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Dissert - Ana Alice Da Silva Cafolla

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades


Instituto de Psicologia

Ana Alice Cafolla

Política e teatro:
interferências, transformações e subversões operadas pela arte

Rio de Janeiro
2016
Ana Alice Cafolla

Política e teatro:
Interferências, transformações e subversões operadas pela arte

Dissertação apresentada como requisito parcial


para obtenção do título de mestre ao Programa de
Pós-Graduação em Psicologia Social, Centro de
Educação e Humanidades, da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro.

Orientador: Prof. Dr. Ronald João Jacques Arendt

Rio de Janeiro
2016
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A

C129 Cafolla, Ana Alice.


Política e teatro: interferências, transformações e subversões operadas pela
arte / Ana Alice Cafolla. – 2016.
93 f.

Orientador: Ronald João Jacques Arendt


Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Instituto de Psicologia.

1. Psicologia Social – Teses. 2. Teatro – Teses. 3. Emancipação - Brasil –


Teses. I. Arendt, Ronald João Jacques. II. Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Título.

es CDU 316.6

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação, desde que citada a fonte.

___________________________________ _______________
Assinatura Data
Ana Alice Cafolla

Política e teatro:
Interferências, transformações e subversões operadas pela arte.

Dissertação apresentada como requisito parcial


para obtenção do título de mestre ao Programa de
Pós-Graduação em Psicologia Social, Centro de
Educação e Humanidades, da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro.

Aprovada em 23 de março de 2016

Banca examinadora:

____________________________________________
Prof. Dr. Ronald João Jacques Arendt(Orientador)
Universidade Estadual do Rio de Janeiro

___________________________________________
Prof. Dra.Laura Cristina Toledo de Quadros
Universidade Estadual do Rio de Janeiro

___________________________________________
Prof. Dra. Márcia Moraes
Universidade Federal Fluminense

Rio de Janeiro
2016
AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Ronald Arendt, meu orientador, que sem sua confiança esse trabalho
não seria realizado.
À Laura Quadros e Márcia Moraes pelas contribuições dadas na qualificação.
À CAPES pelo apoio financeiro.
À Ana e Luciana secretárias do PPGPS.
À todos os atores dessa pesquisa que contribuíram diretamente com essa dissertação:
Ana Teixera, Tatiana Tiburço, Luciana Lopes, Luana Vitor e Paula Maria, que
disponibilizaram seu tempo para o diálogo.
Agradeço aos meus familiares que me apoiaram nesse projeto. Minha mãe, Jenete da
Silva, que mesmo distante sempre esteve presente. Meus irmãos e meu pai que sempre
estiveram me acompanhando.
A minha segunda família Danielle Marchand, Laure Marchand e Alexis Marchand que
também me apoiaram nessa empreitada.
E aos amigos Mario do Rosário e Débora Lomba pelo apoio técnico.
E a todos os amigos com quem compartilho a vida no Rio e em Paris, principalmente
Christopher e Veronica que proporcionaram leveza e alegria nos momentos difíceis.
A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito.

Não agüento ser apenas um sujeito que abre portas,


que puxa válvulas, que olha o relógio,
que compra pão às 6 horas da tarde,
que vai lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.

Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.
Manoel de Barros
RESUMO

CAFOLLA, Ana Alice. Política e teatro: interferências, transformações, e subversões


operadas pela arte. 2016. 93 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Programa de
Pós- Graduação em Psicologia Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2016.

Essa pesquisa tem por objetivo refletir sobre as potencialidades políticas da arte. Será
pensado o conceito de política e a potência de transformação social através da arte dialogando
com Bertold Brecht, Jacques Rancière e Deleuze. A peça Salina: a última vértebra será
uma referência ética, estética e artística para articular os pensamentos relacionados a esses
autores. Com base nos conceitos de partilha do sensível e de espectador emancipado do
Rancière pretendo analisar os efeitos que a peça causou nos espectadores, nos atores e
na diretora da peça, unindo os participantes dessa pesquisa que formam um coletivo de
afecção debruçado sobre a obra Salina. Os conceitos de Deleuze de menor e de máquina de
guerra também foram grandes aliados para análise do viés político dessa peça. Tendo em
mente que a abordagem metodológica que a pesquisa traz tem um olhar específico sobre a
relação do pesquisador e pesquisado, um olhar de engajamento político do pesquisador com
relação à pesquisa que produz, bem como com os participantes que compõem a pesquisa. O
engajamento político do pesquisador propõe uma subversão na ciência que pode ser
comparada a subversão que a peça analisada propõe com relação à arte. Latour, Despret e
Haraway foram parceiros nas reflexões sobre as bases metodológicas dessa pesquisa. A partir
desse engajamento, no encontro com a peça e com os participantes da pesquisa eu fui afetada
para abordar o tema da questão racial. E partindo nessa direção conflui com autores da
sociologia, antropologia e psicanálise que pensam os efeitos da discriminação racial na
sociedade e na psique dos homens e mulheres negras. Pelo viés psicológico o diálogo se deu
com os seguintes autores: Frantz Fanon, Neusa Souza Santos e Bell Hooks. Pelo viés
sociológico e antropológico: Ana Claudia Pacheco, Guimarães e Moura. E para refletir sobre
a discriminação racial expus algumas problemáticas da realidade urbana da cidade do Rio de
Janeiro como exemplos da violência vivida cotidianamente pelos homens e mulheres negras.
No entanto é mais relevante remarcar o efeito que a peça Salina tem para inverter a
supremacia branca, reafirmando a potência que a arte tem para transformar certos padrões
sociais.

Palavras chave: Teatro. Política. Emancipação. Subversão. Questão racial.


RÉSUMÉ

CAFOLLA, Ana Alice. Politique et théâtre : interférences, transformations, et subversions


opérées par l'art. 2016. 93 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Programa de
Pós- Graduação em Psicologia Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2016.

Cette recherche a pour objectif une réflexion sur le potentiel politique de l'art. Nous
réfléchirons au concept de politique et au pouvoir de transformation sociale à travers l'art,
dialoguant avec Bertold Brecht, Jacques Rancière et Deleuze. La pièce Salina - a última
vértebra servira de référence éthique, esthétique et artistique pour articuler nos réflexions liées
à ces auteurs. Basé sur les concepts du partage du sensible et du spectateur émancipé de
Rancière, notre intention sera d'analyser les changements que la pièce a provoqué chez les
spectateurs, les acteurs et le metteur en scène, en réunissant les participants de cette recherche
qui forment un collectif partageant une même affection à propos de leur travail sur Salina. Les
concepts de Deleuze "de bas et de la machine de guerre" ont aussi été de grands alliés pour
l'analyse de l'aspect politique de cette pièce. Ayant à l'esprit/Partant du fait que l'approche
méthodologique qu'implique la recherche génère/provoque un regard spécifique sur la relation
entre le chercheur et le sujet, une position d'engagement politique du chercheur envers
l'investigation qu'il produit, ainsi que les participants qui composent la recherche.
L'engagement politique du chercheur propose une subversion de la science qui peut être
comparé à la subversion que la pièce analysée propose par rapport à l'art. Latour, Despret et
Haraway étaient partenaires dans les réflexions sur la base méthodologique de cette recherche.
De cet engagement avec la pièce et les participants à la recherche est née la volonté d'aborder
la question raciale. Je me suis ainsi naturellement tournée vers les auteurs de la sociologie,
l'anthropologie et la psychanalyse et leur réflexion quant aux effets de la discrimination
raciale dans la société et dans la psyché des hommes et des femmes noirs (ou noires). Sur le
plan psychologique, le dialogue s'articulera autour des auteurs suivants: Frantz Fanon, Neusa
Souza Santos et Bell Hooks. Sur le plan sociologique et anthropologique :Ana Claudia
Pacheco, Guimarães et Moura. Pour alimenter la réflexion autour de la discrimination raciale
dans la société seront exposés quelques problématiques de la réalité urbaine de la ville de Rio
de Janeiro, notamment des exemples de violences quotidiennes vécues par les hommes et les
femmes noirs (ou noires). Toutefois, il est à noter que la recherche s'intéressera
principalement à l'effet que la pièce Salina provoque en renversant la suprématie blanche,
réaffirmant le pouvoir que l'art a pour influencer et transformer certaines normes sociales.

Mots-clés: Théâtre. Politique. Émancipation. Subversion. Question Raciale.


SÚMARIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................. 9
1 DIGRESSÕES FILOSÓFICAS: TEATRO E POLÍTICA ..................................... 14
1.1 Brecht e a transformação social pela arte ................................................................ 15
1.2 Rancière e a política da arte como transformadora da coletividade e
subjetividade ............................................................................................................... 17
1.3 Deleuze e a política do minoritário ............................................................................ 23
2 DO PERCURSO E DOS FRACASSOS: INDAGAÇÕES
METODOLÓGICAS .................................................................................................. 29
2.1 Mudança metodológica: entrevista e participação-observante .............................. 31
2.2 Uma metodologia às avessas ...................................................................................... 32
2.3 Questionamento sobre a teorização: uma rebelião acadêmica. .............................. 38
3 O ENCONTRO COM A PEÇA: SALINA A ÚLTIMA VÉRTEBRA................... 40
3.1 Enredo da peça Salina ................................................................................................ 44
3.2 Os espectadores e a partilha do sensível: formação de um comum político.......... 48
3.2.1 Relato de Alexandre Pereria ......................................................................................... 49
3.2.2 Relato de Felipe Pedrine ............................................................................................... 50
3.2.3 Relato de Michele Jorge dos Santos de Souza.............................................................. 51
3.2.4 Relato de Lenita Aries .................................................................................................. 51
3.2.5 Entrevista com Paula Maria .......................................................................................... 53
3.2.6 Relato de Laurant Gaudé – dramaturgo francês ........................................................... 54
4 A QUESTÃO RACIAL .............................................................................................. 55
4.1 Breve história da segregação e discriminação racial no Rio de Janeiro e
Brasil ............................................................................................................................ 69
4.2 A Questão racial em Salina ........................................................................................ 76
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 80
REFERÊNCIA ............................................................................................................ 83
ANEXO A - Relatos completos dos espectadores da peça Salina: a última
vértebra ........................................................................................................................ 87
9

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por (objetivo) entrelaçar os temas da arte, mais


especificamente o teatro às possibilidades políticas, e suas potencialidades de transformação
subjetivas e sociais.
Foi escolhido para isso o espetáculo chamado Salina: a última vértebra, apresentado
pela Companhia de teatro AMOK, o espetáculo foi estreado no início de abril de 2015 na
cidade do Rio de Janeiro.
O grupo AMOK foi criado em 1998, mas só em 2004 teve sua sede montada, a casa
fica situada em Botafogo, Rio de Janeiro. Os diretores responsáveis pela Cia são Ana Teixeira
e Stephane Brodt. O grupo tem uma forma muito específica de pensar e articular o teatro, a
produção dos espetáculos e o trabalho do ator. O Amok tem uma preocupação com a pesquisa
contínua do trabalho do ator e das possibilidades de encenação. Para eles o corpo é entendido
como o lugar onde o teatro acontece, por isso a pesquisa do ator busca o rigor formal e a
intensidade que se afirma em seu corpo. A cada novo projeto o grupo é impulsionado na
busca de novos caminhos de pesquisa e treinamento partindo de diálogos com diferentes
tradições e culturas.
O texto Salina é do escritor e dramaturgo francês Laurent Gaudé. A peça foi estreada
em março de 2015. Ela tem duração de 3 horas em que os atores estão vivamente presentes,
podemos perceber esse rigor na pesquisa do ator, seu corpo e a excelência do espetáculo
trazem a marca da intensidade do trabalho. A pesquisa do grupo nessa peça está pautada na
tradição e cultura negra. A linguagem corporal dos atores, a dança, o figurino e o simbólico
são trazidos da tradição e cultura africana. Além da presença de 10 atores negros e um músico
negro.
Há semelhanças entre a linguagem popular africana e a própria estrutura do
espetáculo. Um jogo de cena que eles usam durante todo espetáculo é que todos os atores
mesmo que não estejam em cena estão sempre no palco, se comportam como se fossem o
público. Eles permanecem sentados no palco em cadeiras colocadas em formato circular e
assistem o desenrolar da cena, até que venha a hora de entrar em cena. O que faz lembrar um
espaço de contação de história, em que o contador da história fica no centro e os ouvintes
ficam em roda dele. Isso é uma estrutura que se assemelha a oralidade da cultura negra onde o
Griô, um homem ou mulher que tem o dom da oralidade se torna responsável pela
transmissão oral dos saberes e fazeres da tradição. Em muitas regiões da África o universo
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cultural é fundado na oralidade, o Griô poderia ser um músico, um genealogista, poetas e


comunicadores sociais, mediadores da transmissão oral, bibliotecas vivas das histórias. As
rodas de contação de história são fundamentais nesse processo da transmissão do
conhecimento através da oralidade. E a maneira como o espetáculo é montado nos remete
bastante à essa ideia.
A relação que o grupo estabeleceu com a cultura negra é de grande interesse nessa
pesquisa e foi um dos motivos que me interessou a buscar o grupo Amok e a peça Salina,
principalmente porque esse tema servirá de reflexão sobre o teatro e suas questões políticas. O
grupo desde suas primeiras apresentações se preocupa com as minoridades. Anterior a esse
projeto de Salina, o Amok apresentou a trilogia da guerra. São peças que se referem aos
tempos de guerra, eu assisti Kabul (2009) no FILO (Festival Internacional de Londrina), a
peça trata da questão da violência mulçumana. E além desse contato com a peça eu tinha
assistido à palestra deles nesse mesmo festival e mais tarde quando eu já morava no Rio, fiz
uma oficina como grupo em 2011, por isso minha simpatia pelo grupo é mais antiga do que
esse encontro com Salina.
A metodologia escolhida para realizarmos essa pesquisa está bastante relacionada ao
tema dessa dissertação, principalmente no que concerne a subversão. Propomos então uma
metodologia que é entendida como subversiva. Quando o pesquisador se abre permitindo
fazer um encontro com o pesquisado, expandindo-se ao novo, ele põe em ação a produção da
diferença e a mesma subversão que estamos buscando na arte, no teatro conseguimos projetar
para a pesquisa. Pesquisador e pesquisado são diferentes, assim como a teoria e a prática
também o são. O pesquisador está carregado de elucubração teórica e tem o privilégio da fala,
portanto refletir sobre o lugar que ele ocupa e sua implicação política para a construção de um
saber é um caminho subversivo comparado à ciência quando acredita que está desvendando a
verdade com o conhecimento que produz. Os pensamentos do Bruno Latour, Vinciane
Despret, Donna Haraway guiaram essa caminhada metodológica. Eles pensam uma maneira
de pesquisar que privilegie o “pesquisar com”, que sugere que o pesquisador se implique
numa relação de proximidade com os atores da pesquisa, uma proximidade em que ele assuma
os riscos de estar em relação com outro, que assuma o risco do conflito, que assuma a
responsabilidade de ser chamado a responder pelo conhecimento que produz e pra isso coloca
seu corpo em jogo e também sua pessoalidade deixando-a aparecer na processualidade, como
os rastros e os efeitos de si nesse encontro. Nesse sentido o pesquisador evidencia o lugar de
onde parte o conhecimento que está sendo produzido, localizando o saber que engendra.
(HARAWAY, 1988).
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Portanto todo aporte teórico desenvolvido nesse projeto, desde a hipótese, o problema
não deverá ser encarado como um quadro teórico no qual pretende se encaixar os atores da
pesquisa. Justamente por essa mudança metodológica o termo participantes da pesquisa será
substituído pelo termo atores da pesquisa, porque o termo ator pressupõe que os participantes
da pesquisa possuem agência.
O campo dessa pesquisa foi desenhado a partir da formação de uma comunidade que
se faz juntamente com a partilha dos afetos causados pela peça. Para nos aproximarmos desse
conjunto de atores que formam o campo da pesquisa, nos aproximando dos espectadores que
fazem seus relatos pela rede social, o facebook, do qual não tive o contato direto, apenas colhi
seus relatos na internet. Outra maneira de dialogar com os atores da pesquisa foi através das
entrevistas que foram feitas com uma espectadora, as atrizes e a diretora. E também para me
aproximar mais do trabalho do grupo Amok participei de uma oficina de formação de atores
com duração de 3 dias por um período de 4 horas por dia oferecida pela Ana Teixeira, a
diretora da Cia.
É possível mapear alguns grupos de teatro no Brasil que se preocupam com um
engajamento político da arte. Mesmo que não seja do nosso interesse aqui aprofundar esse
mapeamento citarei alguns grupos de meu conhecimento que permitiriam pensar sobre o
teatro e seu engajamento político. Para pensar também o teatro contemporâneo falarei sobre
os encontros que tive com as companhias de teatro durante meu percurso. Eu conheci a Cia do
Latão um grupo Brechtiano de São Paulo em Londrina no FILO (Festival Internacional de
Londrina) em 2007 quando eles apresentavam a peça Brechtiana O círculo de giz Caucasiano,
que mantinha a integralidade do texto original. Esse primeiro contato foi muito especial para
mim, lembro-me que no dia em que eu vi a palestra da Cia do Latão, eu estava no segundo
ano da faculdade de psicologia, tive vontade de largar o curso e seguir com eles. Os atores se
entrosavam de maneira bem harmoniosa. A energia que tinha a atriz Helena Albergaria
quando falava do processo de produção do espetáculo transparecia uma verdadeira paixão
pelo trabalho que realizava e ainda realiza. Isso tornava aquele encontro bastante sedutor. Em
2010 em Londrina tive outro contato com Cia em uma oficina de teatro de 3 dias. Nesse
momento pude ver como a formação de atores da Cia do Latão está bastante voltada a uma
atuação realista, distanciada e reflexiva bastante coerente com a proposta de Brecht. Em junho
de 2013 assisti à peça Patrão Cordial que eles apresentam no CCBB (Centro Cultural do
Banco do Brasil) do Rio de Janeiro. Sérgio Carvalho, o diretor da Cia, escreve a peça com
base na obra de Sergio Buarque de Holanda Raízes do Brasil e na peça de Brecht O senhor
Puntila e seu criado Matti. O diretor opta por essa peça Brechtiana que segundo ele é a que
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mais se assemelha a realidade brasileira. Como a peça se passa nos anos 70, o diretor tenta
trazer para cena uma realidade do relacionamento cordial e afetuoso entre patrão e
empregado, mas a relação de subjugação está sempre presente entre eles. Essa cordialidade
que mascara uma opressão é perceptível no universo do trabalho até os dias atuais. Sergio de
Carvalho, diretor da Cia do Latão usa o tempo como ferramenta para produzir o
distanciamento, tema caro ao Brecht. Fazendo um distanciamento do nosso tempo, indo aos
anos 70, é possível refletir melhor sobre o nosso tempo, segundo o diretor. O distanciamento é
o tema que voltarei a falar mais adiante quando for aprofundar sobre o teatro político do
Brecht. A peça conta a história de um patrão que quando está bêbado é gentil com seus
empregados, mas sóbrio ele se torna um tanto carrasco. E para a desgraça desse patrão sua
filha se apaixona por um dos seus empregados.
O grupo de teatro de Porto Alegre que se intitula Tribo de atuadores ói nóis aqui
traveis apresentou uma peça em Londrina em 2010 chamada O amargo Santo da Purificação –
uma visão Alegórica e Barroca da Vida, Paixão e Morte do Revolucionário Carlos Marighella,
portanto uma peça carregada de cunho político. Marighella era militante e ativista político
tendo participado de cargos importante dentro do PCB (Partido Comunista Brasileiro), foi
preso diversas vezes e lutou contra a ditadura militar, fundou inclusive o grupo armado ALN
(Ação Libertadora Nacional).
Na cidade do Rio de Janeiro os grupos Nós do Morro, o grupo Amok teatro e o Grupo
Tá na Rua são grupos que trazem em seu bojo um engajamento político nas suas produções. O
grupo Nós do morro é um grupo que está sediado no Vidigal, uma favela na Zona Sul do Rio
de Janeiro e o grupo por muito tempo esteve concentrado em fazer a formação de atores para
moradores da favela. É um grupo que tem uma preocupação com a formação de atores,
fornecendo cursos de 2 anos gratuitos para a população.
O grupo Tá na Rua dirigido por Amir Haddad tem como palco as ruas e praças da
cidade do Rio. Acreditando que a rua é uma forma de democratização da arte o Tá na Rua tem
um projeto desde 2014 chamado A arte pública- uma política em construção. Haddad
considera que ocupar as ruas é um movimento de democratização porque assim a produção
cultural da cidade chega a todos indiscriminadamente. Em um momento em que a vigilância e
proibição crescem sobre o trabalho do artista de rua, o Tá na rua e outros grupos que também
trabalham na rua, organizam-se para resistir à opressão estatal e policial.
Esses foram os encontros que tive ao longo de vários anos com diversos grupos de
teatro. Creio que por um longo tempo esses encontros me provocaram a questão mesma que
paira nessa dissertação: teria a arte a potência de transformar o mundo? Essa questão pode ser
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simplória e talvez esconder um certo ideal que ao longo desse estudo fui desconstruindo,
estou falando do ideal Marxista/ Brechtiano, um ideal da transformação de classes. Talvez o
que me inquietava era mais simples e não estivesse aliado a nenhuma escola
sociológica/filosófica: existiria alguma maneira de transformar uma sociedade tão desigual?
Durante minha formação em psicologia na UEL (Universidade Estadual de Londrina)
as questões sobre a possibilidade de transformação das desigualdades sociais sempre me
acompanharam. E talvez por ter incorrido no erro de imaginar e sentir que o teatro era mais
poderoso que a psicologia para possibilitar essa transformação, além do prazer que tive em
atuar, não consegui até o momento desatrelar-me do teatro. Sigo próxima a ele, mesmo que de
um fazer bastante diferente da atuação como atriz. Creio que caminhar entre o teatro, a
filosofia e a psicologia como faço nessa pesquisa trará a possibilidade de entranhar nessas
inquietações sobre as alternativas de transformação social.
Um grande aliado aos meus pensamentos, vivências e a essa dissertação é, portanto, a
filosofia. A filosofia como dispositivo para pensar a arte e sua potência política, fazendo uma
associação entre filosofia, política e arte. No que concerne à parte teórica desse projeto farei
um apanhado geral das concepções políticas de teatro passando por Brecht, Rancière e
Deleuze, dialogando com eles sobre as bases conceituais do teatro. E também sobre o
agenciamento entre o teatro, sua política subjetiva e/ou social e a questão racial.
A princípio essa pesquisa estava mais direcionada ao tema geral da arte, do teatro e
reflexões filosóficas sobre política. No entanto o campo da pesquisa ainda não estava
definido. O encontro com a peça Salina aconteceu por acaso e é uma oportunidade poder
visualizar um grupo de teatro e sua obra, analisar na prática, os agentes, seus engendramentos
com a arte, e também o desdobramento dessa arte para os espectadores. Essa obra, Salina, nos
possibilitou também a chance de entrar em questões políticas que emergiram nesse encontro.
A questão racial é um dilema bastante relevante em nosso país. Portanto a questão racial
acabou se transformando em uma questão importante para essa pesquisa. Após as entrevistas
com as atrizes e a diretora ficou bastante evidente a questão do negro como centralidade da
peça e também as potências e respostas que a peça traz para situação da discriminação racial
em que vivemos nesse país. As questões que traz Rancière sobre a arte e a política podem ser
tão bem ilustradas por essa peça, que permite um bom entendimento da teoria desse autor. Do
ponto de vista do encontro artístico Salina é uma peça formidável, e do entrelaçamento entre a
arte e a política ela é essencialmente vigorosa e poderosa.
14

1 DIGRESSÕES FILOSÓFICAS: TEATRO E POLÍTICA

O teatro contemporâneo, assim como a arte moderna pode ser caracterizado por uma
enorme variedade, e portanto pela ausência de forma e de unidade. Para Bornheim (2007) a
diversidade de produções realizadas nos tempos atuais chega a pecar pelo excesso na ânsia de
originalidade, o que é também causado por um desgaste da tradição cultural. Não há um
conjunto de elementos que unifique as produções teatrais, é uma situação multifacetada na
qual não há uma concepção global do teatro. Em épocas passadas se poderia delimitar bem o
estilo característico de tal contexto e autor, hoje o que predomina é a pluralidade, estamos em
uma época considerada sem forma.
Rancière também nesse sentido percebe a arte moderna como de difícil definição,
porque hoje há uma indeterminação naquilo que concerne à arte. Existe inclusive um debate
para pensar o que é considerado arte hoje em dia, muito do que é construído como arte talvez
não mereça essa designação. No entanto o que mais interessa Rancière não é bem essa
classificação do que é ou não é arte, o interessante para ele é perceber o que há de não
artístico dentro da arte. Se num primeiro momento a arte e os artistas estão a serviço da fé, do
poder, do divertimento e das elites num segundo momento eles param de servir aos reis e
passam a tarefa de exprimir a vida do povo. A arte é então separada de certas funções sociais,
não se ilustra mais as religiões ou as grandes monarquias. Hoje a arte é endereçada a um leitor
ou auditor qualquer não qualificado dentro de uma posição hierárquica. Isso tudo são fatores
que provocam uma maior incerteza na arte. Inclusive para esse autor é uma libertação quando
a arte encerra seu vínculo com as ideias socialistas, porque a arte em certa medida também
estava aliada a posições políticas bastante determinadas, nesse sentido também a arte tem uma
preocupação com noções de grandeza e está ligada a função de representar algo. A arte
moderna faz sua ruptura com as dimensões de representatividade, como ela não está a serviço
de nenhuma entidade ela se torna mais livre e, portanto, mais autônoma. (RANCIÈRE, 2002)

A emancipação da arte na época das revoluções se aliou desde o início à ideia de


arte pura, isso quer dizer desligada das restrições representativas ligadas à serviço da
grandeza, era uma outra coisa que não uma técnica traduzindo as intuições em obras,
estava relacionada à elaboração de um sensório comum a uma forma de vida
(RANCIÈRE, 2002, p.36, tradução própria)

Ao colocar Bornheim e Rancière para dialogar sobre a indeterminação da arte pensa-se


na verdade em duas correntes filosóficas bem diferentes. Porque enquanto Bornheim é
15

bastante Marxista e traz um tom bastante depreciativo dessa indeterminação da arte vendo
como importante o engajamento da arte com as questões políticas e a transformação social,
Rancière vê essa abertura como um potencial positivo e significativo que indicam um caráter
emancipatório.
Nesse capítulo será feita uma passagem por três diferentes maneiras de pensar a arte e
sua ligação com a política, a primeira diz respeito a um modo Marxista de ver o teatro, como
Brecht, a segunda é a maneira como Rancière percebe essa relação entre arte e política, a
terceira como Deleuze percebe essa relação.
Como já foi dito anteriormente não seria possível pensar a peça Salina sem pensar toda
a política na qual ela está implicada.

1.1 Brecht e a transformação social pela arte

Bertolt Brecht nasceu no final do século XIX no estado independente da Bavaria e


viveu um momento de revoltas operárias um pouco turbulentas. Os trabalhadores queriam
mostrar sua insatisfação com as dificuldades que passavam diante de uma concentração do
capital industrial e também do capital bancário que formavam monopólios poderosos.
E Brecht está justamente preocupado com o fazer teatral que combatesse o capitalismo
e o imperialismo, mas se preocupava sobretudo com as formas de dominação e também
procurava combater a alienação que muitas pessoas têm sobre suas condições. Como ele
viveu em uma época conturbada de rebeldias e protestos seu teatro aponta esses elementos do
conflito cotidiano vivido por seu povo.
Ele procura nos mostrar que nós humanos temos a capacidade, o direito e o dever de
mudarmos o mundo em que vivemos. Ele entende que o espectador não está passivo diante da
peça apresentada no palco, o que se quer é transformar o espectador das peças em ativo, que
compreenda e critique sua realidade se sentindo potente para atuar e modificar seu cotidiano.

