Este documento é uma tese de doutorado apresentada à Universidade de São Paulo que analisa a construção do ator da enunciação nos romances de Machado de Assis, com foco nas Memórias Póstumas de Brás Cubas. A tese discute questões de enunciação, éthos e estilo no romance, utilizando os conceitos da Semiótica Francesa. O objetivo principal é mostrar como o éthos machadiano é construído através do narrador-personagem Brás Cubas.
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Este documento é uma tese de doutorado apresentada à Universidade de São Paulo que analisa a construção do ator da enunciação nos romances de Machado de Assis, com foco nas Memórias Póstumas de Brás Cubas. A tese discute questões de enunciação, éthos e estilo no romance, utilizando os conceitos da Semiótica Francesa. O objetivo principal é mostrar como o éthos machadiano é construído através do narrador-personagem Brás Cubas.
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Este documento é uma tese de doutorado apresentada à Universidade de São Paulo que analisa a construção do ator da enunciação nos romances de Machado de Assis, com foco nas Memórias Póstumas de Brás Cubas. A tese discute questões de enunciação, éthos e estilo no romance, utilizando os conceitos da Semiótica Francesa. O objetivo principal é mostrar como o éthos machadiano é construído através do narrador-personagem Brás Cubas.
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LINGSTICA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SEMITICA E LINGSTICA GERAL
A construo do ator da enunciao em romances com narrador-personagem: a experincia machadiana em Memrias pstumas de Brs Cubas
Eduardo Calbucci
Tese apresentada ao Programa de Ps- Graduao em Semitica e Lingstica Geral do Departamento de Lingstica da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor.
Orientador: Prof. Dr. Jos Luiz Fiorin
SO PAULO 2007
2
A minha me, minha maior incentivadora, que comeou este trabalho ao meu lado, mas no pde v-lo ficar pronto.
NDICE
Agradecimentos Resumo Abstract Introduo 1. Machado e as Memrias pstumas: o alto do pdio 2. Lingstica e Literatura: uma tentativa de conciliao 3. Objetivos e mtodos: o mapa do percurso Captulo 1 Problemas gerais de enunciao 1. Uma questo de nveis: alguns fundamentos tericos 2. A enunciao: em busca da preciso conceitual 3. Foco narrativo: uma sistematizao semitica 4. Estilo e thos: a apreenso do enunciador Captulo 2 As experincias discursivas em Memrias pstumas 1. Subverso enunciativa: traos de modernidade 2. Simulacro de uma autobiografia: o dilogo de um morto 3. Graus enunciativos: outras complexidades vista 4. As ironias de Brs: produtor de umas, alvo de outras 5. A questo do destinatrio: dilogo e dialogismo 6. Contratos enunciativos: Romantismo, Realismo e um algo a mais 7. Narrador e enunciador: questes de foco, de erudio e sobre Marcela 8. Formulaes tericas de Brs: entre a cincia e a zombaria 9. Volubilidade, superficialidade, vaidade, indiferena: autpsia de Brs e de seus pares 10. Humanitismo: razo, loucura e egosmo 11. O estilo das Memrias pstumas: uma hiptese de thos do enunciador Captulo 3 De Ressurreio ao Memorial: a confirmao do thos 1. O carter machadiano: do cinismo ao fim das convenes enunciativas 2. A voz machadiana: da delicadeza mordacidade
259 276 285 306 307 385 3. O corpo machadiano: da elegncia ao riso sutil Concluso Bibliografia
397 404 421 AGRADECIMENTOS
Ao professor Jos Luiz Fiorin, com quem eu comecei essa aventura semitica h quase oito anos e a quem eu aprendi a admirar, como orientador exemplar que foi, intelectual lcido que e amigo que sempre ser. professora Norma Discini de Campos, em cujo curso eu comecei a enxergar os caminhos desta tese e por cujo thos, de voz doce e carter rigoroso, eu me encantei. Ao professor e amigo Francisco Plato Savioli, que me mostrou, com exemplos prticos, as vantagens da meritocracia, da transparncia e da inteligncia coletiva. Aos muitos professores semioticistas, que em cursos, congressos, comunicaes ou conferncias contriburam, talvez sem saber, para o desenvolvimento desta pesquisa. Agradeo especialmente a Luiz Augusto de Moraes Tatit, Diana Luz Pessoa de Barros, Claude Zilberberg, Antnio Vicente Seraphim Pietroforte e Iv Carlos Lopes. Aos amigos semioticistas, agora todos mestres, meus grandes interlocutores: Eduardo Antonio Lopes, outro obcecado pela enunciao; Luciana Adayr Arruda Migliaccio, que dividiu suas angstias cientficas comigo e com quem dividi as minhas; e Paulo Csar de Carvalho, esse rapaz barroco e antropofgico que l tudo, entende tudo e ainda tem pacincia para ensinar. A todos os outros professores da equipe de Portugus do Anglo Cely, Ivan, De Paula, Dcio, Marclio, Maurcio, Anbal, Paganim, Gustavo, Medina , que me incentivaram, de alguma forma, a terminar essa jornada. Aos demais amigos do Anglo, que, em conversas despretensiosas sobre cincia, literatura e lingstica, contriburam para que a pesquisa atingisse este ponto. Agradeo especialmente ao professor Wilson Liberato, outro mestre, pela sua permanente solicitude. Aos muitos amigos (Fernando, Bia, Samuel, Raquel, Cardy, Play, Thas, Alexandre, Augusto, Renan so tantos que esquecer um nome no descaso do 6 corao, mas da memria), cuja presena constante fez-me lutar contra o cansao, as noites em claro e o excesso de trabalho. Aos meus compadres, Celso e Fernanda, e aos dois anjinhos, Lucas e Jlia, que vieram ao mundo para alegrar meus dias. Por ltimo, agradeo a toda minha famlia, pelo apoio incondicional. Obrigado a meus tios dson e Magui e a minhas primas rica e Marcela. Obrigado a meu irmo pelos quase trinta anos de convivncia ininterrupta, pelas polmicas intelectuais e pela admirao recproca e sincera que temos. Obrigado a minha cunhada, que engatinha no mundo das letras, mas que h de aprender o caminho das pedras. E obrigado a Mariana, minha noiva, que soube compreender as dificuldades desse percurso e foi minha tranqilidade, minha paz, meu sossego, minha vida. 7 RESUMO
Esta tese tem seus objetivos centrados em problemas de enunciao, entre os quais se destacam aqueles que remetem s relaes entre enunciao e enunciado, enunciador e narrador, enunciatrio e narratrio, foco narrativo, thos e estilo. O corpus de anlise formado pelos nove romances de Machado de Assis, com ateno especial s Memrias pstumas de Brs Cubas. A abordagem lingstica da obra literria no tarefa simples, fundamentalmente porque certos textos literrios, como os machadianos, apresentam procedimentos discursivos que no so fceis de ser explicados. Nossa idia a de levantar esses problemas de enunciao suscitados pelos romances machadianos como, por exemplo, a ironia e a delegao de voz e estud- los de acordo com os pressupostos da Semitica de linha francesa e, quando necessrio, aproveitando noes de outras teorias do discurso. Dessa maneira, nosso trabalho poder funcionar como uma gramtica discursiva das Memrias pstumas, o que permitir tocar em questes que no esto plenamente solucionadas pelos estudos lingsticos ou literrios. Um objetivo especfico da pesquisa mostrar como se constri o ator da enunciao em Machado de Assis a partir de Memrias pstumas de Brs Cubas, uma espcie de smula de sua obra, pois esse romance oferece indcios suficientes para sugerir o thos machadiano. Apesar de a apreenso do thos do enunciador depender sempre de uma totalidade de discursos, procuramos comprovar que romances com narrador-personagem, por apresentar marcas textuais que levam distino semntica entre a enunciao de 1 grau e a de 2 grau, permitem que se depreendam sinedoquicamente os traos caractersticos de um ator da enunciao. Ressalve-se que isso no nos dispensou da obrigao de comprovar esse thos com a totalidade da obra do escritor.
Palavras-chave: semitica; enunciao; Machado de Assis; thos; foco narrativo.
8 ABSTRACT
This thesis has its goals centered in problems of enunciation, among which are those ones that send to the relations between enunciation and enunciate, enunciator and narrator, enunciatee and narratee, narrative focus, thos and style. Nine novels of Machado de Assis form the corpus of analysis, with special attention to Brs Cubas posthumous memoirs (Memrias pstumas de Brs Cubas). The linguistic approach of the literary composition is not an easy task, fundamentally because certain literary texts, as the machadians, feature discoursive proceedings, which are not easy to be explained. Our idea is to raise these problems of enunciation suggested by machadian novels such as irony and the delegation of voices and study them according to the presuppositions of French semiotics and, when necessary, taking advantage of notions of other discourse theories. Thus, our work may function as a discoursive grammar of Memrias pstumas, which will permit touching in questions that are not fully solved by linguistic and literary studies. A specific purpose of the research is to show how the actor of the enunciation is built in Machado de Assis from Memrias pstumas de Brs Cubas, a kind of summary of his literary work, for this novel offers indications enough to suggest the machadian thos. In spite of the enunciators thos apprehension always to depend of a totality of discourses, we try to prove that novels with narrator-character allow synedochically that the typical traces of an actor of the enunciation are inferred once they present textual markers that lead to the semantic distinction between the enunciations of first and second degrees. It should be taken into consideration that this did not exempt us from the obligation of confronting that thos with the totality of the writers work.
Key words: semiotics; enunciation; Machado de Assis; thos; narrative focus.
Introduo 10 1. Machado e as Memrias pstumas: o alto do pdio
Eu j havia lido e me apaixonado por sua obra, especialmente Memrias pstumas de Brs Cubas (...) (Harold Bloom, Gnio: os 100 autores mais criativos da Histria da Literatura)
A Histria da Literatura, principalmente quando se envolve em explcitos juzos de valor, repleta de lugares-comuns. claro que isso pode significar falta de originalidade analtica, de pontos de vista tericos mais ousados, de novidades crticas. Mas pode-se pensar que alguns desses lugares-comuns podem ter sido institucionalizados justamente por exprimir pontos de vista consensuais, que, ao longo dos anos, foram se mostrando cada vez mais pertinentes e equilibrados. Em outros termos, como se alguns clichs, em lugar de ter nascido de uma leitura parcial e subjetiva da Histria da Literatura, fossem a mais pura manifestao do que poderamos chamar mesmo que sem rigor epistemolgico de justia esttica. De fato, seria injustia no reconhecer a proeminncia de certos artistas. Mais do que injustia, seria leviandade, porque nos privaramos de tentar dar uma explicao satisfatria embora jamais definitiva sobre o fato de certas obras permaneceram vivas por 50, 100, 200, 500, 1000 ou 2000 anos, enquanto outras no valem suas primeiras edies. certo que muitos textos desses milhares de anos da Histria da Literatura mereceriam uma sorte melhor e que talvez alguns outros, que tiveram melhor sorte, no a merecessem. Porm, de uma maneira geral, as obras que sobreviveram por tantas e tantas geraes costumam fazer jus a nossa ateno. No Brasil, embora nossa Histria da Literatura seja relativamente recente, pois que proporcional chegada dos europeus Amrica, tambm convivemos com certos lugares-comuns, com o nome de certos escritores que, vencendo o crivo implacvel do tempo, justificam a popularidade que alcanaram, se no em vendas, ao menos em prestgio intelectual. Um desses nomes o de Joaquim Maria Machado de Assis. , sem dvida alguma, um clich reconhecer em Machado a figura mais importante da Literatura no Brasil. E um clich diga-se de passagem veiculado e defendido por estudiosos que se tornaram argumentos de autoridade na hora de abordar valorativamente os escritores do nosso pas. No primeiro volume da Presena da 11 Literatura Brasileira, por exemplo, Antonio Candido e Jos Aderaldo Castello afirmam que Machado representa
o exemplo mais perfeito que temos de equilbrio entre o homem e o escritor, preenchendo uma vida harmoniosa e fecunda, tanto em termo de relaes humanas quanto de criao literria. Durante mais de cinqenta anos, desde os seus primeiros sucessos (...), entregou-se serenamente aos estudos e atividade de escritor, pautada por uma evoluo segura. Resultou da uma obra definida por uma linha ascendente uniforme, em consonncia com a conduta, com o prestgio, o respeito e a admirao de que se fez merecedor (1996, p. 299).
Candido, em seu famoso ensaio Esquema de Machado de Assis 1 , endossa as palavras da Presena da Literatura Brasileira:
Se analisarmos a sua carreira intelectual, verificaremos que foi admirado e apoiado desde cedo, e que aos cinqenta anos era considerado o maior escritor do pas, objeto de uma reverncia e uma admirao gerais, que nenhum outro romancista ou poeta brasileiro conheceu em vida, antes e depois dele (1995, p. 18).
Os primeiros historiadores da Literatura Brasileira, com efeito, apresentavam posies crticas semelhantes s de Candido. Jos Verssimo, em sua Histria da Literatura Brasileira, de 1916, dizia na abertura do seu captulo sobre o amigo Machado de Assis:
Chegamos agora ao escritor que a mais alta expresso do nosso gnio literrio, a mais eminente figura da nossa literatura, Joaquim Maria Machado de Assis (1916, p. 415).
Ronald de Carvalho, trs anos aps Verssimo, publica sua Pequena Histria da Literatura Brasileira. Sobre Machado, ele diz:
1 Nesse ensaio, Candido lembra que Slvio Romero foi um dos poucos que no entrou nesse coro de elogios a Machado: Apenas Slvio Romero emitiu uma nota dissonante, no compreendendo nem querendo compreender a sua obra, que escapava orientao esquemtica e maciamente naturalista do seu esprito (Candido, 1995, p. 18). 12 Machado , sem contestao, sob variados aspectos, o mais significativo dos escritores da lngua portuguesa e, especialmente entre ns, ficar como exemplo de discrio, graa de estilo e finura de percepo (1937, p. 317).
Mais recentemente, Alfredo Bosi, em sua Histria concisa da Literatura Brasileira, embora de uma maneira mais contida, taxativo na hora de definir Machado:
O ponto mais alto e mais equilibrado da prosa realista brasileira acha-se na fico de Machado de Assis (1994, p. 193).
So inmeras as histrias da literatura que ajudariam a comprovar a tese de que Machado de Assis a figura mais importante da Literatura Brasileira de todos os tempos 2 . At mesmo fora do Brasil, como mostram os trabalhos de Helen Caldwell ou John Gledson, aceita-se essa tese. O clebre crtico Harold Bloom vai mais longe e, em seu livro Gnio: os 100 autores mais criativos da Histria da Literatura, classifica Machado como o maior literato negro surgido at o presente e, depois, conclui:
Machado de Assis uma espcie de milagre, mais uma demonstrao de autonomia do gnio literrio, quanto a fatores como tempo e lugar, poltica e religio, e todo o tipo de contextualizao que supostamente produz a determinao dos talentos humanos (2003, p. 687-688).
Essa idia de Bloom provavelmente a mesma que levou Roberto Schwarz a nomear um dos seus livros sobre Machado com o ttulo de Um mestre na periferia do capitalismo. Poderamos fazer um inventrio de todos os elogios recebidos por Machado ao longo dos anos. E no foram poucos. Mas no exatamente isso que nos interessa. Nossa inteno inicialmente mostrar que essa popularidade e essa credibilidade do bruxo do Cosme Velho, para ficar com a belssima expresso de Drummond, devem-se, entre outros fatores, competncia de manipular as mais variadas estratgias de enunciao. Machado um mestre do discurso e, por isso, um desafio para o analista,
2 Ivan Teixeira, no incio de Apresentao de Machado de Assis, vai mais longe e escreve: Machado de Assis o escritor mais importante da literatura brasileira e talvez o esprito mais lcido de toda a nossa cultura (1987, p. 1). 13 j que no tarefa fcil explicar os mecanismos enunciativos convocados para produzir os efeitos estticos que os leitores conhecem to bem. De todas as suas obras, aquela que parece congregar o maior nmero de problemas de enunciao so as Memrias pstumas de Brs Cubas. Trata-se de um romance revolucionrio, que funcionou como um verdadeiro divisor de guas na carreira machadiana. Bosi, por exemplo, fala de um salto qualitativo representado pelo romance (1994, p. 198). Com efeito, as Memrias pstumas, pela ironia, pelo narrador morto, pelos jogos verbais e grficos, pelas digresses, pelas conversas ora cidas ora amigveis com o leitor, talvez constituam a experincia esttica mais radical da obra machadiana. Em nenhum outro texto romance, conto, crnica, teatro ou poesia , Machado procurou ser to inovador. A escolha da obra romanesca de Machado com destaque especial s Memrias pstumas para formar nosso corpus de anlise deve-se a dois fatores: em primeiro lugar e seria ingenuidade escond-lo , ao gosto pessoal do pesquisador (, sem dvida, mais conveniente escrever sobre textos que se admiram e de que se gosta); o segundo a crena discutvel, mas no de todo indefensvel de que uma anlise tanto mais rentvel quanto mais sofisticada a criao esttica. Mesmo lembrando que Greimas analisou semioticamente uma receita de sopa (at mesmo para mostrar, de maneira peremptria, a validade de seu modelo terico), sabe-se que isso mais a exceo do que a regra. mais proveitoso para o analista trabalhar com Guimares Rosa do que com Humberto de Campos. E no temos a um problema de julgamento artstico e sim uma questo objetiva: objetos estticos que condensam sutilezas enunciativas costumam render mais para a anlise do que outros que no as condensam. No seria novidade afirmar que a obra de Machado apresenta essas sutilezas. De toda a vasta obra do polgrafo Joaquim Maria Machado de Assis, foram seus textos em prosa principalmente contos e romances que sempre mereceram maior ateno da crtica e dos leitores. Essa ateno no foi gratuita: muito provavelmente, nesses dois gneros que encontramos os pilares do que se convencionou de estilo machadiano. Mas importante destacar que, embora algumas narrativas, como O alienista, Missa do galo, A cartomante, A causa secreta, O segredo do Bonzo, entre tantas outras, sejam consideradas exemplares, o conto, pelas limitaes impostas pelo tamanho, no pode ser tomado como o melhor tipo de manifestao de certos procedimentos de enunciao na obra de Machado, j que muitos desses expedientes s 14 podem revelar-se em meio complexidade dos romances. Sobretudo por isso, a pesquisa tratar especificamente dos romances machadianos. Ao todo Machado escreveu nove romances: Ressurreio (1872), A mo e a luva (1874), Helena (1876), Iai Garcia (1878), Memrias pstumas de Brs Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esa e Jac (1904) e Memorial de Aires (1908). O centro de nossa anlise ser como dissemos Memrias pstumas de Brs Cubas, romance que oferece um nmero enorme de problemas de enunciao e que tomaremos como uma espcie de smula da obra machadiana. Em nenhum outro romance, houva tanta ousadia discursiva, tanta inovao narrativa, tanto experimentalismo. Por isso, a pesquisa sob o argumento de diminuir a extenso do corpus de anlise e, com isso, permitir uma leitura mais aprofundada de um romance (em lugar de promover uma interpetao perifrica de nove narrativas) concentrar-se- nas Memrias pstumas. Mas, alm disso, os outros oito romances tambm sero mencionados, sobretudo como comprovao de certas generalizaes sugeridas a partir das observaes de questes enunciativas nas Memrias pstumas.
2. Lingstica e Literatura: uma tentativa de conciliao
(...) um lingista surdo funo potica da linguagem e um especialista da literatura indiferente aos problemas lingsticos e ignorante dos mtodos lingsticos so, um e outro, flagrantes anacronismos. (Roman Jakobson, Lingstica e comunicao)
Partindo dos conceitos desenvolvidos pela Semitica de linha francesa e, eventualmente, aproveitando noes de outras teorias do discurso, o grande objetivo deste trabalho ser o de levantar e estudar alguns problemas enunciativos suscitados pela anlise dos romances machadianos, principalmente aqueles que remetem s relaes entre enunciao e enunciado, enunciador e narrador, enunciatrio e narratrio, foco narrativo, thos e estilo. Antes de tudo, vale a pena observar que iniciar uma pesquisa que associe os estudos lingsticos s anlises literrias durante muito tempo representou um risco, 15 afinal, como notou Maingueneau, as relaes entre a Lingstica e a Teoria Literria sempre estiveram separadas por um fosso (1996, p. 1-3). Isso, de certo modo, explica por que tantos literatos sempre se afastaram do rigor da nomenclatura lingstica, que lhes parecia aprisionar o sentido dos textos, como se eles fossem um cadver que estivesse sendo dissecado, e por que, ao mesmo tempo, alguns lingistas evitaram a anlise dos textos literrios, com medo de entrar em um territrio que no lhes pertencia, como se a anlise literria fosse incompatvel com a metalinguagem lingstica. Sem querer entrar, a priori, em polmicas desse tipo, este trabalho pretende analisar os romances de Machado de Assis a partir de uma perspectiva lingstica. Desse modo, procuraremos mostrar que a problemtica da enunciao desenvolvida, com base em Benveniste, pelos estudos semiticos til e, mais do que isso, adequada para abordar o texto literrio, ao mesmo tempo em que procuraremos atestar que o texto literrio no estar sendo aprisionado ou reduzido se for analisado de acordo com a teoria semitica. Para comprovar que essa tarefa perfeitamente possvel, basta retomar as prprias palavras de Jakobson na epgrafe deste item. Nos anos 70, quando Greimas organizou a publicao de Ensaios de semitica potica, j havia uma preocupao em estudar, com os instrumentos de Semitica, o texto literrio. O interesse especfico pela poesia explicava-se pelo fato de que o discurso literrio, por ser
interpretado como uma conotao sociocultural, varivel segundo o tempo e o espao humanos (Greimas, 1975, p. 11),
no poderia ser tomado como autnomo, o que dificultaria pensar em uma teoria geral da literatura (Greimas, 1975, p. 11). Dessa maneira, o interesse especfico pelo fato potico suscitado por Jakobson (1991) era uma maneira de fugir s limitaes da pesquisa semitica nos anos 70:
Impossibilitada de buscar apoio numa teoria geral dos discursos, a semitica potica se v assim compelida a ir forjando pelo caminho seus prprios conceitos operacionais (Greimas, 1975, p. 14).
16 Essa ausncia de uma teoria geral dos discursos poderia no comprometer o trabalho com o texto literrio se, de fato, houvesse uma teoria consagrada da literatura. Sim, porque nos estudos literrios somos obrigados a reconhecer que muitas vezes
h discusses demais sobre questes no-literrias, debate demais sobre questes gerais cuja relao com a literatura quase no evidente, leitura demais de textos psicanalticos, polticos e filosficos difceis (Culler, 1999, p. 11).
Se tomamos o termo teoria como
um sistema coerente e relativamente simples de hipteses (regras) que, de um modo explcito e adequado, expliquem (as propriedades de) certo objeto de estudo que tenha um objetivo epistemolgico pertinente (Dijk, 1975, p. 210),
nota-se como certas anlises literrias ficam em torno do texto, e no no texto, preferindo discutir as ramificaes da literatura a enfrentar diretamente o texto literrio e, assim, explicitar de acordo com critrios da metodologia cientfica (Dijk, 1975, p. 210) seu funcionamento. A crtica literria digamos sociolgica, que se debruou principalmente sobre a anlise do romance, um dos ramos dos estudos literrios que, embora se tenha desenvolvido bastante, deixava o trabalho com o texto em segundo plano. Goldmann (1976), por exemplo, tratando da personagem romanesca, fala do conflito que se estabelece entre o heri e o mundo, mostrando que rupturas radicais levam tragdia ou poesia lrica, enquanto a ausncia de ruptura origina o conto ou a epopia.
Situado entre esses dois plos, o romance possui uma natureza dialtica na medida em que, precisamente, participa, por um lado, da comunidade fundamental do heri e do mundo que toda forma de pica supe, e, por outra parte, de sua ruptura insupervel; a comunidade do heri e do mundo resulta, pois, do fato de ambos estarem degradados em relao aos valores autnticos, e a sua oposio decorre da diferena de natureza dessas degradaes (Goldmann, 1976, p. 9).
17 Essas idias, baseadas em Lukcs, colocam o romance como um sistema de significao profundamente dialtico, capaz de representar artisticamente as contradies do mundo contemporneo.
Toda forma artstica definida pela dissonncia metafsica da vida que ela afirma e configura como fundamento de uma totalidade perfeita em si mesma; o carter de estado de nimo do mundo assim resultante, a atmosfera envolvendo homens e acontecimentos determinada pelo perigo que, ameaando a forma, brota da dissonncia no absolutamente resolvida. A dissonncia da forma romanesca, a recusa da imanncia do sentido em penetrar na vida emprica, levanta um problema de forma cujo carter formal muito mais dissimulado do que o das outras formas artsticas e que, por ser na aparncia questo de contedo, exige uma colaborao talvez ainda mais explcita e decisiva entre foras ticas e estticas do que no caso de problemas formais evidentemente puros (Lukcs, 2003, p. 71).
A dissonncia metafsica da vida exige do romancista um constante aperfeioamento do seu aparato formal, que deve ser capaz de penetrar na vida emprica, isto , na Histria. Da a ligao inevitvel entre a crtica sociolgica e o marxismo, que
hoje , com efeito, a referncia constante e obrigatria [da crtica sociolgica] (...). Sociocrtica designar, pois, a leitura do histrico, do social, do ideolgico, do cultural, nessa configurao estranha que o texto: ele no existiria sem a realidade, e a realidade, em ltima instncia, teria existido sem ele (...) (Barbris, 1997, p. 146).
Essa valorizao da vida emprica, da realidade, do histrico, do social, do ideolgico, do cultural faz com que o romance seja compreendido menos como uma construo de sentido do que como um retrato esttico de um momento da vida burguesa. Assim, mais uma vez, embora haja uma base terica nos trabalhos da crtica sociolgica, no se pode falar em uma teoria do texto literrio. No sem razo que Bakhtin discorda das premissas de Lukcs e seus seguidores. Para o russo, o romance foi durante algum tempo vtima de anlises abstratamente ideolgicas e de consideraes superficiais sem sentido algum 18 (Bakhtin, 2002, p. 72). Por isso, no seria possvel consider-lo como expresso do materialismo dialtico ou histrico, como queriam os sociocrticos. O romance seria, para ele, um fenmeno pluriestilstico, plurilnge e plurivocal (p. 73). Sempre interessado em desvendar o funcionamento da linguagem literria, Bakhtin considera que o romance no uma criao moderna, mas uma das formas histricas da expresso do gnero, que nega os limites que se lhe impem e procura incorporar vozes que estavam fora do sistema (Fiorin, 2006b, p. 117).
O romance pressupe uma descentralizao semntico-verbal do mundo ideolgico, uma certa disperso da conscincia literria que perdeu o meio lingstico indiscutvel e nico do pensamento ideolgico, que se encontrava entre as lnguas sociais nos limites de uma nica linguagem (...) (Bakhtin, 2002, p. 164).
certo que Bakhtin caminhou em direo construo de uma teoria da literatura, mas no existe em sua obra um momento em que se encontram todos os conceitos acabados e definidos (Fiorin, 2006b, p. 5). De qualquer modo, ele um dos pesquisadores do sculo XX que procuraram desenvolver, de alguma maneira, uma teoria do texto literrio. Outros trabalhos que costumam ser empregados nas anlises de romances tambm no chegam a formalizar com o rigor que se espera uma teoria acabada e definida. No incio de Aspectos do romance, por exemplo, Forster trata do texto literrio empregando a linguagem figurada:
(...) o romance uma massa formidvel e to amorfa que no possui sequer uma montanha a ser escalada, nem Parnaso ou Hlicon, nem mesmo um Pisga. Especificando: uma das reas mais midas da literatura irrigada por uma centena de riachos, degenerando-se ocasionalmente num pntano (1999, p. 9).
Essa passagem reafirma a complexidade que envolve a anlise de um romance, mas est longe de adotar uma postura metodolgica consistente. Outro exemplo desse fenmeno est no ABC da literatura de Pound, em que a definio de literatura como linguagem carregada de significado (2001, p. 32) no ajuda a mostrar como se produz esse significado. Ao dividir os escritores em seis grupos 19 (inventores, mestres, diluidores, bons escritores sem qualidades salientes, beletristas e lanadores de modas [p. 42]), Pound acaba contribuindo mais para o julgamento crtico do que para a anlise textual, numa postura que muito comum nos estudos literrios. No nossa inteno condenar os trabalhos de Lukcs, Forster ou Pound. Eles tm inestimvel valor. O problema que eles no chegam a estabelecer uma teoria da literatura que parta do texto e tente desvendar como se produz o sentido no universo literrio. Ora, exatamente por isso pela produo do sentido que a Semitica se interessa. Se, nos anos 70, a inexistncia de uma teoria geral dos discursos (Greimas, 1975, p. 14) praticamente impedia uma anlise semitica da literatura, atualmente j temos um aparato terico capaz de dar conta de muitos aspectos da complexidade do texto literrio. Dessa forma, a anlise semitica do texto literrio no pretende rivalizar com os estudos literrios. Nossa inteno apenas mostrar que no deveria haver aquele fosso de que falava Maingueneau e que a Lingstica pode, sim, ajudar a desvendar alguns dos mistrios da literatura. A obra Mtodos crticos para a anlise literria (Bergez et alii, 1997) mostra como o texto literrio tem sido abordado de diferentes formas e como elas no so excludentes. H cinco captulos: um para a crtica gentica, um para a crtica psicanaltica, um para a crtica temtica, um para a sociocrtica e um para a crtica textual. Neste ltimo, Valency faz uma compilao de idias de Greimas, Benveniste, Bakhtin, Ducrot, Barthes, Todorov, Maingueneau e Genette, entre outros, para mostrar como desde a anlise estrutural das narrativas at as problemticas da enunciao a pesquisa lingstica foi oferecendo cada vez mais subsdios para decifrar o texto literrio, explicitando-lhe o funcionamento. Valency, em seu trabalho, desenvolve uma idia de Genette, para quem a
crtica talvez no tenha nada a fazer, no possa fazer nada, enquanto ela no tenha decidido com tudo o que essa deciso implica considerar toda obra ou toda parte de obra literria como um texto, quer dizer como um tecido de figuras onde o tempo (ou, como se diz, a vida) do escritor que escreve e o do leitor que l se juntam e se misturam em meio s contradies da pgina e do volume (1969, p. 17).
20 Essa preocupao com o texto confirma a impresso, presente em Culler, de que h discusses demais sobre questes no-literrias nas anlises literrias. A proposta de Genette corrobora o ponto de vista semitico de que toda anlise deve partir do texto, e no de qualquer tipo de elemento exterior ao enunciado. Bertrand explica com propriedade esse ponto de vista:
Nosso mtodo consiste pois, inicialmente, em nos atermos ao texto propriamente dito, em reconhecer sua autonomia relativa de objeto significante Ele considera o texto como um todo de significao que produz em si mesmo, ao menos parcialmente, as condies contextuais de sua leitura. Uma das propriedades sempre reconhecidas no texto dito literrio que (...) ele incorpora seu contexto e contm em si mesmo o seu cdigo semntico: ele integra assim, atualizado por seu leitor e independente das intenes de seu autor, as condies suficientes para sua legibilidade (2003, p. 23).
Haveria ento, para Bertrand, quatro dimenses (a narrativa, a passional, a figurativa e a enunciativa) que se articulam de maneira especfica no texto literrio (2003, p. 27). Nesta tese, haver uma preocupao maior e no poderia ser diferente, de acordo com nossos objetivos com a dimenso enunciativa dos textos literrios. Quem sabe assim, contribumos para diminuir o fosso a que Maingueneau se referia...
3. Objetivos e mtodos: o mapa do percurso
Antes de iniciar este livro, imaginei constru-lo pela diviso do trabalho. (Graciliano Ramos, So Bernardo)
certo que, ao abordar lingisticamente a obra literria, encontramos algumas dificuldades. Talvez a maior delas resida no fato de que alguns textos literrios apresentam procedimentos discursivos que no so fceis de ser explicados. justamente por esses mecanismos discursivos complexos que este trabalho ir se interessar. 21 Um desses procedimentos que discutiremos a ironia, conceito que muitas vezes, na crtica machadiana, empregado de modo mais amplo do que sua prpria definio sustenta. Essa discusso sobre a ironia, por exemplo, suscitar outros problemas, mais complexos, e ser o ponto de partida para delimitar qual o raio de atuao do narrador e do enunciador nos romances machadianos, at porque, algumas vezes, por metalepses, quem parece falar no texto machadiano o enunciador, e no o narrador. Proporemos ento uma reclassificao de narradores e enunciadores que, levando em conta os inmeros trabalhos que j se debruaram sobre o problema do foco narrativo, possa servir para nossa pretenso compreender melhor essas instncias actanciais enunciativas e, assim, permitir que os estudos lingsticos contribuam, de fato, para decifrar alguns dos enigmas enunciativos propostos por Machado de Assis. O caso da ironia e o problema da delegao de voz so apenas dois dos problemas de enunciao sugeridos pelos romances machadianos. Nossa inteno levantar e estudar mais alguns deles. Nosso trabalho tambm poder funcionar como uma gramtica discursiva das Memrias pstumas, mostrando que essa narrativa possui traos inovadores na Literatura Brasileira no s de natureza histrica ou conteudstica, mas tambm de natureza lingstica. Um exemplo disso seria o romance, ao mesmo tempo, teorizar e exemplificar suas estratgias enunciativas, pois o narrador-enunciador no se priva de comentar os meios pelos quais est sendo construdo o discurso nas passagens metalingsticas na obra. Outro elemento complicador est no fato de Memrias pstumas funcionar como o simulacro de uma autobiografia. Desde a dedicatria aos vermes decompositores e a advertncia do romance, supostamente compostas por Brs Cubas, como se o autor da obra fosse, de fato, algum que no Machado de Assis. evidente que se trata de um jogo de cena, por meio da qual o sujeito da enunciao apresenta Brs Cubas no apenas como narrador da obra, mas tambm como seu enunciador. Se realmente tomssemos Brs Cubas como enunciador da obra (e h indcios que poderiam justificar essa idia), Memrias pstumas acabaria cometendo uma incoerncia, j que Brs demonstra durante toda a narrativa uma erudio (por meio de citaes de escritores e filsofos renomados da tradio ocidental) incompatvel com seu carter volvel e seus conhecimentos superficiais. Essa presumvel incoerncia j foi apontada por vrios estudiosos em relao, por exemplo, a So Bernardo, romance de Graciliano Ramos em que o protagonista Paulo Honrio, embora se reconhea um bruto, vale-se de registros lingsticos que parecem no se coadunar com a idia de 22 brutalidade. Na verdade, como veremos, bastante discutvel se, nas obras em que o narrador assume tambm a posio de ator do enunciado, sua linguagem (tanto no nvel da variedade empregada quanto no das referncias interdiscursivas e intertextuais) deve ser adequada a seu suposto padro cultural. Todas essas questes, que sero discutidas ao longo dos trs prximos captulos, e muitas outras de que tambm trataremos foram levantadas a partir de uma leitura sistemtica da obra machadiana, com ateno especial s Memrias pstumas, para que fosse possvel apreender os problemas enunciativos mais recorrentes em seus textos, dando ateno, principalmente, queles que no esto plenamente solucionados pelos estudos lingsticos ou literrios. Um objetivo especfico desta tese discutir as questes ligadas ao conceito de estilo, mostrando como se constri o ator da enunciao em Machado de Assis. consenso terico que a semantizao do enunciador s se d a partir de uma totalidade de discursos. Mas como acreditamos que as Memrias pstumas de Brs Cubas possam funcionar como uma espcie de smula da obra machadiana, h a hiptese de que apenas esse romance possa oferecer indcios suficientes para identificar o thos machadiano. Dessa forma, a anlise da complexidade discursiva das Memrias pstumas nos levaria ao enunciador. Uma rpida sntese do que trataremos em cada um dos trs captulos desta tese ajudar a precisar nossos objetivos e nossa metodologia de trabalho.
Captulo 1
Esse captulo tem como objetivo apresentar os pressupostos tericos da pesquisa. O primeiro item ser dedicado ao problema dos nveis enunciativos e abordar as relaes entre enunciador e enunciatrio, entre narrador e narratrio e, quando necessrio, entre interlocutor e interlocutrio, o que implicar diferenciar continuamente actantes do enunciado e actantes da enunciao. Desses trs nveis enunciativos, o primeiro por ser pressuposto ser analisado mais detidamente, principalmente no que diz respeito ao estatuto do enunciador, que ser visto como resultado de coeres histricas. Na anlise dos nveis enunciativos, aproveitaremos tambm a noo genettiana de diegese. Em relao ao segundo nvel, comearemos uma discusso a respeito do narrador e de suas funes discursivas. No se pode imaginar que a nica funo do 23 narrador falar, pois sempre h um ponto de vista a partir do qual se fala. Assim, alm de discutir quem fala nos textos, necessrio tocar no problema de quem observa e de quem age na narrativa, ou seja, delimitar como se relacionam observadores, atores do enunciado e atores da enunciao. Dessa maneira, podemos concluir quais so os efeitos de sentido produzidos pelas mltiplas configuraes discursivas. O segundo item far, inicialmente, um inventrio de algumas abordagens do conceito de enunciao. Em seguida, retomaremos o problema dos nveis enunciativos, para tratar de suas respectivas enunciaes, apontando questes de sintaxe discursiva e, principalmente, de semntica discursiva. A noo de ironia ser ento utilizada para mostrar a importncia terica de diferenciarmos as enunciaes de 1, 2 e 3 grau. O terceiro item retoma os trs quem do primeiro item por meio de uma discusso sobre foco narrativo, dando exemplos de como as posies de narrador, observador e ator do enunciado podem articular-se. Partindo da conhecida sistematizao de Friedman e aproveitando as noes de oniscincia (em Barros) e focalizao (em Genette e Fiorin), procuraremos fazer uma taxinomia dos tipos de narrador, adotando uma perspectiva semitica. O ltimo item do primeiro captulo interessa-se pelas noes de thos e estilo, j semiotizadas por Discini. Trataremos do efeito de individuao que subjaz a um conjunto de discursos e que delimita o ator da enunciao. Como o segundo e o terceiro captulo da tese concentraro seus exemplos na obra machadiana, optamos para evitar as repeties e mostrar o alcance das teorias aqui apresentadas por extrair os exemplos do primeiro captulo de outras obras clebres da literatura universal, fundamentalmente do sculo XX.
Captulo 2
O segundo captulo consistir na anlise, com base nos pressupostos do captulo anterior, de muitos dos elementos inovadores do ponto de vista discursivo presentes em Memrias pstumas de Brs Cubas. O primeiro item define o romance como subversivo. Isso ocorre, como se ver ao longo de todo o captulo, devido s complexas relaes que se estabelecem entre enunciao e enunciado, entre enunciador e narrador, entre enunciatrio e narratrio, que tornam sutis e requintadas as semelhanas e diferenas entre o primeiro e o segundo nvel enunciativo. 24 O segundo item apresenta o romance como simulacro de uma autobiografia, destacando a vinculao de Machado literatura carnavalizada, stira menipia, tradio lucinica. No terceiro item, retomando a questo dos nveis enunciativos, falaremos sobre as distines entre a narrativa e os comentrios narrativa, entre a fbula e trama, mostrando como enunciao e enunciado se articulam nas Memrias pstumas. Alm disso, trataremos do problema das digresses machadianas. De alguma maneira, todos os elementos desse item confirmam a dimenso metaenunciativa do romance, o que exemplificaremos ampliando o conceito de modalidade autonmica. O quarto item volta a falar da ironia e dos nveis enunciativos, distinguindo as ironias produzidas pelo narrador das que o atingem. Eis um dos momentos da tese em que possvel notar uma forte dissenso semntica entre enunciao e enunciado. O quinto item traz a discusso para a posio do destinatrio, analisando o papel do narratrio na obra e dos pseudonarratrios instalados por meio de insistentes apstrofes. Falaremos da ligao de Machado com os gneros folhetinescos, da funo de direo, das marcas de oralidade no enunciado e, principalmente, do carter dialgico presente nas Memrias pstumas. No sexto item, aproveitando a proposta terica de Fiorin sobre os contratos enunciativos e incorporando as definies clssicas de Realismo e Romantismo, mostraremos como o romance nega as interpretaes objetivantes e subjetivantes da realidade, ao mesmo tempo em que satiriza os exageros romnticos. O stimo item dedicado s manifestaes de erudio de Brs por meio das excessivas referncias histricas, literrias, mitolgicas e filosficas, que pertencem instncia da enunciao de 1 grau, e no de 2. Abordaremos ainda algumas questes associadas ao foco narrativo, s citaes truncadas e ao discurso indireto livre. O oitavo item aborda as formulaes tericas de Brs e seu carter pseudocientfico. A idia , recuperando o conceito de modalidade autonmica, mostrar que essas formulaes servem ora para figurativizar o prprio estilo enunciativo, ora para justificar aes dos atores; da que elas sejam decisivas para mapear a enunciao do texto. No nono item, Brs apresentado, semelhana dos demais membros de nossas elites imperiais, como um sujeito cujo comportamento marcado pela volubilidade, pela vaidade, pela superficialidade e pela indiferena. Aqui, ficar clara a vinculao do 25 romance tradio menipia, uma vez que a postura narrativa de Brs caracterizada pela inconclusividade e pelo inacabamento. O dcimo item retoma a filosofia humanitista, j mencionada no item sobre ironia, para tom-la como uma tentativa de legitimao da busca desenfreada pelo prazer, o que, por um lado, funciona como stira aos cientificismos naturalistas e, por outro, refora o carter interesseiro e egosta de Brs. Aps essa longa anlise do mais conhecido romance machadiano, o ltimo item deste segundo captulo pretende levantar as caractersticas do ator da enunciao a partir das Memrias pstumas. claro que, no caso de Machado de Assis, assim como na obra de qualquer outro literato, para delimitar seu estilo e precisar as caractersticas de seu enunciador, necessrio recorrer a outros textos, sem os quais no se tem uma totalidade de discursos. Ocorre que nossa tese justamente a de que Memrias pstumas parece ser, em sua complexidade, uma espcie de smula da obra machadiana, de modo que, por meio dessa obra, reconstruir-se-ia sinedoquicamente o ator da enunciao Machado de Assis. Dessa forma, procuraremos delimitar o estilo machadiano a partir de um nico romance. Nesse item, desenvolveremos uma hiptese de thos do enunciador, partindo dos trs elementos carter, voz e corpo que o definem, de acordo com Maingueneau. Um elemento que ser central para essa hiptese o cinismo do enunciador, que se combina com a indiferena do narrador e a ambio desmedida dos demais atores do enunciado.
Captulo 3
No adiantaria sugerir um thos a partir das Memrias pstumas se no pudssemos comprov-lo em outros textos que constituem a totalidade discursiva produzida por Machado. Dessa maneira, no terceiro captulo da tese, nosso objetivo ser o de mostrar que o enunciador machadiano, depreendido da anlise das Memrias pstumas, est presente nos seus outros oito romances. Haver trs itens nesse captulo: um para o carter, um para a voz e um para o corpo. Cada uma das caractersticas apontadas no ltimo item do segundo captulo ser retomada e, com exemplos extrados dos demais romances de Machado de Assis, confirmada por uma totalidade de discursos. Assim, poderemos, de fato, concluir que Memrias pstumas de Brs Cubas consiste numa smula da obra machadiana. 26
Base terica
A base terica da pesquisa ser como j apontamos a Semitica, com eventuais incurses em outras teorias do discurso: tomaremos como referncia bibliogrfica as obras de Algirdas Julien Greimas, que estabeleceram os primeiros paradigmas semiticos, bem como as de Joseph Courts, Jacques Fontanille e Claude Zilberberg. A pesquisa tambm recorrer aos estudos discursivos de Jos Luiz Fiorin, Norma Discini de Campos, Diana Luz Pessoa de Barros, Dominique Maingueneau, Grard Genette, Denis Bertrand, Jacqueline Authier-Revuz, Catherine Kerbrat- Orecchioni e Luiz Tatit, s teorias da enunciao propostas por Emile Benveniste e Roman Jakobson, s obras polifnicas de Mikhail Bakhtin, Umberto Eco e Roland Barthes. Alm disso, procuraremos, dentro do possvel, aproveitar sugestes de trabalhos da Teoria Literria, principalmente daqueles que, ao analisar as obras de Machado, j abordaram ainda que de uma maneira no sistemtica problemas de enunciao em Machado, como ocorre em obras de Antonio Candido, Alfredo Bosi, Roberto Schwarz, John Gledson, Harold Bloom, Jos Aderaldo Castello, Ivan Teixeira e Massaud Moiss. Considerando que nossa perspectiva de anlise textual, durante toda a tese procuraremos justificar nossas observaes tericas com exemplos, com citaes extradas das obras analisadas 3 . O que poderia ser uma falha do trabalho o excesso de citaes literrias , na verdade, fidelidade ao modelo, afinal, como sugeriu Greimas, EXTRA TEXTVM NVLLA SALVS.
3 No caso de Machado, usamos as edies da Editora Garnier. Quando houve dvidas no estabelecimento do texto, cotejamo-las com a edio da Nova Aguilar. 27
Captulo 1: Problemas gerais de enunciao 28 1. Uma questo de nveis: alguns fundamentos tericos
(...) uma teoria semitica geral est destinada a topar limites ou umbrais. Alguns desses limites sero estabelecidos por uma espcie de acordo transitrio, outros sero determinados pelo prprio objeto da disciplina. (Umberto Eco, Tratado Geral de Semitica)
No Curso de lingstica geral, Saussure dizia que uma das constantes tarefas da Lingstica seria a de delimitar-se e definir-se a si prpria (1993, p. 13). Isso porque o fazer cientfico, de fato, coloca-nos repetidamente diante do problema dos limites, das fronteiras, dos contornos, dos permetros, dos umbrais de qualquer teoria. por isso que o alcance de uma disciplina relativo, varivel, e seus objetos de estudo podem alterar-se ao longo do tempo. Com a Semitica no diferente. Embora, desde o final dos anos 60, desde Semntica estrutural, haja nesse ramo dos trabalhos lingsticos o princpio norteador de que a Semitica se interessa pela produo do significado, tomando o sentido como algo que pode ser apreendido por um mtodo, e no pela mera intuio, os semioticistas esto constantemente desenvolvendo as noes tericas greimasianas, aumentado-lhes o raio de alcance, determinado-lhes novos umbrais, fazendo com que a Semitica se (re)delimite e (re)defina a si prpria continuamente. Esse processo, inerente repita-se ao trabalho cientfico, por um lado, garante o pleno desenvolvimento dos modelos tericos, que se ajustam cada vez mais s necessidades impostas pelos objetos de anlise, mas, por outro, obriga-nos a trabalhar com uma teoria que nunca definitiva, pois parece estar espera de um acabamento, de um aperfeioamento, que nunca vem completamente. Fazer cincia , de certo modo, conviver, com essa contradio insolvel. Pode-se levar essa discusso sobre as contradies da cincia para um dos assuntos mais relevantes desta tese: o problema dos nveis enunciativos. Para comear, tratemos do problema dos nveis na Semitica. O percurso gerativo de sentido prope um mtodo de estudar textos, em que se concebe um caminho que vai das estruturas elementares de significao para suas manifestaes discursivas. Desse modo, a estrutura profunda do texto vai sendo concretizada, particularizada, complexificada: primeiro ela narrativizada e, depois, 29 discursivizada. Ao tomar contato com um texto pronto, portanto, est-se diante de um jogo de significao que pressupe estgios anteriores: os sentidos foram concebidos antes de se projetar sobre o enunciado. Esses trs estgios do percurso (o fundamental, o narrativo e o discursivo), que se convertem nesta progresso
fundamental ! narrativo ! discursivo,
mas so apreendidos nesta outra
discursivo ! narrativo ! fundamental,
so chamados nveis, entendidos como
um plano horizontal que pressupe a existncia de outro plano que lhe paralelo. Trata-se de um semema figurativo abstrato que serve de conceito operatrio em lingstica e que se identifica, em geral, no uso corrente, com outras denominaes vizinhas, tais como plano, patamar, dimenso, instncia, eixo, estrato, camada, etc (Greimas & Courts, 1983, p. 305).
A noo de nvel, bastante presente nos estudos de Benveniste e Hjelmslev, entra na definio da pertinncia semitica (Greimas & Courts, 1983, p. 305), na medida em que, para apreender os sentidos de um texto, necessrio precisar quais os nveis de anlise sero convocados no processo de interpretao. Alm disso, imprescindvel destacar que, na considerao desses nveis, pressupe-se uma hierarquia. Mas faa-se a ressalva de que
qualquer conotao eufrica ou disfrica que a se acrescentar ser de ordem metafsica ou ideolgica e, como tal, no pertinente em semitica (Greimas & Courts, 1983, p. 305).
Por isso, no se pode dizer, por exemplo, que o nvel discursivo, por ser mais complexo e mais concreto do que os nveis fundamental e narrativo, mais importante do que estes. No h, entre os nveis, relaes de importncia, de valor, pois, no 30 percurso gerativo de sentido, eles foram definidos como categorias estruturais do processo de significao, sem nenhuma axiologizao prvia. O estudo do nvel fundamental, nos ltimos anos, concentrou-se cada vez mais em determinar de onde provm o sentido, desde a anlise das precondies tensivo- fricas para seu estabelecimento at as primeiras projees de valores sobre os elementos constituintes dos quadrados semiticos. O estudo do nvel narrativo merecedor nos anos 80 de grande ateno dos pesquisadores, que foram capazes de sistematizar praticamente toda a sintaxe narrativa tem recebido atualmente maior ateno em sua dimenso semntica, com o desenvolvimento das pesquisas sobre as paixes. Sem dvida, o nvel discursivo aquele que ainda oferece mais problemas aos semioticistas, pois ainda h uma srie de questes a ser estudadas com mais cuidado. o caso dos nveis enunciativos. Uma das grandes dificuldades da Semitica atual abordar mais eficientemente certos problemas discursivos. Pensando inicialmente na sintaxe discursiva, essa questo dos nveis est associada sobretudo categoria de pessoa, que essencial para que a linguagem se torne discurso (Fiorin, 1999, p. 41 e 68-69), e, mais especificamente, a um problema de delegao de voz (Barros, 1988, p. 84).
A actorializao um dos componentes da discursivizao e constitui-se por operaes combinadas que se do tanto no componente sintxico quanto no semntico do discurso. Os mecanismos da sintaxe discursiva, debreagem e embreagem, instalam no enunciado a pessoa. Tematizada e figurativizada, esta converte-se em ator do discurso (Fiorin, 1999, p. 59).
Assim, a instalao dos atores (individuais, coletivos, figurativos ou no figurativos [Greimas & Courts, 1983, p. 34]) no enunciado, por mecanismos de debreagem ou de embreagem, comea a explicitar as vozes que aparecero no texto. Analise-se, por exemplo, o papel do narrador. Definido como o destinador do discurso, explicitamente instalado no enunciado (Greimas & Courts, 1983, p. 294), o narrador recebe a competncia de /poder conduzir/ o discurso de diferentes modos (Barros, 1988, p. 85). Ora, se o narrador semioticamente o condutor do discurso e se essa conduo pode ser feita de diferentes modos o que apenas confirma as mltiplas 31 possibilidades de actorializao discursiva , isso reitera a importncia da noo de foco narrativo 4 , que
, sem dvida, um problema de delegao de voz. Considera-se a delegao de voz como resultante da operao de debreagem ou embreagem ou de projeo da instncia da enunciao no discurso. Em termos de sintaxe, pode- se afirmar que o sujeito da enunciao, para construir seu objeto, instala um ou mais sujeitos delegados, aos quais atribui o /dever-fazer/, que os instaura como sujeitos, e o /poder-fazer/ ou poder falar por ele, que os qualifica, que os dota de voz (Barros, 1988, p. 84).
O narrador , portanto, um sujeito delegado, qualificado como tal por uma instncia superior, que lhe d voz, que lhe atribui o /poder conduzir/ o discurso. Essa instncia, que remete estrutura da enunciao, considerada como quadro implcito e logicamente pressuposta pela existncia do enunciado (Greimas & Courts, 1983, p. 150), inclui a figura do enunciador, cujo simulacro discursivo o narrador (Barros, 1988, p. 75). O processo de delegao de voz constri-se na enunciao, instncia a partir da qual se projeta no enunciado aquele que vai falar. H, pois, dois papis claros: o do narrador, que est enunciado, e o do enunciador, que enuncia. Dentro do prprio discurso, possvel ainda que o narrador delegue voz a outros actantes, subordinados a ele, num processo similar ao que lhe permitiu ser dotado de voz. Por essa debreagem de 2 grau, instalam-se no texto os interlocutores, entendidos como os actantes que, no papel de destinadores de um discurso, reproduzem, sob a forma de um simulacro, no interior do discurso principal, a estrutura da comunicao (Greimas & Courts, 1983, p. 239). Existem, pois, trs nveis enunciativos. Em cada um deles, h uma relao subjetal, envolvendo destinador e destinatrio. O nvel do enunciador implcito, enquanto os demais se manifestam no enunciado. Assim, apenas o narrador e o interlocutor tm voz nos textos; o enunciador somente delega voz ao narrador. Esquematicamente, temos:
4 Trataremos desse problema no terceiro item deste captulo. 32
termo sujeito da enunciao, empregado freqentemente como sinnimo de enunciador, cobre de fato as duas posies actanciais de enunciador e enunciatrio (Greimas & Courts, 1983, p. 150),
possvel analisar a relao entre destinadores e destinatrios em todos esses trs nveis enunciativos. As relaes entre narrador e narratrio e entre interlocutor e interlocutrio so mais simples de ser estudadas, na medida em que so explcitas. J as relaes entre enunciador e enunciatrio geram mais dificuldades justamente porque so pressupostas. Pensando apenas no primeiro nvel enunciativo, j temos um problema terico a ser resolvido. Se o enunciador estabelece uma relao subjetal com o enunciatrio, assumindo o papel de destinador pressuposto do discurso, preciso imaginar qual seu estatuto, ou seja, necessrio delimitar como ele se constitui como tal. O mesmo pode ser feito para o enunciatrio, que est na posio de destinatrio pressuposto do discurso. Barros (1988, p. 136-142) apresenta uma sada para isso ao demonstrar, no estudo narrativo e discursivo da enunciao, que h dois percursos temticos a ser considerados: o da comunicao e o da produo. O primeiro engloba tanto o fazer persuasivo do enunciador quanto o interpretativo do enunciatrio (p. 137); o segundo diz respeito ao momento em que o enunciador e o enunciatrio, sincretizados no sujeito da enunciao, lem-se como sujeitos produtores do discurso-objeto (p. 139). Desse modo, o percurso da comunicao coloca-se como um problema de argumentao, de /fazer crer/, enquanto o da produo toma o discurso como resultado de projees de 33 valores. Isso significa que existem precondies para que o enunciador se discursivize, afinal, mais do que um actante, do que uma posio sintxica, ele se configura semanticamente como um lugar de investimento de valores (p. 139). Embora nesse percurso da produo se opere com apenas o conceito de sujeito da enunciao, o enunciador e o enunciatrio como instncias discursivas diferentes e complementares fazem parte desse percurso, uma vez que a constituio do sujeito da enunciao acaba por determinar o estatuto do enunciador e do enunciatrio. De acordo com as formulaes originais de Barros, no percurso temtico da produo, a casa do destinatrio-sujeito seria ocupada pelo sujeito da enunciao, enquanto a do destinador- manipulador caberia ao produtor e a do destinador-julgador, ao receptor- interpretante. Dessa forma, o sujeito da enunciao seria simultaneamente manipulado e sancionado nesse percurso:
Estruturas Narrativas Destinador- Manipulador Destinatrio- Sujeito Destinador- Julgador Estruturas Discursivas: Tema da Produo
PRODUTOR SUJEITO DA ENUNCIAO RECEPTOR- INTERPRETANTE (Cf. Barros, 1988, p. 140)
Esse esquema acrescenta dois papis temticos anlise enunciativa: o produtor e o receptor-interpretante. Mas no se trata de uma complexificao do problema dos nveis enunciativos; ao contrrio, a sugesto terica de Barros permite que se determine quais so as precondies para que o sujeito da enunciao que funciona como uma espcie de origem dos valores veiculados no enunciado constitua-se semanticamente. o ponto de partida para chegarmos ao estatuto do enunciador. Sobre o destinador-manipulador no percurso temtico da produo, Barros afirma:
O produtor o destinador-manipulador responsvel pela competncia do sujeito da enunciao e origem de seus valores. Deve ser entendido como o destinador scio-histrico (ou psico-scio-histrico). O sujeito da enunciao constri o discurso enquanto delegado do destinador-produtor, o que lhe d autonomia apenas da ordem do fazer, sendo os valores determinados de antemo pelo destinador scio-histrico (1988, p. 140-141). 34
J o destinador-julgador aquele que
julga e sanciona o fazer do sujeito da enunciao, com base no contrato passado entre destinador-produtor e sujeito (p. 141).
Ao reconhecer que o sujeito da enunciao e, por extenso, enunciador e enunciatrio sofre, simultaneamente, manipulao e sano e que esses destinadores so produtos de coeres psico-scio-histricas, tem-se que o discurso se constri no numa torre de marfim, mas sim num universo de confrontos sociais (p. 141). De fato, determinar
os destinadores do sujeito da enunciao corresponde a inserir o texto no contexto de uma ou mais formaes ideolgicas, que lhe atribuem, no final das contas, o sentido (p. 141).
Enunciador e enunciatrio so, portanto, constitudos por essa espcie de destinador psico-scio-histrico do discurso, capaz de manipular e sancionar o /fazer enunciativo/ do sujeito da enunciao. por isso que o objeto-discurso que se engendra pelo /fazer/ do enunciador possui uma autonomia relativa, j que os valores implicados no enunciado so determinados de antemo pelo destinador scio-histrico do discurso (p. 141). Esse destinador psico-scio-histrico influencia o enunciador, como produtor implcito do discurso, e o enunciatrio, como receptor implcito do discurso. O primeiro o responsvel pelas projees dessas formaes ideolgicas no objeto-discurso; o segundo quem avalia sua eficincia discursiva. Desse modo, a relao enunciador- enunciatrio nasce de um jogo entre coeres psico-scio-histricas veiculadas pelo enunciador e a maneira como o enunciatrio as sanciona. De acordo com essa idia, o estatuto do enunciador e do enunciatrio se estruturaria da seguinte maneira:
COERES PSICO-SCIO HISTRICAS 35
SUJEITO DA ENUNCIAO
Enunciador: responsvel por projetar nos enunciados as formaes ideolgicas Enunciatrio: responsvel por sancionar a eficincia discursiva do objeto-discurso
importante insistir na tese de que esse esquema no representa uma complexificao ainda maior da anlise semitica. Ele apenas permite considerar o enunciado produto de certas formaes ideolgicas, e no apenas como projeo de uma instncia pressuposta. Trata-se de uma possibilidade de determinar o estatuto do enunciador e do enunciatrio, mostrando como eles se constituem como sujeitos sociais, o que funcionaria como uma espcie de precondio para a anlise dos nveis enunciativos. Essa proposta terica ajuda a desfazer a impresso de que o modelo semitico inimigo da historicidade. Essa crtica, talvez nascida como uma resposta base essencialmente estruturalista dos primrdios da pesquisa semitica, se algum dia teve fundamentos, perdeu-os completamente quando os estudos enunciativos passaram a considerar que o enunciador, como uma instncia produzida por um tipo de coero psico-scio-histrica, sobretudo algum que se pronuncia no espetculo do mundo, para usar a bela expresso de Ricardo Reis. Bertrand nota que, ao longo dos anos 70, a Semitica afastava-se das discusses sobre a enunciao, porque ela criava problema, na medida em que representava a entrada (...) do universo extralingstico na imanncia to laboriosamente construda do objeto-linguagem. Por isso, os semioticistas desconfiavam de um sujeito da fala soberano, temendo, com isso, o retorno ontologia do sujeito, que caracterizava particularmente os estudos literrios. Assim, se a Semitica, num primeiro momento, em nome do rigor metodolgico, suprimiu a enunciao de sua metalinguagem, 36 atualmente, com as adiantadas pesquisas sobre a enunciao, assistimos sua reintegrao no corpo da teoria (2003, p. 79-80). Hoje em dia, diversos conceitos como a intertextualidade, a interdiscursividade (que incluem as noes de heterogeneidade mostrada e constitutiva), o thos, a argumentao, o pacto fiducirio entre enunciador e enunciatrio, a polifonia, o dialogismo, o estilo, as formaes discursivas, a cenografia, entre tantos outros tm sido desenvolvidos por semioticistas, analistas do discurso e demais lingistas para dar conta de explicar as mltiplas facetas da enunciao. A sugesto de que o sujeito da enunciao se constri a partir de coeres psico-scio-histricas uma contribuio a essa discusso. Claro que existe o risco de que o produtor e o receptor-interpretante sejam tomados como seres do mundo real, que ocupariam os lugares do enunciador e do enunciatrio, mas vale, nesse caso, a ressalva de Barros:
Cabe esclarecer, porm, o modo como se concebe tal estudo [do produtor e do recpetor-interpretante]. No se trata, como alguns poderiam supor, de analisar o ser ontolgico. Pretende-se refazer os caminhos narrativos do destinador- manipulador e do destinador-julgador, assim como os percursos temticos do produtor e do recpetor-interpretante, pelo recurso aos textos que formam o contexto do discurso em questo. Rev-se o problema do contexto em termos de relaes intertextuais (1988, p. 142).
De fato, est-se diante de uma possibilidade de chegar s formaes discursivas ou ao contexto, tomando-os como textos e, portanto, passveis de serem analisados segundo o mtodo semitico. O primeiro nvel enunciativo est organizado a partir da relao entre o enunciador e o enunciatrio. Esses dois papis discursivos, sincretizados no sujeito da enunciao, so produtos de coeres histricas, e s possvel capt-los a partir das marcas textuais que funcionam como projees ideolgicas. Essas coeres pressupem um ponto de vista a partir do qual o destinador psico-scio-histrico do discurso inicia o processo de axiologizao dos contedos semnticos do texto. Esse sujeito coletivo, precondio para o /fazer enunciativo/, pode ser apreendido a partir dos discursos que circulam dentro de um determinado campo, que corresponde ao estado em que 37
um conjunto de formaes discursivas esto em relao de concorrncia em sentido amplo, delimitando-se reciprocamente (Charaudeau & Maingueneau, 2004, p. 91).
Dessa forma, ser preciso tambm aceitar que o enunciador, como produtor implcito do discurso,
pode ser considerado (com mais ou menos pertinncia, conforme o tipo de enunciado de que se trata) como o representante e o porta-voz de um grupo social, de uma instncia ideolgico-institucional (Kerbrat-Orecchioni, 2002, p. 203).
Considerar que a ideologia 5 do enunciador influenciada por um sujeito coletivo que est sempre a montante da produo discursiva pode levar falsa concluso de que, dentro de um mesmo campo discursivo, a enunciao por estar sempre sob a influncia basicamente das mesmas coeres seja exatamente a mesma, acabando com o efeito de individuao que, no final das contas, costuma caracteriz-la. Mas no isso que ocorre. O fato de vrios sujeitos da enunciao serem construdos a partir de uma determinada formao ideolgica no significa que os enunciados produzidos por eles sejam idnticos do ponto de vista da viso de mundo. O sujeito da enunciao no apenas assujeitado. Na verdade, a relao entre ele e os discursos circulantes pode ser extremamente varivel, e o enunciado que vai indicar como se organiza essa relao. Com efeito, o
enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado momento social e histrico, no pode deixar de tocar os milhares de fios dialgicos existentes, tecidos pela conscincia ideolgica em torno de um dado objeto de enunciao, no pode deixar de ser participante ativo do dilogo social. Ele tambm surge desse dilogo como seu prolongamento, como sua rplica, e no sabe de que lado ele se aproxima desse objeto (Bakhtin, 2002, p. 86).
5 Esse conceito est sendo utilizado com ressalvas, da mesma maneira proposta por Barros (1988, p. 148- 152). 38 Esse dialogismo, constitutivo da atividade discursiva, sugere um dos modos de incorporar no enunciado as formaes ideolgicas, seja para confirm-las, seja para neg-las. Bakhtin mostra que, antes de discutir as representaes literrias dessas formaes 6 , preciso analisar a relao entre o enunciador e a esfera extraliterria da vida e da ideologia (2002, p. 139). 7
Para proceder a essa anlise, o prprio Bakhtin tem uma sugesto terica que explica como o sujeito da enunciao se relaciona com as formaes discursivas, com os discursos circulantes e, portanto, como enunciador e enunciatrio se constituem como sujeitos que manifestam ideologias:
O objetivo da assimilao da palavra de outrem adquire um sentido ainda mais profundo e mais importante no processo de formao ideolgica do homem, no sentido exato do termo. Aqui, a palavra de outrem se apresenta no mais na qualidade de informaes, indicaes, regras, modelos, etc., ela procura definir as prprias bases de nossa atitude ideolgica em relao ao mundo e de nosso comportamento, ela surge aqui como a palavra autoritria e como a palavra interiormente persuasiva (2002, p. 86).
Apesar das diferenas entre as vozes de autoridade e as vozes internamente persuasivas, Bakhtin reconhece que o
conflito e as inter-relaes dialgicas destas duas categorias da palavra determinam freqentemente a histria da conscincia ideolgica individual (2002, p. 143).
Isso ajuda a compreender como o sujeito da enunciao opera com as formaes ideolgicas em voga num dado momento histrico, numa determinada regio, no seio de uma cultura. Antes de qualquer coisa, o sujeito da enunciao se sente influenciado pelas vozes da autoridade. Isso porque a
6 Formaes discursivas que Bakhtin chama de discurso de outrem (2002, p. 139). 7 Essa noo corresponde ao que Fiorin (2006b, p. 55-58) chama terceiro conceito de dialogismo no pensamento bakhtiniano. 39 palavra autoritria exige de ns o reconhecimento e a assimilao, ela se impe a ns independentemente do grau de sua persuaso interior no que nos diz respeito; ns j encontramos unida autoridade. A palavra autoritria, numa zona mais remota, organicamente ligada ao passado hierrquico (Bakhtin, 2002, p. 143).
claro que o sujeito da enunciao pode renunciar a concordar com essa autoridade, mas ele no pode deixar de reconhecer sua existncia. Ainda de acordo com Bakhtin (2002, p. 144), a palavra autoritria no pode ser essencialmente bivocal e, por isso, no pode ser representada artisticamente. Mas isso no significa que os romances no possam transmiti-la: se, por um lado, as vozes de autoridade no admitem uma livre estilizao, por outro, impossvel supor que, mesmo como um corpo heterogneo, elas no estejam presentes em todo tipo de discurso. O fato que a transformao ideolgica da conscincia individual depende menos das vozes de autoridade da fonte geral indeterminada: ouvi dizer, consideram, pensam, etc. (p. 140) do que das vozes internamente persuasivas, essas sim capazes de produzir um efeito de individuao discursiva. Com efeito,
a palavra persuasiva interior comumente metade nossa, metade de outrem. Sua produtividade criativa consiste precisamente em que ela desperta nosso pensamento e nossa palavra autnoma, em que ela organiza do interior as massas de nossas palavras, em vez de permanecer numa situao de isolamento e imobilidade. Ela no tanto interpretada por ns, como continua a se desenvolver livremente, adaptando-se ao novo material, s novas circunstncias, a se esclarecer mutuamente, com os novos contextos (Bakhtin, 2002, p. 146).
A relao entre o sujeito da enunciao e as formaes discursivas, mais do que um problema de ideologia, encerra um princpio dialgico que coloca o sujeito produtor do discurso diante de palavras j reconhecidas como de autoridade e de palavras que, por no possuir esse reconhecimento, so internamente persuasivas. Dessa maneira, o efeito de individuao discursiva nasceria da tentativa do sujeito da enunciao em encontrar a sua ideologia.
Esse processo de luta contra a palavra de outrem e sua influncia imensa na histria da formao da conscincia individual. Uma palavra, uma voz que nossa, mas nascida de outrem, ou dialogicamente estimulada por ele, mais cedo 40 ou mais tarde comear a se libertar do domnio da palavra do outro. Esse processo se complica com o fato de que diversas vozes alheias lutam pela sua influncia sobre a conscincia do indivduo (Bakhtin, 2002, p. 147-8).
A enunciao, nessa perspectiva, adquire uma dimenso coletiva estruturada nas coeres psico-scio-histricas que se manifestam sobretudo pelas vozes de autoridade e outra particular nascida da busca por uma voz capaz de produzir o efeito de individuao discursiva. Aps enunciador e enunciatrio se constiturem como sujeitos semanticamente competentes para produzir o discurso, esses valores se realizam e, posteriormente, so projetados no enunciado. Essa instncia, pressuposta, que corresponde ao que chamamos primeiro nvel enunciativo, em princpio, no tem voz no texto 8 . Na verdade, como j se disse, esse nvel justamente o do incio do processo de delegao de voz: o enunciador que comanda quem fala no texto. O segundo nvel enunciativo engloba o narrador e o narratrio, isto , o destinador do discurso instalado no enunciado e o destinatrio inscrito no texto. possvel reconhec-los por meio das operaes de debreagem, principalmente actancial. H um eu que fala e um tu ou voc que ouvem, mesmo que pressupostos por debreagens enuncivas. isso que leva Fiorin a dizer:
Na medida em que o narrador pode intervir a todo instante (...) na narrativa, toda narrao virtualmente feita em primeira pessoa (1999, p. 104).
Assim, em qualquer texto existe um eu, que corresponde ao narrador; da mesma forma, mesmo que implcito, existe um tu, que identifica o narratrio. Mas vale constatar que a j mencionada competncia de conduzir a narrativa no deve transmitir a impresso de que o narrador possui uma voz autnoma, soberana. Alis, para descartar essa hiptese, basta lembrar que ele se origina de uma projeo da enunciao e que o enunciador que lhe delega essa voz e essa competncia. O terceiro nvel enunciativo organiza-se na relao entre o interlocutor e o interlocutrio e est sempre inscrito no enunciado. Interlocutor e interlocutrio que, por inverterem continuamente suas posies, so chamados simplesmente de
8 Fizemos questo de relativizar essa proposio pelo fato de, em algumas situaes especficas, ser possvel que o enunciador fale. raro, mas acontece. Fiorin (1999, p. 122) d exemplos dessa subverso, que ele chama de metalepse. Em outros momentos desta tese, trataremos desse problema. 41 interlocutores (Greimas & Courts, 1983, p. 239) so actantes do enunciado e, por isso, quem lhes delega voz sempre o narrador, por operaes de debreagem de 2 grau. Esses trs nveis enunciativos se homologam perfeitamente com as propostas tericas de Genette (1995, p. 226), que fala explicitamente em nveis narrativos. O primeiro desses nveis seria o extradiegtico, que corresponderia a um ato (literrio), isto , prpria ao de narrar.
A expresso nvel extradiegtico refere-se, no quadro da narratologia genettiana, a um aspecto particular do domnio da voz, ou seja, s circunstncias que condicionam a enunciao narrativa e s entidades que nela intervm, compreendendo-se nessa interveno a instituio no nvel narrativo, em que se situa o narrador (Reis & Lopes, 2002, p. 290).
Assim, o nvel extradiegtico seria a instncia da delegao de voz, de instaurao da diegese 9 , de instalao do narrador no enunciado. Trata-se de um nvel ao qual o nvel narrativo se subordina. Dessa maneira,
nvel extradiegtico ser o primordial 10 , aquele a partir do qual pode constituir- se outro (ou outros) nvel(is) narrativo(s) (Reis & Lopes, 2002, p. 290).
Essa proposio tem como decorrncia que toda narrativa (diegese) pressupe uma instncia (nvel extradiegtico) que a produziu. Ou semioticamente: todo enunciado pressupe uma enunciao. Quando, a partir da extradiegese, institui-se o narrador no texto, tem-se a o nvel diegtico ou intradiegtico, que corresponderia ao segundo nvel enunciativo; quando, dentro da diegese, h uma outra narrativa, considera-se que ela pertence ao nvel metadiegtico ou hipodiegtico, que remeteria ao terceiro nvel enunciativo. Para distinguir esses dois nveis, preciso perceber que h uma
9 Entendida como o universo espaciotemporal designado pela narrativa (Genette, 1995, p. 273). Cunhado do grego, Genette aproveitou esse termo como sinnimo de narrativa, constituindo-se em um dos dois modos de imitao potica, na acepo aristotlica, ou em tudo que o poeta conta falando em seu prprio nome, sem tentar nos fazer crer que um outro que fala, na acepo platnica (Genette, 1969, p. 50). 10 No devemos entender primordial de um modo valorativo, como se ele fosse sinnimo de nvel mais relevante. O prprio Genette afirma essa diviso em nveis pressupe no uma hierarquia de importncia, mas sim um problema de mediao narrativa (1969, p. 201-202). 42 diferena de estatuto narrativo entre a histria diretamente contada pelo narrador e a histria contada por um de seus participantes (...). Convencionamos marcar essa oposio formal chamando de diegtico o primeiro nvel e metadiegtico o segundo (Genette, 1969, p. 202).
Genette fala, nos dois casos, em histria (em diegese, portanto), o que implica a instalao no enunciado de sujeitos a quem se delegou voz. Como esse processo s pode dar-se por meio as operaes de debreagem, tem-se que a debreagem de 1 grau instaura o nvel diegtico ou intradiegtico, enquanto a de 2 grau, o nvel metadiegtico ou hipodiegtico. Eis ento numa complementao tabela que propusemos anteriormente:
As observaes genettianas apenas contribuem para confirmar que h trs papis discursivos, trs nveis a serem analisados num enunciado. A questo que, muitas vezes, um nico sujeito pode exercer dois desses papis, o que faz com que seja difcil, principalmente em enunciados mais complexos, como o caso do texto de natureza literria, precisar como esses papis se articulam. Mas essas observaes sobre os nveis enunciativos no podem incorrer no equvoco de supor que todos os recursos discursivos envolvendo enunciao e enunciado nasam de um problema de delegao de voz. Na verdade, os valores expressos num enunciado, a ideologia que subjaz a ele no depende apenas de quem fala. Por isso, torna-se necessrio tocar tambm no problema de quem observa num texto.
43 A Teoria Literria mais tradicional (...) hipertrofiou o papel do narrador, confundindo, como nota Genette, duas instncias bem distintas, quem fala e quem v (Fiorin, 1999, p. 104).
Identificar o narrador de um texto , pois, reconhecer quem fala. Mas, alm dessa questo de voz, existe sempre um ponto de vista a partir do qual os objetos da narrativa so considerados. Esse ponto de vista que implica sempre uma avaliao pode ser de qualquer ator do enunciado. Quem est por trs dele no o narrador, mas o observador, conceito proposto por Greimas e Courts e definido por Fiorin como
o sujeito cognitivo delegado pelo enunciador e instalado por ele no enunciado, onde encarregado de um fazer receptivo e, eventualmente, de um fazer interpretativo, que incidem sobre os actantes da narrativa e os programas narrativos de que participam (1999, p. 104).
Ao diferenciar o papel de quem fala do de quem observa, principalmente nas narrativas literrias, consegue-se ordenar mais cuidadosamente as funes do narrador ou, pelo menos, diminuir a impresso de que elas so ilimitadas.
Segundo Genette, a partir das funes da linguagem produzidas por Jakobson, pode-se dizer que o narrador tem cinco funes: a narrativa propriamente dita, a de direo, a de comunicao, a de atestao e a ideolgica (Fiorin, 1999, p. 105).
Essas cinco funes do narrador propostas por Genette (1995, p. 253-255) poderiam ser resumidas por questes de simplificao na idia j referida da competncia de conduo. Mas, de alguma forma, elas j remetem necessidade que temos de diferenciar o papel do narrador do papel do observador. Tudo isso para evitar a tal hipertrofia do narrador. Bertrand tem uma observao interessante sobre isso:
A assuno do discurso, no mbito da anlise literria, geralmente colocada sob a gide do narrador, figura delegada do enunciador nesse contexto. Mas o narrador tem uma funo to englobante que suscetvel de abranger todos os empregos e de ter sua pertinncia diminuda medida que aumentam suas 44 atribuies. , portanto, necessrio especificar os papis, manter o narrador no campo do narrativo e identificar mais nitidamente as posies enunciativas que ele tende a ocultar. o que nos propomos a fazer aqui (...), rediscutindo a noo de ponto de vista (2003, p. 111).
Essa noo uma decorrncia do conceito de observador. Se h no texto um sujeito responsvel pela percepo dos fenmenos narrativos ou discursivos, porque h um ponto de vista em questo. O problema a polissemia que caracteriza o conceito de ponto de vista, que
se desdobra e d origem a uma grande variedade de conceitos: focalizao (G. Genette), perspectiva (A. J. Greimas, J. Courts), centro de orientao (J. Lintvelt), observador (Fontanille) no campo da narratologia, e modalizao da enunciao, transformao ativa/passiva ou dixis, no mbito da lingstica (Bertrand, 2003, p. 112).
Discursivamente, o ponto de vista como o ponto de referncia a partir do qual os contedos semnticos do texto so atualizados. Nessa atualizao, o ponto de vista no se constri no sujeito, mas sim na relao entre sujeito e objeto (Fontanille, 1999, p. 60). por isso que o ponto de vista tem a capacidade de dar direcionalidade aos enunciados, explicitando assim as intencionalidades da enunciao e revelando a existncia de um enunciador que, ao optar por um observador, opta, na verdade, por um valor, por uma ideologia. Esse ponto de vista enunciativo
participa da sintaxe do discurso no somente porque orienta o processo e as progresses temticas, mas tambm porque ele representa transformaes potenciais: actanciais, modais, passionais e axiolgicas, que interessam tanto ao plano do contedo quanto ao da expresso (Fontanille, 1999, p. 61).
Essa valorizao do observador e do ponto de vista pode sugerir, equivocadamente, que muito fcil perceber essa intencionalidade discursiva nos enunciados. No , embora ela esteja sempre presente, pois
45 no h enunciado, qualquer que seja sua dimenso, que no esteja submetido orientao de um ponto de vista. A mais objetivante neutralidade a implica inevitavelmente, ainda que por omisso (Bertrand, 2003, p. 113).
Em lugar de ser um entrave anlise enunciativa, a noo de ponto de vista permite comear a analisar as eventuais sobreposies de quem fala e quem observa 11
nos discursos. Por isso, preciso fazer as distines entre o enunciador e o observador que ele cria, entre o narrador e o observador que o enunciador cria para ele, entre os interlocutores e os observadores que lhes determinam a percepo da realidade. Poderamos ento desenvolver mais ainda nossa tabela, acrescentando-lhe uma coluna:
Quem fala? Quem observa? Quem ouve? 1 nvel enunciativo (pressuposto) NVEL EXTRADIEGTICO Enunciador
As duas primeiras casas (Quem fala? e Quem observa?) podem ser ocupadas pelo mesmo sujeito, o que nesse caso provocaria um sincretismo entre a competncia de voz e a de percepo. Mas, como veremos, essa tabela mostra-se til principalmente quando o narrador e seu observador so sujeitos distintos. Mas ainda se faz necessrio problematizar um terceiro quem na anlise enunciativa. Alm de quem fala e de quem observa, preciso delimitar quem age na narrativa, ou seja, quem realiza ou sofre o ato, independentemente de qualquer outra determinao (Greimas & Courts, 1983, p. 12). Quem atua na narrativa chamado actante do enunciado ou, depois do revestimento semntico-discursivo, ator do enunciado. Todo interlocutor e todo
11 Quando tratarmos do problema do foco narrativo, aprofundaremos mais essa questo, aproveitando, por exemplo, as noes de oniscincia, comumente levadas em considerao nas anlises literrias, como fez Barros (1988, p. 86-88), ou as de focalizao propostas por Genette, como fez Fiorin (1999, p. 108-111). 46 interlocutrio se constituem como um actante do enunciado. Enunciador e enunciatrio nunca o so. O narrador pode s-lo ou no. O narratrio no costuma s-lo 12 . Nesse caso, somos tentados a usar o termo personagem para designar quem, de fato, atua nas narrativas. H, porm, a dois inconvenientes: o primeiro que esse termo pressupe uma humanizao dos atores do enunciado, o que diminui sensivelmente seu alcance (Greimas & Courts, 1983, p. 13); o segundo que esse conceito, embora largamente empregado na narratologia, tanto no tem uma definio inequvoca que se costuma definir a personagem, de maneira pouco rigorosa, como suporte da ao ou como lugar preferencial da afirmao ideolgica (Reis & Lopes, 2002, p. 318). Dessa forma, quem age nas narrativas, quem participa dos programas narrativos ser sempre considerado um actante do enunciado. Sendo assim, os interlocutores de um texto sero sempre actantes do enunciado (embora, quando o narrador lhes delega a voz, eles passem a ser tambm actantes da enunciao enunciada). J enunciador, enunciatrio, narrador e narratrio so actantes da enunciao, na medida em que eles remetem instncia de produo dos enunciados, e no necessariamente aos contedos narrativos atualizados. O narrador e, eventualmente, o narratrio podem estar sincretizados com um actante do enunciado, o que significa que um mesmo sujeito pode ser actante do enunciado e da enunciao. J enunciador e enunciatrio, sempre, e narratrio, quase sempre, pertencem instncia de produo discursiva apenas, sem realizar ou sofrer as transformaes dos programas narrativos explcitos nos enunciados. A discursivizao do actante que passa a receber investimentos figurativos e papis temticos transforma-o em ator, definido como o portador de pelo menos um papel actancial e de no mnimo um papel temtico (Greimas & Courts, 1983, p. 34). Nesse sentido, os interlocutores so sempre atores do enunciado, pois eles so actantes que inevitavelmente representam um tema ou um percurso temtico (1983, p. 453). O narrador, quando est sincretizado com um actante do enunciado, torna-se simultaneamente ator do enunciado e da enunciao. J o narratrio, que j era actante da enunciao, quando vem debreado enunciativamente no texto e particularizado semanticamente, ganha o estatuto tambm de ator da enunciao. Quanto a enunciador e enunciatrio, que so actantes da enunciao, at possvel imagin-los como atores da enunciao, na medida em que eles, num conjunto de textos, podem assumir papis
12 Detalharemos essas observaes mais adiante. 47 temticos. Greimas e Courts at chegam a falar em ator da enunciao, exatamente para designar aquele ator, que na perspectiva da produo enunciativa, se define pela totalidade de seus discursos (1983, p. 35). Nesse caso, o sujeito da enunciao que seria ator da enunciao 13 . preciso ainda que se diga que, em um mesmo ator, podem estar sincretizados vrios actantes (1983, p. 13). Isso leva tese de que um nico o ator pode receber vrios papis actanciais, o que faz com que ele ultrapasse os limites da frase e se perpetue ao longo do discurso (1983, p. 34). Tambm seria possvel tomar o observador como actante da enunciao enunciada, na medida em que ele no realiza nem sofre as transformaes narrativas, mas ele modaliza sincretizado com outro actante do enunciado, o que significa que o observador est instalado no enunciado a percepo da realidade, com seu fazer receptivo e interpretativo, o que caracterstico da enunciao. Com essas consideraes, nossa tabela fica assim:
Quem fala? Quem observa? Quem ouve?
1 nvel enunciativo (pressuposto) NVEL EXTRADIEGTICO Enunciador (actante / ator da enunciao) Observador do Enunciador (actante da enunciao enunciada)
Enunciatrio (actante / ator da enunciao)
2 nvel enunciativo (manifestado) NVEL DIEGTICO Narrador (actante / ator da enunciao e/ou do enunciado)
Observador do Narrador (actante da enunciao enunciada)
Narratrio (actante / ator da enunciao e/ou do enunciado)
3 nvel enunciativo (manifestado) NVEL METADIEGTICO Interlocutor (actante / ator do enunciado e da enunciao enunciada) Observador do Interlocutor (actante da enunciao enunciada) Interlocutrio (actante / ator do enunciado e da enunciao enunciada)
13 Abordaremos mais detidamente essa questo no quarto item deste captulo. 48 Desde j, para evitar equvocos, vejam-se trs observaes sobre essas categorias:
1. Quem fala nos textos sempre o narrador, cuja voz lhe delegou o enunciador. Ele pressupe um observador e pode estar sincretizado com um ator do enunciado. Eventualmente, o narrador delega voz a um interlocutor, que tambm fala. Esse interlocutor, que sempre ator do enunciado, tambm pressupe um observador e pode ser considerado, quando o narrador lhe delega voz, ator da enunciao enunciada.
2. Quem observa nos textos sempre o observador, que est instalado no enunciado e cujo papel pode ser exercido pelo narrador ou por qualquer outro actante. Trata-se de uma categoria da enunciao que vai projetar-se sobre uma instncia do enunciado.
3. Quem age nos textos sempre um actante do enunciado, que passa a ser mais relevante para a anlise enunciativa quando se transforma em ator. O narrador e o observador podem estar sincretizados com atores do enunciado ou no. Os interlocutores sempre esto.
Voltando ao problema dos trs nveis enunciativos, uma das grandes dificuldades que surge justamente perceber como esses nveis se articulam, principalmente na coluna dos destinadores. Isso porque h textos em que enunciador e narrador esto sincretizados e h outros em que narrador e interlocutor se sobrepem. Na realidade, todos os narradores podem ser simplificadamente divididos em dois grupos: aqueles que assumem o papel de atores do enunciado e aqueles que se mantm apenas como atores da enunciao. a distino que a Teoria Literria faz entre narrador-personagem e narrador-no personagem. Quando se toma contato com um enunciado, a voz que est no comando sempre a do narrador. S identificamos o enunciador por meio de suas projees indiretas no enunciado, pois se trata de uma instncia pressuposta. Quando o enunciador instala no texto um narrador que conta uma histria sem participar dela ou, semioticamente falando, quando o narrador se mantm apenas como ator da enunciao, h menos pistas para reconhecer os traos que definem o enunciador, pois nem sempre 49 h marcas textuais claras para notar distines semnticas entre o primeiro e o segundo nvel enunciativo 14 . Em compensao, quando o narrador instalado no texto pelo enunciador tambm ator do enunciado, possvel, em alguns casos, encontrar uma dissonncia entre o primeiro e o segundo nvel enunciativo, pois se percebe mais facilmente que h uma instncia enunciativa que subjaz voz do narrador. claro que o narrador no possui, nunca, autonomia discursiva, pois ele sintxica e semanticamente dependente do enunciador. Mas o fato que, quando o narrador no ator do enunciado, por no haver papis temticos atribudos narrativamente a ele, produz-se um efeito de objetividade, como se ele e no o enunciador estivesse no comando do texto. Dessa forma, o enunciador, ao esconder a subjetividade do narrador, oculta as pistas que poderiam mapear com mais clareza as diferenas semnticas entre os dois primeiros nveis enunciativos. Nessas situaes, como se os fatos se narrassem a si mesmos. Em contrapartida, quando o narrador assume tambm a posio de ator do enunciado, nota-se mais claramente que h uma instncia anterior sua voz, que marca, com preciso, a falta de autonomia daquele discurso. O efeito produzido nesse caso de subjetividade, pois h uma dissociao semntica entre o primeiro e o segundo nvel enunciativo. Esquematicamente, temos:
NARRADOR = ATOR DO ENUNCIADO! efeito de sentido de subjetividade NARRADOR ! ATOR DO ENUNCIADO ! efeito de sentido de objetividade
Um caminho para comear a analisar se um enunciado produz efeito de subjetividade ou de objetividade exatamente perceber se o narrador ator do enunciado tambm ou apenas da enunciao. Quando ele se torna ator do enunciado o que, na maior parte das vezes, faz com que ele assuma o papel de interlocutor na narrativa , o narrador-personagem costuma disjungir-se semanticamente do enunciador, particularizando-se, individualizando-se, o que permite identificar algumas diferenas de valores entre o primeiro nvel enunciativo e o segundo. Nesses casos, o narrador est, muitas vezes, mais na posio de objeto de anlise do sujeito da enunciao, do que de sujeito produtor do discurso, pois sua voz se subordina
14 A esta altura, no estamos considerando a questo da totalidade da obra, que permite apreender o enunciador, independentemente de ele ser semanticamente equivalente ao narrador ou no. Voltaremos a tratar desse problema, basicamente no momento de discutir os conceitos de thos e estilo. 50 claramente a uma instncia superior, que lhe delega a palavra e a sanciona. Quando o narrador no se torna ator do enunciado, mantendo-se no plano da enunciao, no h essa disjuno semntica to patente entre os dois primeiros nveis enunciativos, de maneira que o narrador est sendo apresentado como produtor do discurso, sem que se transmita a impresso de que h um sujeito da enunciao que gerou essa instncia discursiva. possvel comprovar isso com exemplos:
No ano de meus noventa anos quis me dar de presente uma noite de amor louco com uma adolescente virgem. Lembrei de Rosa Cabarcas, a dona de uma casa clandestina que costumava avisar aos seus bons clientes quando tinha alguma novidade disponvel. Nunca sucumbi a essa nem a nenhuma de suas muitas tentaes obscenas, mas ela no acreditava na pureza de meus princpios. Tambm a moral uma questo de tempo, dizia com um sorriso maligno, voc vai ver. Era um pouco mais nova que eu, e no sabia dela fazia tantos anos que podia muito bem estar morta (Mrquez, 2005, p. 7).
Nessa passagem, extrada da abertura de Memrias de minhas putas tristes, o narrador, que no tem nome e protagonista da narrativa, demonstra como ele gostaria de comemorar seus noventa anos. Trata-se de um narrador digamos complexo psicologicamente, pois, ao mesmo tempo em que ele demonstra a vontade de ter noite de amor louco com uma adolescente virgem, ele alega nunca ter sucumbido a nenhuma de suas [de Rosa Cabarcas] muitas tentaes obscenas em nome de uma estranha pureza de princpios, que o impedia de aceitar alguma novidade disponvel sugerida pela rufiona.
(...) fizeram um amor tranqilo e so, de serenos avs, que se fixaria em sua memria como a melhor lembrana daquela viagem luntica. No se sentiam mais como noivos recentes (...) e menos ainda como amantes tardios. Era como se tivessem saltado o rduo caminho da vida conjugal, e tivessem ido sem rodeios ao gro do amor. Deixavam passar o tempo como dois velhos esposos escaldados pela vida, para l das armadilhas da paixo, para l das troas brutais das iluses e das miragens dos 51 desenganos: para l do amor. Pois tinham vivido o suficiente para perceber que o amor era o amor em qualquer momento e em qualquer parte, mas tanto mais denso ficava quanto mais perto da morte (Mrquez, 1997, p. 425).
Nessa outra passagem, extrada do final de O amor nos tempos do clera, aps encontros e desencontros que duraram mais de cinqenta anos, o narrador mostra uma viagem de navio feita por Florentino Ariza, com setenta e seis anos de idade, e Fermina Daza, com setenta dois. Nesse momento, eles acabam tendo essa tranqila e serena noite de amor. No primeiro exemplo, a conduta do narrador torna-se rapidamente objeto de avaliao do sujeito da enunciao. No entanto essa avaliao no exatamente discursiva, mas narrativa, na medida em que ele ser sancionado como ator do enunciado, e no como ator da enunciao. Mas o fato de o narrador apresentar-se como protagonista da narrativa faz com que seja difcil distinguir essas duas dimenses, o que apenas reitera que sua competncia de conduo da narrativa est francamente subordinada a uma instncia superior. H, portanto, uma dissenso de vozes marcada no enunciado, o que leva ao efeito de sentido de subjetividade de que se falou. No segundo exemplo, a conduta do narrador no est sendo posta prova de um modo to evidente, pois o narrador se mantm na instncia da enunciao, deixando as transformaes narrativas para os atores do enunciado: Florentino e Fermina. No h a necessidade premente, no momento de interpretar essa passagem, de recorrer instncia discursiva pressuposta, at porque as pistas textuais apontam para uma compatibilidade semntica entre o primeiro e o segundo nvel enunciativo, de modo que no se percebe uma dissenso entre as vozes de narrador e enunciador. O efeito de sentido aqui produzido de objetividade. Pode-se concluir da que a percepo do narrador como ator do enunciado ou como simples ator da enunciao uma maneira de perceber que tipo de relao h entre os nveis enunciativos:
Quando o narrador , alm de ator da enunciao, ator do enunciado, possvel imaginar duas maneiras de projeo de valores sobre o enunciado: a primeira ocorre quando o observador est sincretizado com o narrador, como ator da enunciao enunciada; a segunda ocorre quando o observador est sincretizado com um ator do enunciado. No primeiro caso, o observador se coloca na dimenso da enunciao enunciada; no segundo, na do enunciado. Vejamos um exemplo rosiano para ilustrar esse segundo caso:
Em Grande serto: veredas, os acontecimentos so vistos do ponto de vista do Riobaldo personagem. Por isso, vai-se acompanhando seu amor por Diadorim como um amor homossexual, com a angstia que isso lhe provoca (...). O observador no sabe quem de fato Diadorim (...). Quem sabe todas as coisas o narrador (...). S no final o observador descobre que Diadorim mulher. (Fiorin, 1999, p. 108-109).
Neste romance, o enunciador escolhe por intermdio de Riobaldo-narrador conduzir a narrativa pela perspectiva de um observador sincretizado com Riobaldo- personagem. Como a narrativa em flash-back, pois Riobaldo, fazendeiro, rico, relembra sua histria pregressa de lutas e andanas no serto mineiro, quando fez parte
15 A opo de incluir o ator do enunciado no terceiro nvel enunciativo justifica-se pelo fato de que essa posio tipicamente ocupada por um interlocutor. Quando um narrador ator do enunciado esperado e comum que ele se torne, por meio de autodebreagens que instalam o discurso direto ou indireto no texto, interlocutor da narrativa. Vale a ressalva de que possvel haver narrativas sem debreagens internas. 53 de um respeitado bando de jagunos, o narrador, ator da enunciao, j sabe que Diadorim a filha de Joca Ramiro, que se traveste de homem para vingar a morte do pai. No entanto a narrativa conduzida na perspectiva do ator do enunciado, de modo que o narratrio (e, nesse caso, o enunciatrio tambm) s recebe essa notcia no final do romance. Produz-se, nesse caso, um efeito de suspense. H outros romances, como Memrias pstumas de Brs Cubas e So Bernardo, s para ficar com dois exemplos consagrados, em que o narrador est sincretizado com seu observador, de maneira que a narrativa conduzida pelas percepes do ator da enunciao, e no do ator do enunciado. Dessa maneira, j sabemos, desde o comeo dos romances, que Brs Cubas teve uma vida improdutiva e que Paulo Honrio tenta livrar-se da culpa pela morte da esposa. Isso porque, embora haja momentos pontuais em que a narrativa apresentada pelos olhos dos protagonistas, na maior parte das vezes o narrador quem est sincretizado com o observador. No h, nesse caso, o efeito de suspense. Abordar os problemas de quem fala, quem observa e quem age, distinguindo essas trs dimenses narrativo-discursivas, um dos primeiros passos para compreender como os trs nveis enunciativos se articulam. Essas trs dimenses esto em plena consonncia com a proposta de Barros, para quem, ao analisar as questes ligadas ao ponto de vista, preciso considerar trs elementos:
a delegao de voz, a organizao do saber e a relao entre os papis do discurso e da narrativa (1988, p. 84).
A delegao de voz remete ao problema do quem fala, isto , competncia de conduo da narrativa. Trata-se, sobretudo, de uma relao entre o primeiro e o segundo nvel enunciativo, quando o enunciador instala no enunciado o narrador, e entre o segundo e o terceiro, quando o narrador instala no enunciado os interlocutores. As operaes de debreagem e embreagem, principalmente actanciais, so fundamentais nesse processo de delegao de voz. A organizao do saber, que
tem sido o critrio classificatrio mais explorado nas distines entre narrador onisciente e no-onisciente, entre narrador consciente de seu papel de narrador e 54 narrador inconsciente, entre a difuso (oniscincia multisseletiva) ou a concentrao do saber (Barros, 1988, p. 85),
pressupe o quem observa, pois aquele que tem voz s pode falar a partir do conhecimento que tem do mundo e da narrativa que est construda. Ora, esse conhecimento depende do observador escolhido pelo sujeito da enunciao. Por fim, quanto relao entre os papis do discurso e da narrativa,
o narrador pode estar em sincretismo ou no com os actantes narrativos (narradores que exercem o papel de personagens principais ou secundrias na narrativa ou so observadores explcitos) (Fiorin, 1999, p. 103),
o que est associado ao problema do quem age e distino que se deve fazer entre os papis narrativos, tpicos dos actantes do enunciado, e aos papis discursivos, caractersticos dos actantes da enunciao. Na verdade, toda essa problematizao terica gira em torno da enunciao, que funciona como um verdadeiro depsito ideolgico e que se projeta, no enunciado, sob as formas mais variadas. A anlise dos trs nveis enunciativos e a distino entre actantes do enunciado, da enunciao e observadores s se tornam possveis se se percebe que a produo discursiva depende dessa instncia, que, por ser pressuposta, sempre ofereceu grandes dificuldades para os pesquisadores. Se nossa inteno tratar de problemas de enunciao nesta tese, ser imprescindvel definir da maneira mais ampla possvel o que entendemos por enunciao. esse o objetivo do item seguinte.
55 2. A enunciao: em busca da preciso conceitual
A enunciao supe a converso individual da lngua em discurso. Aqui a questo muito difcil e pouco estudada ainda ver como o sentido se forma em palavras, em que medida se pode distinguir entre as duas noes e em que termos descrever sua interao. a semantizao da lngua que est no centro desse aspecto da enunciao, e ela conduz teoria do signo e anlise da significncia. (mile Benveniste, Problemas de Lingstica Geral II)
Possenti, num provocativo artigo, discute as origens do conceito de enunciao, passando por Benveniste, Pcheux, Fuchs, Bakthin e Maingueneau. Num dado momento, ele faz a seguinte afirmao:
a interpretao corrente (mais encontrvel talvez nos corredores e nos cafs lugares em que se sedimentam mentalidades e filiaes do que nos livros) do enunciado o sentido depende da enunciao no faz sentido nenhum (2001, p. 188).
