aspecto fundamental no estudo dos cordofones de cordas dedilhadas nos
anos seiscentos e setecentos e que diz respeito à quantidade de gêneros, ritmos, bailes e
danças que eram trazidos para o Brasil ou aqui começavam a surgir a partir do cruzamento
de diferentes influências (sobretudo a europeia, a africana e a nativa). É um repertório no
qual a viola/ guitarra ocupará o posto de instrumento harmônico acompanhador por
excelência, um tema tão decisivo que demanda um estudo específico.

4.5 Os bailes, danças, ritmos, peças e gêneros no Brasil dos anos seiscentos e
setecentos

- Como, Senhor, naõ chegastes mais cedo, para participardes do regozijo, e passatempo, que tivemos esta
tarde em companhia daquelles amigos, que de mim se despediraõ?
- Senhor, (lhe disse eu) como o pouco conhecimento me naõ facilitasse a tomar esta confiança, nem a
necessidade me obrigasse a taõ depressa pedir-vos agazalho; me assentey a descansar ao pé daquella
arvore, onde me achastes: e juntamente, por vos naõ divertir do vosso recreyo, que tal vez me poderia ser
causa de offender a Deos.
- Como assim, Senhor? (me perguntou o morador)
- Por me livrar (lhe disse eu) de cahir em algum pensamento consentido á vista destas danças desonestas, e
musicas profanas, que hoje se usaõ, taõ agradáveis para o Demônio, como offensivas contra Deos.
(Pereira, 1760 [1731], 224-225)

Uma das formas mais efetivas de constatar a difusão dos cordofones de cordas
dedilhadas no Brasil dos anos seiscentos/ setecentos é reconhecer os diversos gêneros,
ritmos, bailes, danças e peças nas quais tais instrumentos musicais figuravam como solista
e/ ou acompanhador. Foi um processo análogo ao que ocorreu na Península Ibérica no
século XVI, conforme se nota no seguinte depoimento de Fuertes:
A música de salão ou de câmera no século XVI também participou da mescla de
escolas e confusão de ideias, como se nota nos Strambotes e Ensaladas; mas esta
classe de composições não tiveram tanta aceitação e nem tão larga vida como os
simples romances, villanescas, madrigales, villancicos, jacarandinas, rufas,
redondillas, esparsas e outras várias que com tamanho ardor se cantavam com

399
Escrita em 1603, a poesia original de Luis de Góngora y Argote revela a franca influencia no texto
posterior de Gregório de Matos: “XXI – Cuando estuvo en Cuenca Don Luis. En los piñares de Júcar/ Vi
bailar unas serranas, / Al son del agua en las piedras/ Y al son del viento en las ramas. / No es blanco coro
de ninfas/ De las que aposentan el agua/ O las que venera el bosque, / Seguidores de Diana: / Serranas eran
de Cuenca, / Honor de aquella montaña, /Cuyo pie besan dos ríos/ Por besar de ellas las plantas. / Alegres
corros tejían, /Dándose las manos blancas/ De amistad, quizá temiendo/ No la truequen las mudanzas. Qué
bien bailan las serranas! Qué bien bailan! […]” (Castro, 1854, 511-512)
228

acompanhamento de guitarra, o mais usado instrumento naquele século e


anteriormente [...]400

Já para ter uma ideia remota da popularidade da viola no eixo luso-brasileiro do


período, basta recorrer ao testemunho de Frei Lucas de Santa Catarina (1660-1740) no qual
o instrumento é associado a uma “comunidade das danças” responsável pelo “maravilhoso
espetáculo” realizado em meio a um cortejo funeral:
Já chegado ao pavoroso sitío o authorizado enterro, em lugar de meninos
orphaos, começarão as tourinhas, de que adiantadas duas eraõ salafrarios aos
diabos das bexigas, que fazendo guiaõ dellas, trocavaõ em exéquias suás antigas
travessuras: seguiao-se as Communidades das danças, cavalgadas em os
cavalletes de suás mesmas violas, a quem a lenha ministrava accendidas achas.
Oh maravilhoso espetáculo! Trocavao-se os mouriscos turbantes em mulatos
capuzes; e despojados dos volantes velhos aquellas cabeças, que authorizou o
caduco penacho, gemiaõ nas estreitas prizoes do negro ourelo.
Alli se viaõ os muchachins sezudos, que, trocando a consonancia do gral, da
castanheta, e da caixinha, pelo desusado estrondo da grossa e bugalhada
camandula, a mortalhavaõ o cadáver de seus focinhos em os cujos capuzes de
seus salpicados chiotes. Ahi se viaõ os negros das frechas, que, cubertos das
baetas tristes de suas mesmas pelles, trocavaõ os estrondozos rebates de
tambor guerreiro nos saudofos gemidos do birimbáo sentido: até os mesmos
Reys Davides, esquecidos do crespo volante de suas capinhas, e da ferrugenta
folha de Flandes de suas coroas, trocada a garrida tiorba em huma pállida, e
penitente vela, mudada a estopenta cabelleira em huma melancólica, e carregada
gorra, quando já foraõ racionaes gafanhoros do pallio, eraõ agora lamentáveis
bizouros do tumulo. (Santa Catarina, 1752, I/53-54)

Segundo Budasz, a viola foi o “principal instrumento acompanhador dos romances,


cantigas, tonos e modas, além de ótimo veículo para a música solo”, tendo na
“versatilidade a sua maior virtude” (2004, 9). No entanto, embora haja indícios bem
sólidos de que esta função tenha sido desempenhada preponderantemente pela viola e/ ou
cordofones similares desde o início da colonização, foi somente com Gregório de Matos
que a percepção sobre tais práticas avançou das menções ocasionais/ exóticas para uma
compreensão que as inseria no próprio bojo dos acontecimentos sociais:
Mattos descreve os ritmos afro-brasileiros não como elementos exóticos em
peças teatrais ou procissões oficiais, como era de costume, mas como danças
vivas, organicamente inseridas em festividades e divertimentos promovidos
pelos próprios mulatos e negros, como o paturi, bailado pelas mulatas na Água
Brusca, ou o cãozinho, bailado na festa de N. S. de Guadalupe pelas próprias
juízas e mordomas da irmandade. (Budasz, 2004, 7)

Em 1728, ao descrever um dos entendimentos para o verbete som, Bluteau nos


revela que o vocábulo poderia significar as “peças que se põem à viola”. Fazer um

400
Tradução livre de: La música de salón ó de cámara en el siglo XVI participó también de la mezcla de
escuelas y confusion de ideas, como se deja ver en los Strambotes y Ensaladas; pero esta clase de
composiciones no tuvieron tanta aceptación, ni tan larga vida como los sencillos romances, villanescas,
madrigales, villancicos, jacarandinas, rufas, redondillas, esparsas, y otras muchas que con tanta afición se
cantaban con acompañamiento de guitarra, instrumento el mas usado en este siglo y anteriormente […].
(Fuertes, 1855-1857, II/169-170)
229

“som”, portanto, era tomado como sinonímia para tocar um amplo repertório
especificamente neste instrumento (ou, pelo menos, acompanhado por ele), o que se
configura em mais uma referência a práticas passadas que encontraram ressonância nas
presentes, uma vez que a expressão, ainda que com sentido diverso, é utilizada
coloquialmente no vocabulário musical contemporâneo (“vamos fazer um som?”). Ao
reconhecer o sentido do verbete no início do século XVIII, o autor nos corrobora não
somente a ampla difusão dos cordofones de cordas dedilhadas na música do período,
mas também elenca algumas de tais peças:
SOM. Péça que se poem à viola. Os sons, ou peças mais ordinarias, que na viola
se tocaõ, são os seguintes. Arromba. Arrepia. Gandù. Canario. Amorosa.
Marinheira. Caõsinho. Passacalhe. Espanholeta. Marisápola. Villão. Galhurda
[Galharda], Sarao. Fantesia. Neste Supplemento achará o Leitor a diffiniçaõ de
cada som destes no seu lugar Alphabetico. (Bluteau, 1728, II/220)

Embora o número de gêneros e danças citados por Bluteau seja limitado, sua
descrição nos dá a chave para compreender o quão a viola esteve presente como
instrumento acompanhador de excelência na maioria absoluta dos gêneros musicais que se
praticavam nos brasis seiscentista e setecentista. Tal repertório pode ser dividido
basicamente em dois níveis:
1) Aquele que era importado dos países europeus através dos colonizadores e/ ou
viajantes e que, embora agregasse nuances e características próprias na colônia, continuava
usando a mesma terminologia empregada na metrópole e/ ou em seus países de origem.
São exemplos na citação: passacalha, espanholeta, galharda, fantasia, vilão, canário, etc.
2) Um novo repertório que se formava a partir do cruzamento das influências não
somente dos europeus, mas também dos escravos africanos importados (preponderante em
muitos dos gêneros) e da música dos índios (aparentemente menos absorvida. Ou, melhor
pontuando, mais reprimida), em um movimento de trocas simbólicas que gerou a gênese de
boa parte dos ritmos afro-brasileiros dos séculos seguintes. São exemplos na citação:
arromba, arrepia, gandu, cãozinho, etc.
Ampliando o olhar sobre o primeiro grupo, veremos que a quantidade de danças
europeias que circulavam nas atividades musicais profanas em solo brasileiro é ainda mais
significativa do que se imaginava. Budasz elenca e sintetiza as características de alguns dos
exemplos mais representativos:
A pavana, a sarabanda e o saltarello eram danças de corte familiares aos
tocadores de viola ibéricos e latino-americanos da época de Mattos. A primeira
de caráter nobre e solene, e as outras de andamento mais vivo. A sarabanda,
assim como a chacona, foi várias vezes censurada ou proibida por autoridades
civis e religiosas, que a consideravam por demais licenciosa. Além destas,
Francisco Manuel de Melo e Raphael Bluteau nos mostram que um típico sarau
230

de fins do século XVII incluiria também a galharda, de coreografia ágil e


vigorosa, costumeiramente dançada logo após a pavana. A galharda ibérica não
apresenta o mesmo compasso ternário das italianas e inglesas, mas é escrita a
compasillo, isto é, em tempo binário, embora apresente alguma ambiguidade
rítmica binária-ternária. (Budasz, 2004, 23)

A imersão de algumas de tais danças e bailes em solo brasileiro foi registrada por
Gregório de Matos. A pavana, por exemplo, é citada três vezes ao longo de sua produção.
Eis os dois exemplos mais representativos:
A outro sugeyto que estando varias noytes com huma dama, à não dormio por não ter potencia; e lhe
ensinaram, que tomasse por baxo humas talhadas de limão,e metteo quatro.

[...] 2. Quatro noites de desvelo


fostes passar com Joana,
tocaram-nos a pavana,
bailastes o esconderelo: 401
um homem do vosso pelo
que dirá em tal desvario,
senão que foi tanto o frio,
tanto essas noites ventou,
que a cera não se gastou
por não pegar o pavio.[...]
(JA, 1999, 881)

Receosa Suzana das cutilladas do poeta lhe pedio, depois de ser dele gozada, que a não satyrizasse: mas por
isso mesmo lhe desanda com estas décimas.

1. Não me posso ter, Suzana,


Por mais que mo encomendastes,
Quando comigo cascastes,
Que vos não cante a pavana:
Fostes tão grande magana
Naquele Xesmeninês,
Que rebolando através
Entendi, que em tal venida,
Segundo estáveis ardida,
Queria vir-vos o mês.
(JA, 1999, 1102) 402

O saltarelo e a sarabanda eram danças de andamentos mais vivos. Em passagem de


seu Anatomico Jocoso, por exemplo, Frei Lucas de Santa Catarina identifica uma fêmea
extravagante que, dentre outras características, possuía “pés de saltarelo”:

401
Em nota na edição de James Amado, Emanuel Araújo nos esclarece o sentido do termo: “esconderelo:
jogo de esconder.” (JA, 1999, 881)
402
Não transcrevemos o terceiro exemplo no corpo do texto por não haver sentido musical direto no contexto
da poesia: “Em occasião de férias passou o poeta à Vianna, e ali vio huma procissão, em que por uso antigo
apparecia a morte adornada com patas, pessas de ouro, e muytos cayxos de uvas verdes, levando outro si em
figura de Sam Christovão huma estatua de papelão vestida baeta verde, e movida por hum mariolla como
costumão na procissão de Corpus ir os gigantes. 1. Por sua mão soberana/ Deus, que é Pai de piedade,/ Livre
a toda a cristandade/ Da má Morte de Viana:/ Em vez de morte é pavana/ Morte composta de asneira,/
Porque tirar da parreira/ Quantas uvas vai brotando,/ Para lhas ir pendurando,/ É morte de borracheira.”
(JA, 1999, 1219)
231

[...] era esta huma estravagante femea, e minotaura creatura, com cabeça de
cigana, e corpo de regateira, traços de engonço, e pés de saltarélo; trajava á
mogiganga, mas ao presente em figura de carpideira, em cuja crespa, e franzida
cara se lia bem o pranto na rubrica do laibo: aos pés, bem como funesto despojo
de seu contentamento, se via a viola murcha, a castanheta secca, a gaita com
fistulas, e o machinho com mataduras: entre estes escaveirados instrumentos
se fazia lugar á tarja, aonde a folia desaffogava a magoa neste desesperado
SONETO. [...] (Santa Catarina, 1752, I/63)

No Brasil, ambas as danças também foram lembradas pelo Boca de Inferno no


poema em homenagem à passagem, nas proximidades da Terra, do mais brilhante cometa
do século XVII, o Kirch, também conhecido como o “grande cometa”:
XXI
Observações críticas sobre várias matérias, por ocasião do cometa aparecido em 1680.
(AP, 1943, II/195)

[...] Que ande o mundo, como anda,


e que se ao som do seu desvelo
uns bailem ao saltarelo
e os outros à sarabanda:
e que estando tubo à banda,
sendo eu um pobre Poeta,
que nestas cousas me meta,
sem ter licença de Apolo!
Será: porém se eu sou tolo,
efeitos são do cometa.
(AP, 1943, II/198) 403

Bluteau definiu o saltarelo como “Certo som à Viola” (1728, II/191). Aqui, devemos
novamente destacar a inserção do verbete “som”. Isolando os versos no qual os vocábulos
são citados (e que se ao som do seu desvelo, uns bailem ao saltarelo, e os outros à
sarabanda) e comparando-os ao sentido dado pelo dicionarista para saltarelo (certo som à
viola), ratifica-se a definição de “som” como representação de qualquer peça que se põe à
viola. A partir da poesia de Gregório de Matos, portanto, podemos subentender que tanto o
saltarelo quanto a sarabanda tinham a viola como instrumento harmônico acompanhador,
já que uns e outros bailavam as duas danças “ao som do seu desvelo”.
Especificamente para a sarabanda, Bluteau nos apresenta o seguinte conceito:
SARABANDA, ou çarabanda. Deriva-se de Sarao, que he Bayle, ou de húa
comedianta chamada Sarabanda, ou (como querem outros) do Hebraico C,ara,
que vai o mesmo que Deytar de hua parte para outra, andar em redondo, &c.)
acções próprias de quem bayla a sarabanda, porque menea os braços, & o
corpo tangendo as castanhetas, & anda rodeando a casa, em que bayla. He
dança alegre & lasciva; & ha opinião, que as mulheres de Cadiz as inventaraõ,
que se usara em Roma no tempo de Marcial, & que fallàra o dito Poeta nesta
dança no livro 6. Epigram. 7 Edere lascivos, &Batica crusmata gestus, Et

403
Poesia também transcrita na edição de James Amado (JA, 1999, 906-910) com uma epígrafe diferente:
“Por occasião do dito cometta refletindo o poeta os movimentos que universalmente inquietavam o mundo
naquela idade, o sacode geralmente esta crizi.” (JA, 1999, 906)
232

Goditanis ludere do Etamodis. O mais certo he que os Mouros trouxerão efta


dança a Granada. Saltatio numerosa, quam Sarabandam vocant.
Proverbialmente dizemos, Não val às Coplas da Sarabanda. (Bluteau, 1720,
VII/494-495)

Embora houvesse uma distinção entre danças e bailes ao longo dos séculos XVII e
XVIII, é mais provável que tanto Gregório de Matos 404 quanto Raphael Bluteau tomassem
os vocábulos como sinônimos na maioria das vezes que os empregam (o dicionarista, por
exemplo, usa os termos baile e dança indistintamente no mesmo verbete). 405
Além disso, a definição de sarabanda é instigante não somente porque a relaciona ao
sarau (um “baile”), mas também porque elenca as características empregadas por aqueles
que a dançavam: o movimento (menear) dos braços e do corpo, o toque das castanhetas 406,
o bailar ao redor da casa. Abre-se uma nova perspectiva para nós, naturalizados a enxergar
a sarabanda como um movimento lento e delicado dentro de uma suíte barroca. Ao
contrário, aqui estamos diante de uma dança “alegre e lasciva” e que, “assim como a
chacona, foi várias vezes censurada ou proibida por autoridades civis e religiosas, que a
consideravam por demais licenciosa.”
O fato é que as sarabandas e chaconas de outrora (assim como a maioria absoluta
das outras danças englobadas em nosso estudo) eram peças bem distintas das que são
associadas aos respectivos vocábulos atuais. Inclusive nas origens, já que muitas delas, na
verdade, eram procedentes das colônias e deflagravam uma influência raramente
mencionada de tais culturas sobre as metrópoles.
Esta cooptação em sentido inverso foi precisamente sublinhada por Tinhorão:

404
“Em seu abrangente trabalho sobre o teatro musical espanhol dos séculos XVII e XVIII, Cotarelo y Mori
comenta sobre a distinção entre os dois principais grupos de coreografias difundidas na Espanha e América
hispânica até o século XVIII, as danzas e os bailes. Em 1633, José Antonio Gonzalez de Salas já observava:
‘Las danzas son de movimientos más mesurados y graves, y en donde non se usa de los brazos sino de los
pies solos: los bailes admiten gestos más libres de los brazos e de los pies juntamente.’ Segundo esta
classificação, repetida de forma quase idêntica em diversas fontes dos séculos XVII e XVIII, as danzas
possuíam uma coreografia fixa, envolvendo principalmente o movimento das pernas e dos pés, enquanto que
os bailes permitiam maior liberdade individual na expressão coreográfica, incluindo movimento dos braços e
das mãos. Embora o uso por Mattos dos termos danças e bailes pareça concordar em linhas gerais com essa
distinção, em alguns casos os termos são usados de forma intercambiável. Por exemplo, na menção ao Gandu
[que veremos mais à frente], à p. 26 da ed. James Amado, onde lê-se na epígrafe ‘dança’ e no poema ‘baile’.”
(Budasz, 2004, 23)
405
E a existir dúvida, era ainda o mesmo Falmeno quem confirmava a sinonímia baile = dança, ao explicar a
seus leitores em nota de pé de página: ‘Fado, Tacorá, bem como Tombador, Carangueijinho, S. Paulo,
Candieiro, Vai de Bode e Tirana são outros nomes de bailes brasílicos que correspondem aos que em
Portugal se denominam Lundum, Fandango, Fofa, Xula etc’. (Tinhorão, 2001, 53)
406
A presença das castanhetas nas danças e bailes do período também foi notificada, em 1731, pelo moralista
Nuno Marques Pereira: “E porque seriaõ ja cinco horas da tarde, convidado eu do fresco sitio em que estava a
cajazeira, me assentey debayxo della, por gozar da sua sombra: quando ouvi em casa do morador affinador
de instrumentos, sonora musica, e trincos de castanhetas, como de quem andava dançando. Foy-se
offuscando a tarde, e escurecendo o dia; vaticínios de que tornaria a tempestade, como tinha succedido na
noite antecedente.” (Pereira, 1760 [1731], 224)
233

Danças e cantorias que, também no caso de Castela, vinham muitas vezes


igualmente das colônias, a exemplo da sarabanda ou da ‘chacona mulata’ citada
por Quevedo, e da qual Lope da Vega (1562-1635) chegaria expressamente a
indicar a procedência, ao escrever em seus versos que ‘De las Indias a Sevilla/ ha
venido por la posta.’ (2001, 33)

A chacona, também sensual e socialmente reprimida, provavelmente foi grafada no


Brasil seiscentista como chacota ou cachota 407 e, a par do que ocorrera com a sarabanda,
tinha um caráter bem distinto daquele que associamos à palavra atualmente.
Em Portugal, a dança foi comum especialmente em Braga, onde a prática de bailes
em procissão (com música, dança, coreografias, pantomimas e figurados) existia desde o
século XVI e foi reavivada em meados do século XVIII. Em seu livro, As alegres canções
do norte, Pimentel endossa tais perspectivas:
Mas é principalmente em Braga que o S. João do norte concentra a sua mais viva
tradição pittoresca, desde uma longa antiguidade, que pelo menos attinge o
século XVI. O apparato d'outrora foi por certo mais pomposo em danças,
pantomimas e figurados; mas ainda alguma cousa, picante de originalidade,
subsiste como resíduo histórico.
N'esse tempo, desde a tarde de 23 de junho começavam a exhibir-se
processionalmente nas ruas da cidade primaz as collectividades que tinham de
intervir nos festejos. Sahiam as confrarias com os seus pendões e candeleiros, as
artes e officios com os seus anadeis e estandartes, as invenções fabulosas, as
cavalhadas allegoricas, as folias, chacotas e danças mirabolantes, que deviam
comparecer na Praça do Pão á hora em que o alcaide-mór recebia, como alferes,
a bandeira da cidade. (1905, 219)

No Brasil, o Boca de Inferno menciona a dança com uma das nomenclaturas


alternativas em duas ocasiões. Na primeira, expõe os motivos pelos quais seus amigos não
o visitavam na chácara que havia comprado às margens do Dique:
Elege para viver o retiro de huma chácara, que comprou nas margens do Dique, e ali conta, o que passava
retirado.

[...] Os que amigos meus eram,


Vêm aqui visitar-me;
Amigos, digo, de uma e outra casta:
Oh nunca aqui vieram
Porque vêm agastar-me,
E nunca deixam cousa, que se gasta.
Outro vem, quando basta,
Fazer nesta varanda
Chacotas, e risadas,
Cousas bem escusadas,

407
Ao mencionar a cachota em uma de suas poesias, Gregório de Matos “talvez se referisse à chacota,
equivalente português da chacona hispano-americana, que no século seguinte aparece em Portugal também
grafada como chacoina ou chacouna. Imagina-se que a origem dos termos deva-se à correspondência entre o
som das castanholas e a raiz chac – muitas vezes usada na língua espanhola com sentido onomatopeico. No
século XVII, a chacota aparece frequentemente em contextos religiosos. Luís Lopes, por exemplo, relata que
numa viagem dos Açores à Bahia em 1639 ‘se fez uma boa chacota diante do altar que estava armado no
convés à parte direita do mastro de mezena e bastantemente adornado com uma devota imagem da Senhora
de São Lucas e outra da Senhora de Guadalupe e um crucifixo’.” (Budasz, 2004, 39)
234

Porque o riso não corre na quitanda,


Corre de cunho a prata,
E amizade sem cunho é patarata. [...]
(JA, 1999,912) 408

Na segunda, o poeta desfila um carrilhão de palavras toscas e depreciativas a uma


mulata que, segundo ele, era “bastantemente desaforada” e, dentre outras coisas,
remolhava as botas ao “som das chacotas”:
Era desta mulata bastantemente desaforada e o poeta, que à não podia soffrer lhe canta a moliana.
(JA, 1999, 1011)

6. Como o sêmen, que entornais,


dá fedores tão ruins,
é de crer, que lá nos rins
algum bacio guardais:
e pois tanto tresandais,
quando remolhando as botas
as dais ao som das chacotas,
tenho por remédio são,
que tomeis, as que vos dão,
mas vós a ninguém deis gotas.
(JA, 1999, 1013) 409
A citação de Gregório evidencia o uso dos movimentos dos pés utilizado na prática
(remolhando as botas). Note-se ainda que o termo “som” novamente subentende a
presença da viola no acompanhamento da dança.
Tal definição de “som” também se alinha com a descrição feita por Bluteau para a
passacalha:
PASSA-CALHE. Som Castelhano, que se toca com qualquer instrumento de cordas.
(1728, II/116)

O primeiro fator que chama atenção é a definição do gênero musical como um “som
castelhano”, expressão aparentemente inexpressiva, mas que pode guardar alguma conexão
com o atual son cubano, já que este gênero musical e de baile resultou inicialmente da
fusão entre instrumentos e bases rítmicas afrocubanas e espanholas. 410

408
Também reproduzida em (AP, 1943, 369) com uma epígrafe mais longa: “Temos o poeta junto à cidade, a
par do Dique, como quem se peja de reaparecer de repente no lugar, que deixara com resolução. O lugar onde
agora se diverte, é uma casa de beneficiar tabacos, cuja erva ele compara consigo mesmo, ameaçando
espirros à cabeça do Brasil por última resolução de suas experiências”.
409
Poesia em contexto: 7. Se a boca vos fede a caca,/ e tanto, puta, fedeis,/ eu creio, que descendeis/ de
alguma Jaratacaca:/ sobre seres tão velhaca,/ que não há pobre despido,/ que vos não tenha dormido,/
Jaratacaca bufais,/ e quando vós fornicais,/ deixais o membro aturdido. 8. Fedeis mais que um bacalhau,/ e
prezai-vos de atrevida,/ como que se a vossa vida/ não fora sujeita a um pau:/ olhai,não vos dê o quinau/ um
Mina de cachaporra,/ que um cão morde uma cachorra,/ e se em ser puta vos fiais,/ sois puta, que
tresandais,/ e enfastiais toda a porra. (JA, 1999, 1013) A poesia integral, bem mais longa, encontra-se entre
as páginas 1011-1013.
410
“El son es un género musical y de baile, sinónimo de ritmo y cadencia, producto del mestizaje afrocubano
y español.” Fonte e mais detalhes sobre o Son Cubano em:
235

Embora pouco saibamos sobre a chegada e a difusão da passacalha no Brasil, o


breve conteúdo oferecido pelo dicionarista também nos permite alargar o entendimento
sobre o acompanhamento harmônico nos anos seiscentos e setecentos. Ao se referir à
dança como um som “que se toca com qualquer instrumento de cordas”, Bluteau nos leva a
questionar que instrumentos específicos eram estes aos quais se remete em uma
denominação genérica.
A primeira precaução deve ser não associar tal definição ao amplo conceito atual que
temos sobre os instrumentos de cordas (especialmente vinculado àqueles tocados com
arco). São raras as menções a tais instrumentos na bibliografia dos séculos XVI e XVII e
apenas alguns deles são citados ocasionalmente (rabecão, rabil, rabecas e eventualmente
harpas), mas nunca figurando isoladamente no acompanhamento de canções ou peças
instrumentais profanas. Por outro lado, não podemos esquecer que havia uma profusão
terminológica de cordofones de cordas dedilhadas circulando no Brasil do período: viola e
guitarra eram os nomes mais comuns, mas na literatura reunida também são citadas
vihuelas, alaúdes, cítaras, descantes, lyras, barbitis, bandurras, bandurrilhas,
guitarrilhas, guitarrinhas, machinhos, machetes, fides, fidiculas, chelys, testudos, etc.
Já observamos que muitos destes termos eram tomados como sinônimos e
representavam, por vezes, um único instrumento musical. Também constatamos que a
viola e a guitarra eram os vocábulos mais difundidos e provavelmente os que mais
figuravam em eventos musicais profanos e religiosos. No entanto, não há como negar que
havia alguns pares de cordofones de cordas dedilhadas com características próprias
circulando em território brasileiro. Cítara ou lyra poderiam ser tomados como sinônimo de
viola, guitarra ou mesmo vihuela, mas jamais de um instrumento como o machinho ou a
bandurra.
E é justamente a tal gama de cordofones de cordas dedilhadas diversos que a
bibliografia brasileira do período convencionou chamar de “instrumentos de cordas”.
Veremos exemplos não somente nos verbetes de Bluteau, mas também na bibliografia
jesuítica do século XVIII. Na Ânua do Brasil de 1727, por exemplo, o padre Marcus da
Távora reporta-se à expressão (em latim) ao citar as atividades da Confraria de Nossa
Senhora do Colégio de São Paulo:
[...] o culto dos alunos à Deípara e sua confraria são louvados por todos os outros
colégios. Todos os sábados de manhã oficiam a liturgia em canto de órgão, e

http://www.monografias.com/trabajos84/son-cubano/son-cubano.shtml
Acesso em 19/02/2015, às 15h36min.
236

cantam docemente as ladainhas acompanhadas por instrumentos de cordas


[chordarum instrumenta]. 411

Tal perspectiva é compartilhada por Holler, que chama a atenção para o fato de que
“no âmbito jesuítico ainda não era comum o uso extensivo dos instrumentos de arco”
(2006, 113), realidade também comungada pela música profana da época. Por outro lado,
uma vez que “as violas [e cordofones próximos] eram extremamente comuns, pode-se
supor que a ânua do Padre Marcus de Távora se refira a esses últimos instrumentos.” (Ib.)
Em síntese, podemos dizer que os cordofones de cordas dedilhadas eram
mencionados ou subentendidos como acompanhantes de atividades musicais profanas ou
religiosas em três diferentes perspectivas:
1) A citação nominal e direta aos instrumentos. Exemplo: viola, guitarra, alaúde, etc.;
2) A alusão ao termo “som”, que significava, segundo Bluteau, qualquer peça que se
punha à viola;
3) A menção à expressão “instrumentos de cordas”, que fazia referência às violas e/
ou outros cordofones de cordas dedilhadas que circulavam no Brasil entre os séculos XVI,
XVII e início do XVIII.
Tal entendimento se reitera com as definições dadas por Bluteau para outras danças
citadas por Gregório de Matos:
“CANARIO. Som, e peça de instrumento de cordas, muito grave, ainda que
apressado, costumase dançar a ele.” (Bluteau, 1728, I/189). A associação do canário com a
viola é ainda expressa por Frei Lucas de Santa Catarina na seguinte passagem:
A cana até nos eccos da pronuncia grangea créditos de avantajada. Canário, he o
melhor passaro; das canárias, he o melhor vinho; de canudos, he o melhor ovo; e
ainda sobeja o canário á viola, que também podia entrar na dança: pois que mal
está Seringa em cana? (Santa Catarina, 1752, I/193)

“ESPANHOLETA. Som muito grave, que se toca em instrumentos de corda.”


(Bluteau, 1728, I/401)
O canário, a espanholeta e também o vilão eram, em termos gerais, mais
reconhecidas como peças instrumentais que tinham coreografias homônimas relacionadas à
música. Foram danças que não somente circularam no Brasil seiscentista/ setecentista, mas

411
Ânua da Província do Brasil de 1727. Padre Marcus de Távora. Colégio da Bahia, 1727. Original no
ARSI, Bras 10 II, doc. XLIV, ff. 285-292. Cópia nos ff. 293-301. Original em latim transcrito em (Holler,
2006, 191): F. 287v: Colégio de São Paulo. “Proximum est Paulopolitanum Collegium, ubi sudoribus Euan-
/geliis par gratia refertur. [...] Scholarum cultus erga Deiparam, / eorumq sodalitas prae omnibus alibi
Collegiorum Laudatur, quod unoquoq Sabbato / cantatam in organo Liturgiam mane excipiant, modulentur q
ad chordarum ins-/trumenta musica dulce litaniarum carmen, quibus caelorum Reginae Suffragatio-/nes
exponunt: Vespere autem salutationes Angelicas alternis occinant, Magistris[ponè, possè] / audientibus, ut
siquid â pueris minus bellè, decenteruè, flagris emendent.”
237

também tiveram reverberação em outros gêneros nos séculos seguintes, conforme nos
indica Budasz:
Na península ibérica, desde o século XVII, o vilão, ou villano, é associado ao
refrão popular Al villano se le Dan/ la cebolla con el pan. No Brasil, existem
evidências de que o vilão já estava incorporado aos fandangos do litoral
paranaense no início do século XIX.
A coreografia do canário envolvia o sapateado ágil e vigoroso. Existem ainda
hoje no litoral sul do Brasil e no interior paulista várias coreografias sapateadas,
cuja origem talvez pudesse ser relacionada ao canário, tamanha era a sua
popularidade nos domínios ibero-americanos durante o século XVII. A
espanholeta é principalmente reconhecida como peça instrumental, e tem como
característica marcante uma progressão harmônico-melódica bastante regular nas
várias versões existentes, seguindo um padrão rítmico similar ao da siciliana.
(2004, 23)

Gregório de Matos menciona estas três danças (e outras) em uma de suas poesias,
atestando a sua difusão em solo brasileiro durante aquele período:
PEÇAS DE SERVIÇO OITO
O Canário, o Cãozinho, o Pandalunga, o vilão,
O Guandu, o Cubango, a Espanholeta, e um
Valente negro em Flandres. 412
(JA, 1999, 828)

Além das três peças de origem ibérica, o poeta ainda menciona outras quatro danças
que marcam o cruzamento das influências recebidas de outros lugares (especialmente dos
escravos africanos) com as surgentes características culturais locais.
Pouco sabemos sobre tais peças e danças. E as razões que justificam a lacuna passam
principalmente por dois motivos:
1) Havia pouca tradição de escrita musical no período, então baseada essencialmente
na oralidade (transmissão oral). Ora porque poucos dominavam as ferramentas técnicas
para tal (especialmente nas atividades musicais profanas) e ora porque não havia a
necessidade de registrá-las e/ ou preservá-las.
Castagna ratifica tal ponto de vista:
Sabemos que grande parte daquela música que aqui se praticou naquela época,
nunca chegou a ser escrita. Danças, cantigas, romances e outros gêneros
musicais, inclusive religiosos, eram transmitidos oralmente, com o
acompanhamento improvisado dos instrumentistas. (1991, 98)

412
Segundo Budasz, este último verso (Valente negro em Flandres) “remete a uma comédia de Andres de
Claramonte”. O pesquisador também pontua que as peças listadas pelo Boca de Inferno são parcialmente as
mesmas daquelas encontradas na definição dada por Raphael Bluteau, em 1728, para o termo “som”.
(Budasz, 2006, 25) São elas: Arromba. Arrepia. Gandù. Canario. Amorosa. Marinheira. Caõsinho.
Passacalhe. Espanholeta. Marisápola. Villão. Galhurda [Galharda], Sarao. Fantesia. Destas, apenas o
Cubango e a Pandalunga são citadas na poesia de Gregório de Matos sem constar na definição de Bluteau, o
que nos faz subentender que estas duas, pelo contexto em que são mencionadas, também eram “sons”
acompanhados pela viola.
238

2) A segunda razão é ainda mais decisiva para aclarar as relações de poderes e jogos
de interesses entre os diversos grupos sociais: tais danças, bailes, peças e festividades
profanas (especialmente as protagonizadas por negros e mulatos) eram intermitentemente
reprimidas (e mesmo proibidas) pelas classes dominantes do período, tendo, muitas vezes,
que ser praticadas de forma velada. O já citado padre moralista Nuno Marques Pereira
expressa um exemplo de tal fato em seu Compêndio Narrativo do Peregrino da América,
no qual “se tratam vários discursos espirituaes, e moraes, com muitas advertências, e
documentos contra os abusos, que se achaõ introduzidos pela malícia diabólica no Estado
do Brasil” (Pereira, 1760 [1731] contracapa). Ao longo do texto, que teve grande
repercussão em seu tempo e recebeu sucessivas reedições (1731, 1752, 1760, 1765), o
“defensor da moral” nos deixa o seguinte relato:
E que vos direy de ouvir musicas profanas? Musicas profanas, e palavras
deshonestas, saõ a mesma cousa; porque o mesmo he cantar, que contar: e a
differença, que ha de huma cousa a outra he ser huma harmonicamente dita, e
outra proferida practicando. [...]
Por isso com muita razaõ prohibe o Direito darem-se musicas de noite pelas ruas
das Villas, e Cidades; E por certo, que em nenhuma parte deviaõ ser ellas mais
bem evitadas, e castigadas com duplicadas penas, que neste Estado do Brasil;
pelo profano das modas, e mal soante dos conceitos. Eu ouvi proferir cantando, o
que agora tremo de dizer: porém, como assenta sobre o proposito do que
tratamos, hey de publicá-lo, para confusão dos que usaõ desta musicas.
E foy o caso: que estando eu huma noite na Cidade da Bahia, ouvi ir cantando
pela rua huma voz: e tanto que punha fim á copla, dizia, como por apoyo da
cantiga: Oh diabo! E fazendo eu reparo em palavra taõ indecente de se proferir;
me disseraõ que naõ havia negra, nem mulata, nem mulher dama, que o naõ
cantasse por ser moda nova, que se usava: Vede se póde haver mayor
atrevimento, e ousadia entre Catholicos Christãos, que cantar semelhantes
musicas, tanto em gosto do inimigo infernal; como se chamasse por JESU
Christo que nos remio.
Porém eu me persuado, que a mayor parte destas modas lhas ensina o Demônio:
porque he elle grande Poeta, contrapontista, musico, e tocador de viola, e sabe
inventar modas profanas, para as ensinar áquelles, que naõ temem a Deos. Conta
o Padre Bento Remigio no seu Livro Pratica Moral de Curas, e Confessores,
(pag. 9.) e no outro livro intitulado Deos Momo: que entrando o Demonio em
huma mulher rústica, foy hum Sacerdote a fazer-lhe os exorcismos dentro de
huma Igreja; e entrando-lhe a curiosidade, perguntou ao Demônio, o que sabia?
Respondeo-lhe, que era musico. E logo lhe mandou vir huma viola; e de tal
maneira a tocou, e com tanta destreza, que parecia ser tocada por hum famoso
tocador. [...]
Outras muitas musicas deshonestas tenho ouvido cantar; como he huma moda,
que se usou, e ainda hoje se canta, e acaba dizendo: Berra a tua alma. Parece, que
quem tal canta, e folga de ouvir cantar, ja estaõ annunciando o como lhes ha de
vir a succeder quando forem ao inferno, chorando, e berrando, pelas profanas
musicas com que nesta vida peccáraõ, e foraõ causa de fazerem peccar a muitos.
Mas agradeçaõ-me estes taes a bõa vontade: que se eu fora Ministro da Justiça,
ou tivera poder sobre elles; eu os fizera cantar, ou berrar ao som (Pereira, 229)
dos golpes de num verdugo pelas ruas publicas para seu castigo, e emenda dos
mais, que de taes modas usaõ. E veriaõ entaõ, se lhes valia o Demônio, por quem
chamaõ. (Pereira, 1760 [1731], 228-230)
239