Já há muitos anos venho mantendo essa opinião, e moro atualmente num país onde
está se efetivando um esforço gigantesco para modificar a sociedade...- não, hão
porém de por em dúvida que no país onde vivo se trabalha para a modificação do
mundo, para a modificação do convívio dos homens. E talvez concordem comigo
que o mundo de hoje precisa de uma transformação (BRECHT, 1978, p.45)
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Brecht é um expoente que encarna a transformação social como objetivo último de sua
arte. Ele está muito aliado às ideias marxistas, pretendendo promover o socialismo com a arte.
Não há como refletir sobre o teatro contemporâneo sem situar o teatro épico: Brecht é
considerado um dos grandes dramaturgos do qual se tem referência para se pensar um teatro
crítico, um divisor de águas nesse universo teatral, com seu teatro épico e a criação do
conceito de estranhamento. Existe um antes e um depois de Brecht, não simplesmente como
um marco histórico mais como alguém que deixa um legado de ressonâncias sem medidas
para arte na atualidade, ele cria elementos novos para que cada peça da máquina teatral tenha
uma função diferente do teatro feito até então. “Brecht tenta uma reforma total da arte cênica.
Seria ingênuo dizer que o teatro do futuro será Brechtiano – mas suas ideias apresentam
virtualidades cujas consequências permanecem imprevisíveis” (BORNHEIM, 1992, p. 27).
A obra de arte, para Brecht, deve sua totalidade para o comum entre o dentro e o fora,
a materialidade na qual o homem pode se sujar com o mundo, ultrapassando a fronteira do
indivíduo, colocando o indivíduo em relação com o mundo, não se podendo deixar de lado a
materialidade conflituosa da história. Por isso Brecht é o dramaturgo do estranhamento, é
preciso estranhar a humilhação do sofrimento que estão tão naturalizados no nosso cotidiano,
sendo através do espanto que o cotidiano vivenciado com naturalidade pode ser estranhado,
desnaturalizado. “Se faz do teatro o agente da perda de si mesmo, a perda que convida a
plateia a pensar sobre si fora de si. Ter um novo olhar, um olhar sobre si e os fatos como se
fosse a primeira vez que se estivesse a olhar” (BORNHEIM apud BATISTA, 2005, p.119).
E é nesse mesmo caminho que a Cia do Latão, companhia de teatro Brechtiana de São
Paulo, que citei anteriormente, faz seus espetáculos. Por exemplo, na peça O Patrão Cordial o
diretor Sérgio Carvalho optou por fazer a peça nos anos 70, ele usou esse deslocamento do
tempo como ferramenta para provocar esse efeito do estranhamento, para estar fora de si e
pensar sobre si. O Patrão Cordial conta a história de um patrão que quando ele está bêbado é
muito gentil com o os empregados, mas quando está sóbrio é muito áspero e rígido. Portanto o
que o Sérgio Carvalho e os atores querem é fazer pensar a maneira como o cotidiano do
trabalhador é vivenciado e as sutilizas da relação entre trabalhador empregado. O diretor,
Sérgio Carvalho, faz esse distanciamento no tempo indo para o passado para incitar o
pensamento sobre o nosso tempo e algumas nuances da relação entre empregado e patrão.

Da estética brechtiana a seguinte exigência ética é formulada: “Isto significa também


que o teatro pode levar seus expectadores a fruir a ética particular de sua época, a
ética que dimana da produtividade. O teatro convertendo a crítica – ou seja, o grande
método da produtividade- em prazer, nenhum dever se lhe apresentará no campo da
moral, mas sim múltiplas possibilidades. (BAPTISTA, 2005, p. 120.)
17

Essa é a aposta Brechtiana, a arte como potente para intervir na realidade, provocando
um efeito social. Ele sustenta inclusive que o objetivo último do teatro épico é incitar a
reflexão e despertar para uma visão crítica, ou seja, a proposta do fazer artístico teatral com
uma função altamente intrincada com as questões políticas e a transformação social.
E ele está também muito presente na cena teatral contemporânea, muitos grupos de
teatro no Brasil e o no mundo representam as peças de Brecht, seja numa versão mais clássica
reproduzindo os textos das peças ou numa versão recriada onde a peça base é mantida, mas a
encenação e a criação artística do grupo fogem bastante do texto original. Há grupos que se
tornam seguidores do Brecht como é o caso da Cia do Latão que já citamos, mas há grupos
que escolhem apresentar uma peça Brechtiana entre um e outro espetáculo, fazendo uma
escolha aleatória para montar uma peça dele.
É claro que seu teatro está também muito preocupado com o nível artístico “ O teatro
épico é um teatro altamente artístico, denota um conteúdo complexo e, além disso profunda
preocupação social” (BRECH, 1978, p. 78). Brecht era um artista criativo, talentoso e
renovador de sua arte, por isso ele tem um reconhecimento na história da dramaturgia e no
teatro mundial.
Brecht é um dramaturgo, ator, diretor e poeta que propõe uma política para seu teatro.
Rancière é um filosofo que pensa a arte, mas ele tem uma percepção diversa do que seja o
teatro político. Inclusive com uma noção muito diferente do que é a política.

1.2 Rancière e a política da arte como transformadora da coletividade e subjetividade

Jacques Racière é filósofo e ativista político com quem tracei um grande diálogo
durante essa pesquisa. Para ele tanto as expressões artísticas como política estão ligadas pelo
fio da estética. Na política há uma dimensão estética. A estética e a política são formas de
organizar o sensível: de dar a entender, de dar a ver, de construir a visibilidade e a
inteligibilidade dos acontecimentos, argumento que ele concretiza bastante no seu conceito de
partilha do sensível. (ROCHA, 2007)
Um dos grandes encontros intelectuais que Rancière teve foi com o Althusser e o
Marxismo, a partir dessas teorias ele cria sua teoria crítica aos conceitos e modos de pensar da
ciência e ideologia Marxista. Eu arriscaria a dizer que os seus conceitos de emancipação e
igualdade foram construídos com oposição ao pensamento Marxista e Althusseriano.
18

Rancière acredita que o Marxismo enxerga de forma bastante hierarquizada as relações entre
trabalhadores e teóricos (filósofos, sociólogos), os textos ou falas dos trabalhadores são
muitas vezes desqualificados. Marcando-se uma diferença entre aqueles que possuem o saber
e aqueles que não possuem.

O protocolo “ciência e ideologia” que caracteriza o Althusserianismo e boa parte do


marxismo é feito para mostrar que os sábios e os ignorantes não falam a mesma
coisa e mesmo no texto dos trabalhadores que falam a mesma coisa, se diz que não é
o caso, porque para eles é uma ideologia, o vivido que se exprime o empírico,
enquanto no caso de Marx são os conceitos. (RANCIÈRE, 2013, p. 24, tradução
nossa)

Já Foucault é um teórico com o qual Rancière tem afinidade teórica, pois ele
reconhece que Foucault consegue fazer uma aproximação entre militância e trabalho teórico e
não está preocupado com a aplicação de uma teoria a uma prática. O ativismo político de
Marx seria na verdade controverso, pois a barreira que ele coloca entre a teoria e a prática
torna o vínculo entre intelectuais e trabalhadores hierarquizado. Poder-se-ia fazer uma
analogia entre os proprietários do conhecimento e os proletários do conhecimento. Marx
deseja combater a hierarquia quando se refere ao poder econômico entre os proprietários dos
meios de produção e os proletários, no entanto quando se refere ao quesito da intelectualidade
a hierarquia é afirmada, temos aí o indicativo de um paradoxo.
O que Foucault faz com o GIP (Grupo de informações sobre a prisão- em os
presidiários tinham meios para falar sobre sua experiência nas prisões) é quebrar essa
hierarquia entre o discurso do presidiário e o discurso do jurista. Para Foucault o discurso do
presidiário não é mais relevante do que o do jurista, eles estão em um pé de igualdade, no
entanto é bastante interessante que os presidiários tenham uma teoria própria sobre o presídio.
Foucault é um filosofo que pretende transcrever a cena, como exemplo a cena da loucura na
modernidade e como ela se constituiu, que podemos ler no seu célebre livro a História da
Loucura. Ele propõe escrever sobre o espetáculo do mundo, pode ser a doença, a loucura ou o
crime, e então podemos ver quais desses papéis teremos em cena, vemos colocado em cena a
maneira como o ocidente agencia essas questões. Ele quer escrever o teatro da verdade, ele
coloca em cena a doença, a loucura e o crime, é uma história da cena da loucura, ele coloca
em primeiro lugar o teatro, não é uma verdade ou a história de uma verdade. A cena é a
descrição de uma situação da emblematização. Nesse mesmo caminho segue Rancière,
fazendo uma passagem entre o idealismo e o realismo. A cena não é uma alegoria, a cena não
está relacionada à representação de uma ideia, quem presta serviço a uma imagem é a
19

alegoria, essa é construída por uma ilustração. A cena é a princípio um encontro que coloca
uma rede diversa em um sensório comum, um encontro supõe um choque de certos elementos
diferentes. Perceba que estamos falando em um sentido contrário ao platonismo. A ideia e a
imagem estão no mesmo estatuto, a cena permite quebrar hierarquia entre a ideia e a imagem.
No interior da cena ela mesma não há hierarquia entre a grande arte e a arte popular. E essa
dimensão de cena vem mudar o paradigma da arte.
Apesar de Rancière ter se influenciado por alguns pensamentos filosóficos, ele não se
considera ligado a nenhuma escola filosófica, normalmente um filósofo para desenvolver sua
teoria segue uma tradição filosófica. Ele passou muito tempo a fazer outra coisa que não
filosofia, e suas influências vêm na maior parte das pessoas com que ele encontrou em vida:
Sartre, Althusser e Foucault.
E Foucault inaugura a filosofia da condição de possibilidade, ele inaugura uma atitude
filosófica, uma atitude de que tal coisa é pensável e que tal coisa não é possível ser pensada.
Ele vai dizer que não há uma hierarquia entre a teoria e a prática.
Rancière considera importante a relação entre a arte e a coletividade, ele não acha que
a arte vai servir a uma comunidade, a arte é uma expressão humana. E o fato de ser uma
expressão humana a torna parte da coletividade. A ligação entre arte e política passa pela
experiência, como a arte de Picasso, por exemplo, a experiência do artista é partilhada por
aqueles que se identificam com a obra. A arte é constituída pela experiência, a experiência faz
o comum e a política da arte é trazida por essa formação do comum, portanto o elo entre arte e
política está ligado à formação de um comum que passa necessariamente pela experiência da
partilha do sensível.
Rancière no seu texto O mal-estar na estética, talvez um pouco filosófico demais se
comparados ao Mestre Ignorante, ao Espectador Emancipado e ao Método da igualdade que
são os textos base a que me refiro nesta dissertação, mas ele pode ajudar a entender a filosofia
de Rancière e a entender a correlação entre arte e política. Nesse livro ele aponta que a arte
cria um mal-estar entre os filósofos, porque não é possível colocar a arte no registro da
verdade. O problema de pensar a arte é que nós não estamos no registro da racionalidade não
é possível de fazer uma ciência sobre isso, pensando a arte estamos no limite da racionalidade.
Portanto o mal-estar repousa no fato de termos que enfrentar a desordem, de termos de ir ao
encontro dessa desarrumação. Mas pensar na arte é estar de uma certa maneira entre o
sensível e o inteligível. É uma forma de perceber como é produzida uma nova forma de
inteligibilidade, ele mostra que em um momento dado o inteligível e o sensível são sempre
misturados, portanto ele propõe um novo regime estético, que é um novo regime do sensível,
20

mas também um novo regime do pensamento. A maneira de pensar surge do sensível. Na


história da filosofia, assim como na ciência e na produção acadêmica, existe uma hierarquia
entre a inteligibilidade e a sensibilidade, o inteligível é sempre mais relevante que o sensível.
E Rancière pela sua obsessão pelo igualitário tenta desconstruir essa hierarquia. A arte é um
sensório, e, por conseguinte sensorial. Ele pretende, portanto, a desconstrução da grande arte,
o que importa é a experiência e o regime de sensibilidade. Há uma radicalidade da arte, uma
potência da arte, e essa relação entre arte e política dissocia a política do poder. O senso
comum é político, e o político continua de qualquer maneira um comum. O político não é a
luta pelo poder. Rancière está ao lado da radicalidade da experiência singular que pode ser
vivida, mas também a maneira como ela pode atingir o público que muda tanto singularmente
como coletivamente.
Essa comunidade, esse comum que Rancière aponta como o público de uma obra de
arte que compartilha uma sensibilidade sobre a obra e o fato de que haja a formação dessa
comunidade já é em si político. No entanto um comum que se coloca sobre o dissenso, não
existe partilha do sensível sem conflito de interpretação.
A questão da indecidibilidade da arte pode ajudar a entender a dimensão política da
arte para Rancière, e nesse sentido sua ideia de teatro político diverge da concepção de
Brecht. E isso para ele é um ponto fundamental para se entender a política da arte, na
indecidibilidade que repousa a política, pois fazer uma arte já pré-programada para ser ativista
não se alcança a fazer realmente política. A política acontece em uma obra ou artista quando
eles dispõem uma indecisão sobre sua obra de arte. A indécidabilité (indecidibilidade) dá
sempre a liberdade de interpretação. Ele se preocupa principalmente com a questão ética da
arte. (RANCIÈRE, 2004)
O conceito de emancipação está muito aliado a essa questão de liberdade que vim
pensando anteriormente, e mesmo que Rancière venha construindo esse conceito ao longo de
sua trajetória teórica, esse conceito nos aparece bastante claro na leitura do seu livro O Mestre
Ignorante. Nesse texto ele declara que a guerra é a lei da ordem social, porque temos paixão
pela desigualdade e essa é uma vontade pervertida, uma lógica contra a emancipação. Quando
os sujeitos se ligam pela comparação não cessam se não de produzirem o embrutecimento. A
guerra e o ato de guerra estão inclusive no nosso íntimo ato de comparar e competir.

O mundo social não é apenas o mundo da não razão, mas o mundo da desrazão, isto
é de uma atividade da vontade pervertida, possuída pela paixão da desigualdade.
Continuamente os indivíduos ligam-se uns aos outros pela comparação, reproduzem
essa desrazão, esse embrutecimento que as instituições codificam e que os
explicadores solidificam nos cérebros. (RANCIÈRE, 2002, p. 90)
21

A ideia central desse texto é o vínculo entre mestre e aluno que é hierarquizado
centralizando na figura do mestre, Rancière assinala que essa hierarquização acontece porque
ela está dispersa na maneira como a sociedade se comporta, ampliando essa questão do
vínculo entre mestre e aluno aos dilemas das nossas relações cotidianas e a maneira como as
instituições incorporam esses modos de existência. A emancipação estaria justamente na
quebra desses ciclos de desigualdades.

...:sempre se pode mesmo no ciclo da loucura desigualitária, verificar as igualdades


de inteligência e prestar conta dessa verificação.
Todo homem pode e a cada instante emancipar-se e emancipar o outro, anunciar a
outros esse benefício e aumentar o número de homens que se reconhecem como tal.
(RANCIÈRE, 2002, p. 106)

E para compor essa dissertação é um presente que Rancière tenha escrito um livro que
trate justamente do teatro, ele alia essa noção de emancipação ao teatro, no seu livro o
Espectador Emancipado ele pensa o efeito que a peça provoca sobre o espectador. Nesse texto
há também uma intersecção entre a política e arte, em que ele reflete sobre a possibilidade de
subversão pela arte e a possibilidade de transformação da subjetividade a partir da arte. Ele
pensa a partir dos efeitos que o teatro pode ter sobre o público e as repercussões políticas
desses efeitos, mas é um efeito diferente do que pretende Brecht com a politização do
espectador. Para Rancière a aposta de Brecht é audaciosa. Será visto brevemente a análise do
conceito de estranhamento tão crucial para o teatro épico pela ótica do Rancière, que aponta
que o estranhamento não causaria o efeito de repercussão desejado a ponto de suscitar uma
mobilização nas pessoas. As possibilidades perceptivas seriam ampliadas pelo estranhamento,
mas seria um exagero esperar que isso provocasse uma mudança na posição ética do sujeito.
O estranhamento, segundo Brecht, motivaria o espectador a se retirar do estado embrutecido
do parvo fascinado pela aparência e conquistado pela simpatia que o identificava aos
personagens da cena. E abandonando a identidade com o personagem, distanciando-se dele
pelo estranhamento o espectador seria retirado do lugar de passividade. O espectador ficaria
na posição de inquiridor ou de experimentador científico que observa os fenômenos e procura
as causas. Em resumo, o espectador deve ganhar distância daquilo que está sendo
representado, sem identificar-se com aquilo ele acaba tendo que ampliar sua dimensão
racional e “ ...Desse modo, precisará aguçar seu senso de avaliação das razões, das discussões
e da escolha decisiva” (RANCIÈRE, 2012, p.10). Isso tornaria o espectador desse teatro um
capacitado para exercer suas convicções políticas. Há em Brecht uma excessiva valorização
sobre a racionalidade, portanto a intenção da peça é tornar o espectador bastante racional, ele
22

se conscientiza das questões sociais que o rodeia e o torna potente para agir e transformar a
realidade social. O desejo de Brecht é tornar o espectador ativo através da sua racionalidade.
(RANCIÈRE, 2012)
Geralmente associa-se ao ator a atividade e ao espectador a passividade, sendo essa a
maneira como Brecht enxerga, porque o ator tem de agir e provocar a desalienação do
espectador. E o que Rancière faz é desconstruir esse lugar marcado para espectador e para o
ator como se residisse no ator a potencialidade de transmitir o conhecimento e então eles
estariam separados entre aqueles que têm capacidade e os que não têm, no ator repousaria a
capacidade, no espectador a incapacidade se não fosse a iluminação que a mensagem da peça
é capaz de transmitir. E no ator e diretor estaria a capacidade de transmitir essa mensagem.
Rancière traz o conceito da pedagogia do mestre ignorante para fazer uma analogia da relação
de hierarquização entre ator e espectador no teatro. O mestre que acredita que o conhecimento
é transmitido, que ele é capaz de passar o saber que possui ao aluno que ignora aquele saber,
ele que acredita ensinar as ferramentas para adquirir esse saber, ele crê numa relação que está
construída com base nos princípios de causa e efeito, esse seria um mestre embrutecido. Já o
mestre ignorante rompe com a identidade de causa e efeito, ele é aquele que busca romper
com as fronteiras, a fixidez e a hierarquia das posições, pois o aluno aprende o que o mestre
ainda não sabe, ele aprende a buscar o conhecimento que o afeta e comprovar essa busca ao
mestre, sem estar preso a aprender o saber que o mestre possui. O mestre também aprende a
aprender. E fazendo essa homologia com o teatro, o espectador como o aluno é tirado desse
lugar de passividade de quem recebe a mensagem que os atores e diretores passaram pelo
espetáculo, o espectador tornar-se-ia emancipado. O espectador participa do espetáculo,
observando, selecionando, comparando, refazendo-a de maneira particular. Ele furta a sua
energia vital e transforma-a em pura imagem e associa a uma imagem sua, uma história que
leu, um filme que viu, uma situação que viveu, ou até mesmo associa aos seus sonhos. O
espectador cria seu próprio poema quando traduz o espetáculo. Portanto é um espectador que
se desvia da lógica do pedagogo embrutecido, da lógica da transmissão direta e fiel de um
saber, da transmissão de uma capacidade para um corpo ou uma mente. O espectador
emancipado se distância da noção de causa e efeito esperada na transmissão direta e fiel: “ O
que o espectador deve ver é aquilo que o diretor o faz ver. O que deve sentir é a energia que
esse comunica” (RACIÈRE, 2012, p. 18) Quando se aposta na emancipação do sujeito, nem o
espectador, nem o ator são o proprietário do saber ou do sentido da peça. Quando se afasta a
possibilidade de transmissão fiel, afasta-se a identidade entre causa e efeito.
23

A grande potência da arte é contribuir para reconstruir o âmbito de nossa percepção e


dinamismo de nossos afetos. Com isso abrem passagens possíveis para novas formas de
subjetivação dos afetos. E aí reside a política do teatro, tornar possível a afetividade é em si
político, principalmente se falamos de uma afetividade compartilhada que constrói uma
comunidade sensível àquela arte. O que seria a partilha do sensível.
Artaud e o teatro da crueldade. Artaud tem uma postura contrária a essa distância
reflexiva do espectador, dessa posição de quem examina racionalmente o espetáculo, do lugar
do controle ilusório. Ao invés do privilégio de observador racional o espectador deve ser
arrastado para o círculo mágico da ação teatral e estar empossado da verdadeira energia vital
do teatro. Artaud em seu primoroso texto O teatro e seu duplo, um dos tratados do teatro da
modernidade traduz bem o nível de afetação e de transmissão da energia vital através da
encenação.

Sendo assim, vê-se que, por sua proximidade dos princípios que lhe transferem
poeticamente sua energia, essa linguagem nua do teatro, linguagem não virtual, mas
real, deve permitir, pela utilização do magnetismo nervoso do homem, a
transgressão dos limites comuns da arte a da palavra para realizar ativamente, ou
seja, magicamente, em termos verdadeiros, uma espécie de criação total, em que não
reste ao homem senão retomar seu lugar entre os sonhos e os acontecimentos.
(ARTAUD, 2006, p.105)

1.3 Deleuze e a política do minoritário

Rancière tem um entendimento do que é a arte e o teatro que é próximo ao


entendimento de Deleuze, apesar de terem criado conceitos diferentes e caminhos muito
diversos para construírem suas teorias. Mas através das minhas pesquisas eu posso perceber
que há uma aproximação entre o que eles pensam a respeito de Marx. Ambos possuem uma
relação de amor e ódio às ideias Marxistas. Amor ao Marx no que diz respeito ao desejo de
um mundo menos desigual, com menos violência, menos guerra. E também ódio a ele porque
elaboram conceitos que buscam desconstruir de alguma forma o pensamento marxista, mas
esse é um ódio amável. Essa citação de Deleuze, 2008, p. 212 indica esse amor a Marx:

Creio que Felix Guattari e eu, talvez de maneiras muito diferentes, continuamos
ambos marxistas. É que não acreditamos numa filosofia política que não seja
centrada na análise do capitalismo e de seu desenvolvimento. O que mais nos
interessa em Marx é a análise do seu desenvolvimento como sistema imanente que
não para de expandir seus próprios limites, reencontrando-os sempre em uma escala
ampliada, porque o limite é o próprio capital.
24

No entanto Deleuze reafirma a diferenciação que tem da teoria de Marx, talvez a


palavra diferenciação substitua melhor a palavra ódio. Ele prefere substituir a análise das
contradições para pensar em linhas de fuga, ele prefere pensar não em termos de classe, mas
em termos de minorias, e aposta principalmente nas máquinas de guerra 1que são potências,
que longe de pretender a guerra carregam em si a disposição de criar novos espaços-tempos
para resistir à dominação. E entre as máquinas de guerra estão os movimentos revolucionários
e os movimentos artísticos; e isso me interessa verdadeiramente. Ou seja, como os
movimentos artísticos podem auxiliar nessa resistência dialogando e potencializando a força
das minorias.
Para concluir esse argumento voltemos ao amor e diferenciação de Rancière pelo
Marx. Rancière em sua trajetória intelectual foi aluno de Althusser e foi declaradamente
influenciado por esse autor marxista. Algumas ideias de Rancière o aproximam de Marx, pois
ambos têm objetivos comuns, mas os meios propostos para chegar a esses objetivos são
diversos. A obsessão pelo igualitário, que pode ser observado em o Espectador Emancipado, e
em grande parte de sua obra, seria um objetivo comum ao do Marx. Os meios, os conceitos e
as ferramentas que Rancière tem para pensar a igualdade entre os humanos é diferente,
distinguindo-se bastante do marxismo, nesse sentido o conceito de emancipação também pode
ser visto como distante dos conceitos marxistas, porém guardam alguma proximidade.
Há um entendimento que tanto para Deleuze como para Rancière existe um a partir de
Marx que se diferencia dele. A partir desse encontro eles se divergem. É como se existisse um
encontro em que reconhecem o aprendizado, mas se despedem dando seus próprios limites e
criando seus próprios conceitos.
Deleuze escreve em um texto chamado Um manifesto de menos sobre o teatro e como
ele entende que essa manifestação artística pode funcionar como uma máquina de guerra para
potencializar as minorias. Nesse texto ele pensa a subversão pelo fazer teatral, como uma peça
poderia ser montada colocando elementos que dariam a ela um caráter subversivo. Uma peça
ou espetáculo que teria em si, na sua composição uma proposição subversiva. A subversão
tem esse caráter combativo da máquina de guerra, ela tem esse poder de agenciamento da

1
O conceito de máquina de guerra criado por Deleuze e Guattari (1997) é diversas vezes citado nos cinco
volumes do livro Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. No décimo primeiro platô (capítulo), que está no
quinto volume desse livro, os autores se dedicam a explicar o termo máquina de guerra. Foi escolhida uma
breve citação que pretende esclarecer o termo: A máquina de guerra “ faz valer um furor contra a medida, uma
celeridade contra a gravidade, um segredo contra o público, uma potência contra a soberania uma máquina
contra um aparelho(...)Dá provas sobretudo de outras relações com as mulheres, com os animais, pois vive
cada coisa em relação de devir, em vez de operar repartições binárias entre “estados”: todo um devir animal do
guerreiro, todo um devir mulher, que ultrapassa tanto as dualidades de termo como as correspondências”
(DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.8).
25

resistência à supremacia da dominação. Ele vai refletir então quais os elementos dentro do
teatro que proporcionaria essa desarrumação.
Assim como Artaud, Bob Wilson, Grotowski, o Living Theater são filiados a uma
forma de fazer o teatro contemporâneo que é o teatro da não representação, o mais subversivo
de todos os teatros segundo Deleuze é o de Carmelo Bene2 porque em seu procedimento ele
inventa recursos para a subtração dos elementos estáveis do Poder, que vão “liberar uma nova
potencialidade de teatro, uma força não representativa em desequilíbrio.” (DELEUZE, 2010).
O teatro quando cumpre seu caráter subversivo deve ter uma função crítica porque
deve em todas as instâncias quebrar com o institucionalizado, ter a ver com um teatro
experimentação, um teatro criador e criativo, onde as interrupções são possíveis no
desenvolvimento de virtualidades inesperadas. Produzindo neutralizações nos movimentos e
elementos que representam um sistema de poder, esse seria o teatro da não representação.
Deleuze marca a forma como seu pensamento contrasta com o marxismo quando
pensa também o teatro. Para ele Brecht é um dramaturgo crítico, mas isso se mostra mais em
seus escritos do que nas encenações de suas peças, porque a operação verdadeiramente crítica,
segundo defende Deleuze, está ligada a retirada de elementos estáveis. E Brecht está tão
preocupado com as questões contraditórias, os conflitos, que ele não consegue tangenciar a
variação contínua, não consegue sair do domínio da representação, o polo dramático da
representação burguesa passa para o polo épico da representação popular, o que está colocado
aí é a representação dos conflitos. Os conflitos, as contradições, as oposições já estão
normalizados, codificados, institucionalizados por isso o teatro que toma como objeto os
conflitos não conseguem sair da representação. A variação não está presente na
representação, não se encontra na representação a possibilidade de emergência de uma
variação criadora tão fundamental para arte minoritária. Estamos pensando em um teatro
diverso daquele narcísico, historicista, moralizante. Deleuze frisa bem a diferença entre o
teatro representativo e o não representativo quando afirma: “Essa função antirepresentantiva
seria traçar, constituir de algum modo uma figura da consciência minoritária, como
potencialidade de cada um. Tornar uma potencialidade presente, atual, é completamente
diferente de representar um conflito” (DELEUZE, 2010, p.60).

