Julia Gomes Panadés - Ela, A Criação - Também em Clarice Lispector e Louise Bourgeois - Definitiva
Julia Gomes Panadés - Ela, A Criação - Também em Clarice Lispector e Louise Bourgeois - Definitiva
Julia Gomes Panadés - Ela, A Criação - Também em Clarice Lispector e Louise Bourgeois - Definitiva
FACULDADE DE LETRAS
Julia Gomes Panadés
Ela, a criação
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2017
Ficha catalográfica elaborada pelos Bibliotecários da Biblioteca FALE/UFMG
CDD: B869.33
2
3
Resumo
Este estudo aborda o tema da criação nas obras de Clarice Lispector e Louise Bourgeois.
As matérias processuais, os gestos compositivos e as figurações do nascimento são
algumas variantes desse campo temático. O modo como a experiência criadora figura no
corpo das respectivas produções literárias e plásticas levou a pesquisa a se dedicar não
apenas ao estudo da parcela mais conhecida das obras mas, também, às suas porções
periféricas, como fragmentos, esboços, notas e depoimentos que encenam e
problematizam o tema da criação. A filosofia de Gilles Deleuze é a principal linha de
articulação conceitual desta abordagem, que se alia, ainda, a um conjunto de outros
escritos (poéticos, ensaísticos e críticos) que tratam o tema da criação. A equação I do, I
undo, I redo, “eu faço, eu desfaço, eu refaço”, de Louise Bourgeois, é uma espécie de
refrão que conduz a escrita-novelo desta tese.
4
Abstract
This study edges close to the theme of creation in the works of Clarice Lispector and
Louise Bourgeois. Processual matters, composing gestures and figurations of birth are
some of the variates on these thematic grounds. The manner in which creative experience
figures in the body of such literary and plastic productions led this research to devote
itself not only to the study of the best known share of the works, but also to their
peripheral lots, such as fragments, drafts, sketchnotes and testimonies that stage and put
in doubt the theme of creation. The philosophy of Gilles Deleuze is the main line of
conceptual articulation of this approach, which further aligns itself to sets of other texts
(poetry, essays, criticism) that handle the theme of creation. The equation I do, I undo, I
redo by Louise Bourgeois is a sort of chorus that conducts the ball of thread that unravels
in this thesis.
Agradecimentos
6
Agradecimentos gerais – Ana Panisset, Ana Senra, Angelina Camelo, Camila Morais,
Chico Baumecker, Christina Barra, Clarice Lacerda, Clarissa Schembri, Cristina Maure,
Cristina Rodrigues, Dorothé Depeauw, Eva Pimenta, Flavia Fantini, Flavia Naves,
Izadora Fernandes, Julia Arantes, Júlia de Carvalho Hansen, Juliana Alvarenga, Juliana
Panadés, Jonas Samúdio, José Cardoso Lobato Pereira, Laura Cohen Rabelo, Laura
Berbert, Letícia Panisset, Leticia Oliveira, Li An, Luiza Marx, Maria Angélica Cardoso
Lobato, Maria Noviello, Marilia Schembri, Mario Geraldo da Fonseca, Marta Schembri
Freitas, Monica Mendes, Paula Vaz, Petra Costa, Ruth Silviano Brandão, Shima, Thembi
Rosa, Ulysses Panisset, Val Prochnow, Vitória Schembri, Bernardo Zama, Zuca Lobato,
Valquíria dos Santos de Jesus, ao povo que me acompanha em sala de aula e nas práticas
de ateliê, ao Pós-Lit.
7
Sumário
2. “O ovo é um dom” e “o mistério reside naquilo que você faz com ele”………….. 99
2.1 A pergunta da pergunta: o que é o que é? .……………………………….…........ 108
2.2 O que não sabemos …………………………………………………………..……114
2.3 Com fios de seda ………………………………………………………………….116
2.4 O “tema atemático” …………………………………………………………...…. 137
2.5 A criação como teima ………………………………………………………….…147
8
Lispector-Bourgeois e a “diferença convergente” 1
A criação dos híbridos, nos dois casos, coloca em questão os ideais de verdade,
acionando laços não hierárquicos no uso subversivo dos pares de opostos, tais como:
homem/mulher, humano/animal, pessoa/objeto. A encenação desse regime minoritário de
seres e de saberes seria, então, um traço de convergência entre as obras de Clarice
Lispector e as de Louise Bourgeois. Mas a tentativa de levar a pesquisa adiante,
confirmando a hipótese desse traço comum, começou a se mostrar limitadora. Em certa
medida porque eu tentava estabelecer uma paridade entre a disparidade de suas produções,
desconsiderando as especificidades e os códigos próprios a cada uma delas. Se o
levantamento dos índices de semelhança não levou a pesquisa muito longe, ofereceu,
contudo, pistas para uma abordagem outra: o tema da criação, as figurações do
nascimento e a matéria do começo em Clarice e Louise.
5
BOURGEOIS apud: MORRIS. Louise Bourgeois. p. 220. [Tradução minha]
10
sempre onde haja uma mulher com o meu princípio, erguerei dentro de
mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão
poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte
como a alma de um animal [...] só então viverei maior do que na
infância, serei brutal e mal feita como uma pedra, serei leve e vaga como
o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e
que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma
em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada
impedirá meu caminho até a morte sem medo, de qualquer luta ou
descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.6
Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra
molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história
da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o
quê, mas sei que o universo jamais começou.
Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito
trabalho.7
6
LISPECTOR. Perto do coração selvagem, p. 201-202.
7
LISPECTOR. A hora da estrela, p. 11.
8
BLANCHOT. Uma voz vinda de outro lugar, p. 34.
9
CIXOUS. La risa de la Medusa, p. 182. [Tradução minha.]
11
10
Aviso aos navegantes: “é sempre mais difícil ancorar um navio no espaço”
10
CESAR. Poética, p. 17.
12
mundo, volume heterogêneo de textos publicados por Clarice ao longo de doze anos no
Jornal do Brasil. A variedade desse material inclui notas de diário, listas, entrevistas,
trechos de contos, traduções, comentários, cartas e fragmentos que não se incluem em
nenhuma categoria genérica.
11
DELEUZE. Diferença e repetição, p. 243. A presente citação aparecerá mais uma vez, logo no início do
primeiro ensaio. A formulação pensar no pensamento, extraída dessa frase, aparecerá inúmeras vezes
incorporada ao texto da tese, sempre destacada em itálico.
13
trama conceitual deleuziana. Isso acontece por meio de encontros com outras filosofias e
com modalidades criadoras externas ao campo estritamente filosófico. “Rizoma”,
“multiplicidade”, “linha de fuga”, “devir”, “Aion”, “ser de sensação”, hecceidade e
“acontecimento” são alguns dos conceitos mais detidamente estudados ao longo da
presente pesquisa para melhor tratar o tema da criação.
12
DELEUZE; GUATTARI. O que é a filosofia?, p. 213. A partir desta entrada, a expressão deleuziana
coisas-artistas (ou coisa-artista) aparecerá, ao longo da tese, grafada em itálico.
13
DELEUZE. Conversações. Na entrevista “Um retrato de Foucault”, Deleuze explora as formulações:
“modos de subjetivação”, “operação artista”, “produção de modos de existência” e “estilos de vida”, das
quais derivam as expressões modos de vida-artista e modos de vida que aparecerão destacadas em itálico ao
longo desta tese.
14
DELEUZE. Conversações, p. 140.
15
DELEUZE. Diferença e repetição, p. 18. A partir desta entrada, a expressão deleuziana ter algo a dizer
aparecerá, ao longo da tese, grafada em itálico, incluindo as reduções: algo a dizer e algo.
16
DELEUZE; PARNET. Diálogos, p. 61.
17
DELEUZE. Crítica e clínica, p. 16.
18
DELEUZE; PARNET. Diálogos, p. 9.
14
As bordas do texto
Quando a criação foi assumida como tema da tese, a parcela dos escritos mais
dedicada ao pensamento de Gilles Deleuze tomou a posição inicial, em parte porque nela
estão concentradas as principais articulações teóricas aqui propostas mas, também, porque
se desenvolve ali uma gradual aproximação dessa filosofia com obras de Clarice
Lispector e Louise Bourgeois. Pensamento criador é o nome desse primeiro conjunto de
textos apresentados na seguinte sequência: “Como tratar o que se tem”; “Sou impelida a
precisar saber o que o pensamento pensa”; “Plumas pensadas são ideias que agarro em
pleno voo e ponho no papel”; “Pensar é sempre seguir a linha de fuga do voo da bruxa”;
“Linguagem de vida”. Essa lista condensa o universo temático acerca do pensamento
criador em formulações que retornam e se prestam a outras abordagens ao longo dos
ensaios seguintes. Os textos, nessa parte da tese, introduzem, pouco a pouco, além dos
15
termos e conceitos estudados, um conjunto de expressões formuladas pela própria
pesquisa.
“‘O ovo é um dom’ e ‘o mistério reside naquilo que você faz com ele’” é o nome
do segundo ensaio da tese. A frase é uma colagem de duas sentenças, uma de Clarice,
outra de Louise. Nesse texto, a própria abordagem se torna mais enfaticamente uma
questão em abordagem. Se o modo de tratar o tema se articula ao trato que se cria com o
tema, como acontece ao gesto de pensar no pensamento, a tarefa criadora de levar adiante
o problema da criação (no atrito com as obras estudadas) precisou incluir, de modo mais
assumido, a minha própria experiência com a matéria da tese. Embora esse aspecto seja
apenas apontado em uma passagem do texto, ele justifica, em boa medida, o
protagonismo da criação como tema. Pois é essa a matéria que atravessa toda a minha
formulação acadêmica anterior ao empenho desta tese, da graduação em Artes Plásticas
ao Mestrado em Artes Visuais. Também é com a criação que trabalho no âmbito coletivo
da prática docente. A criação é, ainda, um modo de vida vinculado à minha experiência
diária em ateliê e com o caderno, como ateliê portátil. Portanto, nessa parte da abordagem
se expõe minha posição como pesquisadora e, também, como professora e artista do
desenho e da palavra. Talvez, por essas múltiplas posições, a escrita deslize, tantas vezes,
entre a pauta de um estudo e o que escapa ao entendimento, entre os empenhos da
aprendizagem e o tom de ensinamento, entre uma linha argumentativa e o escape do
poema, entre a crença em um saber articulado e a potência criadora do não-saber.
19
DELEUZE; PARTNET. Diálogos, p. 74-75.
16
A parte inicial do ensaio desenvolve um estudo mais aprofundado entre as produções
gráficas e tridimensionais de Louise. A articulação das imagens no corpo do texto expõe
um vasto repertório de figurações do nascimento e o constante uso da matéria tecida. A
formulação I do, I undo, I redo é retomada e aliada à questão do começo, questão acerca
da qual se enovela a escrita da tese. Em “Fazer diário”, a obra prolífera de Louise é
abordada a partir de uma relação criadora entre a prática diária em seu ateliê e o hábito de
manter diários de escrita e de desenho. É ressaltada a importância dos escritos e da
matéria da palavra para o pensamento-criador de Louise. Os dois últimos textos, “O
recomeço” e “O começo pelo meio”, sustentam, como indicam os títulos, o interminável
problema do começo. Os textos periféricos de Clarice ganham relevância nesse momento,
sobretudo pela constante tematização do processo criativo. A criação como tema e a
questão do nascimento parecem forçar a escrita ao interminável, na finalidade de manter o
fio do “começo prosseguindo” 20.
20 LLANSOL. O começo de um livro é precioso, p. 1.
17
1. Pensamento criador
21
STEINBERG. Reflexos e sombras, p. 126.
22
BOURGEOIS. Louise Bourgeois: destruição do pai, reconstrução do pai, p. 75.
23
JOYCE. Ulisses, p. 16.
24
LLANSOL. Onde vais, Drama-poesia, 11.
25
SANTOS. O livro fúcsia de Clarice Lispector, p. 9.
26
SANTOS. O livro fúcsia de Clarice Lispector, p. 9.
27
LISPECTOR. Brincar de pensar. A descoberta do mundo, p. 24.
18
1.1 “Como tratar o que se tem”28
O que desencadeia o ato de pensar? Não se sabe ao certo. Por qual objeto de
encontro a fibra da aranha começa a se articular em teia, e a escrita a se multiplicar no
disparado das frases, e o desenho a se tornar desejo no branco alvo da página? O
pensamento começa a pensar precisamente lá onde não se sabe. Na contingência de
encontros, impedimentos e imprevistos, há o despojamento da posse, o desvio da posição.
O traçado prévio é colocado à prova pelo alcance do novo, e o abandono do mesmo se dá
no gesto provisório tateando a incerteza do que está para ser feito. Quando o confronto do
não-saber avança, o conforto do já sabido fracassa, restando nenhuma outra saída a não
ser a criadora. Trata-se da partida pela via da experimentação e da abertura de múltiplas
vertentes, tornando possível um estranho modo de vida móvel que não faz permanência
sem antes tornar-se outro.
29
28
LISPECTOR. Como tratar o que se tem. A descoberta do mundo, p.121.
19
30
“Pensar é criar, não há outra criação, mas criar é, antes de tudo, engendrar, ‘pensar’
no pensamento.” 31 Na obra do filósofo Gilles Deleuze, essa dobra do pensamento sobre
si mesmo acontece a partir de “encontros” com conceitos e noções de outros pensadores,
como os de Espinoza, Nietzsche, Bergson, Foucault. Não menos importantes são as
aproximações com outras modalidades do pensamento criador, externas ao campo da
tradição estritamente filosófica: matérias literárias, plásticas, sonoras, “seres de
sensação” 32 ou coisas-artistas. A criação de ferramentas teóricas e de modos de
abordagem envolve, em Deleuze, tais alianças, alianças com outras filosofias e saberes
não filosóficos. Isso porque o filósofo questiona a posição hierárquica atribuída à filosofia,
indicando que a produção conceitual não é o lugar privilegiado do pensamento. Nesse
interesse por áreas e domínios diversos, sua análise se dobra ao funcionamento das linhas
de composição, às transformações operadas no movimento criador, e jamais se encerra em
29
BOURGEOIS. À l'infini, números 1 e 4 de 14, 2008. Gravura em metal impressa com adições de
aquarela. 90.7x152.1cm
30
BOURGEOIS. À l'infini, números 5 e 14 de 14, 2008. Gravura em metal impressa com adições de
aquarela. 90.7x152.1cm
31
DELEUZE. Diferença e repetição, p. 243.
32
DELEUZE; GUATTARI. O que é a filosofia?, p. 215.
20
explicações categóricas satisfeitas em determinar o significado último das obras em
questão.
33
DELEUZE. O que é o ato de criação?, s.p. A transcrição da conferência Qu’est-ce que l’acte de
création?, traduzida por José Marcos Macedo, foi publicada na Folha de São Paulo em junho de 1999. Paris,
1987. Disponível em: <http://escolanomade.org/wp-content/downloads/deleuze_ato_de_criacao.pdf>
Acesso em: jun. 2017. Conferência em arquivo audiovisual está disponível em:
<http://filosofiaemvideo.com.br/conferencia-gilles-deleuze-o-que-e-o-ato-de-criacao-legendas-em-
portugues> Acesso em: jun. 2017.
34
DELEUZE. O que é o ato de criação?, s.p.
35
DELEUZE. O que é o ato de criação?, s.p.
36
DELEUZE. O que é o ato de criação?, s.p.
37
KLEE. Sobre a arte moderna, p. 67.
38
VALÉRY. Variedades, p. 206.
39
VALÉRY. Variedades, p. 207-208. [Grifo do autor]
40
VALÉRY. Variedades, p. 206. [Grifo do autor]
21
propriamente inventivo, as palavras já devem estar em obra, metidas em um movimento
de escrita, com as mãos variando conforme a velocidade indefinida do pensamento,
arriscando os limites normativos, assumindo a fragilidade de (saber) não-saber,
tropeçando no chamado incerto, alargando os limites da linguagem, agindo pelo alcance
exigente das forças criadoras.
Que a festa criadora de um corpo em obra seja dominada pela graça do improviso,
variando deslize, repouso, pausa, peso e aceleração, e abrindo mão de uma base
41
VALÉRY. Variedades, p. 197.
22
coreográfica para hospedar provisoriamente a rebelião das linhas nascidas em uma ideia e
animadas por ela. A potência do pensamento se realiza e ganha corpo no acordo singular
com a matéria de criação, fazendo vibrar o conjunto condensado de fragmentos em um
acorde sensível.
O jovem sorri na tela enquanto ela dura. O sangue lateja sob a pele deste
rosto de mulher, e o vento agita um ramo, um grupo de homens se
apressa em partir. Num romance ou num filme, o jovem deixa de sorrir,
mas começará outra vez, se voltarmos a tal página ou a tal momento. A
arte conserva, é a única coisa no mundo que se conserva. Conserva e se
conserva em si (quid juris?), embora, de fato, não dure mais do que seu
suporte e seus materiais (quid facti?). A moça guarda a pose que tinha
há cinco mil anos, gesto que não depende mais daquela que o fez. O ar
guarda a agitação, o sopro e a luz que tinha, tal dia do ano passado, e
não depende mais de quem o respirava naquela manhã. Se a arte
conserva, não é à maneira da indústria, que acrescenta uma substância
para fazer durar a coisa. A coisa tornou-se, desde o início, independente
de seu “modelo”, mas ela é independente também de outros personagens
eventuais, que são eles próprios coisas-artistas, personagens de pintura
respirando esse ar de pintura. E ela não é dependente do espectador ou
do auditor atuais, que se limitam a experimentá-la, num segundo
momento, se têm força suficiente. E o criador então? Ela é independente
do criador, pela auto-posição do criado, que se conserva em si. O que se
conserva, a coisa ou a obra de arte, é um bloco de sensações, isto é, um
composto de perceptos e afectos.
Essa afirmação de que a coisa criada “existe em si” pode parecer consonante com
a tese da “autonomia da obra de arte”, que idealiza a obra ao tomá-la como um modo de
ser específico, entidade autossuficiente, a despeito de seu contexto, de sua inserção no
mundo e das abordagens decorrentes desses encontros. Não parece ser para esse sentido
que aponta a formulação de Deleuze e Guattari: “A obra de arte é um ser de sensação, e
nada mais: ela existe em si”43. Mas o que, então, distinguiria a idealização da obra de arte
da ideia de um “ser de sensações”? Tomar a obra como uma unidade formal não seria o
42
DELEUZE; GUATTARI. O que é a filosofia?, p. 213. [Grifos dos autores.]
43
DELEUZE; GUATTARI. O que é a filosofia?, p. 213.
23
mesmo que abordar o corpo da obra como “composto de sensações” capaz de durar?
Seriam apenas termos diferentes para se dizer uma mesma coisa?
Deleuze parte da ideia de que o pintor não está diante de uma superfície
vazia que teria de preencher; para pintar, ele tem de esvaziar a tela de
uma série de dados figurativos: clichês físicos, que estão em torno dele,
no ateliê, nos jornais, nas fotografias, no cinema, na televisão, ou
psíquicos, como percepções e lembranças, que são projetados na tela
antes que ele comece a pintar. 44
44
MACHADO. Deleuze, a arte e a filosofia, p. 239.
24
visível, mas tornar visível’, não significa outra coisa”45. No caso de Bacon, há uma
elasticidade das sensações de pintura; a figura é corrompida em sua integridade a favor da
desfiguração; a quebra da representação e a neutralização da narrativa ocorrem para que a
obra se apresente como algo a dizer: “ele pinta o grito, mais que o horror”46. O que se
torna visível, aí, não é o sentimento pessoal ou a intenção discursiva do artista, mas a
travessia de sensações impessoais “encarnadas” em um composto sensível.
45
DELEUZE. Lógica da sensação, p. 62.
46
MACHADO. In: DELEUZE. Lógica da sensação. Orelha de livro.
47
DELEUZE; GUATTARI. O que é a filosofia?, p. 216. [Grifos dos autores.]
25
O tecido de sensações, mesmo que materialmente frágil e transitório, permanece restante e
durável.
Para um composto se sustentar como “coisa-artista”, não basta empenhar uma boa
intenção realizadora. O domínio de uma técnica, por si só, não é suficiente para que o
desenvolvimento da obra se dê. Não se trata apenas de se ter o corpo tomado pela
inspiração de uma sensação passageira, pois é preciso corpo suficiente para sustentar os
movimentos criadores em atrito com a matéria. Seria preciso acionar o conjunto dessas
instâncias: suportar as intensidades de uma ideia, assumir o encaminhamento do que se
tem em mãos, confiar no manejo das ferramentas, improvisar uma consistência
compositiva, instaurar vazios, extrair uma forma de permanência sensível.
26
partida do processo seria a instância na qual um composto sensível gerado se autonomiza
e alcança uma condição de partilha. O desprendimento tem a ver com aquilo que parte,
com a individuação sem sujeito que a obra é. A linha-cria da trajetória se torna uma
generosidade disponível, um corpo novo no mundo, que expõe certas instâncias intricadas
de seu próprio processo de feitura.
48
DELEUZE. O que é o ato de criação?, s.p.
49
DELEUZE. O que é o ato de criação?, s.p.
50
DELEUZE. O que é o ato de criação?, s.p.
51
KRAISER. Textos dobrados, imagens impuras. p. 39.
27
Há um modo de individuação muito diferente daquele de uma pessoa,
um sujeito, uma coisa ou substância. Nós lhe reservamos o nome de
hecceidade. Uma estação, um inverno, um verão, uma hora, uma data
têm uma individualidade perfeita, à qual não falta nada, embora ela não
se confunda com a individualidade de uma coisa ou de um sujeito. São
hecceidades, no sentido de que tudo aí é relação de movimentos e de
repouso entre moléculas ou partículas, poder de afetar e ser afetado.52
52
DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs v. 4, p. 47.
[Grifo dos autores]
53
DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs v. 4, p. 47.
[Grifo dos autores]
54
DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs v. 4, p. 47-48.
55
ZOURABICHVILI. O vocabulário de Deleuze, p. 26-27. (Verbete “Aion”)
28
porque a experiência a que ele corresponde é o paradoxo de uma ‘espera infinita que já é
infinitamente passada, espera e reserva’”56.
O pintor não pinta sobre uma tela virgem, nem o escritor escreve sobre
uma página branca, mas a página ou a tela estão já de tal maneira
cobertas de clichês preexistentes, preestabelecidos, que é preciso de
início apagar, limpar, laminar, mesmo estraçalhar para fazer passar uma
corrente de ar, saída do caos, que nos traga a visão. [...] Uma obra de
caos não é certamente melhor do que uma obra de opinião, a arte não é
mais feita de caos do que de opinião; mas, se ela se bate contra o caos, é
para emprestar dele as armas que volta contra a opinião, para melhor
vencê-la com armas provadas. É mesmo porque o quadro está desde o
início recoberto por clichês, que o pintor deve enfrentar o caos e
apressar as destruições, para produzir uma sensação que desafia
qualquer opinião, qualquer clichê (por quanto tempo?). A arte não é o
caos, mas uma composição do caos, que dá a visão ou sensação, de
modo que constitui um caosmos, como diz Joyce, um caos composto –
não previsto nem preconcebido.63
64
RANCIÈRE. Existe uma estética Deleuziana?, p. 505.
65
RANCIÈRE. Existe uma estética Deleuziana?, p. 505. Deleuziana com “i” mesmo??
66
RANCIÈRE. Existe uma estética Deleuziana?, p. 505.
67
DELEUZE; PARNET. Diálogos, p. 9.
68
DELEUZE; PARNET. Diálogos, p. 14.
31
propriamente criativo. “A obra é caminhar no deserto”69, escreve Rancière. Talvez, por
isso, a obra incite a deriva dos empenhos de abordagem e force o conhecimento prévio a
se aventurar, estabelecendo um trato com o desconhecido. As obras de arte, como
individuações sem sujeito, colaboram para a criação de “um modo do pensamento que se
desdobra acerca delas e que as toma como testemunhos de uma questão: uma questão que
se refere ao sensível e à potência de pensamento que o habita antes do pensamento, sem o
conhecimento do pensamento”70. Se a obra é um composto de forças, uma “passagem da
vida na linguagem” 71 , uma abordagem interessada pela condução criadora estaria,
necessariamente, aliada à experimentação como condição, à passagem das intenções às
intensidades, ao pensar no pensamento, ao envolvimento com as instâncias processuais de
um pré-pensamento, às virtualidades sensíveis que constituem o corpo da obra. É o bloco
de perceptos e afectos que sustenta a independência da obra em relação à intencionalidade
de quem a criou, pois, uma vez composta, “a própria coisa artística possui seu complexo
de intenções”72. Considerando que não se trata de uma interioridade fechada nem de um
conjunto de sentidos cifrados (a serem decifrados), o que seriam as tensões internas dessa
coisa artística?
74
DELEUZE; GUATTARI. O que é a filosofia?, p. 213.
75
ROSSI. Uma reapresentação de Henrry Miller, p. 32.
76
ROSSI. Uma reapresentação de Henrry Miller, p. 32.
77
RANCIÈRE. Existe uma estética Deleuziana?, p. 505.
78
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 23.
79
ROSSI. Uma reapresentação de Henry Miller, p. 27.
33
inverossimilhança geométrica, imperfeição física, anomalia orgânica, do ponto de vista de
um modelo suposto, [...] das percepções e afecções vividas”80, pois são esses os desvios
singulares do encaminhamento com a matéria, as variações e avariações de um combate
interno, envolvendo movimentos oblíquos, digressivos, idas e vindas, despojos e dobras,
que as linhas de força criadoras realizam no tecido da linguagem. “Manter-se de pé
sozinho não é ter um alto e um baixo, não é ser reto [...], é somente o ato pelo qual o
composto de sensações criado conserva-se por si mesmo.”81
Procurar uma língua apta a dizer as coisas de modo preciso não é simples.
Entra-se numa espécie de pulsação rítmica do verbo, uma afinação
inesperada entre palavra e batimento cardíaco, a frase acontece. O
acontecimento frasal não se confunde com a palavra habituada ao diálogo.
Têm densidades distintas, são heterogêneas entre si. A frase que acontece
surpreende a quem escreve por parecer ditada e não fazer concessões.
Acontece no ritmo, e é aí que uma imagem se aloja e ganha peso.
Algumas vezes têm peso suficiente para ter os pés no mundo. Outras, são
leves, suspendem-se e ficam à espera de um sentido. Frases que
acontecem têm força. Algumas comovem, isto é, movem quem escreve
ou lê junto de seu ritmo.83
34
Na pior das hipóteses
somente lido.
Terceira possibilidade –
embora escrito, logo jogado no lixo.
84
SZYMBORSKA. Um amor feliz, p. 315.
35
antes de alcançar o mar”85. São esses recursos que Waly Salomão evoca na escrita de
“Sargaços”:
Só e outros poemas
Soledades
Solitude, récif, étoil.
(Remos figurados no ar
pelos círculos de palavras.) 86
85
SALOMÃO. Poesia total, p. 293.
86
SALOMÃO. Poesia total, p. 294.
87
DELEUZE; GUATTARI. O que é a filosofia?, p. 214.
