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Eduardo Gramani Hipolide

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Eduardo Gramani Hipólide

O teatro anarquista como prática social do movimento


libertário (São Paulo e Rio de Janeiro – de 1901 a 1922)

MESTRADO EM HISTÓRIA

SÃO PAULO
2012
EDUARDO GRAMANI HIPÓLIDE

O TEATRO ANARQUISTA COMO PRÁTICA SOCIAL DO


MOVIMENTO LIBERTÁRIO (SÃO PAULO E RIO DE JANEIRO – DE
1901 A 1922)

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
MESTRE em História no Programa de Estudos
Pós-Graduados em História, sob a orientação da
Profa. Dra. Maria do Rosário da Cunha Peixoto.

SÃO PAULO
2012
Banca Examinadora

_________________________________

_________________________________

_________________________________
À Leisa Alves Ribeiro, pessoa especial que
compartilhou quase todos os momentos desta
pesquisa. A você dedico este trabalho.
AGRADECIMENTOS

Desde já, ficam aqui os meus mais sinceros agradecimentos aos professores do
Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
sobretudo à minha orientadora, Maria do Rosário da Cunha Peixoto, a quem devo tudo o que
possa haver de mais interessante nesta pesquisa. Se não fosse ela, as discussões mais instigantes
deste trabalho talvez não fossem levantadas. Também não posso deixar de agradecer, de forma
especial, às professoras Heloísa de Faria Cruz e Estefânia Knotz Canguçu Fraga. Ambas, em
meio às aulas, apontaram inúmeros caminhos e perspectivas de análise. Às três professoras
expressamente citadas, dedico um profundo respeito e uma admiração inigualável.
Agradeço também às instituições de fomento à pesquisa que me ofereceram as bolsas de
estudo sem as quais não teria condições de levar adiante minha pesquisa. Manifesto aqui minha
gratidão ao Centro Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), cuja bolsa
oferecida no ano de 2011 permitiu que eu me dedicasse integramente aos estudos. Agradeço
também à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pela bolsa
oferecida em 2010. Com ela pude iniciar minha pesquisa sem arcar com as despesas de
mensalidade. Às duas instituições, dedico minha mais sincera gratidão.
Agradeço também à Leisa Alves Ribeiro, uma pessoa especial que incentivou minha
pesquisa desde o início. Foi graças a ela que tomei coragem para entregar o meu Projeto de
Pesquisa à PUC-SP. Foi ela também quem me ajudou na coleta e na análise da bibliografia e das
fontes que utilizei nesta pesquisa. Lendo meus textos, ela indicou alguns caminhos importantes
que depois foram seguidos em meu trabalho. A essa pessoa maravilhosa, ficam aqui os meus
mais sinceros agradecimentos.
Meus pais (Henrique Hipólide Filho e Maria Eliza Gramani Hipólide) também me
auxiliaram o tempo todo nesses dois anos de pesquisa. Nos momentos de maiores dificuldades,
eles estiveram sempre presentes, prestando todo apoio possível aos meus trabalhos. Aos dois,
ficam aqui meus mais sinceros sentimentos de gratidão.
Agradeço também às dicas e sugestões oferecidas por Rose Silveira, uma “criatura”
com experiência e sensibilidade que me auxiliou nos momentos finais e mais difícieis deste
trabalho. A esta pessoa especial, ofereço minha mais sincera gratidão.
Por fim, devo agradecer também a William Romano Filho, um “comunista” de tipo
diferente que, em meio às conversas de botequim, não raramente dedicou uma atenção especial
aos rumos que minha pesquisa vinha tomando. Foi ele também quem ofereceu o “suporte
técnico” desta pesquisa, auxiliando-me com os complicados recursos tecnológicos com os quais
ainda não aprendi a lidar. A este grande amigo, muito obrigado.
RESUMO

Eduardo Gramani Hipólide

O teatro anarquista como prática social do movimento libertário (São


Paulo e Rio de Janeiro – de 1901 a 1922)

Esta pesquisa tem como principal objetivo analisar o teatro anarquista como prática
social do movimento libertário nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Utilizamos como recorte cronológico os anos entre 1901 e 1922, quando os segmentos
anarquistas e sindicalistas revolucionários da classe trabalhadora influenciaram
diretamente o movimento operário. Além de tentar “reconstituir” as trajetórias dos
diferentes grupos amadores que atuaram nas festas operárias, buscamos conhecer
melhor alguns dos sujeitos sociais envolvidos nas atividades daquela dramaturgia.
Convencidos de que aquele teatro estabelecia inúmeras interlocuções com os segmentos
libertários da classe trabalhadora, pretendemos analisar as atividades dos grupos
amadores em suas relações com outras práticas sociais que também constituíam o
movimento operário de cunho anarquista e/ou sindicalista revolucionário. Portanto, a
abordagem que fizemos das peças encenadas nas festas operárias buscou sempre ir além
de um enfoque meramente estrutural. Nosso objetivo foi encarar o sentido político
daquelas obras e as possíveis ressonâncias de seus conteúdos específicos nas páginas da
imprensa operária. Além dos textos teatrais, tivemos de investigar os indícios
fragmentários que aquela imprensa traz sobre as práticas teatrais e sobre as ideias-
imagens veiculadas pelas obras que compõem o corpus de nossa pesquisa. Buscamos o
tempo todo analisar o teatro anarquista como parte constituinte do complexo
movimento libertário no início do século XX. Nessa perspectiva, as atividades em torno
daquele teatro adquiriram um caráter ativo e dinâmico. Sendo assim, tanto as peças
quanto as encenações foram aqui abordadas como intervenções diretas no seio do
movimento organizado da classe trabalhadora.

Palavras-chave: Teatro Anarquista. Festas Operárias. Movimento Libertário. Práticas


Sociais. Classe Trabalhadora.
ABSTRACT

Eduardo Gramani Hipólide

The Anarchist Theater as Social Practice of the Libertarian Movement


(São Paulo and Rio de Janeiro – from 1901 to 1922)

This master dissertation is about the Anarchist Theater in Rio de Janeiro and São Paulo,
between 1901 and 1922. The main objective to conduct this study is to analyze theater
as a social practice of the libertarian movement occurred in those important Brazilian
cities. The clip shown here chronologically covers the period when libertarian segments
of the working class directly influenced the labor movement. In an attempt “to
reconstruct” the trajectories of different amateur groups who played in worker’s parties,
we seek in this research to find out about some of the subjects involved in those
dramatic activities. Sure that the anarchist theater established dialogues with numerous
libertarian segments in the working class, we analyze the relationships between the
activities of amateur theater groups with other social practices of the anarchist labor
movement trend, or socialist revolutionary, who also constituted the movement in that
period. The focus of the approach to the plays that were staged in the worker’s parties
was not confined to mere structural analysis of that. Our focus was to face the political
meaning of such plays and the possible resonance of the specific content of these texts
on the pages of the Press Working. In addition to the theater texts, we also investigate
the fragmentary evidences of what the Press working brought about the theater practices
and about the ideas-images conveyed by the works that comprise the corpus of this
research. Our continuous effort was not to lose sight of the focus in this research that is
the analysis of Anarchist Theater as constituent part of the complex labor movement in
the early 20th Century. From this perspective, the activities around that theater acquired
a dynamic and active character. Thus, both, scenarios and plays were discussed here as
direct interventions within the organized movement of the working class.

Key-words: Anarchist Theater. Worker’s Parties. Libertarian Movement. Social


Practices. Working Class.
LISTA DE IMAGENS

Imagem 1. Anúncio publicado em A Plebe no dia 15.01.1921. Arquivo Edgard


Leuenroth, UNICAMP-SP. ______________________________________________38

Imagem 2. Trecho de anúncio publicado em A Vanguarda no dia 01.03.1921. Arquivo


Edgard Leuenroth, UNICAMP-SP. ________________________________________39

Imagem 3. As “bases fundamentais” do Grupo Teatro Social. Texto publicado em Novo


Rumo no dia 19 de setembro de 1906. _____________________________________54

Imagem 4. Anúncio publicado em Novo Rumo no dia 20 de julho de 1906. Arquivo


Edgard Leuenroth, UNICAMP-SP. ________________________________________77

Imagem 5. Trecho de anúncio publicado em Novo Rumo no dia 20 de janeiro de 1906.


Arquivo Edgard Leuenroth, UNICAMP-SP. ________________________________143

Imagem 6. Alegoria da Revolução Social publicada em Novo Rumo no dia 11 de


novembro de 1906. Arquivo Edgard Leuenroth, UNICAMP-SP. ________________152

Imagem 7. Gravura publicada em comemoração ao 1º. de Maio. A Voz do Trabalhador,


1º. de maio de 1913. Arquivo Edgard Leuenroth, UNICAMP-SP. _______________153

Imagem 8. Charge “A carestia da vida” publicada em A Lanterna no dia 18 de maio de


1912. Arquivo Edgard Leuenroth, UNICAMP-SP. ___________________________216

Imagem 9. Charge publicada em A Lanterna no dia 17 de agosto de 1912. Arquivo


Edgard Leuenroth, UNICAMP-SP. _______________________________________217

Imagem 10. Charge “A questão do divórcio”. A Lanterna, 5 de outubro de 1912.


Arquivo Edgard Leuenroth, UNICAMP-SP. ________________________________223

Imagem 11. Ilustração veiculada nas edições de A Lanterna dos anos de 1912 e 1913.
Arquivo Edgard Leuenroth, UNICAMP-SP. ________________________________236

Imagem 12. Charge publicada em A Lanterna no dia 1º. de julho de 1911. Arquivo
Edgard Leuenroth, UNICAMP-SP. _______________________________________236

Imagem 13. Charge publicada em A Lanterna no dia 27 de abril de 1911. Arquivo


Edgard Leuenroth, UNICAMP-SP. _______________________________________239

Imagem14. Charge publicada em A Lanterna no dia 25 de novembro de 1911. Arquivo


Edgard Leuenroth, UNICAMP-SP. _______________________________________240

Imagem 15. Anúncio da Liga Anticlerical de São Paulo. A Lanterna, 9 de setembro de


1911. Arquivo Edgard Leuenroth, UNICAMP-SP. ___________________________251

Imagem 16. Anúncio da Liga Anticlerical do Rio de Janeiro. A Lanterna, 9 de


novembro de 1912. Arquivo Edgard Leuenroth, UNICAMP-SP.________________ 257
Imagem 17. Foto com os integrantes do Grupo Dramático Anticlerical. A Lanterna, 11
de abril de 1914. Arquivo Edgard Leuenroth, UNICAMP-SP. __________________263

Imagem 18. Anúncio publicado em A Plebe nos dias 19 e 30 de dezembro de 1922.


Arquivo Edgard Leuenroth, UNICAMP-SP. ________________________________298

Imagem 19. Primeira parte da obra Ao Relento, de Afonso Schmidt, publicada em A


Vanguarda como folhetim. 30 de março de 1921. Arquivo Edgard Leuenroth,
UNICAMP-SP. ______________________________________________________300
Sumário

INTRODUÇÃO_____________________________________________________________12
PARTE I – PRÁTICAS TEATRAIS E CONCEPÇÕES DE ARTE __________________35
CAMINHOS E DESCAMINHOS DO TEATRO AMADOR________________________37
1.1. Os grupos relâmpagos – poucas informações _____________________________37
1.2. São Paulo e Rio de Janeiro – diferentes repercussões na imprensa operária____45
1.3. Reuniões e ensaios ____________________________________________________50
1.4. As experiências do teatro amador: um eixo e algumas ramificações ___________52
1.4.1. Os vínculos com o movimento operário e as possíveis tensões entre “doutrina” e
“prazer descomprometido” ________________________________________________53
1.4.2. Os nobres propósitos e os apertos orçamentários _________________________60
1.4.3. A difícil tarefa de organizar uma festa e o curioso prazer das formalidades ___64
1.4.4 Novas dicotomias... __________________________________________________68
1.4.5. O Grupo Teatro Social e o Grupo Teatro Livre: imbricações, um entreato e
muitas confusões ________________________________________________________76
1.5. Os amadores e suas perambulações _____________________________________80
1.6. Recapitulando _______________________________________________________84

AS CONCEPÇÕES DE ARTE NA IMPRENSA OPERÁRIA ______________________86


2.1. Preâmbulo _______________________________________________________86
2.2. Para enfrentar a dualidade velho/novo _______________________________88
2.3. Os elementos que compõem o conceito de Arte Social ___________________92
2.3.1. A crítica ao caráter “aristocrático” da arte – questões de
hegemonia___________________________________________________________96
2.3.2. A “finalidade social” ____________________________________________100
2.3.3. A “dura realidade da vida” e a questão da verossimilhança ____________107
2.4. Público e articulistas – algumas tensões, inúmeras aproximações _________117
2.4.1. A valorização do popular ________________________________________123
2.5. Concluindo _____________________________________________________136
PARTE II – O TEATRO ANARQUISTA E SUAS RELAÇÕES COM OUTRAS
PRÁTICAS SOCIAIS ______________________________________________________139
DRAMATURGIA E IMAGINÁRIO SOCIAL – O PRIMEIRO DE MAIO, DE PIETRO
GORI ____________________________________________________________________142
3.1. O Primeiro de Maio, de Pietro Gori __________________________________142
3.2. A dualidade passado /futuro, as metáforas do sol e da luz e as representações
do “novo mundo” ____________________________________________________150
3.2.1. A primavera conflagrada e o cenário campestre _____________________159
3.3. O país do Estrangeiro: uma Utopia de tipo diferente ___________________167
3.4. As metáforas do sacrifício e o caráter de luta atribuído ao 1º de Maio
___________________________________________________________________175
3.5. As disputas pelo simbólico e seus atores sociais _______________________183
3.5.1. Imaginário e mobilização – o período entre 1917 e 1919 ______________196

O PECADO DE SIMONIA E GREVE DE INQUILINOS, DE NENO VASCO ________200


4.1. Preâmbulo ______________________________________________________200
4.2. A estréia de O Pecado de Simonia – um espetáculo bem comentado _______202
4.3. Um resumo _____________________________________________________205
4.4. O Pecado de Simonia e as idéias-imagens do anticlericalismo ____________215
4.5. As práticas sociais em torno das Ligas: articulações na luta anticlerical
___________________________________________________________________244
4.5.1.O Grupo Dramático Anticlerical ___________________________________260
4.6. Greve de Inquilinos, de Neno Vasco (pequena introdução) ______________264
4.7 As agitações do inquilinato _________________________________________264
4.8. A peça de Neno Vasco e suas interlocuções com a agitação de inquilinos
veiculada por A Terra Livre... __________________________________________270
4.9. Concluindo _____________________________________________________286

CONSIDERAÇÕES FINAIS _________________________________________________289


FONTES _________________________________________________________________292
BIBLIOGRAFIA __________________________________________________________293
ANEXO __________________________________________________________________298
INTRODUÇÃO

Uma justificativa e alguns problemas


A historiografia existente sobre o movimento operário anarquista no início do
século XX é farta e desenvolveu-se, sobretudo, a partir da década de 1970. Foi nesse
momento (em alguns casos, um pouco antes) que os historiadores resolveram analisar
com mais atenção os problemas enfrentados pela classe trabalhadora, sobretudo a dos
grandes centros urbanos de nosso país. Surgiram então alguns importantes estudos
tentando entender as complexas relações sociais envolvendo os trabalhadores 1.
Foi em contato com tal historiografia que descobri, em informações furtivas (às
vezes até “casuais”), a realização, no seio do movimento operário em diferentes cidades,
de festas organizadas pelos sindicatos, ligas de resistência, centros de cultura e jornais
da imprensa operária. Ao perceber que, no interior de tais festas, grupos amadores de
teatro encenavam peças de conteúdo social – mas também (e por que não?) popular2 -,
senti a necessidade de entender melhor como se dava o diálogo de tais obras com
aquelas pessoas que participavam, de uma forma ou de outra, do esforço maior de
mobilização que a situação social e econômica da época ensejava.
Em meio à busca de estudos específicos sobre o assunto, notei um insistente
desinteresse dos historiadores em relação às festas operárias e, particularmente, ao
teatro que as constituía. Parece que se verifica, ainda hoje, certo desprezo em relação a
tal aspecto da sociabilidade operária no início do século XX. Diante do atual
distanciamento da arte teatral em relação às camadas populares, tal silêncio chega a
aturdir. Não obstante a escassez de informações, resolvi analisar um pouco das práticas
sociais que o teatro anarquista ensejava. Para compreender melhor aquelas práticas,

1
Para uma abordagem sucinta sobre a produção acadêmica a respeito do movimento operário, ver Paoli,
Maria Célia; Sáder, Eder e Silva Telles, Vera da. Pensando a classe operária: os trabalhadores sujeitos
ao imaginário acadêmico. In: Revista Brasileira de História, vol. 3 (no. 6).
2
Sobre a noção de “popular” que ora utilizo, ver capítulo intitulado Notas Sobre a Desconstrução do “Popular” em
Hall, Stuart. Da Diáspora – Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2009. Nesse artigo,
o autor analisa o contexto – entre fins do século XIX e início do XX - em que a indústria cultural exerceria uma
influência crescente sobre a cultura popular como um todo. Para ele, um dos principais efeitos desse fenômeno foi “a
reconstituição das relações políticas e culturais entre as classes dominantes e dominadas” (p. 234). Com essa
mudança engendrada pela nova indústria cultural, torna-se difícil (senão mesmo impossível) analisar a cultura da
classe trabalhadora como algo “autêntico”, isolado, “puro”. Por isso, para Stuart Hall, encarar a cultura das classes
populares exclusivamente a partir de seu interior, sem levar em consideração as relações complexas que ela
estabelece com as “instituições da produção cultural dominante, não é viver no século vinte” (pp. 236/237). É com
essa definição de “cultura popular” que trabalharei em minha pesquisa.
13

percebi que seria necessário abordar os conteúdos de algumas das peças encenadas nas
próprias festas operárias. Estava já convencido de que o teor (ideológico e cênico) de
cada peça indicaria a construção de alguns sentidos sociais específicos; sentidos que,
diga-se de passagem, eram partes constituintes do universo cultural em que se inseria o
teatro que desejava estudar. Enfim, cada vez mais em contato com o tema, percebi que,
ao menos em parte, as práticas sociais em torno do teatro anarquista - assim como as
peças que constituíam aquele teatro - ajudar-me-iam a entender melhor a complexa
construção de significados sociais e ideológicos avocados por uma parcela bem atuante
do movimento operário de então.
Como primeiro passo, entrei em contato com algumas das peças encenadas nos
palcos das festas operárias dos primeiros anos do século passado. Tais obras foram
reunidas, no final dos anos 70, por Maria Thereza Vargas e Mariângela Alves de Lima,
pesquisadoras do extinto Idart (Departamento de Informação e Documentação
Artística). Hoje, tais peças encontram-se disponíveis para pesquisa no Arquivo
Multimeios do Centro Cultural de São Paulo. O acervo reunido pelas duas
pesquisadoras totaliza 39 títulos, muitos dos quais em italiano. Das obras em língua
portuguesa (pouco mais da metade), algumas surgiram em um período não abarcado
nesta pesquisa. Para as demais (aproximadamente 20), voltaram-se a partir de então as
minhas atenções.
A leitura de algumas dessas peças suscitou-me indagações sobre as atividades
teatrais da classe trabalhadora. Como se organizavam os grupos teatrais que encenavam
essas obras? Quais as dificuldades por eles enfrentadas? Tais encenações eram
assistidas por muita gente? Como atuavam aqueles atores operários? Além disso, senti a
necessidade de entender melhor as relações que aquelas obras estabeleciam com o
universo social no qual elas eram encenadas – as festas operárias e, por extensão, o
próprio ambiente militante da época. Os problemas enfrentados pela classe trabalhadora
e seu movimento organizado manifestavam-se de alguma forma naquelas peças de forte
cunho ideológico? De que forma? Foi em busca de respostas para tais questões que eu
resolvi procurar, para além dos textos teatrais, notícias sobre as encenações daquelas
peças. Desejava também entender melhor como se organizavam aquelas festas no
interior das quais as ditas peças eram representadas.
Foi então que me debrucei sobre os apontamentos realizados por Maria Thereza
Vargas e Mariângela Alves de Lima em 1977. Teatro Operário na Cidade de São
14

Paulo, obra pioneira das duas autoras, foi um estudo financiado pelo Idart no final dos
anos 70 do século passado. Nele, além de comentários gerais sobre as peças com que
trabalharia, há também transcrições de anúncios de festas e de artigos sobre o teatro
amador publicados na imprensa operária de São Paulo no início do século XX. É uma
importante fonte de informações que traz ainda algumas abordagens a respeito dos
conteúdos e dos padrões estéticos das peças do teatro anarquista.
Por meio dessa obra, pude notar que a imprensa operária traria subsídios
importantes para a minha pesquisa. Percebi que, para responder às minhas indagações,
precisaria pôr frente a frente os conteúdos das peças e as informações que aquela
imprensa apresenta. Na época em que elaborava meu projeto de Mestrado, fui algumas
vezes ao Arquivo Edgard Leuenroth, na Unicamp, onde se encontra o maior acervo de
imprensa operária do estado de São Paulo. Realizei então uma rápida investigação sobre
alguns periódicos paulistanos daquela imprensa.

Os recortes de tempo e espaço


Após essa análise superficial - e ainda bastante influenciado pela obra de Maria
Thereza e Mariângela Alves -, escolhi como recorte espacial de meu projeto a cidade de
São Paulo. Acreditava então que os artigos da imprensa paulistana trariam elementos
suficientes para levar adiante minha pesquisa. Ledo engano. Já no primeiro semestre de
meu Mestrado, tive a oportunidade de ir ao Arquivo Edgard Leuenroth outras vezes e
percebi que, na verdade, a imprensa operária de São Paulo trazia poucas informações
sobre as festas e o teatro. Aqui, nos periódicos de nossa Paulicéia, não obstante a
enorme quantidade de anúncios de festas a serem realizadas, eram raros os artigos e
notícias sobre teatro e festividades. Dificilmente algum articulista dos periódicos
paulistanos tecia comentários mais completos sobre a encenação de alguma peça ou
sobre a reação do público que a ela assistia. Muito pouco eu encontrei na imprensa de
São Paulo sobre as dificuldades de organização dos grupos teatrais. As informações
sobre as festas em geral também não eram muito eloqüentes.
No entanto, nem tudo estava perdido. Em meio aos rolos de microfilmes e no
interior das pastas de periódicos do AEL, encontrei alguns exemplares de jornais
publicados na mesma época no Rio de Janeiro. Pude notar que, comparados com os de
São Paulo, os órgãos da imprensa anarquista carioca eram bem menos avaros em
informações sobre festas e teatro.
15

Sendo assim, diante da relativa escassez de fontes em São Paulo, resolvi propor
à minha orientadora que ampliássemos o recorte territorial de nossa pesquisa, abarcando
também, além de São Paulo, a cidade do Rio de Janeiro. Chegamos à conclusão de que
não haveria problemas metodológicos maiores a ser enfrentados por causa dessa
ampliação. Isso porque, em primeiro lugar, o padrão das festas operárias de São Paulo
era muito parecido com o do Rio de Janeiro. Segundo: a mobilização dos trabalhadores
na então Capital de nosso país era também intensa. Não obstante a forte presença
reformista no movimento operário carioca 3, a influência das idéias libertárias também
era marcante naquela cidade. Em terceiro lugar, as peças encenadas em São Paulo eram,
no mais das vezes, as mesmas encenadas no Rio. E, por fim, muitos dos sujeitos sociais
que compõem nossas narrativas transitaram entre São Paulo e Rio com certa freqüência;
alguns deles, inclusive, atuaram no teatro tanto aqui quanto lá. Por tudo isso, essa
ampliação de nosso recorte territorial não trouxe conseqüências prejudiciais à pesquisa;
pelo contrário, apresentou um leque mais amplo de possibilidades e indagações.
Se nosso recorte de território foi mudado, no entanto, as balizas temporais
mantiveram-se praticamente as mesmas que apareciam em meu projeto. Iniciamos
nossos estudos no ano de 1901 porque foi nele que, pela primeira vez em São Paulo,
subiu ao palco a peça Primeiro de Maio, de Pietro Gori. Tal obra, na definição de Jayme
Cuberos, era a “Paixão de Cristo” do anarquista4 - ou, como preferem Maria Thereza e
Mariângela Alves, ela foi o “carro-chefe” da dramaturgia libertária. Nosso recorte
temporal termina em 1922, quando foi à cena pela primeira vez (em São Paulo e no
Brasil) a peça Ao Relento, de Afonso Schmidt. Assim como Primeiro de Maio, de
Pietro Gori, Ao Relento estrutura-se como um poema dramático em um ato só. O tom
lírico e as características emblemáticas dos personagens são traços que aproximam as

3
A respeito da influência “reformista” entre o operariado carioca, ver Pinheiro, Paulo Sérgio. O proletariado
industrial na Primeira República. In.: Fausto, Boris (org.). O Brasil Republicano – Sociedade e Instituições (1889-
1930); Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil, 2004; p.163. Para Paulo Sérgio Pinheiro, o caráter específico da classe
operária carioca talvez se devesse à sua proximidade física “com o governo e os centros vitais do aparelho de
Estado”. Ver também Batalha, Cláudio. O Movimento Operário na Primeira República; Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Editor, 2000; pp. 31-32. Tal obra de Batalha questiona inclusive um posicionamento que o próprio autor adotara em
seus trabalhos anteriores. Se antes ele utilizava abertamente o termo “sindicalismo amarelo”, aqui ele preferiu a
expressão “sindicalismo reformista”. Nessa obra mais recente, o autor justifica a escolha afirmando que “sindicalismo
amarelo” seria uma designação “que indicava no caso francês um sindicalismo estimulado e financiado pelos patrões
(fenômeno que no Brasil foi extremamente marginal, reduzido ao caso de algumas associações beneficentes de
empresas)”. Ver também Fausto, Boris. Trabalho Urbano e Conflito Social. São Paulo, Difel, 1986. Fausto, nessa
obra, prefere a expressão “trabalhismo carioca”.
4
Ver, no Arquivo Multimeios (CCSP), relato de Jayme Cuberos em P318/AC – TR 1067 (entrevista com artistas do
Centro de Cultura Social). “Era uma peça que era necessária para comemorar. Se comemorava o Primeiro de Maio e
tinha essa peça. Era tradicional. Se levava a peça fatalmente. Era a mesma coisa que a `Paixão de Cristo´, na Semana
Santa. A `Paixão de Cristo´ do anarquista era o Primeiro de Maio.”
16

duas obras. No entanto, não obstante as similaridades, ambas diferenciam-se no


conteúdo específico, assim como na atmosfera que envolve os personagens – em Ao
Relento muito mais “carregada” do que em Primeiro de Maio.
Para além das comparações no âmbito textual das peças que compõem o corpus
de nossa pesquisa, a periodização 1901-1922 marca também a trajetória de ascensão e
posterior refluxo do movimento operário anarquista. É sempre bom lembrar que 1922
foi o ano em que se iniciou o estado de sítio de Artur Bernardes; foi nele também que
surgiu o Partido Comunista Brasileiro, estabelecendo novas configurações ao padrão de
organização do movimento operário nas duas grandes cidades.
Além disso, segundo Antonio Candido e Aderaldo Castello, o período que marca
a passagem do século XIX para o XX (mais exatamente, entre 1875 e 1922) teria
presenciado, no Brasil, “um incremento na vida da cultura” 5. E foi justamente nesse
contexto de desenvolvimento cultural (que alguns autores chamam, um tanto
vagamente, de “pré-modernismo”) que se situaram as produções e encenações das peças
com as quais trabalhamos. Ademais, todos sabem que 1922 foi também o ano da famosa
Semana de Arte Moderna, considerada (injustamente ou não) um divisor de águas na
produção cultural e artística do Brasil.
Sendo assim, pensamos que nosso recorte cronológico delineia um período de
intensas transformações. Portanto, as encenações das peças que compõem o corpus
desta pesquisa seguem a trajetória de “ascensão” e posterior “refluxo” do movimento
anarquista e/ou sindicalista revolucionário em São Paulo e no Rio de Janeiro. Analisar
essas peças e, junto com elas, a sociabilidade que envolvia a própria festa operária é,
dessa forma, uma maneira de discutir também os problemas específicos de mobilização
que os militantes – no caso, sobretudo anarquistas e sindicalistas revolucionários 6 –
enfrentavam para buscar seus objetivos.

5
Castello, Aderaldo e Candido, Antonio. Presença da Literatura Brasileira – do Romantismo ao Simbolismo; São
Paulo, Difel, 1974, p.89.
6
Para uma breve diferenciação entre anarquismo e sindicalismo revolucionário, ver em Toledo, Edilene. Anarquismo
e Sindicalismo Revolucionário – Trabalhadores e Militantes em São Paulo na Primeira República; São Paulo,
Editora Fundação Perseu Abramo, 2004, capítulo intitulado Entre o anarquismo e o sindicalismo (pp. 41- 53). Para a
autora citada, os anarquistas pregavam “uma sociedade organizada por livres associações e federações de produtores
e consumidores, formadas e modificadas segundo a vontade dos associados, guiados pela ciência e pela experiência e
livres de toda imposição que não derivasse das necessidades naturais” (pp.42,43). Já o sindicalismo revolucionário
“aceitava e defendia a luta cotidiana por melhorias, mesmo que a linguagem fosse revolucionária, e era um esforço
para atenuar divergências que dividiam os operários, ou seja, era um fator de unificação importante” (p. 53). Não
obstante as diferenciações ideológicas visíveis no seio do movimento operário de então, é importante salientar desde
já que não levaremos muito a sério segmentações excessivamente rígidas na análise das trajetórias dos sujeitos com
os quais trabalharemos em nossa pesquisa. Isso porque, como o próprio estudo de Edilene Toledo acaba
17

Além das peças mencionadas acima, selecionamos outras quatro para compor o
corpus da pesquisa. Ao todo foram seis as obras escolhidas dentre aquelas que Maria
Thereza Vargas e Mariângela Alves de Lima recolheram no final dos anos 70. Os
critérios de seleção por nós adotados para a escolha dessas peças, em detrimento das
outras, referem-se basicamente a dois motivos principais: primeiramente, a recorrência
de seus títulos nos anúncios da imprensa operária (ou seja, foram encenadas com certa
freqüência nas festas de propaganda e nos festivais organizados pelas ligas de
resistência, sindicatos e órgãos da imprensa operária). Em segundo lugar, e para além do
“sucesso” alcançado, selecionamo-nas por causa das questões importantes que elas nos
permitem levantar sobre as práticas sociais do movimento operário de então. Foram
esses dois critérios que modularam no momento da escolha das peças que compõem o
nosso corpus – ora um, ora outro predominou na seleção. Mas os dois,
7
concomitantemente, tiveram relevância nesse difícil processo de escolha.
No entanto, é importante ressaltar que a centralidade que tais obras apresentam
neste estudo não exclui abordagens pontuais de outras peças também encenadas
naquelas festas. Portanto, mesmo que algumas peças não sejam analisadas de forma
mais detida, nem por isso elas estão descartadas de antemão. Serão freqüentes as
menções a algumas delas nesta pesquisa.

As festas
Antes de mais nada, precisamos tecer um breve comentário sobre os eventos
dentro dos quais as peças do teatro anarquista eram encenadas. Acreditamos que só
assim poderemos, depois, entender melhor suas características.

reconhecendo, existia no interior do movimento operário da época uma enorme fluidez de idéias e os próprios
militantes transitavam de uma ideologia à outra “sem que isso fosse experimentado como falta de coerência” (p.120).
Em muitos momentos de nossa pesquisa não levaremos em consideração essas diferenciações mais rígidas, chamando
quase sempre os militantes com os quais lidaremos de “anarquistas”.
7
Brevemente citamos agora as peças que compõem o corpus da pesquisa. Como dito acima, nosso recorte
cronológico inicia-se com a data em que, pela primeira vez em São Paulo, foi à cena a peça Primeiro de Maio, de
Pietro Gori. Quase tão encenada quanto ela era a peça O Pecado de Simonia, de Neno Vasco, representada pela
primeira vez, em São Paulo, no dia 14 de julho de 1907. Outra comédia de Neno Vasco recorrente nas festas de
propaganda era Greve de Inquilinos. Electra, de Pérez Galdós, outra peça anticlerical, entrou em nossa pesquisa
porque estamos convencidos de que O Pecado de Simonia faz alusão a ela. Ainda na análise que fizemos da peça
anticlerical de Neno Vasco, achamos necessário fazer alguns comentários pontuais sobre a peça A Bandeira
Proletária, de Marino Spagnolo, que estreou nos palcos das festas operárias no segundo semestre de 1922. Por fim,
fechando nosso recorte cronológico, a escolha que fizemos recaiu sobre a “fantasia em verso” Ao Relento, de Afonso
Schmidt.
18

Segundo Francisco Foot Hardman, as festas de propaganda mesclavam o


“prazer do entretenimento” com as “tarefas de convencer o público da necessidade da
emancipação social”8. Organizadas pelas ligas de resistência, pelos órgãos da imprensa
operária e pelos próprios grupos de teatro, tais festas, realizadas quase sempre aos
sábados à noite, dividiam-se basicamente em três partes: no início, uma conferência de
teor ideológico libertário, geralmente ministrada por alguém do chamado “núcleo
dirigente” do movimento anarcossindicalista. Na seqüência, vinha quase sempre uma
(ou mais) peça teatral, também de conteúdo “social”. Por fim, no ponto culminante do
evento, o quase inevitável “baile familiar”, fulminado eventualmente em alguns órgãos
da imprensa operária. Evidentemente, tal divisão esquemática da festa de propaganda
nem de longe deve ser encarada como rígida. Muitos desses eventos apresentavam
variações em relação a tal modelo. Em meio à festa, eventualmente realizava-se uma
quermesse em que, vez ou outra, ocorria uma apresentação musical, sorteava-se uma
rifa, realizava-se um leilão, poemas eram declamados (às vezes por crianças), canções
entoadas etc. A seqüência acima estabelecida também era variável, podendo, por
exemplo, uma determinada programação apresentar as representações teatrais na
primeira parte, entremeadas pelas conferências ditas “doutrinárias”. Ou então, na
abertura, uma programação musical em que hinos revolucionários (sobretudo A
Internacional) eram entoados.
Notamos, em jornais da imprensa operária das duas primeiras décadas do século
XX, algumas críticas ao caráter lúdico das festas - sobretudo ao baile. Não obstante os
julgamentos desabonadores (alguns até severos) que certos setores daquela imprensa
faziam ao caráter lúdico de tais festas, percebemos que ele, na verdade, era bastante
valorizado – tanto pelo público quanto pelos organizadores daqueles eventos. Uma
evidência de tal valorização aparece no período de ascenso do movimento operário em
São Paulo e no Rio de Janeiro – os anos entre 1917 e 1920. Foi justamente nesse
período de intensa mobilização que os novos festivais conquistaram as ruas e parques da
cidade. Naquele momento, ganhavam destaque maior as diversões “populares”. Além
das representações teatrais, os programas dos festivais contavam também com jogos de
tômbola, cinematógrafo, canções típicas, natação, regatas e os badalados torneios de

8
Ver Foot Hardman, Francisco. Nem pátria, nem patrão. São Paulo, Editora Unesp, 2002, p. 25.
19

foot-ball – esporte que, assim como o baile, sofreu críticas violentas por parte de alguns
militantes da imprensa operária 9.
Poderíamos dizer que os novos festivais foram o “triunfo do lúdico” nas festas
operárias? Para Francisco Foot Hardman, sim. Segundo ele, enquanto a festa de
propaganda, de caráter “doutrinário”, ligava-se a uma determinação dos “núcleos
diretivos”, o festival, sob a forma de espetáculo, seria muito mais “uma determinação da
classe”10. Tal enfoque sedutor, no entanto, merece uma análise mais atenta. Sem deixar
de considerar as evidentes distinções entre “movimento” e “classe”, ou entre “núcleos
dirigentes” e “bases”, o desafio a ser enfrentado em nossa pesquisa será o de evitar
segmentações muito rígidas entre esses dois pólos no contexto analisado – ou seja, o do
teatro anarquista e o das festas operárias em geral. Separar de forma esquemática os
grupos que influíam no processo de configuração das festas levar-nos-ia a reduzir os
sujeitos que dele participavam a modelos previamente estabelecidos de comportamento
- “núcleos dirigentes” querendo uma coisa, “público” querendo outra. Depreende-se da
análise atenta das fontes que até militantes que condenavam as atividades mais lúdicas
estavam sim atentos a elas. Podemos afirmar, sem risco de exagero, que mesmo esses
militantes não só utilizavam essas atividades para seus propósitos, como também (em
alguma medida) as valorizavam.
Quanto aos padrões da festa, o próprio Foot Hardman atenta para o problema de
esquematizarmos demais suas diferenciações. Segundo o autor citado, essas
diferenciações talvez não fossem muito claras na época. Muitos jornais da imprensa
operária divulgaram, como festivais, eventos realizados em salões fechados e com
programações típicas das festas de propaganda. No geral, os festivais de São Paulo
divulgados por A Plebe a partir de 1917 eram realizados, em grande parte, em salões
como o Celso Garcia (situado então na rua do Carmo, nº. 39) e o pertencente à
Sociedade de Beneficência Guglielmo Oberdan (na então rua Brigadeiro Machado, n º.
5), ambos intensamente utilizados no período anterior (das festas de propaganda). No
caso do Rio de Janeiro, tais festivais eram freqüentemente realizados ainda no salão do
Centro Galego, situado na Rua Visconde do Rio Branco, nº. 55 e bastante utilizado já
para as festas de propaganda do período anterior a 1917. Ou então, os grupos cariocas
de teatro amador utilizavam o palco da sede da Resistência dos Cocheiros, situado na

9
Ver, a respeito, severo comentário de Sejo Costa em A Plebe do dia 30 de outubro de 1917.
10
Ver Foot Hardman, Francisco, op. cit. p. 54.
20

Rua Camerino. Portanto, é preciso problematizar a suposta ruptura que os festivais


promoveram no padrão da festa operária – assim como as segmentações
demasiadamente rígidas entre “núcleos dirigentes” e “bases” (ou, em nosso caso, entre
“organizadores” das festas e “público”).