2
Carmelo Bene foi um ator, dramaturgo e cineasta italiano que trazia em sua dramaturgia questões que
interessavam Deleuze pela aproximação com o conceito de menor. Ele subtrai e amputa certos elementos
teatrais produzindo a diferença pela repetição e a repetição pela diferença. Por exemplo na peça Romeu e
Julieta, ele amputa Romeu e faz crescer o personagem Mercúrio. Em Shaskepeare Mercúrio more rápido.
Carmelo Bene prolonga sua vida e uma outra peça vai se constituir a partir desse personagem.
26

No teatro da não representatividade deve haver espaço para o minoritário se expressar.


Há uma quebra com a lógica majoritária. A representação está relacionada ao modelo que se
cria como padrão. A existência de um modelo padrão aporta a ideia de ter como referência o
homem-branco-cristão-macho-adulto-morador da cidade- norte americano. Esse referencial
não é maioria numérica, mas se remete a um modelo de poder. Podemos considerar esse um
fato majoritário, temos a maioria relacionada a esse modelo de poder, a minoria é o que
desvia desse modelo. De uma ou outra maneira todos desviamos desse padrão majoritário,
então porque não extrapolar o limiar representativo do padrão majoritário, possibilitando
assim o devir minoritário presente em cada um. Precisamos dar voz ao desviante.
O minoritário na peça Salina se relaciona a etnia negra escolhida pelo grupo para
compor tudo o que envolve o espetáculo, a estética da peça é negra. E nesse sentido a peça
converge muito com os pensamentos de Deleuze porque apesar do tema do negro estar
presente não há uma tentativa de representar o conflito racial, mas a vivacidade da cultura
negra está tão presente e somos levados a esse universo, temos a possibilidade de entrar nesse
mundo, sem entrarmos na questão da discriminação racial. Ou seja, essa não é uma peça que
se preocupa com a representação, mas, sobretudo ela proporciona um agenciamento da
resistência à supremacia da dominação, portanto ela apresenta esse caráter combativo da
máquina de guerra.
A etnia é o subalterno à História hegemônica, aquilo que os livros da escola não
mostram e que a História não leva em conta. E o minoritário fica entendido como um fator
político e social importante a ser pensado. Por isso vamos relacionar o negro e o menor para
pensamos a potencialidade do devir minoritário.

A fronteira não se encontra dentro da História, nem mesmo dentro de uma estrutura
estabelecida, nem dentro do “povo”... Na verdade a fronteira está entre a História e o
anti-historicismo, isto é, concretamente “aqueles que a História não leva em conta”.
Ela está entre a estrutura e a linha de fuga que a atravessam, entre o povo e a etnia.
A etnia é minoritário, a linha de fuga na estrutura, o elemento anti-histórico dentro
da História. (DELEUZE, 2010, p.61)

Todos somos minoritários porque de certa forma fugimos para mais ou menos dos
modelos estabelecidos como padrão. Considerando a minoritariedade presente nessa relação
com o negro, juntamente com as hegemonizações próprias do momento histórico, poderia o
teatro potencializar a caotização que gera novos arranjos da realidade? O teatro possibilitaria
um devir minoritário capaz de promover movimentos de caosmose: movimentos de
desarranjos e novos arranjos de produção da realidade, segundo denomina Guattari os
27

movimentos em que o devir minoritário se sobrepõe ao devir maioritário possibilitando uma


nova disposição na produção da realidade. (PASSOS; BENEVIDES, 2009) Porque o devir
maioritário é aquele que já se tornou um modelo de poder, uma forma de existência ideal, ou
seja, um modo de existir que as pessoas tem com ideal, poderia o teatro servir de meio para
potencializar estes movimentos de caosmose, buscando subverter a ordem estabelecida
através da arte, fazendo a história e produzindo a diferença?
Ainda sobre o texto Um Manifesto de Menos, há nele a proposta da tomada de
consciência como uma potência. Mas não é uma tomada de consciência como propõe os
dialéticos-dualistas, denominarei assim, de tornar consciente aquilo que passava
despercebido, de que se revele aquelas relações que se encontravam obscuras para então
poder interpretá-las e a partir disso propor soluções. Seria justamente colocando de lado as
interpretações e soluções que a consciência recobraria a sua luz. Não é na oposição
obscuridade x luz que se pode interpretar. A interpretação vem da luz pura. Um teatro
revolucionário está “em uma simples potencialidade amorosa, um elemento para produzir um
novo devir da consciência” (DELEUZE, 2010, p.64). Resgatar a consciência da minoria seria
dar voz a essa luz crua, a potência amorosa, que não encontra obscuridade em seu devir.
E com essa percepção de minoritário trazida pelo Deleuze passarei a uma reflexão
sobre o trabalho do pesquisador, sobre a política da pesquisa e o engajamento do pesquisador
com os atores da pesquisa. Já pensando um pouco a metodologia usada nesse trabalho.
Quando caminhamos guiados por modelos, acreditando na neutralidade e objetividade de
nossas atuações, estamos longe de encontrar essa consciência da minoria, essa potencialidade
amorosa. Estar implicado em sua atividade conseguindo analisar seus pertencimentos e suas
referências institucionais, e colocando em debate o lugar de saber/poder em que está situado,
“analisando seu território não apenas no âmbito da intervenção que está realizando, mas
levando em conta as relações sociais em geral, o seu cotidiano, a sua vida, em suma o lugar
que ocupa na história” (COIMBRA; NASCIMENTO, 2003, p. 34). Com maior proximidade
nas relações que se estabelece uma consciência da minoria, podendo assim cobrar sua luz,
crua luz. E dessa potência amorosa nascer os devires revolucionários. E para construir a
história do presente em que vivemos, a construção de um capítulo à parte sobre a questão
racial se fez necessária. Sentindo uma necessidade de dialogar com os autores que pensam o
racismo contra o negro e que constroem suas versões a partir do olhar minoritário que se
encontra na etnia. Mas a necessidade desse diálogo com os autores que pensam o tema racial
surge também porque nas entrevistas com as atrizes Tatiana Tiburço, Luciana Lopes e Luana
Vitor esse tema aparece muito claramente, assim como aparece nas narrativas de Ana Teixeira
28

e nos relatos dos espectadores. Fui afetada por essas falas e a questão racial se tornou um
problema dessa pesquisa. E também faço essa escolha para dar continuidade ao meu
argumento pensando junto com Deleuze sobre a máquina de guerra (SALINA) contra o
Estado (supremacia branca). Também porque desejo pensar o negro como minoria, outro
conceito de Deleuze.
29

2 DO PERCURSO E DOS FRACASSOS: INDAGAÇÕES METODOLÓGICAS

Para responder à pergunta com que sangue foram feitos meus olhos proposta por
Haraway (1998) na intenção de localizar o saber que produzo, podendo pensar as políticas que
acompanham meu pensamento, políticas afetivas e pessoais, pois nenhum saber é universal,
não se estando fora da pessoa que o produz, responderei que a escolha pelo teatro como objeto
dessa pesquisa advém de uma paixão. Tenho um profundo amor pelo teatro, fiz formação de
atriz durante três anos, dois anos enquanto estava nos últimos anos da graduação em
psicologia e mais um ano quando eu já estava formada.
Do projeto inicial dessa pesquisa até a constituição dessa dissertação passamos por
muitas mudanças. Os objetos da pesquisa mudaram completamente, o problema se
transformou, mas manteve sua centralidade, a metodologia se manteve relativamente intacta.
A mudança de objeto aconteceu pelos encontros que foram acontecendo durante o processo.
A peça Salina não estava no projeto inicial, mas esse encontro alegre teve grande importância
para essa dissertação, por isso o caráter processual está presente nessa pesquisa.
Pretendo deixar o leitor acompanhar mesmo o projeto que não chegou a ser realizado,
pois assim podemos acompanhar um processo e também mostrar como aconteceu o encontro
com a peça Salina e o grupo Amok.
O projeto tinha inicialmente como metodologia acompanhar o processo do fazer
teatral de um grupo de teatro que tem sua sede situada na favela do Vidigal, o Nós do Morro.
Um dos objetivos era realizar a pesquisa através da participação das aulas de interpretação
junto com os atores, dos ensaios e das apresentações. Tinha em mente que esse híbrido de
pesquisadora e atriz traria uma inovação metodológica própria da cartografia. Dissolução dos
lugares pré-estabelecidos pela ciência tradicional entre pesquisador e objeto. A desarrumação
produzida na pesquisa por participar de dentro funcionaria como uma etnografia, uma atitude
no trabalho de campo que permita ao pesquisador hibridar com seus objetos, numa relação de
agenciamento com os participantes, de composição entre heterogêneos onde os corpos se
envolvem em afetações mútuas, compondo com os heterogêneos a ponto de agir com eles,
escrever com eles. Essas são algumas pistas que segundo (POZZANA; KASTRUP, 2009),
direcionam as atitudes do cartógrafo no campo de pesquisa. Na minha concepção esse
encontro com os atores era como uma aventura antropológica, poderia se fazer uma analogia
ao como ir a uma tribo e participar das atividades cotidianas dos índios, considerando aqui os
atores como índios urbanos eu participaria da atividade cotidiana desses índios, as atividades
30

de interpretação teatral. O que de alguma maneira era um erro porque o etnógrafo não deseja
ser o índio. Ele sabe da impossibilidade de ser índio, mas eu queria ir mais longe, imaginando
que seria possível falar e ouvir de dentro da experiência. E essa pesquisa em partes me
demandaria mergulhar profundamente na atriz que existe adormecida em mim, penetrar mais
do que minhas forças alcançam hoje. A metodologia foi mudada, em certa medida, para
acompanhar a mudança do campo de pesquisa. Escolhi ser espectadora, dialogar com os
atores e diretores, mas também com os outros espectadores. Entendendo que meu lugar não
poderia ser outro, mas aquela que observa, que dialoga e participa, mas não interpreta nenhum
personagem no palco do teatro, só interpreta a personagem da pesquisadora. Mas mantive a
ideia de proximidade com o campo, com perspectiva de habitar o território existencial dessas
pessoas. O encontro com a peça Salina- a última vértebra permitiu mergulhar e penetrar nos
meandros de sua feitura e nos efeitos que dela emergem, efeitos produzidos nos atores, nos
diretores, no dramaturgo e também nos espectadores, bem como a atrizes e a diretora da peça.
Buscamos estar abertos o máximo possível ao encontro com esses atores da pesquisa,
mergulhando nas intensidades do que estiveram presentes nas vivências, dando expressão aos
afetos que pedem passagem.
Acredito que os atores dessa pesquisa conseguiram expressar muitos afetos a partir
desse nosso encontro. A começar por mim que expresso aqui o imenso prazer que tive ao
assistir essa peça e ao acompanhar as oficinas realizadas por Ana Teixeira. As oficinas
aconteceram no Jockey Club e foram realizadas para um público de atores que não eram os
atores da peça. A minha participação nessa oficina tinha por objetivo acompanhar o método
utilizado pelo Amok para formação dos atores. Essa vivencia nos proporcionou uma imensa
satisfação, em primeiro lugar por ter escolhido o teatro como objeto de pesquisa e ter a
oportunidade de ainda estar tão próxima, tão dentro do universo do teatro. Para mim era como
se a parte em mim que ainda deseja bailar e interpretar, que sabe do enamoramento que arte
produz a si mesma, estivesse imensamente grata por esse encontro. E o encontro entre a
paixão e o saber me atraía e atraí justamente pela subversão do ato da pesquisa que busca a
neutralidade e o distanciamento. Refletir sobre a afetação que a arte provoca na vida das
pessoas considerando a paixão e o afeto que essa arte em mim reverbera é assumir uma
posição de não neutralidade.
Minha paixão pelo teatro é enorme, ela é de um encontro alegre, que reverbera muita
potência em mim. Como um exemplo do meu fascínio, conto o momento quando acabou a
peça, eu estava em prantos, porque a peça é linda, porque sou chorona, e a última cena me
tocou muito. Ver a beleza do encontro de duas mulheres, uma com uma sede de vingança que
31

carrega consigo somente o sofrimento e o peso, a outra que por caridade e grandeza vem dar a
aquela um presente que de alguma maneira vinga a opressão e o peso da tradição. Duas
mulheres que se unem contra a opressão, a dor, o sofrimento. Esse desfecho da peça me toca,
me faz chorar de emoção, provocando uma catarse. Mas principalmente porque entre lágrimas
de comoção quando os personagens se tornam os atores para agradecer, olho para eles que
interpretaram esses personagens com tanto vigor e força por 3 horas de peça, e nesse
momento meu choro dobra, num misto de inveja e admiração. Quanta exuberância e potência
guardam essas pessoas. A peça é forte, fértil e bonita. E eu vibro de alegria no encontro com a
peça.

2.1 Mudança metodológica: entrevista e participação-observante

A metodologia não foi realizada exatamente como prevista anteriormente, não


conseguiria hoje fazer as aulas como uma aluna matriculada em um curso de teatro, fazendo
minha investigação de dentro como pretendia, mas para manter a essência metodológica,
mantendo uma proximidade com o campo, acredito ter encontrado uma solução para manter o
projeto de traçar uma cartografia com os atores, diretores e espectadores. Com os
espectadores foi uma sorte a existência desse potente grupo no facebook que proporcionou um
lugar de passagem dos afetos sobre a peça, espontaneamente eles quiseram registrar a marca
que a peça tinha lhes deixado, um material interessante que usamos como análise. Há uma
mudança no dispositivo, que não será mais a inserção tão direta no grupo, mas estará pautada
na entrevista e participação-observante. Primeiramente esse encontro se deu em uma oficina
que aconteceu em maio, acompanhei a oficina e me aproximarei do método de formação de
atores do Amok teatro. Depois dediquei-me as entrevistas com as atrizes do grupo.
Privilegiando uma maneira de entrevistar que dialogue bem com o modo de fazer a
cartografia, que provoque o entrevistado a falar de dentro da experiência, buscando sempre
uma aproximação. Uma entrevista que acompanhe os movimentos de ruptura, as mudanças na
fala. Em uma entrevista há sempre uma dimensão formal da linguagem em que o aspecto
representacional é demarcado, mas há também uma dimensão não formal da linguagem,
porque a partir da dimensão intensiva é que se encontra indicadores do contato com o plano
de forças, em contraposição com o plano das formas, o plano de força revela a dimensão
intensiva. As modulações da experiência ficam expressadas por essa variação do dizer.
32

Segundo TEDESCO, SADE e CALIMAN, 2013, p.303 “ As irregularidades do dizer: a


entonação, variações de altura, velocidades, silêncio, repetição. Os signos exalam os afetos
ligados a vida, que agora circulam juntos, modulando o dizer, produzindo vivacidade na
língua”

2.2 Uma metodologia às avessas

Vinciane Despret (2012), no seu texto: O que diriam os animais se lhes fizéssemos as
boas perguntas, aponta que a noção de empatia não daria conta de resolver esse problema da
postura do pesquisador, colocar-se no lugar do outro como se houvesse a possibilidade de
metamorfosear-se nele, colocar-se em contato com aquilo que o outro sente ou pensa, numa
relação empática que pressupõe a ideia de identificação com o outro. Encontrar-se de fato
com outro pressupõe algo diferente da empatia. A empatia é um preencher-se de si, a ideia de
ser como o outro se distancia da ideia de ser com o outro. A transformação é deslocada do
tonar-se o outro, e deve então transformar-se a si próprio para abrir-se ao encontro com o
outro. Gerar uma transformação para a abertura do encontro com outro, para estabelecer com
o outro uma relação de troca e proximidade. “Há, de fato, uma espécie de "agir como se" que
leva à transformação de si, um artefato deliberado que não pode nem quer pretender à
autenticidade ou a uma espécie de fusão romântica frequentemente convocada nas relações
homem-animal” (DESPRET, 2012, p. 31). O encontro com os atores da pesquisa pode ser
conflituoso e truncado. Despret relata sobre a experiência da primatóloga Barbara Smuts que
quando foi pesquisar os babuínos compreendeu que ela era tão estrangeira a eles quanto eles a
ela, que aos olhos deles ela era uma estranha que tinha comportamentos bizarros, então ela
decide se transformar e começa a ter comportamentos parecidos com o dos babuínos, na
maneira de caminhar, de andar, de se comunicar. Isso a aproxima deles, possibilitando o
encontro.
Essa é uma noção que pretendo trazer para essa pesquisa, uma noção muito próxima a
de Latour quando pensa criticamente as ciências tradicionais. Ele desconstrói a perspectiva
linear da pesquisa no laboratório, onde há uma separação nítida entre o sujeito que pesquisa e
o objeto que é pesquisado. Nós não desejamos mais nos alimentar das certezas conquistadas
pelos métodos científicos das ciências naturais. A certeza de neutralidade, objetividade e
verificação em laboratório que era garantida pelos métodos da pesquisa científica.
33

Latour propõe uma metodologia chamada cartografia da controvérsia, e uma das pistas
para se construir uma cartografia da controvérsia é suspeitar dos pressupostos de verdade
produzidos pela objetividade científica, objetividade centrada na neutralidade, na
universalidade e nas generalizações. Essa é uma objetividade reducionista, porque para
respeitar essas características é preciso tomar uma única linguagem como parâmetro para
todas as traduções e conversões, se o funcionamento da produção do conhecimento está
embasado em uma única linguagem como modelo, a pesquisa segue em função da produção
do mesmo, e nisso repousa seu reducionismo. Produzir um conhecimento que utiliza uma
linguagem como modelo para suas traduções é na verdade concentrar-se em produzir o
mesmo. O importante é tentar partir da produção da diferença quando se pensa a produção do
conhecimento. Pensando a possibilidade de conseguir aliar a metodologia ao tema central da
nossa dissertação, a subversão, percebemos que para seguir a metodologia da controvérsia
será necessário subverter, ou em um termo mais comumente usado, desconstruir a maneira
tradicional de pesquisar. E engajar-se em produzir a diferença, implica em subverter em certa
medida a ordem vigente. O tema da pesquisa: possibilidade de subversão através da arte será,
portanto, coerente com essa proposta metodológica.
Outro fator relevante na constituição dessa abordagem metodológica é o abandono da
concepção dualista da constituição das coisas, como se estivesse no sujeito a capacidade
cognoscente para se apropriar do objeto. E seguindo essa lógica é possível fazer uma inflexão
sobre os filósofos que foram pensados no capítulo anterior: Rancière e Deleuze. Eles também
a sua própria maneira combatem esses dualismos e hierarquizações. Pretende-se, portanto
uma inversão desses valores tornando mais híbrida essa relação entre sujeito e objeto, a
relação não se dá de forma tão dualizada, natureza e homem, de forma tão verticalizada entre
sujeito e objeto. De maneira que esse deslocamento acontece nas duas vias, tanto no sujeito
como no objeto “por um lado, o objeto se impõe por sua variação, isto é, ele comparece no
científico como multiplicidade, como zona de flutuação objetiva; por outro lado, o sujeito, ele
também, se impõe como rede, como multiplicidade” (MORAES, 2004, p. 8).
A metodologia concebida por Bruno Latour (2008) é bem traduzida no seu artigo:
Como falar do corpo. Ali ele reflete sobre a importância do conhecimento ser articulado entre
as múltiplas vozes na pesquisa “ ...em vez de arrumados numa ordem hierárquica una,
formam uma espécie de arquipélagos de ligações heterárquicas forçando cientistas, filósofos e
leigos a decidir, caso a caso, se determinada peça científica é válida ou não.” (LATOUR,
2008, p.51). As consequências dessa nova concepção de mundo e de construção metodológica
34

trazem novas possibilidades de se deflagrar a produção de conhecimento, produção de


subjetividade e da arte.
Além dessa hibridação entre sujeito e objeto, há uma outra subversão que considero
ainda mais radical, localizar de onde parte o saber que é produzido. Haraway parte desse
princípio no texto Saberes localizados de 1988, esse texto é ainda bastante teórico, e nele ela
grita: viva o saber localizado, e descreve bem detalhadamente o que é e como se constrói um
saber que não se pretende universal. Mas no livro When Species Meet de 2008, ela define
com que sangue foi feito os olhos dela, ela conta as vivencias cotidianas com seu cachorro
para pensar questões teóricas, para pensar os enredamentos, e as conexões de redes políticas
que partem desse encontro, ela mostra seu corpo. Ela conta parte de sua infância e da forma
como ela foi criada percebendo suas implicações e como essas situações a influenciam em
suas concepções teóricas. Ela defende outra objetividade diferente dessa pautada na
neutralidade, sendo favorável a uma objetividade em que o pesquisador situa seu lugar na
pesquisa. O pesquisador engajado ao contrário de tentar esconder-se por de trás de uma teoria,
ou dos pressupostos de um quadro teórico no qual tenta encaixar o ator da pesquisa, ele é
convocado a deixar seu rastro. Buscando a referência do “pesquisar com” e para isso ele
também aparece em cena, narrando o lugar onde está.
Donna Haraway é uma bióloga norte-americana que nos ajudou muito a pensar a
metodologia do projeto, o artigo intitulado Saberes localizados, no qual ela disserta sobre a
importância do pesquisador manter uma relação não hierárquica com os atores da pesquisa,
onde ela ressalta a relevância do falar sobre si e indicar sua implicação com a pesquisa,
possibilitando o entrelaçamento em rede com os outros atores, permitindo o
compartilhamento generoso do saber. O pesquisador engajado em localizar o saber não se
enxerga como sendo o ator principal da pesquisa ele é apenas um dos atores da pesquisa, os
atores com quem realiza a pesquisa são tão ativos quanto ele na produção do conhecimento.
Apropriando-me dessa ideia utilizarei o termo atores da pesquisa sempre que quiser indicar os
participantes da pesquisa. Pois o termo ator indica que os participantes da pesquisa estão
imbuídos de agência no processo de produção do conhecimento, portanto distancia-se da ideia
de objeto de pesquisa como sendo passivo. O pesquisador não é o agente neutro, que vem de
fora munido com a formação e qualificação e todo aparato teórico, necessários para desvendar
os motivos e causas que fazem os atores pesquisados performarem suas relações cotidianas.
Retira-se tamanho poder das mãos do pesquisador, fica suspensa a suposta ideia de que os
cientistas conseguiriam exercer todo controle sobre a produção do conhecimento. O cientista
nessa metodologia exerce menos controle do que sustenta a ciência tradicional. Como a noção
35

de controle das variáveis, verificação dos dados, quesitos tão caros aos cientistas
experimentais dentro do laboratório. O engajamento do pesquisador com a pesquisa coloca-o
na posição de assumir riscos, por exemplo, o risco de vir a ser cobrado pelo conhecimento que
produz. Quando ele assume um lugar encarnado na pesquisa assumindo de onde parte o saber
que produz, assumindo o lugar de onde parte o olhar que interpreta e traduz a pesquisa, o
pesquisador é chamado a assumir uma responsabilidade pelo que produz. Opondo-se a
posição de neutralidade, quando o analista está engajado com os atores pesquisados os efeitos
e rastros deixados pela intervenção no campo aparecem no texto, produto da pesquisa.

Saberes localizados requerem que o objeto do conhecimento seja visto como um ator
e agente, não como uma tela ou terreno, ou um recurso e finalmente nunca como um
escravo ou Senhor que encerra a dialética apenas na sua agência e em sua autoridade
de conhecimento objetivo (HARAWAY, 2005, p. 36)

Haraway reafirma esse conceito no seu livro mais recente When species meet, 2009 e
faz acontecer o saber localizado. O pesquisador é ator que traz marcas que deve aparecer no
texto trazer à tona na produção do texto as situações e vivências cotidianas, as cenas locais e
pessoais, o pesquisador é ator que traz as marcas da relação. E para trazer as marcas muitas
vezes ele é levado a falar de si, do que é pessoal, mas o pessoal nesse caso é político, pois o
pesquisador é um ator no embate para a composição de um mundo comum. Haraway no livro
When species meet conta as histórias da sua vida que indicam seus caminhos teóricos e
metodológicos.
A ciência é pensada não como efeito de verdade que produz, mas como efeito dos
agenciamentos políticos.
Na metodologia da cartografia da controvérsia também se aposta que os atores da
pesquisa podem ser recalcitrantes a própria pesquisa. Ou seja, para eles a suposta autoridade
do cientista pode ser uma balela, eles podem considerar a pesquisa inútil, ou irrelevante e não
terem vontade de aderir, quando os atores resistem a se subordinar à autoridade do saber
científico questionando as perguntas e o lugar do pesquisador, reside também aí a potência da
agência do pesquisado. Pelo excesso de valorização da ciência na nossa sociedade os sujeitos
investigados acabam por adotar uma postura obediente frente as autoridades científicas. Esses
sujeitos não contestam as perguntas feitas pelos pesquisadores. E é na possibilidade da
interferência do sujeito pesquisado causando um ruído ao pesquisador que o analista passa a
se perguntar se ele está fazendo as perguntas certas, e a se perguntar sobre o dispositivo
escolhido, o pesquisador poderia sair do seu lugar de autoridade, de Senhor do saber e compor
36

um agenciamento coletivo para “partilhar generosamente a linguagem” termo usado por


Latour.
Considera-se relevante para a pesquisa a controvérsia e a incerteza que o ator
pesquisado pode trazer, a instabilidade e a desterritorialização3 que a ação do pesquisador
tanto quanto a ação do pesquisado pode refratar na própria pesquisa.

A ação deve permanecer como surpresa, mediação, acontecimento. É por esse


motivo que devemos começar... das incertezas e das controvérsias em torno de quem
e o quê está agindo quando nós estamos em ação- e não há é claro nenhuma maneira
de decidir se essa fonte de incerteza reside no analista ou no ator. (LATOUR, 2012,
p.74).

Nessa teoria não existe uma hipótese a ser verificada como verdadeira, a hipótese
construída pelo pesquisador pode se mostrar desinteressante, pois o campo pode surpreender o
pesquisador e suas hipóteses deverão ser revistas. Considera-se os atores em ação, e sua
potencialidade de interferência na pesquisa. Assume-se que o pesquisador também intervém
na pesquisa e desmistifica-se sua neutralidade. O cartógrafo deve assumir a ação, pois “Uma
ação invisível, que não faça diferença, não gere transformação, não deixe traços e não entre
num relato não é uma ação. Ponto final.” (LATOUR, 2012, pg.84). Assume-se que a ação
feita na pesquisa pelo pesquisador gera uma transformação para todo o coletivo da pesquisa,
tanto a pesquisa em si como produção de conhecimento, tanto no texto gerado pelo
pesquisador como produto da pesquisa, quanto o ambiente onde a pesquisa é realizada e nos
atores pesquisados.
O próprio “sujeito” de pesquisa é colocado como ator, assim como o “objeto” o é, isso
os coloca em pé de igualdade, em uma relação não hierarquizada, sendo que ambos estariam
participando na construção da cena.
As dimensões sociais e as dimensões técnicas são reavaliadas, repensadas e recai
sobre o imprevisto a grande estratégia do jogo, da encenação. Os a priores são colocados em
questão. A cartografia da controvérsia propõe que o cartógrafo esteja sensível a permitir-se
permear por questões inusitadas surgidas na relação com os atores da pesquisa.