Para ele, essa crena, anloga de que o sujeito a fonte do sentido, teria como corolrio uma concepo de enunciao como ato individual, o que seria um absurdo terico. Com efeito, desde que o conceito de enunciao comeou a aparecer mais sistematicamente nos trabalhos de Semitica e Anlise do Discurso, ele passou a ser empregado imprecisamente, muitas vezes negando a monorreferencialidade e a monossemia que se exigem dos termos cientficos. Por isso, o conceito passou a dar origem a toda sorte de especulaes, das mais finas s mais grosseiras, como se essa etrea enunciao fosse capaz de explicar, num passe de mgica, todas as sutilezas de significncia de um texto. Provavelmente, Possenti dirige sua provocao a esse uso pouco criterioso do conceito de enunciao, que implicaria uma viso particularizada dos atos enunciativos e, como tal, sem interesse para as pesquisas discursivas. Ao analisar o estatuto do enunciador, j dissemos que um enunciado, antes de ser produto de um ato individual, sofre coeres psico-scio-histricas de um sistema de valores, que acaba por se manifestar na enunciao. Esse enunciado produz um efeito de 56 individuao, mas no porque a enunciao seja sempre individual, e sim porque a discursivizao da relao entre o enunciador e as formaes ideolgicas em circulao particular, uma vez que se baseia numa conscincia formada dialogicamente no confronto entre discursos de autoridade e discursos internamente persuasivos. Se a enunciao fosse tomada simplesmente como ato individual, seria impossvel conceder- lhe o estatuto de termo tcnico, o que invalidaria seu aproveitamento na teoria lingstica. Essa a tese de Possenti, que, aps satirizar a idia de que o sentido depende da enunciao, reconhece:
(...) defenderei tambm a hiptese de que faz muito sentido outra interpretao do mesmo enunciado, e essa outra interpretao faz sentido exatamente por considerar outra concepo de enunciao, que no a toma como ato individual, mas sim como acontecimento histrico, por um lado, e regrado, por outro (2001, p. 188).
Tentaremos, neste item, apresentar algumas das regras que regem os atos enunciativos, sem desprezar sua dimenso no apenas histrica, mas, mais do que isso, psico-scio-histrica. Tratemos ento de mostrar como o conceito de enunciao, que hoje recebe tanta ateno dos estudos discursivos, ingressou no corpo da teoria semitica 16 . A simples existncia de um enunciado pressupe uma instncia anterior que o produziu, a partir da qual os componentes sintxicos e principalmente semnticos (e, como tais, ideolgicos) se projetaram no discurso. O problema que a assuno da existncia de uma instncia pr-textual poderia ser tomada como uma remisso a um contexto no-lingstico, referencial somente, que nada interessa Semitica. Nesse caso, a enunciao se confundiria com a situao concreta de comunicao, entendida como o contexto efetivo de um discurso (Charaudeau & Maingueneau, 2004, p. 194), e, por isso, no teria importncia nenhuma para uma teoria que parte do texto para chegar s formaes discursivas, e nunca o contrrio. Quando Benveniste afirma que a enunciao coloca a lngua em funcionamento por um ato individual de utilizao, tomando-a como o ato mesmo de produzir um enunciado, estamos diante de uma concepo de enunciao eminentemente
16 Courts, por exemplo, reconhece que, embora a enunciao no seja um conceito propriamente lingstico ou semitico, existe uma concepo lingstica ou semitica da enunciao (1991, p. 245). 57 lingstica: seu objetivo era estudar fatos de lngua; seu objeto era o enunciado, e no essa enunciao (1989, p. 82). Ao defender que a enunciao medeia a relao entre a lngua e fala saussuriana, ele acabou por mostrar que, entre o sistema lingstico e as realizaes individuais dos falantes, deve haver estruturas de mediao que permitem discursivizar a lngua. Dessa forma, se
se concebe a enunciao como uma instncia de mediao que produz o discurso, no se pode deixar de perguntar sobre o que mediado por essa instncia, sobre as estruturas virtuais que esto a montante da enunciao (Greimas & Courts, 1983, p. 146).
Saindo ento da definio stricto sensu de Benveniste e admitindo a enunciao como um fenmeno discursivo, presente num enunciado no somente sob a influncia das coeres do sistema lingstico, mas tambm sob a atuao de coeres digamos semiticas, seria possvel tomar a enunciao como a responsvel pela atualizao do espao das virtualidades semiticas, consideradas como
o lugar de residncia das estruturas smio-narrativas, formas que, ao se atualizarem como operaes, constituem a competncia semitica do sujeito da enunciao (Greimas & Courts, 1983, p. 146).
Desse modo, a definio de enunciao como uma instncia lingstica, logicamente pressuposta pela prpria existncia do enunciado (Greimas & Courts, 1983, p. 145), toma-a, maneira de Benveniste, como ato que medeia a relao entre um espao virtual as estruturas fundamentais e narrativas e seu produto, o discurso, espao realizado. Mais do que isso, as diferenas entre enunciao e enunciado se explicariam pelas distines entre um processo dinmico e um resultado esttico (Kerbrat-Orecchioni, 2002, p. 33). Assim, a enunciao, por seu carter dinmico e pressuposto, difcil de ser apreendida em seus mltiplos aspectos, j que a nica maneira de refazer o caminho da produo discursiva para, dessa forma, (re)constituir a estrutura da enunciao partir do enunciado, que, por seu carter esttico e completo, nem sempre permite plenamente essa (re)construo. Mas isso no significa que se possa abrir mo do conceito de enunciao, considerando-o como dispensvel para a anlise, como se o objeto-discurso possusse uma autonomia que no exigisse a 58 admisso de que o enunciado, longe de ser soberano, uma projeo da instncia da enunciao.
J que assumimos o fato de que, em toda relao predicativa, a presena de um actante-objeto implica a de um actante-sujeito e vice-versa, basta conhecer um dos dois actantes para poder deduzir a existncia do outro: nesse caso, conhecemos o objeto-enunciado, que o texto, podemos pois inferir a partir dele a existncia do actante-sujeito. A operao certamente complexa, mas ilustra bem a exigncia formal do mtodo. Ela permite localizar, stricto sensu, o sujeito enunciador: antes de tudo sujeito lgico, ele uma posio pura e simples. Instncia terica de que nada se sabe no incio, esse sujeito constri pouco a pouco, ao longo do discurso, sua espessura semntica (Bertrand, 2003, p. 82).
Essa operao, certamente complexa, de reconstruir a enunciao por meio do enunciado constitui o principal desafio de qualquer anlise discursiva. A primeira tentao, nesse caso, seria a de imaginar que a situao de comunicao concreta, real, projeta-se no enunciado, que funcionaria apenas como reprodutor de um universo no-lingstico. Essa perspectiva, muitas vezes adotada pelo ramo da Teoria Literria que se interessou pelas interpretaes textuais de fundo biogrfico, no a da Semitica, que no considera a ordem da linguagem um decalque da ordem do mundo ou do psiquismo individual. Para fugir do extralingstico, alguns pesquisadores j propuseram conceitos como situao de enunciao e situao de discurso:
(...) poderamos propor distinguir (...) a situao de enunciao, quando nos referimos mesmo ao processo da discursivizao que se caracteriza por marcas linguageiras de valor ditico, anafrico ou ilocutrio, e a situao de discurso, quando nos referimos aos dados de saber que circulam interdiscursivamente e que sobredeterminam os sujeitos da troca verbal (Charaudeau & Maingueneau, 2004, p. 452).
Na realidade, os conceitos de situao de enunciao e situao de discurso incluem vrias noes teis para mapear a enunciao, a saber, a discursivizao, as debreagens (marcas linguageiras de valor ditico), formas de enunciao enunciada (marcas linguageiras de valor [...] ilocutrio), a interdiscursividade ou a influncia 59 que o sujeito da enunciao recebe das formaes discursivas. Mas, semioticamente, quando se pensa em diferenciar a comunicao da enunciao e, por extenso, a situao de comunicao da situao de enunciao embora haja, como j insistimos no item anterior, um percurso de comunicao da enunciao , ainda preciso ir mais longe:
(...) do ponto de vista da enunciao, no se trata [como no ponto de vista da comunicao] da questo da circulao das mensagens num contexto extra- semitico de tipo scio-psicolgico. Tudo se ordena em torno da posio da instncia de discurso, e sempre questo de construir e de propor esta posio, mas tambm de aceit-la, de adot-la, de recus-la, de neg-la e de desloc-la. Tanto para o enunciatrio como para o enunciador, no se trata de fazer circular as mensagens, mas de delimitar o lugar para reportar os discursos e deles construir a significao (Fontanille, 1998, p. 259).
Temos a uma questo, portanto, de ponto de vista terico. Considerar a situao de enunciao e desprezar a situao de comunicao uma exigncia metodolgica, pois o que nos interessa , dentro do processo dinmico que caracteriza a enunciao, compreender como se produzem os sentidos veiculados por um enunciado. Para cumprir esse objetivo, uma sada entender que o mecanismo da enunciao suscita o conceito de intencionalidade, definido
como uma visada do mundo, como uma relao orientada, transitiva, graas qual o sujeito constri o mundo enquanto objeto ao mesmo tempo em que se constri a si prprio (Greimas & Courts, 1983, p. 147).
a intencionalidade que faz com que o discurso seja direcionado da enunciao para o enunciado ou, falando em termos de existncia semitica, da virtualidade para a realizao. Essa passagem, que Greimas e Courts consideram uma tenso (1983, p. 238), pode comear a ser compreendida pelas maneiras mais tradicionais de projeo da enunciao no enunciado. O desenvolvimento do aparelho formal da enunciao, iniciado por Benveniste, mostrou que os enunciados se constroem em relao rede de indivduos que a enunciao cria e em relao ao aqui-agora do locutor (1989, p. 86). Por isso, antes de instalar no enunciado observadores ou atores, preciso instaurar um sujeito 60 (categoria actancial), que funcionar como ponto de referncia a partir do qual se organizaro as marcas do aqui (categoria espacial) e do agora (categoria temporal). Da que, como sugeriu Benveniste (1989, p. 81-90), a enunciao seja considerada o lugar do ego, hic et nunc (Fiorin, 1999, p. 42). Nesse sentido, as categorias de pessoa, tempo e espao existem, virtualmente, na enunciao e so projetadas pelo enunciador no enunciado, que as realiza. A forma mais simples dessa projeo a debreagem. Aproveitando as formulaes de Greimas e Courts (1983, p. 95), Fiorin a define como
a operao em que a instncia da enunciao disjunge de si e projeta para fora de si, no momento da discursivizao, certos termos ligados a sua estrutura de base, com vistas constituio dos elementos fundadores do enunciado, isto , pessoa, tempo e espao (1999, p. 43).
A outra forma de projeo a embreagem, que
o efeito de retorno enunciao, produzido pela neutralizao das categorias de pessoa e/ou espao e/ou tempo, assim como pela denegao da instncia do enunciado (Fiorin, 1999, p. 48),
mas sempre pressupe uma debreagem que lhe logicamente anterior (Greimas & Courts, 1983, p. 140). Por isso, a forma mais simples de encontrar, num enunciado, as marcas da enunciao justamente procurando as debreagens actanciais, temporais e espaciais. Tanto as debreagens enunciativas (instalao do eu/tu no enunciado), pelo efeito de subjetividade que lhes subjaz, quanto as debreagens enuncivas (ocultao da instncia da narrao), pela negao desse mesmo efeito, so operaes que nascem de uma disjuno enunciativa, que projeta as marcas de pessoa, tempo e espao no enunciado. No primeiro caso, h enunciao enunciada; no segundo, enunciado enunciado 17 (Fiorin, 1999, p. 36). Por isso, toda debreagem e, por extenso, toda embreagem so indcios textuais da existncia e, mais do que isso, dos traos caractersticos da enunciao.
17 Dizer enunciado enunciado uma maneira de mostrar que ele sempre produto da enunciao. Ainda voltaremos a discutir essa questo ainda neste item. 61 Essas trs categorias pessoa, tempo e espao so largamente utilizadas em anlises enunciativas, como acontece com o conceito de cenografia 18 , que consiste numa situao de enunciao j investida semanticamente, j discursivizada. por isso que a cenografia uma instituio discursiva em que a enunciao
esfora-se para justificar seu prprio dispositivo de fala (...). [Para tal] alm de uma figura de enunciador e uma figura correlativa de co-enunciador, a cenografia implica uma cronografia (um momento) e uma topografia (um lugar) das quais o discurso pretende surgir. So trs plos indissociveis (...) (Charaudeau & Maingueneau, 2004, p. 96).
O eu-aqui-agora da enunciao, quando se projeta no enunciado enunciva ou enunciativamente , indica simultaneamente aquilo de onde vem o discurso e aquilo que esse discurso engendra (Charaudeau & Maingueneau, 2004, p. 96). Por isso, ao analisar um enunciado, encontram-se sempre marcas da enunciao, e poderamos justificar essa idia apenas pelas categorias de pessoa, tempo e espao debreadas e embreadas. Acontece que as debreagens e embreagens no so a nica forma de projeo da enunciao sobre o enunciado. Fiorin reconhece isso, afirmando que adjetivos e advrbios apreciativos, bem como verbos e substantivos carregados de subjetividade tambm so pistas para mapear essa projeo (1999, p. 37). Isso acaba gerando uma necessidade de ampliao das noes de enunciao enunciada. O enunciado enunciado nasce das debreagens enuncivas, enquanto a enunciao enunciada, das enunciativas: o primeiro corresponde a um efeito de objetividade; a segunda, ao de subjetividade. Na formulao de Courts, temos respectivamente o narrado e a maneira de apresentar esse narrado (1991, p. 247). Isso poderia levar concluso, equivocada, de que, quando h enunciado enunciado, impossvel delimitar os traos da enunciao. No isso que ocorre: a ausncia de marcas enunciativas remete enunciao, de modo que as debreagens enuncivas funcionam como um efeito de sentido para deixar implcita a enunciao, o que no significa que no seja possvel mape-la. Dessa forma, dizer que o texto enuncivo desprovido das marcas da enunciao (Greimas & Courts, 1983, p. 148) significa tom-lo como um discurso
18 A cenografia, assim com a cena englobante e a cena genrica, faz parte da subdiviso que Maingueneau prope da cena de enunciao (Charaudeau & Maingueneau, 2004, p. 96) e que foi desenvolvida por Carvalho (2005, p. 54-55). 62 que, por esconder essas marcas no enunciado, procura remeter enunciao de outra maneira. Tambm seria precipitado concluir que a enunciao enunciada a nica forma de encontrar indcios da enunciao no enunciado. No . A diferena entre ela e o enunciado enunciado que, naquele caso, esses indcios so explcitos, estabelecem relaes in praesentia, e, neste, o apagamento desses indcios suscita relaes in absentia, o que no deixa repita-se de reportar enunciao. Mas no se deve reduzir a enunciao enunciada ao processo de instalao do eu-aqui-agora no enunciado. As debreagens e as embreagens enunciativas configuram um problema de sintaxe discursiva, mas as palavras valorativas citadas por Fiorin (1999, p. 37) ou os verbos performativos (Greimas & Courts, 1983, p. 148), por exemplo, tambm indicam a presena do enunciador do enunciado, o que significa que existe tambm uma enunciao enunciada marcada semanticamente. A escolha lexical, por exemplo, constitui um problema de semntica discursiva. Quando o enunciador opta por uma palavra e no por outra, opera-se uma seleo de natureza ideolgica, confirmando o aforismo de que a palavra o fenmeno ideolgico por excelncia (Bakhtin, 1997c, p. 36). No existem palavras neutras. A prpria arbitrariedade do signo lingstico, a idia de que a linguagem no cpia da realidade, os valores sociais que impregnam as palavras, as impresses que elas suscitam pela conotao confirmam que as mltiplas possibilidades oferecidas pelo sistema lingstico esto longe de ser equivalentes. Toda escolha encerra, pois, uma intencionalidade, que, como tal, remete enunciao. Por isso, as situaes em que
o sujeito da enunciao se encontra diante do problema da verbalizao de um objeto referencial, real ou imaginrio (Kerbrat-Orecchioni, 2002, p. 80),
interessam anlise enunciativa, como forma de mostrar que a enunciao tambm se manifesta pela semntica discursiva. Se se considera a dimenso denotativa das palavras, poderamos at aceitar que elas tm contornos relativamente estveis. Mas o fato que sua dimenso conotativa as faz um conjunto etreo (Kerbrat-Orecchioni, 2002, p. 80). No primeiro caso, seria mais fcil admitir uma certa objetividade das palavras, embora isso remeta necessariamente enunciao enunciada, mas, no segundo, essa hiptese se desfaz, na medida em que fica muito clara a tese de que o uso das palavras implica valores e que, por isso, elas so um fenmeno ideolgico. 63 O que se pode dizer que h palavras em que a denotao est em primeiro plano, o que cria uma impresso de neutralidade referencial, na medida em que h um esforo para esconder todos os traos de um enunciador individualizado (p. 80). Esse discurso objetivo estaria em oposio a um discurso subjetivo, em que a presena do enunciador no enunciado seria percebida com mais facilidade, sobretudo pelo uso de palavras carregadas de valores conotativos. preciso salientar, porm, que denotao e conotao, objetividade e subjetividade encerram uma oposio que no dicotmica, mas gradual (p. 81). Os adjetivos so a classe morfolgica que permite, com mais rapidez, notar essa graduao. Kerbrat-Orecchioni d uma seqncia de exemplos (solteiro ! jovem ! pequeno ! bom [p. 81]), mostrando uma progresso do plo da objetividade para o da subjetividade, em que cada palavra vai indicando um aumento do grau de avaliao subjetiva do enunciador. Isso no significa que apenas as palavras de valor conotativo mais acentuado que constituem, pois, marcas semnticas da enunciao enunciada possam ser tomadas como garantia da presena do enunciador no enunciado. Na verdade, a opo por termos menos conotativos, guisa dos casos de enunciado enunciado j referidos, produz tambm um efeito de objetividade, que remete enunciao in absentia, na medida em que, ao se esconder no enunciado, o enunciador no deixa de comprovar sua existncia, pois ele o responsvel por essas escolhas lexicais. Aqui vale a pena retomar as duas abordagens de enunciao propostas por Kerbrat-Orecchioni (p. 34-36) e retomadas por Fiorin (1999, p. 38). Segundo elas, os fatos enunciativos podem ser entendidos como
todos os traos lingsticos da presena do locutor no seio de seu enunciado, mostrando o que Benveniste chamava subjetividade na linguagem (Fiorin, 1999, p. 38),
ou como
as projees da enunciao (pessoa, espao e tempo) no enunciado, recobrindo o que Benveniste chamava o aparelho formal da enunciao (1999, p. 38).
64 No primeiro caso, teramos um problema de semntica discursiva; no segundo, um de sintaxe discursiva. No primeiro, pode-se falar, pois, em enunciao enunciada manifestada pela semntica; no segundo, em enunciao enunciada assinalada pela sintaxe. Seriam as duas abordagens mais comuns dos fatos enunciativos. Kerbrat- Orecchioni, adepta da primeira abordagem, afirma:
Nossa hiptese de trabalho ser que certos fatos lingsticos so, desse ponto de vista, mais pertinentes do que outros; nosso alvo ser localizar e circunscrever esses pontos de ancoragem mais patentes da subjetividade linguageira (2002, p. 36).
J Fiorin, que se dedica sobretudo segunda abordagem, afirma:
Como a pessoa enuncia num dado espao e num determinado tempo, todo espao e todo tempo organizam-se em torno do sujeito, tomado como ponto de referncia. Assim, espao e tempo esto na dependncia do eu, que neles se enuncia. O aqui o espao do eu e o presente o tempo em que coincidem o momento do evento descrito e o ato de enunciao que o descreve. A partir desses dois elementos, organizam-se todas as relaes espaciais e temporais (1999, p. 42).
Essas duas abordagens engendram duas perspectivas tericas complementares. A Semitica interessou-se inicialmente pela segunda, deixando inicialmente as marcas semnticas da enunciao enunciada um pouco de lado. Com efeito, delimitar a presena do enunciador no enunciado por meio de debreagens e embreagens enunciativas mais simples, do ponto de vista da anlise, do que encontrar pistas semnticas dessa presena. O terreno da semntica pela polissemia, pelas sutilezas conotativas, pelo problema da ampliao e da restrio de sentido bem menos firme do que o da sintaxe. Da que os estudos enunciativos, dentro do rigor que caracteriza o modelo semitico, tenham se interessado primeiro pelo aparelho formal da enunciao, para depois se debruar sobre as variadas facetas da subjetividade linguageira. Para analisar mais cuidadosamente as questes de semntica discursiva, preciso ir alm das escolhas lexicais do enunciador. Tambm poderiam ser tomadas como marcas semnticas de enunciao enunciada as situaes em que o discurso 65 inclui, semelhana da estrutura da modalizao autonmica 19 , referncias prpria produo discursiva. Trata-se, de uma certa maneira, de uma volta ao conceito de enunciao como ato, s que agora como um ato que se projeta no enunciado-produto, que se torna, por meio de enunciados metadiscursivos, um verdadeiro desdobramento da enunciao (Charaudeau & Maingueneau, 2204, p. 84). A enunciao reportada, entendida como um simulacro da enunciao (Fiorin, 1999, p. 41), pode ser tomada como exemplo desse desdobramento. Quando, por meio do dilogo (Courts, 1991, p. 249), simula-se, no enunciado, a estrutura de comunicao de enunciador e enunciatrio, tem-se a enunciao reportada. Essa reportao enunciao possui uma dimenso metadiscursiva, na medida em que faz pressupor uma relao entre a interlocuo dos actantes da enunciao e a dos actantes do enunciado. Trata-se de uma manifestao de heterogeneidade enunciativa (Charaudeau & Maingueneau, 2004, p. 326), por meio da qual se nota uma enunciao que se coloca alm da enunciao concretizada no texto. A enunciao reportada acaba sendo uma maneira de o texto operar com o metadiscurso. Por meio dela, produz-se um thos de um homem atento a seu prprio discurso ou ao discurso de outros (Charaudeau & Maingueneau, 2004, p. 326), o que no deixa de remeter aos nveis enunciativos de que tratamos no item anterior. Isso lembra o processo de teatralizao da enunciao sugerido por Ducrot no estudo da polifonia. Quando o enunciador delega voz, direta ou indiretamente, a diversos interlocutores, ele se torna um verdadeiro encenador da representao enunciativa. Nessa situao,
o sentido de um enunciado descreve a enunciao como uma espcie de dilogo cristalizado em que vrias vozes se entrechocam (Ducrot, 1984, p. 9).
Esse choque de vozes, tpico do dilogo, caracteriza a enunciao reportada, que, com seus efeitos de sentido (Fiorin, 1999, p. 40), d alteridade, heterogeneidade, presena dos outros um valor constitutivo (Ducrot, 1987, p. 9) na composio, na produo do discurso. Embora a enunciao reportada pressuponha, muitas vezes, elementos metaenunciativos, que simulam no enunciado o ato de produo discursiva, fazendo-lhe
19 Que ser estudada com mais detalhes por ocasio da anlise das Memrias pstumas de Brs Cubas, no captulo seguinte desta tese. 66 constantes referncias, a metaenunciao 20 entendida como as menes, no interior do discurso, ao seu processo de produo pode se manifestar textualmente sem que haja enunciao reportada. o que acontece quando o enunciador problematiza a composio do prprio enunciado, como no seguinte exemplo:
Tertuliano Mximo Afonso no sabe, no imagina, no pode adivinhar que o empregado j se arrependeu do mal-educado despropsito (...). Afinal, benvolo o princpio mercantil, alicerado na antiguidade e povoado pelo uso dos sculos, que a razo sempre a tem o cliente, mesmo no caso improvvel, mas possvel, de se chamar Tertuliano. J no autocarro que o ir deixar perto do prdio em que vive h meia dzia de anos, isto , desde que se divorciou, Mximo Afonso, servimo-nos aqui da verso abreviada do nome porque nossa vista a autorizou aquele que seu nico senhor e dono, mas principalmente porque a palavra Tertuliano, estando to prxima, apenas duas linhas atrs, viria desservir gravemente a fluncia narrativa (...) (Saramago 21 , 2002, p. 11-12).
Nessa passagem, do incio de O homem duplicado, o narrador, ao comentar os marcadores de coeso empregados no enunciado, justifica suas escolhas lexicais, explicitando um raciocnio que cabe instncia da enunciao. Tem-se a uma projeo da enunciao sobre o enunciado, uma forma de enunciao enunciada marcada semanticamente que no nasce de uma escolha lexical ou de uma enunciao reportada, mas sim de um comentrio que problematiza explicitamente as opes que o sistema enunciativo oferece ao enunciador. certo que, nesse caso, poderamos dizer que se trata de uma passagem metalingstica no sentido jakobsoniano do termo, pois h um texto que remete ao prprio cdigo do processo de comunicao. Mas preferimos empregar o termo metaenunciao, empregado por Authier-Revuz (1988), que recobre mais do que a referncia ao sistema lingstico que permite a interlocuo, at porque h passagens metaenunciativas que no so, stricto sensu, metalingsticas, como, por exemplo:
20 No captulo seguinte, retomaremos, no exame da obra machadiana, a anlise da metaenunciao. 21 Como desejo do autor, mantivemos na transcrio de seu texto a ortografia portuguesa. 67 Como eu irei dizer agora, esta histria ser o resultado de uma viso gradual h dois anos e meio venho aos poucos descobrindo os porqus. viso de iminncia de. De qu? Quem sabe se mais tarde saberei. Como que estou escrevendo na hora mesma em que sou lido. S no inicio pelo fim que justificaria o comeo como a morte parece dizer sobre a vida porque preciso registrar os fatos antecedentes (Lispector, 1993, p. 26).
Nesse fragmento de A hora da estrela, o narrador no discorre exatamente sobre o cdigo lingstico, e sim sobre suas opes e suas escolhas narrativas e discursivas. Trata-se menos de metalinguagem do que de metaenunciao. Tambm neste caso, da mesma forma que no exemplo de Saramago, h enunciao enunciada marcada pela semntica discursiva, pois o enunciador por meio do narrador explicita questes que pertencem ao dinmico territrio da enunciao. Nessa perspectiva, todas essas formas de enunciao enunciada semntica so marcas da subjetividade linguageira. At agora, considerou-se a enunciao como uma instncia pressuposta pelo enunciado, que abriga o sujeito da enunciao e as posies de enunciador e enunciatrio. Isso poderia levar crena de que todo enunciado pressupe uma e apenas uma enunciao. Digamos que todo enunciado tem uma enunciao pressuposta e que foi essa enunciao que mereceu nossa ateno por enquanto. Ela seria a responsvel pela axiologizao dos contedos semnticos do discurso, pelo ponto de vista que orienta a viso de mundo veiculada discursivamente, o que permite tom-la como um depsito de valores ideolgicos que vo sendo projetados no enunciado e vo deixando pistas que permitem mape-la. Assim, tudo que aparece no enunciado responsabilidade dessa enunciao. O fato que, como j dissemos no item anterior, a anlise discursiva no pode prescindir da idia de que existem nveis enunciativos. Se assim, essa enunciao remeteria ao primeiro nvel enunciativo, a uma instncia pressuposta a partir do qual os demais nveis de construiriam. Esquematicamente, teramos: 68
Ocorre que, aps o primeiro processo de delegao de voz, por debreagens de 1 grau, passa a haver, dentro do enunciado, uma relao entre narrador e narratrio que encerra uma outra cena enunciativa. No segundo processo de delegao de voz, por debreagens de 2 grau, instauram-se interlocutor e interlocutrio no enunciado, o que pressupe uma terceira cena enunciativa. Assim, alm da enunciao pressuposta, que chamaremos enunciao de 1 grau, haveria uma enunciao de 2 grau, de responsabilidade do narrador, e uma de 3 grau, que ficaria a cargo dos interlocutores. As debreagens de 1 grau nasceriam ento da enunciao de 1 grau, afinal o enunciador que instala o narrador no enunciado. As debreagens de 2 grau nasceriam da enunciao de 2 grau, pois o narrador quem instala no enunciado os interlocutores. As debreagens de 3 grau, quando as h, nasceriam da enunciao de 3 grau, e assim sucessivamente. Nada impediria um determinado texto de operar com uma enunciao de 4 ou de 5 grau. Isso dependeria do nmero de debreagens internas que ele suportaria. Graficamente, podemos representar esse raciocnio assim: 69
Assim como todos os nveis enunciativos de algum modo se subordinam ao primeiro, todas essas enunciaes (da de 2 grau em diante) dependem da enunciao de 1 grau. Em muitos textos, alis, as demais enunciaes no chegam a ter, para usar a expresso de Bertrand, espessura semntica (2003, p. 82), o que significa que o estudo da enunciao de 1 grau muitas vezes bastante para a anlise discursiva. Mas h situaes em que se percebe uma ciso, um hiato, uma descontinuidade ou entre o primeiro e o segundo nvel enunciativo ou entre o segundo e o terceiro. Quando isso acontece, torna-se pertinente considerar essas enunciaes separadamente, pois, de fato, percebem-se diferenas mais claras entre elas. Veja-se um exemplo extrado de O coronel e o lobisomem 22 :
(...) preparado estava para a guerra do lobisomem. Por descargo de conscincia, do que nem carecia, chamei os santos de que sou devocioneiro: So Jorge, Santo Onofre, So Jos!
22 No estudo das passagens que se seguem de O coronel e o lobisomem, partimos das anlises feitas por Savioli e Fiorin (1995, p. 197-198 e 1996, p. 328-330). 70 Em presena de tal apelao, mais brabento apareceu a peste. Ciscava o cho de soltar terra e macega no longe de dez braas ou mais. Era trabalho de gelar qualquer cristo que no levasse o nome de Ponciano de Azeredo Furtado. Dos olhos do lobisomem pingava labareda, em risco de contaminar de fogo o verdal adjacente. Tanta chispa largava o penitente que um caador de paca, estando em distncia de bom respeito, cuidou que o mato estivesse ardendo. J nessa altura eu tinha pegado a segurana de uma figueira e l de cima, no galho mais firme, aguardava a deliberao do lobisomem. Garrucha engatilhada, s pedia que o assombrado desse franquia de tiro. Sabido, cheio de voltas e negaas, deu ele de executar macaquice que nunca cuidei que um lobisomem pudesse fazer. Aquele par de brasas espiava aqui e l na esperana de que eu pensasse ser uma scia deles e no uma pessoa sozinha. O que o galhofista queria que eu, coronel de nimo desenfreado, fosse para o barro denegrir a farda e deslustrar a patente. Sujeito especial em lobisomem como eu no ia cair em armadilha de pouco pau. No alto da figueira estava, no alto da figueira fiquei (Carvalho, 1989, p. 179).
Nesta passagem, narrada pelo coronel Ponciano, percebe-se um jogo tensivo que cria um descompasso entre os fatos acontecidos e os fatos narrados, ou melhor, entre os presumveis acontecimentos e a maneira como o narrador quer que eles sejam compreendidos. Em primeiro lugar, Ponciano usa uma srie de expresses que intensificam a fria do lobisomem e o perigo que, portanto, ele corria: uma pea de vinte palmos de plo e raiva, mais brabento, Ciscava o cho de soltar terra e macega no longe de dez braas ou mais, gelar qualquer cristo ou Dos olhos do lobisomem pingava labareda, em risco de contaminar de fogo o verdal adjacente. Ao lado da intensificao da fria, aparecem outros exageros do coronel, que reconhece a astcia do figuro de cachorro em cheio de voltas e negaas e em espiava aqui e ali na esperana de que eu pensasse ser uma scia deles. Ao avaliar o lobisomem, hiperbolizando-lhe as qualidades, Ponciano parece querer qualificar a si mesmo, pois elogiar o adversrio uma maneira de valorizar mais ainda uma eventual vitria sobre ele. No entanto, ao lado desse movimento de aumento da tenso, no que diz respeito sanha do lobisomem, o narrador reconhece que tem medo, mas procura a todo instante 71 dissimul-lo. Esse jogo entre o medo e a dissimulao pode ser percebido pelos trechos a seguir: Por descargo de conscincia, do que nem carecia, chamei os santos de que sou devocioneiro, J nessa altura eu tinha pegado a segurana de uma figueira e l de cima, no galho mais firme, aguardava a deliberao do lobisomem ou Sujeito especial em lobisomem como eu no ia cair em armadilha de pouco pau. No alto da figueira estava, no alto da figueira fiquei. Os trechos em itlico mostram o medo; os sublinhados, a dissimulao. Ao atenuar o receio de enfrentar o lobisomem, Ponciano queria manter o thos corajoso pelo qual costumava se caracterizar. Portanto o que ocorre nessa passagem um movimento tensivo duplo: de um lado, o coronel amplifica a fria e a astcia do lobisomem, com hiprboles; do outro, atenua o medo que sente em enfrent-lo, com eufemismos. A percepo desse movimento tensivo se deve sobretudo enunciao de 1 grau: por meio dela que o enunciador apresenta o lado bravateiro do narrador. Ponciano, pelo segundo nvel enunciativo, um valente; pelo primeiro, um covarde. como se a exposio do medo do narrador coubesse enunciao de 1 grau, enquanto sua atenuao e a intensificao da fria do lobisomem, de 2 grau. Pela enunciao de 1 grau, percebe-se que o enunciador delegou voz ao coronel Ponciano, mas fez questo de satiriz-lo, o que comprova um descompasso programado entre o enunciado (do coronel) e a enunciao (do enunciador). essa enunciao a responsvel pelo efeito de humor do texto. Afinal h um ator do enunciado e da enunciao que, embora arvore para si grande valentia, prefere aguardar a deliberao do lobisomem e a franquia de tiro na segurana de uma figueira. As aes de Ponciano, assim, no esto de acordo com sua autocaracterizao. H uma clara diferena entre o thos dito e o thos mostrado do coronel. A dissimulao do seu medo se mistura ento a aes covardes, que fazem com que essa dissimulao no se realize plenamente, tornando o coronel alvo de uma stira. Quem comanda tudo isso a enunciao de 1 grau 23 . No nvel da enunciao de 2 grau, tem-se a valentia do coronel e sua tentativa de amplificar o poder amedrontador do lobisomem, de cujos olhos pingava labareda, em risco de contaminar de fogo o verdal adjacente, a ponto de um caador de paca,
23 preciso ressaltar que nossa convico de que essa dissociao enunciativa que explica o movimento tensivo duplo (hiprbole da fria e da astcia do lobisomem e eufemismo do medo sentido pelo coronel X apresentao de seu medo) s pode ser percebida no romance como um todo, em que vo sendo semeados indcios de que o enunciador satiriza o comportamento e a linguagem do narrador. Apenas pela passagem transcrita, seria possvel admitir que h apenas uma disjuno entre o /ser/ e o /parecer/ na enunciao enunciada. 72 estando em distncia de bom respeito supor que o mato estivesse ardendo. Nesse nvel, no haveria stira, mas sinceridade, afinal Ponciano parece realmente se considerar coronel de nimo desenfreado e Sujeito especial em lobisomem. a combinao entre essa enunciao e a enunciao de 1 grau que permite concluir que essa valentia bravata. Ainda seria possvel analisar, nesse fragmento, a enunciao de 3 grau, que aparece na passagem em discurso direto, em que por uma debreagem interna o narrador se transforma em interlocutor. Quando Ponciano-narrador delega voz a Ponciano- personagem, samos do tempo e do espao da enunciao e nos transportamos para o aqui e agora do enunciado. Produz-se, assim, uma iluso referencial, pois o narrador deixa de comentar sua situao na guerra do lobisomem para apenas narr- la, reproduzindo algumas exclamaes religiosas, de valor interjeitivo, empregadas pelo coronel como uma espcie de preparao proftica para a batalha com o assombrado. Ao afirmar que aquela convocao de santos era desnecessria e que estava sendo feita por descargo de conscincia, h, no plano do /parecer/, a impresso de que Ponciano no precisava de ajuda divina, mas, no plano do /ser/, o fato de as exclamaes aparecerem no enunciado so uma pista de que essa ajuda no era to prescindvel, o que fica mais fcil de ser percebido se consideramos os indcios de que o coronel estava com imenso receio de enfrentar o lobisomem. Haveria, pois, um medo secreto e uma valentia mentirosa. Nessa perspectiva, o pedido de ajuda aos santos (So Jorge, Santo Onofre, So Jos!), que reconhecido como uma apelao pelo narrador, revela que a personagem Ponciano, no momento anterior guerra, toma esse pedido como uma necessidade, e no como descargo de conscincia. Assim, sua religiosidade faz com que ele no consiga dissimular seu medo. Por isso, na perspectiva da enunciao de 3 grau, esse medo sincero, pois a exclamao da personagem atesta seu receio de enfrentar a guerra do lobisomem; na enunciao de 2 grau, tenta-se esconder esse medo, na medida em que o narrador afirma que tudo foi descargo de conscincia; na enunciao de 1 grau, o medo se torna explcito, pois se percebe o lado bravateiro do coronel. Para perceber a necessidade que alguns textos impem de estudar os nveis enunciativos em mais detalhes, explicitando as relaes entre as enunciaes de 1, 2 e 3 grau, podemos, por exemplo, retomar algumas idias sobre o conceito de ironia 24 .
24 Trataremos do problema da ironia nos captulos de anlise da obra machadiana, sobretudo no item 4 do captulo seguinte. 73 Semioticamente, pode-se entender a ironia como um recurso discursivo em que se afirma no enunciado e se nega na enunciao (Fiorin, 2000, p. 56). Se assim, h trs tipos de ironia, considerando cada um dos nveis enunciativos apresentados. Haveria uma ironia do enunciador, uma do narrador e uma dos eventuais interlocutores. claro que s faz sentido considerar que h graus de ironia quando essas enunciaes no so equivalentes. Na maior parte das vezes, a enunciao de 1 grau no se distingue da de 2 grau, o que no permite que se separe a ironia do enunciador da do narrador, por exemplo. Mas, quando no h essa equivalncia semntica, fundamental distinguir os graus de ironia com mais cuidado. A ironia do enunciador aparece sobretudo quando enunciador e narrador no esto em conformidade semntica. Nesses casos, a partir da enunciao de 1 grau, nota- se um desacordo entre enunciado e enunciao que muitas vezes atinge o narrador. Isso ocorre basicamente nas narrativas em que o narrador tambm ator do enunciado, o que faz com que haja mais indcios para identificar a figura do enunciador. Trata-se de uma estratgia de enunciao que visa a mostrar que o discurso do narrador no autnomo, tanto que pode ser alvo de uma ironia. Eis mais um exemplo de O coronel e o lobisomem:
Foi nesse entrementes que o lobisomem soltou aquele berro agoniado e no fim do berro j meus dedos de torniquete seguravam o cativo onde gosto de segurar: na gargantilha. A at achei graa da discrdia, uma vez que a comandncia da rixa estava comigo. Vendo a demanda finada, gritei: Estais em poder da munheca do coronel Ponciano de Azeredo Furtado e dela no saireis, a no ser pela graa de Nosso Senhor Jesus Cristo, que pai de todos os viventes desse mundo. Como no caso da sereia, tratei a encantao em termos de cerimnia, sois-isso, sois-aquilo, dentro dos conformes por mim aprendidos em colgio de frade a dez tostes ao ms. Desse modo, ficava logo estipulado que o cativo no andava em mo de um coronelo do mato, despido de letras e aprendizados, uma vez que a vadiagem das trevas leva muito em conta a instruo dos demandistas. No presente caso do lobisomem, nem careci de empregar outras sabedorias (Carvalho, 1989, p. 181).
74 Ponciano de Azeredo Furtado acredita, de fato, na sua competncia de sanar casos de lobisomem, ainda que, para isso, use tticas surpreendentes como considerar que a vadiagem das trevas leva muito em conta a instruo dos demandistas. O efeito de humor, aqui, obtido pelo fato de Ponciano crer em suas bravatas, em sua fanfarrice, em suas bufonarias. Durante todo o romance, no s nessa passagem, o enunciador faz questo de mostrar que certos enunciados, aparentemente sob a responsabilidade do narrador, no devem ser interpretados literalmente. Por exemplo, logo na abertura do romance, o coronel afirma:
A bem dizer, sou Ponciano de Azeredo Furtado, coronel de patente, do que tenho honra e fao alarde. Herdei de meu av Simeo terras de muitas medidas, gado do mais gordo, pasto do mais fino. Leio no corrente da vista e at uns latins arranhei em tempos verdes da infncia, com uns padres-mestres a dez tostes por ms. Digo, modstia de lado, que j discuti e deixei no assoalho do Foro mais de um doutor formado. Mas disso no fao glria, pois sou sujeito lavado de vaidade, mimoso no trato, de palavra educada. J morreu o antigamente em que Ponciano mandava saber nos ermos se havia um caso de lobisomem a sanar ou pronta justia a ministrar (Carvalho, 1989, p. 3).
Ponciano se apresenta como caador de lobisomem, homem estudado, coronel de patente, criador de gado, ministrante da justia. Por meio de preteries, deixa sua modstia de lado, fazendo alarde das prprias qualidades. Assim, percebe-se que seu thos dito lavado de vaidade, enquanto seu thos mostrado repleto dela, ao menos no antigamente em que Ponciano mandava saber nos ermos se havia um caso de lobisomem a sanar ou pronta justia a ministrar. Num dado momento do romance, o narrador sai para caar capivara com Serapio Lorena, distrai-se, e seu cavalo o leva para perto do mar. Aps encantar-se com uma sereia, o coronel diz no incio do captulo seguinte:
No sou homem de espalhafatos e alardes. Por mim, pelo meu feitio reservoso, deixava morrer na nascena a questo da moa das guas, sem permitir que a fama do acontecido sasse das tramelas de Serapio Lorena. Mas digo e repiso que em boca de pasto ningum tem 75 mando. bicho arredio que no aceita cabresto ou imposio. O vento linguarudo longe foi soprar o caso da sereia em brenha que nem sabia da existncia de pessoa to encantada (Carvalho, 1989, p. 110).
O mesmo narrador que fazia alarde de sua patente, agora reconhece no ser homem de espalhafatos e alardes. Trata-se de um indcio de que o enunciador quer que o enunciatrio perceba o narrador como um sujeito volvel, pouco confivel, cujas palavras no devem ser interpretadas literalmente. No deixa de ser engraado que o coronel, embora tenha visto que a sereia era provida de um par de rolios do maior agrado meu, assuma: Como estivesse em tarefa militar, fiquei dentro dos regulamentos e estipulaes da guerra (p. 108). Ora, considerar uma caada de capivara tarefa militar e supor que isso motivo para no se deixar levar pelos encantos da sereia mostra a fanfarrice do coronel, que parece dar mais importncia a suas aes do que elas realmente tm. A desculpa para no ceder graa da sereia semelhante dada para no enfrentar um lobisomem em outra passagem do romance:
Sujeito de patente, militar em servio de gua benta, carecia de consentimento para travar demanda com lobisomem ou outra qualquer penitncia dos pastos, mesmo que fosse uma visagenzinha de menino pago. Sempre fui cioso da lei e no ia em noite de batizado manchar, na briga de estrada, galo e patente (...) (Carvalho, 1989, p. 178).
A formalidade da linguagem empregada pelo coronel, cheia de cacoetes militares, refora sua fanfarrice. Assim, na luta que ocorre posteriormente com o lobisomem, Ponciano trata a encantao em termos de cerimnia, sois-isso, sois- aquilo, dentro dos conformes (...) aprendidos em colgio de frade a dez tostes ao ms, o que atesta seu lado bufo, uma vez que ele parece apenas querer fazer alarde de seus sucessos. Tanto verdade que, aps o torquinete, ele confessa:
Ningum tinha outra fala que no a lio do coronel em cima do lobisomem. Em tais alturas correu muita mentira, como da rotina dos currais. Tive de embargar, por falsas, meia dzia de propaladas invenes que davam as maiores vantagens a mim em descrdito do lobisomem. Fui justo, cortei no sabugo o que no era do coronel: 76 Ao homem o que do homem. No particular, em conversa de amigos, at gabei o assombrado, que pelo modo de falar devia ser pessoa de boa instruo: Capaz que seja at um guarda-livro ou coisa mais para cima. (Carvalho, 1989, p. 178).
Note-se como o coronel no abre mo de qualquer galhardia (p. 268) e, pelas preteries, no deixa de se valorizar, sempre que possvel. Para confirmar como Ponciano volvel em suas bravatas, basta lembrar um momento do final do romance, quando ele se encontra com outra assombrao:
Fiquei de sozinho na estrada como na noite do lobisomem. Nem o vento corria, nem o mato era senhor de mexer uma folha. Por trs dos aceiros, rondava o sujeito de p de cabra. Podia escutar o risinho pouco casista dele, enxergar seu par de olhos feito brasa. Tive de afrouxar o colarinho para contrabalanar o calor de cem fornalhas que vinha da parte infestada pelo pai dos capetas. No procurei trocar palavras com ele, que esse proceder no vinha nos livros de minhas leituras, nem nas prticas por mim aprendidas em escola de frade (Carvalho, 1989, p. 303).
O mesmo homem que usava termos de cerimnia no tratamento com o lobisomem, nessa passagem no troca palavras com ele, que esse proceder no vinha no livro de (...) leituras. Assim, a prpria luta com o lobisomem, a comandncia da rixa, a relao com as encantaes, o herosmo do coronel precisam ser lidos na perspectiva irnica, uma vez que o contexto do romance oferece indcios para no levarmos as palavras do narrador to a srio: talvez os lobisomens no passem de um inimigo fictcio. Mas, para perceber isso, no basta recorrer enunciao de 2 grau, at porque, na dimenso desta, as palavras de Ponciano no so irnicas; preciso reportar enunciao de 1 grau, instncia em que o enunciador demonstra seu controle sobre o narrador, para notar que h um desacordo entre o enunciado e a enunciao de 1 grau. A ironia do narrador ocorre quando o narrador, como ator do enunciado tambm, no alvo, mas agente da ironia. Pela enunciao de 2 grau, percebe-se que o narrador est a ironizar algum actante da narrativa, em vez de ele ser ironizado pelo enunciador. Nesses casos, a enunciao de 1 grau abre espao para a de 2 grau, como que a criar a 77 impresso de autonomia da voz do narrador. o que acontece nesse excerto da crnica Aula de ingls, na reflexo do narrador, logo aps sua professora perguntar, apontando para um cinzeiro, se aquilo era um elefante:
Minha tendncia imediata foi responder que no, mas a gente no deve se deixar levar pelo primeiro impulso. Um rpido olhar que lancei professora bastou para ver que ela falava com seriedade, e tinha o ar de quem prope um grave problema. Em vista disso, examinei com a maior ateno o objeto que ela me apresentava. No tinha nenhuma tromba visvel, de onde uma pessoa leviana poderia concluir s pressas que no se tratava de um elefante. Mas se tirarmos a tromba de um elefante, nem por isso ele deixa de ser um elefante; e mesmo que morra em conseqncia da brutal operao, continua a ser um elefante; continua, pois um elefante morto , em princpio, to elefante quanto qualquer outro (Braga, 1998, p. 37).
O narrador dessa crnica parece levar a srio a pergunta da professora, fazendo reflexes sutis sobre os traos que definem a essncia de um elefante. H um tom jocoso nessas reflexes, como se o narrador fosse algum que no cr na eficincia daquele mtodo de ensino de lngua estrangeira, pois o exame atento que ele faz da essncia de um cinzeiro, entremeado a conjecturas sobre as peculiaridades de um elefante, mostra um descompasso entre enunciado onde h uma franca e sisuda anlise da pergunta da professora e enunciao onde h uma zombaria do questionamento proposto. Tanto verdade que, no final da crnica, o narrador-aluno diz:
Retirei-me imensamente satisfeito daquela primeira aula; andei na rua com passo firme e ao ver, na vitrina de uma loja, alguns belos cachimbos ingleses, tive mesmo a tentao de comprar um. Certamente teria entabulado uma longa conversao com o embaixador britnico, se o encontrasse naquele momento. Eu tiraria o cachimbo da boca e lhe diria: Its not an ash-tray! (Braga, 1998, p. 38).
78 O grave problema proposto pela professora no tem nada de grave. Por isso, o narrador obrigado a imaginar uma situao de fala completamente artificial para poder usar a frase (Its not an ash-tray!) aprendida em aula. H, pois, uma ironia que subjaz a todo o fragmento, na medida em que a enunciao oferece indcios para concluir que o narrador j percebeu a pouca praticidade desse mtodo de ensino. Sua imensa satisfao com sua primeira aula, em que ele foi obrigado a fazer anlises requintadas para diferenciar cinzeiros de elefantes, esconde uma crtica eficincia daquela aula. Aqui, o enunciador transfere a responsabilidade da ironia para o narrador e, ainda que a enunciao de 1 grau a confirme, ela ocorre sobretudo por causa da enunciao de 2 grau: o narrador que ironiza a professora e os que crem nesse mtodo de ensino por perguntas e respostas. Como j mostramos no item anterior, quando o narrador permanece apenas como ator da enunciao, h poucas pistas para diferenci-lo do enunciador, o que equivale a dizer que, nessas situaes, as enunciaes de 1 e de 2 grau se apresentam como praticamente equivalentes. Por isso, quando ocorre uma ironia nesse tipo de texto, igualmente pertinente consider-la ironia do narrador ou do enunciador. Eis um exemplo:
Ser valento foi em algum tempo ofcio no Rio de Janeiro; havia homens que viviam disso: davam pancadas por dinheiro, e iam a qualquer parte armar de propsito uma desordem, contanto que se lhes pagasse, fosse qual fosse o resultado. Entre os honestos cidados que nisto se ocupavam, havia, na poca desta histria, um certo Chico-Juca (Almeida, 2000, p. 150).
Ao tachar os arruaceiros do Rio joanino de honestos cidados, o narrador recorre a uma clara ironia, muito adequada ao bom humor que caracteriza o romance como um todo. No h pistas bastantes para concluir se o descompasso semntico que define a ironia se d entre enunciado e enunciao de 1 grau ou entre enunciado e enunciao de 2 grau, at porque, nesse texto, enunciador e narrador se sobrepem. No se trata, portanto, de um discurso em que relevante fazer distino entre as enunciaes dos dois primeiros nveis. O terceiro tipo de ironia a do interlocutor. Quando o narrador, por uma debreagem interna, instala no enunciado um interlocutor, ele instaura tambm uma 79 enunciao, que ser a instncia logicamente pressuposta pela existncia da fala em discurso direto. Desse modo, pode haver uma ironia dentro do terceiro nvel enunciativo, cuja responsabilidade recair necessariamente sobre um ator do enunciado, como acontece na seguinte passagem:
Lusa, quebrada, sem fora de responder, encolhia-se sob aquela clera como um pssaro sobre o chuveiro. Juliana ia-se exaltando com a mesma violncia da sua voz. E as lembranas das fadigas, das humilhaes, vinham atear-lhe a raiva, como achas numa fogueira: Pois que lhe parece? exclamava. No que eu como os restos e a senhora os bons bocados! Depois de trabalhar todo o dia, se quero uma gota de vinho quem mo d? Tenho de o comprar! A senhora j foi ao meu quarto? uma enxovia! A percevejada tanta que tenho que de dormir quase vestida! E a senhora se sente uma mordedura, tem a negra de desparafusar a cama, e de a catar frincha por frincha. Uma criada! A criada o animal. Trabalha se pode, seno rua, para o hospital. Mas chegou-me a minha vez e dava palmadas no peito, fulgurante de vingana. Quem manda agora, sou eu! Lusa soluava baixo. A senhora chora! tambm eu tenho chorado muita lgrima! Ai! eu no lhe quero mal, minha senhora, certamente que no! Que se divirta, que goze, que goze! O que eu quero o meu dinheiro (Queirs, 1998, p. 318).
Em mais de uma passagem do romance, fica-se sabendo o que Juliana pensa de suas patroas:
A necessidade de se constranger trouxe-lhe o hbito de odiar: odiou sobretudo as patroas com um dio irracional e pueril. Tivera-as ricas, com palacetes, e pobres, mulheres de empregados, velhas e raparigas, colricas e pacientes; odiava-as a todas, sem diferena. patroa e basta! Pela mais simples palavra, pelo ato mais trivial! Se as via sentadas: Anda, refestela-te, que a moura trabalha! Se as via sair: Vai-te, a negra c fica no buraco! Cada riso delas era uma afronta sua 80 tristeza doentia; cada vestido novo uma afronta ao seu velho vestido de merino tingido. Detestava-as na alegria dos filhos e nas prosperidades da casa (Queirs, 1998, p. 123).
O dio irracional e pueril de Juliana por suas patroas permite concluir que a ltima passagem em discurso direto do primeiro fragmento de O primo Baslio ironia. Juliana quer mal a Lusa e no est disposta a aceitar que sua senhora se divirta, goze impunemente. H um desacordo, portanto, entre o que diz Juliana e o que ela pensa de fato, numa dissociao entre o enunciado e a enunciao de 3 grau que constitui uma ironia de responsabilidade de um interlocutor, sem que narrador e enunciador necessariamente compartilhem esses valores. Essas reflexes sobre a ironia, que a tomam como um problema essencialmente enunciativo, visam tambm a evitar a falta de rigor com que esse termo muitas vezes empregado. A definio semitica de ironia, que retoma as noes retricas expostas, por exemplo, por Lausberg (1965, p. 249-252), procura dirimir essa falta de rigor, que parece ter nascido do prprio uso que a lngua geral faz desse conceito. Recorrendo ao Houaiss, entende-se esse uso: a primeira acepo de ironia remete definio retrica (figura por meio da qual se diz o contrrio do que se quer dar a entender); na segunda, faz-se referncia ao uso literrio da ironia, caracterizado pelo emprego inteligente de contrastes, com o objetivo de criar ou ressaltar certos efeitos humorsticos. O dicionrio ento reconhece que, por extenso de sentido, a ironia designa uso de palavra, expresso ou acepo de carter sarcstico; zombaria. Por esse processo de ampliao semntica, a ironia deixou de ser um recurso discursivo especfico para traduzir qualquer tipo de efeito de humor. Isso compreensvel porque, na maior parte das vezes, a ironia empregada com valor crtico, de modo que o hiato entre enunciado e enunciao acaba produzindo resultados bem-humorados. Da que haja a tendncia para considerar irnico qualquer tipo de stira. No interior da teoria semitica, devemos tomar a ironia como uma das maneiras que o enunciador tem de,
em funo de suas estratgias para fazer crer, construir discursos em que haja um desacordo entre essas duas instncias (Fiorin, 1999, p. 39).
81 Cria-se, assim, um conflito entre o ser (dizer) e o parecer (dito) (Fiorin, 1999, p. 39) semelhana da mentira ou do segredo. Retoricamente, trata-se de uma forma de dissimulao, que consiste em esconder a opinio do partido a que se pertence (Lausberg, 1965, p. 250). A ironia uma maneira de operar com os nveis enunciativos, com os graus de enunciao. Ela ajuda a mostrar que a anlise discursiva depende cada vez mais de distinguir as fronteiras entre as instncias de enunciador, narrador e interlocutor. Mas, dessas trs instncias, a mais perceptvel pelo menos se considerarmos as vozes que mais sistematicamente aparecem no enunciado a do narrador, de que trataremos no item seguinte. 82 3. Foco narrativo: uma sistematizao semitica
Disto se segue uma caracterstica extraordinariamente importante do gnero romanesco: o homem no romance essencialmente o homem que fala; o romance necessita de falantes que lhe tragam seu discurso original, sua linguagem. (Mikhail Bakhtin, Questes de Literatura e de Esttica)
A voz que fala num enunciado, por meio da delegao operada pelo enunciador, sempre a do narrador, embora isso esteja muito longe de solucionar os problemas suscitados pelo segundo nvel enunciativo. O estudo do quem narra permite apreender o narrador de um texto. Sobrepondo a ele o estudo do quem observa, possvel perceber como o texto narrado, o que equivale a dizer que o reconhecimento do observador principal do texto (que funciona, nesse caso, como ponto de referncia para a axiologizao discursiva) o primeiro indcio para apreender a maneira como um enunciado conduzido. Assim, o como narrar ganha uma enorme importncia terica, uma vez que essa noo precursora do problema do foco narrativo.
Com efeito, pode-se contar mais ou menos aquilo que se conta, e cont-lo segundo um ou outro ponto de vista; e precisamente tal capacidade, e as modalidades do seu exerccio, que visa a nossa categoria de modo narrativo: a representao, ou, mais exatamente, a informao narrativa tem os seus graus; a narrativa pode fornecer ao leitor mais ou menos pormenores, e de forma mais ou menos direta, e assim parecer (...) manter-se a maior ou menor distncia daquilo que conta; pode, tambm, escolher o regulamento da informao que d, j no por essa espcie de filtragem uniforme, mas segundo as capacidades de conhecimento [de uma ou outra parte interessada na histria 25 ] (...), da qual adotar ou fingir adotar aquilo que correntemente se chama a viso ou o ponto de vista, parecendo ento tomar em relao histria (...) esta ou aquela perspectiva (Genette, 1995, p. 160).
25 Baseamo-nos aqui no texto original em francs (les capacits de connaissance de telle ou telle partie prenante de lhistorie [Genette, 1972, p. 184]), uma vez que a traduo portuguesa que estamos usando pareceu-nos inadequada nessa passagem. 83 O conceito genettiano de modo narrativo funciona como uma introduo bastante satisfatria para o problema do foco narrativo, que o prprio Genette analisa por meio do conceito de focalizao, proposto para ajudar a desfazer a confuso do discursivo e do narrativo (1969, p. 191).
(...) a focalizao pode ser definida como a representao da informao diegtica que se encontra ao alcance de um determinado campo de conscincia, quer seja de uma personagem da histria, quer o do narrador heterodiegtico; conseqentemente, a focalizao, para alm de condicionar a quantidade de informao veiculada (eventos, personagens, espaos, etc.), atinge a sua qualidade, por traduzir uma certa posio afetiva, ideolgica, moral e tica em relao a essa informao (Reis & Lopes, 2002, p. 165).
Um dos primeiros elementos a influenciar essa focalizao narrativa justamente o fato de o narrador assumir ou no o papel de ator do enunciado no discurso. Para usar os termos largamente empregados na narratologia, existem os narradores que so personagens e aqueles que no o so (Chiappini, 2005, p. 90). Os primeiros so chamados narrador em 1 pessoa e os segundos, narrador em 3 pessoa. Sem dvida, o que se convencionou chamar narrador em primeira e em terceira pessoa confunde os nveis discursivo e narrativo. O narrador em primeira pessoa seria aquele que actante do enunciado; no entanto, a terminologia primeira pessoa remete s debreagens actanciais enunciativas normalmente empregadas por esse narrador. Ora, certo que um narrador pode debrear-se enunciativamente sem que ele se torne actante do enunciado. Do mesmo modo, o narrador em terceira pessoa seria aquele que no actante do enunciado, embora a expresso terceira pessoa nos leve s debreagens actanciais enuncivas costumeiramente utilizadas nessas situaes, o que configura um problema discursivo. Mas tambm possvel um narrador que exera o papel de actante do enunciado recorrer insistentemente s debreagens enuncivas sem deixar de agir na narrativa. Trata-se, com efeito, de uma confuso entre o primeiro nvel enunciativo o da enunciao e o segundo o da narrativa e suas debreagens de 1 grau. A Teoria Literria j percebeu que a dualidade primeira e terceira pessoa est longe de satisfazer as mltiplas possibilidades de narrar. Por isso, so inmeras as classificaes de narradores e de foco narrativo que j foram propostas. Uma das mais 84 clebres de Norman Friedman (1967, p. 108-139), retomada por Chiappini (2005, p. 25-70). De acordo com essa proposta, haveria seis grandes tipos de narrador 26 : o autor onisciente intruso, o narrador onisciente neutro, o eu como testemunha, o narrador-protagonista, a oniscincia seletiva mltipla e a oniscincia seletiva 27 . O problema dessa sistematizao que ela no diferencia quem fala, quem observa e quem age nas narrativas 28 . Comecemos analisando as correspondncias entre quem fala e quem age. O narrador sempre um ator da enunciao, mas nem sempre um ator do enunciado. Quando ele permanece no plano da enunciao, temos um narrador que no ator do enunciado e que, por debreagens de 2 grau, no se torna interlocutor. Quando ele no permanece apenas no plano da enunciao, temos um narrador que ator do enunciado e que, como tal, pode tornar-se interlocutor. O primeiro caso seria o de um narrador- no-personagem; o segundo, de um narrador-personagem. Em outros termos: h narradores que s falam e narradores que falam e agem. Sendo assim, o estudo da noo de foco narrativo poderia partir dessa idia:
Narrador-personagem Ator da enunciao + Ator do enunciado Obrigatoriedade das debreagens enunciativas
Narrador-no-personagem
Ator da enunciao Predominncia das debreagens enuncivas
26 Com rigor, seriam oito tipos. Mas por opo terica no comentaremos o modo dramtico e a cmera. O modo dramtico se caracterizaria por eliminar inteiramente os estados mentais, de modo que se apreendam as informaes veiculadas pelo enunciado somente a partir do que as personagens fazem e falam (Friedman, 1967, p. 129), como no teatro (Chiappini, 2005, p. 58). Como, nesses casos, o narrador praticamente no marcado no enunciado e como este trabalho no se interessa por textos de estrutura dramtica, desconsideramos esse tipo de narrativa. A cmera, que seria o mximo da excluso autoral (Friedman, 1967, p. 130), procuraria transmitir flashes da realidade como se apanhados por uma cmera, arbitrria e mecanicamente (Chiappini, 2005, p. 62). Cremos que no existem tantas narrativas compostas de acordo com essa tcnica, a ponto de inclu-la em nossa tese. O prprio Friedman reconhece a pouca representativa da cmera, a ponto de perguntar se, com a extino final do autor, a fico como forma de expresso artstica no se extinguiria tambm. Ver tambm Barros (1988, p. 83). 27 Esses so os termos empregados por Chiappini. Friedman usa oniscincia editorial, oniscincia neutra, eu como testemunha, eu como protagonista, oniscincia seletiva mltipla e oniscincia seletiva (1967, p. 119-128). 28 No trabalho de Friedman, ele se esfora para discutir a noo de ponto de vista que possui correspondncia com nosso conceito de observador , considerada a mais til das distines crticas disponveis para o estudo da narrativa (1967, p. 109). No entanto, em sua sistematizao, continua a haver uma sobreposio entre as instncias do quem fala, do quem observa e do quem age. 85
O fato de o narrador-personagem ser chamado popularmente de narrador em primeira pessoa explica-se pelo fato de que ele sempre emprega, em algum momento, debreagens actanciais enunciativas, da mesma forma que o narrador-no-personagem, em terceira pessoa, valoriza as debreagens actanciais enuncivas. Essa constatao poderia levar-nos hiptese de que a anlise das debreagens actanciais do narrador seria suficiente para concluir se ele ator do enunciado ou no. No . simples comprovar isso com exemplos. Veja-se o final do segundo captulo de O guarani:
Demorei-me em descrever a cena e falar de algumas das principais personagens deste drama porque assim era preciso para que bem se compreendam os acontecimentos que depois se passaram. Deixarei porm que os outros perfis se desenhem por si mesmos (Alencar, 1999, p. 61).
Os dois captulos introdutrios do romance funcionam como uma apresentao do cenrio da narrativa e de suas principais personagens. O narrador mantm uma distncia desses acontecimentos, comportando-se como ator da enunciao, e no do enunciado. Trata-se, pois, de uma obra que as anlises literrias tradicionais entenderiam como uma narrativa em terceira pessoa 29 . Note-se, porm, que os dois pargrafos transcritos se iniciam com formas verbais na primeira pessoa do singular, instalada no texto por meio de uma debreagem actancial enunciativa. Mas isso no significa que o narrador se tornou personagem da narrativa, na medida em que a primeira pessoa gramatical pode ser um indcio tanto de que o narrador ator do enunciado quanto de que ele est comentando a narrativa, intrometendo-se nela, como no caso em questo, em que o narrador de O guarani recorre funo de direo genettiana. Isso significa que uma debreagem enunciativa e, por extenso, qualquer outra marca de subjetividade podem aparecer tambm em enunciados cujos narradores no sejam personagens, pois o que os define como atores do enunciado o fato de eles
29 Para Friedman, estaramos diante de um caso de oniscincia editorial, em que a oniscincia significa um ponto de vista completamente ilimitado e conseqentemente difcil de controlar e h uma voz que domina o material narrativo, falando freqentemente por um eu ou um ns (1967, p. 121). Por isso, Chiappini chama esse narrador de autor onisciente intruso (2005, p. 26). 86 agirem no texto, de eles participarem das transformaes narrativas, e no o mero emprego da primeira ou da segunda pessoa do discurso. Analogamente, h casos em que narradores ditos em primeira pessoa (que so, do ponto de vista semntico, atores do enunciado) podem no empregar, to sistematicamente, as debreagens enunciativas. o que acontece, por exemplo, em A cidade e as serras, em que o narrador Z Fernandes, ator do enunciado, conta a histria de seu amigo Jacinto de Tormes, recorrendo principalmente s debreagens enuncivas:
(...) Jacinto nasceu num palcio, com cento e nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortia e de olival. No Alentejo, pela Estremadura, atravs das duas Beiras, densas sebes ondulando por colina e vale, muros altos de boa pedra, ribeiras, estradas, delimitavam os campos desta velha famlia agrcola que j entulhava o gro e plantava cepa em tempos del-rei D. Dinis. A sua Quinta e casa senhorial de Tormes, no Baixo Douro, cobriam uma serra. Entre o Tua e o Tinhela, por cinco fartas lguas, todo o torro lhe pagava foro. E cerrados pinheirais seus negrejavam desde Arga at ao mar de ncora. Mas o palcio onde Jacinto nascera, e onde sempre habitara, era em Paris, nos Campos Elsios, n 202. Seu av, aquele gordssimo e riqussimo Jacinto a quem chamavam em Lisboa o D. Galio, descendo uma tarde pela Travessa da Trabuqueta, rente dum muro de quintal que uma parreira toldava, escorregou numa casca de laranja e desabou no lajedo. Da portinha da horta saa nesse momento um homem moreno, escanhoado, de grosso casaco de baeto verde e botas altas de picador, que, galhofando e com uma fora fcil, levantou o enorme Jacinto at lhe apanhou a bengala de casto de ouro que rolara para o lixo (Queirs, 1977, p. 3).
Sem considerar o romance como um todo 30 , passagens como essa poderiam fazer crer que se trata de um romance em que o narrador no ator do enunciado, j que no h nenhuma pista de que ele esteja agindo na narrativa: o protagonista do texto parece ser Jacinto. Isso significa que mesmo um narrador que ator do enunciado no
30 Analisaremos, no decorrer deste item, o foco narrativo de A cidade e as serras. 87 precisa recorrer, a todo tempo, s debreagens actanciais enunciativas para se instalar no discurso, o que confirma a hiptese de que apenas a anlise das debreagens actanciais no basta para concluir se um narrador ator do enunciado ou no. A concluso a seguinte: as debreagens enunciativas podem dar uma pista sobre a participao do narrador nas aes narrativas, enquanto as enuncivas podem ser um indcio de sua no- participao. Mas preciso ficar claro que h narradores que, ao recorrerem funo de direo, por exemplo, debreiam-se enunciativamente sem que se tornem atores do enunciado, bem como h narradores que so atores do enunciado, mas que se comportam como verdadeiras testemunhas narrativas: foram os casos, respectivamente, de O guarani e A cidade e as serras. O caso de O guarani merece uma anlise ainda mais atenta. A funo de direo pode, de fato, explicar por que narradores em terceira pessoa recorrem primeira pessoa gramatical. No final do segundo captulo do romance de Alencar, o narrador est justificando o ritmo de sua narrativa, procurando estabelecer uma relao de cordialidade com o narratrio, como tpico da literatura folhetinesca 31 . Mas o que podemos postular que o emprego da primeira pessoa (ou de qualquer outra marca de subjetividade) pelo narrador pode significar que ele est participando do discurso, e no da narrativa. Em outros termos: h narradores intrusos que, embora no sejam atores do enunciado, recorrem s debreagens enunciativas para marcar sua posio no discurso. As Memrias de um sargento de milcias fazem isso repetidamente:
Sua histria tem pouca coisa de notvel. Fora Leonardo de algibebe em Lisboa, sua ptria; aborrecera-se porm do negcio, e viera ao Brasil. Aqui chegando, no se sabe por proteo de quem, alcanou o emprego de que o vemos empossado, e que exercia, como dissemos, desde tempos remotos. Mas viera com ele no mesmo navio, no sei fazer o qu, uma certa Maria da Hortalia, quitandeira das praas de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitona (Almeida, 2000, p. 67).
O uso das expresses no se sabe por proteo de quem (espcie de funo de atestao s avessas), como dissemos (funo de direo) e no sei fazer o qu (outro uso provocativo da funo de atestao) indicam a presena do narrador do
31 Estudaremos essa questo com mais cuidado no captulo seguinte. 88 enunciado. Note-se, porm, que essa presena no o faz um ator do enunciado; o narrador das Memrias de um sargento de milcias permanece como ator da enunciao. Ento as duas ltimas expresses referidas que constituem debreagens enunciativas instalam no texto um eu da enunciao, e no do enunciado. Assim, seria possvel retomar as distines entre dois tipos de debreagens actanciais enunciativas 32 (Fiorin, 1999, p. 117): as debreagens actanciais enunciativas da enunciao, que instalam um ator da enunciao no enunciado e que indicam que o narrador no personagem da narrativa; e as de debreagens actanciais enunciativas do enunciado, que instalam um ator do enunciado no enunciado e que indicam que o narrador personagem da narrativa. Tanto em O guarani quanto em Memrias de um sargento de milcias, as debreagens actanciais enunciativas so da enunciao. J no exemplo de A cidade e as serras, houve debreagens actanciais enuncivas do enunciado. Essa intromisso do narrador-no-personagem no discurso pode no se dar apenas na categoria actancial. Ela pode tambm ocorrer temporalmente. Veja-se a abertura de um dos captulos de Memorial do convento:
Em seu trono entre o brilho das estrelas, com seu manto de noite e solido, tem aos seus ps o mar novo e as mortas eras, o nico imperador que tem, deveras, o globo mundo em sua mo, este tal foi o infante D. Henrique, consoante o louvar um poeta por ora ainda no nascido, l tem cada um as suas simpatias, mas, se de globo mundo que se trata e de imprio e rendimentos que imprios do, faz o infante D. Henrique fraca figura comparado com este D. Joo (Saramago, 1996, p. 227).
O romance de Saramago se passa no sculo XVIII, pice do absolutismo em Portugal, quando o poderoso rei D. Joo V manda construir em Mafra um convento, uma baslica e um palcio. Nessa passagem, o narrador estabelece um jogo interessante entre o tempo do enunciado e o tempo da enunciao, j que ele faz uma citao quase literal do poema A cabea do grypho / O infante D. Henrique, da primeira parte de Mensagem, livro de Fernando Pessoa que s veio a ser publicado em 1934, quase 200 anos aps poca em que se d a fbula romanesca. At a conjuno consoante, parece
32 Ainda existem as debreagens enuncivas da enunciao, quando os actantes da enunciao no estiverem projetados no enunciado, como no caso, por exemplo, de O cortio, e as debreagens enuncivas do enunciado, quando se faz referncia a qualquer actante da narrativa que no se identifica com o narrador (Fiorin, 1999, p. 117). 89 que o narrador se coloca no presente, num tempo da enunciao posterior ao tempo do enunciado e posterior publicao de Mensagem. Aps o consoante, a forma verbal louvar e a expresso um poeta por ora no nascido mostram o narrador no passado, enquanto Pessoa estaria no futuro, o que d a esse trecho um carter proftico, com o tempo da enunciao se misturando ao tempo do enunciado. Esse jogo de marcos temporais mostra o narrador como ator da enunciao, mas isso no significa como j insistimos que essa manifestao de subjetividade seja garantia de que o narrador tambm se comporta como ator do enunciado. O guarani, Memrias de um sargento de milcias e Memorial do convento so alguns exemplos de obras literrias em que as debreagens enunciativas da enunciao indicam apenas que o narrador est participando do discurso. Isso no ocorre apenas em romances. Mesmo a poesia pica pode recorrer a esse recurso. Vejam-se exemplos de Os Lusadas:
da segunda estrofe:
Cantando espalharei por toda a parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte (Cames, 1947, p. 2);
da terceira:
Que eu canto o peito ilustre lusitano, A quem Netuno e Marte obedeceram (Cames, 1947, IV, p. 3);
da quarta:
E vs, Tgides minhas, pois criado Tendes em mi um novo engenho ardente, Se sempre, em verso humilde, celebrado Foi de mi vosso rio alegremente, Dai-me agora um som alto e sublimado (...) (Cames, 1947, IV, p. 3); 90
da quinta:
Dai-me #a fria grande e sonorosa, E no de agreste avena ou frauta ruda (Cames, 1947, IV, p. 4);
da dcima:
Que no prmio vil ser conhecido Por um prego do ninho meu paterno (Cames, 1947, IV, p. 7);
e assim por diante. At a estrofe 18 do primeiro canto, so vrias as debreagens actanciais enunciativas da enunciao. A partir da estrofe 19, quando comea a narrao da viagem do Gama, quase s aparecem debreagens actanciais enuncivas (as debreagens enunciativas que ocorrem so internas). A explicao simples: na poesia pica, o mais comum que o narrador se mantenha afastado da matria narrada, com a finalidade de produzir um efeito de objetividade; acontece que as 18 primeiras estrofes de Os Lusadas funcionam como uma declarao de intenes do poema, que, ao misturar as funes de atestao, direo, comunicao e at mesmo a funo ideolgica, funciona como uma grande enunciao enunciada marcada sintxica e, principalmente, semanticamente. Da que seja possvel que o narrador, por meio de debreagens actanciais enunciativas da enunciao, instale-se no discurso, sem que isso fira as coeres do gnero pico, que exige um narrador que no seja ator de enunciado. Durante as 1072 estrofes de narrao do poema, ocorrem sobretudo debreagens actanciais enuncivas. Nas 30 restantes, tanto do incio quanto do eplogo do poema, o narrador a todo tempo se apresenta como ator da enunciao. Tanto verdade que, na estrofe 145 do ltimo canto do poema, encerrada a narrao, quando os navegantes j avistam o Tejo, voltam as debreagens actanciais enunciativas da enunciao:
Nomais, Musa, nomais, que a lira tenho Destemperada e a voz enrouquecida, E no do canto, mas de ver que venho 91 Cantar a gente surda e endurecida (Cames, 1947, V, p. 258).
Tudo isso confirma a impropriedade da nomenclatura narrador em primeira pessoa e em terceira pessoa e a necessidade de distinguir quem fala de quem age (fazendo-se a ressalva de que h situaes em que atores da enunciao e do enunciado so semanticamente equivalentes). O que a narratologia entende por foco narrativo mistura como dissemos dois nveis semiticos: o narrativo e o discursivo. A primeira distino que expusemos entre narrador-personagem e narrador-no-personagem principalmente narrativa, pois leva em considerao se os narradores,
alm de sujeitos e destinadores do discurso, so destinadores-manipuladores, sujeitos, anti-sujeitos, destinadores-julgadores, sujeitos de programas de uso, sujeitos delegados da narrativa (Barros, 1988, p. 87).
Feita essa primeira sistematizao, bastante ampla, podemos partir para outras, que, ao levar em conta a noo de observador, acabam mostrando a dimenso enunciativa do problema de foco narrativo. Considerando inicialmente o caso do narrador-personagem, que se comporta como ator da enunciao e ator do enunciado e recorre sempre s debreagens enunciativas, possvel propor uma subdiviso em narrador-protagonista e narrador-testemunha:
Narrador- protagonista Ator da enunciao + Ator do enunciado Obrigatoriedade das debreagens enunciativas Observador sincretizado com o narrador (ator da enunciao) ou com a personagem (ator do enunciado) Narrador- testemunha
Ator da enunciao + Ator do enunciado Mistura (sobretudo) entre as debreagens enunciativas da enunciao e enuncivas do enunciado Observador sincretizado com o narrador (como ator do enunciado ou da enunciao) ou com outro ator do enunciado 92
Esses dois tipos de narrador, que funcionam simultaneamente como ator do enunciado e ator da enunciao, esto em acordo com a sistematizao tradicional da Teoria Literria. Para Friedman, o narrador-protagonista,
narra sua prpria histria em primeira pessoa, (...) est limitado quase inteiramente aos seus pensamentos, sentimentos e percepes (...) [e apresenta] um ponto de vista com um centro fixo (1967, p. 126-127),
enquanto o narrador-testemunha
algum que est dentro dos limites da narrativa, mais ou menos envolvido com a ao, mais ou menos informado sobre as principais personagens, e que fala ao leitor em primeira pessoa, (...) [possuindo] um acesso no mais que ordinrio aos estados mentais dos demais participantes da narrativa (1967, p. 125).
Dessa forma, a distino entre narrador-protagonista e narrador-testemunha seria simples: o primeiro personagem principal da narrativa; o segundo, personagem secundria. Do ponto de vista semitico, esta distino pode ser feita por meio do conceito de observador. O enunciador, aps determinar quem narra o texto e se esse narrador ser ator do enunciado ou no, precisa escolher sob que ngulo a narrativa ser conduzida, isto , ele precisa selecionar um observador para o narrador. No caso do narrador-protagonista, o observador est sincretizado ou com o ator da enunciao ou com o do enunciado. Tem-se, pois, um centro fixo, como acontece na maioria das narrativas tradicionais em primeira pessoa. s vezes, o observador est sincretizado com o ator da enunciao, como o caso de So Bernardo; outras vezes, o observador est sincretizado com o ator do enunciado, como o caso de Grande serto: veredas. Isso ocorre porque, nesse tipo de narrativa, h um ator que, por ser simultaneamente da enunciao e do enunciado, pode narrar demonstrando que vai descobrindo os acontecimentos da narrativa aos poucos experimentando assim as mesmas sensaes do ator do enunciado ou que j 93 os conhece completamente o que faz com que o observador esteja sincretizado com o ator da enunciao. Vejamos um exemplo do primeiro caso:
Ao que Diadorim me deu a mo, que malmal aceitei. E ele disse de contar. Segundo tinha procurado aqueles dias sozinho, recolhido nas brenhas, para se tratar de um ferimento, tiro que pegara na perna dele, perto do joelho, sido s de raspo. Menos entendi. A real que estando ofendido, por que era que no havia de vir para o meio da gente, para receber ajuda e ter melhor cura? Doente no foge para um recanto, ou mato, solitrio consigo, feito bicho faz. Aquilo podia no ser verdade? Afiguro, a bem que criei suspeitas: aonde Diadorim no teria andado ido, e que feia ao para aprontar, com parte na fingida estria? As incertezas que tive, que no tive (Rosa, 1986, p. 206).
De acordo com a j referida anlise de Fiorin (1999, p. 108-109), o enunciador prefere deixar o observador sincretizado com Riobaldo-personagem, e no com Riobaldo-narrador. Com isso, o enunciatrio e o narratrio vo experimentando as mesmas angstias do jaguno, que julgava estar envolvido com o amigo numa relao homossexual. Se desde o comeo do romance o narrador contasse que Diadorim era mulher, todas as atitudes estranhas da moa, como recusar-se a tratar um ferimento como os outros membros do bando, seriam explicveis e a narrativa perderia o efeito de suspense que a caracteriza. Da que, em Grande serto, o observador do narrador- protagonista esteja sincretizado com o ator do enunciado, e no com o da enunciao. Vejamos agora um exemplo do segundo caso, em que o narrador-protagonista deixa claro que j sabe o que acontecer na narrativa desde seu incio:
Casimiro Lopes acocora-se num canto. Volto a sentar-me, releio estes perodos chinfrins. Ora vejam. Se eu possusse metade da instruo de Madalena, encoivarava isto brincando. Reconheo finalmente que aquela papelada tinha prstimo. O que certo que, a respeito de letras, sou versado em estatstica, pecuria, agricultura, escriturao mercantil, conhecimentos inteis neste gnero. Recorrendo a eles, arrisco-me a usar expresses 94 tcnicas, desconhecidas do pblico e a ser tido por pedante. Saindo da, a minha ignorncia completa. E no vou, est claro, aos cinqenta anos, munir-me de noes que no obtive na mocidade (Ramos, 1990, p. 10-11).
Paulo Honrio faz questo de mostrar que, como ator do enunciado, tinha desprezo pelos anos de estudo de sua ex-mulher Madalena, mas que agora, no momento de escrever suas memrias, reconhece a importncia deles. Ao fazer referncia esposa, o narrador se priva de explorar o efeito de suspense que Riobaldo explora, uma vez que, em So Bernardo, h vrios indcios, anteriores morte de Madalena, de que ela no est mais com Paulo Honrio. Veja-se um exemplo do primeiro captulo:
Na torre da igreja uma coruja piou. Estremeci, pensei em Madalena (Ramos, 1990, p. 9).
Essa lembrana de Madalena motivada pelos pios da coruja renitente no romance, j que a ltima conversa entre o narrador e sua esposa ocorreu na igreja da fazenda, quando corujas infestavam o local, na noite anterior ao suicdio da moa. Depois, no dcimo nono captulo (Madalena s morre no trigsimo primeiro), Paulo Honrio volta ao tempo da enunciao para reforar que Madalena no est mais com ele:
Conheci que Madalena era boa em demasia, mas no conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste. E, falando assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me escapa o retrato moral da minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forado a escrever. (...) Emoes indefinveis me agitam inquietao terrvel, desejo doido de voltar, tagarelar novamente com Madalena, como fazamos todos os dias, a esta hora. Saudade? No, no isto: desespero, raiva, um peso enorme no corao (Ramos, 1990, p. 101).
95 Isso mostra que a narrativa conduzida pela perspectiva do narrador, e no de uma de suas personagens, pois o observador do narrador-protagonista est sincretizado com o ator da enunciao, e no com o do enunciado. No caso do narrador-testemunha, o observador nem sempre est sincretizado com o narrador, seja como ator do enunciado seja como ator da enunciao. Isso ocorre porque, como ele no protagonista da narrativa, nem sempre o responsvel pela viso de mundo do enunciado o narrador; muitas vezes, essa viso do protagonista, de maneira que o observador do narrador pode estar sincretizado com o protagonista, isto , com um ator do enunciado distinto do narrador. Vamos a dois exemplos do mesmo romance para comprovar essa variao do observador nos enunciados com narrador- testemunha. Eis o incio do terceiro captulo de A cidade e as serras:
No 202, todas as manhs, s nove horas, depois do meu chocolate e ainda em chinelas, penetrava no quarto de Jacinto. Encontrava o meu amigo banhado, barbeado, friccionado, envolto num roupo branco de plo de cabra do Tibete, diante da sua mesa de toilette, toda de cristal (por causa dos micrbios) e atulhada com esses utenslios de tartaruga, marfim, prata, ao e madreprola que o homem do sculo XIX necessita para no desfear o conjunto sunturio da civilizao e manter nela o seu tipo. As escovas sobretudo renovavam, cada dia, o meu regalo e o meu espanto porque as havia largas como a roda macia dum carro sabino; estreitas e mais recurvas que o alfanje dum mouro; cncavas, em forma de telha alde; pontiagudas, em feitio de folha de hera; rijas que nem cerdas de javali; macias que nem penugem de rola! De todas, fielmente, como amo que no desdenha nenhum servo, se utilizava o meu Jacinto. E assim, em face ao espelho emoldurado de folhedos de prata, permanecia este Prncipe passando plos sobre o seu plo durante quatorze minutos (Queirs, 1977, p. 21).
Nesta passagem, o narrador Z Fernandes mostra suas impresses sobre o quarto do amigo Jacinto, pois o observador do narrador est sincretizado com o ator do enunciado Z Fernandes, como se se tratasse de uma narrativa com narrador- protagonista. Mas h muitos outros momentos de A cidade e as serras em que o observador no est sincretizado com o narrador. No ltimo trecho transcrito, a 96 passagem que o homem do sculo XIX necessita para no desfear o conjunto sunturio da civilizao e manter nela o seu tipo j revelava o ponto de vista de Jacinto. Eis mais um exemplo:
De tarde, depois da calma, fomos vaguear pelos caminhos coleantes daquela quinta rica, que, atravs de duas lguas, ondula por vale e monte. No me encontrara mais com Jacinto em meio da Natureza, desde o remoto dia de entremez em que ele tanto sofrera no socivel e policiado Bosque de Montmorency. Ah, mas agora, com que segurana e idlico amor se movia atravs dessa natureza, de onde andara tantos anos desviado pr teoria e pr hbito! J no arreceava a humildade mortal das relvas; nem repelia como impertinente o roar das ramagens; nem o silncio dos altos o inquietava como um despovoamento do universo. Era com delcias, com um consolado sentimento de estabilidade recuperada, que enterrava os grossos sapatos nas terras moles, como no seu elemento natural e paterno: sem razo, deixava os trilhos fceis, para se embrenhar atravs de arbustos emaranhados, e receber na face a carcia das folhas tenras; sobre os outeiros, parava, imvel, retendo os meus gestos e quase o meu hlito, para se embeber de silncio e de paz; e duas vezes o surpreendi atento e sorrindo beira dum regatinho palreiro, como se lhe escutasse a confidncia... (Queirs, 1977, p. 119-120).
Nesta outra passagem, Z Fernandes incorpora os pensamentos de Jacinto, mostrando como o Prncipe estava encantado com a natureza portuguesa de Tormes, a ponto de negar a maneira citadina pela qual ele via o mundo quando morava em Paris e mover-se com segurana e idlico amor (...) atravs dessa natureza. No h indcios seguros de que Z Fernandes compartilhe essa celebrao da natureza com o amigo, de maneira que o ponto de vista a partir do qual ocorre essa celebrao parece ser mesmo o de Jacinto, o verdadeiro observador da passagem. Falando ainda sobre o narrador-testemunha, outros exemplos poderiam ser lembrados, como O nome da rosa, em que o narrador, Adso de Melk, uma figura narrativa bem menos central do que William de Baskerville, o verdadeiro protagonista do romance, ou como Nada e a nossa condio, conto de Rosa em que o narrador apresenta a histria de seu Tio ManAntnio, permanecendo na posio de testemunha 97 privilegiada dos acontecimentos narrativos. Em ambos os casos, o observador est sincretizado com um ator do enunciado que no o narrador: em O nome da rosa, William de Baskerville, e em Nada e a nossa condio, Tio ManAntnio. Mas h momentos em que a identificao do narrador-testemunha como ator do enunciado no to simples. o caso, por exemplo, de O cavaleiro inexistente. Nesse romance de Calvino, a leitura dos trs primeiros captulos, que no contm debreagens enunciativas da enunciao, faz-nos imaginar que se trata de uma narrativa em que o narrador no exerce tambm o papel de ator do enunciado. At que no quarto captulo, o narrador comea a tornar-se um intruso:
Ainda era confuso o estado das coisas do mundo, no tempo remoto em que essa histria se passa. No era raro defrontar-se com nomes, pensamentos, formas e instituies a que no correspondia nada de existente. E, por outro lado, o mundo pululava de objetos e faculdades e pessoas que no possuam nome nem distino do restante. Era uma poca em que a vontade e a obstinao de existir, de deixar marcas, de provocar atrito com tudo que existe, no era inteiramente usada, dado que muitos no faziam nada com isso por misria ou ignorncia ou porque tudo dava certo para eles do mesmo jeito e assim uma certa quantidade andava perdida no vazio (Calvino, 2005, p. 35).
Este comentrio do narrador a respeito das inexistncias de sua narrativa ainda no faz dele ator do enunciado, personagem do romance. Mas logo na seqncia dessa intromisso, ele revela:
Eu, que estou contando esta histria, sou irm Teodora, religiosa da ordem de So Columbano. Escrevo no convento, deduzindo coisas de velhos documentos, de conversas ouvidas no parlatrio e de alguns raros testemunhos de gente que por l andou (Calvino, 2005, p. 36).
Quando o narrador ganha nome e profisso, quando ele recebe esse revestimento semntico e passa a debrear-se enunciativamente, quando ele se coloca como testemunha da matria narrada, ele deixa de ser apenas ator da enunciao para tornar-se ator do enunciado tambm. O problema que, em O cavaleiro inexistente, a narradora 98 Teodora, embora no incio de cada captulo faa uma reflexo sobre sua situao de pesquisadora, ao compor sua histria, no parece estar no mesmo plano narrativo do cavaleiro inexistente Agiulfo, do cavaleiro inexperiente Rambaldo e do escudeiro amalucado Gurdulu, as principais personagens da obra. Num dado momento do romance, apresentada a guerreira Bradamante, por quem Rambaldo se apaixona. Mas ela no se interessa por nenhum dos cavaleiros de Carlos Magno, exceto pela inexistncia de Agiulfo. Ao final do romance, quando Bradamante e Rambaldo fogem, vem a revelao:
Sim, livro. A irm Teodora, que narrava esta histria, e a guerreira Bradamante so a mesma pessoa. Um tanto galopo pelos campos de guerra entre duelos e amores, outro tanto me encerro nos conventos, meditando e escrevendo as histrias que me ocorrem, para tentar entend-las. Quando vim me trancar aqui estava desesperada de amor por Agiulfo, agora queimo pelo jovem e apaixonado Rambaldo (Calvino, 2005, p. 132).
Ao saber que a narrativa era conduzida por Bradamante, desfaz-se a dvida se a obra possui narrador-no-personagem intruso ou narrador-testemunha. Bradamante testemunha dos feitos de Agiulfo e, simultaneamente, conta sua prpria histria de encontros e desencontros picos e lricos. Mas como durante toda a narrativa ela debreada enuncivamente e no final da obra se descobre que ela a narradora, pode-se intuir que as referncias a Bradamante eram embreagens, principalmente actanciais, por meio das quais se neutralizavam a primeira e a terceira pessoa, apresentando de maneira objetiva o que altamente subjetivo, mostrando enuncivamente o que existia enunciativamente. Essa revelao final do romance funciona ainda como uma espcie de macro-desencadeador de isotopia, na medida em que faz com que todo o sentido da narrativa seja reconstrudo com a informao de que Teodora, que narrava esta histria, e a guerreira Bradamante so a mesma pessoa. Essa complexidade narrativo-discursiva de O cavaleiro inexistente confirma que um modelo de anlise de foco narrativo no pode ser rgido demais, sob pena de no conseguir explicar satisfatoriamente certos textos. A narrativa literria coloca sempre novos problemas para o analista, j que muitas delas tm a predileo por adotar uma posio narrativa ambgua, programadamente ambgua, o que gera uma verdadeira 99 flutuao de foco narrativo, pois ou os observadores do narrador se modificam ao longo da narrativa ou cria-se a expectativa de que um tipo de observador que est conduzindo a narrativa e, no final, descobre-se que outro observador que est no comando. o que acontece com alguns contos de Rosa, principalmente nas Primeiras estrias, em que h a explorao dessa flutuao, dessa ambigidade. Em Nenhum, nenhuma, por exemplo, o menino protagonista do conto inicialmente debreado enuncivamente, o que sugere um narrador-no-personagem:
Mas um menino penetrara no quarto, no extremo da varanda, onde se achava um homem sem aparncia, se bem que, por certo, como curiosamente se diz, j entrado em anos; ele devia de ser o dono de l. E naquele quarto que, de acordo com o que se verifica, em geral, na regio, nos casares-de-fazenda com alta e comprida varanda, seria o escritrio h era uma data. O menino no sabia ler, mas como se a estivesse relendo, numa revista, no colorido de suas figuras; no cheiro delas, igualmente (Rosa, 1988, p. 47).
Nessa passagem, o tal menino apenas personagem da narrativa, ator do enunciado. No h nenhum indcio de que ele seja o narrador do conto ou o observador que orienta o ponto de vista narrativo-discursivo. No final do conto, o menino passa a ser debreado enunciativamente, fundindo-se com o narrador:
O Moo no falava, agora. Falido, ido, noutro confusamento, ele rompeu a chorar. Pouco a pouco, o Menino, devagarinho, chorava, tambm, o cavalo soprava. O Menino sentia: que, se, de um jeito, fosse ele poder gostar, por querer, desse Moo, ento, de algum modo, era como se ele ficasse mais perto da Moa, to linda, to longe, para sempre, na soledade. Da viu-se em casa, Chegara. Nunca mais soube nada do Moo, que nem era, vindo junto comigo. Reparei em meu pai, que tinha bigodes (...) (Rosa, 1988, p. 54).
A forma verbal Reparei mostra a fuso do Menino cujo nome grafado com maiscula, como que para assinalar sua importncia no conto com o narrador, o que no ocorre de modo explcito, como em O cavaleiro inexistente. Ela mais sutil e, 100 em vez de uma revelao, faz com que a narrativa toda seja marcada por uma certa flutuao de foco narrativo, que explora tanto as caractersticas de um narrador-no- personagem, com observador no-sincretizado com um ator do enunciado (no incio e no meio da narrativa), quanto as de um narrador-protagonista, com observador sincretizado com um ator do enunciado (no final da narrativa), embora no fiquem dvidas, nos ltimos pargrafos do conto, de que o Menino mesmo o narrador da histria:
E eu precisei de fazer alguma coisa, de mim, chorei e gritei, a eles dois: Vocs no sabem de nada, de nada, ouviram?! Vocs j se esqueceram de tudo o que, algum dia, sabiam!... E eles abaixaram as cabeas, figura que estremeceram. Porque eu desconheci meus Pais eram-me to estranhos; jamais poderia verdadeiramente conhec-los, eu; eu? (Rosa, 1988, p. 54).
Todas as debreagens actanciais enunciativas mostram que o narrador ator do enunciado, e no apenas da enunciao. Considerando ainda que o Menino o narrador do conto e que o narrador o observador principal instalado no enunciado, percebe-se, ao final da narrativa, que o ponto de vista que orienta o sentido do texto o do Menino. Como s se descobre isso nos ltimos pargrafos do conto, pode-se dizer que, em Nenhum, nenhuma, ocorre de fato uma flutuao de foco narrativo, pois como se o observador verdadeiro da narrativa s se revelasse no final do relato. Em Sorco, sua me, sua filha, outro conto de Rosa das Primeiras estrias, h uma interessante ambigidade narrativo-discursiva. Desde o comeo da narrativa, parece que estamos diante de um caso de narrador-no-personagem, que est contando com um relativo grau de distanciamento o momento em que Sorco ir se despedir de sua me e sua filha, duas loucas que sero levadas de trem para um hospcio em Barbacena, pois Sorco no conseguia mais cuidar delas sozinho. Eis a abertura do conto:
Aquele carro parara na linha de resguardo, desde a vspera, tinha vindo com o expresso do Rio, e estava l, no desvio de dentro, na esplanada da estao. No era um vago comum de passageiros, de primeira, s que mais vistoso, todo novo. A gente reparando, notava as 101 diferenas. Assim repartido em dois, num dos cmodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos. A gente sabia que, com pouco, ele ia rodar de volta, atrelado ao expresso da de baixo, fazendo parte da composio. Ia servir para levar duas mulheres, para longe, para sempre. O trem do serto passava s 12h45m (Rosa, 1988, p. 18).
O emprego da expresso a gente, logo no primeiro pargrafo do texto, produz uma ambigidade discursiva, j que ela pode ser tomada ou como um ns ou como um as pessoas, o que significa que ela pode ser um indcio ou de um narrador- testemunha, que estaria assistindo s despedidas de Sorco, ou de um narrador-no- personagem, que no seria ator do enunciado. inegvel que a expresso a gente normalmente uma embreagem actancial que emprega uma terceira pessoa com valor de primeira (do singular ou do plural, dependendo do contexto), mas igualmente inegvel que no h indcios, nesse primeiro pargrafo de Sorco, sua me, sua filha, de que essa expresso no seja uma debreagem enunciva, empregada para mostrar que o narrador no ator do enunciado. Durante o conto alis, durante vrios contos do mesmo livro , repete-se o uso do a gente, sem que haja maneiras de tom-lo, indiscutivelmente, como uma embreagem enunciva ou como uma debreagem enunciva. No final do conto, aps as duas malucas terem partido cantando uma cano que no vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer das palavras, inexplicavelmente Sorco comea a cantar a mesma cantiga das duas:
E foi o que no se podia prevenir: quem ia fazer siso naquilo? Num rompido ele comeou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando. A gente se esfriou, se afundou um instantneo. A gente... E foi sem combinao, nem ningum entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de d do Sorco, principiaram tambm a acompanhar aquele canto sem razo. E com as vozes to altas! Todos caminhando, com ele, Sorco, e canta que cantando, atrs dele, os mais de detrs quase que corriam, ningum deixasse de cantar. Foi o de no sair mais da memria. Foi um caso sem comparao. 102 A gente estava levando agora o Sorco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia at aonde que ia aquela cantiga (Rosa, 1988, p. 21).
Nesta passagem, j h mais indcios para concluir que o narrador compartilha da dor de Sorco e do sentimento de saudade e de liberdade representado por aquela cantiga de desatino. Por isso, a expresso a gente indicaria que esse conto conduzido por um narrador-testemunha, que, ao lado de Sorco (como ator do enunciado, portanto), canta aquela mesma cano, num momento de epifania coletiva que implica um comprometimento afetivo com os acontecimentos narrativos, uma subjetividade enunciativa mais adequada a um narrador-personagem do que a um narrador-no-personagem. Para finalizar essa apresentao dos narradores-personagens, ainda seria possvel distinguir o narrador-protagonista e o narrador-testemunha a partir de conceitos genettianos. Ao distinguir o que chamamos de narrador-personagem e narrador-no- personagem, Genette defende que a
escolha do romancista no feita entre duas formas gramaticais, mas entre duas atitudes narrativas (de que as formas gramaticais so apenas uma conseqncia mecnica): fazer contar a histria por uma de suas personagens, ou por um narrador estranho a essa histria (1995, p. 243).
No primeiro caso, teramos os narradores homodiegticos e autodiegticos; no segundo, o heterodiegtico. Esse narrador do primeiro caso, que chamamos narrador- personagem e corresponde semioticamente ao narrador ator do enunciado e da enunciao simultaneamente, pode, de fato, ser analisado em
duas variedades: uma em que o narrador o heri de sua narrativa, e a outra em que no desempenha seno um papel secundrio, que acontece ser, por assim dizer sempre, um papel de observador e de testemunha (Genette, 1995, p. 244).
A primeira variedade a do narrador-protagonista, chamado de autodiegtico por Genette e definido como 103
a entidade responsvel por uma situao ou uma atitude narrativa especfica: aquela em que o narrador da histria relata as suas prprias experincias como personagem central dessa histria (Reis & Lopes, 2002, p. 259).
A segunda variedade a do narrador-testemunha, chamado de homodiegtico por Genette e definido como
a entidade que veicula informaes advindas da suas prpria experincia diegtica (...), [mas que] embora funcionalmente de assemelhe ao narrador autodiegtico, (...) difere dele por ter participado na histria no como protagonista, mas como figura cujo destaque pode ir da posio de simples testemunha imparcial a personagem secundria estreitamente solidria com a central (Reis & Lopes, 2002, p. 265-266).
