O Coração Da Baleia
O Coração Da Baleia
O Coração Da Baleia
A SEREIA Uma febre martima me assola. A tragdia tem o seu nome, navega pelos dias. Eu sei que haver o cheiro do mar na sua pele, A cor do mar nos seus olhos. Sua grande cauda de peixe se arrastar pesada pela areia. Seus seios viro at mim desengonados. Seus cabelos de algas, as conchas nas suas unhas, seus cantos malinos, Tudo isso vir a tragdia que ainda tomar a sua forma j se faz pressentir. Seus dentes afiados e amarelos, disfarados num sorriso, Me arrastaro para o mar, para o breu, para o amor. terrvel o que vejo, o que sinto. Ser terrvel o meu fim. Ainda assim te entregarei cada pedao da minha carne para que o consuma.
O CAPITO Ele no sabia que os homens, quando conversavam e riam, tramavam o seu fim. No sabia que o seu dia estava prximo. No sabia mesmo que estava perdendo o controle sobre os homens, ou que talvez os homens estivessem ganhando um controle excessivo sobre si mesmos, algo que resultaria prejudicial a todos, mas que ele no notou. E muitos outros fatos que ele no sabia sobre os homens e a natureza das coisas lhe passaram pela cabea quando se viu cercado de mar e de traidores na noite do motim, mas ento j era tarde para aprender tudo, aquela era a sua ltima noite e ele s podia pensar que tudo tinha sido rpido. O seu chicote passara todo o tempo dependurado, sem uso, e ele havia sido um capito de temperamento tranquilo como o mar tropical num dia de sol. Agora morreria com violncia, entre homens que comearam a nutrir por ele um dio lento e inexplicvel. O dio do corao das baleias. Mas o capito morreria calmo como viveu, despedindo-se do cu escuro, das estrelas, de todo esse mundo misterioso onde havia sido jogado e arrancado sem escolha. Quanto ao motim, sabia que tudo poderia transcorrer dentro do esperado: Ele seria preso, ou morto, os homens tomariam o barco, a viagem seguiria. Mas no seria esse o caso. O seu barco tinha engrenagens complexas, os marujos mal sabiam ler, os mares eram imprevisveis. Sem as suas ordens, todos naufragariam. Mas o olhavam com um meio sorriso entre os lbios crispados, que diabos ser que pensavam? Preparavam a prpria morte com festa. Nada disso valia a pena dizer, os marinheiros descobririam por si prprios. Ele morreria sem saber absolutamente nada da natureza humana, conhecendo mais as correntes martimas do que as intenes dos homens que o cercaram durante aquela viagem E era nisso que pensava quando lhe apontaram a prancha para que sobre ela caminhasse em direo ao abismo negro. Seus pulmes, seus os olhos, sua boca, temiam a morte, e por isso seus ltimos passos seriam trmulos. Mas ele esperava que em breve seus homens o seguissem a este lugar confortvel e quente para onde ele se dirigiria alis, enquanto ele andava pela prancha, quem estava no comando do barco?
OS NUFRAGOS A Janela mida do barco o nosso aqurio. O nosso sonho repousa entre caramujos. Na infncia, ramos crianas que corriam. A infncia um vu de lembranas. Agora caminhamos sem esperanas por ptios imaginrios. Os medos que tnhamos do naufrgio resultaram maiores que o naufrgio em si. Na noite do naufrgio choramos e gritamos, mas aquilo era real. Lutamos e perdemos a nossa derradeira batalha. vida no faremos falta nenhuma. Seguimos com os ps descalos, no nosso novo mundo subaqutico. E agora nenhum homem ou menino se atira na gua. Agora contam histrias sobre nossos gritos ecoando na madrugada. Agora todos dormem.
AUSNCIA
LEMBRANA
O MARINHEIRO Qual o sentido da minha vida sem sentido? A lua sobre o mar? As histrias de amor? Vencer meus medos vos, ou tragar as suas mentiras? O dia de cada dia? Tudo isso que eu perdi, ou o que ainda me espera adiante? A minha prpria pele e o seu sal, ou a pele de meus companheiros? Quem no tem nada a perder, est livre para navegar
SEGREDOS
O PIRATA
Por trs de todo rudo h o silncio e o silncio deve bastar. Hoje dia de morrer, como todo dia. O ouro j no corre pelas veias das serras das Minas Gerais. J no deixaria o porto sob a bandeira negra. J no podia viver sem navegar. No haveria ningum para beber o seu sangue amargo. Seu corpo mutilado, tanto tempo sem ver carne de mulher, tanta perdio. hora de partir. hoje Disse-lhe a gaivota. Hoje soprou-lhe o peixe enquanto pulava. Estavam desenhadas nas nuvens as letras que formavam a palavra hoje. E ele caminhou pelo cais observando as ilhas azuis, Observando o dia que avanava, Decifrando os sinais.