O teatro
Segundo Antonio Arnoni Prado, as obras encenadas pelos grupos amadores
operários eram, de uma forma geral, caracterizadas pela “brevidade do episódio”, pela
“simplificação da trama” e pela “clareza da mensagem”. Isso porque seu objetivo
principal era apresentar um conteúdo pedagógico e exemplar 11. Para Maria Thereza
Vargas e Mariângela Alves de Lima, esse teatro preocupava-se, sobretudo, com a
“clareza na transmissão de uma idéia”. Para tanto, reproduzia uma “visão binária que
não exige uma caracterização complexa”, nem do contexto nem dos personagens 12.
Muitas vezes, as peças com as quais trabalhamos apresentavam personagens alegóricos,
emblemáticos, destituídos de características individuais marcantes. Nem sempre se
preocupavam com problemas específicos – particulares – e sim com a situação de
exploração em que viviam os trabalhadores – fossem eles operários, artesãos, soldados
ou camponeses. O importante em tais peças era a transmissão de uma idéia geral de
libertação; idéia que os militantes libertários desejavam divulgar aos trabalhadores.
Ao analisar de perto algumas das peças desse teatro, perceberemos que as
caracterizações que acabamos de ver devem, em alguns momentos, ser relativizadas –
quando não mesmo questionadas profundamente. É claro que as definições criadas pelos
autores acima mencionados contribuem bastante para que possamos entender melhor
essas peças. No entanto, tais definições não devem engessar nossas análises. De
maneira alguma as utilizaremos como dogmas esquemáticos, visando, por meio deles, a
busca de soluções fáceis para a abordagem dessas obras. Estas, como veremos ao longo
da pesquisa, são às vezes mais complexas do que os teóricos propugnam.
Muito já se disse a respeito do caráter simplório, até mesmo maniqueísta, desse
tipo de obra com que trabalhamos. Foram muitas as críticas - dentro e fora dos círculos
militantes - que surgiram contra esse tipo de produção “panfletária”. Os críticos
questionam inclusive a própria eficácia do projeto de “conscientização” que tais
11
Ver Prado, Antonio Arnoni. Trincheira, Palco e Letras; São Paulo, Cosacnayf, 2004; pp.161, 162.
12
Ver Alves de Lima, Mariângela e Thereza Vargas, Maria. Teatro Operário na Cidade de São Paulo. Laboratório
do Idart, 1980, p. 25.
21

produções carregam13. Segundo eles, obras como as que analisamos redundam em um


duplo fracasso: doutrinário, por não convencerem quase ninguém, e estético, por
simplificarem demais a trama e destituírem os personagens de características
complexas.
Por certo, temos de compreender melhor o que esses críticos entendem por
“fracasso” ou “sucesso”. Na tentativa de deslocar os fundamentos analíticos desses
detratores, gostaríamos apenas de citar um curioso artigo de Walter Benjamin intitulado
O autor como produtor14. Nesse artigo, Benjamin enfatiza a necessidade de
analisarmos com mais atenção as relações entre “escritor” e “produtor”. Para ele, o
trabalho do “autor consciente [...] não visa nunca a fabricação exclusiva de produtos,
mas sempre, ao mesmo tempo, a dos meios de produção.” Ou seja, para o autor citado, a
obra do escritor comprometido com a luta de classes deve possuir uma “função
organizadora”. Esta, para Benjamin, independe da propaganda, mas, por outro lado,
exige, por parte do escritor, “um comportamento prescritivo, pedagógico”.
Textualmente, citando o autor, “um escritor que não ensina outros escritores não ensina
ninguém”. O “sucesso” desse tipo de produção “engajada” se verificaria, portanto, não
por meio da quantidade de pessoas que a consomem (ou se deixam influenciar por sua
mensagem) e sim pela capacidade de conduzir “consumidores à esfera de produção, ou
seja, quanto maior for sua capacidade de transformar em colaboradores os leitores ou
espectadores”15, maior seria o “sucesso” da (s) obra (s). Ora, diante da imensa
quantidade de grupos amadores que identificamos por meio dos anúncios da imprensa
operária16, parece-nos indiscutível que, do ponto de vista benjaminiano, as obras do
teatro anarquista obtiveram um estrondoso “sucesso”.

13
Para uma breve análise dessas críticas, ver, por exemplo, o conceito de “obras de tese” em Serge, Victor. Literatura
e Revolução. São Paulo, 1989. Editora Ensaio; pp. 33-36. Esse autor questiona, dentre outras coisas, a suposta
“qualidade inferior” dessas “obras de tese” – assim como a “confusão”, inerente a elas, entre agitação (propaganda) e
literatura. Sobre o papel das obras de arte na luta social e a possível função das instituições sociais na produção
artística, ver Lukács, Georg. Marxismo e Teoria da Literatura. Rio de Janeiro, 1968, Civilização Brasileira, p. 273.
14
Benjamin, Walter. Obras Escolhidas – Magia e Técnica, Arte e Política.Editora Brasiliense, São Paulo, 1996.
15
Ibid.; p.132.
16
Uma lista pequena com os nomes de grupos teatrais que atuaram no curto período que estudamos é por si só
eloqüente. Mostra-nos que esse trabalho coletivo de escritores-produtores teve sim repercussões enormes no seio da
classe trabalhadora. Citaremos apenas alguns dos que mais se destacaram: Nucleo Filodrammatico Libertario /
Grupo Filodrammatico “L´Attore Infantile” / Grupo Filodramático Social / L´Attore Giovanile / Amantes del
Progresso / Grupo Teatral Trabalhadores Livres / Grupo Dramático Anticlerical / Grupo Dramático Cultura Social /
Circolo Maria Falcão / Grupo Dramático Teatro Social (houve três diferentes grupos com este nome)/ Pensamento e
Ação / Grupo Dramático Maximo Gorki / La Propaganda / Grupo Filodramático anexo ao Centro de Estudos Sociais /
Giovanni Bovio (filósofo e político republicano do Risorgimento italiano)/ Societá Filodrammatica Studio e Diletto /
Grupo Dramático 13 de Outubro / Centro Filodramático de São Paulo / Grupo Dramático Libertário Mario Rapizardi
22

As matrizes culturais
Voltemos às críticas dos detratores que mencionamos acima. Elas, no mais das
vezes, enveredam para uma discussão acerca da estrutura textual e dos aspectos formais
da produção dita “engajada”. No interior dessa discussão está muitas vezes a
preocupação em saber se obras como as que estudamos seriam ou não “verdadeiras”
obras de arte. Levar adiante tal problema requer uma análise de teoria estética que, em
razão de nossos objetivos no campo da história social, não pretendemos desenvolver17.
Pensamos que, para além das considerações exclusivamente estéticas, cabe aqui
indagarmos a respeito das matrizes culturais que originaram esse tipo de dramaturgia (o
teatro anarquista). São tais matrizes que, em alguma medida, configurarão o padrão de
produção das obras que analisaremos.
Foi em busca de tais matrizes que pudemos notar, no âmbito das táticas de
divulgação da ideologia anarquista, uma rica apropriação, por parte de nossos
militantes, de inúmeras práticas culturais de origem popular. Segundo Jesús Martin-
Barbero, os anarquistas foram capazes de estabelecer relações importantes com a cultura
popular, instrumentalizando-a no processo de lutas cotidianas e, assim, valorizando-a –
mesmo que às vezes de forma não tão explícita. O autor ressalta que, nesse processo de
instrumentalização, são incorporados elementos da cultura popular como “as coplas e
os romances de folhetim, os evangelhos, a caricatura ou a leitura coletiva dos
periódicos”18 - enfim, tudo aquilo que, numa visão segmentada da cultura, seria o
oposto do “erudito”. Nesse processo de instrumentalização da cultura popular, surge
então uma “nova imagem” no âmbito dessa relação entre o povo e a cultura. Para
Martin-Barbero, “um primeiro traço-chave dessa imagem é a lúcida percepção da
cultura como espaço não só de manipulação mas também de conflito, e a possibilidade
então de transformar em meios de liberação as diferentes expressões ou práticas

(poeta italiano do Risorgimento) / Academia Dramática Brasileira / Centro de Cultura Social Dramática Jovenes
Incansables / Grupo Filodramático Cultura Moderna / Grupo Dramático Francisco Ferrer / Grupo Dramático Emilio
Zola / Grêmio Dramático Luzitano / Grupo Filodramático Libertas / Grupo Dramático Joaquim Dicenta (dramaturgo
espanhol) / Grupo Dramático Os Modestos / Grupo Dramático Pierrot / Grupo Dramático Amor e Mocidade / G. D.
Amadores d´Arte / Grupo Filodramático Solidariedade. Atenção: além dos excluídos desta lista incompleta, havia
inúmeros outros grupos anônimos que atuavam vinculados aos órgãos da imprensa operária ou aos sindicatos e ligas
de resistência. Por não possuírem nomes próprios, também ficaram excluídos desta modesta lista.
17
Não queremos com isso descartar a importante análise das concepções estéticas dos anarquistas do período que
estudamos, objeto de análise de nosso segundo capítulo. No entanto, na tentativa de compreender tais concepções,
utilizaremos as ferramentas conceituais próprias da história social, não as da teoria estética.
18
Martin-Barbero, Jesús. Dos meios às mediações – comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora
UFRJ, 2009, p.44.
23

culturais”19. Segundo Martin-Barbero, essa nova concepção seria responsável por uma
política cultural voltada para a promoção de instituições de educação operária. No
interior desse projeto maior de educação poderíamos incluir, sem risco de exagero, as
festas operárias – assim como, é claro, o teatro que as constituía.
Ainda em contato com a obra já citada de Martin-Barbero, pudemos identificar
duas matrizes culturais a que o teatro anarquista possivelmente se remete: o melodrama
e o folhetim. O primeiro, segundo Martin-Barbero, apresenta uma estrutura que sacrifica
a complexidade da trama em favor da intensidade. Assim como as peças do teatro
anarquista, o melodrama apresenta personagens com características emblemáticas – “o
Traidor, o Justiceiro, a Vítima e o Bobo”. Ainda como nas peças daquele teatro, o
melodrama – segundo o autor citado - põe em funcionamento “duas operações”
sistemáticas e recorrentes: a “esquematização” e a “polarização”. A primeira é
“entendida pela maioria dos analistas em termos de ausência de psicologia´” 20. Ou seja,
os personagens do melodrama também são destituídos de complexidade subjetiva. A
segunda operação – intimamente relacionada com a primeira – refere-se à “polarização
maniqueísta”. De acordo com ela, os personagens apresentariam um plano de ação
previsível – seriam ou bons ou maus, ou puros ou irremediavelmente corrompidos.
Ainda na esteira de Martin-Barbero, devemos considerar como segunda matriz
do teatro anarquista os mais do que populares romances de folhetim. Sucessos
estrondosos a partir de meados do século XIX, os folhetins impulsionaram os meios de
comunicação de massa e estabeleceram “um novo modo de comunicação entre as
classes”21. Aqui também, nos enredos folhetinescos, verificamos uma separação rígida,
numa “perspectiva vertical”, entre heróis e vilões, suprimindo qualquer possibilidade de
ambigüidades que sejam a expressão de uma maior complexidade psicológica. Assim
como no melodrama (e, por extensão, nas peças do teatro anarquista), vemos no
folhetim uma certa pressão no sentido de fazer com que o receptor (no caso, o leitor)
tome uma posição diante dos personagens e da trama desenvolvida. Como veremos em
nossa pesquisa, as peças com que lidamos também apelam para o posicionamento dos
espectadores. Por tudo isso, pensamos que não seria incorreto relacioná-las com os
padrões culturais do melodrama e do folhetim. Tais associações (ou, se preferir,
imbricações) serão em alguma medida mencionadas no decorrer da pesquisa.
19
Ibid., p.44.
20
Ibid., p.168.
21
Ibid., p.176.
24

A linguagem como parte constituinte das práticas sociais


Quando nos debruçamos sobre a análise de uma representação artística qualquer
(seja ela literária ou não), devemos forçosamente utilizar o conceito de linguagem. E
para que não haja confusão a esse respeito, é necessário, desde já, elucidar o uso que
faremos de tal conceito. Para evitar reducionismos e abstrações em excesso,
entenderemos a linguagem como parte constituinte e, em alguma medida, definidora das
práticas sociais materiais22. Por isso mesmo, uma abordagem meramente estrutural das
peças do teatro anarquista está de antemão descartada. Dissociar a realidade cotidiana
da construção de significados e valores em nada contribuiria para esclarecer as práticas
sociais do movimento operário anarquista – dentre elas, a festa de propaganda e, em
seu interior, o próprio teatro.
Por outro lado, conceber a linguagem como mero “reflexo” da prática social –
acreditando ser ela um simples “veículo” por meio do qual a realidade se manifesta –
seria perder de vista todas as relações complexas que a elaboração multifária de
significados sociais envolve.
Se acreditarmos que as obras daquele teatro dialogavam com a dinâmica
organização do movimento operário, deveremos – para compreender melhor esse
diálogo – conceber a linguagem de tais obras como parte constitutiva das práticas
sociais com as quais elas se relacionavam intrinsecamente. Nessa perspectiva, o
conceito de linguagem deixa de ser estático e torna-se ativo, dinâmico e, em seu
interior, expressa contradições, ambigüidades e polissemia; permite assim vislumbrar o
processo de elaboração de significados e valores que ocorre no seio de um determinado
grupo – no caso, o dos militantes (anarquistas e/ou sindicalistas revolucionários,
preferencialmente).
Sendo assim, os conteúdos expressos pelas peças do teatro anarquista serão
abordados, na medida do possível, em relação aos registros de outras atividades que
também constituíam aquelas práticas sociais específicas – as festas de propaganda e,
em última análise, a organização do próprio movimento libertário. Só assim poderemos
redimensionar o uso da linguagem teatral que aqueles militantes fizeram para exprimir
seus anseios e inquietações. É, portanto, no interior desse processo social complexo – e
22
Ver, sobre o conceito de linguagem a ser utilizado na pesquisa, Williams, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de
Janeiro, Zahar Editores, 1979, parte I, cap. 2. Ainda sobre tal conceito ver, na mesma obra, definição que o autor
passa nas páginas 165 e 166.
25

em relação a ele – que pretendemos analisar as peças relacionadas no corpus de nossa


pesquisa.

Experiência e classe
Para melhor compreender esse intricado processo de constituição social,
lançamos mão dos conceitos de experiência e, subsidiariamente, de classe – ambos
muito bem trabalhos por E. P. Thompson. No que se refere ao primeiro (conceito de
experiência), foi com ele que o autor britânico pretendeu analisar as complexas
correspondências verificadas na interação dos sujeitos com “suas situações e relações
produtivas determinadas”23. Evitando abstrações generalizantes e reducionismos em
excesso, Thompson tratou a experiência humana como um conjunto multifário e
contraditório de inserções dos sujeitos no interior das relações produtivas. Para ele, tais
inserções não ocorrem de forma mecânica e direta. Passam, pelo contrário, pela
“consciência” e pela “cultura” desses mesmos sujeitos. Estes, por sua vez, ao atribuírem
significado a tais relações, agem sobre a situação em que se encontram nem sempre (ou
quase nunca) de forma previsível ou unívoca; mas, nem por isso, suas ações seriam
“inconscientes” ou “instintivas”.
É por meio desse conceito que podemos minimamente encarar, por exemplo, a
grande profusão de idéias divulgadas entre os diferentes segmentos do movimento
operário da época (ou seja, o caráter difuso das ideologias professadas por aqueles
militantes). Com esse conceito de experiência, podemos também abordar com mais
acuidade as diferentes práticas sociais levadas adiante pelo movimento operário da
época e os complexos mecanismos de construção de significados engendrados por
aquele mesmo movimento.
Ora, se nas peças do teatro anarquista vislumbramos um amplo leque de valores
e concepções, se tais valores e concepções estabeleceram certos padrões identitários e
contribuíram para a construção de uma imagem própria para alguns setores da classe
trabalhadora, é o conceito de experiência em Thompson que nos ajudará a entender
melhor como se deu o complexo processo de construção daquela auto-imagem; auto-
imagem que os segmentos organizados avocavam para si e, em alguns casos, atribuíam
também à classe trabalhadora como um todo. Diante da enorme complexidade das

23
Para a noção de experiência humana, ver Thompson, E. P. Miséria da Teoria ou Um Planetário de Erros. Rio de
Janeiro, Zahar Editores, 1981; p.182.
26

relações sociais em torno do movimento libertário em São Paulo e no Rio de Janeiro, no


início do século XX - assim como no interior das festas que constituíam tal movimento-,
trabalhar com o conceito de experiência em Thompson torna-se uma exigência.
Outro conceito que não poderíamos deixar de lado é o de classe social. Não
obstante as inúmeras mudanças que ele sofreu nos últimos vinte ou trinta anos, a
discussão em torno dele, apesar de extremamente complicada, é fundamental para a
nossa pesquisa. Isso porque, é claro, uma análise da cultura dos trabalhadores – e o
teatro anarquista é parte constituinte dessa cultura - passa pela discussão do que seria a
própria classe trabalhadora. Como adotar o conceito de classe em uma pesquisa sem
antes esclarecer o que entendemos por ele?
Para além da noção thompsoniana de classe como “fenômeno histórico”, não
como “estrutura”, como “uma relação, e não uma coisa” – noção que nos remete a uma
visão de “processo ativo” no sentido de “fazer-se”24, e não ontológico no sentido de “ser
em si” - , recorreremos a uma abordagem mais recente que, tributária da anterior
(thompsoniana), situa a discussão de classe no contexto atual de “crise” da história do
trabalho; contexto em que a própria noção de classe é questionada, por vezes de forma
severa. Tentaremos atualizar a discussão sobre classe lançando mão de uma abordagem
feita recentemente pelo historiador inglês Mike Savage em um artigo intitulado Classe e
história do trabalho25.
Desde o início de seu texto, Mike Savage situa sua problemática em torno do
conceito de classe no interior de um contexto em que “a história do trabalho se encontra
em crise”26. Para o autor, essa “crise” relaciona-se diretamente com os crescentes
questionamentos a respeito da relevância (ou não) das classes sociais para a análise da
história do trabalho. Savage vislumbra uma certa fragmentação dos estudos sobre os
trabalhadores. Questões de gênero, desigualdades étnicas e “novos movimentos sociais”
entram na agenda dos historiadores que lidam com as discussões em torno do trabalho.
O esvaziamento do movimento sindical - assim como a conjuntura embaraçosa da
política social-democrata - contribuiu, segundo o autor, para a atual situação de “crise”
dos estudos sobre a história do trabalho. Além disso, Savage ressalta a discussão, por

24
Para tal noção de classe, ver Thompson, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa – A Árvore da Liberdade
(vol. I). Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1987; pp. 9, 10.
25
Sobre a noção de classe em Mike Savage, ver Batalha, Cláudio H. M.; Silva, Fernando Teixeira da e Fortes,
Alexandre (org.). Culturas de Classe. Campinas, Editora da UNICAMP, 2004; cap. 1.
26
Ibid., p.26.
27

ele vista muitas vezes como estéril, entre os defensores da “guinada cultural” (cultural
turn) e os partidários da abordagem marxista ou neomarxista. Apesar de enfocar os
reducionismos nas análises de alguns defensores da “guinada cultural”, Mike Savage
ressalta também os graves equívocos cometidos por aqueles que insistem em utilizar as
noções “costumeiras do conceito de classe” (provenientes de uma visão mais
“ortodoxa” do marxismo clássico). Criticando aqueles que se entrincheiram na defesa
do “status quo intelectual”, o autor faz um apelo aos historiadores do trabalho para que
repensem seus objetos, de maneira a enfrentar os novos desafios encetados pelas
abordagens mais recentes da historiografia.
Situando melhor as abordagens teóricas em torno do conceito de classe, Mike
Savage distingue dois diferentes campos de análise: o de origem marxista e aquele
tributário das abordagens de Max Weber. O primeiro enfatiza a questão econômica
como fundamento das discussões e situa a noção de classe no interior das relações de
produção. O segundo (de origem weberiana), enfatiza as relações de mercado e “adota
uma abordagem multifacetada da estratificação social, discernindo classe, estamento e
partido”27. De acordo com Savage, enquanto o primeiro campo torna as fronteiras
sociais de classe rígidas demais, o segundo seria excessivamente vago, tornando
praticamente impossível o delineamento claro de seus limites.
Sem descartar de forma imprudente a noção de classe, o autor citado pretende
“contornar os reducionismos” das duas abordagens anteriores. Para ele, é preciso
analisar a formação da classe operária no âmbito de suas complexas e contraditórias
relações internas. Só assim superaríamos a visão homogeneizadora de classe sem cair
no vazio teórico proposto por aqueles historiadores que só enxergam dissensões,
disjunções e disputas nas relações entre os trabalhadores. Para Savage, com tal
perspectiva, conseguiríamos analisar melhor a grande variedade de culturas e atitudes
no interior da mesma classe social, explorando “as complexas mediações entre a
diversidade dos fenômenos econômicos, culturais e sociais” 28. Pensamos que tal
perspectiva de análise está de acordo com as intricadas redes de relações que
conseguimos vislumbrar no seio da classe operária – assim como do movimento que a
constitui – no contexto analisado em nossa pesquisa. Sem embargo, é com essa
perspectiva que trabalhamos.

27
Ibid.; p. 31.
28
Ibid.; p.34.
28

Algumas questões metodológicas


Em nossa pesquisa, lidamos com um amplo e diversificado corpo documental.
Para além das peças, ficou claro que trabalhamos com diferentes tipos de documentos
oriundos da imprensa operária. Para tornar mais claras nossas explicações sobre os
procedimentos metodológicos adotados, tipificaremos nossas fontes de maneira um
tanto esquemática. O objetivo desse didatismo é preparar o leitor para entender melhor
alguns dos caminhos que nortearam nosso trabalho. No entanto, é importante ressaltar
que nem sempre o que se encontra em cada espécie de documento aqui tipificado
corresponde exatamente ao padrão que formulamos.
Primeiramente, é preciso lembrar que nós utilizamos um leque relativamente
grande de periódicos vinculados ao movimento operário. Ao todo, pesquisamos vinte e
oito jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro que surgiram em diferentes momentos do
período abarcado em nossa pesquisa. O critério para a escolha desses periódicos, em
detrimento de outros, tem a ver, é claro, com o viés ideológico por eles professado.
Escolhemos apenas periódicos que expressam um conteúdo abertamente libertário – seja
ele claramente anarquista (e/ou anarcossindicalista) ou simplesmente sindicalista
revolucionário. Ficaram de fora, portanto, todos os órgãos vinculados aos setores
reformistas, socialistas ou socialistas cristãos.
E o que encontramos no interior dos periódicos investigados? Basicamente
quatro tipos de documentos: anúncios, notícias, balancetes e artigos. Os anúncios de
festas foram os que apareceram em maior quantidade. Eles são importantes em nossa
pesquisa porque apresentam as programações e as datas das festas – além de mencionar,
muitas vezes, quem as organizou, onde elas seriam realizadas e o preço a ser cobrado
pelo ingresso.
Já as notícias veiculadas na imprensa operária referem-se às festas anteriormente
anunciadas. É importante frisar que nem sempre o periódico que divulgou a festa é o
mesmo que a comenta. As notícias são, em muitos momentos, os documentos mais ricos
em informações que interessam em nossa pesquisa. É por meio delas que muitas vezes
descobrimos os nomes dos amadores que atuaram nas festas anteriormente anunciadas.
Às vezes, conhecemos também, nas notícias, um pouco dos enredos das peças
encenadas naqueles eventos. No interior do conjunto constituído pelas notícias, temos
de considerar também as pequenas notas que, vez ou outra, aparecem na imprensa
29

operária informando sobre a fundação de um determinado grupo ou convocando os seus


membros para um ensaio ou uma reunião. No entanto, o problema é que tanto as
notícias como as pequenas notas são muito raras, sobretudo nos órgãos da imprensa
paulistana.
Temos um outro conjunto de documentos formado pelos preciosos balancetes.
Eles nos apresentam, por meio de cifras, as despesas e receitas das festas ou mesmo dos
próprios caixas dos grupos. Mais raros do que as notícias, eles são importantes porque
nos oferecem uma dimensão da situação financeira dos grupos, assim como do
“sucesso” (ou não) dos eventos nos quais os amadores que estudamos atuavam.
Por fim, os periódicos da imprensa operária oferecem-nos também alguns artigos
sobre arte e teatro. Por meio deles temos uma idéia geral do que os articulistas daquela
imprensa consideravam como padrão ideal para as peças do teatro que estudamos.
Analisando de perto esses comentários, temos uma noção mais clara das tensões e
aproximações que surgiam entre as exigências de alguns elementos da imprensa
operária e as práticas teatrais dos amadores que estudamos.
Diante de um corpo documental assim tão amplo, diverso e fragmentário,
tivemos de elaborar uma metodologia de trabalho que nos auxiliasse na difícil tarefa de
“reconstituir” as trajetórias dos grupos amadores. Começamos analisando somente os
anúncios. Em um documento aberto no Word, registramos todas as informações
relevantes que eles apresentavam: data da publicação do anúncio, data prevista para a
festa anunciada, local onde ela seria realizada, quem a organizava, os nomes das peças a
serem encenadas e, principalmente, o nome do grupo que atuaria. Em nossos
apontamentos, destacamos os nomes dos grupos para que, posteriormente, ao
encontrarmos outros registros deles, pudéssemos acrescentar, sempre em ordem
cronológica, as novas informações em seus respectivos espaços.
Em seguida, analisamos as notícias referentes às festas. A primeira tarefa a
cumprir era procurar, nos apontamentos já feitos para os anúncios, a qual das festas já
registradas se referia o conteúdo da notícia que analisávamos. Constatada a
reciprocidade entre anúncio e notícia, registrávamos, no campo específico da festa
anunciada, as informações que considerávamos relevantes naquela notícia, privilegiando
os raros indícios sobre os amadores e suas atuações. O mesmo procedimento nós
adotamos com os balancetes das festas: primeiro, procurávamos a qual festa se referia o
balancete; depois, assinalávamos no campo específico da referida festa as informações
30

mais significativas. Detalhe: só utilizamos balancetes que traziam informações relativas


às festas que apresentavam alguma atividade teatral. Quanto aos balancetes dos próprios
grupos, colocamo-nos cada qual no espaço destinado ao grupo ao qual ele se referia.
Tais apontamentos totalizaram setenta e seis páginas. E por que todo esse
trabalho prévio? Para que nós conseguíssemos ter uma idéia das trajetórias dos
diferentes grupos que analisamos. Por meio desses registros pudemos ter uma noção,
mesmo que não exata, de quando surgiram e desapareceram os conjuntos amadores com
os quais lidamos. Conseguimos também perceber quais eram os grupos mais divulgados
pela imprensa e quais os entrecruzamentos que eventualmente ocorriam entre eles -
incluindo aí as possíveis relações dos amadores de um grupo com as atividades de
outro.
No que se refere às análises das peças, recorremos a um procedimento
semelhante, porém utilizando dois tipos de apontamentos prévios: primeiro, os relativos
ao próprio texto da peça; segundo, os apontamentos referentes aos artigos e gravuras da
imprensa operária que se referiam às práticas sociais e às idéias-imagens com as quais o
conteúdo de uma determinada peça poderia (ou não) se articular. Por exemplo, para
analisar a peça Primeiro de Maio, de Pietro Gori, registramos nossos apontamentos
sobre a obra em um documento e, no outro, assinalamos todas as informações que
encontramos na imprensa operária sobre as comemorações daquela data e sobre as
concepções que os diferentes articulistas manifestavam a respeito dela – qual o sentido
político que cada um desejava atribuir àquela efeméride, quais as idéias-imagens a ela
associadas, os indícios de disputas pelo seu conteúdo simbólico etc.Depois, cotejamos o
conteúdo da peça com as informações provenientes das imagens e artigos veiculados
pela imprensa operária. A partir das articulações constatadas, construímos nosso relato.
Ou seja, confrontando os dois tipos de anotações, conseguimos ter uma idéia do grau de
aproximação (ou distanciamento) entre os conteúdos das peças e os dos artigos. O
mesmo procedimento foi adotado nas análises das diferentes peças com as quais
trabalhamos.
31

Os eixos
Antes de fazer um esboço dos capítulos de nossa pesquisa, teceremos algumas
considerações sobre a estrutura que a configura. Ou seja, primeiro apresentaremos os
eixos temáticos que delinearam nosso trabalho para depois abordar a divisão dos
capítulos.
A análise do papel que o teatro (como prática social específica) desempenhava
no interior do movimento operário anarquista (e/ou sindicalista revolucionário) -
ressaltando seu caráter popular e de propaganda - deve constituir o eixo central de nossa
pesquisa. Dedicaremos dois capítulos específicos exclusivamente à investigação do
teatro – e, por extensão, da arte - como prática social daquele movimento29. Para tanto, a
imprensa operária oferece-nos inúmeros anúncios, artigos sobre arte e teatro e notícias
sobre as encenações realizadas por alguns grupos teatrais.
Por meio dos anúncios, podemos acompanhar (mesmo que de forma descontínua
e fragmentária) as trajetórias dos grupos de amadores que atuavam em São Paulo e no
Rio de Janeiro. Muito nos auxiliará nessa investigação das trajetórias uma importante
obra de Edgar Rodrigues intitulada Os Companheiros. Nela, o memorialista oferece
uma pequena biografia de alguns militantes anarquistas que ele considerava importantes
para o movimento. Muitos desses militantes atuaram nos grupos de teatro com os quais
trabalhamos. Ao todo, pudemos identificar, na obra do autor citado, aproximadamente
cem artistas amadores, muitos dos quais, de alguma forma, irão compor a nossa
narrativa.
Já os artigos e notícias da imprensa anarquista permitem-nos perceber duas
coisas: primeiramente, como os órgãos daquela imprensa encaravam a prática social em
torno do teatro (qual deveria ser sua função, qual o teor ideológico atribuído a ela, como
ela deveria se diferenciar da prática engendrada pela produção “burguesa”, quais as
concepções estéticas apregoadas etc.); em segundo lugar, como os grupos amadores se
relacionavam com aquela (s) concepção (ões) veiculada (s) pela imprensa operária - até
que ponto aqueles grupos estavam ou não de acordo com essa (s) concepção (ões). A
aproximação (ou não) desses grupos em relação àquela (s) concepção (ões) transparece
no próprio tom utilizado pelos articulistas quando comentam obras e encenações. Ficar
atento a tais comentários permitir-nos-á enfocar as freqüentes tensões e divergências

29
O fato de dedicar a esse eixo central dois capítulos próprios não exclui a sua recorrência nos demais capítulos –
caso contrário, não seria ele um “eixo central”.
32

(assim como as aproximações) em torno das concepções de arte e teatro. Analisando


detidamente esses comentários podemos perceber também quais eram as expectativas
dos diferentes sujeitos que atribuíam à atividade teatral alguma centralidade.
Paralelamente, analisaremos, por meio das peças com as quais trabalhamos, de
que forma aquela prática específica (o teatro) articulava-se com outras práticas sociais
importantes do movimento anarquista. Nessas abordagens, as peças que compõem o
corpus da pesquisa adquirem uma importância central. É a partir delas que levantamos
questões e sugerimos hipóteses; são elas que suscitam indagações e problemas que, por
meio do cotejamento com os periódicos da imprensa operária, tentaremos enfrentar.
Enfim, podemos dizer que nossa pesquisa desenvolve-se no entrecruzamento de
diferentes práticas sociais que, na perspectiva aqui adotada, têm como eixo central as
atividades teatrais, tanto no que tange à produção quanto no que se refere à encenação
propriamente dita30. As conexões entre o eixo central (práticas teatrais) e as
ramificações (práticas às quais as peças se referem) são estabelecidas por meio da
análise das fontes oriundas da imprensa operária.
Ao estabelecer tais relações, no entanto, não são poucas as dificuldades
metodológicas que enfrentamos. Como todo historiador, devemos tomar o cuidado de
não associar mecanicamente discursos e práticas. Segundo Roger Chartier, tal precaução
é fundamental no trabalho de todos aqueles que “colocam no centro de seu método as
relações que mantêm os discursos e as práticas sociais”. Ainda para o autor citado, tal
“empreendimento é difícil, instável, situado à beira do vazio” 31. É óbvio que a análise
da articulação entre enunciados e condutas encerra um grande desafio para o
historiador. O importante nesse caminho talvez seja não segmentar de forma exagerada
as duas instâncias mencionadas. Discursos e práticas, se estão articulados, não se
constituem em esferas absolutamente distintas (apesar de não serem exatamente iguais).