Feita a apresentao dos casos de narrador-personagem, passemos a analisar o narrador-no-personagem, o narrador heterodiegtico de Genette, isto , aquele narrador que se comporta apenas como ator da enunciao, sem participar diretamente das transformaes narrativas. Esse tipo de narrador, que tem uma tendncia a recorrer s debreagens enuncivas, pode subdividir-se em narrador-espectador e narrador-onisciente:
Narrador- espectador Ator da enunciao Preferncia pelas debreagens enuncivas Observador sincretizado com o narrador, que no se mistura com as personagens Narrador- onisciente Ator da enunciao Preferncia pelas debreagens enuncivas Observador sincretizado com o narrador, que se mistura com as personagens
O que estamos chamando narrador-espectador engloba as narrativas em que o narrador, como ator da enunciao, est sincretizado com um observador absolutamente externo narrativa e que, por isso, no se confunde com os observadores dos 104 interlocutores, isto , dos demais atores do enunciado. Na proposta de Friedman, esse tipo de narrador caracteriza-se
pela ausncia de intruses diretas no enunciado, pois ele narra impessoalmente em terceira pessoa (...). Essa ausncia de intromisses discursivas no implica, contudo, que nesses casos o narrador denegue voz a si mesmo (1967, p. 123),
visto que
sua presena, interpondo-se entre o leitor e a histria, seja sempre muito clara (Chiappinni, 2005, p. 32).
A obra O falco malts, de Dashiel Hammet, tradicionalmente apresentada como exemplo de narrador-espectador, em que o narrador abre mo de comentar o universo passional e mental de suas personagens para apresent-las a partir de um ponto de vista externo. O fato que esse tipo de narrador existe muito mais como categoria terica do que como concretizao narrativa, uma vez que a estrutura do romance, na maior parte das vezes, leva o narrador a se interessar pelos sentimentos e pensamentos dos atores do enunciado, o que faz com que, em graus diferentes, o narrador acabe demonstrando algum tipo de oniscincia. Com efeito, o narrador-no-personagem onisciente muito mais comum, mais habitual e mais rico no nmero de realizaes discursivas do que o narrador-no- personagem espectador. Tratemos ento com mais cuidado do caso da oniscincia. Do ponto de vista semitico, a oniscincia do narrador est associada ao fato de que ele est segundo nvel enunciativo, enquanto as personagens, os interlocutores, os atores do enunciado esto no terceiro nvel enunciativo: subordinados, portanto, ao narrador. Se assim, o narrador-onisciente, por meio de seu observador, comanda as personagens, o que lhe d a competncia de saber o que vai acontecer com elas, o que elas sentem e pensam. O quanto que ele vai revelar de tudo isso o que define o foco narrativo. Em linhas gerais, temos, nesses casos, sempre um narrador-onisciente; fazendo uma sistematizao mais rigorosa, h nveis de oniscincia, o que leva necessidade de subdividirmos o narrador-onisciente em vrios ncleos:
105
Narrador- onisciente seletivo Ator da enunciao Preferncia pelas debreagens enuncivas Observador sincretizado com o narrador, mas que privilegia o observador de um ator do enunciado especfico Narrador- onisciente multisseletivo Ator da enunciao Preferncia pelas debreagens enuncivas Observador sincretizado com o narrador, mas que privilegia os observadores de mais de um ator do enunciado Narrador- onisciente total Ator da enunciao Preferncia pelas debreagens enuncivas Observador sincretizado com o narrador, mas que se mistura com os observadores dos atores do enunciado conforme a necessidade
O narrador-onisciente, que est no segundo nvel enunciativo, sempre est sincretizado com o observador do narrador (tomado repita-se como ator da enunciao). Ele sempre incorpora o ponto de vista dos observadores dos atores do enunciado, que esto no terceiro nvel enunciativo, misturando-se a eles, e, dependendo da maneira como ele faz essa incorporao, tm-se trs patamares de oniscincia: a seletiva, a multisseletiva e a total. O narrador-onisciente seletivo produz narrativas em que a histria filtrada atravs de um personagem (Barros, 1988, p. 83), o que limita o ponto de vista narrativo ao observador de um dos atores do enunciado, mais comumente do protagonista. Dessa forma, o narrador abre mo de uma viso mais totalizadora da realidade narrada, para apresent-la a partir da ptica especfica de uma das personagens. O efeito desse tipo de narrativa muito semelhante s conduzidas por um narrador-protagonista, pois o discurso construdo sobre os sentimentos, pensamentos e percepes da personagem central (Chiappinni, 2005, p. 54). O discurso indireto livre talvez seja a principal maneira de o narrador misturar-se com o ator do enunciado nos casos de oniscincia seletiva. Como o observador do narrador passa a ser semanticamente equivalente ao observador do protagonista, h uma fuso entre esses dois pontos de vista, o que marcado discursivamente pela incorporao, na fala do narrador, de traos tpicos da fala da personagem. o que acontece, de maneira explcita, em Campo Geral, umas das novelas do Corpo de baile: 106
Mas, ento, de repente, Miguilim parou em frente do doutor. Todo tremia, quase sem coragem de dizer o que tinha vontade. Por fim, disse. Pediu. O doutor entendeu e achou graa. Tirou os culos, ps na cara de Miguilim. E Miguilim olhou para todos, com tanta fora. Saiu l fora. Olhou os matos escuros de cima do morro, aqui a casa, a cerca de feijo-bravo e so-caetano; o cu, o curral, o quintal; os olhos redondos e os vidros altos da manh. Olhou mais longe, o gado pastando perto do brejo, florido de so-joss, como um algodo. O verde dos buritis, na primeira vereda. O Mutum era bonito! Agora ele sabia. Olhou Mitina, que gostava de o ver de culos, batia palmas-de-mo e gritava: Cena, Corinta!... Olhou o redondo de pedrinhas, debaixo do jenipapeiro. Olhava mais era para Me. Drelina era bonita, a Chica, Tomezinho. Sorriu para Tio Terz: Tio Terz, o senhor parece com Pai... Todos choravam. O doutor limpou a goela, disse: No sei, quando eu tiro esses culos, to fortes, at meus olhos se enchem dgua... Miguilim entregou a ele os culos outra vez. Um soluozinho veio. Dito e a Cuca Pingo-de-Ouro. E o Pai. Sempre alegre, Miguilim... Sempre alegre, Miguilim... Nem sabia o que era alegria e tristeza. Me o beijava. A Rosa punha-lhe doces-de-leite nas algibeiras, para a viagem. Papaco-o-Paco falava, alto, falava (Rosa, 1995, p. 142).
O final da novela mostra seu protagonista, Miguilim, partindo do Mutum e despedindo-se da famlia. O menino, que enxergava muito mal, pede os culos do doutor Jos Loureno para poder guardar uma lembrana mais precisa da famlia. Ao olhar tudo sua volta, o enunciatrio passa a apreender a realidade da mesma forma que Miguilim: a paisagem das veredas, a alegria de Mitina, a beleza de Drelina, a semelhana entre Tio Terz e o pai morto, a lembrana da cachorrinha, o conselho de Dito para que Miguilim ficasse sempre alegre. H passagens claras em discurso indireto livre, como O Mutum era bonito! e Sempre alegre, Miguilim... Sempre alegre, Miguilim.... Mas, alm disso, o narrador mimetiza a tpica linguagem infantil como no emprego de diminutivos (pedrinhas), nas enumeraes (o cu, o curral, o quintal), nas repeties (Papaco-o-Paco falava, alto, falava) , para reforar ainda 107 mais a fuso entre o discurso do narrador e o universo passional de Miguilim, como tpico nos casos de oniscincia seletiva. O narrador-onisciente multisseletivo produz narrativas em que a histria filtrada atravs dos personagens (Barros, 1988, p. 83), o que significa que o narrador escolhe mais de um ator do enunciado e, por extenso, mais de um de seus respectivos observadores para orientar a apreenso da narrativa. Para Friedman, na oniscincia seletiva mltipla,
a histria veiculada diretamente pela mente das personagens, (...) [pois] todo material narrativo transmitido ao leitor pela mente de algum presente aos acontecimentos (1967, p. 127),
o que explica por que esse tipo de narrador recorre insistentemente ao discurso indireto livre. A grande diferena entre a oniscincia seletiva e a multisseletiva o nmero de observadores dos atores do enunciado que aparecem, em cada instante da narrativa, sincretizados com o observador do narrador. Na oniscincia seletiva, apenas o observador do protagonista se mistura ao do narrador; na oniscincia multisseletiva, isso ocorre com mais de um ator do enunciado. Na verdade, pode-se considerar que a oniscincia multisseletiva nasce da justaposio de vrias seqncias de oniscincia seletiva. O caso clssico desse recurso na literatura brasileira Vidas secas. O clebre romance de Graciliano Ramos nasceu de um conto, como ele mesmo diz, sobre a morte duma cachorra, publicado pelo jornal argentino La Prensa. Numa carta sua esposa, ele reconhece a dificuldade de
adivinhar o que se passa na alma duma cachorra. Ser que h mesmo alma em cachorro? No me importo. O meu bicho morre desejando acordar num mundo cheio de pres. Exatamente como todos ns desejamos (Garbuglio, Bosi & Facioli, 1987, p. 241).
Aps o conto Baleia, que falava sobre essa antropomorfizada cachorra, um bicho que, segundo Graciliano, saiu inteligente demais, ele afirma, em 1939, sob a origem de Vidas secas:
108 Dediquei em seguida vrias pginas aos donos do animal. Essas coisas foram vendidas, em retalho, a jornais e revistas. E como Jos Olympio me pedisse um livro para comeo do ano passado, arranjei outras narraes, que tanto podem ser contos como captulos de romance. Assim nasceram Fabiano, a mulher, os dois filhos e a cachorra Baleia (Ramos, 1962, p. 54).
A comparao dos captulos de Vidas secas a contos uma confirmao da oniscincia seletiva que caracteriza o romance. Em cada um desses captulos-contos, um ator do enunciado se funde ao narrador, que passa a narrar de acordo com o observador dessa personagem. Isso acontece com clareza em
Fabiano:
Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. A sina dele era correr o mundo, andar para cima e para baixo, toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado pela seca. Achava-se ali de passagem, era hspede. Sim senhor, hspede que se demorava demais, tomava amizade casa, ao curral, ao chiqueiro das cabras, ao juazeiro que os tinha abrigado uma noite (Ramos, 1982, p. 19);
Sinha Vitria:
Era bom levantar-se e procurar uma vara para substituir aquele pau amaldioado que no deixava uma pessoa virar-se. Por que no tinham removido aquela vara incmoda? Suspirou. No conseguiam tomar resoluo. Pacincia. Era melhor que esquecer o n e pensar numa cama igual de seu Toms da Bolandeira. Seu Toms tinha uma cama de verdade, feita pelo carpinteiro, um estrado de sucupira alisado a enx, com as juntas abertas a formo, tudo embutido direito, e um couro cru em cima, bem esticado e bem pregado (Ramos, 1962, p. 45);
O menino mais novo:
109 Subiu a ladeira, chegou-se a casa devagar, entortando as pernas, banzeiro. Quando fosse homem, caminharia assim, pesado, cambaio, importante, as rosetas das esporas tilintando. Saltaria no lombo de um cavalo brabo e voaria na catinga como p-de-vento, levantando poeira. Ao regressar, apear-se-ia num pulo e andaria no ptio assim torto, de perneiras, gibo, guarda-peito e chapu de couro com barbicacho. O menino mais velho e Baleia ficariam admirados (Ramos, 1982, p. 52-53);
O menino mais velho:
No acreditava que um nome to bonito servisse para designar coisa ruim. E resolvera discutir com sinha Vitria. Se ela houvesse dito que tinha ido ao inferno, bem. Sinha Vitria impunha-se, autoridade visvel e poderosa. Se houvesse feito meno de qualquer autoridade invisvel e mais poderosa, muito bem. Mas tentara convenc-lo dando-lhe um cocorote, e isso lhe parecia absurdo (Ramos, 1982, p. 60);
Baleia:
Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de pres. E lamberia as mos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianas se espojariam com ela, rolariam com ela num ptio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de pres, gordos, enormes (Ramos, 1982, p. 91).
Considerados separadamente, cada um desses trechos, cada um desses captulos apresenta um narrador-onisciente seletivo, cujo observador do narrador se funde ao observador do protagonista: Fabiano, que se julgava sempre um hspede em terra alheia; sinha Vitria, a sonhar com uma cama de madeira; o menino mais novo, almejando tornar-se vaqueiro; o menino mais velho, querendo saber o significado das palavras; Baleia, pensando num mundo cheio de pres, gordos, enormes. Tomando todas essas passagens como parte integrante de uma narrativa maior, s possvel consider-la com um exemplo de oniscincia multisseletiva, na medida em que h uma variao dos observadores que orientam, para o enunciatrio, a apreenso da realidade 110 narrada. Em cada momento do romance, um ator do enunciado que, sob a gide do narrador, exerce essa funo de orientao. O narrador-onisciente total tudo sabe, comenta e avalia (Barros, 1988, p. 83), sem privilegiar o observador de nenhum dos atores da enunciao. Para Friedman, trata- se de um tipo de narrativa que
pode ser conduzida de todos os ngulos possveis: de uma posio divina alm dos limites de tempo e espao , do centro, da periferia, da frente (1967, p. 121).
A literatura do sculo XIX, tanto romntica quanto realista-naturalista, valeu-se desse tipo de narrador: obras de Machado, de Ea, de Camilo, de Alencar, de Herculano, de Alusio exploraram a oniscincia total como forma de valorizar o papel do narrador, mostrando que ele, como ator da enunciao, que est no comando da narrativa. Da que ele possa escolher quando, como e por que penetrar no universo passional dos atores do enunciado, para revelar ou esconder detalhes de conduta de cada personagem. Essa escolha que determina, no final das contas, muitos dos efeitos produzidos por uma narrativa, como o suspense, como a criao de expectativas, como a surpresa, como a stira ou o elogio a uma determinada personagem. Vejamos um exemplo de O primo Baslio:
Lusa, na cama, tinha lido e relido o bilhete de Baslio: No pudera escrevia ele estar mais tempo sem lhe dizer que a adorava. Mal dormira! Erguera-se de manh muito cedo para lhe jurar que estava louco, e que punha a sua vida aos ps dela. Compusera aquela prosa na vspera, no grmio, s trs horas, depois de alguns robbers de whist, um bife, dois copos de cerveja e uma leitura preguiosa da Ilustrao. E terminava, exclamando: Que outros desejem a fortuna, a glria, as honras, eu desejo-te a ti! S a ti, minha pomba, porque tu s o nico lao que me prende vida, e se amanh perdesse o teu amor, juro-te que punha um termo, como uma boa bala, a esta existncia intil! Pedira mais cerveja, e levara a carta para fechar em casa, num envelope com o seu monograma, porque sempre fazia mais efeito. 111 E Lusa tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saa delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tpido; sentia um acrscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existncia superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um xtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensaes! (Queirs, 1998, 224-226).
Se lssemos apenas o bilhete que Baslio escreve para Lusa, transcrito em vrias partes, entre as aspas, no haveria motivos para duvidar de que o amor que Baslio sente pela prima sincero e intenso. Um amor byroniano, de to exagerado. No entanto, para invalidar a possibilidade dessa interpretao, o narrador mistura transcrio desse bilhete a situao em que Baslio se encontra ao comp-lo, o que cria um descompasso entre o que ele escreve e o que ele sente ao escrever. Sua prosaica atitude de redigir enquanto come, bebe e joga cartas e seu maquiavelismo de levar a carta para fechar em casa, num envelope com o seu monograma, porque sempre fazia mais efeito mostram que suas palavras a Lusa tm muito pouco de sinceridade. Por isso, o segundo pargrafo do trecho em questo atesta a ingenuidade de Lusa, que no imagina estar sendo seduzida por um cafajeste. No tivesse o narrador intercalado o bilhete de Baslio s informaes sobre como esse texto foi escrito e poderamos ficar com a impresso de que a reao de Lusa merece mais apoio do que condenao. Quem o responsvel por essa revelao o narrador, que, com sua oniscincia total, decide a maneira como se vai avaliar o comportamento dos atores da enunciao. Essa passagem de O primo Baslio muito semelhante a uma outra, de Madame Bovary:
Seis semanas se escoaram. Rodolphe no voltou. Uma noite enfim, apareceu. No voltemos to cedo, seria um erro. E no fim de semana partira para caar. Aps a caa, pensou que era tarde demais, depois fez este raciocnio: 112 Mas, se me amou desde o primeiro dia, com a impacincia de rever-me deve amar-me ainda mais. Continuemos ento. E compreendeu que seu clculo fora bom quando, ao entrar na sala percebeu que Emma empalideceu. (...) Sim, penso constantemente na senhora!... Sua lembrana desespera-me! Ah! Perdo... Deixo-a... Adeus!... Irei para longe... to longe que no ouvir mais falar de mim!... E contudo... hoje... No sei que fora ainda me impeliu para senhora. Pois no se luta contra o cu, no se resiste ao sorriso dos anjos! Deixamo-nos arrastar pelo que belo, encantador, adorvel! Era a primeira vez que Emma ouvia tais coisas; e seu orgulho, como algum que descansa num banho de vapor, espreguiava-me inteiramente e com languidez ao calor daquela linguagem. (...) ia possuir enfim aquelas alegrias do amor, aquela febre de felicidade da qual desesperara. Entrava em algo maravilhoso onde tudo seria paixo, xtase, delrio; uma imensido azulada a rodeava, os cumes do sentimento cintilavam sob seu pensamento, a existncia comum s aparecia ao longe, l embaixo, na sombra, entre os intervalos daquelas alturas (Flaubert, 2001, p. 171-178).
Aqui tambm o narrador, em lugar de deixar a impresso de que a declarao de amor de Rodolphe pudesse ser sincera, prefere mostrar como ele era calculista e como suas palavras galanteadoras eram falsas. Por isso, a alegria de Emma ao ouvi-las tomada como prova cabal da ingenuidade da moa, que no percebe estar sendo enganada. Apenas os narradores que se valem da oniscincia total podem adotar essa postura de avaliar os acontecimentos da narrativa a partir da posio de um observador que encerra um ponto de vista divino (Chiappinni, 2005, p. 26). Sistematizando ento os seis tipos de narrador que apresentamos, teramos:
113
Narrador- protagonista
Obrigatoriedade das debreagens enunciativas Observador sincretizado com o narrador (ator da enunciao) ou com a personagem (ator do enunciado) Narrador- personagem Ator da enunciao + Ator do enunciado
Narrador- testemunha Mistura (sobretudo) entre as debreagens enunciativas da enunciao e enuncivas do enunciado Observador sincretizado com o narrador (como ator do enunciado ou da enunciao) ou com outro ator do enunciado
Narrador- espectador Preferncia pelas debreagens enuncivas Observador sincretizado com o narrador, que no se mistura com as personagens
Narrador- onisciente seletivo Preferncia pelas debreagens enuncivas Observador sincretizado com o narrador, mas que privilegia o observador de um ator do enunciado especfico
Narrador- onisciente multisseletivo Preferncia pelas debreagens enuncivas Observador sincretizado com o narrador, mas que privilegia os observadores de mais de um ator do enunciado
Narrador- no- personagem
Ator da enunciao
Narrador- onisciente
Narrador- onisciente total Preferncia pelas debreagens enuncivas Observador sincretizado com o narrador, mas que se mistura com os observadores dos atores do enunciado conforme a necessidade
Para compreender melhor os efeitos produzidos por cada um desses focos narrativos, seria ainda possvel analisar esses seis tipos de narrador a partir da noo de focalizao, proposta por Genette (1995, p. 187-209). De acordo com a sistematizao dessa noo (Fiorin, 1999, p. 108-111), teramos duas possibilidades de o narrador apreender os acontecimentos da narrativa: a focalizao parcial, que se subdivide em interna e externa, e a focalizao total. A focalizao parcial interna tem como caracterstica principal a matria narrada ser apreendida pelo observador de um dos atores do enunciado, sincretizado com o observador do narrador. Esse observador pode ser fixo, como no caso da oniscincia seletiva e do narrador-protagonista, varivel, como no caso da oniscincia multisseletiva e do narrador-testemunha, e mltiplo, que ocorre, por exemplo, 114
nos romance por cartas, onde o mesmo acontecimento pode ser evocado vrias vezes segundo o ponto de vista de vrias personagens-epistolgrafas (Genette, 1995, p. 188).
A focalizao parcial externa, tpica do que chamamos de narrador-espectador, ocorre quando
vemos apenas as aes das personagens, no sabemos quais so seus pensamentos e sentimentos. Focaliza-se a exterioridade da cena e no se v a partir do ntimo do observador (Fiorin, 1999, p. 110).
Em alguns casos, um narrador-testemunha, quando apresenta aes do protagonista da narrativa, tambm pode recorrer focalizao externa. Por fim, existe a focalizao total, que se caracteriza por no ser
nem exterior ao ntimo das personagens nem interior a uma delas. Nesse caso, o observador onisciente, sabe mais que as personagens, conhece os pensamentos e sentimentos de cada uma delas (Fiorin, 1999, p. 110),
O narrador-onisciente total recorre a esse tipo de focalizao. Esquematicamente, teramos:
Tipo de narrador Focalizao Narrador-protagonista Focalizao parcial interna fixa Narrador-testemunha Focalizao parcial interna varivel (possibilidade de focalizao parcial externa) Narrador-espectador Focalizao parcial externa Narrador-onisciente seletivo Focalizao parcial interna fixa Narrador-onisciente multisseletivo Focalizao parcial interna varivel (possibilidade de focalizao parcial interna mltipla) Narrador-onisciente total Focalizao total
115
Todas essas possibilidades de anlise do papel e da funo do narrador nos textos s sero satisfatrias do ponto de vista terico, se no se perder de vista a idia de que o segundo nvel enunciativo est subordinado ao primeiro e que, portanto, a anlise do foco narrativo no pode prescindir da idia de que h um enunciador que decide o modo como o narrador ir conduzir a narrativa. S que a apreenso das caractersticas do enunciador no algo to simples assim. E, sem essa apreenso, no se pode analisar os modos de narrar em toda sua complexidade. Essa ser a tarefa do item seguinte. 116 4. Estilo e thos: a apreenso do enunciador
(...) devemos provar que estilo thos, corpo, voz, carter de uma totalidade, sendo que o corpo da totalidade remete ao corpo do ator da enunciao. (Norma Discini, O estilo nos textos)
Quando Greimas e Courts (1983, p. 159) afirmaram, no primeiro Dicionrio de Semitica, ser praticamente impossvel dar uma definio semitica de estilo, eles estavam pensando no aparato terico disponvel nos anos 70, de fato insuficiente para dar conta de delimitar um conceito to polissmico como esse. No segundo Dicionrio, num verbete assinado por Denis Bertrand, reafirma-se a dificuldade de definir satisfatoriamente o estilo, mas levanta-se a hiptese de transform-lo, no mnimo, num conceito operatrio. Com isso, o estilo, se no chega a fazer parte da metalinguagem semitica consagrada, ao menos deixa de ser visto como uma noo que no nos compete estudar. Nesse verbete, Bertrand recupera algumas idias de Barthes, que associava o estilo ao universo idioletal, mas vai alm, defendendo que o estilo um efeito de um discurso-enunciado e que, por meio dele, h
menos um sujeito que se diz em seu idoleto prprio (como sugeriu Roland Barthes) do que um sujeito que toma forma e se mostra como uma figura- resultado, que o enunciatrio (que professa o julgamento) reconstri passo a passo, lendo sua configurao especfica (Greimas & Courts, 1986, p. 213-214).
Talvez por causa dessas sugestes de Barthes e Bertrand, a Semitica foi perdendo o medo de falar sobre o estilo e, aos poucos, esse conceito foi sendo incorporado aos estudos da linguagem, principalmente aps os trabalhos de Discini (2003). Atualmente, de Zilberberg a Amossy, tem sido comum recuperar algumas reflexes da Retrica, para traz-las para o mbito da Semitica e da Anlise do discurso. Maingueneau (1984, 1997, 2001 e 2005) e o prprio Bertrand so pesquisadores que tm mostrado a possibilidade de compatibilizar os ensinamentos retricos aos estudos discursivos. Essa retomada da Retrica clssica ao mesmo tempo 117 autoriza e exige que nos debrucemos sobre o conceito de estilo, cujo corolrio a noo de thos. Se apreendemos, pelo discurso, as crenas, os juzos de valor, a viso de mundo do enunciador, isso ocorre porque o enunciador se constri no texto por meio de recorrncias (tanto no plano da expresso quanto no do contedo) que apontam para sua intencionalidade. Todo texto tem uma intencionalidade, uma direo, um sentido. Da mesma forma, todo enunciado pressupe um determinado thos do enunciador, que se manifesta por meio de recorrncias, para que o enunciado atinja o resultado planejado. Essas recorrncias dependem, em ltima instncia, de um simulacro, isto , de uma imagem que o enunciador faz de si e de uma imagem que ele quer transmitir ao enunciatrio. Essa imagem a imagem-fim, sugerida por Greimas e Fontanille (1993, p. 105), que, para Discini, nasce como um efeito de sentido de uma totalidade de discursos enunciados e fundamenta ento o ator da enunciao:
Tal imagem-fim constri esse ator, enquanto competncia para ser, e construda por ele, na medida em que advm de um fazer contnuo e recorrente (Discini, 2003, p. 74-75).
Dessa forma, essa imagem-fim 33 um
simulacro reflexivo, ou seja, imagem construda do ator para si mesmo (....), supondo a viso que tenho do outro, bem como a viso que penso que o outro tem de mim (Discini, 2003, p. 28-29),
e ela apreendida, juntamente com a imagem do enunciatrio, pelas recorrncias temticas, figurativas, modais, tensivas, fricas que vo aparecer no enunciado. Se Bertrand tem razo em dizer que o estilo um efeito de um discurso-enunciado, seriam essas recorrncias que caracterizariam textualmente o estilo. Mas o conceito de estilo seria pouco til se s servisse para designar enunciados particulares, tomados como unidades de sentido autnomas. Desse modo, teramos tantos estilos quantos seriam os enunciados produzidos pelo homem e no
33 Tambm definida, simplificadamente, como aquilo que o sujeito sonha para si e imagina de si (Discini 2003, p. 73). 118 distinguiramos o enunciador do narrador e dos eventuais interlocutores de um enunciado. Da a necessidade de agrupamentos estilsticos. De fato, quando consideramos um
sujeito de uma totalidade de discursos, dizemos que essa imagem-fim o aspectualiza, confirma nele um modo de ser no mundo (Discini, 2003, p. 73).
Esse modo de ser, que depende da noo de intencionalidade (na verdade, mais do que um modo de ser, temos um querer querer-ser de certo modo),
sobremodaliza a construo de sua competncia modal. No se trata da competncia para um fazer, para uma performance, para um agir apenas, mas uma competncia para ser, e ser discursivamente, como presena do mundo, ser como carter (Discini, 2003, p. 73).
Em ltima anlise, de acordo com sua viso de mundo e com sua intencionalidade discursiva que o ator da enunciao de uma totalidade de discursos, para construir um estilo, pauta seu modo de ser (Discini, 2003, p. 74). Note-se ento que a apreenso semntica do enunciador, como ator da enunciao, como produtor dos efeitos estilsticos, como sujeito de uma totalidade de discursos, passa pela noo de totalidade discursiva. De acordo com as propostas tericas de Discini, os conceitos de unidade (U), integral (i), totalidade (T) e partitivo (p), sugeridas por Greimas e Landowski 34 (Greimas, 1981, p. 86), podem servir para comprovar que a noo de estilo passa pelo integral, seja a unidade integral (unus), seja a totalidade integral (totus) (Discini, 2003, p. 34). Tanto considerando o estilo como um unus quanto como um totus, ele sempre produz, por mais estranho que parea primeira vista, um efeito de individuao, de unidade.
Ao falar em estilo, falamos em unidade e em totalidade; unidade, porque h um sentido nico, ou um efeito de individuao; totalidade, porque h um conjunto de discursos, pressupostos unidade. Unidade e totalidade so universais quantitativos (Discini, 2003, p. 31).
34 No ensaio A construo de objetos semiticos Anlise semitica de um discurso jurdico: a lei comercial sobre a sociedade e os grupos de sociedades. 119
No caso da unidade integral, fcil perceber esse efeito, j que o unus se define por ser distinto de tudo aquilo que ele no . O efeito de individuao, aqui, evidente: o unus isto, e no isso, nem aquilo, nem aqueloutro. O estilo um unus. No caso da totalidade integral, o efeito menos evidente, mas o fato que, embora o totus pressuponha o mais-de-um, ele representa um agrupamento organizado sob o ponto de vista da semelhana, que implica um efeito de unidade (Discini, 2003, p. 34). De fato, o estilo, mesmo que comece a ser apreendido por meio de unidades parciais, s nos interessa medida que ele possa ser integralizado. O estilo se depreende de um totus. Na realidade, o recorte do leitor que decide o que considerado unus ou totus (Discini, 2003, p. 34), pois a relao entre a totalidade integral e a unidade integral de implicao mtua. Mas, independentemente do recorte, no momento de identificar os traos que definem discursivamente o estilo, estamos sempre diante de um efeito de individuao (um unus) e de uma totalidade de discursos (um totus). Da vem que, se o conceito de estilo uma unidade integral depreendida de uma totalidade integral, h mais de um recorte discursivo em que podemos encaixar esse conceito. Exemplifiquemos rapidamente com Machado de Assis 35 . Ao ler as Memrias pstumas de Brs Cubas, estamos diante de uma unidade parcial. Se associarmos essa obra a outros romances machadianos, teremos uma totalidade integral. Dessa totalidade, aprenderemos a unidade integral, o unus, o estilo. Mas tambm podemos associar as Memrias pstumas a obras do Realismo brasileira ou tradio literria de Laurence Sterne ou Xavier de Maistre. Em um ou outro caso, teramos outras totalidades integrais, que levariam a outros estilos. Dessa forma, possvel pensar no estilo machadiano, no estilo realista ou ainda no estilo dos romances revolucionrios da literatura dos sculos XVIII e XIX. O conceito de estilo interessa-nos quando ele nos leva ao enunciador, uma vez que o estilo que produz a imagem que o enunciador transmite de si mesmo. Por isso, possvel apreender o estilo sempre que ele engloba o conjunto de obras de um escritor, de uma poca ou de uma tendncia literria qualquer (ou ainda, quando pertinente, agrupamentos mais especficos, como ocorre com os heternimos pessoanos).
35 No captulo seguinte, aprofundaremos a discusso sobre o estilo machadiano, sobre seu thos, sobre o ator da enunciao Machado de Assis. 120 No primeiro item deste captulo, mostramos que tanto enunciador quanto enunciatrio so actantes da enunciao. O sujeito da enunciao, ao recobrir as posies de enunciador e enunciatrio, tambm seria um actante da enunciao. Mas, ao operar com as noes de estilo e thos, deparamos com um enunciador revestido semanticamente, pois as recorrncias, que configuram o estilo e o thos que se depreende dele e do forma ao ator do primeiro nvel, captam-se no segundo e no terceiro nvel enunciativo. Dessa forma, seria necessrio considerar o enunciador tambm como um ator da enunciao, cujo
contedo semntico prprio parece consistir essencialmente na presena do sema da individualizao que o faz aparecer com uma figura autnoma do universo semitico (Greimas & Courts, 1983, p. 34).
Do ponto de vista sintxico, o enunciador somente um actante logicamente pressuposto pelo enunciado; do ponto de vista semntico, ao ser discursivizado, o enunciador pode ser tomado como ator da enunciao:
(...) neste ltimo caso, o ator ser, digamos, Baudelaire, enquanto se define pela totalidade de seus discursos (Greimas & Courts, 1983, p. 35).
O ator da enunciao um unus que provm de um totus. Ao se deixar apreender pelas recorrncias estilsticas que se observam numa totalidade de discursos, esse ator da enunicao adquire a espessura semntica para retomar a expresso de Bertrand (2003, p. 82) que o define. Ele
pode ser visto como o grande enunciador, construdo por meio do efeito de individuao. A totalidade de discursos constri esse efeito de individuao, fundamentando-o num efeito de perspectiva sobre o mundo, o que indica crenas, transformadas em valores. Esse efeito de individuao, salientamos, emerge da recorrncia do uso. Por tal recorrncia pauta-se a norma, definida, outrossim, pela competncia estratgica do prprio eu implcito a uma totalidade. Vemos, ento, subjacente ao ator, uma norma, como princpio regulador que define o modo de funcionamento do sujeito depreensvel de uma totalidade (Discini, 2003, p. 39).
121 A apreenso do estilo leva ao thos discursivo, que o conjunto dos traos semnticos investidos no actante e depende da recorrncia do uso. Essas recorrncias, que levam ao eu implcito em uma totalidade, manifestam-se por meio de um carter, uma voz e um corpo 36 , pois o thos pressupe o que dito e o tom com que dito (Maingueneau, 1997, p. 46). No universo literrio, por exemplo, quando estamos falando sobre as caractersticas de um determinado escritor, podemos assegurar que a aprenso do enunciador exige a anlise de mais de um discurso-enunciado, para que se tenha o unus pressuposto ao totus. De fato, depreender o estilo de um conjunto de obras literrias determinar os traos especficos do enunciador que as produziu. Esse enunciador fala indiretamente nessas obras, por meio dos narradores por ele criados, e apenas a anlise das recorrncias ideolgicas, temticas, figurativas, modais, tensivas, fricas, tanto no plano da expresso quanto no plano do contedo, pode levar apreenso do enunciador. J dissemos que, quando enunciador e narrador so equivalentes semanticamente, produz-se um efeito de objetividade; j quando enunciador e narrador no so equivalentes semanticamente, produz-se um efeito de subjetividade. No primeiro caso, no h diferenas semnticas to perceptveis entre o primeiro e o segundo nvel enunciativo, por isso mais dficil precisar caractersticas do enunciador; no segundo caso, h uma probabilidade maior de haver uma dissenso mais clara entre a instncia da enunciao e a do enunciado, de modo que seria possvel apreender mais satisfatoriamente os traos que individualizam o enunciador. Na verdade, no primeiro caso, como o narrador no costuma ser ator do enunciado, no se nota com facilidade que h, por trs da voz do narador, uma instncia pressuposta que est no comando da produo discursiva; parece que o prprio narrador o enunciador do texto. J no segundo caso, como o narrador costuma ser ator do enunciado, o efeito de subjetividade gerado por essa configurao discursiva faz com que seja possvel perceber quais so algumas das caractersticas do enunciador pressuposto ao discurso. Como conseqncia disso, podemos concluir que, se quisermos apreender o enunciador de textos conduzidos por narradores que no so atores do enunciado (isto , por narradores espectadores ou oniscientes), ser sempre preciso considerar mais de um texto, afinal o thos s apreensvel por uma totalidade de discursos. Em contrapartida, se quisermos captar o
36 Ver Maingueneau (1997, p. 46-47, 2000, p. 60, 2001, p. 139 e 2005, p. 72-73). Voltaremos a tratar das noes de carter, voz e corpo, tomadas como manifestaes discursivas do thos, no ltimo item do captulo seguinte. 122 enunciador de textos conduzidos por narradores que se comportam tambm como atores do enunciado (ou seja, narradores protagonistas e testemunhas), possvel encontrar, a partir de apenas um texto, ndices para essa captao. Isso ocorre porque, nesses casos, o enunciador oferece mais indcios sobre seu revestimento semntico 37 . Mas imprescindvel que esses ndices sejam confirmados pela totalidade da obra, sob o risco de no se chegar ao efeito de individuao que caracteriza o estilo. No texto de Discini (2003, p. 30) que serviu de epgrafe a este item, afirma-se peremptoriamente que estilo thos. O conceito de thos remonta Retrica clssica, sobretudo quando Aristteles apresenta os trs tipos de prova, os trs tipos de argumentos procurados pelo discurso:
uns residem no comportamento de quem fala [thos]; outros, em propor ao ouvinte um determinado estado de nimo [pthos]; outros, no prprio discurso, pelo que demosntra ou parece demonstrar [lgos] (Aristteles, 1356a [2001, p. 53]).
No difcil reconhecer que esse thos aristotlico adquire
um duplo sentido: por um lado, designa as virtudes morais que garantem credibilidade ao orador, tais quais a prudncia, a virtude e a benevolncia; por outro, comporta uma dimenso social, na medida em que o orador convence ao se exprimir de modo apropriado a seu carter e a seu tipo social. Nos dois casos, trata-se da imagem de si que que o orador produz em seu discurso, e no de sua pessoa real (Charaudeau & Maingueneau, 2004, p. 220).
Para os estudos semiticos e de anlise do discurso, o thos no pode ter qualquer ligao com a realidade ontolgica, pois no interessa consider-lo como manifestao de prudncia, de virtude ou de benevolncia do autor real. Na realidade, o thos a imagem de si que o enunciador transmite por meio do discurso. A concepo retrica de thos parte da idia de que todo discurso visa persuaso. Sendo assim, a imagem que o orador cria de si mesmo, o carter 38 que ele
37 Na anlise das Memrias pstumas de Brs Cubas, voltaremos a tratar desta questo. 38 No atribumos nenhum contedo moral ao termo carter, que, na lngua geral, assim como comportamento (ambas as palavras j empregadas como tradues de thos), est impregnado de uma conotao, de uma carga valorativa muito forte, como se persuadir fosse criar uma imagem boa de si mesmo. No ltimo item do captulo seguinte, voltaremos discusso sobre o carter. 123 demonstra em seu discurso fundamental para que as estratgias de persuaso sejam bem sucedidas. Com efeito,
os vestgios do thos esto realmente presentes na pesquisa moderna, freqentemente escondidos, ou melhor, rechaados para outras problemticas seja como condio de sinceridade, na teoria dos atos de linguagem de Searle, como princpio de cooperao ou como mximas conversacionais em Grice, seja como mximas de educao, de modstia ou de generosidade, em Leech e em outros autores. Basta ler as passagens sobre a adaptao do orador a seu auditrio ou sobre a pessoa e seus atos ou sobre o discurso como ato do orador em Perelman, para se dar conta de que o thos est sempre presente como realidade problemtica em todo discurso humano (Eggs, 2005, p. 30).
Coube incialmente a Ducrot a tarefa de aproximar o thos do conceito de enunciao, comprovando que a imagem de si que o enunciador veicula nasce das escolhas discursivas realizadas numa instncia pressuposta pelo enunciado 39 . Em outras palavras: o thos concebido na enunciao, como estratgia discursiva e no apenas como estratgia de persuaso nascida do comportamento do produtor do enunciado. Para Ducrot, o thos
est ligado a L, o locutor 40 como tal: tomando-o como fonte da enunciao que que ele se v revestido de certas caractersticas que, como contrapartida, tornam essa enunciao aceitvel ou recusvel (Ducrot, 1984, p. 201).
Como o thos seria o responsvel por tornar um discurso aceitvel ou recusvel, retoma-se idia de que, numa teoria mais ampla de enunciao, todo ato de comunicao se estrutura sobre um /fazer crer/, o que no deixa de estar associado a um problema bastante discutido pela Retrica. Trata-se, assim, de uma questo de legitimao discursiva:
39 Barthes, num seminrio proferido entre 1964-1965, j abordara essa questo, afirmando: the so os atributos do orador (e no os do pblico, pthe): so os traos de carter que o orador deve mostrar ao auditrio (pouco importa sua sinceridade) para causar boa impresso: so os jeitos. No se trata pois de uma psicologia expressiva, mas de uma psicologia imaginria (...): eu devo significar o que quero ser para o outro (2001, p. 77). 40 Para Ducrot (1984, p. 193), o locutor deve ser compreendido como um ser que, no interior do enunciado, apresentado como ser responsvel, quer dizer, como aquele a quem se deve imputar a responsabilidade por esse enunciado. 124 O enunciador deve legitimar seu dizer: em seu discurso, ele se atribui uma posio institucional e marca sua relao a um saber (Charaudeau & Maingueneau, 2004, p. 220).
Fazendo uma associao entre as reflexes desse item e o problema do foco narrativo, chegamos concluso de que o mais importante em relao ao modo de narrar no o tipo de narrador, no o foco em si afinal tudo isso pertence ao segundo nvel enunciativo , mas sim a intencionalidade das escolhas do enunciador o que remete ao primeiro nvel enunciativo. O efeito discursivo mais relevante de um enunciado no o produzido pela focalizao interna, externa ou total. O que mais interessa reconhecer que o thos pode ser apreendido pela anlise das formas de focalizao que se observam num grupo de discursos, tomados como uma totalidade. O problema do estilo nos textos e da construo do thos no enunciado se localiza no primeiro nvel enunciativo. O segundo nvel enunciativo apenas refrata essas questes. Por isso, quando se discute a noo de estilo, no se deve atribuir ao narrador o que da competncia do enunciador. Se o que determina o estilo so as recorrncias do uso, so as escolhas operadas no primeiro nvel enunciativo, so as invarincias de expresso e contedo que asseguram o efeito de individuao a partir de uma totalidade de discursos e se essa determinao passa pela construo de um thos compatvel com a intencionalidade enunciativa, pode-se dizer que cada narrador, sendo uma instncia discursiva no- autnoma, embora tenha a possibilidade de ser revestido semanticamente como ator (seja da enunciao, seja do enunciado), o que lhe daria um certo grau de individualizao, acaba veiculando o estilo e o thos do enunciador que o criou, ainda que seja por oposio, uma vez que os the podem ser contrrios entre si. Nas narrativas em que o narrador ator do enunciado, casos do narrador protagonista e testemunha, pode haver uma ruptura semntica entre o primeiro e o segundo nvel enunciativo. Nesses casos, h quem defenda e no nosso caso que que o enunciador, nesses casos, tem que respeitar o revestimento semntico do narrador- personagem por ele criado e que, por isso, no haveria como ele projetar certas caractersticas de seu estilo como a escolha lexical ou o grau de refinamento psicolgico das personagens sobre o enunciado. Algumas anlises da Teoria Literria corroboram essa hiptese. Veja-se o que diz lvaro Lins sobre Graciliano Ramos:
125 O principal defeito de S. Bernardo j tem sido apontado mais de uma vez: a inverossimilhana de Paulo Honrio como narrador, o contraste entre o livro e seu imaginrio escritor, o que j se verificara em Caets. De certo modo, em todos os romances escritos na primeira pessoa, concede-se uma margem para a inverossimilhana. Contudo, em S. Bernardo ela excessiva e inceitvel. Uma novela de tanta densidade psicolgica, elaborada com tantos requintes de arte literria, no suporta o artifcio de ser apresentada como escrita por um personagem primrio, rstico, grosseiro, ordinrio, da espcie de Paulo Honrio. Mesmo com um narrador impessoal, alis, ainda subsistiria alguma inverossimilhana, pois aquele personagem, como aparece no romance, no podia ter a vida interior que lhe atribui o romancista. a inverossimilhana que se verificar, embora sob outro aspecto, em Vidas Secas (Lins, 1982, p. 147).
Parece-nos que Lins est ampliando demais as exigncias da verossimilhana, j que, em nome dela, ele condena os romances de Graciliano escritos na primeira pessoa, sobretudo S. Bernardo, apontando incoerncias semnticas que, de acordo com nosso modelo de anlise, simplesmente no existem, uma vez que ele atribui a Paulo Honrio o que da competncia do enunciador, exigindo de uma personagem uma coerncia estilstica que nasce no primeiro, e no no segundo nvel enunciativo. Faamos uma breve digresso. A verossimilhana, ao lado da convenincia, do maravilhoso e das unidades, constitui as regras gerais do formalismo clssico (Spina, 1995, p. 105). Esse conceito aparece no captulo IX da Potica:
Pelas precedentes consideraes se manifesta que no ofcio do poeta narrar o que aconteceu; , sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que possvel segundo a verossimilhana e a necessidade. Com efeito, no diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postos em verso as obras de Herdoto, e nem por isso deixariam de ser histria, se fossem em verso o que eram em prosa) diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder (Aristteles, 1451b [1993, p. 53]).
Ora, o objetivo de Aristteles, ao defender que o ofcio do poeta apresentar as coisas que poderiam suceder, era falar sobre as coeres de dois dos gneros clssicos a epopia e a tragdia , de modo que se regulassem as relaes entre a 126 Histria e a Poesia, entre a realidade e a fico. Tanto verdade que Spina reconhece que a verossimilhana a regra fundamental da tragdia e do poema pico (Spina, 1995, p. 110). Para a poesia lrica e para a comdia, por exemplo, a obrigao da verossimilhana se daria sob outras formas. Na literatura moderna, em que surgiram outros gneros literrios, como os da prosa de fico, passamos, mantendo a perspectiva aristotlica, a considerar a verossimilhana como sinnimo de coerncia discursivo-narrativa, como o princpio que garante que, num enunciado, todas as partes esto solidariamente vinculadas entre si (Greimas & Courts, 1983, p. 52). Lins parece estar operando justamente com essa definio de verossimilhana, o que apenas confirma que sua anlise mistura dois nveis enunciativos diferentes, ampliando equivocademente o alcance do conceito aristotlico. A verossimilhana um problema do primeiro nvel enunciativo, pois a coerncia discursiva construda pelo enunciador, nunca pelo narrador. Dessa forma, no se pode obrigar, em nome dessa exigncia de uma presumvel verossmilhana, um narrador-personagem a manifestar um estilo literrio, demonstrar um thos e apresentar reflexes, linguagem e traos psicolgicos que sejam absolutamente compatveis com o revestimento semntico do ator do enunciado sincretizado com o narrador. Seria um reducionismo atroz, que impediria, por exemplo, uma narrativa de ser conduzida por personagens que no fossem escritores. Seria uma ampliao inconcebvel para o conceito de verossimilhana. Quem determina o nvel de densidade psicolgica ou de requintes de arte literria de um texto o enunciador, no o narrador. O fato de So Bernardo ser conduzido por um personagem primrio, rstico, grosseiro, ordinrio, da espcie de Paulo Honrio tem seus reflexos sobre o segundo nvel enunciativo, e no sobre o primeiro. Exigir que a linguagem do romance e que a sofisticao da apreenso da realidade pelo narrador sejam plenamente compatveis com o lado rstico, grosseiro e ordinrio de Paulo Honrio diminuiria sensivelmente as virtualidades discursivas, as possibilidades expressivas de uma obra literria. Lins ainda infeliz quando afirma que o narrador no podia ter a vida interior que lhe atribui o romancista, idia que parte mais de uma anlise da realidade ontolgica do que da observao da construo da realidade discursiva no romance. Na verdade, o estilo que Paulo Honrio veicula e que aparece tambm em Caets, em Vidas secas, em Angstia o mesmo; o thos o mesmo, pois o enunciador o mesmo. Faltou a Lins considerar a totalidade dos romances de 127 Graciliano para chegar a essa concluso, pois evidente que h, na obra do escritor, em meio s particularidades de cada narrador, um interesse pela dimenso social e psicolgica das personagens, uma valorizao da linguagem direta, sem excessos de adjetivos, semelhana de Hemingway. Se Paulo Honrio um bruto, um intelectual, um portador de esquizofrenia, isso pouco importa para a construo desse thos do enunciador. Isso interessa para as transformaes narrativas, para os conflitos que se criam entre os atores do enunciado, enfim, para o segundo e, eventualmente, para o terceiro nvel enunciativo, no para o primeiro. Porque, se no fosse assim, Riobaldo, com suas derivaes imprprias, com seus estrangeirismos e neologismos, com sua sintaxe imprevista, seria inverossmil tambm. Brs Cubas, com sua erudio literria e seu humor fino, seria incoerente tambm. A construo do thos um unus que se faz a partir de um totus. Supor que cada narrador tenha autonomia para criar seu prprio estilo, revelia do enunciador, fazer uma confuso de nveis e no conferir enunciao de 1 grau que o incio de qualquer manifestao discursiva a competncia de determinar como o enunciado apresentar o modo do ser do enunciador, como uma totalidade de discursos criar a imagem do sujeito produtor do texto. No captulo seguinte, procuraremos estudar Memrias pstumas de Brs Cubas, luz dessas noes tericas.
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Captulo 2: As experincias discursivas em Memrias pstumas
129 1. Subverso enunciativa: traos de modernidade
Belo da arte: arbitrrio, convencional, transitrio questo de moda. Belo da natureza: imutvel, objetivo, natural tem a eternidade que natureza tiver. Arte no consegue reproduzir natureza, nem este seu fim. Todos os grandes artistas, ora consciente (Rafael das Madonas, Rodin do Balzac, Beethoven da Pastoral, Machado de Assis do Brs Cubas), ora inconscientemente (a grande maioria) foram deformadores da natureza. Donde infiro que o belo artstico ser tanto mais artstico, tanto mais subjetivo quanto mais se afastar do belo natural. Outros infiram o que quiserem. Pouco me importa. (Mrio de Andrade, Prefcio Interessantssimo, Paulicia Desvairada)
A deformao da natureza a que se refere Mrio de Andrade nesta epgrafe , certamente, histrica e relativa. Histrica, porque a subverso de uma poca pode tornar-se regra em outro momento; relativa, porque o modelo de uns pode ser a transgresso de outros. Nessa observao do Prefcio Interessantssimo, o que Mrio defende que os grandes artistas foram, de alguma forma, revolucionrios, ainda que inconscientemente. No despropositada, alis, a tese de que as grandes obras de arte sempre tm um qu de modernidade, entendendo por esse conceito um rompimento esttico-ideolgico em relao ao que se produzia no passado. Nesse sentido, Petrarca, Cervantes, Shakespeare, Goethe, Flaubert so cada um a seu modo modernos, pois representam uma ruptura com os modelos que os precederam. Ao atacar a concepo de que a arte tem como finalidade a reproduo verista da realidade, Mrio de Andrade queria provocar, queria criar polmica, como convinha ao Prefcio Interessantssimo, escrito sob os eflvios libertrios da Semana de Arte de Moderna. Entretanto, desconsiderando as presumveis diferenas entre o belo artstico e o belo natural, o fato que Mrio acaba reconhecendo que os grandes artistas reproduzem, sim, a natureza; e isso ocorre no de uma maneira mecnica e objetiva, mas de um modo subjetivo, pessoal, especfico. por isso, segundo ele, que certas obras de arte so to aplaudidas: que elas, ao deformarem a realidade, mostram um eu que se exprime, que se mostra, que se pronuncia no espetculo da Histria. Trazendo essa discusso para o terreno das Letras, mais especificamente para o da Lingstica e da Semitica, sabe-se que os grandes textos literrios so, de alguma 130 maneira, deformadores da realidade, o que muitas vezes implica (e isto o que nos interessa nesta tese) a subverso das estruturas enunciativas. Como vimos no primeiro captulo, a simples existncia de trs nveis enunciativos pressupe a existncia de trs enunciaes. certo que as enunciaes possuem uma autonomia bastante relativa, j que esto subordinadas enunciao de 1 grau, que seria a instncia logicamente pressuposta pela existncia do enunciado. Alm disso, na maioria dos textos, principalmente os no-literrios, essas enunciaes de 2 e 3 grau no chegam a aparecer com clareza. Mas a obra literria, principalmente quando inovadora, subverte as estruturas enunciativas, apontando para a necessidade de estudar, separadamente, as enunciaes de um texto. isso que acontece, por exemplo, com Memrias pstumas de Brs Cubas. Em princpio, trata-se de um romance escrito por Machado de Assis e narrado por Brs Cubas, que assume tambm os papis de observador e ator do enunciado. Mas as coisas no so to simples assim. Na maioria das edies brasileiras de Memrias pstumas de Brs Cubas, h um prlogo, chamado Prlogo da quarta edio, assinado por Machado de Assis, em que, alm de anunciar pequenas emendas no texto, ele responde a algumas dvidas de crticos literrios sobre o romance. Trata-se de um metadiscurso, por meio do qual Machado 41 apresenta o narrador Brs Cubas. Em tese, o enunciador no fala no texto. Trata-se de um papel pressuposto pela figura do narrador. Acontece que, se admitirmos que o Prlogo da quarta edio faz parte do jogo discursivo das Memrias pstumas, tem-se um problema de autoria: no parece que foi Brs Cubas quem o escreveu, at porque ele debreado enuncivamente 42 ; igualmente, em nome da coerncia do modelo terico de anlise semitica, no se pode supor que Machado, de carne e osso, quem est falando. Diante dessa dificuldade, resta tomar esse prlogo como um caso de metalepse (Fiorin, 1999, p. 122), por meio do qual se neutralizam os papis do narrador e do enunciador. Alis, no gnero prlogo, no incomum essa neutralizao. como se o enunciador interviesse no enunciado para deixar claro que o narrador Brs Cubas no possui autonomia discursiva. Tem-se a uma enunciao de 1 grau enunciada. Mas essa neutralizao passageira: logo aps o prlogo, vem uma advertncia que na maioria
41 Usaremos o nome do escritor entre as aspas para reportar ao ator da enunciao; sem as aspas, para indicar a pessoa, de carne e osso, que escreveu a obra. 42 No digo mais para no entrar na crtica de um defunto, que se pintou a si e aos outros, conforme lhe pareceu melhor e mais certo (MP, p. 20). 131 das edies consultadas se intitula Ao leitor , assinada j por Brs Cubas, que se apresenta no s como narrador, mas tambm como o autor do romance. curioso notar que, no prlogo, aparecem diversas indcios para mapear o estilo machadiano a partir das Memrias, como as citaes literrias, a referncia ao leitor, o humor e o pessimismo. Desse modo, instaura-se uma situao complexa:
1. O enunciador apresenta algumas caractersticas do romance, aproximando-se assim do narrador. 2. O enunciador faz questo de dizer que no vai intervir no romance (ou seja, no vai entrar na crtica de um defunto), afastando-se assim do narrador.
Na verdade, nas Memrias pstumas, h uma notvel diferena entre a enunciao de 1 grau e a de 2 grau. Como o enunciador e o narrador no esto sincretizados, o enunciado produz um efeito de sentido de ficcionalidade (afirmao 2). Mas, alm disso, o enunciador quer deixar claro que, embora seja Brs Cubas o narrador do romance, este est sob seu comando e, por conta disso, narrador e enunciador podem possuir uma pontual conformidade semntica. Em outros termos, o enunciador veicula seu estilo pela voz do narrador (afirmao 1). Essa mistura de vozes, essa subverso enunciativa, verdadeira polifonia machadiana, ser o principal assunto deste captulo. 132 2. Simulacro de uma autobiografia: o dilogo de um morto
A terceira peculiaridade [da cosmoviso carnavalesca] so a pluralidade de estilos e a variedade de vozes de todos esses gneros [do srio-cmico]. (...) Caracterizam-se pela politonalidade da narrao, pela fuso do sublime e do vulgar, do srio e do cmico, empregam amplamente os gneros intercalados: cartas, manuscritos encontrados, dilogos relatados, pardias dos gneros elevados, citaes recriadas em pardia, etc. (...) (Mikhail Bakhtin, Problemas da Potica de Dostoivski)
Na advertncia do romance, explicitamente dirigida ao leitor, Brs Cubas reconhece algumas de suas influncias estticas, como Lawrence Sterne e Xavier de Maistre. Essas referncias j tinham sido apresentadas por Machado no prlogo, o que comprova a aproximao semntica no que tange ao estilo entre narrador e enunciador:
Toda essa gente viajou: Xavier de Maistre roda do quarto, Garret na terra dele, Sterne na terra dos outros. De Brs Cubas se pode talvez dizer que viajou roda da vida (MP, p. 19).
Aps as referncias literrias introdutrias, Brs faz um pequeno comentrio sobre a prpria obra, num exerccio de metalinguagem muito comum durante a narrativa:
Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e no difcil antever o que poder sair desse conbio. Acresce que a gente grave achar no livro umas aparncias de puro romance, ao passo que a gente frvola no achar nele o seu romance usual; ei-lo a fica privado da estima dos graves e do amor dos frvolos, que so as duas colunas mximas da opinio (MP, p. 21).
133 Na advertncia, tem-se uma enunciao de 2 grau enunciada. Acontece que, ao menos nesse caso especfico, essa enunciao de 2 grau poderia ser considerada (do ponto de vista dos valores que esto sendo defendidos) equivalente enunciao de 1 grau. Por esse raciocnio, o que permite, nesse exemplo, distinguir o primeiro e o segundo nvel enunciativo nas Memrias pstumas a dissociao sintxica enunciador e narrador, e no presumveis dessemelhanas semnticas entre a enunciao de 1 grau e a de 2 grau. 43
Ainda na advertncia de Brs aos leitores, retomam-se o risonho e o sentimento amargo e spero do prlogo por meio das figuras da pena da galhofa e da tinta da melancolia e inicia-se o que muito comum na obra uma interlocuo 44 com o narratrio, representado na sarcstica expresso fino leitor. Essa conversa com o leitor, que atesta que Brs no est to interessado em angariar as simpatias da opinio, j um indcio de que o narrador, por estar morto (afinal o romance obra de finado), estabelecer muitas vezes uma relao conflituosa com o narratrio. Terminada a advertncia, vem famosa dedicatria aos vermes decompositores, tambm de autoria de Brs. S ento se sai desse prembulo, que contm os textos preliminares que antecedem a fbula, e o romance propriamente dito, a narrativa em si, comea. Tomando como ponto de referncia apenas o discurso de Brs-morto, pode-se dizer que o romance uma autobiografia. Neste tipo de texto, enunciador e narrador se equivalem, o que produz um efeito de sentido de referencializao, de realidade, de no- ficcionalidade. Em relao categoria actancial, valorizam-se as debreagens enunciativas, j que o narrador se instala no discurso tanto como ator do enunciado, quanto como ator da enunciao, empregando por isso regularmente a primeira pessoa. Em relao categoria temporal, o narrador costuma empregar o sistema enunciativo como ator da enunciao e o sistema enuncivo do pretrito como ator do enunciado, definindo claramente dois marcos temporais. Mas, ainda assim, numa autobiografia, como no h distines semnticas entre enunciador e narrador, as marcas temporais no fornecem indcios suficientes para diferenciar os valores do primeiro e do segundo nvel enunciativo.
43 Como veremos, h muitas passagens do romance em que se percebem claras diferenas de valores entre a enunciao de 1 grau e a de 2 grau. No o caso dessa passagem. 44 (...) se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se no te agradar, pago-te com um piparote, e adeus. (MP, p. 21) 134 Acontece que, como vimos, Brs Cubas no enunciador do romance. Essa posio sintxica de Machado. As Memrias pstumas so, pois, o simulacro de uma autobiografia, j que Brs se apresenta (melhor seria dizer: apresentado) como o suposto autor do romance. Semioticamente, Brs o narrador do romance e seu pseudo- enunciador, j que claramente existe um nvel enunciativo superior ao do seu discurso; da a idia de que a narrativa um simulacro, e no uma autobiografia propriamente dita. Pensando assim, tem-se, em Memrias pstumas, um aparente efeito de referencializao, tpico da autobiografia, pois Brs assume os papis de narrador e pseudo-enunciador. Mas, a rigor, o efeito produzido pelo romance de ficcionalidade, na medida em que o enunciador Machado que est controlando todas as bravatas enunciativas de Brs. Alm disso, o fato de Brs ser um defunto, que, morto, do alm- tmulo, resolve expedir alguns magros captulos para esse mundo (MP, cap. LXXI, p. 140), produz uma enunciao fantstica, num processo que, por lembrar o maravilhoso da literatura clssica, confirma o efeito enunciativo de ficcionalidade de que se falou. Para comprovar essa vinculao programada do romance fantasia, basta ler seu primeiro captulo, intitulado bito do autor. Talvez fosse mais preciso, do ponto de vista semitico, cham-lo de bito do narrador. De qualquer modo, uma narrativa comear com uma transformao de juno to pitoresca quanto representada pela morte, alm de ser uma espcie de in medias res moderno, serve para deixar bem claro que as Memrias no tm compromisso com a literatura realista-naturalista tradicional do sculo XIX. Essa postura narrativa tem inevitavelmente seus reflexos sobre a enunciao que constri a fbula romanesca. Alis, essa postura lembra, inevitavelmente, algumas caractersticas da stira menipia. Como notou Bakhtin (1997b, p. 113), a noo mais completa desse gnero deu-se na obra de Luciano de Samsata. um verdadeiro lugar-comum da crtica literria que se debruou sobre a obra de Machado apontar as semelhanas entre o bruxo do Cosme Velho e a tradio lucinica. 45
No ensaio Dilogo dos mortos sobre os vivos, Brando defende que a obra de Luciano, principalmente os clebres Dilogos dos mortos, prope uma fuso do srio e
45 essa a tese defendida, por exemplo, por Murachco (1999, p. 38), na introduo sua traduo para o portugus dos Dilogos dos mortos, por Teixeira (1988, p. 94-96) em sua Apresentao de Machado de Assis e por Rego (1989) em O calundu e a panacia. 135 do cmico, na tentativa de pensar o mundo com olhar estrangeiro (1996, p. 15). Esse efeito de afastamento permite ao texto, por mais contraditrio que parea, produzir um efeito de verdade, j que os mortos ou qualquer outro tipo de estrangeiro, do louco ao clown podem falar da vida com a autoridade de quem bem a conhece, como os vivos, e com o distanciamento de quem dela se afastou, como os mortos. por isso que os
Dilogos dos mortos, provavelmente a obra de Luciano mais lida em todos os tempos, so (...) um vasto painel em que se misturam personalidades de pocas e lugares diferentes (...), com personagens consagradas pela mitologia e pela literatura, alm de gente normal, num ininterrupto dilogo que ininterrupto justamente porque ps-vida. Cada uma das peas, em sua fragmentria completude que lembra a de um vdeo-clipe, soma-se num mosaico de falas independentes tanto quanto interdependentes no sobre os mortos, mas sobre os vivos. So instantneos que se deslocam sem perder de vista um objetivo bem definido: a crtica social (Brando, 1996, p. 16).
Tomando como referncia O delrio (cap. VIII), O velho dilogo de Ado e Eva (cap. LV) ou O Humanitismo (cap. CXIII), s para recorrer aos exemplos mais evidentes, fica difcil no reconhecer a interdiscursividade entre Memrias pstumas e Dilogos dos mortos. Nesses captulos (em sua fragmentria completude que lembra a de um vdeo-clipe), sob a gide da fantasia literria ou de uma espcie de maravilhoso moderno, a obra machadiana se aproxima da tradio lucinica, sugerindo que o enunciador do romance tenha recebido influncias dos gneros do srio-cmico, principalmente no que tange liberdade narrativa e discursiva. Com efeito, como assinala Bakhtin, o srio-cmico e, mais especificamente, a stira menipia
est livre das lendas e no est presa a quaisquer exigncias de verossimilhana externa vital. A menipia se caracteriza por uma excepcional liberdade de inveno do enredo e filosfica (Bakhtin, 1997b, p. 114).
No contexto da literatura do sculo XIX, essas exigncias de verossimilhana externa vital eram tanto mais importantes quanto mais se celebrava a necessidade de a obra de arte representar a realidade. Nesse sentido, as Memrias so um conjunto de transgresses, de deformaes, de rupturas. 136 O prlogo de Machado, a advertncia de Brs, a dedicatria aos vermes e o primeiro captulo do romance podem ser tomados, por um lado, como uma negao s exigncias de verossimilhana do Realismo-Naturalismo e, por outro, como a comprovao de que uma literatura satrica sempre esconde, por trs dos efeitos de humor, um objetivo crtico. Mas no se trata, aqui, do velho ridendo castigat mores revisitado, pois o axioma latino pressupe uma grande dose de direcionamento, de intencionalidade, em que o riso motivado por absurdos narrativos, mas sempre h uma moral superior a celebrar. Trata-se, sim, de valorizar a excepcionalidade e o inacabamento da apresentao (Discini, 2006, p. 54). Nas Memrias pstumas, h notveis absurdos narrativos (o morto que fala, o delrio em que se conversa com Pandora, o dilogo entre os pensamentos de Brs e Virglia, as loucuras filosficas de Quincas Borba), que comprovam justamente esse inacabamento, tpico da stira menipia. Essa propenso ao fantstico, em lugar de distanciar o romance de uma inteno realista lato sensu, aproxima-o a um objetivo crtico. S que isso no to evidente e, como Brs sempre se afasta do discurso moralizante tradicional, o lado digamos srio, realista das Memrias fica pressuposto: no se trata de recorrer fantasia para chegar verdade, e sim utiliz-la como uma espcie de convite reflexo, de experimentao da verdade. essa, exatamente, a principal caracterstica da menipia, de acordo com Bakhtin:
A particularidade mais importante do gnero da menipia consiste em que a fantasia mais audaciosa e descomedida e a aventura so interiormente motivadas, justificadas e focalizadas aqui pelo fim puramente filosfico- ideolgico, qual seja, o de criar situaes extraordinrias para provocar e experimentar uma idia filosfica: uma palavra, uma verdade materializada na imagem do sbio que procura essa verdade. Cabe salientar que, aqui, a fantasia no serve materializao positiva da verdade mas busca, provocao e principalmente experimentao dessa verdade (Bakhtin, 1997b, p. 114).
Nessa perspectiva, o narrador estar morto menos importante pelo fato em si do que pela vinculao das Memrias pstumas aos gneros do srio-cmico. Nestes, a fantasia tm um fim puramente filosfico-ideolgico, o que significa dizer que Machado no recorre a situaes extraordinrias seno para experimentar uma determinada maneira de ver o mundo, a arte e a literatura. 137 Ora, essa maneira de ver o mundo uma projeo enunciativa. No caso das Memrias pstumas, esse ponto de vista se mistura como veremos com mais cuidado no transcorrer do captulo polmica, provocao, stira, liberdade. Essa postura de enfrentamento, de confronto mais de Machado do que de Brs Cubas, o que significa dizer que ela produto mais da enunciao de 1 grau do que da enunciao de 2 grau. Por isso, a vinculao do romance stira menipia no sugere apenas que as Memrias pstumas se aproximam da tradio lucinica, mas tambm sugere que o enunciador machadiano que, em princpio, s pode ser apreendido pela anlise da totalidade de suas obras influencia-se pelos gneros do srio-cmico. Nesse sentido, a cosmoviso carnavalesca presente em Memrias pstumas um indcio de um princpio carnavalizador mais amplo, como tentaremos comprovar no captulo seguinte na anlise da totalidade dos romances machadianos. Aqui, vale a pena uma digresso. O conceito de carnavalizao foi desenvolvido por Bakhtin em duas fases. Em 1940, ao apresentar sua tese F. Rabelais na Histria do Realismo (que, depois, foi ampliada e publicada em 1965 sob o ttulo de A obra de Franois Rabelais e a cultura popular na Idade Mdia), ele comea sua anlise sistemtica do Carnaval. Para ele, durante os festejos medievais, ocorria a abolio das relaes hierrquicas, de modo que ocorria
o triunfo de uma espcie de uma libertao temporria da verdade dominante e do regime vigente, de abolio provisria de (...) privilgios, regras e tabus (1999, p. 8-9).
Essa descrio do Carnaval leva ao realismo grotesco, que mostra o corpo humano
nas suas fendas e aberturas, nos seus buracos enfim. No custa voltar os olhos para aquele corpo idealizado pelo ascetismo cristo segundo a celsitude e idealizado pelos cnones clssicos segundo o acabamento e a perfeio. Esse corpo rebaixado pelo ponto de vista que constri a imagem grotesca. Compatvel com a vida corporal dada na sua inesgotabilidade e no sancionada por um olhar normalizador, emerge a imagem grotesca emparelhada loucura alegre do carnaval e das festas populares da praa pblica (Discini, 2006, p. 58) 138
Bakhtin mostra ento como o grotesco se ope francamente ao cnon clssico e utiliza essa noo como subsdio terico na anlise de Gargntua e Pantagruel. Embora os crticos literrios e os estudiosos da linguagem em geral se interessem por essa anlise, inegvel que essa obra desperta tambm o interesse de outros pesquisadores, como folcloristas e antroplogos (Clark & Holquist, 1998, p. 31), uma vez que Bakhtin ainda no chega, a esta altura, a mostrar a carnavalizao com um princpio de construo literria digamos omnitemporal. Ao longo de sua produo intelectual, Bakhtin vai desenvolvendo suas pesquisas sobre o Carnaval, at que, em 1963, ele lana Problemas da Potica de Dostoivski, obra em que a carnavalizao passa a ser uma postura artstica, configurando uma estratgia de construo do romance polifnico. Nessa perspectiva, podemos entender a carnavalizao como uma inverso de papis, como um monde lenvers (Bakhtin, 1997b, p. 123). No Carnaval, de fato,
a vida se pe ao contrrio, o mundo inverte-se. Suspendem-se as interdies, as restries, as barreiras, as normas que organizam a vida social, o desenrolar da existncia normal (Fiorin, 2006b, p. 92).
por isso que, na potica dos gneros, a carnavalizao passa ser vista como o processo em que o texto renuncia unidade estilstica e passa a ser caracterizado pela politonalidade da narrao (Bakhtin, 1997b, p. 107-108). Essa politonalidade est ligada prpria gnese do Carnaval, que ganha, em Problemas da Potica de Dostoivski, o estatuto de cosmoviso, na medida em que o carnaval propriamente dito (repetimos, um conjunto de todas as vrias festividades de tipo carnavalesco) no , evidentemente, um fenmeno literrio, mas sim uma forma sincrtica de espetculo, que pressupe uma cosmoviso carnavalesca, que pode ser transposta para a linguagem da literatura. a essa transposio do carnaval para a linguagem da literatura que chamamos carnavalizao da literatura (Bakhtin, 1997b, p. 122). A stira menipia , assim, um gnero que,
indicado em relao de convergncia com o folclore carnavalesco e de divergncia com gneros srios como epopia e tragdia, apresenta-se 139 impregnado da fora transformadora da cosmoviso carnavalesca e sobrevive mesmo em nossos dias, segundo Bakhtin (Discini, 2006, p. 77).
Pode parecer estranho que Machado, um autor que a tradio considera partidrio do Realismo, ter sua obra vinculada carnavalizao, stira menipia e, em ltima instncia, ao esprito do realismo grotesco. De fato, no decorrer do XIX, houve uma
degenerao do realismo grotesco em empirismo naturalista, fato do qual apontado como isento o chamado realismo em grande estilo, sustentado por autores como Stendhal e Balzac, que so tidos como os que mantm vivos alguns elementos desestabilizadores e vivificadores do grotesco medieval e renascentista (Discini, 2006, p. 64).
Se Bakhtin tivesse podido ler Machado, era possvel que inclusse o autor de Dom Casmurro no grupo de Balzac, Stendhal e Dostoivski. A cosmoviso carnavalesca parece ser uma das caractersticas mais marcantes do thos machadiano e aparece, com mais intensidade do que em qualquer outro romance, em Memrias pstumas de Brs Cubas. Com isso, abre-se a possibilidade de intuir quem Machado por meio de um nico romance. Essa possibilidade tanto mais vivel quanto mais prximos estivermos de comprovar a hiptese de que as Memrias pstumas possuem uma complexidade discursiva to grande que nos permitiria chegar a uma smula estilstica da obra machadiana. Essa complexidade que se constri, num primeiro momento, pela clara distino entre narrador e enunciador no romance, tambm envolve uma dose de fantasmagoria, representada pelo defunto autor pode comear a ser entendida com a aproximao entre o romance e a stira menipia. Isso porque
no convm levar to a srio esse ar sobrenatural, pois o fantstico no passa de um estratagema humorstico, de uma primeira manifestao do sarcasmo de Machado. Sem dvida: mas precisamente essa fuso de humorismo filosfico e fantstico que nos consente atinar com o verdadeiro gnero do romance: Brs Cubas um representante moderno do gnero cmico-fantstico (...), tambm conhecido como literatura menipia (...). (Merquior, 1990, p. 332)
140 A seriedade do romance no est, por certo, na figura do autobigrafo a remoer suas memrias, nem mesmo nas crticas mordazes que ele faz a alguns de seus contemporneos. A crtica mais sria das Memrias pstumas est na enunciao de 1 grau. Produzida pelo sujeito de enunciao, essa crtica um sinal de que o romance se assenta sobre uma raiz carnavalesca (Bakhtin, 1997b, p. 108). A proximidade entre as Memrias pstumas e a cosmoviso carnavalesca (e, mais especificamente, entre o romance e a stira menipia) um problema de interdiscursividade, j que Machado incorporou na sua obra percursos temticos e figurativos tpicos de obras como Dilogos dos mortos. Mais uma vez, volta-se enunciao, pois a interdiscursividade sobretudo uma relao entre discursos, entre enunciadores, entre enunciaes. Para no estender demasiadamente essa discusso mas ainda assim procurar comprovar a vinculao das Memrias pstumas ao esprito da menipia, o que ser retomado mais tarde , basta uma passagem do captulo A idia fixa:
(...) este livro escrito com pachorra, com a pachorra de um homem j desafrontado da brevidade do sculo, obra supinamente filosfica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, cousa que no edifica nem destri, no inflama nem regela, e todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado (MP, cap. IV, p. 28).
A filosofia desigual, ora austera, ora brincalhona, mais do que passatempo e menos do que apostolado, uma marca textual da aproximao entre Machado e os gneros do srio-cmico. A verdade no interessa ao enunciador como categoria absoluta; o que importa, como notou Bakhtin, so as aluses busca, provocao e principalmente experimentao dessa verdade (1997b, p. 114). possvel, a partir dessas observaes, comear um mapeamento dos efeitos enunciativo-discursivos produzidos pelas Memrias pstumas. indiscutvel que o enunciador do romance no equivalente ao seu narrador, afinal est-se diante de um simulacro de uma autobiografia, o que implica um efeito de sentido de ficcionalidade, sob a aparncia de um efeito de realidade. Esse efeito que est ligado aos nveis enunciativos do romance poderia ser tomado como um indcio de que a obra envereda pelo caminho da fantasia literria, do excesso de subjetivismo, do devaneio da imaginao, o que seria corroborado pelo fato de o narrador ser um defunto autor. 141 Muitas vezes, como acontece na menipia, esse direcionamento para a fantasia e para o subjetivismo funcional, programada, como um exerccio de liberdade literria, de experimentao da verdade. Assim as particularidades semnticas do enunciado das Memrias pstumas, que incluem a autobiografia de um morto, a filosofia inslita, as auto-ironias, no so mero riso destrutivo (Discini, 2006, p. 65), mas sim o triunfo de uma espcie de uma libertao temporria da verdade dominante (Bakhtin, 1999, p. 8). 142 3. Graus enunciativos: outras complexidades vista
Deixem-me dizer-lhes que no tenho o menor interesse pelo autor emprico de um texto narrativo (ou de qualquer texto, na verdade). Sei que estarei ofendendo muitos dos presentes que talvez dediquem boa parte de seu tempo leitura de biografias de Jane Austen ou Proust, Dostoievsky ou Salinger, e tambm sei perfeitamente como maravilhoso e empolgante vasculhar a vida privada de pessoas reais que amamos como se fossem nossos amigos ntimos. (Umberto Eco, Seis passeios pelos bosques da fico)
Retomando tudo o que envolve os trs nveis enunciativos, ainda h algumas observaes a fazer. Existem, em princpio, trs enunciaes nas Memrias pstumas: a do enunciador, qual as outras esto subordinadas, a do narrador e as dos eventuais interlocutores. Pensando em Brs Cubas como narrador e ator do enunciado, pode-se postular que a enunciao de 1 grau a de Machado; a de 2 grau, a de Brs-morto; e uma das de 3 grau, a de Brs-vivo. O famoso bito do autor, primeiro captulo do romance, j suficiente para identificar esses trs nveis. O primeiro pargrafo um caso tpico de enunciao enunciada, marcada sintxica e semanticamente:
Algum tempo hesitei se devia abrir essas memrias pelo princpio ou pelo fim, isto , se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja comear pelo nascimento, duas consideraes me levaram a adotar diferente mtodo: a primeira que eu no sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro bero; a segunda que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moiss, que tambm contou a sua morte, no a ps no intrito, mas no cabo: diferena radical entre esse livro e o Pentateuco (MP, cap. I, p. 23).
Numa primeira anlise, essa enunciao enunciada a de 2 grau, pois sua responsabilidade do narrador. Mas, como a enunciao de 2 grau subordinada de 1 grau, esse pargrafo permite que seja identificada tambm a enunciao de 1 grau. 143 Isso porque quem tem o poder de comear a narrativa pelo princpio ou pelo fim o enunciador, e no o narrador, j que este delegado por aquele. Quem pretende ento ser inovador, fazendo com que o texto ficasse mais galante e mais novo, Machado, e no Brs. Desse modo, a enunciao enunciada do primeiro captulo do romance pode ser da responsabilidade do enunciador, que estaria falando pela voz do narrador. O que parece uma complicao terica , na realidade, um problema de nveis enunciativos. No h contradio nenhuma em afirmar que uma determinada passagem pode estar associada tanto enunciao de 1 grau, quanto de 2 grau. Primeiro porque a enunciao de 2 grau hierarquicamente dependente da de 1 grau; segundo porque h, de fato, passagens do romance em que enunciador e narrador defendem os mesmos valores. A necessidade dessa distino outra 46 : ela essencial nos momentos em que h uma disparidade semntica entre narrador e enunciador. Para evitar discusses por enquanto acessrias, pode-se interpretar o incio de bito do autor como uma enunciao enunciada, de 1 grau (o que pressuporia uma metalepse) ou de 2 grau, por meio da qual o enunciador aproveitando-se da voz delegada ao narrador justifica suas escolhas discursivas. O pargrafo seguinte do primeiro captulo da obra conta como Brs morreu. Nesse momento, ele lamenta de uma maneira um tanto quanto sarcstica que apenas onze amigos estiveram presentes ao seu funeral. Os argumentos que ele apresenta para o pequeno quorum no so srios (Verdade que no houve cartas nem anncios. Acresce que chovia [...]), como se a ausncia de publicidade e a chuva pudessem espantar amigos verdadeiros. Um dos presentes, daqueles fiis de ltima hora, que, em princpio, Brs considera um amigo bom e fiel, instalado como interlocutor no enunciado (o que implica, portanto, uma enunciao de 3 grau), profere ento um discurso engenhoso beira da cova:
Vs, que o conhecestes, meus senhores, vs podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparvel de um dos mais belos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do cu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe
46 Essa distino, independentemente de mostrar-se til para anlise de certos textos, origina-se ainda de uma necessidade epistemolgica, j que ela fundamental para a coerncia do modelo terico que utilizamos. 144 funreo, tudo isso a dor crua e m que lhe ri natureza as mais ntimas entranhas; tudo isso um sublime louvor ao nosso ilustre finado. (MP, cap. I, p. 23-24)
Logo aps esse exerccio de bajulao, que est em discurso direto no romance, o narrador afirma: No, no me arrependo das vinte aplices que lhe deixei. No mnimo, essa interveno sugere que o bom e fiel amigo fez esses elogios em razo das compensaes que recebeu. Tudo isso so indcios bastantes para concluir que essa passagem irnica. Pode ser uma ironia do interlocutor, que s estaria interessado na herana; pode ser uma ironia do narrador, que satiriza o orador, embora contra essa interpretao pese o fato de que Brs, mais de uma vez, usa o termo amigos para se referir aos presentes em seu enterro; e pode ser uma ironia do enunciador, que satiriza o narrador e sua crena, ingnua, de que aqueles elogios tinham alguma coisa de sinceridade. Na primeira hiptese, trata-se uma ironia da enunciao de 3 grau, que mistura ganncia e falsidade; na segunda, uma ironia da enunciao de 2 grau, cujo alvo o interlocutor; na terceira, uma ironia da enunciao de 1 grau, cujo alvo o narrador. Temos aqui no uma ambigidade tripla, que dificultaria a compreenso da obra, e sim outra comprovao de que, semelhana da stira menipia, o discurso machadiano em Memrias pstumas se afasta da verdade objetivada com pretenso de acabamento e transparncia. Ainda nesse primeiro captulo, cita-se Hamlet (o undiscovery country), alude- se ao Velho Testamento (Moiss e o Pentateuco) e fazem-se referncias histricas clssicas (vo desde o Ilisso), numa demonstrao de erudio como mostraremos mais adequada ao enunciador do que ao narrador, o que tambm confirmaria que, mesmo na enunciao de 2 grau enunciada, possvel perceber traos da enunciao de 1 grau. Aceitando a tese de que Memrias pstumas, como uma obra que se filia cosmoviso carnavalesca, possui objetivos crticos, de desestabilizao do discurso moralizante tradicional, curioso perceber que Brs simultaneamente produtor e alvo dessas crticas. Produtor, no segundo nvel enunciativo; alvo, no primeiro. certo que, quando Brs produtor da crtica, no se percebe uma relao de oposio ideolgica entre o narrador e enunciador. Essa relao fica clara quando Brs alvo da crtica, porque, nesse caso, o enunciador que est satirizando o narrador. 145 Esses momentos de enunciao enunciada 47 (seja do enunciador, seja do narrador) configuram passagens metalingsticas muito caras obra, como no captulo Transio:
(...) isto de mtodo, sendo como , uma coisa indispensvel, todavia melhor t-lo sem gravata nem suspensrio, mas um pouco fresca e solta, como quem no se lhe d da vizinha fronteira, nem do inspetor de quarteiro. como a eloqncia, que h uma genuna e vibrante, de uma arte natural e feiticeira, e outra tesa, engomada e chocha (MP, cap. IX, p. 41).
Nesse fragmento, aps fazer a transio narrativa entre sua morte e seu nascimento, o narrador comenta a estrutura do romance. Para usar uma idia de Maingueneau, Brs sai da dimenso da narrativa e entra na do discurso. Este pressupe uma embreagem 48 sobre a situao de enunciao; aquela, a ausncia dela (Maingueneau, 1996a, p. 41). Em outros termos, o narrador deixa o enunciado e caminha para a enunciao. Nas Memrias pstumas, essa mistura, antes de ser uma exceo, praticamente regra:
Narrativa e discurso so conceitos lingsticos que permitem analisar enunciados (...). Nada impede que um texto misture esses dois planos enunciativos. Alis, regra geral no que diz respeito aos textos de narrativa, que poucas vezes so inteiramente homogneos e que dificilmente apagam todas as marcas de subjetividade enunciativa (...) (Maingueneau, 1996a, p. 50).
Na passagem do captulo Transio, tem-se, outra vez, o problema que foi apresentado em bito do autor: fica difcil precisar se temos uma projeo da enunciao do enunciador ou da enunciao do narrador. Numa primeira impresso, o narrador Brs Cubas quem est com a voz e, atuando como o pseudo-autor da obra, ele apresenta algumas questes de mtodo. Mas no inaceitvel pensar que o captulo IX uma projeo da enunciao do enunciador, que estaria a justificar em tom jocoso
47 No em virtude de debreagens ou de embreagens apenas, mas devido aos explcitos comentrios sobre a produo do enunciado. 48 O termo embreagem est aqui empregado para designar o processo por meio do qual um enunciado organiza suas marcaes [actanciais, temporais e espaciais] com relao situao de enunciao, e no a partir de um jogo de envios internos ao enunciado (Maingueneau, 2000, p. 49). 146 algumas de suas escolhas enunciativas, que so muito mais da responsabilidade de Machado do que de Brs. Mais uma vez, em qualquer uma das leituras, fica patente a idia de que, nas Memrias, h duas instncias bem demarcadas:
A narrativa, que corresponde sobretudo ao nosso segundo nvel enunciativo, englobando o enunciado enunciado, com seus programas, percursos e seqncias narrativas. Os comentrios narrativa, que correspondem sobretudo ao nosso primeiro nvel enunciativo, incidindo sobre a enunciao enunciada.
Esse jogo entre a narrativa e os comentrios 49 marcado por certas debreagens temporais. Aproveitando uma idia de Benveniste e considerando as diferenas entre o passado simples e o passado composto em Francs, Maingueneau afirma que
em francs contemporneo, no h concorrncia entre dois tempos, mas complementaridade entre dois sistemas de enunciao, o discurso e a narrativa. O passado simples o tempo de base da narrativa, e o passado perfectivo do discurso (1996a, p. 43-44).
Benveniste, para definir essa instncia narrativa, fala em enunciao histrica:
Trata-se da apresentao dos fatos sobrevindos a um certo momento do tempo, sem nenhuma interveno do locutor na narrativa. Para que possam ser registrados como se tendo produzido, esses fatos devem pertencer ao passado (1995, p. 262).
O pass simple seria esse tempo da histria, da narrativa e corresponderia, em Portugus, ao que Fiorin chamou pretrito perfeito 2, que pertence ao sistema enuncivo (1999, p. 153). J o pass compos seria o tempo dos comentrios, do discurso:
49 Chamou-se de comentrios o que Maingueneau chama de discurso. 147 preciso entender discurso na sua mais ampla extenso: toda enunciao que suponha um locutor ou um ouvinte e, no primeiro, a inteno de influenciar, de algum modo, o outro (Benveniste, 1995, p. 167).
Em Portugus, o pass compos francs seria representado pelo que Fiorin chama pretrito perfeito 1, que tempo do sistema enunciativo (1999, p. 153). possvel expandir essas noes, mostrando que os tempos do sistema enuncivo sobretudo do subsistema do pretrito esto associados narrativa, enquanto os tempos do sistema enunciativo aos comentrios narrativa 50 . Desse modo, mais clara do que a oposio entre o pretrito perfeito 1 e 2, seria a prpria oposio entre os tempos enunciativos (Fiorin, 1999, p. 148) e o subsistema centrado num momento de referncia pretrito (Fiorin, 1999, p. 154). Nas Memrias pstumas, h em vrias passagens uma oscilao entre as debreagens temporais enuncivas e as enunciativas: aquelas se referindo narrativa, ao enunciado enunciado, e estas, aos comentrios narrativa, enunciao enunciada. Os dois pargrafos finais do captulo Curto, mas alegre mostram bem essa oscilao entre a narrativa e os comentrios. O penltimo pargrafo do captulo est sobretudo na dimenso narrativa:
Para lhes dizer a verdade toda, eu refletia as opinies de um cabeleireiro, que achei em Modena, e que se distinguia por no as ter absolutamente. Era a flor dos cabeleireiros; por mais demorada que fosse a operao do toucado, no enfadava nunca; ele intercalava as penteadelas com muitos motes e pulhas, cheios de um pico, de um sabor... No tinha outra filosofia. Nem eu. No digo que a Universidade me no tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe s as frmulas, o vocabulrio, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim: embolsei trs versos de Virglio, dois de Horcio, uma dzia de locues morais e polticas, para as despesas da conversao. Tratei-os como tratei a histria e a jurisprudncia. Colhi de todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentao... (MP, cap. XXIV, p. 75).
50 Benveniste, por exemplo, defende que a enunciao histrica comporta trs tempos: o aoristo (= pass simple ou pass dfini), o imperfeito (...) e o mais-que-perfeito, enquanto os trs tempos fundamentais do discurso seriam presente, futuro e perfeito (Benveniste, 1995, p. 262-268). 148 As formas verbais em negrito esto todas no pretrito perfeito 2 ou no imperfeito, para indicar concomitncia com o marco de referncia pretrito. Trata-se de debreagens enuncivas que situam o plano da narrativa: Brs Cubas est, de fato, contando sua histria. Note-se, porm, que, no trecho No digo que Universidade no me tivesse ensinado, h uma forma verbal no presente, que pertence ao sistema enunciativo. Essa forma remete justamente enunciao enunciada, o que comprova que os tempos enunciativos servem sobretudo para delimitar o discurso, os comentrios narrativa. justamente isso que acontece no ltimo pargrafo do captulo em questo:
Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realo a minha mediocridade; advirta que a franqueza a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinio, o contraste dos interesses, a luta das cobias obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarar os rasges e os remendos, a no estender ao mundo as revelaes que faz conscincia; e o melhor da obrigao quando, fora de embaar os outros, embaa-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que uma sensao penosa e a hipocrisia, que um vcio hediondo. Mas, na morte, que diferena! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, j no h vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos; no h platia. O olhar da opinio, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o territrio da morte; no digo que ele se no estenda para c, e nos no examine e julgue; mas a ns que no se nos d do exame nem do julgamento. Senhores vivos, no h nada to incomensurvel como o desdm dos finados (MP, cap. XXIV, p. 75-76).
As formas verbais em destaque, no presente, configuram debreagens enunciativas que intensificam a presena do eu no texto. Isso comum principalmente nos momentos em que Brs Cubas est comentando a narrativa. No captulo I, as duas ocorrncias da forma verbal no presente e as no pretrito perfeito 1 hesitei, levaram, foi e contou e, no captulo IX, as formas no presente , d, e 149 h confirmam que a enunciao enunciada, que os comentrios narrativa so veiculados por meio de debreagens temporais enunciativas. Esses comentrios narrativa principalmente os dos captulos I e IX geram um outro problema enunciativo, que est associada distino, desenvolvida pelos formalistas russos, entre fbula e enredo 51 . Tomachevski, em seu famoso ensaio Temtica, afirma que a fbula corresponderia
ordem cronolgica e causal dos acontecimentos, independentemente da maneira como eles esto dipostos na obra (Tomachevski, 2001, p. 272),
enquanto o enredo seria
constitudo pelos mesmos acontecimentos, mas respeitando-se a maneira por meio da qual eles esto ordenados na obra (Tomachevski, 2001, p. 272).
Essa distino analisada detalhadamente por Eco, que afirma:
A fbula o esquema fundamental da narrao, a lgica das aes e a sintaxe das personagens, o curso dos acontecimentos ordenado temporalmente (...). O enredo , pelo contrrio, a histria como de fato contada, tal como aparece em superfcie, com as suas deslocaes temporais, saltos para frente a para trs (ou seja, antecipaes e flash-back), descries, digresses, reflexes parentticas (Eco, 1993, p. 109).
Nessa perspectiva, o conceito de enredo, que muito til para a anlise dos romances machadianos, sinnimo de trama 52 e de intriga (Moiss, 1995, p. 173). Em
51 Optou-se pela utilizao desses conceitos, que no fazem parte da metalinguagem semitica, porque eles tm sido largamente empregados nas anlises literrias. Eles sero usados de uma maneira especializada: a fbula corresponder programao temporal (disposio dos diversos programas [narrativos] em ordem cronolgica), enquanto o enredo, a intriga, a trama ser a programao textual propriamente dita, j que dois programas sero necessariamente dispostos em sucesso linear, mas no cronolgica. Greimas e Courts reconhecem que esses dois tipos de programao deixam (...) uma margem estratgica organizao do discurso e dependem da competncia discursiva do enunciador e constituem duas formas de interveno do enunciador no enunciado, dois diferentes procedimentos de textualizao (Greimas & Courts, 1983, p. 462). O que mais nos interessa justamente estudar essas intervenes do enunciador no enunciado. 52 Para evitar confuses terminolgicas, uma vez que a traduo para o portugus dos conceitos de Tomachevski no uniforme, optamos por empregar regularmente o termo trama, pois, na lngua geral, o enredo (cuja definio apresentada pelo Houaiss, por exemplo, : sucesso de acontecimentos que constituem a ao, em uma produo literria) costuma ser considerado sinnimo de fbula. 150 bito do autor, percebe-se que a narrativa ir comear pelo fim, isto , pela morte do narrador, de maneira que, em Memrias pstumas, o incio da trama o final da fbula, uma vez que o primeiro acontecimento narrado cronologicamente o ltimo a ter ocorrido. Isso produz reflexos sobre todo o enunciado. O primeiro deles a produo de um certo efeito de suspense, pois se est diante de uma seqncia narrativa acabada e, mais do que isso, sancionada negativamente pelo narrador:
Nem o meu bito era cousa altamente dramtica... Um solteiro que expira aos sessenta e quatro anos, no parece que rena em si todos os elementos de uma tragdia (MP, cap. I, p. 24).
Diante dessa sano, esperado que se crie uma expectativa de como foi a vida desse solteiro. Ciente ento de que essa estratgia de suspense pode produzir bons resultados, o narrador a explora conscientemente (Tenham pacincia! Daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora), tornando, por exemplo, misteriosa a figura de Virglia, a quem nesta altura, inexplicavelmente no convinha aparentar sofrimento. O segundo reflexo dessa dissociao entre a trama e a fbula se d sobre a enunciao enunciada, j que o narrador, ao comentar a arquitetura do romance, acaba explicando suas decises enunciativas. Em outras palavras, ele narra a fbula e, ao mesmo tempo, explica a trama. exatamente isso que acontece no incio do j citado captulo Transio:
E vejam agora com que destreza, com que arte fao eu a maior transio desse livro. Vejam: o meu delrio comeou em presena de Virglia; Virglia foi o meu gro pecado da juventude; no h juventude sem meninice; meninice supe nascimento; e eis aqui como chegamos ns, sem esforo, ao dia 20 de outubro de 1805, em que nasci. Viram? Nenhuma juntura aparente, nada que divirta a ateno pausada do leitor: nada. De modo que o livro fica assim com todas as vantagens do mtodo, sem a rigidez do mtodo. Na verdade, era tempo (...) (MP, cap. IX, p. 41).
Para realizar o flash-back que levar da morte de Brs ao seu nascimento, o narrador faz referncia a inmeras seqncias narrativas pregressas e, pela explicitao 151 de uma grande catlise, volta ao incio da fbula, atando assim para usar uma expresso de Dom Casmurro as duas pontas da vida. Mas, alm de fazer essa transio, note-se que o narrador comenta esse procedimento (com que destreza, com que arte, nada que divirta a ateno pausada do leitor e o livro fica assim com todas as vantagens do mtodo, sem a rigidez do mtodo) de maneira satrica, demonstrando que sua narrativa inovadora e que um tipo de literatura que se vale da rigidez narrativo-discursiva merece ser desprezado. Em vrias outras passagens do romance, a enunciao enunciada encerra comentrios do narrador sobre os meandros da trama. Eis alguns exemplos:
em bito do autor:
(...) a imaginao dessa senhora tambm voou por sobre os destroos presentes at s ribas de uma frica juvenil... Deix-la ir; l iremos mais tarde; l iremos quando eu me restituir aos meus primeiros anos (MP, cap. I, p. 23).
em O delrio:
Que me conste, ainda ningum relatou o seu prprio delrio; fao-eu, e a cincia mo agradecer. Se o leitor no dado contemplao desses fenmenos mentais, pode saltar o captulo; v direto narrao (...) (MP, cap. VIII, p. 33).
em Um salto:
Unamos agora os ps e demos um salto por cima da escola, a enfadonha escola, onde aprendi a ler, escrever, contar (...) (MP, cap. XIII, p. 52).
em Volta ao Rio:
152 (...) Mas no; no alonguemos este captulo. s vezes, esqueo-me a escrever, e a pena vai comendo papel, com grave prejuzo meu, que sou autor (...) (MP, cap. XXII, p. 73).
em Coxa de nascena:
(...) Deso imediatamente; deso, ainda que algum leitor circunspecto me detenha para perguntar se o captulo passado apenas uma sensaboria ou se chega a empulhao (...) (MP, cap. XXXII, p. 89).
em Notas:
(...) Isto que parece um simples inventrio, eram notas que eu havia tomado para um captulo triste e vulgar que no escrevo (MP, cap. XLV, p. 104).
em O seno do livro:
Mas o livro enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contrao cadavrica (...), anda devagar (...), e este livro e o meu estilo so como os brios, guinam direita e esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaam o cu, escorregam e caem... (MP, cap. LXXI, p. 140).
em Comigo:
Podendo acontecer que algum dos meus leitores tenha pulado o captulo anterior, observo que preciso l-lo para entender o que eu disse comigo (...) (MP, cap. LXXV, p. 144).
em O mistrio:
153 (...) Ela estremeceu, colheu-me a cabea entre as palmas, fitou-me os olhos, depois afagou-me com um gesto maternal... Eis a um mistrio; deixemos ao leitor o tempo de decifrar esse mistrio (MP, cap. LXXXVI, p. 158).
em O caso provvel:
(...) No convindo ao mtodo deste livro descrever imediatamente esse outro fenmeno (...) (MP, cap. C, p. 174).
em Para intercalar no captulo CXXIX:
Convm intercalar este captulo entre a primeira a segunda orao do captulo CXXIX (MP, cap. CXXX, p. 204).
Os trechos em destaque desses 11 captulos so momentos em que o narrador problematiza a trama. So comentrios sobre o modo como a histria est sendo contada e, confirmando nossa afirmao anterior, de que, nessas situaes, usam-se os tempos verbais do sistema enunciativo 53 , tpicos do discurso, tpicos das enunciaes enunciadas de 1 e de 2 grau. H outras passagens que, mesmo sem recorrer s debreagens temporais enunciativas, podem ser consideradas enunciaes enunciadas, na medida em que o narrador problematiza claramente a trama, justificando, explicando, analisando a construo da narrativa. o que acontece, por exemplo,
em V de intermdio:
(...) se eu no compusesse este captulo, padeceria o leitor um forte abalo, assaz danoso ao efeito do livro (...) (MP, cap. CXXIV, p. 199).
em Das negativas:
53 Retomando que o romance o simulacro de uma autobiografia, de esperar que as referncias situao da enunciao sejam feitas, de fato, por meio por tempos verbais do sistema enunciativo. 154 Entre a morte do Quincas Borba e a minha, mediaram os sucessos narrados na primeira parte do livro (...) (MP, cap. CLX, p. 230).
Mais uma vez aqui, possvel perceber que Brs se apresenta como pseudo- enunciador do romance, pois ele faz comentrios explcitos sobre questes ligadas programao textual e justamente o enunciador que tem controle sobre ela. Porm todas essas passagens so relevantes tambm por suscitar outra discusso importante para ns. uma tradio dos estudos literrios mostrar que a obra de Machado, principalmente nos romances posteriores a 1881, recorre insistentemente digresso. Definindo esse conceito, Lausberg escreve:
O afastamento, quanto ao objeto do discurso, chama-se digresso e consiste em que o orador trate de uma outra matria, em vez da matria propriamente dita (Lausberg, 1965, p. 254).
Esse termo, cunhado pelos retricos clssicos, designa nos textos narrativos um afastamento, uma fuga do eixo narrativo principal, da fbula propriamente dita, isto , da seqncia cronolgica e causal dos programas narrativos. Por isso, todo comentrio que o narrador das Memrias pstumas faz, por exemplo, a respeito da trama acaba configurando um caso de digresso. Para confirmar essa idia, bastante lembrar que Lausberg, na hora de explicitar as vrias funes da digresso retrica, demonstra que uma digresso tpica aquela em que se afasta da matria propriamente dita, para tratar da situao do discurso, o que poderia englobar, por exemplo, uma concesso, uma licena ou uma aporia (Lausberg, 1965, p. 254-255). Em todos esses casos, seria possvel considerar que essa digresso em direo situao do discurso configura, semioticamente, um caso de enunciao enunciada, que pode ser marcada apenas sintaxicamente, apenas semanticamente ou dos dois modos simultaneamente. Com efeito, todos os fragmentos citados que continham enunciaes enunciadas so exemplos de digresso, pois, de uma forma ou de outra, representam um afastamento, quanto ao objeto do discurso. Mas inegvel que existem casos de digresso que no podem ser considerados, stricto sensu, enunciao enunciada. Isso porque, utilizando a metalinguagem retrica, um orador pode afastar-se de sua matria, 155 no por fazer referncia situao do seu discurso, mas simplesmente por tratar de outras matrias. Nesse caso, a digresso, chamada de digressio excurso,
consiste na intercalao de pensamentos narrativos, descritivos, argumentantes, ornantes e infinitizantes (Lausberg, 1965, p. 255).