Além de destacar a proibição noturna – então amparada pelas leis (o “Direito”) – de


músicas profanas nas ruas das vilas e cidades (“que em nenhuma parte deviam ser mais
bem evitadas, e castigadas com duplicadas penas, que neste Estado do Brasil”), podemos
depreender outras importantes referências do testemunho de Pereira:
1) As músicas profanas tinham ampla e imediata difusão entre os distintos grupos
sociais do período. Bastava que uma “moda nova” despontasse para que logo não houvesse
negra, mulata ou mulher dama que não a cantasse;
2) Para o autor, tal fato não era considerado apenas um “atrevimento” aos olhos dos
católicos cristãos, mas também uma associação direta à ação do demônio. Mais do que
isso, segundo sua visão, era o próprio belzebu quem ensinava “a maior parte destas modas”
na qualidade de grande poeta, contrapontista, músico e, não obstante, um tocador de viola
com tamanha destreza que mais parecia um “famoso tocador”. Era com tais qualidades que
ele arrebatava “aqueles que não temem a Deus”.
Na prática, o que vemos é uma repreensão em duplo sentido às danças e peças
profanas praticadas, especialmente por negros e mulatos, entre os séculos XVII e XVIII:
por um lado, a força coercitiva das leis; por outro, o poder da coibição social de cunho
moral.
O discurso moralista de Pereira também nos remete a outro valor simbólico que
paulatinamente foi sendo associado à viola na transição entre os séculos XVII e XVIII: a
de instrumento vinculado a práticas, repertórios e personagens de má reputação social,
dando suporte para “músicas desonestas” que deveriam ser “evitadas” e que eram
ensinadas pelo próprio anticristo, ele próprio um notório violeiro.
Estamos diante das primeiras fagulhas concretas que naturalizaram (criando e
reproduzindo) uma imagem depreciativa em torno do instrumento que perduraria ao longo
dos séculos seguintes e demandaria longa batalha para ser contornada. A ampla
repercussão da obra de Pereira (quatro edições em pouco mais de três décadas, números
absolutamente expressivos para a época) nos revela que os costumes e hábitos defendidos
pelo autor não eram frutos ocasionais de um personagem isolado, mas antes estavam
imersos nos valores compartilhados e praticados pela burguesia aristocrática coetânea.
De Socrates refere Plutarco, que entre os documentos que deo para o bom
governo da Republica, foy hum, e naõ menos importante: que naõ permitissem
aos moços ouvir palavras indecentes, nem musicas lascivas, nem comédias, ou
farças profanas; porque se prendiaõ de sorte na mocidade, que se convertiaõ em
vicios na idade mayor. E por isso exhortava que os ensinassem a ouvir cousas
sérias, e graves, e que os apartassem dos vicios, e industriassem em virtudes.
(Pereira, 1760 [1731], 186-187)
240

Diante do exposto, tornam-se mais compreensíveis as razões pelas quais um número


significativo de danças, bailes, gêneros e peças de caráter afro-brasileiro foram pouco
documentados e passaram praticamente incólumes na música registrada no Brasil entre os
séculos XVII e XVIII. Poucos vestígios, no entanto, não são sinônimos de inércia ou
inexistência. Tampouco representam que tais músicas não desempenharam papeis sociais
significantes ou não tiveram reverberação nas representações culturais praticadas
posteriormente. Vejamos alguns exemplos.

Cãozinho

O cãozinho nos deixa algumas preciosas referências nos poucos relatos conhecidos.
Vejamos em que contexto o baile foi mencionado em uma das poesias de Gregório de
Matos:
Descreve outra função igual, que no seguinte anno estas, e outras mulatas da mesma condição fazem a N.
Senhora de Guadalupe.
(JA, 1999, 479)

10. Tomou a Garça no ar


a Sapata incontinenti,
e indo arreganhar-lhe o dente,
não teve, que arreganhar:
porém por se desquitar
foi-se bailar o cãozinho,
e como sobre o moinho
levou tantas embigadas,
deu em sair às tornadas
a puro vômito o vinho. [...]
(JA, 1999, 482) 413

Alguns dados são particularmente notáveis:

413
Também citada na edição de Afrânio Peixoto (AP, 1943, II/304) com uma epígrafe distinta: “LXXXII - A
Luiza Agrela, quando foi Juiza.” (AP, 1943, 302). Poesia integral na edição de James Amado: (JA, 1999,
479-484). Poesia em contexto:
1. Tornaram-se a emborrachar/ as Mulatas da contenda,/ elas não tomam emenda,/ pois eu não me hei de
emendar:/ p uso de celebrar/ àquela Santa, e a esta,/ com uma, e com outra festa/ não é devoção inteira,/ é
papança, é borracheira/ dar de cu, cair de testa. [...] (JA, 479)
17 Acabado o tal banquete/ sem mais, nem mais dilação/ foi-se um, e outro putão,/ atrás do seu pontalete:/
deixaram saia, e traquete,/ dentro da casa fechada;/ e lá pela madrugada,/ veio a negra da Juíza/ e não
achando a camisa/ gritou que estava roubada.
18 Voto solene fizeram/ Ouvindo da negra os brados/ Dizendo que foram pecados,/ Que na festa
cometeram:/ Porque a virgem a quem disseram,/ Que aquela festa faziam,/ Lhe ouviram, quando bebiam/
Dizer a senhora então;/ Que não se servia, não,/ Do modo com que serviam.
19 Elas já em seu juízo/ (se de seu juízo têm)/ Dizem, que o ano que vem/ Haverá festa de siso:/ Que hão de
olhar seu perjuízo,/ Sua honra, e opinião;/ De putaria, isso não,/ Mas, eu por certas sequelas/ Não me ficarei
mais nelas/ Nem na sua devoção. (JA, 1999, 484)
241

1) Primeiro, um intrigante contraponto: o cãozinho é citado em meio a uma festa


devocional que as mulatas ofereciam em honra de Nossa Senhora de Guadalupe, mas ao
contrário das cerimônias religiosas descritas dentro de ambientes jesuíticos, o caráter do
evento é tão diverso que o Boca de Inferno, ao citar as mulatas que protagonizavam a
homenagem, pontua que a celebração àquela santa “não é devoção inteira, é papança, é
borracheira”, evidenciando, com isso, a prática de celebrar santos (as) católicos com
festividades profanas onde era comum haver bebedeira, danças, músicas e enlaces
amorosos (“foi-se um e outro putão/ atrás do seu pontalete”). Um divertido paradoxo que
demonstra como a apropriação cultural dos símbolos religiosos era realizada, algumas
vezes, de maneira bem distinta daquela que havia sido precipuamente imaginada, em um
uso que não foi (e nem poderia ser) completamente regido ou manipulado pelos seus
criadores.
2) Ainda mais relevante, contudo, são as características em torno da dança que o
poeta deixa notar. O cãozinho é descrito com gestos tão rápidos e sinuosos que a mulata
Luiza Agrela não resistiu e vomitou todo o vinho que consumira depois de bailá-lo. Entre
tais movimentos, devemos chamar atenção para o “dar de cu” (citado pelo poeta na
primeira estrofe e que subentende um encontro de nádegas tão ziguezagueante que era
perigoso “cair de testa”) e, sobretudo, as “embigadas” (mencionadas na mesma estrofe do
cãozinho).
A expressão “embigadas”, também citada como “barrogadas” na edição de Afrânio
Peixoto (AP, 1943, II/304), faz alusão, na verdade, à “umbigada”, um elemento
coreográfico de caráter afro-brasileiro definido como o “toque entre o abdômen do
dançarino e daquele que ele escolhe para substituí-lo” e que esteve “presente em várias
danças importadas da região do Congo e Angola para o Brasil e Portugal” (Budasz, 2004,
29). Tal remissão é importante porque descortina um fato: embora somente no século
XVIII a umbigada e o toque estalado dos dedos tenham sido amplamente documentados
pela musicologia brasileira através do Lundu, ambos já existiam nas danças afro-brasileiras
praticadas no Brasil pelo menos um século antes, no tempo de Gregório de Matos.
Infelizmente, os únicos registros sobreviventes da dança foram 04 cãozinhos
espalhados em dois códices, o de Coimbra e o de Redondo:
O códice de Coimbra apresenta um cãozinho e duas outras peças denominadas
cãozinho de Sofala. Um cãozinho de Sofala também é encontrado no códice
Conde de Redondo, talvez referindo-se a alguma versão da dança proveniente
daquela região aurífera do sudeste da África, hoje Moçambique. (Budasz, 2004,
29)
242

Por outro lado, remediando as parcas referências, é certo que o cãozinho não esteve
só.

Gandu/ Guandu

O gandu (ou guandu), outra dança muito comum nos anos seiscentos, foi
sucintamente definido por Bluteau como “hum Som, que antigamente se tocava na viola”
(1728, I/448). Mais uma vez o termo “Som”, aqui expresso pelo dicionarista com inicial
maiúscula, define uma peça que era executada ou acompanhada pela viola. Gregório de
Matos também o mencionou no já citado poema em que Fernão Roiz, “violista das putas”
de um determinado destrito, descuidadamente deixa escapar o seu membro entre os “trapos
da braguilha”. A cena ocorreu em meio ao baile do bordel de mulatas que o poeta
costumava frequentar na Bahia:
[...] 2. Não vêem o grande despejo,
com que o demo do priapo
saiu pelo roto trapo,
qual faminto percevejo?
eu tenho grande desejo
de ver bailar o Gandu
mais duro, que um Berzabu, [Belzebu]
e se o seu lhe soluçou,
pois que me não respeitou,
por que não o mete no cu? [...]
(JA, 1999, 1026-1027)

Citando alguns autores, Budasz faz uma análise sobre as origens da dança,
descartando ligações com o lundu que podem eventualmente ser sugeridas pela
proximidade das grafias (gandu x lundu):
José Ramos Tinhorão encontrou várias menções ao gandu em fontes literárias
portuguesas do século XVIII, onde a palavra é sempre associada à cor ou à raça
negra. Tinhorão sugere que talvez o gandu fosse um ancestral do lundu – às
vezes grafado landu, ou landum. 414 A hipótese é compartilhada por Peter Fryer
415
, mas a análise dos exemplos musicais remanescentes não contribui para
confirmá-la. O comportamento melódico dos gandus de Coimbra aponta para um
compasso ternário, em vez do binário, ou binário composto, usualmente
associado ao lundu. Adicionalmente, nenhum dos gandus apresenta similaridade
com o perpétuo arpeggio encontrado nos lundus mais antigos. Contudo, as
harmonias e preparações cadenciais aproximam-se daqueles encontrados em
danças de suposta influência norte-africana, como o fandango, com o qual o
lundu compartilhava certos detalhes coreográficos, isso aplica-se também a uma
forma de fofa que ainda é tocada e cantada em São Miguel dos Açores. (2004,
33)

414
TINHORÃO, José Ramos. Os Negros em Portugal, uma presença silenciosa. Lisboa: Caminho, 1997. A
referência está na página 361.
415
FRYER, Peter. Rhythms of resistance. Hanover NH: Wesleyan University Press, 2000. A referência está
na página 128.
243

Mais uma vez, o autor cita exemplares remanescentes da dança pertencentes aos
códices de Coimbra. Destaca-se ainda o fato de Tinhorão sublinhar que o gandu foi sempre
referido na literatura portuguesa do século XVII como uma palavra necessariamente
vinculada aos negros. No Brasil, o Boca de Inferno o menciona em contexto próximo,
inserido em um baile de mulatas que, apesar de reprimido socialmente, também era
frequentado por brancos (conforme atesta a própria presença do poeta). 416
Um dos exemplos em textos lusos encontra-se no Anatomico Jocoso, coleção de
folhetins reunidos pelo Frei Lucas de Santa Catarina (1660-1740) “que à custa de seu
trabalho ajuntou de vários authores estes divertidos fragmentos” (epígrafe que consta na
folha de rosto da publicação). Embora a coletânea só tenha sido publicada em 1752, o
autor viveu 40 anos de sua vida no século XVII e boa parte das menções musicais que
realiza no texto remete a práticas anteriores. Na primeira edição, editada em Madrid na
Imprenta de Francisco del Hierro, ele menciona incidentalmente o arromba (sobre o qual
nos concentraremos adiante) e o gandum:
Esta he, mulher, a distancia que vay dos que amamos aos que esquecemos:
quando eu era amante, perneava padecente; agora, que já Zingro das finezas,
estou de perneta nas anciãs: quando eu era choramigas da ausencia, era papa
arroz da magoa; agora que sou o gandum da pirguiça, sou o arromba da
constancia. (Santa Catarina, 1752, I/81)

Três anos mais tarde, a edição portuguesa (publicada em Lisboa na Officina do


Doutor Manoel Alvarez Solano) faria nova menção à dança e ao modo como era
executada: “Junto á cruz [presente no bairro lisboeta de São Bento], andavaõ os mochilas
[serviçais] ao socairo com seu gandum por pontos’ 417 (Santa Catarina, 1755, I-278). A

416
Havia uma série de práticas culturais que, por serem protagonizadas por negros, eram reprimidas
socialmente, moralmente, religiosamente e culturamente. Por isso mesmo, muitas de tais práticas ficavam
circunscritas aos quilombos e eram muitas vezes exercidas veladamente. A presença de brancos nestes
espaços e eventos sociais nem sempre era bem acolhida tanto pelos negros quanto pelos próprios pares
brancos, conforme veremos adiante em outros exemplos.
417
Para uma melhor compreensão do contexto, adiantaremos aqui o conteúdo do que iremos expor sobre tal
termo no item 4.4.4.3 - A viola e os seus Artefatos: Ponto: Mário de Andrade dá a seguinte definição ao
termo: “ponto: o mesmo que tasto” esclarecendo ainda que “no sentido de tasto, ou trasto, foi usado por
Gregório de Matos” (Andrade, 1989, 400). Castagna considera que “os sete pontos do poeta seiscentista
parecem indicar os sete graus da escala diatônica, com os sete signos de música [...]” (Castagna, 1991,
III/539). Já para Tinhorão, “tocar a viola por pontos” significava tangê-la “de forma dedilhada” ao invés “de
ferir as cordas todas de uma vez, o que era chamado toque rasgado” (Tinhorão, 1990, 49). Bluteau também
menciona a expressão “tanger por pontos” (Bluteau, 1721, VIII/39), que, em seu caso, remete aos espaços
separados pelos trastes no braço da viola. Sendo assim, tais pontos seriam equivalentes ao que hoje
conhecemos por casas (casa I, casa II, etc). No fim do século XVIII, o sentido musical do verbete já havia
sofrido alterações, conforme revela a edição reduzida do dicionário de Bluteau realizada por Moraes e Silva:
“na Mus. o ponto, póem-se atraz de huma figura para designar, que vale a metade da precedente. [...]”
(Moraes e Silva/Bluteau, 1789, II/217).
244

expressão idiossincrática agregada ao relato (“por pontos”) não deixa dúvidas de que a
viola esteve presente na ocasião.
Mas Frei Lucas não foi o único autor luso a constatar a presença da dança em
Portugal ao longo do século XVIII. Joam Cardoso da Costa (1693 - ?) dedica os seguintes
versos “a huma negra vendo-se a hum espelho” em seu livro Musa Pueril:
SONETO VI
[...]
Vaite já para o Reino do Pará
Aonde atraz de hum negro todo nu
Melhor te podes ver sempre por lá:

Pois para tal negrura como tu,


Nesse lugar he bem que verse vá
Lá nos reinos escuros do Gandú.
(Costa, 1736, 328)

No relato, não só podemos perceber a rejeição em relação à cor negra da personagem


que o autor intenta humilhar, mas também a qualificação depreciativa que ele agrega à
dança (os reinos escuros do Gandú) 418. Tal fato revela que, na metrópole e na colônia
(conforme veremos adiante), havia uma forte reprimenda às práticas culturais
protagonizadas por negros (as) e mulatos (as).
Apesar do caráter racista, os versos de Costa ganharam tamanha repercussão que
mereceram uma paráfrase do também poeta português João Pedro da Silva Zambrinense,
publicada uma década depois com o seguinte título:
‘Versos a uma negra vendo-se a um espelho’
[...] É mui justa razão que agora vá
Buscar espelho ao baile do Gandu. [...] 419

Quanto aos detalhes coreográficos referentes ao lundu utilizados também em outras


danças, podemos destacar as umbigadas, o estalar dos dedos imitando castanholas, o
tremer de quadris e os movimentos de braços (meneios) acima do tronco, características
que “são encontradas ainda hoje em várias coreografias tradicionais portuguesas” (Budasz,
2004, 33).