30
Toda encenação envolve recursos cênicos. Com relação a estes últimos, cabe aqui ressaltar uma dificuldade
encontrada ao longo de toda a pesquisa: a falta incurável de informações para além do próprio texto da peça. Os
principais elementos de que dispomos para enfocar a encenação propriamente dita são aqueles apresentados pelos
opúsculos analisados. São extremamente escassas quaisquer informações adicionais a respeito de cenários e figurinos,
por exemplo. Os poucos dados complementares de que dispusemos para a análise desses recursos provêm de
balancetes publicados ocasionalmente na imprensa operária. Estes, no entanto, na maioria das vezes, especificam
apenas o total gasto para cada um desses itens. De forma bem genérica e lacônica, temos somente a vaga noção do
que representava, em termos financeiros, a parte cênica no interior de nossas festas. Foi também extremamente difícil
conceber, para cada peça encenada, as dimensões do palco e a posição dos atores sobre ele. Para uma análise sobre as
relações entre texto escrito e encenação – assim como sobre as circunstâncias cênicas -, ver Williams, Raymond.
Drama em Cena.Editora Cosacnaify, São Paulo, 2009; p.36.
31
Chartier, Roger. À beira da falésia: a História entre incertezas e inquietudes. Porto Alegre, Editora
Universidade/UFRGS, 2002; p.7.
33

No movimento que vai do enunciado à conduta (e vice-versa) é que se estabelecem as


relações sociais; nas complexas articulações entre discursos e práticas é que o tecido da
história é urdido.
Não obstante suas evidentes dificuldades, pensamos que o desafio de encarar as
complexas relações entre discursos e práticas constitui um caminho necessário – afora
para os que trabalham numa perspectiva de análise meramente “estrutural”. Para aqueles
que, pelo contrário, buscam ir além do texto “em si” (se é que este existe em algum
lugar!), o desafio está colocado e deve ser encarado de frente. Fica aqui nosso
compromisso de levá-lo adiante.

Os capítulos
Nossa pesquisa está dividida em duas partes. A primeira abarca dois capítulos e
adota como fontes preferenciais os diferentes órgãos da imprensa operária com os quais
lidamos. Em nosso primeiro capítulo, Caminhos e descaminhos do teatro amador,
tentamos “reconstituir” as trajetórias de alguns grupos de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Tarefa complicada, uma vez que, como vimos, os vestígios encontrados sobre eles na
imprensa operária são descontínuos e excessivamente fragmentários. No entanto, mais
importante do que essa pretensa “reconstituição” é enfocar os obstáculos enfrentados
pelos amadores em suas atividades teatrais, assim como o caráter errante dos grupos por
eles constituídos.
No capítulo dois, intitulado As concepções de arte na imprensa operária,
analisaremos os artigos relativos ao teatro e à arte em geral, colocando-os em
articulação com os anúncios e notícias que tratam das peças encenadas e das atuações
dos amadores em palco. Buscaremos ainda as possíveis matrizes ideológicas que os
articulistas da imprensa operária utilizavam para defender suas próprias concepções
estéticas. Faremos também, quando necessário, o confronto entre as concepções de arte
expressas por tais articulistas e aquelas já incorporadas pelos padrões estéticos
hegemônicos. Só assim conseguiremos dimensionar melhor a própria noção de arte
cultivada pelos militantes com os quais lidamos.
A segunda parte de nossa pesquisa também é constituída por dois capítulos.
Aqui, nossas fontes centrais são as peças do teatro anarquista. São elas que suscitam
indagações e nos levam à busca das articulações entre seus conteúdos específicos e o
universo social no interior do qual elas eram encenadas. O capítulo três, por exemplo,
34

tem como eixo central a análise da peça Primeiro de Maio, de Pietro Gori. Por meio
dessa obra, pudemos levantar questões sobre a enorme quantidade de significados
simbólicos que os militantes anarquistas (e/ou sindicalistas revolucionários) conferiam
àquela data. Confrontando as idéias-imagens da peça com aquelas veiculadas pela
imprensa operária, identificamos entre elas relações bem próximas. Além disso,
debruçando-nos sobre o imaginário em torno do 1º. de Maio, percebemos, em meio às
comemorações daquela data, a constituição de um complexo campo de disputas pelo
simbólico; campo este que encerrava conflitos por vezes acirrados e de conseqüências
efetivas. No final de nossa pesquisa, há também um anexo em que abordamos a obra Ao
Relento, de Afonso Schmidt. Isso porque, como já vimos nesta Introdução, ela apresenta
algumas semelhanças não desprezíveis com a obra de Pietro Gori.
Por fim, nosso quarto capítulo será dedicado à análise de duas comédias de Neno
Vasco: Greve de Inquilinos e O Pecado de Simonia. A primeira, em sintonia íntima com
a agitação de inquilinos no Rio de Janeiro, apresenta um enredo que se articula
claramente com as práticas sociais em torno da Liga de Inquilinos que lá surgiu. A
segunda, uma bem-humorada sátira anticlerical, muito nos diz sobre os valores e
concepções do anticlericalismo libertário no Brasil da época. Ela enseja uma abordagem
das práticas sociais anticlericais organizadas pelos mesmos militantes operários que
atuavam nos órgãos da imprensa operária, nos sindicatos e nas ligas de resistência de
São Paulo e do Rio. Na análise desta última peça, voltaremos um pouco as nossas
atenções para duas outras obras do teatro anarquista : Electra, de Perez Galdós e A
Bandeira Proletária , de Marino Spagnolo. Tais associações não são fortuitas: elas se
referem às interlocuções que pudemos identificar entre os respectivos conteúdos das
peças.
Duas palavras sobre as opções ortográficas de nossa pesquisa. Primeiro, nas
transcrições de documentos, preferimos adaptar a escrita da época aos padrões
ortográficos atuais. No entanto, no que se refere aos nomes dos grupos amadores e de
associações da classe operária da época, assim como dos periódicos com os quais
lidamos, resolvemos manter a grafia original. Sendo assim, por exemplo, o Grupo
Dramático 1º. de Maio foi em nossa pesquisa registrado como Grupo Dramatico 1º. de
Maio, pois esta é a forma como ele é mencionado nos anúncios e notícias. A Liga das
Artes Gráficas, do Rio de Janeiro, será registrada em nossa pesquisa também com a
grafia original: Liga das Artes Graphicas.
PARTE I

PRÁTICAS TEATRAIS E CONCEPÇÕES DE ARTE


36

Nesta primeira parte de nossa pesquisa, o teatro, como prática social do


movimento operário, é enfocado diretamente. Em primeiro lugar, tentaremos fazer uma
“reconstituição” das trajetórias dos diferentes grupos de amadores libertários que
atuaram em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em meio a essa investigação, buscaremos
conhecer melhor quem eram aqueles amadores – quais os grupos a que eles pertenciam,
quais as suas profissões e as possíveis atividades que exerciam no interior do
movimento operário. Tentaremos também analisar os trânsitos desses amadores entre os
diferentes grupos daquele teatro. Não poucas vezes, perceberemos que os mesmos
amadores atuavam em grupos diferentes que existiam sucessiva ou concomitantemente.
Analisaremos de perto algumas das dificuldades enfrentadas por esses grupos
para manter suas atividades. Como poderemos notar, muitos deles tiveram uma vida
curta; outros, mesmo enfrentando dificuldades orçamentárias, conseguiram sobreviver
por um tempo maior.
Na medida do possível, tentaremos dar destaque às festas organizadas por esses
grupos, analisando de perto suas repercussões nos diferentes órgãos da imprensa
operária.
No segundo capítulo, daremos uma atenção maior aos artigos da imprensa
operária que tratam do teatro e, por extensão, da arte em geral. Nosso objetivo será
analisar de perto as diferentes concepções de arte e teatro manifestadas pelos
articulistas daquela imprensa. Para tanto, faremos uma abordagem das diferentes
matrizes ideológicas às quais os militantes que estudamos recorriam para manifestar
seus pontos de vista e suas expectativas.
Em meio à abordagem que faremos, buscaremos indícios de possíveis tensões
e/ou aproximações entre as expectativas daqueles articulistas e as do público que
freqüentava as festas operárias. Analisaremos também inúmeras críticas daqueles
articulistas às encenações de diferentes grupos amadores que atuavam naquelas festas.
Só assim conseguiremos dimensionar melhor a própria noção de arte cultivada pelos
militantes com os quais lidamos.
37

CAMINHOS E DESCAMINHOS DO TEATRO AMADOR

1.1. Os grupos relâmpagos – poucas informações


Findava já o ano de 1920. Nos grandes centros urbanos, as greves que agitaram
o biênio de 1917-19 ainda se sucediam, manifestando o descontentamento da classe
trabalhadora diante da chamada “questão social”. Nos salões das festas operárias, a
atividade teatral também era intensa. No dia 18 de dezembro, no Palácio Moderno,
situado na Rua da Mooca, o Grupo Solidariedade subiu ao palco para encenar o drama
Militarismo e Miséria, de autoria controversa 32. A festa, anunciada em A Plebe no
mesmo dia 18, seria em favor de Edgard Leuenroth, o ex-redator daquele periódico que
então se encontrava enfermo. Dias depois, em 1º. de janeiro de 1921, ainda entre as
páginas de A Plebe, apareceu um balancete da referida festa. Nele descobrimos quem
organizara o evento: o próprio Grupo Solidariedade, que atuou na parte cênica. De
acordo com o balancete, o evento fora “coroado de pleno êxito”. De fato, o registro
apresenta um saldo positivo. Os organizadores arrecadaram 846$300, dos quais
609$700 provinham da venda de ingressos. Mas nem tudo era “entrada” naquele
balancete. Por meio dele, notamos que o grupo teve de arcar com não poucas despesas.
Ao todo foram gastos 552$900. Deste montante, quase 20% (110$000) destinava-se ao
“aluguel dos cenários”. A maior parte dos gastos, no entanto, ficou com o aluguel do
salão: 220$000 (aproximadamente 45% de todas as despesas) Subtraindo do campo das
“entradas” o total de gastos supramencionado, o evento apresentou um saldo líquido de
293$400, um bom resultado pecuniário para os padrões das festas operárias.
Embalado pelo “pleno êxito” do evento acima mencionado, o Grupo
Solidariedade iniciou o ano de 1921 preparando uma outra festa. Desde a segunda
quinzena daquele ano, o mesmo periódico A Plebe divulgou regularmente um novo
anúncio do grupo. Por meio dele, sabemos que, desta vez, a mobilização dos abnegados
amadores seria em benefício dos “companheiros” Conrado Bernaca e Tadeu Galo.
Estes, segundo o recorrente anúncio, encontravam-se “em sérias dificuldades em

32
Ver catálogo de reproduções anexado em Alves de Lima, Mariângela e Vargas, Maria Thereza. Teatro
Operário na Cidade de São Paulo, Laboratório do Idart, 1980, p. 174. Nele a peça Militarismo e Miséria
é atribuída a Marino Spagnolo. Já para Antonio Arnoni Prado a obra é de autor anônimo. Ver Prado,
Antonio Arnoni. Trincheira, Palco e Letras; São Paulo, Cosacnayf, 2004; p.160. O opúsculo manuscrito
recolhido pelas duas pesquisadoras do extinto Idart de fato não indica autoria alguma. No entanto, a peça
apresenta não poucas semelhanças de estilo com uma outra obra, esta sim de Marino Spagnolo: A
Bandeira Proletária. Analisaremos um pouco desta última peça no capítulo 4.
38

conseqüência de enfermidade”33. A nova festa estava prevista para ocorrer em 19 de


fevereiro no salão da Sociedade Italiana, situado também na Rua da Mooca, nº. 508
(“em frente ao Cotonifício Crespi”). A programação da festa vinha recheada de atrações
teatrais. Primeiramente, subiria ao palco a peça O Filho da Revolução, de Ítalo Benassi,
um amador que já escrevera a obra Na Catedral, encenada anteriormente pelo Grupo
Filodramatico Libertas34. Na seqüência, seria representada a peça Os Lobos, de autoria
de Lino Brasil. As duas, é importante frisar, estavam “sob a direção do sr. Francisco
Crusco”. Na terceira parte do espetáculo, antecedendo o baile, subiria ao palco uma
“engraçadíssima comédia em italiano”.

Imagem 1 – anúncio publicado em A Plebe no dia 15.01.1921

33
Ver A Plebe, edições de 15.01.1921, 29.01.1921, 05.02.1921, 12.02.1921 e 19.02.1921. O mesmo
anúncio foi publicado, em italiano, no periódico Alba Rossa, da mesma época.
34
Ver anúncios publicados em A Plebe nos dias 17 de julho e 21 de agosto de 1920.
39

Em 1º. de março de 1921, quase dez dias depois da data marcada para o evento,
apareceu no periódico A Vanguarda35 um anúncio que, a partir de então, seria
apresentado com uma freqüência ainda maior 36 do que aquele divulgado por A Plebe.
Intitulado “Grupo Filodramatico `Solidariedade´”, ele apresenta uma espécie de
introdução, por meio da qual tomamos conhecimento de que se trata da mesma festa
anunciada antes (aquela prevista para o dia 19 de fevereiro). Segundo o novo anúncio, o
evento anteriormente divulgado em A Plebe teve de ser adiado. Isso porque a diretoria
da Sociedade Italiana negou o salão da Rua da Mooca apenas quatro dias antes do
evento e os organizadores não conseguiram arranjar um outro espaço em tempo hábil.
De acordo com o autor do novo anúncio, o grupo já havia passado “procuração a um
advogado afim de obter indenização”. Ele afirmava ainda que os ingressos do festival
anterior seriam válidos para este também. Agora, a festa seria realizada no salão Itália
Fausta, situado na Rua Florêncio de Abreu, nº. 45. A programação do espetáculo
continuava a mesma. No entanto, a novidade aqui é que a comédia em italiano é
nomeada: Un Uomo D´Affari. O grupo pedia para que os interessados em ajudar
enviassem prendas para a Rua Visconde de Laguna, nº. 5. Isso porque, como em outros
eventos do gênero, nos intervalos da programação ocorreriam leilões para angariar
fundos.

Imagem 2 – trecho de anúncio publicado em A Vanguarda no dia 01.03.1921

35
Houve dois periódicos intitulados A Vanguarda no período que estudamos. O primeiro surgiu no Rio de
Janeiro no ano de 1911 e o segundo foi publicado em São Paulo, em 1921. Evidentemente, utilizamos
aqui as informações deste último.
36
Ver A Vanguarda dos dias 01.03.1921, 02.03.1921, 05.03.1921, 08.03.1921, 09.03.1921, 10.03.1921 e
12.03.1921.
40

É preciso atentar para o que dizia a nota anexada ao novo anúncio. Segundo ela,
o Grupo Solidariedade acabara de receber uma carta do “companheiro Conrado
Bernaca, um dos interessados no benefício”. Na missiva, ele dizia que já não precisava
mais da ajuda oferecida, uma vez que se encontrava “em vias de normalização de sua
situação”. Ou seja, em meio às inúmeras atribulações, a espera foi tanta que, no
momento, Bernaca estava já em franco processo de convalescimento, abrindo mão do
auxílio em favor do outro enfermo, Tadeu Galo.
Quinze dias depois do evento, portanto em 27 de março de 1921, o mesmo
periódico A Vanguarda divulgou o balancete da festa insistentemente anunciada. Desta
vez, a iniciativa dos amadores não obteve os resultados pecuniários desejados. “Apesar
da boa vontade e do esforço dos camaradas que fazem parte deste grupo [o
Solidariedade]”, a festa foi deficitária. Dentre as despesas arroladas, é preciso ressaltar
que os amadores gastaram inicialmente 50$000 de sinal para alugar o salão da Rua da
Mooca - aquele da Sociedade Italiana que desmarcou o evento em cima da hora. Já pelo
salão Itália Fausta, foram gastos mais 130$000 de aluguel. Duas damas para o palco 37
foram “pagas duplamente” (subentende-se: duas para a primeira festa e duas para a
segunda). Ao todo foram gastos 468$200. No campo das entradas, temos 144$000 de
ingressos vendidos antecipadamente. Alguns ingressos foram vendidos na porta. Com
eles o grupo arrecadou 54$000. Para cobrir as despesas da festa, os amadores entraram
ainda com 80$000 já disponíveis em seu caixa. A somatória de toda a renda, incluindo a
quantia disponível no caixa, totalizou um saldo bruto de 336$000. Descontadas as
despesas, temos um déficit de 132$200. Trágico resultado pecuniário para um evento
exaustivamente divulgado e que contava com uma bem elaborada programação. O pior
da história é que, desde então, não se tem mais notícia na imprensa operária do Grupo
Filodramatico Solidariedade, cujo próprio nome indica seus abnegados propósitos.
Sabemos apenas que Francisco Crusco, diretor das duas primeiras peças encenadas
nessa última festa, dirigiria logo em seguida um outro espetáculo, desta vez organizado

37
Menções aos gastos com as “damas para o palco” são freqüentes nos balancetes que analisamos.
Impossível saber exatamente qual o papel desempenhado pelas damas nas festas operárias. Isso porque as
notícias publicadas após os eventos nada dizem sobre elas. Mas, como as referências a elas são constantes
nos balancetes, certamente tais personagens eram consideradas importantes nas festas que estudamos.
41

pela União dos Operários em Fábricas de Tecidos38. Quanto ao enfermo “companheiro


Tadeu Galo”, nada mais sabemos.
Obviamente, a escolha do exemplo citado acima não foi fortuita. A atribulada
trajetória do Grupo Filodramatico Solidariedade é um caso emblemático que ilustra bem
as incertezas que envolviam as atividades do teatro amador. Segundo Edgar Rodrigues,
muitos “grupos formavam-se e desapareciam após representar uma ou duas peças” 39. A
crer nas escassas informações da imprensa operária paulistana, o próprio Grupo
Solidariedade apresentou também uma vida bem efêmera. Como vimos, o primeiro
anúncio que pudemos encontrar registrando seu nome fora aquele publicado em A Plebe
no dia 18 de dezembro de 1920, anunciando a festa em benefício de Edgard Leuenroth.
O que aconteceu com o Grupo Solidariedade depois da deficitária festa analisada?
Impossível saber.
Vários outros grupos supostamente efêmeros apareceram em nossa pesquisa.
Citaremos apenas os grupos relâmpagos que possuíam nomes próprios. Portanto, ficam
excluídos de nossa lista todos os grupos anônimos que apareciam vinculados aos órgãos
da imprensa operária ou aos sindicatos e ligas de resistência que surgiam na época.
Também não serão aqui mencionados os grupos que atuavam atrelados aos centros de
cultura ou aos comitês de auxílio a presos e flagelados. Só mencionaremos na relação
abaixo os grupos que nomeadamente consideravam-se como “dramáticos” (ou
“filodramáticos”). E por que excluímos aqui os grupos anônimos? Por uma simples
razão: como eles eram anônimos, é impossível buscar os rastros de suas próprias
trajetórias. Ou seja, não conseguimos ter a mínima noção sobre quando surgiram,
quando deixaram de atuar, em quais outras possíveis festas atuaram etc. Isso não
significa que esqueceremos os grupos anônimos para sempre. Até porque, se eles não
criaram um nome próprio, nem por isso suas atividades deixam de indicar quais eram
seus interesses, compromissos e filiações. Além do mais, alguns anúncios e notícias
oferecem informações isoladas sobre quem eram e como atuavam determinados
amadores desses grupos. Por tudo isso, levaremos em consideração suas atividades ao
longo de toda a nossa pesquisa. Só não ousaremos acompanhar suas trajetórias - as

38
Ver anúncio publicado em A Plebe no dia 23.04.1921. Nele temos a informação de que Francisco
Crusco dirigiu a peça O Mártir do Ideal, que seria pela primeira vez representada naquele mesmo dia 23
de abril.
39
Ver Rodrigues, Edgar. O Anarquismo na Escola, no Teatro, na Poesia. Edições Achiamé Ltda, Rio de
Janeiro, 1992; p.111.
42

fontes não seriam um porto seguro. Sem uma mínima noção sobre a longevidade dos
grupos anônimos, devemos forçosamente excluí-los da relação abaixo.
Esqueçamos por enquanto os anônimos, voltemos aos grupos relâmpagos. O
curioso é que quase todos eles são de São Paulo. Chamamos de grupos relâmpagos
aqueles que tiveram uma curta existência ou simplesmente foram pouco divulgados na
imprensa operária. Este é o caso da Societá Filodrammatica Andrea Maggi, que
pertenceu à antiga cepa de filodramáticos paulistanos de língua italiana. Seu nome é
uma referência direta ao ator e diretor italiano homônimo, indicando assim uma nítida
filiação do grupo às atividades dramáticas provenientes da Itália. O grupo atuou em
festa organizada pela Lega di Resistenza fra Capellai em 9 de agosto de 190240.
Pertencente ao mesmo grupo de filodramáticos italianos, temos o Grupo
Filodrammatico Donna Elvira C. Milli41. O anúncio em que seu nome aparece
registrado foi publicado em 22 de novembro de 1903 no periódico O Amigo do Povo,
um dos mais antigos jornais libertários de São Paulo. Poucos meses antes, na edição de
5 e 6 de setembro de 1903, A Lanterna anunciara a estréia do Grupo Dramatico
Giovanni Bovio. A escolha deste nome revela-nos muito sobre a identidade que o grupo
procurava criar para si. Político republicano radical e filósofo italiano, Giovanni Bovio
foi uma figura central do Risorgimento. Morreu no começo de 1903, mesmo ano em que
apareceu, em São Paulo, esse grupo filodramático com seu nome. Sem dúvida, trata-se
de uma homenagem clara a tal personagem proeminente. O espetáculo em que o Grupo
Giovanni Bovio atuaria estava marcado para o dia 26 daquele mesmo mês de setembro.
Se ele voltou a encenar nos palcos de São Paulo, não pudemos saber - nenhum outro
vestígio de sua atuação foi por nós encontrado.
Também só encontramos um único registro de atuação do Centro Ricreativo e
Drammatico Minerva. O indício de que este grupo atuou em São Paulo desponta em
anúncio publicado no periódico La Battaglia do dia 2 de fevereiro de 1907. Nele
aparece uma programação em que consta a encenação da peça Primo Maggio, que será
analisada mais de perto em nossa pesquisa.
Dentre todos os órgãos da imprensa operária do período, o campeão em anúncios
de grupos relâmpagos foi A Plebe. Conseguimos reunir um conjunto de dez grupos
aparentemente efêmeros divulgados por este periódico entre os anos de 1919 e 1923. O
40
Ver O Amigo do Povo do dia 2 de agosto de 1902.
41
Provavelmente, seu nome era Grupo Filodrammatico Donna Elvira Camilli. Veremos mais adiante por
quê.
43

primeiro caso a ser mencionado é o do Grupo Dramatico Cultura Moderna, nome que
indica uma clara afinidade com o pensamento e os usos culturais cultivados pelos
núcleos libertários da época que estudamos. Obtivemos apenas um anúncio registrando
seu nome. Ele foi publicado naquele periódico no dia 9 de agosto de 1919. Após essa
data, temos somente duas pequenas notas convocando os membros do grupo para uma
reunião. Ambas foram publicadas naquele jornal em outubro do mesmo ano de 1919.
Um pouco depois, o nome do Gremio Dramatico Luzitano aparece no mínimo
três vezes em A Plebe42. Tratava-se de um anúncio de uma festa organizada pela União
dos Operários Metalúrgicos e prevista para ocorrer no dia 19 de junho de 1920. Nela o
grupo encenaria a peça O Veterano da Liberdade, “drama em três atos, de caráter
social”. Provando que, de fato, “nem tudo era italiano” 43 em São Paulo, o Grupo
Luzitano aponta para uma clara filiação portuguesa de seus integrantes.
Dois dias antes, em 17 de julho de 1920, aparecera o primeiro indício que
pudemos encontrar do Grupo Filodramatico Libertas, já citado acima. O anúncio previa,
para uma data não definida do “próximo mês” (no caso, agosto), uma festa em benefício
de A Plebe. Nela, o espetáculo estaria nas mãos do “hábil e conhecido ensaiador sr.
Francisco França”. Devemos frisar que, no mês seguinte, em 21 de agosto de 1920, um
anúncio muito parecido (com a mesma programação) apareceu no mesmo jornal. Ele
informava sobre a realização de uma festa que, não por acaso, também seria em
benefício de A Plebe. O evento foi previsto para uma data não definida de setembro - ao
que tudo indica, aquela mesma festa anunciada em 17 de julho foi protelada. Como não
encontramos nenhum outro anúncio apresentando uma data específica para a realização
do evento, não podemos nem sequer dizer que ele de fato ocorreu. Quanto ao nome do
grupo, parece desnecessário dizer que ele é uma clara referência aos propósitos
libertários que seus membros provavelmente defendiam.
Não menos fugidios do que os anteriores são os grupos dramáticos Francisco
Ferrer (homenagem ao educador libertário espanhol) e Joaquim Dicenta (referência ao
dramaturgo espanhol morto em 1917), também divulgados por A Plebe – o primeiro em
anúncio publicado no dia 21 de fevereiro de 1920 e o segundo em 13 de novembro
daquele mesmo ano.

42
Ver A Plebe dos dias 29.05.1920, 12.06.1920 e 19.06.1920.
43
Uma análise mais profunda sobre alguns agrupamentos humanos de São Paulo que não provinham da
Itália aparece em Santos, Carlos José Ferreira dos. Nem Tudo era Italiano – São Paulo e Pobreza. São
Paulo: Annablume/Fapesp, 2003.
44

Ainda na Paulicéia, vemos surgir o Grupo Dramatico Amor e Mocidade, que em


20 de novembro de 1920 realizou uma festa em benefício de um operário paralítico 44.
Os Modestos, grupo dramático que atuou em um evento em favor do periódico A Obra,
teve seu anúncio publicado em A Plebe entre agosto e setembro de 1920. Assim como
os anteriores, desapareceu da imprensa sem deixar outros vestígios. Seu nome muito
nos diz sobre o caráter humilde e despojado que seus integrantes queriam conferir ao
grupo. Como veremos no capítulo 2, a afirmação da modéstia deste grupo está em
sintonia com a aversão dos libertários em geral frente à afetação esnobe de alguns
artistas consagrados.
No mesmo ano de 1920, o grupo relâmpago Pierrot gentilmente prestou o seu
concurso em festa organizada por “dois companheiros” em benefício do Grupo Editor
45
“Neno Vasco” . Ainda dentre os grupos divulgados por A Plebe, devemos citar o G.
T. Rosa Vermelha (alusão ao grande símbolo do socialismo internacional), cujo anúncio
foi publicado naquele periódico em 26 de agosto de 1922, e o Grupo Dramático 1º. de
Maio. Este, ao contrário de seu homônimo carioca (muito mais divulgado), aparece em
um único anúncio que pudemos encontrar em edição de 24 de fevereiro de 1923. No
capítulo 3, analisaremos mais de perto a força simbólica que o 1º. de Maio possuía no
imaginário anarquista da época. Só então entenderemos melhor a atração que a data
exerceu sobre alguns dos amadores com os quais lidamos.
Encontramos apenas dois casos de grupos relâmpagos cariocas. Assim como
seus congêneres paulistas, eles também deixaram vestígios isolados na imprensa
operária da época. O primeiro é o Grupo Dramatico 13 de Outubro, título que se refere à
data em que o educador libertário Francisco Ferrer foi fuzilado na Espanha. O periódico
A Lanterna publicou, no dia 3 de fevereiro de 1912, uma pequena nota informando
sobre a criação deste “núcleo de bons companheiros”. Como não encontramos anúncios
posteriores registrando seu nome, é provável que ele não tenha de fato atuado. Este é o
caso também da Agremiação Dramatica Idéia Livre (ADIL). Sabemos sobre sua
fundação por meio de uma notícia publicada em 1º. de julho de 1913 no periódico
carioca A Voz do Trabalhador. Como não encontramos nenhum outro registro desse
grupo, é provável que ele nem sequer tenha subido ao palco. No entanto, por meio dessa
notícia, descobrimos que um dos integrantes centrais dessa transitória agremiação era

44
Ver A Plebe do dia 13 de novembro de 1920.
45
Ver A Plebe do dia 27 de novembro de 1920.
45

Pascoal Gravina, um italiano radicado no Rio de Janeiro a quem, segundo a nota,


deveriam ser enviadas as correspondências destinadas ao grupo. Operário da construção
civil naquela cidade, ele era um amador bastante influente no teatro anarquista carioca.
Acompanhando os anúncios da imprensa operária, descobrimos que Pascoal Gravina era
um membro importante do Grupo Dramatico de Cultura Social, também fundado em
1913 e bastante ativo naquele ano e no seguinte 46. Mais tarde, já em 1925, segundo
Edgar Rodrigues, ele fez parte do Grupo Renovação Teatro e Música, também do Rio 47.
Assim como o já citado Cultura Moderna, tanto o Idéia Livre quanto o Cultura Social
adotam nomes que igualmente sugerem uma imersão no ideário anarquista da época.
Por que razão a maioria dos grupos relâmpagos por nós identificados pertenceu a
São Paulo? Seria porque, em nossa desvairada Paulicéia, as condições de atuação dos
amadores eram mais difíceis do que aquelas existentes no Rio? Ou as poucas
informações que temos sobre os grupos de São Paulo simplesmente expressam o espaço
relativamente secundário que a imprensa operária desta cidade dedicava às atuações
teatrais?