Nas Memrias pstumas de Brs Cubas, alm dos casos tpicos de enunciao enunciada, podem-se encontrar tambm os cinco outros tipos de digresso elencados por Lausberg. Vejamo-los:
1. Digresso narrativa Consiste em fazer uma narrao secundria, subsidiria, que estabelece uma relao de analogia com a fbula principal. Num primeiro momento, essa narrativa acessria transmite a impresso de ser um mero desvio, uma brincadeira enunciativa sem maiores conseqncias; mas, depois de estabelecida a analogia, percebe-se que essas digresses so quase sempre antecipaes narrativas, por meio das quais o narrador veicula sua viso de mundo. H digresses narrativas clebres em Memrias pstumas, entre as quais se podem citar O almocreve (cap. XXI) e O vergalho (cap. LXVIII). Mas o caso mais conhecido de digresso narrativa no romance parece ser a do captulo A borboleta preta. A esta altura da fbula, recuperando-se do abalo provocado pela morte de sua me, Brs est descansando na sua casa na Tijuca e encontra D. Eusbia, uma amiga da famlia, que lhe apresenta sua filha, uma bonita moa de 16 anos. No final do captulo A flor da moita, o narrador demonstra um interesse ainda que motivado por um sentimento de vaidade por Eugnia:
De tarde, vi passar a filha de D. Eusbia, seguida de um pajem; fez-me um comprimento com a ponta do chicote. Confesso que me lisonjeei com a idia de que, alguns passos adiante, ela voltaria a cabea para trs; mas no voltou (MP, cap. XXX, p. 87).
Nesse momento, quando se espera que o narrador v contar se esse flerte foi bem sucedido ou no, interrompe-se o ritmo da fbula, para que Brs narre o pitoresco episdio de uma borboleta negra que entrara no seu quarto. Aps aborrecer-se com a 156 presena do inseto, Brs bate-lhe com uma toalha e a borboleta cai morta. At que ele pergunta misteriosamente:
Tambm por que diabo no era ela azul? disse comigo. E esta reflexo, uma das mais profundas que se tem feito, desde a inveno das borboletas, me consolou do malefcio, e me reconciliou comigo mesmo. Deixei-me estar a contemplar o cadver, com alguma simpatia, confesso (MP, cap. XXXI, p. 88).
Essa passagem que, no captulo seguinte, leva o narrador a lembrar que um leitor circunspecto perguntar se a histria da borboleta preta apenas uma sensaboria ou se chega empulhao faz parte de uma digresso narrativa, perfeitamente compreensvel quando se fica sabendo que Eugnia era coxa de nascena e que, aps um beijo trocado, Brs no chega sequer a cogitar a continuao do romance, j que, alm do problema fsico, ela era pobre. Ele a abandona da mesma forma que mata a borboleta preta: a borboleta Eugnia; a falta de colorido nas asas o defeito fsico (pois que uma borboleta costuma ser considerada bonita justamente pelo excesso de cores). A escurido rouba a beleza do inseto; o aleijo desfaz a formosura de Eugnia. Essa relao analgica, figurativa, de natureza metafrica, estabelecida pela digresso narrativa era prevista por Lausberg, que afirmava que essa digressio excurso costuma recorrer ao exemplum, que um domnio mais finito do smile (1965, p. 240).
2. Digresso descritiva Consiste em fazer uma descrio, em princpio deslocada da fbula principal, mas que, assim como a digresso narrativa, estabelece com essa fbula uma relao de analogia. Tambm esse tipo de digresso uma maneira de o narrador expressar suas opinies, sua viso de mundo. certo que o texto descritivo dificilmente autnomo: na maior parte das vezes, ele est a servio de uma passagem narrativa, dissertativa ou injuntiva. A despeito disso, possvel encontrar nas Memrias pstumas exemplos de digresses descritivas, como a que acontece no captulo Um encontro. Nesse momento, em meio ao suspense que envolve o incio do caso amoroso adltero entre Brs e Virglia, o narrador 157 interrompe a narrativa desses acontecimentos, para contar o reencontro com Quincas Borba:
Imaginem um homem de trinta e oito a quarenta anos, alto, magro e plido. As roupas, salvo o feitio, pareciam ter escapado ao cativeiro de Babilnia; o chapu era contemporneo do de Gessler. Imaginem agora uma sobrecasaca mais larga do que pediam as carnes, ou, literalmente, os ossos da pessoa; a cor preta ia cedendo o passo a um amarelo sem brilho; o plo desaparecia aos poucos; dos oito primitivos botes restavam trs. As calas, de brim pardo, tinham duas fortes joelheiras, enquanto as bainhas eram rodas pelo taco de um botim sem misericrdia nem graxa. Ao pescoo flutuavam as pontas de uma gravata de duas cores, ambas desmaiadas, apertando um colarinho de oito dias. Creio que trazia tambm colete, um colete de seda escura, roto a espaos, e desabotoado (MP, cap. LIX, p. 123).
A apresentao das vestes e da aparncia de Quincas Borba, que no deixa de sugerir a maneira que implica mais nojo do que piedade como Brs avalia a pobreza, contm uma acumulao pormenorizante e concretizante (Lausberg, 1965, p. 216), o que caracteriza a digresso descritiva.
3. Digresso argumentativa (ou argumentante) Consiste em defender uma tese, por meio de conceitos abstratos, sobre uma questo que aparentemente est distante dos assuntos da fbula principal. Aqui, necessrio fazer a ressalva de que toda digresso possui uma dimenso argumentativa. O que estamos chamando digresso argumentativa para aproveitar a terminologia de Lausberg aquele tipo de ruptura narrativa caracterizada pela tematizao, e no pela figurativizao. Isso porque as digresses descritivas e narrativas que so figurativas; as digresses argumentativas so, sobretudo, temticas. Aceitando a tese de que os temas expressam opinies de uma maneira mais explcita do que as figuras, pode-se dizer que as digresses argumentativas so mais fceis de ser interpretadas do que as descritivas e narrativas. No captulo A ponta do nariz, h um excerto que contm uma digresso argumentativa:
158 Essa sublimao do ser pela ponta do nariz o fenmeno mais excelso do esprito, e a faculdade de a obter (...) universal. Cada homem tem necessidade e poder de contemplar o seu prprio nariz, para o fim de ver a luz celeste, e tal contemplao, cujo efeito a subordinao do universo a um nariz somente, constitui o equilbrio das sociedades (...) (MP, cap. XLIX, p. 109).
Embora a ponta do nariz seja uma figurativizao (do egosmo, da competio entre homens, da vaidade), essa passagem predominantemente temtica. Para perceber a importncia dessa reflexo filosfica sobre o nariz, lembre-se que esse captulo imediatamente anterior ao momento em que se inicia o caso adltero entre Brs e Virglia. Sabendo que Lobo Neves tinha arrebatado a noiva ao narrador alguns anos antes, nenhum momento da narrativa parece mais adequado do que esse para tratar do tema da disputa eglatra que move os seres humanos.
4. Digresso ornamental (ou ornante) Consiste em uma espcie de fuso entre a digresso narrativa e a descritiva. Por meio sobretudo de elementos concretos, a digresso ornamental consiste numa comparao tornada compreensvel por meio da pormenorizao intensificante (Lausberg, 1965, p. 237). Como os termos ornamento e ornato, como muitos de seus derivados, podem conter em portugus uma conotao negativa, como se se tratasse de um mero adorno do texto, dispensvel, pouco funcional, vlido lembrar que, na retrica clssica, o ornatus que base do que se chamou digresso ornamental ou ornante tem grande importncia, j que esse conceito deve ser compreendido como
um luxo do discurso (...), [que] tem, como finalidade, a beleza da expresso lingstica. O ornatus corresponde necessidade, que todo o homem (tanto sujeito falante, como ouvinte) sente, de que haja beleza nas expresses humanas da vida e na apresentao do prprio homem em geral (...) (Lausberg, 1965, p. 138).
Para que esse luxo do discurso no parea apenas uma questo suprflua, pode-se ainda lembrar que a digresso ornamental configura uma alegoria, em que a repetio de figuras sob a forma de smiles produz uma espcie de iconizao. Nesse 159 sentido, ornar seria estabelecer contnuas relaes de semelhana, com uma finalidade simultaneamente esttica e referencial. Esse tipo de digresso tambm apresenta, como qualquer digresso figurativa, temas subjacentes. Mas, devido repetio das figuras, na maior parte das vezes no difcil apreender esses temas. o que acontece no captulo O primeiro beijo:
Ao cabo, era um lindo garo, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mo e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com ele nas ruas do nosso sculo. O pior que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deit-lo margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes, e, por compaixo, o transportou para os seus livros (MP, cap. XIV, p. 55).
As figuras do garo, lindo e audaz, das botas e esporas, do chicote na mo e sangue nas veias, do corcel nervoso, rijo, veloz, das antigas baladas e do castelo medieval pertencem mesma isotopia figurativa e formam uma alegoria, utilizada para satirizar os romnticos diante dos realistas, figurativizados naturalisticamente na lazeira e nos vermes. certo que, nesse embate histrico-literrio, alm da digresso ornamental que est no nvel da linguagem empregada pelo narrador , existe tambm uma questo ideolgica, que remete enunciao. Mas esse problema ser analisado mais adiante.
5. Digresso infinitizante Consiste em recorrer a um lugar-comum, a um clich. Esse lugar-comum, entendido por Lausberg como um pensamento infinito (1965, p. 234), funciona como um aditamento por meio de uma sindoque (1965, p. 226). Isso significa que a digresso infinitizante se aproveita de uma ou mais figuras, cujos valores esto cristalizados socialmente, para reforar uma tese por meio de um tpico que estabelece com ela uma relao de implicao mtua. Ao relatar sua volta ao Rio, por conta da doena de sua me, Brs afirma no captulo Triste, mas curto:
160 O esprito, como um pssaro, no se lhe deu da corrente dos anos, arrepiou vo na direo da fonte original, e foi beber da gua fresca e pura, ainda no mesclada ao enxurro da vida. Reparando bem, h a um lugar-comum. Outro lugar-comum, tristemente comum, foi a consternao da famlia (MP, cap. XXIII, p. 73-74).
As figuras da fonte original e da gua fresca e pura, representando a infncia, e a do enxurro da vida, representando a passagem inexorvel do tempo, constituem um verdadeiro tpos, que funciona como uma adio, como um acrscimo, pois, em lugar de Brs simplesmente narrar sua volta ao Rio, ele se aproveita de lugares-comuns (identificados como tais inclusive por ele) para dizer que a chegada ao Brasil lhe despertou as lembranas da infncia.
Apontar esses cinco tipos de digresso nas Memrias pstumas no significa apenas propor um princpio classificatrio, at porque h casos limtrofes, em que uma digresso narrativa, descritiva ou argumentativa pode ser, simultaneamente, ornamental e/ou infinitizante. Na verdade, nossa inteno no apenas taxonmica. Como j se afirmou, o caso mais tpico de digresso no romance aquele que contm enunciaes enunciadas. Nelas, entre outras possibilidades, h comentrios morais (Uma reflexo imoral):
Ocorre-me uma reflexo imoral, que ao mesmo tempo uma correo de estilo. Cuido haver dito (...) que Marcela morria de amores pelo Xavier. No morria, vivia. Viver no a mesma coisa que morrer; assim o afirmam todos os joalheiros desse mundo, gente muito vista na gramtica. Bons joalheiros, que seria do amor se no fossem os vossos dixes e fiados? Um tero ou um quinto do universal comrcio dos coraes (MP, cap. XVI, p. 60);
conversas com os supostos leitores da obra (Em que aparece a orelha de uma senhora):
161 Sabem j que morri numa sexta-feira, dia aziago, e creio haver provado que foi minha inveno que me matou. H demonstraes menos lcidas e no menos triunfantes (MP, cap. V, p. 30);
e preteries (Suprimido):
Estou com vontade de suprimir este captulo. O declive perigoso. Mas enfim escrevo as minhas memrias e no as tuas, leitor pacato. Ao p da graciosa donzela, parecia-me tomado de uma sensao dupla e indefinvel. Ela exprimia inteiramente a dualidade de Pascal, com a diferena que o jansenista no admitia a simultaneidade das duas naturezas, ao passo que elas a estavam bem juntinhas, lange, que dizia algumas cousas do cu, e la bte, que... No; decididamente suprimo este captulo (MP, cap. XCVIII, p. 172-173).
Alm dessas digresses, h outras que, primeira vista, no constituem casos de enunciao enunciada. Por isso, fez-se necessrio encontrar uma outra maneira de analis-las. Recorrer aos conceitos da Retrica literria de Lausberg no foi uma coincidncia. Se se considera que a Retrica, como disciplina clssica, sempre se preocupou com a persuaso ou, semioticamente, com o /fazer crer/, pode-se inferir que os trabalhos de Lausberg se ocupam sobretudo em mostrar como um texto capta a benevolncia da audincia, para que esta aceite a opinio que est sendo defendida pelo orador. Nesse sentido, as digresses machadianas ao serem estudadas numa perspectiva retrica deixam de ser um mero adorno do discurso, adquirindo uma funcionalidade e atestando que existe um enunciador no comando de todas essas galhofas enunciativas. Nesse momento, vale a pena voltar distino entre trama e fbula. J se disse que as enunciaes enunciadas de Memrias pstumas esto mais na dimenso da trama do que da fbula. Alm disso, como essas enunciaes enunciadas so exemplos de digresso, tem-se que as digresses so mais discursivas do que narrativas. Com efeito,
reconstituir a fbula de um texto narrativo implica eliminar todas as digresses, todos os desvios de ordem causal-temporal, de modo a reter apenas a lgicas 162 das aes e a sintaxe das personagens, o curso dos eventos linearmente ordenados (Reis & Lopes, 2002, p. 157).
Se se fizesse isso nas Memrias pstumas, o romance perderia completamente sua eficcia discursiva e, at mesmo, literria, que como j se disse est na intriga, no enredo, e no na narrativa em si. A competncia do enunciador manifesta-se na conduo da trama. Na verdade, a fbula corresponde apenas
ao material pr-literrio que vai ser elaborado e transformado em intriga, estrutura compositiva j especificamente literria (Reis & Lopes, 2002, p. 157).
Por isso, as digresses machadianas que so a base da intriga e da magia do romance esto longe de ser acessrias. Em O delrio (Se o leitor no dado contemplao desses fenmenos mentais, pode saltar o captulo; v direto narrao.), em Volta ao Rio (Jumento de uma figa, cortaste-me o fio s reflexes.), em Na Tijuca (Ui! L me ia a pena escorregar para o enftico.), em Coxa de nascena (Deso imediatamente; deso, ainda que algum leitor circunspecto me detenha para perguntar se o captulo passado apenas uma sensaboria ou se chega a empulhao...) e em Comigo (Podendo acontecer que algum dos meus leitores tenha pulado o captulo anterior), s para ficar com alguns exemplos mais evidentes, o que h um jogo de cena: o narrador parece desdenhar suas digresses, mas, na verdade, ele as valoriza. H um /parecer/ do enunciado em choque com um /ser/ da enunciao. Por esse motivo, os cinco tipos de digresso retrica de Machado, embora no configurem necessariamente exemplos clssicos de enunciao enunciada 54 , no deixam de remeter instncia da enunciao, j que o afastamento em relao fbula e a conseqente problematizao da trama levam a questes tericas que vo alm dos domnios do enunciado. Desse modo, poderamos dizer que toda digresso das Memrias pstumas, por estar a servio de uma estratgia discursiva, remete enunciao, num procedimento que no deixa de funcionar como uma embreagem (Greimas & Courts, 1983, p. 140), por meio da qual as brincadeiras do narrador revelam a presena do enunciador no enunciado. Estaramos diante de uma transposio (Reis & Lopes, 2002, p. 232-233),
54 Quando muito, trata-se de casos de enunciao enunciada marcada semanticamente. 163 espcie de metalepse, no entre actantes de nveis diferentes, mas entre os prprios nveis, j que o enunciador vai revelando a todo tempo detalhes de sua programao textual, levando a discusso sobre as decises enunciativas para o enunciado. Com isso, a iluso referencial esboroa-se (Fiorin, 1999, p. 122) e o que se produz uma iluso enunciativa (Greimas & Courts, 1983, p. 142). H, em Memrias pstumas, digresses, que, independentemente de sua natureza, so simultaneamente retricas e enunciativas. Num primeiro momento, apontamos dois tipos de digresso: as que contm enunciaes enunciadas (marcadas sobretudo sintaxicamente) e as que foram chamadas retricas (e se subdividem em cinco ncleos). As primeiras, como parece evidente, no deixam de possuir uma importncia retrica, persuasiva, fundamental para pacto fiducirio entre enunciador e enunciatrio; enquanto as segundas, como se mostrou, no deixam de ser um retorno enunciao. Nos demais itens deste captulo, ser necessrio voltar ao problema da digresso, mas, por enquanto, tratemos de uma outra questo, levantada de passagem. Muitas das passagens digressivas citadas possuem uma dimenso metalingstica. Ao problematizar as particularidades da trama e, com isso, a prpria enunciao, elas acabam funcionando como
formas de representao da enunciao, com as quais os enunciadores espontaneamente duplicam, s vezes, no decorrer do discurso, a enunciao de um elemento (Authier-Revuz, 2004, p. 81).
Essa possibilidade de duplicao, que nasce do acmulo do uso e da meno (Authier-Revuz, 2004, p. 82), retoma numa perspectiva mais discursiva do que narrativa a distino de narrativa e discurso. Definido como modalizao autonmica por Authier-Revuz, esse acmulo.
confere a um elemento do dizer o estatuto de uma maneira de dizer, relativizada (mesmo que seja para valoriz-la) dentre outras. Fazendo isso, a enunciao representa-se localmente como (...) alterada no duplo sentido de alterao e alteridade em seu funcionamento por um fato pontual de no- coincidncia (2004, p. 82-83).
164 Essa no-coincidncia, mesmo que pontual, uma variao do conceito de heterogeneidade e implica sempre a presena do dialogismo. Desse modo, quando, nas Memrias pstumas, surgem as glosas do narrador-enunciador, Machado, negociando
com a alteridade, procura preservar uma fronteira com o que no provm do seu discurso (Charaudeau & Maingueneau, 2004, p. 261).
Essa fronteira reitera que a modalizao autonmica basicamente constituda de formas isolveis (Authier-Revuz, 1998, p. 84) e, como tais, marcadas no enunciado. Tem-se, pois, um caso de heterogeneidade mostrada e marcada. Alis, a heterogeneidade discursiva aparece, sob vrios aspectos, nas Memrias pstumas. Ser necessrio retomar esse conceito inmeras vezes ao longo desta tese. Mas, por enquanto, fiquemos com o problema das formas isolveis. As passagens digressivas, tanto as que apresentavam explicitamente enunciaes enunciadas como as que as continham de maneira implcita, eram relativamente longas. No so raros, nas Memrias pstumas, captulos integralmente digressivos, como O almocreve (cap. XXI), Borboleta preta (cap. XXXI), minha! (cap. LI) e O embrulho misterioso (cap. LII), entre muitos outros. Por isso, em muitos dos exemplos j analisados, fica difcil encontrar as formas isolveis de acordo com a proposta de Authier-Revuz, que as identifica como oraes intercaladas ou expresses explicativas em perodos curtos. Para encontr-las, necessrio, pois, garimpar passagens mais curtas. A modalidade autonmica que implica uma reflexividade enunciativa pressupe sempre uma no-coincidncia, que pode ser de quatro tipos (Authier- Revuz, 1998, p. 20-26):
a) a no-coincidncia interlocutiva (quando h alguma ciso entre destinador e destinatrio, em qualquer um dos nveis enunciativos). isso que acontece no final do captulo Filosofia das folhas velhas, quando aps empregar uma determinada figura, o narrador afirma:
Ou, se te no apraz o chapu de trs bicos, empregarei a locuo (...) (MP, cap. CXVI, p. 189).
165 b) a no-coincidncia do discurso consigo mesmo (quando se recorre, por um mecanismo intertextual ou interdiscursivo, s palavras de um outro, o que configura uma marca textual do dialogismo). essa a no-coincidncia que aparece na continuao do fragmento de Filosofia das folhas velhas transcrito anteriormente; nesse caso, a presena das aspas refora mais ainda a heterogeneidade:
(...) empregarei a locuo de um velho marujo, familiar da casa de Cotrim; direi que, se guardares as cartas da juventude, achars ocasio de cantar uma saudade (...) (MP, cap. CXVI, p. 189-190).
c) a no-coincidncia entre as palavras e as coisas 55 (quando se reconhece a inexatido de um termo ou de uma expresso). o que ocorre no captulo Bem-aventurados os que no descem:
(...) e eu sem acudir a cousa nenhuma, enlevado ao p de minha Vnus Manca. Enlevado uma maneira de realar o estilo; no havia enlevo, mas gosto, uma certa satisfao fsica e moral (MP, cap. XXXIII, p. 91).
d) a no-coincidncia das palavras consigo mesmas (quando, programadamente, valoriza-se a dimenso do equvoco do dizer [Authier-Revuz, 1998, p. 25]). Um exemplo possvel desse fenmeno est em Uma reflexo imoral:
Ocorre-me uma reflexo imoral, que ao mesmo tempo uma correo de estilo. Cuido haver dito (...) que Marcela morria de amores pelo Xavier. No morria, vivia. (MP, cap. XVI, p. 60).
Todas essas no-coincidncias, destacadas para marcar a fronteira entre o uso e a meno, so pontuais e configuram passagens em que se percebe, claramente, a presena stricto sensu da modalidade autonmica. Mas h, nas Memrias pstumas, certas no-coincidncias, que no so pontuais e que recobrem, por isso, passagens mais longas. o caso dos captulos integralmente
55 Optamos por reproduzir a prpria taxonomia de Authier-Revuz. Semioticamente, seria mais adequado pensar em uma no-coincidncia entre o discurso e sua referncia. 166 digressivos citados, que acabam produzindo o mesmo efeito embreante, reflexivo, auto- representativo (que pressupe uma problematizao discursiva da enunciao) dos quatro tipos de fato pontual de no-coincidncia apresentados. A esta altura, vale a pena a ressalva de que a noo de forma isolvel de Authier-Revuz frasal, e no textual. Mas perfeitamente possvel ampliar o alcance dessa noo, postulando que toda digresso no deixa de ser uma forma isolvel, j que ela uma unidade discursiva de autonomia relativa, na medida em que se encaixa, numa posio de subordinao, em uma unidade maior. Em outras palavras, a digresso pode ser considerada uma forma isolvel, porque uma ruptura discursiva pontual e, independentemente de sua extenso, possui suas fronteiras marcadas no enunciado. Nessa perspectiva, considerando as passagens de Memrias pstumas em que h problematizao da enunciao, um perodo, um pargrafo ou mesmo um captulo pode ser uma forma isolvel. Alis, vale a pena comentar a segmentao em captulos no romance. A diviso de um texto em prosa em perodos obedece sobretudo a critrios sintticos, no nvel estritamente da lngua. inegvel que todo enunciador pode valer-se de perodos mais ou menos curtos (apoiando essa deciso em critrios semnticos), mas o fato que essa liberdade encontra seus limites nas prprias coeres do sistema lingstico. Em relao aos pargrafos, as coeres j parecem ser mais semnticas do que sintticas. J a diviso de um texto em captulos, principalmente se se trata de textos literrios, est sujeita a uma forma de coero ainda no estudada. Tanto isso parece ser verdade que a maioria dos estudiosos da narrativa literria evita dar uma definio rigorosa de captulo, j que esse tipo de segmentao parece nascer quase que exclusivamente das liberdades discursivas que todo enunciador tem. Talvez seja isso que explique o captulo nico de Grande serto: veredas, os dezesseis longos captulos de O primo Baslio, os mais de 50 de Memrias de um sargento de milcias e os 160 de Memrias pstumas. A dificuldade de definir precisamente a noo de captulo advm da dificuldade de explicar o porqu de sua extenso, o que implicaria determinar o que imprescindvel para sua existncia. A rigor, um captulo apenas uma parte, um componente, um elemento, enfim, umas das subdivises possveis de um texto maior e, como tal, bastam-lhe duas fronteiras a do incio e a do fim para defini-lo. Sendo assim, todo captulo uma forma isolvel. Nas Memrias pstumas, h inmeros captulos que comprovam isso de maneira radical. Alm dos captulos digressivos j 167 referidos (O almocreve, A borboleta preta e O vergalho), h outros como O velho dilogo de Ado e Eva (cap. LV) e De como no fui ministro dEstado (cap. CXXXIX), em que se exploram recursos grficos, ou Parntesis (cap. CXIX) e Inutilidade (cap. CXXXVII), em que se fazem explcitas pilhrias enunciativas , que possuem fronteiras muito bem marcadas em relao fbula principal e que tambm apresentam uma dimenso digressiva. Como formas isolveis, que funcionam como formas de representao da enunciao, esses captulos no deixam de constituir tambm pontos de no-coincidncia discursiva e, por isso, manifestaes da modalidade autonmica 56 . Por fim, para evitar a indesejada polissemia do termo metalinguagem que, por ser utilizado para designar fenmenos discursivos variados, pode acabar prescindindo do rigor epistemolgico , poder-se-ia dizer que todas as enunciaes enunciadas, as digresses, os comentrios narrativa, as observaes sobre a trama, as no- coincidncias, os exerccios retricos, a reflexividade enunciativa, a modalidade autonmica de que se tratou at agora constituem fatos metaenunciativos, definidos como uma
auto-representao do dizer que se vai fazendo (...). Neste retorno do dizer (...), o discurso sobre a prtica da linguagem emerge dessa prtica, nos pontos de dizer que, para se completarem, requerem o a mais de um comentrio: nesse ponto se conjugam os dois planos da prtica e da representao, como parte dessa prtica, sendo a dimenso imaginria das representaes do dizer parte estritamente integrante, portanto, do fato de dizer (Authier-Revuz, 1998, p. 181).
Essa duplicidade discursiva, que consiste numa prtica e numa representao, num uso e numa meno, numa fbula e num comentrio sobre a trama, enfim, num enunciado enunciado e numa enunciao enunciada, um dos pilares das Memrias pstumas, configurando, por isso, um trao importantssimo para delimitar o estilo, o thos do enunciador machadiano. Temos aqui um sujeito da enunciao que, a todo tempo, problematiza sua relao com a linguagem, com a
56 No se pode descartar numa obra como Memrias pstumas a possibilidade de tomar a diviso em captulos no como uma manuteno, mas justamente como uma diluio das fronteiras, pois o romance, ao optar pelo discurso polifnico e ao aproximar-se da stira menipia, pretende tomar as digresses no como formas isolveis, mas como elementos fundantes da estrutura discursiva.
168 construo dos sentidos. Trata-se, assim, de uma supervalorizao da metaenunciao. Com efeito, a
considerao dos fatos metaenunciativos, com o que eles implicam de auto- representao do dizer, e portanto no distanciamento interno em uma enunciao desdobrada por seu prprio reflexo, coloca de modo especificamente agudo a questo da escolha dos exteriores tericos, relativos questo do sujeito e de sua relao com a linguagem (...) (Authier-Revuz, 1998, p. 16).
169 4. As ironias de Brs: produtor de umas, alvo de outras
Embora a maioria dos estudiosos (...) no tenha como preocupao primeira explicitar os mecanismos produtores da ironia como fenmeno de linguagem, mas sim abord-la ou utiliz-la como forma de caracterizar o estilo e viso de mundo de autores, essas abordagens, ampliando o campo produtivo da ironia, oferecem elementos para uma viso da natureza e da complexidade desse fenmeno. (Beth Brait, Ironia em perspectiva polifnica)
Como j mostramos no primeiro captulo desta tese, um dos principais recursos discursivo capazes de comprovar que a dissociao semntica entre o primeiro e o segundo nvel enunciativo e, eventualmente, entre o segundo e o terceiro a ironia. Com Memrias pstumas de Brs Cubas, uma obra caracterizada justamente pela sutileza com que o sujeito da enunciao opera com os nveis enunciativos, no diferente. No se trata de uma tarefa simples definir o que ironia, pois inmeras teorias lingsticas e filosficas debruaram-se sobre ela, o que dificulta a monossemia, necessria a qualquer definio mais rigorosa do ponto de vista epistemolgico.
A ironia, ao contrrio da metfora, permanece por natureza uma questo aberta, que cada teoria analisa em funo de seus pressupostos. Decidir o que ironia implica, na realidade, uma certa concepo de sentido, de atividade de fala ou de subjetividade (Charaudeau & Maingueneau, 2004, p. 292).
Recorrendo inicialmente s formulaes retricas, s quais interessa analisar as estratgias argumentativas empregadas para persuadir um auditrio, a ironia,
como tropo de pensamento, , em primeiro lugar, a ironia de palavra, continuada como ironia de pensamento, e consiste, desta maneira, na substituio do pensamento em causa, por um outro pensamento, que est ligado ao pensamento em causa por uma relao de contrrios e que, portanto, corresponde ao pensamento do adversrio (Lausberg, 1965, p. 249-250). 170
Necessariamente, para que exista ironia, preciso que haja duas vozes contrrias, uma marcada no enunciado (o pensamento em causa) e outra pressuposta (outro pensamento) manifestando valores opostos (ligando-se ao pensamento em causa por uma relao de contrrios). Semioticamente, ao deparar com a ironia, estamos diante de um discurso polifnico, em que se nota uma fenda, uma ciso, um descompasso programado entre enunciado e enunciao. Isso significa que, para identificar e compreender uma ironia, necessrio mapear a enunciao do texto, sem o que seria impossvel perceber essa dissenso de valores. Por isso, no se podem considerar as passagens isoladamente, pois os indcios discursivos do que deve ser interpretado literalmente e o que deve ser lido ironicamente esto sempre espalhados pelo enunciado. Pode-se ainda lembrar, aproveitando outra idia de Charaudeau e Maingueneau, que, no discurso irnico, h um efeito de no assumir a enunciao (2004, p. 291), o que significa que aquilo que dito no enunciado parece ser verdade, na medida em que a enunciao que contm a verdade no assumida claramente pelo enunciador. Teramos um /parecer/ e um /no ser/ no enunciado e um /ser/ e um /no parecer/ na enunciao. Destaque-se, porm, que essa no assuno da enunciao no visa a dificultar a leitura do texto; trata-se, sim, de uma estratgia discursiva de polifonia, que funciona como uma comprovao do estatuto dialgico da linguagem e que, como tal, pode ser empregada com valor argumentativo, o que implica que dentro da proposta terica que adotamos a ironia, sem perder sua dimenso retrica (de busca pela adeso do auditrio), configura um problema de enunciao. Desse modo, nossa proposta de anlise tambm
confere ironia traos que reiteram a ambivalncia de significao, a dupla isotopia, a confluncia enunciativa, enfim a maneira de um discurso lidar com outros para coloc-los ou colocar-se em evidncia. Esse jogo que se estabelece entre um texto e as presenas constitutivas de seu interior articula-se ironicamente por meio de vrias estratgias de incorporao discursiva, de encenao do j-dito (...) (Brait, 1996, p. 107).
171 Nessa perspectiva, as ironias das Memrias pstumas produzem um efeito de humor que se origina justamente pela ambivalncia da significao, pela dupla isotopia de leitura e pela confluncia enunciativa. Um verdadeiro lugar-comum da crtica literria dizer que os textos machadianos so caracterizados pela ironia 57 . A questo que, muitas vezes, nas anlises que so feitas sobre a obra de Machado, o termo ironia usado para designar vrios outros processos discursivos que no nascem necessariamente de uma falta de correspondncia entre o que se diz no enunciado e o que se diz na enunciao: como se ironia fosse sinnimo de efeito de humor 58 e como se qualquer stira machadiana nascesse de procedimentos irnicos. Nesta tese, empregaremos o termo ironia stricto sensu, deixando para outros itens a discusso sobre outros efeitos de humor produzidos em Memrias pstumas. H excertos do romance em que as passagens irnicas so facilmente perceptveis e parece estarem a servio, sobretudo, de uma inteno humorstica. o que ocorre:
em Chimne, qui let dit? Rodrigue, qui let cru?, quando Brs Cubas est prximo da morte:
O estranho levantou-se e saiu. Era um sujeito, que visitava todos os dias para falar do cmbio, da colonizao e da necessidade de desenvolver a viao frrea; nada mais interessante para um moribundo (MP, cap. VI, p. 31).
em Naquele dia, quando se evidencia a vontade do pai de Brs Cubas em pertencer fidalguia:
Nasci; recebeu-me nos braos a Pascoela, insigne parteira minhota, que se gabava de ter aberto a porta do mundo a uma gerao inteira de
57 Ivan Teixeira, por exemplo, afirma que a frase [de Machado de Assis] extremamente maliciosa. Raramente possui um nico significado. E a forma mais elementar da ambivalncia machadiana chama-se ironia, figura que, em sentido estrito, consiste em sugerir o contrrio do que se afirma (Teixeira, 1988, p. 80). 58 Talvez esse equvoco tenha nascido da prpria acepo de ironia na lngua geral, como j mostramos no primeiro captulo.
172 fidalgos. No impossvel que meu pai lhe ouvisse tal declarao; creio, todavia, que o sentimento paterno que o induziu a gratific-la com duas meias dobras (MP, cap. X, p. 41).
em O menino pai do homem, quando Brs reconhece sua falta de educao:
Esconder os chapus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar belisces nos braos das matronas, e outras muitas faanhas deste jaez, eram mostras de um gnio indcil, mas devo crer que eram tambm expresses de um esprito robusto, porque meu pai tinha-me em grande admirao; e se s vezes me repreendia, vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos (MP, cap. XI, p. 44-45).
em A borboleta preta, quando o narrador esconde seus preconceitos sob a aparncia de reflexo sisuda:
Tambm por que diabo no era ela azul? Disse comigo. E esta reflexo, uma das mais profundas que se tem feito, desde a inveno das borboletas, me consolou do malefcio, e me reconciliou comigo mesmo (MP, cap. XXXI, p. 88).
em A ponta do nariz, em que o narrador demonstra sua falsa preocupao filosfica:
A explicao do doutor Pangloss que o nariz foi criado para uso dos culos, e tal explicao confesso que at certo tempo me pareceu definitiva; mas veio em dia, em que, estando a ruminar esse e outro pontos obscuros de filosofia, atinei com a nica, verdadeira e definitiva explicao (MP, cap. XLIX , p. 108-109).
173 em Destino, quando Brs finge desdizer exatamente aquilo em que ele acredita:
Mas rezava todas as noites, com fervor (...). Algum tempo desconfiei que havia nela certo vexame de crer, e que a sua religio era uma espcie de camisa de flanela, preservada e clandestina; mas era evidentemente engano meu (MP, cap. CXXIV, p. 121).
em Distrao, quando Brs aparenta condoer-se da situao de uma mosca cuja pata era mordida por uma formiga:
Ento eu, com a delicadeza nativa de um homem do nosso sculo, pus na palma da mo aquele casal de mortificados (...) (MP, cap. CIII, p. 178).
em 31, quando o narrador descobre a motivao superficial de certos atos do mundo poltico:
Uma semana depois, Lobo Neves foi nomeado presidente de provncia. Agarrei-me esperana da recusa, se o decreto viesse outras vez datado de 13; trouxe, porm, a data de 31, e esta simples transposio de algarismos eliminou deles a substncia diablica. Que profundas que so as molas da vida! (MP, cap. CX , p. 184)
em Orgulho da servilidade, quando se explicita que a humanidade nem sempre tem atitudes nobres:
Depois chamou a minha ateno para os cocheiros da casa grande, mais empertigados que o amo, para os criados de hotel, cuja solicitude obedece s variaes sociais da freguesia, etc. E concluiu que era tudo a expresso daquele sentimento delicado e nobre, prova cabal de que muitas vezes o homem, ainda a engraxar botas, sublime (MP, cap. CLVI, p. 226-227). 174
Em todos esses trechos, afirma-se algo no enunciado e nega-se na enunciao, o que est de acordo com a j citada definio da ironia de Fiorin (2000, p. 56). Esse descompasso entre os dois primeiros nveis enunciativos pode ser percebido pelos indcios contextuais de que Brs acredita, na realidade, no contrrio do que est escrevendo:
em Chimne, qui let dit? Rodrigue, qui let cru?, em que a conversa do estranho no tinha da de interessante para Brs Cubas;
em Naquele dia, quando Bento Cubas paga parteira simplesmente porque queria pertencer fidalguia;
em O menino pai do homem, em que Brs no demonstra nenhum tipo de elevao espiritual;
em A borboleta preta, quando se percebe que a reflexo do narrador no tem nenhuma profundidade;
em A ponta do nariz, em que a descoberta filosfica do narrador no passa de uma brincadeira;
em Destino, quando Brs admite que Virglia tinha vexame de crer;
em Distrao, em que Brs quer atribuir para si uma inexistente delicadeza nativa de um homem do nosso sculo;
em 31, quando o narrador admite que as aes humanas nem sempre possuem motivaes nobres;
em Orgulho da servilidade, em que se confirma que a humanidade est longe de ser sublime.
175 Todas essas ironias ainda no so suficientes para distinguir o primeiro e o segundo nvel enunciativo, j que, em nenhuma delas, pertinente determinar se elas so de responsabilidade especfica do narrador (e da enunciao de 2 grau) ou do enunciador (e da enunciao de 1 grau). Alm disso, em todos os exemplos citados, a ironia pode ser identificada em passagens relativamente curtas, que raramente ultrapassam um pargrafo. So ironias expressas em uma palavra, em uma frase, em um perodo. Os casos que mais nos interessam e que so de uma complexidade enunciativa muito maior so aqueles em que a ironia recobre captulos inteiros do romance (s vezes, mais do que isso) e cujos indcios contextuais para identific-la no so to evidentes. Vejamos um exemplo. No clebre captulo CXXIII, O verdadeiro Cotrim, o narrador faz um retrato moral de seu cunhado, o que foi suscitado por uma conversa travada a respeito da convenincia de Brs casar-se com Eullia, sobrinha de Cotrim:
Ele ouviu-me e respondeu-me seriamente que no tinha opinio em negcio de parentes seus. Podiam supor-lhe algum interesse, se acaso louvasse as raras prendas de Nh-lol; por isso calava-se. Mais: estava certo de que a sobrinha nutria por mim verdadeira paixo, mas se ela o consultasse, o seu conselho seria negativo. No era levado por nenhum dio; apreciava as minhas boas qualidades, no se fartava de as elogiar, como era de justia; e pelo que respeita a Nh-lol, no chegaria jamais a negar que era noiva excelente, mas da a aconselhar o casamento ia um abismo (MP, cap. CXXIII, p. 198).
J nesse primeiro pargrafo do captulo em questo, nota-se, por meio das repetidas preteries de Cotrim, que ele deseja o casamento do cunhado com a sobrinha, tanto verdade que ele se refere s raras prendas de Nh-lol, bem como verdadeira paixo que a moa, noiva excelente, sentia por Brs. Assim, o conselho negativo que ele daria a Brs um jogo de cena, uma dissimulao, que confirma as verdadeiras intenes de Cotrim. Aps esse incio do captulo, em que j se percebem as intenes escusas de Cotrim, h um dilogo transcrito em discurso direto que confirma essas intenes:
Lavo inteiramente as mos, concluiu ele. 176 Mas voc achava outro dia que eu devia casar quanto antes... Isso outro negcio. Acho que indispensvel casar, principalmente tendo ambies polticas. Saiba que poltica o celibato uma remora. Agora, quanto noiva, no posso ter voto, no quero, no devo, no de minha honra. Parece-me que Sabina foi alm, fazendo- lhe certas confidncias, segundo me disse; mas em todo caso ela no tia carnal de Nh-lol, como eu. Olhe... mas no... no digo... Diga. No; no digo nada (MP, cap. CXXIII, p. 198).
As hesitaes presumivelmente escrupulosas de Cotrim, que afirma no ter opinio em negcio de parentes seus, constituem preteries. Assim, Cotrim deseja o casamento de Brs e Eullia, mas no assume plenamente esse desejo ou, mais precisamente, afirma no estar assumindo esse desejo. nesse momento que Brs se dedica a uma das ironias mais finas do livro:
Talvez parea excessivo o escrpulo de Cotrim, a quem no souber que ele possua um carter ferozmente honrado. Eu mesmo fui injusto com ele durante os anos que se seguiram ao inventrio de meu pai. Reconheo que era um modelo. Argiam-no de avareza, e cuido que tinham razo; mas a avareza apenas a exagerao de uma virtude, e as virtudes devem ser como os oramentos: melhor o saldo que o deficit. Como era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acus-lo de brbaro. O nico fato alegado neste particular era o de mandar com freqncia escravos ao calabouo, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, alm de que ele s mandava os perversos e os fujes, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gnero de negcio requeria, e no se pode honestamente atribuir ndole original de um homem o que puro efeito de relaes sociais. A prova de que o Cotrim tinha sentimentos pios encontrava-se no seu amor aos filhos, e na dor que padeceu quando lhe morreu Sara, dali a alguns meses; prova irrefutvel, acho eu, e no nica. Era tesoureiro de uma confraria, e irmo de vrias irmandades, e at irmo remida de 177 uma destas, o que no se coaduna muito com a reputao de avareza; verdade que o benefcio no cara no cho: a irmandade (de que ele fora juiz), mandara-lhe tirar o retrato a leo. No era perfeito, decerto; tinha, por exemplo, o sestro de mandar para os jornais a notcia de um ou outro benefcio que praticava, sestro repreensvel ou no louvvel, concordo; mas ele desculpava-se dizendo que as boas aes eram contagiosas quando pblicas; razo a que se no pode negar algum peso. Creio mesmo (e nisto fao seu maior elogio) que ele no praticava, de quando em quando, esses benefcios seno com o fim de espertar a filantropia dos outros; e se tal era o intuito, fora confessar que a publicidade tornava-se uma condio sine qua non. Em suma, poderia dever algumas atenes, mas no devia um real a ningum (MP, cap. CXXIII, p. 198-199).
Depois das preteries de Cotrim, vm as ironias de Brs, que apresentam o verdadeiro cunhado. Aparentemente, o narrador est elogiando Cotrim, que possua um carter ferozmente honrado, era um modelo, econmico, justo com seus escravos, apaixonado pelos filhos e filantropo. Mas, ao mesmo tempo em que o enunciado traz esses supostos elogios, h indcios suficientes na enunciao para concluir que Brs est fazendo um retrato moral cruel do cunhado. Cotrim no nem honrado, nem um modelo. Era avaro e seco de maneiras, contrabandista de escravos, com o hbito de os tratar com tamanha crueldade que no lhe era injusto o epteto de brbaro. Alm disso, era exageradamente vaidoso, a ponto de subordinar a filantropia considerao pblica, mandando para os jornais a notcia de um outro benefcio que praticava. O teor corrosivo da ironia expressa neste captulo advm tambm dos argumentos pouco srios que o narrador apresenta para desfazer a impresso negativa que Cotrim despertava em algumas pessoas. Para rebater a avareza, transforma-a em exagerao de uma virtude; para rebater a crueldade, transforma-a em necessidade da profisso, alm de admitir, sarcasticamente, a validade das teorias deterministas (no se pode honestamente atribuir ndole original de um homem o que puro efeito de relaes sociais); para comprovar seus sentimentos pios, cita o amor aos filhos como se fosse algo surpreendente e fala sobre sua participao em irmandades, sugerindo que essas irmandades apenas faziam recrudescer a vaidade do cunhado, cujo retrato a leo 178 foi tirado; por fim, para rebater a mania de tornar pblicas suas aes assistenciais, disfara-a no nobre fim de espertar a filantropia dos outros. O contrabandista de escravos Cotrim est longe, com efeito, de ser um modelo, e vrias outras passagens do romance confirmam o materialismo, a ambio, a vaidade e a avareza do marido de Sabina. o que ocorre, por exemplo, em A herana, quando, aps discusses envolvendo Brs e a irm, esta aparece com uma proposta conciliadora:
Isso nunca! No fao esmolas! disse ele Jantamos tristes. Meu tio cnego apareceu sobremesa, e ainda presenciou uma pequena altercao. Meus filhos, disse ele, lembrem-se de que meu irmo deixou um po bem grande para ser repartido por todos. Mas Cotrim: Creio, creio. A questo, porm, no de po, de manteiga. Po seco que eu no engulo (MP, cap. XLVI, p. 106).
Aps essa briga, os irmos se afastam. Depois se reconciliam no captulo LXXXI, quando Sabina e Cotrim procuram aproximar Brs e Eullia um do outro. No captulo O jantar, depois de Sabina determinar que o irmo deveria casar-se com Nh- lol, o narrador afirma:
E dizia isto a bater-me na face com os dedos, meiga como uma pomba, e ao mesmo tempo intimativa e resoluta. Santo Deus! seria esse o motivo da reconciliao? Fiquei um pouco desconsolado com a idia (...) (MP, cap. XCIII, p. 168).
O desconsolo do narrador, motivado pela hiptese de que Sabina e, claro, Cotrim tiveram segundas intenes na reaproximao familiar, mais um indcio de como devemos interpretar o verdadeiro carter do cunhado de Brs Cubas. A maneira como Brs apresenta Cotrim encerra uma crtica mordaz ao comportamento de seu cunhado e configura uma tpica ironia retrica:
179 A ironia retrica quer que a ironia seja compreendida pelo ouvinte, como ironia, e, portanto, como sentido contrrio. O orador pode querer obter imediatamente no ouvinte este resultado de compreenso, ou ento pode querer jogar, durante algum tempo, com um estdio passageiro de mal-entendido (Lausberg, 1965, p. 251).
Nesse caso, no incio do captulo, pode-se at dizer que o narrador explora um estdio passageiro de mal-entendido; mas sua continuao e sua articulao a outros excertos do romance mostram que necessrio compreender esse captulo como sentido contrrio. Esse tipo de ironia o que vamos chamar de ironia do narrador, j que Brs o responsvel por ela, embora o enunciador a corrobore. De fato, a ironia verbal, segundo Brait (aproveitando uma sugesto terica de Kerbrat-Orecchioni),
implica um trio actancial: o locutor (A) que dirige um certo discurso irnico para um receptor (A), para caoar de um terceiro (A), que o alvo da ironia. (...) os trs actantes envolvidos podem coincidir no todo ou em parte, dependendo do tipo de discurso em que aparecem (Brait, 1996, p. 62).
No exemplo do captulo O verdadeiro Cotrim, A o narrador, A o narratrio e A Cotrim. Trata-se, pois, de uma ironia construda no interior do segundo nvel enunciativo, pois h uma dissociao entre o enunciado (os elogios a Cotrim) e a enunciao de 2 grau (as crticas a Cotrim). No final do romance, mais precisamente no captulo Fase brilhante, h um exemplo de ironia que atinge Brs. A esta altura da narrativa, por sugesto de Cotrim, Brs filia-se a uma entidade filantrpica:
E vede agora a minha modstia; filiei-me na Ordem Terceira de ***, exerci ali alguns cargos, foi essa a fase mais brilhante da minha vida. No obstante, calo-me, no digo nada, no conto os meus servios, o que fiz aos pobres e aos enfermos, nem as recompensas que recebi, nada, no digo absolutamente nada (MP, cap. CLVII, p. 227- 228).
180 As semelhanas com o captulo O verdadeiro Cotrim so evidentes: Brs filia- se a uma irmandade, como o cunhado, e adota um discurso cuja modstia lembra as preteries em favor de Nh-lol. Seria possvel, num primeiro momento, fazer duas interpretaes desse captulo: a primeira seria a de que a modstia de Brs sincera e que, por isso, ele acredita que a filantropia o tornou uma pessoa melhor; a segunda seria a de que Brs est sendo irnico e que essa suposta modstia apenas esconde trivialidade e presuno, conforme a expresso empregada no captulo XXIV. A continuao do captulo contribui para desfazer essa dvida:
Talvez a economia social pudesse ganhar alguma cousa, se eu mostrasse como todo e qualquer prmio estranho vale pouco ao lado do prmio subjetivo e imediato; mas seria romper o silncio que jurei guardar nesse ponto. Demais, os fenmenos da conscincia so de difcil anlise; por outro lado, se contasse um, teria de contar todos os que a ele se prendessem, e acabava fazendo um captulo de psicologia. Afirmo somente que foi a fase mais brilhante da minha vida. Os quadros eram tristes; tinham a monotonia da desgraa, que to aborrecida como a do gozo, e talvez pior. Mas a alegria que se d alma dos doentes e dos pobres, recompensa de algum valor; e no me digam que negativa, por s receb-la o obsequiado. No; eu recebia-a de um modo reflexo, e ainda assim grande, to grande que me dava excelente idia de mim mesmo (MP, cap. CLVII, p. 228).
Note-se que, no incio desse pargrafo, aborda-se o mesmo problema do captulo CXXIII, quando se discutia se as aes filantrpicas deveriam ser pblicas ou no. Em seguida, percebe-se que Brs acaba compartilhando dos mesmos valores de Cotrim, na medida em que sua generosidade no altrusta, e sim egosta, pois o que lhe interessa so as recompensas, recebidas de modo reflexo. O curioso do captulo Fase brilhante que Brs no costuma evitar situaes para expor e realar sua mediocridade, pois a franqueza a primeira virtude de um defunto. No entanto, dentro da perspectiva de inacabamento tpica da stira menipia que orienta Memrias pstumas, embora fosse possvel que Brs assumisse mais explicitamente que a bondade que o tomou nos ltimos anos de sua vida era falsa, ele 181 prefere sugerir que essa poca realmente foi a fase mais brilhante de sua vida, usando, para justificar isso, argumentos muito parecidos aos utilizados para ironizar a postura do cunhado 59 . como se ele se tornasse vtima daquele discurso irnico. Portanto h ironia e, mais do que isso, auto-ironia, na medida em que o enunciado deixa transparecer que as crenas de Brs na pureza das recompensas reflexas so sinceras e a enunciao denuncia que so essas crenas esto sendo ironizadas. Ora, se h ironia, h trs vozes envolvidas: A o narrador, A o narratrio e A uma personagem. Na verdade, A Brs como ator da enunciao e A Brs como ator do enunciado. Por isso, para confirmar a tese de Brait de que os trs actantes envolvidos podem coincidir no todo ou em parte na construo do discurso irnico, tem-se os papis de A e A exercidos pelo mesmo sujeito, o que confirma a auto-ironia. Esse seria apenas um dos exemplos em que a ironia dirigida ao narrador, e no apenas produzida por ele. Mas h outras situaes em que o narrador, embora seja alvo da ironia, no a produz. o caso das ironias do enunciador, de acordo com a denominao que propusemos no captulo anterior. Um exemplo de ironia do enunciador em Memrias pstumas so as passagens em que se fazem referncias filosofia humanitista 60 , criao do intelectual bufo Quincas Borba, amigo de infncia do narrador. No captulo O filsofo, Brs toma contato, pela primeira vez, com as reflexes de Quincas Borba. J se percebe, pela fala de Borba que encerra o captulo, que o Humanitismo est mais para uma seita, qual se adere, do que para uma filosofia, que se analisa:
Venha para o Humanitismo; ele o grande regao dos espritos, o mar eterno em que mergulhei para arrancar de l a verdade. Os gregos faziam-na sair de um poo. Que concepo mesquinha! Um poo! (MP, cap. CIX, p. 184).
Posteriormente, no captulo O Humanitismo, a teoria filosfica de Borba esmiuada, o que impressiona verdadeiramente Brs Cubas:
59 Vale ainda lembrar que Brs, semelhana de Cotrim, acaba tendo seu retrato na sacristia, aps trs ou quatro anos de filantropia (MP, cap. CLVIII, p. 228). 60 Que ser esmiuada no item 10 deste captulo. 182 Para que neg-lo? eu estava estupefato. A clareza da exposio, a lgica dos princpios, o rigor das conseqncias, tudo isso parecia superiormente grande, e foi-me preciso suspender a conversa por alguns minutos, enquanto digeria a filosofia nova. Quincas Borba mal podia encobrir a satisfao do triunfo. Tinha uma asa de frango no prato, e trincava-a com filosfica serenidade (MP, cap. CXVII, p. 192).
De fato, Brs admira e respeita a filosofia do amigo. certo que, a essa altura da narrativa, exceto pela sarcstica idia de uma asa de frango ser trincada com filosfica serenidade, ainda no h marcas irrefutveis no enunciado que assegurem que o Humanitismo no deva ser levado a srio, embora j cause estranhamento os elogios humanitistas luta, inveja, guerra, competio desenfreada entre os homens. No captulo Os ces, recrudescem esses polmicos elogios, quando, ao assistir a uma luta de ces, que disputam um osso sem carne, Quincas Borba faz uma inslita analogia, narrada da seguinte maneira por Brs:
Fez-me observar a beleza do espetculo, relembrou o objeto da disputa, concluiu que os ces tinham fome; mas a privao do alimento era nada para os efeitos gerais da filosofia. Nem deixou de recordar que em algumas partes do globo o espetculo mais grandioso: as criaturas humanas que disputam aos ces os ossos, e outros manjares menos apetecveis; luta que se complica muito, porque entra em ao a inteligncia do homem, com todo acmulo de sagacidade que lhe deram os sculos, etc (MP, cap. CXLI, p. 214).
Quincas Borba ainda apresenta outras decorrncias de sua filosofia, que so, sem restries, admitidas como verdadeiras pelo narrador, como a Teoria do benefcio (captulo CXLIX) ou o Orgulho da servilidade (captulo CLVI), mas o mais relevante notar que, a despeito de todas as concluses inslitas do filsofo, Brs aceita-as todas, a ponto de pedir conselhos a Quincas Borba nas mais diversas situaes, como no momento em que Brs est prestes a adentrar na fase brilhante de sua vida:
183 Pouco depois fui convidado por ele [Cotrim] a filiar-me numa Ordem Terceira; o que eu no fiz sem consultar o Quincas Borba (MP, cap. CLVII, p. 227).
Em outra passagem, no captulo Desconsolao, na poca do enterro de Nh- lol, que morreu durante uma epidemia de febre amarela, Brs depara com a dificuldade de entender a necessidade da epidemia. Essa dificuldade logo desfeita pelo Humanitismo:
Quincas Borba, porm, explicou-me que epidemias eram teis espcie, embora desastrosas para uma certa poro de indivduos; fez- me notar que, por mais horrendo que fosse o espetculo, havia uma vantagem de muito peso: a sobrevivncia do maior nmero. Chego a perguntar-me se, no meio do luto geral, no sentia eu algum secreto encanto em ter escapado s garras da peste (...) (MP, cap. CXXVI, p. 201).
Seriam inmeras as passagens que comprovam que Brs aceita a validade da filosofia humanitista: seu encanto com a eloqncia de Quincas Borba, seu respeito pelo amigo a ponto de aconselhar-se com ele e, em alguns casos, a adeso franca ao Humanitismo 61 . o que ocorre no captulo O programa, quando, aps abandonar a carreira poltica sem conseguir tornar-se Ministro de Estado, Brs resolve fundar um jornal oposicionista, cujo programa era uma aplicao poltica do Humanitismo:
Era a fina flor dos programas; prometia curar a sociedade, destruir os abusos, defender os sos princpios de liberdade e conservao; fazia um apelo ao comrcio e lavoura; citava Guizot e Ledru-Rollin, e acabava com esta ameaa, que o Quincas Borba achou mesquinha e local: A nova doutrina que professamos h de inevitavelmente derribar o atual ministrio. Confesso que, nas circunstncias polticas da ocasio, o programa pareceu-me uma obra- prima. A ameaa do fim, que o Quincas Borba achou mesquinha,
61 No captulo Que explica o anterior, por exemplo, Brs refere-se a Quincas como tamanho filsofo (MP, cap CXL, p. 212). 184 demonstrei-lhe que era saturada do mais puro Humanitismo, e ele mesmo o confessou depois. Porquanto, o Humanitismo no exclua nada: as guerras de Napoleo e uma contenda de cabras eram, segundo a nossa doutrina, a mesma sublimidade (...) (MP, cap. CXLVI, p. 217).
A tentativa de aplicao poltica do Humanitismo, como todos os devaneios megalomanacos da filosofia de Borba, confirma que Brs levou a srio a doutrina proposta pelo amigo, tanto verdade que ela a considera nossa. Mas o fato que defender que as guerras de Napoleo e uma contenda de cabras so a mesma sublimidade, alm de todas as bravatas cndidas de Quincas Borba, funciona como indcio mais do que suficiente para concluir que o Humanitismo uma brincadeira, muito provavelmente uma stira de Machado aos cientificismos do final do sculo XIX, como o Positivismo ou o Determinismo, que eram tomados por alguns como verdades religiosas a serem louvadas, e no discutidas 62 . Assim, se o Humanitismo no srio e Brs o apresenta como se fosse, tem-se uma ironia que atinge Brs e, por isso, s pode ter sido produzida por Machado, isto , pelo enunciador, no nvel da enunciao de 1 grau. Temos aqui mais uma situao em que conveniente estudar separadamente as enunciaes em Memrias pstumas, pois, se Brs alvo do discurso irnico e no se trata de auto-ironia (uma vez que no h marcas textuais para identific-la), alguma instncia discursiva superior responsvel por esses efeitos enunciativos. Essa instncia do enunciador, o que corresponde ao primeiro nvel enunciativo. Essa ironia do enunciador, que satiriza o narrador, pode ser considerada um caso de ironia que emprega a ttica de ao e que:
usa a dissimulao e a simulao como armas do engano: quer, por conseguinte (at que se d uma eventual alterao da situao), manter (...) o mal-entendido (Lausberg, 1965, p. 251).
Na verdade, cabe ao enunciatrio a tarefa de desfazer o mal-entendido, at para no correr o risco de atribuir validade epistemolgica ao Humanitismo, incorrendo no mesmo equvoco de Brs.
62 Voltaremos a tratar dessa questo no item 10 deste captulo. 185 Dentro da polifonia discursiva de Memrias pstumas, podemos citar outros fragmentos do romance caracterizados por essa ironia do enunciador, que, ao atingir Brs, refora a tese de que sempre h uma instncia superior pressuposta no comando dos rumos discursivos do enunciado. Um exemplo est no captulo A barretina. Mais uma vez por sugesto de Quincas Borba, defensor da idia de que cinqenta anos a idade da cincia e do governo, Brs que era deputado a esta altura resolve apoderar-se da tribuna, pois era a nica maneira de tornar-se mais conhecido politicamente e, assim, cortejar mais diretamente uma pasta ministerial, um dos grandes objetivos de sua vida. Para realizar esse sonho, ele resolve intervir mais diretamente nos debates polticos. No captulo A barretina, ele ento comenta:
Trs dias depois, discutindo-se o oramento da justia, aproveitei o ensejo para perguntar modestamente ao ministro se no julgava til diminuir a barretina da guarda nacional. No tinha vasto alcance o objeto da pergunta; mas ainda assim demonstrei que no era indigno das cogitaes de um homem de Estado; e citei Filopmen, que ordenou a substituio dos broquis de suas tropas, que eram pequenos, por outro maiores, e bem assim as lanas, que eram demasiado leves; fato que a histria no achou que desmentisse a gravidade de suas pginas. O tamanho das nossas barretinas estava pedindo um corte profundo, no s por serem deselegantes, mas tambm por serem anti-higinicas. Nas paradas, ao sol, o excesso de calor produzido por elas podia ser fatal. Sendo que um dos preceitos de Hipcrates era trazer a cabea fresca, parecia cruel obrigar um cidado, por simples considerao de uniforme, a arriscar a sade e a vida, e conseqentemente o futuro da famlia. A cmara e o governo deviam lembrar-se que a guarda nacional era o anteparo da liberdade e da independncia, e que o cidado, chamado a um servio gratuito, freqente e penoso, tinha direito a que se lhe diminusse o nus, decretando um uniforme leve e maneiro. Acrescia que a barretina, por seu peso, abatia a cabea dos cidados, e a ptria precisava de cidados cuja fronte pudesse levantar-se altiva e serena diante do poder; e conclu com esta idia: o choro, que inclina os seus galhos para a terra, rvore de cemitrio; 186 a palmeira, erecta e firme, rvore do deserto, das praas e dos jardins (MP, cap. CXXXVII, p. 209-210).
No necessria uma grande dose de sabedoria poltica para perceber que o tamanho da barretina da guarda nacional interessava pouco ou nada para os rumos do pas no II Reinado. Se Brs tinha a expectativa de ser Ministro de Estado, ele deveria tratar de temas relevantes para a nao, e no de uma inutilidade como essa. Mas a verdade que Brs no percebe que seu discurso foi um desastre parlamentar, tanto assim que ele termina o captulo CXXXVII crendo efetivamente e com a anuncia de Quincas Borba no perigo de no diminuir o tamanho da barretina da guarda nacional. Nessa passagem, satirizam-se as ingenuidades polticas e a inpcia parlamentar de Brs, que se torna alvo da ironia, mais uma vez produzida pelo enunciador. O que complexifica a anlise do captulo A barretina seu captulo imediatamente anterior, intitulado Inutilidade:
Mas, ou muito me engano, ou acabo de escrever um captulo intil (MP, cap. CXXXVI, p. 208).
Esse captulo espcie de precursor do poema-plula dos modernistas pode ser visto apenas como uma (mais uma) pilhria narrativa. Mas no deixa de ser relevante o fato de o captulo Inutilidade aparecer exatamente antes de A barretina. Ser que se trata de uma maneira de sugerir que a vida poltica de Brs, que seu mandato parlamentar, que a proposta de diminuio da barretina, que seu desejo de ganhar um ministrio foram grandes inutilidades? Pode ser que sim. Nesse caso, como se o narrador (Brs-morto, ator da enunciao) estivesse ironizando a personagem (Brs- vivo, ator do enunciado), o que configuraria uma ironia dentro do segundo nvel enunciativo. Mas, para que essa interpretao fosse incontestvel, seria necessrio que houvesse mais indcios, alm do captulo Inutilidade, que confirmassem que o narrador compartilha da certeza de que a barretina era uma inutilidade. No h esses indcios, e os captulos posteriores no culpam a infeliz barretina pelo fracasso da vida paramentar de Brs, de maneira que mais pertinente considerar que as ironias implcitas no captulo A barretina opem o enunciado (em que o narrador cr, de fato, 187 que esse projeto possa atribuir-lhe prestgio) enunciao de 1 grau (em que o enunciador mostra o descabimento dessa crena). O captulo O emplasto apresenta o mesmo problema de enunciao que A barretina. Logo no incio do romance, Brs afirma que morreu por causa de uma idia grandiosa e til, que no lhe permitiu cuidar adequadamente de uma pneumonia que tinha apanhado. Essa idia a do emplasto:
Essa idia era nada menos que a inveno de um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondraco, destinado a aliviar a nossa melanclica humanidade. Na petio de privilgio que ento redigi, chamei a ateno do governo para esse resultado, verdadeiramente cristo. Todavia, no neguei aos amigos as vantagens pecunirias que deviam resultar da distribuio de um produto de tamanhos e to profundos efeitos (MP, cap. II, p. 25).
O principal motivo que permite considerar que a idia do emplasto tambm no deve ser levada a srio deles a certeza de que um advogado, com sessenta e tantos anos, sem conhecimentos farmacotcnicos, no possui competncia bastante para produzir qualquer medicamento, ainda mais um inslito emplasto anti-hipocondraco. Mas o narrador no s leva o emplasto a srio, como acaba morrendo por ele, e, no final do romance, no clebre captulo Das negativas, ainda afirma:
Divino emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os homens, acima da cincia e da riqueza, porque eras a genuna e direta inspirao do cu. O acaso determinou o contrrio; e a vos ficais eternamente hipocondracos (MP, cap. CLX, p. 230).
H, portanto, uma dimenso irnica nessa referncia ao emplasto. Mas nada garante que ela seja de responsabilidade do narrador; pelo contrrio, o que parece que, outra vez, o enunciador ironiza o narrador, confirmando que Brs Cubas, o vivo ou o morto, no compartilha de seus valores. Ao relacionar a morte de Brs e o emplasto, mais uma vez se percebe uma vinculao entre Memrias pstumas e a cosmoviso carnavalesca:
188 o primeiro captulo nos revela a causa imediata de sua morte: uma pneumonia. No entanto, com a lgica irnica utilizada por Brs Cubas para mofar-se da idia de causalidade, a verdadeira razo de seu falecimento nos apontada: segundo ele nos diz, morrera realmente em virtude de uma idia grandiosa e til que se apoderara de seus pensamentos (...). Como outros autores da tradio da stira menipia, Brs Cubas inventa uma panacia, destinada a aliviar a nossa melanclica humanidade. Sua descoberta tem portanto vrios antecedentes literrios. Entre eles, a carta apcrifa de Hipcrates a Damageta em que o filsofo Demcrito aparece como Brs Cubas na montanha da Tijuca no alto de uma colina elevada sentado sob uma rvore, com um livro sobre os joelhos, tentando descobrir a sede da blis, fonte da loucura e da melancolia, para com isso curar a humanidade (Rego, 1989, p. 172).
A anlise da ironia em Memrias pstumas coloca frente a frente duas vozes, duas instncias enunciativas, dois universos de valores. No romance, enunciador e narrador misturam-se polifonicamente, num jogo discursivo em que ora o narrador fala, ora o enunciador fala pela boca do narrador e ora o enunciador ironiza o narrador. No fcil delimitar com preciso essas fronteiras, at porque esse mistrio e esse efeito de inacabamento fazem parte do jogo enunciativo machadiano, moda das stiras menipias. De qualquer modo, as ironias do romance ajudam a delimitar o raio de ao do enunciador e do narrador na obra, mostrando que a eficincia discursiva do romance advm das relaes que vo sendo criadas entre esses nveis e que funcionam
como o resultado de uma contradio percebida pelo receptor entre a duplicidade enunciativa do processo (Brait, 1996, p. 95).
189 5. A questo do destinatrio: dilogo e dialogismo
A leitora, que minha amiga e abriu este livro com o fim de descansar da cavatina de ontem para a valsa de hoje, quer fech-lo s pressas, ao ver que beiramos um abismo. No faa isso, querida; eu mudo de rumo. (Machado de Assis, Dom Casmurro)
Para continuar a desvendar alguns dos requintes discursivos de Memrias pstumas, bem como as relaes entre o primeiro e o segundo nvel enunciativo, entre a enunciao de 1 grau e a de 2 grau, preciso deixar um pouco de lado a questo do destinador e estudar tambm o papel do destinatrio, analisando as posies do enunciatrio e do narratrio no romance. No faz sentido problematizar semelhanas e diferenas entre o enunciador e o narrador do romance, se no for dado espao discusso envolvendo seus destinatrios, o que se justifica pelo fato de que a noo de sujeito da enunciao rene em uma nica categoria os papis de enunciador e enunciatrio (e, por extenso, as posies de narrador e narratrio, j que o segundo nvel enunciativo uma projeo do primeiro). Ora, se uma de nossas intenes mapear a enunciao machadiana, necessrio delimitar como se constri esse sujeito da enunciao, o que s possvel se identificarmos as caractersticas do destinador e do destinatrio da enunciao de 1 grau. Alm desse motivo que j seria suficiente , preciso lembrar que, como asseguram os retricos, a audincia condiciona o orador. No toa que, atualmente, em lugar de enunciatrio, a Anlise do Discurso prope o termo co-enunciador 63 para designar o real papel do enunciatrio na produo discursiva. Por tudo isso, apontar as caractersticas do enunciatrio e do narratrio nas Memrias pstumas dar mais um passo para compreender os meandros enunciativos da obra. E mais: como a relao que o sujeito da enunciao estabelece entre narrador e narratrio, entre enunciador e enunciatrio, tantas vezes polmica, estamos diante, outra vez, de uma evidncia textual da heterogeneidade discursiva.
63 A sugesto terica de Culioli, para quem o co-enunciador estabelece uma relao de alteridade com o enunciador, que pode ser de coalescncia ou separao, o que a difere da simples relao entre interlocutores, que esto sempre separados. Para ele, por isso que no se deve confundir a relao entre enunciador e enunciatrio com o mecanismo da interlocuo (2000, p. 130). 190 Nos estudos literrios, consenso considerar como uma das principais caractersticas da obra machadiana a conversa com o leitor. Nas Memrias pstumas, essa verdadeira experincia dialgica, marcada no enunciado, ainda mais radical. J que empregamos a expresso experincia dialgica, vale a pena fazer algumas observaes. Com rigor, o adjetivo dialgico deriva do substantivo dilogo, mas costuma ser empregado para se referir, nos estudos lingsticos, ao conceito de dialogismo, que foi desenvolvido pelos pesquisadores do Crculo de Bakhtin, para designar e explicar o fenmeno da heterogeneidade discursiva, na medida em que
o significado no ocorre como produto solitrio de uma inteno determinada pela vontade de um ego soberano (Clark & Holquist, 1998, p. 38).
Na palavra, no signo, no discurso confrontam-se ndices de valor contraditrio (Bakhtin, 1997c, p. 46). No existe, pois, vontade de um ego soberano, e sim um jogo de contradies que ajuda a definir o sujeito que produz o discurso num determinado universo social. Com efeito,
para haver relaes dialgicas, preciso que qualquer material lingstico (ou de qualquer outra materialidade semitica) tenha entrado na esfera do discurso, tenha sido transformado num enunciado, tenha fixado a posio de um sujeito social. S assim possvel responder (em sentido amplo e no apenas emprico do termo), isto , fazer rplicas ao dito, confrontar posies, dar acolhida fervorosa palavra do outro, confirm-la ou rejeit-la, buscar-lhe um sentido profundo, ampli-la (Faraco, 2003, p. 64).
H uma certa tendncia de supor que a relao entre o discurso e a palavra do outro configuraria um dilogo, stricto sensu. Mas a verdade que o dialogismo no se confunde com a interao face a face (Fiorin, 2006a, p. 166). O que se pode dizer que, na obra bakhtiniana, o dialogismo pode se originar do dilogo:
O dilogo, no sentido estrito do termo, no constitui, claro, seno uma das formas, verdade que das mais importantes, da interao verbal. Mas pode-se compreender a palavra dilogo num sentido amplo, isto , no apenas como a comunicao em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicao verbal, de qualquer tipo que seja (Bakhtin, 1997c, p. 123). 191
Essa passagem mostra que o dialogismo parece ter surgido como uma espcie de ampliao de sentido da palavra dilogo, uma vez que aquele configuraria uma forma particular de composio do discurso (Fiorin, 2006a, p. 167) que acaba por explicitar alguns dos traos caractersticos deste, a saber, a rplica, a contradio, a polmica e, se for o caso, a cumplicidade. Dessa forma, mesmo os textos que apresentam um enunciador-narrador aparentemente soberano (o que seria uma maneira de evitar o dilogo) estruturam-se a partir de um princpio dialgico, pois apreendemos o real no diretamente, e sim
semioticamente, o que implica que nosso discurso no se relaciona diretamente com as coisas, mas com outros discursos, que semiotizam o mundo. Essa relao entre os discursos o dialogismo (Fiorin, 2006a, p. 167).
Nessa perspectiva, todo enunciado dialgico, independentemente de os interlocutores dialogarem ou de o narrador manter uma comunicao direta com o narratrio, at porque os membros do Crculo de Bakhtin no so tericos do dilogo (Faraco, 2003, p. 59), e sim do dialogismo. esse o primeiro conceito de dialogismo, de acordo com Fiorin. Em sentido amplo, para Bakhtin,
o dialogismo o modo de funcionamento real da linguagem, o princpio constitutivo do enunciado. Todo enunciado constitui-se a partir de outro enunciado, uma rplica a outro enunciado. Portanto, nele ouvem-se sempre, ao menos, duas vozes. Mesmo que elas no se manifestem no fio do discurso (...) (Fiorin, 2006b, p. 24).
Sendo assim, preciso fazer a ressalva de que todo processo de interao verbal encerra manifestaes dialgicas, o que significa que o dilogo pode, de fato, levar ao dialogismo. Mas
o evento do dilogo face-a-face s interessa como um dos muitos eventos em que se manifestam as relaes dialgicas que so mais amplas, mais variadas e mais complexas do que a relao existente entre as rplicas de uma conversa face-a-face (...). Sob essa perspectiva, o dilogo face-a-face vai tambm 192 interessar ao Crculo como um dos espaos em que se d, por exemplo, o entrecruzamento das mltiplas verdades sociais (...), isto , a confrontao das mais diferentes refraes sociais expressas em enunciados de qualquer tipo e tamanho postos em relao (Faraco, 2003, p. 60).
Aqui, j nos aproximamos do segundo conceito de dialogismo, que ocorre quando ocorre h a
incorporao pelo enunciador da voz ou das vozes de outros(s) no enunciado. Nesse caso, o dialogismo uma forma composicional. So maneiras externas e visveis de mostrar outras vozes no discurso (Fiorin, 2006b, p. 32).
No mbito desta tese, no trataremos o dilogo narrador-narratrio como uma mera interao verbal face a face, e sim como a manifestao textual de uma experincia dialgica, que, ao absorver o discurso alheio no prprio enunciado (Fiorin, 2006b, p. 32), explicita a heterogeneidade constitutiva da linguagem. Essa experincia, nas Memrias pstumas, leva polifonia, o que est plenamente de acordo com o pluriestilismo e a pluritonalidade (p. 91) da stira menipia. A todo o tempo, o narratrio aparece no enunciado. Desde a advertncia, em que ele chamado de fino leitor (MP, p. 21), at o ltimo captulo do romance, em que os narratrios so instalados no texto por meio de um vos (MP, cap. CLX, p. 230), h um dilogo permanente entre Brs Cubas e o leitor debreado enunciativamente no texto. No total, so 55 captulos em que h pelo menos uma debreagem actancial que remete ao narratrio (e isso sem contar as inmeras vezes em que, num mesmo captulo, h mais de uma debreagem). Como se disse, essa conversa com o leitor um trao marcante da literatura machadiana, mas, para compreender que esse dilogo contribui para revelar a prpria natureza dialgica das Memrias pstumas, vale a pena fazer uma digresso histrico- literria. No sculo XIX, no apenas no Brasil, mas no mundo todo, proliferaram obras literrias, publicadas de maneira fragmentada nos jornais. Jos de Alencar, Machado de Assis, Manuel Antnio de Almeida foram apenas alguns de nossos escritores que, antes de verem suas narrativas impressas em livros, viram-nas nas pginas dos dirios e 193 semanrios cariocas do sculo XIX, sob a forma de folhetins. Estes tinham o hbito de fazer
concesses ao pblico receptor, alm de esclarecer a leitura na passagem de captulo para captulo, com explicaes rpidas ou referncias a situaes anteriores para encade-las com as seguintes. Recurso circunstancial de divulgao de narrativa ficcional, foi suficiente para marcar linguagem e construo, a partir do qual muitas dessas narrativas passaram para a forma do livro, carregando consigo as particularidades indicadas (...) (Castello, 1999, vol. I, p. 252).
Assim surgiu o gnero folhetim, que, oriundo do Romantismo, atingiu muitas obras do Realismo, como caso das Memrias pstumas, publicadas entre maro e dezembro de 1880, no Rio de Janeiro, pela Revista Brasileira. verdade que o gnero foi evoluindo ao longo do sculo XIX, mas ele conservou
muito do tom de sua linguagem coloquial, maneira de voltar-se para a comunicao imediata e direta, chamando o leitor reflexo, ao envolvimento em atmosfera lrica ou abstrao (...) (Castello, 1999, vol. I, p. 255).
Essa comunicao imediata e direta da literatura folhetinesca, que encontra par na conversa machadiana com o leitor, configura um dilogo, que no necessariamente dialgico, j que os objetivos dessa interlocuo parece nascerem da necessidade do dilogo com os leitores, e no de uma intencionalidade enunciativa dialgica. Isso porque o folhetim no podia prescindir de uma relao cordial com o pblico leitor da poca, j que era esse pblico que, no final das contas, determinaria o sucesso ou no de um romance. Marlyse Meyer, por exemplo, afirma:
bvio que as prprias condies de publicao [dos folhetins] devem ter infludo na estrutura narrativa. (...) A almejada adequao ao grande pblico, a necessidade do corte sistemtico num momento que deixe a ateno em suspense levam no s a novas concepes de estrutura (...) como a uma simplificao na caracterizao dos personagens, muito romntica na sua distribuio maniquesta, assim como a uma srie de cacoetes estilsticos (Meyer, 1996, p. 31). 194
Entre esses cacoetes estilsticos, poder-se-ia apontar uma tentativa de estabelecer uma relao amigvel e direta com o pblico leitor de jornais. Devido a essa tentativa de criar um efeito de intimidade, isto , um clima de cordialidade entre narrador e narratrio, era comum que as narrativas se auto-explicassem, numa recorrncia da modalidade autonmica, representada muitas vezes pela noo de direo proposta por Genette 64 :
A funo de direo aquela em que, por um discurso metanarrativo, o narrador marca as articulaes, as conexes, as inter-relaes em sntese, a organizao interna do texto narrativo (Fiorin, 1999, p. 105).
A funo de direo procura produzir um efeito de aproximao entre narrador e narratrio, j que comentar a organizao interna do texto narrativo uma forma de instalar o eu texto, num caso de enunciao enunciada que no deixa de remeter ao universo do tu, pois h uma relao indissocivel entre a primeira e a segunda pessoa, o que significa que a instalao do narrador do enunciado, por meio da funo de direo, pressupe a existncia de um narratrio. Nessa perspectiva, a funo de direo torna-se semelhante em certos aspectos prpria funo de comunicao de que falava Genette (Fiorin, 1999, p. 106). fato que, nos romances folhetinescos, a funo de comunicao era menos valorizada do que a funo de direo, embora ambas produzissem efeitos parecidos. Mas inegvel que, s vezes, elas se misturavam. Tanto que Marlyse Meyer, ao comentar as narrativas rocambolescas, chega a afirmar:
Entre tantos exemplos, uma cena de um captulo seminal de A herana, aquele no qual, finalmente, Rocambole faz sua entrada. Se me permite o leitor, para no escapar tradio do folhetim interrompo a ao para apresentar o Rocambole das origens, as Enfances de Rocambole, para empregar a linguagem de pica medieval digna de to grande assunto (Meyer, 1996, p. 182).
64 Na traduo portuguesa da obra de Genette, fala-se em funo de regncia (Genette, 1995, p. 254). 195 Nessa passagem, ao parodiar o estilo folhetinesco, Meyer recorre simultaneamente s funes de comunicao e direo, num procedimento discursivo cuja principal funo parece ser mesmo a de aproximar semanticamente narrador e narratrio. Pensando nisso, pode-se concluir que a conversa machadiana com o leitor no pode ser considerada, precisamente, uma caracterstica folhetinesca, pois a funo de comunicao no a principal caracterstica desse gnero. Mas o efeito de intimidade produzido por esses dilogos constantes semelha os efeitos produzidos pela funo de direo tpica dos folhetins. A valorizao da funo de direo na literatura folhetinesca uma espcie de coero de gnero. Trata-se menos de uma caracterstica individual dos escritores do perodo do que uma tendncia (talvez at mesmo uma exigncia) de poca, j que os folhetins, para obter sucesso, eram praticamente obrigados a destacar a comunicao imediata e direta, chamando o leitor reflexo. Nesse sentido, nas Memrias pstumas, h diversos momentos em que o narratrio debreado no enunciado, com o objetivo simplesmente de manter uma interlocuo, numa espcie de funo ftica jakobsoniana. o caso de captulos como:
em Genealogia:
(...) deixem-me fazer aqui um curto esboo genealgico (MP, cap. III, p. 26).
em Curto, mas alegre:
Para lhes dizer a verdade toda (...) (MP, cap. XXIV, p. 75).
em Na sege:
Notem que aquele dia (...) (MP, cap. XL, p. 98).
em D. Plcida:
196 V agora a neutralidade deste globo (...) (MP, cap. LXX, p. 139).
em Suprimido:
(...) no sei como lhes diga que no me senti mal (...) (MP, cap. XCVIII, p. 172).
em Morro abaixo:
Agora, se querem saber em que circunstncia se deu o fenmeno, basta-lhes ler este captulo (...) (MP, cap. CXXI, p. 196).
em Fase brilhante:
(...) e no me digam que negativa (...) (MP, cap. CLVIII, p. 228).
Essas passagens so, sobretudo, uma comprovao de que Machado procura, em sua obra, estabelecer uma interlocuo com o narratrio, produzindo efeitos parecidos aos da literatura folhetinesca. Essa interlocuo no deixa de possuir traos de oralidade (o que, s vezes, pressupe um certo coloquialismo), j que implica a existncia de
parceiros de um ato de troca verbal, em situao de comunicao oral (...) (Charaudeau & Maingueneau, 2004, p. 288).
Assim, o dilogo com o leitor ser uma tentativa de o romance estabelecer uma relao entre narrador e narratrio, tpica da oralidade, com a diferena de que no h alternncia entre os turnos de fala. Considerando ento que Memrias pstumas d uma enorme importncia figura do narratrio (instalado, a todo tempo, no enunciado) e que esse dilogo com o leitor pressupe traos de oralidade, no de estranhar que esses traos sejam largamente valorizados no romance. Eles aparecem ainda com mais nitidez nas vrias passagens em que Machado se vale de interjeies, hesitaes e autocorrees 197 caractersticas da linguagem falada. Isso tambm uma maneira de mostrar a dimenso dialgica (marcada explicitamente no enunciado) do romance. Vejam-se alguns exemplos:
em Idia fixa, em que h uma autocorreo, ainda que sarcstica:
Mal comparando, como a arraia-mida, que se acolhia sombra do castelo-feudal; caiu este e a arraia ficou. Verdade que se fez grada e castel... No, a comparao no presta. (MP, cap. IV, p. 28).
em O primeiro beijo, em que h uma hesitao um tanto quanto falsa:
(...) a que me cativou logo foi uma... uma... no sei se diga; este livro casto, ao menos na inteno; na inteno castssimo (MP, cap. XIV, p. 55).
em Na Tijuca, em que h uma interjeio iniciando o captulo:
Ui! l se me ia a pena a escorregar para o enftico (MP, cap. XXV, p. 76).
Poderamos ainda lembrar muitos outros exemplos de oralidade como em Uma reflexo imoral (Cuido haver dito, no captulo XIV, que [...]), em O almocreve (Vai ento, empacou o jumento [...]), em O autor hesita (Creio haver dito que era de um dos Regentes.) e em Destino (Sim, senhor, amvamos.) , mas o que interessa notar que esses recursos da linguagem falada, associados aos momentos em que o narrador se dirige explicitamente ao narratrio, so mais um indcio de que as Memrias pstumas procuram estabelecer uma relao explcita entre narrador e narratrio, de um modo semelhante repita-se ao que ocorre no gnero folhetinesco. preciso, entretanto, destacar que h uma diferena essencial entre a funo de direo (e, s vezes, de comunicao) da literatura folhetinesca tradicional e a conversa com o leitor que se opera na obra machadiana. Isso porque, nos folhetins, a busca pelo efeito de intimidade entre narrador e narratrio , como dissemos, uma coero do 198 gnero. Tratava-se de, retoricamente, captar a benevolncia do auditrio, fazendo-lhe concesses. Acontece que em Machado e, especificamente, em Memrias pstumas essa interlocuo sai da dimenso do folhetim, para adquirir uma importncia discursiva muito maior, j que o thos que est sendo construdo depende muito dessa dico. Com efeito, nos romances machadianos, a conversa com o leitor uma astcia enunciativa, que vai muito alm dos efeitos de intimidade e cordialidade valorizados na tradio folhetinesca. O destinatrio instalado no enunciado das Memrias pstumas est no centro da discusso sobre as funes de direo e comunicao no romance. Pode-se dizer que o narratrio principal do romance o leitor, a quem o narrador se dirige inmeras vezes. Mas h outros narratrios, instalados pontualmente no texto, com os quais o narrador tambm conversa. Seria possvel imaginar que esses subnarratrios so, na realidade, pseudonarratrios, que vo de atores do enunciado a conceitos abstratos e figuras personificados e que so menos narratrios propriamente ditos (cuja instalao no texto pressuporia a possibilidade de uma interlocuo) do que atores que contribuem para a produo do efeito de multiplicidade de vozes que caracteriza o romance. Algumas amantes da vida de Brs Cubas (Marcela, Virglia e Eugnia, por exemplo) so transformadas em narratrios do enunciado, com o emprego, inclusive, de vocativos. Isso acontece no captulo Marcela:
Primeira comoo da minha juventude, que doce que me foste. Tal devia ser, na criao bblica, o efeito do primeiro sol. (MP, cap. XV, p. 57);
no captulo Virglia?:
Tu que me ls, se ainda fores viva, quando estas pginas vierem luz, tu que me ls, Virglia amada, no reparas na diferena entre a linguagem de hoje e a que primeiro empreguei quando te vi? Cr que era to sincero ento como agora; a morte no me tornou rabugento, nem injusto (MP, cap. XXVII, p. 82);
e no captulo Bem-aventurados os que no descem:
199 Pobre Eugnia! Se tu soubesses que idias me vagavam pela mente fora naquela ocasio! Tu, trmula de comoo, com os braos nos meus ombros, a contemplar em mim o teu bem-vindo esposo, e eu com os olhos em 1814, na moita, no Vilaa, e a suspeitar que no podias mentir ao teu sangue, tua origem... (MP, cap. XXXIII, p. 91).
Os vocativos aqui empregados pelo narrador para referir-se a trs das mulheres com as quais ele se envolveu mostram como Eugnia nunca foi levada a srio por Brs (Pobre Eugnia), como Virglia foi seu grande amor (Virglia amada) e como Marcela o marcou como seu primeiro amor (Primeira comoo da minha juventude). Alguns atores do enunciado menos importantes, como o caso do professor Ludgero Barata, tambm so debreados actancialmente:
Que querias tu, afinal, meu velho mestre de primeiras letras? Lio de cor e compostura na aula; nada mais, nada menos do que quer a vida, que das ltimas letras (...). (MP, cap. XIII, p. 54).
Neste mesmo captulo Um salto , h ainda uma apstrofe palmatria, um tanto quanto sarcstica:
palmatria, terror dos meus dias pueris, tu que foste o compelle intrare com que um velho mestre, ossudo e calvo, me incutiu no crebro o alfabeto, a prosdia, a sintaxe, e o mais que ele sabia, benta palmatria, to praguejada dos modernos, quem me dera ter ficado sob o teu jugo, com a minha alma imberbe, as minhas ignorncias, e o meu espadim, aquele espadim de 1814, to superior espada de Napoleo! (MP, cap. XIII, p. 54).
Partindo da definio de Lausberg, para quem a apstrofe consiste num afastamento quanto aos ouvintes (1965, p. 255), conclui-se que todos esses ltimos exemplos contm passagens apostrficas, j que, seja dirigindo-se a um ator do enunciado, seja a uma figura personificada, o narrador se desvia de seus temas habituais para fazer referncia explcita a seus narratrios. 200 Na Retrica clssica, a apstrofe se diferencia da digresso. Ambos os conceitos designam variaes da metbase, da averso, ou seja, do afastamento dos temas principais do discurso: a apstrofe seria um afastamento quanto aos ouvintes, e a digresso, quanto matria do discurso (Lausberg, 1965, p. 252-257) 65 . Mas, alargando o conceito de digresso, como fizemos no item anterior, a apstrofe seria uma espcie de digresso, que
pode ser entendida, antes de mais nada, como elemento de certo modo marginal e ancilar em relao narrativa propriamente dita em que se inscreve. De fato, fala-se em digresso sempre que a dinmica da narrativa interrompida para que o narrador formule asseres, comentrios ou reflexes normalmente de teor genrico e transcendendo o concreto dos eventos relatados (...) (Reis & Lopes, 2002, p. 108).
Alm disso, os estudiosos da narrativa tambm admitem que
digresso caiba uma importante funo de representao ideolgica e que ela seja privilegiada em obras e perodos no vinculados a uma concepo da narrativa como discurso transparente e radicalmente neutro (Reis & Lopes, 2002, p. 109).
Do ponto de vista narrativo, a digresso uma ruptura, uma descontinuidade, um afastamento. Mas, na perspectiva discursiva, no h ruptura alguma, j que tanto a narrativa propriamente dita quanto suas apstrofes e demais comentrios secundrios esto a servio das mesmas intencionalidades enunciativas, o que vai confirmando a diluio de fronteiras discursivas operada pelo romance. Isso quer dizer que, no plano da enunciao que o lugar do qual provm as manifestaes ideolgicas do discurso , as passagens digressivas e no-digressivas costumam reiterar os mesmos valores. Por isso, a digresso consiste num recurso enunciativo e, como tal, ideolgico. certo que as Memrias pstumas esto muito longe de representar um discurso transparente e radicalmente neutro. Por isso, j seria esperado que o romance recorresse s digresses, como forma de, afastando-se dos acontecimentos mais importantes da fbula, reiterar a presena de um enunciador, que no se priva de
65 Lausberg ainda aponta um terceiro tipo de afastamento, o afastamento do orador de si prprio, ao que se pode chamar de etopia (1965, p. 252-254). 201 marcar sua presena no enunciado. Essa presena caracterizada textualmente por debreagens e embreagens enunciativas e por vrias passagens que contm enunciaes enunciadas tambm se revela por meio das apstrofes, que, ao incluir o narratrio no enunciado, reforam os traos dialgicos e o estilo digressivo do romance, que a todo tempo incorpora a voz do outro. Existem, em Memrias pstumas, apstrofes de vrias naturezas. Vejam-se alguns casos:
em O recluso:
Pena de maus costumes, ata uma gravata ao estilo, veste-lhe um colete menos srdido; e depois sim, depois vem comigo, entre nessa casa, estira-te nessa rede (...) (MP, cap. XLVII, p. 107).
em A ponta do nariz:
Nariz, conscincia sem remorsos, tu me valeste muito na vida... (MP, cap. XLIX, p. 108).
em Destino:
Pobre Destino! Onde andars agora, grande procurador dos negcios humanos? Talvez estejas a criar pele nova, outra cara, outras maneiras, outro nome, e no impossvel que... (MP, cap. LVII, p. 121).
em O travesseiro:
Escrfula da vida, andrajo do passado, que me importa que existas, que molestes os olhos dos outros, se eu tenho dous palmos de um travesseiro divino, para fechar os olhos e dormir? (MP, cap. LXII, p. 127).
em As pernas:
202 Abenoadas pernas! E h quem vos trate com desdm ou indiferena. Eu mesmo, at ento, tinha-vos em m conta, zangava-me quando vos fatigveis (...) (MP, cap. LXVI, p. 135).
em Entrevista:
No, eternas estrelas, nunca vi olhos mais pasmados (MP, cap. LXXVII, p. 147).
em O conflito:
Nmero fatdico, lembras-te que te abenoei muitas vezes? (MP, cap. LXXXIV, p. 156).
novamente em O conflito:
Pois dou-ta, gua piedosa, no s pela morte havida, como porque, entre as donzelas escapas, no impossvel que figurasse uma av dos Cubas... (MP, cap. LXXXIV, p. 156).
em Na platia:
Multido, cujo amor cobicei at morte, era assim que eu me vingava s vezes de ti (...) (MP, cap. XCIX, p. 173).
em Formalidade:
Amvel Formalidade, tu s, sim, o bordo da vida, o blsamo dos coraes, a medianeira entre os homens, o vnculo da terra e do cu; tu enxugas as lgrimas de um pai, tu captas a indulgncia de um Profeta (MP, cap. CXXVII, p. 202).
em Das negativas: 203
Divino emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os homens, acima da cincia e da riqueza, porque eras a genuna e direta inspirao do cu (MP, cap. CLX, p. 230).
Entre esses exemplos, ainda poderia figurar o captulo CXXXVIII, A um crtico, em que o narrador faz uma apstrofe metalingstica a um suposto crtico do romance, explicando nuances enunciativas da obra. Aproveitando os tipos de apstrofes citadas por Lausberg (1965, p. 256), podem-se classificar as apstrofes machadianas citadas da seguinte maneira:
a) apstrofes a pessoas ausentes, que se imaginam como presentes, numa vivncia de fantasia: Na platia. b) apstrofes a coisas: O recluso, Entrevista e Das negativas. c) apstrofes a partes do corpo ou da alma e suas propriedades: A ponta do nariz e As pernas. d) apstrofes a noes abstratas: Destino, O travesseiro, O conflito e Formalidade.
A polifonia representada por todas essas apstrofes torna-se ainda mais evidente quando se estudam as referncias que o narrador faz ao narratrio. As apstrofes ao leitor contribuem decisivamente para o efeito polifnico do romance. J dissemos, alis, que a tentativa de estabelecer uma relao de intimidade, de aproximao com o narratrio (o que pode incluir a conversa com o leitor) comum na tradio literria do sculo XIX. Mas em Memrias pstumas isso amplificado de tal forma que, a todo tempo, o romance revela sua estrutura dialgica. Como dissemos, essa interlocuo entre narrador e narratrio um dos pilares enunciativos da obra, e, com isso, o narratrio deixa de ser um pretexto para estabelecer uma interlocuo, como acontecia na maior parte dos romances folhetinescos. Para tal, necessrio que o narrador, alm de simplesmente dialogar com seu narratrio, procure criar uma imagem de seus presumveis leitores. Por isso, o papel de narratrio no corresponde somente a uma posio actancial, associada sintaxe discursiva; mais do que isso, o narratrio nas Memrias pstumas cuidadosamente revestido semanticamente, o que o torna um verdadeiro ator da enunciao e, assim, 204 muito mais importante para a narrativa do que um mero destinatrio do enunciado. Os demais narratrios que aparecem no romance, chamados por ns no toa de pseudonarratrios, no recebem esse tipo de revestimento semntico. Em Memrias pstumas, h ento diversas passagens em que o narrador vai sendo revestido semanticamente:
na advertncia ao leitor:
(...) se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te no agradar, pago-te com um piparote, e adeus (MP, p. 21).
em A idia fixa:
Veja o leitor a comparao que melhor lhe quadrar, veja-a e no esteja da a torcer-me o nariz, s porque ainda no chegamos parte narrativa dessas memrias. (...) Vamos l; retifique seu nariz, e tornemos ao emplasto (MP, cap. IV, p. 28).
em Marcela:
Pois foi a mesma cousa, leitor amigo, e se alguma vez contaste dezoito anos, deves lembrar-te que foi assim mesmo (MP, cap. XV, p. 57).
em Volta ao Rio:
Captulos compridos quadram melhor a leitores pesades; e no somos um pblico in-folio, mas in-12, pouco texto, larga margem, tipo elegante corte dourado e vinhetas... principalmente vinhetas... (MP, cap. XXII, p. 73).
em A uma alma sensvel:
205 H a, entre as cinco ou dez pessoas que me lem, h a uma alma sensvel, que est decerto um tanto agastada com o captulo anterior, comea a tremer pela sorte de Eugnia, e talvez... sim, talvez, l no fundo de si mesma, me chame cnico. Eu cnico, alma sensvel? (...) No, alma sensvel, eu no sou cnico, eu fui homem (...) (MP, cap. XXXIV, p. 92).
em A quarta edio:
Cr-lo-eis, psteros? essa mulher era Marcela (MP, cap. XXXVIII, p. 96).
em A ponta do nariz:
J meditaste alguma vez no destino do nariz, amado leitor? (MP, cap. XLIX, p. 108).
novamente em A ponta do nariz:
Leitor obtuso, isso prova que nunca entraste no crebro de um chapeleiro (MP, cap. XLIX, p. 109).
em Fujamos:
No tremas assim, leitora plida; descansa, que no hei de rubricar esta lauda com um pingo de sangue (MP, cap. LXIII, p. 130).
em Que no se entende:
Quanto a mim, se vos disser que li o bilhete trs ou quatro vezes, naquele dia, acreditai-o, que verdade; se vos disser que o reli no dia seguinte, antes e depois do almoo, podeis cr-lo, a realidade pura. 206 Mas se vos disser a comoo que tive, duvidai um pouco da assero, e no a aceiteis sem provas (MP, cap. CVIII, p. 182).
em O almoo:
No se irrite o leitor com esta confisso. Eu bem sei que, para titilar-lhe os nervos da fantasia, devia padecer um grande desespero, derramar algumas lgrimas, e no almoar. Seria romanesco; mas no seria biogrfico (MP, cap. CXV, p. 188).
em Filosofia das folhas velhas:
Leitor ignaro, se no guardas as cartas da juventude, no conhecers um dia a filosofia das folhas velhas (...) (MP, cap. CXVI, p. 189).
em Morro abaixo:
J disse que o morro era ento desabitado; disse-lhes tambm que vnhamos da missa, e no lhes tendo dito que chovia, era claro que fazia bom tempo, um sol delicioso (MP, cap. CXXI, p. 196).
em Formalidade:
(...) se tu s um esprito profundo e penetrante (e duvido muito que me negues isso), compreenders que, tanto num como noutro caso, surge a a orelha de uma rgida e meiga companheira do homem social (MP, cap. CXXVII, p. 202).
em Dous encontros:
No acabarei, porm, o captulo sem dizer que vi morrer no hospital da Ordem, adivinhem quem?... a linda Marcela; e vi-a morrer no mesmo dia em que, visitando um cortio, para distribuir esmolas, achei... 207 Agora que no so capazes de adivinhar... achei a flor da moita, Eugnia (...) (MP, cap. CLVIII, p. 228).
O narratrio, figurativizado no leitor, chamado de fino, amigo, sensvel, amado, enfim, um esprito profundo e penetrante. Mas, analogamente, ele obtuso, plido e ignaro, incapaz de adivinhar os sobressaltos da narrativa. Em vez de contraditrias, essas qualificaes aparentemente opostas semanticamente indicam que a relao entre narrador e narratrio orientada para a polmica, e no para a cumplicidade. Os elogios seria mais preciso dizer: os pseudo-elogios funcionam praticamente como ironia: aqui, fica clara uma diferena em relao literatura folhetinesca, pois o narrador machadiano est longe de demonstrar pelo seu narratrio o respeito que o romancista folhetinesco tinha pelos seus leitores. No caso das apstrofes ao narratrio em Memrias pstumas, mais do que uma comprovao de dialogismo, de heterogeneidade, de presena do outro, tem-se uma estratgia discursiva complexa, por meio da qual o sujeito da enunciao, ao organizar a relao entre destinador e destinatrio (tanto da enunciao de 1 grau quanto da de 2), veicula sua ideologia. Na verdade, em vez de a voz principal do texto emergir somente de um destinador (enunciador ou narrador), ela claramente nasce da relao explcita entre ele e seus destinatrios (enunciatrio ou narratrio). O fato de essa relao ser polmica um indcio de que h um descompasso semntico entre o narratrio e o enunciatrio. Na verdade, o narrador est sendo mais franco quando considera seu narratrio obtuso e ignaro do que quando o chama de amado ou amigo. Isso porque todas as vezes que o narrador comenta a estrutura de seu discurso, como no caso das digresses ou das analogias que ele promove, o narratrio apresentado como algum incompetente para compreender essas novidades enunciativas. Alm disso, em vez de fornecer ao narratrio o /saber fazer/ interpretativo, ele prefere desdenh-lo. Da que as supostas manifestaes de apreo pelo leitor sejam, de um lado, uma pardia da dico folhetinesca e, de outro, uma ironia que s confirma o desprezo do narrador pelo narratrio. Mas o que mais interessa perceber que o enunciador estabelece, no primeiro nvel enunciativo, uma relao cmplice, contratual com o enunciatrio, uma vez que este reconhece que o leitor debreado actancialmente no texto motivo de piada, de galhofa. Sendo assim, infere-se que o papel de narratrio est sendo revestido semanticamente pela incapacidade de compreenso das novidades literrias que o romance apresenta. O narratrio um ator 208 da enunciao caricatural, que figurativizaria tendncia literrias antiquadas. Essa noo, imprescindvel para compreender o papel do narratrio no romance, pode ser confirmada, alis, com a transcrio do incio do captulo O seno do livro:
Comeo a arrepender-me deste livro. No que ele me canse; eu no tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros captulos para esse mundo sempre tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contrao cadavrica; vcio grave, alis, nfimo, porque o maior defeito deste livro s tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narrao direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo so como os brios, guinam direita e esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaam o cu, escorregam e caem... (MP, cap. LXXI, p. 140).