3
O termo desterritorialização utilizado é emprestado dos autores Deleuze e Guattari e está relacionado aos
termos terra, território e reterritorialização. A desterritorialização pode ser parcial vinculada ao conceito de
devir, ou pode ser absoluta vinculada ao conceito de linha de fuga. Essas duas versões da territorialidade são
também compreendias através da noção de profundidade da terra Natal de um lado e o espaço liso do
nomadismo de outro. No entanto o território não está necessariamente ligado a um espaço geográfico. “O valor
do território é existencial: ele circunscreve, para cada um, o campo do familiar e do vinculante, marca a
distância em relação ao outrem e protege do caos. (ZOURABICHVILI, 2004, p.23). Nesse livro: O
vocabulário de Deleuze de François Zourabichvili (2004), o termo está muito bem explicado entre as páginas
22-24. A escolha desse termo quer indicar que o pesquisar quando interpelado pelo ator pesquisado pode vir a
sair de seu território de conforto, o território da autoridade.
37

As subjetividades são constituídas pelas práticas. A visão da sociologia mais


tradicional prevê o macro, ao contrário quando se pensa na ética do cuidado dentro da
pesquisa se prioriza o micro, focaliza-se o particular. Um mergulho no caso particular
possibilita pensar maneiras de negociar que não sejam de um único par. A homogeneização é
como o apagamento das diferenças. O cientista moderno, esse que faz e que acredita numa
ciência neutra, faz calar o encontro com o outro. A vontade de pureza é redundante você já
sabe a resposta antes mesmo de fazer a pergunta ao ator, é preciso variar a forma. O
pesquisador não precisa se fechar a uma afirmação generalizável. Ele assume que há a
possibilidade da existência de erro na pergunta que é feita ao pesquisado, ele reconhece que
seu engajamento é uma implicação política. Esse é um engajamento que surge com a pesquisa
e não é prévia a ela. Ele se deixa surpreender com o erro.
O pesquisador é ator que traz marcas que deve aparecer no texto, trazer à tona na
produção do texto as situações e vivências cotidianas, as cenas locais e pessoais, o
pesquisador é ator que deixa o rastro na relação. Ele coloca seu traço quando fala de si, faz
aparecer o que é pessoal e o pessoal nesse caso é político, pois o pesquisador é um ator no
embate para a composição de um mundo comum. E nesse sentido que Haraway (2008) traz a
questão do becoming with a ideia de se tornar com, de estar aberto ao encontro. Donna
Haraway pensa um conhecimento longe de um olhar distanciado. Por isso ela aproxima a
ideia de amor e a produção do conhecimento, por isso a proximidade filosófica com Spinoza
que pensa o conhecimento através dos encontros, o encontro está localizado, ele é pessoal, faz
parte do arranjar-se em um mundo comum. O amor é uma forma de afeto, ele pode derivar de
um encontro positivo ou negativo. Não é uma proposta de que o pesquisador vá a campo com
um amor incondicional, mas a ideia do amor que atravessa o ator da pesquisa é visto como um
afeto que implica estar aberto a uma transformação por parte do outro, é uma prática para
permanecer exposto as possíveis consequências do encontro. Um amor permeado de
contradição, não é um amor purificado, e também nesse sentido o pesquisador deve responder
pelo conhecimento que produz.
Não há conhecimento sem mediação, não há conhecimento sem corpo. O que a ciência
faz é invisibilizar as pistas que saem da demarcação da estrutura científica, os cientistas em
nome da verdade tornam invisível tudo aquilo que se distancia dos parâmetros da ciência, há
uma excessiva preocupação com os universais. Essa ciência se preocupa em produzir
dispositivos que tem como objetivo a produção do mesmo. E não se dão conta de que a
verdade é produzida.
38

2.3 Questionamento sobre a teorização: uma rebelião acadêmica.

Num sentido ainda mais radical ainda mais crítico ao que vim pensando sobre a
ciência, a antropóloga Strathern critica a própria linguagem, contestando essa maneira
ocidental de produzir o conhecimento como verdade.
Marilyn Strathern aprende com os Melanésios que a cultura é múltipla, sem que exista
a prevalência da essência para compreender o funcionamento da cultura. Ela pensa a relação
entre teoria e prática como dicotomias desnecessárias. A teoria é uma prática ocidental que os
Homens depositam uma enorme valorização, os ocidentais acreditam que a ciência é uma
forma de produção do conhecimento superior as outras formas de saber. Nós ocidentais
damos excessiva importância à ciência, a linguagem, e aos textos como produtores de
verdade. Essa ênfase na busca da essência é um ponto que Strathern defende como
controverso. No campo da antropologia ela faz uma distinção entre os antropólogos
tradicionais e os antropólogos críticos. A briga entre eles fica localizada entre o dito e o não
dito. Nas ciências antropológicas críticas eles se veem como subversivos pelo fato de
explicitar aquilo que ficou velado, pois explicitam o não dito, eles dão a voz aos atores
inaudíveis, eles olham nas entrelinhas dos interstícios. Para os críticos essa é uma forma de
estar revertendo o poder dominante, pois as relações que ficavam veladas, escondidas são
trazidas à tona e explicitadas. E esse jogo de revelar aquilo que estava escondido é outro viés,
mas que conserva a mesma forma dos tradicionais de prezar pela essência. Busca-se a verdade
através da linguagem, a receita para descobrir uma nova verdade é: quanto mais se escava os
textos produzidos sobre o tema, maior a possibilidade de revelar as camadas que estão
escondidas por detrás da experiência vivida. A relação com a essência é mantida, porque
aquilo que se vê não é o que se tem, é preciso descobrir o que está por de trás do que se vê.
Essa relação com a essência é uma característica do discurso, da palavra e da produção
teórica. Os críticos se veem como bastante subversivo quando dão a voz aos atores inaudíveis,
mas o que fazem é manter a mesma linha de raciocínio dos tradicionais, as proposições de
verdade continuam bastante semelhantes. Tanto os tradicionais como os críticos partem do
pressuposto de que a cultura é uma construção. Os tradicionais fazem a leitura pelo viés
dominante, os críticos pelo viés dos subalternos, subjulgados. Para Strathern a cultura não é
construída. Portanto o simples fato de desconstruir a leitura predominante dos tradicionais
permitindo a visão por novos ângulos não caracteriza uma subversão propriamente, são como
dois lados de uma mesma moeda. O que Strathern entende como subversivo é a
39

descentralização da linguagem, das palavras, da escrita, da textualização enquanto lugar de


referência para o conhecimento. O que os melanésios têm a ensinar é que o próprio discurso
deve ser colocado em questão. A realidade não é traduzida pelo discurso, as palavras são
enganadoras. As palavras não precisam ser buscadas em seu significado verdadeiro, elas
podem ser “des-essencializadas”. “Com certeza, há Melanésios que talvez julguem esquisita a
sugestão de que se pode expor autoridade ou subverter ideologia mediante a manipulação das
palavras” (STRATHERN 1997, p.17). Entendendo as construções como parciais, e deixando-
se de se ater a essências, volta-se às particularidades. “Quando se revela algo não se revela
sua essência ou segredo: revela-se que contêm outra coisa. Não se pode olhar dentro de uma
pessoa para descobrir a pessoa verdadeira: encontra-se ao invés disso outras pessoas
(particulares)” (STRATHERN, 1997, p.27).
Em um jogo entre superfície e profundidade, a superfície é uma dicotomia de
equivalente importância com relação à profundidade.
Não se entende que uso excessivo de palavras e a racionalidade permita um
aprofundamento no entendimento das coisas. O que se entende a partir da experiência e
vivência com os Melanésios é que a superfície é tão construtiva quanto a profundeza. A
dualidade interior, exterior é quebrada.
Nesse sentido os afetos são trazidos para o primeiro plano na pesquisa, o afeto estaria
no lugar da superfície, pois o mais relevante está no encontro, naquilo que a particularidade
daquele encontro pode trazer de potente. Abandona-se a ideia de que há algo profundo, de que
a essência poderia ser compreendida naquela relação com os “objetos”.
Tanto Despret como Haraway se aproximam da ideia de afetar-se trazida por Spinoza,
o corpo como possibilidade de ser afetado pelos encontros. Não se busca a essência e a
profundeza dessas pessoas a partir do encontro, mas se aposta que a superfície desses
encontros pode ser altamente construtiva.
Como resume Ronald Arendt (2012) em um artigo Emoções e mídia: A importância
para Despret de estabelecer uma relação com o outro envolve uma atitude de respeito pelas
práticas desse outro e entrar em contato com ela de forma simétrica construiria o que ela
chama de polidez das travas do conhecimento. Formular perguntas interessantes ao
entrevistado e bem tratar o sujeito de pesquisa faz toda diferença para a pesquisa.
40

3 O ENCONTRO COM A PEÇA: SALINA A ÚLTIMA VÉRTEBRA.

Estive muito tempo em dúvida sobre como iria abordar o tema dessa dissertação, por
muito tempo imaginei falar da comunidade, da favela. No projeto inicial essa era ideia. No
entanto esse projeto foi sendo mudado e aos poucos ele veio a se constituir com o
delineamento, as cores, e a vida que tem agora.
Falo das mudanças, do que deu errado porque acredito que essas são coisas que cabem
dentro do texto. Essas são coisas da pessoalidade, e geralmente é mostrado no texto aquilo
que deu certo. Mas entendo que isso está conectado a metodologia que sigo nessa pesquisa,
guiada por esses autores, e junto com eles aprendi que é possível falar também dos
desencontros, desenganos. Não quero que apareça só porque deu errado, mas principalmente
porque mostra o caminho que me trouxe a escrever essa dissertação. E também acredito que o
caminho é tão importante como a chegada.
Primeiramente vou descrever o encontro com a peça, um encontro físico, a chegada até
teatro, o ato de assistir à peça, a emoções e afetos causados em mim, trazendo um pequeno
diário de campo. Depois contarei a poesia dramatúrgica que existe em Salina e num terceiro
momento contarei a dimensão que a peça repercutiu na dissertação após o contato com os
atores dessa pesquisa. Após a entrada em campo com as entrevistas com as atrizes e a diretora
me senti impulsionada a abrir um caminho que não imaginei seguir de antemão, a dissertação
teve um desdobramento inesperado a partir desses encontros.
Quando assisti à peça ela estava na sua segunda temporada, no Arena Dicró na Penha
Circular, subúrbio do Rio de Janeiro. A temporada anterior foi realizada no Sesc em
Copacabana. Soube da peça pelo facebook. E tenho acompanhado esse grupo no facebook
criado pelos atores da peça desde a primeira semana depois da estreia onde os atores divulgam
as apresentações e informações sobre os espetáculos. As pessoas que assistiram à peça
acabaram usando esse grupo para deixarem suas impressões sobre a peça. Elas se sentiram tão
afetadas, impressionadas que escreveram páginas sobre suas interpretações e muitos como eu,
estavam gratos ao grupo Amok por terem tido esse encontro fértil. É claro que estamos
falando de um espaço que impulsiona as pessoas a fazerem elogios, afinal é uma página no
facebook criado pelo próprio grupo, o que não impediria que se fizessem críticas, no entanto
os relatos colhidos eram todos afirmativos. E parafraseando Rancière, o espectador quando
faz a tradução do espetáculo, faz a partir de uma interpretação própria, associando com coisas
que viveu, sentiu ou sonhou e é justamente o que fazem os espectadores quando escrevem
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seus relatos, usando esse espaço para criarem suas poesias. E é incrível essa potência do
facebook, no momento estou bastante fascinada com o as possibilidades das mídias
alternativas. Porque essa rede possibilita o transbordar de afetações e ideias que antes ficavam
restritos a grandes grupos midiáticos. Portanto essas pessoas podem tornar público suas
expressões sem que precisem estar subordinados as empresas da grande mídia. Portanto a rede
social acaba tendo essa ressonância de criar uma partilha do sensível: o compartilhamento
dos efeitos e afetos que a peça provocou acabam por formar uma comunidade de pessoas que
se reúnem para expressar-se sobre como estavam sendo afetados por essa obra de arte. Nesse
caso a rede social pode ser considerada como um instrumento político, voltando a noção de
Rancière de partilha do sensível em que a formação de um comunidade é por si um ato
político, temos aí um exemplo disso.
Acompanhando o grupo no facebook, fui percebendo que estava muito difícil assistir à
peça no Sesc Copacabana. As pessoas postaram reclamando que os ingressos da semana
inteira tinham acabado no primeiro dia. Uma disputa enlouquecida para ver a peça. Um dos
atores percebendo a euforia começou a postar que a próxima temporada seria na Arena Dicró,
e quem não conseguiu assistir em Copacabana ainda teria a oportunidade de vê-la no bairro da
Penha Circular. Ótimo. Fui ficando mais tranquila, imaginei que por ser mais longe
conseguiria assistir à peça com tranquilidade. Optei por vê-la na Penha, também porque me
interessava sair desse circuito zona sul. Já que me proponho a pensar a minoridade, aqueles
que fogem do padrão, achei que seria mais interessante vivenciar uma experiência no
subúrbio.
Na primeira vez fui ver com uma amiga a peça, chegamos lá com apenas 30 minutos
de antecedência o teatro já estava quase todo ocupado, já tinham vendido todos os ingressos,
mas estavam esperando para ver se todos compareceriam, e já tinha uma lista de espera de 66
pessoas na nossa frente. Ficamos esperando, eu tinha muita expectativa de que conseguiria
assistir, minha amiga desde que viu que a lista era quase do tamanho do teatro estava convicta
de que não entraríamos. Ela queria pegar os ingressos do dia seguinte e ir embora. Eu estava
na esperança de entrar, até porque evitaria todo o translado no dia seguinte até a Penha
Circular. Fomos de ônibus e chegar à noite foi um pouco desconfortável. Minha expectativa
era alta, assim como de outras pessoas que estavam na mesma situação que a nossa.
O Arena Dicró é um lugar bem interessante. Esperávamos em um barzinho com uma
bancada, mesas com toalhas de chita, luminárias com ralador de legumes, e cadeiras feitas de
caixotes. Tudo bem rústico, simples e bonitinho.
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Nesse lugar estavam pessoas que tinham e que não tinham o ingresso. Outros como eu
esperavam ansiosos para conseguir entrar e assistir à peça. De tempos em tempos uma mulher
de aproximadamente 25 anos, branca, alta, loira, cabelos lisos e saia longa pegava o
microfone para anunciar os nomes na lista de espera que podiam entrar. E isso gerava uma
tensão. As pessoas ficavam atentas como num sorteio. Naquele pré-ambiente havia uma
interação entre os espectadores. Esperávamos ansiosos pela chamada dos nossos nomes. Ela
estava anunciando repetidas vezes que primeiramente iriam acomodar todos que já tinham
convite e que conforme sobrassem lugares iam encaixando os nomes da lista de espera.
Entraram aqueles que tinham ingresso. Sobrou bastante lugar. E conforme a lista ia rodando,
parecia que ia acabando a possibilidade de entrar, as pessoas ficavam mais felizes ao receber
o ingresso. A tensão gerada era interessante. Eu estava bem tensa.
Pronto, os ingressos acabaram. Não fomos chamadas, mas a menina no microfone
orienta: Olha temos ainda 10 números que se quiserem podem sentar na escada.
A peça tem duração de 3 horas. E eu tinha informado minha amiga disso enquanto
estávamos na espera. Ela ficou chocada, principalmente porque ficamos preocupadas como
retorno para casa. Muito tarde poderia não ter ônibus, ficaria mais perigoso.
Nessa hora ela decidiu: Não tem como ficar 3 horas em uma escada dura. Voltamos
amanhã que já temos o ingresso.
Eu hesitei: - mas para vir amanhã até aqui vamos ter que perder praticamente 3 horas,
contando ida e volta, só de transporte. Vamos passar perrengue de ficar 3 horas na escada,
mas vamos assistir à peça. Essa era minha vontade.
Ela tinha certeza do que estava fazendo, ela queria voltar no dia seguinte. Entramos
em um impasse: que fazer? Fico e ela volta e vem amanhã. Ao mesmo tempo que seria chato
deixar ela ir embora sozinha, tínhamos ido juntas. Mas ela também poderia ceder a minha
vontade caso realmente quiséssemos nos manter juntas. Eu também teria medo de voltar
sozinha até em casa. Voltamos juntas.
Essa volta foi tão difícil porque a cada minuto eu pensava: fazer todo esse caminho de
volta amanhã, perder esse tempão que eu não posso porque estou atrasada com minha
qualificação. Arrependia-me a cada minuto de não ter ido em Copacabana, ter pelo menos
arriscado para conseguir um lugar. Afinal moro em Santa Teresa tenho minha moto e
Copacabana é muito perto para mim. Ao mesmo tempo eu pensava que era uma repetição
interessante uma vez que vivenciaria mais uma vez o cotidiano das pessoas que moram no
subúrbio do Rio. Como se eu questionasse de alguma maneira meu lugar de privilégio.
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No dia seguinte voltamos lá e já tínhamos o convite. Eu estava ansiosa porque


desejava falar com a diretora da peça, Ana Teixeira. Eu tinha medo que ela dissesse que o
grupo não estava aberto, que já tivesse outra pesquisadora fazendo trabalho com eles. Além
de eu ter uma relação com a Ana que é anterior a essa. E sei que ela é bastante criteriosa e
cautelosa com as questões do grupo.
Foi interessante que depois de ter vivido essa experiência de ter ido duas vezes na
Penha Circular, a Ana Teixeira, diretora do grupo, relatou, quando fiz a entrevista com ela,
que tinha esse objetivo com a peça Salina, fazer justamente esses deslocamentos urbanos, em
que as pessoas da zona sul fossem até à zona norte para apreciar uma peça, tornando a cidade
um espaço mais fluido e menos cristalizado nessa separação entre os bairros nobres e bairros
periféricos, em que a Zona sul serve de ponto de visita para Zona Norte, mas não o contrario.
O grupo continuou apresentando a peça em outros lugares na zona norte além da Penha e
também na Zona Oeste do Rio.
Contando um pouco da minha relação com o grupo. Eu conheço o AMOK desde
quando eu morava em Londrina, quando eles foram apresentar em 2012 no FILO– Festival
Internacional de Londrina- A peça que vi chamada Kabul: “Kabul é um espetáculo sobre a
guerra vista através da intimidade de dois casais que refletem o martírio de uma nação
traumatizada por vinte anos de violência e entregue à tirania dos fundamentalistas. Quatro
rostos da guerra, quatro retratos de um Afeganistão visto de dentro das casas, por detrás das
cortinas. (Texto retirado do site Amok Teatro). Foi uma peça forte e comovente.
Quando fui conversar com a Ana Teixeira após o espetáculo para explicar meu projeto
e saber se eles estariam abertos a minha aproximação com o grupo. Ela se mostrou bem
receptiva, mas pediu que eu tivesse comprometimento com a pesquisa. Disse que tem outra
menina que está fazendo a pesquisa do doutorado com o grupo, mas que ela não é muito
comprometida. Pelo relato da diretora ela tem uma presença um pouco flutuante, isso não
ajuda para que ela crie uma cumplicidade com o grupo, portanto a pesquisa pode sair
prejudicada. Alertou-me para que eu tivesse assiduidade enquanto realizo a pesquisa. O
caminho estava aberto, e eu tive um encontro mais próximo com o grupo que produziu a obra.
Finalmente o grandioso espetáculo: Salina: a última vértebra. Esse é o espetáculo que
nos servirá de guia para pensar que efeito a arte tem para a vida do ator e para aqueles que
vivem dela? Existe alguma possibilidade do encontro com a arte provocar o efeito de
transformação de si e do mundo? A arte possibilitaria resistência a processos hegemônicos?
Salina me atraiu por um motivo muito simples, sua capa. Essa mesma que está no
início da dissertação. Uma negra com um vestido rodado azul, com turbante e ouro nos
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braços. Ela está em movimento, está girando, e sua saia dá movimento à cena. Embaixo dela
há um grande pote que parece conter sal. O fundo da foto é vermelho e contrasta bem com o
azul da saia. O cartaz é lindo e me atrai muito. Gosto dessa estética negra, gosto da saia
rodada e também da gira.
Vi o cartaz via facebook. Vi que tinha sido criado um grupo específico para o
espetáculo e decidi acompanha-lo bem de perto, recebendo todas as notificações que o grupo
postasse. Foi aí que descobri a lotação em Copacabana, e que descobri que apresentariam no
Arena Dicró. Os relatos, afetos e interpretações não li na mesma hora para guardar a surpresa
de como o espetáculo iria me afetar. Não gostaria de assistir o espetáculo impregnado da ideia
de outras pessoas. Portanto li essas impressões depois que vi o espetáculo.
A minha maior surpresa foi que o tema da peça não tratava da questão racial, nem
situações de discriminação. A peça é toda trabalhada e construída a partir da cultura indígena
negra, dos seus gestos, sua dança e sua mitologia. Há uma presença negra muito marcante,
além dos atores em cena serem negros, inclusive o músico. No entanto o tema é sobre
vingança e perdão. E o enredo da peça traz bem marcada a questão do feminino como
centralidade.
E por isso essa peça traz o diálogo com Deleuze com conceito de menor, porque a
partir dela pode-se pensar o devir negro.
Mesmo que o Carmelo Bene e sua maneira de proceder nas peças fique simplesmente
como uma maneira de exemplificar o teatro como verdadeiramente subversivo para Deleuze,
e ajude a pensar a importância do menor na obra de Deleuze, tentarei pensar o menor a partir
desses elementos oferecidos pela peça Salina, a etnia, o negro.
A peça que foi construída a partir do texto do escritor e dramaturgo francês Laurent
Gaudé com uma narrativa trágica mitológica que é adaptada pelo grupo para o universo Afro-
brasileiro. O grupo busca trazer a presença marcante do teatro enquanto ritual. O figurino, as
danças, o mito são referentes à cultura negra e indígena trazendo o seu universo imaginário. A
estética do espetáculo é negra.

3.1 Enredo da peça Salina

Uma coisa muito interessante nesse texto é que grande parte do percurso dessa história
é narrado pelos personagens depois que morrem.
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A história dessa peça é muito comovente, porque se trata de uma mulher, Salina, que
tentou desafiar a tradição da tribo a qual pertencia. Ela é uma estrangeira que foi acolhida pela
tribo dos Djimbas. Ela é desejada pelo príncipe da tribo, o primogênito da família real. Saro
está ansioso para que quando ela se torne mulher, ou seja, menstrue, ele possa desposá-la.
Mas isso é muito custoso para Salina que ama, na verdade, o irmão mais novo do príncipe,
Kano. Mas Salina não tem escolha, por mais que ela relute contra esse casamento quem tem a
decisão final sobre seu destino é a tradição, portanto o desejo do Homem é uma ordem, ainda
mais que estamos falando do desejo do filho do Rei. Mesmo que ela queira, deseje, grite,
implore e espalhe para todos os cantos que não quer esse casamento a qual está prometida,
suas vontades não são ouvidas. Ela odeia seu marido e destrói a vida dele e sua própria vida.
Quando nasce o filho de Salina com Saro, ela o rejeita veemente, nem quer olhar para cara
dele, não quer alimentá-lo. Chama-o de filho bastardo que nasceu de um estupro.
Quando os bárbaros invadem o clã dos Djimbas, Saro que era guerreiro fica ferido na
batalha. Salina vai até o campo de batalha e vê que Saro, seu marido, está ferido, ele pede
ajuda a ela que se nega a ajuda-lo, pois ela está ali simplesmente para constatar sua morte e
poder zombar dele.
Com a morte de Saro, Salina está contente porque poderá esposar seu irmão mais novo
Kano. No entanto no dia do seu casamento o rei Sissoko e rainha Khaya ficam sabendo que
ela se recusou a dar ajuda ao seu filho Saro, por meio de um homem que cruzou o campo de
batalha procurando os feridos e Saro pediu ao homem que não o socorresse, mas que avisasse
seus pais que Salina tinha recusado ajudá-lo.
Salina no dia da sua conquista tão desejada, o casamento com seu amado Kano, foi
expulsa do clã, sendo chamada de assassina. Kano não disse nada para tentar conter a fúria
dos seus pais. Aborrecida, Salina parte prometendo vingar-se.
Vagando pelo deserto, inflamada de cólera, ela pariu um filho do ódio, um filho sem
pai. Um filho que ela cria para ser o guerreiro de sua vingança, um homem forte para suportar
todas as batalhas que ela pretende traçar contra os Djimbas. Kwane N’Krumba em poucos
meses se torna um homem de 20 anos. Salina o alimentava com o leite da raiva.
Sissoko Djimba, o rei do clã, foi a primeira vítima da vingança de Salina. Olhando
para seu corpo despedaçado ele conta como foi sua morte. Kwane N’Krumba o pega de
surpresa no rio, decapitando-o. E Salina que está à espreita arranca com uma faca toda sua
coluna vertebral, ela desejava possuir cada vértebra dele. Para esse clã um corpo que não é
enterrado por inteiro se torna errante por toda eternidade na busca dos seus pedaços.
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Salina obstinada na sua vingança revolve enterrar cada vértebra separadamente para
deixá-lo fragmentado para eternidade. A última vértebra, no entanto, fica no pescoço de
Kwane N’kruma, um lugar inacessível e selvagem.
A Rainha e esposa de Sissoko, Kaya Djimba vai ao deserto em busca de Salina para
recuperar a coluna do seu marido, para que ele possa ser enterrado de corpo inteiro e alcançar
sua paz de espírito.
Salina vaga pelo deserto deixando uma vértebra a cada dezena de quilômetros. No
entanto Khaya, mesmo velha e cansada tem a perseverança de antes de morrer reconstituir o
corpo do marido. Ela vaga atrás de Salina e a cada vértebra enterrada, ela cava para
desenterrá-la. Por fidelidade a seu marido Khaya quer devolver-lhe a paz. Mas também por
ódio a Salina, pelo mau que ela provocou a sua família, Khaya deseja provar que ela é incapaz
de vencer qualquer combate.
Os dois irmãos Kwane N’kruma e Mumuyé, o filho bastardo de Salina, se encontram e
guerreiam enfurecidos na vontade de matar um ao outro, mas são cercados pelo exército de
Kano, que está à procura do Kwane N´kruma, o filho do ódio. Os dois irmãos acabam se
juntando para enfrentar os homens, Mumuyé foi atingido por uma bala e isso sensibiliza seu
irmão. Esse foi um encontro que aproximou os dois irmãos. Após a morte de seu irmão
K’wane N’kruma perde a vontade de viver, e quando é atingido por uma tempestade de areia,
ele fica imóvel esperando a areia cobri-lo e enterrá-lo. Assim ele compartilharia o mesmo
túmulo do seu irmão. Nesse breve encontro K’wane N’kruma entende a solidão que todo
aquele ódio lhe trazia. Salina depois de tanto procurá-lo, o encontra. Quando ela o desenterra,
ele pergunta se seu irmão está por perto. Salina surpresa que ele venha a falar de Mumuyé,
fala dele com muita raiva. Ela pede a seu filho que ele tenha ainda força, que ele se levante e
comece a lutar, a vingança ainda não está completa. Ele pede para que ela o mate, ele se diz
cansado de ser o seu braço armado. Salina com muita dor no coração e lágrimas nos olhos
obedece ao pedido de seu filho.
Salina se rendeu, voltando para cidade dos Djimbas, ela conhecida até pelas crianças,
pois sua história foi contada e recontada aos mais novos. Ela chega à porta de entrada da vila
e grita que seu filho está morto, e que eles podem fazer dela o que quiserem. Ela se sentia
demasiado só com a morte de seu filho e tinha pressa que os homens de Kano a matassem de
uma vez.
Eles colocaram uma corrente no pescoço de Salina e desfilam com ela por toda a vila,
todos vieram vê-la, quem queria jogava casca de frutas na sua cara ou baldes de mijo. A
multidão também tinha sede de vingança. Eles queriam apedrejá-la, mas Kano não permitiu
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que tal ato fosse realizado. Ele declarou que o sangue dessa mulher não deveria
ser derramado, pois isso traria maldições infinitas. Eles então decidiram amarrá-la em um
poste, como uma cabra que serve de pista para que os animais pudessem vir e copular com
ela. Ela se tornou um monstro magro esperando que a vida aceitasse finalmente de deixá-la.
Kano com a morte de seu pai tornou-se Rei, casando-se com uma mulher
chamada Alika. Mesmo que todos tenham alertado que Salina é uma mulher perigosa que ele
não deveria ir tentar vê-la, Alika insiste. Ela quer ver o rosto dessa mulher que quando se fala
no seu nome todos levantam sua cabeça para escutar, meio admirativos, meio temerosos. Num
encontro um pouco conflituoso entre elas, Salina ataca a, ameaçando enforcá-la com a
corrente, mas não comete o ato. Alika é uma mulher doce e ao se despedir faz-lhe uma caricia
no rosto, num gesto de pena e respeito.
Kano chega desesperado a procura de sua esposa, Alika já não está mais lá. Ele mal
consegue reconhecer Salina. Surrada da sua saga de sol e areia no deserto, ela sente vergonha
de sua aparência. Kano já não quer ter mais nenhuma relação com Salina, nem mesmo
reprová-la. Ela, no entanto, ainda muito amargurada diz que o condena por não ter dito nada
quando seus pais a mandaram embora. Ela quer fazê-lo pensar no passado que perderam por
não estarem juntos. A única coisa que Kano consegue pensar é no mau que Salina causou a
sua família, ela fez da sua família um cemitério. Já é tarde demais para pensar no amor que
tiveram. Para ele a única coisa que lhes restam em comum é a possibilidade do perdão. Ele a
tira das correntes. Para Salina não tem perdão, pois ela sabe bem a vida próspera que o espera.
O que a espera é um alargado imenso de areia que não guarda nem mesmo os traços dos seus
passos.
Salina parte, e todos ali entendem que sua guerra contra os Djimbas é findada. Ela
vaga pelo deserto, esperando sua morte. Ela crê que não seria bem-vinda em nenhuma vila,
nenhum vilarejo, ela nem ousaria pedir abrigo. Se lhe negassem a hospitalidade seria como
um tapa que acordaria sua raiva. E ela só quer continuar a caminhar até o fim de sua vida. E
não diriam que Salina se deixou morrer. Nem chorar mais ela consegue, ela força, mas está
muito seca pra isso, não consegue nem mesmo lembrando que matou seu filho.
Uma mulher vem ao seu encontro, ela reconhece o rosto de Alika, a esposa de Kano, a
menina de mãos doces. Alika vem de longe trazer um presente, como Kano havia lhe dito que
não houve perdão, ela ficou atormentada com a sensação de que devia alguma coisa a Salina,
ela refletiu muito e concorda com Salina que não seja possível perdoar. Alika: Não existe
perdão ao fogo que te queima ou ao vento que te curva. Eu venho te trazer um presente
Salina, um presente para que você não parta de mãos vazias. Um presente que te obrigue a
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viver. Um presente que me é caro, e que tenho dificuldade de te dar, mas tão melhor, assim
Salina e os Djimba terão cada um perdido um pouco de si nessa batalha. Alika da à Salina seu
último filho, recém-nascido, o sexto filho do reinado Djimba. Salina admirada reconhece que
não existe mulher que ousaria fazer uma doação dessa, para tirar uma criança de seus próprios
braços é preciso ser muito forte, mais forte que si mesma. Alika com lágrima nos olhos pede
para ela fazer dele um homem. Menos guerreiro que seus irmãos, porém mais completo.
Salina com a criança em seus braços está feliz. Seu bebê se parecerá com Kano, o filho
que eles poderiam ter tido juntos. Mesmo que a criança não se pareça com ela, ela terá, pelo
menos, nos olhos da criança, que se assemelha ao de Alika, a lembrança da generosidade
dessa mulher. Uma criança com duas mães. E assim termina essa história.
O teatro ritualístico está presente. A história de Salina e sua tribo é acompanhada pelo
mito e pela profecia que vai se cumprindo durante a tragédia dessa mulher.
Achei importante contar a história da peça porque com ela pode-se ter uma ideia da
força e dedicação exigida dos atores para construção dos personagens. E também porque com
a história da peça é possível entender melhor as questões que os espectadores trazem em suas
narrativas.
Os relatos feitos pelos espectadores e postados no facebook serão um dos analisadores
do nosso problema. A partir desses relatos e das entrevistas feitas com os espectadores
pretende-se perceber o efeito que a peça causou no espectador, e principalmente relacionar
esse efeito como um paralelo do conceito de partilha do sensível de Rancière. E as entrevistas
realizadas nos indicaram uma abertura para um novo horizonte de pesquisa, isso significa
dizer que deixei me afetar pelo encontro com os atores da pesquisa e que abri um novo campo
perceptível para essa pesquisa através dessa influência: as problemáticas da questão racial e
discriminação no Brasil. Portanto um capítulo inteiro dessa dissertação será dedicado a esse
tema.