1.2. São Paulo e Rio de Janeiro – diferentes repercussões na imprensa operária


Em nossa Introdução, já mencionamos o surpreendente desnível entre São Paulo
e Rio de Janeiro no que diz respeito às repercussões do teatro anarquista. Se a imprensa
operária paulistana era acanhada na cobertura das atividades teatrais dos amadores, a
carioca, por sua vez, era bem mais generosa em informações. Por que isso ocorria? Ou
seja, por que a imprensa operária do Rio dava um destaque maior às atividades do
teatro amador daquela cidade? E a sua congênere paulistana, por que nos deixou
indícios bem mais fragmentários e obscuros sobre as atuações dos grupos de São Paulo?
Não temos a mínima pretensão de responder cabalmente às questões acima. No
entanto, cremos ser possível aventar alguma hipótese minimamente plausível que nos
ajude a encará-las de frente. Para tanto, devemos voltar nossas atenções para os
diferentes ambientes culturais em que se inseriam os amadores das duas cidades. É
claro que a atmosfera cultural de cada centro urbano influenciou, de maneira específica,
não apenas as atividades teatrais, como também suas ressonâncias nos órgãos da
46
É possível que, naquele mesmo ano de 1913, Pascoal Gravina tenha abandonado o projeto da ADIL
para ingressar no Grupo Dramatico de Cultura Social. Ou então, pode ser que o primeiro tenha se fundido
com o segundo ao longo daquele ano. Impossível saber... Qualquer resposta definitiva para o caso não
passa de conjectura que carece de respaldo empírico sólido.
47
Ver Rodrigues, Edgar. Os Companheiros – vol. 5. Editora Insular Ltda, Florianópolis, 1998; p.29.
46

imprensa operária. Certamente, naquele início do século XX, constituíram-se, nas duas
cidades, diferentes gramáticas perceptivas. Estas, de maneira desigual, configuraram
nosso entendimento sobre as atividades dos grupos com os quais lidamos. Sendo assim,
pensamos que o mais importante não é saber o quanto os periódicos das duas cidades
expressavam “de verdade” o que acontecia na vida dos grupos amadores. O que nós
tentaremos aqui é compreender por que alguns órgãos da imprensa operária carioca
davam aos grupos amadores um destaque maior do que o observado na imprensa
paulistana. Para tanto, devemos ficar atentos para o significado desse tratamento
diferenciado no interior dos discursos veiculados pelos periódicos das duas cidades. A
ênfase dada por uns e a relativa falta de atenção manifestada por outros expressam
diferentes atribuições de significados às práticas concretas do teatro amador que
estudamos. Antes de tentar “reconstituir” essas práticas, devemos encarar o que
significavam essas diferentes formas de tratamento nas representações produzidas pela
imprensa das duas cidades.
No entanto, devemos fugir da perigosa cilada de achar que tudo é mero discurso
e que, portanto, as práticas sociais dos grupos que estudamos importariam menos do que
o que se diz a seu respeito. Se acreditarmos que, por trás dos vestígios veiculados pela
imprensa, há de fato um conjunto de práticas às quais eles se referem, então devemos,
nos desvãos da palavra enunciada, procurar indícios das experiências concretas dos
grupos que resolvemos pesquisar. Se fôssemos nos fiar apenas no grau de repercussão
que o teatro amador obteve na imprensa operária, concluiríamos, de forma simplória,
que suas atividades foram mais intensas no Rio do que em São Paulo. No entanto, uma
análise atenta de nossas fontes mostra que tal dedução é não apenas temerária, como
também incorreta. Isso porque, não obstante a escassez incurável de notícias sobre as
atuações dos grupos paulistanos, encontramos, por outro lado, uma quantidade enorme
de anúncios divulgando as programações de suas atividades. Podemos inclusive afirmar
que o número de festas operárias com programação teatral anunciadas pela imprensa
paulistana é maior do que o veiculado pela imprensa carioca. No entanto, o que nos falta
nos jornais de São Paulo são os preciosos comentários que, depois das festas, alguns
periódicos do Rio faziam, com mais freqüência, sobre as atuações dos amadores.
Novamente, por que isso acontecia?
Como salientamos acima, parte da resposta para essa questão será suscitada pela
análise dos diferentes ambientes culturais nos quais os amadores de São Paulo e do Rio
47

atuavam. Segundo David José Lessa Mattos, no início do século XX, “a arte do
espetáculo teatral em São Paulo não era uma diversão ampliada, não ganhava as ruas,
não invadia a cidade, não era sinônimo de cosmopolitismo tal como acontecia no Rio de
Janeiro”48. Enquanto no ambiente carioca, desde o século XIX, o teatro profissional
conquistara um espaço considerável na vida cultural das pessoas, em São Paulo, ainda
na alvorada do século XX, as atividades artísticas em geral (incluindo as teatrais) eram
bem mais tacanhas. Na condição de capital da República – e, anteriormente, de sede da
corte imperial - o Rio de Janeiro “concentrava praticamente toda a arte do espetáculo
nacional” 49. Desde meados do século XIX, graças à influência da imigração
portuguesa, aquela cidade assumia já “certos ares cosmopolitas”. Para lá se dirigiam,
ainda durante o Império, inúmeras companhias teatrais européias, coisa que em São
Paulo só começou a acontecer (de forma bem tímida) na passagem do século XIX para
o XX. Some-se a isso a condição portuária do Rio e o relativo isolamento geográfico de
São Paulo e teremos uma dimensão maior do indiscreto contraste entre os dois centros
urbanos.
Outra diferença assinalada por David José Lessa Mattos refere-se à composição
do público que freqüentava as salas de espetáculos nas duas cidades. Se em São Paulo,
ainda no início do século XX, as representações profissionais eram assistidas “quase
que exclusivamente por pessoas da elite”, no Rio, desde o fim do século XIX, os
espetáculos eram freqüentados por um público bem mais diversificado: “empregados
públicos, gente do comércio, oficiais da Guarda Nacional, [...] políticos, viajantes,
marinheiros e, também, os visitantes provincianos das diversas regiões do país” 50. Toda
essa “fauna humana” constituía já, no limiar do século XX, as heterogêneas platéias que
enchiam as salas de espetáculos da então capital de nosso país.
Foi nesse contexto de intensas atividades artísticas que se afirmou, no Rio de
Janeiro, o influente teatro de revista. Vindo de Portugal, o gênero chegou à capital do
Brasil durante a segunda metade do século XIX. Desde então, ele conquistou os
corações e mentes do crescente público carioca, cada vez mais ávido pelo consumo de
novidades no campo das artes e do entretenimento. Apesar de sua origem européia, o
teatro de revista acabou se transformando no “gênero mais característico da cena teatral

48
Ver Mattos, David José Lessa. O Espetáculo da Cultura Paulista – Teatro e TV em São Paulo (1940-
1950). São Paulo, Editora Codex, 2002; p. 111.
49
Ibid.; p.102.
50
Ibid.; p.103.
48

brasileira”51. Grande parte dessa influência deveu-se à obra de Arthur Azevedo, que
soube incorporar ao teatro de revista “expressões regionais e bem brasileiras” 52. Até
quase a metade do século XX, o gênero e suas vedetes dominaram os palcos e o gosto
das platéias cariocas e, mais tarde, “nacionais”.
No interior de um ambiente cultural assim tão pulsante, não surpreende
constatar, nos órgãos da imprensa carioca (incluindo aqui a operária) uma maior
preocupação com as atividades artísticas em geral. Se os espetáculos teatrais
dominavam a cena cultural e vibravam nos corações da cosmopolita população do Rio,
por que seus órgãos de imprensa não modulariam na mesma freqüência? E se os jornais
tidos como “comerciais” preocupavam-se em divulgar os espetáculos das grandes
companhias de teatro (nacionais e estrangeiras), por que os pequenos periódicos
operários não fariam o mesmo com o teatro amador? Portanto, parece-nos que, no
contexto do Rio, a agitada vida cultural mantinha o carioca numa relação mais estreita
com a produção artística e as novidades do entretenimento. E, é claro, os jornais não
poderiam deixar de repercutir tal excitação do público.
Tudo bem, mas o que dizer então das atividades dos grupos amadores
paulistanos? A pouca ressonância delas nos periódicos da imprensa operária da
Paulicéia seria indício de uma incurável letargia? Não necessariamente. O fato de tal
imprensa não acompanhar de perto as atividades desses grupos não significa que eles
fossem menos ativos. Aliás, como já vimos, temos razões de sobra para acreditar que,
na verdade, tais atividades eram até mais dinâmicas aqui do que lá. Afinal, no afã de
compensar a exígua programação artística profissional, é possível que o teatro amador
tenha adquirido, na vida cultural de São Paulo, uma importância até maior do que a
existente no Rio. Ainda de acordo com David José Lessa Mattos, “mostrando-se
incapaz de suplantar um certo provincianismo que predominava no meio sócio-
cultural”, o “espetáculo teatral paulista” seria preenchido pelas inúmeras atuações
levadas adiante, desde fins do século XIX, pelos grupos amadores, sobretudo os
chamados filodrammatici (ou “filodramáticos”)53.
Vinculados às sociedades de ajuda mútua que surgiam em São Paulo para prestar
assistência aos imigrantes que acabavam de chegar, os filodrammatici criaram “um
teatro com características próprias, feito por italianos e dirigido principalmente à
51
Ibid.; p.105.
52
Ibid.; p. 106.
53
Ibid.; p.113.
49

coletividade italiana”54. A Sociedade de Socorros Mútuos Leale Oberdan, fundada em


1891, a Sociedade Italiana Fratellanza del Cambucy, existente desde 1899, e a
Associação das Classe Laboriosas(fundada em 1901) são algumas das associações que
dispunham de seus próprios grupos amadores. Desnecessário dizer, tais grupos eram
formados por trabalhadores e desde o início encenavam peças que, em alguma medida,
expressavam um conteúdo “social”. Como veremos adiante, serão os filodrammatici
que configurarão os traços gerais do teatro anarquista em São Paulo. Aliás, podemos
mesmo dizer que as práticas teatrais dos filodramáticos paulistanos exercerão uma forte
influência sobre o teatro amador carioca. Não por acaso, algumas das peças encenadas
em São Paulo na língua italiana serão, mais tarde, traduzidas para o português e
representadas também na “Cidade Maravilhosa”55. Afinal, o público que falava a língua
portuguesa no Rio era muito maior do que em São Paulo. Portanto, as traduções naquela
cidade eram uma exigência que não se verificava aqui. Tal exigência expressa um
inequívoco sentido político. No Rio, traduzir uma peça com um conteúdo “social” era
uma forma ativa de intervenção junto à classe trabalhadora – pelo menos junto à parcela
desta classe que freqüentava as festas operárias em que aquela peça seria encenada.
Sendo assim, apesar dos órgãos da imprensa operária paulistana não se
preocuparem em acompanhar de perto as atividades dos grupos amadores (talvez suas
prioridades fossem outras), isso não quer dizer que a vida desses grupos fosse menos
intensa em São Paulo. O fato de muitos deles serem aparentemente efêmeros também
não significa uma apatia geral. Afinal, os grupos sucediam-se uns aos outros e muitos
membros de um acabavam atuando em outros - isso também acontecia no Rio.
Acreditamos que a simples quantidade de grupos paulistanos que mencionamos até
agora possa já convencer o leitor do que era o dinamismo do teatro amador em São
Paulo. Ademais, além dos grupos já citados, existiam vários outros - muitos dos quais

54
Ver Magaldi, Sábato e Vargas, Maria Thereza. Cem Anos de Teatro em São Paulo (1875-1974). São
Paulo, Editora SENAC, 2001; p. 32.
55
Em Novo Rumo (20.01/05.02.1906), ver anúncio de festa organizada pela Liga das Artes Graphicas do
Rio de Janeiro; nele aparece, na programação, a peça Primeiro de Maio, representada em São Paulo desde
1901, em italiano; no anúncio, sabemos que sua tradução foi feita por “um dos membros” da própria Liga.
Ver notícia publicada em A Terra Livre no dia 15 de fevereiro de 1908; por meio dela sabemos que um
grupo anônimo vinculado à Federação Operária do Rio de Janeiro encenaria, “pela primeira vez em
português”, a peça A Canalha, já bastante representada antes em São Paulo (em sua versão original em
italiano). Em A Lanterna de 4 de julho de 1914, ver anúncio sobre festa organizada pela Liga Anticlerical
do Rio de Janeiro; em sua programação, aparece a peça Triste Carnaval, traduzida pelo químico Zenon de
Almeida, também ele um amador ativo que, no Rio de Janeiro, além de atuar como ator nos palcos,
escreveu sua próprias peças.
50

anônimos e que, por isso, não foram abordados até o momento. Analisaremos as
atuações de alguns deles mais adiante.

1.3. Reuniões e ensaios


Se desejamos compreender melhor o cotidiano dos grupos amadores com que
lidamos, é claro que devemos investigar não apenas suas atuações em palco, como
também suas atividades de organização interna e de ensaio. Vimos já que a maioria das
festas operárias (tanto em São Paulo quanto no Rio) ocorria nos sábados à noite. David
José Lessa Mattos diz-nos que, “geralmente aos domingos”, os operários de São Paulo
“encontravam algum tempo para ensaiar peças teatrais”56. De fato, não temos por que
duvidar dele: é bem provável que, tanto em São Paulo quanto no Rio, a maioria dos
ensaios (assim como as reuniões em geral) ocorresse aos domingos – ou, pelo menos,
durante o fim de semana.
Vejamos, por exemplo, o caso dos amadores vinculados à Liga Anticlerical do
Rio de Janeiro. No dia 28 de setembro de 1912, um sábado, A Lanterna divulgou uma
nota convocando-os para uma reunião que aconteceria naquele mesmo dia, “às 7 horas
da noite, na sede da Liga”. O objetivo era tratar da “constituição definitiva do grupo”.
Quase um ano e meio depois, quando o grupo vinculado à Liga já se encontrava
plenamente constituído, atuando agora com o nome de Grupo Dramatico Anticlerical,
apareceu no mesmo jornal um novo comunicado convocando os seus membros para um
encontro cujo intuito era “tratar de assuntos urgentes” 57. Desta vez, a reunião estava
prevista para ocorrer em um domingo (dia 11 de janeiro de 1914), às 19h. Outro
exemplo: os membros do grupo Teatro Social, também do Rio de Janeiro, reuniram-se
em assembléia para aprovar as “bases fundamentais” que norteariam suas atividades. A
data escolhida para a discussão e aprovação daquele documento foi o dia 16 de
setembro, um domingo. Três dias depois, as tais “bases” foram divulgadas no periódico
Novo Rumo. Daqui a pouco daremos a elas uma atenção especial. No caso de São Paulo,
encontramos uma notícia que nos informa sobre a participação do Circulo Dramatico
Libertario em uma reunião organizada pelo Centro Libertario e realizada também em
um domingo (14.06.1914). Além daquele grupo, participaram do encontro várias outras
associações libertárias de São Paulo. O objetivo, dentre outros, era discutir, na reunião,

56
Ver Mattos, David José Lessa. Op. Cit. p.116.
57
Ver A Lanterna de 10 de janeiro de 1914.
51

a adesão do “elemento anarquista do Brasil” ao Congresso Anarquista Internacional.


Após uma “animada troca de idéias”, a inserção brasileira no Congresso Internacional
foi por fim aprovada.
No entanto, é importante enfatizar que alguns indícios espalhados pelos jornais
da imprensa operária de São Paulo apontam para a realização de reuniões durante os
dias “úteis” da semana. Por exemplo, A Lucta Proletaria (órgão vinculado à Federação
Operária de São Paulo), em sua edição de 7 de março de 1908, traz uma notícia
(voltaremos a ela mais adiante) sobre a reunião de um grupo filodramático social. A tal
notícia, além de expressar os objetivos gerais do grupo que surgia, aproveitava para
convocar seus membros para o próximo encontro, previsto para ocorrer no dia 11
daquele mês, uma quarta-feira. Anos depois, numa terça-feira, dia 7 de outubro de 1919,
A Plebe publicou uma pequena nota convocando os membros do Grupo Dramatico
Cultura Moderna para uma reunião na Rua Bresser, nº. 550. O encontro estava previsto
para a “próxima quinta-feira” (dia 9 de outubro), às 19h30. O objetivo? Tratar da
organização de um festival em benefício de Manuel Campos. No entanto, dois dias
depois, naquela quinta-feira (9 de outubro), em sua nova edição, o mesmo jornal
publicou uma outra nota retificando a primeira. Desta vez, a reunião estava prevista para
ocorrer no mesmo local, naquele mesmo dia, porém em um horário diferente: 10h30
(período não especificado). Como o registro anterior se referira ao horário das 19h30 (e
não das 7h30 da noite), é provável que o novo encontro ocorreu mesmo na manhã
daquela quinta-feira. Mais tarde, em sua edição de 4 de novembro de 1922, o mesmo
periódico apresentava um comunicado do Grupo Theatro Social, de São Paulo, criado
em julho daquele mesmo ano (não confundir com .o grupo homônimo mencionado
acima, anterior e de origem carioca).O pequeno aviso convocava os membros do grupo
para uma reunião a ser realizada na segunda-feira, dia 6 de novembro. O objetivo era
distribuir os papéis das novas peças a serem encenadas. O problema é que, desta vez,
nem sequer sabemos o horário do encontro: ele não foi registrado na convocação.
Não eram apenas ensaios e reuniões que ocorriam durante a semana. Temos ao
menos um indício de espetáculo realizado em nossa Paulicéia em plena segunda-feira
(17.01.1921)! O evento fora organizado por um grupo anônimo em favor do periódico A
Vanguarda. Segundo notícia posterior, divulgada em A Plebe (22 ou 29.01.1921), o
evento teve um bom êxito, estando o salão do teatro quase lotado.
52

Não obstante as atividades pontuais durante a semana, parece bem plausível a


hipótese segundo a qual os ensaios e as reuniões (assim como as representações) dos
amadores concentravam-se nos fins de semana. Afinal, a fatigante vida de um operário
nos primeiros anos do século XX consumia-lhe quase todo o tempo durante a semana58.
No entanto, exagerar demais as injunções do cotidiano seria perder de vista a incrível
capacidade que a população trabalhadora possuía (e ainda possui) para criar seus
próprios espaços de cultura e convivência. No campo das táticas 59 cotidianas, é de fato
surpreendente constatar a astúcia do homem comum em transformar as condições
adversas em algo minimamente suportável - quando não relativamente favorável.

1.4. As experiências do teatro amador: um eixo e algumas ramificações


Vimos acima um pouco das dificuldades enfrentadas por alguns dos grupos
relâmpagos de São Paulo e do Rio. No entanto, é importante salientar que nem todos os
grupos amadores eram tão esquivos quanto eles. Isso não quer dizer que suas
existências fossem menos atribuladas. Vejamos, por exemplo, o caso do primeiro Grupo
Teatro Social que surgiu no Rio de Janeiro 60. Este foi, com certeza, o grupo amador que

58
Precisamos ressaltar que a constituição de uma “classe operária” no contexto que analisamos envolve
experiências de luta que extrapolam uma categorização restrita ao setor secundário da economia. Na
esteira de estudos pioneiros como o de Heloisa de Faria Cruz, inserimos na categoria de “classe operária”
os inúmeros “trabalhadores em serviços” que, junto com os operários de fábricas, participavam das
intensas mobilizações que agitavam os anos de luta que estudamos em nossa pesquisa. Ver Cruz, Heloísa
de Faria. Trabalhadores em Serviços: Dominação e Resistência (São Paulo – 1900/1920). São Paulo,
Editora Marco Zero, 1990; p.8. “A experiência de luta dos trabalhadores em serviços se constitui como
parte integrante da experiência do proletariado urbano no período. Constituindo-se, enquanto parcela
significativa da força de trabalho, trabalhadores como ferroviários, motorneiros e condutores,
trabalhadores em limpeza urbana, entre outros, estiveram presentes na maioria das lutas do proletariado
urbano de então”. Devemos lembrar que muitos desses trabalhadores possuíam horários de trabalho
diferentes dos operários fabris. Consideramos também em nossa pesquisa os trabalhadores autônomos que
possuíam suas próprias oficinas de trabalho: alfaiates e sapateiros, por exemplo. Dessa forma,
conseguimos entender melhor a exeqüibilidade de algumas das reuniões que acima mencionamos
(programadas para horários ditos “comerciais”).
59
Para o conceito de “tática” aqui utilizado, ver Certeau, Michel de. A Invenção do Cotidiano: Artes de
Fazer. Petrópolis, Editora Vozes, 1994; p. 100. Para o autor citado, tática é “a ação calculada que é
determinada pela ausência de um próprio. Então nenhuma condição de fora lhe fornece a condição de
autonomia. A tática não tem por lugar senão o outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é
imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha. [...] Este não-lugar lhe permite sem dúvida
mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar no vôo as possibilidades oferecidas
por um instante”.
60
No período abarcado em nossa pesquisa, temos pelo menos mais dois grupos homônimos atuando entre
São Paulo e Rio de Janeiro. No contexto carioca, um outro grupo intitulado Theatro Social desponta em
anúncios de A Plebe (11.06.1921), de Lucta Social (18.06.1922) e da revista Renovação (outubro e
dezembro de 1921). Ver também balancete publicado em A Plebe em 18.03.1922. Em São Paulo, um
outro grupo homônimo apareceu em 1922. Tendo como “patrono” o alfaiate Marino Spagnolo, o primeiro
indício da organização deste grupo paulistano desponta em uma pequena nota publicada em A Plebe no
dia 22 de julho de 1922. Sua estréia, no entanto, ocorreria apenas três meses depois, em 28 de outubro de
53

mais deixou vestígios na imprensa operária. Por isso, utilizaremos sua história como
eixo central. Por meio dela, teceremos uma narrativa que pretende, de maneira um tanto
presunçosa, lançar um pouco de luz sobre as obscuras trajetórias dos grupos amadores
anarquistas, enfocando suas formas de organização, suas vicissitudes e as inúmeras
dificuldades por eles enfrentadas. Sendo assim, quando necessário, interromperemos a
narrativa sobre o Grupo Teatro Social para abordar também as fragmentárias histórias
dos outros grupos que atuaram no período compreendido pela pesquisa. Como o leitor
perceberá, são inúmeros os casos em que as trajetórias dos outros grupos assemelham-se
com a do Grupo Teatro Social. Mas, além das semelhanças, é claro, as diferenças
também se descortinam. Não perderemos as oportunidades de enfocá-las quando
necessário.

1.4.1. Os vínculos com o movimento operário e as possíveis tensões entre


“doutrina” e “prazer descomprometido”
Ao que tudo indica, o Grupo Teatro Social atuava desde o final de 1905 61. Quase
um ano depois, em uma reunião realizada em 16 de setembro de 1906 na sede do
Sindicato dos Tipógrafos, o grupo resolveu oficializar sua existência por meio de um
documento expressando as “bases fundamentais” que norteariam suas atividades. Três
dias depois, as tais “bases” foram divulgadas no periódico carioca Novo Rumo. Vale a
pena analisar de perto a transcrição desse documento. Isso porque ela retrata não só os
propósitos do grupo, mas também parte de sua composição. Por meio dessa nota,
entendemos também como se estruturava a organização desse grupo.
A primeira “base” daquele estatuto, bem significativa em nossa pesquisa, diz que
os membros do grupo devem ser operários e operárias “que pertençam às suas
associações de classe e estejam quites” com elas. Temos aqui uma exigência que muito
nos diz sobre os vínculos entre os elementos do grupo e o movimento organizado dos
trabalhadores. Analisando isoladamente esta cláusula (não por acaso a primeira), temos
a sensação de que o grupo talvez pretendesse conferir a si mesmo um caráter “obreiro”
não apenas “autêntico”, mas também militante. Era preciso que o amador pertencente ao

1922. Ver, em A Plebe, anúncios dos dias 23.09 e 07.10.1922. Ver também, no mesmo jornal, notícia
sobre a estréia do grupo na edição de 4 de novembro de 1922.
61
Na edição de 19 de setembro de 1906 do periódico carioca Novo Rumo, após um longo comentário
sobre a peça O Infanticídio, de Mota Assunção, cuja estréia coube ao Grupo Teatro Social, D. Venegas
aproveita para dizer que no dia 12 de outubro o grupo comemoraria seu primeiro aniversário. Faremos
menção a esse texto na seqüência.
54

grupo apresentasse uma espécie de “atestado de combatividade” – ou, pelo menos, de


“consciência de classe”. Com isso, o grupo atrairia para si apenas aqueles que
estivessem minimamente em sintonia com os seus propósitos, evitando assim o
incômodo de lidar com elementos “recalcitrantes”. Tais exigências manifestariam um
caráter inequívoco de intransigência? Vejamos melhor analisando as outras cláusulas.

Imagem 3 – as “bases fundamentais” do Grupo Teatro Social (Novo Rumo – 19.09.1906)

Logo na seqüência vem a segunda “base” do mesmo documento. Esta,


curiosamente, contraria o tom “inflexível” anteriormente manifestado. Ela afirma que os
mestres e contramestres que desejem participar do grupo seriam por ele aceitos, mesmo
estando excluídos dos sindicatos de suas respectivas categorias. Ou seja, mestres e
contramestres estariam isentos da primeira cláusula. Lembre-se que estamos em 1906.
Em abril daquele ano, ocorrera na cidade do Rio de Janeiro o Primeiro Congresso
Operário Brasileiro. Nele, dentre outras coisas, ficara decidido que os mestres e
contramestres, afora em “casos excepcionais”, seriam excluídos dos sindicatos
operários62. Ora, se no Grupo Teatro Social eles seriam aceitos, podemos aqui, sem
risco de exagero, relativizar a suposta intransigência manifestada na primeira cláusula.
Ou seja, mestres e contramestres poderiam ficar de fora dos sindicatos, mas seriam
aceitos no grupo. O acolhimento do segundo compensava, no caso, a exclusão dos

62
Ver a transcrição completa do documento aprovado naquele congresso em Rodrigues, Edgar.
Socialismo e Sindicalismo no Brasil – 1675-1913. Editora Laemmert, Rio de Janeiro, 1969; pp.114-140.
A deliberação relativa à exclusão de mestres e contramestres encontra-se na pág. 127.
55

primeiros. Isso indica que, não obstante o rigor da primeira cláusula, a composição
“obreira” do grupo era menos “autêntica” do que imaginávamos a princípio.
A mesma tensão entre restrição e acolhimento manifesta-se por ocasião de uma
reunião dos “aderentes à iniciativa de um `Grupo filodramático social´” em São Paulo.
O periódico A Lucta Proletaria, órgão vinculado à FOSP (Federação Operária de São
Paulo), em sua edição de 7 de março de 1908, publicou uma nota sobre aquela
reunião.Segundo a nota, os membros aderentes daquela iniciativa deliberaram então
“aceitar como sócios todos os que têm disposição para este meio de propaganda” [grifos
nossos]. Bastava que os interessados fossem membros das Ligas de Resistência e
demonstrassem ser operários “de dignidade e consciência”. Temos mais um caso que
aponta para uma possível ambigüidade de propósitos. Se, por um lado, aceitava-se
qualquer um que tivesse “disposição”, por outro, este “qualquer um” tinha de estar
vinculado ao movimento operário – além de ser “digno” e “consciente” 63.
A nota de A Lucta Proletaria indica ainda outras deliberações tomadas pelos
aderentes à iniciativa do grupo filodramático que se formava. Na reunião por ela
divulgada, sabemos ainda que os amadores decidiram cotizar as despesas do grupo. De
acordo com a deliberação tomada, cada membro ajudaria mensalmente com 500 réis
para as despesas com “papel, tinta, penas etc.”. Segundo Maria Thereza Vargas e
Mariângela Alves de Lima, a cobrança daquela quantia mensal reduziria “a
possibilidade do prazer descomprometido” e mostraria “o grupo teatral como uma
forma de trabalho doutrinário” [grifos nossos]64.
As duas pioneiras autoras não foram as únicas a segmentar “caráter lúdico” e
desígnios “doutrinários”. Talvez de forma menos rígida, também Francisco Foot
Hardman chegou a conclusão semelhante analisando as “festas de propaganda” nas
quais as peças anarquistas eram encenadas. Segundo ele, tais eventos “tentavam aliar o
prazer do entretenimento às tarefas de convencer o público da necessidade da
`emancipação social´”. Até aqui, tudo bem. O problema é que, logo em seguida, Foot
Hardman afirma ser a “tensão permanente” entre esses dois propósitos a “expressão, em
certo nível, da própria relação contraditória entre massas e direções” 65. Temos aqui o

63
Ao longo deste capítulo citaremos ainda inúmeras festas organizadas em favor dos sindicatos e ligas de
resistência. Em todas elas as programações teatrais denotam o estreito vínculo que se estabelecia entre os
grupos teatrais e as associações de classe.
64
Ver Alves de Lima, Mariângela e Thereza Vargas, Maria. Teatro Operário na Cidade de São Paulo.
Laboratório do Idart, 1980, p. 28.
65
Ver Foot Hardman, Francisco. Nem pátria, nem patrão. São Paulo, Editora Unesp, 2002, p. 25.
56

princípio segundo o qual, no interior das festas operárias, as “massas” querem uma
coisa e as “direções” desejam outra.
É claro que as conclusões a que chegaram os importantes autores acima
mencionados não são fortuitas. É exatamente isso que depreendemos de alguns (mas
não todos) textos publicados na imprensa libertária. Como veremos ao longo da
pesquisa, os articulistas que comentavam os eventos e manifestavam suas concepções
artísticas nem sempre estavam de acordo com as programações das “festas de
propaganda”. Muitas vezes, inclusive, eles fulminavam algumas das peças nelas
encenadas66 . No entanto, nosso desafio é o de evitar a reprodução mecânica do discurso
veiculado na imprensa. Na esteira do que disse Jesús Martin-Barbero, buscaremos
entender de que maneira, no interior das “festas de propaganda”, os elementos da
cultura popular (incluindo os entretenimentos manifestamente lúdicos) são não apenas
assimilados como também valorizados67. Sendo assim, veremos ao longo de todo o
nosso trabalho que a tão propalada dissociação entre “prazer descomprometido” e
“trabalho doutrinário” é mais aparente do que real.
Analisando os inúmeros anúncios veiculados na imprensa operária – assim como
alguns comentários de festas realizadas -, percebemos que a dissociação entre atividades
lúdicas e trabalho de “conscientização”, na prática, não se verifica 68. Com exceção,
talvez, da conferência (esta sim de caráter instrutivo ou, como quer a fórmula repisada,
“doutrinário”), todas as outras partes de nossas festas, incluindo o teatro, manifestam
66
Ver em O Amigo do Povo de 9 de julho de 1904, críticas ao drama Amor e Desventura, “arcaico
dramalhão de capa e espada”, “borracheira idiota” etc. Em Liberdade (2ª. quinzena de maio de 1918), ver
notícia intitulada Uma festa libertária; nela, o autor anônimo critica severamente a parte teatral,
sobretudo a “revista-estilete” levada ao palco pelo amador Santos Barbosa. Ver em A Lanterna
(12.10.1912), anúncio sobre a criação do Grupo Idéia Moderna que, “rompendo com a velharia a que se
agarram em geral os amadores”, prometia encenar somente peças de “índole social”. Ver também, na
introdução à obra O Infanticídio, de Mota Assunção (Arquivo Multimeios; DT-2314), a crítica de Neno
Vasco à obra Gaspar, o Serralheiro (“de arrepiar os cabelos da alma e do coração”). Ver em Novo Rumo
(20.02.1906) comentários de uma festa em que o autor critica outros eventos do gênero em que “só se
cultiva a banalidade vista através de uma arte chatíssima de dramalhões sexagenários”. Em A Vanguarda
(09.06.1921), comentarista anônimo critica severamente uma comédia “cujo autor teve a preocupação
exclusiva de fazer rir”. Enfim, a impressão que tais registros nos passam é a de que nossos militantes
desprezavam as influências dos antigos dramalhões e de toda arte que não expressasse um nítido conteúdo
de transformação social.
67
Sobre a valorização da cultura popular por parte dos anarquistas, ver Martin-Barbero, Jesús. Dos meios
às mediações – comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009, p.44.
68
Neste ponto, Maria Thereza Vargas e Mariângela Alves de Lima chegam a concordar com a posição
aqui adotada. Para elas, as “críticas a uma atividade puramente recreativa [...] não prevalecem na
organização da festa operária”. Ver Alves de Lima, Mariângela e Thereza Vargas, Maria. Op. Cit; p.43.
No entanto, ao atribuir ao “Grupo filodramatico social” a intenção de reduzir o “prazer
descomprometido” em favor do “trabalho doutrinário”, as duas autoras parecem identificar, nos próprios
amadores, uma severidade moral que talvez habitasse alhures. Mais adiante analisaremos um outro
excerto da obra citada em que as autoras manifestam um posicionamento semelhante.
57

não uma oposição, mas uma complementaridade entre “lúdico” e “doutrinário”. Ou,
melhor dizendo, os dois aspectos aparecem tão intimamente relacionados que nos
arriscamos a dizer que eles estabelecem de fato uma unidade, muito embora nem
sempre harmônica.
Alguns exemplos podem ser dados. Primeiramente, vejamos o caso do baile.
Fulminado por alguns órgãos da imprensa operária 69, ele permanece praticamente
intocável ao longo de todo o período analisado. Disso nossas pioneiras autoras também
estavam conscientes70. Outro indício eloqüente da aproximação entre “lúdico” e
“doutrinário” é o das quase obrigatórias comédias, muitas das quais com conteúdos
libertários, anticlericais ou de forte crítica social. Aliás, somos favoráveis à tese
segundo a qual o riso é um meio eficientíssimo de protesto. Diante do escárnio não há
autoridade constituída que passe incólume! Os anarquistas com os quais lidamos sabiam
disso e valorizavam esse potencial irreverente do riso, incorporando-o em suas festas
por meio das comédias. Incorporavam também outros gêneros divertidos do teatro
“popular”, como os guignols franceses71, as zarzuelas72 espanholas e as revistas (já bem
populares no Brasil do início do século XX) 73 .

69
No que tange às críticas ao baile, ver, em Guerra Sociale de 28.10.1916, artigo intitulado A
propaganda e o baile. Em A Terra Livre de 05.02.1907, ver artigo intitulado O Baile – aos círculos
recreativos, assinado por Lucífero; no mesmo periódico, ver em edição de 23.02.1907 O Baile
(continuação), também de Lucifero . Em A Plebe, de 05.11.1921, ver estatuto do segundo Grupo de
Teatro Social que aparece no Rio de Janeiro; nele, o grupo afirma que não trabalhará em “certames nos
quais se realizem bailes”. De fato, acompanhando os anúncios que apresentam o nome do grupo, não
encontramos, em nenhum deles, o baile como parte da programação. Aqui, sim, poderíamos atribuir ao
grupo um rigor moral não explicitamente identificado nos congêneres. No entanto, mesmo este grupo
valorizava o aspecto lúdico das festas. Em quase todos os eventos dos quais ele participava, as
encenações cômicas tinham espaço garantido. Em um deles, das três peças encenadas, duas eram
comédias (ver a revista Renovação de dezembro de 1921). Em um dos eventos nos quais este grupo
encenou (um “Grande Festival” no Jardim Zoológico do Rio, programado para 18 de junho de 1922), a
programação aparecia repleta de atividades lúdicas: corrida de bicicletas, “match de football” , corrida de
saco, leilão de prendas etc.
70
Ver Alves de Lima, Mariângela e Thereza Vargas, Maria. Op. Cit; p.43.
71
O guignol é uma espécie de teatro de fantoches que surgiu em Lyon, na França, no final do século
XVIII. Recebeu esse nome em razão de um de seus personagens mais importantes: Guignol. Os enredos
desse gênero são satíricos e seus personagens caricaturam figuras do cotidiano. Um século depois, o
cômico cede espaço para o horror. Agora, em Paris, surge o gênero grand guignol, um teatro também de
bonecos, mas de caráter mais macabro e violento. Com o tempo, os bonecos foram substituídos por
atores de verdade. Sobre a influência do guignol no teatro amador sobre o qual nos debruçamos, ver em
Liberdade (2ª. quinzena de maio de 1918), anúncio do Grupo Editor Germinal, do Rio de Janeiro, em que
está prevista a representação de um drama “à guisa de grand grügnol” [sic]. Ver também anúncio
publicado em Renovação de dezembro de 1921 em que está prevista, em festa no Rio, a representação de
A Jaula, “vigoroso `grand-guignol´” de Santos Barbosa, ele próprio um amador que atuara, em 1913, no
Grupo Dramático de Cultura Social. Impossível saber se os conteúdos das peças destas duas atrações
assemelham-se com os dos clássicos franceses. É possível que a influência do grand guignol no teatro
anarquista do Brasil tenha vindo por meio de Octave Mirbeau, cuja peça Le Jardin de Supplices tornou-
se um clássico do gênero.
58

Até aqui, estamos abordando as atividades que apresentavam um apelo “lúdico”


mais acentuado. Mas o que diríamos sobre as peças de caráter mais “sisudo” ou de teor
social mais explícito, em que as injustiças conferem à trama uma atmosfera mais
carregada? Será que tais peças também não envolviam o público? Será que este não se
interessava profundamente por elas? Como já salientaram Maria Thereza Vargas e
Mariângela Alves de Lima, em meio às representações de obras do teatro amador, temos
inclusive indícios de manifestações ativas do público diante da trama encenada. Foi por
meio da obra das duas autoras que entramos em contato com alguns comentários sobre
as reações do público em meio às dramatizações dos primeiros imigrantes em São
Paulo. Referindo-se ao teatro de característica “repentista” daqueles imigrantes, já no
final do século XIX, um certo Sr. Romero afirmou (nas palavras das autoras) que
“quando as cenas eram por demais reconhecidas [pelo público] havia muito choro e até
mesmo (conforme o caso) muita pancadaria”. 74 Já no período abarcado em nossa
pesquisa, temos outros indícios da reação do público em meio à trama encenada. Em
uma notícia veiculada por A Lanterna no dia 20 de janeiro de 1901 descobrimos algo
sobre a reação tempestuosa do público em meio à representação da peça anticlerical
Electra, de Pérez Galdós. Segundo o autor anônimo dessa notícia, “sempre que
apareciam em cena Pantoja e as freiras, personificação do jesuitismo, os espectadores
irrompiam em assobios, manifestando assim o seu terror pela seita maldita, e contra a
canalha clerical”. Ainda em São Paulo, naqueles primórdios do teatro anarquista, em
edição de 25 de outubro de 1902, o periódico O Amigo do Povo lançou os comentários
de um autor anônimo sobre a representação de Il Giustiziere, “drama em um prólogo e 2
atos do camarada G. Sorelli”. Segundo o autor anônimo daqueles comentários, o
amador Pozzolo saiu-se tão bem no papel de comendador que “conseguiu fazer-se odiar
pela sala”.Pouco mais tarde, já no contexto carioca, o periódico Novo Rumo publicava
os comentários de D. Venegas a respeito da encenação de El Ocaso de los Odios75.