36
“O som deve tanto ser mantido em sua extinção, quanto em sua produção e seu
desenvolvimento.”88
88
DELEUZE; GUATTARI. O que é a filosofia?, p. 215.
89
DELEUZE; GUATTARI. O que é a filosofia?, p. 215.
37
1.2 “Sou impelida a precisar saber o que o pensamento pensa”90
Ter algo a dizer não é o mesmo que se comunicar plenamente. Ter algo a dizer
começa na devoração pela palavra, na nutrição do silêncio, na lógica que inclui a leitura
de avessos, na linha-cria que se abre ao trânsito dos sentidos, na reverberação sensível do
pensar no pensamento que sustenta o tecido da obra. Ter algo a dizer pode se tornar um
acordo de simultaneidades afetivas: avidez e aridez, entrada e saída, chamado e escuta,
vislumbre e captura, incerteza e ímpeto, aceite e recusa, cuidado e descarte, recuo e
avanço, escritura e leitura, nota e esquecimento, promessa fragmentária e arranjo
compositivo, voo e queda.
Se os meios de expressão reunidos pelo campo das artes funcionam por códigos de
linguagem específicos, modos de uso e ferramentas próprias, há procedimentos
recorrentes que atuam e colocam em diálogo criador todas as linguagens, como ocorre aos
movimentos de escrever e rasurar, rasurar e reescrever, reescrever e cortar, cortar e aderir,
aderir e desenhar, desenhar e apagar, apagar e esboçar, esboçar e alinhar, alinhar e tecer,
tecer e rasgar, rasgar e cerzir, cerzir e romper, romper e amarrar. O pensamento criador
na extremidade das mãos é uma pulsação inquieta que opera entre a precisão e a errância,
entre achados e perdidos. Uma ideia criadora se encaminha pelo envolvimento com
determinada matéria e se realiza no alcance de uma forma de expressão “preocupada com
a realidade das coisas e com sua existência desconhecida”91. Janaina de Paula aborda o
apelo que a atividade criadora realiza como dobra da obra, ou obra da dobra em coisa
escrita, por ela nomeada “cor’p’oema”92.
90
LISPECTOR. A paixão segundo G.H., p. 132.
91
BLANCHOT. A parte do fogo, p. 338.
92
PAULA. Cor’p’poema Llansol, p. 47.
93
PAULA. Cor’p’poema Llansol, p. 47.
38
94
98
94
BOURGEOIS. Weaving word, 1948. Carimbo de borracha sobre papel, 11.3x10.9 cm
95
PAULA. Porque um dia olhei para o azul e me faltou o céu, s.p. Disponível em
<https://fiodeaguadotexto.wordpress.com/2014/07/07/companheiros-filosoficos-6> Acesso em jun. 2017.
96
BLANCHOT. O espaço literário, p. 45.
97
LLANSOL. Finita, p. 139.
98
BOURGEOIS. Weaving, 2001. Monotipia de tecido sobre papel, 27.8x21.5 cm
39
A entrada em obra se abre de erro em erro, varia de dobra em dobra, intensifica-se
no movimento imperceptível que desabrocha, fibra por fibra, delicadamente, sobre si
mesma. O processo é o talvez da obra em seu modo de existência, contido apenas
enquanto contém sua expansão. Em “Submissão ao processo”, Clarice Lispector parece
dizer também dessa errância essencial ao encaminhamento da linha criadora.
Que é que eu faço? Não estou aguentando viver. A vida é tão curta, e eu
não estou aguentando viver.
Não sei. Eu sinto o mesmo. Mas há coisas, há muitas coisas. Há um
ponto em que o desespero é uma luz, e um amor.
E depois?
Depois vem a Natureza.
Você está chamando a morte de natureza?
Não. Estou chamando a natureza de Natureza.
Será que todas as vidas foram isso?
Acho que sim.100
99
LISPECTOR. Submissão ao processo. A descoberta do mundo, p. 445-446.
100
LISPECTOR. O processo. A descoberta do mundo, p. 26-, 27.
40
acertar com o erro. Talvez, para extrair do desvio o valor do imprevisto, forçar a
regularidade da trama, abrir o gesto compositivo ao improviso de uma saída criadora.
103
101
LABANCA. A mais: uma experiência de leitura dos restos em Nuno Ramos.Título de tese de doutorado
defendida na Faculdade de Letras da UFMG em maio de 2016.
102
SALOMÃO. Poesia total, p. 294.
103
BOURGEOIS. Turning inwards, 2008. Gravura em metal. A primeira com adição de crayon e grafite, a
segunda com adição de aquarela, nankin, grafite e guache, 151x90.1 cm
41
Em “Aposto”104, Maraíza Labanca escreve:
Ter o abismo como chão, tal é a força do poema, aquele que não se
satisfaz com menos do que isso. Mas de que poema falo, que ser-poema,
se eles são raros ou até mesmo improváveis ou até mesmo impossíveis?
Que impossibilidade é essa que não se constrange na estatura dos versos,
dos tempos, das eras ou dos consentimentos que estruturam e dão forma
àquilo que, justamente, há tanto tempo, se chama “o ser”?
Porém, lendo o que nele ele não é, sem lhe opor o sentido; lendo a
contrapelo suas letras, a partir do chão como abismo, do literal que
persiste e insiste nessa vaga linha onde se equilibra um mundo que “cai
para todos os lados”, por um fio, por uma linha fina; lendo a partir da
coisa pouca que a palavra é, sem, com isso, chegar a ser pouca coisa;
lendo o que, das letras, confabula na sua superfície, ao mesmo tempo
por trás e à vista, na sua fábula mínima; leio o que resta: o rés. A
105
Coisa.
104
LABANCA. Aposto. Comunicação oral, apresentada por ocasião de “Ela, a linha”, encontro de
desabertura da exposição de Julia Panadés no Museu Mineiro. Belo Horizonte, 8 de setembro de 2016.
105
LABANCA. Aposto, p. 01
106
VALERY. Variedades, p. 195.
107
VALERY. Variedades, p. 195.
42
Dessa condição em obra da obra, conservam-se também o provisório e o aberto do
que ainda não se realizou, porque está se fazendo na impermanência disponível ao retorno
clandestino, solitário e povoado108 do trabalho criador. Dar corpo a uma ideia é suportar a
condução incerta e a condição intensamente ativa dessa passagem.
109
108
DELEUZE; PARNET. Diálogos, p. 9.
109
BOURGEOIS. Spiraling eyes, 2000. Gravura em metal, ponta seca sobre papel, 14.7 x 12.5 cm
110
DELEUZE. Crítica e clínica, p. 16.
43
criadora surte de onde menos se espera, para alcançar, precisamente, a sorte do que não se
sabe. O ato de pensar no pensamento envolve aprender com o que vem, assumir o
ignorado sem recorrer aos automatismos das soluções prévias. Tal capacidade se lança em
obra como condição decisiva para um corpo dar nova condução ao risco.
111 112
Ter uma ideia seria, então, a possibilidade criadora de tornar vivível uma linha,
abrindo caminhos singulares, no sentido de que o risco exige, a cada vez, a criação
processual de novas saídas e entradas. É por força de uma ideia que o pensamento se põe
a pensar e que o meio criador turbilhona, mobilizando a invenção e a nutrição permanente
de um corpo em obra. Tudo isso precisa seguir até o empreendimento entrar em
desprendimento, até o impedimento se tornar possibilidade. Criar com as chances que se
têm, criar as chances, ter a chance de salvar uma forma de expressão. Ela, a criação, é um
repente lacônico, um nascimento de caminho, um risco entre o extraordinário e o
ordinário das forças de vida. Por ínfimas que sejam, por maiores que pareçam, por mais
visibilidade, por menos exibição, as forças em obra exigem que se creia nelas para que se
possa, literalmente, criar com elas.
111
BOURGEOIS. Untitled, número 220 de 220, da série The Insomnia Drawings, 1995. Nanquim e grafite
sobre papel, 26.6x20.3cm.
112
BOURGEOIS. The night, versão 2 de 2, 2001. Litografia sobre papel, 43.2x35.6 cm.
44
113
113
BOURGEOIS. Maman, 2009. Guache e grafite sobre papel, 91 x 121.6 cm.
45
1.3 Plumas-pensadas “são ideias que agarro em pleno voo e ponho no papel”114
Uma existência pode ser cumprida na sujeição aos protocolos que fazem coincidir
o dia a dia com os planos previstos, a soma dos problemas com os resultados esperados, o
cultivo de hábitos seguros com a estabilidade de se pensar por ideias prontas. Assim não
haveria o risco de uma ideia criadora abalar as estruturas do que significa pensar. É
possível evitar as acrobacias do pensar no pensamento. É possível viver uma vida sem
romper a ordenação vigente, sem provar o gosto estranho do novo, sem se deixar afetar
pelo mistério do ovo, sem fracassar na companhia gestante de uma ideia. São muitos os
modos de desimplicar-se da exigência criadora, fazendo de conta que se vive plenamente,
cumprindo o acordo com os modelos de vida pré-fabricados, como nas cenas dos
anúncios comerciais.
114
BOURGEOIS. Louise Bourgeois: destruição do pai, reconstrução do pai, p 293.
115
DELEUZE. O abecedário de Gilles Deleuze, Paris, 1988, 1989. A transcrição integral da entrevista
L'Abécédaire de Gilles Deleuze está disponível em: <http://escolanomade.org/wp-
content/downloads/deleuze-o-abecedario.pdf> Acesso em jun. 2017. O vídeo com a gravação da entrevista
está disponível em: <http://filosofiaemvideo.com.br/video-abecedario-de-gilles-deleuze> Acesso em jun.
2017.
116
DELEUZE. O abecedário de Gilles Deleuze. Verbete “Ideia”.
46
processo em obra coloque em perigo o corpo criador, é importante tomar medidas de
cautela e de prudência.
O movimento das linhas criadoras pode nascer, em uma pessoa, como insatisfação,
pode passar pela realidade de um estômago vazio, propagar-se aos berros de um incontido
desconforto. O tremor da fome mobiliza os nervos, restaura os gestos, conquista a
saciedade, repousa nas alegrias nutritivas. Um corpo nascido vivo, desprendido de seu
meio gestacional e lançado ao mundo tem a necessidade criadora como companhia desde
sua primeira fome na individuação involuntária que o atravessa. Ela, a criação, é fonte
nutritiva nas alianças mundanas com outras forças e formas de vida, emerge como recurso
117
DELEUZE; PARNET. Diálogos, p. 61.
118
PANADÉS. Desenho corpo porque vivo, p. 29.
119
DELEUZE; PARNET. Diálogos, p. 87.
120
DELEUZE. Conversações, p. 47.
47
nas limitações que a cada vez se pronunciam, exige a permanente condição inventiva,
segue em avanços e recuos, acompanha abrigos e desmoronamentos. As fomes são de
muitas naturezas, elas insistem, produzem a urgência das capturas, o atrito das tentativas,
os encontros que se dão. O apego se entrega ao gasto e a pluralidade dos alimentos
diversifica o apetite. O vigor do apetite ensina o desprendimento, o desprendimento faz o
aprendiz da fome cultivar seu vazio criador, levando adiante a necessidade involuntária,
forçando um corpo a agir, sentir, pensar, criar.
121
O ato criador se inscreve no corpo desde o seu nascimento. Ele é inicialmente uma
questão de sobrevivência: cria-se o mundo a cada descoberta de um recém-nascido. A
criação como modo de vida pode se tornar, depois, uma desordem desejável para certas
pessoas e um perigo à sanidade de outras, mas sua força tem uma abrangência irrestrita:
pode ocorrer em qualquer campo, partir de onde menos se espera, desatar o imprevisto,
alcançar o surpreendente. Pois não há esfera, dentre as faculdades humanas, desprovida
dessa possibilidade. “Se há quem – inclusive artistas – se encosta à vida protegido por
luvas, salvaguardado de toda e qualquer contaminação, há quem meta as mãos nela, na
vida, e isso ganha – pode ganhar – um sentido mesmo sexual.”122
121
BOURGEOIS. Self portrait, 2007. Guache sobre papel. Dimensão: 60 x 45.4 cm
122
LABANCA. Aposto, p. 3.
48
Na abordagem do verbete “Ideia”, Gilles Deleuze pergunta: “sob que forma se
apresenta uma ideia em determinados casos?”123. No caso da filosofia, ela “se apresenta
na forma de conceitos. Há uma criação de conceitos, e não uma descoberta. Conceitos não
se descobrem, são criados. Há tanta criação em filosofia quanto em um quadro ou em uma
obra musical”124. Se uma obra escrita pode ter algo a ver com um desenho ou com uma
obra de natureza filosófica, isso ocorre pelas ideias que tais ou quais criações conjugam,
pelos fluxos que aqui e ali deslizam, pelo desejo de passagem no desenho das linhas de
força expressas em composições melódicas, gráficas, plásticas, literárias.
125
Quando Deleuze pergunta: “O que é ter uma ideia?”126, coloca em questão a noção
platônica de “Ideia” como representação ideal das coisas, entidade puramente abstrata e
preexistente, na qual residiria a versão autorizada a compreender tudo aquilo que existe de
modo imperfeito no mundo. Para Platão, caberia ao filósofo, o detentor exclusivo da
123
DELEUZE. O abecedário de Gilles Deleuze. Verbete “Ideia”.
124
DELEUZE. O abecedário de Gilles Deleuze. Verbete “Ideia”.
125
BOURGEOIS. Pregnant woman, 2008. Guache sobre papel, 60 x 45.7 cm
126
DELEUZE. O que é o ato de criação, s.p.
49
faculdade de pensar, a função de trazer à tona a verdade universal, eterna e perfeita;
Deleuze, em contraposição, afirma: “O filósofo não é um reflexivo, é um criador”127.
127
DELEUZE. Conversações, p. 152. [Grifo do autor]
128
DELEUZE. O que é a filosofia, p. 13.
129
DELEUZE. O que é a filosofia, p. 13.
130
DELEUZE. O abecedário de Gilles Deleuze. Verbete “Ideia”
131
DELEUZE; PARNET. Diálogos, p. 9.
132
DELEUZE; PARNET. Diálogos, p. 9.
50
133
Para se criar alguma coisa, são necessários incontáveis gestos, hesitações sem
êxito, superfícies desprotegidas e porosidades gastas, fluxos correntes, fibras tecidas
propagando impulsos, sensibilidades dispersas, fluidos concentrados, delicadezas
cultivadas à sorte acidental dos movimentos. Por que não basta ter um corpo para se ter
também a garantia da criação? Talvez porque um corpo é o que está para ser feito. Seu
exercício é o de uma capacidade potencial: a de se tornar algo a dizer.
Criar é abrigar o vazio incerto dos começos. Embora um corpo nascido vivo já
comece por existir na garantia de encontrar, cedo ou tarde, o colapso da morte, a vida
133
BOURGEOIS. The Birth, 2007. Guache sobre papel, 29.5 x 22.9 cm
51
sendo vivida é algo novo a cada instante. Viver não se encerra num funcionamento
plenamente alcançado de uma vez por todas, mas recomeça com a operação aberta de
todas as linguagens que permitem ao corpo vivente experimentar formas de
impermanência e provar do provisório. A passagem de uma ideia criadora ensina que é
preciso ir e vir como quem dá passagem à linha na confiança dos começos desviantes.
134
No trato com as ideias criadoras, parece haver uma aposta no risco, um flerte com
a potência do gesto, que não coincide com a eficácia garantida. Mesmo assim, resta uma
ilusão recorrente que faz com que alguém (talvez indisposto ou privado de ideias) peça a
outro alguém (na condição involuntariamente pensante): “Você poderia me dar uma ideia,
134
BOURGEOIS. Female, 2009. Ponta seca com adição de aquarela sobre papel, 12.7 x 8.6 cm.
135
LABANCA. A mais: uma experiência de leitura dos restos em Nuno Ramos. p.17.
52
pois tenho um problema e não sei como resolver?”. Mas ter ideias, bem o sabe quem as
tem, não serve para solucionar problemas; embora a condição criadora possa funcionar
como saída instantânea do problema, o problema continuará lá, impedindo a passagem ou
forçando a invenção de novas saídas que são também entradas aos processos em obra.
Não é possível dar ou receber ideias como quem troca receitas e opiniões
formadas, como quem segue modelos e cumpre protocolos. Ter uma ideia é ter o corpo
tomado por uma força desconhecida, imprevista e imprevisível, pois não se sabe de
antemão o que virá de sua entrada em movimento. Talvez seja melhor não saber e jogar
com o ignorado, roubar o proveito das contingências, cultivar o interesse pelo transitório,
pois é nessa confiança que uma ideia vai se atualizando na consistência da coisa criada.
No que consiste a coisa criada? É um repouso consistente? É uma matéria em
movimento? É uma experiência do corpo em obra? Ela, a ideia da obra em obra,
apresenta-se como coisa já fora do perigo de não acontecer.
53
Isso, enquanto jogo leve. Pois para pensar fundo – que é o grau máximo
do hobby – é preciso estar sozinho. Porque entregar-se a pensar é uma
grande emoção, e só se tem coragem de pensar na frente de outrem
quando a confiança é grande a ponto de não haver constrangimento em
usar, se necessário, a palavra outrem. Além do mais, exige-se muito de
quem nos assiste pensar: que tenha um coração grande, amor, carinho e
a experiência de também se ter dado ao pensar. Exige-se tanto de quem
ouve as palavras e os silêncios – como se exigiria para sentir. Não, não é
verdade. Para sentir exige-se mais.
O pensar no pensamento surte “do ponto exato em que se estiver”, emerge nos
gestos empenhados em “uma oficina de consertos ou uma sala de costuras”, está
imperceptivelmente disponível no “seio do ar”. Mas, para se dobrar o pensar em um ato
de pensamento, “é preciso estar sozinho”, escreve Clarice. A solidão da brincadeira
pensante articula uma experimentação curiosa, joga com a elasticidade de um apelo
criador, tem a alegria de um não-saber ao certo. Atribuir ao ato de pensar uma finalidade
“de eficácia, sem referência a uma necessidade do espírito”137, é privar o pensamento de
seu movimento brincante, imprevisto e atmosférico.
136
LISPECTOR. Brincar de pensar. A descoberta do mundo, p. 23-24.
137
LOPES. A ironia das teorias, p. 3.
54
138
Mas o que significa ter algo a dizer para alguém “em nome” da própria criação?
Essa estranha formulação reaparece em um dos textos publicados em Conversações,
“Carta a um crítico severo”, no qual Deleuze descreve seu modo de fazer filosofia
atravessando a tradição filosófica por meio de alianças com outros pensadores “que se
opunham à tradição racionalista”140 e se aproximavam entre si pela “crítica do negativo,
pela cultura da alegria, o ódio à interioridade, a exterioridade das forças e das relações, a
denúncia do poder..., etc.”141.
138
BOURGEOIS. The Maternal Man, 2008. Guache sobe papel, 31.1 x 25.4 cm.
139
DELEUZE. O que é o ato de criação?, s.p.
140
DELEUZE. Conversações, p. 14.
141
DELEUZE. Conversações, p. 14.
55
Deleuze relata sua experiência (audaciosa) de conceber “a história da filosofia
como uma espécie de enrabada, ou, o que dá no mesmo, de imaculada concepção. Eu me
imaginava chegando pelas costas de um autor e lhe fazendo um filho, que seria seu, e no
entanto seria monstruoso”142. O prazer dessa perversão se resumia em fazer com que o
autor em questão dissesse aquilo que Deleuze “lhe fazia dizer”. Mas a “monstruosidade”
resultante do gesto se fazia necessária para que a invenção conceitual se tornasse
verdadeiramente arriscada, no sentido de falsear, “passar por toda espécie de
descentramentos, deslizes, quebras, emissões secretas”, levando a linha do pensamento,
por dentro ou por trás, a atravessar a história da filosofia em um gesto criador.
142
DELEUZE. Conversações, p. 14.
143
DELEUZE. Conversações, p. 15.
144
DELEUZE. Conversações, p. 15.
145
DELEUZE. Conversações, p. 15.
56
A alegria do novo se fazendo e o improviso da invenção são virtudes cultivadas
“no saber não saber, em não desejar se encerrar em um saber. Em saber mais ou menos só
o que se sabe, em saber não compreender”146, escreve Heléne Cixous acerca das lições a
ela ensinadas pela escrita de Clarice Lispector. “Não se trata de não haver compreendido,
mas de não se deixar encerrar na compreensão” 147 , conclui. As instâncias de
aprendizagem e ensinamento estão implicadas nos processos de invenção que engendram
formas de existência e as transformam em aprendizagem-ensinamento. A dupla banda
dessa coisa criadora não supõe contradição, mas a torção de algo que emerge ainda
ignorado, do entendimento alcançado que se afunda, escapando ao contorno. “Falamos do
fundo daquilo que não sabemos, do fundo de nosso subdesenvolvimento”148, escrevem
Deleuze e Guattari. A prova criadora “de uma tal multiplicidade intensiva”149 seria capaz
de dar ao indivíduo a condição simultânea: despojar-se de um suposto domínio,
apropriando-se do sabor particular daquilo que ignora.
146
CIXOUS. La risa de la medusa, p. 182. [Tradução minha.]
147
CIXOUS. La risa de la medusa, p. 182. [Tradução minha.]
148
DELEUZE. Conversações, p. 15.
149
DELEUZE. Conversações, p. 15.
150
DELEUZE. Conversações, p. 15.
151
DELEUZE. Conversações, p. 15.
152
SALOMÃO. Poesia total, p. 434.
153
LOPES. A ironia das teorias. Disponível em: <http://chaodafeira.com/cadernos/ironiadateoria> Acesso
em jun. 2017.
57
“Admitamos que se pensa quando de modo indiscernível se usam e se criam linguagens.
Nessa condição, os humanos são por natureza seres pensantes, sendo o pensamento um
movimento que os desloca para fora do seu limite enquanto indivíduos” 154 . O
deslocamento do indivíduo no exercício da linguagem é uma alteração sensível, um
exercício corporal de despersonalização. Pois não é possível pensar o mundo sem se sujar
de mundo nem colocar algo em abordagem sem alterar suas próprias bordas; não há
criação de linguagem desprovida de misturas nem produção de conhecimento sem o trato
errante com uma organicidade desconhecida.
154
LOPES. A ironia das teorias, p. 3.
155
DELEUZE. Crítica e clínica, p. 16.
156
DELEUZE; GUATTARI. Crítica e clínica, p. 35.
157
DELEUZE. O abecedário de Gilles Deleuze. Verbete “Ideia”
158
DELEUZE. Proust e os signos, p. 96.
58
encerram naquilo que realizam. O pouso compositivo é um descanso, uma prova
provisória que mantém as sensações condensadas na obra. Esse condensado sustenta a
vibração inquieta, precária e evanescente, incluindo as virtudes do que ainda não se
realizou, e por isso mesmo se conserva na fibra, na potência de um fio em permanente
recomeço.
“As ideias são uma obsessão, elas vão e voltam, se afastam, tomam formas
diversas e, através destas formas variadas, elas são reconhecíveis.”159 A reincidência, da
qual fala Deleuze, não presume ou esgota a capacidade inventiva, ao contrário, as ideias
nos forçam, são atos de abertura, potências de passagem e encaminhamentos sensíveis.
No conjunto de uma produção, é possível acompanhar os percursos de uma ideia em obra;
os elementos enredados, modificados em novas combinações; os temas recorrentes,
fragmentados e restituídos em uma travessia irregular, em uma variedade anônima,
deslizante e continuamente remanejável. As forças processuais de passagem pelas fibras
fazem a manutenção da obra em obra. Isso é notável pela inquietude dos traços em um
desenho, pelo disparado das palavras na escrita. Os modos de compor relação com a
linguagem são fluxos transitórios, incessantes, contingentes, e só se atualizam na travessia
dos signos que forçam o pensamento a pensar, a cada impedimento e convite à tentativa.
Uma ideia não se fixa conforme um ideal, ela resiste em seu acabamento inacabado, como
força tecelã, incessante porque essencial à manutenção de um processo em obra.
A criação, uma vez assumida como questão em obra, mostra as mãos, os dedos e o
avesso das palmas, no giro do ensinamento-aprendizagem que a trama elástica do
processo incorpora. É literalmente o que faz a artista Louise Bourgeois ao inscrever, sobre
o corpo de uma monumental instalação de ferro, a frase-título: “I do, I undo, I redo” (“Eu
faço, eu desfaço, eu refaço”). É também o tema, ou pulsação, que Clarice Lispector parece
conceder ao personagem Autor de seu romance (póstumo) Um sopro de vida:
O que está escrito aqui [...] são restos de uma demolição de alma, são
cortes laterais de uma realidade que me foge continuamente. Esses
fragmentos de livro querem dizer que eu trabalho em ruínas.
Eu sei que esse livro não é fácil, mas é fácil apenas para aqueles que
acreditam no mistério. Ao escrevê-lo não me reconheço, eu me esqueço
de mim. Eu que apareço nesse livro não sou eu. Não é autobiográfico,
159
DELEUZE. O abecedário de Gilles Deleuze. Verbete “Ideia”
59
vocês não sabem nada de mim. Nunca te disse e nunca te direi quem sou.
Eu sou vós mesmos.160
A escrita encena não a versão confessa de sua verdade oculta, mas uma espécie de
corpo ao mesmo tempo coberto e descoberto por seu modo de ir no empenho de um
caminho cambiante, feito, desfeito e refeito. Esse ritmo em obra acena como pista, flerte,
convite, oferta, lance de um movimento muitas vezes imperceptível, emoção lançada ao
risco de algo novo se fazendo pela “passagem da vida na linguagem”161. A força exibe sua
fuga e se encaminha, tornando-se uma ação compositiva. O imperceptível, escreve
Deleuze, “é o fim imanente do devir. Sua forma cósmica”162. Como tratar o perigo da
passagem súbita de uma ideia em obra? Como abordar a experiência da criação em sua
nudez, como escutar a misteriosa ação compositiva, como dialogar com a figura movente
de um corpo em obra?
163
60
modo que a propriedade do movimento processual seja também uma paciente perdição,
uma desistência curiosa, um apreço despojado, uma aprendizagem-ensinamento, um
silêncio ruidoso, um rigor de imperfeições ou uma imperfeição rigorosa.
O ato de escrever tem a matéria da palavra como abismo e parapeito. Assim como
o contido contém sua expansão, o pensar no pensamento se realiza no desdobrar de uma
ideia em um composto de forças, o que não significa que o modo do pensamento
alcançado seja inabalável ou que a ideia em obra, por se sustentar, não possa produzir
abalos insustentáveis, dimensões impensadas, pequenos impulsos, novos movimentos e
órbitas imprevistas.
61
165
Uma abordagem interessada pelo processo criativo pode colocar à prova suas
próprias linhas de referência ao se enredar pelo vórtice das forças em um desenho, ao
tomar para si os riscos de um poema, ao acompanhar os fluxos da obra em obra, ao flertar
com potências paradoxais, ao aprender com a elasticidade das operações de linguagem,
estando à altura de um não-saber levado adiante. Pois a força da criação avaria a
plenitude da trama compositiva, fissura a integridade das formas, rompe certas normas e
faz recuar tantas outras, instaura a chance de um perder-se simultâneo ao encontrar-se em
liberdade.