Pensando na necessidade retrica de o orador captar a benevolncia de seu auditrio, poderamos dizer que, numa primeira impresso, a postura de Brs Cubas nesse fragmento suicida. Acontece que essa passagem simultaneamente digressiva e metaenunciativa principalmente de responsabilidade de Machado, afinal o enunciador que tem o controle sobre o estilo da obra. Nessa perspectiva (da enunciao de 1 grau), efetiva-se a captao da benevolncia, pois o enunciatrio, verdadeiramente como um co-enunciador, aceita a tese de que o narratrio, como figurativizao dos leitores convencionais, um defeito da obra. De fato, para o narrador e, principalmente, para o enunciador, o maior defeito do romance justamente o narratrio, revestido semanticamente como um ator com pressa de envelhecer, que ama a narrao direita e nutrida, o estilo regular e fluente. Enquanto isso, a narrativa anda devagar e, como os brios, guina direita e esquerda, sem conseguir manter uma uniformidade enunciativa. O narratrio considerado ultrapassado: ele no capaz de admirar as novidades estilsticas propostas e, por isso, disfrico. O thos digressivo figurativizado no estilo brio do narrador entra em conflito com thos do narratrio (que poderia, nesse caso, ser chamado de anti-thos). No exagero dizer que esse narratrio identificado sobretudo com os valores ideolgicos do Romantismo, como veremos no item seguinte. 209 Mas a figura do narratrio alm de representar um leitor incapaz de admirar tantas enunciaes enunciadas to complexa em Memrias pstumas que, s vezes, deixa de remeter a um ator da enunciao, para identificar um ator do enunciado, num processo por meio do qual
o narrador coloca o narratrio no mesmo nvel dos actantes da narrativa. O narratrio conversa com eles, conhece-os, participa da ao (...) (Fiorin, 1999, p. 123).
Esse caso de metalepse ocorre, por exemplo, no incio do captulo Coxa de nascena:
Fui dali acabar os preparativos da viagem. J agora no me demoro mais. Deso imediatamente; deso, ainda que algum leitor circunspecto me detenha para perguntar se o captulo passado apenas uma sensaboria ou se chega a empulhao... (MP, cap. XXXII, p. 89);
Nessa passagem 66 , atribuda ao leitor circunspecto a competncia de interromper o ritmo narrativo, para que ele desfizesse suas eventuais dvidas. Ora, se o narratrio ganha o direito de impedir que Brs desa da Tijuca, onde ele estava numa espcie de retiro depois da morte de sua me, e v para o centro do Rio, onde o pai o espera, isso significa que o narratrio, alm de ator da enunciao, passou a ator do enunciado, pois ele comea a compartilhar do mesmo espao do tambm actante do enunciado Brs Cubas. Dessa forma, misturam-se dois planos enunciativos: o narratrio sai do plano da enunciao e entra na fbula propriamente dita. Com isso, o enunciador deixa claro que o narratrio mais do que uma interlocuo narrativa, j que se configura, s vezes, como ator do enunciado. Esse captulo tambm oferece indcios de como o enunciador reveste semanticamente o narratrio: este circunspecto, pois que incapaz de perceber que o
66 No primeiro pargrafo do captulo D. Plcida (Voltemos casinha. No serias capaz de l entrar hoje, curioso leitor; envelheceu, enegreceu, apodreceu, e o proprietrio deitou-a abaixo para substitu-la por outra, trs vezes maior, mas juro-te que muito menor que a primeira. O mundo era pequeno para Alexandre; um desvo de telhado o infinito para as andorinhas [MP, cap. LXX, p. 139]), ocorre um fenmeno parecido. O curioso leitor, sem deixar de ser actante da enunciao, convidado a entrar na casinha em que Brs se encontrava furtivamente com Virglia, o que sugeriria que o narratrio, actante da enunciao, compartilha o mesmo espao dos actantes do enunciado.
210 captulo A borboleta preta no nem sensaboria nem empulhao, mas sim um exerccio digressivo, bem diferente da mdia da produo romanesca da literatura do sculo XIX, mais atenta aos sobressaltos da fbula do que s sutilezas da trama. O relativo desprezo que Machado demonstra pelo narratrio produz, como dissemos, uma relao polmica que se expande para outras apstrofes do romance. No captulo Cinqenta anos, Brs Cubas meio como ator do enunciado, meio como ator da enunciao admite:
Cinqenta anos! No era preciso confess-lo. J se vai sentindo que o meu estilo no to lesto como nos primeiros dias (MP, cap. CXXXIV, p. 207).
Supostamente preocupado com as conseqncias dessa confisso, o narrador dirige, alguns captulos depois, uma apstrofe A um crtico:
Meu caro crtico, Algumas pginas atrs, dizendo que eu tinha cinqenta anos, acrescentei: J se vai sentindo que o meu estilo no to lesto como nos primeiros dias. Talvez aches essa frase incompreensvel, sabendo- se do meu atual estado; mas eu chamo a tua ateno para a sutileza daquele pensamento. O que eu quero dizer no que esteja agora mais velho do que quando comecei o livro. A morte no envelhece. Quero dizer, sim, que em cada fase da narrao da minha vida experimento a sensao correspondente. Valha-me Deus! preciso explicar tudo (MP, cap. CXXXVIII, p. 211).
Esse presummel zelo pelas impresses do crtico to irnico e sarcstico quanto os elogios que Brs faz aos seus leitores. O crtico, na realidade, no nem um pouco caro, j que ele incompetente para compreender a sutileza de certos pensamentos do narrador, obrigando-o assim a explicar tudo. Essa desqualificao do crtico, semelhante ao desdm com que so tratados os leitores, mostra que tanto as apstrofes ao narratrio principal quanto a ao crtico tm a mesma inteno: mostrar que 211 as novidades enunciativas propostas pelo romance no so de fcil compreenso para o narratrio, a que se poderia chamar de um leitor tradicional. Todas essas apstrofes machadianas, que implicam sempre a instalao de um narratrio no enunciado, funcionam tambm como variaes da modalidade autonmica, discutida anteriormente. Isso porque o narrador simultaneamente conversa com o leitor e avisa que est fazendo isso, operando simultaneamente com o uso e a meno (Authier-Revuz, 2004, p. 82). Desse modo, as digresses apostrficas de Memrias pstumas so marcas no enunciado de no-coincidncia, o que remete heterogeneidade do discurso e ao carter dialgico da linguagem, amplificando assim o efeito polifnico representado pelas presenas do outro no romance.
212 6. Contratos enunciativos: Romantismo, Realismo e um algo a mais
Devemos visualizar os romancistas (...) no como se estivessem flutuando nessa corrente que arrasta todos os seus filhos (a no ser os cautelosos), mas como se estivessem sentados juntos numa sala, uma sala circular, uma espcie de sala de leitura (...) todos escrevendo seus romances simultaneamente. (Edward M. Forster, Aspectos do Romance)
O sculo XIX apresenta uma complexidade artstica inegvel. Talvez por influncia da Revoluo Francesa, da Revoluo Industrial, das descobertas cientficas e do progresso tecnolgico, do esprito burgus, do fim do pacto colonial na Amrica, da consolidao do capitalismo, da abolio da escravido, os literatos do perodo tenham se esforado para traduzir em suas obras todas as transformaes que a sociedade vivia e que, de alguma forma, acabaram alterando os rumos da literatura. So inmeros os escritores que, tendo estado nesse turbilho, deram sua parcela de contribuio para redefinir esses rumos: Goethe, Hugo, Byron, Poe, Scott, Chateaubriand, Shelley, Stendhal, Flaubert, Ea, Zola, Dickens, Mallarm, Dostoivski, Gogol, Balzac. Uns mais, outros menos, todos eles procuraram marcar, com seu estilo, as mudanas literrias que se operavam. A Histria da Literatura tradicional enxerga dois movimentos literrios principais no sculo XIX: o Romantismo (cujos primrdios remontam ao XVIII) e o Realismo (cujos ecos alcanam o XX). Ambos foram marcados pelo esprito revolucionrio do perodo, que conferia aos escritores uma imensa liberdade discursiva. Em relao ao Romantismo, Antonio Candido e Jos Aderaldo Castelo afirmam:
O sentido da aventura e da criao individual a nica lei imposta pelo romantismo, o que permite que cada escritor possa conceber a sua potica. Dominante na primeira metade do sculo XIX, o movimento apresentaria assim uma grande multiplicidade de atitudes e caractersticas. Da, talvez, no ter chegado a elaborar uma potica que totalizasse as suas caractersticas e 213 inovaes, o que foi compensado pela ao unificadores das grandes figuras romnticas (1996, p. 157).
Sobre o Realismo-Naturalismo-Parnasianismo, o movimento literrio subseqente, os mesmos autores dizem:
Esse perodo foi marcado, no incio, por um denominador comum, que constitui a base das vrias manifestaes particulares, na prosa e na poesia: a oposio ao romantismo, que se desdobrou em algumas tendncias gerais, como o realismo e o naturalismo na prosa, o parnasianismo na poesia (1996, p. 285).
Em relao especificamente prosa do Realismo brasileiro, comparando-a de nosso Romantismo, eles defendem que a
linguagem da fico se modificou bastante. O estilo trivial de Macedo e seguidores, por exemplo, cedeu lugar a um estilo mais nervoso, capaz de reproduzir o relevo das coisas e sublinhar com maior firmeza a ao dos homens, haja vista a Alusio de Azevedo. O estilo potico de Alencar foi substitudo por certas pesquisas de uma expressividade mais requintada, como a nfase candente de Raul Pompia ou o rebuscamento de Coelho Neto (1996, p. 287).
Os argumentos apresentados pelos autores de Presena da Literatura Brasileira so suficientes para concluir que, na perspectiva histrica, a Literatura do sculo XIX marcada por dois estgios bem distintos (o Romantismo e o Realismo), apesar de muitos escritores que sejam considerados realistas tenham vivido uma fase romntica. Entretanto, alm das diferenas estticas entre Romantismo e Realismo, pode-se dizer que, entre os dois movimentos literrios, houve uma ruptura enunciativa. Na verdade, o senso comum prescreve que, enquanto o Romanstismo valoriza a fantasia, o Realismo valoriza a realidade o que significaria que os romnticos negariam a objetividade crtica, enquanto os realistas seriam inimigos da subjetividade idealista. No exatamente isso que ocorre, j que nenhuma obra literria pode alinhar-se com uma ou outra tendncia de modo absoluto. Na verdade, a prpria designao realismo imprecisa, pois lato sensu 214
o realismo ocorre em todos os tempos como um dos plos da criao literria, sendo a tendncia para reproduzir nas obras os traos observados no mundo real seja nas pessoas, seja nas pessoas e nos sentimentos (Candido & Castello, 1996, p. 285).
Tomar o realismo como um plo de criao esttica permite postular que qualquer obra, independentemente de ter sido produzida na segunda metade do sculo XIX, pode ser chamada de realista. certo que os romances do Realismo so os principais exemplos de textos que valorizam esse plo, embora romances como Senhora ou A dama das camlias tenham sua dimenso realista. O outro plo da criao literria
a fantasia, isto , a tendncia para inventar um mundo novo, diferente e muitas vezes oposto s leis do mundo real. Os autores e as modas literrias oscilam incessantemente entre ambos, e da sua combinao mais ou menos variada que se faz a literatura (Candido & Castello, 1996, p. 285).
Esse conflito entre as leis do mundo real e a fantasia, essa combinao entre os dois plos da criao literria, essa dualidade entre a subjetividade romntica e a objetividade realista confirma a tese de que todo sistema de significao uma forma de representao da realidade. Essa representao pode estar mais prxima de qualquer um dos dois plos mencionados, mas em ambos os casos e isso principalmente quando se trata de obras de natureza literria deve ficar muito claro que a relao entre os signos e a realidade ontolgica uma construo semntica. por isso que se diz que
o trabalho arttsico mantm sempre uma relao arbitrria e deformante com a realidade 67 (Fiorin, 2004, p. 138).
Mesmo em obras ditas realistas, a relao entre a linguagem e o mundo mediada por uma ideologia, o que significa que a impresso de realidade dessas obras (assim com a impresso de fantasia dos textos vinculados ao outro plo da criao esttica) sempre um efeito de sentido.
67 Lembre-se a citao de Mrio de Andrade, extrada do Prefcio Interessantssimo, usada como epgrafe do primeiro item deste captulo. 215 Por isso, seria possvel aproveitando as sugestes de Fiorin (2004, p. 137-152) encontrar dois tipos de contratos de veridico, que organizariam as relaes entre o homem e o mundo, entre um sujeito e um objeto, entre a subjetividade fantasista e a objetividade realista. Em ambos, nota-se a busca pela verossimilhana, pela coerncia interna do enunciado, para que a obra consiga provocar a impresso de realidade ou a impresso de fantasia. Em cada caso, temos um contrato veridictrio diferente, mas que pode ser entendido como uma tentativa de
estabelecer uma conveno fiduciria entre o enunciador e o enunciatrio, referindo-se ao estatuto veridictrio (ao dizer-verdadeiro) do discurso enunciado. O contrato fiducirio, que assim se instaura, pode (...) ser precedido de um fazer persuasivo (de um fazer-crer) do enunciador, ao qual corresponde um fazer interpretativo (um crer) da parte do enunciatrio (Greimas & Courts, 1983, p. 86).
Quando se apagam, num enunciado, as marcas enunciativas, principalmente os vestgios da enunciao enunciada, cria-se a impresso de
equivalncia entre o representante e o representado, entre a obra e a realidade, entre o signo e o referente. Essa equivalncia, no entanto, s pode ser produzida por meio da ocultao do processo enunciativo, pois, afinal, a representao realista poiese, o que significa que o texto no idntico ao mundo. A equivalncia percebida uma astcia da enunciao (Fiorin, 2004, p. 138).
Essa iluso referencial caracterizaria o contrato veridictrio objetivante (Fiorin, 2004, p. 141), que foi tpico da literatura do perodo do Realismo. Nela, as debreagens enuncivas so valorizadas, e h uma aproximao entre o discurso literrio e o cientfico. Mas, em vez de suprimir, num enunciado, os traos que remetem a enunciaes, os textos podem fazer justamente o contrrio, isto , valorizar as debreagens enunciativas, de maneira que se produziria uma iluso enunciativa, e no referencial. Nesse outro contrato veridictrio, a que poderamos chamar subjetivante, preceitua-se
216 que o mundo s cognoscvel por meio da subjetividade humana, que o texto representa o mundo, mas essa representao s pode ser feita pela subjetividade humana (Fiorin, 2004, p. 138).
Esse contrato subjetivante foi bastante comum na literatura do Romantismo e em todas as pocas em que a fantasia era colocada em primeiro plano em relao ao mundo real. Os dois contratos veridictrios, alm de retomar as grandes distines entre Romantismo e Realismo (entendidos no s como escolas literrias, mas sim como plos da criao esttica), servem para mostrar que, mais importante do que identificar e explicar as diferenas entre esses dois estilos de poca, comprovar que a relao entre enunciador e enunciatrio bastante diferente em cada uma desses momentos literrios. Isso porque o que um enunciatrio romntico espera (a saber, a primazia da imaginao sobre a cincia) justamente aquilo que o enunciatrio realista-naturalista condena, e vice-versa. Trazendo essa discusso para a obra machadiana, vale lembrar que as Memrias pstumas de Brs Cubas so um romance que a tradio da Histria da Literatura convencionou considerar a primeira obra realista brasileira. Por esse motivo, de esperar que o livro rompa com certos modelos estticos romnticos, negando assim o contrato subjetivante e valorizando o objetivante. Mas no exatamente isso que ocorre. Na verdade, h indcios ao longo de todo o romance para comprovar o desdm que o enunciador demonstra pelo Romantismo e movimentos afins. o que acontece, por exemplo, no captulo O primeiro beijo:
Ao cabo, era um lindo garo, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mo e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com ele nas ruas do nosso sculo. O pior que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deit-lo margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes, e, por compaixo, o transportou para os seus livros (MP, cap. XIV, p. 55).
217 A referncia ao Romantismo notadamente disfrica, j que tal estilo de poca considerado ultrapassado pelo Realismo, que chega mesmo a ter compaixo dos romnticos. A figura do garo, lindo e audaz, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, recuperado pelos romnticos ao castelo medieval, apresenta o jovem Brs Cubas como um impetuoso burgus, quase um heri de cavalaria, que entrava na vida de botas e esporas. J as figuras da lazeira e dos vermes (comprovaes de que a literatura naturalista se aproveitava de uma linguagem despojada de qualquer sentimentalismo, como forma de representar a realidade de maneira ao mesmo tempo cruel e direta), assim como a do cavaleiro estafado, remetem superao romntica representada pelo Realismo e, principalmente, pelo Naturalismo. No entanto no se pode inferir, a partir dessa passagem, que o romance machadiano se alinha aos pressupostos artsticos naturalistas:
Deve-se notar nesta passagem a crtica no s ao romantismo mas tambm ao realismo, que, em sua verso naturalista, era a corrente literria mais popular no Brasil quando da publicao do texto de Machado. Para muitos na poca, o naturalismo era a superao indiscutvel da esttica do romantismo, e a expresso artstica mais adaptada ao progresso dos novos tempos. Machado, no entanto, no aceitava os prprios fundamentos da esttica do realismo naturalista (Rego, 1989, p. 134).
O certo que as crticas do Machado ao Realismo-Naturalismo so menos evidentes em Memrias pstumas. A stira ao Romantismo bem mais evidente, como, por exemplo, no captulo Viso do corredor, quando Brs Cubas mandado para a Europa aps dilapidar parte do patrimnio familiar para agradar linda Marcela:
Trs dias depois segui barra fora, abatido e mudo. No chorava sequer; tinha uma idia fixa... Malditas idias fixas! A dessa ocasio era dar um mergulho no oceano, repetindo o nome de Marcela (MP, cap. XVIII, p. 64).
A aluso ao suicdio motivado por um grande amor remete claro ao Romantismo. O tiro na cabea de Werther ou o pulo ao mar de Mariana, s para ficar com dois exemplos consagrados do Romantismo europeu, mostram que o suicdio 218 romntico digno de admirao. Trata-se de uma morte grandiosa, como Romeu, como Julieta, como Teresa, como Simo, como Iracema, como Eurico. Mas, no Realismo, esse mpeto tanatfilo satirizado, e a morte, nas obras realistas, no merece nenhum apreo: o caso de uma Emma ou de uma Lusa, personagens de obras em que, no fim das contas, a morte parece ter um carter moralizante, pois funcionaria como uma espcie de sano negativa por causa do adultrio cometido por elas. Assim, quando Brs pensa em dar mergulho no oceano, repetindo o nome de Marcela, sugere-se que ele, como ator do enunciado, aproximava-se ideologicamente dos romnticos. Isso se repete no captulo Volta ao Rio, quando o jovem bacharel comenta:
Note-se que eu estava em Veneza, ainda recendente aos versos de lord Byron; l estava, mergulhado em pleno sonho, revivendo o pretrito, crendo-me na Serenssima Repblica (MP, cap. XXII, p. 64).
A admirao a Byron, comum aos jovens da primeira metade do XIX, e o duplo sentido do adjetivo Serenssima aproximam, mais uma vez, Brs Cubas do Romantismo, assim como no captulo . . . . . . .:
H umas plantas que nascem e crescem depressa; outras so tardias e pecas. O nosso amor era daquelas; brotou com tal mpeto e tanta seiva, que, dentro em pouco, era a mais vasta, folhuda e exuberante criatura dos bosques (MP, cap. LIII, p. 116).
Nesse excerto, a intensidade do amor Brs Cubas e Virglia figurativizado de uma maneira um pouco mais hiperblica do que o tom predominante das Memrias pstumas aproxima-se do ideal de amor primeira vista, to caro s obras que privilegiam a fantasia em detrimento da razo. No captulo Um projeto, aps Brs Cubas ter seu relgio furtado por Quincas Borba depois de um abrao que deveria ter sido fraternal, ele confessa:
Jantei triste. No era a falta do relgio que me pungia, era a imagem do autor do furto, e as reminiscncias de criana, e outras vez a comparao, e a concluso... Desde a sopa, comeou a abrir em mim a flor amarela e mrbida do captulo XXV (...) (MP, cap. LXI, p. 126). 219
Essa flor amarela e mrbida, espcie de figurativizao de um spleen byroniano que no deixa de estar ligado hipocondria, j que havia uma crena de que ele possua traos fisiolgicos, de modo que seria praticamente impossvel livrar-se dessa doena da melancolia reaparece no captulo A reconciliao, quando Brs faz as pazes com sua irm:
Os olhos dela estavam secos. Sabina no herdara a flor amarela e mrbida. Que importa? Era minha irm, meu sangue, um pedao de minha me, e eu disse-lho com ternura, com sinceridade... (MP, cap. LXXXI, p. 151).
A expresso flor amarela e mrbida, como assinala o prprio narrador, j tinha sido utilizada no captulo Na Tijuca para definir a hipocondria, que, como apontamos, parece estar muito prxima da noo de spleen:
Creio que por ento que comeou a desabotoar em mim a hipocondria, essa flor amarela, solitria e mrbida, de um cheiro inebriante e subtil. Que bom que estar triste e no dizer cousa nenhuma! Quando esta palavra de Shakespeare me chamou a ateno, confesso que senti em mim um eco, um eco delicioso (MP, cap. XXV, p. 76-77).
Mais frente, o narrador nomeia essa sensao de volpia do aborrecimento, para concluir que se tratava de
uma das sensaes mais subtis desse mundo e daquele tempo (MP, cap. XXV, p. 77).
De fato, o spleen era um modismo nos anos romnticos, cultivado como um sentimento, de base fisiolgica, que era, ao mesmo tempo, nobre e inexorvel. Brs Cubas, como ator do enunciado, como personagem da fbula, cultua esses afetos mrbidos, mostrando-se prximo das modas literrias de sua poca. Alis, no captulo 220 Bacharelo-me, num momento de lucidez, Brs reconhece que, em Coimbra, ele tinha conquistado
uma grande nomeada de folio; era um acadmico estrina, superficial, tumulturio e petulante, dado s aventuras, fazendo romantismo prtico e liberalismo terico (...) (MP, cap. XX, p. 70).
O que se percebe por esses exemplos que Brs, como ator do enunciado, influenciou-se pelos ideais romnticos, mas o narrador, o tempo todo, parece estar satirizando essa influncia. Quando o narrador considera seu leitor uma alma sensvel (captulo XXXIV) ou o maior defeito do livro (captulo LXXI), fazendo um julgamento extremamente negativo de seu narratrio que um admirador das fantasias literrias , percebe-se que, de fato, as Memrias pstumas pretendem romper com as tradies romnticas. Por isso, a idia da fuga no captulo LXIII e dos encontros furtivos no captulo LXVII deve ser vista como uma stira s obras do Romantismo, que muitas vezes valorizavam as dificuldades de realizao amorosa, como se elas que amplificassem os desejos dos amantes. O narrador reconhece isso no incio do captulo Suprimido:
Separamo-nos alegremente. Jantei reconciliado com a situao. A carta annima restitua nossa aventura o sal do mistrio e a pimenta do perigo (...) (MP, cap. XCVIII, p. 172).
A necessidade do mistrio e do perigo para restituir o el do caso adltero mais um indcio para perceber o lado romntico de Brs-vivo. Acontece que Brs- morto, sempre que pode, satiriza esses mpetos romnticos, mostrando um descompasso entre o enunciado e a enunciao. Isso pode ser comprovado em vrias passagens. Alm da lazeira e dos vermes do captulo XIV, h, por exemplo, em A uma alma sensvel, as figuras naturalistas da lesma e do sapo, em oposio s figuras romnticas da guia e do beija-flor. No captulo Virglia?, existe um momento em que se criticam as obras literrias fantasistas:
221 No digo que j lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto no romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos s sardas e espinhas (...) (MP, cap. XXVII, p. 82).
Em outra passagem, no captulo . . . . . . ., aps uma avaliao romntica do caso amoroso com Virglia, Brs numa espcie de anticlmax promove uma reavaliao desse relacionamento, classificando-o como
vida de agitaes, de cleras, de desesperos e de cimes, que uma hora pagava farta e de sobra; mas outra hora vinha e engolia aquela, como tudo mais, para deixar tona as agitaes e o resto, e o resto do resto, que o fastio e a saciedade: tal foi o livro daquele prlogo (MP, cap. LIII, p. 116).
A certeza, realista, de que o amor pode chegar saciedade, o que implica sua efemeridade, claramente em oposio crena, romntica, da eternidade dos afetos, desfaz completamente o mundo fantasista, at porque estamos, nessa altura, no incio do adultrio de Brs e Virglia e, mesmo assim, j sabemos que esse caso no ser como o felizes para sempre do Romantismo mais ortodoxo. Esses anticlmaces se repetem ao longo da obra, como no captulo O momento oportuno, em que surge o aforismo
No h amor possvel sem a oportunidade dos sujeitos (MP, cap. LVI, p. 120),
em que a oportunidade dos sujeitos uma maneira de aniquilar a tese romntica do amor que vence qualquer obstculo; ou no captulo O almoo, em que Brs satiriza os excessos de subjetividade, no momento em que descreve suas sensaes no final do caso entre ele e Virglia:
No se irrite o leitor com esta confisso. Eu bem sei que, para titilar-lhe os nervos da fantasia, devia padecer um grande desespero, derramar algumas lgrimas, e no almoar. Seria romanesco; mas no seria 222 biogrfico. A realidade pura que eu almocei, como nos demais dias, acudindo ao corao com as lembranas de minha aventura, e ao estmago com os acepipes de M. Prudhon... (MP, cap. CXV, p. 188).
Nesse fragmento, a realidade pura se sobrepe fantasia romanesca, e o sofrimento decorrente do final do caso amoroso , sarcasticamente, dirimido pelos acepipes de um famoso cozinheiro da poca. Todos esses exemplos nos levariam a concluir que Memrias pstumas bom um exemplo de contrato veridictrio objetivante, pois o romance parece vincular-se, de fato, mais ao plo da criao esttica realista do que ao plo romntico. O problema que, nesse contrato,
preciso apagar as marcas da enunciao no enunciado (...), ou seja, o eu enunciador deve ausentar-se do enunciado, no deixar nele as marcas de pessoa. Nesse tipo de contrato de veridico, os fatos devem narrar-se a si mesmos (Fiorin, 2004, p. 138),
e j vimos que uma das principais marcas estilsticas do enunciador do romance em questo justamente recorrer s enunciaes enunciadas e estabelecer um relao claramente dialgica e polmica com o narratrio, levando, com isso, o discurso para a dimenso da intersubjetividade. Em Memrias pstumas, no temos o tpico narrador em terceira pessoa do Realismo, muito menos a predisposio naturalista para a anlise de cunho cientificista e mecanicista; mas tampouco encontramos na obra o narrador em primeira pessoa do Romantismo. Parece que o romance no se alinha plenamente a nenhuma das duas tendncias. Os dois plos da criao esttica e os dois contratos de veridico no configuram categorias absolutas. H nuances, h graus. O cortio mais objetivante do que O primo Baslio, enquanto O guarani mais subjetivante do que Memrias de um sargento de milcias. Desse modo, uma sada para nosso impasse taxonmico seria classificar as Memrias pstumas como uma obra mais realista do que romntica. Ocorre que o problema gerado pelo romance no classificatrio, enunciativo. Parece que os dois plos da criao literria e os dois contratos veridictrios so 223 insuficientes para explicar a complexidade discursiva da obra. Por isso, o caso de recorrer a um terceiro tipo de contrato de veridico:
H ainda um terceiro contrato veridictrio, que parte do pressuposto de que a relao homem / mundo no se faz diretamente, mas de que mediada pela linguagem (...). Poder-se-ia denominar semitico esse terceiro tipo de contrato veridictrio. Assim, a obra de arte no se v mais como representao do mundo, mas como linguagem, como semitica. Apresenta-se explicitamente como poiese (Fiorin, 2004, p. 143).
Nesse contrato semitico, a relao fiduciria entre enunciador e enunciatrio se constri no pela valorizao de um ponto de vista mais objetivante ou mais subjetivante, e sim pela aceitao, por parte do enunciatrio, do jogo discursivo proposto pelo enunciador. Desse modo, o sujeito da enunciao defende que
a linguagem no representao transparente de uma realidade, mas criao de diferentes realidades, de diversos pontos de vista sobre o real. Mostra-nos, por conseguinte, a relatividade da verdade, a possibilidade de que a realidade seja outra. No h nada fixo, imutvel, verdadeiro (Fiorin, 2004, p. 143).
Essa relatividade de valores impera nas Memrias pstumas. Machado recusa- se a aceitar as verdades absolutas, como bom representante da stira menipia, da cosmoviso carnavalesca. Por isso, o narrador afirma na j citada passagem de A idia fixa:
(...) este livro escrito com pachorra, com a pachorra de um homem j desafrontado da brevidade do sculo, obra supinamente filosfica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, cousa que no edifica nem destri, no inflama nem regela, e todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado (MP, cap. IV, p. 28).
A confisso de que o romance contm uma filosofia desigual, austera e brincalhona, mais do que passatempo e menos do que apostolado, apenas confirma o estatuto semitico das Memrias pstumas, obra que no edifica nem destri (como 224 conviria aos romances objetivantes) e no inflama nem regela (como seria esperado nos romances subjetivantes). No contrato veridictrio semitico, o narrador costuma debrear-se enunciativamente. Independetentemente de ele ser ator do enunciado ou no, ele se intromete na narrativa com diversas marcas de enunciao enunciada. Muitas vezes, ocorrem variaes da metalepse, em que se neutralizam
as vozes narrativas, misturando-se os nveis da enunciao (Fiorin, 2004, p. 143).
Mais um exemplo dessa neutralizao nas Memrias pstumas ocorre no captulo Virglia?, em que as presumveis dvidas do narratrio so incorporadas pelo narrador:
Virglia? Mas ento era a mesma senhora que alguns anos depois...? A mesma; era justamente a senhora, que em 1869 devia assistir aos meus ltimos dias, e que antes, muito antes, teve larga parte nas minhas mais ntimas sensaes (MP, cap. XXVII, p. 82).
Em O biblimano, o narrador alega que pretende suprimir o captulo anterior, devido a um despropsito nas ltimas linhas. Ento afirma:
Olhai: daqui a setenta anos, um sujeito magro, amarelo, grisalho, que no ama nenhuma outra coisa alm dos livros, inclina-se sobre a pgina anterior, a ver se lhe descobre o despropsito; l, rel, tresl, desengona as palavras, saca uma slaba, depois outra, mais outra, e as restantes, examina-as por dentro e por fora, por todos os lados, contra a luz, espaneja-as, esfrega-as no joelho, lava-as, e nada; no acha o despropsito (MP, cap. LXXII, p. 140-141).
A reao esperada de qualquer leitor que ele, semelhana do biblimano magro, amarelo, grisalho, volte ao captulo anterior para encontrar o tal do despropsito. S que ele no encontrar despropsito nenhum, simplesmente porque este despropsito no existe. Trata-se de uma provocao, mais uma, do narrador. O 225 biblimano no apenas um ator do enunciado, mas sim uma figurativizao do narratrio (o que tambm configura um caso de metalepse), que, acostumado s narrativas tradicionais, s formas enunciativas convencionais, no est preparado para as novidades estilsticas propostas pelas Memrias pstumas. Essa mistura de nveis enunciativos, verdadeira vertigem actancial que se opera na obra machadiana, tpica do contrato veridictrio semitico. H uma enorme dificuldade, por isso, em precisar a qual plo da criao literria Memrias pstumas se vincula com mais nitidez. Considerando as classificaes tradicionais da Histria da Literatura, a obra muito mais realista (embora no naturalista) do que romntica, o que, alis, confirmado pelos muitos trechos do romance em que se desdenha a fantasia. O que poderamos postular que o enunciador da obra (que pode ser captado por meio da projeo de sua voz sobre a voz do narrador, isto , de Brs-morto) est mais prximo de uma viso de mundo realista, embora negue os modelos estilsticos do Realismo-Naturalismo, enquanto o Brs-vivo, interlocutor da narrativa, actante do enunciado, est mais ligado aos ideais romnticos. Essa ciso projeta-se para os destinatrios do enunciado e da enunciao. O narratrio identifica-se com Brs-vivo e espera um romance romntico, enquanto o enunciatrio identifica-se com Brs-morto e com Machado e aceita as revolues enunciativas propostas. Mas isso no to fcil de ser percebido, j que o narratrio uma instncia marcada no enunciado, e no exatamente o destinatrio do discurso, enquanto o verdadeiro destinatrio do discurso ou seja, o enunciatrio est pressuposto. Uma outra maneira de enxergar essa dissociao seria imaginar que Brs Cubas-narrador est desprezando como, alis, ocorre em vrias passagens do romance o Brs Cubas-ator, que romntico; em outras palavras, Brs-morto estaria satirizando os mpetos romnticos de Brs-vivo. Enquanto isso, o enunciador, que o responsvel pelo contrato de veridico semitico, est no controle do processo de delegao de voz ao narrador e aos actantes do enunciado transformados em interlocutores, de maneira que do primeiro nvel enunciativo que se comanda essa polmica programada, j que faz parte do efeito dialgico valorizado no romance entre realistas e romnticos, entre o contrato objetivante e o contrato subjetivante. Para tentar encerrar essa discusso histrico-ideolgico-literria, poder-se-ia, numa primeira hiptese de anlise, defender que, mais do que uma simples diferena de classificao, o que existe entre o Romantismo e o Realismo , nas Memrias, um embate entre o velho e o novo, e certamente o romance se alinha com o novo. Ao 226 vincular o narratrio ao velho, ao ultrapassado (em captulos como O seno do livro e O biblimano), o narrador acaba estabelecendo uma relao conflituosa com seus supostos leitores empricos. Assim, confirma-se a tese de que o narratrio identificado sobretudo com o Romantismo e, por isso, acaba sendo satirizado, enquanto o narrador parece, em certa medida, aproximar-se ideologia realista (como se percebe em captulos como O momento oportuno e O almoo). Esse fenmeno enunciativo curioso: o discurso aparentemente se dirige a um destinatrio (prximo ao Romantismo), mas, na verdade, seu destinatrio outro (prximo ao Realismo). Assim o leitor parece romntico, mas no ; no parece realista, mas . J que estamos falando de contratos de veridico, teramos uma mentira romntica e um segredo realista. J numa segunda hiptese de anlise, que nos parece mais pertinente, as Memrias pstumas estariam negando tanto o Romantismo quanto o Realismo (embora a ideologia realista esteja sendo menos satirizada do que a romntica). Isso acontece sobretudo porque, no contrato veridictrio semitico,
os comentrios do narrador tm mais importncia do que os fatos narrados (Fiorin, 2004, p. 145).
Como j se demonstrou, um dos traos mais caractersticos das Memrias pstumas justamente a valorizao da digresso, das apstrofes, das passagens que contm enunciaes enunciadas e que se configuram como casos de modalidade autonmica. Por isso, identificar a obra como mais prxima do contrato de veridico objetivante ou subjetivante seria um equvoco, pois levantaria o pressuposto de que a inteno enunciativa do romance aproximar-se mais do mundo real ou mais da fantasia, para usar as expresses de Candido e Castelo. De fato, nas Memrias pstumas,
os discursos so mostrados como simples discursos e no como expresso fiel de uma verdade fora deles (Fiorin, 2004, p. 146),
como era comum nas obras realistas tradicionais. Por isso, preciso perceber que as obras que se vinculam ao contrato semitico recusam-se a funcionar como imitao da realidade: 227
Ao negar-se como representao, o contrato semitico nega a verdade estabelecida, a realidade do senso comum e, assim, leva a desconfiar de todos os dogmas, sejam eles estabelecidos pela religio, pela cincia ou pelos cnones artsticos. A verdade, assim, no una, mas plural; no estvel, mas instvel; no fixa, mas mvel, no absoluta, mas relativa (Fiorin, 2004, p. 150),
Mas, alm de negar-se como representao, o contrato semitico afasta-se tambm dos modelos romnticos, pois mostra
que no existem idealizaes e heris, que no h um mundo que reparta, com nitidez, bons e maus, mas que o mundo muito misturado, contaminado da sujeira, das paixes, das baixezas e elevaes (Fiorin, 2004, p. 150).
Nessa perspectiva, as Memrias pstumas no seriam nem objetivantes nem subjetivantes, pois tanto o Romantismo quanto o Realismo e, principalmente, o Naturalismo no so suficientes para explicar as construes semnticas da obra. Estaramos diante de um romance heterogltico, para aproveitar a terminologia bakhtiniana (Fiorin, 2006b, p. 128-130). O incio do captulo O seno do livro, j citado no anteriormente, pode contribuir para justificar essa hiptese de heteroglossia e de negao simultnea dos dois contratos de veridico que no o semitico:
Comeo a arrepender-me deste livro. No que ele me canse; eu no tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros captulos para esse mundo sempre tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contrao cadavrica; vcio grave, alis, nfimo, porque o maior defeito deste livro s tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narrao direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo so como os brios, guinam direita e esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaam o cu, escorregam e caem... (MP, cap. LXXI, p. 140). 228
O narratrio, nesse pargrafo, figurativizado como leitor convencional de romances do sculo XIX, que ama a narrao direta e nutrida, o estilo regular e fluente, enquanto o romance que se constri cheira a sepulcro, traz certa contrao cadavrica, anda devagar e apresenta um ritmo narrativo que lembra o andar dos brios, que guinam direita e esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaam o cu, escorregam e caem. Desse modo, o narratrio apresentado como
um leitor dos romances romnticos e realistas, em que havia uma linearidade narrativa e no digresses e comentrios do narrador. No entanto, se tomarmos a obra inteira e no essa interveno pontual do narrador, vamos observar que a imagem do enunciatrio criada pelo fato de que, na obra machadiana, mais importante que o narrado a narrao, dado que o texto em sua totalidade se manifesta como fato de linguagem, diferente da do narratrio explcito: um leitor sofisticado, que no se contenta com as narrativas feitas at a poca de Machado e que se encanta com a interveno do narrador a invadir o narrado e a tomar-lhe o lugar (Fiorin, 2004, p. 145).
Independentemente da hiptese de anlise que se aceite (a primeira, em que o narratrio romntico, e o enunciatrio, realista; ou a segunda, em que o narratrio pode ser romntico ou realista, e o enunciatrio no nenhuma coisa nem outra), h uma ntida diferena semntica entre o narratrio e o enunciatrio. Essa dissociao comprova que o leitor instalado no texto no o leitor imaginado pelo sujeito da enunciao. Esse jogo discursivo refora a idia de que as
fronteiras dos nveis so mveis. Ultrapass-las, misturar os graus, fazer de um actante de um nvel actante de outro produzem um efeito de sentido de fico, de meta-realidade, de liberao das rgidas convenes mimticas. (...) Com a palavra, (...) [ possvel criar] outras realidades to reais quanto aquela que recebe essa denominao (Fiorin, 1999, p. 124).
Agora, quem tem a competncia para compreender essa realidade da fico o enunciatrio, e no o narratrio. Este poderia at ofender-se com o tom spero e satrico do narrador, enquanto aquele, ao decifrar todo esse jogo, no leva a srio algumas 229 bravatas discursivas de Brs Cubas, pois capaz de perceber que h uma dissonncia entre o primeiro e segundo nveis enunciativos e que o narrador no tem autonomia discursiva e est, por isso mesmo, a servio das intencionalidades do enunciador. Uma dessas bravatas que, como tais, no devem ser interpretadas literalmente j est na advertncia ao leitor:
Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa que admira e consterna. O que no admira, nem provavelmente consternar se este outro livro no tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco (MP, p. 21).
Nessa passagem, a aluso a Stendhal funciona como um indcio de que essa passagem sarcstica, o que corroborado pelo romance de cinco leitores. Esse recurso discursivo que consiste numa ruptura semntica entre o enunciado e a enunciao lembra, em muitos aspectos, a ironia. Por fim, vale a pena salientar que toda grande obra literria, devido sua complexidade enunciativa, dificilmente se vincula a um nico estilo de poca. Tomar ento Memrias pstumas de Brs Cubas como a primeira obra realista brasileira merece uma ressalva. certo que esse romance representa um rompimento com a literatura que se fazia at ento no Brasil, o que inclua o Romantismo. Por isso, classific-lo como realista tem uma dose de pertinncia. Acontece que, se pensarmos nas motivaes deterministas do Realismo-Naturalismo, as Memrias pstumas se tornam uma obra completamente excntrica. Da que se possa dizer que o primeiro romance realista brasileiro transcende o Realismo, sem se aproximar de nenhuma outra escola literria em voga na poca. Isso no nenhuma contradio. Isso , sim, tpico dos grandes escritores. 230 7. Narrador e enunciador: questes de foco, de erudio e sobre Marcela
O autor orientado pelo contedo (pela tenso tico-cognitiva do heri em sua vida) ao qual ele d forma e acabamento por meio de um material determinado verbal, no caso de que tratamos que submete ao seu desgnio artstico, ou seja, ao desgnio que consiste em dar acabamento tenso tico-cognitiva do heri. (Mikhail Bakhtin, Esttica da criao verbal)
Entre todas as inovaes enunciativas de Memrias pstumas, preciso dar certo destaque questo do foco narrativo, uma vez que no tarefa fcil delimitar com preciso qual o ponto de vista que orienta, de fato, a produo discursiva. Numa anlise simplista, poderamos dizer que se trata de um romance com narrador-protagonista, pois Brs exerce os papis de ator da enunciao e de ator do enunciado, mais especificamente como narrador e personagem principal da narrativa. Teramos, portanto, um caso de focalizao parcial interna fixa, em que o observador poderia estar sincretizado ou com o ator do enunciado (Brs-vivo) ou com o ator da enunciao (Brs-morto). H vrios momentos da obra que corroboram essa anlise. No captulo O primeiro beijo, o narrador, aps uma falsa hesitao, apresenta a figura de Marcela, a linda Marcela, como lhe chamavam os rapazes do tempo (MP, cap. XIV, p. 56). Ao descrev-la mais detalhadamente, ele no esconde a verdadeira ndole dela:
Era boa moa, lpida, sem escrpulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que lhe no permitia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes. Naquele ano, morria de amores por um certo Xavier, sujeito abastado e tsico, uma prola (MP, cap. XIV, p. 56).
Se Brs pretendesse narrar sua vida na perspectiva do ator do enunciado, essa descrio causaria certo espanto, j que lhe seria altamente desabonador reconhecer que ele se apaixonou perdidamente por uma mulher frvola e materialista. No entanto o 231 romance conduzido pela perspectiva do ator da enunciao, por Brs-morto, que muitas vezes como j mostramos satiriza as ingenuidades de Brs-vivo. Dessa forma, ao apresentar a linda Marcela, o narrador assume que a moa era inescrupulosa, vaidosa, leviana, amiga de dinheiro e de rapazes. No h dvida, pois, de que Marcela vende seus afetos, j que a pessoa por quem ela morria de amores era rica e tuberculosa: numa poca em que essa doena matava to facilmente, o interesse de Marcela s poderia ser pelos bens materiais da prola do Xavier. Note-se ainda como a expresso Naquele ano sugere que os amores da moa estavam longe de durar muito. Poderia ento soar como contradio Brs Cubas apresentar Marcela de uma maneira to crtica e, logo em seguida, confessar que a amou com tanta intensidade. Mas, na verdade, a contradio no existe, pois o observador do narrador est sincretizado com o ator da enunciao, o que tambm ocorre, por exemplo, em So Bernardo, como j demonstramos no primeiro captulo desta tese. Para conquistar Marcela, Brs no poupa esforos financeiros. Do ponto de vista do ator do enunciado, essa conquista um feito digno de nota; do ponto de vista do ator da enunciao, prova cabal de que a moa era uma cortes. O narrador, para ir do Rossio Grande ao corao de Marcela (MP, cap. XV, p. 57), obrigado a disput-la com o abastado e tsico Xavier:
Teve duas fases a nossa paixo, ou ligao, ou qualquer outro nome, que eu de nomes no curo; teve a fase consular e a fase imperial. Na primeira, que foi curta, regemos o Xavier e eu, sem que ele jamais acreditasse dividir comigo o governo de Roma; mas, quando a credulidade no pde resistir evidncia, o Xavier deps as insgnias, e eu concentrei todos os poderes na minha mo; foi a fase cesariana. Era meu o universo; mas, ai triste! no o era de graa. Foi-me preciso coligir dinheiro, multiplic-lo, invent-lo. Primeiro explorei as larguezas de meu pai; ele dava-me tudo o que eu lhe pedia, sem repreenso, sem demora, sem frieza; dizia a todos que eu era rapaz e que ele o fora tambm. Mas a tal extremo chegou o abuso, que ele restringiu um pouco as franquezas, depois mais, depois mais. Ento recorri a minha me, e induzi-a a desviar alguma coisa, que me dava s escondidas. Era pouco; lancei mo de um recurso ltimo: entrei a sacar 232 sobre a herana de meu pai, a assinar obrigaes, que devia resgatar um dia com usura (MP, cap. XV, p. 57-58).
A exclamao ai triste , para o ator do enunciado, um lamento sincero, de quem no percebe como Marcela era interesseira; para o ator da enunciao, uma stira ao comportamento adolescente de Brs-vivo. Ao reconhecer que o afeto da moa no o era de graa e que foi muito difcil conseguir dinheiro para manter essa paixo, ou ligao, ou qualquer outro nome, no restam dvidas de que Marcela era realmente amiga de dinheiro e de rapazes. Aps gastar quinze meses e onze contos de ris com a cortes, Brs mandado para a Europa pelo seu pai, que
logo que teve aragem dos onze contos, sobressaltou-se deveras; achou que o caso excedia as raias de um capricho juvenil (MP, cap. XVII, p. 61).
Separado fora da mulher por quem estava apaixonado, o adolescente Brs pensa ento em suicdio, dando um mergulho no oceano, repetindo o nome de Marcela (MP, cap. XVIII, p. 64). Como j comentamos, esse mpeto romntico logo se desfaz, no sem o narrador continuar sua auto-stira:
Eu, que meditava ir ter com a morte, no ousei fit-la quando ela veio ter comigo (MP, cap. XIX, p. 67).
Contra a idia de a focalizao parcial interna do romance ter Brs-morto como seu ponto de referncia, poder-se-ia relembrar o captulo A um crtico, em que se diz:
Meu caro crtico, Algumas pginas atrs, dizendo que eu tinha cinqenta anos, acrescentei: J se vai sentindo que o meu estilo no to lesto como nos primeiros dias. Talvez aches essa frase incompreensvel, sabendo- se do meu atual estado; mas eu chamo a tua ateno para a sutileza daquele pensamento. O que eu quero dizer no que esteja agora mais velho do que quando comecei o livro. A morte no envelhece. Quero 233 dizer, sim, que em cada fase da narrao da minha vida experimento a sensao correspondente. Valha-me Deus! preciso explicar tudo (MP, cap. CXXXVIII, p. 211).
Ao dizer que em cada fase da narrao da minha vida experimento a sensao correspondente, o narrador sugere que seu observador est sincretizado com o ator do enunciado, semelhana de Grande serto: veredas. Porm no isso o que se verifica na maior parte do romance: inmeras vezes se percebe que o ponto de vista discursivo o da morte, e no o da vida. Vejam-se alguns exemplos:
em O delrio, em que o narrador francamente se coloca no territrio da morte:
Que me conste, ainda ningum relatou o prprio delrio; fao-o eu, e a cincia mo agradecer. Se o leitor no dado contemplao desses fenmenos mentais, pode saltar o captulo; v direto narrao (MP, cap. VII, p. 33).
em Curto, mas alegre, em que os leitores so chamados de vivos e o narrador se encaixa no grupo dos finados:
O olhar da opinio, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o territrio da morte; no digo que ele no se estenda para c, e nos no examine e julgue; mas a ns que no se nos d do exame nem do julgamento. Senhores vivos, no h nada to incomensurvel como o desdm dos finados (MP, cap. XXIV, p. 76).
em A quarta edio, em que os leitores so colocados num momento posterior ao do narrador:
Cr-lo-eis, psteros? essa mulher era Marcela (MP, cap. XXXVIII, p. 96).
234 em O seno do livro, em que os pronomes diticos marcam uma diferena de posio entre o mundo do narrador (deste livro) e o dos leitores (esse mundo), entre a morte e a vida:
Comeo a arrepender-me deste livro. No que ele me canse; eu no tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros captulos para esse mundo sempre tarefa que distrai um pouco da eternidade. (MP, cap. LXXI, p. 140).
em Das negativas, em que o narrador adota uma postura de superioridade, coerente com a situao de quem j morreu e v as coisas de vida de maneira mais clara:
(...) e a vos ficais eternamente hipocondracos (MP, cap. CLX, p. 230).
Esses exemplos so suficientes para concluir que o captulo A um crtico apenas uma explicao para o fato de o narrador, em algumas situaes especficas (como a do captulo Cinqenta anos), aproximar-se de um observador sincretizado com o ator do enunciado. Mas isso a exceo, no a regra. Tanto verdade que h momentos, como em seu enterro, em que o narrador s pode adotar como ponto de referncia o observador sincretizado com o ator da enunciao. Alis, as passagens em que o narrador descreve o prprio enterro merecem ser comentadas mais cuidadosamente, at porque elas ajudam a compreender que o foco narrativo de Memrias pstumas no pode ser explicado apenas pela idia de um narrador-protagonista e da focalizao parcial interna fixa. Veja-se um fragmento do captulo bito do autor:
Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas trs senhoras, minha irm Sabina, casada com o Cotrim, a filha, um lrio do vale, e... Tenham pacincia! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que essa annima, ainda que no parenta, padeceu mais do que as parentas. verdade, padeceu mais (MP, cap. I, p. 24).
235 Quando o narrador afirma, com tanta convico, que Virglia padeceu mais do que as parentas, ele penetra no universo passional de um ator do enunciado de uma maneira aparentemente incoerente com seu estatuto de narrador-personagem. Mas a explicao para essa manifestao pontual de oniscincia simples: Brs est morto e, por isso, pode experimentar momentos de focalizao total tpicos do narrador- onisciente.
No comeo das Memrias, o foco aproxima duas coisas que em geral no andam juntas: a subjetividade, que resulta de uma perspectiva, de uma viso particular do mundo, realizada por um EU, e a oniscincia, o saber total, sem perspectiva, que nenhum EU consegue possuir (...). De qualquer maneira. Machado fez onisciente um EU. Por alguns momentos, pelo menos (Rodrigues, 1998, p. 49-50).
Essa mistura da focalizao parcial interna fixa com momentos pontuais de focalizao total um primeiro indcio da complexidade discursiva de Memrias pstumas que pode ser revelada pelo foco narrativo. Esse estranho narrador- personagem-onisciente se justifica pelo fato de que Brs um defunto autor e, como tal, pode contar, principalmente nos momentos posteriores sua morte, o que se passou na cabea das demais personagens do romance. Esse princpio de oniscincia poderia tambm ser interpretado como mais uma diluio de fronteiras, como mais uma comprovao da mobilidade dos nveis enunciativos, como mais um caso de metalepse, pois a focalizao total que se percebe em certas passagens das Memrias seria obra do enunciador, e no do narrador. Em outros termos, o enunciador cujo observador no tem as limitaes do observador do narrador projetaria a oniscincia sobre o segundo nvel enunciativo, numa demonstrao de que tanto o narrador no tem autonomia discursiva que ele fala sobre coisas que ocorreram quando no estava presente. Ora, isso s possvel porque existe um nvel enunciativo acima do nvel do narrador. Na verdade, pelo modo de narrar em Memrias pstumas, percebe-se que o narrador est francamente suborbinado ao enunciador, cujo thos se projeta sobre o segundo nvel enunciativo. Vejamos um caso especfico. No captulo Bacharelo-me, quando Brs Cubas se forma em Coimbra, ele demonstra que est muito longe de ter sido um estudante exemplar: 236 No dia em que a Universidade me atestou, em pergaminho, uma cincia que eu estava longe de trazer arraigada no crebro, confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso. Explico-me: o diploma era uma carta de alforria; se me dava liberdade, dava-me responsabilidade. Guardei-o, deixei-o s margens do Mondego, e vim por ali afora assaz desconsolado, mas sentindo j uns mpetos, uma curiosidade, um desejo de acotovelar os outros, de influir, de gozar, de viver, de prolongar a Universidade pela vida adiante... (MP, cap. XX, p. 70).
Esse desejo de acotovelar os outros pela vida adiante mostra como o narrador se define com um sujeito imaturo, irresponsvel e pouco altrusta. Um pouco mais frente, no captulo Curto, mas alegre, Brs mostra toda sua fragilidade intelectual:
Para lhes dizer a verdade toda, eu refletia as opinies de um cabeleireiro, que achei em Modena, e que se distinguia por no as ter absolutamente. Era a flor dos cabeleireiros; por mais demorada que fosse a operao do toucado, no enfadava nunca; ele intercalava as penteadelas com muitos motes e pulhas, cheios de um pico, de um sabor... No tinha outra filosofia. Nem eu. No digo que a Universidade me no tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe s as frmulas, o vocabulrio, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim: embolsei trs versos de Virglio, dois de Horcio, uma dzia de locues morais e polticas, para as despesas da conversao. Tratei-os como tratei a histria e a jurisprudncia. Colhi de todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentao... (MP, cap. XXIV, p. 75).
Essa superficialidade 68 de Brs Cubas, que, em vez de se interessar pela essncia do conhecimento, embolsa-lhe as frmulas, o vocabulrio, o esqueleto plenamente compatvel com a situao de algum que se bacharelou e se sentiu logrado. Dessa forma, seria esperado de acordo com uma hiptese interpretativa menos requintada
68 Que ser mais explorada nos itens seguintes. 237 que o romance traduzisse essa fragilidade filosfica, literria e histrica de Brs Cubas. Mas no isso que acontece. Desde a advertncia ao leitor, com as referncias a Stendhal, Sterne e Maistre, o romance est repleto de manifestaes de erudio que aparentemente so de responsabilidade do narrador. De to repetidas, de to insistentes, de to incisivas, no seria possvel tomar essas referncias filosficas, histricas e literrias apenas como uma dzia de locues morais e polticas, para as despesas da conversao. H mais que isso nessas experincias dialgicas. As referncias literrias que aparecem so as mais variadas:
a Shakespeare 69 em bito do autor:
(...) foi assim que me encaminhei para o undiscovery country de Hamlet, sem as nsias nem dvidas do moo prncipe (...) (MP, cap. I, p. 24);
a Molire em Razo contra sandice 70 :
J o leitor compreendeu que era a Razo que voltava casa, e convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras de Tartufo 71 : La maison est moi, cest vous den sortir (MP, cap. VIII, p. 40);
a Virglio em O autor hesita:
69 Shakespeare tambm est presente no captulo Suprimido (A nudez habitual, dada a multiplicao das obras e dos cuidados do indivduo, tenderia a embotar os sentidos e a retardar os sexos, ao passo que o vesturio, negaceando a natureza, agua e atrai as vontades, ativa-as, reprodu-las, e conseguintemente faz andar a civilizao. Abenoado uso que nos deu Otelo e os paquetes transatlnticos [MP, cap. XCVIII, p. 172]) e Sem remorsos (Se possusse os aparelhos prprios, inclua neste livro uma pgina de qumica, porque havia de decompor o remorso at os mais simples elementos, com o fim de saber de um modo positivo e concludente, por que razo (...) lady Macbeth passeia volta da sala a sua mancha de sangue [MP, cap. CXXIX, p. 203]). 70 Uma outra referncia literatura francesa se d no ttulo do captulo V (Chimne, qui let dit? Rodrigue, qui let cru?), que traz versos de Corneille, extrados de Le Cid. 71 Tartufo reaparece no captulo Suprimido: Realmente, no sei como lhes diga que no me senti mal, ao p da moa, trajando garridamente um vestido fino, um vestido que me dava ccegas de Tartufo (MP, cap. XCVIII, p. 172). 238 Eu deixava-me estar ao canto da mesa, a escrever desvairadamente num pedao de papel, com uma ponta de lpis; traava uma palavra, uma frase, um verso, um nariz, um tringulo, e repetia-o muitas vezes, sem ordem, ao caso, assim: arma uirumque cano (...) (MP, cap. XXVI, p. 80);
a Dante em Destino:
Sim, senhor, amvamos. Agora, que todas as leis sociais no-lo impediam, agora que nos amvamos deveras. Achvamo-nos jungidos um ao outro, como as duas almas que o poeta encontrou no Purgatrio: Di pari, come buoi, che vanno a giogo 72 (MP, cap. LVII, p. 120).
Ao lado dessas mltiplas referncias literrias, das quais demos apenas quatro exemplos, possvel perceber o uso repetido de estrangeirismos, quase sempre acompanhando essas citaes. Usa-se o ingls para citar Hamlet, o francs para Corneille e Molire, o italiano para Dante. Alm disso, h outros casos de galicismos (calembour [MP, cap. III, p. 26], toilette [MP, cap. LXIII, p. 130] e lange e la bte [MP, cap. XCIX, p. 173]) e latinismos (Te-Deum [MP, cap. XII, p. 48], compelle intrare [MP, cap. XIII, p. 54], In hoc signo vinces [MP, cap. LIX, p. 125], Et ctera [MP, cap. LXXXIII, p. 155], Tempora mutantur [MP, cap. CXXXV, p. 208]). certo que essas expresses latinas at poderiam ser exemplos daquelas que Brs decorou para as despesas da conversao. Mas combinadas com todas as demais manifestaes de erudio do romance, no parece que o narrador esteja demonstrando sua superficialidade intelectual. Ao contrrio, parece que o enunciador que est dando mostras de seu thos a partir dessas referncias sofisticadas. H mais dessas referncias: msica erudita ( Nada menos que um camarote. Para a Candiani? Para a Candiani [MP, cap. LXIII, p. 130], Que voulez-vous, monseigneur, como dizia Fgaro, cest la misere [MP, cap. XCI, p. 165] e outros adotam o recurso de assobiar a Norma [MP, cap. CIII, p. 177]), filosofia (Ento
72 Dante j tinha sido referido no captulo Virglia casada: Um livro perdeu Francesca; c foi a valsa que nos perdeu (MP, cap. L, p. 111). 239 considerei que as botas apertadas so uma das maiores venturas da terra, porque, fazendo doer os ps, do azo ao prazer de as descalar. Mortifica os ps, desgraado, desmortifica-os depois, e a tens a felicidade barata, ao sabor dos sapateiros e de Epicuro [MP, cap. XXXVI, p. 93], Como que este captulo escapou a Aristteles? [MP, cap. XLII, p. 101] e como faz dar um grande passo adiante de Zenon e Sneca, cujo estoicismo era um verdadeiro brinco de crianas ao p de minha receita moral [MP, cap. XCI, p. 165]) e literatura oriental (chispava de cima de um nariz, que era ao mesmo tempo o nariz de Bakbarah e o meu. Pobre namorado das Mil e uma noites! [MP, cap. XVIII, p. 64] e E assim reatamos o fio da aventura, como a sultana Scheherazade o do seus contos [MP, cap. LXXXV, p. 157]). 73
Muitas vezes, referncias histricas, mitolgicas e literrias se misturam para figurativizar temas especficos dos quais o narrador est tratando. Isso ocorre
em A idia fixa:
A minha idia, depois de tantas cabriolas, constitura-se idia fixa. Deus te livre, leitor, de uma idia fixa, antes um argueiro, antes uma trave no olho. V o Cavour; foi a idia fixa da unidade italiana que o matou. Verdade que Bismarck no morreu; mas cumpre advertir que a natureza uma grande caprichosa e a histria uma eterna loureira. Por exemplo, Suetnio deu-nos um Cludio, que era simplrio, ou uma abbora como lhe chamou Sneca, e um Tito, que mereceu ser as delcias de Roma. Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dous csares, o delicioso, o verdadeiro delicioso, foi o abbora de Sneca. E tu, madama Lucrcia, flor dos Brgias, se um poeta te pintou como a Messalina catlica, apareceu um Gregorovius incrdulo que te apagou muito essa qualidade, e, se no viste a lrio, tambm no ficaste a pntano. Eu, deixo-me entre o poeta e o sbio. Viva pois a histria, a volvel histria que d para tudo (...) (MP, cap. IV, p. 27);
73 Algumas dessas citaes foram extradas de passagens em discurso direto conduzidas por atores da enunciado que no Brs Cubas. Elas so teis para mostrar que uma dose de erudio faz parte do universo da maioria das personagens do romance, indcio de que o thos do enunciador que projeta essa erudio para o enunciado (e isso pode se manifestar pela voz do narrador ou pela vez dos demais interlocutores). 240
em Marcela:
Gastei trinta dias para ir do Rossio Grande ao corao de Marcela, no j cavalgando o corcel cego do desejo, mas o asno da pacincia, a um tempo manhoso e teimoso. Que, em verdade, h dous meios de granjear o corao das mulheres: o violento, como o touro de Europa, e o insinuativo, como o cisne de Leda e a chuva de ouro de Dnae, trs inventos do padre Zeus, que, por estarem fora de moda, a ficam trocados no cavalo e no asno. No direi as traas que urdi, nem as peitas, nem as alternativas de confiana e temor, nem as esperas baldadas, nem nenhuma outra dessas cousas preliminares. Afirmo-lhes que o asno foi digno do corcel, um asno de Sancho, deveras filsofo (...) (MP, cap. XV, p. 57);
em Triste, mas curto:
Conhecia a morte de oitiva; quando muito, tinha-a visto petrificada no rosto de algum cadver, que acompanhei ao cemitrio, ou trazia-lhe a idia embrulhada nas amplificaes da retrica dos professores de cousas antigas, a morte aleivosa de Csar, a austera de Scrates, a orgulhosa de Cato (MP, cap. XXIII, p. 75);
em A barretina:
(...) demonstrei que no era indigno das cogitaes de um homem de Estado; e citei Filopmen, que ordenou a substituio dos broquis de suas tropas (...). Sendo certo que um dos preceitos de Hipcrates era trazer a cabea fresca, parecia cruel obrigar um cidado, por simples considerao de uniforme, a arriscar a sade e a vida, e conseqentemente o futuro da famlia (MP, cap. CXXXVII, p. 209).
Para no nos estendermos demais com essas citaes e aluses, fiquemos com um ltimo grupo de exemplos para atestar a erudio cultural que o romance deixa 241 transparecer. Alm das referncias literrias, mitolgicas, histricas, so muitos os momentos em que o narrador incorpora ao seu texto elementos do discurso religioso. o que acontece
em bito do autor:
Moiss, que tambm contou a sua morte, no a ps no intrito, mas no cabo, diferena radical entre este livro e o Pentateuco (MP, cap. I, p. 23).
em Chimne, qui let dit? Rodrigue, qui let cru?:
Havia j dous anos que no nos vamos, e eu via-a agora no qual era, mas qual fora, quais framos ambos, porque um Ezequias misterioso fizera recuar o sol at os dias juvenis. Recuou o sol, sacudi todas as misrias, e este punhado de p, que a morte ia espalhar na eternidade do nada, pde mais do que o tempo, que o ministro da morte. Nenhuma gua de Juventa igualaria ali a simples saudade. Creiam-me, o menos mau recordar; ningum se fie da felicidade presente; h nela uma gota da baba de Caim (MP, cap. VI, p. 29-30).
em Formalidade:
Eram seis damas de Constantinopla, modernas, em trajos de rua, cara tapada, no com um espesso pano que as cobrisse deveras, mas com um vu tenussimo, que simulava descobrir somente os olhos, e na realidade descobria a face inteira. E eu achei graa a essa esperteza da faceirice muulmana, que assim esconde o rosto, mas no o esconde, e divulga a beleza. Aparentemente, nada h entre as damas turcas e o Damasceno; mas se tu s um esprito profundo e penetrante (e duvido muito que me negues isso), compreenders que, tanto num como noutro caso, surge a a orelha de uma rgida e meiga companheira do homem social... 242 Amvel Formalidade, tu s, sim, o bordo da vida, o blsamo dos coraes, a medianeira entre os homens, o vnculo da terra e do cu; tu enxugas as lgrimas de um pai, tu captas a indulgncia de um Profeta (...). Vive tu, amvel Formalidade, para sossego do Damasceno e glria de Muhammed (MP, cap. CXXVII, p. 202).
Como dissemos, as referncias de Brs Cubas so muitas: vo de J a Pangloss, de tila a Buffon, de Vieira a Bossuet, de Franois Guizot a Ledru-Rollin; passam por Vespasiano, Helvetius, Klopstock, Pascal e Cromwell; no deixam de lado Gessler e o ministrio Paran, as cidades de Nicia e Smirna, os imperadores Domiciano e Clepatra. Tamanha erudio pode sugerir duas coisas: ou Brs Cubas est sendo irnico quando reconhece sua superficialidade intelectual em Curto, mas alegre ou todas essas manifestaes de erudio so menos responsabilidade do narrador do que do enunciador. Preferimos a segunda hiptese. Essa constante referncia a outros escritores, historiadores e filsofos, ao discurso religioso e mitologia, msica e literatura oriental parece ser um dos traos caracterizadores do thos machadiano. Memrias pstumas apenas radicaliza a experincia dialgica, sob forma da heterogeneidade discursiva marcada no enunciado, mostrando que o romance construdo por um princpio polifnico. verdade que muitas das citaes do narrador estabelecem relaes cmplices com o discurso do romance, enquanto outras so polmicas, mas no isso que mais nos interessa; o que importa perceber essa experincia dialgica e reconhecer a intertextualidade e a interdiscursividade como um elemento constitutivo do discurso. A crtica literria especializada insiste em dizer que Machado recorria a citaes em todos os seus textos, dos romances s crnicas, das crticas aos contos:
(...) Machado citou muito. Tinha nisso um de seus prazeres especiais. Gostava de fazer praa de amplos conhecimentos de literatura estrangeira, citando no original o que podia (...). Era esta uma das suas poucas vaidades. Cedia a um impulso irreprimvel e transferia para o papel, ora uma passagem do Coriolanus ou do Hamlet, de Shakespeare, ora um pensamento de Pascal, ora um verso de Molire, de Corneille, de Racine, de Boileau, de Andr Chnier, 243 de Marceline Desbordes-Valmore, Lamartine, Hugo, Musset, etc. seno de Dante, de Shelley ou de Langfellow (Magalhes Jnior, 1971, p. 212).
Nem sempre essas citaes eram perfeitas, embora o uso do discurso direto para veicul-las sugerisse que elas fossem literais. No so poucos os analistas da obra machadiana que reconhecem que
os textos de Machado citam freqentemente outros autores, e (...) freqentemente suas citaes no correspondem aos textos citados (Rego, 1989, p. 112).
Esse tipo de citao imprecisa levou Magalhes Jnior a considerar Machado um deturpador de citaes (1971, p. 212). Vejamos um exemplo extrado de Memrias pstumas. No captulo Razo contra sandice, as palavras atribudas a Tartufo (La maison est moi, cest vous den sortir [MP, cap. VIII, p. 40]) simplesmente no existem. No texto original de Molire, na stima cena do quarto ato, Tartufo, rebatendo uma afirmao de Orgon, diz:
Cest vous den sortir, vous qui parlez en matre: La maison mappartient, je le ferai connatre (...) (Molire, 2005, p. 99).
Magalhes Jnior interpreta esse equvoco da seguinte maneira:
Com o seu conhecimento seguro da lngua francesa e a insegurana de sua memria, forjou Machado de Assis o falso alexandrino de Molire e o ps em circulao sem que ningum at aqui lhe assinalasse a faanha. Nem mesmo o seu tradutor francs, o General R. Chadebec de Lavalade, se advertiu dessa metamorfose dos versos do seu genial patrcio (1971, p. 215).
No nos cabe discutir os motivos desses enganos machadianos, principalmente usando para isso argumentos pouco cientficos, como a insegurana de sua memria. O que mais interessa analisar os efeitos produzidos por essas citaes truncadas. Fazemos nossas as palavras de Rego: 244
Em nossa opinio, (...) a utilizao de citaes truncadas no texto de Machado no deve ser explicada pela qualidade da memria do autor, mas sim por uma prtica literria associada tradio lucinica. (...) tanto Luciano quanto Varro, Sneca, Erasmo, Burton e Sterne utilizavam-se sistematicamente de citaes deturpadas, para efeitos literrios. Como o prprio Machado de Assis o declarou em seu conto Teoria do Medalho, trata-se da arte de renovar o sabor de uma citao, intercalando-a numa frase nova, original e bela (1989, p. 112).
Se a incorporao do discurso do outro marca de polifonia, a incorporao de um presumvel discurso do outro marca mais evidente ainda desse procedimento discursivo. Essas citaes truncadas so tpicas da stira menipia, que prefere a incerteza certeza, o riso verdade, o inacabamento ao encerramento, que no edifica nem destri, no inflama nem regela e que mais do que passatempo e menos do que apostolado (MP, cap. IV, p. 28). Dessa forma, a erudio do romance, a despeito das citaes intertextuais imprecisas, ajuda a definir o thos machadiano, que, alis, estende-se para seus demais romances. Trata-se de uma comprovao de que Brs, ao assumir sua superficialidade intelectual em Curto, mas alegre, no est sendo irnico, e sim sincero, j que toda a erudio literria, histrica, filosfica e religiosa que o discurso manifesta no da responsabilidade do narrador, e sim do enunciador; ela nasce da enunciao de 1 grau, e no da de 2. No primeiro captulo, comentamos a tese defendida por Lins (1982) de que So Bernardo apresenta um grande defeito: a inverossimilhana de Paulo Honrio como narrador, uma vez que ele um personagem primrio, rstico, grosseiro, ordinrio, que seria, portanto, incapaz de produzir uma novela de tanta densidade psicolgica, elaborada com tantos requintes de arte literria e de ter a vida interior que lhe atribui o romancista (p. 147). Se aceitssemos esse pressuposto terico de que o discurso precisa apresentar um estilo compatvel com a formao intelectual do ator do enunciado que conduz a narrativa , concluiramos que Memrias pstumas muito mais inverossmil do que So Bernardo, j que Brs Cubas no poderia fazer nem um quinto das referncias intertextuais e interdiscursivas que faz. Acontece que essas referncias, quando se analisa a totalidade dos romances de um escritor, so menos 245 responsabilidade do narrador de cada texto do que do ator da enunciao pressuposto por essa totalidade. O que parece ter escapado a Lins que os requintes de arte literria e a riqueza da vida interior das personagens em Graciliano no dependem dos traos caractersticos de Paulo Honrio como ator do enunciado, mas que definem um thos, um estilo, uma maneira de narrar presente tambm em Caets, Angstia ou Vidas secas. Da mesma forma, o efeito de inacabamento, as constantes referncias eruditas, a postura srio-cmica no uma caracterstica apenas de Brs Cubas, mas tambm de Bentinho, do Conselheiro Aires e do narrador de Quincas Borba 74 e dos primeiros romances machadianos. Todas as questes levantadas neste item apontam para a mesma direo: a construo de um narrador-personagem com traos de oniscincia, o observador sincretizado com um defunto, o ator da enunciao que satiriza o ator do enunciado, as citaes truncadas, a erudio do enunciador em contraste com a superficialidade intelectual do narrador, tudo isso remete ao primeiro nvel enunciativo e, portanto, construo do thos machadiano. Da que no seja inverossmil que o narrador chegue a recorrer ao discurso indireto livre no romance, incorporando ao seu o discurso do outro. Isso se d, por exemplo, no captulo A reconcialiao, quando Sabina e Cotrim condenam Brs por este estar disposto a aceitar o convite de Lobo Neves para ser seu secretrio de governo numa provncia do norte do pas:
Sabina olhou para o Cotrim, o Cotrim para Sabina; ambos concordaram que estas idias no tinham senso comum. Que diacho podia achar eu no norte? Pois no era na corte, em plena corte, que devia continuar a luzir, a meter num chinelo os rapazes do tempo? (MP, cap. LXXXI, p. 152).
As duas interrogaes, em indireto livre, podem ser atribudas tanto a Sabina quanto a Cotrim, pois ambos condenavam a viagem de Brs. Logo em seguida, percebe- se que provavelmenre era o cunhado quem reprovava mais enfaticamente a conduta do narrador:
74 Como veremos no captulo seguinte. 246 Que, na verdade, nenhum havia que se me comparasse; ele, Cotrim, acompanhava-me de longe, e, no obstante uma briga ridcula, teve sempre interesse, orgulho, vaidade nos meus triunfos. Ouvia o que se dizia a meu respeito, nas ruas e nas salas; era um concerto de louvores e admiraes. E deixa-se isso para ir passar alguns meses na provncia, sem necessidade, sem motivo srio? (MP, cap. LXXXI, p. 152).
A manipulao por seduo que Cotrim tenta empreender termina, outra vez, com uma frase interrogativa em indireto livre, por meio da qual o narrador traz para seu discurso a palavra do outro, explicitando as relaes dialgicas sobre as quais o enunciado se constri. Outros casos de emprego do indireto livre esto no captulo A visita, quando o narrador, ao reproduzir a fala de D. Eusbia, passa do indireto ao indireto livre, o que reforado pelas reticncias, e volta ao indireto:
D. Eusbia comeou a falar de minha me, com muitas saudades, com tantas saudades, que me cativou logo, posto me entristecesse. Ela percebeu-o nos meus olhos, e torceu a rdea conversao; pediu-me que lhe contasse a viagem, os estudos, os namoros... Sim, os namoros tambm; confessou-me que era uma velha patusca (MP, cap. XXIX, p. 84);
e no captulo O bibliomno, em que uma frase exclamativa repetida no ltimo pargrafo para reprduzir um pensamento de um fictcio colecionador de livros raros:
Fecha o livro, mira-o, remira-o, chega-se janela e mostra-o ao sol. Um exemplar nico! Nesse momento passa-lhe por baixo da janela um Csar ou um Cromwell, a caminho do poder. Ele d de ombros, fecha a janela, estira-se na rede e folheia o livro devagar, com amor, aos goles... Um exemplar nico! (MP, cap. LXXII, p. 141)
Tambm h discurso indireto livre no captulo Um Cubas!, quando o pai de Brs fica sabendo que Virglia trocou seu filho por Lobo Neves:
247 Meu pai ficou atnito com o desenlace, e quer-me parecer que no morreu de outra cousa. Eram tantos os castelos que engenhara, tantos e tantssimos os sonhos, que no podia v-los assim esboroados, sem padecer de um forte abalo no organismo. Um Cubas! um galho da rvore ilustre dos Cubas! E dizia isto com tal convico, que eu, j informado da nossa tanoaria, esqueci um instante a volvel dama, para s contemplar aquele fenmeno, no raro, mas curioso: uma imaginao graduada em conscincia (MP, cap. XLIV, p. 102).
O discurso indireto livre muito mais comum nos casos de oniscincia, de focalizao total. No esperado que narradores-protagonistas, comprometidos com a focalizao parcial interna fixa, recorram a esse expediente, no momento de veicular a discurso do outro. Mas note-se que Brs o faz para traduzir a tristeza e a surpresa de seu pai, quando este descobre de Virglia abriu mo de casar com Um Cubas!, como se isso fosse grande absurdo. Parece que Bento acredita na histria que ele mesmo inventou sobre a histria da famlia Cubas em Genealogia:
O fundador da minha famlia foi um certo Damio Cubas, que floresceu na primeira metade do sculo XVIII. Era tanoeiro de ofcio, natural do Rio de Janeiro, onde teria morrido na penria e na obscuridade, se somente exercesse a tanoaria. Mas no; fez-se lavrador, plantou, colheu, permutou o seu produto por boas e honradas patacas, at que morreu, deixando grosso cabedal a um filho, o licenciado Lus Cubas. Neste rapaz que verdadeiramente comea a srie dos meus avs dos avs que a minha famlia sempre confessou , porque o Damio Cubas era afinal de contas um tanoeiro, e talvez mau tanoeiro, ao passo que o Lus Cubas estudou em Coimbra, primou no Estado, e foi um dos amigos particulares do vice-rei conde da Cunha. Como este apelido de Cubas lhe cheirasse excessivamente tanoaria, alegava meu pai, bisneto de Damio, que o dito apelido fora dado a um cavaleiro, heri das jornadas da frica, em prmio da faanha que praticou, arrebatando trezentas cubas aos mouros. Meu pai era homem de imaginao; escapou tanoaria nas asas de um calembour (MP, cap. III, p. 26). 248
Brs conhece a verdadeira genealogia de sua famlia. Por isso, quando ele mostra certo escrnio quando o pai fala sobre o galho da rvore ilustre dos Cubas. O uso do discurso indireto livre, ao mimetizar o espanto paterno, incorporando-o ao seu discurso, mais um elemento dialgico do romance, pois h indcios bastantes para concluir que o narrador no compartilha essa surpresa com o pai; ao contrrio, ele satiriza a crena de quem escapou tanoaria nas asas de um calembour...
249 8. Formulaes tericas de Brs: entre a cincia e a zombaria
Brs Cubas estiliza seu egosmo visceral e as suas veleidades de glria, ora como traos seus, compreensveis no contexto da sua biografia de menino rico e mimado, ora como atributos prprios do barro humano, tais como os vinha assinalando, fazia sculos, o moralismo pessimista ou simplesmente ctico. (Alfredo Bosi, Machado de Assis)
No item anterior, propusemos que o narrador manifesta toda a erudio literria e histrica do enunciador, por meio de citaes intertextuais e referncias interdiscursivas que passam a ser elementos constitutivos do discurso romanesco. De modo semelhante, o narrador tambm veicula, ao longo do romance, uma srie de teorias que possuem reflexos sobre a construo discursiva. Veja-se um exemplo do captulo A idia fixa:
A minha idia, depois de tantas cabriolas, constitura-se idia fixa. Deus te livre, leitor, de uma idia fixa, antes um argueiro, antes uma trave no olho (MP, cap. IV, p. 27).
A figura da cabriola leva primeira formulao terica de Brs, presente no captulo O emplasto:
Com efeito, um dia de manh, estando a passear na chcara, pendurou-se-me uma idia no trapzio que eu tinha no crebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que possvel crer. Eu deixei-me estar a contempl-la. Sbito, deu um grande salto, estendeu os braos e as pernas, at tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te (MP, cap. II, p. 25).
Essa idia o Emplasto Brs Cubas, que, no final das contas, a causa mortis do narrador. O surgimento dessa idia parte de uma figura: a do trapzio que o 250 narrador tinha no crebro. Pendurada, ela entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim. Brs se sente, nestes dois captulos, refm dessas idias fixas, desse trapzio 75 . Isso ocorre tambm no captulo Do trapzio e outras coisas, quando, desesperado para reconquistar Marcela, Brs resolve gastar com a cortes mais um pouco da fortuna de sua famlia:
Enfim, tive uma idia salvadora... Ah! trapzio dos meus pecados, trapzio das concepes abstrusas! A idia salvadora trabalhou nele, como a do emplasto (captulo II). Era nada menos que fascin-la, fascin-la muito, deslumbr-la, arrast-la; lembrou-me pedir-lhe por um meio mais concreto do que a splica. No medi as conseqncias; fui Rua dos Ourives, comprei a melhor jia da cidade, trs diamantes grandes, encastoados num pente de marfim; corri casa de Marcela (MP, cap. XVII, p. 62-63).
O trapzio, onde se penduram as idias fixas e as atitudes inconseqentes de Brs, figurativiza o tema da volubilidade, da leviandade, da insensatez, da impulsividade. o que ocorre tambm com as cabriolas, que reaparecem no captulo Um encontro:
Por que no serei eu ministro? Esta idia, rtila e grande, trajada ao bizarro, como diria o padre Bernardes, esta idia comeou uma vertigem de cabriolas e eu deixei-me estar com os olhos nela, a achar-lhe graa (MP, cap. LIX, p. 123).
Quando o narrador, insistentemente, emprega essas figuras parece que ele justifica no s suas atitudes como ator do enunciado, mas tambm como ator da enunciao, pois o tal trapzio pode ser associado tambm ao estilo digressivo das Memrias pstumas. Retomemos O seno do livro:
75 Essa figura tambm aparece no captulo A propsito de botas: Mortifica os ps, desgraado, desmortifica-os depois, e a tens a felicidade barata, ao sabor dos sapateiros e de Epicuro. Enquanto esta idia me trabalhava no famoso trapzio (...) (MP, cap. XXXVI, p. 93). 251 (...) este livro e o meu estilo so como os brios, guinam direita e esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaam o cu, escorregam e caem... (MP, cap. LXXI, p. 140).
O estilo brio, ziguezagueante, repleto de digresses casa bem com a figura do trapzio. Por meio dessa formulao terica, o romance ora justifica as aes dos atores, ora representa o prprio estilo enunciativo. Muitas outras figuras que aparecem nas Memrias pstumas ganham esse estatuto de formulao terica, e, embora no sejam srias, o narrador as apresenta como sendo uma mistura de doutrina moral e observao da realidade. o caso da figura da ponta do nariz. A primeira referncia a esta figura se d no captulo O recluso, no momento em que Brs reflete sobre a situao de ter perdido Virglia para Lobo Neves:
Quando me lembrava do Lobo Neves, que j era deputado, e de Virglia, futura marquesa, perguntava a mim mesmo porque no seria melhor deputado e melhor marqus do que o Lobo Neves, eu, que valia mais, muito mais do que ele, e dizia isto a olhar para a ponta do nariz... (MP, cap. XLVII, p. 107).
No captulo seguinte, Um primo de Virglia, o narrador se mostra extremamente competitivo e egosta, pois Lus Dutra precisava apenas de palavras de apoio para continuar a escrever versos. Brs no lhas dava:
Minha inteno era faz-lo duvidar de si mesmo, desanim-lo, elimin- lo. E tudo isto a olhar para a ponta do nariz... (MP, cap. XLVIII, p. 108).
Finalmente, no j referido A ponta do nariz, o narrador explicita o sentido dessa figura, que havia sido sugerido nos captulos anteriores. Num primeiro momento, Brs apresenta essa nova teoria como um achado intelectual:
A explicao do doutor Pangloss que o nariz foi criado para uso dos culos, e tal explicao confesso que at certo tempo me pareceu 252 definitiva; mas veio em dia, em que, estando a ruminar esse e outro pontos obscuros de filosofia, atinei com a nica, verdadeira e definitiva explicao (MP, cap. XLIX , p. 108-109).
Nessa digresso que se inicia, o narrador comenta que o faquir, enquanto medita, costuma olhar a ponta do nariz num processo de ascese. Eis como Brs analisa este fenmeno:
Essa sublimao do ser pela ponta do nariz o fenmeno mais excelso do esprito, e a faculdade de a obter no pertence ao faquir somente: universal. Cada homem tem necessidade e poder de contemplar o seu prprio nariz, para o fim de ver a luz celeste, e tal contemplao, cujo efeito a subordinao do universo a um nariz somente, constitui o equilbrio das sociedades. Se os narizes se contemplassem exclusivamente uns aos outros, o gnero humano no chegaria a durar dois sculos: extinguia-se com as primeiras tribos (MP, cap. XLIX, p. 109).
A ponta do nariz figurativiza o egosmo humano, que se manifesta tanto mais nos momento de competio entre os homens. O narrador ento narra histria da disputa por clientes entre dois chapeleiros, para que se tenha uma idia ainda mais clara da importncia filosfica da ponta do nariz:
Um chapeleiro passa por uma loja de chapus; a loja de um rival, que a abriu h dois anos; tinha ento duas portas, hoje tem quatro; promete ter seis e oito. Nas vidraas ostentam-se os chapus do rival; pelas portas entram os fregueses do rival; o chapeleiro compara aquela loja com a sua, que mais antiga e tem s duas portas, e aqueles chapus com os seus, menos buscados, ainda quer de igual preo. Mortifica-se naturalmente; mas vai andando, concentrado, com os olhos para baixo ou para a frente, a indagar as causas da prosperidade do outro e do seu prprio atraso, quando ele chapeleiro muito melhor chapeleiro do que o outro chapeleiro... Nesse instante que os olhos se fixam na ponta do nariz (MP, cap. XLIX, p. 109). 253
A disputa por chapus no deixa de ser sarcstica, to sarcstica quanto as batatas de Quincas Borba e Rubio. E a ponta do nariz, que figurativiza o tema do individualismo, da falta de solidariedade entre as pessoas, mais uma maneira de Brs justificar seu egosmo visceral na expresso de Bosi (2002, p. 52) , pois ele tinha se mostrado bastante competitivo em relao a Lobo Neves e a Lus Dutra. Em muitos outros momento do romance, o egosmo do protagonista patente: no caso amoroso com Eugnia, na relao com Dona Plcida, no primeiro reencontro com Quincas Borba, na postura com relao a Prudncio ou ao almocreve. A teoria da ponta do nariz ajudaria a tornar esse egosmo mais aceitvel, mais natural, uma vez que, para Brs,
(...) h duas foras capitais: o amor, que multiplica a espcie, e o nariz, que a subordina ao indivduo. Procriao, equilbrio. (MP, cap. XLIX, p. 109).
Essa constatao no deve nada aos devaneios filosficos do Humanitismo. Outra formulao terica, que serve para Brs justificar as prprias aes, a teoria da equivalncia das janelas. Ela surge no captulo minha, em que, aps valsar com a j casada Virglia e perceber que a moa estava disposta a iniciar com ele um caso adltero, Brs encontra uma moeda de ouro no cho e resolve restitu-la a quem a perdera, j que no poderia ser considerada dele uma moeda que ele no herdara nem ganhara, mas somente achara na rua. O narrador ento envia o achado ao chefe de polcia, rogando-lhe que, pelos meios a seu alcance, fizesse devolv-lo ao verdadeiro dono. A satisfao de ter praticado uma boa ao leva a mais uma figurativizao filosfica do narrador:
Assim, eu, Brs Cubas, descobri uma lei sublime, a lei da equivalncia das janelas, e estabeleci que o modo de compensar uma janela fechada abrir outra, a fim de que a moral possa arejar continuamente a conscincia. Talvez no entendas o que a fica; talvez queiras uma cousa mais concreta, um embrulho, por exemplo, um embrulho misterioso. Pois toma l o embrulho misterioso (MP, cap. LI, p. 112). 254
A janela fechada a relao proibida com Virglia; a janela aberta a devoluo da meia dobra ao dono. Uma compensa a outra, devido equivalncia das janelas. Nesse caso, no se trata de justificar o egosmo ou a inconseqncia, mas sim de enontrar um modo, ainda que hipcrito, de ficar em paz com a prpria conscincia aps um ato digno de reprovao. Assim, a capacidade do narrador em formular teorias serve para que ele procure justificar, por um raciocnio pseudocientfico, todas as suas atitudes, principalmente aquelas que seriam rechaadas de acordo com os valores institucionalizados. Para que o narratrio entenda bem o que significa a lei da equivalncia das janelas, o narrador afirma, no final do captulo minha, que vai contar um caso de um embrulho misterioso. o assunto de um captulo homnimo, em que Brs encontra na rua um pacote com nada menos de cinco contos de ris. Lembrando o captulo da moedinha de ouro e a postura do protagonista ao encontr-la, era de esperar que ele procurasse devolver o embrulho ao verdadeiro dono. Mas o narrador muda os prprios argumentos ao sabor das convenincias pessoais:
(...) no era crime achar dinheiro, era uma felicidade, um bom acaso, era talvez um lance da Providncia. No podia ser outra cousa. No se perdem cinco contos, como se perde um leno de tabaco. Cinco contos levam-se com trinta mil sentidos, apalpam-se a mido, no se lhes tiram os olhos de cima, nem as mos, nem o pensamento, e para se perderem assim totalmente, numa praia, necessrio que... Crime que no podia ser o achado; nem crime, nem desonra, nem nada que embaciasse o carter de um homem. Era um achado, um acerto feliz, como a sorte grande, como as apostas de cavalos, como os ganhos de um jogo honesto e at direi que minha felicidade era merecida, porque eu no me sentia mau, nem indigno dos benefcios da Providncia (MP, cap. LII, p. 115).
Os mesmos argumentos empregados para que o narrador no ficasse com uma moedinha de pequeno valor achada na rua no so tm validade agora, quando ele encontra uma grande soma em dinheiro. O que significa que no importa que tipo de atitudes benvolas ou malvolas se tenham tomado, pois, pela lei da equivalncia das 255 janelas, todas so do mesmo quilate e, portanto, compensam-se umas s outras. Assim, devolver uma meia dobra ao verdadeiro dono equivaleria a ficar com cinco contos de ris alheios: um modo de arejar continuamente a conscincia. Esse raciocnio convocado para fundamentar vrias outras aes e vrios outros pensamentos durante o romance. No captulo Um projeto, tem-se mais uma aplicao da lei da equivalncia das janelas, logo aps Brs Cubas reencontrar Quincas Borba, que se havia tornado morador de rua:
No era impossvel encontr-lo noutra ocasio; prometi a mim mesmo l voltar. A necessidade de o regenerar, de o trazer ao trabalho e ao respeito de sua pessoa, enchia-me o corao; eu comeava a sentir um bem-estar, uma elevao, uma admirao de mim prprio... (MP, cap. LXI, p. 127).
Essa sensao pode ser vista como uma maneira de arejar a conscincia, j que, no captulo Um encontro, os pensamentos de Brs em relao ao amigo de infncia no tinham sido os mais nobres:
Tirei a carteira, escolhi uma nota de cinco mil-ris, a menos limpa, e dei-lha. Ele recebeu-ma com os olhos cintilantes de cobia. Levantou a nota ao ar, e agitou-a, entusiasmado. In hoc signo vinces! Bradou. E depois beijou-a, com muitos ademanes de ternura, e to ruidosa expanso, que me produziu um sentimento misto de nojo e lstima (MP, cap. LIX, p. 125).
No captulo O estrume, a importncia da lei da equivalncia das janelas fica ainda mais evidente. Falando sobre Dona Plcida, que tomava conta da casinha da Gamboa para intermediar, incialmente a contragosto, os encontros de Brs e Virglia, o narrador encontra uma explicao para no se sentir culpado por ter feito a velha senhora religiosa tornar-se medianeira:
(...) aleguei que a velhice de D. Plcida estava agora ao abrigo da mendicidade: era uma compensao. Se no fossem os meus amores, 256 provavelmente D. Plcida acabaria como tantas outras criaturas humanas; donde se poderia deduzir que o vcio muitas vezes o estrume da virtude. O que no impede que a virtude seja uma flor cheirosa e s (MP, cap. LXXVI, p. 145).
O vcio como estrume da virtude, variao figurativa da equivalncia das janelas, outra reflexo de Brs para dar crdito a aes que possam parecer desabonadoras sua conduta. E de tal modo existe essa preocupao constante do narrador em fazer essas justificativas que h um captulo intitulado Equivalncia das janelas. Trata-se de um momento em que Lobo Neves surpreendentemente aparece na casinha da Gamboa. Brs ento se esconde e Virglia vai embora com o marido:
D. Plcida fechou a porta e caiu numa cadeira. Eu deixei imediatamente a alcova, e dei dois passos para sair rua, com o fim de arrancar Virglia ao marido; foi o que disse, e em bem que o disse, porque D. Plcida deteve-me por um brao. Tempo houve em que cheguei a supor que no dissera aquilo seno para que ela me detivesse; mas a simples reflexo basta para mostrar que, depois dos dez minutos da alcova, o gesto mais genuno e cordial no podia ser seno esse. E isto por aquela famosa lei da equivalncia das janelas, que eu tive a satisfao de descobrir e formular, no captulo LI. Era preciso arejar a conscincia. A alcova foi uma janela fechada; eu abri outra com o gesto de sair, e respirei (MP, cap. CV, p. 180).
Outra formulao terica de Brs a das edies humanas. A primeira referncia a ela se d em Chimne, qui let dit? Rodrigue, qui let cru?:
Talvez eu exponha ao leitor, em algum canto deste livro, a minha teoria das edies humanas (MP, cap. VI, p. 30).
No captulo Virglia, a tal teoria formulada:
Deixa l dizer Pascal que o homem um canio pensante. No; uma errata pensante, isso sim. Cada estao da vida uma edio, que 257 corrige a anterior, e que ser corrigida tambm, at a edio definitiva, que o editor d de graa aos vermes (MP, cap. XXVII, p. 82).
A teoria das edies humanas usada por Brs para explicar suas mudanas de comportamento e de crenas durante a narrativa. No captulo A quarta edio, ele retoma essa teoria tanto para justificar essas constantes alteraes de conduta quanto para reiterar sua superficialidade e sua volubilidade:
Lembra-vos ainda da minha teoria das edies humanas? Pois sabei que, naquele tempo, estava eu na quarta edio, revista e emendada, mas ainda inada de descuidos e barbarismos; defeito que, alis, achava alguma compensao no tipo, que era elegante, e na encadernao, que era luxuosa (MP, cap. XXXVIII, p. 95).
No captulo Volta ao Rio, o tema da superficialidade j havia sido sugerido por uma figura do universo editorial:
s vezes, esqueo-me a escrever, e a pena vai comendo papel, como grave prejuzo meu, que sou autor. Captulos compridos quadram melhor a leitores pesades; e no somos um pblico in-folio, mas in-12, pouco texto, larga margem, tipo elegante, corte dourado e vinhetas... principalmente vinhetas... (MP, cap. XXII, p. 72).
Nos itens seguintes, falaremos de outras formulaes tericas de Brs Cubas. O que mais importa aqui, no processo de mapear a enunciao do romance, notar que as teorias no narrador, independentemente de serem mais cientficas ou mais zombeteiras, vo explicando as aes tanto dos atores do enunciado quanto do ator da enunciao. Trata-se de um procedimento que guarda semelhana com a metaenunciao, uma vez que essas teorias sugerem uma enunciao desdobrada por seu prprio reflexo (Authier-Revuz, 1998, p. 16). Da mesma forma que ocorre com a modalizao autonmica, as teorizaes do narrador so uma prtica e uma representao, um uso e uma meno, pois o ato de enunci-las acaba por ser uma maneira de analisar o enunciado. 258 Essa anlise pode ser feita em dois nveis: em relao ao narrador, h momentos em que ele parece crer na validade de suas teorias e h outros em que sua postura zombeteira; em relao ao enunciador, h sempre sarcasmo, pois essa essa atitude pseudo-terica do narrador sancionada negativamente, uma vez que ela s serviria para justificar as atitudes inconseqentes e egostas de Brs. De qualquer modo, o que se percebe nas Memrias pstumas o narrador- protagonista no se contenta em somente narrar a prpria vida. A todo tempo, ele comenta sua narrativa, teoriza sobre suas atitudes, justifica-se por argumentos de autoridade, fazendo as vezes de enunciador. Com isso, o romance marca a dissenso semntica entre o primeiro e o segundo nvel enunciativo, pois no h convergncia de vozes entre enunciador e narrador em relao s formulaes tericas de Brs. Temos a um princpio polifnico do romance. 259 9. Volubilidade, superficialidade, vaidade, indiferena: a autpsia de Brs e de seus pares
Digamos ento que no curso de sua afirmao a versatilidade do narrador faz pouco de todos os contedos e formas que aparecem nas Memrias, e os subordina, o que lhe proporciona uma espcie de fruio. Nesse sentido a volubilidade (...) o princpio formal do livro. (Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis)
Nas interpretaes sociolgicas que se fazem sobre as Memrias pstumas de Brs Cubas, existe a tradio de tomar o protagonista como um tpico representante da mentalidade dominante entre as nossas elites imperais. Nesse sentido,
(...) o consumo acelerado e sumrio de posturas, idias, convices, maneiras literrias, etc., logo abandonadas por outras, e portanto desqualificadas (Schwarz, 1998, p. 40),
caracterizaria a volubilidade de Brs Cubas e das nossas elites, cujo comportamento sempre pressuporia
(...) algum tipo de desrespeito, e uma complementar satisfao de amor- prprio, tornando onipresentes no universo narrativo as notas do inadmissvel e da afronta (Schwarz, 1998, p. 40).
Essa tese, urdida a partir da anlise dos aspectos sociais imbricados na obra machadiana, nasceu da observao de elementos textuais, embora Schwarz no os explicite. Procuraremos neste item discutir quais so algumas das marcas no enunciado das Memrias pstumas que justificariam a idia de que Brs volvel, no apenas socialmente, mas tambm enunciativamente. Partindo incialmente das definies do Houaiss, a segunda acepo do substantivo volubilidade a que nos interessa: 260
2. Derivao: por extenso de sentido. falta de constncia ou de perseverana; inconstncia, instabilidade, mutabilidade
Tomando a volubilidade como sinnimo de inconstncia, de instabilidade, de impersistncia e analisando-a conforme propuseram Greimas e Fontanille (1993, p. 85- 87), encontramos nela uma disposio passageira e uma manifestao com episdios. Quanto modalizao, pode-se dizer que uma atitude volvel se origina de um /querer/, que no-durativo e est em oposio a um /no saber/ ou a um /no poder/. O sujeito quer fazer algo, mas sua falta de constncia ou de perseverana o impede. Sua competncia para /fazer/, portanto, negada, enquanto a competncia de um observador exterior para reconhecer as atitudes volveis reconhecida. Por isso, na volubilidade, comum haver, no final das contas, um /no fazer/, pois o sujeito volvel no consegue agir de acordo com o planejado, at porque seus propsitos nunca so plenamente estveis. So muitos os exemplos de que a conduta de Brs, como ator do enunciado, volvel, j que suas idias fixas no devem ser levadas muito a srio 76 . No captulo O menino pai do homem, v-se que a inconstncia uma caracterstica de seu comportamente desde a infncia:
De manh, antes do mingau, e de noite, antes da cama, pedia a Deus que me perdoasse, assim como eu perdoava aos meus devedores; mas entre a manh e a noite fazia uma grande maldade, e meu pai, passado o alvoroo, deva-me pancadinhas na cara, e exclamava a rir: Ah! brejeiro! ah! brejeiro! (MP, cap. XI, p. 45).