72
A zarzuela é um gênero lírico-dramático de origem espanhola. Inspirada na ópera cômica francesa, a
zarzuela mistura cenas faladas com cenas cantadas, além de incorporar episódios em que as danças
merecem destaque. Sobre a influência das zarzuelas em nosso teatro amador, ver anúncio de festa no
Centro Galego (Rio de Janeiro) em A Terra Livre do dia 14.03.1908. Nele aparece a previsão da
representação de uma “zarzuela cômica” de Carlos Arniches com acompanhamento musical do Grupo
Lírico Dramático del Centro Gallego.
73
Ver anúncio de festa organizada pelo Grupo F. C. Social (Rio de Janeiro), publicado em Liberdade da
2ª. quinzena de abril de 1918. Vemos uma programação em que está prevista uma “revista-estilete” com
vários números de música”.
74
Ver Alves de Lima, Mariângela e Tereza Vargas, Maria, Op. Cit; pp. 17 e 18.
75
Ver, em Novo Rumo edição de 20 de julho de 1906.
59

Nela, segundo o relato, a platéia teria experimentado as mais estranhas sensações:


comoção, tremor e, por fim, exultação (manifestada por meio de uma “ruidosa salva de
palmas” diante da “vitória das armas revolucionárias”).Dois meses depois, ainda no
mesmo periódico, temos a notícia de uma outra encenação da mesma peça 76. Agora, o
autor anônimo afirma que, da platéia, o público se manifestava diante dos personagens,
aplaudindo os simpáticos e “estigmatizando D. Theodoro”.
Diante de todas essas evidências do envolvimento do público em meio à trama
encenada, parece-nos claro que mesmo as peças com teor “doutrinário” mais explícito
despertavam um real interesse em muitos espectadores, indicando uma dinâmica
complexa entre “lúdico” e “doutrinário”; dinâmica no interior da qual os dois termos
aparecem unidos, não dissociados. Mas eram apenas as encenações em palco que
expressavam tal confluência entre “lúdico” e “doutrinário”? Não. Podemos dizer que até
mesmo nos leilões e sorteios que ocorriam nos intervalos das programações os dois
aspectos aparecem intimamente relacionados77. Por tudo isso, parece-nos claro que as
segmentações entre “entretenimento” e “ideologia” são, no interior das festas que
analisamos, abstrações que muito pouco esclarecem sobre as atividades práticas
daqueles eventos. Ao que tudo indica, tais segmentações são construções discursivas
feitas por alguns articulistas da imprensa operária que tentavam influenciar nas
programações das festas, mas nem sempre (ou quase nunca) logravam em seus esforços.
Elas nos dizem mais sobre o que pensam os articulistas mais “mal-humorados” do que
sobre a constituição das festas propriamente ditas.
Sendo assim, se não dá para dissociar “prazer descomprometido” de propósitos
militantes, por que então os membros aderentes daquele “Grupo filodramatico social”
resolveram cobrar de seus associados aqueles 500 réis mensais? Para nós, por uma razão
bem mais prosaica: dificuldades financeiras. Se o caso anteriormente mencionado do
Grupo Solidariedade não foi bastante eloqüente, apontaremos outros exemplos que
demonstram os difíceis apertos orçamentários com que os grupos amadores lidavam.

76
Ver Novo Rumo, edição de 19 de setembro de 1906.
77
Ver em A Vanguarda (13.04.1921), anúncio de festa em São Paulo em que, na programação, aparecem
como prêmios para a tômbola um “belo quadro [...] alusivo à execução de um mártir da Grande
Revolução [...] e um bom livro de sociologia”.
60

1.4.2. Os nobres propósitos e os apertos orçamentários


Não percamos nosso esteio. Analisemos mais um pouco aquelas “bases
fundamentais” do Grupo Teatro Social. A terceira delas também é importante em nossa
pesquisa Ela indica claramente quais eram os objetivos que o grupo estava disposto a
perseguir. O solene documento proclama o desígnio, assumido pelo grupo, de
“propagar, por meio de espetáculos, as modernas doutrinas sociais”. Acompanhando os
títulos das peças representadas pelo Grupo Teatro Social – assim como os comentários
sobre elas nos periódicos -, fica evidente que as tais “modernas doutrinas” referem-se às
idéias que expressam um conteúdo libertário e/ou anticlerical. Analisaremos algumas
dessas obras no decorrer de nossa pesquisa.
Objetivos muito semelhantes ao proclamado nessa terceira “base” eram
manifestados por outros grupos amadores no momento em que surgiam. Mesmo sem a
magnificência de documentos oficiais fundadores, alguns desses grupos fizeram a
questão de anunciar na imprensa operária seus nobres propósitos.
Este é o caso do já mencionado Grupo Dramatico de Cultura Social, do Rio de
Janeiro. Em 15 de outubro de 1913, A Voz do Trabalhador publicou uma espécie de
notícia informando sobre a recente criação do grupo, cuja “obra reverterá em benefício
da propaganda social”. Vimos mais acima que o mesmo periódico carioca divulgara, em
1º. de julho de 1913, uma pequena nota sobre a fundação (ou sua tentativa) da
Agremiação Dramatica Idéia Livre, no Estácio de Sá. O objetivo de tal agremiação,
segundo a nota, era “propagar por meio de representações teatrais as idéias
renovadoras”. A Voz do Trabalhador felicitava o grupo e afirmava esperar seu primeiro
espetáculo. Mais tarde, como também já vimos, em 17 de julho de 1920, A Plebe
lançaria um anúncio de festa organizada pelo supracitado Libertas, de São Paulo. Nele
vem a informação de que o grupo era da Mooca e foi “fundado exclusivamente para
organizar festivais em benefício de jornais e de outras causas semelhantes”. Como a
festa anunciada era em favor de A Plebe - e não em benefício do Correio Paulistano
(ou de O Estado de São Paulo) -, depreendemos bem, sem muito esforço, quais eram as
“causas” que eles pretendiam favorecer. Ainda no que se refere ao contexto paulistano,
dois anos depois, o mesmo periódico A Plebe, em 22 de julho de 1922, anunciou a
criação de um grupo também chamado “Theatro Social” 78. Expressamente, seu objetivo

78
Não confundir com o grupo homônimo carioca que nos serve de eixo central nesta análise. Ver a
composição do grupo Theatro Social, de São Paulo, em Rodrigues, Edgar. Os Companheiros – vol. 4.
61

era desenvolver a propaganda “por meio da representação de peças de caráter social”.


A nota afirma que, assim que o grupo se formasse, ele prestaria “o seu concurso para a
realização dos festivais dos grupos e sindicados”.
Vemos, portanto, que outras associações de amadores manifestavam objetivos
parecidos com os do Grupo Teatro Social, do Rio de Janeiro. No entanto, este último
não se contentava em anunciar propósitos vagos. Para além de proclamar um desejo
abstrato de propagação das “modernas doutrinas sociais”, ele lançou, em seu documento
de fundação, pelo menos um objetivo concreto.
Na mesma terceira “base” que estávamos analisando, os amadores do Grupo
Teatro Social manifestaram o propósito de promover, assim que houvesse recursos para
tanto, a criação da chamada Casa do Povo. Encontramos um único indício claro de
mobilização do grupo em torno desse projeto. Na mesma edição de Novo Rumo em que
as tais “bases” do grupo foram divulgadas, há uma longa notícia em que D. Venegas faz
um comentário sobre uma festa ocorrida em 9 de setembro de 1906. Nela, o Grupo
Teatro Social encenara pela primeira vez a peça O Infanticídio, drama social de Mota
Assunção. Após um extenso resumo da peça e um pequeno comentário sobre a atuação
dos amadores, com destaque para as “senhoritas Clotilde e Encarnacion 79” e para as
“Sras. Anna e Carolina”, D. Venegas anexou uma nota que começa com uma pergunta:
“para que teriam feito festa os rapazes que o compõem [o grupo]”? Ele mesmo, D.
Venegas, incumbe-se de responder: “Os camaradas tomaram a si a tarefa de montar uma
Casa do Povo onde o operariado possa divertir-se e aprender”. Ou seja, a Casa do Povo
seria uma espécie de projeto social destinado ao entretenimento e à instrução das
camadas populares. “Seria”, mas provavelmente não foi. Isso porque, afora este
pequeno indício de mobilização em torno do projeto, não encontramos nenhum outro
vestígio dele. A partir de então, não temos mais nenhum documento relativo à atuação
do grupo citando novamente a Casa do Povo.

Editora Insular Ltda, Florianópolis, 1997; p.126. Segundo o autor citado, o Theatro Social de São Paulo
tinha em sua primeira formação, além do já citado alfaiate Marino Spagnolo, os amadores Garibaldi
Brolcati, Helena Santini, Manuel Sanchez, Emílio Martins, Noé Parente, Atílio Grondisola, Poério
Bernardini, José Galan, Manuel Bueno e Lúcia Santini.
79
Esta amadora atuou também, anos mais tarde, em um grupo vinculado à Liga Anticlerical do Rio de
Janeiro. Vemos ainda este mesmo nome assinalado em uma outra notícia, desta vez publicada em A
Lanterna do dia 11 de maio de 1912. Por meio dela, descobrimos que uma Encarnacion atuou na peça
Avatar, de Marcelo Gama. Segundo o autor anônimo da notícia, seu papel teria sido “bem
desempenhado”.
62

Não ficaríamos surpresos caso os amadores abandonassem um projeto assim tão


ambicioso. Para termos uma idéia das dificuldades financeiras que eles enfrentavam,
reproduziremos um balancete do grupo publicado em A Terra Livre no dia 12 de
novembro de 1907. Ele registra mensalmente as receitas e despesas de um ano inteiro de
atuação - de setembro de 1906 (mês em que o projeto da Casa do Povo foi anunciado
em Novo Rumo) a setembro de 1907. Por meio desse balancete, conseguimos ter uma
noção do que eram os apertos orçamentários com os quais os amadores do Grupo Teatro
Social tinham de lidar. Analisemo-no de perto, prestando atenção nos números
registrados tanto para as receitas quanto para as despesas.

Resumo do balanço dos meses de setembro de 1906 a setembro de 1907


Setembro – receita 380$000
Idem – despesa 122$500
Maio – receita 236$000
Idem – despesa 288$300
Junho – receita 193$000
Idem – despesa 184$500
Julho – receita 93$000
Idem – despesa 124$800
Agosto – receita 126$000
Idem – despesa 155$000
Setembro – receita 110$000
Idem – despesa 161$300
Saldo em caixa 101$600

O balancete acima traz alguns indicadores sobre a saúde financeira do grupo nos
meses subseqüentes à divulgação de suas “bases fundamentais”. A análise atenta dos
números demonstra uma situação orçamentária bastante instável. Se projetássemos a
variação dos números em um gráfico de linha, teríamos uma variável oscilando bastante
(mais para baixo do que para cima). Analisando as contas do mês de setembro de 1906
(quando o grupo manifestou, em suas “bases”, o desejo de empreender o projeto da
Casa do Povo), observamos uma situação relativamente satisfatória. Temos para aquele
mês um saldo líquido de 257$500.
No entanto, observando atentamente a tabela, percebemos que nos meses
subseqüentes, de outubro de 1906 a abril de 1907, não há registro algum. O que
aconteceu com o grupo durante esses sete meses? Ao que tudo indica, ele não atuou.
Isso porque não encontramos nesse período nenhuma menção ao seu nome nos
63

inúmeros órgãos da imprensa operária que pudemos pesquisar. De fato, a próxima


informação que teremos dele só aparece em uma notícia publicada em A Terra Livre no
dia 1º. de junho de 1907. Assinada por Salvador Alacid, ela se refere a uma festa de 1º.
de Maio em que o grupo encenara o drama Antonio, de Guedes Coutinho. Portanto, é
bem provável que, diante das inúmeras dificuldades enfrentadas pelos amadores do
Grupo Teatro Social, eles tenham suspendido as atividades, voltando a se apresentar
somente em maio de 1907. O mais curioso é que, nas notícias publicadas a partir de
então, nada mais se diz a respeito de Clotilde, Anna ou Carolina 80 – amadoras que,
segundo D. Venegas, “excederam a expectativa geral” naquela primeira representação
de O Infanticídio. Certamente, as contrariedades do dia-a-dia afastaram-nas dos palcos,
sonegando-lhes o direito de sonhar com uma existência menos rude. Como tantos outros
trabalhadores de ontem e de hoje, provavelmente tais amadoras tiveram de esquecer as
“quimeras” de uma vida dedicada às artes, voltando-se exclusivamente à árdua faina dos
serviços cotidianos.
Voltemos ao balancete. Naquele mês de maio de 1907, o Grupo Teatro Social
arrecadou 236$000, boa parte dos quais (ou talvez o valor integral) provavelmente
adveio daquela festa de 1º. de Maio. No entanto, as despesas superaram a receita. Ao
todo, o grupo gastou naquele mês 288$300. Resultado: o déficit foi de 52$300. No mês
seguinte (junho de 1907), a situação foi um pouco mais favorável. Mas não devemos
nos entusiasmar. O saldo líquido foi de apenas 8$500. Como diz o outro, uma
“merreca”. Para piorar, julho foi mês de déficit. Para uma receita de 93$000 houve uma
despesa de 124$800. Ou seja, o déficit foi de 31$800.A situação em agosto também não
foi nada abonadora. Subtraindo as despesas da receita, temos mais um saldo negativo,
agora de 29$000. Fechando o ciclo de um ano, setembro de 1907 apresentou mais um
déficit. Desta vez, de 51$300. Ou seja, na relação acima, notamos que, ao longo de todo
o ano, apenas dois meses apresentaram saldo positivo: setembro de 1906 e junho de

80
Não devemos confundir esta Carolina, tratada na notícia de D. Venegas como “senhora”, com uma
outra amadora chamada Carolina Boni, que recitava poesias nas festas da Liga Anticlerical do Rio de
Janeiro nos anos de 1912 e 1913. Em um anúncio publicado em A Voz do Trabalhador do dia 15 de julho
de 1913 (portanto, lançado sete anos depois daquela notícia assinada por D. Venegas), Carolina Boni é
apresentada como uma “menina” que recitaria uma poesia em festa prevista para 2 de agosto de 1913.Ora,
se em 1913 ela era uma “menina”, em 1906 ela não poderia ser uma “senhora”. Temos notícia da atuação
de Carolina Boni, anos mais tarde, no Grupo Dramático 1º. de Maio (ver notícia publicada no periódico
Liberdade da 1ª quinzena de abril de 1918). Segundo Edgar Rodrigues, ela atuou como amadora, nos anos
1921-1922, no Gremio Artistico Renovação. Para saber mais sobre a trajetória de Carolina Boni, ver
Rodrigues, Edgar. Os Companheiros – vol. 1. VJR-Editores Associados, Rio de Janeiro, 1994; p.136.
Voltaremos a enfocar a família Boni mais adiante.
64

1907. No final do balancete aparece a informação de que existia um saldo em caixa de


101$600. Boa parte desse saldo positivo deve-se ao mês de setembro de 1906, mês em
que, em suas “bases”, o grupo compromete-se com a criação da Casa do Povo. Após
esse mês alvissareiro, notamos uma sucessão déficits que foram se acumulando. O
único saldo positivo após aquele mês de setembro, no entanto, não apresenta um
resultado muito satisfatório: apenas 8$500.
Em nota, logo abaixo, Silva Monteiro, tesoureiro do grupo que assinou o
balancete, afirmou que os livros estavam com ele e à disposição dos associados. Tal
expediente denota uma nítida busca pela transparência.

1.4.3. A difícil tarefa de organizar uma festa e o curioso prazer das formalidades
Diante de toda essa precariedade financeira, certamente o bem intencionado
projeto da Casa do Povo foi abandonado. Isso não significa que os amadores do Grupo
Teatro Social deixaram de ser abnegados e altruístas. Manifestando um espírito de
solidariedade que, aliás, era uma característica notada também nos outros grupos (vimos
já pelo menos dois exemplos acima), os artistas operários estavam sempre atuando em
festas cujas receitas seriam destinadas a outrem. Talvez advenha daí sua periclitante
situação financeira.
Vejamos mais um exemplo. No dia 25 de janeiro de 1908, novamente A Terra
Livre publicou um anúncio do Grupo Teatro Social. Desta vez, tratava-se de uma festa
organizada pelo próprio grupo e prevista para ocorrer em “fins de fevereiro” no salão do
Centro Galego, situado então na Rua da Constituição. O evento seria “em benefício de
uma obra de educação e de solidariedade de iniciativa do camarada Campos Machado”.
Na programação da festa, havia inclusive uma peça deste “camarada” intitulada A Ceia
dos Pobres. Além dela, subiriam ao palco também A Escala, de E. Norès e Greve de
Inquilinos, comédia de Neno Vasco que analisaremos adiante. Um mês depois, em 26
de fevereiro de 1908, o mesmo periódico trouxe um novo anúncio do grupo. Desta vez,
sabemos que a festa programada para o fim de fevereiro foi, “por motivos imprevistos”,
adiada para 28 de março de 1908. O preço do ingresso? Uma bagatela: apenas 1$000.
Quanto à programação, temos uma mudança: em vez de encenar A Escala, agora o
grupo resolveu levar ao palco O Mestre, de Rousselle. Há mais um detalhe: ficamos
sabendo que Greve de Inquilinos seria representada pela primeira vez. Mais tarde, em
14 de março de 1908, a mesma festa foi anunciada em A Terra Livre. Na programação
65

deste último anúncio, a peça O Mestre foi suprimida e, em seu lugar, foi prevista uma
“zarzuela cômica” a ser apresentada pelo Grupo Lírico Dramático del Centro Gallego.
Como foi a festa? Não sabemos. Não encontramos notícia alguma dela nos
periódicos pesquisados. Caso seu resultado pecuniário não tenha sido positivo, é
provável que - assim como provavelmente ocorrera com o projeto da Casa do Povo - a
bem intencionada “obra de educação e solidariedade” de Campos Machado não tenha
prosperado.
De qualquer forma, o que é importante ressaltar, no caso específico deste último
evento citado, é o tempo gasto para sua organização. Certamente o esforço envidado na
preparação de festas como essa não era desprezível. Tendo em vista que no fim de
janeiro o evento fora já anunciado, podemos deduzir que os preparativos para ele já
estavam sendo feito desde, pelo menos, meados daquele mês. É possível, inclusive, que
os próprios ensaios das peças também estivessem ocorrendo naquele momento. Ora, de
meados de janeiro até o dia 28 de março, temos um período de aproximadamente dois
meses e meio. No caminho, uma das atrações teatrais programadas foi alterada duas
vezes, até que, por fim, se decidiu pela escolha de um grupo convidado para levar
adiante uma representação cômica.
Ora, em se tratando de um grupo experiente como o Teatro Social, que mantinha
uma atividade constante81 e bem divulgada nos periódicos, poderíamos refletir sobre as
enormes dificuldades que os amadores em geral enfrentavam para organizar as suas
festas.
Para não usar um único exemplo, faremos uma pequena digressão apresentando
um outro caso que, assim como o anterior, expressa bem as vicissitudes e adversidades
enfrentadas pelos grupos amadores na organização de suas festas.
Direcionemos nossa atenção para o que ocorreu por ocasião da estréia oficial do
Grupo Dramatico Anticlerical, também do Rio de Janeiro. No dia 5 de outubro de 1912,
o periódico A Lanterna publicou uma pequena nota anunciando a fundação definitiva
daquele grupo amador. Assim como outros já citados, este conjunto de artistas também
fez questão de afirmar que “unicamente representará peças anticlericais e sociais”. O
autor anônimo da nota aproveitou a oportunidade para informar que a primeira
encenação do grupo estava programada para “dezembro próximo”. A peça a ser levada
81
Além das festas em benefício de outrem, o Grupo Teatro Social promovia suas próprias “récitas
mensais”. Tal periodicidade observamos, sobretudo, ao longo do ano de 1907. Ver anúncios publicados
em A Terra Livre nos dias 27.07.1907, 18.08.1907, 15.09.1907 e 27.10.1907.
66

ao palco era o “drama anticlerical” Os Ladrões da Honra, cujos ensaios, sempre


segundo a nota, começariam ainda naquele mês de outubro.
Pois bem, o mês de dezembro passou, o ano de 1912 findou e nenhum indício
daquela festa foi encontrado na imprensa operária por nós investigada. Em 15 de janeiro
de 1913, eis que finalmente surgiu um novo sinal daquele evento. Naquele dia, A Voz do
Trabalhador, periódico carioca vinculado à C.O.B. (Confederação Operária Brasileira) ,
trouxe um anúncio daquela mesma festa em que o Grupo Anticlerical atuaria pela
primeira vez. Agora o evento estava previsto para ocorrer em fevereiro de 1913 e sua
renda seria revertida “em favor da publicação de folhetos de propaganda”. O drama
previsto para ser encenado continuava o mesmo: Os Ladrões da Honra. Os ensaios?
Bom, segundo o anúncio, “já vão adiantados”. Por fim, aquele mesmo periódico carioca
anunciou novamente o evento nos dias 1º. e 15 de fevereiro de 1913, agora com uma
data precisa para a sua realização: o dia 22 de fevereiro. É importante frisar que somente
no último anúncio da série (15.02.1913) o local da festa foi divulgado: o requisitado
salão do Centro Galego!
Ora, a divulgação tardia da data e do local é recorrente nas séries de anúncios
que encontramos. Tal morosidade provavelmente reflete uma não pequena dificuldade
na locação de salões e na escolha das datas. Por meio do exemplo que oferecemos no
início do capítulo (aquele do Grupo Dramatico Solidariedade), pudemos perceber que os
contratos de locação exigiam certo montante a ser oferecido como sinal. Também
pudemos notar, por meio dos balancetes já analisados, que a situação financeira dos
grupos era bem complicada. Por isso, as protelações parecem inevitáveis.
Voltemos à anunciada festa. Afinal, ela de fato ocorreu? Sim, não só ocorreu
como parece ter sido um “sucesso”. Em 1º. de março de 1913, A Voz do Trabalhador
informava que, no evento do dia 22 de fevereiro, o Grupo Dramatico Anticlerical, em
sua estréia, realizara um “esplêndido espetáculo”. Desta vez, ao que tudo indica, os
esforços não foram em vão! Mas o que interessa aqui não é o evento “em si”, e sim sua
organização. Peço ajuda com as terríveis contas de matemática. Daquele primeiro
anúncio publicado em 5 de outubro de 1912 até a data da festa, 22 de março de 1913,
quanto tempo transcorreu? Como fugi da escola em tenra idade, peço para que o
ilustrado interlocutor efetue a operação aritmética. É possível agora ter uma dimensão
do tempo que às vezes se levava para a consecução de uma festa do gênero. Conclusão:
afora para aqueles que são convidados, uma festa dá muito trabalho!
67

Retornemos novamente para as “bases fundamentais” do Grupo Teatro Social.


Analisaremos duas delas de uma só vez. A quarta afirma que o grupo seria administrado
por um secretário; este cuidaria da direção de “todo o expediente”. Haveria também um
tesoureiro para lidar com a parte financeira. A quinta “base”, intimamente relacionada
com a anterior, diz que o grupo teria ainda um diretor de cena. Este, assim como o
secretário e o tesoureiro, seria “aclamado pela assembléia geral”; caberia ao diretor de
cena a distribuição das partes e a escolha das obras.
Segundo Hobsbawm, um dos aspectos do “novo ritualismo do operariado”
estaria relacionado com o que ele chama de “ritualização dos procedimentos nas
reuniões”. Recorrendo aos exemplos britânico e francês, Hobsbawm sugere, para o
primeiro, uma influência dos procedimentos parlamentares e, para o segundo, a
incidência de uma tradição fundada nas práticas republicanas. Sem desconsiderar o
caráter “utilitário” das infindáveis reuniões que os segmentos mobilizados do operariado
organizavam, o autor supracitado faz questão de ressaltar o aspecto simbólico que elas
carregavam. Com todo o seu “balé constitucionalista de minutas, moções, emendas,
referências, suspensões de regimentos permanentes e similares”, as formalidades que
tais reuniões apresentavam proporcionariam também “uma certa satisfação ritual” 82.
Decerto, tais cerimônias, que foram o “deleite de gerações de ativistas
operários”, também marcaram os procedimentos da classe trabalhadora no Brasil. E,
sem dúvida, as “bases fundamentais” que agora analisamos inserem-se nessa tradição
das formalidades cultivadas. Se a organização das atividades por meio de um estatuto
oficial revela aqui um caráter utilitário (era preciso orientar atividades e pautar
condutas), parece-nos claro também que ela exprime um indisfarçável conteúdo
simbólico. E não devemos desprezar o caráter ritualístico das associações operárias.
Muitas vezes, é justamente tal caráter que garante o grau de coesão e unidade que elas
precisam para manter suas atividades. Portanto, em nossa pesquisa, o simbólico não será
encarado como dissociado do “utilitário”. Pelo contrário, conferiremos a ele uma grande
influência concreta e uma efetividade muitas vezes desprezada em outras abordagens.

82
Ver Hobsbawm, Eric. Mundos do Trabalho; Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra,1987; p. 110.
68

1.4.4 Novas dicotomias ...


Analisemos agora a sexta “base” de nosso estatuto, destinada aos elementos
“recalcitrantes”. Segundo ela, seriam desligados do grupo os companheiros que, sem
causa justificada, recusassem os papéis designados ou “comissões” de que fossem
“encarregados para o bom andamento do espetáculo”.
Maria Thereza Vargas e Mariângela Alves de Lima, comentando o estatuto que
ora analisamos, apontam para a dificuldade que os grupos anarquistas manifestavam na
definição dos “modos de agrupamento”. Para as duas pioneiras autoras, os regulamentos
nas associações ácratas “aparecem lentamente, cuidando para não confundir
organização e autoritarismo” 83 . De fato, no que se refere à organização interna,
podemos perceber nas “bases” do Grupo Teatro Social uma nítida ambivalência. Não
seria um exagero afirmar que as tais “bases” manifestam uma indisfarçável
ambigüidade na imposição de diretivas. Se num momento o estatuto excluía quem não
fosse operário sindicalizado, em outro ele acolhia mestres e contramestres (inclusive os
que não eram aceitos pelas associações de suas categorias). Se por um lado ele
configurava uma estrutura organizacional quase hierárquica, por outro, ele criava, por
meio de uma assembléia geral, dispositivos democráticos de decisões que inibiam
qualquer forma de autoritarismo desbragado. O que talvez nos impressione, em se
tratando de uma organização manifestamente libertária, é o acentuado rigor nas decisões
sobre os papéis encenados - atribuições exclusivas do diretor de cena - e o poder de
exclusão daqueles que não os quisessem assumir. Segundo as duas autoras citadas, estes
seriam, no entanto, mecanismos criados para evitar nefastos sentimentos de vaidade ou
manifestações de individualismo exacerbado dentro do grupo. Lá não haveria estrelas.
Todos deveriam assumir, com a mesma dedicação, quaisquer papéis que lhes fossem
designados. Se, num belo dia, determinado amador fosse protagonista, no outro ele
poderia ser um simples figurante.
No entanto, talvez tenha sido justamente a severidade das três últimas cláusulas
a responsável pelas apreciações que as duas autoras citadas fizeram a respeito desse
regulamento. Analisemos de perto um excerto da obra pioneira das duas autoras para,
depois, comentá-lo com mais propriedade.

83
Ver Alves de Lima, Mariângela e Tereza Vargas, Maria, Op. Cit; p. 51.
69

A julgar por esse regulamento, entretanto, a disciplina em teatro é um assunto muito


sério. Percebe-se a intenção de expurgar todo diletantismo possível da atividade artística. A
ninguém é permitido fazer teatro apenas por fazer, e muito menos pela realização pessoal.
[...] O método é calcado na divisão de trabalho do teatro profissional, beirando à
consolidação de hierarquias.
Essa divisão de trabalho não chega ao ponto de permitir a formação de líderes de grupo,
como acontece nos grupos filodramáticos diletantes. 84

Temos aqui a criação de duas dicotomias que permeiam os trabalhos de quase


todos os autores que se debruçaram sobre as práticas teatrais do movimento operário.
Uma delas contrapõe objetivos “doutrinários” à realização “pessoal”; a outra segmenta
filodramáticos “diletantes” e grupos amadores “libertários”.
A primeira dicotomia estabelece familiaridade com outra aparente disjunção que
já comentamos acima: aquela que separa entretenimento lúdico de tarefa de
“conscientização” da classe trabalhadora. No caso aqui presente cria-se a idéia de que,
no interior dos grupos amadores libertários, havia uma espécie de oposição entre
desígnios “doutrinários” e realização “pessoal” por meio da atividade teatral. No
entanto, acompanhando os registros sobre as atividades de nossos amadores, o que
percebemos, na verdade, é que as duas coisas caminhavam juntas. As próprias autoras
acima citadas reconheceram, um pouco antes, que nesse tipo de teatro “o utilitarismo da
arte não exclui o pressuposto anárquico de que se trata de uma manifestação respeitável
do espírito humano” [grifos das autoras]85. Ora, se na concepção anarquista o teatro (e,
por extensão, a arte em geral) é uma manifestação do “espírito humano”, como seria
possível vedar ao artista a decorrente “realização pessoal” proporcionada por suas
próprias atividades?
Além disso, as pioneiras autoras apontam para a valorização do “esforço
86
humano” que os “críticos libertários” manifestaram . Certamente elas estão aqui se
referindo aos comentários dos articulistas da imprensa operária a respeito da atuação
dos amadores em palco 87 . Em quase todos esses comentários, a tônica parece ser a

84
Ver Alves de Lima, Mariângela e Tereza Vargas, Maria, Op. Cit; p. 51.
85
Ibid.; p.38.
86
Ibid; p.52.
87
Citaremos alguns exemplos de comentários na imprensa operária que fazem menção elogiosa ao
“esforço” e/ou à “dedicação” dos amadores. Observação: outros mais poderiam ser citados. A Plebe,
05.02.1921: notícia sobre atuação do grupo dramático vinculado ao Centro de Estudos Sociais Juventude
do Futuro. A Vanguarda, 27.03.1921: balancete acima analisado de festa deficitária do Grupo
Solidariedade. A Terra Livre, 01.06.1907: notícia sobre Grupo Teatro Social, do Rio de
70

mesma: não obstante as possíveis “falhas” dos amadores na representação de seus


respectivos papéis, o mais importante é o “esforço” por eles envidado. De fato,
analisando as dificuldades enfrentadas pelos amadores, a menção ao “esforço” não é um
mero exercício retórico da parte dos articulistas. Não podemos nos esquecer de que os
grupos que analisamos eram formados por trabalhadores que, além de ganharem pouco,
trabalhavam de dez a quatorze horas por dia, não tinham direito a férias e, quando
muito, descansavam um único dia na semana. Nas poucas horas livres da semana, o que
faziam os abnegados amadores? Participavam de reuniões e ensaios para, nos finais de
semana, atuar nos palcos dos salões em que ocorriam as festas operárias. Muitas vezes,
como pudemos perceber, eram eles próprios que organizavam essas festas.
Tendo em vista essa dura situação cotidiana, não nos admira a menção elogiosa
aos denodados “esforços” dos amadores. Os articulistas da imprensa operária sabiam
muito bem o trabalho que dava preparar um espetáculo – quando não uma festa inteira!
A pergunta que podemos fazer é a seguinte: para além da causa militante, será que,
diante de tantas adversidades, a “realização pessoal” (ou o “prazer descomprometido”)
não era um ingrediente importante na alimentação desse desejo de atuar? De onde
brotava tanto empenho, se não também do próprio desejo pessoal de subir ao palco?
Afinal de contas, esses esforçados amadores sacrificavam as poucas horas livres de que
dispunham participando de reuniões, ensaios e apresentações. Haveria alguma
disjunção entre as inclinações artísticas “pessoais” e os propósitos ideológicos dos
amadores que analisamos? Para nós, definitivamente não.
A outra dicotomia expressa no excerto acima citado diz respeito às supostas
clivagens entre filodramáticos “diletantes” e grupos amadores “libertários”. Em sua tese
de doutorado, David José Lessa Mattos, influenciado pelas pioneiras autoras, constrói
uma abordagem semelhante. Em uma breve análise do teatro amador operário
paulistano, ele aponta para a distinção entre os grupos filodramáticos amadores, “cujo

Janeiro.Liberdade, 2ª. quinzena de maio de 1918: notícia sobre atuação do Grupo Dramatico 1º. de Maio,
do Rio de Janeiro. Novo Rumo, 19.09.1906: comentários sobre atuação do Grupo Dramatico Social
(provavelmente, trata-se do próprio Grupo Teatro Social que analisamos). .A Vanguarda, 27.04.1921:
notícia sobre atuação de grupo anônimo vinculado à União dos Operários em Fábricas de Tecidos (São
Paulo). Novo Rumo, 20.02.1906: comentários sobre atuação do grupo dramático da Liga das Artes
Graphicas (Rio de Janeiro). A Lucta Proletaria, 29.02.1908: comentários sobre atuação de grupo anônimo
vinculado à Liga dos Marceneiros (São Paulo). A Plebe, 26.06.1920: notícia sobre espetáculo realizado
por um grupo anônimo vinculado à União dos Operários Metalúrgicos (provavelmente de São Paulo).
Temos ainda um anúncio publicado em A Plebe em 21.02.1920; nele há uma nota afirmando que uma
“comissão organizadora premiará com uma medalha de ouro o amador que melhor desempenhar o seu
papel”. O que seria tal premiação senão um estímulo ao tal do “esforço”?
71

interesse pelo teatro era muito mais artístico do que político”, e os “grupos teatrais
anarquistas”, supostamente mais engajados e sem maiores pretensões estéticas. Segundo
o autor citado, enquanto os primeiros seriam motivados por uma “paixão pelo teatro” e
pela “vontade de representar”, os últimos manifestariam uma maior “filiação
ideológica” aos propósitos libertários e estariam dispostos a sacrificar-se não pelo
prazer de atuar, mas sim pela fidelidade à causa abraçada. Enquanto os primeiros,
principalmente de origem italiana, manifestariam “o desejo de manter viva a lembrança
dos costumes e tradições de seus países”, os últimos expressariam um
comprometimento político diferente: por assim dizer, mais radical. Em uma perspectiva
diacrônica de análise, a diferenciação entre ambos teria se constituído com o tempo: aos
poucos, “os grupos teatrais anarquistas sentiram a necessidade de distinguirem-se dos
filodramáticos, considerados por eles como diletantes”. A prova disso estaria nos
próprios nomes que os grupos anarquistas assumiram com o tempo: “Os Libertários,
Pensamento e Ação, Germinal etc”. David Lessa chega inclusive a apontar uma data
aproximada como divisor de águas: tal diferenciação teria acontecido “por volta de
1908, quando as associações operárias achavam-se mais preparadas para o trabalho de
propaganda”. Segundo ele, a partir de então, a “denominação filodramático foi aos
poucos desaparecendo”88 e os grupos amadores foram adquirindo uma tendência cada
vez mais militante.
Em um trabalho mais recente, Samanta Colhado Mendes chega a nuançar a
segmentação acima mencionada. Sem deixar de reconhecer as diferenças entre
filodramáticos e grupos libertários, ela ressalta que os primeiros, desde o final do século
XIX, encenavam já inúmeras peças de “cunho libertário”89 . Dentre as semelhanças
entre eles, a autora citada afirma que os filodramáticos, assim como os grupos
libertários, promoviam uma “convivência livre entre os trabalhadores imigrantes e um
lazer criativo, educativo e crítico para o grande contingente populacional urbano da
época”90 . De fato, o que percebemos ao analisar os anúncios veiculados na imprensa
operária de São Paulo é que aquela segmentação não deve ser exagerada.
Vejamos alguns casos que ilustram nossa concepção. Desde 1902 existia um
Nucleo Filodrammatico Libertario atuando com certa freqüência em São Paulo. Parece-
88
Ver Mattos, David José Lessa. Op. Cit.; p.119.
89
Ver em http://www.franca.unesp.br/poshistoria/samanta.pdf, Mendes, Samanta Colhado. As Mulheres
Anarquistas na Cidade de São Paulo (1889-1930). Dissertação de Mestrado apresentada na Faculdade de
História, Direito e Serviço Social (UNESP-Franca); p.221.
90
Ibid.; p.222.
72

nos claro que o próprio nome dele revela uma aproximação entre os propósitos daqueles
dois grupos aparentemente segmentados. Afinal, muito antes de 1908, ele era já, ao
mesmo tempo, “filodramático” e “libertário”. Em 6 de setembro de 1902, O Amigo do
Povo publicou um anúncio de uma festa organizada pelo grupo no Cassino Penteado,
situado no Brás91. Nela seriam encenadas, em italiano, Il Primo Maggio, de Pietro Gori
e “uma engraçadíssima farsa”. No mesmo anúncio, percebemos que um dos amadores
que atuaram no grupo foi o influente militante Giulio Sorelli, imigrante italiano que
exercia o ofício de marceneiro e morava então no Cambuci. Sorelli, na mesma época,
escreveu uma peça intitulada Il Giustiziere, encenada pouco depois, em 18 de outubro92,
no teatro Andrea Maggi, “cujo proprietário era o anarquista italiano Giovanni Gargi” 93.
Por meio de um anúncio publicado no mesmo jornal em 11 de abril de 1903, sabemos
também que outra amadora importante do Nucleo Filodrammatico Libertario foi Dona
Elvira Camilli. Esta, segundo Samanta Colhado Mendes, “participou ativamente”
daquele grupo, “atuando em várias outras peças”94. É provável, inclusive, que esta
influente amadora tenha fundado seu próprio grupo filodramático na mesma época. Isso
porque, como vimos no início deste capítulo, em 25 de novembro de 1903, ainda em O
Amigo do Povo, saiu um anúncio que apresentava um grupo filodramático com seu
nome: “Grupo Filodrammatico Donna Elvira C. Milli” [registrado exatamente desta
forma]. Para este registro, temos duas hipóteses: ou o sobrenome “C. Milli” aponta para
uma outra pessoa (não a Dona Elvira do Filodrammatico Libertario) ou tal registro é
uma simples corruptela de “Camilli”. Tendo em vista a influência de Elvira Camilli no
teatro amador da época e os anúncios freqüentes de suas atuações em O Amigo do Povo,
estamos inclinados a aceitar a segunda hipótese, não a primeira.
Façamos agora uma análise do que todas essas informações indicam.
Primeiramente, é preciso ressaltar que, para além do nome, a composição e as atividades
do Nucleo Filodrammatico Libertario mostram uma nítida confluência entre o que
seriam, numa visão segmentada, os propósitos de “filodramáticos” e de “libertários”.