167
Os processos de invenção são misteriosos até para quem os empreende, talvez por
isso as formas e maneiras de criar despertem tanto interesse. A curiosidade quer saber
como funciona a coisa criadora. Pergunta-se: como se comporta essa intensidade? Ela
insiste, reincide, varia e tende a uma instância provisória na qual se pode tocar.
168
VALÉRY. Degas, dança, desenho, p. 69.
169
SALOMÃO. Babilaques, p. 27.
170
SALOMÃO. Babilaques, p. 27.
171
SALOMÃO. Babilaques, p. 27.
172
LISPECTOR. Água viva, p. 54.
173
SALOMÃO. Babilaques, p. 27.
64
Estabelecida uma certa distância da coisa criada, um indivíduo criador pode falar sobre
sua experiência, como quem fala com a experiência da criação. No diálogo com essa
espécie de entidade sem nome, o exercício pode vir a se tornar, então, o de falar como
experiência.
A criação como questão implica desdobrar o mistério de que as coisas são feitas.
Talvez seja preciso encontrar uma correspondência entre os signos que forçam um artista
a entrar em obra e os signos que levam uma abordagem da obra a formular suas próprias
perguntas. Talvez o movimento crítico da matéria criadora ensine aos processos de
abordagem modos mais sensíveis de pensar o pensar no pensamento. Se o envolvimento
com um corpo leva em conta o processo criador desse corpo, seria preciso extrair um
gesto aprendiz do trato sensível, tatear as sensibilidades em obra e se deixar afetar por
elas. A abordagem seria essa dobra da obra acordada com as sensibilidades em questão.
174
174
BOURGEOIS. Untitled, 2002. Serigrafia sobre tecido, 31.4 x 24 cm.
65
Um processo de abordagem ensina que não há respostas definitivas: é preciso
fazer das perguntas o movimento pensante, é preciso pensar por própria conta e risco.
Construir uma abordagem é também tomar a obra como provisão instável e traçar linhas
frágeis o bastante para que o empenho possa se arruinar e recomeçar, resumindo-se em
entradas clandestinas de um cuidado pelas bordas. A escuta das bordas quer saber das
tramas imprevistas, do rumor periférico da obra em obra. Importa também evitar que a
curiosidade e o aprofundamento crítico se tornem abismos sem fim. Seria preciso manter
as mãos calçadas na pergunta, sustentando o movimento de abordagem para encontrar, na
matéria da criação, o parapeito de onde o vislumbre de algo novo exceda e se apresente,
transbordado como matéria em estudo. Não se trata de buscar uma apropriação segura de
como o pensamento criador funciona, nem de fazer uma aproximação especialista que
conclua o movimento inacabado e complete os vazios ou, ainda, que alinhe em
integridade os fragmentos dispersos de uma composição. A criação de uma abordagem
dependeria, em sua sorte arriscada, de perguntas articuladas com o não-saber ao qual a
obra se vincula, tateando por trás do pensamento uma trilha mediúnica, um caminho por
entre escolhas, procedimentos e acidentes. É possível distinguir escolhas e acidentes?
175
175
BOURGEOIS. Untitled, 2002. Serigrafia sobre tecido, 26.2 x 30.2 cm
66
A abordagem de um processo de criação precisaria, também, entrar no
procedimento, tornar-se processualmente criativa, capaz de tomar para si as linhas da
matéria da obra em questão como quem se enreda para dar à “coisa-artista” o gesto de seu
empenho, o tecido literal da pesquisa como experiência: a matéria escrita. Assim, parece
mais honesto que o ato de pensar o pensar no pensamento, aqui chamado de “abordagem”,
se converta, primeiramente, na assunção do desejo que mobiliza a pesquisa, assumindo
suas próprias saídas criadoras, como ensina a “operação bumerangue” de Wally Salomão.
Uma abordagem que tenha a criação como tema precisaria ser feita na radicalidade de
cada tentativa, na distância crítica dos blocos de texto, ora vertiginosamente próximos da
“coisa-artista”, ora desdobrando a leitura por uma atenção curiosa, ora digressivamente
orientada na dispersão pelas bordas, ora ao encalce daquilo que escapa, rente ao traço de
uma vibração restante que parece sempre seguir ao desconhecido, ao inesperado.
67
1.4 “Pensar é sempre seguir a linha de fuga do voo da bruxa”176
176
DELEUZE; GUATTARI. O que é a filosofia?, p. 59.
177
DELEUZE. Conversações, p. 118.
178
DELEUZE; PARNET. Diálogos, p. 29.
179
DELEUZE. Crítica e clínica, p. 15.
68
sua obra. Desde seus textos monográficos até as obras derradeiras.”180 A pergunta O que
é a filosofia?, título do último livro da parceria Deleuze e Guattari, implica o estudo, o
uso e a criação de conceitos, mas também o interesse filosófico pelos atos do pensamento
em fazeres e saberes não conceituais, como nas funções formuladas pelas ciências e nos
“seres de sensação” engendrados pelas práticas artísticas. Os autores tomam o ato de
pensar como atividade criadora e insistem que a criação pode surtir de onde menos se
espera e avançar até onde não se sabe, isto é, ela não é a espera por uma revelação
efetuada pelos domínios dos saberes que institucionalizam as faculdades humanas.
O “rizoma” é uma espécie vegetal estudada pelas ciências biológicas. Esse modo
de existência envolve diversas formas de ramificação. Em todas elas, prevalecem o
movimento não-linear e o crescimento conectivo: “qualquer ponto do “rizoma” pode ser
conectado a qualquer outro e deve sê-lo”188. Tal comportamento é tomado de empréstimo
pela filosofia de Deleuze e Guattari para abordar as potências criadoras, como o “uso
menor da língua” produzido pelo “devir minoritário” na escrita literária. Segundo a lógica
do “rizoma”, a minoração da língua “evolui por hastes e fluxos subterrâneos, ao longo de
vales fluviais ou de linhas de estradas de ferro, espalha-se como manchas de óleo”189. As
margens abertas do “rizoma” se desenham pelo crescimento das ramagens, envolvendo
tudo aquilo que se apresenta.
184
DELEUZE. Crítica e clínica, p. 16.
185
DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs vol.1, p. 21.
186
DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs vol.1, p. 21.
187
DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs vol.1, p. 21.
188
DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs vol.1, p. 23.
189
DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs vol.1, p. 23.
190
DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs vol.1, p. 23.
191
DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs vol.1, p. 24.
70
um corpo, atua nele a potência substantiva do múltiplo, o que não significa a configuração
de um sistema fechado, mas a provisão transitória e imprevista. “Não existem pontos ou
posições num “rizoma” como se encontram numa estrutura, numa árvore, numa raiz.
Existem somente linhas.” 192 As linhas de um “rizoma” seguem diferenciando-se,
articulam-se como potência autônoma, descontínua, não linear, mas conectiva, como
espiras independentes ou “anéis abertos”193.
A ação tentacular do “rizoma” tem uma lógica fragmentária e funciona pelo meio.
Tal é o “princípio de ruptura assignificante”195: pelo corte seco que corrompe as cadeias
de significação, ele se move pelo meio, contradizendo o que se espera de uma linearidade
prevista. Na potência do “rizoma”, há essa determinação indeterminada cujo enredo é uma
incessante partida de forças que se tornam visíveis, sensíveis, audíveis, engendrando
modos de existência sem fixar origem ou destino.
197
DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs vol.1, p. 28.
72
resistem à máquina binária, devir-mulher que não é nem homem nem
mulher, devir-animal que não é nem bicho nem homem. Evoluções não
paralelas que não procedem por diferenciação, mas saltam de uma linha
a outra, entre seres totalmente heterogêneos; fissuras, rupturas
imperceptíveis, que quebram as linhas mesmo que elas retomem noutra
parte, saltando por cima dos cortes significantes.... Tudo isso é o rizoma.
Pensar, nas coisas, entre as coisas é justamente criar rizomas e não
raízes, traçar a linha e não fazer o balanço. Criar população no deserto e
não espécies e gêneros em uma floresta. Povoar sem jamais
198
especificar.
202
DELEUZE; GUATTARI. O que é a filosofia?, p. 279.
203
DELEUZE. Crítica e clínica, p. 16.
204
DELEUZE; PARNET. Diálogos, p. 9.
205
DELEUZE; PARNET. Diálogos, p. 56.
206
KRAISER. Textos dobras, imagens impuras, p. 28.
74
Ao escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que ainda
não sabemos ou que sabemos mal? É necessariamente neste ponto que
imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso
próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa
ignorância e que transforma um no outro. É só deste modo que somos
determinados a escrever.207
208
207
DELEUZE. Diferença e repetição, p. 18.
208
BOURGEOIS Untitled . Peça 11 de 17 do livro ilustrado Hang on!!, 2004. Dimensões: 91.4 × 80 cm
75
1.5 “Linguagem de vida”209
“A gente escreve, como quem ama, ninguém sabe por que escreve. Escrever é um
ato solitário, solitário de um modo diferente de solidão.”210 A escrita de Clarice Lispector
tece uma abordagem constante do “saber não saber” 211. Deleuze parece estar de acordo
com o traço amador elaborado por Clarice ao afirmar: “Quando se trabalha, a solidão é,
inevitavelmente, absoluta. Não se pode fazer escola, nem fazer parte de uma escola. Só há
trabalho clandestino. Só que é uma solidão extremamente povoada”212. A solidão tende a
crescer enquanto o ambiente se torna habitado por encontros que se aglutinam em uma
espécie de atração involuntariamente enredada pelos movimentos incertos do processo
criador.
Aprendi nos meus intensos diálogos com ele que a vaziez era das
qualidades mais desejáveis para um artista, [...]: ele falava que fulano,
sicrano e beltrano se repetiam exatamente porque não passavam por um
período rigoroso de abandono do já feito, da linguagem alcançada, e não
suportavam aquele embate, aquela agonia interior que sobrevém até que
209
LISPECTOR; BORELLI. Clarice Lispector, esboço para um possível retrato, p. 69.
210
LISPECTOR; BORELLI. Clarice Lispector, esboço para um possível retrato, p. 65.
211
CIXOUS. La risa de la Medusa, p. 182. [Tradução minha.]
212
DELEUZE; PARNET. Diálogos, p. 9.
213
BARTHES. A preparação do romance, vol.II, p. 87.
214
BARTHES. A preparação do romance, vol.II, p. 86-87.
76
você atravesse e saia do outro lado da trajetória e para que você
chegasse a pontos inusitados seria necessário abandonar provisoriamente
ou suspender a categoria “artística”; como uma tarjeta perpétua, como
uma linha de montagem [...], então como o artista não tem isto desta
linha de montagem industrial ou fordiana, portanto pode e deve
perfeitamente suspender, fazer uma suspensão voluntária da
continuidade produtiva, exatamente para que possa vir o surpreendente,
o inesperado, o impensável, o imprevisível. VAZIEZ. Basta introduzir,
215
no universo da plenitude das coisas, fissuras.
219
LISPECTOR. Estado de graça – trecho. Descoberta do mundo, p. 91-93.
220
LISPECTOR. Clarice Lispector. p. 130-131
79
Clarice menciona a qualidade processual de seu primeiro livro, escrito quando ela
não “tinha conhecido escritores, não tinha nada” que lhe assegurasse criar na segurança de
uma experiência prévia, quando ainda não estava inscrita na categoria literária. Perto do
coração selvagem partiu do gesto amador em ato de captura, tendo em mãos apenas
fragmentos de uma ousadia iniciante, um montante de notas, o vigor das ideias que iam,
de pouso em pouso, conduzindo a matéria de um estado movente sustentado na solidão da
escrita.
“A coisa vai se fazendo em mim. Não escolho o momento, ele é que me escolhe.
Inspiração? Não existe.”222 Ao negar a existência da inspiração, Clarice parece questionar
a ideia de uma verdade essencial que viria atuar pelo domínio assertivo da atividade
escrita, aquela que garantiria a plena execução de um projeto. “A coisa vai se fazendo”
implica, ao contrário, uma força criadora impessoal e involuntária que encontra, no
desprendimento das próprias ambições (subjetivas e objetivas), o instante emergente no
qual não se sabe mais quem é a presa e de onde parte o movimento da captura.
“A gente tem que estar preparada para o momento que colhe a gente. O meu
método de trabalho é estar com a ponta do lápis feita” 223. Nessa imagem do processo
criador, a ferramenta é extensão, ancoradouro e sustentáculo, recurso que torna possível a
captura de um ritmo. A ferramenta instrumentaliza um estado de corpo que une a mão ao
fio da escrita. O texto revela as intensidades do pensamento sendo pensado, suas
frequências, tendências, variações, inoperâncias. A pontaria precisa do gesto alcança as
221
LISPECTOR. Perto do coração selvagem. Publicado em 1944, quando Clarice Lispector contava apenas
21 anos de idade.
222
LISPECTOR. Clarice Lispector. p. 131.
223
LISPECTOR. Cadernos de Literatura Brasileira, p. 78.
80
palavras; as palavras se movem, achadas e perdidas na elasticidade arriscada da
experimentação. “A coisa vai se fazendo” na passagem do instante ao ato de captura, na
extremidade do corpo em “estado de graça”, no “momento que colhe” a prontidão da
coisa colhida. Assim como acontece na aliança da ferramenta ao fio da escrita, a
passagem do instante na feitura de um desenho exige modos extremos que desafiam a
disponibilidade do corpo.
224
Tomar o processo criador como tema de estudo é ter em mãos a evidência de que a
coisa criada não nasceu pronta, precisou ser tratada e tateada no mistério da feitura. A
força realizadora e o empenho da abordagem entram em contato com o risco da obra,
evocam o curso corrente da coisa se fazendo. Já que não é possível deter e dominar o
movimento compositivo, é necessário crer nos restos processuais que a obra apresenta,
capturar e criar bordas de tensão para a abordagem. Derivar, içar, ancorar e aportar rumo à
incerteza propriamente inventiva. Partir da estabilidade autoexistente da coisa publicada,
atentando à repetição variável de certas linhas. Fazer recuar o centro pela periferia, ler a
partida pelo meio, ver o abismo imperceptível das entrelinhas, ocupar o espaço sem termo,
citar e recitar até estranhar as pautas que sustentam o desenho movente do texto. Uma
aproximação da obra pela via processual precisa destacar forças tangíveis e intangíveis,
verificáveis e esquivas, decompondo, rearranjando e desdobrando novas vertentes que são
virtudes da obra em movimento, potências que escapam e residem na qualidade
autossustentada da matéria compositiva.
224
BOURGEOIS. Untitled , 2006. Peça da série 10 AM is when you came to me. Gravura em metal com
adição de aquarela sobre papel, 37.8 x 91.1 cm.
81
225
O processo criativo como questão de abordagem implica uma leitura rente aos
modos de fazer. Tocar as bordas da obra pelo encalce dos gestos é também trocar as
normas reguladoras da abordagem por alguma orla suficientemente criadora; é colocar-se
à altura da obra em questão. Tatear o funcionamento da obra é fazer um trato com a
incerteza sensível às irregularidades, curvaturas e superfícies. A única certeza talvez seja a
de que as bordas só avançam no limite amador daquilo que não sabemos.
Como isso foi feito e por qual razão? É comum a curiosidade por compreender e
decifrar o mistério da coisa criadora. Se a lógica que habita a experiência da obra é
misteriosa para quem busca formular suas próprias perguntas, é necessário considerar que
o traço movente da criação é esquivo, e que ele se esquiva, primeiramente, de quem se
ocupou do processo compositivo, na literal relação com a matéria capaz de revelar
225
BOURGEOIS. Untitled, 2006. Peça da série 10 AM is when you came to me. Gravura em metal com
adição de aquarela e lápis sobre papel, 37.1 x 89.5 cm .
226
BOURGEOIS. Louise Bourgeois: desenhos/drawings, p. 16.
82
perguntas sem reposta, expressas na extremidade engendrada de um corpo em obra. Em
torno desse não-saber, ensaiam-se, tantas vezes, abordagens explicativas que buscam
justificar os procedimentos compositivos como mais ou menos adequados, interpretando
uma verdade conclusiva que seria interior à obra, como se a forma de expressão alcançada
fosse um fruto preconcebido. Se o ato criativo passa entre o acidente e a precisão, entre o
arbitrário e o decisivo, a ambição por tocar essa singularidade não deve reduzir a fortuna
de infinitos traços a um aspecto provável, demonstrável, pontual. Para se enfrentar o
problema da abordagem, seria preciso evitar a busca por argumentos calculados que
confirmariam uma chave de leitura. A uma abordagem criadora importa assumir as
complicadas variedades e as ricas variações de uma linha-cria em seu movimento
digressivo.
227
227
BOURGEOIS. Untitled, 1996. Escultura de tecido, renda e linha, 32.5 x 12.4 x 4.2 cm.
83
As abordagens da criação não deixam de ser, primeiramente, ficções que se abrem
tomando a obra como meio e que cumprem a função de recriar a condição de seu
movimento, fazendo dela um campo temático. Qual seria, nesse sentido, a função dos
textos de artista, aquela espécie particular de escrita tecida acerca da própria obra?
Quando a abordagem se realiza no tato com a trajetória, há o interesse e a busca por
vislumbrar o movimento em deslize sem fixar um ponto de vista. Os modos de pensar o
movimento podem se confundir com o mistério da feitura, atravessar a condição gestante,
gesticular por conta própria, encenar a amplitude solitária do horizonte criador. Haveria
um devir amador da obra em todo empenho de abordagem capaz de se arriscar ao próprio
movimento pensante.
devagar escreva
uma primeira letra
escrava
nas imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
233
DELEUZE. Crítica e clínica, p. 11.
234
DURAS. Escrever, p. 22.
235
DURAS. Escrever, p. 22.
236
DURAS. Escrever, p. 22.
85
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
237
mais
241
244 245
243
KLEE. Sobre a arte moderna, p. 66.
244
BOURGEOIS. Untitled, número 1 de 12, do portfolio Dawn, (“Madrugada”), 2006. Colagem em tecido.
31.1 x 24.7 cm.
245
BOURGEOIS. Untitled, número 9 de 12, do portfolio Dawn, (“Madrugada”), 2006. Colagem em tecido.
31.1 x 24.7 cm.
88
“O que é desenhar? Como se chega lá?”246 Em uma carta ao próprio irmão, o
pintor Vincent Van Gogh, sobre esse ato, escreve: “É a ação de abrir uma passagem
através da parede de ferro invisível que parece colocar-se entre o que sabemos e o que
podemos”247. Na espessura entre a vontade e o alcance, há uma distância difícil de se
cumprir, que só a violenta paciência do gesto e a delicadeza cortante do traço são capazes
de transpor. Quando a impossibilidade é rompida, um trajeto inaugural se torna possível,
sensível, visível – ainda que opaco –, audível – ainda que silencioso. Prossegue a carta de
Van Gogh: “Como atravessar essa parede, pois de nada serve bater-lhe com força? Em
minha opinião, deve-se minar essa parede e atravessá-la demolindo-a aos poucos,
lentamente, com paciência”248.
Clarice Lispector assina com suas inicias, C.L., o texto de abertura de A paixão
segundo G.H., dedicado aos “possíveis leitores”:
A coisa escrita vai se fazendo entre o despojamento das certezas, a perdição dos
velhos hábitos, a conquista do indizível que desata, sem sujeito nem objeto, apalpando o
abismo na superfície sedimentada do texto, nos “transbordamentos de matéria” 251, nas
concavidades escavadas da linguagem. “Eu estava comendo a mim mesma, que também
sou matéria viva.”252 A matéria da linguagem, como coisa comida, encena a própria
devoração. Não há mais identidade, função social, personalidade, G.H. se reduz à iniciais
de um nome próprio que já não mais importa. Ela se assume no risco da tentativa, no
fracasso da tentativa, na realização do fracasso da tentativa.
251
ARANTES. Trasbordamentos de matéria e linguagem: uma leitura da obra de Nuno Ramos.
252
LISPECTOR. A paixão segundo G.H., p. 133.
90
Eu tenho à medida que designo – e este é o esplendor de se ter uma
linguagem, é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la –
e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não
conhecia e que instantaneamente reconheço. A linguagem é meu esforço
humano. Por destino tenho que ir buscar, e por destino volto com as mãos
vazias. Mas – volto com o indizível. O indizível só me pode ser dado
através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção é
que obtenho o que ela não conseguiu.253
253
LISPECTOR. A paixão segundo G.H., p. 115.
254
CIXOUS. La risa de la medusa, p. 182. [Tradução minha.]
255
LISPECTOR. A paixão segundo G.H., p. 13.
256
SÁ. Clarice Lispector: a travessia do oposto.
91
mesmos. Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes. A via-crucis
não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão através
dela e com ela. A insistência é o nosso esforço, a desistência é o prêmio.
A este só se chega quando se experimentou o poder de construir, e,
apesar do gosto de poder, prefere-se a desistência. A desistência tem que
ser uma escolha. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir
é o verdadeiro instante humano. E só esta é a glória própria de minha
condição.
257
LISPECTOR. A paixão segundo G.H., p. 176-177.
258
BLANCHOT. A parte do fogo, p. 30.
259
BLANCHOT. A parte do fogo, p. 30.
260
DELEUZE. Crítica e clínica, p. 13.
261
LISPECTOR. Um sopro de vida, p.25.
262
DELEUZE. Crítica e clínica, p. 11.
92
ou a generalidade de um corpo qualquer, mas o caráter imprevisto de um corpo sendo
feito na passagem do humano à atmosfera, da atmosfera ao objeto, do objeto ao grito, na
qualidade movente de um singular inacabamento processual. Em Água Viva, Clarice
Lispector escreve:
O que sou neste instante? Sou uma máquina de escrever fazendo ecoar
as teclas secas na úmida e escura madrugada. Há muito já não sou gente.
Quiseram que eu fosse um objeto. Sou um objeto. Objeto sujo de sangue.
Sou um objeto que cria outros objetos e a máquina cria a nós todos. Ela
exige. O mecanismo exige e exige a minha vida. Mas eu não obedeço
totalmente: se tenho que ser um objeto, que seja um objeto que grita. Há
uma coisa dentro de mim que dói. Ah como dói e como grita pedindo
socorro. Mas faltam lágrimas na máquina que sou. Sou um objeto sem
destino. Sou um objeto nas mãos de quem? tal é o meu destino humano.
O que me salva é o grito. Eu protesto em nome do que está dentro do
objeto atrás do atrás do pensamento-sentimento. Sou um objeto
263
urgente.
263
LISPECTOR. Água Viva, p. 79.
264
DELEUZE. Crítica e clínica, p. 11.
265
LISPECTOR. Água Viva, p. 85. [Grifo meu]
93
Terei que morrer de novo para de novo nascer? Aceito. Vou voltar para
o desconhecido de mim mesma e quando nascer falarei em “ele” ou
“ela”. Por enquanto o que me sustenta é o “aquilo” que é um “it”. Criar
de si próprio um ser é muito grave. Estou me criando. E andar na
escuridão completa à procura de nós mesmos é o que fazemos. Dói. Mas
é dor de parto: nasce uma coisa que é. É-se. É duro como uma pedra
seca. Mas o âmago é it mole e vivo, perecível, periclitante. Vida de
matéria elementar.266
266
LISPECTOR. Água Viva. p. 41-42.
267
BLANCHOT. A parte do fogo, p. 29.
268
DELEUZE. Crítica e clínica, p. 13.
269
BLANCHOT. A parte do fogo, p. 30-31.
270
LISPECTOR. Água Viva, p. 41.
271
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 20.
94
ecoando a matéria textual. O corpo encarnado do texto. Na posse de uma ideia, o “eu
mesmo” de um timbre já está possuído por ela, lançado à orla do inesperado, despojado
em sua estabilidade falante. A pergunta solícita, embargada, duvidosa, alcançada, deixa
impressos no corpo da obra o chamado vibratório e o silêncio restante, a emergência de
uma resposta possível da qual surtem mil arranjos, potencialmente outros, fazendo
reverberar novas chances aos velhos termos. Assim faz Clarice, no uso subversivo da
primeira pessoa do singular: “Eu sou sim. Eu sou não. Aguardo com paciência a harmonia
dos contrários. Serei um eu, o que significa também vós”272.
272
LISPECTOR. Sim e não. A descoberta do mundo, p. 279.
273
LISPECTOR; BORELLI. Clarice Lispector, esboço para um possível retrato, p. 65.
95
obra, na desproporção da queda, tornassem a linha dessa escrita ainda mais viva,
lançando as palavras a um “devir mortal”274, de passagem pelo “reino da fala”.
O trecho escrito por Clarice Lispector, colhido por Olga Borelli em “Frente ao ato
de escrever”, prossegue assim dramatizando o desejo da escrita e a paisagem do corpo
arriscada na queda:
274
DELEUZE. Crítica e clínica, p. 11.
275
DELEUZE. A lógica da sensação, p. 57.
276
LOPES. Exercícios de aproximação, p. 41.
277
HOUAISS; VILLAR. Fracasso. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br> Acesso em abr. 2017.
278
LISPECTOR; BORELLI. Clarice Lispector, esboço para um possível retrato, p. 65.
96
Em uma arbitrária “matemática da existência”279, esse fragmento soma “borrão
vermelho de sangue” com “coágulos pingando” e “amarelo ouro com raios de
translucidez”. As sensações já não partem de dentro para fora, nem de fora para dentro,
mas de dentro para dentro e de fora para fora. É o clímax da vida a capturar o êxtase da
morte? “A arte joga com as coisas derradeiras sem tomar conhecimento delas, e no
entanto as alcança!”280 Que “não me entendam”, mas as figuras, sonoridades e cores
condensadas nessa cena de linguagem são de tal modo excessivas nelas mesmas que até o
uso da palavra recua e se lança, entra em colapso e desfaz sua ambição habitual: “escrever
noções” daqui em diante só se for no despojamento de não se ter “mais nada a perder”.
Gilles Deleuze escreve: “um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um
criador só faz aquilo de que tem absoluta necessidade”284. Clarice Lispector traz outros
termos à questão: “Todas as vezes em que eu acabo de escrever um livro ou um conto,
penso com desespero e com toda a certeza de que nunca mais escreverei nada. [...] Há um
279
LISPECTOR; BORELLI. Clarice Lispector, esboço para um possível retrato, p. 65.
280
KLEE. Sobre a arte moderna, p. 51.
281
DELEUZE. Crítica e clínica, p. 11.
282
LISPECTOR; BORELLI. Clarice Lispector, esboço para um possível retrato, p. 69.
283
BOURGEOIS. Louise Bourgeois: destruição do pai, reconstrução do pai, p. 167.
284
DELEUZE. O que é o ato de criação?, s.p.
97
esvaziamento que quase se pode chamar sem exagero de desesperador” 285. Se esse
desespero é o drama do vazio, ele é também a fecundidade da espera. A autonomia do
“sistema vivo, produtor de versos”, parece nos ensinar que é preciso suportar a condição
expectante na qual nada acontece, até que uma necessidade de escrever se ative, no
exercício da linha-cria, aquela já desfeita no fracasso das tentativas, vislumbrada nos
fragmentos estilhaçados, erguida e recomposta por uma “absoluta necessidade”. Clarice
menciona, na sequência dessa mesma elaboração, o fato de sua literatura nunca ter lhe
dado a paz desejável, “não sendo de forma alguma uma catarse”286, como se poderia
supor, e menos ainda um “meio de libertação” 287, embora seja um ato de liberdade.