3.2 Os espectadores e a partilha do sensível: formação de um comum político.

Foram colhidos 4 relatos dos espectadores no facebook, 1 entrevista realizada com


uma espectadora e uma narrativa do dramaturgo que escreveu a peça. Eu quis trazer partes de
cada narrativa, tentando mostrar o poema que cada espectador conseguiu fazer com sua
interpretação e afetação da peça, notando essa potência da emancipação que reside em cada
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espectador, guiada pela ideia de espectador emancipado de Rancière. E também fazer um


desdobramento da ideia da política em partilha do sensível. Ficarão agrupadas aqui todas
essas narrações na intenção de construir o que forma um comum a partir da partilha do
sensível. O comum no sentido de comunidade, o comum que pode partir do dissenso, afinal
cada espectador tem sua própria interpretação, mas a interpretação vem a partir da vivência do
encontro com a obra. Todos os relatos que vamos descrever narram uma apreciação da peça
em muitos sentidos. O encontro com esses relatos se deu ao acaso, todos os relatos que foram
encontrados nesse grupo do facebook, foram incorporados na pesquisa. Não fiz uma busca
muito ampla no histórico antigo do grupo, assim que fui admitida como membro tive o
contato com esses relatos, achei-os interessante, pois vi neles a abertura de um campo de
pesquisa articulado com conceitos que gostaria de trabalhar. Não tive contato com algum
relato que descartei. Quando num primeiro encontro com a Ana Teixeira eu comentei que
tinha achado interessantes os relatos, ela havia me dito que tinha outros relatos guardados,
mas como eu pretendia fazer também as entrevistas, considerei suficiente o material recolhido
ao acaso.
Os nomes que estão no perfil do facebook são conservados nessa pesquisa, pois
considero o documento postado no facebook de ordem pública.
Os recortes dos relatos foram reproduzidos como foi postado no facebook por cada
um dos perfis abaixo.

3.2.1 Relato de Alexandre Pereria

Ele buscou aprofundar-se na dor e no amor que existe em Salina. Trazendo para sua
própria vida as questões vividas pelos personagens da peça.
“Eu toquei no ódio de odiar em Salina, sorvi seu sofrimento mais profundo, sendo
homem me tornei mulher, fruto de uma violência tomada, estuprada nas suas estranhas,
exposta a macheza que até hoje se faz presente, muitas vezes disfarçada no cinismo daquele
que só quer tirar o mais precioso de sua presa. Eu toquei na SEDE de AMAR o ser amado,
altamente ultrajado pela lei do Clã, e vi nitidamente, o orgulho pintado com todas as cores....
Penetrei na solidão do deserto, quis sorver até a última gota de água mas a água por lá era
escassa e em seu lugar se bebia a dor, a morte e a penúria dos que foram escorraçados. Por
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fim, eu assistir a vitória do perdão, do ódio que se transformou em amor. Eu vi Salina: a


Última Vértebra e estou feliz, muito feliz!”

3.2.2 Relato de Felipe Pedrine

Felipe fez um relato de três páginas depois de assistir à peça. Percebemos o quão
sensibilizado ele ficou, ele procura fazer uma interpretação das questões artísticas da peça,
uma interpretação do que a peça traz de político na constituição da cenografia e da
interpretação dos atores, além de fazer um elogio agradecido ao encontro com a peça, fazendo
uma analogia a fala da personagem Salina. “Beba por mim a minha sede é imensa.
Obrigado...” “ Não só a figura do músico no palco, que em si convoca a presença de um griô,
mas cada elemento cênico presente em “Salina”, cada instrumento musical, cada cor, cada
objeto, cada personagem é um griô, que vem nos contar uma história, cantar uma música,
narrar uma lenda. Aliás, não é possível tecer uma separação cartesiana sobre os elementos
desta peça. O figurino é também música, que é dança, que é luz, que é cenário, que é espaço,
que é voz, que é corpo, que é movimento, gesto, suor, sangue.”
Na sua narrativa Felipe toca na força e presença negra que a peça traz: “Para nos
contar essa fábula africana, o elenco é formado exclusivamente por artistas negros, sendo dez
atores e um músico. Aqui, o negro é senhor de si, de seus territórios, de suas narrativas épicas,
lendas e culturas. Aqui, o negro não é definido pela negação em relação ao outro, ou seja, o
negro não é “o não branco”. O negro é ele mesmo. O negro é. Simplesmente.”
Outra análise interessante de Felipe é referente à mitologia negra dos orixás. Ele faz
sua interpretação sobre o comportamento dos personagens comparando aos arquétipos dos
Deuses negros. “O panteão dos orixás está presente em fortes referências no espetáculo, como
alimento de identidade, cultura e arte, embora não seja enunciado diretamente. Como já dito,
estamos em uma África imaginária. Além disso, a questão religiosa não faz parte da trama
central da fábula narrada. Não há o clichê folclórico, ao qual usualmente estamos
acostumados. O que há é o refinamento. Para muito além de reduções sobre os arquétipos,
vemos desfilar, muitas vezes em um mesmo personagem, atitudes e paixões complexas, e
também cores, objetos e sons, que invocam Iemanjás maternais e zelosas, Iansãs obstinadas e
vingativas, Oxuns vaidosas e apaixonadas, Xangôs justiceiros, Oguns aguerridos e belicosos,
Nanãs e Oxalás sábios e pacificadores.”
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3.2.3 Relato de Michele Jorge dos Santos de Souza

Como a narrativa de Michele é relativamente curta deixaremos sua interpretação na


integra. Lembrando que Graciana Valladares é atriz da peça que interpreta Sowanda.
“Como foi lindo te ver! (Graciana Valladares) Quanto talento em Salina! Foi tanta
emoção correndo o corpo e a mente, que me davam arrepios, um sucedido por outro. No final,
só as lágrimas corriam meu rosto. Tentei, mas não consegui encontrar palavras que definam
com precisão tudo que senti e quão maravilhoso foi vê-los. Simplesmente ESPLÊNDIDO!”

3.2.4 Relato de Lenita Arêas

Lenita Arêas relata que teve um encontro enormemente potente justamente pela
questão da estética e da essência negra que o espetáculo traz. Ela faz uma analogia muito
bonita entre um fato ocorrido na peça e sua própria vida, construindo de uma maneira muito
poética sua interpretação. E será reafirmado mais uma vez que essa é uma vivência política
como aponta Rancière, pois o espectador é aí ativo, a potencialidade de transformar aquele
afeto que se experimenta no encontro com a intervenção artística em uma interpretação
própria, absorvendo daquela história relações com sua própria história, com aquilo que
sonhou, com aquilo que leu, com o que viveu, podendo, portanto, criar sua própria poesia. E
potencializada pelo encontro com a arte poderá a vir tomar as rédeas do seu destino,
permitindo permear-se pela arte possibilitando a transformação de si. A sua narrativa, assim
como todas as outras narrativas possuem em si o mesmo potencial de transbordar-se pela arte.
Lenita faz uma comparação entre a metáfora da última vértebra na peça, que entrelaça o
espiritual ao terreno, a carne ao espírito e faz a ligação com sua própria vida, construindo sua
poesia. Conecta em si aquilo que lhe é mundano, das vivências da vida cotidiana, das
subjugações, das explorações, das lutas da carne àquilo que lhe é elevado, o espiritual, a
energia vital da arte e sua potência transgressora e transformadora. É tão poético e bonito essa
correlação feita por Lenita que visualizamos junto com Rancière a capacidade de
emancipação do espectador.
A narrativa de Lenita: “(...)até agora estou buscando a minha última vértebra perdida
após assistir o espetáculo Salinas. Sem essa vértebra, a do pescoço, não consigo falar o que já
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conseguiram nomear com tanto virtuosismo. Então só me resta pensar no que ainda não foi
dito ou no que só eu poderia dizer. E minha cabeça solta como a de Sissoko Djimba só
consegue ficar em duas posições: Olhando para baixo, onde fixo os olhos em meu peito e
sinto meu coração acelerado, preenchido das dores e do amor do mundo, observo ainda minha
respiração ofegante em se inspirar. Vejo também os meus pés, e lembro-me das minhas raízes,
tão bem representadas por esse grupo que me fez reviver a África do meu imaginário e a
ligação que tenho com essa rica matriz que compõem o povo brasileiro. Sempre me senti
muito ligada à cultura africana e fiz questão de conhecer na infância minha árvore
genealógica. Comovi-me bastante em saber que minha tataravó era de Angola, se chamava
Bibiana e veio para o Brasil como escrava. Minha família até pouco tempo ainda era
explorada por subempregos, minha mãe já foi por anos empregada doméstica e o meu pai
chegou a ser boia fria quando criança num canavial, em Campos dos Goytacazes, de onde
tenho como descendência, os também dizimados, índios Goytacazes. Por esse histórico ou
não, eu me considero um ser humano em busca de libertação, através do conhecimento, do
estudo em história, arte, filosofia, educação, política, etc, e por estar sempre procurando
desatar esses fios invisíveis de aprisionamentos ideológicos, globalizados que continuam nos
enredando. Tanto minha parte negra como a indígena (faço questão nesse momento desse
destaque) anseiam pela ritualização do cotidiano, pela liberdade de expressão e pelo respeito e
resgate cultural dos povos historicamente explorados. Por isso e por outras tantas coisas, sou
apaixonada por teatro, por esse espaço de ressignificação de tudo. Onde podemos ser e
entender tantas outras extensões de nós mesmos, da humanidade, das culturas.
E mesmo que lutemos por um mundo sem discriminação de cor ou raça, e mesmo que
não precisemos entrar nessas questões em Salinas, sei na pele, mesmo a minha sendo
aparentemente de cor clara, que essa diferença socioeconômica ainda pesa em nossas vidas, e
dói na alma. Bastava olhar em volta e ver a predominância de cor da plateia. No entanto, esse
espetáculo é um marco histórico positivo e necessário que ajuda a transformar os olhos do
mundo, ainda vistos pelo ângulo europeu. Identifico em minhas escolhas o desejo por um
mundo verdadeiramente justo. Entendi no meu espírito de onde saía àquela força inigualável
de vivenciar o texto das entranhas. Um grupo de pessoas bem cuidadas, vindas do conforto
dos abastados, não teria estofo. No palco eu vi atores potentes como titãs, um panteão de
forças da natureza, narrando uma epopeia africana, com traços de tragédia grega, num texto
dificílimo, traduzido do francês. E quando me canso de olhar para o chão e para mim, olho
para o céu, outra posição possível para o meu pescoço invertebrado... E simplesmente assim
reencontrei a vértebra perdida, escondida no fundo da história que ninguém viu. De cabeça
53

erguida me orgulho desses bravos guerreiros no centro da arena ovacionados por uma plateia
de olhos marejados. Quanta ressaca em meu peito curada. Agora posso seguir olhando para
frente.”
O político para Brecht estaria ligado à transformação social, o político para Rancière é
a potencialidade da arte para a transformação da subjetividade, a potência da arte como
possibilidade de transformar o ser, transformar-se a si. “(...)a questão política é em primeiro
lugar a capacidade de corpos se apoderarem do seu destino” (RANCIÈRE, 2012 , p. 78).

3.2.5 Entrevista com Paula Maria

Foi usado um nome fictício para a pessoa entrevistada, pois ela não concedeu
autorização para que seja dito seu nome verdadeiro.
Paula Maria é uma menina com quem tenho o contato pelo meio acadêmico, e quando
contei a ela que meu campo de pesquisa seria a peça Salina, ela disse que gostaria de assistir à
peça e que depois cederia uma entrevista sobre suas impressões sobre a peça.
Ela faz uma correlação entre o excesso de poder nas mãos da família real dos Djimbas,
que teve o poder de decidir o destino de Salina, e o poder desmedido que existe no tráfico. Ela
entende que não é justificável esse poder dos Djimbas, forçando o casamento de Salina com
um homem que ela não ama, escolhendo seu destino.
Na fala de Manuela: “A gente assiste muito como se fosse uma tribo distante, mas
acho que isso se aplica em toda a sociedade.
Claro que não dessa forma, mas isso ainda é atual em diferentes meios. O poder
daquela família que podem mandar e coordenar a vida das pessoas. Por mais que tenha o
poder não tem o direito de intervir na vida das pessoas.
Fugindo agora do espetáculo semana passada eu fui no aniversário do afilhado do meu
namorado. Conta que foi na comunidade que não é pacificada. Que eles estavam armados...
Foi num baile funk.
O poder daquelas pessoas é normalizado. Como as famílias dentro de tribos. O poder
do dono do tráfico.
O poder da família de influenciar na vida da Salina. Quem dá o direito daquela pessoas
intervir na vida dos outros com esse poder?”
54

3.2.6 Relato de Laurant Gaudé – dramaturgo francês

E encerrando essa sequência de relatos com a narrativa de Laurent Gaudé, estará sendo
articulada a relação entre aquele que produz a arte, no caso o texto produzido, e os
espectadores que tem um encontro com a arte produzida. Fazendo uma passagem pela
formação de uma comunidade que participou conjuntamente formando um coletivo que se
afetou a partir da peça Salina: a última vértebra.
Laurent Gaudé narra como ele ficou contente quando ficou sabendo que a peça ia ser
realizada no Brasil, ele fica surpreso porque essa é uma peça de difícil realização por ser uma
peça longa e com muitos atores em cena: “O que é maravilhoso no teatro é que ele é a arte da
surpresa, logo do espanto. Eu ficaria incrédulo se me dissessem que Salina seria montada no
Brasil. Este é um tema de profundo espanto para mim, ver como os textos tem vida própria,
como fazem seus próprios encontros. Salina encontrou Amok Teatro. Que alegria para o autor
que sou... Imaginar que meus personagens serão encarnados aqui, na terra de vocês.
Ver se desenvolver uma aventura teatral rara, profunda, que mistura criação artística,
cuidado com transmissão e engajamento. Este é o teatro que eu amo. Eu fiquei imediatamente
sensível ao projeto de Stéphane Brodt e Ana Teixeira, porque na primeira vez que nos vimos
eles me falaram de Salina, não como um simples projeto de encenação, mas como uma
aventura teatral global. Um ano de ensaios. Um trabalho com um amplo grupo de atores e
atrizes. Uma reflexão sobre as raízes africanas do Brasil. Tudo isso me toca, me interessa.
Tudo isso me faz acreditar na força profunda do teatro.”
55

4 A QUESTÃO RACIAL

A questão racial atravessou bem claramente as duas atrizes do grupo que foram
entrevistadas e também a atriz que participou do processo de escolha do elenco. Nos relatos o
tema do negro também aparece. Ou seja, nessa produção artística, a peça Salina, o tema
aparece em todas as direções desde aqueles que produzem a arte, pensando e articulando e
espetáculo, bem como o efeito do que foi produzido por eles, as pessoas que compartilharam
o sensível da apresentação do espetáculo. Quando estava diante da peça intuía que se eu
realmente fizesse a escolha de dialogar com essa peça a pesquisa iria passar por aqui. Eu e
muitas outras vozes que falam sobre Salina e que estão nessa pequena comunidade formada
nessa pesquisa compartilhamos a percepção de que a presença do negro é muito intensa aqui.
Portanto esse é um tema que não estava previsto no projeto inicial, mas surgiu desse
encontro com os atores da pesquisa e passou a ser tratado como um problema de pesquisa de
grande relevância. Porque compreende-se que essa mudança de direção na pesquisa compõe
muito bem com a metodologia que utilizei durante nessa dissertação. Na cartografia da
controvérsia é importante que o pesquisador esteja sensível permitindo-se permear por
questões inusitadas surgidas na relação com os atores de pesquisa. E de fato fiz uma aposta
nesse imprevisto.
Vou fazer uma explicitação de como o encontro com as atrizes se deu. O primeiro
encontro com o grupo se deu através da Ana Teixeira, quando fui falar com ela depois do
espetáculo, como já foi dito anteriormente. Pedi a ela se eu poderia participar dos ensaios do
grupo com o objetivo de ter um encontro mais próximo com os atores da peça, ela não
concordou com a proposta. Ela me deu uma abertura pela oficina que iria oferecer no Jockey
Club. Imaginei que alguns atores da peça estariam nessa oficina, mas a oficina aconteceu em
um momento em que eles estavam de férias. Quem participou dessa oficina foi a atriz Luana
Vitor que participou do processo de escolha do elenco de Salina. No último dia da oficina ela
me cedeu sua entrevista. A Tatiana Tiburço e a Lu Lopes atrizes da peça, que representam
Khaya e Mama Lita respectivamente, entrei em contato por indicação da Ana e marquei com
elas um dia e hora para entrevista. Com Tatiana dialoguei em sua casa, em um ambiente
bastante acolhedor. A Lu encontrei em um café depois de assistirmos à apresentação do filme
sobre o grupo francês Theatre du Soleil, em que a diretora do grupo Ariane Mnouchkine
estava presente para uma rodada de perguntas, evento que ocorreu na Biblioteca Parque. Se
me perguntassem por que escolhi só mulheres para fazer a entrevista, eu não saberia dar uma
56

explicação racional. Talvez essa não tenha sido uma escolha muito consciente. Mas creio que
o motivo estaria relacionado ao feminino que o enredo da peça traz.
Na fala das atrizes fica bastante marcante a problemática do negro no que se refere a
encontrar seu lugar enquanto profissional do teatro, da televisão ou do cinema porque elas
viveram isso na pele, as dificuldades e humilhações de ter um papel sempre secundário,
melhor dizendo um papel subalterno. Encontrei uma analogia que achei interessante quando
eu conversava com um amigo tentando explicar a minha pesquisa: que numa peça teriam
aqueles que carregam o piano e aqueles que tocam o piano. O negro fica normalmente com o
papel daquele que carrega o piano.
Abdias do Nascimento relata justamente essa dificuldade do protagonismo do negro
no teatro brasileiro, no seu artigo de 2004 publicado na revista eletrônica Scielo: O teatro
experimental do negro. Ele explica que desde que assistiu à uma peça no Peru em que o
protagonista representava um personagem negro, mas o ator era um branco “pintado” de
preto, ele sentiu a necessidade de montar um grupo de pesquisa e formação para atores
negros. Ele sentiu falta de que atores negros pudessem protagonizar uma peça. Ele percebe
que a exclusão vem desde o público, não havia muitos negros que frequentassem as salas de
teatro. O surgimento do Teatro Experimental do Negro (TNE) aconteceu na década de 60.
Mas a questão trazida pelo TNE sobre a carência de negros que representem papéis potentes
remonta até os dias atuais, esse tópico está também na fala das atrizes da peça Salina.
Na entrevista com Ana Texeira, a diretora do espetáculo, ela aponta para uma
questão muito parecida com essa do lugar secundário para o ator negro: “O negro na cena do
teatro brasileiro e do planeta em geral, fora da África, ele é sempre, o signo negro, é sempre
presente para reafirmar a supremacia do branco, então ele está sempre ocupando o papel que
lhe é destinado que é o papel da invisibilidade seja escravo, marginal, o cômico, o grotesco,
que é o que o Black face fez, o cômico grotesco. (Ela está se referindo ao espetáculo da Cia
dos fofos). O negro para fazer rir, no papel da empregada, sempre. Isso com certeza eu jamais
faria. Isso é o que deve... isso é o que me motivou a fazer o trabalho, é dizer que a gente ia
fazer um espetáculo com atores negros em que eles não ocupariam esses papéis e depois eu
ter encontrado um espetáculo que tem papéis nele de verdade, porque o ator negro ele tem
dificuldade de encontrar verdadeiros papéis, verdadeiros desafios de ator, porque ele está
sempre relegado a esses papéis secundários, pequenos invisíveis, servidores, então ali a gente
tinha isso. Essa foi a justificativa do projeto, que o signo negro fosse renovado, revisitado e
que revelasse a potência desse povo, sua a riqueza, uma humanidade luminosa.”
57