91
Segundo Mattos, David José Lessa, Op.Cit, p.115, “a prática do teatro amador no meio operário” era
tão intensa “que, por exemplo, os tecelões da Fábrica Santana, no Brás, dispunham de um teatro próprio,
o Cassino Penteado, mandado construir pelo patrão, Antonio Álvares Penteado”. Acompanhando os
anúncios da imprensa operária, vemos que este teatro foi bastante utilizado nas representações de nosso
teatro operário amador.
92
Ver notícia em O Amigo do Povo, 25.10.1902.
93
Ver Toledo, Edilene. Anarquismo e Sindicalismo Revolucionário – Trabalhadores e Militantes em São
Paulo na Primeira República; São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2004; p.22.
94
Ver Mendes, Samanta Colhado. Op. Cit; p.231.
73

Ele era um grupo formado por italianos, assim como os tradicionais filodrammatici de
São Paulo e, ao mesmo tempo, possuía uma nítida inclinação libertária, se não pelo
nome, pelas peças por ele encenadas.
A participação de Giulio Sorelli no grupo também não esconde seus desígnios
libertários. Não vem ao caso discutir aqui se Sorelli era anarquista, sindicalista
95
revolucionário ou socialista . Basta-nos aqui ressaltar que seus propósitos não eram
outros, a não ser os de qualquer militante libertário de então: combater em favor da
“emancipação humana”. Sabemos, por exemplo, que a peça Il Giutiziere, de sua autoria,
é um drama que está bem de acordo com os objetivos “doutrinários” assumidos pelos
grupos libertários em geral. Por isso mesmo, foi bastante encenada a partir de então nas
chamadas “festas de propaganda”. Seu enredo refere-se ao episódio em que o anarquista
Gaetano Bresci assassinou o rei italiano Umberto I, em 1898. Ora, não precisamos
assistir à peça para saber qual o juízo que Sorelli fez daquele incidente: basta atentar
para o título da obra.
E o que diríamos de Elvira Camilli, o outro membro do grupo de quem nós
temos alguma notícia? Nada sabemos sobre sua militância, para além das atividades no
Nucleo Filodrammatico Libertario. Sabemos apenas que em 5 de dezembro de 1903
aquele grupo filodramático com o seu nome representou uma peça intitulada Guglielmo
Tell, em homenagem ao lendário herói suíço que, no início do século XIV, teria lutado
contra o domínio austríaco. Ora, desnecessário dizer que um herói desse tipo, em uma
época de litígios territoriais entre Itália e Império Áustro-Húngaro, fazia também um
apelo aos sentimentos nacionalistas que alguns italianos, influenciados pelo
Risorgimento, cultivavam então.
Sendo assim, se levássemos a sério uma rígida segmentação entre filodrammatici
e amadores libertários, diríamos que, no interior do Nucleo Filodrammatico Libertario,
Elvira Camilli representaria os primeiros e Sorelli os últimos. No entanto, insistimos
que as fronteiras ideológicas podiam ser mais tênues do que imaginamos às vezes. O
próprio Sorelli, em um texto atribuído por Edilene Toledo “provavelmente” a ele,
manifestara em outros tempos um sentimento nacionalista não muito diferente daquele
de alguns filodrammatici de São Paulo.
Vejamos o que esse militante italiano teria dito sobre suas idéias pregressas:

95
Sobre a polêmica, ver em Toledo, Edilene, Op. Cit., capítulo intitulado A formação política de um
imigrante.
74

“Eu também fui republicano apaixonadíssimo e convicto. Admirei sempre em Mazzini a sua
inteligência, sua alma fortemente revolucionária. Mazzini acordou o povo quando ele dormia,
falou a ele de liberdade e o povo ouviu sua boa palavra e começou o trabalho para a revolução.
Entretanto, amigo, as idéias de Mazzini eram sublimes a seu tempo. Mas como o progresso
caminha [...] eu me declarei socialista após ter me convencido de que uma República, por melhor
que seja, nunca fará com que o trabalhador seja realmente econômica e politicamente
emancipado”96 .

Tal admiração por certo não era exclusividade de Sorelli. Outros militantes
parecidos com ele devem ter também, em algum momento de suas vidas, namorado os
princípios revolucionários do republicanismo italiano. Da mesma forma, aqueles
imigrantes que louvavam os heróis nacionais do Risorgimento, em muitos momentos,
devem ter admirado também os princípios libertários propagados pelos militantes
anarquistas (e/ou sindicalistas revolucionários). A atmosfera ideológica de então era, de
fato, bem complexa. Não nos surpreende, assim, a enorme fluidez de idéias que aqueles
imigrantes não raro manifestavam. Com isso não queremos dizer que não houvesse
distinções ideológicas definidas. Mas, como a própria Edilene Toledo acaba
reconhecendo em sua obra, as “classificações rígidas não levam em consideração as
mudanças que os militantes viveram ao longo de suas vidas e a própria natureza de
alguns momentos”97.
Não seria exagero dizer o mesmo para os grupos amadores de São Paulo.
Classificá-los de forma rígida como “filodramáticos diletantes” e/ou “amadores
libertários” seria atribuir a eles um esquematismo didático que dificilmente possuiriam.
Mesmo considerando a severidade de alguns discursos militantes na imprensa operária,
notamos que, na prática, as aproximações e os intercâmbios entre amadores da classe
trabalhadora eram mais constantes do que as disjunções. Aliás, em momento algum os
atores dos grupos ditos libertários deixaram de se considerar amadores. Enfim, se eles
não se julgavam profissionais, por que diferenciá-los daquilo que se chama de
“diletantes”? Aliás, o próprio nome “filodramático” permaneceu em grupos ditos
“libertários” que surgiram bem depois de 1908. Não nos esqueçamos do Grupo
Filodramatico Solidariedade (1920-1921) e do Grupo Filodramatico Libertas (1920), já
citados no início do capítulo. Temos também o Circulo Filodramatico Libertário (não

96
Ver a citação em Toledo, Edilene. Op. cit.; p.28.
97
Ibid.; p. 120.
75

confundir com o grupo homônimo supracitado), que atuou, dentre outras, em uma festa
organizada pelo Círculo de Estudo Sociais Conquista do Porvir, em 13 de abril de
191298. Encontramos também uma Societá Filodrammatica Studio e Dilletto; esta, em
99
30 de abril de 1912, organizou uma festa em favor do periódico La Battaglia .
Poderíamos ainda citar outros grupos amadores de São Paulo que, mesmo surgindo
depois de 1908, possuíam nomes que, apesar de não indicarem inclinação libertária,
atuavam em festas beneficiando ligas de resistência, sindicatos, periódicos anarquistas
ou “companheiros” necessitados100.
Vejamos mais um exemplo que ilustra o que pretendemos dizer. O periódico
paulistano O Amigo do Povo, em sua edição de 22 de novembro de 1903, publicou uma
pequena nota sobre as chamadas “festas libertárias”. Estas, expressamente nomeadas
assim, estariam sucedendo-se “ininterruptamente” em São Paulo. Nelas, “milhares de
pessoas” estariam se reunindo para assistir a peças que “os grupos filodramáticos são
obrigados a repetir”. Por que tais grupos repetiam aquelas encenações? Segundo a nota,
para satisfazer o desejo do público, sempre ávido de ver e sintetizar “naquelas cenas a
sociedade que morre para dar lugar à sociedade que nasce”. A crer no que diz a nota,
bem antes de 1908, portanto, aqueles filodramáticos de origem italiana estariam já
encenando peças que, ao que parece, estavam bem de acordo com os propósitos dos
libertários. Afinal, quem, senão os próprios libertários, pregava explicitamente o ocaso
da sociedade capitalista e o advento de um “porvir melhor”? Aqui, ao invés de crítica,
temos, da parte de um periódico libertário, um verdadeiro elogio ao trabalho realizado
pelos filodramáticos de São Paulo.
Portanto, deixemos de lado essa distinção entre filodramáticos “diletantes” e
amadores “libertários”. Até porque essa discussão refere-se exclusivamente ao contexto
paulistano. E, se em São Paulo tal segmentação é suspeita, no Rio então ela nem sequer
pode ser mencionada. E por falar em Rio, voltemos ao caso do Grupo Teatro Social

98
Ver, em A Lanterna, anúncio publicado em 02.03.1912. Em La Battaglia, ver anúncio de 13.04.1912.
99
Ver, em La Battaglia, anúncio publicado em 01.05.1912.
100
Por exemplo: ver em A Plebe (29.05-12.06 e 19.06.1920) anúncio de festa organizada pela União dos
Operários Metalúrgicos em que o Grêmio Dramático Luzitano encenaria a peça O Veterano da
Liberdade. Ainda em A Plebe (27.11.1920), ver anúncio da festa organizada em benefício do Grupo
Editor “Neno Vasco”; nela o Grupo Dramático Pierrot representaria a peça O Vagabundo. No mesmo
jornal, em anúncio publicado no dia 13 de novembro de 1920, o Grupo Dramático Amor e Mocidade
aparece na programação de uma festa em favor de um operário paralítico; nela os amadores encenariam
Os Filhos da Canalha e O Pecado de Simonia. Em Alba Rossa (13.10.1919), ver notícia de festa em que
o corpo cênico do Círculo Maria Falcão atuou em favor de A Plebe. Além de Primo Maggio, o grupo
encenou o drama anticlerical Os Ladrões da Honra, também bastante representado em nossas festas.
76

daquela cidade. Ficou faltando analisar uma única cláusula do regulamento aprovado
em assembléia pelos elementos daquele conjunto teatral. Analisemo-na.

1.4.5.O Grupo Teatro Social e o Grupo Teatro Livre: imbricações, um entreato e


muitas confusões
A sétima e última “base fundamental” afirma que os espetáculos em benefício de
operários só serão oferecidos por intermédio de solicitação feita pelas comissões
administrativas dos sindicatos a que pertencerem os necessitados. E só serão atendidos
os sindicatos que prestarem auxílio ao Grupo Teatro Social. De novo, ficam evidentes
aqui os vínculos que o grupo pretendia estabelecer com os segmentos organizados da
classe trabalhadora. Primeiramente, não seria qualquer trabalhador que poderia se
beneficiar das atividades do conjunto teatral; apenas os sindicalizados teriam tal direito.
Além disso, nas relações entre o grupo e os sindicatos, exige-se dos últimos uma
reciprocidade para com o primeiro. Isso valorizava o trabalho dos amadores (não era
qualquer sindicato que podia cobrar os serviços do respeitável grupo) e garantia uma
relação de mútua deferência entre o grupo e as associações de classe vinculadas a ele.
Essa cláusula é mais uma das que evidenciam o caráter “operário” que o conjunto teatral
queria conferir a si.
Segundo a nota publicada em Novo Rumo, depois de aprovadas as “bases” acima
comentadas, foram aclamados M. C. Nogueira (secretário), Antonio S. Monteiro
(tesoureiro) e M. Ferrer (diretor de cena). Quanto a Antonio S. Monteiro, vimos já o seu
nome subscrito naquele balancete anual do grupo analisado anteriormente. Afora esse
registro, não encontramos mais nenhum outro vestígio do tesoureiro na imprensa
operária da época. É provável que Antonio Silva Monteiro nem sequer tenha subido ao
palco para representar qualquer papel.
O mesmo não ocorreu com os outros representantes aclamados em assembléia.
Os nomes de Mariano Ferrer e M. Couto Nogueira aparecem em anúncios e notícias
esparsos por alguns dos órgãos da imprensa operária carioca. Sabemos, por exemplo,
que pelo menos um deles (Mariano Ferrer) participou de um outro grupo amador do Rio
intitulado Teatro Livre. Este conjunto teatral apresentou uma trajetória um tanto
descontínua – senão mesmo enganadora. O primeiro registro que encontramos deste
nome desponta na edição de 20 de julho de 1906 do periódico Novo Rumo. Trata-se de
um anúncio bem detalhado de uma festa prevista para o dia 11 de agosto no “salão
77

teatro do G. D. Furtado Coelho”, situado na Rua Visconde de Sapucaí, nº.103. Na


primeira parte do programa estava prevista a representação do drama El Ocaso de los
Ódios (de E. Carral), “em espanhol”. Um dos atores que atuariam neste drama era
justamente Mariano Ferrer, que mais tarde, como vimos, seria aclamado diretor de cena
do Grupo Teatro Social. Temos ainda no elenco desta peça, outros amadores
freqüentemente citados nos órgãos da imprensa operária carioca e que também
pertenciam ao Grupo Teatro Social. Este é o caso de Portas e seus pequenos filhos
Armando e Tata101. Ainda de acordo com o anúncio, participaria também da encenação
de El Ocaso de los Odios a Sra. Carmen. Trata-se, com certeza, de Carmen Ferrer, que,
segundo Edgar Rodrigues, era “companheira” do já citado Mariano 102. A terceira parte
da programação anunciada para aquele evento previa a encenação da “comédia social”
A Escala. Esta, assim como a peça anterior, era bastante encenada nos salões das “festas
de propaganda”. O elenco que tomaria parte em sua representação era formado, dentre
outros, pelos “operários” M. Couto Nogueira (depois aclamado secretário do Grupo
Teatro Social) e Ulisses Martins. Este último seria mais tarde um membro ativo da Liga
Anticlerical do Rio de Janeiro, atuando como amador no grupo dramático vinculado
àquela entidade.

Imagem 4 – anúncio publicado em Novo Rumo (20.07.1906)

Até aqui, tudo bem. As migrações acima citadas, como tantas outras,
expressariam os constantes deslocamentos que marcavam as trajetórias bem errantes de
dos amadores que estudamos. Era comum um determinado amador atuar em diferentes

101
Em notícia publicada em A Terra Livre de 4 de agosto de 1907, o autor (C.M.), ao se referir a um
espetáculo do Grupo Teatro Social, afirma que “o camarada Portas tem em casa um viveiro de futuros
artistas, porque a Tata e o Armando, que sempre trabalharam no `Mestre´[de Rousselle], são um encanto”.
102
Ver Rodrigues, Edgar. Os Companheiros – vol. 4. Florianópolis, Editora Insular, 1997; p.153.
78

grupos, concomitante ou sucessivamente. O problema é que nem sempre (ou quase


nunca) nossas fontes dizem o que queremos ouvir. Em 19 de setembro de 1906, o
mesmo periódico Novo Rumo publicou uma notícia comentando o evento cuja
programação fora veiculada no anúncio acima citado. Nessa notícia, no entanto, aquele
que no anúncio fora chamado de Grupo Teatro Livre, aqui (na notícia) recebia o nome
de Grupo Dramatico Social. Ficamos assim diante de um impasse em que se
descortinam três possibilidades distintas. Primeira: o autor da notícia (C.M.) errou o
nome do Grupo Teatro Livre, chamando-o, em seus comentários posteriores, de Grupo
Dramatico Social. Segunda: estaríamos diante de um terceiro grupo - nem Teatro Livre
nem Teatro Social, mas sim Dramatico Social. Terceira: o grupo chamado no anúncio
de Teatro Livre nada mais seria do que o próprio Grupo Teatro Social, na notícia
designado em sua variante “Dramatico Social”103.
No momento, inclinamo-nos a aceitar a terceira hipótese. Isso porque, para os
anos de 1906 e 1907 (anos em que, como vimos, o Grupo Teatro Social foi bastante
ativo), nenhum outro vestígio sobre o Grupo Teatro Livre foi encontrado. Além do
mais, os amadores citados no anúncio do Teatro Livre (assim como na notícia do
hipotético “Dramatico” Social) são praticamente os mesmos que atuavam no Teatro
Social - e as peças que seriam encenadas por aquele (O Ocaso dos Ódios e Pecado de
Simonia) faziam parte do repertório deste. Devemos ainda mencionar que, na mesma
edição de 19 de setembro de 1906, o mesmo periódico Novo Rumo, ao transcrever o
estatuto que analisamos acima, utilizou o nome “Dramatico Social” para se referir ao
próprio Grupo Teatro Social.
No entanto, a solução por nós encontrada apresenta ao menos dois problemas.
Primeiro, é que Edgar Rodrigues afirma, em Os Companheiros, que um “Grupo
Dramático de Teatro Livre”, fundado na Associação Auxiliadora dos Artistas
Sapateiros, surgiu no Rio de Janeiro em 1903104. No entanto, não encontramos nenhum
registro desse nome na data que o autor oferece para a sua fundação. Como Rodrigues
não menciona as fontes por ele consultadas, fica difícil saber se sua informação procede
ou não. Caso tenha aparecido um grupo com esse nome em data tão recuada, certamente

103
Ver na página 42 desta pesquisa a transcrição do estatuto publicada em Novo Rumo de 19 de setembro
de 1906.
104
Sobre a questão, ver Rodrigues, Edgar. Os Companheiros – Vol. 1. Rio de Janeiro, VJR – Editores
Associados, 1994; p. 149. Ver também Rodrigues, Edgar. O Anarquismo na Escola, no Teatro, na
Poesia. Edições Achiamé Ltda, Rio de Janeiro, 1992;p.113.
79

ele não é o mesmo ao qual estamos nos referindo aqui. Em nossa pesquisa, tomamos
muito cuidado com as informações que o importante memorialista apresenta: elas nem
sempre correspondem ao que encontramos nos documentos. Edgar Rodrigues não
manifestava o rigor que é cobrado dos trabalhos acadêmicos. Acreditamos que muitas
de suas informações têm como lastro apenas a sua memória. Isso não desmerece, é
claro, o importante trabalho por ele realizado. Sem esse trabalho nossa pesquisa seria
bem mais complicada!
O outro problema da solução por nós encontrada é que, de fato, existiu no Rio de
Janeiro um grupo intitulado Teatro Livre. No entanto, as informações que temos sobre
ele só se tornaram mais constantes a partir de agosto de 1908, ocasião em que já não
aparecem mais informações sobre o Grupo Teatro Social (vimos que o último indício
deste conjunto teatral aparecera em 14 de março de 1908). E o mais intrigante é que, em
anúncio publicado no periódico A Voz do Trabalhador do dia 22 de novembro de 1908,
está prevista para o dia 28 daquele mês uma festa em que o Grupo Teatro Livre,
“ensaiado pelo ator Mariano Ferrer y Goñi, ex-ensaiador do Grupo Dramatico Teatro
Social”, encenaria a peça Os Maus Pastores, de Octave Mirbeau (“tradução do amador
Ulisses Martins”). Sendo assim, ao que tudo indica, é possível que, naquele momento
(segundo semestre de 1908), o Grupo Teatro Social já não mais atuasse e o Grupo
Teatro Livre tivesse se tornado o seu sucedâneo. No entanto, para além de Mariano
Ferrer, é impossível saber se outros membros do Teatro Social estiveram também
presentes no Teatro Livre.
O último indício que encontramos do Grupo Teatro Livre apareceu em A Voz do
Trabalhador no dia 1º. de maio de 1909. Trata-se de um anúncio de uma festa prevista
para ocorrer no dia 15 daquele mesmo mês. Dentre outras peças, consta da programação
a representação de O Triunfo, de Carrasco Guerra. O anúncio informa que a peça fora
proibida pela polícia em Lisboa e depois levada à cena naquela cidade com alguns
cortes. Aqui, no entanto, a representação seria “na íntegra”! Outro traço curioso deste
anúncio é que ele apresenta um dos raros momentos em que um grupo amador resolvia
investir em si mesmo. Contrariando a tendência de realizar eventos em benefício de
outrem, desta vez o Teatro Livre resolveu “colocar as manguinhas de fora”. Afirmava-
se no anúncio que a renda da festa seria destinada “a cenários, adereços e guarda roupa”
para as próximas encenações. A justificativa era a de que o grupo vinha recebendo uma
80

grande quantidade de peças novas e os gastos com os recursos cênicos estavam sendo
“dispendiosos”. No anúncio, o grupo fez um apelo ao auxílio de todos.
Não sabemos se essa festa de fato ocorreu – não encontramos nenhuma notícia
posterior relativa a ela. Também não sabemos se o Grupo Teatro Livre continuou
atuando depois disso - nenhum outro registro dele foi encontrado nos órgãos da
imprensa operária.
No entanto, veja que interessante! Se uns desaparecem, outros ressurgem. Dois
anos depois, o periódico carioca A Vanguarda publicou uma pequena notícia
105
informando que o Grupo Teatro Social estava “definitivamente reorganizado” . Por
meio desse registro, sabemos também que as suas “bases” seriam as mesmas já
analisadas acima e que de seus serviços só poderiam se utilizar os sindicatos “desta
Capital” (ou seja, do Rio). Outra coisa: depois de um longo entreato, o grupo voltava
sob a direção de quem? De Mariano Ferrer, o mesmo que fora já seu diretor de cena e
que transitara também pelo Grupo Teatro Livre. Não sabemos o que aconteceu com os
demais membros da formação anterior. É provável que alguns deles tenham novamente
se juntado à nova formação. Também não sabemos se esta reedição durou muito tempo.
Ao que tudo indica, não – nenhum outro registro dela foi por nós encontrado. Daqui em
diante, só encontraremos, no contexto do Rio, um outro grupo homônimo que apareceu
bem mais tarde, em 1921. Mas, com certeza, sua constituição era bem diferente e esta já
é uma outra história. Chega de confusões!.

1.5. Os amadores e suas perambulações


Pudemos já perceber que os grupos amadores sobre os quais nos debruçamos
apresentavam trajetórias bem errantes e descontínuas. Notamos também que acontecia o
mesmo com os próprios amadores que compunham esses grupos. É comum encontrar,
nos órgãos da imprensa operária, os mesmos nomes de amadores em anúncios e notícias
de diferentes grupos dramáticos. Isso acontecia com certa freqüência no Rio. Um dos
amadores que atuaram em diferentes conjuntos teatrais cariocas, como já vimos, foi o
tipógrafo espanhol Ulisses Martins. Este, diga-se de passagem, antes de chegar naquela
cidade, militara também em São Paulo. Já estabelecido no Rio, temos indício de sua
atuação, em 1906, no Grupo Teatro Social – aquele que serviu de eixo central em nossa
análise. Seu nome aparece em um registro que comentamos logo acima. Trata-se

105
Ver A Vanguarda do dia 17 de junho de 1911.
81

daquele anúncio em que surge pela primeira vez a menção ao Grupo Teatro Livre.
Vimos, no entanto, que tal anúncio provavelmente referia-se ao próprio Teatro Social.
Naquela programação de festa, Ulisses Martins aparecia como um dos atores que
encenariam a peça A Escala, “comédia social” de E. Norès. Mais tarde, o tipógrafo
ingressou na Liga Anticlerical do Rio de Janeiro e passou a atuar no grupo dramático
vinculado a ela. Sabemos, por exemplo, que no dia 2 de maio de 1912 Ulisses Martins
tomou parte na encenação de Avatar, um drama social de Marcelo Gama 106.
Outra amadora que também pulou de um grupo para outro foi Auzentina Neiva.
Em notícia publicada em Liberdade (1ª. quinzena de abril de 1918), seu nome apareceu
no elenco de O Pecado de Simonia, obra anticlerical que analisaremos em nossa
pesquisa. Ela atuou, junto com o Grupo Dramatico 1º. de Maio, em uma festa
organizada pelos marceneiros do Rio e realizada no dia 16 de março de 1918.O autor
anônimo da notícia referiu-se a ela como sendo uma “novel amadora”, o que nos faz
pensar que aquela era sua estréia nos palcos. Tecendo um elogio à atuação de
Auzentina, o comentarista afirmava que, na ocasião, ela “teve o ensejo de mostrar suas
aptidões” para o teatro, mostrando-se ser alguém que “de futuro será uma amadora de
merecimento”. De fato, parece que Auzentina gostou da experiência. Isso porque, nos
meses seguintes, ela continuou atuando. Vemos seu nome aparecer depois em outros
registros sobre o Grupo 1º. de Maio. Sabemos também de sua atuação, em meados
daquele ano, na Escola Dramática do Clube Ginástico Português. Em notícia publicada
no mesmo periódico Liberdade (2ª. quinzena de julho de 1918), o comentarista anônimo
fez elogios rasgados à atuação dos amadores, ressaltando que Auzentina Neiva “vai dia
a dia acentuando o carinho com que estuda os seus papéis”.
As perambulações dos amadores não ocorriam apenas no interior de uma mesma
cidade. Sabemos, por exemplo, que alguns deles transitavam entre grupos teatrais de
diferentes cidades. Este é o caso das irmãs do ativo militante Raimundo Primitivo
Soares, mais conhecido como Florentino de Carvalho. Matilde, Maria Angelina, Maria
Antonia e Pilar Soares, influentes amadoras do teatro anarquista, acompanharam o
irmão mais velho não apenas na adoção da ideologia ácrata, como também em suas
mudanças de cidade. Sabemos que a família Soares provinha da Espanha. Segundo
Edgar Rodrigues, Florentino de Carvalho, irmão mais velho, veio de Oviedo para São
Paulo com a idade de 10 anos, aqui chegando provavelmente em 1889. Mais tarde, vai

106
Ver A Lanterna de 11 de maio de 1912.
82

com sua família para Santos, ingressa no sindicalismo, é preso e se vê obrigado a partir
para a Argentina (provavelmente sozinho). Em 1914, a família Soares voltou para São
Paulo, estabelecendo-se na Rua Bresser, no bairro do Brás. Ao que tudo indica, foi a
partir de então que se iniciou o envolvimento das irmãs Soares com a dramaturgia
libertária. No entanto, devido ao caráter fragmentário e esquivo das informações sobre
teatro na imprensa operária paulistana, encontramos um único registro assinalando o
nome de uma das irmãs Soares na programação de uma festa em favor do periódico A
Obra. Trata-se de um anúncio já mencionado no início do capítulo. Ele apresenta o
nome de Maria Antonia Soares como membro do Grupo Os Modestos. No entanto, não
temos por que duvidar do grande envolvimento teatral das irmãs Soares em São Paulo.
Em entrevista oferecida por Maria Angelina a Edgar Rodrigues, em 1984, fica evidente
que suas atividades nos palcos das festas operárias já eram intensas naquele período de
suas vidas107.
Sabemos também que, em 1923, a família Soares partiu para o Rio de Janeiro e a
sua casa, situada na Penha, virou ponto de encontro para reuniões anarquistas e para
ensaios de peças libertárias. Segundo Edgar Rodrigues, as obras agora ensaiadas seriam
108
depois representadas nos salões do Centro Galego e da Associação dos Cocheiros .
Matilde, Maria Angelina, Maria Antonia e Pilar Soares109 ingressaram, provavelmente
em 1925, no Grupo Renovação Teatro e Música, que estendeu suas atividades até
1935110.
Outra família bem ativa no teatro amador era a dos irmãos Boni. Mais uma vez,
é Edgar Rodrigues que nos ajuda a reconstituir parte das trajetórias de seus membros.
Em Os Companheiros, o memorialista afirma que a família Boni, de origem italiana,
saiu de Espírito Santo do Pinhal (estado de São Paulo) e foi para Cordovil (subúrbio do
Rio de Janeiro) no início do século XX. Os nomes dos irmãos Amílcar, Estevam, Elvira
e Carolina Boni foram encontrados em diferentes registros sobre teatro na imprensa
operária (sobretudo carioca). Não sabemos o nome do pai desses três irmãos . Mas, de

107
Ver menção a tal entrevista em Rodrigues, Edgar. Os Companheiros – vol. 4. Florianópolis, Editora
Insular, 1997; p.121.
108
Ibid.; p.87.
109
Não temos motivo para confundir esta Pilar Soares com uma outra Pilar que atuava já em 1907 no
Grupo Teatro Social (eixo central deste capítulo). Isso porque, se acreditarmos na biografia de Edgar
Rodrigues, Pilar Soares (assim como todas as suas irmãs), viviam ainda em São Paulo naquele ano .
Sobre a Pilar do Grupo Teatro Social, ver notícia publicada em A Terra Livre no dia 4 de agosto de 1907.
110
Não devemos confundir este grupo com o Grêmio Artístico Renovação, que atuara nos anos de 1921 e
1922, também no Rio. Pode ser que houvesse alguma relação de continuidade entre um e outro. No
entanto, suas composições são diferentes, assim como os contextos em que atuam.
83

acordo com Rodrigues, ele já professava idéias socialistas na época em que ainda vivia
no interior de São Paulo 111. No entanto, foi provavelmente no Rio que os irmãos Boni
passaram a defender, de forma mais direta, os princípios anarquistas e anticlericais.
Desde o início da década de 1910 temos importantes indícios da atuação dos irmãos
Boni no grupo vinculado à Liga Anticlerical do Rio de Janeiro (a partir de 1912
nomeado Grupo Dramático Anticlerical).112 Nesta época, Elvira e Carolina ainda eram
crianças e subiam aos palcos principalmente para recitar poesias.
Mais tarde, em 1918, sabemos que os irmãos Boni atuaram também no Grupo
Dramatico 1º. de Maio. Em notícia publicada no periódico Liberdade da 1ª. quinzena de
abril de 1918, temos a informação de que Elvira e Carolina, já não tão crianças,
participaram - em festa mencionada logo acima (aquela organizada pelos marceneiros
do Rio) - de um “ato de cabaret”. Devemos frisar que, para esta apresentação, além dos
nomes já conhecidos, temos referência a uma outra integrante da família: a jovem
Ernestina Boni, provavelmente uma prima dos já citados irmãos. Na mesma festa,
realizada no “Salão Teatro” dos marmoristas, Amílcar Boni, junto com Auzentina
Neiva, atuou na representação de O Pecado de Simonia, comédia anticlerical de Neno
Vasco. Meses depois, o mesmo Amílcar Boni tomou parte na peça citada, desta vez em
uma festa organizada em benefício do já mencionado periódico Liberdade113.
Impossível calcular a extensão exata das atuações teatrais desta família. Temos
algumas referências de outras pessoas, com o mesmo sobrenome, que atuaram anos
antes em grupos amadores de São Paulo. Sabemos, por exemplo, que no dia 6 de
setembro de 1903, por ocasião da inauguração do Teatro de Vila Mariana, um amador
114
chamado G. Boni atuou em um drama intitulado Francesca da Rimini . Anos depois,
por ocasião de festa organizada em favor da fundação de uma Liga Anticlerical em São
Paulo, o nome de Tobias Boni aparece registrado como tendo encenado no drama
115
Galileu Galilei . Como saber se estes dois amadores que atuaram em São Paulo

111
Sobre a questão, ver Rodrigues, Edgar. Os Companheiros – Vol. 1. Rio de Janeiro, VJR – Editores
Associados, 1994; p. 39.
112
Sobre as atuações da família Boni junto à Liga Anticlerical, ver os seguintes registros: A Lanterna,
notícias publicadas em 10.02.1912, 28.09.1912 e 28.02.1914; no mesmo jornal, ver anúncio de
13.07.1912; em A Guerra Social, anúncio publicado em 21.09.1912; em A Voz do Trabalhador, anúncio
de 15.07.1913.
113
Ver Liberdade da 2ª. quinzena de junho de 1918.
114
Ver A Lanterna, 12 e 13.09.1903.
115
Ver A Lanterna, 14.04.1911. Menos de um mês depois, Tobias Boni aparece ao lado de Edgard
Leuenroth, Oreste Ristori e Benjamin Mota como um dos fundadores da Liga Anticlerical de São Paulo.
Ver, a respeito, A Lanterna, edição de 6 de maio de 1911.
84

pertenciam ou não à mesma família Boni que representava no Rio? Talvez jamais
tenhamos uma resposta conclusiva a esta questão. No entanto, temos ao menos uma
razão para acreditar que sim: ambos atuaram em espetáculos que foram divulgados por
A Lanterna, órgão eminentemente anticlerical. Como os irmãos Boni do Rio também
eram ativos militantes anticlericais e também atuavam no teatro, G. Boni e Tobias Boni,
apesar de estarem em São Paulo, talvez tivessem algum parentesco com a família
radicada no Rio. No entanto, não dispomos de nenhum dado concreto que confirme
nossa hipótese.

1.6. Recapitulando
Com tudo isso, gostaríamos apenas de ressaltar o quanto as histórias dos
amadores e de seus grupos eram sinuosas e repletas de contratempos. Pelo menos em
certo sentido, o caráter fragmentário das informações que obtivemos sobre eles expressa
a descontinuidade de seus próprios descaminhos. É claro que suas trajetórias eram
errantes, cheias de obstáculos e adversidades.
O historiador francês Jacques Rancière estudou alguns casos em que indivíduos
do proletariado sentiam-se inclinados para as práticas intelectuais ou artísticas. Já no
prólogo de sua obra A Noite dos Proletários, Rancière afirma que o título não é de
forma alguma uma metáfora. Ou seja, o autor desenvolve um estudo sobre aquilo que
alguns poucos trabalhadores realizavam à noite - não no ambiente de trabalho, mas em
casa. Aquele historiador debruça-se sobre “a dor pelo tempo roubado a cada dia
trabalhando”.116 Os sujeitos sociais que ele pretende analisar eram trabalhadores que
cultivavam uma sensibilidade e um pendor intelectual que dificilmente se coadunavam
com as atividades que exerciam – não porque tais atividades fossem “inferiores” ou
menos dignas, mas por consumirem-lhes todo o tempo que poderiam dedicar a outras
práticas mais introspectivas e/ou menos tormentosas. Nessas noites não dormidas, esses
trabalhadores cultivavam seus “sonhos para o futuro”, assim como seu “paraíso da
identidade”117.