285
LISPECTOR; BORELLI. Clarice Lispector, esboço para um possível retrato, p. 69.
286
LISPECTOR; BORELLI. Clarice Lispector, esboço para um possível retrato, p. 69.
287
LISPECTOR; BORELLI. Clarice Lispector, esboço para um possível retrato, p. 69.
288
LISPECTOR. Água viva. p.14.
289
LISPECTOR, BORELLI. Clarice Lispector, esboço para um possível retrato, p. 69.
290
LISPECTOR, BORELLI. Clarice Lispector, esboço para um possível retrato, p. 69.
98
Simultaneidade no trabalho criativo vem do aprofundamento: às vezes, a
291
cavar fundo na terra se vê de súbito uma faísca – gema inesperada.
291
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 91.
99
2. “O ovo é um dom”292 e “o mistério reside naquilo que você faz com ele”293
O título ao topo desta página é uma colagem e também uma ambição. Antes de
significar a ânsia pelo alcance de um objetivo e a busca por determinado resultado,
“ambição” indica, na raiz latina, a “ação de rodear, cercar” 294, a insistência de uma
solicitação e o ato mesmo de manipular, o manejo. Trata-se de cercar o que seria a matéria
da criação, tatear entre os processos e as obras de Clarice Lispector e Louise Bourgeois, a
partir de um acordo forjado entre gestos e figuras, tão díspares quanto convergentes.
292
LISPECTOR. Atualidade do ovo e da galinha. A descoberta do mundo, p. 207.
293
BOURGEOIS. Louise Bourgeois: desenhos/drawings, p. 16.
294
HOUAISS; VILLAR. Ambição. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br > Acesso em abr. 2017.
295
COMPAGNON. O trabalho da citação, p. 11.
296
COMPAGNON. O trabalho da citação, p. 11.
100
implicados pela junção entre partes díspares, como acontece quando surtem questões
imprevistas no enredo de uma conversa.
O que move a criação e o que a criação move? A pergunta pode soar por demais
ambiciosa em sua amplitude, mas busca, precisamente, uma flexão simultânea de alguns
termos da colagem/título: “ovo”, “dom”, “mistério” e “fazer”. Pode-se trocar a palavra
“criação” por alguma dessas quatro palavras, obtendo-se conjugações e reverberações
distintas: o que move o “ovo”, e o que o “ovo” move; o que move o “dom”, e o que o
“dom” move; o que move o “mistério”, e o que o “mistério” move; o que move o “fazer”,
e o que o “fazer” move.
297
297
BOURGEOIS. Be Calm, 2005. Gravura em metal, ponta seca e aguatinta, 18.8 x 12.5 cm.
101
298
299
298
BOURGEOIS. Naked jogging, 1996. Desenho de nanquim sobre papel, 29.5 x 22.9 cm.
299
BOURGEOIS. The red shoes, 2005. Gravura em metal com adição de aquarela, nanquim e lápis sobre
papel, 27.6 x 38.4 cm.
102
300
Criar uma abordagem pode ser nauseante se o corpo que aborda é tomado pelo
movimento da coisa abordada. É como ter o barco dentro de si por uma inversão de
cabimento e escala, ao modo da figura no autorretrato La nausée, de Louise Bourgeois.
Seria o caso de engolir a questão, abolir as bordas e embarcar com a matéria em
movimento? Ou, para dominar essa matéria, seria mais preciso (no duplo sentido do
termo) manter a observação da fome, ter a prova de um vazio indomável? Por onde
olhamos quando tocamos o que nos toca? Pela aderência da superfície? Pelo ancoradouro
da distância? Pela proximidade do alcance? Essa visão talvez só avance no menor sentido
do passo, pelo pensamento-chão, rente ao corpo a ser feito.
301
300
BOURGEOIS. Self portrait : La Nausée, 2001. Desenho original correspondente à imagem 1 de 7 do
portfolio La réparation. Grafite e naquim sobre papel, 23.5 x 20.3 cm.
103
302
Ver através do risco de uma abertura. Ver através do risco uma abertura. Ver uma
abertura. Risco é matéria de criação, está por um triz, na ancoragem de traçar, na arte de
correr perigo, no rastro em fuga, é um outro nome para aventura. O que se vê vindo pela
abertura é o gesto tateante das mãos aliado ao desejo da linha. Seja qual for o pulso
rítmico, entrar em cena coincide com sair em movimento. No desenho crescente pelo
meio, no disparate da escrita, é possível ver a questão da linha: ela quer saber como
chegar mais perto sem abandonar a distância necessária. Seu alcance em desvio leva
consigo o centro móvel do começo, sempre um pouco além, um corpo se fazendo em
permeabilidade, ultrapassando a borda, refazendo-se à margem.
303
301
BOURGEOIS. Untitled, 1996. Desenho original correspondente à imagem 3 de 5 do livro ilustrado
Metamorfosis, 1996. Desenho de grafite e naquim sobre papel, 30.5 x 21.9.
302
BOURGEOIS. Eyes, 1974. Desenho de nanquim sobre papel, 7.6 x 12.7 cm.
104
304
No livro Linha do horizonte: por uma poética do ato criador 305, a artista Edith
Derdyk coloca-se o desafio de elaborar por escrito o problema da criação envolvido e
desenvolvido em sua prática de ateliê. Não se trata de descrever ou explicar os próprios
métodos e processos de realização no campo da arte, embora muito disso também se
revele nas entrelinhas. O enigma “como será que acontece o ato criador?”306 parece pedir
auxílio ao silêncio e recuo ao tato pela aproximação da matéria, “acreditando que a
verdade deste ato são ficções reais, reinventadas a todo instante”307. Sua abordagem
insiste em “desenhar um texto que possa presentificar a qualidade da experimentação do
ato criador”308.
105
oportunidade de toda nau em sua frágil construção: seguir rumo aos destroços da margem
movente, amplitude de onde se ensaia um horizonte no oceano possível.
311
A experimentação dessa arte inclui o ato de cortar e desfazer o feito para compor
com fragmentos na refeitura, no invisível da costura, na ternura do alinhavo, na alegria de
atar as partes pelo arremate do nó. A escrita de um texto é um dos modos de usar esse
recurso, tornar partilhável o desprendimento inventivo da linha-cria, reencenar o gesto de
partir e mostrar a trajetória sensível, como faz Edith Derdyk:
311
BOURGEOIS. Untitled, 1986. Aquarela e grafite sobre papel, 60.3 x 48.3 cm.
106
Ao escrever sobre um dos modos possíveis de perceber a natureza
do ato criador, a escrita exige de mim um tempo para a reconstituição de
uma memória que emerge das experiências. E a memória é vizinha de
um imaginário a ser vivido.
Talvez a saída seja uma posição de abordagem que se altere conforme o encontro,
mantendo o alcance em movimento. A força criadora em transição de formas atua ora pela
estabilidade de um contorno limiar, na nitidez instável de uma figura, ora pelas passagens
de uma figura à outra, pelo enlace híbrido dos elementos compositivos. Em um conjunto
de notas nomeado Sobre o processo criativo, Louise Bourgeois escreve: “Existe um
312
DERDYK. Linha do horizonte: por uma poética do ato criador, p. 15. [Grifos da autora]
107
grande lapso entre a primeira visão criativa e o resultado final; muitas vezes uma questão
de anos”313. E o que seria essa “visão criativa” que precede o “resultado final”?
315
313
BOURGEOIS. Louise Bourgeois: desenhos/drawings, p. 16.
314
BOURGEOIS. Louise Bourgeois: desenhos/drawings, p. 16.
315
BOURGEOIS. Femme, 2005. Escultura de tecido estofado, 24.7 x 35.5 x 14.6 cm.
108
2.1 A pergunta da pergunta: o que é o que é?
317
Quando o ato de perguntar não busca uma resposta definitiva é porque estão na
pergunta a deriva de uma questão em outra e o rastro incessante da interrogação: Quem
316
BOURGEOIS. The five magic words, 2002. [Tradução minha]
317
BOURGEOIS. The five magic words, 2002. Nanquim sobre papel, 25.4 x 25.4 cm.
318
LISPECTOR. Desculpem, mas se morre. A descoberta do mundo, p. 346.
109
regulou a restauradora relação dia e noite? “Qual é a forma desse problema? O dia invadiu
a noite, ou a noite invadiu o dia?”319 De onde viemos quando começamos? Quando
começamos? Qual é a finalidade do começo? Qual é sua afinidade com o fim? Quando
terminamos de começar? Como acolher o entrelaçamento vida e morte? De qual matéria é
feita a curvatura da amizade? Como os encontros nos tornam capazes de sentir? O que
ensina a pele, superfície de profundidade sensível, feita para ser desfeita em partículas de
poeira, cumprindo o silencioso e impessoal destino de todas as coisas?
320
As duas últimas “perguntas mágicas” (sobre o “toque da pele” e “por que estamos
aqui”) parecem abrigar uma dimensão um pouco menor na escala dos temas difíceis.
Talvez porque se aproximam de uma verdade do corpo na qual só se pode crer
criativamente, no sentido de criar, com a virtude dessa sensibilidade, uma forma de
expressão que acolha o movimento incômodo das questões. Não na construção que
aprisionaria o corpo, mas na confiança provisória que o abrigo permite. Talvez por essa
necessidade, a versão original para “Who, where, when, why, what” mostre justamente a
figura de uma casa em vista frontal, com porta, telhado, chaminé e fumaça saindo
espiralada, bem ao modo de um desenho infantil. Em cada retângulo-janela está inscrita
uma das cinco palavras com as iniciais reforçadas em negrito. É interessante notar que a
319
BOURGEOIS. Has the day invaded the night, or has the night invaded the day? What is the shape of this
problem?: frases inscritas na série de impressos tipográficos e litográficos What is the shape of this
problem? editada por Louise Bourgeois em 1999. [Tradução minha]
320
BOURGEOIS. Who? Where? When? Why? What?, 1999. Nanquim, lápis grafite, e guache sobre papel
em pauta musical, 26 x 21.6 cm.
110
palavra “Who”, que significa “Quem”, ocupa a posição mais alta, no sótão da construção.
A figura é de 1999, feita sobre folha pautada em pentagrama musical.
321
As perguntas podem não ser mais as mesmas quando as respostas são relançadas.
É como na curiosidade desenvolta dos brinquedos de criança: a ciranda de perguntas é
inclusiva, qualquer elemento provisório pode se converter em participante do jogo. Seja o
processo assertivo ou errante, a vontade criadora é a regência, a linha-cria se inaugura a
cada chance, e novas saídas ganham prioridade, exigindo a permanente reinvenção das
regras. Perguntas se lançam como sementes aladas, aderem ao sopro dos ventos, assumem
não saber ao certo onde resistência e alcance se confundem com a multiplicação de
recomeços.
321
BOURGEOIS. Who? Where? When? Why? What?, 1999. Ponta seca com adições em grafite sobre papel.
Versão 1 de 1, sem tiragem. Dimensões: 25.3 x 25.1 cm. (Inscrição manual em grafite na base da imagem
“La mai[?] / the house of the w family + whence”).
111
viver o que de outra maneira seria invivível”322.“Por exemplo”, afirma Louise Bourgeois,
“o artista tem a capacidade de [se] comunicar diretamente com seu inconsciente. Isso é
um mistério – um mistério benéfico, muito raro, evanescente ”323.
324 325
322
DELEUZE. Conversações, p. 141.
323
BOURGEOIS. Louise Bourgeois: destruição do pai, reconstrução do pai, p. 307.
324
BOURGEOIS. Metamorfosis, 1999. Imagem 1 de 7 do portfólio homônimo. Ponta seca, 33 x 33 cm.
325
BOURGEOIS. Untitled, 1999. Imagem 4 de 7 do portfólio Metamorfosis. Ponta seca, 29.6 x 29.7 cm.
112
devir? Em Mil platôs, Deleuze e Guattari abordam o ato de criação em sua relação
“molecular” com os devires de passagem.
Cada artista inventa seu modo de tratar a matéria em obra e forçar os limites da
linguagem pela passagem molecular que se realiza de um devir ao outro. O ato de criação
é compreendido por Deleuze e Guattari como aquilo que escapa a uma forma dominante
na medida em que se difere nele mesmo.
326
DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs, vol.1, p. 15.
327
DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs, vol.1, p. 16. [Grifo dos autores]
328
DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs, vol.1, p. 16. [Grifo dos autores]
329
SCHEMBRI. Imanentes ou o que permanence, 2014. Citação retirada de um texto da artista. Disponível
em <http://raquelschembri.com/portfolio/o-que-permanece> Acesso em jun. 2017.
113
“E se ela era apenas a vida que corria em seu corpo sem cessar?”330 “Ela”, em
questão, é “apenas” a personagem Joana, protagonista do primeiro romance de Clarice
Lispector, espécie de linha criada e dissolvida na trajetória movente do texto. Como ela se
prova? Qual é a provação de um corpo em obra? Por qual motivo se move o desejo
gestante de uma linha-cria? Ela, a criação, é o corpo tomado pelas forças, o transitório no
instante da captura, o processo em permanente formulação, a prova provada de pouso em
pouso. Ela, a passagem criadora, permite o exercício de aludir sem determinar, tocar sem
aprisionar, buscar sem possuir, consumir sem esgotar, amar sem devorar, fazendo do
corpo um espaço aberto à corrente incessante em estado de obra.
331
330
LISPECTOR. Perto do coração selvagem, p. 76.
331
BOURGEOIS. Femme Maison. 1947. Nanquim e grafite sobre papel, 25.2 x 18 cm.
114
2.2 O que não sabemos
Que quer dizer Espinosa quando nos convida a tomar o corpo como
modelo? Trata-se de mostrar que o corpo ultrapassa o conhecimento que
dele temos. Não há menos coisas no espírito que ultrapassam a nossa
consciência que coisas no corpo que superam nosso conhecimento. É,
pois, por um único e mesmo movimento que chegaremos, se for possível,
a captar a potência do corpo para além das condições dadas do nosso
conhecimento, e a captar a força do espírito, para além das condições
dadas da nossa consciência. 333
Nesses trechos do livro Espinosa, filosofia prática, Deleuze aborda uma noção de
“corpo” que não se opõe à “consciência”, ou à “alma”, nem compõe com essas noções
uma oposição hierárquica, mas uma posição paralela. A teoria do paralelismo em
Espinosa, segundo Deleuze, compreende uma gênese dos afectos “como registro mental
dos efeitos das intensidades sobre o corpo” 334. Pois o que afeta o corpo afeta também a
alma, o que afeta a alma afeta também o corpo, por um movimento de interação paralela.
Pensar a partir do corpo, de suas afecções e encontros, é tomar como modelo do
pensamento aquilo que não sabemos, afirmando “uma desvalorização da consciência em
relação ao pensamento: uma descoberta do inconsciente e de um inconsciente do
pensamento, não menos profundo que o desconhecimento do corpo”335. Em um outro
fragmento, publicado no livro Diálogos, Deleuze expõe, precisamente, seu interesse pelo
estudo dos afectos na filosofia de Espinosa:
Um corpo efetua sua potência quando se torna capaz de compor com as linhas que
o atravessam, sejam elas violentas ou delicadas, excessivas ou mínimas, banais ou raras,
velozes ou lentas, habituais ou inauditas. “Seria preciso ao mesmo tempo transpor a linha
e torná-la vivível, praticável, pensável. Fazer dela tanto quanto possível, e pelo tempo que
for possível, uma arte de viver.”337 Na entrevista “Um retrato de Foucault”, Deleuze se
336
DELEUZE; PARTNET. Diálogos, p. 74- 75.
337
DELEUZE. Conversações, p. 138.
116
refere ao dobrar da linha criadora como “processo de subjetivação”338 e à “produção de
subjetividade”339 como “uma operação artista”340. Segundo o filósofo, o que importa não
é o “domínio das regras codificadas do saber (relação entre formas), nem o das regras
coercitivas do poder (relação da força com outras forças), são regras de algum modo
facultativas (relação a si): o melhor será aquele que exercer um poder sobre si mesmo”341.
Dobrar a linha sobre si não é o mesmo que se proteger no abrigo estável de um sujeito,
mas o exercício de colocar “a força numa relação consigo mesma”342, fazendo dela, nela e
com ela “modos de existência ou estilos de vida”343.
Um modo de vida não se torna “artista” pela regência de um domínio, mas quando
há intensidade criadora nos modos de compor com o atravessamento dos afectos,
tornando as linhas de força “praticáveis”. “Teremos então os meios de viver o que de
outra maneira seria invivível. O que Foucault diz é que só podemos evitar a morte e a
loucura se fizermos da existência um ‘modo’, uma ‘arte’”344. Há uma distinção entre a
sujeição do sujeito e a subjetivação como processo ou modo de existência: quando há
subjetivação, o sujeito já está destituído dos domínios do saber e do poder. A partir do que
propõe Foucault, segundo Deleuze, haveria:
Deleuze menciona três “encontros de Foucault com Nietzsche” 349 a partir dos
quais se desdobram as noções de “processos de subjetivação” 350 e modos de vida-artista.
O primeiro consiste na “concepção de força. O poder, segundo Foucault, como a potência
para Nietzsche, não se reduziria à violência, isto é, à relação da força com um ser ou um
objeto; consiste na relação de força com outras forças que ela afeta, ou mesmo que a
afetam”, são forças propulsoras, “como incitar, suscitar, induzir, seduzir, etc.” 351. A
segunda aproximação é “a relação das forças com a forma: toda forma é um composto de
forças” 352. Isso implica compreender
que as forças do homem não bastam por si só para constituir uma forma
dominante onde o homem possa alojar-se. É preciso que as forças do
homem (ter um entendimento, uma vontade, uma imaginação, etc.) se
combinem com outras forças; então uma grande forma nascerá desta
combinação, mas tudo depende da natureza dessas outras forças com as
353
quais estas do homem se associa.
348
DELEUZE. Conversações, p. 143.
349
DELEUZE. Conversações, p. 143.
350
DELEUZE. Conversações, p. 143.
351
DELEUZE. Conversações, p. 145.
352
DELEUZE. Conversações, p. 145.
353
DELEUZE. Conversações, p. 145.
354
DELEUZE. Conversações, p. 146.
118
2.3 Com fios de seda
“Quase não li Henry James, que parece que é maravilhoso, segundo um amigo
meu. Ele, Henry James, é hermético e claro. Citando Henry James estarei me tornando
hermética para os meus leitores? Lamento muito.”355 São essas as primeiras linhas do
texto “Fios de seda”, publicado por Clarice Lispector em sua coluna no Jornal do Brasil.
O trecho inicial poderia ter sido destacado de uma conversa entre amigos, como quando
se trocam intimidades de leitura e escrita. Mas um dizer se anuncia como convite lançado
ao difícil jogo de pensar-sentir. Um fio puxado no levante do tema exibe a ruptura da
trama através da qual se lê: “Lamento muito”. O animal que tece segue o caminho de sua
linha-cria, o seu traço de errância, a sua selva criadora em devir. “No rastro do verbo, o
faro do bicho, na fome da traça, a farpa da letra.”356 Do reino das palavras, prossegue
Clarice:
Eu tenho que dizer as coisas, e as coisas não são fáceis. Leiam e releiam
a citação. Aí está ela, traduzida por mim do inglês:
“Que espécie de experiência é necessária, e onde ela começa e acaba? A
experiência nunca é limitada e nunca é completa; é uma imensa
sensibilidade, uma espécie de enorme teia de aranha, feita dos fios mais
delicados de seda suspensos na câmara do consciente, e que apanha no
seu tecido cada partícula trazida pelo ar. É a própria atmosfera da mente;
e quando a mente é imaginativa – muito mais quando se trata da de um
homem de gênio – ela apanha para si as mais leves sugestões, abriga os
próprios pulsos do ar em revelações.”
Sem nem de longe ser de gênio, quantas revelações. Quantos pulsos
apanhados no fino do ar. Os delicados fios suspensos na câmara do
consciente. E no inconsciente a própria enorme aranha. Ah, a vida é
maravilhosa com suas teias captantes.
Avisem-me se eu começar a me tornar eu mesma demais. É minha
tendência. Mas sou objetiva também. Tanto que consigo tornar o
subjetivo dos fios de aranha em palavras objetivas. Qualquer palavra,
aliás, é objeto, é objetiva. Além do mais, fiquem certos, não é preciso
ser inteligente: a aranha não é, e as palavras, as palavras não se podem
evitar. Vocês estão entendendo? Nem precisam. Recebam apenas, como
357
eu estou dando. Recebam-me com fios de seda.
355
LISPECTOR. Com fios de seda. A descoberta do mundo, p. 194.
356
PANADES. Traço. In: ANDRADE (Org.). Novo dicionário de migalhas da psicanálise literária, p. 342.
357
LISPECTOR. Com fios de seda. A descoberta do mundo, p. 194.
119
358
Basta que se receba “com fios de seda”. A tecelã convida como quem oferta seu
casulo: “Leiam e releiam a citação”. Não é preciso entender. Ler como quem escreve seria
um modo de receber as entrelinhas. Sem que, para isso, seja necessário falsear um
entendimento pleno. “Escrever as entrelinhas”, como quem lê, na abstração de uma isca
lançada, a confiança de se deixar afetar. É como se, no ato de leitura, se anunciasse a
concretude escrita da frase seguinte.
358
BOURGEOIS. Untitled, 2007. Número 25 de 36 da série The Fragile. Aquarela sobre papel, 24.1 x 20.3
cm.
359
LISPECTOR. Escrever as entrelinhas. A descoberta do mundo, p. 194.
120
O que salva? Em sua inteligência distraidamente disfarçada, na imensa habilidade
para içar nas entrelinhas, a aranha tece. Pelo desenvolvimento vital da trama, a aranha
tece. Na objetividade das linhas, ela tece “as palavras, as palavras não se podem evitar”360.
O texto incorpora palavra e “não-palavra”. A escrita pede a leitura, convida e se oferece:
“receba-me como estou dando”. O que se tem para dar é a isca do silêncio e o dom do
fragmento, a visão e a vista de um modo de vida se fazendo, o fio da trama e as mãos
tramadas ao corpo da escrita, a teia como tema e forma restante do movimento.
Tecer é confiar nas extremidades dos fios, no funcionamento enviesado dos gestos,
na torção das entrelinhas, na consistência da matéria tecida. A arte da tecelagem oferece
um ensinamento de superfície, um leito de contato, um plano táctil, uma parede porosa,
como o aglutinado calcário que protege o ovo, como o vazio pleno do voo liberta a linha
fina e sustenta o recuo, a curva, a laçada, o avanço, o deleite do novo se fazendo. Um
tecido, uma rede, uma membrana, um couro, uma casca, um tímpano são modos
avançados de embalar a vibração do instante, são embalagens que sustentam a ressonância
e dão condição de escuta. Escuta! “Vocês estão entendendo? Nem precisam. Recebam
apenas, como eu estou dando. Recebam-me com fios de seda.”361
362
360
LISPECTOR. Com fios de seda. A descoberta do mundo, p. 194.
361
LISPECTOR. Com fios de seda. A descoberta do mundo, p. 194.
362
BOURGEOIS. Untitled, 2007. Número 3 de 36 da série The Fragile. Aquarela sobre papel, 24.1 x 20.3
cm.
121
Como se recebe “com fios de seda”? Cosendo com os próprios filamentos?
Assumindo o mistério da feitura tecelã? Para a coisa ser recebida, precisa ter sido
concebida e continuamente ofertada ao risco de perder-se, à oportunidade de correr
perigo, ao contato com as entrelinhas. E ninguém perde por não entender. Perde-se por
não receber o que vem, por trocar a natureza cambiante da matéria em obra pelo domínio
seguro do já feito. Se não há modos de seda na disposição do gesto ou corpo sensível para
o “receba-me como estou dando”, perde-se a chance desse merecimento delicado. Como
tratar o que se recebe? Como tratar o que se escreve? Como tratar o que se lê? Como
tratar o que se tem? A palavra “receber” implica, em sua raiz latina, as ações de “possuir,
ordenar-se, atender, prazer-se, ser morto”363. Os sentidos relativos ao mesmo verbete vão
da posse ao despojamento, da propriedade à passividade, do arranjo à satisfação, da
hospitalidade à partida. No gesto de receber, há uma tendência que parece indicar: possua,
passe adiante, perca a posse, tenha o corpo possuído. Os fragmentos solicitam uma ação e
acionam uma solicitude: “receba-me como estou dando”, faça do novelo uma espiral de
alcance, capture, siga os fios adiante.
364
363
HOUAISS; VILLAR. Receber. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br>. Acesso em abr. 2017.
364
BOURGEOIS. Untitled, 2007. Número 7 de 36 da série The Fragile. Impressão digital com adição de
tinta sobre tecido, 29.2 x 24.1 cm.
122
Receber o desenvolvimento da trama é confiar no interminável alcance do “eu
faço, eu desfaço, eu refaço”, como ensina Louise Bourgeois. A razão da feitura oferta aos
fios a condição de superfície, repete, alterna, altera, adiciona, encena. O ato de receber dá
a visão do processo. Receber um tecido com fios de seda é vislumbrar os elementos
passando e desaparecendo até a feitura se processar em “coisa feita”. Coisa que muitas
vezes não é mais do que a visão de uma trama restante, de um fragmento mínimo, de um
conjunto de traçados interrompidos, de um condensado cambiante, que oculta e revela a
vertigem percorrida do obscuro ao claro, do contorno ao contraste, do cerrado ao aberto,
do opaco ao luminoso, da mudez ao grito, do caminho ao atalho. O ato de receber mantém
o “começo prosseguindo” 365, revela a posição da espera, conserva em andamento o
fragmentário e a incompletude da experiência que se desenha, que se deseja. Quem recebe
hospeda a pergunta com as mãos, ausculta, percute, tateia, gesticulando pacientemente: o
que fazer com ela? Um modo de vida-artista articula o começo processual, a matéria
produzida, os fios recebidos, o preparo sem pressa, o tato criador, a interrupção dos fios, a
captura alcançada, o gesto amoroso. Receber o que chega “com fios de seda” é dar uma
forma de permanência à criação tecelã. O corpo entra em obra: fia, tece, concebe,
compõe, desprende superfícies diversamente consistentes, como casulo, manto, pano,
papel, pele, pergaminho.
366
365 LLANSOL. O começo de um livro é precioso, p. 1.
366
BOURGEOIS. Untitled (“Sem título”), 2007. Número 16 de 36 da série The Fragile. Impressão digital
com adição tinta azul sobre tecido, 29.2 x 24.1 cm.
123
Receber modos de existência tecidos é hospedar (com fios de seda) a vitalidade de
uma aprendizagem acordada entre coisa criadora e coisa criada. O tecido de corpo em
obra ensina o incessante trânsito dos fios, o complicado composto de idas e vindas da
linha-cria. Seja o tecido engendrado por um movimento animal, humano ou não, seja o
traço restante nascido de empenho gestual de escrita ou de desenho: um processo feitura
envolve um trânsito digressivo de elementos, o desenvolvimento progressivo e as
alterações súbitas que modificam o destino da linha-cria. A composição da obra
equaciona o pulso instantâneo e o movimento lento, de modo que não se perde por esperar.