Essas mudanas de crena so comuns ao longo da narrativa e, na fase adulta, Brs passa a justific-las por meio de suas formulaes tericas, como acontece com a lei da equivalncia das janelas. Longe de tomar essa volubilidade como algo negativo, o narrador vai apresentando suas reflexes oportunistas e mudando seus argumentos ao sabor das circunstncias e dos lugares, procurando sempre validar suas aes e seus
76 At porque uma das idias fixas de Brs justamente, como deixa antever o captulo IV do romance, a volubilidade da histria (Rego, 1989, p. 174). 261 pensamentos de acordo com as convenincias momentneas. Dessa forma, a volubilidade caracteriza Brs como ator do enunciado. Como ator da enunciao, Brs tambm d mostras de instabilidade, uma vez que o estilo brio, digressivo, em que fbula e trama se misturam com antecipaes narrativas e flashbacks e em que o primeiro e o segundo nvel enunciativo ora se afastam, ora se aproximam, consiste numa volubilidade enunciativa, muito adequada a uma obra que demonstra relao to estreita com a tradio menipia. Essa espcie de trapzio discursivo remete ao efeito de inacabamento, de inconclusividade das Memrias pstumas. Mas voltando a Brs como ator do enunciado, sua volubilidade direciona nosso olhar para uma outra caracterstica sua: a superficialidade. Recorrendo outra vez ao Houaiss, a superficialidade pode ser entendida como
carter do que superficial [e] que no aprofunda os assuntos; que observa ligeiramente, por alto, sem meditar
O Petit Robert ainda acrescenta que a superficialidade engloba aquilo
que no nem profundo nem essencial
A superficialidade est associada s modalidades epistmicas, pois o sujeito superficial o sujeito do /no saber/. Como a disposio da superficialidade permanente e sua manifestao contnua, as atitudes desse sujeito so previsveis, visto que ele incapaz de se aprofundar, de chegar ao essencial, de observar a realidade com mais fineza. Falta-lhe competncia para tal. No caso de Brs, a superficialidade quase um corolrio da volubilidade. Se ser volvel no possuir propsitos firmes durante a vida e, mais do que isso, no fazer os esforos necessrios para que esses propsitos se realizem , essa inconstncia levaria superficialidade, pois no possvel haver observaes finas e profundas sobre a realidade se no existe firmeza de crenas e atitudes. So muitas as figuras discursivas que recobrem o tema da superficialidade. A comear pelo Emplasto Brs Cubas, um medicamento epidrmico que curaria a humanidade de problemas psicolgicos. Outro momento em que Brs demonstra /no saber/ ser profundo e chegar ao essencial se d quando ele se forma em Coimbra e 262 admite sua vontade de no assumir as responsabilidades de vida adulta. Eis uma passagem do captulo Bacharelo-me:
(...) o diploma era uma carta de alforria; se me dava liberdade, dava-me responsabilidade. Guardei-o, deixei-o s margens do Mondego, e vim por ali afora assaz desconsolado, mas sentindo j uns mpetos, uma curiosidade, um desejo de acotovelar os outros, de influir, de gozar, de viver, de prolongar a Universidade pela vida adiante... (MP, cap. XX, p. 70).
O desejo de prolongar a Universidade pela vida adiante se casa bem com o tema da superficialidade, que perpassar o romance todo, pois, embora o narrador reconhea que, nos anos posteriores ao bacharelado, era um fiel compndio de trivialidade e presuno, a verdade que ele continua a s-lo por toda a vida. Vejamos outro exemplo. Logo aps Lobo Neves ter surpreendido Virglia na casinha da Gamboa, Brs Cubas recebe um bilhete da amante recomendando-lhe cautela. Ento, no captulo O filsofo, a partir de uma conversa com Quincas Borba, em que este lhe conta um pouco da sua vida, misturando a narrativa com reflexes humanitistas, Brs faz as seguintes reflexes:
Meu esprito, (permitam-me aqui uma comparao de criana) meu esprito era naquela ocasio uma espcie de peteca. A narrao do Quincas Borba dava-lhe uma palmada, ele subia; quando ia cair, o bilhete de Virglia dava-lhe outra palmada, e ele era de novo arremessado aos ares; descia, e o episdio do Passeio Pblico recebia- o com outra palmada, igualmente rija e eficaz. Cuido que no nasci para situaes complexas. Esse puxar e empuxar de cousas opostas, desequilibrava-me; tinha vontade de embrulhar o Quincas Borba, o Lobo Neves e o bilhete de Virglia na mesma filosofia, e mand-los de presente a Aristteles (MP, cap. CIX, p. 183).
A incompetncia de Brs para lidar com as contradies da vida, de raciocinar dialeticamente demonstra sua superficialidade, que reiterada em O almoo, quando ele admite estar com seus quarenta e tantos anos, to vadios e to vazios (MP, cap. 263 CXV, p. 188). O que no deixa de ser curioso que essa assuno de volubilidade e superficialidade, em linhas gerais, no incomoda o narrador, que parece conviver perfeitamente com esses sentimentos. Um dos poucos momentos em que ele se perturba est no captulo Que explica o anterior, quando Quincas Borba procura analisar por que Brs no se tornou ministro:
(...) Quincas Borba, por indues filosficas que fez, achou que minha ambio no era a paixo verdadeira do poder, mas um capricho, um desejo de folgar. Na opinio dele, este sentimento, no sendo mais profundo que o outro, amofina muito mais, porque ora pelo amor que as mulheres tm s rendas e toucados. Um Cromwell ou um Bonaparte, acrescentava ele, por isso mesmo que os queima a paixo do poder, l chegam fina fora ou pela escada da direita, ou pela da esquerda. No era o meu sentimento; este, no tendo em si a mesma fora, no tem a mesma certeza do resultado; e da a maior aflio, o maior desencanto, a maior tristeza. O meu sentimento, segundo o Humanitismo... Vai para o diabo com teu Humanitismo, interrompi-o; estou farto de filosofias que no levam a cousa nenhuma (MP, cap. CXL, p. 212).
Note-se que a expresso desejo de folgar muito semelhante ao desejo de acotovelar os outros, de influir, de gozar, de viver, empregado pelo prprio narrador no captulo XX. Brs irrita-se por Quincas Borba ter-lhe mostrado a superficialidade que ele j reconhecera em Bacharelo-me, o que aparentemente inexplicvel. Acontece que, quando Brs v sua carreira poltica ruir, ele percebe que sua falta de paixo verdadeira do poder e seu capricho o atrapalharam deveras. Alm disso, o filsofo fala explicitamente sobre a falta de profundidade dos sentimentos de Brs e parece que essa explicitao que ofende o narrador. Assim, no a realidade que agasta o narrador, mas sua discursivizao. O que se percebe, observando essas passagens, que a atribuio da superficialidade ao narrador , na realidade, responsabilidade do enunciador, pois, embora em certas situaes parea que o narrador se orgulhe de seus caprichos, a superficialidade do narrador objeto de reflexo crtica no romance, pois Brs chega a se ver como vtima do seu prprio desejo de folgar. o enunciador que est no 264 comando dessa crtica. Para reforar essa hiptese, vale a pena retomar que outras personagens do romance so caracterizadas pela superficialidade. o caso de uma fala do pai de Brs em Contanto que..., em que se sugere que Brs deve evitar a obscuridade, guiando-se pelas opinies alheias:
(...) no gastei dinheiro, cuidados, empenhos, para te no ver brilhar, como deves, e te convm, e a todos ns; preciso continuar o nosso nome, continu-lo e ilustr-lo ainda mais. Olha, estou com sessenta anos, mas se fosse necessrio comear vida nova, comeava, sem hesitar um s minuto. Teme a obscuridade, Brs; foge do que nfimo. Olha que os homens valem por diferentes modos, e que o mais seguro de todos valer pela opinio de outros homens. No estragues as vantagens de tua posio, os teus meios... (MP, cap. XXVIII, p. 83);
e outra de Lobo Neves em Confidncia, em que o marido de Virglia se mostra encantado com a teatralizao da vida pblica:
Sei o que lhe digo, replicou-me com tristeza. No pode imaginar o que tenho passado. Entrei na poltica por gosto, por famlia, por ambio, e um pouco por vaidade. J v que reuni em mim s todos os motivos que levam o homem vida pblica; faltou-me s o interesse de outra natureza. Vira o teatro pelo lado da platia; e, palavra, que era bonito! Soberbo cenrio, vida, movimento e graa na representao (MP, cap. LVIII, p. 122).
Nos dois exemplos, h uma sugesto de superficialidade: no primeiro, Bento deixa transparecer que, para Brs brilhar, ele no precisa /ser/ alguma coisa, mas apenas /parecer/ diante de outros homens; no segundo, Lobo Neves reconhece que se interessa por tudo aquilo que suprfluo (Soberbo cenrio, vida, movimento e graa na representao) no universo da poltica. Volubilidade e superficialidade andam juntas em Memrias pstumas. Com rigor, existem trs sentimentos que se misturam na personalidade de Brs: a volubilidade (a falta de determinao do narrador), a superficialidade (sua tendncia trivialidade) e a ambio (sua glria de mandar, sua v cobia). O curioso que a 265 combinao dessas trs caractersticas explica um pouco os insucessos de Brs Cubas, afinal sua vaidade, seu desejo de ser reconhecido no era compatvel com suas atitudes. Passemos ento a comentar mais detidamente a vaidade de Brs. Todas as quatro acepes de vaidade no Houaiss so teis para as nossas reflexes. Vejamo-las:
1. qualidade do que vo, vazio, firmado sobre aparncia ilusria 2. valorizao que se atribui prpria aparncia, ou quaisquer outras qualidades fsicas ou intelectuais, fundamentada no desejo de que tais qualidades sejam reconhecidas ou admiradas pelos outros 3. avaliao muito lisonjeira que algum tem de si mesmo; fatuidade, imodstia, presuno, vanidade 4. coisa insignificante, futilidade; vanidade
Para analisar a vaidade, preciso recorrer s modalidades veridictrias, pois o sujeito vaidoso se preocupa mais com o /parecer/ do que com o /ser/. Dessa forma, ele quer /parecer/ alguma coisa, para que seu comportamento seja sancionado positivamente. A disposio da vaidade permanente e sua manifestao contnua, j que h uma predisposio constante do sujeito para obter reconhecimento alheio e o sujeito mostra isso a todo momento. A competncia do sujeito vaidoso que o leva ao /fazer/ muito variada: haver aqueles que conseguiro fazer com que todos acreditem na aparncia ilusria veiculada e haver outros no to hbeis assim. Por fim, um observador externo tem uma competncia reconhecida para presumir as atitudes do sujeito vaidoso, o que o torna to previsvel quanto o volvel e o superficial. J dissemos que o Emplasto Brs Cubas figurativizao da superficialidade do narrador. Mas, alm disso, ele a primeira referncia mais explcita vaidade de Brs. Ao analisar os motivos que o levaram a dedicar-se ao invento farmacolgico, ele afirma no captulo O emplasto:
Agora, porm, que estou c do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remdio, estas trs palavras: Emplasto Brs Cubas. Para que neg-lo? Eu tinha a paixo do arrudo, do cartaz, do foguete de lgrima. Talvez os modestos 266 me arguam esse defeito; fio, porm, que esse talento me ho de reconhecer os hbeis. Assim, a minha idia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o pblico, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: amor de glria (MP, cap. II, p. 25).
A sede de nomeada, o amor de glria j tinham aparecido na juventude de Brs, quando ele se bacharela:
Um grande futuro! Enquanto esta palavra me batia no ouvido, devolvia eu os olhos, ao longe, no horizonte misterioso e vago. Uma idia expelia outra, a ambio desmontava Marcela. Grande futuro? Talvez naturalista, literato, arquelogo, banqueiro, poltico, ou at bispo, bispo que fosse, uma vez que fosse um cargo, uma preeminncia, uma grande reputao, uma posio superior. (...) C me vou s fadigas e glria (...) (MP, cap. XX, p. 70).
As mesmas expresses do captulo II se fundem em Contanto que...:
(...) e a flor da hipocondria recolheu-se ao boto para deixar a outra flor menos amarela, e nada mrbida, o amor da nomeada, o emplasto Brs Cubas (MP, cap. XXVIII, p. 84).
Esse amor da nomeada outro nome para a vaidade, para a imodstia, para a fatuidade, para a futilidade, que, alis, atinge no s Brs, mas tambm os demais atores do enunciado, principalmente Lobo Neves. o caso da passagem a seguir, do captulo Confidncia:
Lobo Neves, a princpio, metia-me grandes sustos. Pura iluso! Como adorasse a mulher, no se vexava de mo dizer muitas vezes (...). E a confiana no parava a. De fresta que era, chegou a porta escancarada. Um dia confessou-me que trazia uma triste carcoma na existncia; faltava-lhe a glria pblica (MP, cap. LVIII, p. 121-122).
267 A Brs Cubas lhe faltava a mesma glria pblica:
Ao demais, eu galgara os quarenta anos, e no era nada, nem simples eleitor de parquia. Urgia fazer alguma cousa, ainda por amor de Virglia, que havia de ufanar-se quando visse luzir meu nome... (MP, cap. XCIX, p. 173).
A idia de fazer luzir o prprio nome reaparece em outro momento da narrativa:
A terceira fora que me chamava ao bulcio era o gosto de luzir (...) (MP, cap. CXVIII, p. 193).
No ltimo captulo do romance, o narrador reconhece que no luziu em vida, que no teve glria pblica, que no se regozijou com o amor da nomeada. Quem poderia dar vazo sua vaidade era o emplasto, mas no houve tempo para isso:
Divino emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os homens, acima da cincia e da riqueza, porque eras a genuna e direta inspirao do cu (MP, cap. CLX, p. 230).
Da mesma forma que a vaidade quase uma decorrncia da superficialidade a da volubilidade, a inveja muitas vezes se origina de um mpeto vaidoso. Principalmente no caso de Brs Cubas, que sempre se mostrou to egosta e competitivo. De todas as personagens do romance, aquela com quem o narrador mantm mais intensamente uma disputa, ainda que velada, Lobo Neves. Ambos eram movidos por sede de nomeada, por amor de glria, pelo desejo por uma posio superior e lutaram com afinco por uma vaga na cmara, por um lugar no ministrio e por Virglia. Por isso, no estranha a confisso de Brs no captulo Rotao e translao:
No momento em que eu terminava o meu movimento de rotao, conclua Lobo Neves o seu movimento de translao. Morria com o p na escada ministerial. Correu ao menos durante algumas semanas, que ele ia ser ministro; e pois que o boato me encheu de muita irritao e 268 inveja, no impossvel que a notcia da morte me deixasse alguma tranqilidade, alvio, e um ou dous minutos de prazer. Prazer muito, mas verdade; juro aos sculos que a pura verdade (MP, cap. CL, p. 222-223).
Todos os exemplos dados neste item acabam por aludir volubilidade, superficialidade e vaidade do narrador e de outros atores do enunciado, pois estes apresentam as mesmas caractersticas de Brs, como ocorre, por exemplo, com Lobo Neves e Bento Cubas. Ainda h um outro caso de vaidade cujas implicaes ajudaro a compreender o modo como as personagens do romance se relacionam. Vejamos. Quando Nh-lol morre, por ocasio da primeira entrada da febre amarela, Brs comenta a desolao de Damasceno, primeiro porque a filha havia morrido e segundo porque muitos convidados no foram ao enterro:
(...) dizia que a dor grande com que Deus o castigara fora ainda aumentada com a que lhe infligiram os homens. No me disse mais nada. Trs semanas depois tornou ao assunto, e ento confessou-me que, no meio do desastre irreparvel, quisera ter a consolao da presena dos amigos. Doze pessoas apenas, e trs quartas partes amigos do Cotrim, acompanharam cova o cadver de sua querida filha. E ele fizera expedir oitenta convites. Ponderei-lhe que as perdas eram to gerais que bem se podia desculpar essa desateno aparente. Damasceno abanava a cabea de um modo incrdulo e triste. Qual! gemia ele, desampararam-me. Cotrim, que estava presente: Vieram os que deveras se interessam por voc e por ns. Os oitenta viriam por formalidade, falariam da inrcia do governo, das panacias dos boticrios, do preo das casas, ou uns dos outros... Damasceno ouviu calado, abanou outra vez a cabea, e suspirou: Mas viessem! (MP, cap. CXXVI, p. 201).
269 A comparao da tristeza da perda da filha com a da ausncia de certas pessoas ao enterro da menina j , por si s, indcio de superficialidade e vaidade excessivas. Cenas como essa levam crena de que a preocupao com as aparncias uma tnica no romance, chegando ao paroxismo. Ao analisar as reaes de Damasceno, o narrador recorre a uma digresso narrativa:
(...) o homem vulgar que ouvisse a ltima palavra do Damasceno, no se lembraria dela, quando, tempos depois, houvesse de olhar para uma gravura representando seis damas turcas. Pois eu lembrei-me. Eram seis damas de Constantinopla, modernas, em trajos de rua, cara tapada, no com um espesso pano que as cobrisse deveras, mas com um vu tenussimo, que simulava descobrir somente os olhos, e na realidade descobria a face inteira. E eu achei graa a essa esperteza da faceirice muulmana, que assim esconde o rosto, mas no o esconde, e divulga a beleza. Aparentemente, nada h entre as damas turcas e o Damasceno; mas se tu s um esprito profundo e penetrante (e duvido muito que me negues isso), compreenders que, tanto num como noutro caso, surge a a orelha de uma rgida e meiga companheira do homem social... (MP, cap. CXXVII, p. 202).
No incio deste captulo, Brs mostra acreditar que no um homem vulgar durante um acesso de prepotncia:
Grande cousa haver recebido do cu uma partcula da sabedoria, o dom de achar as relaes das cousas, a faculdade de as comparar e o talento de concluir! Eu tive essa distino psquica; eu a agradeo ainda agora do fundo do meu sepulcro (MP, cap. CXXVII, p. 202).
Aps o auto-elogio da prpria competncia intelectual, Brs explica qual a relao entre a tristeza de Damasceno e as damas de Constantinopla:
Amvel Formalidade, tu s, sim, o bordo da vida, o blsamo dos coraes, a medianeira entre os homens, o vnculo da terra e do 270 cu; tu enxugas as lgrimas de um pai, tu captas a indulgncia de um Profeta. Se a dor adormece, e a conscincia se acomoda, a quem, seno a ti, devem esse imenso benefcio? A estima que passa de chapu na cabea no diz nada alma; mas a indiferena que corteja deixa-lhe uma deleitosa impresso. A razo que, ao contrrio de uma frmula absurda, no a letra que mata; a letra d vida; o esprito que objeto de controvrsia, de dvida, de interpretao, e conseguintemente de luta e de morte. Vive tu, amvel Formalidade, para sossego do Damasceno e glria de Muhammed (MP, cap. CXXVII, p. 202).
Vale a pena comentar os significados que o narrador atribui letra e ao esprito. A letra a formalidade, so as convenes, as normas sociais. O esprito a agitao, o desejo, o instinto, a pujana, a fora (Rodrigues, 1998, 299-300). O conflito entre a letra e o esprito parece ser entre os valores institucionalizados e as crenas individuais. E nas Memrias os atores quase sempre optam pela manuteno das normas sociais, ainda que seja de modo apenas superficial. A formalidade quase sempre se associa vaidade. um sentimento vaidoso que leva Damasceno a se incomodar com a dor que lhe infligiram os homens, simplesmente porque ele buscou no exatamente a consolao da presena dos amigos, mas sim a satisfao pessoal de sentir-se importante e respeitado, o que explica o fato de expedir oitenta convites ao enterro da filha. Em meio ao sofrimento provocado pelo esprito, Damasceno queria a recompensa da letra. No a obteve, e o descaso pela formalidade foi capaz da faz-lo ainda mais infeliz. Virglia um outro exemplo de que a letra d vida. No captulo A casinha, num momento em que pessoas desconfiam do caso adltero entre Brs e Virglia, o narrador prope amante uma fuga e recebe uma resposta negativa. Ento, ele faz a seguinte reflexo sobre o carter de sua amante:
Vi que era impossvel separar duas cousas que no esprito dela estavam inteiramente ligadas: o nosso amor e a considerao pblica. Virglia era capaz de iguais e grandes sacrifcios para conservar ambas as vantagens, e a fuga s lhe deixava uma (MP, cap. LXVIII, p. 136).
271 O amor de Virglia por Brs o esprito; a considerao pblica, a letra. A moa nem cogita a hiptese de sacrificar as normas sociais, mesmo que seja por causa de um grande amor. Esse o tipo de relacionamento que se constri entre as personagens do romance. Um dos poucos momentos de exceo prevalncia da letra sobre o esprito se d no captulo O menino pai do homem. Em sua infncia, Brs se deixa levar mais pelos instintos do que pelas convenes da sociedade:
Minha me doutrinava-me a seu modo, fazia-me decorar alguns preceitos e oraes; mas eu sentia que, mais do que as oraes, me governavam os nervos e o sangue, e a boa regra perdia o esprito, que a faz viver, para se tornar uma v frmula (MP, cap. XI, p. 45).
Mas durante a vida Brs aprende a conviver com a boa regra, ainda que seja de maneira vaidosa, superficial e indiferente. Ele passa a reconhecer a necessidade da letra para a vida social, a ponto de fazer uma apstrofe, ainda que sarcstica, Amvel Formalidade. Na verdade, Brs Cubas, no nvel do /parecer/, assume a relevncia das normas sociais, para sossego do Damasceno e glria de Muhammed, mas, no mbito do /ser/, no a admite. Como ator do enunciado, Brs respeita a letra; como ator da enunciao, ele se lhe mostra indiferente. Para uma definio da indiferena, comecemos com trs acepes da palavra no Houaiss:
2. falta de interesse, de ateno, de cuidado; descaso, desinteresse, negligncia 4.1. ausncia de interesse com relao a um ser ou aos homens em geral, especialmente pela pessoa em quem se inspira amor; frieza, desinteresse 5. sentimento de altivez; falta de considerao; desdm, menosprezo
A indiferena uma espcie de /querer no dever/ e /querer no saber/ . O sujeito indiferente pode at reconhecer a existncia de um /dever/ ou de um /saber/, mas ele prefere abrir mo disso e manter-se numa postura de desinteresse e, muitas vezes, de menosprezo em relao s normas sociais vigentes. A disposio da indiferena 272 permanente e sua disposio contnua, e um observador externo teria uma competncia reconhecida para reconhecer os atos do sujeito indiferente.
Adotando essa postura de indiferena, Brs acaba mostrando desprezo pelos comportamentos socialmente aceitos. Trata-se de um /no crer/ nos valores institucionalizados que pode chegar ao desdm ou frieza. Alis, mais do que ao /no crer/, suas atitudes se aproximam mesmo a um /fazer no crer/, pois ele procura convencer o narratrio da necessidade de romper com a moral vigente. No captulo A uma alma sensvel, por exemplo, logo aps narrar seu rpido relacionamento com Eugnia, sugerindo que a moa no teria muitas chances de tornar- se sua esposa, Brs supe uma crtica do narratrio e procura desfaz-la:
H a, entre as cinco ou dez pessoas que me lem, h a uma alma sensvel, que est decerto um tanto agastada com o captulo anterior, comea a tremer pela sorte de Eugnia, e talvez... sim, talvez, l no fundo de si mesma, me chame cnico. Eu cnico, alma sensvel? Pela coxa de Diana! esta injria merecia ser lavada com sangue, se o sangue lavasse alguma coisa nesse mundo (MP, cap. XXXIV, p. 92).
Nesse excerto, o narrador, falando alma sensvel, figurativizao de um narratrio mais prximo dos ideais romnticos, destila toda sua indiferena. Ao recorrer tese anti-romntica de que o sangue no lava coisa nenhuma nesse mundo, ele comea a mostrar seu tom de desdm, o que reforado pela exclamao mitolgica: a homonmia de coxa acaba adquirindo, nessa passagem, um sarcstico duplo sentido, devido referncia simultnea ao problema fsico de Eugnia e a uma parte do corpo de Diana. Brs Cubas poderia ter utilizado qualquer outra parte do corpo da deusa clssica em sua exclamao, mas o emprego justamente de coxa satiriza sua referncia mitolgica. A indiferena de Brs como ator da enunciao e seu presumvel respeito pela letra em detrimento do esprito como ator do enunciado estruturam as relaes entre os demais atores: tudo marcado pela superficialidade, pelo egosmo, mas ao mesmo tempo todos esto dando vazo ao prprio sentimento de vaidade, esperando sempre uma recompensa da considerao da pblica, do amor de glria, da sede de 273 nomeada, da glria pblica. Brs leva tudo isso ao extremo. A crtica que se faz a esse comportamento sobretudo do enunciador 77 . Assim, o cinismo do narrador refora a idia de que a verdade, nas Memrias pstumas de Brs Cubas, no absoluta, mas conflitante, desarmnica, polmica, relativa. Isso confirma, ao mesmo tempo, o contrato semitico presente no romance e sua proximidade com os valores da stira menipia, uma vez que h aquele efeito de inacabamento, de inconclusividade na narrativa. De fato, nas Memrias pstumas, para o enunciador, o
homem no monoltico em suas certezas, mas um ser que age segundo seus interesses, que altera suas posies (...) (Fiorin, 2004, p. 150).
Em Curto, mas alegre, a indiferena de Brs ainda mais explcita, quando o defunto autor pretende mostrar-se desinteressado do olhar da opinio (justamente o mesmo olhar que em vida tanto influenciava sua conduta):
O olhar da opinio, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o territrio da morte; no digo que ele no se estenda para c, e nos no examine e julgue; mas a ns que no se nos d do exame nem do julgamento. Senhores vivos, no h nada to incomensurvel como o desdm dos finados (MP, cap. XXIV, p. 76).
Esse descaramento pstumo, chamado pelo narrador de desdm dos finados, permite ao narrador assumir posies e justificar sentimentos que revelam grande descaso pela moral vigente, embora Brs-vivo sempre demonstre um apego s aparncias. o que acontece no final do captulo A propsito de botas, em que se fala sobre a sorte de Eugnia:
O que eu no sei se a tua existncia era muito necessria ao sculo. Quem sabe? Talvez um comparsa de menos fizesse patear a tragdia humana (MP, cap. XXXVI, p. 94);
77 Como ser analisado no ltimo item deste captulo. 274 ou no captulo Comigo, em que, num dilogo imaginrio, os pais de D. Plcida diriam alcoviteira:
Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristo e a sacrist naturalmente lhe responderiam: Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou no comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanh resignada, mas sempre com as mos no tacho e os dedos na costura, at acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia (MP, cap. LXXV, p. 145);
ou ainda no clebre aforismo do captulo Das negativas:
No tive filhos, no transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa misria (MP, cap. CLX, p. 230).
Essa mistura de indiferena e desdm em relao ao destino cruel de alguns atores do enunciado tambm aparece no captulo O almocreve e Um encontro, nos quais se confirma que a relao que Brs quer manter com os pobres de distncia e superioridade: por isso se arrepende de ter dado uma prata ao homem que lhe salvou vida e por isso faz questo de dar a nota menos limpa ao amigo de infncia que estava em situao financeira precria. O fato que Brs se caracteriza pela inconstncia, e suas atitudes bem como as das demais personagens ricas do romance esto vinculadas a um jogo de aparncias. O narrador, depois de morto, tem conscincia disso, o que explicaria sua postura de indiferena, mas no possvel precisar se os outros atores do enunciado e se Brs-vivo sabiam plenamente da superficialidade que caracterizava suas vidas. Dessa forma, analisando Brs como ator do enunciado e da enunciao, conclumos que suas formulaes tericas beiram o sarcasmo, que suas atitudes so volveis e que suas opinies revelam menosprezo pelas convenes que, paradoxalmente, ele respeita. A oscilao entre o /ser/ e o /parecer/, entre o dito e o mostrado, entre a impresso de certeza e a confiana na dvida acaba confirmando como o romance no edifica nem destri, no inflama nem regela e mais do que 275 passatempo e menos do que apostolado (MP, cap. IV, p. 28). O fragmento a seguir, extrado de O caso provvel, opera com essas questes:
Se esse mundo no fosse uma regio de espritos desatentos, era escusado lembrar ao leitor que eu s afirmo certas leis, quando as possuo deveras; em relao a outras restrinjo-me admisso da probabilidade (MP, cap. C, p. 111).
Aqui, o narrador sugere uma lucidez intelectual que ele, de fato, no possui. No universo da stira menipia incorporado pelas Memrias pstumas, no mbito do contrato semitico que define o romance, essa passagem serve para produzir efeitos de humor, pois Brs um admirador das idias frouxas, dos raciocnios interesseiros, das teses pseudocientficas e, nesse momento, atribuir a si cuidados epistemolgicos no pode ser levado a srio. Assim, o enunciador faz com que a presumvel franqueza do narrador funcione quase como uma autocrtica: parece que o narrador est reconhecendo sua fragilidade, relatividade e volubilidade. Na verdade, as aes e as idias de Brs comprovam o desprezo que ele tem em relao s vises de mundo institucionalizadas, ainda que, em vida, a v cobia tenha sido uma de suas constantes preocupaes. Mas o enunciador que procura mostrar que as relaes entre as personagens do romance incluindo Brs so marcadas pela superficialidade e pela vaidade. ele quem atribui aos atores do enunciado essas caractersticas, que, de to renitentes, deixam de funcionar como construo discursiva de um ator para se tornar a construo do discurso como um todo. Sendo assim, no o narratrio que possui capacidade para desvendar essas caractersticas; quem pode fazer isso o enunciatrio, que tem condies de perceber que as bravatas enunciativas do romance so apenas bravatas e no revelam nada sobre a verdade das coisas, na medida em que as Memrias pstumas se negam a funcionar como representao realidade, elegendo a dvida, a incerteza, o relativismo ideolgico, a volubilidade enunciativa como pilares da construo discursiva.
276 10. Humanitismo: razo, locura e egosmo
Humanitas o princpio. Mas no, no digo nada, tu no s capaz de entender isto, meu caro Rubio; falemos de outra cousa. (Machado de Assis, Quincas Borba)
A figura de Quincas Borba, o filsofo bufo de Memrias pstumas, aparece pela primeira vez no captulo Um salto. Trata-se de um momento em que Brs faz referncia s peraltices de sua infncia:
Uma flor, o Quincas Borba. Nunca em minha infncia, nunca em toda a minha vida, achei um menino mais gracioso, inventivo e travesso. Era a flor, e no j da escola, seno de toda a cidade. A me, viva, com alguma cousa de seu, adorava o filho e trazia-o amimado, asseado, enfeitado, com um vistoso pajem atrs, um pajem que nos deixava gazear a escola, ir caar ninhos de pssaros, ou perseguir lagartixas nos morros do Livramento e da Conceio ou simplesmente arruar, toa, como dous peraltas sem emprego. E de imperador! Era um gosto ver o Quincas Borba fazer de imperador nas festas do Esprito Santo. De resto, nos nossos jogos pueris, ele escolhia sempre um papel de rei, ministro, general, uma supremacia, qualquer que fosse. Tinha garbo o traquinas, e gravidade, certa magnificncia nas atitudes, nos meneios. Quem diria que... Suspendamos a pena; no adiantemos os sucessos (MP, cap. XIII, p. 55).
A interrupo pelas reticncias em Quem diria que... faz com que o narrador no conte, a esta altura da narrativa, o que acontecera ao amigo de infncia. No captulo Um encontro, fica-se sabendo que Quincas Borba esteve longe de se tornar rei, ministro, general:
Imaginem um homem de trinta e oito e quarenta anos, alto, magro e plido. As roupas, salvo o feitio, pareciam ter escapado ao 277 cativeiro da Babilnia; o chapu era contemporneo do de Gessler. Imaginem agora uma sobrecasaca, mais larga do que pediam as carnes, ou, literalmente os ossos da pessoa; a cor preta ia cedendo o passo a um amarelo sem brilho; o plo desaparecia aos poucos; dos oito primitivos botes restavam trs. (...) Aposto que no me conhece, Sr. Dr. Cubas? disse ele. No me lembra... Sou o Borba, o Quincas Borba. Recuei espantado... Quem me dera agora o verbo solene de um Bossuet ou de Vieira, para contar tamanha desolao! Era o Quincas Borba, o gracioso menino de outro tempo, o meu companheiro de colgio, to inteligente e abastado. Quincas Borba!(MP, cap. LIX, p. 123-124).
Quincas Borba havia-se tornado um morador de rua, mais precisamente do terceiro degrau das escadas de So Francisco, esquerda de quem sobe. Brs lhe promete um emprego, doa-lhe cinco mil ris e, aps a insistncia do amigo, v seu relgio ser roubado em meio a um caloroso abrao. Borba reaparece no captulo Uma carta extraordinria, quando ele envia uma carta a Brs, pedindo desculpas pelo emprstimo do relgio e aproveitando para lho restituir. Nesta missiva, o ex-mendigo, que recebera uma herana portentosa, anuncia o Humanitismo,
um novo sistema de filosofia, que no s explica e descreve a origem e a consumao das cousas, como faz dar um grande passo adiante de Znon e Sneca, cujo estoicismo era um verdadeiro brinco de crianas ao p (...) [desta] receita moral. (MP, cap. CXI, p. 165).
A partir deste momento, estreitam-se as relaes entre Brs e o amigo de infncia, e cada vez mais o narrador se encanta com a filosofia humanitista. Em O filsofo, Quincas Borba j revela que sua teoria
acomodava-se facilmente com os prazeres da vida, inclusive a mesa, o espetculo e os amores (MP, cap. CIX, p. 182). 278
Aqui, talvez haja uma das explicaes para Brs ter aceitado com tanto vigor a validade do Humanitismo. Parece que essa filosofia uma legitimao da busca do prazer e que, alm disso, no condena o egosmo, a volubilidade, o cinismo, a superficialidade e a vaidade. Aps explicar que
Humanitas (...) o princpio das cousas, no outro seno o mesmo homem repartido por todos os homens (MP, cap. CXVII, p. 190),
Quincas Borba comea a mostrar algumas decorrncias presumivelmente lgicas desse postulado:
Queres uma prova da superioridade do meu sistema? Contempla a inveja. No h moralista grego ou turco, cristo ou muulmano, que no troveje contra o sentimento de inveja. O acordo universal, desde os campos da Idumia at o alto da Tijuca. Ora bem; abre mo dos velhos preconceitos, esquece as retricas rafadas, e estuda a inveja, esse sentimento to subtil e to nobre. Sendo cada homem uma reduo de Humanitas, claro que nenhum homem fundamentalmente oposto a outro homem, quaisquer que sejam as aparncias contrrias. Assim, por exemplo, o algoz que executa o condenado pode excitar o vo clamor dos poetas; mas substancialmente Humanitas que corrige em Humanitas uma infrao da lei de Humanitas. O mesmo direi de um indivduo que estripa outro; uma manifestao da fora de Humanitas. Nada obsta (e h exemplos) que ele seja igualmente estripado. Se entendeste bem, facilmente compreenders que a inveja no seno uma admirao que luta, e sendo a luta a grande funo do gnero humano, todos os sentimentos belicosos so os mais adequados sua felicidade. Da vem que a inveja uma virtude (MP, cap. CXVII, p. 191).
Se a inveja uma virtude, o cinismo e a vaidade bem como o egosmo esto legitimados, pois aquele expressa o desprezo pelos valores institucionalizados (considerados preconceitos, retricas rafadas) e estes so base da competio, da 279 luta, dos sentimentos belicosos. John Gledson nota bem que passagens como a que transcrevemos sugerem que o Humanitismo funciona como
uma transposio para um contexto moral e humano, do princpio darwinista da sobrevivncia do mais apto; claro que nesse contexto ele significa simplesmente que os que tm poder tm sempre razo. Assinale-se que o argumento depende por inteiro da premissa repetida de que todo homem uma reduo da entidade maior, Humanitas; uma vez admitido isso, os indivduos podem, com justia, ser sacrificados para o progresso da coletividade (Gledson, 1999, p. 144).
A apresentao das fases do Humanitismo tambm estabelece relao com os cientificismos em voga no final do XIX. Veja-se mais uma explanao de Quincas Borba:
Conta trs fases Humanitas: a esttica, anterior a toda criao; a expansiva, comeo das cousas; a dispersiva, aparecimento do homem; e contar mais uma, a contractiva, absoro do homem e das cousas. A expanso, iniciando o universo, sugeriu a Humanitas o desejo de o gozar, e da a disperso, que no mais do que a multiplicao personificada da substncia original (MP, cap. CXVII, p. 190).
impossvel no notar neste fragmento
uma pardia do positivismo, sobretudo devido sua predileo pelas categorias e subdivises: a esttica, a expansiva, a dispersiva e a contrativa, que definem as vrias fases da vida do homem, ou, mas precisamente, de Humanitas, na Terra (Gledson, 1999, p. 143).
Depois da explanao inicial de Quincas Borba, que apresenta ao amigo as bases de sua doutrina, comeam a aparecer no romance os casos concretos que justificam a validade do Humanitismo. Algumas so formulaes de Borba, outras do prprio narrador. o que ocorre, por exemplo, no captulo O princpio de Helvetius, em que Brs assume diante de um conhecido que teve um caso adltero com Virglia:
280 Estvamos no ponto em que o oficial de marinha me arrancou a confisso dos amores de Virglia, e aqui emendo eu o princpio de Helvetius, ou, por outra, explico-o. O meu interesse era calar; confirmar a suspeita de uma cousa antiga fora provocar algum dio sopitado, dar origem a um escndalo, quando menos adquirir a reputao de indiscreto. Era esse o interesse; e entendendo-se o princpio de Helvetius de um modo superficial, isso o que devia ter feito. Mas eu j dei o motivo da indiscrio masculina: antes daquele interesse de segurana, havia outro, o do desvanecimento, que mais ntimo, mais imediato: o primeiro era reflexivo, supunha um silogismo anterior; o segundo era espontneo, instintivo, vinha das entranhas do sujeito; finalmente, o primeiro tinha o efeito remoto, o segundo prximo. Concluso: o princpio de Helvetius verdadeiro no meu caso; a diferena que no era o interesse aparente, mas o recndito (MP, cap. CXXXIII, p. 206).
Tomando esse princpio como
uma teoria do motivao humana fundada na sensao, de acordo com a qual somos levados a agir apenas pelo amor ao interesse pessoal e pelo desejo de evitar a dor (Blackburn, 1997, p. 180),
o raciocnio de Brs o de que a prudncia que, nesse caso, corresponderia ao desejo de evitar a dor e algum dio sopitado seria no admitir a relao amorosa com Virglia; no entanto sua vaidade fez com que a segurana desse lugar ao desvanecimento, de modo que Brs s conseguiu agir pelo amor ao interesse pessoal e recndito. Essa interpretao filosfica do narrador, embora no aparea vinculada diretamente s reflexes humanitistas, revela como Brs acredita que essa filosofia pode servir para justificar suas aes e pensamentos, da mesma forma que suas formulaes tericas procuravam faz-lo. Dessa forma, no estranho que, mesmo antes de o narrador tomar contato com o Humanitismo, ele j demonstre uma propenso a acreditar que os sentimentos de satisfao e felicidade podem se originar das situaes mais heterodoxas. o que ocorre no captulo A propsito de botas: 281
Ento considerei que as botas apertadas so uma das maiores venturas da terra, porque, fazendo doer os ps, do azo ao prazer de as descalar. Mortifica os ps, desgraado, demortifica-os depois, e a tens a felicidade barata, ao sabor dos sapateiros e de Epicuro (MP, cap. XXXVI, p. 93).
A felicidade barata no deixa de ser tambm a promessa do Humanitismo. Quincas Borba extrai das cenas mais banais concluses que procuram confirmar que Pangloss, o caluniado Pangloss, no era to tolo quanto sups Voltaire (MP, cap. CLIX, p. 229). o caso da luta de ces a que ele assiste junto de Brs Cubas e a partir da qual ele conclui:
(...) relembrou o objeto da disputa, concluiu que os ces tinham fome; mas a privao do alimento era nada para os efeitos gerais da filosofia. Nem deixou de recordar que em algumas partes do globo o espetculo mais grandioso: as criaturas humanas que disputam aos ces os ossos, e outros manjares menos apetecveis; luta que se complica muito, porque entra em ao a inteligncia do homem, com todo acmulo de sagacidade que lhe deram os sculos, etc (MP, cap. CXLI, p. 214).
A grandiosidade da disputa entre as criaturas humanas e os ces pode parecer ironia, mas os amigos realmente crem na beleza daquele espetculo. Borba vai ainda mais longe:
Pascal (...) diz que o homem tem uma grande vantagem sobre o resto do universo: sabe que morre, ao passo que o universo ignora-o absolutamente. Vs? Logo, o homem que disputa um osso a um co tem sobre este a grande vantagem de saber que tem fome; e isto que torna grandiosa a luta, como eu dizia. Sabe que morre uma expresso profunda; creio todavia que mais profunda a minhas expresso: sabe que tem fome. (...) Parece-me (se no vai nisso alguma imodstia), que a frmula de Pascal inferior minha, sem todavia 282 deixar de ser um grande pensamento, e Pascal um grande homem (MP, cap. CXLII, p. 215).
A certeza da prpria desgraa, da prpria morte, da prpria fome faz do homem um ser superior, uma vez que ele tem plena conscincia de suas necessidade e de suas privaes. Assim, ele pode ter prazeres nicos, como o de descalar botas, de disputar ossos com ces e de beneficiar racionalmente a algum:
No me podes negar um fato (...); que o prazer do beneficiador sempre maior que o do beneficiado. Que o benefcio? um ato que faz cessar certa privao do beneficiado. Uma vez produzido o efeito essencial, isto , uma vez cessada a privao, torna o organismo ao estado anterior, ao estado indiferente. Supe que tens apertado em demasia o cs das calas; para fazer cessar o incmodo, desabotoas o cs, respiras, saboreias um instante de gozo, o organismo torna indiferena, e no te lembras dos teus dedos que praticaram o ato (MP, cap. CXLIX, p. 221).
Nesta pasagem, um outro motivo de regozijo para o homem desabotoar o cs das calas. Dessa forma,
na exposio do humanitismo (...), seus exemplos se tornam cada vez mais concretos e grotescos. Na medida em que sua aplicao vida cotidiana se torna mais evidente, suas implicaes morais e histricas se fazem mais terrveis (Gledson, 1999, p. 145).
Para confirmar a teoria do benefcio, Borba continua valendo-se de ilustraes estapafrdias:
Por que que uma mulher bonita olha muitas vezes para o espelho, seno porque se acha bonita, e porque isso lhe d certa superioridade sobre uma multido de outras mulheres menos bonitas ou absolutamente feias? A conscincia a mesma cousa; remira-se a mido, quando se acha bela. Nem o remorso outra cousa mais do que 283 o trejeito de uma conscincia que se v hedionda. No esqueas que, sendo tudo uma simples irradiao de Humanitas, o benefcio e seus efeitos so fenmenos perfeitamente admirveis (MP, cap. CXLIX, p. 222).
Por essa teoria, a satisfao do beneficiador nasce da conscincia de sua superioridade. Para o Humanitismo, o egosmo, a vaidade, a superficialidade, a volubilidade esto, de fato, longe de merecer condenao. So expresses legtimas de Humanitas. Analogamente, a ingratido um sentimento menor, que no compatvel aos ensinamentos humanitistas, uma vez que s h persistncia do benefcio na memria do beneficiador, e no na do beneficiado. Por isso, as pessoas no devem se incomodar com uma ingratido, e sim alegrar-se com a superioridade que lhes permitiu cessar a privao a algum. Por fim, ainda preciso, para encerrar a anlise da apresentao do Humanitismo no romance, verificar as reflexes presentes no captulo Orgulho da servilidade. Quando um alienista, a pedido de Quincas Borba, visita Brs Cubas para avaliar a sanidade do narrador, ele faz uma observao, dizendo que em todas as pessoas existe um manaco ateniense que acredita que todos os navios entrados no Pireu so seus. A, o mdico aponta um criado de Brs, que sacudia tapetes janela, e mostra que tambm ele tem seu grau de mania:
De fato, era um dos meus criados que batia os tapetes, enquanto ns falvamos no jardim, ao lado. O alienista notou ento que ele escancarava as janelas todas desde longo tempo, que alara as cortinas, que devassara o mais possvel a sala, ricamente alfaiada, para que a vissem de fora, e concluiu: Este seu criado tem a mania do ateniense: cr que os navios so dele; uma hora de iluso que lhe d a maior felicidade da terra (MP, cap. CLIV, p. 226).
Quincas Borba, que era quem de fato precisava do auxlio de um alienista, no cr que o problema do criado seja o do manaco ateniense. Ento, o filsofo explica a Brs:
284 O que o teu criado tem um sentimento nobre e perfeitamente regido pelas leis do Humanitismo: o orgulho da servilidade. A inteno dele mostrar que no um criado qualquer. Depois chamou a minha ateno para os cocheiros de casa grande, mais empertigados que o amo, para os criados de hotel, cuja solicitude obedece s variaes sociais da freguesia, etc. E concluiu que era tudo a expresso daquele sentimento delicado e nobre, a prova cabal de que muitas vezes o homem, ainda a engraxar botas, sublime (MP, cap. CLVI, p. 226- 227).
O orgulho da servilidade a pedra de toque dessa filosofia que procura validar os mais ignbeis sentimentos e criar a impresso de haveria um mundo sem conflitos. Podemos concluir este item recorrendo novamente s palavras de Gledson:
O humanitismo no um pretexto conveniente para aes egostas; tambm proporciona ao adepto uma viso confortadora da sociedade e da histria. (...) Com exemplos desse tipo, Machado mostra (...) como pode ser fcil aceitar os grandes crimes da humanidade, uma vez encontrado um sistema apropriado para englob-los. No admira que o humanitismo seja o sistema de filosofia destinado a arruinar todos os demais sistemas, pois trata-se da justificao perfeita do egosmo (1999, p. 145). 285 11. O estilo das Memrias pstumas: uma hiptese de thos do enunciador
O que primeiro chama a ateno do crtico na fico de Machado de Assis a despreocupao com as modas dominantes e o aparente arcasmo da tcnica. Num momento em que Flaubert sistematizara a teoria do romance que narra a si prprio, apagando o narrador atrs da objetividade da narrativa; num momento em que Zola preconizava o inventrio macio da realidade, observada nos menores detalhes, ele cultivou livremente o elptico, o incompleto, o fragmentrio, intervindo na narrativa com bisbilhotice saborosa (...). Era uma forma de manter, na segunda metade do sculo XIX, o tom caprichoso de Sterne, que ele prezava; de efetuar os seus saltos temporais e brincar com o leitor. (Antonio Candido, Vrios escritos)
Vimos no ltimo item do captulo anterior que o thos do enunciador s pode ser captado a partir de uma totalidade de discursos, de um totus que leva a um unus e ao efeito de individuao enunciativa. Mas fato que um nico romance, de narrador- personagem, principalmente da complexidade discursiva das Memrias pstumas de Brs Cubas, pode oferecer indcios suficientes para intuir como se constri o ator da enunciao Machado de Assis. Neste item, analisaremos alguns desses indcios. Pelas sugestes de Maingueneau 78 , o thos pressupe um carter, uma voz e um corpo:
O enunciador deve legitimar seu dizer: em seu discurso, ele se atribui uma posio institucional e marca sua relao a um saber. (...) ele no se manifesta somente como um papel e um estatuto, ele se deixa tambm apreender como uma voz e um corpo (Charaudeau & Maingueneau, 2004, p. 220).
O enunciador uma posio institucional, um papel. Ao ser revestido semanticamente, ele adquire um estatuto e marca sua relao com um saber, manifestando um carter e se deixando apreender como uma voz e um corpo.
78 Ver nota 32 do captulo anterior. 286 O carter, a voz e o corpo so constitutivos do efeito de individuao que caracteriza o estilo, que, por sua vez, define o thos. Esses elementos so extrados das escolhas do enunciador e reconstrudos a partir delas. assim que se notam as recorrncias do uso, mapeveis no enunciado, que permitem identificar o thos. Comecemos pelo carter. Como esse termo costuma, na lngua geral, estar carregado de uma conotao moral, preciso retomar sua etimologia, para aproxim-lo palavra caracterstica e entender o carter de acordo com duas acepes do Houaiss:
5. Derivao: por extenso de sentido. trao distintivo de uma pessoa ou coisa 6. (s.XVII) qualidade peculiar; especificidade, cunho
O carter que o thos manifesta so os traos distintivos, so as qualidades peculiares, so as especifidades ideolgicas do enunciador. Essas caractersticas podem ser resumidas sob a forma de temas, que so apreendidos pela semntica narrativa e convertidos em outros elementos abstratos na semntica discursiva. Dessa forma, estudar o carter do enunciador exige a anlise dos temas que caracterizam seu tom discursivo, isto , seu modo de enunciar.
O tom est sempre associado a um carter (...), [que] corresponde a este conjunto de traos psicolgicos que o leitor-atribui espontaneamente figura do enunciador, em funo de seu modo de dizer. (...) Bem entendido, no se trata aqui de caracterologia, mas de esteretipos que circulam em uma cultura determinada (Maingueneau, 1997, p. 47).
preciso sempre fazer a ressalva de que o estudo do carter implica o levantamento das caractersticas enunciativas que se apreendem do enunciado. No se trata de discutir a psicologia do enunciador, como se ele tivesse uma personalidade predefinida e algumas caractersticas comportamentais prvias a partir das quais o discurso se organizaria. O que importa , em funo do seu modo de dizer, encontrar as especificidades ideolgicas do ator da enunciao, tomando como referncia os valores, os esteretipos que circulam em uma cultura determinada. 287 Um primeiro elemento do carter machadiano que se capta a partir das Memrias pstumas uma espcie de ceticismo lcido. Para o Houaiss, o ceticismo a
doutrina segundo a qual o esprito humano no pode atingir nenhuma certeza a respeito da verdade, o que resulta em um procedimento intelectual de dvida permanente e na abdicao, por inata incapacidade, de uma compreenso metafsica, religiosa ou absoluta do real
A impossibilidade de uma compreenso metafsica, religiosa ou absoluta do real, bem ao gosto da experimentao da verdade da stira menipia (Bakhtin, 1997b, p. 114), elege a dvida, o inacabamento, a inconclusividade como pilar da construo discursiva. No h, nas Memrias, o tom emocionado dos romnticos ou o moralizante dos realistas, pois esses discursos se caracterizam pela mera aceitao ou pela mera negao dos valores dominantes em determinado meio social, o que leva impresso de certeza, de acabamento, ou seja, crena de que existe uma verdade a ser buscada. Assim, no h neles o esprito ambivalente da carnavalizao (Fiorin, 2006b, p. 96). O ceticismo aproxima-se assim do cinismo filosfico, pois o ctico, assim como o cnico,
tambm um verdadeiro militante antiaxiolgico (...), que se esfora para minar toda axiologia que tenha alguma ligao com uma limitao social (Fontanille, 1993, p. 59).
O ctico, ao minar toda axiologia e ao adotar como nota o Petit Robert a postura de desconfiana em relao s opinies e aos valores institucionalizados, assume uma atitude de provocao, que pode chegar derriso. Assim, quando Brs Cubas termina o romance dizendo no ter tido filhos, para no transmitir a nenhuma criatura o legado da nossa misria (MP, cap. CLX, p. 230), mais do que uma autocrtica, uma vez que o narrador admite fazer parte da miservel humanidade, estamos diante do ceticismo do enunciador, que sugere, por meio do comportamento dos atores da enunciao e do enunciado instalados por ele, que a perpetuao da espcie no vale a pena. O fato de as relaes amorosas entre as personagens se apoiarem, muitas vezes, num jogo de aparncias, alm de se subordinarem s convenes sociais, tambm 288 alvo do olhar ctico do enunciador, que no apresenta sentimentos elevados no romance. Tudo rebaixado, o que explica a falta de verdades em Memrias pstumas: no h certezas na arte, na religio, na cincia, na poltica, na filosofia. a dvida permanente que impera. Por mais estranho que parea primeira vista, o ceticismo veiculado pelo carter vem acompanhado de uma boa dose de lucidez, entendida, consoante o Houaiss, como a
capacidade de conhecer, compreender e aprender; inteligncia, conscincia, razo; clareza de idias e de expresso; acuidade para o que relevante; perspiccia, preciso
essa acuidade para o que relevante, espcie de s sei que nada sei, que permite ao enunciador ser ctico. Sua fineza na observao da conduta do narrador e das demais personagens o afasta das certezas absolutas. certo que algum pode, por inata capacidade, no compreender a realidade, o que seria um caso de ignorncia. No o que acontece com o ctico. Este, por conhecer a inconstncia do esprito humano, recusa-se a aceitar a possibilidade de existncia de uma verdade superior. Dessa forma, o enunciador das Memrias, pelo cruel retrato que faz das personagens do romance, aproxima-se mesmo do ideal ctico. O ceticismo lcido acompanhado da derriso uma interpretao temtica aceitvel para as figuras da pena da galhofa e da tinta da melancolia presentes na advertncia ao leitor nas Memrias. O enunciador no se contenta em ser ctico e, algumas vezes, como veremos, ele chega ao sarcasmo e mordacidade, o que contribui para a produo do efeito de humor no romance. Uma decorrncia do carter ctico e lcido do enunciador o pessimismo, tomado, de acordo com o Houaiss, como a
tendncia para ver e julgar as coisas pelo lado mais desfavorvel; disposio de quem sempre espera pelo pior
O narrador e os demais atores do enunciado no costumam ser pessimistas. Ao contrrio, levados pelo sentimento de vaidade, esto espera de um reconhecimento, de 289 um saldo, de um mundo de Pangloss. Brs Cubas chega a assumir isso em Questo de botnica, num momento em que ele cr na prpria felicidade:
Digam o que quiserem dizer os hipocondracos: a vida uma cousa doce. Foi o que eu pensei comigo, ao ver Sabina, o marido e a filha descerem de tropel as escadas, dizendo muitas palavras afetuosas para cima, onde eu ficava no patamar, a dizer-lhes outras tantas para baixo. Continuei a pensar que, na verdade, era feliz. Amava-me uma mulher, tinha a confiana do marido, ia por secretrio de ambos, e reconciliava-me com os meus. Que podia desejar mais, em vinte e quatro horas? (MP, cap. LXXXII, p. 152-153)
Aqui, o pessimismo no cabe ao narrador, mas ao enunciador, que sanciona negativamente essa crena na felicidade, pois h aqui uma ruptura entre o primeiro e o segundo nvel enunciativo. Mas nem sempre ocorre essa ciso semntica: por exemplo, no captulo Chimne, qui let dit? Rodrigue, qui let cru?, aps Virglia na frente do filho defender enfaticamente a fidelidade conjugal, o narrador recorre a uma figura que refora o legado da nossa misria:
O filho sentia-se satisfeito, ouvindo aquela palavra digna e forte, e eu perguntava a mim mesmo o que diriam de ns os gavies, se Buffon tivesse nascido gavio... (MP, cap. VI, p. 32)
O enunciador que veicula esse pessimismo bem-humorado. Em outra passagem, do captulo Oblivion, quando o narrador reconhecer a passagem inexorvel do tempo, acentua-se sua volubilidade, pois o enunciado parece sugerir que o narrador est misturando ceticismo, derriso e lucidez ao dirigir-se a uma dama imaginria:
Compreende que este turbilho assim mesmo, leva as folhas do mato e os farrapos do caminho, sem exceo nem piedade; e se tiver um pouco de filosofia, no inveja, mas lastima as que lhe tomaram o carro, porque tambm elas ho de ser apeadas pelo estribeiro OBLIVION. 290 Espetculo, cujo fim divertir o planeta Saturno, que anda muito aborrecido (MP, cap. CXXXV, p. 208).
No entanto, esses fragmentos apontam para a enunciao de 1 grau, o significa que o ceticismo, a lucidez, o pessimismo e a derriso so de responsabilidade do enunciador. A suposta aproximao entre o narrador e essas caractersticas apenas confirma sua volubilidade. Fenmeno semelhante tambm ocorre no captulo A pndula:
Usualmente, quando eu perdia o sono, o bater da pndula fazia-me muito mal; esse tic-tac soturno, vagaroso e seco parecia dizer a cada galope que eu ia ter um instante menos de vida. Imaginava ento um velho diabo, sentado entre dous sacos, o da vida e da morte, a tirar as moedas da vida para d-las morte, e a cont-las assim: Outra de menos... Outra de menos... Outra de menos... Outra de menos... (MP, cap. LIV, p. 116-118).
Para comprovar que esse ceticismo no pode ser atribudo ao narrador, basta notar que esse sentimento no constante, j que captulos como Questo de botnica apresentam um Brs Cubas satisfeito com a vida. O narrador , pois, volvel. No caso do enunciador, o ceticismo permanente, definindo-lhe o thos, pois o enunciador muitas vezes satiriza Brs por este no ter a perspiccia para perceber que no se pode atingir nenhuma certeza a respeito da verdade, o que faz com que o pessimismo zombeteiro e o ceticismo lcido do enunciador se faam ainda mais presentes. Essa combinao compatvel com o relativismo que caracteriza o thos machadiano nas Memrias pstumas. Tanto a definio filosfica quanto a tica de relativismo, presentes do Houaiss, sustentam essa compatibilidade:
2. Rubrica: filosofia. ponto de vista epistemolgico (adotado pela sofstica, ceticismo, pragmatismo etc.) que afirma a relatividade do conhecimento humano e a incognoscibilidade 291 do absoluto e da verdade, em razo de fatores aleatrios e/ou subjetivos (tais como interesses, contextos histricos etc.) inerentes ao processo cognitivo 3. Rubrica: tica. doutrina segundo a qual os valores morais no apresentam validade universal e absoluta, diversificando-se ao sabor de circunstncias histricas, polticas e culturais
Ambas as definies aproximam relativismo e ceticismo, o que legitima a hiptese de que o enunciador, ao negar a validade universal dos valores morais, revela o tom de descrena que caracteriza o esprito ctico. Esse esprito pode vir acompanhado de sisudez ou de derriso. Machado normalmente prefere a segunda. Dessa forma, a recusa em aceitar a existncia da verdade ou da moral absoluta, base do ceticismo e do relativismo, acaba levando ao cinismo. No nono item deste captulo, falamos da indiferena do narrador, cujas marcas esto presentes explicitamente no enunciado. O enunciador, por meio desse narrador indiferente e desdenhoso, acaba demonstrando todo seu cinismo. Vejamos como possvel apreend-lo. Para chegar a uma definio do cinismo, considere-se a segunda acepo da palavra no Houaiss:
2. Derivao: por extenso de sentido. atitude ou carter de pessoa que revela descaso pelas convenes sociais e pela moral vigente; impudncia, desfaatez, descaramento
O Petit Robert ainda acrescenta que o cinismo a
atitude que exprime abertamente os sentimentos, as opinies que se chocam com a moral ou as idias institucionalizadas, geralmente com uma inteno de provocao
Pode-se considerar, inicialmente, que o cinismo se estrutura por meio de uma polmica entre o /querer/ e o /dever/, pois o sujeito cnico quer desestabilizar as convenes sociais e a moral vigente, que lhe impem o /dever ser/ e o /dever fazer/. Assim, h um /querer/ que se sobrepe ao /dever/ e um desejo individual em 292 oposio s imposies coletivas. A disposio do cinismo durvel e sua manifestao episdica. A competncia do observador externo para identificar a dosagem modal (Greimas & Fontanille, 1993, p. 86) que caracteriza o sujeito cnico suposta, visto que o cinismo, a desfaatez, as atitudes provocativas sempre tem um qu de imprevisibilidade 79 . Com efeito, no
caso do cinismo, a totalidade dos valores sociais e civilizados est sendo recusada, e no resta outra possibilidade que uma assuno estritamente individual (...) (Fontanille, 1993, p. 69),
pois a conduta do sujeito cnico encerra o conflito da individualidade contra a coletividade (p. 63). Ao aceitar o cinismo
como um comportamento moral, como uma maneira de agir e se exprimir em sociedade, que ridiculariza as convenincias e a moral estabelecida (p. 57)
e considerando que essa maneira de agir e se exprimir individual, particularizada, pode-se inferir que, por meio do efeito de humor subjacente ao cinismo, o sujeito cnico quer provocar um riso pessimista e destruidor, como algum que visa desestabilizao global da cultura (p. 58). Tanto assim que o percurso do cinismo
se completa quando, alm da posio /no-cultura/, o cnico adota a posio /natureza/ (p. 60).
Analisando a questo das modalidades epistmicas, o cinismo estaria ligado a um /no crer/, na medida em que o cnico procura alinhar-se natureza, descrendo dos valores institucionalizados. Mas Fontanille nota que o
cinismo no somente o estado daquele que no cr em nada, mas o fazer daquele que quebra a fidcia, um fazer no crer, uma dissuaso desesperada (p. 61-62).
79 Fontanille (1993, p. 68), em sua anlise semitica do cinismo, fala explicitamente sobre a imprevisibilidade das condutas que o caracteriza.
293
Nas Memrias pstumas, como h indcios para identificar um enunciador ctico, lcido, pessimista, zombeteiro e partidrio do relativismo, o cinismo lhe assenta bem, pois todas essas caractersticas convergem para um carter cnico. O cinismo do enunciador manifesta-se pela maneira como ele focaliza os atores do enunciado e da enunciao. Comecemos pelos atores do enunciado. As personagens das Memrias pstumas so predominantemente vaidosas e egostas, pois
predominam (...) percursos de obteno de prestgio social por meio da realizao de casamentos ou do recebimento de heranas (...), [pois] a mercantilizao das relaes, a ambio e a acumulao so todos valorizados euforicamente (Cruz Jnior, 2006, p. 83-90)
Assim, no romance,
no h lugar (...) para o devaneio ou para ideais, mas apenas, e to somente, para o clculo e o interesse. No um mundo de poetas, mas de estrategistas (...) (Cruz Jnior, 2006, p. 318).
Os atores do enunciado so, de fato, guiados pelo clculo e pelo interesse e obedecem mais a um universal comrcio de coraes do que a impulsos afetivos. Enquanto vivo, Brs Cubas comportou-se como seus pares. Depois de morto, como narrador do romance, a vaidade e o egosmo passam a ser acompanhados de superficialidade e volubilidade ou, pelo menos, o ator da enunciao Brs Cubas fica mais consciente dessas caractersticas. O enunciador torna-se cnico na medida em que suas personagens so frias, calculistas, interesseiras, superficiais e volveis, e seu narrador, alm de tudo disso, indiferente. Instalar atores seja do enunciado, seja da enunciao que se comportam discursivamente dessas formas deixa transparecer um carter provocador, cuja desfaatez, cujo descaramento, cuja impudncia sugere desapreo s convenes sociais e moral vigente. J mostramos que o cinismo nasce da afirmao de um desejo de individualizao. Como estratgia para obter isso, est o riso, uma forma de humor que se constitui como 294
uma enunciao, que apresenta a particularidade de oscilar entre o passional e o humorstico (Fontanille, 1993, p. 58).
Para compreender a existncia passional-humorstica do cinismo, Fontanille (1993, p. 67) imagina um percurso dentro do seguinte quadrado semitico:
Aps negar a tirania coletiva, o riso cnico chega insubmisso individual e, depois, por implicao, liberdade representada pela excentricidade, pela excluso, pela singularidade. O percurso da individualidade singularidade, que aumenta a intensidade da manifestao do cinismo, possui quatro estgios:
1. Criao de uma tenso imediata: a brutalidade 2. Encenao da representao veridictria ou altica 3. Dessensibilizao: o desprendimento / a separao 4. Desmoralizao: o escndalo (Fontanille, 1993, p. 72-73).
Em outras palavras, o que ocorre :
1. O cinismo parte de uma atitude de brutalidade, pois prega radicalmente o desrespeito s convenincias. 2. O cinismo passa a encenar a provocao, celebrando uma crtica caricatural dos valores institucionalizados. 3. O cinismo pressupe a insensibilidade daqueles que riem de tudo, principalmente dos que riem de quem no ri. 295 4. O cinismo chega imoralidade, s atitudes intolerveis, ao mximo possvel de provocao.
A viso de mundo cnica, que se constri na transformao da brutalidade em escndalo, engendra um efeito de singularidade (Fontanille, 1993, p. 63), posterior ao de individualizao. Estamos diante de um sujeito que rejeita a tirania coletiva e faz de tudo para romper com os padres estabelecidos, propondo uma nova forma de enxergar a realidade. As modalidades do /ser/ e do /parecer/ nos permitem entender melhor essa mudana de ponto de vista.
A confrontao com a teoria da linguagem a este respeito exemplar, pois esta ltima faz da imanncia conceitual o ser e da manifestao figurativa o parecer; o cinismo inverte a relao veridictria, em nome de um realismo radical. O riso cnico convoca ento uma outra face das coisas, das condutas e dos valores, ele coloca em evidncia a duplicidade das atitudes e, como dizem os filsofos, ele a m conscincia da civilizao. Como operao veridictria, ele consagra a alteridade do real em relao cultura (Fontanille, 1993, p. 62).
Essa valorizao do /parecer/ uma forma de assumir o relativismo subjacente ao cinismo. Alm disso, essa inverso da relao veridictria compatibiliza-se bem com o princpio carnavalizador da menipia. Por fim, essa duplicidade das atitudes pode ser tomada como o elemento fundador de um estilo cnico.
Todos os filsofos (...) concordam em reconhecer que o cinismo (...) uma maneira de ser no mundo, um estilo de vida e de comportamento. De um ponto de vista semitico, o estilo pode ser considerado, num primeiro momento, como uma deformao coerente do discurso, reconhecvel dentro de um conjunto de comportamentos significantes, quer dizer, caracterstico do fazer semitico de um dado sujeito (...) (Fontanille, 1993, p. 68).
Assim o /fazer/ semitico do enunciador cnico das Memrias pstumas se caracteriza por um amplo antidogmatismo, que procura negar todas as convenes, inclusive a conveno lingstica (Fontanille, 1993, p. 58), interessando-se pelas condutas excntricas, singulares, valorizando a metaenunciao, as digresses e as referncia explcitas e muitas vezes sarcsticas ao narratrio, recorrendo s citaes 296 intertextuais truncadas, num processo caracterizado pelas violaes do discurso, como assinala Bakhtin (1997b, p. 117). Essas constantes negaes e recusas, esse antidogmatismo garante a deformao coerente do discurso que define o estilo cnico. O enunciador, nas Memrias pstumas, pe termo s convenes enunciativas, embaralhando os nveis, fazendo o narrador passar-se por enunciador, criando um simulacro de uma autobiografia, instalando constantemente narratrios e pseudonarratrios, transformando alguns em atores do enunciado, empregando metalepses. Fica mais fcil compreender o fazer semitico do sujeito da enunciao machadiano se analisarmos a quarta acepo de dogmatismo do Houaiss:
4. Derivao: por extenso de sentido. qualquer pensamento ou atitude que se norteia por uma adeso irrestrita a princpios tidos como incontestveis
O dogmatismo est em franca oposio ao relativismo, ao ceticismo e ao cinismo. Por isso, absolutamente coerente com a espessura semntica do enunciador que ele denegue a possibilidade de haver princpios tidos como incontestveis. Dessa forma, o antidogmatismo de Machado se manifesta como uma necessidade enunciativa, pois ele essencial para a manuteno da coerncia do thos mostrado pelas Memrias pstumas. Uma das manifestaes discursivas do antidogmatismo a metaenunciao, com o enunciador recorrendo aos expedientes da modalidade autonmica e valorizando as no-coincidncias do dizer. Quando conta a histria e a comenta, emprega recursos discursivos e os justifica, vale-se de um modo de dizer e o explica, volta atrs nas prprias escolhas, utiliza preteries, Brs est a servio do enunciador, que procura chamar ateno sobre os mecanismos de funcionamento da linguagem e, mais do que isso, sobre o fato de que o romance uma construo lingstica, e no um decalque da realidade. O contrato semitico que comentamos no sexto item , portanto, antidogmtico, pois refuta tanto a objetividade de quem acredita que a obra deve espelhar o real quanto a subjetividade de quem supe que o texto precisa manifestar uma viso de mundo mais pessoal ou emocional. O contrato semitico nega, assim, as duas maneiras consagradas de observar o mundo, pondo-se em rota de coliso com o romance naturalista e com o 297 romance romntico, por exemplo. Por sua vez, a metaenunciao, que revela a dimenso inevitavelmente dialgica do discurso (Maingueneau & Charaudeau, 2004, p. 327), apresenta uma enunciao que se realiza e se avalia simultaneamente, abolindo da mesma maneira que o contrato semitico a impresso, o preceito, o quase dogma de que possa haver certezas absolutas ou verdades monolticas na representao discursiva do mundo. O emprego reiterado de digresses, caracterstico do estilo brio das Memrias pstumas, tambm chama ateno para o antidogmatismo enunciativo do romance. Como dissemos no terceiro item, em vez de valorizar os sobressaltos da fbula e o efeito de suspense deles decorrente, o enunciador prefere destacar a trama, misturando narrativa principal cartas (como em A um crtico), inscries fnebres (em Epitfio), recursos grficos inusitados (em O velho dilogo de Ado e Eva e De como no fui ministro dEstado) e narrativas, descries e trechos dissertativos intercalares, numa fuso de discursos tambm comum na menipia (Bakhtin,1997b, p. 117). O dilogo com o narratrio, j analisado no quinto item, igualmente corrobora o carter antidogmtico do enunciador, pois essa constante interlocuo no configura apenas um caso de funo de direo ou de comunicao genettiana, como se o narrador pretendesse captar a benevolncia de um presumvel leitor, mas sim uma manifestao textual de heterogeneidade enunciativa, por meio da qual ocorre uma incorporao polifnica de outras vozes ao discurso, ainda que seja para refut-las e satiriz-las. Assim, como se o leitor ganhasse estatuto de interlocutor na narrativa, pois ele passa a ser uma espcie de co-narrador, que fala, que discute, que condena, que concorda, que tem voz, aumentando a importncia que habitualmente se atribui ao narratrio no enunciado. O excesso de erudio do enunciador, que no se priva de recorrer s citaes truncadas, como vimos no stimo item, possui na totalidade do romance um efeito pardico, quase sarcstico, primeiro porque o narrador no tem competncia intelectual para apresentar tantas citaes e aluses (o que funciona como indcio de ruptura semntica entre os dois primeiros nveis enunciativos) e segundo porque o excesso de referncias histricas, literrias e mitolgicas acaba por desautoriz-las, afinal elas so to numerosas que impossvel dar-lhes coerncia discursiva plena. Eis a mais uma marca do antidogmatismo do enunciador. 298 Sintetizando o que se disse sobre o carter do thos machadiano, encontramos nas Memrias pstumas certos traos recorrentes de comportamento discursivo, como o ceticismo, a lucidez, o pessimismo, a derriso, o relativismo, o cinismo e o antidogmatismo, o que se manifesta pelo fim das convenes enunciativas e pelo uso reiterado da metaenunciao, das digresses, da conversa sarcstica com o narratrio e das citaes intertextuais truncadas. Mas o carter apenas um dos trs elementos em que se apia o thos. Passemos a discutir a noo de voz. Para Maingueneau, existe em todo gnero do discurso uma vocalidade fundamental, pois o
texto est sempre relacionado a algum, uma origem enunciativa, uma voz que atesta o que dito (2001, p. 139).
Se o thos pressupe um tom discursivo, certo que a voz contribui para veicular esse tom. Dessa maneira, a
instncia que assume o tom de uma enunciao evidentemente no coincide com o autor efetivo da obra. Trata-se, de fato, dessa representao do enunciador que o co-enunciador deve construir a partir de ndices de vrias ordens fornecidos pelo texto. Essa representao desempenha um papel de fiador que se encarrega da responsabilidade do enunciado (2001, p. 139).
A noo de voz leva ao tom e, por isso, permite que se apreendam alguns dos traos que definem o thos. Enquanto o carter permite uma anlise dos temas que caracterizam o comportamento discursivo do enunciador, a voz tem uma dimenso concreta e sensorial, uma vez que ela
vibra como um indistinto fluxo de vitalidade, como um confuso impulso para o querer-dizer, para o exprimir, ou seja, para o existir. A sua natureza essencialmente fsica, corprea; est relacionada com a vida e com a morte, com a respirao e com o sono; emana dos mesmos rgos que presidem alimentao e sobrevivncia (Bologna, 1987, p. 58).
299 Essa fora corprea, vital e impulsiva da voz ajuda a revelar pelo modo de dizer como o enunciador vai adquirindo espessura semntica. A apreenso e a anlise da voz pelo enunciatrio essencial para precisar o thos discursivo. Nas Memrias pstumas, a voz do enunciador baixa, controlada, no h gritos, expresses de espanto ou manifestaes incontidas de tristeza e alegria. Machado tem um domnio cerebral sobre o fluxo de vitalidade da voz, sobre o confuso impulso para o querer-dizer. Por isso, a ironia que est presente nos trs nveis enunciativos e permeia todo o discurso no espalhafatosa, no faz gargalhar, no produz um efeito de humor bufo. A voz machadiana seria, pois, aquela
que se destina ao homem bem educado, ao galante freqentador da sociedade mundana, precisamente o oposto da selvagem, excessiva, animalesca e monstruosa vocalidade do ventrloquo ou do profeta. No a voz que clama no deserto mas, pelo contrrio, a voz que sussurra no salo (Bologna, 1987, p. 80).
Se, no nvel do carter, o thos machadiano contesta as convenes sociais, descr das verdades absolutas e despreza a moral vigente, o mesmo no se pode dizer da voz. A voz machadiana se casa bem com a figura do sussuro no salo, pois no h excessos, h respeito letra e h uma entonao adequada aos padres da etiqueta. Essa discrepncia est longe de ser uma contradio. A combinao entre o carter ctico e a voz baixa e irnica amplifica o alcance crtico do thos cnico. O enunciador mostra, pela voz, conhecer as normas, para poder, pelo carter, desestabiliz-las. Da a importncia que o dizer indireto e delicado, que os significados implcitos adquirem no romance. Vejamos um exemplo. Aps o primeiro beijo adltero entre Brs e Virglia, o narrador fica refletindo sobre o acontecimento e se recorda de mais um de seus momentos de felicidade:
As fantasias tumultuavam-me c dentro, vinham umas sobre outras, semelhana de devotas que se abalroam para ver o anjo-cantor das procisses. No ouvia os instantes perdidos, mas os minutos ganhados. De certo tempo em diante no ouvi cousa nenhuma, porque o meu 300 pensamento, ardiloso e traquinas, saltou pela janela fora e bateu as asas na direo da casa de Virglia. A achou ao peitoril de uma janela o pensamento de Virglia, saudaram-se e ficaram de palestra. Ns a rolarmos na cama, talvez com frio, necessitados de repouso, e os dous vadios ali postos, a repetirem o velho dilogo de Ado e Eva (MP, cap. LIV, p. 118).
Logo em seguida, vem o captulo O velho dilogo de Ado e Eva, em que por meio de pontos finais, exclamaes e interrogaes, os pensamentos de Brs e Virglia entram em acordo. H certamente uma sugesto sexual nestes dois captulos, reforada pelo emprego do pronome Ns no ltimo pargrafo transcrito, que pode indicar que Virglia e Brs Cubas rolavam cada um na sua cama ou os dois no mesmo leito. O que certo que, independentemente da interpretao que se faa, a voz de salo do enunciador faz com que a referncia ao amor ertico no passe de uma insinuao discursiva. Para Rodrigues, Machado usou o grafismo por decoro (1998, p. 288), como, alis, seria esperado da voz machadiana. Semelhante explorao do recurso grfico se d no captulo De como no fui ministro dEstado, em que a seqncia de pontos finais sugere, ao mesmo tempo, que no h nada a ser dito, pois o ttulo do captulo basta, e que a carreira poltica de Brs chegou ao fim. O incio do captulo seguinte, Que explica o anterior, confirma essa voz de salo:
H cousas que melhor se dizem calando; tal a matria do captulo anterior. Podem entend-lo os ambiciosos malogrados. Se a paixo do poder a mais forte de todas, como alguns inculcam, imaginem o desespero, a dor, o abatimento do dia em que perdi a cadeira da cmara dos deputados. Iam-se-me as esperanas todas; terminava a carreira poltica (MP, cap. CXL, p. 211-212).
So muitos os exemplos que comprovam essa voz baixa, irnica, delicada, protocolar de Machado, que prefere o silncio aos arroubos e aos escndalos. Esse captulo exemplar para reforar essa hiptese, pois, mesmo diante da enorme frustrao de ver sua carreira poltica ruir, o enunciador faz com que Brs se controle, e seu tom ainda de equilbrio. 301 Percebe-se nas Memrias pstumas uma ordenao social, um enunciador que sabe agir ao menos em relao palavra, voz, entonao do dizer de acordo com os valores institucionalizados. Na verdade, tambm em relao ao corpo, o terceiro elemento sobre o qual se estrutura o thos, h em Machado uma conteno, uma maneira de se comportar tpica dos sales. Analisemos ento o corpo machadiano.
Tal como a disciplina social procede a arrumao dos indivduos pelo espao, ordenando-os hierarquicamente e funcionalmente, a arte da arrumao pe-se em prtica tambm sobre o corpo humano (em cuja imagem se inspira, no por acaso, a metfora do corpo social e do poltico) (Bologna, 1987, p. 80).
Essa arrumao dos indivduos pelo espao leva em conta que o enunciador tem um corpo que corresponde a uma maneira de habitar o espao social e pressupe um modo de se vestir e se movimentar (Maingueneau, 2001, p. 139), pois esse corpo
no oferecido ao olhar, (...) no uma presena plena, mas uma espcie de fantasma induzido pelo destinatrio como correlato de sua leitura (Maingueneau, 1997, p. 47).
Da mesma forma que o carter e a voz, o corpo do enunciador reconstrudo pelo enunciatrio a partir das marcas presentes no enunciado. Podemos aproximar a noo de corpo ao conceito de hxis corporal de Bourdieu, entendido como uma pronunciao de classe, isto , como um estilo de vida que se manifesta pelo corpo (1982, p. 90). Bourdieu exemplifica tudo isso, comentando as diferenas
entre a boca fechada, presa, quer dizer, tensa e censurada, e por isso feminina, e a boca, larga e francamente aberta, fendida, quer dizer, descontrada e livre, e por isso masculina 80 (1982, p. 90-91).
A primeira boca aproxima-se de um ideal burgus, que
80 Em francs, h uma diferena entre as prprias palavras empregadas: bouche e gueule.
302 encontra dentro das postura fsicas de tenso e conteno (...) os ndices corporais das disposies perfeitamente gerais respeito dos outros e do mundo (1982, p. 91).
J a segunda boca
est associada s disposies viris que, de acordo com o ideal popular, encontram seu princpio na certeza tranqila da fora que exclui as censuras, quer dizer, a prudncia e a as astcias tanto quanto a etiqueta, e que permite mostrar-se natural, [como] a franca manifestao (...) dos prazeres elementares (1982, p. 91-92).
A boca machadiana , pois, feminina. Seu corpo contido, nunca gargalha, apenas ri. No h, nele, a franca manifestao dos prazeres elementares, mas o respeito s disposies perfeitamente gerais de comportamento social. Alis, o corpo no chega mesmo a ser individual. Numa anlise antropolgica sobre as sociedades primitivas e as comunidades rurais indo-europias, Gil defende que
o corpo de que nos falam os selvagens no corpo individual: ele continuamente investido pelos outros corpos da comunidade, por meio da palavra, dos gestos, das expresses de afeto, dos jogos, dos contatos, das carcias, ou de outras atividades sociais (1995, p. 223).
Esse corpo comunitrio, que age sob a influncia dos outros, , em Machado, o corpo burgus, de quem conhece as etiquetas dos sales e o comportamento das elites e, por isso, sabe conter-se. Com efeito, o corpo do enunciador machadiano, ao se colocar numa relao de oscilao entre a tenso e a conteno, como sugeriu Bourdieu, aproxima-se ao conceito proposto por Tatit, para quem a semiotizao do corpo s possvel se retormarmos as precondies tensivo-fricas para a produo do sentido, quando h
um quase-sujeito em interao com uma sombra de valor, como se pairasse, em profundidade, um pressentimento das atraes posteriormente modalizadas (1997, p. 38).
303 Assim, o corpo nasce das modulaes tensivas do nvel fundamental e, quando discursivizado, reflete essas modulaes. Em relao ao enunciador machadiano, desde o incio do processo de semiotizao, ocorre uma tentativa de controlar os impulsos da imprudncia e dos prazeres elementares, como se esse corpo contido fosse uma manifestao textual, uma projeo concreta de um actante tensivo que, como unidade do ser, j buscava a continuidade e que, ao se projetar sobre o enunciado, obtm o reencontro do ser com a prpria unidade (Tatit, 1997, p. 42). Dessa forma, enquanto a voz origem enunciativa, o corpo quase-sujeito tensivo. Como voz e corpo so essenciais para definir o tom que caracteriza o thos, tem-se que esses dois elementos ao lado do carter do existncia ao enunciador, que deixa de ser uma posio actancial e passa a ser um ator, de fato, semantizado, discursivizado, cuja produo enunciativa pode ser apreendida e avaliada em relao aos valores sociais. Trata-se de uma volta idia de que sempre h um destinador psico- scio-histrico do discurso, que reconstrudo a partir dos enunciados, como analisamos no primeiro captulo desta tese. A combinao entre o carter ctico, a voz baixa e o corpo contido delimita o thos cnico de Machado. Temos, aqui, a tentao de perguntar: se a voz fosse alta, e se o corpo fosse espalhafatoso, mantendo-se o mesmo carter ctico, no haveria um tom ainda mais crtico na obra machadiana? Pode ser que sim. Mas o fato que o cinismo do enunciador , como j sugerimos, ainda mais forte, justamente porque, em relao voz e ao corpo, h um respeito pelas convenes. Respeito que, nesse contexto, adquire um sentido irnico, sarcstico, mordaz, uma vez que o carter as despreza de maneira retumbante. Machado prefere a crtica cnica panfletria. Alis, os temas da ironia, do sarcasmo e da mordacidade podem servir para explicar a relao entre o carter, de um lado, e a voz e o corpo, de outro, na constituio do thos machadiano. Haveria uma intensificao do efeito de zombaria que se daria do seguinte modo:
ironia ! sarcasmo ! mordacidade
A ironia produziria um efeito de humor a partir da distino entre o que se diz no enunciado e se sugere na enunciao. De acordo com o Houaiss, o sarcasmo corresponderia ironia custica, enquanto a mordacidade seria atribuda a quem excessivamente rigoroso no modo de criticar ou enxergar as coisas. Assim, o 304 sarcasmo mais intenso que a ironia prototpica, e a mordacidade uma ampliao do efeito crtico do sarcasmo. H ironias nas Memrias pstumas que no chegam a ser sarcsticas ou mordazes. Retomemos alguns exemplos. A ironia simples ocorre no captulo Chimne, qui let dit? Rodrigue, qui let cru?:
O estranho levantou-se e saiu. Era um sujeito, que visitava todos os dias para falar do cmbio, da colonizao e da necessidade de desenvolver a viao frrea; nada mais interessante para um moribundo (MP, cap. VI, p. 31).
J no captulo O verdadeiro Cotrim, ocorre uma ironia custica, em que o narrador apresenta o cunhado como um contrabandista de escravos vaidoso, violento, avaro e interesseiro. Aqui, h sarcasmo, e no um simples efeito de humor. Por fim, h mordacidade em Comigo, quando o narrador imagina o que os pais de D. Plcida lhe diriam se ela lhes perguntasse por que foi chamada ao mundo:
Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou no comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanh resignada, mas sempre com as mos no tacho e os dedos na costura, at acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia (MP, cap. LXXV, p. 145);
Nesses trs exemplos, h indcio de um thos cnico, cujo carter ctico e pessimista se mistura voz irnica e ao corpo contido. No h gargalhada, h riso. No h grito, h sussurro. No h espalhafato, h conteno. E tudo isso acompanhado de descrena e desdm e, em alguns casos, de sarcasmo e at mordacidade. Retomando tudo que dissemos neste item, seria possvel resumir as caractersticas do thos machadiano encontrado nas Memrias pstumas na seguinte tabela:
305 Ator da enunciao sugerido pelas Memrias pstumas de Brs Cubas thos apreendido: cnico, amante de condutas excntricas CARTER VOZ CORPO Cinismo " Ceticismo lcido Pessimismo Derriso Relativismo Antidogmatismo (fim das convenes enunciativas) Baixa (voz de salo) " Ironia Sarcasmo Mordacidade Dizer delicado e indireto Significados implcitos
Contido " Riso sem gargalhadas Cumplicidade com o modo burgus de agir e se movimentar, com os comportamentos socialmente valorizados
Mas o estilo e o thos s podem ser confirmados por uma totalidade de discursos. Vejamos ento se todas essas caractersticas so encontradas nos demais romances machadianos. Eis o assunto do captulo seguinte.
306
Captulo 3: De Ressurreio ao Memorial: a confirmao do thos
307 1. O carter machadiano: do cinismo ao fim das convenes enunciativas
(...) o cinismo do enunciador no uma de suas caractersticas entre outras, mas o princpio que rege seu comportamento, especialmente se o termo for considerado no em sua verso, digamos, vulgar, mas se for relembrada sua origem filosfica. (Dilson Ferreira da Cruz Jnior, O thos do enunciador nos romances de Machado de Assis: uma abordagem semitica)
O thos apreendido a partir das Memrias pstumas de Brs Cubas poderia ser resumido na expresso estilo cnico. Como aponta Discini, o estilo remete totalidade (2003, p. 57) e por meio de dele que se constri um thos. Assim, o cinismo que as Memrias pstumas sugerem precisa ser confirmado pelos demais romances que integram a obra machadiana. Comeando nossa anlise pelo carter, podemos dizer que os percursos narrativos principais dos nove romances de Machado apresentam grandes semelhanas. Em sua tese, Cruz Jnior chega seguinte concluso a respeito disso:
A anlise dos nove romances de Machado indicou a reiterao de uma configurao discursiva constituda por um programa narrativo central de aquisio de valores descritivos. O objeto sempre figurativizado como ascenso social ou obteno de prestgio social (...) (Cruz Jnior, 2006, p. 117).
Dessa maneira, o comportamento dos atores do enunciado , em linhas gerais, caracterizado pela ambio e pela vaidade. A supervalorizao do /parecer/ e do gosto de luzir que notamos em Brs Cubas tambm se manifesta nas demais narrativas. Em A mo e a luva, por exemplo, os pensamentos de Guiomar deixam isso muito claro. Para ela, o casamento , simultaneamente, uma possibilidade de ascenso econmica e a chance de brilhar socialmente:
308 Pedia amor, mas no o quisera fruir na vida obscura; a maior das felicidades da terra seria para ela o mximo dos infortnios, se lha pusessem num ermo. Criana, iam-lhe os olhos com as sedas e as jias das mulheres que via na chcara contgua ao pobre quintal de sua me; moa, iam-lhe do mesmo modo com o espetculo brilhante das grandezas sociais. Ela queria um homem que, ao p de um corao juvenil e capaz de amar, sentisse dentro em si a fora bastante para subi-la aonde a vissem todos os olhos (ML, cap. XIII, p. 98).
Em Quincas Borba, a preocupao do casal Palha com questes financeiras os obriga a perdoar a indiscrio adltera de Rubio:
Mas como se ho de cortar as relaes de uma vez? Fechar-lhe a porta, mas no digo tanto; basta, se queres, aos poucos... Era uma concesso; Palha aceitou-a; mas imediatamente ficou sombrio, soltou a mo da mulher, com um gesto de desespero. Depois, agarrando-a pela cintura, disse em voz mais alta do que at ento: Mas, meu amor, eu devo-lhe muito dinheiro. Sofia tapou-lhe a boca e olhou assustada para o corredor. Est bom, disse, acabemos com isto. Verei como ele se comporta, e tratarei de ser mais fria... Nesse caso, tu que no deves mudar, para que no parea que sabes o que se deu. Verei o que posso fazer (QB, cap. L, p. 86-87).
Por fim, em Esa e Jac, alm da competio exagerada entre Pedro e Paulo, que sempre pressupe ambio e vaidade, outras personagens tm sede de nomeada, como acontece com Santos, ao cobiar o palcio Nova-Friburgo:
Para Santos a questo era s possu-lo, dar ali grandes festas nicas, celebradas nas gazetas, narradas na cidade entre amigos e inimigos, cheios de admirao, de rancor ou de inveja (EJ, cap. IX, p. 39);
ou com D. Cludia, argumentando em favor da vida longe da corte: 309
Era to bom chegar provncia! Tudo anunciado, as visitas a bordo, o desembarque, a posse, os cumprimentos... Ver a magistratura, o funcionalismo, a oficialidade, muita calva, muito cabelo branco, a flor da terra, enfim, com suas cortesias longas e demoradas, todas em ngulo ou em curva, e os louvores impressos (EJ, cap. XXX, p. 74).
Ocorre que tanto nos casos em que o narrador tambm ator do enunciado, como nas situaes em ele se mantm apenas no plano da enunciao, no h condenaes explcitas a esse comportamento vaidoso, arrivista e ambicioso. Isso ocorre porque, no
plano do enunciado, a ascenso sempre vista como um valor positivo; portanto, eufrico: todos os actantes desse nvel desejam ascender socialmente, de um modo ou de outro, mesmo que pertenam ao grupo dos dominantes. No entanto, (...) quando se atenta para o nvel da enunciao, o quadro diferente, pois essa instncia no lana o mesmo olhar para essas condutas, o que acaba por opor, por meio de estratgias muito diversas, a enunciao e o enunciado. O que visto de forma neutra ou positiva pelo narrador sancionado negativamente pelo enunciador (Cruz Jnior, 2006, p. 118).
Esses programas narrativos de aquisio de prestgio social so rechaados pelo enunciador, o que se percebe pelo seu ceticismo, pelo seu pessimismo e pelo seu relativismo, alm de sua insistncia em apontar a superficialidade e o egosmo das atitudes humanas. E tudo isso reforado pela indiferena com que os narradores dos nove romances machadianos apresenta e analisa esses programas. Desde o primeiro pargrafo de Ressurreio, por exemplo, j se nota o pessimismo de Machado ao comentar o dia de ano-bom:
Tudo nos parece melhor e mais belo, fruto de nossa iluso, e alegres com vermos o ano que desponta, no reparamos que ele tambm um passo para a morte (RE, cap. I, p. 57).
310 Esse pessimismo faz com que o narrador v apresentando a superficialidade como uma conduta habitual dos seres humanos. Ningum est livre desse olhar crtico. Moreirinha um desses atores do enunciado rasos que povoam a obra machadiana:
Ao esprito de Moreirinha repugnavam as preocupaes graves. (...) Dos mil episdios da vida de certa classe, no havia gazeta melhor informada que o amante de Ceclia. Os novos amores de uma, os arrufos de outra, o dito chistoso dessa, a aventura daquela, tudo ele sabia em primeira mo. No lhe perguntassem por estrias nem crises polticas; mas a moblia com que Fulano presenteara a certa dama, a ceia equvoca em que Sicrana chegara a beber champagne por uma botina, esse era domnio seu (...) (RE, cap. XIV, p. 133).
O final do romance, que mostra a infelicidade casmurra de Flix, a duvidar reiterada e obcecadamente da fidelidade de Lvia, tem uma estrutura quase dissertativa, em que o uso do presente epistmico amplia o alcance do ceticismo do narrador em relao a Flix:
Dispondo de todos os meios que o podiam fazer venturoso, segundo a sociedade, Flix essencialmente infeliz. A natureza o ps nessa classe de homens pusilnimes e visionrios, a quem cabe a reflexo do poeta: perdem o bem pelo receio de o buscar. No se contentando com a felicidade exterior que o rodeia, quer haver essa outra das afeies ntimas, durveis e consoladoras. No a h de alcanar nunca, porque seu corao, se ressurgiu por alguns dias, esqueceu na sepultura o sentimento de confiana e a memria das iluses (RE, cap. XXIV, p. 180).
Semelhantemente a Moreirinha, o Jorge de A mo e a luva tambm apresenta boa dose de superficialidade, com o agravante de que ele ainda um parasita social. Aps mostr-lo como uma pessoa prdiga, de comportamento afetado e com idias chochas por dentro (ML, cap. VII, p. 58), o narrador diz:
311 Tais eram os defeitos aparentes de Jorge. Outros havia, e desses, o maior era um pecado mortal, o stimo. O nome que lhe deixara o pai, e a influncia da tia podiam servir-lhe nas mos para fazer carreira em alguma coisa pblica; ele, porm, preferia vegetar toa, vivendo do peclio que dos pais herdara e das esperanas que tinha na afeio da baronesa. No se lhe conhecia outra ocupao (ML, cap. VII, p. 58).
Ainda em A mo e a luva, a relao amorosa de Guiomar e Lus Alves, alicerada menos no amor do que no clculo, na ambio e na convenincia social, exemplar do tipo de relacionamento afetivo que se d na obra machadiana. Trata-se de um pragmtico amor primeira vista:
As duas ambies tinham-se adivinhado, desde que a intimidade as reuniu. O proceder de Lus Alves, sbrio, direto, resoluto, sem desfalecimentos, nem demasias ociosas, fazia perceber moa que ele nascera para vencer, e que a sua ambio tinha verdadeiramente asas, ao mesmo tempo que as tinha ou parecia t-las o corao. Demais, o primeiro passo do homem pblico estava dado; ele ia entrar em cheio na estrada que leva os fortes glria. Em torno dele ia fazer-se aquela luz, que era a ambio da moa, a atmosfera que ela almejava respirar. Estvo dera-lhe a vida sentimental, Jorge a vida vegetativa; em Lus Alves via ela combinadas as afeies domsticas com o rudo exterior (ML, cap. XV, p. 107-108).
A convenincia que aproxima o racionalismo audacioso de Lus Alves e a vaidade egosta de Guiomar pode muito bem ser representada pelas figuras da mo e da luva. O narrador explicita essa convenincia no ltimo pargrafo do romance, quando, aps um ms de casados, Lus Alves e Guiomar conversam sobre as motivaes que fizeram com que eles se aproximassem:
Guiomar, que estava de p defronte dele, com as mos presas nas suas, deixou-se cair lentamente sobre os joelhos do marido, e as duas ambies trocaram o sculo fraternal. Ajustavam-se ambas, como 312 se aquela luva tivesse sido feita para aquela mo (ML, cap. XIX, p. 132).
Se houvesse a remota hiptese de algum leitor mais desavisado no ter entendido o ttulo do segundo romance machadiano, o narrador fez questo de deixar tudo s claras no ltimo perodo de A mo e luva. Logo no incio de Helena, com a morte do conselheiro Vale, toma-se contato com duas personagens, muito semelhantes aos demais egostas e superficiais atores do enunciado de Machado. Quando D. rsula e Estcio ficam sabendo que o conselheiro tinha uma filha fora do casamento e que no apenas fazia dela uma de suas herdeiras, como tambm exigia que a irm e o filho recebessem Helena em casa, como parenta que era, a egosta D. rsula fica furiosa:
D. rsula reprovou de todo o ato do conselheiro. Parecia-lhe que, a despeito dos impulsos naturais e licenas jurdicas, o reconhecimento de Helena era um ato de usurpao e um pssimo exemplo. A nova filha era, no seu entender, uma intrusa, sem nenhum direito ao amor dos parentes; quando muito, concordaria em que se lhe devia dar o quinho da herana e deix-la porta. Receb-la, porm, no seio da famlia e de seus castos afetos, legitim-la aos olhos da sociedade, como ela estava aos da lei, no o entendia D. rsula, nem lhe parecia que algum pudesse entend-lo (HE, cap. II, p. 26-27).
sintomtico o emprego do substantivo usurpao pelo narrador. De acordo com o ponto de vista da tia de Estcio, os castos afetos da famlia e os olhos da sociedade no permitiam que Helena tivesse direito ao amor dos parentes. Ao contrrio, ela merecia ser deixada porta, a despeito de quaisquer licenas jurdicas. J Estcio menos egosta que superficial. Mais disposto a aceitar a nova irm na famlia e assim cumprir as decises testamentrias do pai, o rapaz sabia conviver como poucos com as exigncias da vida galante. A poltica o aborrecia profundamente, o que fazia com ele fosse indiferente ao rudo exterior (HE, cap. II, p. 30). O interesse de Estcio era pela matemtica e pela vida de salo: 313
Tal era o filho do conselheiro; e se alguma coisa h ainda que acrescentar, que ele no cedia nem esquecia nenhum dos direitos e deveres que lhe davam a idade e a classe em que nascera. Elegante e polido, obedecia lei do decoro pessoal, ainda nas menores partes dela. Ningum entrava mais corretamente numa sala; ningum saa mais oportunamente. Ignorava a cincia das nugas, mas conhecia o segredo de tecer um cumprimento (HE, cap. II, p. 30).
A expresso o segredo de um cumprimento tem um tom de ironia, como se o pessimista enunciador, por meio de seu indiferente narrador, estivesse a debochar dessa preocupao excessiva de Estcio com as boas maneiras e com a etiqueta social. Mas o retrato mais cruel de Helena o de Dr. Camargo. Amigo do conselheiro Vale, Camargo fazia de tudo para que sua filha Eugnia se casasse com Estcio. A relao do pai com a filha consistia num amor violento, fraco e cego (HE, cap. XIV, p. 105). Trata-se praticamente de uma manifestao da Teoria do benefcio das Memrias pstumas, uma vez que esse sentimento de Camargo
era uma maneira que o pai tinha de amar-se a si prprio. Entrava naquilo uma soma larga de fatuidade. Menos graciosa, Eugnia seria, talvez, menos amada. Ele contemplava-a com o mesmo orgulho com que o joalheiro admira o adereo que lhe saiu das mos. Era a ternura do egosta; amava-se na prpria obra (HE, cap. XIV, p. 105).
Essa fatuidade, porm, estava longe de ser inofensiva. Camargo no poupa esforos e chantagens para realizar o casamento e para transformar o futuro genro num homem pblico:
O casamento era muito, mas no bastava. Camargo cuidara na carreira poltica de Estcio, como um meio de dar certo relevo pblico ao da filha, e, por um efeito retroativo, a ele prprio, cuja vida fora tanto ou quanto obscura (HE, cap. XIV, p. 106).
314 O efeito retroativo de que fala o narrador combina com a ternura do egosta. Alis, em Helena, embora haja romanescas surpresas narrativas, os atores do enunciado agem sobremaneira pelo clculo. Mesmo Salvador, o pai biolgico de Helena, a despeito de sua trgica histria de vida, demonstra uma conduta marcada pelo clculo quando, numa carta filha, recomenda-lhe cuidado diante da desconfiana de Estcio:
O Estcio esteve comigo, logo depois que daqui saste a ltima vez. Entrou desconfiado (...). Interrogou-me; respondi conforme pedia o caso. Supondo que ele soubesse de tuas visitas, no lhe ocultei a minha pobreza; era o meio de atribu-las a um sentimento de caridade. (...) Conta-me o que h, pobre filha do corao; no me escondas nada. Em todo caso, procede com cautela. No provoques nenhum rompimento (...) (HE, cap. XXIV, p. 166).