Ela nos conta sobre o caso da Cia Fofos de São Paulo que no seu último espetáculo
estava usando o black face em um dos personagens que fazia a empregada, e que isso causou
uma reação na comunidade negra porque se sentiram discriminados. O black face segundo
Ana é um dispositivo racista em si mesmo. Uma reportagem sobre o caso na revista Carta
Capital mostra que houve uma mobilização de indignação diante do fato. Em 2015 vive-se
ainda situações que colocam os negros diante de uma perspectiva que reforça a sua
marginalidade e ainda usando um tom de zombaria.
Quando Abdias do Nascimento ao assistir essa peça no Peru protagonizada por um
branco pintado de negro, mas que possui um personagem que é bastante forte, ele sente a
carência do encontro do negro com a arte para possibilitar a criação de peças em que os
negros representassem esses personagens potentes, o papel subalterno já vinha sendo
representando pelo negro no teatro e no cinema, quase como um retrato da vida real. O pintar
a cara nesse caso nos remete a uma falta de atores negros que pudessem representar o papel.
Na situação da Cia Os Fofos quando se utiliza do pintar a cara de preto para representar
grotescamente, estereotipadamente o negro se faz um retrocesso explícito. Essa jocosidade
tem efeito em qual público? É como se tivéssemos falando da diferença de um branco
representando um papel de negro que tem densidade e potência e passarmos para um branco
pintado de negro representando um papel subalterno que para ser engraçado exagera na
caricatura, ridicularizando. O que isso poderia gerar se não indignação? A comunidade negra
em São Paulo se indignou e manifestou-se diante dessa peça.
A atriz Tatiana Tiburço que interpreta Khaya Djimba na peça- é também professora
de teatro- e nos contou que antes de iniciar o projeto Salina ela fazia parte de um grupo de
teatro chamado Cia dos Comuns, tinha uma preocupação muito parecida com a do Abdias do
Nascimento, tinha esse mesmo projeto de produzir atores e espetáculos com os negros/as,
inclusive Abdias do Nascimento era um padrinho da companhia, no entanto a Cia hoje não
está mais em exercício. Tatiana conta que durante sua formação de teatro que foi na Martins
Pena, uma escola técnica de teatro no Rio de Janeiro, ela não teve muito contato com autores
negros/as, ou com peças que estavam voltadas para o universo negro. O que reforçava a
exclusão do ator/atriz em uma peça, ela lembra que normalmente não fazia papéis
importantes, pois ela não tinha o “physique du rôle, não tinha a aparência do personagem”.
Quando eu participei da oficina do Amok no Jockey Club no Rio, conheci Luana
Vitor. Uma negra contagiante de mais ou menos 30 anos que participou do processo de
formação de atores e da escolha do elenco de Salina, mas que não chegou até o momento final
de apresentar a peça. Farei um parêntese para explicar como foi o processo de escolha do
58

elenco da peça: 40 atores foram selecionados para fazerem um processo de formação de


ator/atriz com o grupo Amok e nesse processo iam sendo escolhidos aqueles que ficariam
para última etapa, a montagem do espetáculo. Portanto com o passar do tempo o número de
atores foi se afunilando até chegar aos 10 atores que representaram os personagens de Salina.
Luana Vitor ficou até o penúltimo processo, mas não chegou a ser escolhida para montar a
peça. Para ela a oportunidade de ter tido a formação com eles até quase o final foi bastante
importante e ela relata que essa formação acrescentou muito a sua vida pessoal e profissional,
tanto que buscava continuar fazendo oficinas com o grupo para aprimorar seu aprendizado.
Ela também narra a dificuldade que o ator negro tem para se inserir no universo teatral:
“Então não sei se você está me entendendo bem, porque eu fico muito emocionada de falar de
Salina, por conta dessa posição que o ator negro ocupa dentro da sociedade.( Ele tinha lágrima
nos olhos) Ele é sempre a cota. A gente brincava assim nos processos na oficina, mas isso é
uma verdade. Nós somos sempre a cota, se eu estou num espetáculo e tem outra atriz que é
negra, vai ser eu ou ela. As duas é muito difícil, então essas coisas foram postas. Então
quando o Amok trouxe isso foi uma luz. De verdade.”
Por isso resolvi dedicar um capítulo dessa dissertação a questão racial no Brasil,
pois por ser um assunto muito presente nas falas, afetações e vivências dos atores da pesquisa
acabaram influenciando meu olhar, misturando-se com meu afeto, pois para mim a questão
racial sempre trouxe indagações. O preconceito racial existente no Brasil é de fato uma
questão social e de influências psíquica de enorme relevância para uma parcela grande da
população brasileira. Considerando que a população negra no Brasil representa mais de 50%
da população brasileira, contando pardos e pretos (censo 2011, IBGE) temos que considerar
que ao falar de um problema racial, estamos falando de um problema que atinge mais metade
da nossa população.
Para entender um pouco da questão racial vamos começar por uma breve história da
miscigenação de raça no Brasil. A história da miscigenação passou por mudanças, no século
XIX a mistura entre as raças era tida como maléfica a sociedade, num segundo momento a
miscigenação foi vista como importante para o embranquecimento da população, numa visão
mais higienista. Num terceiro momento juntamente com as pesquisas de Gilberto Freyre a
miscigenação foi idealizada como algo positivo e que diminuiria a distância entre o senhor e o
escravo. Em Casa Grande Senzala é essa a teoria que ele defende, numa ilusão de mais
aproximação entre as raças, uma fantasia de igualdade, sua teoria fazia parte de um projeto de
nação para o Brasil, tentando dar uma unidade racial ao brasileiro tornando a mulata/ o mulato
mestiço a cor do povo Brasileiro. Segundo Pacheco e Guimarães, que são autores que pensam
59

a questão racial no Brasil, esse argumento que Gilberto Freyre apresenta traz um
apaziguamento do conflito étnico racial, camuflando a violência do sistema racial, patriarcal.
(PACHECO, 2013; GUIMARÃES, 2008).
O mito que se tentou criar sobre miscigenação de raças no Brasil desde Gilberto
Freyre com Casa Grande e Senzala, onde ele tenta provar que há uma aceitação da mãe negra
que por amamentar os filhos da sinhá, por ser cuidadora das filhas/os da sinhazinha, é bem
acolhida entre os brancos, tornando-se de casa. E que, portanto, como defende Freyre a negra
se incluiria harmoniosamente a cultura branca. Essa é uma visão também expandida pela
literatura brasileira. Como o exemplo Monteiro Lobato cria a personagem da Tia Anastácia do
Sítio do pica-pau amarelo, que é essa cozinheira negra, muito bondosa, de uma família branca
e que se insere muito bem nessa família. Jorge Amado é outro literato que também faz parte
desse projeto da nação unificada em uma raça, ensaiando uma mistura entre raças num sentido
bastante pacificador. Como em seu livro Gabriela, em que a personagem principal é uma
mulata, símbolo sexual, desejada por brancos e negros. Esse projeto sugere que a mistura das
raças provocaria uma diminuição na distância entre negros e brancos. Há uma idealização da
relação entre negros e brancos, o conflito racial torna-se pacificado, e a violência do sistema
racial fica ocultada. E quanto mais uma realidade é mascarada mais a violência pode ser
exercida sem se tonar perceptível.
Talvez tenhamos herdado dessa perspectiva a noção de que no Brasil há uma
discriminação de classe, mas não uma discriminação de raça. No Brasil a discriminação de
classe é legitima. E o racismo é reiteradamente negado e confundido com formas de
discriminação de classe por isso o combate ao racismo fica na eminência da invisibilidade.
(GUIMARÃES, 1999)
Mas se até agora vim pensando junto com Ana Paula Pacheco que é antropóloga e
socióloga e com Guimarães que também é sociólogo, gostaria também de dialogar com
autores que refletem sobre o tema racial pelo viés psicológico, e que mostram como a
discriminação sofrida ao longo da história afeta a psique dos negros e negras na nossa
sociedade. Fazendo uma interface entre a sociologia e a psicanálise, autores como Frantz
Fanon, Neusa Souza Santos e Bell Hooks me permitiram aprofundar nesse tema. Fanon e
Santos são psicanalistas. Hooks é uma militante negra, feminista que também faz suas
analises a partir da abordagem psicanalítica.
Frantz Fanon é um martinicano negro e por ser psiquiatra e psicanalista traz uma
perspectiva da psique que poderiam constituir um capítulo à parte. Em seu livro Pele negra,
máscaras brancas ele mostra o fato de os negros e negras em seu pais de origem, que foi
60

colonizado pela França, terem incorporado o ideal e os valores da cultura branca dominante
colonizadora. Essa incorporação chega a tal ponto que o negro inverte sua imagem vendo-se
como branco. Fanon tenta desconstruir o ideal de superioridade que se cria sobre o
colonizador. Ele faz uma análise minuciosa do assujeitamento e do poder nas colônias, sua
vontade de interrogar a questão racial nos meandros psíquicos fazem dele hoje um aliado
extraordinário não somente por analisar a condição pós-colonial, mas também por elaborar
uma epistemologia subversiva do saber psiquiátrico e uma clínica à altura dos desafios
teóricos colocados pelo teatro contemporâneo do sofrimento, seja os refugiados, as vítimas de
tortura, os conflitos urbanos, as novas marginalidades. Com ele nos vemos finalmente se abrir
uma etno-psiquiatria crítica, em um diálogo incessante como a história e tensionado pelo
esforço de interrogar as subjetividades inquietas do presente. Fanon aponta para a necessidade
de um olhar descolonizado e a urgência de subtrair a hegemonia europeia. Grande parte da
teoria de Fanon é fundada na sua experiência vivida, ponto de partida para o desenvolvimento
da sua pesquisa. (BENEDUCE, 2013)
Em outro livro de Fanon chamado Le damnés de la terre (Os condenados da terra)
tem um trecho que sinaliza alguns motivos para não idealizarmos com superioridade os
colonizadores europeus. Ele propõe que ao invés de ficarmos divinizando nossos camaradas
europeus, seus pensamentos e ideias seria melhor construir um novo homem, uma nova pele,
pois afinal os valores que lhe pertencem e que consequentemente nos pertence não são valores
tão prodigiosos. Em suas próprias palavras FANON (1968, tradução própria)

Isto é para o terceiro mundo, para recomeçar uma história de um homem que tem em
conta as teses às vezes prodigiosas da Europa, mas também os mais odiosos crimes
que a Europa terá cometido no seio do homem, o esquartejamento patológico de
suas funções e o desmoronamento de sua unidade , no quadro de uma coletividade, a
fissura, a estratificação , a tensão sangrenta alimentada pelas classes, enfim a escada
imensa da humanidade, os ódios raciais, a escravidão, a exploração e principalmente
o genocídio exangue que constitui a segregação de bilhões e meio de homens.
Esqueça, o melhor é fazer um pensamento novo. Por nós mesmos, pela humanidade,
camaradas, deve-se fazer uma pele nova, desenvolver um pensamento novo, tentar
estabelecer um homem novo. (FANON, 1968, p. 232-233)

E exatamente nesse sentido ele ousa a propor uma análise da subjetividade do negro
entrelaçando as questões individuais, mas uma questão também social “Veremos que a
alienação do negro não é apenas uma questão individual. Ao lado da filogenia e da ontogenia,
há a sociogenia” (FANON, 2008, p.28).
Fanon é antes de tudo um revolucionário como cita Gordon no prefácio desse livro
Pele Negra, Máscaras Brancas. Ele é mentor do pensamento descolonizador, inclusive ele é
61

uma grande referência para Paulo Freire para a construção da sua obra Pedagogia do
Oprimido, influenciando também Alberto Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento. Como
Paulo Freire é um mestre que tenho grande estima, saber que Fanon influenciou suas
pesquisas aumentam o interesse em entender o pensamento desse autor. Ele foi um grande
revolucionário defensor da causa negra, militante político envolvido na causa da libertação da
Argélia, mas também grande revolucionário intelectual. “As ideias de Fanon estimularam
obras influentes no pensamento político e social, na teoria da literatura, nos estudos culturais e
de filosofia” (GORDON, 2008, p.12)
O filósofo Achille Mbembe que é camaronês foi homenageado desse ano para o
prémio Alemão Scholl, com sua obra A crítica da razão negra, Mbembe reconhece que sua
obra foi bastante influenciada por Fanon. Mbembe como Fanon apostam na esperança de um
projeto de mundo por vir, um mundo liberto do peso da raça e dos ressentimentos.
Para Fanon a recusa frequente que existe na nossa sociedade de não querer ver na
questão racial um problema, negando que o racismo exista é quase uma forma de acreditar
que não há diferença entre negros e brancos, como se todos fossemos brancos. “O retrato
exibido nesse livro revela uma história diferente. Mostrava como a ideologia que ignorava a
cor podia apoiar o racismo que negava. Com efeito a exigência de ser indiferente a cor
significava dar suporte a uma cor específica: o branco.” (GORDON, 2008, p.14) Por isso seu
livro causou uma reação um pouco enfurecida mesmo naqueles que querem estudar a questão
do negro pois quando os estudiosos se defrontam em pensar os problemas enfrentados pelas
pessoas negras, os próprios negros/negras acabam sendo o problema, como diz Fanon, numa
exigência neurótica de que os estudos sobre o negro poderiam existir, mas se entrassem em
um acordo que o negro não existe.
E é por isso que ele afirma que existe uma sociogenia e não simplesmente a filogenia
e a ontologia. E para pensar conjuntamente com Fanon sobre essa doença social, farei
algumas denúncias sobre os preconceitos enredados na nossa sociedade, mas também
pretendendo verificar as implicações subjetivas das pessoas negras nas suas próprias
condições, portanto entrelaçarei questões psicológicas e sociais para ampliar a análise. Ou
seja, não é dizer que o problema está simplesmente fora (o social), ou simplesmente dentro (o
psicológico) é a busca da compreensão como essas duas coisas se entrelaçam produzindo a
subjetivação das pessoas negras.
Fanon se inquieta com o fato de a maioria dos negros na Martinica não falarem mais
seus idiomas de origem o Criolo, eles se concentraram em falar o francês que é a língua dos
colonizadores, e foram abandonando os costumes dos seus ancestrais negros. Frantz Fanon
62

faz então relação entre linguagem e identidade. Quando se domina uma linguagem se assume
certa identidade da cultura, mas no caso dos negros/negras mesmo que eles tenham esse
domínio da língua não encontram tal legitimidade. E o negro acaba acreditando nesse fracasso
de legitimidade e declara uma verdadeira guerra contra a negritude, sustentando um racismo
do negro contra ele mesmo. E Fanon interpretou esse fenômeno como forma de narcisismo
em que os negros buscam a ilusão dos espelhos que oferece um reflexo branco. E muitas
vezes esse narcisismo é reforçado pelo branco que prefere investir nesse reflexo no espelho
porque assim consegue ter uma imagem de si mesmo como não racista.
Creio que essa visão de Fanon do reflexo branco no espelho que é produzido pelo
negro e reforçado pelo branco compartilha de alguma forma com a percepção da Pacheco e do
Guimarães que falamos anteriormente quando ponderam sobre a ilusão da proximidade entre
as raças para poder apaziguar um conflito, camuflando-o. Eles estão de algum modo pensando
que interesse tem o branco em fingir que o racismo não existe. Mas também pensando de que
forma o negro incorpora e aceita essa ideia de que sua própria cultura não existe.
Fanon propõe caminhos em que há expectativa de um mundo liberto da servidão, do
racismo e dos ressentimentos, um mundo possível de ser construído e criado. Porém Fanon
não prega a superioridade da raça negra, ou a revolução dessa sociedade para uma supremacia
da cultura negra. Mas uma ação conjunta em que nós homens e mulheres brancos/as e
negros/as possamos ser pessoas de ação para poder modificar essa situação que está colocada
na atualidade. E essa é a fala final no seu livro, e como citou Gordon pode ser entoada como
uma oração.

Que jamais o instrumento domine o homem. Que cesse para sempre a servidão do
homem pelo homem. Ou seja, de mim para o outro. Que me seja permitido descobrir
e querer bem ao homem, onde quer que ele se encontre.
O preto não é. Não mais do que o branco.
Todos os dias têm de se afastar das vozes desumanas de seus ancestrais respectivos,
a fim de que nasça uma autêntica comunicação.....
É através de uma tentativa de retomada de si e de despojamento, é pela tensão
permanente de sua liberdade que os homens podem criar as condições de existência
ideais em um mundo humano.” (FANON, 2008, pg. 191)

Neusa Sousa Santos se apropria de outro conceito psicanalítico para fazer uma
reflexão paralela a de Fanon referente ao narcisismo nas máscaras brancas sobre as negras
peles, ela pensa a partir do ideal de ego. Ela faz a interpretação de que o ideal do ego das
pessoas negras é o branco. Tanto Fanon que constitui seu pensamento pelo conceito de
narcisismo, como Santos que constitui seu pensamento a partir do conceito de ideal de ego
das pessoas negras e o modo como isso causa um prejuízo narcísico grave, ambos pensam
63

através de conceitos psicanalíticos diversos, mas chegam a um lugar comum. Santos faz uma
aposta que essa realidade pode ser revertida com a militância política.

O negro que elege o branco como ideal de Ego engendra em si uma ferida narcísica,
grave e dilacerante, que como condição de cura, demanda no negro a construção de
um outro ideal de ego, um novo ideal de ego que configure o próprio rosto, que
encare seus valores e interesses, que tenha como preferência e perspectiva a história.
Um ideal construído através da militância política, lugar privilegiado de construção
transformadora da história. (SOUZA, 1983, p.43)

Já Bell Hooks, que é uma norte americana feminista, ativista da causa negra faz uma
análise maravilhosa sobre a masculinidade do homem negro e o quanto essa virilidade está
calcada em uma defesa. We real cool é um livro de Bell Hooks de 2004 em que ela se
aprofunda em muitas questões psicológicas para sustentar seus argumentos, fazendo reflexões
tanto pessoais, trazendo relatos de amigos, mas também numa interlocução com a literatura e
alguns filmes para analisar a masculinidade dos homens negros no nosso sistema patriarcal
capitalista. E quando ela analisa a masculinidade do homem negro ela expõem uma
problemática social que envolve muitas das questões raciais.
Hooks além de ser uma intelectual da qual eu preso muito pelas suas ideias e sua
personalidade, ela também contribui para essa pesquisa para além de suas ideias sobre as
pessoas negras, pois pensando um pouco a partir da ideia da Haraway dos saberes localizados,
Hooks consegue trazer uma pessoalidade que se implica com o político, localizando bem de
onde parte o saber que ela produz. Nesse seu livro e em outros escritos ela usa essa estratégia
que indica a política na qual ela está engajada. Ela é um exemplo de intelectual que consegue
produzir um conhecimento não distanciado sem preocupações com a neutralidade. Portanto há
entre nós alguma semelhança metodológica. Hooks é uma intelectual cativante.
Ela explica que sexualidade do homem negro está ligada a uma excessividade em
busca de provar sua masculinidade, relacionando a masculinidade à virilidade, o ato sexual é
extremamente valorizado, sendo importante para esses homens um grande número de
parceiras para provar sua masculinidade. Mas essa virilidade na verdade esconde uma maneira
de retrucar a discriminação que vivenciam cotidianamente e o vazio interior que é fruto dessa
violência. Eles tentam preenchê-la com o contato sexual com o maior número de mulheres,
sendo essa uma forma de afirmar-se socialmente. Mas a autora acredita que essa forma de
refúgio causa ainda mais dores do que empoderamento de fato. Porque são geralmente
relações fugazes, e que não buscam um aprofundamento que torne a relação com intimidade e
afecção, mas são relações que acabam tendo numa superficialidade que podem provocar
64

ilusões e dores nas parceiras, causando dores a eles mesmos devido à falta de substância
nessas relações.
Bell Hooks pensa ao longo desse livro as estratégias de defesa psicológicas que os
negros usam contra a violência vivida cotidianamente, mas que acabam sendo mais frustrantes
gerando mais dor do que possibilitando a eles de se sentirem valorizados, amados ou inseridos
nos contextos sociais e afetivos: familiares e amigos, ou nos ciclos escolares, e de trabalho.
Hooks faz uma análise do fracasso das relações amorosas entre negros e negras como
sendo reflexo dos problemas nas relações afetivas familiares da infância. Ela aponta que há
uma disfunção nas famílias modernas, e essa disfunção existe em todas as famílias
independente da raça, mas devido ao impacto do racismo, as famílias afro-americanas têm
essa disfunção mais extremada, portanto as problemáticas dessas primeiras ligações afetivas
tornam difíceis para a pessoa adulta alcançar uma maturidade emocional e um bem-estar.
Uma das demonstrações de que uma família é disfuncional está no fato de que muitas vezes
os pais não conversam entre si para pensar qual seria a melhor educação para os filhos. Para
educá-los acabam criando regras extremamente rígidas que seus filhos precisam obedecer sem
nem mesmo poderem questioná-las. Hooks considera que muitas vezes as punições são tão
duras que chegam a ser abuso, mas normalmente elas são consideradas fundamentais para
disciplinar as crianças antes que elas percam o controle. As crianças negras precisam ainda ser
mais disciplinadas uma vez que existe um pressuposto subjacente de que elas são más.
E por outro lado entre os homens num geral, independente da raça existe uma
dificuldade de mostrar a fragilidade que sentem. O tempo todo Hooks faz essa intersecção do
homem negro com a ideologia do patriarcalismo, a questão da masculinidade que perpassa
todos os homens são as mesma que atingem também o homem negro, mas o homem negro
devido a sua história tem algumas particularidades. E o negro diante das agressões que sofreu
na escravidão teria ainda maior dificuldade de mostrar suas fragilidades, uma armadura criada
para a sobrevivência.

Como pessoas negras numa supremacia da cultura branca nós temos a psicohistória
de aprender a esconder completamente nossa vulnerabilidade para sobrevivermos.
Quando essa estratégia está ligada com uma cultura global de desvalorização da
vulnerabilidade faz sentido que as pessoas negras tenham interpretado
invulnerabilidade como sinal de força emocional ( HOOKS, 2004, p.115, tradução
própria)

Mesmo que essa estratégia já não sirva mais porque hoje em dia já não existe a
exposição à extrema violência como foi no caso da escravidão, isso acabou causando danos às
65

suas relações íntimas e questões emocionais. O que se tem, portanto, no desenrolar desses
acontecimentos é um problema bastante sério como analisa a autora: Pois se há uma
incapacidade de se ser vulnerável é porque há uma incapacidade de sentir. Se não se pode
sentir, não se consegue sentir que existe uma conexão verdadeiramente com os outros, não se
podendo, portanto amar. E não seria por acaso que a falta de amor que está infestada na nossa
cultura seja ainda maior, mais acentuada entre os negros e negras Afro-Americanos. Portanto
para responder a dificuldades de se ter relacionamentos mais amorosos é preciso olhar para
feridas que estão centradas nas muitas maneiras de amar, que não são simplesmente a relação
entre casais. Ela reforça bastante a ideia de que existe uma ferida causada na infância e que
isso causa consequências sérias no psiquismo.
Outra influência grande sobre a masculinidade é o patriarcalismo que interfere na
vida das pessoas deformando suas relações que acabam por se tornar doentias essencialmente
em duas instâncias, a sexualidade e o trabalho. Nesses dois domínios os homens buscam
afirmar sua masculinidade, por isso vamos avaliar como e porque o patriarcalismo desvirtua
essas relações.
No que se refere ao mundo do trabalho existem questões muito sérias a serem
pensadas porque ainda hoje uma grande parte da população negra é colocada na
marginalidade da vida econômica do país. E é claro Hooks pensa a sociedade norte-
americana, mas creio que suas reflexões são válidas, pois fazemos parte de um mesmo mundo
ocidental e somos atravessados pelos dogmas do capitalismo, bem como do patriarcalismo de
uma maneira relativamente similar à vivida no norte da América.
O dinheiro no sistema capitalista é tão valorizado quanto à própria vida. Para nós o
dinheiro é como uma marca prioritária do sucesso individual, mas nós geralmente nos
preocupamos pouco com a forma como ele foi conquistado. Existe uma disputa por empregos
e privilégios que normalmente não está em primeira ordem a preocupação com a ética de
como conseguir esse dinheiro, portanto pode-se passar por cima de valores humanistas para
conseguir seu objetivo, afinal tudo é permitido para se chegar ao topo.
Essa incorporação do capitalismo nas próprias veias é um fato recente como aponta
Hooks. Os patriarcas da geração dos seus pais, ela exemplifica com uma história do próprio
pai, olhavam com desdém para as pessoas que estavam simplesmente preocupados em fazer
dinheiro, eles tinham uma preocupação ética com o trabalho que realizavam. E apesar dessa
antiga geração ter ajudado a construir o capitalismo que se tem hoje em dia, eles quem
sofreram os maiores preconceitos e humilhações mesmo ganhando um salário de miséria.
66

Os negros historicamente passaram por muitas dificuldades nos seus empregos, tendo
sofrido imensa discriminação como a diferença de salários para o mesmo cargo e nos dias
atuais as discriminações ainda acontecem mesmo nos cargos mais elevados. Existe uma
violência psicológica para os homens negros no que se refere ao mundo do trabalho, porque
ainda existem pessoas brancas não iluminadas que exercem sua dominação através do
terrorismo psicológico e é, portanto, no ambiente de trabalho que essa dominação pode ser
feita e refeita incessantemente. O lugar de trabalho é um lugar estressante e desmoralizante
para um homem negro.
Muitos jovens negros são cooptados para o mundo do crime pelo fato de que vender
drogas é um acelerador para conseguir os objetivos da riqueza. O garoto que opta por essa
saída acaba conseguindo acelerar sua vida em semanas e anos, quando não consegue atingir
alguns objetivos materiais que nunca conseguiria atingir se estivesse em um trabalho formal.
O mais controverso como demonstra Hooks é que esse é a maior campanha publicitária que o
capitalismo nos fornece: ganhar o máximo de dinheiro no menor tempo possível. Quando o
garoto negro faz a opção pelo mundo do crime, ele agarra a oportunidade de tornar-se rico, o
que não conseguiria de outra maneira. E além do mais a cultura Gangster tem seu glamour,
pois ela tem sua similaridade com a vida selvagem: os mais fortes sobrevivem. Tem também
uma questão sexy, pois é preciso muita coragem para foder4 o sistema.

Todos os dias garotos negros encaram uma cultura que fala para eles que eles nunca
conseguirão realmente alcançar dinheiro suficiente ou poder que os liberariam do
racismo tirano no mundo do trabalho. A mídia de massa escolariza os jovens no
mundo nos valores da masculinidade patriarcal. (HOOKS, 2004, p.26, tradução
nossa)

A noção de masculinidade ensinada pela mídia para os jovens negros é herança do


patriarcalismo de que os homens são predadores e que os mais fortes e violentos é que
sobrevivem nesse mundo.
E ainda existe uma estigmatização sobre os jovens negros que eles são
potencialmente perigosos e que uma vez que cometeram um ato criminoso estão fadados a
repeti-lo eternamente, diferentemente do branco que pode ter cometido um erro quando
recorre ao crime. Ou seja, um olhar discriminado dependendo da cor de pele. Sobre a mesma
ação existem interpretações diferentes.

4
Esse é exatamente o termo utilizado por Hooks, e eu decidi mantê-lo porque considero que ele está
perfeitamente adequado a sua análise sobre a sexualidade masculina e desejo de enriquecimento de forma
subversiva.
67

Bell Hooks faz uma explanação sobre como os jovens negros que são levados a
entrar para criminalidade têm uma influência do social, do fora, ou seja, dos ideais do nosso
sistema econômico somados ao padrão ideal de masculinidade, acrescentados às dificuldades
que enfrentam no ambiente de trabalho. Mas existe também um impulso interior em que se
permitem ser capturados pelo desejo da riqueza e que acabam idealizando a cultura gangster.
É como se existisse um ciclo entre a interioridade e uma exterioridade que alimentassem essa
dinâmica social.
E Hooks faz uma proposta de solução para que seja quebrada essa corrente cíclica
que me parece bastante plausível. Se pudéssemos desafiar essa suposição do materialismo de
ter para ser, desestimulando a fantasia de que o dinheiro pode resolver todos os nossos
problemas, poderíamos, então, voltar a realidade de dividir recursos, reconceitualizar o
trabalho e conseguir fazer dos espaços de lazer um momento para praticar auto realização.
E se dinheiro e sexo são poder, a sexualidade não poderia ter menos valor nesse
diagnóstico do patriarcalismo. Nossos garotos são bombardeados por todos os lados com uma
sexualidade enfurecida, em que homem para ser homem deve ter como imperativo o foder.
Pode ser uma transa consentida ou um estupro, mas transe com estranhas e namoradas, com as
próprias esposas e as esposas dos outros e até com crianças. Ainda mais porque a correlação
entre sexo e poder aumenta porque os homens imaginam que deixar suas sementes espalhada
pelo quatro cantos do planeta é um sinal de poderio complementando a ideia de que é preciso
ter o maior número de transas com o maior número de parceiras possível. Existe entre os
homens negros, uma grande parte das vezes, uma relação obsessiva-compulsiva como sexo
principalmente porque essa é uma maneira que eles entendem que estão dominando as
relações nas quais se envolvem, e, portanto, entendem que estão cobertos de empoderamento.
No entanto por de trás da máscara de sedutores existe a dor, essa obsessão indica na verdade
uma imensa falta de poder, porque a partir de transas rápidas o que se tem são
relacionamentos esvaziados. O paradigma para entender a compulsividade sexual do homem
negro é que sexo se torna o último jogo em campo, onde a busca por liberdade pode ser
perseguida em um mundo que nega aos homens negros acesso a outras formas de libertar-se.
Apesar de apontar e reafirmar vários estereótipos como esse do negro garanhão
Hooks não se fecha nessas estigmatizações. Ela não quer simplesmente mostrar como o negro
é oprimido e vitimizado pela supremacia da sociedade branca. Ao contrário desse lugar de
vítima onde ele perde o sentido de agência, ela pretende os empoderar, mas não esse poder
esvaziado do sexo e do enriquecimento que ela crítica, mas um empoderamento para se
tornarem homens de agência. É preciso olhar com muito cuidado para as feridas, acreditando
68

e agindo pelas alternativas de uma transformação coletiva e individual que ponha fim nesse
sofrimento. Sua grande aposta está na ressignificação da autoestima e consequentemente a
possibilidade de amar-se a si próprio e assim articular condições para amarmos uns aos
outros.
Uma frase no seu livro que para mim foi muito representativa para explicar de
maneira bastante resumida um pouco do ciclo vicioso em que vivem os homens e mulheres
negras, em que ódio do branco contra o negro, gera um ódio do negro contra ele mesmo e
contra os outros negros, em que eles acabam escolhendo o caminho de autodestruição: “Hurt
people hurt people” (HOOKS, 2004, p.119) Pessoas feridas ferem pessoas.
Angela Davis pensa que alguma forma de violência quando incorporada ao ativismo
político pode ser utilizado como ferramenta para transformar a realidade da discriminação
vivida pelos negros, mas também interpreta a agressão como uma reação contra as coerções a
que os negros/negras são submetidos. Também num mesmo sentido de Hooks “Hurt people
hurt people” poderíamos entender aquilo que Angela traz nessa entrevista. Angela Davis é
uma grande ativista negra, feminista e também comunista participante de vários grupos
ativistas entre eles, Os Panteras negras. A entrevista está acessível no site do youtube e foi
realizada enquanto ela está presa e sendo acusada de corroborar para o sequestro e assassinato
de um juiz. Nesse momento existia um engajamento por parte de alguns membros do Panteras
Negras para denunciar os maus tratos a negros nos presídios dos Estados Unidos. Jorge
Jackson estava preso, pois era acusado de matar um agente penitenciário branco em retaliação
a morte de outros três presidiários negros. O irmão de George invadiu um tribunal e tomou
um juiz como refém. Nesse conflito quatro pessoas foram mortas inclusive George e o juiz.
No entanto a bala que acertou a cabeça do juiz era de um revolver que pertencia a Angela
Davis. Ela conseguiu fugir por algum tempo, mas estava cercada por todos os lados e não
conseguiu escapar. Ficou presa por 16 anos. O entrevistador direciona a
pergunta sobre quais eram os meios que os Panteras Negras tinham para alcançar seus
objetivos. Se ela pensa que a violência é efetiva? Ela responde que o meio em que
vivemos (nós negros) é realmente violento e que de alguma forma alguma reação como essa
deve ser esperada, referindo-se ao crime. Ela relembra como se sentia invadida e violentada
pela presença de policiais que a olhava constantemente por ser negra, por usar seu cabelo
natural, contando sobre violência policial que viveu no subúrbio onde morou “ Aí você vem
me perguntar se eu aprovo a violência? Isso simplesmente não faz nenhum sentindo”. Depois
narra uma longa história sobre um ataque no Alabama provavelmente fazendo referência
ao Ku Kux Klan que ocorreu na sua comunidade quando ela era pequena, ela conta ainda
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bastante afetada sobre a forma como aquilo a aterrorizou, três crianças que eram próximas a
ela foram brutalmente assassinadas, ela diz que depois desse evento para defesa da
comunidade seu pai e as outras famílias tiveram que armar-se e colocar alguém sempre
vigilante para isso nunca mais acontecer. Ela diz que fica muito espantada quando alguém
pergunta isso para ela porque essa pessoa não tem a menor ideia do que os negros têm
passado desde que o primeiro negro foi raptado da África. Ela entende a violência do negro
como uma reação da violência vivida até então, mas no caso do ativismo essa é uma violência
que visa alguma transformação da opressão vivenciada.
(https://www.youtube.com/watch?v=R2BIZy0HScM)