418
A própria depreciação já se reveste de um preconceito implícito, uma vez que o autor classifica
pejorativamente o gandu como pertencente a um “reino escuro”, como se tal expressão fosse intrinsicamente
sinônimo de algo negativo. Até hoje, a naturalização e a reverberação de tais práticas nas sociedades luso-
brasileiras são visíveis. Quando algo não vai bem, costumeiramente ouvimos dizer: “A coisa ficou preta!”
Quando estamos diante de um serviço mal prestado: “Parece serviço de preto!” Ou quando nos referimos a
um dia de labuta: “vamos trabalhar que hoje é dia de branco!”.
419
A poesia foi publicada no folheto Desenfado do Povo (Provas e Suplementos à História Annual), tomo
2.614, Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo (coletânea de folhetos de cordel publicados entre 1746
e 1748). A referência se encontra em: (Tinhorão, 2006 [2001], 32)
245

Paturi

Dentre as danças afro-brasileiras, o paturi já tinha agregado alguns de tais gestos


bem antes do lundu. Na célebre poesia de Gregório de Matos em que as “mulatas do
Brasil” bailam o paturi “ao som de uma guitarrilha”, podemos reconhecer, por exemplo, o
estalar dos dedos reproduzindo o som de castanhetas, o rebolado dos quadris e o levantar
das saias:
Não usam de castanhetas,
porque cos dedos gentis
fazem tal estropeada,
que de ouvi-las me estrugi:
Que bem bailam as Mulatas,
que bem bailam o Paturi.

Atadas pelas virilhas


cuma cinta carmesim,
de ver tão grande barrigas
lhe tremiam os quadris.
Que bem bailam as Mulatas
que bem bailam o Paturi.

Assim as saias levantam


para os pés lhes descobrir,
porque sirvam de ponteiros
à discípula aprendiz,
Que bem bailam as Mulatas,
que bem bailam o Paturi.
(JA, 1999, 448)

O paturi é o fruto do cruzamento entre o pato e a marreca (no Brasil também


chamado de patureba). Não se sabe ao certo se a dança musical guarda alguma relação
com a definição terminológica da palavra, mas talvez o título remeta aos movimentos
típicos que são realizados por esses animais. Seja como for, Tinhorão reconhece nesta
dança de mulatas alguns dos elementos que, um século depois, iriam ser cristalizados no
lundu:
Pela descrição dessa dança de mulatas (que em Seiscentos começavam a formar
o contingente das mestiças forras e livres destinadas no século seguinte a ter um
peso tão grande na conformação étnico-psicológica da maioria das baixas
camadas sociais, até a classe média), Gregório de Matos faz saber que por aquela
década de 1680-1690 já se dançava na área popular castanholando com os dedos.
Ora, se a essa característica do estalar de dedos própria do fandango ibérico, aqui
apontada no paturi, se somar outra indicação fornecida pelo próprio poeta, sobre
umbigadas vistas em festas de pardos de Salvador em homenagem a Nossa
Senhora do Amparo (‘e como sofre o molato/ levou tantas umbigadas [...]’), pode
concluir-se já existirem em seu tempo – embora isoladamente – os dois
elementos que, reunidos, fariam no século XVIII surgir o lundu.” (Tinhorão,
1990, 59)
246

Calundu

Com grafia próxima ao gandu, mas com um alcance simbólico e representativo mais
amplo, temos no calundu outra manifestação cultural protagonizada por negros escravos ao
longo dos séculos XVII e XVIII. Consistia basicamente em uma “uma cerimônia religiosa
acompanhada de danças e toques de sonoridade eminentemente percussiva” (Budasz, 2004,
9), uma prática severamente reprimida pelo catolicismo das classes dominantes do período,
que o consideravam feitiçaria e uma grave ofensa aos desígnios de Deus. 420
Nas palavras do moralista Nuno Marques Pereira, era causa para peremptória
reprimenda não somente a prática do calundu em si, mas também a anuência que recebiam
dos senhores de engenhos. Muitas vezes preocupados em evitar possíveis insubordinações
ou insurgências maiores, eles faziam vista grossa para as reuniões e folguedos que os
escravos celebravam dentro de seus domínios. Na citação seguinte, que reproduz um
diálogo entre o moralista e um morador que o hospedava, podemos notar as diferentes
percepções sobre o calundu: para Pereira, os “horrendos alaridos” da noite anterior
representaram uma “confusão do inferno”; já para o dono da casa, uma “coisa sonora” para
se “dormir com sossego”.
Naõ era ainda de todo dia, quando ouvi tropel de calçado na varanda: e
considerando andar nella o dono da casa, me pús a pé; e sahindo da camera, o
achey na varanda, e lhe dey os bons dias, e elle também a mim. Perguntou-me
como havia eu passado a noyte? Ao que lhe respondi: Bem de agazalho, porém
desvélado; porque naõ pude dormir toda a noyte. Aqui acudio elle logo,
perguntandome, que causa tivera? Respondi-lhe, que fora procedido do estrondo
dos tabaques, pandeiros, canzás, botijas, e castanhetas; com taõ horrendos
alaridos, que se me representou a confusaõ do Inferno. E para mim, me disse o
morador, naõ ha cousa mais sonora, para dormir com socego. A isto lhe disse eu:
Com razam dizem os naturaes que vivem junto do rio Nilo, que nam sentem o
estrondoso sussurro de suas correntes; e pelo contrario os que vaõ de fora se naõ
podem entender; ainda quando mais alto gritaõ. Senhor, (me disse o morador) se
eu soubera que havieis de ter este desvélo, mandaria que esta noyte naõ tocassem
os pretos seus Calundús.
Agora entra o meu reparo, (lhe disse eu) Pois, Senhor, que cousa he Calundús?
Saõ huns folguedos, ou addivinhações, (me disse o morador) que dizem estes
pretos que costumaõ fazer nas suas terras, e quando se achaõ juntos, também
usaõ delles cá, para saberem varias cousas; como as doenças de que procedem; e
para addivinharem algumas cousas perdidas; e também para terem ventura em
suas caçadas, e lavouras; e para outras muitas cousas. (Pereira, 1760 [1731], 115-
116)

420
“Tal me considero eu no presente caso, levado do zelo, e amor de Deos, e da caridade do próximo; por
ver, e ouvir contar o como está introduzida esta quasi geral ruina de feitiçarias, e calundus nos escravos, e
gente vagabunda, neste Estado do Brasil; além de outros muitos, e grandes peccados, e superstiçoens de
abusos tam dissimulados dos que tem obrigação de os castigar: motivo, porque o Demônio, mestre da
mentira, e sciencia mágica, se tem introduzido, com perda de tantas almas remidas pelo precioso Sangue de
nosso Senhor Jesu Christo.” (Pereira, 1760 [1731], página 2 da seção introdutória “Ao Leytor”).
247

O calundu parece ter sido uma das práticas culturais afro-brasileiras de maior difusão
entre os anos seiscentos e setecentos. Seu alcance não se limitou aos personagens negros e
escravos pertencentes aos engenhos, mas, a partir deles, atingiu também outros biombos
sociais. Na citação anterior, já observamos como os senhores das fazendas tinham
conhecimento das celebrações e, sorrateiramente, as consentiam. Não obstante, mesmo os
gentios (os índios) eram trazidos de suas terras para participar dos eventos.
Vejamos o relato no testemunho do próprio moralista Pereira:
E se naõ, dizey-me: He sem duvida, que estes Calundús, que vos chamais, e
consemtis que usem delles os vossos escravos, e na vossa fazenda; he rito, que
costumaõ fazer, e trazer estes Gentios de suas terras. Também he certo, que por
Direito especial de huma Bulla do Sumo Pontífice se permittio que elles fossem
cativos, com o pretexto de serem trazidos á nossa Santa Fé Catholica, tirando-se-
lhes todos os ritos, e superstições Gentilicas, e ensinando-se-lhes a doutrina
Christã: o que se naõ poderia fazer, se sobre elles naõ tivessemos domínio. Logo
como se lhes pôde permittir agora, que usem de similhantes ritos, e abusos taõ
indecentes, e com taes estrondos, que parece que nos quer o Demônio mandar
tocar triunfo ao som destes infernaes instrumentos, para nos mostrar como tem
alcançado victoria nas terras, em que o verdadeiro Deos tem arvorado a sua Cruz
á custa de tantos Operários, quãtos tem introduzido neste novo mundo a
verdadeira Fé do Santo Evangelho? Naõ vos parece que tenho razam para vos
estranhar, e a todos os que isto consentem, e dissimulaõ em terras de Catholicos
Christãos? (Pereira, 1760 [1731], 117-118)

O cerceamento do padre não era sem propósito. Além dos negros, dos senhores de
engenho e dos índios, Gregório de Matos revela, em um de seus poemas, que o calundu
havia feito dos quilombos lugares onde os “mestres superlativos” reuniam “mil sujeitos
femininos” e “muitos barbados”, num espaço social onde não havia “mulher desprezada” e
nem “galã desfavorecido”. Provenientes de distintas classes sociais, todos iam ao
mocambo “dançar o seu bocadinho”:
Que de quilombos que tenho
com mestres superlativos
nos quais se ensinam de noite
os calundus, e feitiços,
com devoção os frequentam
mil sujeitos femininos,
e também muitos barbados
que se prezam de narcisos.
Ventura dizem que buscam:
não se viu maior delírio!
eu, que os ouço, vejo, e calo
por não poder diverti-los.
O que sei, é, que em tais danças
Satanás anda metido,
e que só tal padre-mestre
pode ensinar tais delírios.
Não há mulher desprezada,
galã desfavorecido,
que deixe de ir ao quilombo
248

dançar o seu bocadinho.


(JA, 1999, 42)

Não obstante, é preciso considerar que, ao longo do século XVII, os termos calundus
e lundus eram tomados como sinônimos. O próprio Boca de Inferno nos apresenta a
correspondência ao retratar as supostas práticas de uma “negra feiticeira” chamada Luiza
da Prima:
Dizem, Luíza da Prima,
Que sois puta feiticeira,
No de puta derradeira,
No de feiticeira prima:
Grandemente me lastima,
Que troqueis as primazias
A lundus, e as putarias,
Sendo-vos melhor ficar
Puta em primeiro lugar,
Em último as bruxarias. [...]
(JA, 1999, 866) 421

Fica patente que os lundus a que se refere Gregório de Matos nos anos seiscentos não
detinham o mesmo sentido da dança homônima que ganhou ampla difusão no Brasil a
partir do século seguinte. Tinhorão explicita as diferenças entre uma e outra:
A mais importante revelação encontrada nos versos dessa anedota setecentista de
Gregório de Matos, poeta, é o fato de mostrar que a palavra calundus admitia o
sinônimo lundus, usado também sempre no plural. Essa sinonímia, afirmada pelo
gramático João Ribeiro em seu livro A língua nacional, mas negada pelo
musicólogo Mozart de Araújo em seu estudo A modinha e o lundú no século
XVIII, implica numa discussão que interessa à história da música popular no
Brasil: uma vez que a partir dos setecentos começam a aparecer notícias em
torno de uma dança de roda à base de umbigadas e castanholar de dedos com o
nome de lundu, teria tal novidade alguma coisa a ver com os batuques chamados
de calundus e, às vezes, de lundus? Apesar da sinonímia, a resposta certa é
negativa, porque os lundus-calundus – com toda a ideia de sons de batuque e de
dança que a eles se tenha agregado – têm sempre em comum a origem religiosa,
enquanto o futuro lundu (conhecido também como lundum, landum, londum,
londu e landu) refere-se invariavelmente a uma dança profana, mais cultivada
por brancos e mestiços do que por negros, e que estava destinada a transformar-
se, ainda no século XVIII, em número de teatro e canção humorística. (Tinhorão,
1988, 35-36)

Mas se a prática dos calundus/ lundus foi tão comum e difundida ao longo do século
XVII, por qual razão são ínfimas as informações sobre seus desdobramentos na cultura e
na música brasileira?
A resposta é, embora penosa, simples: a “história” que conhecemos é a dos
“vencedores”. E para estes, não interessou que a cultura dos negros tomasse parte dos

421
O termo lundus volta a ser citado na poesia de Gregório de Matos com seguinte contexto: “Ao capitão
Bento Rabello morador na Villa de S. Francisco amigo do poeta, que por estar totalmente divertido com o
jogo o não foi visitar; elle o admoesta, a que largue o jogo, e vá para a Cajaiba”[...] Que mau é Mariquinha,/
Quando está com seus lundus/ Fazer-vos com quatro cus/ O rebolado? (JA, 1999, 292-293)
249

acontecimentos narrados. A não ser, claro, quando era reprimida e achincalhada, como no
caso do moralista Nuno Marques Pereira.
Reprimenda tão incisiva que em nenhuma das outras manifestações culturais afro-
brasileiras que se têm notícia no século XVII, vê-se uma ação tão escrupulosa quanto
aquela usada para conter a disseminação dos calundus. O longo relato adiante é
emblemático para percebermos o jogo entre os personagens do campo social (senhores de
engenho – escravos – padres moralistas) e em que nível acontecia o silenciar das vozes
negras. Os escravos, acuados, pouco podiam senão professar a fé alheia. E assim, o Mestre
dos Calundus, “preto”, calou-se:
Senhor, (me disse o morador) ja que tam bem me tendes explicado o que eu tanto
ignorava, e de que naõ fazia caso; permitti-me mandar chamar estes escravos á
vossa presença: que o demais, com o favor de Deos, em quem confio, e adoro, eu
o evitarey. E logo despachou hum famulo a chamar os mais escravos: os quaes,
ainda que devagar, foram chegando; e por mais diligencia que o dono da casa
fazia para que chegasse o Mestre dos Calundús, nam era possivel; sendo que o
dia era Domingo, e naõ havia occupaçaõ. E chegando em fim elle, e todos os
mais á minha presença, perguntey ao Mestre dos Calundús: Dizey-me, filho;
(que melhor fora chamar-vos pay da maldade) que cousa he Calundús? O qual
com grande repugnância, e vergonha me disse: que era uso de suas terras, com
que faziaõ suas festas, folguedos, e addivinhações. Nam sabeis, (lhe disse eu)
esta palavra de Calundús o que quer dizer em Portuguez? Disse-me o preto que
naõ. Pois eu vos quero explicar, (lhe disse eu) pela etymologia do nome, que
significa. Explicado em Portuguez, e Latim, he o seguinte: que se calaõ os dous:
Calo duo. Sabeis quem saõ elles dous que se calaõ? Sois vós, e o diabo. Cala o
diabo, e calais vós o grande peccado que fazeis, pelo pacto que tendes feito com
o diabo; e o estais ensinando aos mais fazendo-os peccar, para os levar ao
Inferno quando morrerem, pelo que cá obráraõ junto comvosco. Aqui tendes a
explicação deste horrendo peccado: o qual por sua natureza, e malícia he taõ
pessimo, que se vós soubesseis a qualidade dessa culpa, e os mais, fugirieis della,
como do mesmo Inferno.
Mas dizey-me: Sabeis vós as Orações? Disse me o preto que sim. Pois dizey-me
o Credo. (lhe disse eu) E querendo o preto dar-lhe principio, nunca o pode
proferir, nem acertar. Aqui se começou a atemorizar o dono da casa, e os
escravos a encher-se de temor, e horror. Ao que acudi eu, dizendo que naõ
temessem ao inimigo, posto que o tivessem, á vista: porque com ajuda de Deos,
em quem eu tanto confiava, havia elle de sahir destruido; pois nada póde, sem
Deos lho permittir. E logo lhes dissé, que todos dissessem. commigo a Oraçaõ
seguinte: Eys a Cruz de Christo aqui: Espiritos máos, fugi, que da Tribu de Judá,
o Leaõ foy vencedor da geração de David: Alleluia , alleluia , alleluia. E
repetindo eu todo o Credo, e os Mandamentos da Ley de Deos; perguntey ao
preto, se cria em Deos Padre todo poderoso? Ao que me respondeo, que sim cria
verdadeiramente. Pois se credes, (lhe disse eu) e sabeis os Mandamentos da Ley
de Deos, nos quaes se nos manda que o honremos, e amemos sobre todas as
cousas; que razaõ tendes para crer no diabo, e fazer que estas pobres miseraveis
creaturas, remidas com o precioso sangue de meu Senhor JESU Christo, creaõ, e
idolatrem em superstiçoens, e feitiçarias do diabo?

Aqui se calou o preto.

(Pereira, 1760 [1731], 118-120) 422

422
O depoimento de Pereira não parece ter sido uma ação isolada. Além da enorme repercussão de seu livro,
em seu próprio texto ele nos deixa antever como as ideias que defendia reverberavam em seu tempo:
250

Arromba

O arromba foi outra dança musical de caráter afro-brasileiro muito comum e


igualmente combatida por Pereira, que se escandalizava “com as letras de cunho erótico e
teria achado igualmente ofensivas as alusões profanas em peças como o arromba do
inferno, ou o duplo sentido de denominações de danças do tipo sarambeque, arromba e
gandu.” (Budasz, 2004, 7).
O erotismo e a sensualidade que tanto chocavam o moralista foram captados por
Gregório de Matos na poesia em que ele descreve o próprio irmão, Pedro de Matos,
bailando o arromba com grande habilidade e elegância, apesar da infame moléstia que lhe
imperava nas nádegas:

Segunda função que teve com alguns sugeytos na roça de hum amigo junto ao dique, onde tam bem se achou
o celebrado Alferes Themudo, e seu irmão o Doutor Pedro de Mattos, que então andava molesto de Sarnas.