As oraes imperativas do final do fragmento sugerem como Salvador defende a necessidade de Helena manter-se como filha do conselheiro Vale. Entre o amor filial e o futuro economicamente seguro, ele no hesita em optar pelo segundo. a lgica das aes em Machado. Em Iai Garcia, os exemplos no diferem muito do que encontramos nos trs primeiros romances machadianos. Jorge, por exemplo, mesmo tendo se martirizado na Guerra do Paraguai, aceitando com isso as imposies de Valria, manifesta a mesma superficialidade de um Moreirinha ou de um Estcio:
No era profundo; abrangia mais do que penetrava. Sobretudo, era uma inteligncia terica; para ele, o praxista representava o brbaro. Possuindo muitos bens, que lhe davam para viver farta, empregava uma partcula do tempo em advogar o menos que podia apenas o bastante para ter o nome no portal do escritrio e no almanaque de Laemmert (IG, cap. II, p. 32).
Essa preguia intelectual, por sua vez, semelhante do homnimo de A mo e a luva e constitui outro trao de comportamento renitente das personagens machadianas. Mas o ator do enunciado apresentado com mais requinte no romance no 315 Jorge, e sim Iai Garcia. ela que, ao desconfiar de um caso amoroso pretrito entre a madrasta e Jorge, sente-se na necessidade de proteger o pai de uma improbabilssima traio:
O que se passou naquele crebro ainda verde, mas j robusto, foi uma resoluo sem plano. Deslindar o vnculo esprio era o essencial e urgente, no cogitou no modo. Sua inocncia, assim como lhe dissimulava toda extenso possvel do mal, assim tambm lhe encobria as asperezas e os bices da execuo. Era o corao que lhe designava esse papel de anjo guardador. Natureza simples e intata, ia direito ao fim sem o temor que d a experincia e a contemplao da vida. Quem sabe? No conhecia a hipocrisia, mas acabava de suspeit-la; comeava talvez, a aprend-la (IG, cap. X, p. 110).
O aprendizado da hipocrisia, to til ao jogo social dos romances machadianos, faz de Iai uma mulher cada vez mais determinada. Aps sugerir seu interesse por Jorge e, assim, solapar qualquer resqucio da relao entre ele e Estela, o rapaz fica atordoado com firmeza de resoluo e com a emoo da moa. O narrador ento revela os pensamentos de Jorge:
Podia ser que todos aqueles atrevimentos encobrissem um clculo, o clculo da ambio, que intentasse trocar a beleza pelo benefcio de uma posio ostensiva e superior. Quando essa suspeita lhe brotou no esprito, Jorge no sentiu diminuir a admirao nem a estima; porquanto, a ambio, se ambio havia, parecia ser de boa raa. Mas era impossvel combinar o clculo com as lgrimas daquela tarde, e ele as sentira quentes, silenciosas, e no podia crer que uma vida quase adolescente possusse j a arte da hipocrisia (IG, cap. XIV, p. 150).
Acontece que o captulo X j mostrara que Iai Garcia conhecia a arte da hipocrisia, de modo que seu choro durante a conversa com Jorge, embora fosse um tanto ambguo, tinha nascido da inteno de desfazer aquele vnculo esprio entre seu pretendente e sua madrasta. 316 Muitas das observaes do narrador sobre Iai confirmam o carter ctico do enunciador. A certa altura, ao comentar a velocidade com que a menina aprendera a jogar xadrez, o narrador afirma:
Das qualidades necessrias ao jogo de xadrez, Iai possua as duas essenciais: vista pronta e pacincia beneditina; qualidades preciosas na vida, que tambm um xadrez, com seus problemas e partidas, umas ganhas, outras perdidas, outras nulas (IG, cap. XI, p. 123)
A metfora que associa a vida ao xadrez funciona como uma figurativizao que confirma o carter ctico do enunciador, que v a vida como um jogo cheio de problemas e que, s vezes, no d em nada. Essa postura de resignao simultaneamente confirmada e negada no final do romance, no momento em que Iai e Jorge vo ao cemitrio visitar o tmulo de Lus Garcia:
No primeiro aniversrio da morte de Lus Garcia, Iai foi com o marido ao cemitrio, a fim de depositar na sepultura do pai uma coroa de saudades. Outra coroa havia sido ali posta, com uma fita em que se liam estas palavras: A meu marido. Iai beijou com ardor a singela dedicatria, como beijaria a madrasta se ela lhe aparecesse naquele instante. Era sincera a piedade da viva. Alguma cousa escapa ao naufrgio das iluses (IG, cap. XVII, p. 191).
Ao dizer que alguma coisa escapa ao naufrgio das iluses, o narrador alude firmeza de Estela, que, mesmo diante de tentao de reviver o amor proibido com Jorge, conseguiu sublim-lo, apoiando a deciso da enteada de casar-se com ele e mostrando amor e respeito pelo marido morto. Mas o fato que essa atitude nobre ainda que motivada por um orgulho exacerbado muito pequena diante do naufrgio das iluses, expresso que se casa bem com o pessimismo, o ceticismo e o relativismo que caracterizam o fazer discursivo do enunciador. Os quatro romances posteriores s Memrias pstumas mantm os mesmos traos definidores do thos machadiano. 317 Nas dedicatrias e advertncias dos romances, comum, por meio de uma metalepse, o enunciador pela boca de um narrador apresentar-se como responsvel pela totalidade das narrativas de um escritor, o que at certo ponto natural, uma vez que os prefcios so um lugar em que o primeiro nvel enunciativo se manifesta mais abertamente. Com Machado no diferente. Ocorre que, em Quincas Borba, essa metalepse aparece no corpo do texto do romance:
Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favor de ler as Memrias pstumas de Brs Cubas, aquele mesmo nufrago da existncia, que ali aparece, mendigo, herdeiro inopinado e inventor de uma filosofia (QB, cap. IV, p. 23).
Fenmeno parecido s se d entre Esa e Jac e Memorial de Aires, em que a idia de que h um enunciador responsvel pela totalidade da obra machadiana tambm aparece explicitamente marcada no enunciado. Em Quincas Borba, se o comparamos aos quatro romances anteriores s Memrias pstumas, h mais indcios da indiferena do narrador e do ceticismo, do pessimismo e do relativismo com que o enunciador apresenta a superficialidade e o egosmo das condutas dos atores do enunciado. Das muitas personagens do romance que tm seus arroubos de vaidade, destacamos trs: Rubio, Carlos Maria e o Major Siqueira. O protagonista, aps salvar uma criana que tinha atravessado a rua sem olhar para os lados e estava prestes a ser atropelada, v a notcia dessa boa ao impressa nos jornais. Num primeiro momento, a modstia o impede de regozijar-se com a publicao do fato. Num segundo, sua vaidade fala mais alto:
Passou ao banho, vestiu-se, penteou-se, sem esquecer a bisbilhotice da folha, acanhado com a publicao de um negcio, que ele reputava mnimo, e ainda mais pelo encarecimento que lhe dera o escritor, como se tratasse de dizer bem ou mal em poltica. Ao caf, pegou novamente na folha (...). Aqui confessou Rubio que bem podia crer na sinceridade do escritor. (...) Rubio interrompeu as reflexes para ler ainda a notcia. Que era bem escrita, era. Trechos havia que releu com muita satisfao. O 318 diabo do homem parecia ter assistido cena. Que narrao! que viveza de estilo! Alguns pontos estavam acrescentados, confuso de memria, mas o acrscimo no ficava mal. (...) Rubio foi agradecer a notcia ao Camacho, no sem alguma censura pelo abuso de confiana, mas uma censura mole, ao canto da boca. Dali foi comprar uns tantos exemplares da folha para os amigos de Barbacena. Nenhuma outra transcreveu a notcia; ele, a conselho do Freitas, f-la reimprimir nos a-pedidos do Jornal do Comrcio, interlinhada (QB, cap. LXVII, p. 109-110).
Aqui, ouve-se a voz da sede de nomeada de Rubio, que no consegue controlar a satisfao de ver sua ao transformada em herosmo e divulgada, ainda que em matria paga, pela imprensa. Carlos Maria apresenta uma vaidade ainda mais afetada. O narrador no o poupa:
Montava bem. Toda a gente que passava, ou estava s portas no se fartava de mirar a postura do moo, o garbo, a tranqilidade rgia com que se deixava ir. Carlos Maria, e este era o ponto em que cedia multido, recolhia as admiraes todas, por nfimas que fossem. Para ador-lo, todos os homens faziam parte da humanidade (QB, cap. LXXVI, p. 125).
J o major Siqueira, amigo de Palha e Sofia antes de estes enriquecerem, fica indignado quando as senhoras da alta sociedade no incluem Dona Tonica numa comisso para ajudar flagelados nas Alagoas:
Lembra bem, interrompeu o Major Siqueira; por que no meteram minha filha na comisso das Alagoas? Qual! H j muito que reparo nisto; antigamente no se fazia festa sem ns. Ns ramos a alma de tudo. De certo tempo para c comeou a mudana; entraram a receber-nos friamente, e o marido, se pode esquivar-se, no me cumprimenta. Isto comeou h tempos; mas antes disso sem ns que no se fazia nada. (...) Ora o Palha, um p-rapado! J o envergonho. 319 Antigamente: major, um brinde. Eu fazia muitos brindes, tinha certo desembarao. Jogvamos o voltarete. Agora est nas grandezas; anda com gente fina. Ah! vaidades deste mundo! Pois no vi outro dia a mulher dele, num coup, com outra? A Sofia de coup! Fingiu que me no via, mas arranjou os olhos de modo que percebesse se eu a via, se a admirava. Vaidades desta vida! Quem nunca comeu azeite, quando come se lambuza (QB, cap. CXXX, p. 197-198).
evidente que o major no est preocupado em envolver a filha em aes filantrpicas. Seu problema a mesma vaidade que ele imputa ao casal Palha. Trata-se de um apego formalidade, letra de Damasceno: o desprezo social o que mais parece incomodar os atores do enunciado machadianos. O narrador de Quincas Borba no esconde sua indiferena aos sentimentos humanos. Comparando, num dado momento, a tristeza de Tonica e a alegria de Rubio, ele escreve:
E enquanto uma chora, outra ri; a lei do mundo, meu rico senhor; a perfeio universal. Tudo chorando seria montono, tudo rindo cansativo; mas uma boa distribuio de lgrimas e polcas, soluos e sarabandas, acaba por trazer alma do mundo a variedade necessria, e faz-se o equilbrio da vida (QB, cap. XLV, p. 73).
Os comentrios do narrador sobre a situao de Sofia, que tinha sido galanteada por Carlos Maria e refletia sobre os motivos que o levaram a casar-se com Maria Benedita, denotam um certo relativismo. Embora com certo peso na conscincia, afinal o galanteio de Carlos Maria a fez flertar com o adultrio, ela sentiu-se preterida:
Se me perguntardes por algum remorso de Sofia, no sei que vos diga. H uma escala de ressentimento e de reprovao. No s nas aes que a conscincia passa gradualmente da novidade ao costume, e do temor indiferena. Os simples pecados de pensamentos so sujeitos a essa mesma alterao, e o uso de cuidar nas cousas afeioa tanto a elas, que, afinal, o esprito no as estranha, nem as repele. E nestes casos h sempre um refgio moral na iseno exterior, que , por outros 320 termos mais explicativos, o corpo sem mcula (QB, cap. CLXIII, p. 234- 236).
E se houvesse ficado alguma dvida de que o narrador no acredita na humanidade e no se interessa pela dor que a aflige, fique-se com o ltimo captulo do romance, em que, aps a morte de Rubio e Quincas Borba, o narrador explicita sua indiferena em relao aos sofrimentos do narratrio e, por extenso, de todos os homens:
Eia! chora os dous recentes mortos, se tens lgrimas. Se s tens riso, ri- te! a mesma cousa. O Cruzeiro, que a linda Sofia no quis fitar como lhe pedia Rubio, est assaz alto para no discernir os risos e as lgrimas dos homens (QB, cap. CCI, p. 277).
Em Dom Casmurro, o fato de o narrador ser tambm ator do enunciado impede manifestaes mais patentes de indiferena existencial, mas no evita que certas personagens sejam apresentadas como superficiais e vaidosas. O agregado Jos Dias o melhor exemplo disso. Ele, que sabia opinar obedecendo e cujas cortesias vinham antes do clculo que da ndole (DC, cap. V, p. 23), uma personagem tpica da obra machadiana:
Levantou-se com o passo vagaroso do costume, no aquele vagar arrastado dos preguiosos, mas um vagar calculado e deduzido, um silogismo completo, a premissa antes da conseqncia, a conseqncia antes da concluso (DC, cap. IV, p. 22).
Em sua funo de parasita social, Jos Dias disputa ferrenhamente com quem quer que seja a ateno da famlia de D. Glria, defendendo-a de quem supostamente no esteja altura de Bentinho e seus parentes. o caso de Pdua, com quem Jos Dias mantm uma contenda velada durante todo o romance, a ponto de eles disputarem no captulo O Santssimo quem deveria segurar uma das varas do plio de uma procisso. certo que h uma boa dose de vaidade em Pdua tambm, que acaba levando apenas uma tocha e a sensao de que para tocha qualquer pessoa servia 321 (DC, cap. XXX, p. 65), mas Jos Dias ganha dele no que diz respeito a vencer no jogo de aparncias da sociedade. Nem o padre Cabral est livre do pecado da vaidade. Ao ser nomeado protonotrio apostlico, ele no consegue ocultar a satisfao, tanto que narrador afirma:
Cabral ouvia com gosto a repetio do ttulo. Estava em p, dava alguns passos, sorria ou tamborilava na tampa da boceta. O tamanho do ttulo como que lhe dobrava a magnificncia, posto que, para lig-lo ao nome, era demasiado comprido; esta segunda reflexo foi tio Cosme que a fez. Padre Cabral acudiu que no era preciso diz-lo todo, bastava que lhe chamassem o protonotrio Cabral. Subentendia-se apostlico (DC, cap. XXXV, p. 77).
Mas o cime doentio do casmurro Bento de Albuquerque Santiago faz muitas vezes do narrador um mal-humorado, um desconfiado, um egosta, um sujeito indiferente s dores alheias. O caso de Manduca prototpico. Manduca tinha lepra e, nos ltimos anos de vida, envolveu-se em uma polmica epistolar sobre a Guerra da Crimia com o seminarista Bentinho. A certa altura, ao voltar para casa aps um encontro com Capitu, Bentinho recebe a notcia de que Manduca morrera h meia hora. O narrador ento se incomoda com a possibilidade de ter que ver um defunto ao voltar de uma namorada (DC, cap. LXXXIV, p. 148):
Se eu passasse antes ou depois, ou se o Manduca esperasse algumas horas para morrer, nenhuma nota aborrecida viria interromper as melodias da minha alma. Por que morrer exatamente h meia hora? Toda hora apropriada ao bito; morre-se muito bem s seis ou sete horas da tarde (DC, cap. LXXXIV, p. 148-149).
Esse momento de sinceridade do narrador no anula o jogo de dissimulao que predomina em Dom Casmurro. No af de culpar a esposa pelo fracasso de sua vida afetiva, Bento no poupa esforos. Pode ser que ele at falte com a verdade, uma vez que reconhece a inevitabilidade da mentira, que , muita vez, to involuntria como a 322 transpirao (DC, cap. XLI, p. 87). Em outro momento, o narrador se vale da figurativizao para mostrar a necessidade e, eventualmente, o prazer de mentir:
(...) a mentira dessas criadas que se do pressa em responder s visitas que a senhora saiu, quando a senhora no quer falar a ningum. H nessa cumplicidade um gosto particular; o pecado em comum iguala por instantes a condio das pessoas, no contando o prazer que d a cara das visitas enganadas, e as costas com que elas descem... (DC, cap. XLVII, p. 96).
O relativismo do enunciador tambm aparece nos momentos em que o narrador parece justificar no somente a mentira, mas todos os demais possveis deslizes ticos dos atores do enunciado. Num momento dissertativo, Bento decreta:
Faltar ao compromisso sempre infidelidade, mas a algum que tenha mais temor a Deus que aos homens no lhe importar mentir, uma vez ou outra, desde que no mete a alma no purgatrio. No confudam purgatrio com inferno, que o eterno naufrgio. Purgatrio uma casa de penhores, que empresta sobre todas as virtudes, a juro alto e prazo curto. Mas os prazos renovam-se, at que um dia uma ou duas virtudes medianas pagam todos os pecados grandes e pequenos (DC, cap. CXIV, p. 192).
O pagamento dos pecados grandes e pequenos por uma ou duas virtudes medianas no muito diferente da lei da equivalncia das janelas de Brs Cubas e consiste em um argumento oportunista mais um para justificar atitudes rprobas. Mas quase impossvel que ele consiga, dessa forma, captar plenamente a benevolncia do narratrio, pois a maneira como o narrador se refere, por exemplo, a Ezequiel de uma crueldade atroz. Quando o garoto volta da Europa e diz que pretende fazer uma expedio arqueolgica no Egito, Bento confessa:
Prometi-lhe recursos, e dei-lhe logo os primeiros dinheiros precisos. Comigo disse que uma das conseqncias dos amores furtivos do pai 323 era pagar eu as arqueologias do filho; antes lhe pagasse a lepra... (DC, cap. CXLV, p. 232).
No de bom tom desejar a ningum a lepra. Muito menos dizer que vai pagar para algum contra-la. Pior se esse algum for um possvel filho. Um narrador desse tipo apenas confirma que o enunciador machadiano deixa transparecer o legado de nossa misria na totalidade de seus romances. Se, de alguma forma, Memrias pstumas e Quincas Borba formam uma unidade, na medida em que as personagens Quincas Borba e Brs Cubas se conheciam e chegam a aparecer nas duas obras, o mesmo se pode dizer de Esa e Jac e Memorial de Aires, que apresentam o mesmo narrador, como deixa claro a Advertncia de Esa e Jac:
Quando o conselheiro Aires faleceu, acharam-se-lhe na secretaria sete cadernos manuscritos, rijamente encapados em papelo. Cada um dos primeiros seis tinha o seu nmero de ordem, por algarismos romanos, I, II, III, IV, V, VI, escritos a tinta encarnada. O stimo trazia este ttulo: ltimo. A razo desta designao especial no se compreendeu ento nem depois. Sim, era o ltimo dos sete cadernos, com a particularidade de ser o mais grosso, mas no fazia parte do Memorial, dirio de lembranas que o conselheiro escrevia desde muitos anos e era a matria dos seis. No trazia a mesma ordem de datas, com indicao da hora e do minuto, como usava neles. Era uma narrativa; e, posto figure aqui o prprio Aires, com o seu nome e ttulo de conselho, e, por aluso, algumas aventuras, nem assim deixava de ser a narrativa estranha matria dos seis cadernos (...) (EJ, p. 17).
Esse prlogo mostra que o conselheiro Aires o narrador tanto de Esa e Jac quanto do Memorial de Aires. No entanto curioso que, neste, o narrador se apresenta como ator do enunciado e se vale de debreagens enunciativas da enunciao e do enunciado, enquanto, naquele, ele se mantm como ator da enunciao e prefere recorrer s debreagens enunciativas da enunciao e enuncivas do enunciado. Com rigor, em Esa e Jac, h uma grande embreagem actancial do enunciado, por meio da 324 qual se neutralizam a primeira e a terceira pessoa e se emprega reiteradamente um ele com valor de eu. Mas, independentemente dessas questes de sintaxe discursiva, ambos os romances reforam o mesmo carter enunciativo. Em Esa e Jac, o egosmo humano misturado com vaidade aparece, s vezes, de forma grotesca. o caso da descrio das sensaes de Natividade ao descobrir a prpria gravidez:
No meio disso, a que vinha agora uma criana deform-la por meses, obrig-la a recolher-se, pedir-lhe as noites, adoecer dos dentes e o resto? Tal foi a primeira sensao da me, e o primeiro mpeto foi esmagar o grmen. Criou raiva ao marido (EJ, cap. VI, p. 32).
Num outro momento, quando Pedro levanta a hiptese de acompanhar Flora e o pai da moa numa viagem poltica, o rapaz se alegra, no sem uma observao sutil de Aires:
A esperana de se desterrarem assim de Paulo verdejou na alma de Pedro. Sim, Paulo no iria tambm, a me no se deixaria ficar desamparada. Que perdesse um filho, v; mas ambos... A quem quer que este final de monlogo parea egosta, peo-lhe pelas almas dos seus parentes e amigos, que esto no cu, peo-lhe que considere bem as causas. Considere o estado da alma do rapaz, a contigidade da moa, as razes e as flores da paixo, a prpria idade de Pedro, o mal da terra, o bem da mesma terra. Considere mais a vontade do cu, que vela por todas as criaturas que se querem, salvo se uma s que quer a outra, porque ento o cu um abismo de iniqidades (...) (EJ, cap. LII, p. 118-119).
Flora demonstra o mesmo egosmo dos dois irmos e de Natividade. A certa altura, Perptua procura saber por qual dos dois gmeos Flora est mais interessada, mas no consegue penetrar na alma da moa:
325 No achou nada. Flora continuou a no se deixar ler. No lhe atribuas isto a clculo, no era clculo. Seriamente, no pensava em nada acima de si (EJ, cap. LXXXIV, p. 180).
O egosmo de Flora mais simples que o dos irmos, que esto em constante competio, e que o de Natividade, que nascia de uma vaidade desmedida. Mas no deixa de ser egosmo, embora Aires procure sempre relativizar os sentimentos pouco nobres que suas personagens revelam. No s as elites apresentadas em Esa e Jac municiam o pessimismo e o ceticismo do narrador. At os escravos se regozijam, de modo vaidoso, quando Santos e Natividade ganham um ttulo de nobreza:
Os criados ficaram felizes com a mudana dos amos. Os prprios escravos pareciam receber uma parcela da liberdade e condecoravam- se com ela: Nh Baronesa! exclamavam saltando. E Joo puxava Maria, batendo castanholas com os dedos: Gente, quem esta crioula? Sou escrava de Nh Baronesa! (EJ, cap. XX, p. 60).
difcil no reconhecer aqui o orgulho da servilidade das Memrias pstumas. A distino dada aos amos fez com que os escravos se orgulhassem mais ainda por servi-los. O tom diplomtico adotado por Aires durante todo o romance no o impede de manifestar a indiferena tpica dos narradores machadianos. Quando proclamada a Repblica, em meio a toda efervescncia poltica, resolve-se jogar voltarete na casa de Santos. O baro julga que
(...) no era bonito que no prprio dia em que o regmen cara ou ia cair, entregasse o esprito a recreaes de sociedade... (EJ, cap. LXVI, p. 147),
mas acaba aceitando o convite dos amigos, o que vale um comentrio machadiano do narrador:
326 Enfim, o basto e a espadilha fizeram naquela noite o seu ofcio, como as mariposas e os ratos, os ventos e as ondas, o lume das estrelas e o sono dos cidados (EJ, cap. LXVI, p. 148).
Por fim, ainda h em Esa e Jac o ceticismo lcido do enunciador, que aparece em mais um momento dissertativo do narrador:
H muito remdio contra a insnia. O mais vulgar contar de um at mil, dous mil, trs mil ou mais, se a insnia no ceder logo. remdio que ainda no fez dormir ningum, ao que parece, mas no importa. At agora, todas as aplicaes eficazes contra a tsica vo de par com a noo de que a tsica incurvel. Convm que os homens afirmem o que no sabem, e, por ofcio, o contrrio do que sabem; assim se forma esta outra incurvel, a Esperana (EJ, cap. LXXXIII, p. 174).
A referncia esperana mais ctica do que se poderia supor primeira vista, pois ela comparada tsica e insnia, cujos remdios, embora ineficazes, continuam a ser usados pelas pessoas, que tm a mania de afirmar o que no sabem, e, por ofcio, o contrrio do que sabem. No Memorial de Aires, talvez pelo fato de o narrador assumir-se como ator do enunciado e da enunciao, h ainda mais espao para ele manifestar suas crenas e, por extenso, o carter do enunciador. O conselheiro Aires, por todo o romance, comporta-se como um observador acurado das atitudes humanas, o que apenas acaba reforando o pessimismo e o ceticismo machadiano. Mais de uma vez, Aires admite a necessidade da mentira, s que com um grau de humor que o diferencia, por exemplo, do narrador de Dom Casmurro:
(...) o acaso tambm corregedor de mentiras. Um homem que comea mentindo disfarada e descaradamente acaba muita vez exato e sincero (MA, p. 51).
Alm da mentira, a maledicncia de D. Cesria, por exemplo, tambm justificada pelo narrador:
327 A maledicncia no to mau costume como parece. Um esprito vadio ou vazio, ou ambas estas cousas acha nela til emprego. E depois, a inteno de mostrar que outros no prestam para nada, se nem sempre fundada, muita vez o , e basta que o seja alguma vez para justificar as outras (MA, p. 120).
A defesa sarcstica que Aires faz da mentira e da maledicncia lembra os argumentos oportunistas por meio dos quais Brs Cubas procura justificar suas atitudes. A diferena que Aires, na maioria das vezes, analisa somente o comportamento alheio. Quando o narrador comenta a relao entre o casal Aguiar e seus filhos de considerao Tristo e Fidlia, exprime-se uma viso de mundo absolutamente pessimista:
O pior no serem filhos de verdade, mas s de afeio; certo que, em falta de outros, consolam-se com estes, e muita vez os de verdade so menos verdadeiros (MA, p. 63).
At mesmo as amizades sinceras so alvo das observaes crticas de Aires:
Quando eu lia clssicos lembra-me que achei em Joo de Barros certa resposta de um rei africano aos navegadores portugueses que o convidaram a dar-lhes um pedao de terra para um pouso de amigos. Respondeu-lhes o rei que era melhor ficarem amigos de longe; amigos ao p seriam como aquele penedo contguo ao mar, que batia nele com violncia. A imagem era viva, e se no foi a prpria ouvida ao rei de frica era contudo verdadeira (MA, p. 144).
Os exemplos ainda poderiam ser mais numerosos. O que fica destas longas citaes a convico de que o carter do enunciador machadiano se constri a partir de seus narradores que, de modo mais ou menos explcito, de forma mais ou menos sistemtica, mostram-se indiferentes aos atores do enunciado calculistas, vaidosos e egostas, sempre envolvidos em percursos narrativos de obteno de prestgio social. Toda essa teia discursiva vai apresentando cada vez mais recorrncias, cada vez mais 328 invarincias nos nove romances machadianos, de modo que aparecem elementos suficientes para mapear a dimenso semntica do primeiro nvel enunciativo e, assim, (re)construir o carter do ator da enunciao Machado de Assis. Um trao relevante desse carter, como intumos no captulo passado, a derriso, o riso zombeteiro, o humor crtico, que acaba projetando-se tambm sobre o corpo e a voz do enunciador. Trata-se de uma forma de humor carnavalizada, em que o riso desestabiliza as convenes e se aproxima do discurso da stira menipia. Em Ressurreio, a apresentao de Viana, o irmo de Lvia, consiste numa manifestao textual desse humor corrosivo:
Viana era um parasita consumado, cujo estmago tinha mais capacidade que preconceitos, menos sensibilidade que disposies. No se suponha, porm, que a pobreza o obrigasse ao ofcio; possua alguma coisa que herdara da me, e conservara religiosamente intato, tendo at ento vivido do rendimento de um emprego de que pedira demisso por motivo de dissidncia com o seu chefe. Mas estes contrastes entre a fortuna e o carter no so raros. Viana era um exemplo disso. Nasceu parasita como outros nascem anes. Era parasita por direito divino (RE, cap. I, p. 61).
O direito divino ao parasitismo aponta para a indiferena do narrador que, ao associar parasitas a anes, prefere no fazer julgamentos morais explcitos de seus atores do enunciado, uma vez que o tom zombeteiro que ele adota j suficiente para garantir o sarcasmo na apresentao das personagens. Trata-se de uma neutralidade forjada pelo enunciador, que usa a derriso como instrumento crtico. Em A mo e a luva, quando a baronesa manda Mrs. Oswald ver se j deram de comer aos passarinhos (ML, cap. XVIII, p. 120), pois ela quer conversar a ss com Guiomar, aps Jorge pedir a mo da moa em casamento, nota-se o tom de deboche discursivo que to comum em Machado:
A inglesa obedeceu e saiu. A careta que fez ao sair ningum lha pde ver, e no se perdeu nada (ML, cap. XVIII, p. 121).
329 O lado intrometido e maledicente da dama de companhia da baronesa fica claro nesta passagem, quando, num comentrio sinttico e sarcstico (e no se perdeu nada), o narrador contribui para revelar o lado simultaneamente crtico e bem- humorado do enunciador. a combinao da pena da galhofa com a tinta da melancolia que tanto encontramos nestes nove romances. O tom predominante em Helena no o da derriso, mas o enunciador machadiano no deixa de manifest-lo, ainda que pontualmente. o caso, por exemplo, do momento em que o narrador mostra, de modo satrico, como o carter de Eugnia se combinava com os excessos de zelo de Camargo:
(...) o corao conhecia as douras da bondade; a rebeldia era um hbito, no um vcio nativo. A prpria frivolidade foi-lhe desenvolvida pela educao, nada podendo o zelo da me contra as complacncias do pai. Esta era a explicao tambm da fascinao que exercia nela o tumulto exterior da vida. Quase se pode dizer que ela no conhecera o vestido curto; a modista a desmamou; uma contradana foi a sua primeira comunho (HE, cap. XIV, p. 105-106).
A vontade exagerada de Camargo em fazer com que a filha brilhasse no tumulto da vida exterior justifica as duas metforas finais, em que ama-de-leite a modista e em que uma quadrilha quase um sacramento. Se, por um lado, o narrador evita julgar explicitamente a conduta de Camargo, por outro, a derriso mostra que a avaliao do enunciador sobre ele francamente negativa. Em Iai Garcia, h uma passagem exemplar para mostrar esse riso zombeteiro machadiano. Quando morre o desembargador, que se havia tornado praticamente um tutor de Estela, o interesseiro Antunes fica desesperado:
O Sr. Antunes recebeu dous golpes em vez de um: o de o ver morrer, e o de no o ver testar. As aneurismas tm dessas perfdias inopinveis (IG, cap. III, p. 40).
A atribuio de perfdia a um aneurisma tpica do carter de Machado. Outro momento do mesmo romance em que se nota a derriso se d na sarcstica caracterizao de Procpio Dias: 330
Sua filosofia tinha dous pais: Luculo e Salomo, no o Luculo general, nem o Salomo piedoso, mas s a parte sensual desses dois homens, porque o eterno feminino no o dominava menos que o eterno estmago (IG, cap. VII, p. 85).
A luxria e a gula de Procpio Dias no esto sendo apresentadas simplesmente como pecados condenveis. O enunciador prefere o humor fino para atribuir-lhe essas caractersticas, que vm figurativizadas nas felizes expresses eterno feminino e eterno estmago. Dessa forma, Machado evita a crtica panfletria e moralizante, valendo-se dessa associao imprevista de palavras, com quebra do paralelismo semntico 81 , para produzir o avultamento do elemento cmico (Fiorin, 2006, p. 91). Em Quincas Borba, quando Sofia v cair o carteiro, aps supor que era Carlos Maria quem chegava para galante-la, ela no consegue conter o riso. Ento o narrador faz um comentrio dirigido ao narratrio, figurativizado numa leitora romntica, em que se defende quase que numa manifestao de metaenunciao o direito derriso:
Perdoem-lhe esse riso. Bem sei que o desassossego, a noite mal passada, o terror da opinio, tudo contrasta com esse riso inoportuno. Mas, leitora amada, talvez a senhora nunca visse cair um carteiro. Os deuses de Homero, e mais eram deuses, debatiam uma vez no Olimpo, gravemente, e at furiosamente. A orgulhosa Juno, ciosa dos colquios de Ttis e Jpiter em favor de Aquiles, interrompe o filho de Saturno. Jpiter troveja e ameaa; a esposa treme de clera. Os outros gemem e suspiram. Mas quando Vulcano pega da urna de nctar, e vai coxeando servir a todos, rompe no Olimpo uma enorme gargalhada inextinguvel. Por qu? Senhora minha, com certeza nunca viu cair um carteiro (QB, cap. LIII, p. 90).
Esse humor erudito de Machado reaparece quando Rubio pensa em casar-se para fugir da obsesso por Sofia. Ento, aps uma comparao entre a incapacidade do
81 Voltaremos a tratar dessa questo no terceiro item deste captulo. 331 protagonista de Quincas Borba em entender seus desejos e a situao de uma aranha, o narrador diz:
Que sabe a aranha a respeito de Mozart? Nada; entretanto, ouve com prazer uma sonata do mestre. O gato, que nunca leu Kant, talvez um animal metafsico (QB, cap. LXXX, p. 129).
A metafsica dos gatos compatvel ao eterno estmago de Procpio Dias ou ao direito divino ao parasitismo de Viana. Em Dom Casmurro, o narrador at mesmo por aceitar a alcunha que d ttulo ao romance um ator da enunciao mal-humorado. Mas tambm na narrativa de Bento h excertos em que se encontra o riso zombeteiro de Machado. o que ocorre quando Bentinho fica enciumado porque Capitu no lhe prestou ateno numa lio de astronomia:
Um annimo ou annima que passe na esquina da rua faz com que metamos Srius dentro de Marte, e tu sabes, leitor, a diferena que h de um a outro na distncia e no tamanho, mas a astronomia tem dessas confuses (DC, cap. CVII, p. 182).
Como Aires mais espirituoso que casmurro, em Esa e Jac h mais espao para manifestaes do carter escarninho do enunciador. Por exemplo, ao comentar o porqu da expresso discreto como um tmulo, Aires escreve:
(...) os tmulos no so discretos. Se no dizem nada, porque diriam sempre a mesma histria; da a fama de discrio. No virtude, falta de novidade (EJ, cap. CXX, p. 235).
Em outras passagens, o narrador de Esa e Jac chega a recorrer ironia para intensificar o efeito satrico da derriso. Aps a morte de Joo de Melo, que era parente de Santos e Natividade, manda-se rezar uma missa pelo defunto. Numa conversa posterior envolvendo o casal e Perptua, eles chegam a interessantes concluses:
332 Depois falaram do parente morto e concordaram piamente que era um asno; no disseram este nome, mas a totalidade das apreciaes vinha dar nele, acrescentando honesto e honestssimo (EJ, cap. VI, p. 34).
Outra ironia, no mesmo captulo, d-se quando o narrador comenta a reao de Santos, em comparao da mulher, quando fica sabendo que ser pai:
Santos sentiu mais que ela o prazer da vida nova. Eis a vinha a realidade do sonho de dez anos, uma criatura tirada da coxa de Abrao, como diziam aqueles bons judeus, que a gente queimou mais tarde, e agora emprestam generosamente seu dinheiro s companhias e s naes. Levam juro por ele; mas os hebrasmos so dados de graa (EJ, cap. VI, p. 31).
A stira aos judeus intensificada pela ironia presente no advrbio generosamente e pela idia de os ensinamentos sobre a cultura hebraica, diferentemente dos emprstimos, so gratuitos. No Memorial de Aires, merece destaque uma quase auto-stira de Aires, que comprova a amplitude da derriso no romance. Veja-se uma passagem do dirio de 18 de maio de 1888:
Rita escreveu-me pedindo informaes de um leiloeiro. Parece- me caoada. Que sei eu de leiloeiros nem de leiles? Quando eu morrer podem vender em particular o pouco que deixo, com abatimento ou sem ele, e a minha pele com o resto; no nova, no bela, no fina, mas sempre dar para algum tambor ou pandeiro rstico. No preciso chamar um leiloeiro. Vou responder isso mesmo mana Rita, acrescentando algumas notcias que trouxe da rua (...). Mas no (...). Mando-lhe s dizer que o leiloeiro morreu; provavelmente ainda vive, mas h de morrer algum dia (MA, p. 50).
De todos os traos que definem o carter do enunciador machadiano, o que aparece com mais freqncia nos nove romances aqui referidos o antidogmatismo, 333 que se manifesta pelo fim das convenes enunciativas. Dessa forma, h um embaralhamento dos nveis enunciativos, ocorrem metalepses nos prefcios, sobram comentrios metaenunciativos, valoriza-se a polifonia com a instalao reiterada de narratrios e pseudonarratrios, misturam-se inmeras manifestaes de erudio s citaes intertextuais truncadas, interrompe-se a fbula pelas constantes digresses, brinca-se com a oniscincia do narrador. Em Esa e Jac, como j dissemos, aparecem vrias referncias ao Memrial, num processo semelhante quele encontrado em Quincas Borba, quando o narrador se refere explicitamente s Memrias pstumas. Num dado momento, em Esa e Jac, valendo-se da embreagem actancial que caracteriza o discurso do narrador, Aires explica a estrutura do seu dirio, como j havia siso feito na Advertncia:
Usava tambm guardar por escrito as descobertas, observaes, reflexes, crticas e anedotas, tendo para isso uma srie de cadernos, a que dava o nome de Memorial (EJ, cap. XII, p. 45-46).
Logo em seguida, transcreve-se uma pgina desse dirio de Aires, o que, alis, ocorre em outros momentos do romance, como, por exemplo, quando o conselheiro afirma preferir a conversa de mulheres de homens:
dele esta frase do Memorial: Na mulher, o sexo corrige a banalidade; no homem, agrava (EJ, cap. XXXI, p. 77).
Esse processo de intertextualidades digamos intramachadianas remete, explicitamente, totalidade de discursos que delimita o estilo, que define o thos. Em lugar de apresentar cada romance como uma narrativa autnoma, parece que os narradores de Machado fazem questo de assumir que h um nvel enunciativo subjacente a todas as narrativas que compem sua obra. Trata-se, pois, de mais uma manifestao de antidogmatismo enunciativo. Cruz Jnior (2006) mostra que, dos nove romances machadianos, apenas em dois Iai Garcia e Dom Casmurro no h prefcios, prlogos ou advertncias e que, por isso, nestes, h apenas uma instncia enunciativa, enquanto nas demais sete narrativas haveria duas instncias narrativas em oposio Ressurreio, A mo e a luva, Helena, Memrias pstumas de Brs Cubas, Esa e Jac e Memorial de Aires 334 ou em concordncia Quincas Borba , pois em todas elas h algum tipo de prlogo. Cruz Jnior ento defende que estes textos introdutrios contm
macro-debreagens, pelo fato de ele consistir em uma debreagem de segundo grau, a qual instaura um narrador segundo que conduzir a narrativa. Desse modo, com exceo dos romances citados, o que se chama de narrador , na verdade, um narrador segundo instaurado pelo narrador primeiro, que assina M. de A ou M. A. (2006, p. 238)
Uma particularidade desses prefcios e advertncia que
eles tratam menos do texto que se segue e mais do fazer que o gerou, ou do sujeito que os produziu, e, por esse motivo, considera-se necessria uma breve brevssima, diria o Jos Dias reflexo sobre o fazer do escritor, este considerado como enunciador que apresenta um papel temtico especfico: escrever livros (2006, p. 240-241).
certo que, dentro do rigor do modelo semitico, mais pertinente, num primeiro momento, tomar esses prefcios como manifestaes de um narrador primeiro que instala, por uma debreagem interna, o narrador segundo que conduzir o romance. No entanto, se aceitamos que esse narrador primeiro trata do /fazer/ enunciativo e do sujeito que produz o enunciado, promovendo uma reflexo sobre o fazer do escritor, pode-se dizer que ele est atribuindo a si o que da competncia do enunciador, como se o segundo nvel enunciativo estivesse, estranhamente, englobando o primeiro. Dessa maneira, pode-se considerar que quem fala nesses prefcios , sim, o enunciador, que recorre ao mesmo tipo de metalepse que h em Quincas Borba e Esa e Jac. Esse enunciador que fala outra manifestao de antidogmatismo, do fim das convenes enunciativas. Analisemos alguns exemplos da metaenunciao que aparece nesses prlogos. Em Ressurreio, encontramos:
A crtica desconfia sempre da modstia dos prlogos, e tem razo. Geralmente so arrebiques de dama elegante, que se v ou se cr bonita, e quer assim realar as graas naturais. Eu fujo e benzo-me trs 335 vezes quando encaro alguns desses prefcios contritos e singelos (...) (RE, p. 55).
Esse tom bem-humorado reaparece no final da Advertncia de A mo e a luva:
Mas talvez estou eu a dar propores muito graves a uma cousa de to pequeno tomo. O que a vai so umas poucas pginas que o leitor esgotar de um trago, se elas lhe aguarem a curiosidade, ou se lhe sobrar alguma hora que absolutamente no possa empregar em outra cousa, mais bela ou mais til (ML, p. 18).
A mesma idia aparece na Advertncia de Esa e Jac e repetida no Memorial de Aires:
Quem leu Esa e Jac talvez reconhea estas palavras do prefcio: Nos lazeres do ofcio escrevia o Memorial, que, apesar das pginas mortas ou escuras, apenas daria (e talvez d) para matar o tempo da barca de Petrpolis (MA, p. 15).
Muitas vezes, os comentrios metaenunciativos, to comuns aos prlogos, aparecem no corpo do romance, explicitando sua arquitetura, ou seja, os elementos da trama que o constitui. Esse recurso de modalidade autonmica revela um enunciador constantemente preocupado em mostrar que a linguagem no cpia, mas interpretao da realidade e que, por isso, a construo discursiva deve ser tomada como poisis, e no como decalque do mundo natural. Mais uma vez, estamos diante de um indcio do antidogmatismo de Machado, sempre prximo da tradio menipia. Em Ressurreio, h uma dessas interferncias do narrador no momento em que Meneses e Raquel comeam a flertar:
Aqui podia acabar o romance muito natural e sacramentalmente, casando-se estes dous pares de coraes e indo desfrutar a sua lua-de- mel em algum canto ignorado dos homens. Mas para isso, leitor impaciente, era necessrio que a filha do coronel e o Dr. Meneses se 336 amassem, e eles no se amavam, nem se dispunham a isso (RE, cap. XII, p. 124).
H, nessa passagem, uma stira sutil aos finais felizes do Romantismo e ao narratrio acostumado a esse tipo de desfecho. Como comum na obra machadiana, o narrador no se contenta apenas em dizer que no houve casamento; ele prefere comentar, de maneira zombeteira, a conduo da prpria narrativa. Acontece que, no ltimo captulo de Ressurreio, Meneses e Raquel acabam ficando juntos, o que narrado numa passagem em que h metaenunciao, referncia ao narratrio e manifestao de pessimismo:
Dez anos volveram sobre os acontecimentos deste livro, longos e enfastiados para uns, ligeiros e felizes para outros, que a lei uniforme desta mofina sociedade humana. Ligeiros e felizes foram eles para Raquel e Meneses, que eu tenho a honra de apresentar ao leitor, casados, e amantes ainda hoje. A piedade os uniu; a unio os fez amados e venturosos (RE, cap. XXIV, p. 178).
O narrador, que havia chamado o leitor de impaciente, agora se diz honrado por apresentar Raquel e Meneses casados, e amantes ainda hoje. a pena da galhofa que domina o enunciador machadiano. Em A mo e a luva, logo que Estvo diz a Lus Alves que pretende por morrer por causa de uma desiluso amorosa, o narrador faz seus comentrios trama:
Ali mesmo lhe confiou Estvo tudo o que havia, e que o leitor saber daqui a pouco, caso no aborrea estas histrias de amor, velhas como Ado, e eternas como o cu (ML, cap. I, p. 19).
Outra vez, a maneira como se faz referncia aos idlios sentimentais desdenha as convenes romnticas, e o narrador opta pelo bom humor na apresentao de suas personagens. 337 Ao intrometer-se reiteradamente na narrativa, habitual que o narrador mostre hesitaes, recorra a preteries e valha-se de rodeios lingsticos. o que se d quando Guiomar se surpreende com a declarao de amor feita por Lus Alves:
Guiomar sentou-se outra vez muda, despeitada, a bater-lhe o corao como nunca lhe batera em nenhuma outra ocasio da vida, nem de susto, nem de clera, nem... de amor, ia eu a dizer, sem que ela o houvesse sentido jamais (ML, cap. XIV, p. 102).
Em Helena, esse apreo pela preterio aparece muitas vezes:
Alm das qualidades naturais, possua Helena algumas prendas de sociedade, que a tornavam aceita a todos, e mudaram em parte o teor da vida da famlia. No falo da magnfica voz de contralto, nem da correo com que sabia usar dela, porque ainda ento, estando fresca a memria do conselheiro, no tivera ocasio de fazer-se ouvir (HE, cap. IV, p. 38-39).
Note-se que o narrador, embora no seja ator do enunciado em nenhum dos quatro primeiro romances de Machado de Assis, no hesita em recorrer primeira pessoa, por meio de debreagens da enunciao, para tecer observaes sobre o prprio romance. Esse narrador intruso outra caracterstica do ator da enunciao Machado de Assis. Mas, s vezes, o narrador prefere no explicitar os meandros da trama e recorre aos significados implcitos, o que pode remeter dimenso metaenunciativa. No final de Helena, por exemplo, no momento em que Helena e Estcio praticamente trocam confidncias amorosas por meio de olhares, o narrador diz:
Era a primeira revelao, tcita mas consciente, do sentimento que os ligava. Nenhum deles procurara esse contato de suas almas, mas nenhum fugiu. O que eles disseram um ao outro, com simples olhos, no se escreve no papel, no se pode repetir ao ouvido; confisso misteriosa e secreta, feita de um a outro corao, que s ao cu cabia ouvir, 338 porque no eram vozes da terra, nem para a terra as diziam eles (HE, cap. XXVIII, p. 190).
O que no se escreve no papel e no se pode repetir ao ouvido o dizer delicado e indireto que caracteriza a voz machadiana, como veremos no item seguinte. Nesse excerto, a voz baixa vem acompanhada da metaenunciao. Em Iai Garcia, no h tantas passagens metaenunciativas como nos demais romances, mas ainda assim o narrador faz referncias ao prprio discurso:
Depois [Estela] contou-lhe a paixo de Jorge e todo o episdio da Tijuca, causa originria dos acontecimentos narrados neste livro (IG, cap. XVII, p. 188).
Em contrapartida, em Quincas Borba, Machado compensa Iai Garcia. O nmero de comentrios do narrador trama e conduta das personagens praticamente to grande quanto em Memrias pstumas. A funo de direo recorrente em Quincas Borba:
Deixemos Rubio na sala de Botafogo, batendo com as borlas do chambre nos joelhos, e cuidando na bela Sofia. Vem comigo, leitor; vamos v-lo, meses antes, cabeceira do Quincas Borba (QB, cap. III, p. 23).
Para anunciar o flashback, o narrador se dirige ao narratrio, estabelecendo uma interlocuo que, muitas vezes, engloba discusses metaenunciativas. Num determinado momento, semelhana de Brs, o narrador de Quincas Borba resolve referir-se a questes de mtodo, como no captulo Transio das Memrias pstumas. Comentando a alegria de Rubio de ter feito uma sugesto ao artigo poltico de Camacho, o narrador escreve:
Aqui que eu quisera ter dado a este livro o mtodo de tantos outros, velhos todos, em que a matria do captulo era posta no sumrio: De como aconteceu isto assim, e mais assim. A est Bernardim Ribeiro; a esto outros livros gloriosos. Das lnguas estranhas, sem querer subir 339 a Cervantes nem a Rabelais, bastavam-me Fielding e Smollet, muitos captulos dos quais s pelo sumrio esto lidos. Pegai em Tom Jones, livro IV, cap. I, lede este ttulo: Contendo cinco folhas de papel. claro, simples, no engana a ningum; so cinco folhas, mais nada, quem no quer no l, e quem quer l, para os ltimos que o autor conclui obsequiosamente: E agora, sem mais prefcio, vamos ao seguinte captulo (QB, cap. CXIII, p. 171);
no captulo seguinte, aps mais essa prova de erudio do enunciador, o narrador sugere:
Se tal fosse o mtodo deste livro, eis aqui um ttulo que explicaria tudo: De como Rubio, satisfeito da emenda feita no artigo, tantas frases comps e ruminou, que acabou por escrever todos os livros que lera (QB, cap. CXIII, p. 171).
Como de praxe do carter antidogmtico de Machado, o captulo subseqente que trata do amor incorrespondido de Rubio e da desconfiana deste em relao a um possvel adultrio de Sofia com Carlos Maria desdenha tudo que se disse anteriormente:
Ao contrrio, no sei se o captulo que se segue poderia estar todo no ttulo (QB, cap. CXIV, p. 172)
Talvez por isso os captulos de Quincas Borba no tenham ttulo. J em Dom Casmurro, os dois primeiro captulos Do ttulo e Do livro so quase que integralmente metaenunciativos e explicam o porqu de o romance chamar-se Dom Casmurro e os motivos que levam Bento de Albuquerque Santiago a escrever suas memrias. Aps narrar que mandou construir no Engenho Novo uma casa exatamente igual que ele foi criado na Rua de Matacavalos, mantendo a mesma decorao desta, inclusive com os bustos dos imperadores pintados na parede da sala, Bento quer fazer o narratrio acreditar que seu romance ser escrito como estratgia para matar o tempo:
340 Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me tambm. Quis variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudncia, filosofia e poltica acudiram-me, mas no me acudiram as foras necessrias. Depois, pensei em fazer uma Histria dos Subrbios menos seca que as memrias do Padre Lus Gonalves dos Santos relativas cidade; era obra modesta, mas exigia documentos e datas como preliminares, tudo rido e longo. Foi ento que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles no alcanavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns. Talvez a narrao me desse a iluso, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, no o do trem, mas o do Fausto: A vindes outra vez, inquietas sombras...? (DC, cap. II, p. 17-18).
A idia de que foram os medalhes pintados nas paredes que incentivaram Bento a fazer sua autobiografia engenhosa, mas jogo de cena. Aqui, h uma dissenso semntica entre o primeiro e o segundo nvel enunciativo, e o enunciador est, de certa forma, satirizando o narrador, j que o romance exatamente uma tentativa de reconstruo (em que tudo seria, portanto, rido e longo) da infncia e da juventude de Bentinho. Ao revelar sua obsesso pelo passado, que o faz imitar no Engenho Novo sua antiga morada de Matacavalos, o narrador assume, sem perceber, que ele quem sente a necessidade de reconstituir os tempos idos e que os motivos que o levam a no escrever um livro de filosofia, direito ou poltica, alm da Histria dos subrbios, no so verdadeiros. Assim, h dois patamares de metaenunciao: o do narrador a comentar a prpria narrativa e o do enunciador a problematizar os efeitos de verdade e de sinceridade que o narrador pretende produzir. Em Esa e Jac, a metaenunciao volta a ser mais espirituosa:
Um bom autor, que inventasse a sua histria, ou prezasse a lgica aparente dos acontecimentos, levaria o casal Santos a p ou em calea de praa ou de aluguel; mas eu, amigo, eu sei como as coisas se passaram, e refiro-as tais quais. Quando muito, explico-as, com a condio de que tal costume no pegue. Explicaes comem tempo e papel, demoram a ao e acabam por enfadar. O melhor ler com ateno (EJ, cap. V, p. 30). 341
No entanto, algumas vezes, essas explicaes metaenunciativas do narrador so contraditrias. Por exemplo, no captulo De uma reflexo intempestiva, Aires imagina algumas objees de uma leitora interessada em antecipar os desdobramentos da fbula e responde-lhe:
Francamente, eu no gosto de gente que venha adivinhando e compondo um livro que est sendo escrito com mtodo (EJ, cap. XXVII, p. 71).
S que no captulo A epgrafe, Aires reconhece a importncia de os leitores intervirem na narrativa para complet-la:
(...) h proveito em irem as pessoas da minha histria colaborando nela, ajudando o autor, por uma lei de solidariedade espcie de troca de servios, entre o enxadrista e os seus trebelhos (EJ, cap. XIII, p. 47).
Essa postura de negar-se a si mesmo do narrador sugere um livro cujo mtodo de composio est longe de ser uniforme. Esse carter de galhofa enunciativa reaparece no momento em que o narrador introduz os dois ltimos captulos do romance:
Todas as histrias, se as cortam em fatias, acabam com um captulo ltimo e outro penltimo, mas nenhum autor os confessa tais; todos preferem dar-lhes um ttulo prprio. Eu adoto o mtodo oposto; escrevo no alto de cada um dos captulos seguintes os seus nomes de remate, e, sem dizer a matria particular de nenhum, indico o quilmetro em que estamos da linha. Isto supondo que a histria seja um trem de ferro. A minha no propriamente isso. Poderia ser uma canoa, se lhe tivesse posto guas e ventos, mas tu viste que s andamos por terra, a p ou de carro, e mais cuidosos da gente que do cho. No trem nem barco; uma histria simples, acontecida e por acontecer; o que poders ver nos dois captulos que faltam e so curtos (EJ, cap. CXIX, p. 233-234).
342 As mesmas galhofas esto presentes no Memorial de Aires, por exemplo, quando o narrador diz escrever um dirio, mas chega a sugerir que poderia tratar-se de um romance:
Se eu estivesse a escrever uma novela, riscaria as pginas do dia 12 e do dia 22 deste ms. Uma novela no permitiria aquela paridade de sucessos. Em ambos esses dias que ento chamaria captulos encontrei na rua a viva Noronha, trocamos algumas palavras, vi-a entrar no bonde ou no carro, e partir; logo dei com dous sujeitos que pareciam admir-la. Riscaria os dous captulos, ou os faria mui diversos um de outro; em todo caso diminuiria a verdade exata, que aqui me parece mais til que na obra da imaginao (MA, p. 103).
O presumvel efeito de realidade do dirio, em oposio ao efeito de ficcionalidade da novela, apenas comprova como as fronteiras discursivas so mveis na obra machadiana, que muitas vezes recorre aos gneros intercalares (Fiorin, 2006b, p. 91) da menipia. A metaenunciao em Machado no pode ser completamente analisada se no tratarmos da questo do narratrio nos oito romances aqui referidos, uma vez que sua instalao no discurso mais do que uma mera debreagem da enunciao deixa transparecer o carter dialgico explcito que se constri na obra machadiana. A polmica narrador-narratrio, como ocorrera nas Memrias pstumas, muitas vezes explicita o antidogmatismo do enunciador. certo que h muitas referncias ao narratrio que, misturando funo de direo e de comunicao, acabam por produzir um efeito de cordialidade tpico do estilo folhetinesco. Esse tipo de debreagem no nos interessa, na medida em que ele define menos o estilo machadiano do que os hbitos da literatura do sculo XIX. O que importa para a construo do ator da enunciao a espessura semntica desses narratrios e, por extenso, a maneira como o narrador se relaciona com eles. Em Ressurreio, quando surpreendentemente Flix se mostra apaixonado por Lvia, o narrador corrige o narratrio:
Ironia da sorte chamar o leitor a este desfecho de uma situao que, algumas semanas antes, to outra se lhe afigurava. Chame-lhe 343 antes lgica da natureza, porque o corao de Flix, que aparentava ser mrmore, era simplesmente da nossa comum argila (RE, cap. VIII, p. 100).
certo que o tom do narrador nessa passagem ainda de respeito pelo narratrio, mas a discordncia entre eles j sugere que o leitor nem sempre capaz de compreender certas sutilezas da narrativa. Em A mo e a luva, isso fica bem mais claro quando o narrador, no momento de apresentar Jorge, atribui ao narratrio a curiosidade romanesca:
Suponho que o leitor estar curioso de saber quem era o feliz ou infeliz mortal, de quem as duas trataram no dilogo que precede, se que j no suspeitou que esse era nem mais nem menos o sobrinho da baronesa, aquele moo que apenas de passagem lhe apontei nas escadas do Ginsio (ML, cap. VII, p. 57).
Se o narratrio precisa ser corrigido e se ele se comporta como um leitor comum de folhetins, no de estranhar que o narrador, como no seguinte fragmento de A mo e a luva, procure mostrar ao narratrio que seu discurso antidogmtico e que exige esforo de interpretao:
No ser preciso dizer a um leitor arguto e de boa vontade... Oh! sobretudo de boa vontade, porque mister hav-la, e muita, para vir at aqui, e seguir at o fim, uma histria, como esta, em que o autor mais se ocupa de desenhar um ou dous caracteres, e de expor alguns sentimentos humanos, que de outra qualquer coisa, porque outra coisa no se animaria a fazer (...) (ML, cap. IX, p. 66).
Embora sem o sarcasmo das Memrias pstumas, tem-se aqui um embrio de O seno do livro. Em Helena, tambm no h referncias sarcsticas ao narratrio, mas h uma passagem em que ele convidado a compartilhar o mesmo espao dos atores do enunciado, numa espcie de metalepse:
344 O chapelinho de palha (...) tornava mais bela a figura da moa. Eugnia era uma das mais brilhantes estrelas entre as menores do cu fluminense. Agora mesmo, se o leitor lhe descobrir o perfil em camarote de teatro, ou se a vir entrar em alguma sala de baile, compreender, atravs de um quarto de sculo, que os contemporneos de sua mocidade lhe tivessem louvado, sem contraste, as graas que ento alvoreciam com o frescor e a pureza das primeiras horas (HE, cap. V, p. 44-45).
Todos esses exemplos mostram que o narratrio, nos romances machadianos, mais do que um papel actancial, na medida em que ele vai sendo actorializado, discursivizado o tempo todo. Uma exceo a esse fenmeno Iai Garcia. Nessa narrativa,
(...) poucas so as vezes em que [o narrador] comenta os fatos que narra, a ponto mesmo de, em termos quantitativos, a debreagem enunciva da enunciao predominar em toda a narrativa. Para que se tenha uma idia de como as coisas se passam, as palavras leitor ou leitora, referindo-se ao narratrio, no aparecem uma vez sequer no romance (Cruz Jnior, 2006, p. 144).
No entanto, h passagens em que a funo de direo orienta o narratrio sobre os rumos do romance:
Antes de irmos direto ao centro da ao, vejamos por que evoluo do destino se operou o casamento de Estela (IG, cap. VI, p. 66).
O emprego da primeira do plural parece incluir a um eu (narrador) e um tu (narratrio), num momento de enunciao enunciada marcada semanticamente. Embora raro em Iai Garcia, esse trecho confirma a tese de que Machado no abre mo da problematizao do processo de comunicao no romance. Em Quincas Borba, romance j posterior vertigem actancial das Memrias pstumas, o dilogo com o narratrio passa a ser constante. Desde o comeo do 345 romance, quando o enunciador-narrador diz que o narratrio poderia fazer-lhe o favor de ter lido Memrias pstumas, at o captulo final, em que o narrador afirma que as lgrimas e os risos do leitor no fazem diferena para os destinos da humanidade, as referncias ao narratrio se repetem sistematicamente. Quando Rubio se anima a conquistar Sofia, supondo que o amor dele era recproco, o narrador brinca com o narratrio, chamando a mulher de Palha de exrcito amigo:
A lua era magnfica. No morro, entre o cu e a plancie, a alma menos audaciosa era capaz de ir contra um exrcito inimigo, e destro-lo. Vede o que no seria com este exrcito amigo (QB, cap. XXXIX, p. 64).
Um pouco mais adiante, no captulo j citado em que se compara a alegria do galanteador Rubio tristeza de D. Tonica, que envelhecia solteira, a referncia ao narratrio que chamado de rico senhor j ganha traos irnicos:
E enquanto uma chora, outra ri; a lei do mundo, meu rico senhor; a perfeio universal. Tudo chorando seria montono, tudo rindo cansativo, mas uma boa distribuio de lgrimas e polcas, soluos e sarabandas, acaba por trazer alma do mundo a variedade necessria, e faz-se o equilbrio da vida (QB, cap. XLV, p. 73).
Quando Rubio comeava a desconfiar de uma traio de Sofia, influenciado pela histria inventada por um cocheiro, o dilogo com o narratrio j se torna sarcstico:
...ou, mais propriamente, captulo em que o leitor, desorientado, no pode combinar as tristezas de Sofia com a anedota do cocheiro. E pergunta confuso: Ento a entrevista da Rua da Harmonia, Sofia, Carlos Maria, esse chocalho de rimas sonoras e delinqentes tudo calnia? Calnia do leitor e do Rubio, no do pobre cocheiro que no proferiu nomes, no chegou sequer a contar uma anedota verdadeira. o que terias visto, se lesses com pausa. Sim, desgraado, adverte bem que era inverossmil; que um homem, indo a uma aventura daquelas, fizesse parar o tlburi diante da casa pactuada. Seria pr uma 346 testemunha ao crime. H entre o cu e a terra muitas mais ruas do que sonha a tua filosofia, ruas transversais, onde o tlburi podia ficar esperando (QB, cap. CVI, p. 162).
O leitor, nessa passagem, chamado de desorientado, caluniador, apressado e desgraado, incapaz de interpretar corretamente os sobressaltos da fbula. Essa relao polmica com o narratrio, marca do antidogmatismo enunciativo machadiano, reaparece no momento em que o narrador comenta a convenincia de dar ttulos longos e bastante explicativos aos captulos:
Se tal fosse o mtodo deste livro, eis aqui um ttulo que explicaria tudo: De como Rubio, satisfeito da emenda feita no artigo, tantas frases comps e ruminou, que acabou por escrever todos os livros que lera. L haver leitor a quem s isso no bastasse. Naturalmente, quereria toda a anlise da operao mental do nosso homem, sem advertir que, para tanto, no chegariam as cinco folhas de papel de Fielding. H um abismo entre a primeira frase de que Rubio era co- autor at a autoria de todas as obras lidas por ele; certo que o que mais lhe custou foi ir da frase ao primeiro livro; deste em diante a carreira fez-se rpida. No importa; a anlise seria ainda assim longa e fastiosa. O melhor de tudo deixar s isto; durante alguns minutos, Rubio se teve por autor de muitas obras alheias (QB, cap. CXIII, p. 171-172).
Novamente, o narratrio discursivizado como algum que no compreende as escolhas do enunciador, o que gera um descompasso entre o narrador e sua interlocuo marcada no enunciado. O mesmo ocorre em Dom Casmurro. Aps uma infantil discusso, em que Bentinho e Capitu fazem um duelo de ironias (DC, cap. XLIV, p. 93) e Capitu termina dizendo que o padre Bentinho batizaria seu primeiro filho, o casmurro narrador diz:
347 Abane a cabea leitor; faa todos os gestos de incredulidade. Chegue a deitar fora este livro, se o tdio j o no obrigou a isso antes; tudo possvel. Mas, se o no fez antes e s agora, fio que torne a pegar do livro e que o abra na mesma pgina, sem crer por isso na veracidade do autor. Todavia, no h nada mais exato. Foi assim mesmo que Capitu falou, com tais palavras e maneiras. Falou do primeiro filho, como se fosse a primeira boneca (DC, cap. XLV, p. 94).
No instante em que Bentinho, enciumado pela relao entre Escobar e Capitu, chega a flertar com Sancha, h outra referncia sarcstica ao narratrio, que estaria mais acostumado a narrativas tradicionais:
A leitora, que minha amiga e abriu este livro com o fim de descansar da cavatina de ontem para a valsa de hoje, quer fech-lo s pressas, ao ver que beiramos um abismo. No faa isso, querida; eu mudo de rumo (DC, cap. CXIX, p. 202).
Em Esa e Jac, tambm h muitas aluses ao narratrio. E muitas delas vm misturadas embreagem actancial que estrutura o foco narrativo do romance:
Esse Aires que a aparece conserva ainda agora algumas das virtudes daquele tempo, e quase nenhum vcio. No atribuas tal estado a qualquer propsito. Nem creias que vai nisto um pouco de homenagem modstia da pessoa. No, senhor, verdade pura e natural efeito (EJ, cap. XII, p. 44).
A conversa com o leitor, aqui, ganha uma dimenso de galhofa, na medida em que o narrador o prprio Aires, que faz referncia a si mesmo empregando a terceira pessoa. Portanto essa autocaracterizao produz um efeito de subjetividade, que no combina com as expresses verdade pura e natural efeito. Em outro momento, quando o narrador se lembra do caso em que Perptua e Natividade deram a um pedinte de esmolas uma nota de dois mil-ris, aps consultar a cabocla do Castelo, ele diz que o pedinte atribuiu o dinheiro a uma graa divina:
348 No, leitor, no me apanhas em contradio. Eu bem sei que a princpio o andador das almas atribuiu a nota ao prazer que a dama traria de alguma aventura. Ainda me lembram as palavras dele: Aquelas duas viram passarinho verde! Mas se agora atribua a nota proteo da santa, no mentia ento nem agora. Era difcil atinar com a verdade. A nica verdade eram os dous mil-ris. Nem se pode dizer que era a mesma em ambos os tempos (EJ, cap. LXXIV, p. 161).
Mais uma vez, o narratrio tachado de conservador, pois espera uma narrativa sem conflitos, sem contradies, sem uma interpretao dialtica da realidade. E Machado partidrio do relativismo que nos impede de atinar com a verdade. Nessa passagem, portanto, o leitor mostraria sua incapacidade de compreender a complexidade da relao entre o homem e o mundo, isto , a complexidade do contrato semitico que estrutura a obra machadiana. No Memorial de Aires, o fato de a obra de ser um simulacro de um dirio faz com que seja incoerente um dilogo entre o narrador e o leitor. No entanto, Machado contorna esse problema colocando o papel, isto , o prprio dirio, como narratrio principal da obra e, dessa forma, garantindo o dialogismo marcado no enunciado.
Papel, amigo papel, no recolhas tudo o que escrever esta pena vadia. Querendo servir-me, acabars desservindo-me, porque se acontecer que eu me v desta vida, sem tempo de te reduzir a cinzas, os que me lerem depois da missa de stimo dia, ou antes, ou ainda antes do enterro, podem cuidar que te confio cuidados de amor. No, papel. Quando sentires que insisto nessa nota, esquiva-te da minha mesa, e foge. A janela aberta te mostrar um pouco de telhado, entre a rua e o cu, e ali ou acol achars descanso. Comigo, o mais que podes achar esquecimento, que muito, mas no tudo; primeiro que ele chegue, vir a troa dos malvolos ou simplesmente vadios. Escuta, papel. O que naquela dama Fidlia me atrai principalmente certa feio de esprito, algo parecida com o sorriso fugitivo, que j lhe vi algumas vezes. Quero estud-la se tiver ocasio. 349 Tempo sobra-me, mas tu sabes que ainda pouco para mim mesmo, para o meu criado Jos, e para ti, se tenho vagar e qu, e pouco mais (MA, p. 44).
A relao entre o narrador e o papel novamente orientada para a polmica, o que explica a necessidade de Aires explicitar seus sentimentos e as motivaes de suas atitudes para o narratrio, que seria incapaz de entender sozinho certas sutilezas da narrativa. A conversa com o papel ocorre em outros momentos do dirio:
Fique isso confiado a ti somente, papel amigo, a quem digo tudo o que penso e tudo o que no penso (MA, p. 61);
a tal ponto que ele se personifica completamente:
At outro dia, papel (MA, p. 62);
adquirindo o direito de ouvir as confisses do narrador:
No diria isto a ningum cara a cara, mas a ti, papel, a ti que me recebes com pacincia, e alguma vez com satisfao, a ti, amigo velho, a ti digo e direi, ainda que me custe, e no me custa nada (MA, p. 125- 126).
O enunciador machadiano no se contenta, porm, com a instalao de narratrios. Sistematicamente, nos romances em que o narrador ator da enunciao e do enunciado, so instalados no enunciado pseudonarratrios. Esse recurso de o narrador se dirigir a seus pseudonarratrios por meio de apstrofes fartamente explorado nas Memrias pstumas. No Memorial de Aires, o narrador faz diversas auto-apstrofes, em mais um procedimento discursivo que caracteriza o antidogmatismo:
Meu velho Aires, trapalho da minha alma, como que tu comemoraste no dia 3 o ministrio Ferraz, que de 10? Hoje que ele 350 faria anos, meu velho Aires. Vs que bom ir apontando o que se passa; sem isso no te lembraria nada ou trocarias tudo (MA, p. 78).
H ento auto-apstrofes que so hesitaes:
Chego aos meus sessenta e... No escrevas todo o algarismo, querido velho; basta que o saiba teu corao e v sendo contado pelo Tempo no livro de lucros e perdas. No escrevas tudo, querido amigo (MA, p. 112);
e outras que so mea culpa:
Aires amigo, confessa que ouvindo ao moo Tristo a dor de no ser amado, sentiste tal ou qual prazer, que alis no foi longo nem se repetiu. Tu no a queres para ti, mas terias algum desgosto em a saber apaixonada dele; explica-te se podes, no podes. Logo depois entraste em ti mesmo, e viste que nenhuma lei divina impede a felicidade de ambos, se ambos a quiserem ter juntos (MA, p. 130).
Ainda no Memorial, h uma apstrofe ao sono, em que se nota um misto de indiferena e pessimismo:
Agora, meu sono amigo, s tu virs daqui a uma ou duas horas, sem livros de sortes nem dados. Quando muito trars sonhos, e j no sero os mesmos de outro tempo (MA, p. 63).
J em Esa e Jac, o mesmo Aires faz uma apstrofe s lembranas que as pessoas costumam ter das datas importantes de suas vidas:
Doce memria! H pessoas a quem no ajudas, e chegam a brigar consigo e com outros por abandono teu. Felizes os que tu proteges; esses sabem o que 24 de maro, 10 de agosto, 2 de abril, 7 e 31 de outubro, 10 de novembro, o ano todo, suas tristezas e alegrias particulares (EJ, cap. XCI, p. 189). 351
Em Quincas Borba, ocorre uma apstrofe lgrima de Sofia, pouco aps Rubio desconfiar de um adultrio entre ela e Carlos Maria:
Oh! boa lgrima inesperada! Tu, que bastaste a persuadir um homem, podes no ser explicvel a outros, e assim vai o mundo (QB, cap. CXXI, p. 190).
Na obra machadiana, como se v, os narradores no conseguem ficar muito tempo sem projetar no enunciado um destinatrio do discurso. Em Dom Casmurro, isso acontece com uma freqncia bastante alta. O casmurro Bento no hesita em instalar seus pseudonarratrios, como ocorre com
os tijolos e as colunas de Na varanda:
Tijolos que pisei e repisei naquela tarde, colunas amareladas que me passastes direita ou esquerda, segundo eu ia ou vinha, em vs me ficou a melhor parte da crise (...) (DC, cap. XII, p. 32);
a confisso de crianas de A inscrio:
Confisso de crianas, tu valias bem duas ou trs pginas, mas quero ser poupado (DC, cap. XIV, p. 37);.
o homem grave de Mil padre-nossos e mil ave-marias:
Homem grave, possvel que estas agitaes de menino te enfadem, se que no as acha ridculas (DC, cap. XX, p. 50);
a retrica dos namorados de Olhos de ressaca:
Retrica dos namorados, d-me uma comparao exata e potica para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu (MP, cap. XXXII, p. 70); 352
os sbios da Escritura de O tratado:
Sbios da Escritura, adivinhai o que podia ser. Foi isto. No podendo rejeitar de mim aqueles quadros, recorri a um tratado entre a minha conscincia e a minha imaginao (DC, cap. LVIII, p. 113).
o querido opsculo do captulo homnimo:
Querido opsculo, tu no prestavas para nada, mas que mais presta um velho par de chinelas? (DC, cap. LX, p. 114).
o padre de Um pecado:
Padre que me ls, perdoa este recurso; foi a ltima vez que o empreguei (MP, cap. LXVII, p. 128);
Sancha no captulo A D. Sancha:
D. Sancha, peo-lhe que no leia este livro; ou, se o houver lido at aqui, abandone o resto. Basta fech-lo; melhor ser queim-lo, para lhe no dar tentao e abri-lo outra vez. Se, apesar do aviso, quiser ir at o fim, a culpa sua; no respondo pelo mal que receber. O que j lhe tiver feito, contando os gestos daquele sbado, esse acabou, uma vez que os acontecimentos, e eu com eles, desmentimos a minha iluso; mas o que agora a alcanar, esse indelvel. No, amiga minha, no leia mais. V envelhecendo, sem marido nem filha, que eu fao a mesma cousa, e ainda o melhor que se pode fazer depois da mocidade (DC, cap. CXXIX, p. 212).
Nesta ltima citao, Sancha sai do plano do enunciado e vem para a enunciao, numa metalepse que tambm indica o fim das convenes enunciativas e a 353 heterogeneidade mostrada e marcada no enunciado. Alis, o principal efeito dessas apstrofes justamente explicitar o carter dialgico dos romances machadianos. Ressalte-se que esse carter pode aparecer sem que haja referncias ao narratrio. Em Iai Garcia, por exemplo, no h apstrofes, mas o narrador encontra outras estratgias para marcar o dialogismo no enunciado. o que acontece quando Jorge se v dividido entre o amor de Estela e as imposies de Valria, que pretende mandar o filho guerra para evitar um casamento indesejado por ela:
Tua me quem tem razo, bradava uma voz interior; ias descer a uma aliana indigna de ti; e se no soubeste respeitar nem a tua pessoa nem o nome de teus pais, justo que pagues o erro indo correr a sorte da guerra. A vida no uma gloga virgiliana, uma conveno natural, que se no aceita com restries, nem se infringe sem penalidade. H duas naturezas, e a natureza social to legtima e to imperiosa como a outra. No se contrariam, completam-se; so as duas metades do homem, e tu ias ceder primeira, desrespeitando as leis necessrias da segunda. Quem tem razo s tu, dizia-lhe outra voz contrria, porque essa mulher vale mais que seu destino, e a lei do corao anterior e superior s outras leis. No ias descer; ias faz-la subir; ias emendar o equvoco da fortuna; escuta a voz de Deus e deixa aos homens o que vem dos homens (IG, cap. IV. P. 56).
Esse embate entre as vozes interiores, que fazem Jorge ficar cindido de sensaes contrrias, praticamente um comentrio metaenunciativo, por meio do qual o narrador explicita as motivaes do conflito que se desenha no comeo de Iai Garcia. O fato de as duas vozes representarem vises de mundo diametralmente opostas apenas refora a tese de que o enunciador machadiano valoriza o dialogismo como forma composicional (Fiorin, 2006b, p. 32), mais especificamente como um caso de polmica clara, pois estamos diante
do afrontamento de duas vozes que polemizam abertamente entre si, cada um defendendo uma idia contrria da outra (Fiorin, 2006b, p. 40).
354 O carter de Machado, como foi reiteradamente sugerido pelas Memrias pstumas, tambm revela uma erudio excessiva, com estrangeirismos mltiplos, citaes literrias variadas, referncias mitolgicas sofisticadas, aluses histricas e religiosas doutas. Desde a Advertncia de Ressurreio, o enunciador mostra sua erudio, ao fazer uma citao em ingls de Shakespeare 82 , que define to bem o carter de Flix que retomada no ltimo pargrafo do romance:
A natureza o [Flix] ps nessa classe de homens pusilnimes e visionrios, a quem cabe a reflexo do poeta: perdem o bem pelo receio de o buscar (RE, cap. XXIV, p. 180).
Como Shakespeare presena marcante na obra machadiana e como Ressurreio trata do tema do cime, de esperar que aluses a Otelo sejam feitas. De fato, isso ocorre no momento em que Batista resolve incentivar as desconfianas de Flix a respeito da fidelidade de Lvia:
(...) era mister multiplicar as suspeitas do mdico, cavar-lhe fundamente no corao a ferida do cime, torn-lo em suma instrumento de sua prpria runa. No adotou o mtodo de Iago, que lhe parecia arriscado e pueril; em vez de insinuar-lhe a suspeita pelo ouvido, meteu-lha pelos olhos (RE, cap. IX, p. 105).
Em A mo e a luva, o autor de Hamlet reaparece quando Estevo est inebriado pela viso de uma mulher encantadora, que ele ainda no percebeu ser Guiomar:
(...) a desconhecida foi sucessivamente comparada a um serafim de Klopstock, a uma fada de Shakespeare, a tudo quanto na memria dele havia mais areo, transparente e ideal (ML, cap. III, p. 34);
e no mesmo romance, faz-se uma referncia a Dante, outra predileo literria de Machado:
2 Minha idia ao escrever este livro foi pr em ao aquele pensamento de Shakespeare: Our doubts are traitors, / And make us lose the good we oft might win, / By fearing to attempt. (RE, p. 56) 355
Sobre tudo isto o obstculo, aquela porta fechada, que bem podia ser a da citt dolente, mas que em todo caso ele [Estevo] quisera ver franqueada s suas ambies (ML, cap. VI, p. 52).
Uma aluso ainda mais explcita a Dante est em Helena, quando Estcio conversa pela primeira vez com Salvador:
Estcio afastou-se rapidamente. (...) Semelhante ao transviado florentino, achava-se no meio de uma selva escura, a igual distncia da estrada reta, diritta via e da fatal porta, onde temia ser despojado de todas as esperanas (HE, cap. XXI, p. 149).
No so poucos tambm os momentos em que Machado faz suas referncias literatura francesa. Quando Estcio e Helena tm uma discusso, o clima s melhora quando surge a possibilidade de a moa ir a uma festa, a convite de Camargo:
A perspectiva do baile foi uma brisa salutar que dispersou o resto das nuvens; Eugnia sorriu. Jai ri; me voil dsarme, como na comdia de Piron (HE, cap. V, p. 48).
Outra manifestao de erudio de Machado se d nas aluses bblicas, que aparecem sob a forma de metforas ou comparaes e quase sempre servem para explicar o comportamento dos atores do enunciado. Em Helena, quando a protagonista consegue conquistar a confiana e a estima de D. rsula, que tinha estado doente, h uma dessas aluses:
Havia no corao de D. rsula uma fonte de ternura, que Helena devia tocar, para jorrar livre e impetuosamente. A dedicao, em tal crise, foi a vara misteriosa daquela Horeb (HE, cap. IX, p. 78).
Em Iai Garcia, numa descrio da menina, o narrador mistura dois momentos bblicos diferentes:
356 Nisto podia ficar o retrato da menina, se no conviesse falar tambm dos olhos, que, se eram lmpidos como os de Eva, se eram de rola, como os da Sulamites, tinham como os desta alguma coisa escondida dentro, que no era decerto a mesma cousa (IG, cap. IX, p. 101).
So tantos os momentos em que o enunciador, pela voz do narrador, explicita sua erudio que seria praticamente impossvel fazer um inventrio completo dessas referncias. Fiquemos, pois, apenas com alguns exemplos relevantes. Em Quincas Borba, ocorre uma bem-humorada referncia mitolgica quando Rubio galanteia Sofia no jardim, sob a luz das estrelas:
Em cima, as estrelas pareciam rir daquela situao inextricvel. V que a lua os visse! A lua no sabe escarnecer; e os poetas, que a acham saudosa, tero percebido que ela amou outrora algum astro vagabundo, que a deixou ao cabo de muitos sculos. Pode ser at que ainda se amem. Os seus eclipses (perdoe-me a astronomia) talvez no sejam mais que entrevistas amorosas. O mito de Diana descendo a encontrar-se com Endimio bem pode ser verdadeiro. Descer e que demais. Que mal h em que os dous se encontrem ali mesmo no cu, como os grilos entre as folhagens c de baixo? A noite, me caritativa, encarrega-se de velar a todos (QB, cap. XL, p. 66).
Em Dom Casmurro, alm das muitas referncias a Otelo, Desdemna e Iago, cujos conflitos shakespearianos tanto se parecem com a saga de Bento, e das aluses religiosas, que bem se casam com a histria de um seminarista sem vocao, h momentos clebres de erudio histrica e mitolgica. Quando Bentinho mantm uma polmica epistolar com Manduca sobre a Guerra da Crimia, o amigo doente do narrador terminava sempre suas cartas como bordo: Os russos no ho de entrar em Constantinopla! (DC, cap. XC, p. 155). Bento, da solido do Engenho Novo, mostra seus conhecimentos histricos e destila mais um pouco de ceticismo:
No entraram, efetivamente, nem ento, nem depois, nem at agora. Mas a predio ser eterna? No chegaro a entrar algum dia? Problema difcil. O prprio Manduca, para entrar na sepultura, gastou 357 trs anos de dissoluo, to certo que a natureza, como a histria, no se faz brincando. A vida dele resistiu como a Turquia; se afinal cedeu foi porque lhe faltou uma aliana como a anglo-francesa, no se podendo considerar tal o simples acordo da medicina e da farmcia. Morreu afinal, como os Estados morrem; no nosso caso particular, a questo saber, no se a Turquia morre porque a morte no poupa a ningum, mas se os russos entraro algum dia em Constantinopla; essa era a questo para o meu vizinho leproso, debaixo da triste, rota e infecta colcha de retalhos... (DC, cap. XC, p. 156-157).
Num outro momento de Dom Casmurro, o narrador fala sobre seu incmodo de ter feito um discurso fnebre ao homem que ele supunha ser amante de sua esposa. Para explicitar sua dor, ele se vale de uma comparao clssica:
Pramo julga-se o mais infeliz dos homens, por beijar a mo daquele que lhe matou o filho. Homero que relata isto, e um bom autor, no obstante cont-lo em verso, mas h narraes exatas em verso, e at mau verso. Compara tu a situao de Pramo com a minha; eu acabava de louvar as virtudes do homem que recebera, defunto, aqueles olhos... impossvel que algum Homero no tirasse da minha situao muito melhor efeito, ou quando menos, igual. Nem digas que nos faltam Homeros, pela causa apontada em Cames; no, senhor, faltam-nos, certo, mas porque os Pramos procuram a sombra e o silncio. As lgrimas, se as tm, so enxugadas atrs da porta, para que as caras apaream limpas e serenas; os discursos so antes de alegria que de melancolia, e tudo passa como se Aquiles no matasse Heitor (DC, cap. CXXV, p. 208-209).
Bento no s compara sua dor de Pramo, como supe que um grande escritor poderia extrair daquela situao um belo efeito literrio. Alm disso, ele afirma que as pessoas que passam pela situao do rei troiano costumam esconder as prprias mgoas. Ora, exatamente isso o que no ocorre em Dom Casmurro, uma vez que o narrador procura apresentar-se como algum sincero, com coragem para assumir que foi trado pela mulher e pelo melhor amigo. 358 Em Esa e Jac e no Memorial de Aires, a erudio do enunciador se mistura do conselheiro Aires. So feitas citaes em francs, ingls e italiano, que se fundem s idias do narrador. No captulo em que Perptua e Natividade do os dois mil-ris a um irmo das almas, aparece uma frase pronunciada por Jnia, personagem de Britannicus, de Racine (ato III, cena 3, verso 610):
Tambm no creias que fosse outrora rico e adltero, aberto de mos, quando vinha de dizer adeus s suas amigas. Ni cet excs dhonneur, ni cette indignit. Era um pobre-diabo sem mais ofcio que a devoo (EJ, cap. III, p. 25).
Uma outra bem-humorada aluso literrio-religiosa est no Memorial, no momento em que o narrador comenta o sonho de Fidlia, em que seu pai e o ex-sogro faziam as pazes no cu, aps tantas brigas polticas:
A reconciliao eterna, entre dous adversrios eleitorais, devia ser exatamente um castigo infinito. No conheo igual na Divina Comdia. Deus, quando quer ser Dante, maior que Dante (MA, p. 74).
Em Dom Casmurro, tambm existe uma passagem em que o narrador imagina uma possibilidade de acrescentar castigos ainda mais cruis ao inferno dantesco. Trata- se de um comentrio do narrador, anterior ao primeiro beijo entre Bentinho e Capitu:
H de dobrar o gozo aos bem-aventurados do cu conhecer a soma dos tormentos que j tero padecido no inferno os seus inimigos; assim tambm a quantidade das delcias que tero gozado no cu os seus desafetos aumentar as dores aos condenados do inferno. Este outro suplcio escapou ao divino Dante; mas eu no estou aqui para emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo no marcado, agarrei-me definitivamente aos cabelos de Capitu (...) (DC, cap. XXXII, p. 70-72).
Essa idia de emendar poetas muito comum em Machado e remete, em certa medida, ao gosto pelas citaes truncadas, tpicas da menipia, que esto presentes 359 nas Memrias pstumas. Dessa forma, nos romances aqui analisados, o aproveitamento de excertos cujo sentido foi modificado outra marca textual do fim das convenes enunciativas que caracteriza o enunciador. Em A mo e a luva, h uma personagem que faz uso curioso dessa citao truncada:
E Mrs. Oswald, que, como boa protestante que era, tinha a Escritura na ponta dos dedos, continuou por este modo, acentuando as palavras: Uma adorao como a que devia inspirar Jos, filho de Jac, que era belo como a senhora: por ele as moas andavam por cima da cerca... Da cerca? perguntou Guiomar tornando-se sria. Do muro, diz a Escritura, mas eu digo da cerca porque... nem eu sei por qu. No core! Olhe que se denuncia.
A insinuao de Mrs. Oswald se explica pelo fato de que Estevo e Guiomar haviam conversado por cima da cerca. O mais interessante que esse versculo bblico simplesmente no existe. No captulo 39 do Gnesis, diz-se apenas que Jos era formoso 83 . De fato, o carter da dama de companhia da baronesa plenamente compatvel com essa inveno de um versculo, que adquire praticamente um valor maledicente no contexto. Mas no deixa de ser sintomtico que o enunciador compartilha com a personagem o direito de recorrer, quando necessrio, a essas citaes deturpadas. H momentos em que o narrador explicita o truncamento. Em Quincas Borba, por exemplo, ocorre uma releitura de uma das mais conhecidas fbula de La Fontaine:
Oh! precauo sublime e piedosa da natureza, que pe uma cigarra viva ao p de vinte formigas mortas, para compens-las. Essa reflexo do leitor. Do Rubio no pode ser. Nem era capaz de aproximar as cousas, e concluir delas, nem o faria agora que est a chegar ao ltimo boto do colete, todo ouvidos, todo cigarra... Pobres
83 Na Vulgata, o sexto versculo do captulo 39 referido termina assim: erat autem Ioseph pulchra facie et decorus aspectu. 360 formigas mortas! Ide agora ao vosso Homero gauls, que vos pague a fama; a cigarra que se ri, emendando o texto:
Vous marchiez? Jen suis fort aise. Eh bien! mourez maintenant. (QB, cap. XC, p. 144)
Para que os versos possam ser atribudos cigarra, substituiu-se o chantiez original por marchiez e o imperativo dansez por mourez. Assim, as cigarras que cantavam e foram incitadas a danar deram lugar s formigas que andavam e agora deveriam morrer. Com efeito, Rubio se aproxima menos do trabalho das formigas do que da msica das cigarras. H outras citaes truncadas, outras emendas, que funcionam como pardias e contribuem para o efeito de humor no texto. No j comentado captulo CVI de Quincas Borba, parodia-se a clebre frase de Hamlet:
H entre o cu e a terra muitas mais ruas do que sonha a tua filosofia (QB, cap. CVI, p. 162).
No final do romance, ocorrem duas outras pardias do mesmo excerto shakespeariano:
E da, quem sabe? repetiu o Dr. Falco na manh seguinte. A noite no apagara a desconfiana do homem. E da, quem sabe? Sim, no seria s simpatia mrbida. Sem conhecer Shakespeare, ele emendou Hamlet: H entre o cu e a terra, Horcio, muitas cousas mais do que sonha a vossa v filantropia (QB, cap. CLXVIII, p. 241-242);
D. Fernanda no entendeu esta palavra. (...) Em verdade, a concluso no parecia estar nas premissas; mas era o caso de emendar outra vez Hamlet: H entre o cu e a terra, Horcio, muitas cousas mais do que sonha a vossa v dialtica (QB, cap. CLXIX, p. 242-243).
361 Tambm no Memorial de Aires h emendas. o caso de Aires modificando o incio de Menina e moa, de maneira a fazer referncia a Fidlia:
Da a brindar pelos noivos no me custou nada; fi-lo discretamente, e estendi o brinde gente Aguiar, que me ficou reconhecida. Rita disse-me, ao voltar da Prainha, que as minhas palavras foram deliciosas. Confessei-lhe que seriam mais adequadas se eu as resumisse em emendar Bernardim Ribeiro: Viva e noiva me levaram da casa de meus pais para longes terras... Mas, alm de lembrar o primeiro marido, podia estender as longas terras alm de Petrpolis, e viria afligir a festa to bonita (MA, p. 164).
Mas o maior nmero de pardias ainda acontece a partir de referncias bblicas. Em Esa e Jac, emendam-se os evangelhos:
Qual deles era o padre, qual o sacristo, no sei, nem preciso. A missa que era a mesma, e o evangelho comeava como o de S. Joo (emendado): No princpio era o amor, e o amor se fez carne. Mas venhamos aos nossos gmeos (EJ, cap. XVI, p. 52);
Flora no replicou mais nada, e, por seu gosto, no teria jantado, a tal ponto sentia piedade do outro. Felizmente, o outro era este mesmo, aqui presente, com os olhos presentes, as mos presentes, as palavras presentes. No tardou que a zanga fugisse diante da graa, da brandura e da adorao. Bem-aventurados os que ficam, porque eles sero compensados 84 (EJ, cap. LI, p. 117).
O que se conclui das referncias intertextuais e interdiscursivas a que Machado recorre insistentemente que sua erudio excessiva e seu gosto pela pardia funcionam como comprovaes do antidogmatismo enunciativo que caracteriza o comportamento do enunciador nos romances machadianos.
84 Nas Memrias pstumas (cap. XXXIII, p. 91), j havia uma pardia parecida a esta no captulo Bem- aventurados os que no descem, que tambm retoma as bem-aventuranas presentes em Mateus (5, 3-11) e Lucas (6, 20-22).
362 Uma outra marca textual desse antidogmatismo o emprego reiterado das digresses, que interrompem a seqncia cronolgica da fbula para, moda da tradio lucinica, tecer comentrios, intercalar histrias e produzir stiras. Os comentrios metaenunciativos, as apstrofes e conversas com o narratrio j constituem digresses. Muitas vezes, elas ocupam captulos inteiros. o caso de Epgrafe, de Esa e Jac, que aparece logo aps Aires citar um verso de Dante (Dico, che quando lanima mal nata), extrado do stimo verso do canto V do Inferno:
Ora, a est justamente a epgrafe do livro, se eu lhe quisesse pr alguma, e no me ocorresse outra. No somente um meio de completar as pessoas da narrao com as idias que deixarem, mas ainda um par de lunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos claro ou totalmente escuro. Por outro lado, h proveito em irem as pessoas da minha histria colaborando nela, ajudando o autor, por uma lei de solidariedade espcie de troca de servios, entre o enxadrista e os seus trebelhos. Se aceitas a comparao, distinguirs o rei e a dama, o bispo e o cavalo, sem que o cavalo possa fazer de torre, nem a torre de peo. H ainda a diferena da cor, branca e preta, mas esta no tira o poder da marcha de cada pea, e afinal umas e outras podem ganhar a partida, e assim vai o mundo. Talvez conviesse pr aqui, de quando em quando, como nas publicaes do jogo, um diagrama das posies belas ou difceis. No havendo tabuleiro, um grande auxlio este processo para acompanhar os lances, mas tambm pode ser que tenhas viso bastante para reproduzir na memria as situaes diversas. Creio que sim. Fora com diagramas! Tudo ir como se realmente visses jogar a partida entre pessoa e pessoa, ou mais claramente, entre Deus e o Diabo (EJ, cap. XIII, p. 46-47).
Nesse captulo, do qual j analisamos os dois primeiros pargrafos, h dilogo com o narratrio e metaenunciao. Como, alm disso, houve uma completa interrupo da fbula, tem-se uma digresso em que o narrador satiriza as narrativas 363 fceis, em que os lances seriam previsveis e diagramveis, e defende a contradio, a dialtica, a surpresa, o milenar embate entre Deus e o Diabo. Alis, esse embate que estrutura uma digresso machadiana famosa, presente em Dom Casmurro. Logo aps a narrao do momento em que Jos Dias insinua a Dona Glria que Bentinho e Capitu poderiam estar namorando, seguida da apresentao de algumas das principais personagens do romance, o narrador faz a digresso mais famosa do romance, que est no captulo A pera. Nela, Bento expe a teoria de um velho tenor italiano chamado Marcolini de que a vida uma pera composta em parceira por Deus e pelo Diabo:
Deus o poeta. A msica de Satans, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatrio do cu (DC, cap. IX, p. 28).
Nosso planeta seria ento o teatro especial e a humanidade seria a companhia inteira, com todas as partes, primrias e comprimrias, coros e bailarinos (DC, cap. IX, p. 29), todos necessrios execuo da pea musical. Acontece que
h lugares em que o verso vai para a direita e a msica, para a esquerda. No falta quem diga que nisso mesmo est a beleza da composio, fugindo monotonia, e assim explicam o terceto do den, a ria de Abel, os coros da guilhotina e da escravido. No raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razo suficiente. Certos motivos cansam fora de repetio. Tambm h obscuridades; o maestro abusa das massas corais, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso. As partes orquestrais so alis tratadas com grande percia. Tal a opinio dos imparciais (DC, cap. IX, p. 29).
Segundo a metafsica do tenor, as contradies humanas seriam explicadas pela natureza da parceria da pera, que mistura a msica demonaca e a palavra divina. Mas essa digresso no s uma figurativizao filosfica dos comportamentos paradoxais do homem. Na verdade, ela uma espcie de antecipao narrativa, uma vez que o narrador faz uma leitura bastante pessoal da tese de Marcolini no captulo subseqente, intitulado Aceito a teoria:
364 Que demasiada metafsica para um s tenor, no h dvida; mas a perda da voz explica tudo, e h filsofos que so, em resumo, tenores desempregados. Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, no s pela verossimilhana, que muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem definio. Cantei um duo ternssimo, depois um trio, depois um quatuor... Mas no adiantemos; vamos primeira parte, em que eu vim a saber que j cantava, porque a denncia de Jos Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim que ele me denunciou (DC, cap. X, p. 30).
A partir da metfora de que a vida uma pera, Bento sugere sua relao com Capitu, o tringulo amoroso com Escobar e a relao entre os dois casais de amigos: ele e a esposa, o companheiro de seminrio e Sancha. Logo aps a sugesto, ele resolve no adiantar esses sucessos e apenas reconhece que comeou a cantar isto , participar da pera das contradies humanas no momento em que ele se descobre, por causa das insinuaes de Jos Dias, apaixonado por sua vizinha de Matacavalos. Essa metfora da pera j aparecera em Ressurreio, numa fala de Lus Batista a Flix:
No desconheo, disse Lus Batista quando concluiu a sua expanso amorosa, no desconheo que uma aventura destas, em vsperas de noivado, produz igual efeito ao de uma ria de Offenbach no meio de uma melodia de Weber. Mas, meu caro amigo, lei da natureza humana que cada um trate do que lhe d mais gosto. A vida uma pera bufa com intervalos de msica sria. O senhor est num intervalo; delicie-se com o seu Weber at que se levante o pano para recomear o seu Offenbach. Estou certo de que vir cancanear comigo, e afirmo-lhe que achar bom parceiro (RE, cap. XX, p. 158).
Outra digresso importante de Dom Casmurro ocorre no longo captulo Um soneto, em que o narrador, na poca do seminrio, tem o impulso de escrever um poema petrarquiano, em quartetos e tercetos decasslabos, mas s consegue compor dois versos: o primeiro e o ltimo. Ao final dessa digresso narrativa, ele reconhece: 365
Trabalhei em vo, busquei, catei, esperei, no vieram os versos. Pelo tempo adiante escrevi algumas pginas em prosa, e agora estou compondo esta narrao, no achando maior dificuldade que escrever, bem ou mal. Pois, senhores, nada me consola daquele soneto que no fiz. Mas, como eu creio que os sonetos existem feitos, como as odes e os dramas, e as demais obras de arte, por uma razo de ordem metafsica, dou esses dous versos ao primeiro desocupado que os quiser. Ao domingo, ou se estiver chovendo, ou na roa, em qualquer ocasio de lazer, pode tentar ver se o soneto sai. Tudo dar-lhe uma idia e encher o centro que falta (DC, cap. LV, p. 108).
No segundo captulo do romance, o narrador diz que seu fim evidente era resgatar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescncia (DC, cap. II, p. 17). A semelhana com o captulo Um soneto grande, pois o que ele defende que algum poderia compor o poema para encher o centro que falta. Dessa forma, como se Bento sugerisse, pela digresso, que o romance Dom Casmurro est sendo produzido para completar o mesmo tipo de lacuna daquele soneto no-escrito. Em Quincas Borba, h dezenas de passagens digressivas. Fiquemos com uma clebre. Em meio aos devaneios de Rubio, j apaixonado por Sofia, o protagonista resolve voltar para casa, quando trs cocheiros lhe oferecem seus tlburis. Ento vem um captulo integralmente digressivo:
O rumor das vozes e dos veculos acordou um mendigo que dormia nos degraus da igreja. O pobre-diabo sentou-se, viu o que era, depois tornou a deitar-se, mas acordado, de barriga para o ar, com os olhos fitos no cu. O cu fitava-o tambm, impassvel como ele, mas sem as rugas do mendigo, nem os sapatos rotos, nem os andrajos, um cia claro, estrelado, sossegado, olmpico, tal qual presidiu s bodas de Jac e ao suicdio de Lucrcia. Olhavam-se numa espcie de jogo do siso, com certo ar de majestades rivais e tranqilas, sem arrogncia nem baixeza, como se o mendigo dissesse ao cu: Afinal, no me hs de cair em cima. E o cu: 366 Nem tu me hs de escalar (QB, cap. XLVI, p. 75).
Aqui, tem-se aquele tipo de digresso zombeteira que tanto se encontra nas Memrias pstumas. No captulo seguinte, voltando fbula, o narrador explica a relao entre a digresso e a situao de Rubio:
Rubio no era filsofo; a comparao que ali fez entre os seus cuidados e os do maltrapilho apenas lhe trouxe alma uma sombra de inveja. Aquele malandro no pensa em nada, disse ele consigo; daqui a pouco est dormindo, enquanto eu... (QB, cap. XLVII, p. 75).
Na verdade, a partir das Memrias pstumas, como os captulos da obra machadiana ficam mais curtos, as digresses se tornam proporcionalmente mais longas, chegando a ocupar at mais de um captulo. No Memorial de Aires, por exemplo, a prpria estrutura de dirio facilita as digresses, umas vez que no era a inteno de Aires, como sugere a Advertncia da obra, compor uma narrao seguida (MA, p. 15). Nos romances anteriores a 1881, os captulos eram maiores e as passagens digressivas se resumiam a pargrafos ou a perodos. Nestes, na maioria das vezes, as digresses so comentrios dissertativos do narrador sobre aspectos relevantes da fbula e sobre o universo psicolgico dos atores do enunciado. o caso do seguinte pargrafo de A mo e a luva, cujo ltimo perodo pode ser considerado digressivo:
Imagine-se por isso em que estado lhe ficou o esprito depois da declarao de Jorge. No havia meio de fugir ao pretendente, era preciso trag-lo. Esta perspectiva abateu-lhe totalmente o nimo. Uma confidente, em tais situaes, um presente do cu; mas Guiomar no a tinha, e se alguma pessoa lhe merecesse tal confiana, certo ou quase certo que lhe no diria nada. Suas dores eram altivas, as tristezas de seu corao tinham pudor. Espritos desta casta ignoram a consolao que h, nas horas de crise, em se repartirem com outro; triste, mas feliz ignorncia que lhes poupa muita vez o contato de uma conscincia aleivosa e ruim (ML, cap. XIV, p. 100).