4.1 Breve história da segregação e discriminação racial no Rio de Janeiro e Brasil

Decidi pensar um pouco as questões históricas que constituem a cidade do Rio de


Janeiro, cidade que atravessa tanto a mim quanto aos atores dessa pesquisa. O Rio de Janeiro
é com certeza a cidade mais negra que eu vivi até hoje, eu que sou do interior de São Paulo, e
depois morei anos no norte do Paraná sinto que o Rio tem uma presença negra muito
marcante. Um dos motivos é que aqui foi rota do tráfico negreiro, mas principalmente porque
houve uma grande migração de negros vindos da Bahia para buscar melhores condições de
vida na capital do país. A paisagem urbana dessa cidade é um lugar muito permeado pela
discriminação e segregação, quase como qualquer outro lugar, mas que possui suas
particularidades. A maneira como a cidade do Rio de Janeiro se constitui hoje advém de uma
proposta violenta de urbanização, é importante manter um olhar atento para nosso passado
para não passarmos desapercebidos nem naturalizar essa paisagem urbana de segregação. O
plano de modernização do Rio de Janeiro foi um planejamento higienista que efetivou a
segregação da população pobre.
Nas primeiras décadas do século XX o Rio de Janeiro era a capital do país há mais
de 100 anos, a cidade estava em pleno crescimento, dispunha de um grande porto exportador,
a região era grande consumidora dos produtos internos e também importadora de produtos. E
até então a cidade vinha sendo desenvolvida de forma não planejada, mas com a visibilidade
de uma capital e uma economia crescente seus governantes acabam por entender uma
necessidade de modernização da cidade. O planejamento urbano, realizado por Pereira Passos
prefeito da cidade, entre 1902 e 1906, se baseava na cidade de Paris como modelo de
70

urbanização. A demolição em massa dos cortiços que existiam no centro da cidade que eram
habitados pelas classes populares, em que a maioria era negra, foi umas das estratégias de
mudança. Eles são deslocados para o subúrbio ou a favela. Os problemas de transporte e
abastecimento dessa população não são levados em consideração nesse novo planejamento
urbano. As condições de vida eram piores nas favelas que nos cortiços, pois não havia nem
luz nem saneamento básico. Eu me pergunto como é que as pessoas poderiam ter melhores
condições de saúde vivendo sem saneamento básico? Era a saúde uma preocupação ou uma
máscara?
A justificativa para tal reorganização era a higienização, a associação entre a
pobreza, a higiene e as endemias recorrentes na época trouxe como solução a segregação
dessa população. A solução higienista foi afastá-los da visibilidade, varrendo-os dos bairros
do centro de maior circulação, ficou mais higiênico deixar parte da população sem
saneamento básico, como se eles não estivessem mais vulneráveis nessas condições podendo
aumentar a contaminação da população. Mas a geografia do Rio é bastante montanhosa e
como eles foram construindo suas moradias nos morros não ficaram escondidos. Por onde se
olha no Rio se vê uma favela despontar no horizonte. O contraste entre a pobreza e a riqueza
está explicito em toda zona sul do Rio, as favelas fazem despontar no horizonte dos bairros
nobres a sua expressão de oposição onde as casas foram sendo construídas sem planejamento
nem grande infraestrutura. As favelas ficam localizadas sem grande distância do centro e das
praias da cidade o que possibilita uma convivialidade entre os mais pobres e os mais ricos.
Esses que de alguma forma aceitaram que os pobres fossem se agrupando nas proximidades,
afinal eles que faziam o trabalho doméstico e subalterno para os mais ricos. (MOURA, 1995)
Hoje a maior parte da população que mora na favela é negra. Dos moradores na
favela 40% das casas são chefiadas por homens negros, 26% das casas são chefias por
mulheres negras, 21,3% das casas são chefiadas por homens brancos, 11,7% das casas são
chefiadas por mulheres brancas segundo a pesquisa realizada pelo IPEA-Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada em 2008, (IPEAD, 2011). A predominância da população negra na
favela é um indicador da exclusão e vulnerabilidade social.
O cenário cotidiano das pessoas que vivem nas favelas não é dos mais agradáveis
que existe, pois além de viverem em habitações precárias sofrem com a dificuldade de acesso
com uma escassez de transporte, com um saneamento básico ainda precário, e ainda vivem
cotidianamente a violência do tráfico e as intervenções militares do estado fazendo desses
territórios verdadeiros espaços sitiados. E como justificativas dessas intervenções militares
contra os traficantes a polícia mata muita gente inocente.
71

No ano de 2015 houve dois eventos bastante chocante, que retratam o cotidiano
violento vivido pelas pessoas que habitam nas favelas e que são confrontadas diariamente
com a violência da guerra do tráfico. Um é caso do garoto Eduardo de 10 anos morto no
complexo do Alemão quando estava à espera de sua irmã em frente sua casa, mexendo no
celular. Foi baleado, morrendo na mesma hora. Os policiais ainda tentaram retirar o corpo do
garoto tentando modificar a cena do crime, mas foram impedidos pelos vizinhos e a família.
As escassas mídias que divulgaram o caso de Eduardo faziam falsa acusação de que o menino
era envolvido com o tráfico. A conclusão do inquérito policial da divisão de homicídios
conferiu legitimidade à ação dos policiais militares com a alegação de que os policiais
estariam em confronto com o a traficantes e erraram o tiro. A Anistia Internacional em
investigações sobre o caso apurou que no momento em que Eduardo foi morto não havia
confronto ou troca de tiros.
Vinciane Despret traz uma reflexão interessante no livro: Que diriam os animais, se
nós os fizéssemos as boas perguntas? No capítulo Q como Quilo quando ela dialoga com
Judith Butter para pensar a maior vulnerabilidade de uns seres comparados a outros, Despret
está pensando a vulnerabilidade dos animais, mas traz a o posicionamento de Butter que do
seu lado reflete sobre a vulnerabilidade dos humanos após o atentado de 11 de setembro.
Como estamos refletindo a ideia da vulnerabilidade dos garotos negros nas favelas não
estenderei o pensamento até os animais.

Quais vidas contam como vidas? Esta questão das vidas que importam, ou que
pedem para importar, se traduz por uma outra, bem mais concreta: O que constitui
uma vida com relação a qual se pode portar luto? (...)nestas vidas que reclamam a
tristeza da perda (...) esta demanda se impõe a nós porque vivemos em um mudo
cujos seres são dependentes uns dos outros e, principalmente são vulneráveis por e
para os outros(...) esta vulnerabilidade emerge de um engajamento ativo em uma
relação responsável, uma relação da qual cada um dos seres aprende a responder por
si e na qual eles aprendem a responder: é pela tristeza que nos engajamos que a vida
poderá contar; é pela aceitação desta tristeza que ela conta.(DESPRET, 2012, p.119-
120)

Quando assumimos o risco da vulnerabilidade incorporando a tristeza que aportam a


morte dessas pessoas podemos assumir a responsabilidade de tornar essas vidas que não
contam em vidas que contem, tendo assumido junto com eles um devir vulnerável.
No Brasil, dos 30.000 jovens vítimas de homicídio por ano, 77% são negros, segundo
dados da Anistia Internacional. Esse órgão faz uma campanha nas redes sociais com o nome
# diga não à execução. Além da divulgação desses fatos eles agem por meio de petição para
exigir o fim dessas mortes, lutando contra a impunidade de policiais que agem com
72

arbitrariedade. Outro caso aconteceu em novembro de 2015 na Zona Norte do Rio de Janeiro
em que policiais atacaram moradores negros da favela. Os policiais fuzilaram um carro
matando 5 jovens que voltavam de um passeio no parque Quinta da Boa Vista. O carro estava
com milhares de balas, falo assim para exagerar, mas a quantidade de tiros foi absurdamente
excessiva. Pelo menos dessa vez os policiais foram presos e o comandante da operação foi
exonerado do cargo. Esses são dois retratos da violência policial que brutalmente mata nossos
garotos negros.
É talvez ainda mais curioso pensar como a mídia veicula esses fatos relacionados à
violência policial, isso quando veicula, os jornalistas tentam dar importância aos incidentes
criminais das vítimas, numa tentativa de inverter o olhar criminalizando os próprios violados.
Esse é um efeito que busca legitimar o comportamento dos policiais. Como se no caso algum
deles fosse ex-presidiário esse tipo de ação pudesse ser permitida. A lei teria medidas
diferentes para tais ou tais pessoas, para o negro da favela existe uma permissividade que não
existiria se estivéssemos falando de outra classe, outra raça, cidadão que mora na região nobre
da cidade. Esse nível de violência não seria uma repercussão da legitimidade que nosso
próprio olhar dá para essas atrocidades?
A Unesco juntamente com outros órgãos de estado fizeram uma pesquisa sobre a
vulnerabilidade dos jovens no Brasil e concluíram em 2014 com um novo Índice de
Vulnerabilidade juvenil à violência e desigualdade racial que indica entre outras coisas que
em todos os estados Brasileiros, menos no Paraná, os negro com idade de 12 e 29 anos correm
mais risco de exposição a violência que os brancos na mesma faixa etária. No que se refere
aos homicídios, 2,5 vezes maior o risco de uma pessoa negra ser assassinada do que uma
pessoa branca.
Em um estado democrático a base se constitui da igualdade de direitos dos
indivíduos perante a lei e na garantia das liberdades individuais e também de uma sociedade
que garanta a todos os indivíduos oportunidades iguais. “Além do mais, faz parte desse ideal
democrático que independente do desempenho individual, todos os indivíduos sejam
portadores de direitos inalienáveis à vida em sociedade, num certo patamar de dignidade”
(GUIMARÃES, 1999, p. 104). No entanto fica explícita a distância entre o ideal democrático
e aquilo que se vive de fato nesse país de desigualdades.
A escravidão foi uma forma de submeter os sujeitos através das armas, da conquista,
da traição, da destruição material e cultural, e por isso sujeitá-los a condições de pobreza. E
mesmo o discurso científico tentou ratificar que existia uma desigualdade biológica entre as
raças procurando cristalizar esse argumento da sua inferioridade, justificando o tratamento
73

desigual, inferiorizando-os materialmente e espiritualmente. A ideologia racista já foi uma


alegação legítima na qual se apoiou a escravidão. Hoje no Brasil, um país democrático, pelo
menos no papel, já não se considera legítima a ideologia racista, mas isso em tese. Segundo
Guimarães “...as relações racistas estão amparadas num sistema mais amplo de hierarquização
social e de desigualdade de tratamento perante a lei que contamina as relações sociais”
(GUIMARÃES, 1999, p.107)
Há outros indicadores como a posição social, a escolaridade que também poderiam
mostrar essa fragilidade em que se encontram a maior parte da população negra. Mesmo
depois da abolição da escravatura o trabalho negro sempre foi precarizado. Os negros durante
muito tempo após a abolição da escravatura foram submetidos em sua maioria às condições
de subemprego, sem segurança ou qualquer proteção trabalhista. Situação que era muitas
vezes permitida pela proteção paternalista dos patrões, que para manter sua boa consciência
complementavam o escasso pagamento oferecido com a doação de roupas velhas e objetos
usados. (MOURA, 1995). Essa é ainda uma solução corrente das duas partes, principalmente
no que concerne ao trabalho doméstico.
Até os dias de hoje o trabalho doméstico é exercido majoritariamente por mulheres
negras que de alguma forma por herança da escravidão tiveram mais dificuldades de ascender
socialmente, pois a mulher branca devido a suas melhores oportunidades educacionais e de
renda passa a conquistar seu lugar nos empregos em espaços públicos e a mulher negra quem
ocupa seu lugar na casa e no cuidado com os filhos. De 100 mulheres que exercem o trabalho
doméstico, 22 são negras contra 13 de mulheres brancas que exercem essa mesma profissão.
Isso indica uma divisão racial do trabalho doméstico. (Pesquisa realizada pela OIT,
Organização Internacional do Trabalho.)
No aspecto religioso os negros também encontram dificuldades para reafirmarem
suas culturas sem sofrerem discriminação. E se ainda hoje a intolerância persiste em persegui-
los, ao percorrer a história fica perceptível as adversidades pelas quais passaram esses
ancestrais para manterem viva essa tradição. Para preservar o culto religioso de origem
africana os negros e negras precisaram resistir bravamente na busca de manterem suas raízes.
Toda agressão sofrida desde que foram raptados da África, sendo violentados, separados de
seus pares, pois para trabalhar para um mesmo senhor não se juntavam homens ou mulheres
de uma mesma tribo o que dificultou muito que mantivessem coesa sua tradição. Portanto
tiveram um duro trabalho para reconstituir a sua religiosidade de raiz. E essa resistência
aponta que eles foram dominados pelos colonizadores, mas não se deixaram domesticar.
Tentando manter a cultura que lhes foi herdada, resistiram à religião dominante dos
74

colonizadores. O culto religioso de origem Africana se distingue muito da religiosidade


católica, as danças de possessão são mantidas mostrando a persistência em preservar suas
tradições. “O colonizado é dominado, mas não domesticado” ( BENUCE, 2013, p.148).
As etnias que foram escravizadas e trazidas para o Brasil eram diversas, tinham os
bantos, nagôs, yorubas e mesmo os negros que já tinham sido colonizados pelos mulçumanos.
Os bantos, por exemplo, se miscigenaram mais facilmente a religião católica, apesar de
também manterem seus cultos como eram realizados na África, eles participavam muitas
vezes das missas realizadas nas igrejas vestidos com roupas brancas e as mulheres com saias
rodadas, mas depois quando retornavam ao terreiro faziam seus cultos segundos os
fundamentos africanos. Da aproximação desses dois mundos diversos o catolicismo e o
candomblé criaram-se inclusive uma nova religião, a umbanda, em que os Orixás, deuses da
mitologia negra são fundidos aos santos católicos. Mas muitas casas religiosas mantinham seu
culto mais tradicional, o candomblé, em que não há a mistura com os santos do catolicismo.
Hoje a mistura da cultura negra com o Catolicismo está muito presente, por exemplo
a festa do Jongo do quilombo São José em Valença, é feita com uma missa na abertura da
festa. O jongo é um ritmo e uma dança de origem africana que é realizada ao som de
tambores. É um ritmo de origem banto e influenciou na formação do samba carioca. A festa
do jongo é celebrada próximo ao dia 13 de maio quando se comemora o dia dos Pretos
Velhos. Anualmente o Quilombo São José realiza essa festa que contempla a tradição e sua
ancestralidade, mas se consideram religiosamente ligados ao catolicismo. O congado é outra
manifestação popular afro-brasileira que é realizada em Minas Gerais em que eles mesclam a
cultura africana ao catolicismo. Ou seja, são manifestações que mantém uma similaridade
muito próxima com a tradição africana, mas quando chegam aqui se misturando com a
religião católica.
Os negros fizeram e ainda fazem um sacrifício imenso para manterem vivas suas
culturas religiosas, isso pode ser entendido como uma resistência a dominação no desejo de
conservar suas tradições. Os negros no translado precário para cá, passaram fome,
apanhavam, muitos morriam, e quando chegaram aqui eram separados das pessoas da mesma
etnia de origem, convivendo muitas vezes com etnias que era originalmente inimigas na
África, essa foi uma estratégia para que os escravos não ganhasse força para se rebelar contra
o sistema escravista. Portanto foi difícil manter uma unidade de pessoas que pudessem
reconstruir culturalmente suas origens, a fragmentação levou a um isolamento dos sujeitos,
dificultando manter a memória dos detalhes dos cultos religiosos. Os pais e mães de santo,
que são os chefes de terreiro, os chefes religiosos, conseguiram juntar alguns fragmentos da
75

memória acrescentando novas ligações e dando novos entendimentos para construir uma
cerimônia. Criando, portanto, uma nova cerimônia, mas buscavam estar bastante conectados à
maneira de fazer dos seus antepassados, na busca de reconstituí-la.
Para os muitos ativistas negros a valorização da religiosidade negra é vista como um
sinal de resistência. Pacheco autora com quem já dialogamos nesse capítulo, afirma em sua
tese Mulher negra: afetividade e solidão que a maioria das mulheres negras ativistas que ela
entrevista em sua pesquisa, manifesta um encontro com a religiosidade negra. Uma das
entrevistadas quando conta sua trajetória no ativismo negro, comenta que primeiro entrou para
o ativismo de esquerda, mobilizando-se pelas desigualdades sociais, com o tempo ela foi
percebendo que a questão do negro não era contemplada nessas pautas e quando finalmente
participou de um encontro do movimento de negros entendeu a especificidade das questões,
percebendo que inclusive seu ateísmo estava ligado as perspectivas do ativismo marxista de
classe. No entanto ela declara que ter encontrado o movimento negro, permitiu também que
ela encontrasse sua religiosidade, uma espiritualidade que a religa com seus antepassados.
Outras entrevistadas que são ativistas também declaram serem religiosamente ligadas ao
candomblé.
Além dessa dificuldade física de se constituir e se reconstruir a religiosidade negra
sempre foi perseguida pelo governo e discriminada ideologicamente pela religião dominante.
Apesar da conquista nos dias de hoje da liberdade religiosa, os filhos de santo, os pais de
santo e suas cerimônias são vista com hostilidade. Associadas muitas vezes a feitiçaria do
mau, à macumba feita para “destruir a vida das pessoas”. Hoje no Brasil a situação de
intolerância religiosa se agrava. O cenário é ainda mais agravante quando no congresso
nacional temos uma bancada evangélica que induz a um achatamento da liberdade das
expressões religiosas. Alguns projetos de leis são lançados e defendidos com base nos
preceitos bíblicos, ferindo o estado Laico. De um lado eles têm trazido um conservadorismo
político-social pautados em uma obsessão dogmática religiosa para discussões políticas e
proposta de projetos de leis. De outro lado a comunidade civil também se manifesta como
efeito dessa situação política. A intolerância religiosa aumenta e em junho de 2015 uma
garota é apedrejada ao sair de um culto de candomblé. Outra situação drástica é o surgimento,
no começo de janeiro de 2015, do que é chamado exército de Deus, em que homens se filiam
a um exército formado dentro da igreja Universal e que batem continência a um líder religioso
na hora do culto. Eles usam vestimentas que fazem alusão ao militarismo e se autonomeiam
gladiadores. Alguns vídeos postados na internet veiculam mensagens religiosas entremeadas
por imagens de guerra e disparos de arma de fogo. O que pretendem esses grupos que
76

combatem em nome de Deus? É uma mostra do crescimento do radicalismo nas igrejas


neopentecostais. O inimigo é claro, ficam vulneráveis as religiões que não são Cristãs e os
grupos homossexuais.
As religiões afro-brasileiras como o candomblé traz traços da cultura africana que
mostram de uma maneira muito singular a africanidade, a meu ver, essa manifestação
religiosa e cultural encena a tradição dos negros descendentes de africanos de forma bela e
abundante. Depois de passar por alguns terreiros de Candomblé, primeiro em Recife onde fiz
uma grande vivência de maracatu, vivendo um mês e meio no bairro do Pina onde está situado
a Nação de maracatu Porto Rico, sendo essa uma Nação bastante ligada ao terreiro de
candomblé chamado Macaia de Oxóssi, em que a mãe Santo Elda Viana desse terreiro é
também a rainha da Nação de Maracatu Porto Rico. Foi nesse terreiro tive o primeiro contato
mais direto com o candomblé. Mais tarde de visita a Cachoeira, cidade recôncavo baiano, tive
a oportunidade de visitar dois outros terreiros que são considerados bastante tradicionais: a
casa de Mãe Cacho chamada Ilê Axé Ibecê Alaketu Ogum Mejejê e outro terreiro chamado
Rumpayame Ayono Runtologu que a Mãe de Santo se chama Luiza Gayacu. Por essas
experiências posso dizer que tenho uma imensa admiração e adoração pela singularidade que
aporta essa manifestação tradicional.

4.2 A Questão racial em Salina

E em Salina a construção de uma África imaginária passa necessariamente por essa


religiosidade de matriz africana, que está diretamente ligada a mitologia negra. Creio que
porque aí se encontra uma genuinidade das tradições negras, o grupo escolheu esse percurso
para construir essa África Brasileira. Na peça há uma alusão dos personagens aos Orixás.
Muitos dos espectadores quando fazem seus relatos trazem essa percepção. A atriz Tatiana
que também é coreografa da peça, pensa a coreografia dos personagens relacionados aos
Orixás, ela também reconhece que os comportamentos dos personagens estão ligados aos
estereótipos dos deuses e deusas negros.
Mesmo que esse capítulo tenha um teor de denúncias sobre a questão racial no
Brasil, nosso objetivo não é nos fecharmos nessas denúncias como se fossem a única história
para contar sobre a cultura dos negros, como se só existisse a escravidão, a dominação. Não
gostaria de deixar de lado tudo de potente e encantador que é possível encontrar ao contar
77

essa história. Por isso eu quis mostrar o que representa a religiosidade negra para mim e dizer
que essas vivências nos candomblés não produziram se não encontros alegres.
A atriz Luciana Lopes que interpreta Mama Lita na peça se diz exatamente cansada
de bater nessa mesma tecla da discriminação, essa é uma situação complexa da qual ela
mesmo vive, da dificuldade de pessoas negras encontrarem papéis e oportunidades de trabalho
no teatro, mas tem uma coisa que ela prefere frisar é a chance que está tendo com esse
trabalho com a peça Salina, como se pudéssemos confiar que há soluções possíveis. Que
mesmo que existam muitos privilégios, existem também outros caminhos que fogem dessa
norma e que, portanto, devemos valorizá-los ao invés de ficarmos batendo na tecla do que não
dá certo.
“É porque fica parecendo que o artista negro ele tem que ter sempre esse discurso de
pobrezinho, de coitadinho, não estou no mercado de trabalho porque eu sou negro, é nesse
ponto que eu não quero mais repetir porque eu acho que tem que ser falado muito sim nesse
agravante, nesse problema que é um problema mesmo, que existe racismo é nítido isso,
chegar com 2 diretores brancos que dão essa oportunidade, eu falo que não quero mais
massificar isso porque eu estou vendo que as coisas estão mudando, entendeu. Aos trancos e
barrancos mais estão mudando, já fui massacrada já, qual artista negro no Brasil já não passou
dificuldade por causa da sua cor, do seu cabelo, sua etnia? Infelizmente é assim. Mas eu vejo
melhor quando eu vejo 2 diretores brancos realizando esse trabalho, já com a intenção de
trabalhar com a gente independente da nossa cor para outros projetos. Salina está nascendo
agora, a gente tem muita coisa em vista. Inclusive tem apresentação agora, mês que vem a
gente vai pra Brasília”.
Portanto se frisei um pouco as denúncias é porque entendemos como Bell Hooks
quando ela convida a olhar para essas feridas dos Afro-americanos, mas enxergar
principalmente o que há de potente em transformação dessa realidade. Ela entende esse olhar
para a dor como uma forma de cuidado e para depois poder pensar em curar essa ferida. Não
podemos nos curar de um mal, se fingimos que esse mau não existe. Portanto escolhi salientar
também o que há para ser denunciado, mas com um desafio de ver isso como um processo
que pode ser transformado.
E a peça Salina faz essa aposta. E por isso encontramos na arte a potencialidade que
buscávamos desde o inicio. Uma potencialidade de transformação social, uma potencialidade
de transformação do olhar, de transformação subjetiva.
E junto com Chimamanda Adichie, Nigeriana, escritora e também ativista das causas
negras, no seu vídeo bastante difundido que se chama O perigo de uma história única,
78

(https://www.youtube.com/watch?v=EC-bh1YARsc) acreditamos que devemos fugir dos


estereótipos de pobreza que foi criado para os negros, não porque eles não sejam verdadeiros,
mesmo porque foi apontado diversas vezes aqui as problemáticas da questão racial, mas
também entendemos que o racismo não é a única história possível e pretendemos com esse
texto assim como vimos acontecer em Salina apostar na força e na riqueza dos nossos
camaradas negros.
Adichie em seu depoimento conta que veio de uma família de classe média da
Nigéria e que é habitual que nessas famílias tenham empregados/as domésticos. E quando ela
tinha 8 anos um garoto veio trabalhar para sua família e a única coisa que sua mãe disse sobre
Fide foi que ele era de uma família muito pobre. Sua mãe dizia sempre a ela, termine toda
essa comida, você não sabe que pessoas como a família de Fide não tem nada. Ela sentia
muita pena deles. Mas um dia quando foram visitar a família de Fide ele mostrou um lindo
cesto artesanal que seu irmão tinha feito para ela. Ela ficou muito surpresa porque imaginou
que a família de Fide nunca poderia fazer nada. Para ela aquilo foi uma abertura de
consciência, pois ela pôde entender que essas pessoas não eram simplesmente os miseráveis,
elas também tinham uma enorme força, antes ela não poderia vê-los se não como pobres. “ A
pobreza era a minha história única sobre eles”. Ela relata que ela mesma viveu muitas
situações complicadas na vida por questões políticas e econômicas que aconteceram na
Nigéria, como os altos preços do pão ou racionamento do leite, mas ela acredita que insistir
nesses pontos negativos esconderia o que ela viveu de positivo que são coisas que também
fazem parte da sua formação. “As histórias únicas criam estereótipos, e o problema com
estereótipos não é que eles sejam mentirosos, mas que eles são incompletos, eles fazem uma
história tornar-se a única história”. Em seguida ela lembra muitas histórias bonitas na Nigéria,
de gente que persiste e alcança seus objetivos para o bem comum, e ela finaliza seu discurso
dizendo que é importante que não tenhamos somente o lado ruim de história porque tiramos
todo o empoderamento e capacidade de beleza que aquela história tem.
E assim gostaria de encerrar o texto fazendo essa analogia com perigo da história
única e a minha aspiração de não cometer esse erro, pois com essa amplitude que o universo
de Salina me trouxe não seria possível fazer da questão racial uma história única, só com o
peso e as proporções negativas que a discriminação traz para os descendentes de africanos no
Brasil. Pensando juntos com os atores dessa pesquisa, os espectadores, as atrizes, a diretora
dessa peça senti e quis compartilhar a potência que existe nessa gente, infinitamente forte,
bela e grandiosa.
79