[...] 3.
Cantou-se galhardamente
tais solos, que eu disse, ó
que canta o pássaro só,
e os mais gritam na semente:
tocou-se um som excelente,
que Arromba lhe vi chamar,
saiu Temudo a bailar,
e Pedro, que é folgazão
bailou com o pé e com a mão,
e o cu sempre no lugar.
4.
Pasmei eu da habilidade
tão nova e tão elegante,
porque o cu sempre é dançante
nos bailes desta cidade:
mas em tal calamidade
tinha Pedro o cu sarnudo,
que dando de olho, ao Temudo
disse pelo socarrão,
assim tivera o cu são,
como tenho o cu sisudo.
(JA, 1999, 455) 423

“Senhor, (me disse o morador) a esta hora chego da casa de hum meu compadre, onde passey hoje o dia: e na
conversaçaõ, que tivemos, me disse que soubera de hum homem , que estivera em casa de hum seu vizinho,
haverá três dias, o qual hia de marcha em traje de Peregrino: e que da sua breve assistencia resultáraõ muitos
serviços a Deos, por ser causa de evitar hum grande abuso, que achou introduzido em casa daquelle morador,
acerca de usarem de calundús, e feitiçarias os seus escravos. E por isso, assim como vos vi, me persuadi que
sois vós o mesmo, de quem tenho ouvido publicar o que vos relato: e prezo muito agora a vossa presença,
para também de vós colher algum bom conselho, e doutrina.” (Pereira, 1760 [1731], 152)
423
Poesia em contexto: “5. Pôs-se a mesa, e escabelos,/ foram seguindo-se os pratos,/ que eram tanto à vista
gratos,/ como ao gasnate eram belos:/ Pedro se pôs a lambê-los,/ e dando-se a Berzabu/ de não beber com
Jelu/ o licor, que o entorpeça,/ porque o que dá na cabeça,/ temeu, lhe desse no cu. 6. Não quis o cu
251

No poema, o Boca de Inferno nos deixa notar algumas características coreográficas e


musicais do arromba:
1) Era bailado “com o pé e com a mão”;
2) Pressupunha um rebolado sinuoso dos quadris (o cu sempre é dançante nos bailes
desta cidade), razão pelo qual espantou-se com o fato de seu irmão conseguir realizar a
dança com o “cu sempre no lugar”;
3) Naquela ocasião, o poeta o considerou “um som excelente”.
Já vimos que o termo “som” era usado para denominar toda peça que, naquele
período, tocava-se à viola. A definição de Raphael Bluteau para a dança confirma tal
perspectiva: “ARROMBA. Peça, que se toca na viola ou corrida, por pontos.” (1728, I/74)
424

Budasz transcreve uma passagem retirada do Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese


de Mariana na qual o arromba é novamente citado em 1738, agora em Minas Gerais, em
uma denúncia de moradores 425 que acusavam a presença de três padres na festa em honra
do Divino Espírito Santo e na qual uma tal negra Vicencia, vestida de homem e
acompanhada por um carro tocando violas, cantava “o arromba e outras modas da terra”. O
caso foi inquirido e julgado pelos tribunais da inquisição. 426
A descrição da pena (a retirada daquelas Minas em até 08 dias) recebida por um dos
sacerdotes, o cônego angolano Manoel de Bastos, revela como a igreja se posicionava

inflamar,/ por isso bebeu só água,/ do que nós com grande mágoa/ nos pusemos a chorar:/ este fim teve um
folgar/ de tanto gosto, e alinho,/ de que eu colho, e esquadrinho/ a exemplo da vida breve,/ que quem rindo o
vinho bebe,/ chorando desbebe o vinho.” (JA, 1999, 455-456)
424
No início do século XVIII, o termo também já detinha o significado atual, que o define como algo grande,
impactante. É o próprio Bluteau quem confere tal sentido para o verbete: “Arromba. Termo chulo. Cousa
grande. Sermaó de Arromba. Jantar de Arromba. Festa de Arromba. [...]” (1728, I /74) Já sobre o termo
“corrida” e “por pontos”, ao citar os códices onde constam alguns exemplares remanescentes do arromba,
Budasz afirma que “uma versão menciona o ‘roçadilho’, que pode ser o que Bluteau chama de ‘corrido’,
ambos em oposição ao estilo ponteado. (2004, 27, nota 22) Corrido, seria, portanto, sinônimo de toque
rasgueado, em oposição ao toque ponteado, ou, como refere-se o dicionarista, por pontos. As definições se
alinham com o entendimento que Tinhorão apresenta sobre os termos.
425
“A testemunha, Antonio Rodrigues Bello, 33 anos, pintor, solteiro, natural da cidade do Porto, morador na
freguesia de Nossa Senhora de Nazaré da Cachoeira, hoje Cachoeira do Campo, conta: ‘[...] que na festa que
neste presente ano [1738] se fez ao Divino Espírito Santo nesta freguesia, em uma de suas oitavas, andando
um carro de festa pela rua enramalhado em que andavam vários seculares, nele andaram também o Padre Frei
Lourenço Justiniano, religioso de São Domingos, e o Padre Frei Pedro Antônio, religioso de Nossa Senhora
do Carmo, com o Padre Manoel de Bastos, Cônego de Angola, todos moradores na Vila de Ouro Preto,
donde vieram às ditas festas, os quais andavam no dito carro tocando violas e, entre eles uma negra chamada
Vicencia, cantando, vestida de homem, a qual veio também da Vila do Ouro Preto, causando a todos
admiração, o que ele testemunha sabe pelos ver e ouvir cantar, e mais não disse [...]’.” (Budasz, 2004, 27).
426
“A testemunha Mathias da Costa Rodrigues (29 anos, mercador, natural da Ilha de São Miguel, Bispado
de Angra, morador na freguesia de N. S. de Nazareth da Cachoeira) acrescentou que a negra Vicencia
cantava o ‘arromba e outras modas da terra’.” (Budasz, Ib.)
252

firmemente contra a participação de seus presbíteros nas celebrações afro-brasileiras do


período:
Por viverem indecentes ao estado eclesiástico e religioso o Padre Manoel de
Bastos da Fonseca, Cônego de Angola, assistente na freguesia do Ouro Preto, por
andar nesta freguesia na festa do Espírito Santo deste ano de dia metido em um
carro tocando em uma viola pelas ruas, e uma negra vestida de homem cantando
a arromba e outras modas desonestas com geral escândalo, seja notificado para
que dentro em oito dias saia destas Minas. 427

Além do controle impetrado pela igreja aos seus padres e fiéis, outros três aspectos
podem ser destacados no texto da punição:
1) Uma vez mais, observa-se o cruzamento de atividades profanas com inspiração em
temáticas religiosas cristãs. Contudo, a festa em honra do Divino Espírito Santo tem lugar
nas ruas e em um evento que guarda muitas distinções em comparação às celebrações
homônimas que eram descritas pelos jesuítas no século anterior. Perdera-se o controle e o
cunho religioso mais estrito, apesar de todos os esforços efetuados pelos doutrinadores.
Não custa lembrar que o mesmo ocorrera com as mulatas que bailavam o cãozinho em um
folguedo devocional em honra de Nossa Senhora de Guadalupe, na Bahia, onde houve
comilança, bebedeira e fornicação.
2) O instrumento é novamente vinculado a um evento social passível de repúdio e
repreensão. O carro de violas associa-se a um repertório que incluía o arromba e “outras
modas desonestas”. A imagem depreciativa em torno do instrumento é ratificada pela
qualidade com que a festividade foi julgada: um “geral escândalo”. Tamanho alvoroço que
custou a expulsão daquelas terras do desavisado padre que ousou bailar em meio ao povo.
3) O fato de no evento haver uma negra responsável pelo canto e vestida em trajes
masculinos amplia o olhar sobre o papel da mulher na difusão de tais danças, bailes e
festividades, conforme nos descreve Budasz: “Ao contrário das mulatas nas poesias de
Mattos, Vicencia não baila, não rebola e nem levanta a saia, mas, vestida de homem,
canta.” (2004, 27)
O pesquisador ainda nos oferece preciosas informações sobre a localização dos
exemplares remanescentes, as características sonoras da dança (viva, ruidosa e dissonante),
além de detalhes sobre o seu modo de execução (rasgueado):
Várias definições do arromba classificam-no como de sonoridade viva e ruidosa,
no que concordam as várias versões musicais preservadas nos códices para viola
da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra e da Fundação Gulbenkian. Não
só é a música insolitamente dissonante, como o intérprete é instruído a utilizar a

427
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana, livro Z-01, prateleira Z, ano 1738, f. 107r., 109r. (Apud
Budasz, 2004, 27). Em comunicação pessoal recolhida por Budasz, Paulo Castagna informou que tal relato
foi encontrado e transcrito pela pesquisadora Maria Teresa Gonçalves Pereira.
253

técnica do rasgueado, a fim de conferir à peça o característico efeito ruidoso.


Talvez tenha sido pelo uso destes efeitos que uma das peças do códice
Gulbenkian ostente o título ‘Arromba do Inferno’. Lopes Gama, cronista
pernambucano do início do século XIX ainda faz esse tipo de correspondência ao
mencionar um certo Mané Chico, que tinha a estimável prenda de ‘zanzarrear
numa viola do inferno, com os competentes rufos ao tampo’. (Budasz, 2004, 27)

Na Península Ibérica, um celebrado arromba também foi registrado por Frei Lucas
de Santa Catarina em meio a um cortejo funeral, o que revela que exportação de bens
culturais também acontecia da colônia para a metrópole (um decisivo aspecto sobre o qual
nos deteremos adiante):
[...] os rapazes, cuja lastimada travessura, com o estorvo de alguns beleguins
vinha atrazada, por ignorarem os funeraes idiomas da musica, entoavaõ com
piadoso grito o celebrado arromba, que para hum fuliaõ cadáver só a galhofa
sabe ser exequias. (Santa Catarina, 1752, I/55)

Por fim, ressaltamos que o vocábulo arromba foi ainda usado como figura de
linguagem por Matos, em mais uma demonstração de como os termos musicais eram
explorados com outros sentidos - especialmente o sexual - pelo poeta:
MULATINHAS DA BAHIA
MOTE
Vós dizeis, que arromba arromba:
Não se arromba desse modo;
Quem o tem apertadinho,
Não o quer aberto logo.
(JA, 1999, 930)

Arrepia

Já sobre o arrepia, poucas fontes são conhecidas. Bluteau o define como uma “peça,
que se toca na viola, a qual parece inventiva do demonio, para incitar a mal, taó
descomposto, e provocativo he o som delle” (1728, I/74).
A descrição da peça desenhada pelo dicionarista (tocado na viola com um “som”
provocativo e descomposto) mostra proximidade com algumas características do arromba,
que, como vimos, tinha “sonoridade viva, ruidosa e dissonante”. Ao relacionar três danças
coevas (o arromba, o arrepia e o oitavado), Budasz afirma que diversas fontes do século
XVIII “descrevem estes bailes como sendo cantados, mas até o momento não foi
encontrado nenhum texto poético que pudesse ser a eles associado.” (2004, 27, nota 20)
Ao descrever e achincalhar o protótipo de um personagem (o Serolico), Frei Lucas
de Santa Catarina também deixa notar a presença, em Portugal, de um arrepia tocado no
machinho em uma tarde de domingo:
Serolico, he aquelle official espurio enxertado em cavalheiro: ainda hontem
aprendiz fazendo tornos na loja, levando o filhinho á senhora mestra, indo buscar
os adubos á tenda, ao chafariz a quarta de agoa; já official de capote, e adereço,
254

ao Domingo á tarde ou no machinho o arrepia, ou na horta a bola: eis que vos


sahe de peruca apolvilhada, irmão dos Pastos, e da Misericordia, já mettido no
Senado com seu retalho de governança, eylo á cortezaa do lemiste para o crepe,
luva branca, volta de canudos, machia de polvilhos, e na mesma loja com barrete
de mourisca. Serolico, quem te deo tamanho bico? (Santa Catarina, 1752, I/113)

Oitavado

Em relação ao oitavado, Budasz sugere que teria sido uma coreografia posterior e
com algumas correspondências em relação ao arromba: “Além das semelhanças musicais,
uma das peças do códice de Gulbenkian é intitulada ‘Arromba Oitavado’, e no códice de
Redondo há um ‘Oitavado do Inferno’ (2004, 27, nota 23). Embora Raphael Bluteau e
Gregório de Matos não o mencionem em suas obras, podemos supor que pela afinidade
desta dança com as duas anteriormente citadas (o arrepia e o arromba), o oitavado tenha
sido um som um pouco mais tardio e também acompanhado pela viola.
Não foram encontrados registros de autores brasileiros sobre a dança entre os séculos
XVII e XVIII, mas pelo menos dois autores portugueses anotaram a presença do oitavado
em terras lusas no mesmo período. O primeiro deles foi o já citado Joam Cardoso da Costa,
que menciona a dança na poesia em que retratou, dentre outras coisas, “hum festejo entre
huns amigos”:
Romance XII
[...]
Vistes dançar a Baruna,
Essa cigana, esse rayo,
Que abraza, dançando, a tudo,
Quando dança o oitavado?
(Costa, 1736, 405)

Também Frei Lucas de Santa Catarina nos oferece um precioso e raro registro da
dança na descrição caricata da personagem Serolica, a quem classifica de “mais rebolada
do que um oitavado de chula”. A menção nos sugere que, a par do que ocorria com as
danças irmãs (o arromba e o arrepia), era necessário uma boa dose de quadris soltos para
dar cabo ao baile:
Serolica, he aquella regateirinha nova; seu renguinho espurio, sua mantilha
encourada, ainda esguia de saya, pouco ajustada de cintura; simplota de adagios,
medrosa de Ajudantes, surda a pecuinhas, e sacudida a bandarras: [...] e sobre
tudo, mais ensayada que comedia nova, mais redonda que a mesma esparteira, e
mais rebolada que hum oitavado de chula. Seroliça, quem te deo tamanha
bica? (Santa Catarina, 1752, I/118-119)

Cubango/ Cubanco

Gregório de Matos também cita o cubango (ou cubanco) em meio a danças ibéricas
e afro-luso-brasileiras em seu poema Peças de Serviço Oito. Sua origem, contudo, é pouco
255

nítida e Budasz acredita que “talvez não se tratasse de uma dança, mas apenas de um
‘som’, ou peça instrumental”. (2004, 29)
Nei Lopes, em sua Enciclopédia Brasileira da diáspora africana, define o termo
como “equivalente ao Exu nagô entre os antigos negros cabindas do Brasil. Do quimbundo
Kubanga, ‘briga’, ‘luta’, ‘diabrura’.” (Lopes, [s.p.], 2011)
O fato de Lopes associar a definição do vocábulo a uma luta/ briga pode nos oferecer pistas
sobre as características musicais e coreográficas que eram empregadas neste “som” entre os séculos
XVII e XVIII. O possível aspecto de embate que se agrega à peça, enérgica e corporal, ratifica-se
em um depoimento no qual várias danças e os seus personagens são mencionados por Frei Lucas de
Santa Catarina: os serviçais que tocavam o seu “gandum por pontos”; o mulato que se pôs a “cantar
a amorosa sem tomar fôlego”; além de um “mochila” que havia quebrado nada menos que dois
machinhos tocando a “puro cobango”:
Junto á Cruz [do bairro de São Bento, em Lisboa] andavaõ os mochilas
[empregados] ao socairo com seu gandum por pontos. E mochîla houve, que
naquella noite quebrou dous machinhos a puro cobango; nem he de admirar;
porque nesta funçaõ eu vi mulato, que de cantar a amorosa, sem tomar folgo
[fôlego], esteve com a candeia na mão. Todo este foi o motivo desta Obra, cuja
relaçaõ de poppa á proa lerás adiante: em fim, passou a gritaria por galhofa.
Entrou a noite: que te direi das luminárias? As Beatas vizinhas puzeraõ sua
candeinha da banda de dentro da janella, e ellas da banda de fóra em alta
contemplaçaõ a ver o que se passava na rua. As guapas, e faceiras accenderaõ
suas bugias; e pondo-se á janella parecia o bairro hum Brasil com bugias, e
papagayos. (Santa Catarina, 1755, I/278)

O relato do frei Santa Catarina suscita outra decisiva questão na análise de tais
danças/ peças/ sons: a migração de representações culturais da colônia para a metrópole,
em um sentido inverso de cooptação que costuma ser negligenciado por pesquisadores,
musicólogos e colaboradores. O texto, impresso em Lisboa, foi escrito por um personagem
luso que não somente anotou, em Portugal, a presença de danças que circulavam na colônia
com peculiaridades próprias, mas também pontuou que a noite lisboeta no bairro de São
Bento “parecia um Brasil com bugias e papagaios”.
É, portanto, preciso reconhecer que houve, sim, trocas representativas em via de mão
dupla, em um intercâmbio que não acontecia somente através da importação, para a
colônia, de signos e símbolos culturais oriundos de Portugal/ Península Ibérica/ Europa. O
Brasil também exportou, pelo menos a partir de meados do século XVII, parte da cultura
que aqui se formava e se sedimentava através do cruzamento de personagens heterogêneos
que compunham um corpo social não menos diverso. Um panorama ainda em construção,
mas que já apresentava caracteres culturais próprios e singulares.
Quem corrobora tal perspectiva é o próprio Frei Lucas de Santa Catarina em outra
passagem de seu Anatomico Jocoso. Pulando dos costumes praticados no bairro de São
256

Bento para os que ocorriam no célebre bairro popular da Alfama (um dos mais
representativos espaços socioculturais de Lisboa), ele assim descreve o ambiente em torno
das festividades em honra de Nossa Senhora do Cabo:
Da semana na ribeira,
Ao dia santo no bairro,
Mas sobre tudo a vióla,
E o pandeiro veterano,
Ou à tarde no baptismo,
Ou à noite no noivado.
Do Brasil em romaria
Os sons vêm ali descalços.
Criam-se ali, ali crescem.
E dali vão se passando
Pouco a pouco para as chulas,
Piam piam para os mulatos.
Alli o Arromba violento,
E o Quererá voluntário
Se escutaõ sempre, e alli
Caõzinhos de Cambaõ ladraõ.
(Santa Catarina, 1758, 209-210)

Ora, são os sons descalços que vêm do Brasil em romaria que se espalham entre as
chulas e os mulatos a tal ponto que ali se escutavam sempre os cãozinhos e arrombas
violentos, acompanhados “sobretudo pela viola e o pandeiro veterano”. São cenas
cotidianas que poderiam muito bem estar localizadas na Bahia de Gregório de Matos, em
festividades sacroprofanas ocorridas em ruas e bordeis ou em quilombos onde danças
batucadas eram protagonizadas por negros de pés no chão e mulatas que levantavam as
saias e tremiam os quadris.
Tinhorão aponta dois fatores decisivos para que tais trocas simbólicas se tornassem
possíveis:
Tais imprecisões parecem prender-se, no fundo, à falta de observação de duas
circunstâncias sócio-histórico-culturais que a boa interpretação de informações,
diretas e indiretas, permite apontar como muito mais importantes do que se tem
imaginado: a semelhança entre a composição étnica das baixas camadas de
Lisboa e dos dois maiores centros urbanos da colônia – Salvador e Rio de Janeiro
– até pelo menos o fim do século XVIII, e o dinamismo do intercâmbio entre o
povo miúdo dos dois continentes, através da ida de escravos domésticos para
Portugal, levados por famílias egressas do Brasil. (Tinhorão, 2006 [2001], 27)