Ela, a criação, também em Louise Bourgeois, recebe a teia como tema de uma
literal operação tecelã, assumida no sentido mesmo de um uso criador, transitório entre a
sensibilidade captante e a disponibilidade do ato. Ela repete, como quem recita a linha-
cria de si mesma: “eu faço, eu desfaço, eu refaço”367. Ela afirma um modo de vida tecido
no corpo da obra: “Meu corpo é minha escultura”368. Ela assume o destino de um modo
animal implicado em tecer com própria matéria: “A larva tira a seda da boca, constrói o
casulo e quando termina ela morre. O casulo exauriu o animal. Eu sou o casulo. Não
tenho ego, sou meu trabalho”369.
370
367
BOURGEOIS in: MORRIS. Louise Bourgeois, p. 220. [Tradução minha]
368
BOURGEOIS. Louise Bourgeois: destruição do pai, reconstrução do pai, p. 357.
369
BOURGEOIS. Louise Bourgeois: destruição do pai, reconstrução do pai, p. 173.
370
BOURGEOIS. Spider, 2003. Escultura, aço inoxidável e tecido.
124
A criação mantém a abertura inventiva no dom de desfazer o já feito, inverter a
trajetória, recuar o movimento e avançar o processo, como faz a traça à integridade dos
livros. Há recomeço quando se inventa um modo de ir pelo meio, fissurando a densidade
da trama, atravessando o domínio das normas, desfazendo emaranhados, refazendo a
relação entre as linhas segundo novas combinações. Para se começar pelo meio, não
adianta ter pressa. É preciso, tantas vezes, partir de quase nada e esperar pelo momento
em que um novo fio ou fragmento mobilize uma entrada em obra.
371
A criação como tema, em Clarice Lispector e Louise Bourgeois, pode ser notada
pela recorrência de figurações do nascimento no corpo das obras. A evidência do tema
não se reduz ao correlato entre as ações de criar e nascer, mas se mostra, também, nas
formulações que evocam a cena da feitura, a mão que escreve, o gesto que desenha, o
traço do pensamento sendo pensado, o drama e a dobra do corpo empenhado no fazer da
obra. O tema parece se desenvolver na proliferação serial dos contos, romances, notas,
crônicas, entrevistas, cartas, atravessando a vasta modalidade de textos escritos por
Clarice. O tema passa também pelas séries prolíferas de Louise, pelo despojamento
realizador de sua linha-cria, pela intensa produção de bordados, tecidos, gravuras,
esculturas, instalações, aguadas, desenhos e escritos.
126
em mãos, “do sentido da vida, do que é vivo, do que nasceu. Do que é mais simples” 372,
escreve Marina Tzvetáieva. “Você vive procurando como é feito. Ora, o segredo é muito
mais simples – [explica-se pelo] nascimento.” 373 As proliferações parecem ser inevitáveis,
e talvez por isso a partilha se torne necessária: para que a matéria em obra se mova, para
que o desprendimento esvazie o espaço criador, para que o movimento descanse, para que
novos movimentos possam se dar, para que a linha-cria siga seu curso, para que o poema
não morra.
374
BOURGEOIS. Louise Bourgeois: destruição do pai, reconstrução do pai, p. 75.
375
LISPECTOR. Com fios de seda. A descoberta do mundo, p. 194.
128
diferentes, mas andam juntos. Você pode decidir que a espera é inútil; depende de você.
Mas se você exercitar a paciência, o silêncio, a espera não será inútil”376.
Qual é a função da paciência? Recuar a intensidade dos gestos? Modular o uso das
forças? Manter o movimento processual da trama? Ter o começo aberto pelo meio?
Talvez tudo isso sustente uma permeabilidade para receber e eliminar, renovando o gasto
dos recursos, assumindo o trânsito dos movimentos e a delicadeza do trato. Nessa espera
paciente, prepara-se um corpo; nessa qualidade amorosa, se faz-se dos gestos um uso
criador; nesse exercício, dá-se uma forma de permanência à linha, imperceptivelmente
exercida enquanto se atualiza, real e imperfeita, vibrando no corpo da obra.
376
BOURGEOIS. Louise Bourgeois: destruição do pai, reconstrução do pai, p. 307.
377
LISPECTOR. Lembrança da feitura de um romance. A descoberta do mundo, p. 284.
378
LISPECTOR. Lembrança da feitura de um romance. A descoberta do mundo, p. 285.
379
LISPECTOR. Lembrança da feitura de um romance. A descoberta do mundo, p. 285.
129
romance feito, como experiência fabuladora. Não importa saber qual é o romance em
questão, interessa o movimento da linha insistida por entre as frases, condensando um
mistério movente no qual se pode tocar, no qual é necessário confiar:
Clarice parece pautar a distinção entre uma ideia levada adiante nas facilidades de
um discurso linear e a dificuldade de tecer uma ideia entre a espera e a fuga na capacidade
de engendrar o “pensamento presente”, capturando “por escrito a visão inicial que foi
instantânea”. Um modo de vida-artista sabe que não se perde por esperar, por isso mesmo
não busca encerrar o lampejo de uma ideia em uma roupagem prévia e definitiva. Importa
tirar a escrita de seu uso habitual, concedendo às palavras o despojamento de uma nudez
imprevista. Clarice escreve: “infelizmente não sei redigir, não consigo relatar uma ideia,
não sei ‘vestir uma ideia com palavras’”. Como se chega a criar com essa incapacidade
declarada por Clarice? Talvez o ato de abandonar o funcionamento pleno da comunicação
ajude a alcançar uma forma de expressão provisória. Talvez, no instantâneo da feitura,
encontrem-se as palavras necessárias ao vislumbre de uma ideia. Talvez o despojo da
escrita favoreça a agilidade de uma captura imprevista. Talvez seja preciso crer no
instante compositivo. Talvez o risco amador em um corpo de linguagem ensine que não se
perde por esperar. Talvez seja preciso, em nome da errância processual, abandonar o
domínio projetivo. Talvez a capacidade criadora envolva a deriva como recurso. Talvez a
contingência súbita dos encontros suporte a invenção de novos acordes.
Cada vez mais acho tudo uma questão de paciência, de amor criando
paciência, de paciência criando amor. Mas é também verdade que a
desordem constrange. Esta paciência eu tive: a de suportar, sem nem ao
menos o consolo de uma promessa de realização, o grande incômodo da
desordem.381
380
LISPECTOR. Lembrança da feitura de um romance. A descoberta do mundo, p. 284.
381
LISPECTOR. Lembrança da feitura de um romance. A descoberta do mundo, p. 285.
130
Despir as ideias de um domínio prévio é dar ao pensamento um espaço criador e o
eco murmurante, como a concha concede a escuta de um oceano possível. Escrever é
também captar o silêncio por detrás das palavras. É importante não temer o sentimento de
um emaranhado processual. Tecer “com fios de seda” implica a lenta compreensão capaz
de suportar a desordem do novelo e a lenta curiosidade criadora de uma organização
consentida. A criação escrita envolve a “compreensão muda”382 , o esforço da voz, o atrito
com os elementos compositivos, a lentidão sustentada no corpo, a ternura da curva
escavando o recurso incessante das frases. Prossegue Clarice:
Fazer uso das palavras é também dar partida aos fragmentos dispersos, colocar os
elementos em pouso compositivo, dar uma dimensão coesa ao atrito da escrita: “Escrevi
procurando com muita atenção entender o que se estava organizando”384. Uma operação
de linguagem conta com a espera e com o fluxo aglutinante dos fragmentos. As palavras
moventes na digressão da trama levam a superfície textual ao ponto de ruptura, revelando
o destampado da linguagem e seu fundo de silêncio. O saber ignorado avança, enquanto o
esquecimento se afirma, restando apenas a atualidade emergente do instante criador
enredado como “tema de vida”385.
382
LISPECTOR. Lembrança da feitura de um romance. A descoberta do mundo, p. 285.
383
LISPECTOR. Lembrança da feitura de um romance. A descoberta do mundo, p. 285.
384
LISPECTOR. Lembrança da feitura de um romance. A descoberta do mundo, p. 285.
385
LISPECTOR. Água viva, p. 9.
131
386
É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu,
aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de
separação mas é grito de felicidade diabólica. Porque ninguém me
prende mais. Continuo com capacidade de raciocínio – já estudei
matemática que é a loucura do raciocínio – mas agora quero o plasma –
quero me alimentar diretamente da placenta. Tenho um pouco de medo:
medo ainda de me entregar pois o próximo instante é o desconhecido. O
próximo instante é feito por mim? ou se faz sozinho? Fazemo-lo juntos
com a respiração. E com uma desenvoltura de toureiro na arena.
386
BOURGEOIS. Art is a guaranty of sanity, 2000. Lápis sobre papel, 27.9 x 21.6 cm.
387
LISPECTOR. Água viva, p. 9-10.
132
Nesse trecho de Água viva, os fragmentos parecem reverberar o montante
descontínuo das tentativas, as possibilidades intensamente compostas acerca de fato
nenhum, mas há um acontecimento em fuga, uma emergência a partir da qual as frases se
desenvolvem, revelando uma visão subitamente liberta, “porque ninguém me prende
mais”, nem mesmo o constrangimento da desordem. Essa matéria inquieta evoca
atmosferas desconhecidas, captura a miragem impossível, eclode em novas notas, dialoga
com o silêncio, escuta o canto, propaga o mistério da voz, fracassa em estilhaços.
388
LISPECTOR. Água viva, p. 9.
389
LISPECTOR. Água viva, p. 9-10.
133
justa estranheza dos fragmentos na contingência dos encontros, é preciso criar de modo a
tornar sensíveis os sentidos alcançados.
390
LISPECTOR. Água viva, p. 12.
391
LISPECTOR. Água viva, p. 13.
392
LISPECTOR. Clarice Lispector, p. 121.
393
LISPECTOR. Clarice Lispector, p. 121.
394
LISPECTOR. Dois modos. A descoberta do mundo, p. 319.
395
LISPECTOR. Dois modos. A descoberta do mundo, p. 319. [Grifos da autora]
134
desse tema de vida apontando a impossibilidade de um controle sobre as possibilidades
nascentes de um processo criador: “no escrever eu não escolho, não posso me multiplicar
em mil, me sinto fatal a despeito de mim” 396. A “não escolha” parece implicar o alcance
imediato de uma sensação inconsciente, o lampejo instantâneo do pensar no pensamento.
O caráter lapidar dessa “escolha” aparece ainda mais resumido nesta outra formulação
clariciana: “Todos nós que escrevemos estamos fazendo do túmulo do pensamento
alguma coisa que lhe dê vida”397.
[...] o que fazemos depende daquilo que somos; mas deve-se acrescentar
que, em certa medida, somos aquilo que fazemos e que nos criamos
continuamente a nós mesmos. Esta criação de cada um por si próprio é,
aliás, tanto mais complexa quanto mais se pensa aquilo que se faz.398
396
LISPECTOR. Dois modos. A descoberta do mundo, p. 319.
397
LISPECTOR. Declaração de amor. A descoberta do mundo, p. 100. [Grifos da autora]
398
BERGSON. Evolução criadora, p. 7.
399
BERGSON. Evolução criadora, p. 7.
135
as formas de expressão, o funcionamento disperso dos fragmentos, as forças de vida em
curso. Um estudo acerca da matéria criadora tende a tornar-se uma escrita dessa escuta e,
também, uma escuta dessa escrita.
400 401
“Depois que descobri em mim mesma como é que se pensa”, ensina Clarice,
“fazendo comigo mesma negociatas, nunca mais pude acreditar no pensamento dos
outros”402. É próprio, ao pensar no pensamento, fazer a escuta da matéria criadora em
obra. O eco da voz, a leitura da escrita, a visão do feito são reverberações flagrantes das
virtudes trabalhadas, o pensamento em obra atrai essas dobras processuais, e os
movimentos vão tecendo as linhas de modo a manter o inacabamento da abordagem, a
abertura criadora, a aventura curiosa.
Uma escuta não hierárquica para uma escrita não hierarquizante. Essa abordagem
afeita às contingências processuais se interessa pela consistência a termo da obra
publicada, mas persegue a todo custo as ambiguidades compositivas, cava trajetos
provisórios e encontra, nos traços restantes, o mistério esquivo das linhas. A promessa de
um corpo em obra ensaia o fracasso e a necessidade realizadora. O movimento errante da
linha-cria implica um processo de experimentação decisivo, encenado em digressões,
avanços, recuos e distâncias. A errância é sensível às escolhas compositivas alcançadas.
400
BOURGEOIS. Araignée, 1994. Nanquim, aquarela e guache sobre papel, 25.4 x 20.3 cm.
401
BOURGEOIS. Spider, 1994. Aquarela e guache sobre papel, 29.2 x 29.8 cm.
402
LISPECTOR. As negociatas. A descoberta do mundo, p. 408.
136
403
403
BOURGEOIS. Ears, 2003. Ponta seca sobre papel com adição de nanquim preto e vermelho e lápis
grafite, 30.3 x 25.2 cm.
137
2.4. O “tema atemático” 404
Esta é a vida vista pela vida. Posso não ter sentido mas é a mesma falta
de sentido que tem a veia que pulsa.
Quero escrever-te como quem aprende. Fotografo cada instante,
aprofundo as palavras como se pintasse, mais do que um objeto, a sua
sombra. Não quero perguntar por quê, pode-se perguntar sempre por que
e sempre continuar sem resposta: será que consigo me entregar ao
expectante silêncio que se segue a uma pergunta sem resposta? Embora
adivinhe que em algum lugar ou tempo existe a grande resposta para
mim.
E depois saberei como pintar e escrever, depois da estranha mas íntima
resposta. Ouve-me, ouve o silêncio. O que te falo nunca é o que te falo,
e sim outra coisa. Capta essa coisa que me escapa e, no entanto, vivo
dela e estou à tona de brilhante escuridão. Um instante me leva
insensivelmente ao outro e o tema atemático vai se desenrolando sem
plano mas geométrico como as figuras sucessivas num caleidoscópio.
Entro lentamente na minha dádiva a mim mesma, esplendor dilacerado
pelo cantar último que parece ser o primeiro. Entro lentamente na
escritura assim como já entrei na pintura. É um mundo emaranhado de
cipós, sílabas, madressilvas, cores e palavras – limiar de entrada de
ancestral caverna que é o útero do mundo, e dele vou nascer.405
404
LISPECTOR, Água viva, p. 14.
405
LISPECTOR, Água viva, p. 12.
406
O termo “ficção”, definido pela autora, aparece como categoria literária na folha de rosto de Água viva,
assim como “pulsações” aparece em Um sopro de vida, “novela”, em A hora da estrela e “romance”, em A
paixão segundo G.H..
407
LISPECTOR, Água viva, p. 12.
408
LISPECTOR, Água viva, p. 12.
138
O “tema atemático” desenha uma espiral de alcance, acompanha o gesto criador
nascente, fazendo e refazendo as dobras da obra, traçando a curva do pensar no
pensamento. A personagem sem nome, em Água viva, é uma força atrativa dessa natureza,
ela pensa a si mesma, é a dobra da obra desdobrando seu traço atemático, tramando a
confluência de figuras nascidas de aparições instantâneas, em modos de compor com a
matéria neutra do instante:
Meu tema é o instante? meu tema de vida. Procuro estar a par dele,
divido-me milhares de vezes em tantas vezes quanto os instantes que
decorrem, fragmentária que sou, e precários os momentos – só me
comprometo com vida que nasça com o tempo e com ele cresça: só no
tempo há espaço para mim. 409
409
LISPECTOR. Água viva, p. 17.
410
LISPECTOR. Água viva, p. 19.
139
deleite, a fartura, a aridez, a oferta medida no apetite das fomes. “Escrevo-te” como se a
proximidade com a vida detivesse a morte, porque morrer demora a soma sísmica dos
instantes vividos. “Escrevo-te”. “Vejo palavras.”
Como se a escrita fosse “escruta” mesmo, movida por uma força inquisidora, por
uma sondagem, por uma aparição monstruosa: “Como se arrancasse das profundezas da
terra as nodosas raízes da árvore descomunal, é assim que te escrevo”412. Como se a
leitura fosse um esforço nascente da matéria palavra: “é assim que te escrevo” – como se
a escrita pronunciasse sua matriz subterrânea; exposta – como se as palavras “fossem
poderosos tentáculos como volumosos corpos nus de fortes mulheres envolvidas em
serpentes e em carnais desejos de realização”413. Move-se a escrita, como se ouvíssemos,
das raízes arrancadas, um canto, “uma prece de missa negra, e um pedido rastejante de
amém”414; como se o fracasso consentisse “em carnais desejos de realização”; como se o
eco de uma ruína insistisse em se apresentar, “porque aquilo que é ruim está desprotegido
e precisa da anuência de Deus: eis a criação”415.
“Eis a criação”, na deriva dessa tarefa experimental. Cabe ao desafio criador dessa
abordagem uma formulação do crítico de arte Michel Seuphor, que Clarice Lispector
escolhe como epígrafe de Água viva.
411
LISPECTOR. Água viva, p. 19.
412
LISPECTOR. Água viva, p. 19.
413
LISPECTOR. Água viva, p. 19.
414
LISPECTOR. Água viva, p. 19.
415
LISPECTOR. Água viva, p. 19.
416
Michel Seuphor traduzido do inglês e citado em epígrafe por: LISPECTOR. Água viva, p. 7.
140
Uma imagem concebida no entrelaçamento de sensações emergentes, que nada
busca representar senão a oferta de uma emergência sensível. O “como se” da personagem
parece sustentar o mesmo tecido sensível de sensações, “por causa do mesmo segredo que
me faz escrever agora como se fosse a ti” 417 . A epígrafe de Água viva formula,
precisamente, o dever-devir da irrepresentável e luminosa “sensação atrás do
pensamento”418, assumida e simulada, simulada e assumida, por Clarice – “Tinha de
existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura – o objeto – que, como a
música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança um mito”419.
Sinto em mim que há tantas coisas sobre o que escrever. Por que não? O
que me impede? A exiguidade do tema talvez, que faria com que esse se
esgotasse em uma palavra, em uma linha. Às vezes o horror de tocar
numa palavra desencadearia milhares de outras, não desejadas, estas. No
entanto, o impulso de escrever. O impulso puro, mesmo sem tema.
Como se eu tivesse a tela, os pincéis e as cores – e me faltasse o grito de
libertação, ou talvez a mudez essencial que é necessária para que se
digam certas coisas. Às vezes a minha mudez faz com que eu procure
pessoas que, sem elas saberem, me darão a palavra-chave. Mas quem?
quem me obriga a escrever? O mistério é este: ninguém, e, no entanto, a
força me impelindo.
417
LISPECTOR. Água viva, p. 10-11.
418
LISPECTOR. Água viva, p. 44.
419
SEUPHOR. Texto traduzido do inglês e citado em epígrafe por: LISPECTOR. Água viva, p. 7.
420
LISPECTOR. Temas que morrem. A descoberta do mundo, p. 196. [Grifo da autora]
141
E é como se eu fosse escrever um livro sobre a sensação que tive uma
vez que passei vários dias em casa muito gripada – e quando saí fraca
pela primeira vez à rua, havia sol cálido e gente na rua. E de como me
veio uma exclamação entre infantil e adulta: ah, como os outros são
bonitos. É que eu vinha do escuro meu para o claro que também
descobria que era meu, é que eu vinha de uma solidão de pessoas para o
ser humano que movia pernas e braços e tinha expressões de rosto.
Eu falaria sobre frutas e frutos. Mas como quem pintasse com palavras.
Aliás, verdadeiramente, escrever não é quase sempre pintar com
palavras?
142
Ah, estou cheia de temas que jamais abordarei. Vivo deles, no
421
entanto.
Dentre as “coisas” alinhadas por Clarice nessa escrita, estão as ações de sentir,
gritar, ver, comer, beber, traçar, pensar, amar, descobrir, reparar, ordenar, falar, rir da
própria condição tecida “entre achados e perdidos”, aspirando à curiosidade fabuladora de
uma criança na oportuna descoberta do mundo. A escrita atua como condição-condução
para se “entrar em contato” com as “coisas”, e contar conta por conta, tateando os pontos
de tensão do corpo em feitura, desviando o entendimento de modo a apreender aquilo que
escapa. Pois nada parece impedir o alcance de um tema quando ele é também a força
“misteriosa” que impele a linha criadora, o desejo no desenho das palavras, a torção
421
LISPECTOR. Temas que morrem. A descoberta do mundo, p. 197-198. [Grifos da autora]
422
LISPECTOR. Temas que morrem. A descoberta do mundo, p. 198.
143
indivisível do fio, a lição de que nos somamos às coisas, de que as coisas morrem e delas
vivemos. “É como se o pacto com Deus fosse este: ver e esquecer, para não ser fulminada
pelo saber.” 423
423
LISPECTOR. Temas que morrem. A descoberta do mundo, p. 197.
144
nós, os escritores, fazemos”424. A experiência de falar “sobre o fenômeno literário” como
alguém “alistado” por dentro parece gerar uma confusão propriamente atemática, criadora
de avanços e recuos em torno dos termos em questão, incluindo o “tema”, mas também a
“experimentação”.
Foi então que percebi que minha dificuldade era muito mais funda. É
que eu estava lidando com um assunto que é afim a duas palavras cujo
significado nunca tivera muito sentido para mim: refiro-me à expressão
“fundo e forma”. São palavras usadas em contraposição ou em
justaposição, não importa, mas significando de qualquer maneira
divisão. E essa expressão “fundo-forma” sempre me desagradou
vitalmente – assim como me incomoda a divisão “corpo-alma”,
431
“matéria-energia” etc.
424
LISPECTOR. Outros escritos, p. 97.
425
LISPECTOR. Outros escritos, p. 97.
426
LISPECTOR. Outros escritos, p. 97.
427
LISPECTOR. Outros escritos, p. 97.
428
LISPECTOR. Outros escritos, p. 97.
429
LISPECTOR. Outros escritos, p. 97.
430
LISPECTOR. Outros escritos, p. 97.
431
LISPECTOR. Outros escritos, p. 98.
145
Embora o uso da dicotomia “fundo e forma” seja considerado por Clarice para o
fim instrumental de um estudo sobre a experiência criadora, ela se posiciona como quem
pensa pela via da experimentação e expõe a razão de sua recusa: “Se também eu usasse
esse instrumento, vanguarda, então, seria inovação de forma? Mas inovação de forma
podia implicar conteúdo ou fundo antigo? mas que conteúdo é esse que não poderia
existir sem a chamada forma?”432. O emaranhado do problema é erguido nesse ponto, e a
abordagem toca, enfim, no que se busca compreender aqui como tema “atemático” em
Clarice: “qual é a existência que é anterior à própria existência? Vendo-me tão confusa,
então, eu me propus, apenas para hipótese de avanço meu, que para mim a palavra ‘tema’
seria aquela que substituiria a unidade indivisível que é fundo-forma”433.
432
LISPECTOR. Outros escritos, p. 98.
433
LISPECTOR. Outros escritos, p. 98.
434
LISPECTOR. Outros escritos, p. 98.
146
forma já aparece quando o ser todo está com o conteúdo maduro, já que
se quer dividir o pensar e o escrever em duas fases. A dificuldade de
forma está no próprio constituir-se do conteúdo, no próprio pensar ou
sentir, que não saberiam existir sem sua forma adequada e às vezes
435
única.
435
LISPECTOR. Forma e conteúdo. A descoberta do mundo, p. 254.
147
2.5. A criação como teima
437
Ovo é coisa que precisa tomar cuidado. Por isso a galinha é o disfarce do
ovo. Para que o ovo atravesse os tempos, a galinha existe. Mãe é para
isso. – O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para sua
época: ele é mais do que atual: ele é no futuro. – O ovo por enquanto
será sempre revolucionário. – Ele vive dentro da galinha para que não o
chamem de branco. O ovo é branco mesmo, mas não pode ser chamado
de branco. [...] Chamar de branco aquilo que é branco pode destruir a
humanidade. A verdade sempre destrói a humanidade. Uma vez um
440
LISPECTOR. Atualidade do ovo e da galinha. A descoberta do mundo, p. 206.
441
LISPECTOR. Atualidade do ovo e da galinha. A descoberta do mundo, p. 206.
442
LISPECTOR. Atualidade do ovo e da galinha. A descoberta do mundo, p. 207.
443
LISPECTOR. Atualidade do ovo e da galinha. A descoberta do mundo, p. 207.
444
LISPECTOR. Atualidade do ovo e da galinha. A descoberta do mundo, p. 207.
445
LISPECTOR. Onde estivestes de noite, p. 58.
149
homem foi acusado de ser o que ele era e foi chamado de Aquele
Homem. Não tinham mentido: ele era. Mas até hoje ainda não nos
recuperamos. A lei geral para continuarmos vivos: pode-se dizer “um
rosto bonito”, mas quem disser “o rosto” morre por ter esgotado o
446
assunto.
446
LISPECTOR. Atualidade do ovo e da galinha. A descoberta do mundo, p. 208.
447
LISPECTOR. Atualidade do ovo e da galinha. A descoberta do mundo, p. 208.
448
LISPECTOR. Atualidade do ovo e da galinha. A descoberta do mundo, p. 213.
449
LISPECTOR. Atualidade do ovo e da galinha. A descoberta do mundo, p. 213.
450
LISPECTOR. Atualidade do ovo e da galinha. A descoberta do mundo, p. 213.
451
LISPECTOR. Atualidade do ovo e da galinha. A descoberta do mundo, p. 208.
452
LISPECTOR. Atualidade do ovo e da galinha. A descoberta do mundo, p. 209.
453
LISPECTOR. Onde estivestes de noite, p. 58.
454
LISPECTOR. Atualidade do ovo e da galinha. A descoberta do mundo, p. 212.
150
proveito do ovo é a provisão de uma possível e única escolha: a de viver operando no
limite da ignorância, no vislumbre do novo consentido. “Tomo o maior cuidado de não
entendê-lo. Pois, sendo impossível entendê-lo, sei que, se eu o entender, é porque estou
errando. Entender é a prova do erro.”455 O proveito do ovo não implica assimilar “o que é”
o ovo, pois o transitório da coisa viva em sua potência migratória não permite esse
domínio de uma vez por todas. “Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto. – Será
que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. – O que eu não sei do ovo é
o que realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito.”456 A
variedade de modos e estados de corpo assumidos pelo ovo desfaz a nitidez dos focos,
implode os referentes de tempo e espaço. Um “o que é” sobreposto a outro “o que é”.
Apenas o movimento imperceptível coincide com o ovo. A convergência do olhar com o
ovo é o instante fugidio que se dá a ver no ovo.
457
455
LISPECTOR. Atualidade do ovo e da galinha. A descoberta do mundo, p. 207.
456
LISPECTOR. Atualidade do ovo e da galinha. A descoberta do mundo, p. 207.
457
BOURGEOIS. Hanging figure”, 2000. Gravura em metal, ponta seca sobre papel, 38.1 x 30.48 cm.