367 Um outro ponto que define o carter do ator enunciao Machado de Assis justamente sua tendncia a satirizar o Romantismo ingnuo e mostrar-se mais predisposto a enxergar o mundo por uma tica mais realista. claro que Machado est longe de ser um realista moda de Ea, Flaubert ou Zola. At porque ele nega o contrato objetivante que caracteriza as obras desses escritores. No entanto, ele no s nega o contrato subjetivante tpico dos romnticos, como lhes satiriza as crenas da eternidade do sentimento amoroso ou da pureza dos afetos. Em Machado, o clculo, a razo, o interesse e o desejo de poder falam mais alto do que aquele amor inexorvel, que move o sol e as mais estrelas. Desde Ressurreio, h um tom de inovao histrico-literria em Machado que o afasta da literatura digamos mais tradicional. No captulo O gavio e a pomba, quando Flix olha um lbum de Lvia, que estava j alastrado de prosa e verso, h uma crtica dura ao Romantismo mais piegas:
Nem tudo era bom, como acontece nesses livros, que so s vezes verdadeiros asilos de invlidos do Parnaso, onde as musas reumticas e manetas vo soltar os seus gemidos (RE, cap. VII, p. 99).
Em A mo e a luva, a peleja entre realistas e romnticos pode ser representada, respectivamente, pelo pragmatismo interesseiro de Mrs. Oswald em oposio ingenuidade byroniana de Estevo. Aquela, numa conversa com Guiomar, defende a prevalncia da realidade sobre os sonhos:
Convena-se de que eu sou importuna e indiscreta por afeio, e que a felicidade desta famlia toda a ambio da minha alma. No pode haver inteno melhor do que esta. Um conselho ltimo, ltimo se me no consentir mais falar-lhe nisto; eu creio que a senhora sonha talvez demais. Sonhar uns amores de romance, quase impossveis? Digo-lhe que faz mal, que melhor, muito melhor contentar-se com a realidade; se ela no brilhante como os sonhos, tem pelo menos a vantagem de existir (ML, cap. VII, p. 57);
j Estvo, quando resolve declarar-se a Guiomar, relembrando moa um amor que parecia esquecido, revela o mais pueril Romantismo: 368
Se eu tivesse achado neste lugar, continuou ele, longos dias de esperana e de saudade, um passado que eu julgara no reviver mais, uma dor oculta e medrosa, vivida na solido, nutrida e consolada de minhas prprias lgrimas? Se eu tivesse achado aqui a pgina rota de uma histria comeada e interrompida, no por culpa de ningum na Terra, mas da estrela sinistra da minha vida, que um anjo mau acendeu no cu, e que, talvez, talvez ningum nunca apagar? (ML, cap. VIII, p. 62).
Em Machado, narradores e enunciador esto mais para Mrs. Oswald do que para Estvo. Em muitas passagens dos nove romances, nota-se uma stira ao narratrio romntico. No final de A mo e a luva, por exemplo, quando Lus Alves e Guiomar se casam, h uma referncia explcita aos leitores acostumados a narrativas de amores impossveis e de frustraes sentimentais:
Na noite do casamento, quem olhasse para o lado do mar, veria pouco distante dos grupos de curiosos, atrados pela festa de uma casa grande e rica, um vulto de homem sentado sobre uma ljea que acaso topara ali. Quem est afeito a ler romances, e leu esta narrativa desde o comeo, supe logo que esse homem podia ser Estvo. Era ele. Talvez o leitor, em lance idntico, fosse refugiar-se em stio to remoto, que mal pudesse acompanh-lo a lembrana do passado. A alma de Estvo sentiu uma necessidade cruel e singular, o gosto de revolver o ferro na ferida, uma coisa a que chamaremos voluptuosidade da dor, em falta de melhor denominao (ML, cap. XIX, p. 129).
A voluptuosidade da dor poderia ter sido chamada de spleen, confirmado os exageros romnticos de Estevo e do narrador. Em outro momento, o desespero de Estevo devido desiluso amorosa francamente satirizado pelo narrador, que pretende compartilhar com o narratrio essa stira:
369 Um leitor perspicaz, como eu suponho que h de ser o leitor deste livro, dispensa que eu lhe conte os muitos planos que ele teceu, diversos e contraditrios, como de razo em anlogas situaes. Apenas direi por alto que ele pensou trs vezes em morrer, duas em fugir cidade, quatro em ir afogar a sua dor mortal naquele ainda mais mortal pntano de corrupo em que apodrece e morre tantas vezes a flor da mocidade (ML, cap. XI, p. 84).
A conversa entre Lus Garcia e Estela em Iai Garcia, em que eles ajustam o casamento, outro momento em que os atores da enunciao colocam o amor num patamar inferior s convenincias sociais. Numa conversa franca e pragmtica, eles chegam a um acordo absolutamente racional:
Creio que nenhuma paixo nos cega, e se nos casamos por nos julgarmos friamente dignos um do outro. Uma paixo de sua parte, em relao minha pessoa, seria inverossmil, confessou Lus Garcia; no lha atribuo. Pelo que me toca, era igualmente inverossmil um sentimento dessa natureza, no porque a senhora o no pudesse inspirar, mas porque eu j o no poderia ter. Tanto melhor, concluiu Estela; estamos na mesma situao e vamos comear uma viagem com os olhos abertos e o corao tranqilo. Parece que em geral os casamentos comeam pelo amor e acabam pela estima; ns comeamos pela estima; muito mais seguro (IG, cap. VI, p. 77)
Dom Casmurro tambm apresenta crticas ao Romantismo, principalmente na actorializao do narratrio. No j citado captulo No faa isso, querida, que vem logo depois do flerte entre Bentinho e Sancha, o narrador diz que a leitora deve estar preocupada ao ver que beiramos um abismo, afinal ela s abriu o livro com o fim de descansar da cavatina de ontem para a valsa de hoje (DC, cap. CXIX, p. 202). Essa referncia a uma literatura de consumo, em que no h grandes conflitos e no se quebram os padres discursivos, sarcstica e comprova como em Machado encontramos exemplos sobejos para mostrar que o enunciador adota uma conduta enunciativa marcada pelo antidogmatismo. 370 Em Esa e Jac, por diversas vezes, o narratrio identificado como um leitor romntico, incapaz de compreender uma narrativa digressiva e metaenunciativa. H momentos em que o narrador finge compartilhar os mesmos valores desse narratrio:
Tudo isso restrinjo s para no enfadar a leitora curiosa de ver os meus meninos homens e acabados. Vamos v-los, querida. Com pouco, esto crescidos e fortes (EJ, cap. XVII, p. 53);
em outros, ele condena o interesse das leitoras pelos casos amorosos que costumavam aparecer nos romances do XIX:
O que a senhora deseja, amiga minha, chegar j ao captulo do amor ou dos amores, que o seu interesse particular nos livros (EJ, cap. XXVII, p. 71);
at que Aires chega, numa passagem em que ele analisa o carter de Fidlia, a discordar explicitamente de suas presumveis leitoras:
O baile acabou. O captulo que no acaba sem que deixe um pouco de espao a quem quiser pensar naquela criatura. Pai nem me podiam entend-la, os rapazes tambm no, e provavelmente Santos e Natividade menos que ningum. Tu, mestra de amores ou aluna deles, tu, que escutas a diversos, concluis que ela era... Custa pr o nome do ofcio. Se no fosse a obrigao de contar a histria com as prprias palavras, preferia cal-lo, mas tu sabes qual ele, e aqui fica. Concluis que Flora era namoradeira, e concluis mal (EJ, cap. LXX, p. 154)
Note-se que nos ltimos exemplos o narratrio sempre apresentado como se fosse mulher. Dessa forma, aproveita-se o tema, muito disseminada nos romances realistas (vejam-se os casos de O primo Baslio e Madame Bovary, s para ficar com dois exemplos consagrados), das mulheres que se encantavam por histrias exageradas de paixo e suspense. Ao dirigir o discurso do narrador para esse pblico, o enunciador mostra que sua obra voltada, na verdade, para um enunciatrio que, alm de 371 compreender novidades discursivas, tambm no compartilha as preferncias literrias desse pblico. Podemos voltar ento tese de que Machado opera com o contrato semitico, pois ele no espera que sua obra seja interpretada como uma leitura mais objetiva e mais subjetiva da realidade. Nesse contrato, o pacto fiducirio entre enunciador e enunciatrio pressupe uma concordncia em relao s estratgias discursivas empregadas. Entre essas estratgias, no se pode deixar de tratar do problema do foco narrativo, que configura no conjunto dos romances aqui analisados uma questo bastante complexa. Recorrendo sistematizao que fizemos no terceiro item do primeiro captulo, seria possvel imaginar a seguinte classificao dos narradores dos nove romances de Machado de Assis:
ROMANCE TIPO DE NARRADOR TIPO DE FOCALIZAO Ressurreio Narrador-onisciente total Focalizao total A mo e a luva Narrador-onisciente total Focalizao total Helena Narrador-onisciente total Focalizao total Iai Garcia Narrador-onisciente total Focalizao total Memrias pstumas Narrador-protagonista Focalizao parcial interna fixa Quincas Borba Narrador-onisciente total Focalizao total Dom Casmurro Narrador-protagonista Focalizao parcial interna fixa Esa e Jac Narrador-testemunha / Narrador-onisciente Focalizao total Memorial de Aires Narrador-protagonista / Narrador-testemunha Focalizao parcial interna varivel / Focalizao parcial externa
Como esperado de um enunciador cujo carter dominado pelo antidogmatismo enunciativo, essa classificao no d conta de explicar as 372 particularidades do problema da focalizao nos romances machadianos. Em Memrias pstumas, como j mostramos, h um narrador-protagonista com momentos de oniscincia, pois o fato de Brs estar morto lhe permite saber coisas que um narrador vivo no saberia. Fenmeno parecido se d em Esa e Jac. Se no se leva em conta a Advertncia do romance, a narrativa seria mais um exemplo tradicional de focalizao total. No entanto, sabe-se que o narrador do livro Aires. Ocorre que o conselheiro s aparece como ator do enunciado em terceira pessoa:
J ento este ex-ministro estava aposentado. Regressou ao Rio de Janeiro, depois de um ltimo olhar s coisas vistas, para aqui viver o resto dos seus dias. Podia faz-lo em qualquer cidade, era homem de todos os climas, mas tinha particular amor sua terra, e porventura estava cansado de outras. No atribua a esta tantas calamidades. A febre amarela, por exemplo, fora de a desmentir l fora, perdeu-lhe a f, e c dentro, quando via publicados alguns casos, estava j corrompido por aquele credo que atribui todas as molstias a uma variedade de nomes. Talvez porque era homem sadio (EJ, cap. XXXII, p. 77-78).
Essa auto-embreagem no impede Aires de, s vezes, envolver-se com os acontecimentos da fbula. Aps uma srie de questionamentos sobre a morte de Flora, o narrador escreve:
Perdoai estas perguntas obscuras, que se no ajustam, antes se contrariam. A razo que no recordo este bito sem pena, e ainda trago o enterro vista... (EJ, cap. CVII, p. 217)
Nessa passagem, h uma das pouqussimas debreagens actanciais enunciativas do enunciado. Na maior parte das vezes, as debreagens enunciativas so da enunciao, pois instalam no texto o narrador, e no a personagem. Dessa maneira, o foco narrativo de Esa e Jac se aproximaria, em alguns momentos, da idia de um narrador-testemunha, pois Aires contaria uma histria da qual ele ator do enunciado, mas cujos protagonistas so Flora e os gmeos Pedro e 373 Paulo. Em outras passagens, a focalizao ainda poderia considerada interna e varivel, pois o observador estaria sincretizado ora com Aires, ora com os protagonistas. Entretanto nada disso explica a complexidade discursiva do romance. Como um todo, Esa e Jac acaba sendo mesmo um exemplo de focalizao total, que s possvel pelo fato de o narrador-personagem estar embreado, o que lhe garante a oniscincia total. No Memorial de Aires, h tambm uma duplicidade de focalizao, pois o narrador, at um certo ponto da narrativa, parece ser o protagonista dos acontecimentos do romance-dirio, mas, aos poucos, ele vai dando espao solido paternalista do casal Aguiar e ao idlio de Tristo e Fidlia. Assim, o narrador-protagonista vai passando a narrador-testemunha, e a focalizao parcial interna, que era fixa, torna-se varivel. Em Dom Casmurro, a classificao do tipo de narrador parece ser mais simples, mas nem por isso o foco narrativo deixa de ser fundamental para a construo discursiva. O observador do narrador est sincretizado com o ator da enunciao, que procura criar uma imagem dos demais atores do enunciado de tal maneira que ele possa comprovar a tese de que Capitu adltera. A parcialidade do ponto de vista afasta Dom Casmurro do modelo de narrativa sobre traio feminina na poca realista, pois mais importante do que um eventual caso amoroso entre Escobar e Capitu so as estratgias de acusao empregadas pelo Dr. Bento. Quando o enunciatrio percebe essa sutileza de foco narrativo, o romance passa a ser mais interessante pela enunciao do que pelo enunciado. Nos romances em que o narrador se mantm apenas como ator da enunciao casos de Ressurreio, A mo e a luva, Helena, Iai Garcia e Quincas Borba , a focalizao total, com oniscincia plena. Mas nem por isso o narrador deixa de debrear-se enunciativamente em comentrios metaenunciativos e em referncias ao narratrio. Porm, ainda mais relevante do que as debreagens da enunciao para caracterizar o antidogmatismo enunciativo machadiano, so os momentos em que o narrador parece abrir mo de sua oniscincia, comportando-se como um narrador- espectador. Nessas situaes, h mais uma flutuao de foco narrativo, e a focalizao deixa de ser total para se tornar parcial. Em Ressurreio, h desses momentos de presumveis incertezas do narrador. Um exemplo est na dvida que cerca os sentimentos de Flix nesta passagem:
374 A tarde estava realmente linda. Flix, entretanto, cuidava menos da tarde que da moa. No queria perder o ensejo de lhe dizer, como se fora verdade, que a amava loucamente (RE, cap. VI, p. 92).
A esta altura da narrativa, h indcios para concluir que Flix j estava apaixonado por Lvia, o que inclusive explicava seu cime doentio. Dessa maneira, o comentrio em negrito do narrador pe em dvida aquilo que ele mesmo havia sugerido, num procedimento de discursivo de relativizao da oniscincia. Ainda em Ressurreio, quando Meneses insiste em declarar-se para Lvia, o narrador opta por no explicitar completamente os sentimentos da moa:
Lvia compreendia esse estado da alma do moo. Lastimava, quem sabe?, no ser ele o escolhido do seu corao. Era o mais que lhe podia dar, e era muito (RE, cap. XIII, p. 127).
Em A mo e a luva, o narrador mantm esse tipo de incerteza quando vai falar sobre a relao entre Jorge e Guiomar, defendida ferrenhamente por Mrs. Oswald:
Jorge pela sua parte estava disposto a estender o colo ao sacrifcio; e, bem examinadas as coisas, talvez amasse sinceramente a moa (ML, cap. VII, p. 58).
Em relao ao destino do rejeitado Estvo, o narrador de A mo e a luva tambm abdica da focalizao total:
Os anos passaram depois, e medida que vinham, ia-se Estvo afundando no mar vasto e escuro da multido annima. O nome, que no passara da lembrana dos amigos, a mesmo morreu, quando a fortuna o distanciou deles. Se ele ainda vegeta em algum recanto da capital, ou se acabou em alguma vila do interior, ignora-se (ML, cap. XIX, p. 130).
Em Helena, o narrador usa o padre Melchior para relativizar sua oniscincia:
375 Nem por isso foi o primeiro que saiu; foi o ltimo. Na chcara, dirigindo-se ao porto, ergueu os olhos ao firmamento, no para ver a lua e as estrelas, seno para subir a regio mais alta. O que disse ningum o soube, mas o anjo das rogativas humanas porventura colheu em seu regao os pensamentos do ancio, e os levou aos ps do eterno e casto amor (HE, cap. XVII, p. 127).
Em Iai Garcia, o romance em que a focalizao total mais rgida, h um fragmento em que o narrador, via discurso indireto livre, parece incoporar algumas das dvidas de Antunes sobre o destino da filha:
A fim de emendar a mo fortuna, o pai de Estela concentrou na viva a ateno que at ento repartira entre ela e o marido, fato que alis decorria da prpria obrigao moral em que se achava com a famlia do desembargador. Estela devia a essa famlia educao e carinho; podia talvez vir a dever-lhe um dote, um marido e considerao. Quem sabe? Talvez o corao de Jorge vinculasse as duas famlias. Esta ambio afagava-a o Sr. Antunes no mais profundo de sua alma (IG, cap. III, p. 40).
Em outro momento do mesmo captulo, no se sabe se Estela comprendia ou no os olhares cobiosos de Jorge:
(...) Jorge falava-lhe com os olhos, linguagem que a moa no entendia, ou fingia no entender (IG, cap. III, p. 42).
Por fim, em Quincas Borba, essa brincadeira com a oniscincia aparece duas vezes no momento em que Rubio comea a galantear Sofia:
Palha (...) no via a contemplao mtua da esposa e do capitalista. No sei se todas as outras pessoas estavam no mesmo caso. Uma delas, sim, essa sei que os via: D. Tonica, a filha do major (QB, cap. XXXVI, p. 61-62);
376 Rubio lembrou-se de uma comparao velha, mui velha, apanhada em no sei que dcima de 1850, ou de qualquer outra pgina em prosa de todos os tempos. Chamou aos olhos de Sofia as estrelas da terra, e s estrelas os olhos do cu. Tudo isso baixinho e trmulo (QB, cap. XXXIX, p. 64).
Os exemplos usados neste item apontam para a mesma direo: a totalidade de romances machadianos confirma a existncia de um nico ator da enunciao por trs de todas as obras, j que os traos de seu carter esto espalhados pelos nove romances que nos serviram de base. Mas ainda h um outro ponto que justifica a tese de que o enunciador machadiano, a despeito de a crtica literria especializada falar em fase romntica e fase realista de sua carreira, apresenta uma notvel unidade em relao ao thos: trata-se das semelhanas e coincidncias de linguagem entre os romances 85 . J apontamos um caso, que a metfora de que a vida uma pera, que aparecera em Ressurreio e foi retomada e desenvolvida em Dom Casmurro. Uma outra curiosa semelhana, agora entre Quincas Borba e Memrias pstumas, apontada por Cruz Jnior:
(...) quando, ao contar que Sofia no conseguia, por causa de seus cimes, dizer a Maria Benedita que Rubio era o noivo que Palha escolhera para ela, o narrador dirige-se ao narratrio e faz o seguinte comentrio: Cr-lo-eis, psteros? Sofia no pde soltar o nome de Rubio [QB, cap. LXXVII, p. 127]. (...) Essa expresso remete inevitavelmente ao (...) narrador Brs Cubas, que, alis, a utilizara, tal e qual para narrar o dia que entrou em uma relojoaria e l encontrara uma mulher que fora bonita, e no pouco bonita; mas a doena e uma velhice precoce haviam destrudo-lhe a flor das graas. Em seguida, dirige-se ao leitor para revelar quem era a mulher e o faz nos seguintes termos: Cr-lo-eis, psteros
? essa mulher era Marcela [MP, cap. XXXVIII, p. 96] (2006, p. 150-151).
85 Por um lado, essas coincidncias de linguagem indicam que todos esses romances apresentam o mesmo autor real e poderiam, por isso, servir para determinar a autoria dos romances, caso houvesse dvida sobre isso. Por outro, as repeties dos mesmos percursos figurativos e temticos e as semelhanas do plano da expresso configuram recorrncias do uso, que, por sua vez, ajudam a definir o estilo. Estamos trabalhando com essa segunda hiptese, uma vez que consideramos essas coincidncias de linguagem como marcas textuais do efeito de unidade produzido pela totalidade de discursos que caracteriza o ator da enunciao. 377 Mas h muitas outras coincidncias de linguagem que pressupem um nico ator da enunciao. Nas Memrias pstumas, as pernas so consideradas abenoadas, pois fazem seu trabalho enquanto Brs pode refletir em paz:
Sim, pernas amigas, vs deixastes minha cabea o trabalho de pensar em Virglia (MP, cap. LXVI, p. 135).
Em Quincas Borba, so as pernas de Rubio que so, pelo mesmo motivo, consideradas santas:
As pernas tinham feito tudo; elas que o levaram por si mesmas, direitas, lcidas, sem tropeo, para que ficasse cabea to-somente a tarefa de pensar. Boas pernas! pernas amigas! muletas naturais do esprito! (MP, cap. LXXX, p. 129).
Em A mo e a luva e Dom Casmurro, h dois captulos que tm absolutamente o mesmo ttulo: Embargos de terceiro. De acordo com o Houaiss, a expresso embargos de terceiro significa
ao impetrada por pessoa estranha causa, mas que se julga prejudicada, destinada a excluir bens de terceiros que estejam sendo, ilegitimamente, objeto de apreenso judicial
Em A mo e a luva, os embargos so de Jorge, que, adivinhando um sentimento recproco entre Lus Alves e Guiomar, resolve pedir a mo da moa em casamento, para, contando com a vontade da baronesa e com a presso de Mrs. Oswald, evitar que seu rival obtivesse sucesso na tentativa de conquistar definitivamente Guiomar. Em Dom Casmurro, trata-se do captulo em que Bentinho, que havia ido sozinho pera, volta para casa no final do primeiro ato e encontra Escobar, que lhe viera falar de uns embargos de terceiro (DC, cap. CXIII, p. 191). Bentinho fica desconfiado, e o ttulo do captulo parece ser uma brincadeira com a idia de um tringulo amoroso ou com o trio da pera, que havia sido sugerido no captulo Aceito a teoria. O narrador parece reconhecer isso no incio do captulo Dvidas sobre dvidas:
378 Vamos agora aos embargos... E por que iremos aos embargos? Deus sabe o que custa escrev-los, quanto mais cont-los (DC, cap. CXV, p. 192-194).
Outra semelhana ocorre com a idia fixa. Nas Memrias pstumas, Brs afirma que morreu pela obsesso do emplasto e chega mesmo a desejar que o leitor nunca tenha uma dessas obsesses:
Deus te livre, leitor, de uma idia fixa, antes um argueiro, antes uma trave no olho (MP, cap. IV, p. 27).
Em A mo e a luva, Lus Alves, que tem a obstinao do dogue, v o lado positivo das obsesses. Numa conversa com a baronesa, em que ele tenta demov-la do projeto de sair momentaneamente da corte, ele afirma:
Justamente, uma idia fixa. Sem idia fixa no se faz nada bom neste mundo (ML, cap. XIV, p. 140).
Tambm em Iai Garcia, h esse tipo de obstinao quando Jorge redescobre seu amor por Estela:
A verdade que o amor de Jorge tinha como que despido a qualidade de sentimento para constituir-se idia fixa (IG, cap. IX, p. 98).
Nas Memrias pstumas, quando Brs se apaixona por Marcela, ele comenta as duas maneiras de conquistar as mulheres:
Que, em verdade, h dous meios de granjear o corao das mulheres: o violento, como o touro de Europa, e o insinuativo, como o cisne de Leda e a chuva de ouro de Dnae, trs inventos do padre Zeus (...) (MP, cap. XV, p. 57).
379 Em Ressurreio, h outras figuras para recobrir os mesmos temas do amor violento e insinuativo:
Decidam l os doutores da escritura qual destes dous amores melhor, se o que vem de golpe, se o que invade a passo lento o corao. Eu por mim no sei decidir, ambos so amores, tm suas energias (RE, cap. VIII, p. 101).
Novamente em Ressurreio, quando Flix e Ceclia se reencontram, o narrador parece fazer uma referncia a les neiges dantan de Franois Villon:
Flix olhou severamente para Ceclia, como quem estranhava a liberdade que tomara. Mas onde iam j as flores de antanho?(RE, cap. XIV, p. 101).
O mesmo questionamento feito por Brs quando Virglia perde o beb que esperava:
Onde esto elas, as flores de antanho? Uma tarde, aps algumas semanas de gestao, esboroou-se todo o edifcio das minhas quimeras paternais. Foi-se o embrio, naquele ponto em que se no distingue Laplace de uma tartaruga (MP. Cap. XCV, p. 169).
Ainda nas Memrias pstumas, o narrador satiriza o narratrio romntico que poderia estar insatisfeito com o fim da relao entre Brs e Eugnia:
H a, entre as cinco ou dez pessoas que me lem, h a uma alma sensvel, que est decerto um tanto agastada com o captulo anterior, comea a tremer pela sorte de Eugnia (...) (MP, cap. XXXIV, p. 92).
Em Esa e Jac, Aires usa a mesma expresso de Brs para qualificar seus leitores, quando o tringulo amoroso entre os gmeos e Flora comea a se formar:
380 (...) a discrdia no to feia como se pinta. Teimo nisto para que as almas sensveis no comecem de tremer pela moa ou pelos rapazes. No h mister tremer, tanto mais que a discrdia dos dois comeou por um simples acordo, naquela noite (EJ, cap. XXXVI, p. 84).
Como ltimos exemplos dessas proximidades de linguagem, podemos lembrar duas semelhanas entre A mo e a luva e Memrias pstumas. Quando Estvo est contemplando, distncia, Guiomar, o narrador diz:
Enquanto ele trabalhava o esprito nestas comparaes poticas, no descabidas, se quiserem, em tal lugar, e ao p de to graciosa criatura, ela seguia lentamente e chegara encruzilhada das duas grandes ruas da chcara (ML, cap. III, p. 33-34).
Nas Memrias pstumas, Brs se vale praticamente da mesma expresso para caracterizar Eugnia:
Queria-lhe, verdade; ao p dessa criatura to singela, filha espria e coxa, feita de amor e desprezo, ao p dela sentia-me bem, e ela creio que ainda se sentia melhor ao p de mim (MP, cap. XXXIII, p. 91).
Ressalte-se apenas que, nas Memrias pstumas, o uso da locuo prepositiva ao p de, usada trs vezes no mesmo perodo, uma maneira de satirizar o fato de Eugnia ser coxa. Voltando a A mo e a luva, quando Estvo est contemplando, distncia, Guiomar, o narrador diz:
Mas, ai triste! a dor dele era uma espcie de tosse moral, que aplacava e reaparecia, intensa s vezes, s vezes mais fraca, mas sempre infalvel.O rapaz acertara de abrir uma pgina de Werther; leu meia dzia de linhas, o acesso voltou mais forte que nunca. (ML, cap. I, p. 24).
381 A mesma exclamao est nas Memrias pstumas, quando Brs lamenta o dinheiro gasto para manter o namoro com Marcela:
Era meu o universo; mas, ai triste! no o era de graa. Foi-me preciso coligir dinheiro, multiplic-lo, invent-lo (MP, cap. XV, p. 58).
Uma outra semelhana entre os romances analisados, que revela o carter oportunista dos atores do enunciado em Machado, pode ser resumido na formulao terica de Brs da equivalncia das janelas, que permite que a moral possa arejar continuamente a conscincia (MP, cap. LI, p. 112). J apontamos um trecho de Dom Casmurro, em que o narrador parece recorrer teoria de Brs. Mas h outros fragmentos em que isso ocorre. Em Iai Garcia, Valria manda o filho para a Guerra do Paraguai para faz-lo esquecer Estela:
No sem custo lanou mo desse meio, violento para ambos; mas, uma vez adotado, luziu-lhe mais a vantagem do que lhe negrejou o perigo. Assim foi que de um incidente, comparativamente mnimo, resultara aquele desfecho grave, e de um caso domstico saa uma ao patritica (IG, cap. III. P. 52).
Dessa forma, a conscincia pesada de Valria por ter mandado, sem necessidade, o filho guerra poderia arejar-se pela simples possibilidade de Jorge transformar-se num heri, num exemplo de patriotismo. Que profundas que so as molas da vida! (MP, cap. CX , p. 184), diria Brs Cubas. Em Quincas Borba, quando morre o filsofo, Rubio comea a temer pelo fato de ter recebido uma carta de Borba, em que este dizia ser Santo Agostinho. Preocupado com a possibilidade de isso invalidar uma possvel herana, pois o testamento seria anulado, o professor esconde a carta e procura ficar em paz com a prpria conscincia de um modo bastante oportunista:
Em seguida, atentando na notcia, viu que falava de um homem que tinha apreo, considerao, a quem se atribua uma peleja filosfica. Nenhuma aluso a demncia. Ao contrrio, o final dizia que ele delirara 382 a ltima hora, efeito da molstia. Ainda bem! Rubio leu novamente a carta, e a hiptese da troa pareceu outra vez mais verossmil. Concordou que ele tinha graa; com certeza, quis debic-lo; foi a Santo Agostinho, como iria a Santo Ambrsio ou a Santo Hilrio, e escreveu uma carta enigmtica, para confundi-lo, at voltar a rir-se do logro. Pobre amigo! Estava so, so e morto. Sim, j no padecia nada (QB, cap. XII, p. 35).
Para justificar seu silncio sobre a carta demente de Quincas Borba, Rubio se obriga a acreditar na hiptese da troa. Tudo devido equivalncia das janelas. Em Dom Casmurro, Bentinho promete dois mil padre-nossos para que Deus lhe salvasse a me, que estava enferma. S que ele j estava em dvida com os cus, por causa das promessas que no foram pagas. Para explicar-se, ele recorre a uma idia engenhosa:
No paguei uns nem outros, mas saindo de almas cndidas e verdadeiras tais promessas so como a moeda fiduciria, ainda que o devedor as no pague, valem a soma que dizem (DC, cap. LXVII, p. 128).
A janela fechada so as promessas no-cumpridas; a janela aberta a candura de sua alma, que vale o que diz e no o que faz. Em Esa e Jac, tambm h um momento em que aparece esse raciocnio oportunista, Brs Cubas:
Obedeciam aos pais sem grande esforo, posto fossem teimosos. Nem mentiam mais que outros meninos da cidade. Ao cabo, a mentira alguma vez meia-virtude. Assim que, quando eles disseram no ter visto furtar um relgio da me, presente do pai, quando eram noivos, mentiram conscientemente, porque a criada que o tirou foi apanhada por eles em plena ao de furto. Mas era to amiga deles! e com tais lgrimas lhes pediu que no dissessem a ningum, que os gmeos negaram absolutamente ter visto nada. Contavam sete anos. Aos nove, quando j a moa ia longe, que descobriram, no sei a que propsito, 383 o caso escondido. A me quis saber por que que eles calaram outrora; no souberam explicar-se, mas claro que o silncio de 1878 foi obra da afeio e da piedade, e da a meia-virtude, porque alguma coisa pagar amor com amor (EJ, cap. XVIII, p. 54-55).
Aires emprega a lei da equivalncia das janelas para justificar a mentira dos gmeos, que agiram por amor. Assim que uma ao reprovvel escondia, na verdade, uma meia-virtude. Os muitos exemplos dados nesse item comprovam que o ator da enunciao Machado de Assis tem um comportamento discursivo bastante uniforme em seus romances. Notam-se, neles, os traos mais relevantes de seu carter, como o ceticismo lcido, o pessimismo, a derriso, o relativismo e o antidogmatismo, que inclui o fim das convenes enunciativas. Mas se pudermos resumir esse carter com um nico adjetivo, teremos de dizer que Machado cnico. Esse cinismo pode ser apreendido do enunciado, a partir da discursivizao do narrador e dos demais atores do enunciado:
3 nvel enunciativo (manifestado) Atores do enunciado " VAIDOSOS, AMBICIOSOS NVEL METADIEGTICO E EGOSTAS
De fato, as personagens machadianas esto longe de ser modelos de correo moral, e o narrador no parece muito disposto a censur-las, uma vez que ele mantm 384 sua postura de indiferena risonha em relao aos atores do enunciado. Tudo essa configurao discursiva sugere um enunciador que revela descaso, desdm pelos valores institucionaliazdos e que faz do seu cinismo um princpio carnavalizador.
385 2. A voz machadiana: da delicadeza mordacidade
(...) veio-lhe [a Machado] sempre do esprito atilado um no ao convencional, um no que o tempo foi sombreando de reservas, de mas, de talvez, embora permanecesse at o fim como espinha dorsal de sua relao com a existncia. (Alfredo Bosi, Histria concisa da Literatura Brasileira)
O thos machadiano no se mostra apenas pelo carter do enunciador. Ele tambm pressupe um corpo e uma voz. Cuidemos, neste item, da questo da voz. As Memrias pstumas sugerem uma voz baixa, irnica, que recorre aos significados implcitos, que ora diz as coisas de modo delicado e indireto, ora dosa sarcasmo e mordacidade. Trata-se, como j dissemos, da voz que sussurra no salo (Bologna, 1987, p. 80). Na anlise do foco narrativo dos romances machadianos, notou-se, muitas vezes, um fenmeno de relativizao da oniscincia, em que o narrador fingia no saber certos detalhes dos pensamentos das personagens. Essa relativizao francamente compatvel com o dizer delicado da voz de Machado. Em Helena, o suposto incesto de Estcio e Helena sempre referido de maneira delicada. Na primeira vez em que os presumveis irmos parecem explicitar o que sentem um pelo outro, e Estcio sugere que Helena est a pensar de coisas amorosas, o narrador mostra a voz baixa do enunciador:
Helena no respondeu; tomou-lhe o brao e os dois seguiram silenciosamente uns dez minutos. Chegando a um banco de madeira, Estcio sentou-se; Helena ficou de p diante dele. Olharam um para o outro sem proferir palavra; mas o lbio de Estcio tremera duas ou trs vezes como hesitando no que ia dizer. Por fim, o moo venceu-se. Helena, disse ele, voc ama. A moa estremeceu e corou vivamente; olhou em volta de si, como assustada, e pousou as mos nos ombros de Estcio. Refletiu ela no que disse depois? duvidoso; mas a voz, que nessa ocasio parecia concentrar todas as melodias da palavra humana, suspirou lentamente: 386 Muito! muito! muito! Estcio empalideceu. A moa recuou um passo, e, trmula, ps o dedo na boca, como a impor-lhe silncio. A vergonha flamejava no rosto; Helena voltou as costas ao irmo e afastou-se rapidamente (HE, cap. IX, p. 82-83).
O tremor no lbio de Estcio e o rubor no rosto de Helena aludem ao incesto. Evitando manifestar mais abertamente os sentimentos dos atores do enunciado, o narrador mantm a oniscincia relativizada, para que no se pudesse saber, de fato, quais eram os conflitos vividos pelos dois. Em Iai Garcia, essa delicadeza, essa sutilieza na apresentao dos percursos narrativos e das paixes que os motivam aparece numa cena em que a filha de Lus Garcia ganha um piano de presente, aps ter fingido tocar em teclas imaginrias. Mas a manina parece no se alegrar como o pai esperava, mudando repentinamente de humor:
A causa da mudana, desconhecida para Lus Garcia, era a penetrao que madrugava no esprito da menina. Lembrara-se ela, repentinamente, das palavras que proferira e do gesto que fizera, no domingo anterior; por elas explicou a existncia do piano; comparou-o to novo e lustroso, com os outros mveis da casa, modestos, usados, encardida a palhinha das cadeiras, rodo do tempo e dos ps um velho tapete, contemporneo do sof. Dessa comparao extraiu a idia do sacrifcio que o pai devia ter feito para condescender com ela; idia que a ps triste, ainda que no por muito tempo, como sucede s tristezas pueris. A penetrao madrugava, mas a dor moral fazia tambm irrupo naquela alma at agora isenta da jurisdio da fortuna (IG, cap. I, p. 25).
O incmodo de Iai com o gasto excessivo do pai sincero, e o narrador mostra essa preocupao de maneira delicada, salientando a dor moral de algum cuja alma ainda estava isenta da jurisdio da fortuna. A voz baixa tambm est em Quincas Borba. Os desejos adlteros de Rubio so referidos de modo metafrico:
387 Rubio estava resoluto. Nunca a alma de Sofia pareceu convidar a dele, com tamanha instncia, a voarem juntas at s terras clandestinas, donde elas tornam, em geral, velhas e cansadas. Algumas no tornam. Outras param a meio caminho. Grande nmero no passa da beira dos telhados... (QB, cap. XXXVIII, p. 64).
Note-se ainda como o narrador descr do sucesso das traies, afirmando que muitas delas no passam da beira dos telhados e no chegam, pois, s terras clandestinas. Em outra passagem, quando Sofia tem uma conversa imaginria com duas rosas sobre Rubio e sobre o quanto ele a aborrece, o narrador alude ao fato de que as pessoas, quando conversam consigo mesmas, entendem-se com muita facilidade:
Quem conhece o solo e o subsolo da vida, sabe muito bem que um trecho de muro, um banco, um tapete, um guarda-chuva, so ricos de idias ou de sentimentos, quando ns tambm o somos, e que as reflexes de parceria entre os homens e as cousas compem um dos mais interessantes fenmenos da terra. A expresso: Conversar com os seus botes, parecendo simples metfora, frase de sentido real e direto. Os botes operam sincronicamente conosco; formam uma espcie de senado, cmodo e barato, que vota sempre as nossas moes (QB, cap. CXLII, p. 210).
O emprego das figuras do solo, do subsolo, do muro, do banco, do tapete, do guarda-chuva, dos botes, do senado e das moes faz com que a compreenso desse fragmento no seja imediata, o que tambm se coaduna com o dizer indireto machadiano. Mesmo em Dom Casmurro, romance em que o narrador quer provar ao narratrio que Ezequiel no seu filho, o enunciador impe a voz baixa. No captulo O debuxo e o colorido, que trata dos olhos de Ezequiel, mais uma vez emprega-se a figurativizao para dizer as coisas de maneira indireta:
Nem s os olhos, mas as restantes feies, a cara, o corpo, a pessoa inteira, iam-se apurando com o tempo. Eram como um debuxo primitivo que o artista vai enchendo e colorindo aos poucos, e a figura 388 entra a ver, sorrir, palpitar, falar quase, at que a famlia pendura o quadro na parede, em memria do que foi e j no pode ser. Aqui podia ser e era. O costume valeu muito contra o efeito da mudana; mas a mudana fez-se, no maneira de teatro, fez-se como a manh que aponta vagarosa, primeiro que se possa ler uma carta, depois l-se a carta na rua, em casa, no gabinete, sem abrir as janelas; a luz coada pelas persianas basta a distinguir as letras. Li a carta, mal a princpio e no toda, depois fui lendo melhor. Fugia-lhe, certo, metia o papel no bolso, corria a casa, fechava-me, no abria as vidraas, chegava a fechar os olhos. Quando novamente abria os olhos e a carta, a letra era clara e a notcia clarssima (QB, cap. CXXXII, p. 214).
A notcia clarssima da traio no nem um pouco clara nesse excerto: ela apenas sugerida por meio da semelhana entre Ezequiel e Escobar, semelhana que se vai intensificando, como a manh que aponta vagarosa. A metfora da carta e da pintura empregada para mostrar que o filho de Capitu era cada vez mais parecido com Escobar, como um debuxo primitivo que o artista vai enchendo e colorindo aos poucos, e a figura entra a ver, sorrir, palpitar, falar quase, at que a famlia pendura o quadro na parede, e que a percepo dessa semelhana era, inicialmente, difcil, mas, depois, tornava-se clara. No ltimo pargrafo de Dom Casmurro, a voz baixa do enunciador se projeta sobre o narrador, de tal forma que ele quase parece no ter guardado mgoas da suposta traio que sofreu:
(...) uma cousa fica, e a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, to extremosos ambos e to queridos tambm, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve! Vamos Histria dos subrbios (DC, cap. CXLVIII, p. 234).
Mas tudo isso jogo de cena. A inteno do romance, em relao ao segundo nvel enunciativo, exatamente culpar Capitu e Escobar, o que no combina muito com o desejo de que a terra lhes seja leve. Em princpio, o narrador coloca Dom Casmurro 389 no mesmo nvel da Histria dos subrbios, mas o dizer indireto que cararcateriza a voz do enunciador permite que se conclua que essa nivelao fingida. Em Esa e Jac e Memorial de Aires, a competncia discursiva do conselheiro Aires com sua musa diplomtica (MA, p. 59) lembra a voz baixa e o dizer indireto e delicado do ator da enunciao Machado de Assis. Em muitos momentos, a caracterizao de Aires cabe tambm voz machadiana:
Imagina s que trazia o calo do ofcio, o sorriso aprovador, a fala branda e cautelosa, o ar da ocasio, a expresso adequada, tudo to bem distribudo que era um gosto ouvi-lo e v-lo (EJ, cap. XII, p. 44).
A conteno do corpo machadiano, como veremos no item seguinte, tambm compatvel com o controle emocional de Aires:
Relendo o que escrevi ontem, descubro que podia ser ainda mais resumido, e principalmente no lhe pr tantas lgrimas. No gosto delas, nem sei se as verti algum dia (...)(MA, p. 36).
Em Esa e Jac, quando Natividade, j grvida, est voltando, junto com Santos, da missa na igreja de S. Domingos, o narrador brinca com sua maneira indireta de narrar:
(...) os dous levavam as mos presas, e a expresso do rosto era de abenoados. No davam sequer pela gente das ruas; no davam talvez por si mesmos. Leitor, no muito que percebas a causa daquela expresso e desses dedos abotoados. J l ficou dita atrs, quando era melhor deixar que a adivinhasses; mas provavelmente no a adivinharias, no que tenhas o entendimento curto ou escuro, mas porque o homem varia do homem, e tu talvez ficasses com igual expresso, simplesmente por saber que ias danar sbado. Santos no danava; preferia o voltarete, como distrao. A causa era virtuosa, como sabes; Natividade estava grvida, acabava de o dizer ao marido (EJ, cap. VI, p. 31).
390 Em outro momento, quando Flora pede que Aires explique por que a considera inexplicvel, ele diz inventar essa resposta:
Inexplicvel o nome que podemos dar aos artistas que pintam sem acabar de pintar. Botam tinta, mais tinta, outra tinta, muita tinta, pouca tinta, nova tinta, e nunca lhes parece que a rvore rvore, nem a choupana. Se se trata ento de gente, adeus. Por mais que os olhos da figura falem, sempre esses pintores cuidam que eles no dizem nada. E retocam com tanta pacincia, que alguns morrem entre dois olhos, outros matam-se de desespero (EJ, cap. XXXIV, p. 82).
Essa frase em discurso direto parece profecia, uma vez que a incapacidade de Flora em optar por Pedro ou Paulo, que lhe disputavam o amor, pode ser revestida pela figura do artista que nunca acha que sua obra est pronta. A morte de Flora, se no o suicdio por desespero de um desses artistas, vem acompanhada de uma confuso mental cada vez maior, pois a moa acaba achando que os gmeos so duas partes de uma mesma pessoa. Uma caracterstica da voz machadiana, que aparece reiteradamente nas Memrias pstumas, a ironia. Nos demais romances, embora esse recurso aparea com menos freqncia, possvel encontrar os trs tipos de ironia que propusemos nos dois primeiros captulos desta tese. Em Dom Casmurro, no captulo O primeiro filho, Bentinho e Capitu ficam provocando-se mutuamente, como se a entrada dele no seminrio e a ordenao fossem inevitveis. A provocao comea com Capitu:
Padre bom, no h dvida; melhor que padre s cnego, por causa das meias roxas. O roxo cor muito bonita. Pensando bem, melhor cnego. Mas no se pode ser cnego sem ser primeiramente padre, disse-lhe eu mordendo os beios. Bem; comece pelas meias pretas, depois viro as roxas. O que eu no quero perder a sua missa nova; avise-me a tempo para fazer um vestido moda saia balo e babados grandes... Mas talvez nesse 391 tempo a moda seja outra. A igreja h de ser grande, Carmo ou S. Francisco (...) (DC, cap. 44, p. 93).
O prprio narrador reconhece que essa conversa era completamente irnica:
Ah! como eu sinto no ser um poeta romntico para dizer que isto era um duelo de ironias! Contaria os meus botes e os dela, a graa de um e a prontido de outro, e o sangue correndo, e o furor na alma (...) (DC, cap. XLIV, p. 93).
Essas ironias esto sendo produzidas por atores do enunciado, transformados em interlocutores. Por isso, trata-se de uma ironia do interlocutor, construda dentro da enunciao de 3 grau. No captulo Voc tem medo?, a ironia de Bento ocorre quando ele ator da enunciao, e no do enunciado:
(...) vi de imaginao o aljube, uma casa escura e infecta. Tambm vi a presiganga, o quartel dos Barbonos e a Casa de Correo. Todas essas belas instituies sociais me envolviam no seu mistrio, sem que os olhos de ressaca de Capitu deixassem de crescer para mim, a tal ponto que as fizeram esquecer de todo (DC, cap. XLIII, p. 91).
O comentrio do narrador corresponde exatamente ao contrrio do que ele pensa, uma vez que o adjetivo belas no parece ser adequado para caracterizar aljubes, presigangas, quartis e casas de correo. A ironia, aqui, do narrador e se estrutura na dimenso da enunciao de 2 grau. Ainda h momentos em que o narrador alvo da ironia, como acontece no captulo A alma cheia de mistrios. Nele, Bentinho faz de tudo para beijar Capitu, que se esquiva, at que o pai da menina chega:
Ouvimos o ferrolho da porta que dava para o corredor interno; era a me que abria. Eu, uma vez que confesso tudo, digo aqui que no tive tempo de soltar as mos da minha amiga; pensei nisso, cheguei a tent-lo, mas Capitu, antes que o pai acabasse de entrar, fez um gesto 392 inesperado, pousou a boca na minha boca, e deu de vontade o que estava a recusar fora. Repito, a alma cheia de mistrios (DC, cap. XXXVII, p. 81).
A orao explicativa em destaque exemplo de ironia que atinge o narrador. Dom Casmurro um romance caracterizado pela focalizao parcial interna, em que Bento se esfora para, selecionando os dados da realidade que lhe convm, persuadir os narratrios de que a esposa era adltera. Seu discurso est muito longe de criar uma impresso que seja de sinceridade ou de franqueza. Assim, estamos diante de uma ironia do enunciador, organizada na instncia da enunciao de 1 grau. Em A mo e a luva, numa passagem j comentada no ltimo item, nota-se at pelo foco narrativo do romance, que no permite uma distino mais clara entre o primeiro e o segundo nvel enunciativo um caso de ironia que pode ser do narrador ou do enunciador:
Um leitor perspicaz, como eu suponho que h de ser o leitor deste livro, dispensa que eu lhe conte os muitos planos que ele teceu, diversos e contraditrios, como de razo em anlogas situaes. Apenas direi por alto que ele pensou trs vezes em morrer, duas em fugir cidade, quatro em ir afogar a sua dor mortal naquele ainda mais mortal pntano de corrupo em que apodrece e morre tantas vezes a flor da mocidade (ML, cap. XI, p. 84).
Na verdade, o narrador e o enunciador no acreditam na perspiccia do leitor, que actorizalizado como ingnuo, como romntico, como incompetente para interpretar as novidades estilsticas machadianas. Em Quinas Borba, h outras dessas ironias:
Rubio e o cachorro, entrando em casa, sentiram, ouviram a pessoa e as vozes do finado amigo. Enquanto o cachorro farejava por toda a parte, Rubio foi sentar-se na cadeira, onde estivera quando Quincas Borba referiu a morte da av com explicaes cientficas (QB, cap. XVIII, p. 41).
393 A morte da av do filsofo uma devaneio humanitista, uma vez que ela atropelada por uma carruagem e tanto as mulas como a sege passaram-lhe por cima (QB, cap. VI, p. 26), mas Borba cr que foi por um bom motivo, pois o dono da sege tinha fome e Humanitas (e isto importa antes de tudo), Humanitas precisa comer (QB, cap. VI, p. 27). Portanto no h nada de cientfico nessa explicao, a no ser para Rubio. Nessa passagem, h uma stira, pois, ingenuidade do professor-capitalista, que no percebe os aburdos do sistema filosfico do amigo. Logo em seguida, o tom bem-humorado da ironia vai originando o sarcasmo. Rubio, j contemplado com a herana milionria, lembra-se da metfora do campo de batatas, das duas tribos famintas e das bolhas na gua fervente (QB, cap. VI, p. 28-29) e julga que entende, finalmente, uma das mximas humanitistas:
A memria dele recomps, ainda que de embrulho e esgaradamente, os argumentos do filsofo. Pela primeira vez, atentou bem na alegoria das tribos famintas e compreendeu a concluso: Ao vencedor, as batatas! Ouviu distintamente a voz roufenha do finado expor a situao das tribos, a luta e a razo da luta, o extermnio de uma e a vitria da outra, e murmurou baixinho Ao vencedor, as batatas! To simples! to claro! Olhou para as calas de brim surrado e o rodaque cerzido, e notou que at h pouco fora, por assim dizer, um exterminado, uma bolha; mas que ora no, era um vencedor. No havia dvida; as batatas fizeram-se para a tribo que elimina a outra, a fim de transpor a montanha e ir s batatas do outro lado. Justamente o seu caso. Ia descer de Barbacena para arrancar e comer as batatas da capital. Cumpria-lhe ser duro e implacvel, era poderoso e forte. E levantando-se de golpe, alvoroado, ergueu os braos exclamando: Ao vencedor, as batatas! Gostava da frmula, achava-a engenhosa, compendiosa e eloqente, alm de verdadeira e profunda. Ideou as batatas em suas vrias formas, classificou-as pelo sabor, pelo aspecto, pelo poder nutritivo, fartou-se antemo do banquete da vida. Era tempo de acabar com as razes pobres e secas, que apenas enganavam o estmago, triste comida de longos anos; agora o farto, o slido, o perptuo, comer at 394 morrer, e morrer em colchas de seda, que melhor que trapos (QB, cap. XVIII, p. 42).
A stira a Rubio transpe o terreno da ironia e vai-se tornando cada vez mais cruel: primeiro porque ele acredita na metfora estapafrdia do Humanitismo; segundo porque, sentindo-se vencedor, e no mais bolha, ele julga que pode arrancar e comer as batatas da capital, ser duro e implacvel, era poderoso e forte e morrer em colchas de seda. A trajetria de Rubio, que morre pobre, coroando-se Napoleo III, apenas confirma o sarcasmo que j havia fico implcito nessa passagem do comeo do romance. Em Ressurreio, a apresentao de Viana exemplo de derriso, como j mostramos no ltimo item. Alm disso, h uma boa dose de sarcasmo, quando o narrador afirma:
Viana era um parasita consumado (...). Nasceu parasita como outros nascem anes. Era parasita por direito divino (RE, cap. I, p. 61).
O aspecto congnito do parasitismo e a comparao digamos politicamente incorreta com os anes flertam com a mordacidade, de acordo com a gradao (ironia ! sarcasmo ! mordacidade) que usamos no ltimo captulo. Em outro fragmento j comentado de Ressurreio, a stira ao Romantismo e a seus leitores sarcstica:
Nem tudo era bom, como acontece nesses livros, que so s vezes verdadeiros asilos de invlidos do Parnaso, onde as musas reumticas e manetas vo soltar os seus gemidos (RE, cap. VII, p. 99)
Trata-se praticamente do mesmo sarcasmo dirigido ao narratrio em Dom Casmurro, quando o narrador se refere aos cuidados que Ezequiel exigia quando beb:
A tudo acudamos, segundo cumpria e urgia, cousa que no era necessrio dizer, mas h leitores to obtusos, que nada entendem, se lhes no relata tudo e o resto. Vamos ao resto (DC, cap. CIX, p. 185).
395 Ainda em Dom Casmurro, existem passagens de mordacidade plena, em que o tom de desdm crtico e de humor negro atinge seu pice. Isso ocorre, por exemplo, quando o narrador, de seu gabinete do Engenho Novo (DC, cap. XCI, p. 157), recorda a polmica com Manduca sobre a Guerra da Crimia:
Quanto ao Manduca, no creio que fosse pecado opinar contra a Rssia, mas, se era, ele estar purgando h quarenta anos a felicidade que alcanou em dous ou trs meses, donde concluir (j tarde) que era ainda melhor haver gemido somente, sem opinar cousa nenhuma (DC, cap. XCI, p. 157).
Um captulo adiante, o narrador explica suas idias com mais um pouco de mordacidade:
Quero dizer que o meu vizinho de Matacavalos, temperando o mal com a opinio anti-russa, dava podrido das suas carnes um reflexo espiritual que as consolava. H consolao maiores, decerto, e uma das mais excelentes no padecer esse nem outro mal algum, mas a natureza to divina que se diverte com tais contrastes, e aos mais nojentos ou mais aflitos acena com uma flor. E talvez saia assim a flor mais bela; o meu jardineiro afirma que as violetas, para terem um cheiro superior, ho mister de estrume de porco. No examinei, mas deve ser verdade (DC, cap. XCII, p. 158).
Em Quincas Borba, a mordacidade aparece por meio de uma referncia literria. D. Tonica tinha 39 anos e uns olhos sem parceiro na terra (QB, cap. XXXVII, p. 62), dada dificuldade de conseguir casar-se. Quando a filha do major conhece Rubio, suas esperanas intensificam-se, at que ela v os olhares trocados entre o capitalista e Sofia:
Agora, porm, noite, por ocasio do canto ao piano, que D. Tonica deu com eles embebidos um no outro. No teve mais dvida; no eram olhares aparentemente fortuitos, breves, como at ali, era uma contemplao que eliminava o resto da sala. D. Tonica sentiu o grasnar 396 do velho corvo da desesperana. Quoth the Raven: NEVER MORE (QB, cap. XXXVII, p. 63).
A citao do refro do clebre poema de Edgar Alan Poe que, alis, foi traduzido por Machado para o portugus intensifica o sofrimento de D. Tonica, condenada, assim como o narrador de The raven, a uma infelicidade eterna. Note-se, porm, como a mordacidade indireta, tpica da voz baixa, uma vez que ela s se revela quando a citao identificada pelo enunciatrio. At mesmo o diplomata Aires tem, na obra machadiana, seus momentos de mordacidade. Em Esa e Jac, numa digresso do narrador, nota-se isso no captulo Caso do burro:
Foi o caso que uma carroa estava parada, ao p da Travessa de S. Francisco, sem deixar passar um carro, e o carroceiro dava muita pancada no burro da carroa. Vulgar embora, este espetculo fez parar o nosso Aires, no menos condodo do asno que do homem. A fora despendida por este era grande, porque o asno ruminava se devia ou no sair do lugar; mas, no obstante esta superioridade, apanhava que era o diabo. J havia algumas pessoas paradas, mirando. Cinco ou seis minutos durou esta situao; finalmente o burro preferiu a marcha pancada, tirou a carroa do lugar e foi andando. Nos olhos redondos do animal viu Aires uma expresso profunda de ironia e pacincia. Pareceu-lhe o gesto largo de esprito invencvel. Depois leu neles este monlogo: Anda, patro, atulha a carroa de carga para ganhar o capim de que me alimentas. Vive de p no cho para comprar as minhas ferraduras. Nem por isso me impedirs que te chame um nome feio, mas eu no te chamo nada; ficas sendo sempre o meu querido patro. Enquanto te esfalfas em ganhar a vida, eu vou pensando que o teu domnio no vale muito, uma vez que me no tiras a liberdade de teimar... (EJ, cap. XLI, p. 95).
Completemos agora a anlise do thos machadiano, com a questo do corpo, cuja conteno se manifesta, muitas vezes, pela voz baixa.
397 3. O corpo machadiano: da elegncia ao riso sutil
Aps os estudos mais recentes do texto machadiano, tornou-se impraticvel insistir no aspecto clssico de seu estilo: elegncia, correo, equilbrio, clareza, penetrao, acabamento. Essas qualidades ele as possua em larga escala, mas elas so organicamente dinamizadas pela vivssima inquietao barroca do experimento formal, que torna a frase sarcstica, brincalhona, com feies de zigue-zague. (Ivan Teixeira, Apresentao de Machado de Assis)
O terceiro elemento do thos machadiano o corpo, que corresponde ao modo de agir do enunciador em relao ao universo social. Em Machado, o corpo caracterizado por uma grande conteno, uma vez que no h espalhafato. Da mesma forma que h uma valorizao da voz de salo nos romances aqui analisados, h tambm um corpo comedido, que mostra consonncia com a maneira burguesa de se movimentar. Da que se possa representar o corpo machadiano pela figura da boca que ri, mas no gargalha, o que mostra que a derriso do carter do enunciador no chega ao humor bufo. Em Helena, sabe-se desde o incio do romance que o conselheiro Vale tinha relacionamentos amorosos fora do casamento. Uma de suas supostas amantes teria sido D. Leonor:
A esposa do Dr. Matos fora uma das belezas do primeiro reinado. Era uma rosa fanada, mas conservava o aroma da juventude. Algum tempo se disse que o conselheiro ardera aos ps da mulher do advogado, sem repulsa desta; mas s era verdade a primeira parte do boato. Nem os princpios morais, nem o temperamento de D. Leonor lhe consentiam outra coisa que no fosse repelir o conselheiro sem o molestar. A arte com que o fez, iludiu os malvolos; da o sussurro, j agora esquecido e morto. A reputao dos homens amorosos parece-se muito com o juro do dinheiro: alcanado certo capital, ele prprio se 398 multiplica e avulta. O conselheiro desfrutou essa vantagem, de maneira que, se no outro mundo lhe levassem coluna dos pecados todos os que lhe atribuam na terra, receberia dobrado castigo do que mereceu (HE, cap. IV, p. 42).
A maneira como o narrador alude ao boato tpico de um corpo contido. A referncia a um possvel adultrio elegante, e a anlise da conduta do conselheiro bem-humorada, a ponto de valer de uma certa ironia na idia de que o pai de Estcio e Helena desfrutou a vantagem de ficar conhecido at pelos pecados que no cometeu. Esse humor fino est presente em Quincas Borba quando o narrador descreve rapidamente dois amigos de Rubio:
Rubio passou o resto da manh alegremente. Era domingo; dous amigos vieram almoar com ele, um rapaz de vinte e quatro anos, que roa as primeiras aparas dos bens da me, e um homem de quarenta e quatro ou quarenta e seis, que no tinha que roer. Carlos Maria chamava-se o primeiro, Freitas o segundo (QB, cap. XXIX, p. 51-52).
A referncia aos amigos de Rubio sinttica e bem-humorada. Existe um tom crtico, que est longe de ser panfletrio. Assim, Carlos Maria e Freitas, que apresentam perfis to diferentes no romance, aproximam-se no que diz respeito capacidade de roer os bens de famlia. O narrador os nivela de modo conciso e satrico. Em Dom Casmurro, num fragmento metaenunciatico do captulo Convivas de boa memria, o narrador fala sobre a eficincia de sua memria que, convenhamos, essencial para o tipo de narrativa que ele compe e para o efeito de persuaso que ele quer produzir no narratrio. Distinguindo ento os livros confusos dos omissos, Bento escreve:
Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio algum desta outra casta, no me aflijo nunca. O que fao, em chegando ao fim, cerrar os olhos e evocar todas as cousas que no achei nele. Quantas idias finas me acodem ento! Que de reflexes profundas! Os rios, as montanhas, as igrejas 399 que no vi nas folhas lidas, todos me aparecem agora com as suas guas, as suas rvores, os seus altares, e os generais sacam das espadas que tinham ficado na bainha, e os clarins soltam as notas que dormiam no metal, e tudo marcha com uma alma imprevista. que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes tambm preencher as minhas (DC, cap. LIX, p. 114).
Ao solicitar que o leitor lhe preencha, com a prpria imaginao, as lacunas dos livros omissos, o narrador vale-se de uma espcie de argumento de falsa modstia, destinado a captar a benevolncia do narratrio, que poderia desculpar assim as falhas da narrativa de Bento. Mas, alm disso, esse excerto tambm mostra o comedimento machadiano, representado pelo narrador que faz tanto esforo para no se exceder que chega mesmo a admitir, por culpa da memria imprecisa, as eventuais omisses de sua narrativa. No Memorial de Aires, a voz baixa e o corpo contido andam juntos quando Aires fala sobre o primeiro casamento de Fidlia, que a obrigou a romper com a famlia, mas no durou muito, devido morte precoce do marido:
Ora, valia a pena ter brigado com o pai, em troca de um marido que mal comeou a lio do amor, logo se aposentou na morte? Certo que no. Se eu propusesse concluir-lhe o curso, o pai faria as pazes com ela; ai, era preciso no haver esquecido o que aprendi, mas esqueci, tudo ou quase tudo (MA, p. 43).
O percurso figurativo escolar que chama o casamento de lio do amor e o interesse de Aires pela moa de concluso de curso marca do dizer indireto e delicado do enunciador. A voz baixa, assim, remete ao corpo contido, na medida em que as sugestes metafricas do elegncia expresso, confirmando a tese de que o enunciador adota, em relao ao estilo lingstico, uma postura de respeitar os comportamentos socialmente valorizados. Mattoso Cmara Jr., comentando o que se seria a boa linguagem, defende que
400 o sentimento artstico espontneo e inerente nos homens e que, para ser eficiente, a linguagem tem de satisfaz-lo e no apenas se cingir a uma formulao seca, objetiva e fria. Assim, em toda boa expresso lingstica entra, a bem dizer, um tal ou qual elemento literrio (2001, p. 11).
No texto literrio stricto sensu, esse sentimento artstico que exige uma formulao lingstica mais requintada amplificado, o que faz com que, na literatura, haja sempre
certo predicado esttico que nos convida a encarar com boa vontade o pensamento exposto (2001, p. 11).
Um dos predicados estticos da obra machadiana justamente a elegncia de expresso, manifestao textual de um thos cujo corpo contido e cuja voz baixa. Essa elegncia associa-se s noes de correo, equilbrio, clareza, penetrao, acabamento, mas no impede que a frase se torne sarcstica, brincalhona, com feies de zigue-zague (Teixeira, 1988, p. 4), de modo que o corpo comedido machadiano no pode ser confundido com sisudez ou conservadorismo. H sempre um esprito desestabilizador em Machado, mas que se revela menos pelo estardalhao do que pela fina ironia e pelo riso contido. Em Helena, depois de receber um desenho da Helena, baseado na casa de Salvador, Estcio vai at l, v o pai da moa janela e tacha-o de filsofo. O narrador consegue, mais uma vez de maneira elegante e concisa, mostrar o estado de esprito de um dos atores do enunciado:
O filsofo continuou a ler, e o cavalo continuou a andar. Quando Estcio regressou da a alguns minutos, achou somente a casa; o morador desaparecera; circunstncia indiferente, que escapou de todo ateno do moo. Nem ele pensava mais naquilo; o esprito trotava largo, inglesa, como o ginete, e ambos bebiam o ar, como ansiosos de chegar ao ponto da partida (HE, cap. XI, p. 91).
Em Iai Garcia, h mais dessa conciso elegante quando Jorge procura convencer Valria a fazer Estela voltar a morar com o pai: 401
Jorge confirmou com a cabea e no disse mais nada. O que acabava de fazer no passava de uma tentativa sincera, mas frouxa, para arredar Estela da casa; era o imposto pago conscincia. Quite com ela, entregou-se aos acontecimentos, confessando a si mesmo que o perigo no era to grave, nem o remdio to urgente; finalmente, que ele era homem (IG, cap. III, p. 44-46).
Poderamos mostrar muitos outros exemplos de elegncia nos romances estudados. Porm fiquemos com um caso que comprova o sincretismo que Machado opera entre a sobriedade o corpo contido e a galhofa a voz sarcstica. Em Iai Garcia, na caracterizao de Procpio Dias, como j mostramos, o narrador argumenta que
(...) o eterno feminino no o dominava menos que o eterno estmago (IG, cap. VII, p. 85).
Essa associao imprevista entre o eterno feminino e o eterno estmago um embrio da quebra do paralelismo semntico, caracterizadora do riso sem gargalhada de Machado, que aparece to sistematicamente nas Memrias pstumas. Alis, em A mo e a luva, tambm h um uso incipiente desse recurso na caracterizao de Estvo:
(...) to marechal nas coisas mnimas, como recruta nas coisas mximas (IG, cap. VII, p. 85).
Nas Memrias pstumas, obra em que o thos machadiano se pronuncia com toda intensidade, essa aproximao sinttica entre elementos que parece no serem compatveis semanticamente usada de modo renitente. Por exemplo,
em Em que aparece a orelha de uma senhora:
(...) trazia comigo a idia fixa dos doudos e dos fortes (MP, cap. V, p. 28); 402
em O primeiro beijo:
Era boa moa (...), amiga de dinheiro e de rapazes. Naquele ano, morria de amores por um certo Xavier, sujeito abastado e tsico, uma prola (MP, cap. XIV, p. 56);
em Marcela:
Gastei trinta dias para ir do Rocio Grande ao corao de Marcela (...) (MP, cap. XV, p. 57);
em Do trapzio e outras coisas:
...Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de ris (...) (MP, cap. XVII, p. 61);
em A propsito de botas:
(...) foste a pela estrada da vida, manquejando da perna e do amor (...) (MP, cap. XXXVI, p. 94);
em Na sege:
(...) com um rosto cortado de saudades e bexigas (MP, cap. XL, p. 99);
em Destino:
Mas rezava todas as noites, com fervor, ou, pelo menos, com sono (MP, cap. LVII, p. 120);
em A reconciliao:
403 (...) cogitei (...) se no haveria outro meio razovel de combinar o Estado e a Gamboa (MP, cap. LXXXI, p. 150);
em Formalidade:
Vive tu, amvel Formalidade, para sossego do Damasceno e glria de Muhammed (MP, cap. CXXVII, p. 202);
em O programa:
(...) o Humanitismo no exclua nada: as guerras de Napoleo e uma contenda de cabras eram, segunda a nossa doutrina, a mesma sublimidade (...) (MP, cap. CXLVI, p. 218).
A quebra do paralelismo um ndice textual do corpo machadiano, que se movimenta no espao social de maneira sbria e elegante, mas sem abandonar o bom humor e a perspectiva crtica. Identificar esses elementos que constituem o thos machadiano no tarefa simples, principalmente em relao voz e ao corpo, que do o tom do texto. necessrio fazer como o leitor atento de Esa e Jac:
O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estmagos no crebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos, at que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar escondida (EJ, cap. LV, p. 126).
Possamos ns chegar verdade. No verdade absoluta, dos dogmas da religio. Mas verdade relativizada de uma totalidade de discursos que procura justamente, como dizia o saudoso Torquato Neto, desafinar o coro dos contentes... Lets play that.
404
Concluso 405 E bem, e o resto? (Machado de Assis, Dom Casmurro)
Eis o momento de avaliar nosso percurso, recolhendo o que foi disseminado ao longo das quatrocentas pginas que j se foram. sempre um prazer ler e reler Machado. Portanto s pode ter sido um prazer estud-lo. Calvino tinha razo quando afirmava:
Toda releitura de um clssico uma leitura de descoberta como a primeira (1998, p. 11);
e talvez tivesse mais razo ainda ao dizer:
Os clssicos so livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando so lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inditos (1998, p. 12).
Machado sempre uma (re)descoberta e, ao compararmos os nove romances que constituem sua obra, ficou uma constante sensao de ineditismo, uma vez que aqui se encontra uma citao truncada, ali uma intertextualidade intramachadiana, acol a repetio de uma expresso outrora empregada, e em todo lugar deparamos com a certeza de que h sempre alguma coisa a mais para dizer a respeito do bruxo do Cosme Velho. De acordo com nossa perspectiva de anlise, no interessava a dimenso social ou ideolgica dos romances, menos ainda a vida particular do escritor e a relao de sua obra com a Histria factual. Por isso, centramo-nos no texto e dele extramos nossas concluses. Vamos a mais algumas delas. A apreenso do thos machadiano thos cnico, de carter antidogmtico, escarnecedor, ctico, relativista, lcido e pessimista, com voz baixa, corpo contido e dizer indireto, entre a ironia e a mordacidade foi feita a partir das Memrias pstumas de Brs Cubas. Cada um desses elementos estava marcado no enunciado, ainda que disfarado pela indiferena do narrador, pela ambio dos demais atores do enunciado e pela volubilidade, vaidade e egosmo de todos eles. Na verdade, a anlise dos percursos 406 narrativos e das paixes que envolviam as personagens ia oferecendo indcios para construir o ator da enunciao Machado de Assis. Esse thos plenamente coerente com a forma livre de um Sterne (MP, p. 21) e mostra como Machado se aproxima de toda uma tradio literria, como reconhecem os crticos:
Machado de Assis um grande ironista, na vertente do seu romance predileto, A vida e as opinies de Tristam Shandy (1759-1767), de Laurence Sterne. Tristam Shandy influenciou uma carrada de romancistas, de Goethe e Diderot, passando por Balzac e Dickens, at chegar a Thomas Mann, James Joyce e Samuel Becket (...). Machado de Assis (...) aproxima-se mais de Sterne do que qualquer outro escritor (Bloom, 2003, p. 688).
So muitos os pontos de contato entre Tristam Shandy e Memrias pstumas, j que ambos representam uma forma semelhante de literatura carnavalizada. Para ficar com um exemplo, podemos destacar a questo da digresso:
Desde as suas primeiras pginas, afirma-se o Tristam Shandy como uma empresa sistemtica da violao. Ao fazer a histria de sua vida e opinies remontar ao momento em que fora gerado pelos pais, o heri e narrador radicaliza ad absurdum o enfoque do romance biogrfico de sua poca (...). O minucioso enfoque ab ovo do Tristam Shandy faria supor que a sua narrao se fosse desenvolver em linha reta numa ordeira progresso cronolgica, como de hbito no gnero biogrfico. Ledo engano (...): depois de seu comeo, a linha narrativa vai se quebrar numa enfiada de ngulos mais ou menos agudos, quando no se retorcer em coleios caprichosos (Paes, 1998, p. 29).
Essas quebras digressivas lembram o andar dos brios de Brs e fazem-nos tomar tambm as Memrias pstumas como uma empresa sistemtica da violao. O restante da obra machadiana parece apresentar uma violao mais contida, seja pelo nmero menor de digresses, seja pelo emprego menos sistemtico de procedimentos discursivos inovadores como os grafismos e o ponto de vista do defunto autor. Com efeito, as Memrias pstumas so a obra mais inovadora, mais revolucionria, mais carnavalizada, mais violadora de Machado. Os exemplos dados nos 407 captulos 2 e 3 desta tese confirmam essa proposio, pois, nos demais romances, o thos cnico se manifesta com menos intensidade. Aproveitando, alis, as contribuies tericas dos semioticistas da tensividade, podemos considerar que a intensidade como uma valncia subjetal caracteriza-se por produzir e distribuir pices e modulaes (Fontanille & Zilberberg, 2001, p. 31), associando o andamento e a tonicidade (Zilberberg, 2002, p. 116). Dessa maneira, a obra machadiana no que diz respeito intensidade das manifestaes do thos caracteriza-se pela ascendncia tensiva antes das Memrias pstumas e pela decadncia tensiva depois delas (Zilberberg, 2001, p. 54). Esse percurso fraqueza ! pico ! fraqueza, em que o mximo de intensidade se d com o romance de Brs Cubas, vem acompanhado de alteraes no eixo da extensidade. Isso ocorre, em primeiro lugar, porque a intensidade rege a extensidade (Zilberberg, 2002, p. 116). Alm disso, o modo de apreenso do thos machadiano nos obriga a considerar o nmero de vezes em que se encontram no enunciado indcios do carter, da voz e do corpo de Machado, bem como o tempo, a durao dessas manifestaes. Ora, a extensidade define-se exatamente pela produo e pela distribuio de partes e totalidade, unidades e pluralidades (Fontanille & Zilberberg, 2001, p. 31), conjugando temporalidade e espacialidade (Zilberberg, 2002, p. 116), o que significa que, nas Memrias pstumas, h uma difuso dos traos que definem o thos, enquanto, nos demais romances, eles esto mais concentrados, num percurso concentrao ! difuso ! concentrao. Essa combinao do pico, no eixo da intensidade, e da difuso, na dimenso da extensidade, define os valores do apogeu (Zilberberg, 2001, p. 75) e faz das Memrias pstumas um romance que atinge, simultaneamente, o mximo de intensidade e de extensidade, ou seja, o mximo de tenso. Trata-se de mais um elemento que justifica consider-lo uma espcie de smula da obra machadiana. A idia de que as Memrias pstumas encerram o maior nmero de exemplos textuais que remetem ao thos do enunciador, mais do que os romances anteriores e posteriores a elas, denega a idia, defendida por alguns estudiosos da literatura, de que existem dois Machados. Ivan Teixeira taxativo nesse ponto:
A obra de Machado de Assis divide-se em duas etapas muito diferentes, embora uma seja complemento da outra: fase de aprendizagem, em que aparecem elementos romnticos; fase de maturidade, em que predomina um 408 tipo especial de literatura, a que se pode chamar realismo machadiano (1987, p. 8).
Analisando a obra de Machado, Bosi fala da possibilidade de diviso da obra machadiana em dois momentos (1994, p. 196), enquanto Candido e Castello reconhecem a distribuio de seus romances em dois grupos (1996, p. 300). Moiss aborda essa questo de modo interessante. Primeiro ele admite a crena tradicional de que existem dois Machados:
Duas fases tm sido apontadas, convencionalmente, na carreira de Machado de Assis, a romntica que enfeixa os romances desde Ressurreio at Iai Garcia (...); e a realista, aps Memrias pstumas de Brs Cubas (2001, p. 80).
Em seguida, ele mostra que essa diviso, embora esclarecedora, no inequvoca, pois,
se h predominncia da pigmentao romntica nos livros iniciais, l tambm se observam traos de heterodoxia, a revelar um temperamento que aderiu com reservas esttica romntica, e nele instilou a marca inconfundvel do seu talento (2001, p. 80).
Em Presena da literatura brasileira, os autores afirmam sobre os primeiros romances machadianos:
(...) em vez de dizer que o romancista ainda se apresenta bastante comprometido coma herana romntica, preferimos admitir que ele est preso s caractersticas mais gerais do romance do sculo XIX (Candido & Castello, 1996, p. 300).
Dessa forma, os primeiros romances machadianos no poderiam ser considerados exatamente romnticos, uma vez que
409 uma anlise global da obra de Machado de Assis mostra, saciedade, que a sua concepo da realidade j se desenha, ainda que embrionariamente, na primeira fase (Moiss, 2001, p. 80),
que engloba as narrativas em que ainda havia uma preocupao
com a construo da trama romanesca, com as vicissitudes de um drama historiado, donde a estruturao da narrativa em suas formas mais freqentes (Candido & Castello, 1996, p. 300).
Guimares, analisando o pblico-leitor do sculo XIX, vai ainda mais longe, defendendo que
Machado de Assis comea sua carreira de romancista com um projeto anti- romntico num momento em que o gosto pela literatura sentimental e imaginosa domina o ambiente literrio brasileiro. Sua tarefa consiste, portanto, no s em apontar e demolir os anacronismos, mas tambm atrair um pblico capaz de compreender e fruir a literatura moderna que pretende construir (2004, p. 125).
J mostramos, em relao s Memrias pstumas, que, embora Machado seja mais realista que romntico, ele se afasta bruscamente dos modelos literrios de Flaubert ou Zola, na medida em que se aproxima da stira menipia. Considerando Ressurreio, A mo e a luva, Helena e Iai Garcia, tambm no se pode dizer que haja Romantismo stricto sensu nesses romances, pois falta-lhes a idealizao sentimental e sobram-lhes ambio, vaidade e clculo. Os casos amorosos entre Lus Alves e Guiomar e entre Lus Garcia e Estela, s para ficar com dois exemplos, remontam ao projeto anti-romntico machadiano. Sem prender-se a uma mera classificao de escolas literrias, Bosi toma as Memrias pstumas como o romance em que teria ocorrido uma ruptura discursiva em Machado:
Quando o romancista assumiu, naquele livro capital, o foco narrativo, na verdade passou ao defunto autor Machado-Brs Cubas a delegao para exibir, com o despejo dos que j nada mais temem, as peas de cinismo e indiferena 410 com que via montada a histria dos homens. (...) aprofundando o desprezo s idealizaes romnticas e ferindo no cerne o mito do narrador onisciente que tudo v e tudo julga, [o romance] deixou emergir a conscincia do indivduo, fraco e incoerente (1994, p. 197).
Semioticamente, essa mudana de foco narrativo
est ligada perda de tonicidade do campo perceptivo, que (...) reduz a percepo que o sujeito tem do mundo (Cruz Jnior, 2006, p. 228).
certo que, mesmo em seus primeiros romances, Machado relativiza a prpria oniscincia, mas, a partir das Memrias pstumas (e tambm em Dom Casmurro e Memorial de Aires), o fato de o narrador ser tambm ator do enunciado lhe diminui mais ainda o saber. Se, nos primeiros quatro romances, a diminuio do saber do narrador uma opo do enunciador, nos cinco ltimos (exceto em Quincas Borba) trata-se de uma necessidade do foco narrativo. Cruz Jnior ainda mostra que, antes de 1881, os romances machadianos valorizavam
questes como a ascenso social, filtrando os demais aspectos que assim ficavam de escanteio (2006, p. 228).
Quando, das Memrias pstumas em diante, diminui o saber do narrador,
esses elementos deixam de ser filtrados e passam a se tornar tambm centrais, dando origem a valores multifacetados, e no mais absolutos, como eram anteriormente (2006, p. 228).
A diminuio do saber est associada, pois, a um aumento da polifonia, que, por sua vez, pode levar a um recrudescimento do efeito de humor. Recorrendo a Bakhtin (1997b), Cruz Jnior explica que
a pardia sempre est relacionada a um confronto de vozes possesso de um discurso por outro, e o uso do discurso possudo para fins que lhe seriam estranhos. A pardia sempre implica um discurso que tem por objeto no a 411 realidade, mas outro discurso (...). Ora, todas as obras de Machado refletem esse esquema: so narrativas sobre a elaborao de narrativas que acabam por narrar algo como que de forma involuntria. Por exemplo, ao narrar sua vida, Brs Cubas narra sua prpria estultice; e as memrias de Aires revelam tambm sua miopia. O texto final que o leitor tem em mos se torna, desse modo, hbrido: metade obra do narrador, metade obra de outras vozes nele instaladas. Trata-se de discursos que passam, ento, a lutar (2006, p. 228- 229).
Esse choque entre discursos, essa polmica polifnica e zombeteira casa bem com a relativizao da verdade que se encontra em Machado e na tradio da literatura carnavalizada. A derriso machadiana no uma stira qualquer, mas sim um elemento libertador, que, como ensinava Bakhtin (1999), nega as convenes e apresenta a realidade por um outro vis.
Nada fica inclume sob a pena do enunciador, que zomba de tudo e de todos. Surge, desse modo, o riso que escarnece do comportamento srio de tudo (...). Naturalmente, o riso em Machado muito diferente, corrosivo, amargo, mas, ainda assim, riso e guarda um parentesco indelvel com o riso da Idade Mdia: seu carter libertador, seu poder de relativizar tudo, pois sempre h uma outra verso sobre o mesmo fato, uma outra verdade. Veja que no mera coincidncia o fato de que, medida que aumenta polifonia dos romances de Machado, cresce, com ela, o riso (Cruz Jnior, 2006, p. 328).
A idia de que gradativamente, na obra machadiana, ocorre aumento da polifonia e do efeito de humor, com diminuio do saber do narrador, acompanhada do fato de as Memrias pstumas concentrarem, intensa e extensamente, o maior nmero de indcios do thos do enunciador, sugere que no h ruptura na carreira de Machado, como se o ano de 1881 pudesse ser considerado a fronteira entre dois estilos. Na verdade, h uma progresso tensiva, independentemente de a curva ser ascendente ou descendente. inegvel que o estilo machadiano parece estar mais presente em A mo e a luva do que em Helena e certamente mais presente a partir de Quincas Borba do que nesses dois romances iniciais, mas isso no nos autoriza a pensar em ruptura, em dois Machados. 412 Houvesse duas fases estilisticamente distintas em Machado de Assis, seria difcil entender por que Moiss, por exemplo, fala da unidade ou continuidade dos romances machadianos, que refletiriam (...) as modulaes ascendentes da mesma cosmoviso (2001, p. 80), enquanto Candido e Castello reconhecem a perfeita unidade de sua obra. Na verdade, retomando a citao de Teixeira em Apresentao de Machado de Assis, os analistas ao fazer um julgamento esttico destacam os romances entre Memrias pstumas e Memorial de Aires, pois supem-nos melhores do que os publicados entre 1872 e 1878. A ns no interessa esse tipo de avaliao crtica. Mas parece que essa avaliao que estrutura a oposio entre a fase imatura e a fase madura de Machado que gera a convico de h um Machado romntico e outro realista. O certo que essa crena nos dois Machados foi altamente influenciada pelo esprito revolucionrio das Memrias pstumas, que, com suas digresses aparentemente descabidas, suas provocaes ao narratrio, suas stiras filosficas e sua erudio programadamente excessiva, parecia no combinar com o incesto pudico em Helena, com a determinao interesseira de Iai Garcia, com o cime oteliano de Flix ou com o pragmatismo dos protagonistas de A mo e a luva. Mas, como mostramos nos muitos exemplos do terceiro captulo, o thos machadiano j estava presente nesses romances, s que mais fraco e mais concentrado. No h ruptura, pois. H, sim, um aumento radical do pico e da difuso nas Memrias pstumas, que atinge os valores do apogeu, e, depois, uma pequena diminuio nos eixos da intensidade e da extensidade, que leva estabilizao tensiva do thos machadiano, que perdura, com poucas oscilaes, at Memorial de Aires. Nas obras anteriores s Memrias pstumas os narradores ainda exploram recursos tpicos da literatura do sculo XIX, como o suspense folhetinesco, o que confirma as idias de Candido e Castello de que Machado menos romntico do que novecentista. Veja-se um exemplo extrado do final do captulo A enferma, de Ressurreio, quando, de casamento marcado, Flix e Lvia acabam conversando sobre o cime do mdico:
Que houve de mau no teu passado? continuou o mdico com olhar perscrutador. Tudo. 413 Havia perto um velho sof de vime. Lvia encaminhou-se lentamente pare ele e sentou-se. Flix contemplou-a algum tempo do lugar em que ficara. J no sorria; a dvida ensombrava-lhe os olhos. Enfim, deu alguns passos e parou em frente dela (RE, cap. X, p. 115- 116).
Essa tcnica de encerrar o captulo com um conflito no-resolvido, produzindo efeito de suspense, ainda mais explcita em A mo e a luva (obra sujeita s urgncias da publicao diria [ML, p.18]), no momento em que Guiomar enruga a testa, surpresa com a tentativa de Lus Alves de evitar que a moa e a baronesa fossem passar uma temporada longe da Corte:
A ruga desfez-se pouco a pouco, mas a moa no retirou logo os olhos. Havia neles uma interrogao imperiosa, que a alma no se atrevia a transmitir aos lbios. Se h nos do leitor alguma interrogao, esperemos o captulo seguinte (ML, cap. XII, p. 94).
Aqui, a conversa com o leitor serve bem s convenes da narrativa folhetinesca. Em Helena, o efeito de suspense, de criao de expectativa no est ligado a conflitos no-resolvidos, e sim a uma espcie de antecipao narrativa, por meio da qual o narrador sugere acontecimentos futuros. Logo aps Mendona ser apresentado, durante quatro pargrafos, como o sal daquela terra, que era a casa da famlia de Estcio, o narrador afirma:
Acolhido como um filho, achava ali uma poro de casa. Que melhor aspecto podia ter a vida em tais condies, naquela famlia ligada por um sentimento de amor? A noite do ltimo dia do ano veio turvar a limpidez das guas (HE, cap. X, p. 87-88).
O turvador Camargo, que, dois captulos adiante, chantageia Helena, para que a moa incentive Estcio a casar-se com Eugnia. Esse tipo de antecipao tambm ocorre em Iai Garcia: 414 No meado do ano de 1871, fez Jorge uma excurso a Minas Gerais, com o fim de ajoelhar-se sepultura de sua me, cujos ossos transportaria oportunamente para um dos cemitrios do Rio de Janeiro. A excurso durou seis semanas. Jorge visitou alguns parentes, e regressou nos princpios de agosto. Um incidente transtornou-lhe os planos (IG, cap. VII, p. 87).
Essa forma de estrutura narrativa, associada aos percursos narrativos em que o objeto de valor o casamento, , de fato, comum no Romantismo. Alm disso, Machado acaba apresentando em seus primeiros romances casos de amor impossvel, como entre Flix e Lvia, Helena e Estcio ou Jorge e Estela, alm de no problematizar a vida de casados, como faziam os realistas. Tudo isso, em princpio, justificaria a vinculao de Ressurreio, A mo e a luva, Helena e Iai Garcia esttica romntica. Acontece que as personagens no-idealizadas, as aes calculadas, a relativizao da oniscincia do narrador (que em nenhuma das narrativas assume tambm o papel de ator do enunciado), a relao algumas vezes j sarcstica com o narratrio, as referncias bem-humoradas a outros textos que so um princpio polifnico, o contrato semitico, o thos cnico, de voz baixa e corpo contido todos esses elementos presentes no enunciado desses quatro romances impossibilitam a vinculao deles ao Romantismo. Parece que Machado se vale de alguns princpios da literatura em voga na poca justamente para super-los, para discuti-los, para problematiz-los. Assim, cria-se uma impresso de estarmos diante de uma obra romntica plena, moda de Macedo, mas essa impresso nunca se confirma. Podemos mostrar isso com um exemplo de Iai Garcia. A ida de Jorge ao Paraguai, como uma espcie de punio por ele ter-se apaixonado por Estela, no deve nada ao Romantismo mais exagerado. Na volta, ele v Estela casada com Lus Garcia, a quem ele esteve prximo de revelar seu amor secreto. A figura de Iai Garcia surge ento nesse imbrglio sentimental, at que a moa se apaixona por Jorge, inicialmente para impedir a madrasta de ter uma recada, na hiptese de aquele amor antigo ser recproco. Com a morte de Lus Garcia, o leitor folhetinesco, acostumado aos sobressaltos da fbula romanesca tradicional, fica espera de uma conversa franca entre Estela e Iai. S que
415 ocorre em Iai Garcia o oposto do que geralmente se d na fico sentimental e no melodrama, onde as emoes se acumulam at o grande momento em que irrompem junto com a revelao pblica da virtude e da verdade. Aqui, o efeito das revelaes de Estela sobre sua ligao com Jorge est amortecido. No penltimo captulo, ao contar a Iai sobre seu passado, Estela faz uma confisso pela metade, evadindo-se de responder a Iai se amou ou no o filho de Valria, o que produziria o confronto esperado, que nunca se realiza (Guimares, 2004, p. 168).
Para um enunciador ctico, pessimista e vinculado cosmoviso carnavalesca, seria muito estranho mesmo um romance seu apresentar a revelao pblica da virtude e da verdade. A redeno individual que acontece, por exemplo, em Alencar no ocorre em Machado. Essa quebra da expectativa em Iai Garcia apenas mais um elemento, a que podemos somar todos aqueles analisados no captulo 3, que afasta Machado do Romantismo e confirma a unidade estilstica que subjaz a todos os seus romances. Se h diferenas estilsticas entre os romances, elas so pontuais e digamos gradativas, pois se encaixam num percurso de progresso tensiva, sem que seja possvel enxergar dois Machados. O que consensual, tanto para crtica literria quanto para a anlise semitica que fizemos, que as Memrias pstumas de Brs Cubas so o ponto mais intenso e extenso da obra machadiana, entre outros motivos porque nelas esto presentes os maiores indcios para identificar o thos do enunciador. A relao entre narrador e narratrio pode contribuir para que mostremos por que o romance oferece tantos indcios desse tipo. Nas Memrias, o leitor instalado no enunciado
abertamente provocado, insultado, ultrajado, injuriado, desafiado, escarnecido, inferiorizado, humilhado, transformado em objeto de chacota e forado ao embate constante com um narrador principalmente agressivo. (...) O relacionamento, no entanto, no se esgota na afronta e na agresso. O leitor tambm acumpliciado pela narrao repleta de efeitos e cortinas de manobra, e detrs delas que o narrador procura mover seu interlocutor da posio inimiga para a condio de comparsa, e vice-versa (Guimares, 2004, p. 175).
416 Como j destacamos, a relao narrador-narratrio nas Memrias pstumas orientada para a polmica, a despeito dos momentos em que parece haver cumplicidade entre eles. Enquanto o narrador valoriza procedimentos discursivos inovadores, o narratrio apresentado como um admirador da tpica literatura do sculo XIX. Acontece que o enunciatrio, a quem se destina essa enunciao inovadora, capaz de compreender todo esse jogo do narrador, o que faz com que a relao enunciador- enunciatrio seja orientada para a cumplicidade. Na verdade, h no romance uma dissenso semntica entre a enunciao de 1 grau e a de 2 grau, que nos permite distinguir o enunciador do narrador e o enunciatrio do narratrio. Assim, h duas vozes do enunciado: a de um narrador provocador, insultador, ultrajador, injuriador, desafiador, escarnecedor, inferiorizador, humilhador e agressivo; a de enunciador cnico, que satiriza o narrador e mantm a voz baixa. Por haver essas diferenas discursivas entre o primeiro e o segundo nvel enunciativo, possvel encontrar elementos para identificar o enunciador machadiano a partir de um nico romance. Essa dissenso semntica, essas duas vozes, essas diferenas discursivas talvez sejam a maior complexidade das muitas presentes nas Memrias pstumas. No transcorrer de nossa pesquisa, a anlise desse romance exigiu a manipulao dos mais diversos conceitos lingsticos ligados semntica discursiva: modalidade autonmica, nveis enunciativos, foco narrativo, tipos de ironia, carnavalizao, contrato semitico, dialogismo, polifonia, estilo e thos. Alguns deles foram apresentados teoricamente no primeiro captulo e outros foram retomados durante o estudo das Memrias pstumas no segundo captulo. Todos esses conceitos tratados, com maior ou menor xito, pela Semitica que permitiram, no ltimo item do captulo 2, desenhar os traos que definiram o thos machadiano em suas trs dimenses: carter, voz e corpo. A questo que fica : qualquer romance permite a apreenso, ainda que sinedquica, de como o ator da enunciao, de como o enunciador se constri? A resposta no. Pelo simples motivo de que o estilo um efeito de unidade captado a partir de uma totalidade, de modo que o thos depende, sempre, da anlise de mais de um texto. Ter sido possvel fazer essa apreenso do estilo machadiano pelas Memrias pstumas e, depois, confirm-lo nos oito outros romances do escritor exceo, e no regra. Mas qual a explicao para essa exceo? A complexidade discursiva de Memrias pstumas de Brs Cubas, que apresenta duas instncias enunciativas bem demarcadas. 417 No primeiro captulo desta tese, discutimos a idia de que o narrador pode constituir-se como ator do enunciado e da enunciao ou como simples ator da enunciao. Em outros termos, o narrador sempre ator da enunciao, pois participa do discurso, da trama, mas no necessariamente ator do enunciado, j que nem sempre atua na narrativa, na fbula. Quando o narrador se mantm apenas como ator da enunciao, h poucos indcios para diferenciar o primeiro do segundo nvel enunciativo. Isso ocorre porque todas as marcas estilsticas apreendidas podem ser atribudas ao narrador, e no ao enunciador, o que nos levaria ao thos do narrador, e no do enunciador. Podemos at discutir a relevncia de determinar o thos do narrador, mas isso seria assunto para uma outra tese. Dessa forma, o mesmo ator acaba ocupando as posies de enunciador e de narrador, o que produz um efeito de sentido de objetividade. Quando o narrador tambm ator do enunciado, sua voz se mistura voz de uma das personagens, tirando-lhe a autonomia discursiva e produzindo um efeito de subjetividade. Na realidade, quando o narrador permanece na dimenso da enunciao, ele tambm no possui autonomia discursiva, mas o efeito de objetividade cria a impresso de autonomia. J no caso do narrador-personagem independentemente de o observador estar sincretizado com o ator da enunciao ou com o do enunciado , h mais indcios no enunciado da existncia de uma instncia enunciativa que est no comando da construo discursiva. A concluso a de que, quando o narrador ator do enunciado, ocorre uma disjuno entre o primeiro e o segundo nvel enunciativo, que permite encontrar indcios do thos do enunciador. Quando o narrador apenas ator da enunciao, no ocorre to claramente essa disjuno, o que torna menos evidentes esses indcios. claro que no todo romance com narrador-personagem que aponta para o estilo do enunciador da mesma maneira que as Memrias pstumas. O que ocorre que, potencialmente, esse tipo de narrativa opera com uma dissenso entre os dois primeiros nveis enunciativos, dissenso que pode ser mais ou menos marcada no enunciado. Quanto mais marcada ela for, mais o enunciador se mostrar distinto do narrador. Nessa perspectiva, h mais ruptura semntica entre a enunciao de 1 e de 2 grau nas Memrias pstumas do que, por exemplo, em O coronel e o lobisomem; mais neste do que em So Bernardo e Dom Casmurro; e mais nesses dois romances do que em Grande serto: veredas. A ironia, as escolhas lexicais, a metaenunciao, a falta de correspondncia entre narratrio e enunciatrio so alguns elementos do enunciado que possibilitam 418 reconhecer o hiato entre o primeiro e o segundo nvel enunciativo. Nas Memrias pstumas, obra em que esses elementos aparecem com enorme freqncia, foi possvel, portanto, mapear como se constri o ator da enunciao Machado de Assis. No houvesse esse hiato e os atores que estivessem nos papis de enunciador e narrador operassem com os mesmos valores, no seria possvel mesmo num caso de narrador- personagem fazer esse mapeamento com preciso. No se pode tambm afirmar que todo romance com narrador-no-personagem impossibilita completamente a identificao, ainda que parcial, do enunciador. O que acontece que, quando o narrador se comporta somente como ator da enunciao, o primeiro e o segundo nvel enunciativo se sobrepem. Assim, sabe-se que h duas instncias enunciativas, mas mais difcil distingui-las. Em romances como Quincas Borba, por exemplo, o dialogismo marcado no enunciado, o tom de provocao do narrador e as ironias do algumas pistas esparsas de como o enunciador se constitui como tal. No Memorial do convento, h menos pistas; nO guarani ou nO cortio, h menos ainda. Quanto maior o efeito de objetividade desse tipo de narrativa, menos o enunciador se diferencia do narrador. Esquematicamente, podemos postular:
MENOS INDCIOS PARA IDENTIFICAR O ENUNCIADOR Enunciador ! (atores distintos) ! Narrador
=
Ator do enunciado
!
efeito de sentido de subjetividade
!
MAIS INDCIOS PARA IDENTIFICAR O ENUNCIADOR 419
Pensando em termos de nveis enunciativos, teramos a seguinte configurao. Se o narrador tambm ator do enunciado, os papis de enunciador e narrador so exercidos por atores diferentes. Quanto mais esses atores operarem com valores distintos, criando uma dissenso entre o primeiro e o segundo nvel enunciativo, mais evidente o efeito de sentido de subjetividade produzido por essa configurao discursiva e mais indcios h para presumir o thos do enunciador. Se o narrador no ator do enunciado, supe-se, em princpio, que as posies de enunciador e narrador esto ocupadas pelo mesmo ator, o que aproxima os dois primeiros nveis enunciativos, gerando o efeito de objetividade. Quanto maior esse efeito, menos indcios h para delimitar a espessura semntica do ator da enunciao. claro que, como mostramos, h gradaes na produo desses efeitos, mas o fato que essa tabela acrescenta um dado relevante para a anlise do thos. O efeito de unidade do estilo que, em princpio, s pode ser apreendido por uma totalidade de discursos pode manifestar-se, com certa recorrncia, em romances em que o narrador tambm ator do enunciado, sobretudo quando so convocados recursos discursivos que contribuem para distinguir a enunciao de 1 grau da de 2 grau. No adianta, porm, analisar um romance mesmo da complexidade enunciativa das Memrias pstumas e supor que as marcas textuais encontradas so suficientes para determinar um thos. Inevitavelmente, preciso cotej-las com a totalidade dos discursos e confirm-las. Foram exatamente esses os passos que demos nos captulos 2 e 3 desta tese, permitindo a construo do ator da enunciao em Machado de Assis a partir das Memrias pstumas de Brs Cubas. Esse ator da enunciao constri-se, no final das contas, em cada palavra, em cada sinal de pontuao, em cada ttulo de captulo; ele passa a existir pelas recorrncias do uso, pelas repeties programadas, pelos cacoetes de linguagem; ele se forja nas intertextualidades, nas interdiscursividades, nos casos de heterogeneidade marcada e no-marcada; ele tecido pelas relaes entre destinadores e destinatrios, por todas as formas de dialogismo, pela polifonia; ele se origina de um romance, de outro romance, de todos eles juntos; ele se forma a partir do carter ctico, da voz baixa e do corpo contido, misturando a pena da galhofa e a tinta da melancolia; ele se constitui como partidrio da stira menipia, do contrato semitico, da literatura carnavalizada. Esse ator da enunciao faz-nos ver o mundo por outros olhos. E so olhos mopes, porque negam a verdade das coisas e a unicidade da realidade e colocam-nos 420 diante dos problemas sem soluo, naquela situao angustiante em que se captam verses do fato, e no o fato, que a contragosto a gente vem a descobrir que talvez nem exista mesmo. Assim, esse ator da enunciao transfere-nos sua miopia para que tambm notemos um mundo multifacetado, espcie de mosaico no-terminado de estticas, filosofias, religies e ideologias. Mopes, precisamos de culos para seguir em frente. Precisamos de um mapa, de um atalho, de uma direo segura. E no se trata de corrigir o caos do mundo, no se trata de curar as nuseas existenciais, no se trata de ordenar uma realidade que essencialmente desordenada. Assim, o mesmo ator da enunciao que nos torna mopes nos d as lentes, porque os discursos nos ajudam a compreender um pouco mais essa desordem universal. Vivemos num mundo de discursos. Analis-los, mastig-los, digeri-los, prens- los, domin-los, venc-los no deixa de ser uma obrigao. Pode ser que essa necessidade, em lugar de nos confortar, torne a vida mais difcil, menos estvel e mais desafiadora. Mas reconheo que ainda vale a pena lidar com os atores da enunciao, mesmo que eternamente nos restem dvidas. Vamos Histria dos subrbios.
(...) e est dito o necessrio. (Carlos Drummond de Andrade, A rosa do povo)
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