E o pesquisador vai ainda mais longe quando afirma não somente que muitas das
danças e músicas consideradas genuinamente portuguesas (como o fado, a fofa e mesmo o
arrepia) podem ter raízes paralelas no Brasil, mas também que a repercussão de tais
representações culturais importadas da colônia para a metrópole não se limitou a ficar
257

circunscrita entre as camadas mais baixas da sociedade. 428 Assim, embora as danças
registradas por Frei Lucas de Santa Catarina em Portugal (o cubango, o gandum e a
amorosa) tenham tido suas práticas inicialmente vinculadas aos menos favorecidos
(empregados e escravos, negros e mulatos), elas teriam sido igualmente cooptadas por
brancos europeus em tabernas e teatros até se espalharem pelos bairros mais populares da
Corte.
Especificamente em relação ao cubango, é necessário lembrar que Lopes o definiu
como uma “diabrura”, adjetivo que se coaduna com as descrições de outros autores para
danças coetâneas (o arromba do inferno, o arrepia inventado pelo demônio, o calundu do
diabo, etc). Comentando o seu caráter enérgico, Budasz afirma que o som parecia requerer
do executante “mais do que a costumeira energia”, destacando ainda algumas
características musicais abstraídas dos exemplares remanescentes:
Os cubancos encontrados no códice de Coimbra e Gulbenkian revelam o uso de
certos módulos composicionais, em um processo semelhante ao que ocorre nas
chácaras e outras formas compostas sobre padrões melódico-harmônicos. A
amorosa, cantada no excerto por um mulato, também é encontrada em dois
códices portugueses para viola, embora apenas em versões instrumentais. (2004,
29)

Amorosa

Também citada pelo pesquisador, a amorosa é outra dança sobre a qual pouco
sabemos. Apesar de só terem sobrevivido exemplares instrumentais, ela é descrita por Frei
Lucas de Santa Catarina na voz de um mulato que a cantou “sem tomar fôlego”, fato que,
somado ao contexto em que é mencionada (entre outras duas danças enérgicas, o gandum e
o cubango), pode sugerir que se tratava de um “som” rápido e festivo.
Em contrapartida, Bluteau a define nos seguintes termos: “peça, que se toca na viola
ou outro instrumento de cordas; he muito suave, e grave” (1728, I/42). O título sutil
(amorosa) comparado às danças coevas (arrepia, arromba, cãozinho, etc) e, sobretudo, o

428
“De fato, a falta de informações sobre pormenores da vida das baixas camadas urbanas e rurais – quer na
documentação oficial quer em publicações impressas (no Brasil desde logo só possível com a instalação da
Imprensa Régia em 1808) – tem levado à suposição da interdependência das manifestações culturais
populares nos dois territórios. O reflexo mais ostensivo dessa omissão é a insistência de dicionaristas e
colaboradores de enciclopédias em registrar como portuguesas músicas e danças (a fofa e o fado, por
exemplo) passíveis de documentar como criações negro-brasileiras, através de papeis administrativos
(correspondência entre autoridades) ou religiosos (inquirições da Inquisição).” (Tinhorão, 2006 [2001], 27)
“Tal como claramente se pode perceber, criadas na colônia por negros descalços, as alegres danças batucadas
de terreiro – que os brancos europeus não tardariam a estilizar nas tabernas e depois em palcos de teatro,
fundindo-as com outras em moda, como o fandango importado da Espanha – logo se espalhavam pelos
bairros populares da Corte, também eles redutos de gente matizada por séculos de cruzamento racial.” (Ib.,
28)
258

fato de ser descrita pelo dicionarista como um som “muito suave” são vestígios que
sugerem outra compreensão sobre suas possíveis características musicais.
O que sabemos ao certo é que, cantada ou instrumental, lenta ou rápida, sutil ou
infernal, a dança foi necessariamente tocada/ acompanhada na viola ou em cordofones de
cordas dedilhadas similares. Mais do que isso, é um exemplo clássico de como tais
instrumentos podiam ser mencionados em uma tríplice perspectiva naquele período:
1) Nominalmente (“viola”);
2) Como integrantes de um grupo denominado “instrumento de cordas”;
3) E pela expressão “som’, já que também é descrita em tal verbete como exemplo de
peça que se põe à viola.

Cumbé/ Paracumbé

Em 1708, Cotarelo y Mori reproduz uma passagem na qual a amorosa é


acidentalmente associada a outra dança, o paracumbé:
GRACIOSO: ¿Pues qué? ¿No me conocéis?
El paracumbé de Angola,
ciudadano de Guiné,
casado con la Amorosa
que escogí yo por mujer.
Sí queréis saber quién soy
en este baile atended,
y compañad mi romance
en estilo portugués.

Tocan el PARACUMBÉ y cantan, y salen los hombres y mujeres a bailar. Canta.

Os ollos de miña dama: ¡le, le, le!


saon negrillos de Guiné:¡le, le, le!
flecheros, sin ser tiranos:¡le, le, le!
negros, sin cativos ser.

TODOS:¡le, le, le!


GRACIOSO: ¡Paracumbé, Paracumbé!
¡Ay Xesú, que me mata
de amores vocé ¡le, le, le!
(Cotarelo y Mori, 1911, I/220)

A citação identifica a dança como sendo de origem angolana, mas seus


desdobramentos são difusos e apresentam dezenas de variantes terminológicas. Em seu
livro Sones de la Tierra y cantares jarochos, Humberto Aguirre Tinoco deflagra algumas
259

de tais correspondências a partir da relação com o chuchumbé mexicano 429, explicando


que o termo pode estar relacionado com um vocábulo de origem africana: o cumbé,
‘umbigo’ que teria nomeado o paracumbé na Espanha, a cumbia na Colômbia e o
merecumbé nas Antilhas. (Tinoco, 1983, 14-16)
É ainda notável como a passagem do livro, publicado em Madrid, alterna trechos
entre as duas línguas (castelhana e portuguesa) e destaca que o paracumbé, nesta ocasião,
foi bailado “em estilo português”, o que nos leva a subentender sua difusão em terras lusas
entre, pelo menos, fins do século XVII e meados do XVIII.
Tais vestígios são autenticados por Joam Cardoso da Costa, poeta que não somente
anotou a presença do cumbé em Portugal, como também a associou a uma negra
procedente de Guiné, o que se coaduna com a suposta origem africana da dança sugerida
por Tinoco:
Consoantes forçados.

SONETO VI.
Vem cá negra mofina bujamé,
Que falar quero aqui comtigo só,
Já que es tal, que de ti naõ tendo dó,
Intentas em cristal porte ao cumbé.

Quem te pingara negra de Guiné!


E a cara te fizera em negro pó!
Quando no espelho queres, sendo tó,
Ver também o que tens de negra, e né.
[...] (Costa, 1732, 328)

No Brasil, os termos originais (cumbé e paracumbé) não são mencionados por


Gregório de Matos, Raphael Bluteau ou algum dos outros dicionaristas primevos. No
entanto, Budasz acredita que os vocábulos podem ter relação com os quicumbis (ou
cucumbis), outras possíveis variantes terminológicas (e musicais) tomadas a partir do
mesmo tronco e que estiveram relacionadas, no período colonial brasileiro, com as festas
do Rei Congo:

[...] o cumbé e o paracumbé são definidos em alguns dicionários dos séculos


XVIII e XIX como bailes africanos ou afro-americanos. No Brasil colonial
algumas fontes mencionam os quicumbis, ou cucumbis – prováveis variantes do
cumbé – relacionados às festas do Rei Congo. Existe uma variedade de
interpretações quanto à etimologia da palavra, incluindo ritos de passagem (do
quimbundo Kikumbi), feitiçaria, valentia, destreza física, e rugir (Kumba), entre

429
Sobre a origen da dança no México, o autor afirma que o chuchumbé “se propagó como tonadilla, coplas
y bailes junto con la práctica de los llamados rosarios y vestidos a la moda diablesca traídos de La Habana
por algunos individuos que por no tener recursos para continuar su viaje tierra adentro se estacionaron en
el puerto de Veracruz [...]” (Tinoco, 1983, 14-16)
260

outras. O Dicionário de Autoridades, de 1737 430, descrevia o cumbé como um


baile de negros, consistindo de vários ‘meneios do corpo’, no que parece ser uma
referência ao rebolado dos quadris. Em Lisboa, o cumbé aparece dançado por
negros na Festa do Rosário da Igreja do Salvador, acompanhados por violas,
rebecas, fazendo uma ‘bem concertada dissonância’, como descrevia o Folheto
de Ambas as Lisboas em 1730. 431
Os termos paracumbé e cumbé certamente referem-se à mesma dança. O códice
Gulbenkian utiliza a primeira forma e os códices de Coimbra e Conde de
Redondo a segunda. Todos estes compartilham importantes detalhes melódicos e
harmônicos com cumbés e paracumbés encontrados em fontes espanholas e
mexicanas para viola (guitarra) e harpa. (Budasz, 2004, 31)

Fofa

Apesar de ser tradicionalmente aceita como portuguesa, a fofa foi outra dança que
circulou no Brasil com características próprias. As singularidades adquiridas na colônia
foram tão representativas que batizaram um subgênero – a fofa da Bahia – conforme nos
indica Tinhorão:
Na entusiasmada descrição da dança, esse pormenor de classe era ainda
reforçado não apenas com a informação de que ‘He a fofa da Bahia também o
melhor som, que ha na maromba da chulice’, mas na indicação precisa do grupo
étnico com que mais diretamente se relacionava: ‘Apenas a ouve tocar a preta, já
está no meyo da casa a bailar sem socego. Apenas a ouve o preto, já está, como
doudo a dançar, como uma carapeta, e não sossega também, sem sair a terreiro.
Ora viva a fofa da Bahia, que faz desafiar o Preto, e a Preta, para dançar’.
(Tinhorão, 2006, 35) 432

Dois fatores podem ser destacados na citação:


1) Mais uma vez, a dança é classificada como um som (He a fofa da Bahia também o
melhor som), ou seja, uma peça que pressupõe a presença da viola;
2) Com a descrição de que uma negra bailava “sem sossego” e um negro estava
como “doido a dançar”, observamos não somente a associação de tais personagens como
protagonistas dos movimentos musicais e coreográficos, mas também que o som
pressupunha uma energia pulsante capaz de “desafiar o ‘preto’ e a ‘preta’ para dançar”.
Em Portugal, tal vivacidade foi captada por Manoel de Paços, autor de fofas que
destacou as “tremidas nos pés” necessárias para bailá-la. Não obstante, Paços nos revela o
quão tal dança foi tomando espaço de outras (no caso citado, o cumbé) a partir de meados
do século XVIII:

430
Diccionario de autoridades: Madri: Real Academia Española, 1737, I/700.
431
Folheto de Ambas Lisboas. Lisboa: Patriarcal Officina de Música, 1781. No. 3, agosto de 1730; no 7,
outubro de 1730.
432
As citações de Tinhorão se referem à seguinte publicação: Relação da fofa que veio agora da Bahia e o
fandango de Sevilha, aplaudido pelo melhor som, que há para divertir melancolias e o cuco do amor vindo
do Brasil por folar, para quem o quiser comer. Tudo decifrado na Academia dos Extremosos. Por C.M.M.B.
Catalumna. Na Imprensa de Francisco Guevaiz. Exemplar do acervo da Seção de Música da Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro. (Tinhorão, 2006, 35, nota 10)
261

A fofa é boa dança


sendo tremida com o pé,
e faz melhor consonância
do que bailar o cumbé.
(Fryer, 2000, 116) 433

Sarambeque

Definida por Budasz como “a dança de influência africana mais comum no mundo
ibero-americano durante os últimos quatro séculos, sendo mencionado em fontes
portuguesas, espanholas, mexicanas e brasileiras” (2004, 35), o sarambeque é descrito
pelo dicionarista Raphael Bluteau como um “bayle lascivo. Espécie de Sarabanda.” (1720,
VII/496)
Embora haja controvérsias sobre a sua origem 434, a dança é mencionada em Portugal
já em 1651, por Dom Francisco Manuel. Em sua Carta de Guia de Casados, o autor
orienta os maridos a terem o seguinte comportamento em relação aos dotes artísticos de
suas esposas:
Para o que já casou, & suppomos bem casado, he que ajuntamos aqui estas
advertencias.
Perguntou alguém algumas vezes, se seria licito deixar usar a mulher própria de
aquellas boas partes de que a dotou a natureza: como o cantar, o dançar, & ainda
o fazer versos, & outras semelhantes prerrogativas, que em algumas se achão, &
em muitas pudera haver, se o receo as não suprimisse. [...]
Cantar a mulher a seu marido, & filhos, se os tem, cousa parece licita, & o seria
o dançar alguma hora na sua camara, em quanto a idade lhe permitisse essa
alegria. Não louvo o trazer castenhetas na algibeira, saber jacaras, & entender de
mudanças do çarambeque, por serem indícios de desenvoltura.
Mas aquillo de ser engraçada, & aguda na visita, na igreja, no coche, & no Paço,
trás grandes inconvenientes consigo, & dificilíssimos de atalhar; porque das
cousas a que se segue aplauso, bem ou mal ganhado, ninguém se arrepende.
Velese disso seu marido [...]. (Manuel, 1820 [1651], 49-51) 435

Ora, se Bluteau caracterizou o baile como “lascivo” e Manuel orientou os homens a


não deixar suas esposas participarem das “mudanças do sarambeque” (uma vez que isto
representava um “indício de desenvoltura”), torna-se mais natural compreender porque

433
O autor transcreve trechos da seguinte publicação: Relação das cantigas da fofa: compostas pelo
memoravel e celebríssimo estapafurdio Manoel de Paços, publicada em Lisboa por volta de 1750.
434
Budasz pondera que “antes de sua aparição em Portugal, danças de nomes e coreografias similares já
existiam em Moçambique. Peter Fryer lembra que entre os Chuabo, Yao e Nyungwe, os termos saramba,
salamba e sarama significam praticamente o mesmo que o português sarambeque: uma dança com
movimentos balançantes dos quadris.” (Budasz, 2004, 35). Por outro lado, em seu já citado livro, Cotarelo y
Mori sugere uma suposta procedência portuguesa da dança: FILOMENA: Demos fin, Pascual ao baile esta
vez, / PASCUAL: Tan derretido es que es de Portugal… / ‘Zarambeque vaya, / Vaya Zarambeque. / que es
alegre tono/ para los sainetes’ (Mori, 1911, I/273). O mais provável é que a dança tenha sido importada da
África e ganhado contornos específicos em Portugal (e também no Brasil).
435
Corroborando a popularidade da publicação na Península Ibérica (e não somente em Portugal), uma
versão em espanhol foi publicada em Madrid, em 1786, pela Oficina de Benito Cano, com o título: Carta de
Guia de Casados Y Avisos para Palacio. Version Castellana del Idioma Portugues.
262

Gregório de Matos mencionou a dança não em sentido coreográfico ou musical, mas como
um calembur de conotação erótica:

HUMA DAMA QUE MANDANDO-SE COSSAR EM HUM BRAÇO PELO SEU MOLEQUE, E
SENTINDO, QUE DAQUELLE CONTACTO SE LHE ENTEZAVA O MEMBRO, O CASTIGOU.

[...] Vós mandastes que o Moleque


vos fosse o braço coçar,
e ele quis vos esfregar
mais que o braço o sarambeque. [...]
(JA, 1999, 1007-1159)

No Brasil, a par do que ocorrera com danças coevas de características similares, é


provável que o sarambeque tenha sido mais vinculado às práticas de camadas menos
favorecidas ao longo dos anos seiscentos, mas também tendo incursões em casas nobres no
século seguinte (embora com as mesmas restrições morais e sexistas pontuadas por
Francisco Manuel em Portugal). O gênero sobreviveu até as primeiras décadas do século
XX, quando Ernesto Nazareth (1863-1934) escreveu um Sarambeque dedicado “a seu
distinto amigo Roberto Martin”, peça publicada em 1916 pela Casa Sampaio Araujo & Cia
e considerada uma das mais populares e desafiadoras em seu repertório pianístico. 436 Além
do registro do compositor brasileiro, outros dez sarambeques mais antigos sobreviveram
nos códices de Coimbra e Gulbenkian. 437 A necessidade do que seria um “resgate
exaustivo” é fruto do desaparecimento da memória. No entanto, neste caso, estamos diante
de um gênero cujas práticas passadas se desdobraram no presente e são mais passíveis de
serem reconhecidas.

436
O Manuscrito original da partitura encontra-se no acervo da Biblioteca Nacional: MS 176 da coleção
Ernesto Nazareth. Além da edição da Sampaio Araujo & Cia. (1916), a Casa Arthur Napoleão também editou
a peça posteriormente (c. 1958). No acervo Ernesto Nazareth 150 anos, do Instituo Moreira Salles, além do
acesso à partitura, informações gerais sobre a dança são fornecidas, sem, contudo, indicação de fontes:
“Segundo o dicionário Aurélio XXI, Sarambeque vem do espanhol zarambeque, que ‘nos meados do séc.
XVII era uma dança lasciva e desenvolta, considerada de origem negra, mas que no séc. XVIII foi dançada
até nas casas nobres’. Na acepção brasileira, é o mesmo que Saramba, ‘espécie de fandango batido’
(derivado da palavra Sarambeque). Segundo o compositor Brasílio Itiberê, neste tango ‘encontram-se os
germes vigorosos de uma boa e sólida Toccata brasileira.’ Trata-se de uma das peças mais difíceis de
Nazareth, devido ao vigor necessário para se tocar a grande sequência de acordas na mão direita. Foi gravada
pela primeira vez em 1919 pela Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro. É uma de suas peças mais
populares, tendo recebido 24 gravações até 2012.” Fonte:
http://www.ernestonazareth150anos.com.br/works/view/172
Acesso 28/11/2014, às 19h40min.
437
“Os códices de Coimbra e Gulbenkian registram dez sarambeques. A reconstrução rítmica é possível pela
aplicação de padrões encontrados de fontes espanholas e mexicanas para viola (guitarra) e harpa. Um dos
sarambeques de Coimbra é atribuído a um certo Frei João (f. 58r), que é também autor de várias fantasias e
uma batalha do mesmo volume. Embora existam indícios de que o códice tenha provindo do Mosteiro de
Santa Cruz de Coimbra, Frei João é o único compositor mencionado como pertencente a uma ordem
religiosa.” (Budasz, 2004, 35)
263

Exemplo musical 2: Excerto do Sarambeque (1916) de Ernesto Nazareth.