458
LISPECTOR. Atualidade do ovo e da galinha. A descoberta do mundo, p. 207.
459
LISPECTOR. Atualidade do ovo e da galinha. A descoberta do mundo, p. 207.
151
O ovo é originário da Macedônia.”460 Como o ovo se dá? “– Quando eu era antiga, um
ovo pousou no meu ombro.”461 Como o ovo se dá? “O amor pelo ovo também não se
sente, o amor pelo ovo me é supersensível, não dá pra chegar a saber que se sente. A
gente não sabe que ama o ovo.”462 “O ovo é um dom” 463 lançado em sua atualidade
imperceptível, “o ovo por enquanto será sempre revolucionário”464 porque suporta um
incessante tornar-se. Como o ovo se dá? O ovo fecunda o pensamento: “se é que há
pensamento: não há: há ovo”465, Uma experiência desagregadora pousada no horizonte. A
essa criação prolífera poderíamos chamar “pensamento do ovo” ou a figuração matricial
do “tema atemático” 466 em Clarice Lispector.
Sou responsável por meu dom. Minha comida é um dom, minha geleia
com chá é um dom, minha saúde, minha disposição (hoje sorrindo), o
sol entrando pela janela é um dom, o telefonema de meu amigo é um
dom, a satisfação de ter cumprido um dever é um dom. Minha blusa azul
cor do céu está limpa e é um dom, muito especialmente o tempo lá fora
e a calefação são um dom, o estado do meu estômago, um dom das
alturas, a presença dos meus amados.468
460
LISPECTOR. Atualidade do ovo e da galinha. A descoberta do mundo, p. 207.
461
LISPECTOR. Atualidade do ovo e da galinha. A descoberta do mundo, p. 207.
462
LISPECTOR. Atualidade do ovo e da galinha. A descoberta do mundo, p. 207.
463
LISPECTOR. Atualidade do ovo e da galinha. A descoberta do mundo, p. 207.
464
LISPECTOR. Atualidade do ovo e da galinha. A descoberta do mundo, p. 208.
465
LISPECTOR. Atualidade do ovo e da galinha. A descoberta do mundo, p. 206.
466
LISPECTOR. Água viva, p. 14.
467
BOURGEOIS. Louise Bourgeois: desenhos/drawings, p. 16.
468
BOURGEOIS. Louise Bourgeois: destruição do pai, reconstrução do pai. p. 366.
152
caminho surtido “no ponto em que o mundo se torna sonoro e resistente em nós, com os
olhos de quem sente em si as coisas se refazerem, de quem se apega e se fixa no começo
de uma nova realidade”469. A escuta sensível aos modos de existência implica estar à
altura das coisas mais ordinárias, assimilando a espessura das superfícies, captando as
contingências nas quais a vida se reinaugura a cada instante. Não se trata, obviamente, de
compor uma representação das coisas ou “o volume das coisas”, escreve Antonin Artaud,
Se, como se vê, é difícil determinar o modo como a criação acontece, é possível
abordar as forças da “substância pensante” por uma escuta sensível, deixar-se levar pela
abertura do gesto compositivo, mover-se na repercussão do mundo que “se torna sonoro e
resistente em nós”. É preciso não se fixar para “ter em si a corrente das coisas” e “estar
enfim ao nível da vida”. Se não se sabe o limite de um corpo, sabe-se: ele é “uma
experimentação inevitável”471. Quando os devires de passagem atuam, a sujeição do
sujeito e a passividade do objeto colidem, as categorias fracassam. O que não quer dizer
que um empenho realizador deixe de ser também “o lugar onde se conquista o nome
próprio”472.
469
ARTAUD, Linguagem e vida – Antonin Artaud, p. 247.
470
ARTAUD, Linguagem e vida – Antonin Artaud, p. 247- 248.
471
DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs, vol. 3, p. 11.
472
ZOURABICHIVILI. O vocabulário de Deleuze, p. 32. (Verbete “corpo sem órgãos”)
153
3. “Qual é a forma desse problema?”473 – “é orgânico e é o que me inquieta”474
473
BOURGEOIS. What is the shape of this problem?, 1999. Título/capa do portfolio.
474
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 34.
475
SANTOS. Na cavidade do rochedo: a pós-filosofia de Clarice Lispector, p. 34.
154
476
O animal do começo avança, recua, guarda o que lhe é próprio: o calço dos pés, o
movimento interrogativo das mãos na matéria-matriz de que as coisas são feitas. Embora
a solidão, não se começa só, mas na companhia do ambiente, no envolvimento com o
meio, na via em desvio, no andar ao redor, na marca dos encontros, na aproximação das
distâncias, no desejo de ir, na potência movente, no gesto habitual, no esteio das bordas,
no tato do corpo, na linha do desenho, no risco da palavra, no tecer da trama.
477
476
BOURGEOIS. Untitled, 2004. Ponta seca sobre papel, 18.1 x 12.5 cm.
477
BOURGEOIS. Spiraling arrows, 2004. Número 2 de 2. Gravura em metal sobre papel, 30.5 x 45.7 cm.
155
478
Em 1989, Louise Bourgeois grava uma matriz litográfica a partir da qual imprime
a imagem Reaching (Alcançando). A gravação reproduz, sobre um papel azul, o desenho
(sem-título), originalmente concebido em 1968. O nome dado pela artista ao impresso
parece se alinhar ao apelo da composição: duas espirais emergem “alcançando” uma
aproximação. As linhas periféricas marcam uma volumetria de propagação circular cujos
vórtices se deslocam, insinuando a tangência de um alcance pelo meio. Essa cena de
alcance não abole o distanciamento entre as figuras nem favorece uma confusão entre elas.
Não há o cruzamento de linhas, mas uma proximidade sustentada no intervalo sensível, na
passagem veloz entre um círculo e outro.
478
Louise Bourgeois. Reaching, 1989. Litografia sobre papel azul, 30.4 x 25.5 cm.
479
BOURGEOIS; BERNADAC. Drawings and observations. Louise Bourgeois. p. 130. [Tradução minha]
156
O título Reaching, vertido para o português como “alcançando”, traz o verbete
“alcançar” cuja raiz latina, ancalçar, resulta da junção dos termos acalçar e encalçar, ou
incalciare, que quer dizer: dar coices, “perseguir a unhas de cavalo” 480. Alcançar é atingir,
mas “alcançando” é seguir continuamente, sem atingir. O quê? Talvez o animal do
começo tenha a tarefa de sustentar o ignorado e se apropriar do alcance justamente por
não assimilar o domínio da posse. O que se tem em mãos? Qual é a matriz desse alcance
interminável? A unha? A aderência? O atrito? A lâmina? O talho? A palavra? O risco? O
apelo? O chamado? A escuta? O desejo? A distância? O passo? O trote?
Nenhuma resposta para a matriz do alcance. Ela é o animal que se move, via em
desvio, matéria continuamente em obra, comendo por dentro o próprio cabimento. No
encalce rasteiro de um gesto-ferramenta, criado e recriado à medida que avança, seja
como for seu “modo de ir”, um corpo em obras vai rompendo seus rumos e superfícies
encalçadas. Até que “algo a dizer” se alcance no curso-recurso dessa linha. Mas não se
trata de uma linha destinada a alcançar um ponto ou a cumprir o trajeto de um ponto ao
outro. A matriz do alcance é linha-cria, cria da trajetória, criada na trajetória.
481
480
HOUAISS; VILLAR. Alcançar. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br>. Acesso em abr. 2017.
481
BOURGEOIS. Untitled, 1968. Guache sobre papel, 30.5 x 22.9 cm.
157
482
São muitos os gestos com os quais se alcança uma linha de começo. A ferramenta
em punho a disparar um trajeto. A curva da pergunta que suspende as certezas. O lance
insistido de uma interrogação. O anzol como isca viva. O êxito inicial. O termo alcançado.
A posição de ambiguidade que é chegada e partida. A chance içada. A resposta eriçada e
provisória. A diagonal de força passando por entre as fibras. As tramas lisas e estriadas da
musculatura. O pulso desse alcance inicial. A confiança hesitante se vai ou se fica. Os
gestos ofertam o entorno da pergunta, o retorno da questão, a revolução do corpo cavo e
gerador que interroga a si mesmo. Qual é o modo de alcance? Como se move um corpo
em obra? Ele tem sua linha-cria na trajetória. Ela corre pelo meio, é o começo pelo meio
ou a “linha de devir”, na concepção de Deleuze e Guattari:
Um ponto é sempre de origem. Mas uma linha de devir não tem nem
começo, nem saída nem chegada, nem origem nem destino; e falar de
ausência de origem, erigir a ausência de origem, é um mau jogo de
palavras. Uma linha de devir só tem um meio. O meio não é uma média,
é um acelerado, é a velocidade absoluta do movimento. Um devir está
sempre no meio, só se pode pegá-lo no meio. Um devir não é nem um
nem dois, nem relação de dois, mas entre-dois, fronteira ou linha de fuga,
483
de queda, perpendicular aos dois.
482
BOURGEOIS. Dagger child, 2001. Ponta seca com adições de nanquim sobre papel, 29.9 x 25.1 cm.
2001.
483
DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs vol.4, p.91.
158
484
485
484
BOURGEOIS. Sainte Sébastienne, 1998. Fotocópia com adições de nanquim azul e vermelha sobre
papel, 186.7 x 160 cm
159
486
487
485
BOURGEOIS. Sainte Sébastienne, 1992. Gravura em metal, ponta seca sobre papel, 98.9 x 78.4. cm.
486
BOURGEOIS. Crochet III, da série Crochet I – V, 1998. Mixografia sobre papel, 70 x 84cm.
487
BOURGEOIS. Crochet IV, da série Crochet I - V, 1998. Mixografia sobre papel, 70 x 84 cm
160
488 489
Louise publica um portfólio no ano de 2003 contendo uma série de sete gravuras
em folhas soltas sob o título La réparation (A reparação). Não há uma ordem determinada
entre as imagens. Talvez porque cada uma tenha sido concebida sem vínculo com a outra,
em datas distintas, como se pode confirmar nos registros dos desenhos originais a partir
dos quais foram geradas as matrizes para compor esse portfólio. M is for mother (M é de
mãe) é o nome de uma dessas gravuras cuja versão original homônima foi feita a lápis e
nanquim vermelho, no ano de 1998. Se não fossem algumas diferenças de densidade nas
tramas, o desenho seria idêntico ao impresso gerado cinco anos depois para La
réparation: um feixe largo de linhas torcidas como meadas que se dobram na forma da
letra “M”. Uma linha atravessa o espaço do papel e projeta, de ponta a ponta, um
horizonte sobre o qual parecem se mover os “pés” encaracolados da figura/letra. Uma
espiral flutua suspensa ao lado direito da composição. O movimento artesanal do risco dá
uma textura fibrosa ao desenho; encarna a sensação das linhas torcidas, vibrando em um
feixe de feixes; evoca a matéria do novelo; atualiza a matriz da costura; sustenta a razão
da trama.
488
BOURGEOIS. La réparation, 2003. Capa do portfolio, cobertura em tecido de linho. Contém sete
gravuras impressas sobre papel de algodão. Dimensões variadas, folhas soltas, assinadas e numeradas.
489
BOURGEOIS. M is for mother, imagem 4 de 7, do portfólio La réparation, 2002 - 2003. Ponta seca com
adição de nanquim vermelho sobre papel de algodão, 25 x 30.2 cm.
161
de coser. Da convergência etimológica entre os verbetes “matéria” e “matriz”, deriva
também a palavra “mãe”. A raiz comum aos três é o termo latino mater-tris, e implica o
começo gestante de um corpo, “aquilo de que algo é feito”, “fêmea que está criando os
filhos”, “útero e ventre”490, espaço matricial e nutritivo, “mãe do corpo”491, “pau, rebento
de uma árvore”492, madeira.
493
490
HOUAISS; VILLAR. Matriz. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br>. Acesso em abr. 2017.
491
HOUAISS; VILLAR. Útero. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br>. Acesso em abr. 2017.
492
HOUAISS; VILLAR. Matéria. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br>. Acesso em abr. 2017.
493
BOURGEOIS. M is for mother, 1998. Grafite e nanquim vermelho sobre papel, 22.9 x 29.8 cm.
494
AGAMBEM. Ideia de prosa, p. 27.
495
AGAMBEM. Ideia de prosa, p. 27.
496
AGAMBEM. Ideia de prosa, p. 27.
162
497 498
A matriz do começo envolve partir e voltar, tecer o alcance de entradas que são
também saídas, tramar com a matéria viva de que coisas são feitas, confiar na linha. A
arte da reparação consiste em recolocar alguma coisa em condição de uso, “preparar de
novo, tornar a começar”499. A agulha leva o fio, atravessa o tecido, faz a laçada de um
falso nó atado à carne da trama. Detido de seu livre curso, o fio retorna, torna-se tensão
em movimento: é esse o teor do gesto. O fluxo negado se aninha e se ancora no rastro da
costura. Toda a condução da fibra passa pela fenda do metal pontiagudo. A condição de
coser dá ao fio sua participação na trama, ajunta as partes, sutura fragmentos, repara o
rasgo, faz dos restos uma condição de superfície, “mortalha de vida – cicatriz” 500.
497
BOURGEOIS. La réparation, imagem 3 de 7, do portfólio La réparation, 2003. Gravura em metal,
ponta seca sobre papel, 27.9 x 21.6 cm.
498
BOURGEOIS. La réparation, imagem 3 de 7 do portifólio la réparation, 2001. Gravura em metal, ponta
seca com adição de nanquim vermelho grafite e corretivo de caneta sobre papel, 43 x 38 cm.
499
HOUAISS; VILLAR. Reparar. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br>. Acesso em abr. 2017.
500
COSTA; LABANCA. Rés: o livro das contaminações, p. 29.
501
GOROVOY. Descrição técnica da obra no site do MoMa.. Disponível em:
<http://www.moma.org/collection_lb> Acesso em: jun. 2017.
163
502
504
502
BOURGEOIS, Spiral woman, 2003. Escultura de tecido e haste de metal, 175.3 x 35.6 x 34.3 cm.
503
BOURGEOIS. Louise Bourgeois: destruição do pai, reconstrução do pai, p. 266.
504
Louise Bourgeois, Spiral woman, 1984. Escultura de bronze, haste de metal, 35.6 x 11.4 x 14 cm.
164
505
506
505
Louise Bourgeois, Spiral woman, 1952. Escultura de madeira, tinta e aço, 124 x 30.6 x 30.6 cm.
165
507
508
506
Louise Bourgeois, Spiral woman, 2002. Desenho, nanquim sobre papel, 34.9 x 16.8 cm
507
BOURGEOIS. Spiral woman, 2002. Desenho, nanquim e grafite sobre papel, 27.9 x 21.6 cm.
508
BOURGEOIS. Spiral woman, imagem 2 de 7, do portfólio La réparation, 2003. Gravura em metal,
ponta seca limpeza seletiva, 29.2 x 22.9 cm.
166
509
Uma versão da série The couple integra também o portfólio La réparation. Nessa
imagem, os longos cabelos da figura feminina insinuam o começo de uma espiral. O
encaixe dos corpos pela alça dos braços funciona como índice espiralado. Nas inúmeras
variações de peças bi e tridimensionais da série, feitas ao longo dos anos, o casal em cena
não apenas se une pelo abraço, no enlace mínimo dos membros atados, como o gesto do
abraço se torna, tantas vezes, um embaraço entre dois casulos. Na variação desse traço,
convergem as séries Spiral woman e The couple.
510 511
509
BOURGEOIS. The couple, imagem 5 de 7, do portfolio La Réparation, 2003. Ponta seca, água tinta e
limpeza seletiva com adições de nanquim preto, 25.2 x 20 cm.
510
BOURGEOIS, The couple, 2003, alumínio, 121.9 x 66 x 38.1 cm
511
BOURGEOIS, Couple, 2001, tecido e estofo, peça suspensa, 48.3 x 15.2 x 16.5 cm
167
512
Spiral woman II (Mulher-espiral II), datada de 2006, é uma gravura em metal com
adição manual de tinta guache sobre o papel. Essa é a única imagem da série com a cena
da gestação visível. A ausência dos braços na figura evidencia algo da vulnerabilidade e
da passividade que a condição gestante implica. A supressão dos membros colabora com
o destaque dos demais atributos dessa Spiral woman: seus cabelos em extensão tentacular
se tornam espiras protetoras expandidas como invólucro. A face da figura não apresenta
identidade, é um borrão opaco combinando com o tom da forma ovalada ao centro da
composição. É notável a simultânea tessitura da cena: os cabelos formam o entorno de
uma espiral excêntrica, enquanto o feto se conserva como um pequeno casulo uterino,
fechado nele mesmo.
Louise fez algumas esculturas em 2002 sob o título The woven child (A criança
tecida). Elas têm em comum o ambiente uterino visível. Uma delas mostra uma pequena
figura modelada em tecido, na forma completa de um bebê em posição fetal, envolta por
um saco de véu azul escuro apoiado sobre um outro corpo modelado na forma de um
dorso materno. A condição gestacional da criança ocupa de tal modo o movimento em
cena, que os demais elementos da composição parecem servir como sustentáculo à
pequena figura tecida, secundários e reduzidos ao mínimo, se comparados à integridade
de uma anatomia humana.
512
BOURGEOIS. Spiral woman II, 2006. Gravura em metal com adições manuais, 62.9 x 50.2 cm.
168
513
Assim como a bolsa embrionária está dada por uma única camada translúcida, a
mãe é apenas um dorso passivamente disponível, sem membros ou cabeça, ao modo de
uma geografia talhada e retalhada para sustentar o protagonismo da “criança tecida”. Em
outra versão homônima, também de 2002, não há figura materna, mas uma haste com aro
metálico atada ao envoltório suspenso, que cumpre a função de véu protetor. A criança
está só, na intimidade encasulada da própria feitura.
514
513
BOURGEOIS. The woven child, 2002. Tecido e estofo, 27.0 x 73.7 x 36.8 cm.
514
BOURGEOIS. The woven child, 2002. Tecido, aço e alumínio, 39.3 x 17.7 x 17.7 cm
169
515
516 517
Dentre as peças agrupadas sob o título The woven child, há um portfólio de 2003
com o nome impresso em litografia sobre tecido. Esse livro é composto por um conjunto
de seis imagens tecidas, cada qual apresenta uma figura tramada pelo entrecruzamento de
tiras. A primeira mostra um perfil de mulher grávida, sem cabeça e braços. A segunda
apresenta um corpo encolhido em posição fetal. Há, porém, uma tonalidade rosada
comum às silhuetas das duas figuras. Há também uma diferença nas cores que ocupam a
contra-forma da composição. Essa diferença pode ser compreendida como índice de uma
polaridade dentro/fora, de um ambiente claro e extrauterino e de outro, escurecido, que
corresponderia ao ponto de vista intrauterino.
515
BOURGEOIS. The woven child, 2003. Impressão em litografia e seis composiões em tecido de algodão
tramado, 28.6 x 22.9 x 5.1 cm.
516
BOURGEOIS. Untitled, número 1 de 6 do portifolio The woven child, 2003. Tecido de algodão tramado,
27.9 x 21 cm.
517
BOURGEOIS. Untitled, número 2 de 6 do portifólio The woven child. Tecido de algodão tramado, 27.9
x 21 cm.
170
518
A última versão da série The woven child, datada de 2007, é uma composição de
dois elementos distintos: uma trama de fitas e um desenho impresso. A trama é
interrompida nas bordas laterais e no topo, tendo em sua base um emaranhado pendente
de suas próprias linhas desfeitas. A impressão digital do desenho reproduz uma figura
feminina agachada com as pernas abertas. Em seu ventre arredondado, vê-se a silhueta de
um bebê. Os seios são dispostos como pétalas ou grandes pingentes de um colar. A cabeça
é apenas um contorno borrado, sem expressão facial. É possível vislumbrar o gesto dessa
pincelada, contínuo e veloz, depositando sobre a superfície manchas de tinta que
evidenciam a qualidade do desenho original. Esse corresponde à quarta imagem da série
The passage, concebida em guache sobre papel, também em 2007.
519
518
BOURGEOIS. The woven child, 2007. Impressão digital com colagem de tecido tramado, 128.3 x 157.5
x 6.4 cm.
519
BOURGEOIS. Untitled, 2007. Número 4 de 6 da série The Passage. Guache sobre papel. Dimensões:
29.8 x 22.9 cm
171
520
521
520
BOURGEOIS. Untitled, 2002. Nanquim, grafite e corretivo líquido sobre papel, 28.9 x 22.9 cm.
521
Louise Bourgeois. Cocoon, 2003. Imagem 6 de 7, do portfólio La Réparation.Gravura em metal, ponta
seca, 43.2 x 38.1 cm.
172
522
524
522
Louise Bourgeois. Fée couturière, 1963. Escultura de gesso, 100.3 x 57.2 x 57.2cm
523
BOURGEOIS. Louise Bourgeois (org. Francis Morris), p. 166. (Verbete Lair)
524
BOURGEOIS. Lair, 1986. Escultura de borracha fundida, 109.2 x 53.53 x 53.3 cm.
173
O trabalho de cavar um covil ou tecer o casulo dá ao animal a condição de
acolhimento que inclui os limites seguros de uma entrada e a abertura de saídas, a chance
de salvar-se e a desaparição súbita. Uma ameaça de invasão força o gasto de recursos
próprios, deserta o esconderijo habitual, faz do escape a ruptura com o constrangimento
de se tornar presa, lança o corpo em fuga para além do previsto. As articulações são
possibilidades de sim, alternativas de não, transformam a manutenção do mesmo, o medo
do outro e a opressão da clausura em desejo de encontro, captura e evasão. A espécie mais
articulada do bestiário de Louise é a aranha, animal que tira de si a matéria para tecer um
território aderente, encasular e carregar seus ovos, armar saltos, capturar o invasor,
transformá-lo em alimento, alimentar a trama, tramar o alcance.
525
525
BOURGEOIS. Maman, 1999. Bronze, aço inoxidável e mármore, 9.25 x 8.92 x 10.24 m.
174
526
528
526
BOURGEOIS, The woven child, 2002. Escultura, tecido e estofo, 35.6 x 68.6 x 35.6 cm.
527
Boa parte dessa produção tardia vem sendo gradualmente publicada no website Louise Bourgeois –
prints and books, mantido pelo Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, o MoMa, a partir da doação de
acervo feita ao Museu pela própria artista.
528
BOURGEOIS, Couple, 2009, Colagem de tecido com duas impressões digitais, 59.7 x 81.3 cm.
175
529 530
536 537
534
BOURGEOIS. Untitled, 1994. Inscrição original no verso: My mother and I. Disponível em:
<http://www.moma.org/collection_lb> Acesso em: jun. 2017. [Tradução minha]
535
BOURGEOIS. Louise Bourgeois: drawings and observations, 1995, p. 139. [Tradução minha]
536
BOURGEOIS. Untitled, 1994. Imagem 1 de 14 do portfólio Autobiographical Series. Ponta seca e água
tinta sobre papel, 57 x 38.3 cm.
537
BOURGEOIS. Untitled, 1986. Óleo e aquarela sobre papel, 60.6 x 48.3. cm.
177
538
539
538
BOURGEOIS. The cross-eyed woman giving birth, 2005. Ponta seca com adições de nanquim vermelho
sobre tecido, 34.5 x 24.6 cm.
178
540
541
539
BOURGEOIS. The reticent child, 2003, detalhe. Tecido e estofo, 182.8 x 284.4 x 91.4 cm.
540
BOURGEOIS. Oedipus, 2003, detalhe. Tecido e estofo. 177.8 x 192.8 x 91.4 cm.
541
BOURGEOIS. The birth, 2008. Guache sobre papel, 37.1 x 27.9 cm.
179
Com a frequência diária aliada à superfície imediata do desenho, os temas de
Louise foram ganhando materialidade, variações e conjugações que se desdobraram em
múltiplos de edições impressas. É importante notar a relação estreita e permanentemente
criativa entre o desenho e a gravura na produção dos livros, séries e impressos. Mas é a
tridimensão que parece reger o pulso destinatário de seu empenho inventivo, sobretudo na
escultura e nas instalações com objetos antigos. Isso não significa dizer que os desenhos
sejam menos importantes, menos necessários, menos dignos de interesse do que a verdade
expressa pelo corpo tridimensional de sua obra. O desenho tem sua autonomia de
linguagem, e o pouso das ideias talvez não acontecesse na demora processual que o
trabalho com a escultura implica, no tempo dilatado que o exercício compositivo da
instalação envolve. O desenho, a escrita, a gravura, o livro são, em Louise, recursos e
espaços criadores que enredam uma constante diversidade de funções, prestam-se ao uso
repetido e cambiante das mesmas figuras, dão margem periférica ao pensamento criador,
projetam a experimentação dos riscos, ultrapassam os limites da página. Assim a artista
resume a relação intricada e não hierárquica entre suas linguagens: “como os temas
recorrem, o que é expresso num desenho muito provavelmente já foi expresso de alguma
outra forma. Os temas são os mesmos da escultura”542.
543 544
542
BOURGEOIS. Louise Bourgeois: destruição do pai, reconstrução do pai, p. 294.
543
BOURGEOIS. The feeding, 2007. Guache sobre papel, 59.4 x 45.7 cm.
544
BOURGEOIS. The feeding, 2008. Ponta seca com adição de guache sobre papel, 25.8 c 20.5 cm.
180
545
545
BOURGEOIS. What is the shape of this problem?, 1999. Página título/capa do portfólio/série
homônimo. (Página single que acompanha a série de quatro dípticos impressos em tipografia e litografia)
Galerie Lelong: New York., 30.5 x 43.2 cm.
546
HOUAISS; VILLAR. Tema. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br>. Acesso em abr. 2017.
547
HOUAISS; VILLAR. Tema. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br>. Acesso em abr. 2017.
548
HOUAISS; VILLAR. Tema. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br>. Acesso em abr. 2017.
181
3.1 Fazer diário
549 550
A partir de 1999, Louise Bourgeois cria a maior parte de sua obra gráfica,
incluindo livros em tecido, portfólios, séries e peças avulsas. Seus últimos múltiplos
impressos são gravuras em ampla escala, retrabalhadas à mão em grafite, nanquim,
guache e aquarela. Em seus últimos experimentos gráficos, já não se tratava apenas de
reproduzir tecnicamente a imagem gravada em uma matriz. As cópias retornavam à mesa
do ateliê, onde eram manualmente alteradas, produzindo séries de peças semelhantes entre
si e, ao mesmo tempo, preciosamente distintas. Essa prática gerou uma riqueza em
variantes de tiragem, como se pode ver nos desdobramentos das gravuras À Baudelaire e
The unfolding, impressas respectivamente em 2007 e 2008.
551
549
BOURGEOIS. The unfolding, 2007. Gravura em metal sobre papel, 151.5 x 96 cm.
550
BOURGEOIS. À Baudelaire, 2008. Gravura em metal sobre papel, 150 x 95.1 cm.
182
O uso criador da relação matriz/cópia se desdobra em uma constante
experimentação sobre as superfícies impressas. Consta, nos memoriais552 descritivos das
publicações, que Louise tenha recorrido aos escritos e desenhos de seus diários íntimos.