Tatiana Tiburço expressou uma fala durante a entrevista que realizei com ela que eu
apreciei muito e que enuncia exatamente esse sentimento de empoderamento causado pela sua
personagem, pela dedicação em fazer uma personagem crescer, ser grande como uma rainha.
“Então em nenhum momento no espetáculo você tem aquilo, representado um
estereotipo desses construídos pra nós o tempo todo, muito pelo contrário todos nós somos
reis e rainhas ali, a gente está falando de um realeza, e uma realeza de fato, o Renato pensou
nisso quando foi fazer a cena, quando a Kaya fala pra Salina você acha mesmo que tem o
poder, diante de mim. Ele faz uma luz que está diante de mim e que bate e refleti luz para
tudo quanto é lado, não sei se você percebeu isso? Mas havia um reflexo da luz que batia na
minha pulseira e refletia no público, eu percebia durante a cena que algumas pessoas se
incomodavam com a luz, outras pessoas vieram comentar isso comigo que nesse momento,
que você fala isso reflete luz para todo lado. É uma realeza em todos os sentidos, nessa
altivez, nesse figurino, na potência do que a gente está fazendo. Decrépito como a Kaya é no
segundo ato, como a Mamalita que vira rio, é tudo muito altivo.”
A fala da Tatiana me contempla, me lembro quando ela disse essa frase foi como se
eu estivesse me conectando a ela pelo fio do êxtase de ter partilhado com ela a potência desses
atores representando personagens tão fortes
80

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O encontro com a peça Salina nos possibilitou a visualização do que vinha sendo
refletido sobre a potencialidade de transformação social que a arte pode provocar nas relações
sociais e humanas. Nesse encontro afetuoso com a peça fui permeada pelas evidências
múltiplas que demonstrasse a potencialidade criativa e a possibilidade de resistência aos
sistemas hegemônicos. Isso nos permitiu convocar o viés político do teatro. E nesse sentido
podemos entender essa peça como uma máquina de guerra, como pensa Deleuze, que carrega
em si a disposição de criar novos espaços-tempos para resistir à dominação, como um
movimento revolucionário, uma aposta na minoridade étnica para potencializar a resistência à
dominação.
A minoridade do negro presente em Salina é altamente imbuída de força na escolha
de um texto com personagens tão vigorosos. Apesar da trama da peça não conter em si a
questão racial, o fato de o grupo ter constituído uma África imaginária, uma África brasileira,
para o cenário desse enredo somado ao acontecimento de 10 negros estarem no palco fica
evidente a presença étnica do negro. E justamente o fato do grupo não representar o conflito
racial em cena, deixando de lado o teatro representacional problematizado por Deleuze, é que
podemos perceber o devir negro que essa produção artística vem trazer.
A interpretação vem da luz pura. Um teatro revolucionário está “em uma simples
potencialidade amorosa, um elemento para um novo devir da consciência” (DELEUZE, 2010,
p.64). Resgatar a consciência da minoria seria dar voz a essa luz crua, a potência amorosa,
que não encontra obscuridade em seu devir. E o grupo Amok faz essa aposta amorosa com os
atores e espectadores dessa peça, é isso que faz com que transbordemos em afetos com a peça.
A peça Salina convoca o viés político do teatro por incitar esse devir que foi citado,
mas também convoca outro viés político relacionado ao conceito de emancipação de
Rancière. Pelos relatos e entrevistas que realizamos podemos perceber que há uma
transformação subjetiva dos espectadores, dos atores e da diretora da peça. Essa possibilidade
de emancipação pela arte, uma emancipação como uma emancipação intelectual, em que os
sujeitos são capazes de fazer uma interpretação livre da peça e a partir disso construir seu
próprio poema. A interpretação é autônoma e não precisa estar vinculada a mensagem que
deseja transmitir o grupo de teatro, portanto a aposta de Rancière na emancipação do
espectador é reafirmada com os relatos feitos pelos espectadores de Salina.
81

Com isso creio que podemos responder as perguntas feitas anteriormente: Que efeito a
arte tem para a vida do ator e para aqueles que vivem dela? Existe alguma possibilidade do
encontro com a arte provocar o efeito de transformação de si e do mundo? A arte
possibilitaria resistência a processos hegemônicos?
Sobre os efeitos que a arte tem na vida do ator e para aqueles que vivem dela, as três
atrizes que entrevistamos trazem a questão da falta de papeis que é destinado as pessoas
negras no mercado do teatro. Portanto o encontro com essa arte produziu nelas um efeito de
sentirem reconhecidas por terem a possibilidade de representar o papel de personagens
vigorosos. O espetáculo teve uma ótima repercussão e foi indicado a vários prêmios. O
espetáculo, direção e figurino foram indicados ao prêmio Cesgranrio de Teatro, mas não
ganharam. Tatiana Tiburço que representa a rainha Khaya, foi indicada como melhor atriz
para o prêmio Shell, o resultado sai em março. Ela também foi indicada a melhor coreografia
no Prêmio Questão Crítica e o resultado sai em abril. Portanto a realização de uma peça
grandiosa como essa possibilita a elas uma sensação de empoderamento por estarem fazendo
um trabalho majestoso. E isso aparece na fala de Tatiana quando ela mostra a satisfação ao
descrever a sensação de estar representando uma Rainha enquanto seus companheiros que
também representam papéis majestosos, bem distantes daqueles estereotipados guardados
para eles.
Sobre a possibilidade de transformação de si e do mundo. A possibilidade de
transformação do mundo está diretamente conectada a transformação de si. Já não se pensa
mais a partir de uma revolução que aconteça no panorama macro, ou para usar uma expressão
mais Deleuziana, não se tem a esperança de uma revolução no nível molar. É exatamente na
criação de um espaço tempo que a resistência vem a existir, e essa criação é particular,
molecular, micro. Portanto abandonamos a ideia de revolução ligada à macroestrutura. Como
aquela que pretende Brecht com a conscientização do proletário da sua condição de oprimido.
Segundo Deleuze criar esses espaços-tempos de resistência nos permite acreditar novamente
no mundo, do qual estamos cada vez mais desacreditados.

Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo que


pequenos, que escapem do controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de
superfície ou volume reduzidos... É ao nível de cada tentativa que se avaliam a
capacidade de resistência, ou ao contrário, a submissão a um controle. (DELEUZE,
1992, p.218)

E nós avaliamos esse acontecimento da peça Salina com uma grande capacidade de
resistência.
82

E fui de encontro a alguns autores que estudam a questão racial tanto de um viés
antropológico, sociológico, como de um viés psicológico para nos ajudarem a pensar sobre a
realidade da discriminação racial na qual vivemos.
Para Fanon essa recusa em se pensar ou reconhecer o racismo que existe é na verdade
uma forma de reforçar a discriminação racial. O fato dos negros usarem máscaras
brancas porque preferem a ilusão narcísica do reflexo branco no espelho provoca uma
negação das suas origens e também da realidade. Os brancos também preferem usar do
mesmo preceito das máscaras brancas nas peles negras, pois assim conseguem negar a
diferença entre brancos e negros, não deixando margem para refletirem sobre o racismo que
praticam. Isso sustentaria um racismo do negro contra ele mesmo.
E a aproximação com Bell Hooks trouxe muitos complementos sobre as
problemáticas da questão racial, ela pensa a masculinidade dos homens negros na nossa
sociedade capitalista patriarcal. Trazendo elementos que nos leva a pensar sobre as raízes de
um conjunto de questões do racismo, ela nos leva a ver que questões problemáticas na
infância que são aparentemente inofensivas tem uma repercussão inacreditável para a
autoestima dos adultos. E quando ela analisa a repercussão, o prejuízo que os dois sistemas: o
patriarcalismo e o capitalismo trazem para a subjetividade dos homens negros, fica claro que
muitas questões que são vistas como prova de força, escondem na verdade uma defesa
psicológica.
O importante é tentar partir da produção da diferença quando se pensa a produção do
conhecimento. E justamente quero conseguir produzir a diferença com essa pesquisa, produzir
diferença em nossas vidas, na vida dos atores e na maneira de produzir conhecimento. Que
poderia ser traduzido pelo amor ao teatro e o prazer de estar próxima a arte. Pensando a
possibilidade de conseguir aliar a metodologia ao tema central da nossa dissertação, a
subversão, percebi que para seguir uma metodologia que se aproxima dos conceitos de Latour
e Haraway será necessário subverter, ou em um termo mais comumente usado, desconstruir a
maneira tradicional de pesquisar e ao engajar-se em produzir a diferença, implicaria em
subverter em certa medida a ordem vigente. E nesse momento faço uma aliança entre o tema
da pesquisa: possibilidade de subversão através da arte, e a nossa proposta metodológica.
Entendendo esse como um dos objetivos secundários dessa dissertação, mas não menos
importante: subverter a ordem vigente na maneira de pesquisar da ciência tradicional ou
moderna. A paixão, a afetação, o encontro, o sensível são maneiras de engajamento possível
para se subverter o excesso de racionalização da ciência tradicional.
83

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87

ANEXO A - Relatos completos dos espectadores da peça Salina: a última vértebra

Alexandre Ferreira
Estou buscando até agora em mim, palavras, palavras que possam definir o que meus
olhos, ouvidos e sentidos mergulharam ontem em "Salina, a última vértebra". Sinto neste
momento que me faltam recursos na minha expressão humana que possam contar com todos
os sons e cores essa viagem ancestralizada do ódio ao perdão. Quando por mais ou menos três
horas eu pude tocar em sentimentos, que antes para mim eram abstrações e que naqueles
instantes se tornaram tangíveis a minha alma. Eu toquei no ódio de odiar em Salina, sorvi seu
sofrimento mais profundo, sendo homem me tornei mulher, fruto de uma violência tomada,
estrupada nas suas estranhas, exposta a macheza que até hoje se faz presente, muitas vezes
disfarçada no sinismo daquele que só quer tirar o mais precioso de sua presa. Eu toquei na
SEDE de AMAR o ser amado, altamente ultrajado pela lei do Clã, e vi nitidamente, o orgulho
pintado com todas as cores. Eu temi a chegada dos Guerreiros Bárbaros ao se aproximarem do
território dos Djimbas, vi-los montados em seus cavalos, suas espadas, seus traços fortes de
quem ia matar, se apropriar, saquear. E quando ressoaram os primeiros acordes ritualizados,
nas vibrações mais viris da Mãe África e o canto cantou o ritual dos nossos arquétipos
ancentrais, eu estava lá dançando é como estou até agora. Eu olhei a malícia do tempo, este
senhor sábio, implacável, que registrava tudo em sua memoria para depois cobrar, fazer
esquecer, reviver, deixar crescer, renascer, envelhecer. Assisti as dores doidas do nascimento
do ódio de Salina, vi-o lutar pela desonra de sua mãe até a exaustão de suas forças e me
penalizei por ele não saber morrer. Penetrei na solidão do deserto, quis sorver até a última
gota de água mas a água por lá era escassa e em seu lugar se bebia a dor, a morte e a penúria
dos que foram escorraçados. Por fim, eu assistir a vitória do perdão, do ódio que se
transformou em amor. Eu vi Salina: a Última Vértebra e estou feliz, muito feliz!

Felipe Pedrini
BEBA POR MIM, POIS A MINHA SEDE É IMENSA". MUITO OBRIGADO.
O grupo Amok Teatro nos apresenta a peça “Salina (A última vértebra)”, uma epopeia
mitológico-trágica, que bebe em fontes diversas, tais como a tragédia ateniense, o drama, a
tradição oral dos griôs e mitologias de uma África imaginária. Compõe-se um teatro
ritualístico e cerimonioso, no qual cada detalhe é extremamente bem cuidado e articulado com
o todo, incluindo-se desde o recebimento caloroso do público que comparece a este ritual, até
88

a representação teatral propriamente dita, que consiste em uma peça de qualidade ímpar no
meio artístico carioca.
Balzac escreveu em sua novela “A Obra-Prima Desconhecida”, que “Àquele que (...)
não experimentou vivas palpitações ao se apresentar diante de um mestre, sempre faltará uma
corda ao coração, não sei que pincelada, um sentimento na obra, certa expressão de poesia”. O
aprendiz apaixonado deve aproximar-se prudentemente do mestre, com olhos de admiração,
pudor e encantamento. Embora não tenhamos informações sobre o processo que envolveu o
projeto “Salina”, podemos concluir – devido à energia evidente no elenco em cena – que os
artistas convocados por meio de oficinas assim se aproximaram dos mestres da companhia
Amok Teatro, Ana Teixeira e Stéphane Brodt, diretores deste espetáculo. Assim também nós,
público, nos aproximamos do círculo ritualístico convocado por esta peça, como membros de
uma tribo que se reúnem para ouvir histórias contadas por velho griô. E vemos e ouvimos
narrativas que nos são contadas em 3 horas de uma peça emocionante e bela.
Não só a figura do músico no palco, que em si convoca a presença de um griô, mas cada
elemento cênico presente em “Salina”, cada instrumento musical, cada cor, cada objeto, cada
personagem é um griô, que vem nos contar uma história, cantar uma música, narrar uma
lenda. Aliás, não é possível tecer uma separação cartesiana sobre os elementos desta peça. O
figurino é também música, que é dança, que é luz, que é cenário, que é espaço, que é voz, que
é corpo, que é movimento, gesto, suor, sangue.
A cena é construída em formato de arena total. Esta circularidade invoca o ritual
religioso ancestral, a ágora ateniense, a roda de contação de histórias. É também o formato
das assembleias democráticas, pois, nelas, a comunidade reunida consegue se enxergar e se
reconhecer como parte daquele acontecimento, que é uma convocação política. No círculo do
teatro ritual, a assembleia de espectadores não apenas se enxerga e se reconhece, como
também se integra ao acontecimento teatral que tem lugar no centro da roda. A forma circular
é um movimento político em si.
Em “Salina”, o círculo possui diversas porosidades e camadas, divididas em regiões de
cenas e de “entre cenas” ou “ante-cenas”. Em uma determinada passagem, por exemplo, com
o palco mais esvaziado, a sutil ação de quatro personagens – Mama Lita, Sissoko, Mumuyé e
Khaya – se sentarem nas extremidades do círculo já nos informa que é um reencontro no
mundo dos mortos. Aliás, só então descobrimos o fim da personagem de Khaya, única morte
não anunciada expressamente na peça.
Os mortos, inclusive, tem função importantíssima nas narrações. Mesmo depois de
mortos, sua alma e sua energia subsistem e não deixam de operar, seja em outros reinos
89

imateriais, seja no mundo dos vivos. A passagem pela vida, a busca por força e sabedoria, o
perdão e o aprendizado são alguns dos elementos centrais desta história.
Para nos contar essa fábula africana, o elenco é formado exclusivamente por artistas
negros, sendo dez atores e um músico. Aqui, o negro é senhor de si, de seus territórios, de
suas narrativas épicas, lendas e culturas. Aqui, o negro não é definido pela negação em
relação ao outro, ou seja, o negro não é “o não branco”. O negro é ele mesmo. O negro é.
Simplesmente.
O panteão dos orixás está presente em fortes referências no espetáculo, como alimento
de identidade, cultura e arte, embora não seja enunciado diretamente. Como já dito, estamos
em uma África imaginária. Além disso, a questão religiosa não faz parte da trama central da
fábula narrada. Não há o clichê folclórico, ao qual usualmente estamos acostumados. O que
há é o refinamento. Para muito além de reduções sobre os arquétipos, vemos desfilar, muitas
vezes em um mesmo personagem, atitudes e paixões complexas, e também cores, objetos e
sons, que invocam Iemanjás maternais e zelosas, Iansãs obstinadas e vingativas, Oxuns
vaidosas e apaixonadas, Xangôs justiceiros, Oguns aguerridos e belicosos, Nanãs e Oxalás
sábios e pacificadores.
Nesta peça do grupo Amok Teatro, os dois atos que constituem a história terminam de
forma semelhante: a personagem Salina, rodeada por um imenso deserto de areia, tem em
seus braços um bebê. E mais ninguém com quem contar. Ela precisa recomeçar sua vida. No
entanto, há uma grande diferença nestes dois momentos.
No final do primeiro ato – talvez a passagem mais mitológica da peça –, Salina gera
um filho sozinha, sem a participação de um homem. Este filho nasce unicamente de seu ódio.
Como Medeia que mata seus filhos para atingir Jasão, Salina age inversamente: concebe um
filho para aplacar seu clamor por justiça e vingança. Por isso mesmo, só ela é capaz de lhe
retirar a vida. Mais tarde, ao matar seu filho, atendendo a um pedido deste, ela o faz a
contragosto. É aqui, de certa forma, uma Madama Butterfly inversa: ao invés de se matar para
salvar seu filho, ela o sacrifica, para “o bem dele”.
No final do segundo ato, Salina carrega nos braços o filho de Alika, cedido por esta
para tentar selar a paz. Um presente para Salina, que “a obriga a viver”. Os esforços de Kano
para que se enterrem os acontecimentos do passado não bastaram, não lograram apaziguar o
ódio de Salina, humilhada, violentada e exilada. O clã Djimba e Salina não foram capazes de
construir o perdão. Não há perdão para “o incêndio que consome a vida de Salina”. Alika
aparece, então, como um terceiro elemento nesta polarização, estranho à antiga disputa, e que
opera a dissolução do ódio e da vingança até então vigentes. Às vezes, é preciso que um
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agente externo traga a conciliação, a possibilidade de perdão e paz. A possibilidade de se


esquecer.
A história desta fábula é fascinante e visceral. O texto, muito rebuscado. Seu autor, o
francês Laurent Gaudé, chegou a nomeá-la como uma “peça impossível”, por diferentes
razões. No entanto, o excelente trabalho de toda a equipe de artistas envolvidos nesta
montagem, não apenas a tornou “possível”, como o fez na forma de um espetáculo belo
plasticamente, rico em detalhes, comovente, primoroso. As cenas são impactantes. A pulsão
de uma fera enjaulada e a delicadeza de um bebê recém-nascido.
O teatro está “em crise” há séculos. Desde que nasceu. Não obstante a voga de
“desconstruções”, “experimentações”, “pós-dramas” – que são, sim, processos válidos de
trabalho artístico, mas que muitas vezes são explorados de maneira equivocada e rasa – o
teatro continua nos encantando com sua “construção dramática”. Na peça “Salina”,
personagens, fábulas, catarses, ações dramáticas etc. são habilmente arquitetadas no excelente
texto, e exploradas poeticamente pela escritura cênica desta montagem da Amok. A cena da
descoberta pela personagem Salina das vértebras guardadas na bolsa de sua inimiga é uma
aula sobre ironia dramática, que nos prova que o teatro pode estar em crise há séculos, mas
permanece bem vivo.
Na cena em que sacrifica seu filho Kwane M Krumba, nascido do ódio, a personagem
Salina imagina que ele já deve ter transposto a fronteira entre os vivos e os mortos, e chegado
ao País das Cascatas, onde a sede provocada pelo deserto pode ser aplacada. Ela se despede
de seu filho com um lamento: “Beba por mim, Kwane M Krumba. Beba por mim, pois a
minha sede é imensa”. Salina tem sede por toda uma vida que lhe foi arrancada e incendiada
pelo clã Djimba, pela sua beleza que lhe fugiu, pelas tantas lágrimas que chorou e que lhe
secaram a juventude, pelo tempo que passou, pelas suas mãos vazias.
Nós, público, temos tanta sede nos dias atuais. Sede na vida e na arte. E nós nos
aproximamos deste círculo ritualístico construído pelo Amok Teatro com tanta sede... Muito
obrigado ao grupo por criar, no seu emocionante “Salina (A última vértebra)”, este teatro
ritual mágico, que serve para nós espectadores como uma espécie de “País das Cascatas”, no
qual podemos matar um pouco de nossa sede imensa, durante as 3 horas de espetáculo e
muitos dias de reverberação em nossas mentes e corações. “Beba por mim, pois a minha sede
é imensa”. Muito obrigado.
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Michele Jorge dos Santos de Souza


Como foi lindo te ver! (Graciana Valladares) Quanto talento em Salina! Foi tanta
emoção correndo o corpo e a mente, que me davam arrepios, um sucedido por outro. No final,
só as lágrimas corriam meu rosto. Tentei, mas não consegui encontrar palavras que definam
com precisão tudo que senti e quão maravilhoso foi vê-los. Simplesmente ESPLÊNDIDO!

Lenita Arêas
Até agora estou buscando a minha última vértebra perdida após assistir o espetáculo
Salinas. Sem essa vértebra, a do pescoço, não consigo falar o que já conseguiram nomear com
tanto virtuosismo. Então só me resta pensar no que ainda não foi dito ou no que só eu poderia
dizer. E minha cabeça solta como a de Sissoko Djimba só consegue ficar em duas posições:
Olhando para baixo, onde fixo os olhos em meu peito e sinto meu coração acelerado,
preenchido das dores e do amor do mundo, observo ainda minha respiração ofegante em se
inspirarrrr. Vejo também os meus pés, e lembro-me das minhas raízes, tão bem representadas
por esse grupo que me fez reviver a África do meu imaginário e a ligação que tenho com essa
rica matriz que compõem o povo brasileiro. Sempre me senti muito ligada à cultura africana e
fiz questão de conhecer na infância minha árvore genealógica. Comovi-me bastante em saber
que minha tataravó era de Angola, se chamava Bibiana e veio para o Brasil como escrava.
Minha família até pouco tempo ainda era explorada por subempregos, minha mãe já foi por
anos empregada doméstica e o meu pai chegou a ser boia fria quando criança num canavial,
em Campos dos Goytacazes, de onde tenho como descendência, os também dizimados, índios
Goytacazes. Por esse histórico ou não, eu me considero um ser humano em busca de
libertação, através do conhecimento, do estudo em historia, arte, filosofia, educação,política
etc, e por estar sempre procurando desatar esses fios invisíveis de aprisionamentos
ideológicos, globalizados que continuam nos enredando. Tanto minha parte negra como a
indígena (faço questão nesse momento desse destaque) anseiam pela ritualização do
cotidiano, pela liberdade de expressão e pelo respeito e resgate cultural dos povos
historicamente explorados. Por isso e por outras tantas coisas, sou apaixonada por teatro, por
esse espaço de ressignificação de tudo. Onde podemos ser e entender tantas outras extensões
de nós mesmos, da humanidade, das culturas.
E mesmo que lutemos por um mundo sem discriminação de cor ou raça, e mesmo que
não precisemos entrar nessas questões em Salinas, sei na pele, mesmo a minha sendo
aparentemente de cor clara, que essa diferença socioeconômica ainda pesa em nossas vidas, e
dói na alma. Bastava olhar em volta e ver a predominância de cor da plateia. No entanto, esse
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espetáculo é um marco histórico positivo e necessário que ajuda a transformar os olhos do


mundo, ainda vistos pelo ângulo europeu. Identifico em minhas escolhas o desejo por um
mundo verdadeiramente justo. Entendi no meu espírito de onde saía àquela força inigualável
de vivenciar o texto das entranhas. Um grupo de pessoas bem cuidadas, vindas do conforto
dos abastados, não teria estofo. No palco eu vi atores potentes como titãs, um panteão de
forças da natureza, narrando uma epopeia africana, com traços de tragédia grega, num texto
dificílimo, traduzido do francês. E quando me canso de olhar para o chão e para mim, olho
para o céu, outra posição possível para o meu pescoço invertebrado. E olhando para o alto a
gente só tem a agradecer ao que ainda é divino, como a música criada nesse espetáculo. Cabe
destacar que a execução que Fábio Simões Soares faz dos instrumentos de origem africana,
construídos por ele, traz literalmente o tom do espetáculo, tom aqui como verdade . Assistir
uma peça como Salinas é saborear da vida o que ela tem de mais precioso e libertador, que é
nossa capacidade de auto expressão. E o grupo AMOK em sua intensidade nos deu uma obra
prima nascida desse encontro tão fabuloso, entre esses excelentíssimos diretores, Ana Teixeira
e Stephane Brodt, e esse grupo de atores tão especiais que trabalharam duro durante um ano,
entre pesquisa, processo de criação e montagem. Estamos diante de um trabalho tecnicamente
perfeito, desde a movimentação corporal dos atores, a criação e desenvolvimentos dos
personagens, a escolha da direção pelo formato arena, antológico do teatro grego, a entonação
do texto, as respirações, o canto, tudo isso com muita energia, visceralidade, potência,
preparação física e vocal de qualidade, tudo com muita emoção. As cores e o preciosismo do
figurino, a energia e técnica das danças e canto, a iluminação, ou seja, toda a composição
estética de montagem e o longo tempo do espetáculo nos transportam para um lugar inabitado,
desértico em nós mesmos, e nesse reencontro conosco, brotam as águas e nos comovemos.
Para mim, foi além do texto escrito por Laurent Gaudé. Eu estava ali comovida pela história
de vida e pelo brilhante desempenho da vontade de Ariane Hime, Graciana Valladares,
Luciana Lopes, Reinaldo Junior, Robson Freire, Sergio Ricardo Loureiro, Sol Miranda,
Tatiane Tibúrcio e Thiago Catarino. Obrigada, amigos, eu tenho certeza o quanto batalharam
para nos dar esse presente. E o quanto lutam no dia a dia para oferecerem um mundo melhor
para os seus filhos.
E simplesmente assim reencontrei a vértebra perdida, escondida no fundo da história
que ninguém viu. De cabeça erguida me orgulho desses bravos guerreiros no centro da arena
ovacionados por uma plateia de olhos marejados. Quanta ressaca em meu peito curada. Agora
posso seguir olhando para frente.
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Laurant Gaudé
Salina é uma peça impossível. Não foi razoável escrevê-la. Hoje assim como na época,
para um jovem escritor que quer ver suas peça montadas é melhor optar por uma peça em um
formato mais comportado: uma duração que não exceda uma hora e com, no máximo, dois ou
três personagens. (Salina) é desmedida. Basta pensar: um tríptico com dezenas de
personagens. Qualquer um diria (muitas pessoas, muito longa, muito cara...)
Mas será que devemos parar de escrever peças como esta? Eu sempre achei que não.
Que o teatro morreria se não tivesse textos impossíveis para montar. Porque eu sempre amei a
frase de Antoine Vitez que, falando sobre o autor diz: sua solidão, sua inexperiência e mesmo
sua irresponsabilidade, são preciosas para nós. Eu acredito nisso que o papel do autor não é de
prever, em sua escrita, a viabilidade ou não da cena. Senão não haveria um Claudel ou
Shakespeare. Cabe as pessoas de teatro diretores e atores realizarem esse impossível no palco.
Eu escrevi Salina para esse teatro utópico que amo, porque ele é capaz de conter o mundo
inteiro no palco.
O que é maravilhoso no teatro é que ele é a arte da surpresa, logo do espanto. Eu
ficaria incrédulo se me dissessem que salina seria montada no Brasil. Este é um tema de
profundo espanto pra mim, ver como os textos tem vida própria, como fazem seus próprios
encontros. Salina encontrou Amok Teatro. Que alegria para o autor que sou... Imaginar que
meus personagens serão encarnados aqui, na terra de vocês.
Ver se desenvolver uma aventura teatral rara, profunda, que mistura criação artística,
cuidado com transmissão e engajamento. Este é o teatro que eu amo. Eu fiquei imediatamente
sensível ao projeto de Stéphane Brodt e Ana Teixeira, porque na primeira vez que nos vimos
eles me falaram de Salina, não como um simples projeto de encenação, mas como uma
aventura teatral global. Um ano de ensaios. Um trabalho com um amplo grupo de atores e
atrizes. Uma reflexão sobre as raízes africanas do Brasil. Tudo isso me toca, me interessa.
Tudo isso me faz acreditar na força profunda do teatro.
Salina está aqui, hoje diante de vocês com seu rosto brasileiro. Eu sou incapaz de dizer
como isso é possível. Mas eu sei que isso prova que o teatro e a arte do encontro. Um lugar
para compartilhar nossas questões e emoções. E quando a peça começar, antes que Salina
chame Mama Lita, prestem atenção, escutem bem, na sala vocês escutarão talvez um sussurro,
que será o meu, e ele deslizará suavemente esta palavra no escuro: Obrigado...

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