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POEMA DO PRISIONEIRO Ningum sabe ao certo quem se tornou aquele homem. Quanto tempo dura os seus silncios, que mistrio h neles. Porque foi ele o escolhido, entre todos, para ser o monstro E como tal foi tratado. Mas agora, solto entre os homens, Esse homem no tem mais um lugar. O que foi banido e reintegrado no quer mais reintegrar-se. Seus olhos vagam perdidos, atnitos. A humanidade um monstro. Agora ele um espelho de homens. Uns diro: Coitado, cnico, culpado. E todos esto falando de si mesmos.
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ESTRANHOS
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ENQUANTO
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TARDE
No tente buscar nos meus olhos resqucio algum de amor Agora tarde Meus olhos j buscam cores que no so as suas Sua voz fere meus ouvidos E agora tarde para cultivar feridas tempo de estancar o sangue o tempo de desatar os ns Leve o seu rosto das minhas lembranas tempo de partir correntes tempo de caminhar sozinho Meus olhos escaparam da gaiola dos seus No tente alcan-los O amor deve ser tudo o que pode ser Para completar-se o amor deve ser findo.
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A MENINA E O LOBO
Porque ele a olhava para cumprir a tarefa sagrada de alimentar-se. Porque nenhum homem jamais a olhara com aquela fora. Porque ela era uma menina e tudo nele era bom e sincero. Porque ela mesma no tinha a felicidade dos negros pssaros. Porque tudo nela era vermelho como a sua capa. Porque no era amor o que sentiam, mas era mido e urgente como o amor E por sculos e sculos ningum havia tocado a tez macia e vibrante do mundo. Por tudo isso ela amou o lobo E se entregou a ele com toda fria que a sua infncia pudesse ter.
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CAIS
A mulher espera beira do cais h dias. A vida uma fora que j no a domina, O tempo no alvio E a mulher no se esquece beira do cais. A mulher a beira do cais h sculos, A esperana um erro que j no a engana, O tempo no consolo E a mulher vai tomando a forma do cais. A mulher cimento do cais h meses, Seus deuses partiram nas velhas embarcaes E cada vela que surge no horizonte, trazendo atrs de si o possvel barco, Reacende no olhar da mulher a misso de esperar. A mulher o enigma que se prostra beira do cais. O rio passa, mas mulher persiste. Seu corpo testemunha de que o tempo no amigo E a mulher uma pedra fincada ao cho do cais.
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O MUNDO
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BILHETE AO MAR
Virei. Quantas vezes for preciso, virei. Mesmo que sintas no teu azul um tom qualquer de desgosto. Mesmo que parea impertinncia, Virei mesmo assim Quando tudo no mundo falhar, virei de joelhos para que me consoles. Se eu falhar, virei de joelhos me redimir. Se estiveres calmo, um dia, virei derramar em ti o meu dio. Se eu aprender a ser humilde, te direi o quanto gosto de vir. E ser assim que viveremos: intercalando as tempestades, Comparando os naufrgios, Nos debatendo em ondas. At o dia em que virei pela ltima vez, Pela mo dos meus filhos, Para que nossas guas se misturem. Neste dia virei para sempre, companheiro azul.
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OS PEIXES I
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OS PEIXES II
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Porque voc um menino com uma flor e acende luzes com seus passos e seus olhos fosforescentes e a minha tristeza escura, deserta e fria, como aquelas cidades pequenas da Sucia que anoitecem ao meio dia, seu corpo meu castelo de pedras e eu sou infinitamente pequena. Porque voc um menino com uma flor eu te entreguei minhas memrias e meus segredos sabendo que o que eu te dava j era seu, porque voc um menino com uma flor eu no sei te negar coisa alguma. E, sendo voc um menino com uma flor, eu te espero chegar como algum espera a cura de uma doena grave, como algum espera que a chuva passe. Porque voc me beijou numa tarde com a delicadeza de uma borboleta se espreguiando e depois daquela tarde todas as outras tardes tiveram algo de brutal. Porque voc um menino com uma flor eu te entregarei uma noite com milhares de vaga-lumes e todos os poemas de amor que no sei escrever. E sendo voc um menino com uma flor eu sou sua mesmo que voc no me queira e no me pea, te digo as poesias que gostaria de ouvir, tento descobrir seus segredos como um submarino num mar de abismos. Voc um menino com uma flor e eu te amo de todas as formas, de noite, em segredo, enquanto voc dorme e o cu muda de cor, enquanto crescemos, e eu te amo, sobretudo porque voc o nico menino com uma flor que eu conheo.
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IRM DO TEMPO
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AMOR
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OS MORTOS DA CASA
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Esta noite foi cheia de assassinatos: O sapo engoliu a mosca, a cobra digere o sapo.
Por trs das folhas a cabea triangular da cobra busca uma noite infeliz para sapos. Mas eu estou distante de tudo. Dano surda, presa no quarto.
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OUTRO SONHO O homem invisvel apanhou o seu chapu invisvel e saiu pelas ruas. A casa vazia no sente a sua falta. O co invisvel desistiu de esper-lo, ele nunca voltou. As montanhas, as pontes, as portas o viram e o esqueceram. Apenas paredes nuas guardam o seu retrato. O homem invisvel desfez-se sem ter sido mais que um sonho, um sonho que morreu na noite de um homem real.
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AZUL IMPOSSVEL
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PARTIDA
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