Fonte: http://www.ernestonazareth150anos.com.br/works/view/172

Pandalunga

Pouco sabemos sobre a circulação da pandalunga no Brasil, apenas que foi elencada,
por Gregório de Matos, entre outras danças na já citada poesia Peças de Serviço Oito. 438

Em Portugal, parece ter sido muito comum na região de Braga, pelo menos em meados do
século XVIII.
No século XVIII os antigos festejos do S. João de Braga, exceptuando a
montaria, tiveram uma revivescencia brilhante, por estimulo do arcebispo D.
José de Bragança, filho natural de el-rei D. Pedro II, e de alguns particulares
abastados. [...]
Quanto a danças, eram muito queridas do povo a das Ciganas bravas, espécie de
batuque sertanejo, que por vezes amachucava os espectadores; a da Pandalunga,
dos Escarramanados, dos Instrumentos e dos Pastores, esta ultima constituída por
uma dezena de bailarins com outros tantos macacos, figurados ao natural.
(Pimentel, 1905, 220-221)

O relato de Pimentel ganha ressonância na pesquisa de Milheiro sobre a cidade de


Braga e suas festas nos anos setecentos. Nela, a pesquisadora apresenta detalhes sobre a
variedade de danças que se incorporavam tradicionalmente à procissão de Corpus Christi.
Na de 1714, por exemplo, a pandalunga é mencionada com “doze mulheres mascaradas de
preto guiadas por um homem igualmente mascarado” (Milheiro, 2003, 345). Além disso,
nos revela que tais bailes geralmente contavam com a presença de violas e eram

438
“PEÇAS DE SERVIÇO OITO - O Canário, o Cãozinho, o Pandalunga, o vilão,/ O Guandu, o Cubango,
a Espanholeta, e um/ Valente negro em Flandres.” (JA, 1999, 828)
264

contratados por preços significativos (em 1738, por exemplo, o custo foi de 115$000 réis).
439

Outras danças e peças foram associadas à viola ao longo dos séculos XVII e XVIII,
mas sobre as quais poucos vestígios foram encontrados até o momento.
A marinheira, por exemplo, foi descrita por Bluteau como uma “peça, que se toca na
viola, ou outro instrumento de cordas”, sendo – como a amorosa – de caráter “grave, e
suave”. (1728, II/20)
A marisápola, por sua vez, foi retratada sinteticamente pelo dicionarista como um
“som, muito grave, que se toca em instrumento de cordas.” (Bluteau, 1728, II/20). Há
registros remanescentes na Biblioteca de Coimbra (Ms. 90) e é possível que a dança guarde
alguma relação com a marizapalos, canção ibérica muito popular ao longo do século XVII.
440

Já sobre o sarao [sarau], Bluteau nos confere o sequente significado: “Sarao,


também he dança particular, cujos termos principaes saõ Campanela, Esporada, Vasio,
Romper, Saltilhos, Encaxe, e outros, que explicaõ as varias mudanças desta dança. He som
muito grave, em instrumentos de cordas. (1728, II/197, suplemento) 441
A fantasia [ou “fantesia”] é definida pelo dicionarista nos seguintes termos:
“Costumaõ fazerse nas violas humas pecas, que constaõ de varias posturas, e
multiplicadas, que postas por todos os oito tons da solfa, se chamaõ Fantesias, porque saõ
conforme as fantesias, e idéas dos seus authores. Vid. tom. 4. do Vocabul. (Bluteau, 1728,
I/420)

439
“Na Procissão do Corpo de Cristo incorporava-se sempre uma grande variedade de danças [...]. Em 1738
os Juizes de confraria do Senhor da Sé contrataram o ‘Baile dos instrumentos’ e o ‘Baile de Nabucudonozor’
para o qual Bento Ferreira se comprometia a apresentar dois carros bem pintados e decorados, dez figuras
‘lustrosamente’ vestidas, duas rabecas e uma viola. Os juízes Cónego Rafael Francisco da Costa e o fidalgo
António Pereira da Sá pagariam pelo trabalho 115$000 reis. [...] No entanto foi em 1714 quando governava
os destinos de Braga D. Rodrigo de Moura Teles que a procissão de Corpo de Cristo apresentou uma maior
riqueza e variedade de danças. Assinalamos logo no início, seguindo a Cruz da Confraria a ‘Dança das
Ciganas’ com quarenta figuras bailando em tom apressado. Em segundo lugar a ‘Dança dos Capelos’ na qual
um grupo de homens bem vestidos dançavam ao som de uma gaita de foles. Seguia-se a ‘Dança da
Pandalunga’, com doze mulheres mascaradas de preto guiadas por um homem igualmente mascarado
[...].” (Milheiro, 2003, 344-345)
440
“Um dos poemas mais conhecidos de Mattos, Marinícolas, é uma paródia de Marizapalos, uma célebre
canção ibérica do século XVII, que sobrevive em várias versões em fontes peninsulares e latino-americanas.”
(Budasz, 2004, 17)
441
Já nas primeiras décadas do século XVIII, sarao também apresentava um significado próximo ao atual,
que confere ao vocábulo um caráter de encontro social com alguma finalidade cultural e/ou recreativa. É o
próprio Bluteau quem anota as duas acepções na publicação de 1720:
SARAO. Bayle noturno, em que se ajuntaõ Damas,8 Cavalheyros, particularmente nos Palácios dos Reys, &
casas de Fidalgos. Os primeyros Saraos foraõ do tempo del-Rey Dom Manoel. (Bluteau, 1720, VII/496)
SARAO. Também he dança particular. (Ib.)
265

Na publicação de 1713 (o tomo IV de seu Vocabulário), o autor reproduz a seguinte


descrição: “Fantasia. (Termo de Musico) Harmonia, que nao tem nome certo, mas sahe do
genio, & habilidade do compositor. Modulatio ad mentem, arbitrium que musici
compositor is direct.” (1713, IV/32).
De acordo com os relatos, é provável que Bluteau estivesse se referindo, na verdade,
às improvisações ou variações feitas por compositores (e também tocadores de viola) a
partir de algumas danças, peças ou ideias musicais anteriores (próprias ou parafraseadas).
Já sabemos que a viola também foi amplamente utilizada como instrumento
acompanhador de canções religiosas e/ ou profanas nos três primeiros séculos do Brasil
colonial. Na poesia de Gregório de Matos, podemos constatar tais usos em algumas
ocasiões, como no caso em que cantigas são mencionadas compondo rima nos belos
versos sequentes:
[...] Os pés são figas
A mor grandeza,
Por cuja empresa
Tomaram tantos pés
Tantas cantigas. [...]
(JA, 1999, 186) 442

Em outra poesia, Boca de Inferno enaltece a formosura de Dona Angela (pela qual se
encontrava “amorosamente perdido”) oferecendo-lhe em “suas florentes primaveras” uma
“lindíssima canção” (JA, 1999, 404). As cançonetas, por sua vez, surgem n’outro exemplo
glosando “Trique-trique” e “Zápete-zápete” (AP, 1943, I/357). Os vocábulos toada,
cantiga e canção são também mencionados na poesia Diálogo entre o demônio e a alma:
Cantavam naquele tempo os chulos da Baía certas cantigas por uma toada triste que rematava, dizendo:
‘Banguê, que será de ti?’ Mas outros mais piedosos reduziam a mesma canção ao Divino, finalizando assim:
‘Meu Deus, que será de mim?’ E o Poeta entre o temporal e o eterno de uma e outra chularia introduziu uma
alma cristã resistindo às tentações do demônio com a glosa de ambos os extremos: Meu Deus, que será de
mim? Banguê, que será de ti? (AP, 1943, II/192)

[...] Os mais que cantando vão,


Dizem na triste canção:
Banguê, que será de ti?
(AP, 1943, II/194) 443

442
Também reproduzida em: (AP, 1943, II/45). Uma cantiga também é citada na epígrafe de outra poesia:
“Esta cantiga accomoda o poeta com proporção à Barbora pelo nome e trato, não deyxando de fora os seus
amantes dezejos.” (JA, 1999, 574)
443
Poesia em contexto: “Diálogo entre o demônio e a alma. DEMÔNIO - Se não segues meus enganos/ E
meus deleites não segues,/ Temo que nunca sossegues/ No florido de teus anos:/ Vê como vivem ufanos/ Os
descuidados de si:/ Canta, baila, folga e ri;/ Porque os que não se alegraram,/ Dois infernos militaram:/
Banguê, que será de ti? [...] Todo o cantar alivia/ E todo o folgar alegra,/ Toda a branca, parda e negra/ Tem
sua hora de folia:/ Só tu na melancolia/ Tens alívio? Canta aqui/ E torna a cantar ali,/ Que desse modo o
praticam/ Os que alegres prognosticam/ Banguê, que será de ti?” (AP, 1943, II/193). Também reproduzida
em: (JA, 1999, 74).
266

Bailes, bailados e danças são muitas vezes aludidos na poesia de Gregório de Matos
sem especificações nominais, mas deixando antever a presença da música e/ ou de
instrumentos musicais, como no caso das mulatas que celebravam o dia de Nossa Senhora
do Amparo com banquete, vinho e rebolados:
Descreve com admirável propriedade os effeytos, que causou o vinho no banquete, que se deo na mesma
festa entre as juízas, e mordomas onde se embebedaram.

1. No grande dia do Amparo,


estando as mulatas todas
entre festas, e entre bodas,
um caso sucedeu raro:
[...]
2. Macotinha a foliona
bailou rebolando o cu
duas horas com Jelu
mulata também bailona:
senão quando outra putona
tomou posse do terreiro,
e porque ao seu pandeiro
não quis Macota sair,
outra saiu a renhir,
cujo nome é Domingueiro.
(JA, 1999, 476)

Em outros três poemas, Gregório pontua, por um lado, como naquele tempo eram as
“cantigas torpes” e os “bailes e toques lascivos”, 444 enquanto, por outro, louva as quatro
negras angolanas “que foram baylar graciosamente a casa do poeta morando junto ao
dique.” 445 Por fim, descreve como a “bicha”, uma “deplorável peste que padeceo a Bahia
no ano de 1686”, “emudeceu as folias, trocou em lamento os bailes, cobriu as galas de luto
e encheu de pranto os lugares.” 446
Gregório de Matos também cita uma série de festas, divertimentos e folguedos onde
a presença da música era certa (e, consequentemente, a da viola, instrumento que dividiu
com os percussivos o status de mais frequente em tais ocasiões). Na festa de São Gonçalo,
por exemplo, viu a mulata Úrsula dançar a mangalaça (JA, 1999, 1018), enquanto na de

444
[...] E é para sentir o quanto/ Se dá Deus por ofendido,/ Não só por este pecado,/ Mas pelos seus
conjuntivos;/ Como são cantigas torpes,/ Bailes e toques lascivos,/ Venturas e fervedouros,/ Pau de forca e
pucarinhos: [...] (AP, 1943, II-88).
445
Catona, Ginga, e Babu,/ com outra pretinha mais/ entraram nestes palhais/ não mais que a bolir co cu:/
eu vendo-as, disse, Jesu,/ que bem jogam as cambetas/ mas se tão lindas violetas/ costuma Angola brotar,/
eu hoje hei de arrebentar,/ se não durmo as quatro Pretas. (JA, 1999, 1009)
446
“Descreve a deplorável peste, que padeceo a Bahia no A. 1686, a quem discretamente chamaram Bicha,
porque variando nos sintomas, para que a medicina não soubesse atalhar os effeytos, mordia por differentes
boccas, como a bicha de hercoles. Tambem louva o caritativo zelo de algumas pessoas com os enfermos”.
[...] Emudeceu as folias,/ trocou em lamento os bailes,/ cobriu as galas de luto,/ encheu de pranto os
lugares./ Foi tudo castigo em todos/ por esta, e aquela parte,/ se aos pobres faltou remédio,/ aos ricos
sobraram males. (JA, 1999, 813-814)
267

São Caetano, duas outras “se lhe quebraram as cordas da rede com publico desayre” (Ib.,
986). As mulatas ainda voltariam a ser lembradas na festa de Nossa Senhora de
Guadalupe, onde bailaram o cãozinho entre umbigadas, goles de vinho e comilanças (Ib.
479-482). Também “os pretos” de Nossa Senhora do Rosario pediram a intervenção do
poeta junto ao governador para que o mesmo permitisse a realização do seu “costumado
alarde com máscara” (Ib. 161)
Boca de Inferno descreveu ainda a confusão nos festejos de São Entrudo, nas quais
se tangia buzina, quebravam-se panelas e comia-se tudo quanto possível em um só dia. (Ib.
447) Nas festas de Cavalo (também chamadas de cavalhadas), em celebração à honra das
Onze Mil Virgens, Gregório notifica a presença de padres e nobres entre as damas e os
negros do terreiro de Jesus, na Bahia, revelando uma vez mais as trocas simbólicas e
interações sociais que ocorriam em torno de tais eventos (Ib. 485-486). 447
Já os pardos que costumavam celebrar anualmente a festa de Nossa Senhora do
Amparo protagonizaram uma comédia “cujo lustre reparo” superou outros festejos, “tão
eficazes moveram ao povo que os escutou” (Ib., 474). Mesma sorte não teve uma pobre
dama chamada Josepha, “que em noyte de São João lhe rebentou hum foguete buscape
entre as pernas, de que ficou bem mal tratada” (Ib., 1001).
Mas não somente as festas, bailes e divertimentos acontecidos na Bahia foram
retratados por Gregório de Matos. Em Pernambuco, o poeta deixou uma preciosa descrição
sobre os personagens que enfileiravam a procissão de quarta-feira de cinzas (AP, 1943,
II/23) e também notificou a criação de uma farsa, então submetida ao seu crivo pelo próprio autor,
um morador da cidade (Ib. 352-353).

4.5.1 A viola e os seus artefatos 448

Por fim, é ainda necessário registrar que a literatura luso-brasileira não se limitou a
citar os cordofones de cordas dedilhadas (mais notadamente a viola e a guitarra), além de
seus gêneros, ritmos, bailes e danças correspondentes, mas também mencionou alguns dos
seus componentes. Em uma de suas poesias, Gregório de Matos elenca os itens

447
As celebrações em torno das Relíquias das Onze Mil Virgens (ou Santas Virgens) foram tão comuns no
Brasil desde a segunda metade do século XVI (como vimos no capítulo anterior) que uma Confraria
homônima foi criada em Salvador no ano de 1584 para, dentre outras coisas, cuidar dos festejos.
448
Focadas diretamente sobre a prática musical, as descrições das tecnicas de execução (presentes neste item)
constituem um dos aspectos mais relevantes de qualquer estudo sobre o tema. Elas serão aprofundadas no
segundo volume da pesquisa, que abrange as práticas dos cordofones de cordas dedilhadas no Brasil entre os
séculos XVIII e XIX.
268

obrigatórios que devem ser incluídos no dote com o qual os noivos sustentam os encargos
de uma casa, ele declara que não deve faltar um “espelho de viola”. 449
Já em outro poema, o Boca de Inferno nos oferece a mais copiosa paleta de
informações sobre os apetrechos, posturas e modos de execução relacionados à viola de
seu tempo:
XVII - À Anica, mulata que lhe pedira um cruzado para pagar uns sapatos. (AP, 1943, II/70)

Desempulha-se o poeta depois de gozar esta dama de huns çapatos que lhe pedio.

Um cruzado pede o homem,


Anica, pelos sapatos,
Mas eu ponho isso à viola
Na postura do cruzado:
Diz, que são de sete pontos,
Mas como eu tanjo rasgado,
Nem nesses pontos me meto,
Nem me tiro desses trastos.
Indo assim se eu não soubera
O como tens trastejado
Na banza dos meus sentidos
Pondo-me a viola em cacos:
Ó cruzado pegaria,
Já que fui tão desgraçado,
Que buli co’a escaravelha,
E toquei sobre o buraco.
Porém como já conheço,
Que o teu instrumento é baixo,
E são tão falsas as cordas,
Que quebram a cada passo:
Não te rasgo, nem ponteio,
Não te ato, nem desato,
Que pelo tom, que me tanges,
Pelo mesmo tom te danço.
Busco a outros temperilhos,
que eu já estou destemperado,
Estou para me rasgar
Minhas cousas cachimbando.
Se tens o cruzado, Anica,
manda tirar os sapatos,
e se não, lembre-te o tempo,
que andaste de pé rapado.
[...]
(JA, 1999, 1070)

O relato é tão rico que cada item em negrito merece uma descrição isolada:
Postura do cruzado: refere-se a uma das posturas de mão (shape) com as quais se
tangia o instrumento. Além do cruzado, outras posições mais usuais são também aludidas

449
DOTE - Para o noivo sustentar os encargos da casa [...] TRASTES DE CASA [...] Um espelho de viola.
(JA, 1990, 828). Segundo Morais, espelho seria o termo equivalente para escala: “escala (‘rotolo’ ou
‘espelho’) (2006, 395).
269

por Bluteau: “As posturas da maõ no tanger Viola saõ Forças, Trempe, Caranguejo, Vaõ,
Cruzado, &c.” (Bluteau, 1728, II/302, suplemento). Para Castagna, “as posturas eram
posições fixas de acordes que se executavam na viola provavelmente com a técnica do
rasgado, que o poeta menciona neste mesmo romance.” (Castagna, 1991, III/539)
Sete pontos: Castagna explica que “sete pontos ou sete signos são, ao que parece, os
sete graus da escala diatônica ocidental”. (Ib.)
Tanger rasgado: Bluteau faz menção ao “tanger corrido, ou rasgado” (Bluteau,
1721, 39). Já Castagna aprofunda o entendimento sobre o termo citando uma série de
autores que se dedicaram a decifrá-lo:
Mário de Andrade (1989, 427) recolhe opiniões segundo as quais, o termo seria
brasilianismo ou americanismo. Porém, o rasgueado já era usado, pelo menos,
em 1596, quando Juan Carlos y Amat publica [...] um tratado sobre o uso desta
técnica. [...] O rasgado, técnica de mão direita para os instrumentos de cordas
dedilhadas, hoje conhecido como rasqueado ou rasgueado, foi indicado pela
primeira vez na música brasileira em um manuscrito do séc. XVIII, intitulado
‘Modinhas do Brasil’. [Biblioteca da Ajuda, Portugal, MS 1595, modinha N 17º,
‘Ninguém morra de siume’]. Gerard Behague (Biblioteca da Ajuda (Lisbon)
MSS 1595/1596, 1968, p. 63) tenta interpretar o termo como uma indicação de
caráter, atribuindo ao seu uso origem afro-brasileira, mas sem qualquer
fundamentação musicológica. (Castagna, 1991, III/539)