Assim como consta o uso criativo de seu vasto acervo em tecido, heranças de família
guardadas ao longo da vida, roupas antigas, enxovais de casamento, guardanapos de
linhos, lenços, lençóis, atoalhados, rendas, tapeçarias. Como pele cambiante da obra, a
superfície macia do tecido é um traço recorrente, não apenas nos impressos e livros
editados mas também nas esculturas.
553
551
BOURGEOIS. À Baudelaire n.1, 2008. Gravura em metal com adição de nanquim, aquarela, guache,
caneta e lápis colorido sobre papel, 151.8 x 101 cm cada peça desse políptico.
81
BOURGEOIS. The child, 2003. Escultura em tecido e estofo, 33 x 19.1 x 27.9 cm.
183
A prática artística de Louise se desenvolveu em um ritmo diário de trabalho em
ateliê, associado ao uso do objeto diário propriamente dito. Nessa combinação de hábitos,
vigora uma linha-cria intensamente gerada e regenerada ao modo d’Ela 554 . I did
everything I could every day of my life. A frase foi destacada de um de seus cadernos de
notas para se tornar imagem-texto impressa tipograficamente. Nessa peça confluem
características recorrentes de sua produção gráfica tardia. O tecido antigo e a palavra
escrita, o gesto gráfico e o material receptivo, o “recurso diário” e o tema de uma vida
implicada no fazer da obra. Se uma aranha pudesse escrever algo para reivindicar sua
assinatura de incansável tecelã, Ela talvez formulasse a sentença: “Eu fiz tudo o que pude
todos os dias da minha vida”.
555
556
554
Entre 2014 e 2015, conduzi uma série de cursos intensivos em meu ateliê, nomeados “Corpo ao modo
d’Ela”. As oficinas envolviam exercícios de desenho e escrita, articulando as artes gráficas, plásticas e
literárias a partir de imagens/textos de Louise Bourgeois e textos/imagens de Clarice Lispector. Parte desse
material experimentado e imantado coletivamente no ambiente do ateliê coincide com a seleção e colabora
com a abordagem apresentada neste capítulo.
555
BOURGEOIS. I did everything a could every day of my life II, 2004. Litografia sobre tecido, 21.6 x 29.2
cm.
184
Bordadas com linha vermelha ou traçadas a lápis grafite, as iniciais “LB”, de
Louise Bourgeois, parecem marcar uma autoria animal tramada em fio incessante: ter
feito tudo aquilo que pôde “todos os dias” a cada dia de uma vida centenária. Qual pista o
encadeamento desses termos revela de sua condição realizadora? O “tudo” talvez
desobrigue o alcance de um “todo” ideal, pautado pela projeção de uma produtividade
plena. “Eu fiz tudo o que pude” inclui a condição real do que não pude; a falha e a lacuna
do que não sei; a tentativa fracassada; o improviso como modo de ir; a expressão do gesto
e os modos de tocar o indizível; a captura das forças que povoam o mundo; a
disponibilidade do corpo no recurso tateante da obra.
557 558
561
560
BOURGEOIS. What is the shape of this problem? [Título/capa do portifólio homônimo.. Texto
impresso em tipografia, 30.5 X 43.2 cm. 1999.
561
BOURGEOIS. Mr. No thank you. 2002. Litografia e costura sobre tecido, 21.6 x 29.2 cm.
186
562 563
564 565
562
BOURGEOIS. Untitled, 1994 - 1995. Nº 57 de 220 da série The Insomnia drawings. Nanquim e lapis
sobre papel, 26.6 x 20.3 cm.
563
BOURGEOIS. Untitled (nº 103 de 220 da série Insomnia drawings), 1995. Nanquim e grafite sobre
papel, 26.6 x 20.3 cm.
187
566
569
564
BOURGEOIS. Untitled, 1995. Número 66 de 220 da série The Insomnia drawings. Nanquim sobre
papel, 27.9 x 21.6 cm.
565
BOURGEOIS. Untitled, 1995. Número 174 de 220 da série The Insomnia drawings. Nanquim, lápis,
carvão sobre papel, 29.6 x 22.8 cm.
566
BOURGEOIS. She lost it, 1992. Serigrafia sobre papel, 29.2 x 44.5 cm.
567
BOURGEOIS. She lost it, 1992.
568
BOURGEOIS. She lost it, 1992. [Tradução minha do poema impresso]
569
BOURGEOIS. She lost it 2, 1992. Serigrafia sobre seda, 51 x 182.9 cm.
188
570
O reencontro gráfico com o escrito She lost it se deu no ano de 1992, quando
Louise foi convidada a produzir uma obra comissionada pelo The Fabric Workshop and
Museum. A artista gravou o texto para gerar impressões serigráficas sobre tecido,
valendo-se de escalas, diagramas e extensões distintas. Uma das versões apresenta os
versos divididos em duas estrofes com alinhamento central, de modo a caber toda a
tipografia dentro de um círculo, como se pode ver na prova de teste sobre papel e na
edição final, impressa sobre lenços de seda. Em outra versão dessa série, o diagrama
estende as palavras linearmente sobre uma faixa de tecido. A impressão do texto, em
quase seis metros de comprimento, foi destinada à performance homônima She lost it.
Seis performers, vestidos com roupas desenhadas por Louise, acionam um sistema
semelhante ao das bobinas de linhas nas máquinas de costura. A dinâmica dos corpos
sustenta o desenrolar e o enrolar da faixa, dando a ler toda a extensão do texto.
571
570
BOURGEOIS. She lost it 1, 1992. Serigrafia sobre tecido, 87.2 x 5435.6 cm.
189
A relação entre o “recurso diário” de Louise Bourgeois e o desenvolvimento
intenso de seu processo criativo inclui o uso do desenho e da escrita, tanto sobre a
superfície de cadernos quanto em séries de folhas avulsas, como nos “desenhos de
insônia”. A manutenção dos diários parece cumprir a função de interromper a corrente das
horas e dilatar a contagem dos tempos, dando ritmo às linhas e formas de expressão às
forças que povoam seu pensamento criador. O “recurso diário” intensifica o processo,
coloca as ideias em movimento, atualiza as tentativas, força o pouso do pensamento a
deixar seu rastro, evidencia as variações de um traço. O plano compositivo do papel
funciona como ateliê portátil, o pequeno formato oferece o espaço criador ao alcance das
mãos, inaugurando o leito sobre o qual repousa a ameaça do anoitecer e desperta a
promessa de um novo dia. Em um pequeno texto datado de 1990, Louise escreve:
571
BOURGEOIS. She lost it , 1992. Registro fotográfico da performance de Louise Bourgeois realizada em
colaboração com The Fabric Workshop, na Filadélfia, realizada no dia 5 de dezembro de 1992.
572
BOURGEOIS. O retorno do desejo proibido, p. 155. (Pontuação de acordo com transcrição publicada.)
190
Olha para meu desenho. Ninguém podia contar
Meus montículos dessa paisagem Como bati
mentos cardíacos eles se movem infinitamente
Como as ondas do mar eles pulsam
Infinitamente, para sempre, invioláveis imutáveis
Como minha gratidão por ti, essa sequência
interminável de elementos representam. Tento
fazer que entendas o quanto sou
grata. é meu reconhecimento, meus
agradecimentos, meu apreço por tua
bondade que te tocarão e te farão saber
que não me podes abandonar.
o infinito em [ ] ou na quantidade
de pratos que tenho de lavar na infinita
poeira do ateliê – Como as manhãs
gélidas, como a multidão interminável do
metrô, como todos os micróbios trazidos por
infinitos hálitos, como todos os fenômenos
eternos, meu agradecimento pela bondade
me cobre o corpo como escamas, ou
penas, ou pelos. Mato-me para tentar
fazer que entendas, é minha responsabilidade
fazer que entendas. O ônus da prova é meu. Sei
573
disso e vou tomar cuidado.
191
permite entender tudo”574. O empenho por confiar o próprio corpo à natureza prolífera do
processo implica a necessária continuidade da obra e parece trazer a solidão como aliada.
Talvez a arte como religião, ao modo de Louise, realize-se na intensidade dessa
companhia, tendo a confiança da obra como um modo de ir. Um escrito datado de 1990
revela algo de sua crença no encaminhamento produzido e na aprendizagem realizadora:
574
BOURGEOIS. Louise Bourgeois: destruição do pai, reconstrução do pai, p. 215.
575
BOURGEOIS. O retorno do desejo proibido, p. 158.
576
BOURGEOIS. O retorno do desejo proibido, p. 158.
577
BOURGEOIS. O retorno do desejo proibido, p. 157.
192
pode fazer esse vocabulário expressar emoções”578? É possível desdobrar o desafio em
muitos outros: como abordar as produções do mundo, como alterar os termos de uma
matéria moldada, como diferir curvas prontas, como desfazer o funcionamento pleno dos
planos, como vergar as bordas de uma realidade imposta, como criar “um vocabulário de
formas”579? Para que se chegue à produção de um “vocabulário de formas”, seria preciso
pôr em desvio o produto reproduzido das fôrmas. O texto insiste no desafio de expressar
“emoções elementares”580 a partir do problema que se tem em mãos, não se tratando de
uma mera solução técnica, mas do empenho em alcançar os elementos mobilizadores da
criação e o que suas forças formativas podem fazer.
581
Quais seriam os temas desse vocabulário criado e disponível aos “olhos do século
582
vinte” ? O texto de Louise segue enumerando um inventário temático dos dramas
humanos de seu tempo: “a fome / a inveja / a repulsa / a indignação / a violência / a
vingança / a perplexidade / a dúvida / o querer / a cólera / o dilema”583. A criação
mobiliza qualidades afirmativas, como a abundância, a generosidade, a atração, a
hospitalidade, a ternura, o despojamento, a decisão, a despretensão, o cuidado, a escolha.
O fragmento de 1968 se encerra nos seguintes versos: “mesmo que a figura humana / não
seja representada / ninguém poderia deixar de ser / afetado pela emoção transmitida /
578
BOURGEOIS. O retorno do desejo proibido, p. 157.
579
BOURGEOIS. O retorno do desejo proibido, p. 157.
580
BOURGEOIS. O retorno do desejo proibido, p. 157.
581
BOURGEOIS. Femme couteau, 2002. Tecido, aço e madeira, 22.9 x 69.9 x 15.2 cm.
582
BOURGEOIS. O retorno do desejo proibido, p. 157.
583
BOURGEOIS. O retorno do desejo proibido, p. 157.
193
expressa” 584, a obra de Louise, inaugura-se um impressionante “vocabulário de formas”.
Destacam-se as figuras híbridas que subvertem a estabilidade da representação, dentre as
quais predominam as derivas do corpo feminino como porta de entrada e saída para
alianças com as naturezas não humanas.
585
584
BOURGEOIS. O retorno do desejo proibido, p. 157.
585
BOURGEOIS. Instruction, 2004. Nanquim sobre papel, 15.3 x 25.1 cm.
586
BOURGEOIS. Louise Bourgeois: destruição do pai, reconstrução do pai, p. 126.
194
587
Escrevi diários durante toda a vida, desde que era criança, desde que
pude olhar alguém no rosto – e captar emoções visuais e lembrar das
minhas próprias. Os diários são para minhas reflexões particulares. [...]
Bem, não estou falando dos diários que registram aspectos banais da
vida: quando você jantou e com quem, ou as estreias de exposições a
que foi, e as pessoas famosas que estavam lá. Recentemente me pediram
que revisse um livro de diários de certo escritor que também compõe.
Pareceu-me que seus “diários” eram feitos com o único objetivo de se
gabar das celebridades que ele conhecia, das grandes casas que visitava
e de todas as pessoas tituladas – reais ou imaginárias – que ele seduziu.
Esse tipo de diário me repugna. É um registro de superfluidades, um
manual de superfluidades [...]
587
BOURGEOIS. Untitled, 1994 – 1995. Número 188 de 200 da série Insomnia drawings. Nanquim e
Grafite e nanquim sobre papel, 26.6 x 20.3 cm.
195
pouco de música, ou simplesmente escuto o zumbido do tráfego na rua.
Mantenho preciosamente meus diários de desenhos. Eles me
descontraem e me ajudam a dormir.
591
588
BOURGEOIS. Louise Bourgeois: destruição do pai, reconstrução do pai, p. 304.
589
HERKENHOFF. In: BOURGEOIS. Louise Bourgeois, p. 104. [Tradução minha]
590
HERKENHOFF. In: BOURGEOIS. Louise Bourgeois, p. 104. [Tradução minha]
591
BOURGEOIS. I had a fkaschback of something that never existed, 2002. Número 18 de 34 do livro
ilustrado Ode a l’oubli . Litografia sobre tecido, 27.3 x 30.7 cm.
196
A manutenção do “hábito diário” gera um acúmulo de fragmentos heterogêneos
entre si. Esse é também um modo de processar recursos entre a prova e o proveito de uma
economia criadora em experimentação. Uma nota sem nenhuma importância pode ser
conservada e permanecer preterida enquanto convém ao esquecimento e pode ganhar
preferência, emergindo como coisa ao alcance das mãos, como lembrança oportuna ao
instante criador.
592
592
BOURGEOIS. Femme maison, 2005. Tecido e estofo,16.5 x 38.1 x 12.7 cm.
593
BOURGEOIS. Louise Bourgeois: destruição do pai, reconstrução do pai, p. 293.
197
594
595
594
BOURGEOIS. Ode à l’oubli, 2002. Litografia sobre tecido, 29 x 32.5 cm.
595
BOURGEOIS. Ode à l’oubli, 2002. Páginas 4 de 34. Colagem de tecido, costura, 27.3 x 30.7 cm.
198
596
596
BOURGEOIS. Ode a l’oubli, 2002. Páginas 5, e 6 de 34. Colagem de tecido, 2004. 27.3 x 30.7 cm.
597
BOURGEOIS. You can stand anything if you write it down Nota em um diário da artista. Disponível em:
<https://www.moma.org/explore/collection/lb/themes/words> Acesso em: jun. 2017.
199
3.2 O recomeço
605
LISPECTOR. Temas que morrem. A descoberta do mundo, p. 197-198. [Grifos da autora]
606
DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs vol.1, p.52.
201
de prudência de que fala Deleuze? Para as crianças, por exemplo, os escombros são
chances. Seria preciso, talvez, seguir as pistas do que se apresenta inventando modos de
compor com os restos, alimentando a possibilidade nascida e renascida, a cada dia, na
relação criadora com as pequenas coisas.
Sofremos por ter tão pouca fome, embora nossa pequena fome já dê para
sentirmos uma profunda falta do prazer que teríamos se fôssemos de
fome maior. O leite a gente só bebe o quanto basta ao corpo, e da flor só
vemos até onde vão os olhos e a sua saciedade rasa. Quanto mais
precisarmos, mais Deus existe. Quanto mais pudermos, mais Deus
teremos. 609
Então isso era a felicidade. E por assim dizer sem motivo. De início se
sentiu vazia. Depois os olhos ficaram úmidos: era felicidade, como sou
mortal, como o amor pelo mundo me transcende. O amor pela vida
mortal a assassinava docemente, ao poucos. E o que é que eu faço? Que
faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda, que já está
começando a me doer como uma angústia, como um grande silêncio? A
quem dou minha felicidade, que já está começando a me rasgar um
pouco e me assusta? Não, não quero ser feliz. Prefiro a mediocridade.
Ah, milhares de pessoas não têm coragem de pelo menos prolongar-se
607
LISPECTOR. A paixão segundo G.H., p. 150.
608
SANTOS. Fome-mais, 2014. Fala concedida ao Instituto Moreira Salles. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=6Tqoej17V6A> Acesso em: jun. 2017.
609
LISPECTOR. A paixão segundo G.H., p. 150.
202
um pouco mais nessa coisa desconhecida que é sentir-se feliz e preferem
a mediocridade. 610
Duas vozes se alternam nesse fragmento. A primeira delas (em itálico) traz o tom
de quem observa de longe e constata: “Então era isso a felicidade”, um estado de graça, a
impressão de uma passagem, um instante vazio umedecendo os olhos, sem razão aparente.
Esse movimento sensível anuncia a entrada da segunda voz (a dos trechos sem grifo), que
confirma, em primeira pessoa, o já dito: “era felicidade, como sou mortal, como o amor
pelo mundo me transcende”. A voz do começo retoma a palavra: “O amor pela vida
mortal a assassinava docemente, aos poucos”. A segunda voz prossegue, formulando
perguntas acerca de seu estado incômodo: a quem dar essa “paz estranha”, o que fazer
dessa condição transitória que começa a me “doer como uma angústia, como um grande
silêncio?” Sua resposta para a questão é, afinal, uma escolha assustada e um pouco triste:
“Não, não quero ser feliz. Prefiro a mediocridade”. A primeira voz então conclui,
lamentando-se pelas “milhares de pessoas” que preferem evitar o prazer de um gosto
estranho, recusando o prolongamento “dessa coisa desconhecida” e controversa que é
sentir-se feliz.
610
LISPECTOR. Medo do desconhecido, A descoberta do mundo, p. 35. [Todos os grifos foram inseridos
para indicar a alternância das duas vozes. No fragmento original, não há espaçamento ou sinais gráficos que
marquem essa distinção.]
611
LISPECTOR. O que é a angústia. A descoberta do mundo, p. 113.
203
“Angústia faz parte” participa da experiência de se ter um corpo envolvido pelas
sensações de estreitamento, de perda do contorno, de desamparo. Mas o embate com essas
emoções parece ser, justamente, a condição limiar para uma coragem de agir. Uma vez
que não se trata de simplesmente se desvencilhar delas, também é preciso ter coragem de
agir. A descoberta do mundo faz parte de se ter um corpo e se torna uma razão amorosa
para seguir, inclusive, quando se sente angústia. Sem que se faça ouvidos moucos para ela.
A esperança de “que o coração entenda” esse “vazio sinistro” seria uma alternativa
medíocre, segundo Clarice, à possibilidade de ir na companhia do desconhecido, de sorrir
para a estranha felicidade “sem razão aparente”. A torção da angústia para um estado de
alegria teria a ver não com a compreensão apaziguadora nem com evitar o enfrentamento
da compressão que a angústia provoca, mas com a capacidade de se criar certos acordos
vitais com o inesperado, de traçar uma saída para a vida.
O fragmento “O que é angústia” foi publicado por Clarice em sua coluna semanal
no Jornal do Brasil, no ano de 1967. O “rapaz” que formulou a questão-título é o
jornalista Yllen Kerr, que a entrevistou em 1963, a serviço do mesmo jornal. Além dessa
interlocução, a entrevista traz outros trechos que, somados, colaboram para a amplitude
do começo como tema:
O que é angústia?
[...]
A toda hora. Por tolice, por distração, por ignorância. Por delicadeza: me
oferecem gato e agradeço a lebre, e quando a lebre mia, finjo que não
ouvi. A variedade do assunto está exigindo uma enciclopédia. Quando o
gato se imagina lebre, por exemplo, já que se trata de gato
profundamente insatisfeito, então lido com a lebre dele: é direito de gato
mesmo, mas lebresse oblige, o que cansa muito. Há também os que não
querem admitir que gostam mesmo é de gato, e nos obrigam a chamar
de lebre o gato que lhes oferecemos, só para poder comer em paz com
tempos e costumes. No tratado sobre o assunto, um professor de
melancolia diria que já serviu de lebre a muito gato ordinário. Um
professor de irritação diria o que não deve dizer. Etc. Tenho vergonha é
quando não aceito lebre pensando que era gato, é o preço da
desconfiança; quando aceito gato por lebre, o verdadeiro problema é dos
outros. Você vê, gostei muito da pergunta: é que várias lebres andaram
miando no telhado, e você me deu a oportunidade de miar de volta. Gato
também é hidrófobo.
A alegria também faz parte: o que é vivo por ser vivo se descontrai.
[...]
O que é autêntico?
205
também procura o real de si mesmo? Enfim, é outra frase. A resposta
mais autêntica a quase tudo que você me perguntou seria: não sei.612
Para se falar em começo, é preciso ter nascido. Dizer isso é óbvio como um ovo.
É preciso ter nascido para que se possa perguntar alguma coisa; para que se possa
responder, simplesmente – não sei; para que se possa exclamar uma surpresa a cada gesto;
para que se possa abrir uma saída a cada nova entrada; para que se possa ter as “vantagens
de ser bobo”: “Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil”613. Ter nascido
coincide com a oportunidade de “ver, ouvir e tocar no mundo”614, fazendo reverberar o
toque, o olhar, a escuta e o mistério do ovo. Ter nascido é também a incorporação
involuntária de um desejo elástico que busca “liberdade e sabedoria para viver”615. Ter
nascido se torna uma experiência corporal, alegre de si, boba de si, angustiada de si,
perdida e encontrada entre o pulso contido e a expansão do gesto que não cessa de se
atualizar criativamente enquanto se realiza.
A forma de expressão ter nascido623 passa pelo perdão de “meus pais”, pelo
milagre de existir, pela avareza em gastar o corpo, pela mudez dos encontros, pelo animal
que se é, pelo susto de cada sensação, pela intimidade com o mundo, pelo “grito mudo” e
terreno, entranhado, estranhado e extraído de si. Pois há o corpo, e “a primeira verdade
está na terra e no corpo”624. Enlevo, dom, avareza, dor, esperança, orgulho, fatalidade,
fome, ajuda, gratidão, nostalgia, segredo, chamado, silêncio. Os diversos modos de ir e as
sensações evocadas por esse acontecimento não definem ou encerram a sentença de se ter
nascido, mas elaboram verdades provisórias, oferecem verdadeiras provisões à ânsia
fabuladora e inquieta de se ter um corpo. A escrita de Clarice parece crer no que ensina a
criação: vale a pena ter nascido para a aprendizagem de um vasto e desafiador não-saber,
vale a pena ter nascido para a condição instável de um “pensar-sentir”625, vale a pena ter
nascido para se manter à beira das coisas, vale a pena ter nascido para consumir a vida e
consumar um corpo em obra, neste caso, a escrita.
616
LISPECTOR. Pertencer. A descoberta do mundo, p. 110. [Grifo meu]
617
LISPECTOR. As maravilhas de cada mundo. A descoberta do mundo, p. 288. [Grifo meu]
618
LISPECTOR. Antes era perfeito. A descoberta do mundo, p. 408. [Grifo meu]
619
LISPECTOR. Uma experiência. A descoberta do mundo, p. 112. [Grifo meu]
620
LISPECTOR. Bichos. A descoberta do mundo, p. 335. [Grifo meu]
621
LISPECTOR. Um pintinho. A descoberta do mundo, p. 75. [Grifo meu]
622
LISPECTOR. Perdoando Deus. A descoberta do mundo, p. 313. [Grifo meu]
623
Os trechos citados nesse parágrafo alinham as ocorrências da expressão ter nascido nas crônicas
publicadas semanalmente por Clarice no Jornal do Brasil, entre agosto de 1967 e dezembro de 1973.
624
LISPECTOR. Perto do coração selvagem, p. 68.
625
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 55.
626
LISPECTOR. Água viva, p.44.
207
pensar: “O gume da minha faca está ficando cego? Parece-me que o mais provável é que
não entendo porque o que vejo agora é difícil”. Escreve, ainda, Clarice: “tem gente que
cose para fora, eu coso para dentro”627, para tornar sensível o incessante alinhavo das
forças recém-nascidas, para misturar o fio da escrita ao começo das coisas.
Não se aborda alguma coisa sem pôr em risco as bordas da coisa, sem lançar as
sensações sem rumo, rompendo os limites da própria abordagem. Escreve-se numa
curiosidade intensa “sobre aquilo que se busca, e não sobre o que se sabe”629. Quando a
busca alcança o “saber não saber”630, a necessidade faz ecoar o vazio da fome, faz
reverberar o labirinto da escuta. Essa intimidade côncava permite o deslize da matéria em
obra, e as palavras assumem o fluxo vivo da água a escavar sua passagem entre as pedras.
Os elementos formativos recuam a cada frase e turbilhonam o interminável recomeço da
abordagem, de modo que a escrita se torna a variedade nascente de um tema atemático em
sua linha-cria.
Vida oblíqua? Bem sei que há um desencontro leve entre as coisas, elas
quase se chocam, há desencontro entre os seres que se perdem uns aos
outros entre palavras que quase não dizem mais nada. Mas quase nos
entendemos nesse leve desencontro, nesse quase que é a única forma de
suportar a vida em cheio, pois um encontro brusco face a face com ela
nos assustaria, espaventaria os seus delicados fios de teia de aranha. Nós
627
LISPECTOR. A hora da estrela, p. 5
628
LISPECTOR. Água viva, p. 44.
629
DELEUZE. Conversações, p. 173.
630
CIXOUS. La risa de la medusa, p. 172. [Tradução minha]
631
LISPECTOR. Água viva, p. 63.
208
somos de soslaio para não comprometer o que pressentimos de
632
infinitamente outro nessa vida que te falo.
Escreve-se na companhia dessa liberdade sem forma fixa, no trato com as forças
que povoam e desertam o espaço criador. “O pré-pensamento é em preto e branco. O
pensamento com palavra tem cores outras. O pré-pensamento é o pré-instante. O pré-
pensamento é o passado imediato do instante. Pensar é a concretização, materialização do
que se pré-pensou.”638 O “pré-pensamento” capta a percussão da vida nas coisas: “porque
está intimamente ligado”639 ao silêncio da “muda inconsciência. O pré-pensar não é
racional, é quase virgem”640. O “pré-pensamento” tem a virtude do que é ainda virtual, do
que não passou pela “tortuosa criação que se debate nas trevas e que só se liberta depois
de pensar – com palavras”641.
632
LISPECTOR. Água viva, p. 64.
633
LISPECTOR Clarice Lispector: encontros, p. 26- 30.
634
LISPECTOR Clarice Lispector: encontros, p. 26- 30.
635
BLANCHOT. O espaço literário, p. 18.
636
LISPECTOR. Água viva, p. 63.
637
BLANCHOT. O espaço literário, p. 18.
638
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 23.
639
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 23.
640
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 23.
641
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 23.
209
Um fragmento de texto condensa o começo como um meio em expansão, fazendo
coincidir o fim com o recomeço. A experiência com esse meio movente evoca a “sentença
do nascimento” e convoca o ter nascido para que se provem as possibilidades criadoras de
um corpo em obra. Talvez porque o ato de nascer se torne uma dívida, uma dúvida, uma
dádiva, uma generosidade, uma evidência, uma provação, uma reivindicação, uma
descoberta compulsoriamente implicada em se ter aquilo que se tem.
Um cachorro tem que ter cheiro de cachorro. Pois foi esse o pensamento
iluminado que ocorreu ao homem no meio de um dia em que, há vários
dias, ele se achava num nevoeiro morno de sentimentos. O pensamento
sobre o cachorro iluminou-o de repente e abriu de repente uma clareira.