116
Ver, Rancière, Jacques. A Noite dos Proletários – Arquivos do Sonho Operário; São Paulo,
Companhia das Letras, 1988; p. 9.
117
Expressão de Alan Corbin extraída de Corbin, Alan. O segredo do indivíduo. In: Áries, Philippe e
Duby, George. História da Vida Privada – Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo,
Companhia das Letras, 1991; p.461.
85

Os trabalhadores que estudamos em nossa pesquisa também se viam inclinados à


fruição de prazeres estéticos e intelectuais. Por isso, apesar de todas as condições
adversas, não subestimemos os deleites da vida de um amador. Tentemos imaginar o
que as atividades teatrais proporcionavam aos elementos da classe trabalhadora sobre os
quais nos debruçamos. Para além do prazer de atuar (subir ao palco é sempre
emocionante!), pensemos nos inúmeros encontros e vínculos sociais que se
estabeleciam em razão daquelas atividades. O teatro talvez significasse para aqueles
sujeitos não apenas um meio para a conquista da “emancipação humana”, mas (quem
sabe?) a própria “emancipação” – temporária, é claro, mas eterna enquanto durava!
Afinal de contas, nos ensaios, no palco ou mesmo envolvidos na organização de uma
festa, esses sofridos artistas operários podiam esquecer-se das agruras do dia-a-dia e
viver, no interior de suas atividades artísticas, o sonho de uma vida melhor.
A vida desses amadores oscilava entre as injunções do trabalho e os prazeres
proporcionados pela atividade teatral. Por certo, outros prazeres cotidianos (assim como
algumas necessidades) foram por eles sacrificados. Mas será que podemos dizer que
esses artistas operários arrependeram-se da escolha que fizeram? Alguns talvez sim.
Mas a maioria, com certeza não. Afinal, como já colocamos, para além do compromisso
com a “doutrina” (que não deve ser subestimado!), de onde brotava tanto “esforço”
empenhado senão do próprio prazer de atuar?
86

AS CONCEPÇÕES DE ARTE NA IMPRENSA OPERÁRIA

2.1. Preâmbulo
O tempo estava “bastante ruim” em São Paulo naquela noite de sábado, dia 15
de fevereiro de 1908. Mesmo assim, segundo comentários de Crítico em A Lucta
Proletaria, o salão do Eden Club – situado então na Rua Florêncio de Abreu, nº. 22 –
“estava bem cheio de público”. A grande maioria dos que lá se encontravam era
composta por marceneiros, “com suas respectivas famílias”. Também, não era para
menos: a festa fora organizada justamente pela Liga dos Marceneiros de São Paulo. O
mais interessante, para nossos propósitos, é que ela contou com uma programação
repleta de espetáculos teatrais118.
Cada peça encenada naquele evento manifestava um nítido caráter “social”. Il
Martire, por exemplo, que deu início à festa, nada mais era do que o prólogo de um
drama social de Giulio Sorelli intitulado Il Giustiziere. Este drama, como vimos no
capítulo 1, trata da vida de Gaetano Bresci, um justiceiro anarquista “a quem tanta
miséria, tanto sofrimento faz erguer o braço num gesto desesperado de protesto e de
vingança”119. Segundo Crítico, os amadores que encenaram aquele prólogo, “embora
ainda novos na cena”, desempenharam bem seus respectivos papéis. O mesmo elogio
recaiu sobre as atuações de Jorge, Tonio e Anita, amadores de São Paulo que, naquela
festa, atuaram em Senza Patria, de Pietro Gori - drama social cujo próprio título já
indica em parte seu teor ideológico. No entanto, para Crítico, nem tudo estava perfeito
na encenação de Senza Patria. Fazendo jus ao codinome adotado, ele não se esquivou
de tecer alguns comentários desabonadores às atuações em cena. Para ele, o amador
Arthur, por exemplo, “não esteve à altura de seu papel”. Dona Andrea e Giovanna
“podiam fazer melhor” se estudassem bem seus personagens. Por fim, fechando a parte
teatral da festa, subiu ao palco um outro drama social: Triste Carnevale. Este, para
Crítico, estava “ficando velho – apesar de novo – por ter sido representado em todos os
salões de São Paulo”. No que se refere a este último espetáculo, o único destaque do
articulista recaiu sobre Carlos, que teria desempenhado bem o seu papel. Sobre os
demais amadores que participaram da encenação de Triste Carnevale, nenhuma palavra
foi dita.

118
Ver notícia sobre a festa organizada pela Liga dos Marceneiros em A Lucta Proletaria de 29.02.1908.
119
Ver comentários sobre a primeira encenação de Il Giustiziere em O Amigo do Povo de 25.10.1902.
87

De acordo com Crítico, os amadores que atuaram naquela noite foram


calorosamente recepcionados pela platéia. No final de cada ato, “o público não se
cansava de aplaudir os nossos... artistas”. Para ele, como os “nossos dramas” não podem
ser representados pelas companhias de teatro profissional – “que têm medo que o
público imbecil as boicote” –, é preciso recorrer então aos amadores. Estes, abnegados
em seus propósitos, sacrificariam “as poucas horas de repouso para dedicá-las à
propaganda”.
A pequena notícia acima comentada apresenta alguns elementos importantes
para que possamos iniciar uma discussão sobre a concepção de arte na imprensa
operária; elementos que nos interessam justamente porque são recorrentes em outros
artigos e notícias com os quais lidamos. Quais são eles?
Primeiramente, a notícia assinada por Crítico diz respeito a uma festa em que
todas as peças apresentavam um nítido caráter “social”. Qual o sentido desta palavra no
contexto analisado em nossa pesquisa? Em segundo lugar, nos comentários que Crítico
faz sobre a peça Triste Carnevale, ele lança mão do dualismo novo/velho. O que
significava cada um desses pólos na concepção de arte dos articulistas da imprensa
operária? Por fim, ainda na mesma notícia, uma outra dualidade insinua-se: aquela que
opõe teatro amador a teatro profissional. Embora expressando sentidos diferentes, a
mesma oposição manifesta-se com freqüência em outros textos daquela imprensa. Tal
dualidade teria algo a ver com a concepção estética dos anarquistas com os quais
lidamos? Por quê? Neste capítulo, tentaremos analisar esses elementos de forma mais
detida. Em meio à análise de cada um deles, outros problemas não especificados acima
entrarão na discussão.
Antes de tudo, vamos relembrar uma saudável ponderação já expressa no
capítulo 1. Nele, atentamos para o problema de associar mecanicamente os discursos
veiculados pela imprensa operária às práticas sociais em torno das festas. Desde o início
deixamos claro que as expectativas em torno das festas operárias nunca encerram um
movimento unidirecional. Além disso, como também já salientamos, fica difícil dizer,
no contexto das festas operárias, quando começam os propósitos dos “organizadores” e
quando terminam as expectativas do “público”. É claro que entre ambos havia inúmeras
tensões. Estas, no entanto, são mais obscuras do que talvez pareçam. Portanto, se
quisermos compreendê-las minimamente, devemos analisá-las em suas especificidades,
evitando tanto o erro de aplacá-las (reconciliando harmonicamente as expectativas em
88

confronto) quanto o de segmentar de forma muito rígida os diferentes campos em


disputa.

2.2. Para enfrentar a dualidade velho/novo


Voltemos nossas atenções para o que dizem as fontes. Tentemos entender
melhor o que os articulistas da imprensa operária, em suas concepções de arte e teatro,
entendiam como sendo “novo” e “velho”.
Encontramos alguns artigos e notícias que expressam de forma mais ou menos
clara o sentido de “velho” na produção dramática. Citaremos apenas dois exemplos
elucidativos. Primeiramente, iremos nos debruçar sobre uma notícia publicada no
periódico paulistano O Amigo do Povo em 9 de julho de 1904. Intitulada Uma festa
operária, a notícia, de autor anônimo, trata de uma festa organizada em São Paulo pela
União dos Trabalhadores Graficos120. Logo no início, o autor da notícia apresenta seu
real objetivo. Ele afirma que, se fosse de um “jornal burguês”, contentar-se-ia em fazer
um comentário elogioso “com um `bravo!´ e parabéns aos organizadores”. No entanto,
acrescenta, em se tratando de uma sociedade operária de resistência, o que importa
mesmo é examinar “se os seus atos correspondem ao fim para que foi criada”. Com seus
comentários, o autor pretende contribuir para que a energia de “operários conscientes”
não se desperdice em trabalhos que não favoreçam o “desenvolvimento da consciência
proletária”. Notamos neste trecho um nítido esforço de diferenciação em relação aos
posicionamentos de um “jornal burguês”.
Marcando posição diante do que seriam seus antagonistas sociais, Crítico parece
imprimir em seu discurso um sentido identitário ao que ele entende como “consciência
proletária”. O que observamos nos artigos da imprensa operária sobre arte e teatro é que
posicionamentos de antagonismo social perpassam os comentários dos diferentes
autores. Entender melhor como tais posicionamentos são construídos nas diferentes
concepções estéticas desses articulistas é um dos desafios que enfrentaremos neste
capítulo.
Voltemos aos comentários de Crítico. Após algumas observações elogiosas à
conferência que constava da programação, ele se volta ferozmente contra a encenação
do drama Amor e Desventura, levado ao palco pelo Grupo Filodrammatico Ermette
120
A ortografia aqui é exatamente esta. Em vez de ph o autor utiliza f. Isso provavelmente ocorre porque
O Amigo do Povo seguia já a reforma ortográfica proposta por Neno Vasco, então editor do mesmo
jornal.
89

Novelli. Em uma crítica fulminante, o autor afirma que a obra era um “arcaico
dramalhão de capa e espada”, cheio de duelos e frases “grotescamente heróicas”. Para
ele, Amor e Desventura (“que nome!”), não passava de uma “borracheira idiota, capaz
de fazer evacuar uma sala cheia de gente de bom gosto mais depressa do que uma carga
de cavalaria com o `salve-se quem puder´ dos momentos de pânico”. O drama serviria
para muita coisa, “mas para educar os assistentes nem por sombras!”. Concluindo seu
raciocínio, o autor afirma que as sociedades de resistência só cumprirão com o seu papel
“quando deste forem conscientes os associados e o mostrarem nos seus atos”. Portanto,
não seria “imitando pessimamente os burgueses nas exterioridades” que se ganharia
força. Esta, pelo contrário, adviria da “consciência que fortifica as uniões”.
Por fim, contendo os ataques, o autor pede para que os associados da União não
levem a mal seus comentários. Incita-os a não desistirem de “aumentar as suas forças,
enveredando pelo caminho seguido pelo proletário moderno”. Para o Grupo Ermette
Novelli, recomenda a escolha de “obras modernas, emancipadoras”, com as quais seja
possível “honestamente arcar”. Ele pede ainda aos amadores para que não o ponham
de “cabelos em pé com a fereza das suas estocadas e a fúria descatelada dos seus
brados...”.
Impossível saber até que ponto críticas desse tipo influenciavam ou não as
atividades dos grupos amadores. O fato é que, desde então, nunca mais encontramos
vestígios da atuação do Grupo Ermette Novelli.
Um outro indício do que seria a concepção de “velho” na imprensa operária
aparece em uma notícia publicada no periódico carioca Novo Rumo, fundado em 1905 e
cujo editor era o alfaiate espanhol Alfredo Vasquez. No dia 20 de fevereiro de 1906,
saiu naquele jornal a apreciação que um autor anônimo fez a respeito de “um espetáculo
promovido pelo grupo editor do Novo Rumo” . Realizado no salão do Centro Galego, o
evento teria contado com a presença de “mais de 500 pessoas entre as quais muitas
jovens”. Apesar do público considerável, o autor afirma que o “espetáculo correu
discretamente, à altura dos amadores, despretensiosos porém cheios de boa vontade”.
Para ele, a festa não foi uma “noitada”, mas bem poderia ser considerada fora do
comum. Isso porque ela teria sido bem diferente dos outros eventos do tipo, nos quais
“só se cultiva a banalidade vista através de uma arte chatíssima de dramalhões
sexagenários – produtos de uma literatura gotosa e caduca”. O que nos chama a atenção
nos comentários do autor anônimo é a valorização da presença de um público jovem no
90

espetáculo por ele comentado. De certa forma, a própria menção a esse tipo público
aparece como sinal de que aquele evento fora diferente dos demais.
Mas, enfim, o que diríamos sobre a noção de “velho” nas duas notícias citadas?
O que ambas explicitam é que, para alguns articulistas da imprensa operária, o “velho”
na dramaturgia estava associado aos dramalhões. Estes, se eram fulminados por alguns
críticos daquela imprensa, é porque, evidentemente, alcançavam aceitação não
desprezível junto ao público. Caso contrário, seriam simplesmente desprezados.
Mas o que nos chama a atenção é que, na verdade, a aversão aos dramalhões não
era privilégio da imprensa operária e nem era tão recente. Já em 1889, o jornal A
Província de São Paulo – mais tarde nomeado O Estado de São Paulo – lançou uma
severa crítica ao drama Rogério Laroque, encenado naquele ano em nossa Paulicéia.
Segundo os comentários do autor, a peça seria um daqueles dramalhões que misturam
ingredientes convencionais: paixões “arrebatadas e infelizes”, “adultério punido”,
“condenação injusta de um inocente” e, por fim, a mão invisível da “justiça divina”, que
redime o injustiçado no último ato. Não indiferente ao enredo, o comentarista ressalta
que o drama era perfeitamente “insuportável”, apesar de ter agradado ao público 121.
Alguns anos depois, em 1895, no mesmo jornal, apareceu uma nova estocada: “O
público quer o ruim: operetas descosidas, dramalhões à la croix de ma mère. Não há
papéis a criar”, afirma o comentarista numa violenta crítica aos atores brasileiros. Por
fim, completa o descontente de O Estado de São Paulo: “A condição geral do artista é
nada”122.Ainda no mesmo jornal, quase vinte anos depois (os dramalhões são mesmo
irredutíveis!), em comentário sobre a Companhia Dramática Nacional, a crítica
afirmava: “O que [ela] precisa é um outro repertório, isto é, peças do nosso tempo. Os
dramalhões e os melodramas não são para as platéias de hoje” 123.
Portanto, notamos que em O Estado de São Paulo, assim como nos periódicos
“operários”, os dramalhões também aparecem associados à idéia de “velho”, de “gasto”
ou de “mau gosto”. É provável que, diante do ambiente cultural da época, uma parcela
significativa da crítica em geral estivesse mesmo inclinada a censurar os surrados
dramalhões. Com suas fórmulas gastas e todos os seus ingredientes previsíveis, o
gênero não passava incólume pelo crivo daqueles que se incumbiam de sancionar (ou

121
Ver citação do excerto em Magaldi, Sábato e Vargas, Maria Thereza. Cem Anos de Teatro em São
Paulo. São Paulo: Editora SENAC, 2001; p. 22.
122
Ibid.; p.29.
123
Ibid.; p. 59.
91

não) as obras alheias. Ao que tudo indica, havia na época (assim como, em parte, ainda
hoje) todo um complexo de códigos e juízos que apontava para o “bom gosto” no
sentido diametralmente oposto ao lugar onde se encontravam os dramalhões.
Certamente, não seria de “bom-tom” um crítico elogiar então uma obra do gênero.
Sendo assim, os tão populares dramalhões estavam fadados a ser fulminados pela crítica
em geral.
No entanto, tomemos cuidado para não assimilar mecanicamente os juízos
proferidos em O Estado de São Paulo aos que emergem da leitura dos jornais operários.
Nestes, os insultos contra os dramalhões revestem-se de sentidos próprios. Tentaremos
compreender esses sentidos seguindo a senda daquilo que seria o reverso do “velho”, ou
seja, a noção de “novo”.
Em sua edição de 12 de outubro de 1912, o periódico anticlerical A Lanterna
publicou uma nota informando sobre a recente criação, em São Paulo, do Grupo
Dramatico Ideia Moderna. Analisemos um trecho daquela pequena notícia.

De há muito era sentida entre nós a falta de um grupo que se dedicasse à propaganda
por meio do teatro e que, rompendo com a velharia a que se agarram em geral os amadores do
palco, se dedicasse a representar peças de índole social e educativa.
Pois essa lacuna acaba de ser preenchida com a fundação do Grupo Dramatico Ideia
Moderna [...].

Bom, parece-nos evidente que, pelo menos em certa medida, a tal “velharia” a
que se refere o autor da nota tem a ver, é claro, com os tão achincalhados “dramalhões
sexagenários”. No entanto, aqui, a alusão ao que estaria ultrapassado aparece
inversamente associada àquilo que o autor considera como positivo: ou seja, as “peças
de índole social e educativa”. Neste documento, como nos outros registros já descritos,
entender o sentido da crítica ao “velho” na dramaturgia passa pela compreensão daquilo
que os articulistas da imprensa operária julgavam ser a sua contraparte. Esta, sempre
num sentido positivo, reveste-se, na maioria das vezes, do mesmo caráter “social” e/ou
“educativo” mencionado acima. Ou então, como já vimos na crítica ao Grupo Ermette
Novelli, aquilo que se considera como “positivo” na produção dramática aparece
relacionado com o adjetivo “moderno”.
92

2.3. Os elementos que compõem o conceito de Arte Social


Sendo assim, antes de levar a cabo o significado das críticas ao “velho” e aos
dramalhões na imprensa operária, faremos uma digressão necessária pelo conceito de
arte (e/ou teatro) social. Este, por sinal, é um conceito fundamental em nossa pesquisa.
Isso porque, precisamos salientar, aquilo que chamamos de teatro anarquista era
nomeado então teatro social. E, de fato, como veremos, o nome é justo, pois as
características centrais dessa dramaturgia remetem-nos diretamente ao conceito de arte
social.
Para compreender melhor o sentido dado à chamada arte social, analisaremos
um longo artigo publicado em duas partes pela revista carioca Renovação. A primeira
parte foi publicada em fevereiro de 1922 e a segunda em março daquele mesmo ano.
Intitulado Arte social (partes I e II), ele foi assinado por Capllonch e condensa os
complexos significados atribuídos então ao conceito que ora nos interessa.
Na primeira parte do artigo (publicada em fevereiro de 1922), antes de iniciar a
discussão sobre a arte social, Capllonch questiona de forma veemente aquilo que já se
chamava de “arte pela arte”. Para ele, tal tendência em estética significa “nada”. O autor
faz uma crítica severa a toda produção artística que não manifeste uma “finalidade”
maior, que vá além da arte “por si própria”. Ele atribui à “arte pela arte” uma
“incoerência, doentia e requintada”. Tal “transbordamento contemplativo” seria
expressão de um refinamento vazio voltado para “o `culto´ à Forma, à Carne, à Cor, ao
Vício e, consequentemente, ao Ouro, ao Luxo, ao Poder”. Portanto, logo no início,
Capllonch faz uma crítica a toda produção considerada por ele como sendo “sem
finalidade”. Toda obra, segundo o autor, deve, pelo contrário, manifestar um “fim” mais
elevado. Mas não é só isso. Ao insurgir-se contra a “arte pela arte”, percebemos que, na
verdade, o articulista volta-se contra a afetação esnobe que a tendência carregaria
consigo. Para ele, é inconcebível uma arte que se distancie da sociedade, que não
estabeleça com ela uma relação intrínseca.
Mais adiante, o autor deixa de lado a arte pela arte e debruça-se sobre o que ele
entende por arte social. Esta, segundo ele, deveria aspirar à “evolução”, ser “humana”,
“útil (e não fútil)”. Sendo de interesse coletivo, ela deveria conter “`tudo´” o que havia
de bom e útil na arte da época, agregando ainda uma “finalidade elevada”.
Menos rigoroso do que talvez aparente ser, o autor afirma ainda que não se deve
“truncar os recursos técnicos adquiridos para o aperfeiçoamento moral da profissão”.
93

Ora, a que se refere Capllonch quando menciona os “recursos técnicos adquiridos”? A


nosso ver, parece que ele manifesta aqui uma inequívoca valorização do poder
instrumental dos novos meios de comunicação. Nisso, aliás, ele não estava sozinho.
Anos antes, Neno Vasco, anarquista de origem portuguesa, inspirado em um exemplo
proveniente dos libertários franceses, havia já manifestado um claro interesse na
utilização do cinema como meio de propaganda 124. Em sua sagaz análise, Neno Vasco
reconhece o grande poder de inserção do cinema junto às camadas populares. Mais
ainda: ele percebe que o cinema, graças a seu enorme apelo (ele agita, revolve, exacerba
paixões e sentimentos), foi desde o início usado como arma de propaganda nas mãos da
elite. Caberia, então, ao operariado “consciente”, apropriar-se desse poderoso recurso,
transformando-o em arma de combate contra a propaganda oficial. O que os libertários
já haviam feito com a imprensa, argumenta o anarquista de origem portuguesa, era
preciso fazer agora também com o cinema. Portanto, assim como Neno, Capllonch
estava atento também aos novos recursos que a indústria cultural criava.
Além de manifestar o desejo de se aproximar dos novos meios de comunicação,
Capllonch (assim como fizera Proudhon) mostra-se favorável a uma espécie de “síntese
incessantemente renovada do novo e do antigo”. Numa palavra, para ele, trata-se de
“avançar, mas conservando”125. Sem desprezar o que a arte angariou ao longo do tempo
em termos de “interpretação”, caberia agora confiar a ela “`muito mais´ na finalidade”.
Precisamos frisar que Capllonch, apesar de reticente diante da produção artística de sua
época, não rejeita o que ele chama de “arte moderna”. Para ele, é preciso que a arte
social reúna tudo o que a “arte moderna” contém.
Afastando-se de uma concepção sublimada que vê a produção artística pairando
em alguma esfera acima dos seres humanos (ou então, de uma arte agarrada aos padrões
estéticos do passado), o autor propõe a solidificação da produção artística “em bases
mais compatíveis com o meio ambiente que surge”. Trata-se de torná-la digna de “sua
missão social como ramo do Saber Coletivo”. É preciso “desaristocralizá-la na
finalidade, tal como se encontra democratizada socialmente”. Na seqüência, o autor
pergunta: por que haveria a arte de se tornar privilégio dos ricos e potentados? Por que
os artistas deveriam mendigar a essas duas “castas” o “pão que de sobra lhes daria a

124
Ver em A Lanterna de 18 de outubro de 1913, artigo de Neno Vasco intitulado Cinema do Povo.
125
A respeito da concepção de arte proposta por Proudhon, ver Reszler, André. A Estética Anarquista.
Rio de Janeiro: Achiamé, 2009; cap. 2. A expressão entre aspas é do próprio André Reszler e encontra-se
na pág. 22 da mesma edição.
94

coletividade”, caso se identificasse com a arte. Para Capllonch, era preciso arrancar das
elites o monopólio sobre as artes. Só assim os artistas poderiam buscar inspiração em
seu próprio meio: o povo, pois a arte é eminentemente popular. O autor pergunta: por
que tornar a arte subalterna a “objetivos inconfessáveis” se o “seu profundo e grande
poder de sugestão muito aproveitaria a sociedade, encaminhando para fins mais úteis e
sãos”?
Por fim, o autor afirma que urge conduzir a arte em “roteiros novos”. Seria
preciso propagar e implantar a arte social. Esta teria uma “finalidade elevada” e a todos
interessaria. Capllonch termina a primeira parte de seu artigo dedicado à arte social com
palavras que expressam bem os seus propósitos: “Educar, melhorar, elevar” - e não
apenas divertir. Sem risco de exagero, podemos dizer que todos os demais articulistas
da imprensa operária que trataram da arte modulavam na mesma freqüência.
Ao longo de toda essa primeira parte, ao discutir o que seria a arte social,
Capllonch não foi além da enunciação de objetivos vagos. A defesa de uma arte mais
“humana” e “útil”, voltada para o alcance de uma finalidade “elevada” e “sã”, expressa
uma boa intenção, mas nada nos diz sobre o que, de forma concreta, Capllonch entende
por arte social. Só descobrimos o que de fato pensa o autor sobre o assunto na segunda
parte de seu artigo: Arte social II (março de 1922).
Nela, Capllonch retoma algumas reflexões iniciadas já no primeiro excerto.
Além de apontar novamente para a direção de uma produção artística mais “humana”,
“sã” e “útil”, ele sofistica ainda mais seu raciocínio a respeito da função social da arte.
Abordando a produção artística inserida no contexto da sociedade de classes, Capllonch
afirma que aqueles que fazem da arte privilégio da riqueza e do poder “obram mal”. O
raciocínio do autor parece claro. A “tendência evolutiva do Século” é a de os povos
aproximarem-se. Para ele, o capitalismo inevitavelmente desaparecerá (e com ele a
exploração de uns pelos outros), assim como as “superstições religiosas”. Dessa forma,
a quem os artistas submeter-se-iam no futuro? Com o fim do dinheiro, a quem tais
artistas “subservientes” poderiam oferecer suas obras, “se elas carecem do atrativo
coletivo e humano”?
Diante da inevitável derrocada do capitalismo, Capllonch afirma que aos
“figuristas”126 cabe ir treinando “suas futuras concepções, em novos padrões”. É tempo

126
O curioso é que nos dois artigos, apesar de tratar da “Arte” em geral, Capllonch centra suas atenções
na pintura. Seria ele próprio um pintor? Ou sua atenção à pintura tem a ver com a idéia de que este ramo
95

de “abandonar o fetichismo arcaico”, antepondo aos ídolos a “nossa admiração pela


ciência”. Mais uma vez, seria preciso perpetuar o “bem”, o “útil”, o “elevado”, o
“edificante”.
Mas, afinal, o que o autor considerava como “edificante”? Ele apela ao artista
para que pinte “a Miséria em vez do Luxo, a Vontade e não a Indolência, o Trabalho e
não a Exploração, o Altruísmo e não o Egoísmo”. Ainda em suas palavras, é “preciso
que a Arte recolha das sarjetas, e plasme, todos os infelizes das Rodas, Creches,
Maternidades, Asilos, Manicômios, Cadeias, Presídios, Prostíbulos etc.”. Enfim, seria
necessário retratar tudo o que a desigualdade social gerou. Uma arte que se inspire em
tudo isso será de fato “humana – social, coletiva, útil e sincera”. Para o autor, quem não
documentar “sinceramente a `nossa época´” falhará em seu objetivo, “iludindo-se ao
pretender iludir” que tudo são “risos, flores e perfumes”.
Atentemos para o raciocínio que Capllonch desenvolve. Para ele, se a arte
exprime a vida, ela deve “trazer a DOR HUMANA à superfície da sociedade”. É
preciso que os céticos, cínicos e indiferentes corem de vergonha e recuem ante a
“Fome, o Desemprego e a Revolta”. Ou seja, nesta concepção, a arte precisa chocar,
sobretudo as elites e/ou os indiferentes.
O autor faz então um apelo aos artistas para que pintem “todas as misérias e
injustiças sociais”. Exibindo-as e “documentando-as”, os artistas contribuiriam para “o
aperfeiçoamento da humanidade”. Na mesma exortação, ele pede para que os artistas
deixem de ser a “gentil canalha” e sejam “humanos e conseqüentes”.
Por fim, a reiteração de um vaticínio: a “Revolução Social” está chegando. Dar
as costas a ela “sintetiza a morte da Arte amanhã”. Ele apela para que abramos os
braços à transformação social que está surgindo. “Fitemos o Sol e corramos ao encontro
da Luz, abrindo os braços, o coração e o cérebro à Evolução Mundial”.
Alongamo-nos demais nos comentários sobre esse artigo porque estamos
convencidos de que ele condensa os principais elementos que compõem o sentido de
arte social na imprensa operária da época. Em grande parte, as peças com as quais
lidamos em nossa pesquisa afinam no mesmo diapasão conceitual expresso por
Capllonch. Cabe a nós agora analisar com profundidade os argumentos utilizados pelo
autor. Só assim teremos uma dimensão mais exata do que era, para os militantes com os

das artes poderia retratar a realidade de maneira mais eficiente aos propósitos de “conscientização” do
povo? Impossível elaborar alguma resposta a tais questões. De qualquer modo, é à pintura que Capllonch
se refere toda vez que ele sente a necessidade de oferecer algum exemplo mais concreto.
96

quais lidamos, a tão propalada arte social (e, por extensão, o teatro anarquista).
Vejamos mais de perto o raciocínio desenvolvido por Capllonch relacionando-o com os
seus prováveis referenciais ideológicos e culturais.

2.3.1. A crítica ao caráter “aristocrático” da arte – questões de hegemonia


Antes de mais nada, no discurso de Capllonch, fica evidente a condenação às
produções artísticas que manifestavam uma afetação esnobe e uma pretensa sublimação.
Avesso aos refinamentos estéticos, o autor encontra neles um pretexto para encetar uma
discussão que vai além da crítica à “arte pela arte”. Nos dois excertos, Capllonch
desenvolve algumas discussões que, em nosso modo de ver, são fundamentais na
construção de seu discurso.
Primeiramente, precisamos ressaltar que, em sua crítica ao conceito de “arte pela
arte”, Capllonch insurge-se contra a própria idéia de uma produção artística que
pretenda estar acima da sociedade, pairando em alguma esfera sublimada e distante da
vida concreta. Capllonch identifica nessa sublimação um contra-senso incurável. Isso
porque, sendo a arte a expressão de uma sociedade (ou de um determinado grupo
social), toda produção pretensamente ensimesmada encerra uma contradição intrínseca.
Apesar de levar a sério a presunção transcendente de algumas propostas estéticas da
época, o autor não se ilude. Ele sabe que, na realidade, mesmo as produções mais
rebuscadas não se encontram dissociadas do contexto social em que surgem. Em seu
discurso fica evidente a acusação contra a suposta submissão de alguns artistas aos
interesses da elite. Mesmo sem desenvolver profundamente tal questão, Capllonch deixa
entrever um complexo campo de disputas em torno dos padrões estéticos hegemônicos
em sua época.
Diante de tal discussão, parece-nos indispensável recorrer ao conceito de
hegemonia formulado por Raymond Williams. Segundo o autor britânico, é no campo
da hegemonia que se verifica a correlação das “forças sociais e culturais ativas que são
seus elementos necessários”127.Para ele, “a ´hegemonia´ vai além da `cultura´[...] em sua
insistência em relacionar `todo o processo social´ com distribuições específicas de poder
e influência”128. No interior desse conceito, o autor ressalta não apenas o caráter de
“domínio”, como também as múltiplas formas de luta e oposição que são
127
Sobre o conceito de hegemonia, ver Williams, Raymond, Marxismo e Literatura.Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 1979; p.111.
128
Ibid.; p.111.
97

“características indicativas daquilo que o processo hegemônico procurou controlar, na


prática”129. E como processo ativo, constituinte e constituidor, a hegemonia é “todo um
conjunto de práticas e expectativas sobre a totalidade da vida [...]. É um sistema vivido
de significados e valores”. Ainda segundo Williams, as “obras de arte, pelo seu caráter
substancial e geral, são com freqüência de especial importância” no interior desse
complexo campo de disputas em torno da hegemonia – um campo político, de lutas,
devemos ressaltar. Portanto, reduzir a questão da hegemonia cultural à categoria de
“superestrutura” obscureceria nossas perspectivas de análise, submetendo as
experiências e práticas ativas que constituem as produções culturais a determinações
esquemáticas e rígidas demais.
Parece-nos evidente que o que Capllonch manifesta em seus dois artigos nada
mais é do que uma inequívoca contraposição aos padrões estéticos hegemônicos.
Aquilo que ele chama de arte sublimada e/ou contemplativa nada mais é do que uma
produção artística que já adquirira respaldo junto a segmentos influentes das elites.
Diante da indignação manifestada pelo autor, é possível até que, como padrão estético,
aquela produção estivesse inclusive se transformando em uma espécie de cânone,
impingindo modelos predeterminados de beleza e bom-gosto. Portanto, não seria um
exagero associar, no discurso de Capllonch, a chamada “arte pela arte” ao padrão
hegemônico (ou em vias de se tornar hegemônico) de produção artística, padrão contra
o qual o autor se insurge não por acaso.
Parte da indignação manifestada por Capllonch advém daquilo que ele próprio
chama de “`culto´ à Forma”.Neste aspecto (como, de resto, em vários outros),
Capllonch não está sozinho. Anos antes, Frederico Bessa, comentando a recente estréia
da peça O Infanticídio, de Mota Assunção, expressara uma aversão semelhante130 .
Após um resumo da peça, o autor afirma que ela fora “escrita com esmero e cuidado
num estilo simples sem ser vulgar e seleto sem ser afetado”. Para Frederico Bessa,
Mota Assunção deve ser elogiado porque “coloca a estética em segundo plano” – ele
seria um daqueles “que sacrificam a forma ao fundo” [palavras de Bessa, grifos nossos].
Os articulistas da imprensa operária brasileira por certo não foram os inventores
da concepção estética por eles defendida. Na verdade, os problemas por eles colocados
já eram debatidos há algum tempo. Desde o final do século XVIII, William Godwin

129
Ibid.; p. 116.
130
Ver, em A Terra Livre de 23 de setembro de 1906, artigo intitulado Crônicas do Rio.
98

131
havia levantado a questão da utilização da arte como instrumento de poder . Abria, a
partir de então, uma prolífica discussão que visava, antes de tudo, atingir o conceito de
“obra-prima” e a própria autoridade adquirida pelo “artista genial”. Em meio a tal
discussão, não raro a profissão de artista e a própria arte foram colocadas em xeque. No
afã de desautorizar a manifestação de autoridade arrogada pelos artistas, alguns
expoentes do anarquismo passaram a debater o papel social da arte.
Nesse enfrentamento, talvez tenha sido Proudhon quem chegou a conclusões
mais extremadas. Em Do Princípio da Arte e do seu Destino Social, Proudhon inclusive
anuncia a morte da arte. Vejamos o que diz a respeito o próprio anarquista francês em
sua obra.

A sociedade separa-se da arte; coloca-a fora da vida real; faz dela um meio de prazer e
de divertimento, um passatempo que não a preocupa; é o supérfluo, o luxo, a vaidade, a ilusão; é
tudo o que se quiser. Não é uma faculdade nem uma função, uma forma de vida, uma parte
integrante e constituinte da existência 132.