Ponto: Mário de Andrade dá a seguinte definição ao termo: “ponto: o mesmo que


tasto” esclarecendo ainda que “no sentido de tasto, ou trasto, foi usado por Gregório de
Matos” (1989, 400). Castagna considera que “os sete pontos do poeta seiscentista parecem
indicar os sete graus da escala diatônica, com os sete signos de música [...]” (1991,
III/539). Já para Tinhorão, “tocar a viola por pontos” significava tangê-la “de forma
dedilhada” ao invés “de ferir as cordas todas de uma vez, o que era chamado toque
rasgado” (1990, 49). Bluteau também menciona a expressão “tanger por pontos” (1721,
VIII/39), que, em seu caso, remete aos espaços separados pelos trastes no braço da viola.
Sendo assim, tais pontos seriam equivalentes ao que hoje conhecemos por casas (casa I,
casa II, etc). No fim do século XVIII, o sentido musical do verbete já havia sofrido
alterações, conforme revela a edição revisada do dicionário de Bluteau realizada por
Moraes e Silva: “na Mus. o ponto, póem-se atraz de huma figura para designar, que vale a
metade da precedente. [...]” (1789, II/217)
Trastos: Bluteau assim define o termo (que também ratifica o seu conceito de ponto):
Trastes também se chamão as cordas, que no braço da viola, de espaço em
espaço dividem os pontos. Querem algüs, que Trastes neste sentido se derive do
Latim Transtra, que saó os bancos dos remeyros da galé, ou traves de parede a
parede, porque no braço da viola há divisoens de cordas para os tonos [tons], &
270

semitonos [semitons]. Transversae ad cervicem lyrae fides. Também os


molhinhos das ditas cordinhas se chamão Trastos. (1721, VIII/257) 450

Trastejar: Usado com o mesmo sentido atual, o vocábulo se remete ao “ruído


indesejável das cordas ao resvalarem nos braços ou trasteira dos instrumentos de cordas
dedilhadas” (Castagna, 1991, III/539). Outro termo com significado muito próximo e
também recorrente entre os séculos XVII e XVIII foi zangarrear: “correr as cordas da
viola sem observar os preceitos da Arte.” (Bluteau, 1721, VIII/629) 451
Escaravelha: termo arcaico que passou por, pelo menos, três variantes até chegar à
nomenclatura atual: escaravelha (Matos) – caravelha (Moraes e Silva/ Bluteau) – carvelha
(Barbosa) – cravelha. Refere-se à peça de madeira ou marfim que integra o aparato
responsável pela afinação dos cordofones de cordas dedilhadas: “CARAVELHA, f. f. peça
de pau, ou marfim, dos braços da rabeca, viola, e outros instrumentos, como cravo,
salterio, com que se apertão, ou afroixão as cordas enroladas nella. [...]” (Moraes e Silva/
Bluteau, 1789, I/233).
Buraco: termo que faz referência ao “vão do tampo da viola”, no lugar onde se
coloca o “espelho, chapa de pergaminho, redonda, lavrada ao pique”. (Bluteau, 1713,
III/288). Atualmente, os nomes mais usuais para ambos são, respectivamente, “boca” e
“roseta”.
Ponteio: De acordo com Mário de Andrade, é o “toque de viola de quem está a
pontear” (Andrade, 1989, 407).
Temperar/ Destemperar: para Bluteau “temperar uma viola” significa “pôr as cordas
em seu ponto harmônico” (1721, VIII/75). 452 Na edição concisa do dicionário realizada
por Moraes e Silva em 1789, o termo temperado faz menção ao instrumento “preparado
para dar sons regulares” (1789, II/448) enquanto temperar um instrumento musical
significa “fazer-lhe o concerto necessário para que dê sons regulares” (Ib., 449). Já por

450
Na versão revisada do dicionário de Bluteau realizada por Moraes e Silva em 1789, o sentido do verbete
permanece na mesma direção: “TRASTE, f. m. ou trasto, corda de viola, ou arame, no braço da viola, ou
citara que o atravessa a espaços, e sobre a qual o tocador comprime a corda do instrumento, para tirar sons
mais ou menos fortes em razão da longura, ou curteza da corda que fere. § Huma corda para viola, ou rebeca.
§ Trastes, peças de uso, e serviço v. g. bancas, cadeiras, camas, espada, jóias, &c. TRASTO v. traste. Lobo
Corte D. 4.” (Moraes e Silva/ Bluteau, 1789, II/485)
451
No fim do século XVIII, o sentido do verbete ainda permanecia o mesmo: ZANGARREAR, v. n. tocar
mal na viola com rojões sem harmonia. (Moraes e Silva/ Bluteau, 1789, II/539)
452
“Temperar húa viola. Pòr as cordas em seu ponto harmônico. Citharae,ou Lyrae fides ita contendere, ut
concentum habeant. Cic. Certo Cavalheyro, que muytas vezes estava de quebra com sua mulher, q era velha
& sem dentes, taxandolhe hú seu amigo estas discordias, respondeo-lhe, ‘como quereis vòs, que possa eu
temperar húa guitarra, que não tem caravelhas’.” (Bluteau, 1721, VIII/75). Aqui, uma vez mais, é notório que
os vocábulos viola e guitarra, ambos mencionados por Bluteau na entrada do verbete (viola no título em
negrito e guitarra ao longo do parágrafo), são usados como sinônimos.
271

destemperar, o dicionarista afirma que é o ato de “causar dissonância em cousa


armonicamente temperada. Destemperar uma viola. Desconcertar armonia de cordas”
(Bluteau, 1713, III/174), afirmando ainda que o verbete destemperado reporta-se ao
instrumento musical de cordas “não temperado, mal temperado”. Ou seja, fica patente que
o sentido de temperar/ destemperar é o mesmo que hoje conferimos aos verbos afinar/
desafinar. Cumpre notar que tais expressões ganharam ampla difusão a partir do Cravo
Bem Temperado, emblemática coleção de peças para teclas do compositor alemão Johann
Sebastian Bach (1685-1750)
O significado de tantos termos musicais (alguns de fácil identificação para nós,
outros nem tanto) fica mais claro quando reconhecemos que, na verdade, Gregório os
utilizou em uma engenhosa construção de duplo sentido (musical/ sexual) na qual os
artefatos da viola passam a ser metáforas dos atributos, digamos, pouco notáveis de sua
amante, a mulata Anica. Tinhorão, em sua História Social da Música Popular Brasileira,
nos oferece uma divertida interpretação da maliciosa ambiguidade alcançada pelos versos
do Boca de Inferno:
“De saída Gregório de Matos informa sua disposição de responder ao pedido à
viola, cantando ‘na postura do cruzado’, ou seja, na forma de versos em que o
significado resultaria do cruzamento do duplo sentido das palavras. E é o que
realmente faz, através de uma engenhosa manipulação da significação das
palavras, pois, ao afirmar desde logo que nada tem a ver o tamanho dos sapatos
(que eram medidos por pontos), alega não tocar a viola por pontos, ou de forma
dedilhada, mas pelo processo popular de ferir as cordas todas de uma vez, que
era o chamado toque rasgado. Por essa razão, além de não se meter com pontos,
dizia não se importar com pormenores – ‘nem me tiro desses trastos’ -, o que era
referência às marcações no braço do instrumento, sobre as quais se aperta a corda
para variar os tons. Isso permitia-lhe continuar a cruzar o sentido das palavras
informando a amante que, apesar de tudo, talvez lhe desse o cruzado para os
sapatos se ela não tivesse trastejado, ou perturbado sua harmonia de espírito [‘o
como tens trastejado/ na banza dos meus sentidos’ [...], perturbando-lhe a rotina
da vida (‘pondo-me a viola em cacos’). Sempre cruzando os diferentes sentidos
das palavras, o poeta reconhecia ter-se aproveitado sexualmente de Anica, não
apenas com titilações no bico dos seios (comparado com a cravelha, a pequena
cabeça de madeira que se torce para esticar as cordas do instrumento), mas até
tocando-lhe o buraco (que tanto tem no corpo a mulher quanto a viola).
Gregório excluía porém a possibilidade de atender ao pedido da mulher
alegando que, além de baixo (desafinado por defeito), seu instrumento sexual se
revelara frouxo como se tivera ‘falsas as cordas/ que quebram a cada passo’. E,
assim, concluía que, por todas as razões apontadas, não desejava mais qualquer
novo contacto sexual-musical com Anica (‘não te rasgo, nem ponteio’),
resolvendo dar-se como pago da recusa do dinheiro, pelo que não recebera em
gozos (‘que pelo tom que tanges,/pelo mesmo tom te danço’), e recomendando-
lhe que procurasse afinar-se com outro (‘busca a outros temperilhos’), pois de
sua parte sentia-se incapaz (‘que eu já estou destemperado/ estou para me
rasgar’/ [...]).”(Tinhorão, 1990, 49-50)

Mas usar os artefatos da viola em duplo sentido não foi algo exclusivo a Gregório de
Matos. Outros dois autores também legaram textos similares ao do poeta baiano. O
272

primeiro deles, anterior ao Boca de Inferno, foi Luis Vaz de Camões (c. 1524-1580), sobre
o qual já nos ativemos mais detalhadamente no capítulo anterior. No já citado Auto de
Filodemo, ele põe na boca do personagem “seu moço” os seguintes versos:
[...] A viola, Senhor, vem
sem primas, nem derradeiras.
Mas sabe o que lhe convém?
Se quer, Senhor, tanger bem,
há de haver mister terceiras.
E se estas cantigas vossas
não forem pera escutar,
e não quiserdes espirar,
há mister cordas mais grossas,
porque não possam quebrar.[...]
(Camões, 1587, 6) 453

Posterior a Gregório de Matos, o segundo autor, Antonio José da Silva (1705-1739)


454, nos deixou o seguinte soneto em sua obra Guerras do Alecrim e Manjerona:
Primas, que na guitarra da constância
Tão iguais retinis no contraponto,
Que não há contraprima nesse ponto,
Nem nos porpontos noto dissonância:

Oh, falsas não sejais nesta jactância;


Pois quando atento os números vos conto,
Nessa beleza harmônica remonto
Ao plectro febina consonância:

Já que prima me sois, sede terceiras


De meu amor, por mais que vos agaste
Ouvir de um cavalete as frioleiras;

Se encordoais de ouvir-me, ó primas, baste


De dar à escaravelha em tais asneiras,
Que enfim isto de amor é um lindo traste.
(Silva, 1737, 14-15) 455

453
“O Auto de Philodemo foi a terceira e ultima comédia escripta por Camões; em 1555 celebraram-se em
Gôa os festejos pela successão de Francisco Barreto, que succedeu a Dom Pedro de Mascarenhas. Camões
tomou partes nas festas e escreveu o Auto de Filodemo, que andou manuscripto até 1587, tempo em que foi
colligido por Affonso Alvares. Como viria o Auto para Lisboa? Seria do numero d”aquelles versos que
roubaram a Camões, dos quaes nunca teve mais noticia? O Auto de Filodemo resente-se já um pouco do
imbroglio italiano, da comedia sostenuta, como se vê pela dupla acção, e mais ainda por um pronunciado
caracter idylico e pastoril. Pelas allusões, se vê como a Comedia hespanhola da Celestina era bastante lida em
Portugal.” (Braga, 1870, 253)
454
Também conhecido como “O Judeu”, foi de uma família cristã-nova portuguesa que se refugiou no Brasil,
onde veio a nascer em 1705, no Rio de Janeiro. Voltou para Portugal e se formou em Direito na Universidade
de Coimbra. Foi posteriormente preso ao lado da esposa, em 1737, acusado de incitar a prática do judaísmo
pela inquisição, que o executou dois anos depois, em 1739, num declarado “auto de fé” (fatores que
justificam a alcunha recebida). Em vida, destacou-se sobretudo como comediógrafo no teatro de marionetes,
gênero no qual suas peças alcançaram grande sucesso popular no Teatro do Bairro Alto, em Portugal.
455
A Porto Editora, em sua coleção Clássicos da Literatura Portuguesa, disponibiliza a obra gratuitamente
em sua biblioteca digital. Basta digitar no campo de buscas do Google o título da obra e da editora e o link
para o download estará disponível.
273

Os versos de Silva - compostos na primeira metade dos anos setecentos - são um


convite tentador para darmos sequência ao estudo das trajetórias dos cordofones de cordas
dedilhadas no Brasil ao longo dos séculos XVIII e XIX, tarefa que esperamos cumprir em
uma futura segunda etapa desta jornada.
274

5. CONCLUSÕES

Cada resultado individual inscreve-se num conjunto cujos elementos dependem estreitamente uns dos outros,
cuja combinação dinâmica forma, num momento dado, a história. (Certeau, 1982, 71)

O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária
ou involuntariamente - determinada imagem de si próprias. No limite, não existe um documento-verdade.
Todo o documento é mentira. (Le Goff, 1996, 538)

Ao relativizar a perenidade dos documentos, Le Goff nos descortina a incontornável


realidade que circunscreve qualquer pesquisa de tal natureza: conclusões são fantasiosas
quando almejam representar mais do que apenas alguns dos pontos de vista possíveis sobre
um determinado objeto de estudo. Por isso mesmo, estão longe de ser únicas e tampouco
necessariamente verdadeiras, uma vez que a “história” só pode ser escrita na
desconstrução.
Chegar ao porto final (ou seria inicial?) da jornada, portanto, é antes de tudo ter a
consciência de que os resultados alcançados são somente fagulhas que devem se conectar a
outras redes de conhecimentos, outras formas de pensamento, realidades, questionamentos
e personagens. Outras cabeças e corações. E este é o convite que fazemos a todos os que
nos acompanharam até aqui na aventura. Ou melhor, no abismo.
Nossa perspectiva foi sempre a de tomar os objetos em relação ao seu corpo social.
Os cordofones de cordas dedilhadas não existiram desencarnados e tampouco chegaram ao
Brasil através de cegonhas: houve aqueles que os construíram, transportaram, manusearam
e lhe atribuíram valores reais e simbólicos. E foram os seus personagens.
Contudo, deve-se recordar que pessoas também regem e são regidas por topografias
de interesses e relações de poder (es), instâncias que vão paulatinamente moldando a
construção de símbolos, hábitos e dirimindo os fazeres e saberes sociais. Foucault bem
lembrou que a teoria nada mais é do que uma prática (2006, 39). 456 E nós estamos (e
estivemos sempre) no mundo das práticas.
Mas práticas tampouco são abstratas. Elas encontram ressonância entre as leis
silenciosas circunscritas em um determinado tempo, espaço e lugar social. 457 São as

456
“É nisso que a teoria não expressará, não traduzirá, não aplicará uma prática, ela é uma prática.”
(Foucault, 2006, 39)
457
“Mas receptível é apenas a teoria que articula uma prática, a saber, a teoria que por um lado abre as
práticas para o espaço de uma sociedade e, que, por outro lado, organiza os procedimentos próprios de uma
disciplina. Encarar a história como uma operação será tentar, de maneira necessariamente limitada,
compreendê-la como a relação entre um lugar (um recrutamento, um meio, uma profissão, etc.),
procedimentos de análise (uma disciplina) e a construção de um texto (uma literatura). É admitir que ela faz
parte da "realidade" da qual trata, e que essa realidade pode ser apropriada "enquanto atividade humana",
275

condições de possibilidade instauradas culturalmente e que oferecem a cada indivíduo “um


horizonte de possibilidades latentes - uma jaula flexível e invisível dentro da qual se
exercita a liberdade condicionada de cada um.” (Ginzburg, 2006, 20)
Personagens, práticas e espaços de atuação social. Eis a trinca fundamental que nos
motivou a estudar a trajetória dos cordofones de cordas dedilhadas no Brasil entre os
séculos XVI e XVII. Foi para tal propósito que, no primeiro capítulo, enfrentamos os
problemas terminológicos na tentativa de ampliar o corpus lexical e o alcance dos
resultados da pesquisa. O inédito estudo das correspondências entre o português e o latim,
o galego-português, o castelhano, o tupi-guarani e outros idiomas estrangeiros, permitiu
construir relações antes desconhecidas e incluir uma série de vocábulos antes ignorados na
bibliografia dedicada ao tema.
No segundo capítulo, mergulhamos na documentação medieval sobre os cordofones
de cordas dedilhadas na Península Ibérica, desvelando alguns dos personagens (jograis,
trovadores e segréis) e das práticas que estiveram relacionadas com aquelas observadas no
Brasil após o descobrimento.
Já no terceiro capítulo, esmiuçamos mais detalhadamente o panorama de tais
instrumentos musicais em Portugal entre os séculos XV e XVI, com o intuito de avaliar as
possíveis conexões que se estabeleceram entre a metrópole e a colônia recém-descoberta.
Apresentamos os primeiros vestígios sobre atividades musicais no Brasil, bem como
documentamos e analisamos os raros registros sobre a entrada e a utilização de cordofones
de cordas dedilhadas nos anos quinhentos.
Finalmente, no quarto capítulo, partimos dos documentos para tentar compreender de
que modo a viola/ guitarra começou a se difundir entre personagens e ambientes diversos
na sociedade brasileira do século XVII. E, além, de que maneira as primeiras imagens
simbólicas em torno do instrumento foram sendo construídas, naturalizadas e reproduzidas.
Em todas as etapas, procuramos, sempre que possível, fundamentar as hipóteses
levantadas nos ancorando em documentos e vestígios concretos, muitos dos quais inéditos
e raros ou ainda oferecidos por brilhantes pesquisadores que corajosamente vêm se
dedicando ao voo neste abismo fascinante, especialmente Ballesté, Budasz, Castagna,
Holler, Morais, Pedrell, Vasconcellos e Vieira, autores amplamente mencionados e que se
converteram em permanentes fontes de inspiração. A eles e a todos os outros citados,

"enquanto prática".4 Nesta perspectiva, gostaria de mostrar que a operação histórica se refere à combinação
de um lugar social, de práticas "científicas"5 e de uma escrita.” (Certeau, 1982, 65)
276

minha especial gratidão. Humildemente, agora, entrego o que me foi possível alcançar e
que só me foi permitido pela estrada palmilhada que encontrei.
Enquanto escrevo estas últimas linhas, meu filho Francisco, de 05 meses, ora sorri e
ora chora em algum lugar da casa amparado pela incansável mãe, Marina. É natural,
crianças vibram e mães conhecem mesmo alguma forma de Amor inexplicável. Para mim,
mais do que um privilégio, foi o combustível diário do qual se alimentou esta pesquisa.
Quaisquer que sejam os méritos de seus resultados, ela guarda esta marca indelével que
somente as relações humanas são capazes de construir. Uma força tão poderosa que nos
leva a, mesmo transitando entre instâncias efêmeras, tocar o Eterno.
Eis o que me motiva a seguir daqui para novos voos. A aventura esta apenas no
começo e o abismo nunca foi tão incrivelmente profundo.

Bom voo... Bom mergulho...

E boa sorte.
277

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 458

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458
Por razões espaciais, foram incluídas apenas as referências citadas ao longo da pesquisa. A bibliografia
apenas consultada não está mencionada.
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