O homem ficou muito alegre – talvez tivesse acabado de pôr os pontos
nos is. Ficou alegre e passou a olhar cada coisa como se enfim tivesse
acordado de uma longa doença. Um cachorro tem que ter cheiro de
cachorro. O homem, através desse pensamento, aceitou-se totalmente
como ele era, como se admitisse que um homem tem que ter cheiro de
homem, e que a vida de um homem é a sua vida nua. Na rua, por onde
caminhava para ir ao trabalho, passou por uma mulher que, inocente do
passante, carregava um embrulho de compras. Ele sorriu porque ela não
sabia que ele sabia que, assim como um cachorro é um cachorro, aquela
mulher era aquela mulher. O homem se emocionou com o fato de ele ter
acabado de lavar o mundo, as águas ainda escorriam frescas. Ele ia
trabalhar no Banco. E o Banco, é horrível, por Deus. Mas, lavado com
642
águas frescas, um banco é um banco.
Ter aquilo que se tem é um “tema de vida”, uma questão em curso na escrita de
Clarice. Esse questionamento se altera continuamente em diversas formulações. Dentre
elas, há algo notável: o entendimento de que não se sabe o que pode um corpo nascido no
exercício de sua capacidade criadora, no livre uso das próprias evidências, no trato com a
matéria de que as coisas são feitas. A linha-cria desempenha a maleabilidade repetida e
alterada, fracassada e resistente, antiga e recém-nascida na profusão de ensinamentos e
aprendizagens. Nascimento e criação se movem no livro imenso de sua obra, saltando de
uma cena a outra, de uma personagem a outra, de uma publicação a outra.
Afeita à emergência do ovo, feita no viés do saber ignorado, essa escrita “já não
pertence ao domínio magistral em que exprimir-se significa exprimir a exatidão e a
certeza das coisas e dos valores segundo o sentido de seus limites”643. O pensamento
642
LISPECTOR. Águas frescas. A descoberta do mundo, p. 293.
643
BLANCHOT. O espaço literário, p. 16.
210
criador e a aproximação do que “ainda não sabemos ou que sabemos mal”644 alcança
diversas formulações: “sensação atrás do pensamento” 645 , “pensamento antes do
pensamento” 646 , “pré-pensamento” 647 , “pouco mais que uma atmosfera” 648, “instante
já”649, “vislumbres”650, “posse do silêncio”651, “vagalhões de mudez”652, “rapidíssima
ideia muda”653. Nesses estágios sensíveis, o pensar é imperceptível, e o pensamento é
apenas uma “farpa de madeira intensa” 654 , uma busca inquieta por uma forma de
expressão provisória que capture o inapreensível e incorpore o inesperado. Restam do
empenho compositivo a feitura alcançada e o generoso ensinamento de uma
aprendizagem capaz de sustentar a centelha da pergunta – o que se passou?
A vida recomeça, sobretudo, quando cai a noite, e a matéria em obra secreta seu
fio de luz fluorescente. Desenham-se a delicada distância entre os achados e os perdidos,
o ricocheteio entre a vigília e a insônia, o vão entre o silêncio e a palavra, o reflexo
instantâneo entre o que se move “atrás do pensamento”656 e a clarividência de um corpo
pensante: “Eu tenho que ser legível quase no escuro”657, escreve Clarice em Um sopro de
vida. Pois, afinal, trata-se de “ver o mundo com as mãos”. Em Um sopro de vida, a
644
DELEUZE. Diferença e repetição, p. 18.
645
LISPECTOR. Água viva, p. 44.
646
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 22.
647
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 23.
648
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 22.
649
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 18.
650
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 24.
651
LISPECTOR. A paixão segundo G.H., p. 15.
652
LISPECTOR. A paixão segundo G.H., p. 119.
653
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 22.
654
PASSÔ. Por Elise, p.53.
655
CIXOUS. La risa de la medusa, p. 172. [Tradução minha]
656
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 28.
657
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 28.
211
aliança entre Autor, personagem-escritor, e Ângela, personagem de sua escrita, engendra o
protagonismo do “saber não saber” 658, tateia a condição da espera e conduz o inesperado.
Entre as personagens conjuga-se a matéria do começo e a véspera da morte, a finitude sem
pressa e a inquietude nascente.
AUTOR: Vejo que Ângela não sabe como começar. Nascer é difícil.
Aconselho-a a falar mais facilmente sobre fatos? Vou ensiná-la a
começar pelo meio. Ela tem que deixar de ser tão hesitante porque senão
vai ser um livro todo trêmulo, uma gota d’água pendurada quase a cair e
quando cai divide-se em estilhaços de pequenas gotas espalhadas.
Coragem, Ângela, comece sem ligar para nada.662
666
LABANCA. A mais: uma experiência de leitura dos restos em Nuno Ramos.
667
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 24.
668
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 20.
214
“supremo etc. das vozes”669 que um dia se ouviu, os reinos extintos sobre o sem fundo de
uma anterioridade-póstuma, o eco de uma atualidade dissonante de todos timbres, dos
gritos humanos e não humanos.
Assim começa Um sopro de vida, com voo solo do personagem Autor em seu
monólogo inaugural:
A trama aberta por essas palavras mostra uma inclinação ao invisível, às coisas
vistas de longe, à captura do murmúrio inaudível, ao enredo de reverberações intangíveis,
à escuta aguçada que faz a margem de contorno impreciso, aos elementos periféricos, ao
corpo tátil, à sentença de vida sussurrante: “Cada invenção minha soa-me como uma
prece leiga – tal é a intensidade de sentir, escrevo para aprender”671. A aprendizagem
desenha a órbita de um corpo: “Escrever é uma pedra lançada em um poço fundo”672.
669
HELDER. Oficio cantante – poesia completa, p. 460.
670
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 17.
671
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 24.
672
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 18.
215
Nunca a vida foi tão atual como hoje: por um triz é o futuro. Tempo para
mim significa a desagregação da matéria. O apodrecimento do que é
orgânico como se o tempo tivesse como um verme dentro de um fruto e
fosse roubando a este fruto a sua polpa. O tempo não existe. O que
chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o
tempo em si não existe. Ou existe imutável e nele nos transladamos. O
tempo passa depressa demais e a vida é tão curta. Então – para que eu
não seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que
fazem o tempo passar depressa – eu cultivo um certo tédio. Degusto
assim cada detestável minuto. E cultivo também o vazio silêncio da
eternidade da espécie. Quero viver muitos minutos num só minuto.
Quero me multiplicar para poder abranger as áreas desérticas que dão
ideia de imobilidade eterna. Na eternidade não existe tempo. Noite e dia
são contrários porque são o tempo e o tempo não se divide. De agora em
diante o tempo vai ser sempre atual. Hoje é hoje. Espanto-me ao mesmo
tempo desconfiado por tanto me ser dado. E amanhã eu vou ter de novo
um hoje. O paroxismo da mais fina e extrema nota de violino insistente.
Mas há o hábito e o hábito anestesia. O aguilhão de abelha do dia
florescente de hoje. Graças a Deus, tenho o que comer. O pão nosso de
cada dia.673
[...]
Cada novo livro é uma viagem. Só que é uma viagem de olhos vendados
em mares nunca dantes revelados — a mordaça nos olhos, o terror da
escuridão é total. Quando sinto uma inspiração, morro de medo porque
sei que de novo vou viajar e sozinho num mundo que me repele. Mas
meus personagens não têm culpa disso e eu os trato o melhor possível.
Eles vêm de lugar nenhum. São a inspiração. Inspiração não é loucura. É
Deus. Meu problema é o medo de ficar louco. Tenho que me controlar.
Existem leis que regem a comunicação. A impessoalidade é uma
condição. A separatividade e a ignorância são o pecado num sentido
geral. E a loucura é a tentação de ser totalmente o poder. As minhas
limitações são a matéria-prima a ser trabalhada enquanto não se atinge o
objetivo.
Eu vivo em carne viva, por isso procuro tanto dar pele grossa a meus
personagens. Só que não agüento e faço-os chorar à toa.674
Fazer chorar a personagem e “dar pele grossa” à carne viva, pois as “minhas
limitações são a matéria-prima a ser trabalhada enquanto não se atinge o objetivo”. É
possível ler todo esse fragmento, refazendo a trajetória do fim ao começo, e ele ensinará
aquilo que encena, seu drama, sua própria “sentença de nascimento” 675 : “Todos nós que
escrevemos estamos fazendo do túmulo do pensamento alguma coisa que lhe dê vida” 676.
673
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 18.
674
LISPECTOR. Um sopro de vida, p. 21.
675
BLANCHOT. Uma voz vinda de outro lugar, p. 34.
676
LISPECTOR. Declaração de amor. A descoberta do mundo, p. 100. [Grifos da autora]
216
Fazer, desfazer, refazer significa conceber um corpo em obra, habitar inventivamente os
entremeios dos instantes, mover-se “ao longo dos próprios intervalos”677 e dar vida ao
pensamento de passagem pela abertura criadora. Interessa ao gesto criador a sorte de
encontrar soluções provisórias, recém-nascidas, que se experimentam enquanto estão
sendo pensadas.
Já li este livro até o fim e acrescento alguma notícia neste começo. Quer
dizer que o fim, que não deve ser lido antes, se emenda num círculo ao
começo, cobra que engole o próprio rabo. E, ao ter lido o livro cortei
muito mais que a metade, só deixei o que me provoca e inspira para a
vida: estrela acesa ao entardecer.
Não ler o que escrevo como se fosse um leitor. A menos que esse leitor
trabalhasse, ele também, nos solilóquios do escuro irracional.
Se este livro vier jamais a sair, que dele se afastem os profanos. Pois
escrever é coisa sagrada onde os infiéis não têm entrada. Estar fazendo
de propósito um livro bem ruim para afastar os profanos que querem
“gostar”. Mas um pequeno grupo verá que esse “gostar” é superficial e
entrarão adentro do que verdadeiramente escrevo, e que não é “ruim”
nem é “bom”.
219
3.3 Começo pelo meio
O filho, arrancado de sua mãe (daquilo que acredita ter sido uma união
imediata), que termina por expulsá-lo de forma prematura (mas, se ele
ainda não é grande o suficiente para a existência no mundo, é grande
demais para a urgência materna, para a “mátria” [matrie]), o filho
simboliza o começo no entremeio. Ele superou o enigma de estar-ali,
apresentando aos outros a vivacidade de uma presença estarrecedora,
mas, com essa vivacidade, EXPIANDO-a através das decepções, das
perguntas vãs, do silêncio ao mesmo tempo obtido e perdido. Ele está
EM DÍVIDA com o começo [...], não pode portanto parar de nascer;
trata-se de uma SENTENÇA DE NASCIMENTO.682
Apenas isso: chove e estou vendo a chuva. Que simplicidade. Nunca
pensei que o mundo e eu chegássemos a esse ponto de trigo. A chuva cai
não porque está precisando de mim, e eu olho a chuva não porque
preciso dela. Mas nós estamos tão juntas como a água da chuva está
ligada à chuva. E eu não estou agradecendo nada. [...] A chuva também
não agradece nada. Não sou uma coisa que agradece ter se transformado
em outra. Sou uma mulher, sou uma pessoa, sou uma atenção, sou um
corpo olhando pela janela. Assim como a chuva não é grata por não ser
uma pedra. Ela é uma chuva. Talvez seja isso que se poderia chamar de
estar vivo. Não mais que isto, mas isto: vivo. E apenas vivo é uma
alegria mansa.686
No texto “Boa notícia para uma criança”, Clarice parece ensaiar uma possível
conclusão para o enigma do gasto: “Em tudo, em tudo você terá a seu favor o corpo. O
corpo está sempre ao lado da gente. É o único que, até o fim, não nos abandona” 689. Um
modo de gastar a vida seria usar o tato criador, provar o gosto estranho do novo, exercitar
a dança dos gestos, embarcar na aderência dos pés, comungar da companhia compulsória
implicada em se ter um corpo. No título do texto “Como tratar o que se tem”, Clarice
parece evocar os termos de um manual de instruções para tratar de uma forma de
existência que “apenas é”:
Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse casa sua, e é.
Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente
selvagem – pois nunca morou em ninguém nem jamais lhe puseram
rédeas nem sela – apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo
uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha
mão. Seu focinho é úmido e fresco. Eu beijo o seu focinho. Quando eu
687
LISPECTOR. Uma pergunta. A descoberta do mundo, p. 252.
688
LISPECTOR. Uma pergunta. A descoberta do mundo, p. 252.
689
LISPECTOR. Boa notícia para uma criança. Para não esquecer, p. 69.
222
morrer o cavalo ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos que ele
escolha outra casa que não tenha medo do que é ao mesmo tempo
selvagem e suave. Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se
acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas uma vez chamado com
doçura e autoridade ele vai. Se ele fareja e sente que um corpo é livre,
ele trota sem ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer o seu
relinchar: a gente se engana e pensa que é a gente mesmo que está
relinchando de prazer ou de cólera.690
Para tratar o que se tem, seria preciso se manter fiel àquilo que escapa? Seria
preciso aprender com as ambiguidades e amar o que “é ao mesmo tempo selvagem e
suave”691? Tratar aquilo que se tem implicaria, talvez, rebaixar o domínio da posse, perder
a pose, tomar a posição aprendiz, responder ao indomável, chamar a sentença da selva,
reinaugurar o vivo em liberdade. Bastaria chamar a selva de selva para que o anonimato
da vida se desse. Hospedar o indomável, ter em casa um animal selvagem, seria fechar um
acordo sem termo, firmado na coragem de ir sob a condição de pertencer ao não
pertencimento, compreender o não entendimento, cultivar o terreno, exigir do risco a
cautela, preservar-se nas dobras restantes de um contorno em fuga. “Se houver empenho
em dar ao que escapa a fatal argamassa da coerência, o sofrível valor da exatidão e do
controle, a confiança num parentesco qualquer, afastamo-nos do grácil risco do que
ensina o não-saber. Não será a escrita de Clarice”, pergunta Roberto Corrêa dos Santos,
“um grande ‘manual’ dessas ‘lições’?”692
Sim, não se trata de somar fatos, termos e frases para apreender um todo bem
amarrado, dirigido, obedecido. Com o animal selvagem, hospeda-se também o “grácil
risco” da experimentação e uma “vitalidade provinda do não saber”693. A linha criadora
pode estar encarnada na organicidade da palavra, do desenho, da melodia, de um
movimento corporal. Seja qual for sua natureza de linguagem, uma linha-cria traz
consigo a inquietude como princípio, as intensidades moventes e as pulsações que recuam,
nelas mesmas, para “além do inaugural. Em vez de pautar-se pela procura do novo,
aproxima-se – para olhar cada vez mais – da matéria simplesmente existente”694.
Fazer um trato com aquilo que se tem é habitar e hospedar, ao mesmo tempo, o
traço descontínuo dos começos, é “olhar cada vez mais” por uma aproximação incessante
690
LISPECTOR. Como tratar o que se tem. A descoberta do mundo, p. 121.
691
LISPECTOR. Como tratar o que se tem. A descoberta do mundo, p. 121.
692
SANTOS. Na cavidade do rochedo: a pós-filosofia de Clarice Lispector, p. 12.
693
SANTOS. Na cavidade do rochedo: a pós-filosofia de Clarice Lispector, p. 49.
694
SANTOS. Na cavidade do rochedo: a pós-filosofia de Clarice Lispector, p. 49.
223
e digressiva, é jogar o jogo que as crianças ensinam: fazer, desfazer, refazer. A única
regra da construção é que os escombros são chances. Em cada chance, há um alcance
criado. Em cada criação, alimenta-se a voracidade de ir. “Para dar começo, é necessário
estender a mão”695, constatar que, por debaixo de todo medo, há um gesto habitual e
verificar, sob os hábitos do corpo, uma nudez recém-nascida. Talvez seja preciso aprender
com as pulsações sem dono e encenar a graça do recomeço, pois “a gente se engana e
pensa que é a gente mesmo”696 que está começando. Ter aquilo que se tem é descobrir a
razão das urgências, fazer repousar a nudez do corpo e dar de comer ao que tem fome.
Nada mais óbvio. Para se manter a “sentença de nascimento” 697, é preciso ter apreço pelas
condições imprevistas implicadas no que é viver sem rédeas: é preciso intimidade com a
errância, “é preciso não ter medo de criar”698, enredando, minimamente, numa “forma
fraca” 699, talvez, o cavalo indomável, que, assim, põe um corpo em movimento, a
caminho.
É com medo mesmo que se vai? Seria necessário escutar o temor como aliado (e
algoz) do chamado e o chamado como destino? Seria preciso dar ouvidos ao apelo
irresistível? Seria o caso de contrariar o contorno, romper as paredes constrangidas e
escavar um labirinto, abrindo o deserto de uma perdição? Seria melhor perder-se em
liberdade do que se encontrar numa prisão? Seria o medo apenas o presságio murmurante
de um desastre espontâneo? Seria prudente suspender a ruptura em marcha? “Para o que
695
SANTOS. Na cavidade do rochedo: a pós-filosofia de Clarice Lispector, p. 32.
696
LISPECTOR. Não soltar os cavalos. Para não esquecer, p. 64.
697
BLANCHOT. Uma voz vinda de outro lugar, p. 34.
698
LISPECTOR. Não soltar os cavalos. Para não esquecer, p. 64.
699
LABANCA. A mais: uma experiência de leitura dos restos em Nuno Ramos. p.17.
700
LISPECTOR. Não soltar os cavalos. Para não esquecer, p. 64.
224
eu estou me poupando?” 701 Não é possível responder senão “ficando desassossegada”702.
O chamado talvez se expresse no desassossego, e o desassossego talvez se torne o devir
cavalo da escritora. Se o animal do começo é um modo de ir, se ele repousa à espreita, se
entra em recusa, se projeta o passo, se dobra o salto, se avança em fuga, se deriva adiante,
se ensaia o tropeço, se recua no êxito, se responde no rincho, se arrasta a distância, se
assume o faro, se eriça a crina, se abre o ventre, se conserva o chamado, se teme a partida,
ele cumpre a chance rara de que algo aconteça.
O texto “Era uma vez”, publicado por Clarice no volume Para não esquecer e
transcrito integralmente a seguir, é um interessante exemplar de começo, não apenas
porque no título consta a fórmula inicial das narrativas infantis mas porque ele começa
pelo meio.
Respondi que gostaria mesmo era de poder um dia escrever uma história
que começasse assim: “era uma vez...”. Para crianças? perguntaram.
Não, para adultos mesmo, respondi já distraída, ocupada em me lembrar
de minhas primeiras histórias aos sete anos, todas começando com “era
uma vez...”; eu as enviava para a página infantil das quintas-feiras do
jornal de Recife, e nenhuma, mas nenhuma, foi jamais publicada. E era
fácil ver por quê. Nenhuma contava propriamente uma história com
fatos necessários a uma história. Eu lia as que eles publicavam, e todas
relatavam um acontecimento. Mas se eles eram teimosos, eu também.
Mas desde então eu havia mudado tanto, quem sabe eu agora já estava
pronta para um verdadeiro “era uma vez...”. Perguntei-me em seguida: e
por que não começo? agora mesmo? Seria simples, senti eu.
701
LISPECTOR. Não soltar os cavalos. Para não esquecer, p. 64.
702
LISPECTOR. Bichos. A descoberta do mundo, p. 332.
703
LISPECTOR. O que é o que é? A descoberta do mundo, p. 199.
704
LISPECTOR. O que é o que é? A descoberta do mundo, p. 199.
225
E comecei. Ao ter escrito a primeira frase, vi imediatamente que ainda
me era impossível. Eu havia escrito:
705
LISPECTOR. Era uma vez. Para não esquecer, p. 17.
706
LABANCA. Carta pessoal acerca do texto “Era uma vez”, de Clarice Lispector. Belo Horizonte, 13 de
fev. 2017.
707
SANTOS. Na cavidade do rochedo: a pós-filosofia de Clarice Lispector, p. 72.
708
SANTOS. Na cavidade do rochedo: a pós-filosofia de Clarice Lispector, p. 34.
226
“O corpo, para começar, tem de abandonar-se, lançar a tinta, o lápis, os dedos
abruptamente. Deixar assim que as palavras levem o corpo.”709 A arte do improviso com
aquilo que se tem é provada entre a errância e a cautela, na escuta dos imprevistos
percussivos, no uso dos instrumentos, no preparo na trama, na articulação das mãos, no
amor ao bom uso do corpo. Tudo o que participa da obra é um recurso e um modo de ir: a
urdidura armada, a armação tecida, o tecido feito, a feitura enredando os fios até que o
medo de ir desata: é com medo mesmo que se vai. Atando, rompendo, suturando uma
matéria em obra da qual se poderia dizer – move-se aí um começo. Escreve Kunichi Uno,
em “A gênese de um corpo desconhecido”:
Mas é possível acolher a angústia de partir sem saber como e habitar o inacabado
que se abre de erro em erro; compor uma prova da experiência com as linhas da própria
ignorância; autorizar-se ao risco e “sentir o desamparo de estar vivo”711 na incapacidade
de tecer os limites do corpo; sumir na emergência imersiva do meio como quem se torna
um lugar que mergulha; saltar sobre a densidade da água, afundar, deixar subir à tona a
coisa criada em sua condição de autonomia e estranhar a autoria – isto foi feito por mim?
Apenas uma possibilidade a menos entre tantas por se fazer. Pois, embora as coisas feitas
pareçam surtir do nada, sabemos: é nesse mesmo nada que nadamos.
709
SANTOS. Na cavidade do rochedo: a pós-filosofia de Clarice Lispector, p. 32.
710
UNO. A gênese de um corpo desconhecido, p. 65.
711
LISPECTOR. Clarice Lispector: encontros, p. 30.
712
SALOMÃO. Babilaques: alguns cristais clivados, p. 24.
713
SALOMÃO. Babilaques: alguns cristais clivados, p. 24.
227
coisa nenhuma, mas de alguma coisa em curso, de um entremeio inquieto e revolvido,
atravessado “pelos outros” movimentos, imperceptíveis e notáveis, estranhos e comuns,
incluindo o “já feito por mim”. Interceptar essas forças de passagem é tomar parte de um
fluxo realizador que não pertence a ninguém, mas faz reverberar as iniciativas do “já feito
pelos outros”, reinaugura o “já feito por mim”, inacabado e aberto, capaz de engendrar a
potência nascente de onde “as coisas surtem”. Por isso, Ela, a criação, também em Clarice
Lispector e Louise Bourgeois, mobiliza sua incessante oferta ao recomeço.
Os gestos criadores confiam suas fibras à roca das iniciativas. Fios de começo
recomeçam, passam pela arte da tecelagem, estão no giro do fuso, ordenados em meadas,
dobrados em novelos, guardados neles mesmos, progressivos e regressos, variando da
organicidade compositiva das rendas amadoras ao tecido sintético de um fazer especialista.
De todo modo, é importante crer na partida pelo meio. Basta puxar um fio, e o começo se
torna um emaranhado súbito. Tecer implica, tantas vezes, o tato e o trato dessa desordem,
a desistência de um arranjo perdido e o empenho por desentrelaçar as linhas, salvando a
possibilidade do poema entre o ímpeto realizador e o farrapo das tentativas. Cultiva-se o
vigor do processo nos gestos de cortar, emendar, fazer nós, arrematar pontas, amarrar os
fragmentos, amar o novelo, hospedar a frágil condição de ir e vir, devolver ao fio sua
potência inventiva. Ela, a criação, resume-se ao corpo que descansa em obra e recomeça
pelo meio, no interminável movimento da matéria, na generosidade gestante de fazer,
desfazer e refazer.
228
Ela desfazia o que tecia como oferta ao recomeço
Há uma relação enovelada entre o tema da criação e a escrita desta tese. Uma
constatação bastante óbvia me acompanhou ao longo do processo de pesquisa: um
desenho ou um escrito não nasceram prontos, precisaram ser feitos na relação criadora
714
DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs, v.4, p. 100.
715 LLANSOL. O começo de um livro é precioso, p. 1.
716
PANADÉS. Desenho corpo porque vivo, p. 25. [Título do capítulo de minha dissertação de mestrado no
qual trabalho com a noção de “linha” na filosofia de Gilles Deleuze.]
229
com a matéria da escrita, com a matéria do desenho. Os processos de criação das coisas-
artistas permanecem dissolvidos no corpo mesmo das obras. O processo, tantas vezes,
resta como algo imperceptível, mas sensível no “condensado de sensações” que a obra é.
As linhas processuais atravessam o corpo da obra como “terminações nervosas”717 da
potência criadora de um pensamento. Como abordar essa potência? Como tratar as coisas-
artistas? O problema da abordagem é, também, uma questão insistente e enovelada ao
percurso da tese. O que restaria dizer sobre o problema da abordagem quando, enfim,
alcanço o alinhavo final desta escrita?
717
LABANCA. Ter terminações nervosas no pensamento. Texto inédito.
230
pesquisa, sobretudo em suas etapas inicias, compreendi, após uma sequência exaustiva de
fracassos, que tal intuito se tornara inviável, de modo que a desistência desse modelo fez
parte do processo de assumir o tema da criação. A criação como tema gerou, ao mesmo
tempo, um vórtice de múltiplas convergências e uma digressão por vertentes periféricas,
inclusive para além das obras em questão. Assim se apresentou o caráter envolvente e
desafiador do tema.
718
TZVETÁIEVA. Vivendo sob o fogo, p. 428.
719
DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs vol.1, p. 21.
231
povoada por outras linhas, aliada ao poema alheio, disponível ao próprio poema. O poema
é um problema em abordagem. E, afinal, de quem é o poema? O poema é meu? O poema
é dela? De qual delas? Quem são “elas” na abordagem? Elas, da espécie tecelã? Aquelas
que recebem “com fios de seda”720? As amadoras do novelo? “Elas, amadoras”721 como
são, poderiam assumir a autoria encoberta no verso: “Ela desfazia o que tecia como oferta
ao recomeço”. Ela, na impessoalidade de um pronome feminino em abordagem, talvez se
esconda nos bastidores da escrita. Mas o amor ao novelo se mostra. A abordagem é
amadora dos fragmentos e amante da trama. Essa condição amorosa se evidencia no tato
das obras e no trato com as obras, na crença da criação como tema de vida e no empenho
criador dessa vitalidade atemática, na condição de se estar a bordo e no perigo de ser
engolfada pelo mar, na tentativa de localizar a própria posição e na errância assumida
como um modo de ir.
720
LISPECTOR. Lembrança da feitura de um romance. A descoberta do mundo, p. 194.
721
CASTELLO BRANCO. Chão de letras, p. 181.
722
LISPECTOR. Perto do coração selvagem, p. 138.
723
LISPECTOR. Água viva, p. 19.
232
Eis a criação como “tema de vida”, como teima de vida. Eis “o animal chamado
escrita” 724. Eis o pensar no pensamento, fazendo-se ao rés da experiência, levando
adiante o que se tem em mãos: uma escrita-novelo teria parte com essa prece.
724
LLANSOL. Causa amante, p. 160.
725
LOPES. Do ensaio como pensamento experimental. Literatura, defesa do atrito, p. 121.
726
LABANCA. A mais: uma experiência de leitura dos restos em Nuno Ramos, p. 22.
727
LABANCA. A mais: uma experiência de leitura dos restos em Nuno Ramos, p. 22.
Cf. LOPES. Do ensaio como pensamento experimental. Literatura, defesa do atrito, p. 123.
233
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