Sem esconder uma inegável influência do positivismo, Proudhon identificava na


evolução da humanidade um inevitável processo de extinção da arte. Para ele, enquanto
as sociedades antigas estavam impregnadas de uma “atmosfera poética”, em sua época
(assim como dali em diante) os sentimentos já não seriam mais “regidos pela poesia,
mas pelo saber”133. Para ele, o artista já não possuía nenhuma função social, uma vez
que em sua época “a razão subjuga a imaginação; o fundo leva em tudo a melhor sobre
a forma; a literatura é tratada como cortesã [grifos nossos]”134.
Anos depois, no final do século XIX, em uma França convulsionada pelas
agitações que o movimento sindicalista promovia, um grupo de militantes formado por
Fernad Pelloutier, Charles-Albert e Paul Delesalle passa a conferir à arte um papel
fundamental na agitação operária daquele país. Segundo André Reszler, esse núcleo de
ativos anarcossindicalistas “aspira reunir ou elaborar os elementos de uma cultura
proletária autônoma, capaz de permitir à classe operária escapar ao domínio da cultura
burguesa”135. O objetivo declarado desse empreendimento artístico e cultural era

131
Sobre as discussões levantadas por William Godwin, ver Reszler, André. Op. Cit.; p.8.
132
Ver Proudhon, Joseph apud Reszler, André. Op. Cit; p. 17.
133
Ver Reszler, André. Op. Cit.; p.18.
134
Ibid.; p.18.
135
Ibid.; p.50.
99

desenvolver uma “arte social” que estaria em franca oposição à “arte burguesa”.
Desenvolvendo uma intensa atividade cultural junto à classe trabalhadora de Paris
(atividade que, por sinal, incluía inúmeras representações teatrais), o grupo chega até a
publicar uma revista intitulada, não por acaso, L´Art Social. É justamente em tal revista
que Pelloutier afirma: “Só é grande a arte que subordina a forma à Idéia (isto é, à Idéia
Social) e nesta encontra a sua razão de ser [grifos nossos]” 136.
Tanto no contexto francês como naquele analisado em nossa pesquisa, parece-
nos evidente que o objetivo das atividades culturais organizadas pelos militantes era o
de promover um declarado enfrentamento à produção cultural das elites. Para tanto, era
preciso revestir aquelas atividades de um proclamado caráter popular e/ou operário.
Não obstante o discurso por vezes segmentário de alguns dirigentes sindicais, vimos -
no caso das apropriações dos recursos tecnológicos da indústria cultural - que, na
verdade, a constituição de uma identidade operária (mesmo que militante) fazia-se de
forma menos “autêntica” do que às vezes se propugnava 137. No entanto, se a proposta
estética defendida pelos militantes com os quais lidamos não era assim tão “autêntica”,
nem por isso deixava de ser efetivamente alternativa. O que observamos claramente no
discurso de Capllonch, como nos demais, é a constituição de um complexo referencial
contra-hegemônico – no campo das artes como no da cultura em geral. E como toda
dinâmica vinculada aos processos de hegemonia e contra-hegemonia, esta também não
deixa de comportar em sua constituição inúmeras contradições. Se, por um lado, a
tentativa de constituir uma identidade operária própria impulsionava os militantes que
estudamos no sentido contrário aos padrões hegemônicos, por outro, notamos em
diversos momentos uma sensível incorporação de elementos culturais que já haviam
conquistado respaldo junto aos padrões hegemônicos consagrados. Afinal, é o próprio
Capllonch quem nos diz: “`Arte-Social´, de interesse e proveito coletivos será aquela á
[sic] que contendo `tudo´ quanto de bom, útil e indispensável possua a arte atual, se
agregue `finalidade elevada´”. O que significa o “tudo” entre aspas no discurso de
Capllonch? A nosso ver, uma indisfarçável disposição para selecionar os elementos que,
de alguma forma, sejam de bom proveito na “arte atual”. Arte que, diga-se de passagem,
Capllonch não deixa de criticar – por vezes violentamente.

136
Pelloutier, Fernand apud Reszler André. Op. Cit.; p.51.
137
Ao longo desta pesquisa, analisaremos inúmeros indícios que também nos obrigam a relativizar
(embora não rejeitar totalmente) a noção de “autenticidade”.
100

2.3.2. A “finalidade social”


Nas duas partes de seu artigo, Capllonch dá um grande destaque ao que ele
chama de “finalidade elevada” da arte. Esta, por sua vez, confunde-se, no discurso do
autor, com aquilo que seria a “função social” da produção artística. Em sua crítica às
criações “despretensiosas” e “sublimadas”, Capllonch desenvolve o seu próprio
conceito de arte social. Em meio à explicação desse conceito, ele não deixa de expressar
o que seria, em sua concepção, aquela “finalidade elevada”. Em última análise, para
Capllonch, a arte teria como fim expressar a própria vida e tudo aquilo que ela carrega
de dor e sofrimento. Em poucas palavras, caberia à produção artística em geral, exprimir
de maneira fiel a “dura realidade” de nossa existência, enfrentando os paradigmas da
“arte burguesa” e, ao mesmo tempo, sensibilizando o povo para as questões sociais.
Com isso, acreditava Capllonch, o caminho para a inevitável revolução estaria
assentado em bases mais sólidas. Os artistas, por sua vez, preparar-se-iam para, no
futuro, produzir suas obras seguindo os “novos roteiros” de uma arte emancipada do
jugo burguês e/ou elitista da sociedade capitalista.
Mais uma vez, Capllonch não se encontrava isolado. Ele não era nem o único
nem o primeiro a defender uma arte baseada em sua “função social”. Proudhon, apesar
de seu relativo desprezo pela arte, já sugerira uma possível utilização revolucionária
dela. Ao fazer a crítica ao “artista genial”, com sua sofisticada “obra de arte”, Proudhon
na verdade tentava encarar a produção artística em relação ao papel social específico
que ela desempenhava138. No entanto, segundo André Reszler, dentre os expoentes do
pensamento anarquista, foi Kropotkin o primeiro “a pôr em termos `modernos´ a
questão do compromisso do artista”139. Foi ele que, talvez pela primeira vez,
defendeu de maneira articulada e clara a noção de “função social” da arte. Em Palavras
de um Revoltado, o anarquista russo conclamava os artistas nos seguintes termos: “Vós,
poetas, pintores, escultores, músicos, se compreendestes a vossa verdadeira missão e os
interesses da própria arte, vinde então pôr a vossa pena, o vosso pincel, o vosso cinzel
ao serviço da revolução”140. Sendo assim, para Kropotkin (assim como para
Capllonch), não há nada mais estranho do que a “gratuidade pretensiosa da arte pela arte
e as aristocracias anti-sociais das boemias e das vanguardas artísticas” 141 .

138
Ver Reszler, André; p.19.
139
Ibid.; p. 42.
140
Ver Kropotkin, P. apud Reszler, André. Op. Cit.; p.42.
141
Ver Reszler, André. Op. Cit.; p. 43.
101

Tendo em vista a enorme influência do pensamento de Kropotkin junto ao


movimento anarquista brasileiro, não surpreende constatar, nos discursos dos
articulistas da imprensa operária, posicionamentos que não raro expressam idéias
semelhantes às defendidas pelo anarquista russo.
No esforço de dissipar algumas dúvidas sobre o que tentamos defender,
citaremos mais três exemplos que ilustram a recorrência da idéia da “finalidade social”.
E por que dedicar tanto tempo a esta idéia? Por que é sobre ela que se assenta a
concepção de arte com a qual lidamos em nossa pesquisa.
Comecemos pelo artigo de Neno Vasco publicado em A Plebe no dia 13 de
novembro de 1920. Nesse artigo, intitulado Arte e Revolução, o autor de origem
portuguesa afirma que “a arte, nas formas superiores, é verdadeiramente
revolucionária”. Como condição prévia para a constituição de uma consciência
revolucionária, Neno Vasco ressalta aqui a necessidade – “sem intento financeiro” - de
se educar o povo, explicando-lhe as obras de arte e afinando-lhe o gosto.
Desenvolvendo seu argumento, Neno Vasco defende sua própria noção de “educação
estética”. Esta, segundo o autor, seria não só um meio para fazer com que o povo
aprecie obras “superiores”, como também um caminho para tornar mais “consciente a
sua revolta contra a injustiça social”. Ou seja, sendo as obras “superiores”
verdadeiramente revolucionárias – e não pretensiosamente sublimes, como seria alhures
-, por meio da educação artística seria possível desenvolver na sociedade uma
sensibilidade “maior”. Esta, por sua vez, desencadearia a conscientização do povo,
alimentando assim seu pendor revolucionário. Quanto à utilização da arte como forma
de conscientizar o povo, Neno diz que “se não é tudo, é um primeiro passo para o desejo
de uma transformação social”. Ou seja, talvez a arte não chegue a promover a
revolução. Mas, contribuindo para a conscientização do povo, ela abriria caminho para
novas iniciativas em favor daquela revolução. Melhor dizendo, ela prepararia os
espíritos para uma tomada de consciência e, assim, contribuiria para a eclosão da
revolução. Em poucas palavras, afastado do suposto embrutecimento, o povo se
tornaria “mais consciente” em sua “revolta contra a injustiça social, que mergulha a
grande maioria na miséria, na abjeção e na ignorância, proporcionando apenas a uma
minoria de privilegiados e parasitas todos os gozos da arte e da ciência”.
102

Outro exemplo? Cá está. Em artigo intitulado A socialização da ciência e da


142
arte , o então anarquista Otávio Brandão começa dizendo que, “de uns tempos para
cá”, a ciência e a arte tornaram-se “aristocratas”, afastando-se do povo lá “nos seus altos
cimos”. Em seu pequeno texto, Brandão afirma a necessidade de essas “duas grandes
manifestações do espírito humano” serem socializadas. Seria preciso que elas se
dirigissem ao encontro do povo para mitigar-lhe o sofrimento. Para ele, a arte, “em
especial” 143, estaria destinada a um grande papel na “libertação dos pequenos”. Assim
como Capllonch, Brandão também nos oferece alguns exemplos do que seria essa arte
em serviço da revolução: ao poeta caberia “descrever as agonias do povo”; ao pintor,
retratar os mendigos, doentes e leprosos; ao escultor seria necessário dar forma aos
“aspectos trágicos”. Todos esses artistas contribuiriam assim, com sua arte, para
“apressar a libertação dos humildes”. Retratando a miséria humana, todos eles poderiam
comover as “boas almas” que assim viriam em “auxílio dos deserdados”.Brandão
terminou dizendo que esperava dos estetas essa disposição em colocar-se “ao lado dos
párias”.
Anos antes, em 1906, o periódico carioca Novo Rumo publicara um artigo que,
mais do que os anteriores, muito nos interessa144. Isso porque, nele, a noção de arte
social encontra-se aplicada à produção teatral propriamente dita. Além disso, nesse
longo artigo, o autor (Cristiano de Carvalho) desenvolve alguns argumentos que são
centrais para definirmos melhor, nos discursos veiculados pela imprensa operária,
certos aspectos da “finalidade social” da arte – assim como da interlocução desta com o
povo.
Para Cristiano de Carvalho, é uma “tarefa digna” de todos aqueles preocupados
com “a miséria moral e material em que vivemos” acabar de vez com a “banal exibição
de sentimentalidades alambicadas”. A crítica se dirige aos autores que, “sem
escrúpulos”, fazem-nos aceitar tais sentimentalidades como sendo “arte do teatro”.
142
Ver Spartacus, edição de 20 de setembro de 1919.
143
Diante do complexo e difuso manancial ideológico do anarquismo, de onde viria a noção de primazia
do papel da arte sobre o da ciência na “libertação dos pequenos”? Qual a matriz ideológica que embasaria
a defesa de tal concepção? Ao que tudo indica, Otávio Brandão parece que se escora aqui numa idéia
tributária do pensamento de Bakunin. Este, ao contrário de Proudhon, afirma categoricamente a
“superioridade da arte sobre a ciência”. Ver Bakunin apud Reszler, André. Op. Cit.; p. 33. “A ciência não
pode sair da esfera das abstrações. Neste aspecto, ela é muito inferior à arte, a qual tem apenas a ver com
tipos gerais e situações gerais, mas que as encarna, através de um artifício que lhe é próprio”. Brandão
não chega a ser tão implacável com a ciência quanto fora Bakunin. No entanto, no que tange à difícil
tarefa de emancipação social, sua inclinação a ver a arte como mais importante do que a ciência parece
indicar para uma possível influência do pensamento do anarquista russo.
144
Ver Novo Rumo, edição de 19 de setembro de 1906.
103

Segundo Cristiano, tais autores, forçando a “razão fácil das platéias populares”, não
apresentam nenhum “conceito honesto que traduza intuitos de educação ou de beleza”.
Mesmo assim, passariam impunes diante dos jornalistas (que os favoreceriam) e da
“ignorância manifesta do público” (que os aceitaria).
Para além da crítica, o que importa aqui é que, mais adiante, Cristiano de
Carvalho começa a demonstrar um pouco de sua própria concepção de arte. Para ele,
uma arte “sem um puro objeto de sinceridade ou de fé”, sem intenções de “purificar os
espíritos obcecados por doentios preconceitos”, é uma arte que “falta à nobreza da sua
missão social” – é uma arte que visa “se adaptar ao cretinismo plutocrático do meio”.
Para ele, uma “literatura dramática” que não seja capaz de arrancar o povo do “torpor
da vida cotidiana” não pode “despertar os nossos pensamentos [...] no conflito moral do
século”.E, segundo o autor, é justamente uma benéfica ação moral “que se requer na
arte de hoje”. De acordo com ele, toda essa “cantata de polichinelos” ou essa
“pretensiosa filosofia de ratos de biblioteca” é exatamente o que constitui a “bagagem
artística das empresas teatrais”. O grande problema dessas encenações profissionais
seria que, apesar de seu “recorte plástico” apresentar uma certa “graça estética” 145, seus
personagens, no entanto, nos contariam apenas “intrigas anedóticas”. Por isso, tais
encenações não seriam capazes de nos oferecer a “nota intensa dum largo sentimento
d´alegria ou d´angústia humanas em que a multidão se reconheça”. Nelas não se
exaltaria a sinceridade nem se sentiria latejar a “Vida que queremos glorificar e de que o
povo só pode tirar os elementos dum lógico ensino moral e intelectual”. O autor
pergunta então: de que serve “ouvir gritar pela gorja [deslavadamente, cinicamente?] o
procurado vocabulário das crônicas” de idades antigas, colocando na ação dramática a
“fascinação mortal do passado, anestésico de todas as energias [...], desânimo para a luta
[...]?”. De forma categórica, ele afirma, na seqüência, que isto não é o teatro do povo, o
“nosso teatro”. Para o autor, a “literatura dramática de hoje democratiza-se”. Sendo
assim, não se compreende o esforço de um dramaturgo interessado simplesmente em
apresentar “a existência mais ou menos complicada de um tipo d´exceção”.
Na seqüência, Cristiano de Carvalho faz uma sintomática reflexão: para ele, a
“observação chamada imparcial nada quer dizer”. Ou seja, se o artista cria personagens,
ele o faz no “interesse da demonstração. No teatro não se representa para descrever, mas
145
Vemos aqui mais um indício de que nem tudo no campo adversário é refutado. Parece evidente a
valorização da “graça estética” proporcionada pelo “recorte plástico” do teatro profissional. Isso, mais
uma vez, obriga-nos a relativizar a suposta “pureza” cultural dos militantes com os quais trabalhamos.
104

sim para provar.” Para ele, uma dramaturgia que se pretende descomprometida trai a
própria noção de teatro, seu caráter intrínseco de “provar” alguma coisa, não apenas de
descrever. O que Cristiano espera então do “Teatro do Povo”? “Desenvolver uma alta e
serena filosofia social de justiça, de liberdade, de igualdade” e, ao mesmo tempo, fazer
uma “acerba crítica do mundo atual”; o objetivo desse tipo de teatro seria ativar “o fogo
instintivo da insubmissão”. Seu interesse não seria fazer do escritor um “retórico
moralista”. Tal escritor, comprometido com o “Teatro do Povo”, não poderia viver
indiferente “ao seu meio e aos seus contemporâneos”.
Inicia-se então uma argumentação que muito nos interessa. Mais adiante
analisaremos melhor esse argumento do autor. De acordo com ele, se uma obra-prima
nada mais é do que a “idealização do sentimento e da inteligência populares”, ela há de
se reconhecer nos heróis que fez criar. No entanto, para isso, é preciso que a alma do
povo encontre-se “livre pelo cérebro do entrave artificial das atuais relações”. Não
obstante todos os empecilhos criados pela sociedade de classes, apesar de toda a
desigualdade manter a arte distante do povo, Cristiano de Carvalho consegue enxergar
uma promissora luz no fim do túnel. Para ele, uma noção de verdade, justiça e beleza
persiste, “em gradações diferentes”, em todas as almas. Cumpriria ao “Teatro do Povo”
popularizar este sentimento comum. O mais interessante é que, sempre segundo o autor,
a tal popularização deve ser feita “num sentido favorável a sua exaltação”.
Devemos assim ressaltar que, nos três artigos acima comentados (assim como
naquele de Capllonch), algumas características da “finalidade social” da arte e/ou do
teatro encontram-se nitidamente reveladas. Para Neno Vasco, toda arte, em suas
“formas superiores”, é “verdadeiramente revolucionária”. Sendo assim, a educação
estética do povo seria capaz de promover uma conscientização; esta, por sua vez,
abriria caminho para uma profunda transformação social. Para Otávio Brandão, a arte,
mais do que a ciência, está destinada a cumprir um papel fundamental na “libertação
dos pequenos”. Segundo ele, cabe ao artista retratar a miséria humana e, assim, comover
as “boas almas”. Estas, devidamente sensibilizadas, acorreriam em “auxílio dos
deserdados”. Já para Cristiano de Carvalho, uma arte “sem um puro objeto de
sinceridade ou de fé” faltaria “à nobreza da sua missão social”. O verdadeiro teatro, por
sua vez, não poderia ser “imparcial”. Para além de “descrever”, ele deveria
“demonstrar”, “provar”. Aquilo que Cristiano chama de “Teatro do Povo” deve não só
desenvolver “uma alta e serena filosofia social”, como também fazer uma “acerba
105

crítica do mundo atual”. Numa palavra, seu objetivo seria ativar “o fogo instintivo da
insubmissão”.
No que tange ao significado da “finalidade social”, devemos ressaltar dois
aspectos que mais sobrassem nos textos aqui comentados. Primeiramente, identificamos
uma noção de telos que perpassa as mensagens de quase todos eles. Excetuando-se
talvez o artigo de Cristiano de Carvalho, os demais projetam claramente uma espécie de
“fim último” que, não por acaso, aparece relacionado invariavelmente com a idéia de
inevitabilidade da revolução. O advento desta, apesar de “inevitável”, seria mais ou
menos demorado, dependendo do uso que se fizesse da arte. Esta, desde que de acordo
com sua “finalidade social”, teria o poder de acelerar o ritmo da história, precipitando os
acontecimentos e, dessa forma, antecipando a supressão das dores daqueles que sofrem
em nossa sociedade. Ou seja, a arte fundada em sua “finalidade social” contribuiria para
a “conscientização” do povo, abrindo assim caminho para a grande transformação
prevista para o futuro. Uma arte comprometida com sua “finalidade social” cumpriria
com sua “missão” precípua: a emancipação humana ou, como quer Brandão, a
“libertação dos pequenos”.
Projetada assim para o futuro, a arte social adquire, na concepção de muitos
articulistas da imprensa operária, um irretorquível caráter de “novo”, de “moderno”.
Para os articulistas com os quais trabalhamos, o “novo” (e/ou “moderno”) em arte é
claramente associado com a noção subjacente de “finalidade social”. Afinal, se o
capitalismo está fadado a desaparecer e, em seu lugar, uma nova ordem há de surgir,
toda produção artística, para ser “moderna”, deve estar de acordo com essa nova
realidade a ser criada. Sendo assim, na imprensa operária, quase sempre a “verdadeira”
obra-de-arte é aquela que manifesta, no juízo de cada articulista, um inequívoco
comprometimento com as “causas sociais” (igualdade, justiça, liberdade etc.), por mais
abstratas que estas possam ser. Por outro lado, uma produção artística que não manifeste
aquela nobre “finalidade” fica relegada ao “passado”, é categoricamente tachada de
“arcaica”, “sexagenária”, “obsoleta”, “caduca” etc. Portanto, se tais estigmas recaem
sobre esse tipo de arte, isso ocorre por dois motivos correlacionados: primeiro, porque
ele não manifesta aquela “finalidade elevada” de que nos fala Capllonch; segundo,
porque, por não manifestar aquela tal “finalidade”, ele aparece intimamente associado à
106

“degenerada” sociedade capitalista (e/ou aristocrática) que o engendra146. É este o caso,


por exemplo, dos tão escarnecidos dramalhões. Aliás, quando Cristiano de Carvalho se
refere ao teatro preocupado apenas com a “banal exibição de sentimentalidades
alambicadas” é provável, aqui também, que seu objetivo seja atingir os mal-afamados
dramalhões.
Portanto, eis uma diferença não desprezível entre a crítica aos dramalhões na
imprensa operária e aquela veiculada por O Estado de São Paulo. Enquanto este, em
seus julgamentos, talvez estivesse preocupado em ratificar os padrões estéticos
hegemônicos, os articulistas da imprensa operária, por outro lado, questionavam ambos:
tanto os “arcaicos” dramalhões como os padrões hegemônicos. E por que tais
articulistas refutavam ferozmente os dois? Em nossa opinião, por uma simples razão:
nem os repisados dramalhões nem os padrões estéticos “aristocráticos” manifestavam
qualquer preocupação com aquela “finalidade social” que acabamos de analisar.
Podemos dizer então que, no caso da imprensa operária, a crítica ao dramalhão não
incidia sobre aquilo que no discurso hegemônico era considerado como de “mau-gosto”.
Os articulistas daquela imprensa referendavam seu discurso muito mais em cima de
uma autoridade moral do que propriamente estética. Caso contrário, porque
identificamos em seus artigos uma constante depreciação daquilo que se considerava
como “rebuscado”, “refinado”, “sofisticado”? Aquela arte “aristocrática”, alçada aos
“altos cimos” da fruição estética era, nos artigos da imprensa operária, tão ferozmente
criticada quanto os “arcaicos” dramalhões. Estes, por sua vez, não eram rechaçados por
causa de seu caráter “simplório” e/ou “popular”. Aliás, como já vimos em nossa
introdução, muitas das peças do teatro social (aqui chamado de anarquista) eram
bastante influenciadas pelo melodrama (matriz também dos achincalhados dramalhões).
Sem risco de exagero, podemos afirmar com segurança que não poucos elementos dos
dramalhões foram incorporados (via matriz melodramática) pelo teatro social.
Portanto, numa palavra, mais uma vez: a crítica aos dramalhões em O Estado de
São Paulo revestia-se de um caráter bem diferente daquele manifestado na imprensa
operária. Nesta, mesmo quando os críticos acusavam uma determinada obra como
sendo “vulgar” ou de “mau-gosto”, é preciso notar que tal acusação revestia-se de um
sentido próprio, peculiar. Os articulistas da imprensa operária não se escoravam
146
Mais uma vez, parece que a matriz ideológica dessa associação entre “decadência das artes” e
“sociedade degenerada” provém de Proudhon. Para ele, uma seria a conseqüência imediata da outra. Ver,
a respeito, Reszler, André. Op. Cit.; p. 17.
107

integralmente em cânones estéticos hegemônicos para julgar uma obra como de “bom
gosto” ou não. Isso não quer dizer que eles não fossem de forma alguma influenciados
por esses cânones. Apenas que, para tais articulistas, a incorporação dos padrões
hegemônicos (quando se verifica) dava-se sempre de forma crítica e reticente Além
disso, voltamos a insistir, a “finalidade social” é um dos critérios de julgamento que
sobressaem na imprensa operária – embora, como veremos, não o único.

2.3.3. A “dura realidade da vida” e a questão da verossimilhança


O segundo aspecto da “finalidade social” que ora analisamos diz respeito àquilo
que a arte expressa – ou seja, ao seu conteúdo. Para cumprir com sua “função social” e,
dessa forma, atingir sua “finalidade”, uma obra-de-arte deveria retratar a “realidade”,
sobretudo naquilo que ela traz de mais atroz: as desigualdades, a miséria, a injustiça, a
dor, a humilhação etc. O retrato “fiel” desses aspectos pungentes da condição humana
teria o condão de sensibilizar as “boas almas”, impelindo-as para a ação. Portanto, não
se trata apenas de “comover” o público exprimindo a dor alheia. Trata-se, sobretudo, de
“conscientizá-lo”, ativando-lhe o “fogo instintivo da insubmissão”.
É claro que nem sempre os militantes com os quais lidamos defendem apenas o
retrato da “dor humana”. No artigo supracitado sobre o “cinema do povo”, Neno Vasco
terminava dizendo que uma produção cinematográfica preocupada com as questões
sociais devia sim retratar os inúmeros aspectos das desigualdades e injustiças, mas não
apenas isso. Entremeando as cenas de miséria e opressão, o anarquista português
defendia a representação de “quadros reconfortadores e animadores”, que retratassem o
que pode o trabalho humano – além de imagens “vibrantes de promessas e de
esperanças”.

De qualquer forma, parece-nos claro que, na concepção estética sobre a qual nos
debruçamos, uma obra-de-arte “verdadeira”, para cumprir com sua “finalidade social”,
deveria preocupar-se sobremaneira com a verossimilhança 147. Encontramos inúmeros

147
Utilizamos aqui a palavra em seu sentido mais comum. Ou seja, não estamos nos referindo ao sentido
de “verossimilhança” na teoria literária, em que a palavra relaciona-se com a coerência interna de uma
obra literária no tocante ao mundo imaginário das situações recriadas. Em nossa pesquisa,
“verossimilhança” adquire o sentido mais prosaico de “verossímil”, refere-se àquilo que se assemelha à
realidade, que parece “verdadeiro”. Embora em determinados artigos a preocupação com o primeiro
sentido (da teoria literária) também se manifeste, é com a noção mais prosaica que nós trabalharemos em
nossa pesquisa – não porque desejamos, mas porque ele parece ser mais enfatizado nas fontes sobre as
quais nos debruçamos.
108

artigos e notícias na imprensa operária que denotam essa valorização da


verossimilhança. Tal valorização, é claro, muito nos diz sobre a concepção de arte e
teatro veiculada naquela imprensa. Por isso, devemos voltar um pouco as nossas
atenções a ela. Para tanto, analisaremos apenas um texto que condensa os significados
dessa preocupação com o retrato “fiel” da realidade.
Debruçar-nos-emos sobre uma notícia intitulada Crônica artística. Nela,
Salvador Alacid faz a crítica à obra Antonio, de Guedes Coutinho, que fora encenada
148
pela primeira vez pelo Grupo Teatro Social um mês antes . Alacid, apesar de atribuir
à obra certo valor, faz no entanto uma severa crítica ao que ele considera como sendo
suas incuráveis inverossimilhanças.
Fazendo no início certa concessão à peça, Alacid afirma que ela estava
“regularmente escrita”, não obstante alguns “senões”. Algumas cenas estariam até “bem
compostas”. Porém, elas “não se sucedem com a naturalidade que seria de desejar”.
Para o autor, há na peça “certa arbitrariedade” na composição. Isso não responde “ao
desenvolvimento lógico do drama”. A mesma crítica incide sobre a composição dos
personagens. Estes teriam sido mal estudados pelo autor. Figuras de “apagado e débil
tom”, tais personagens manifestariam “uma pobreza de observação e um desprezo pela
psicologia verdadeiramente lastimáveis”. Tais observações denotam uma preocupação
do autor com o retrato da complexidade psicológica dos tipos humanos; complexidade
que, como vimos, muitas vezes faltava nas obras do teatro anarquista.
Para Alacid, os dois primeiros atos seriam os melhores. Isso porque eles fariam
“vibrar os nossos sentimentos”. Temos aqui a valorização do caráter pulsante da obra,
de sua tendência a inquietar o público, a mexer com os seus sentimentos. A valorização
desses dois atos reside no fato deles retratarem o desespero gerado pela situação social
em que se encontra Antonio. Neles, Antonio desespera-se com a situação de fome dos
filhos e com o desprezo das autoridades diante de seus sofrimentos. As cenas em que o
desespero de Antonio mescla-se com o descaso das autoridades foram, nas palavras de
Alacid, as “que mais nos agradaram”.
Nos comentários sobre o terceiro ato, o tom muda radicalmente. Pelas suas
supostas inverossimilhanças, esse ato gerou insatisfação em Alacid. Nele, Antonio vai
para a prisão por ter roubado pão para aplacar a fome dos filhos. Segundo Alacid, isso
não aconteceria mais nos “nossos dias”, porque até o mais cruel juiz seria incapaz de

148
Ver A Terra Livre do dia 1º. de junho de 1907.
109

cometer uma injustiça dessas [será?]. Além disso, os episódios que culminam na revolta
e na fuga dos condenados são representados “com uma facilidade que absolutamente
nada tem que ver com a realidade”. Primeiro porque o guarda que vigiava os
prisioneiros ficava dentro do cubículo que servia como cela. Segundo porque, diante de
uma insolência do guarda, os prisioneiros se revoltam e o guarda, em vez de castigá-los
como de costume, recorre ao diretor do presídio. Este, por sua vez, entra na masmorra
com chicote na mão e sem escolta alguma – coisa que, segundo Alacid, nunca
aconteceria de fato. Tem mais: Alacid afirma que, na vida real, se um diretor cometesse
um erro desses seria imediatamente destituído do cargo, o que não acontece até o fim da
peça. Além de tudo, os presos, após a revolta, fogem pela porta. O autor da notícia acha
que seria bem melhor se Guedes Coutinho criasse uma condição de fuga mais
complexa, mostrando as argúcias e sutilezas envolvidas nos complicados planos de
evasão em cadeias reais.
Por fim, Alacid pede para que o autor não desanime. Afinal, o drama “revela
aptidões para o teatro”. Alacid sugere ao autor (Guedes Coutinho) que estude melhor os
personagens e observe com mais atenção os tipos humanos.
Ora, parece-nos evidente que as críticas feitas à peça Antonio recaem
principalmente sobre seus aspectos “inverossímeis”. É importante reiterar que Salvador
Alacid não era o único, na imprensa operária, a se opor às inverossimilhanças nas peças
teatrais. Observamos vários outros exemplos do tipo nos artigos e notícias que
pesquisamos 149.
Aliás, a oposição aos aspectos “artificiais” da dramaturgia não era privilégio da
imprensa operária. Mais uma vez, os jornais operários não estavam sozinhos. Exemplos

149
Em A Voz do Trabalhador de 15.08.1908, ver comentários sobre a peça O Exemplo, de Mota
Assunção. Neles, o autor afirma que a obra, “em conjunto, é muito interessante e bem elaborada”. Isso
porque ela “tem cenas cheias de vida e realidade”. A única crítica recai sobre o primeiro ato. Este
apresentaria um final “um tanto ilógico”. Ver em A Lanterna de 11 de junho de 1914, crítica à peça Santa
Aquilina Mártir, levada ao palco por um grupo de amadores católicos. Para João Eduardo (autor da
crítica), o drama está cheio de “asnices, inverossimilhanças e infâmias”. Ver em A Terra Livre de 20 de
dezembro de 1907 comentários sobre o desempenho de ator que representou o papel de um velho na peça
As Vítimas, de F. Boutet. Caracterizado “muito jovem” e desempenhando o papel com “voz sonora”, ele
não se parecia com um “velhote degenerado pelo álcool e alquebrado por uma longa vida de misérias e
sofrimentos”. Ver edição da 2ª. quinzena de maio de 1918 do periódico Liberdade; nela, O Leigo comenta
atuação de Auzentina Neiva na peça Primeiro de Maio dizendo que a menina estava “vestida de
camponesa, com sapatos que nunca viram o campo”. Ver em A Terra Livre (edição de 23.09.1906) elogio
à peça O Infanticídio, de Mota Assunção. Questionando aqueles que acharam o julgamento retratado no
quarto ato maçante demais, Frederico Bessa (autor dos comentários) afirma que também aqui há um
grande valor na peça, uma vez que aquelas cenas retratam o que de fato ocorreria no interior dos
tribunais. Outros exemplos do gênero poderiam ser dados. No entanto, apesar da longa vida, o espaço é
curto. Fiquemos por aqui.
110

parecidos encontram-se também em O Estado de São Paulo. Em tempos de Império,


quando aquele jornal ainda se chamava A Província de São Paulo, um articulista cujo
codinome era Máscara de Seda elogiou o desempenho do ator Eduardo Brazão. Este,
segundo Máscara de Seda, encenava “com a naturalidade da nossa vida comum”. Sem
afetação, tal naturalidade teria se desenvolvido “à força de estudos e de talento”; por
meio dela, Brazão conseguiria “surpreender-nos mesmo, de tanta verdade”. Máscara de
Seda afirma que, por meio do “grito sufocado, rouco, dilacerante” que o ator dá em cena
quando Dora pretende se lançar da janela, “Brazão rompeu mais uma vez com todas as
convenções da velha arte...”.150
Os comentários que acabamos de mencionar foram publicados no começo da
década de 80 do século XIX. Desnecessário dizer, esse era o momento em que aquilo
que chamamos de Realismo (associado ao seu congênere, o Naturalismo) afirmava-se
de maneira inequívoca no cenário literário brasileiro. Com tal afirmação, o gênero não
só é incorporado aos padrões hegemônicos de arte, como também começa a se
transformar em cânone estético. Ao que tudo indica, a crítica na grande imprensa
inclina-se cada vez mais a julgar as obras de acordo com tal cânone, rechaçando muitas
vezes aquilo que dele se distanciasse demais.
Devemos ainda ressaltar que, quase trinta anos depois, em 1908, O Estado de
São Paulo continuava tecendo comentários semelhantes. Em 26 de julho daquele ano, o
jornal comentou a atuação do ator francês Feraudy, que acabara de se apresentar em São
Paulo. Segundo o crítico daquele jornal, Feraudy teria sido “admirável” em seu papel.
Em sua “arte finíssima” [grifos nossos], o ator teria composto “um tipo mesquinho, com
absoluta naturalidade, de modo mesmo a dar a ilusão perfeita da realidade”.
De novo, a leitura desatenta dos textos acima comentados poderia nos levar a
uma associação mecânica entre as críticas de O Estado de São Paulo e aquelas
veiculadas na imprensa operária. No entanto, devemos mais uma vez tentar
compreender as sutis diferenças expressas pelos discursos. Assim como no caso dos
dramalhões, aqui também parece que, sob a superfície aparente dos enunciados, os
sentidos profundos das mensagens diferenciam-se sobremaneira. Em O Estado de São
Paulo, novamente o que se destaca é a preocupação estética. Quando Máscara de Seda
elogia Eduardo Brazão, ele o faz porque sua atuação em palco é capaz de “romper com
todas as convenções da velha arte”. Se a atuação de Feraudy era admirável, era porque

150
Ver A Província de São Paulo apud Magaldi, Sábato e Vargas, Maria Thereza. Op. Cit.; p.15.
111

sua naturalidade contribuía para a constituição de uma “arte finíssima”. Não


conseguimos perceber nesses dois comentários nenhuma ênfase sobre os conteúdos que
as obras transmitem. O teor da mensagem não parece ser o mais importante. Por detrás
do destaque ao valor estético, não conseguimos divisar uma preocupação maior com
qualquer “finalidade” específica que a obra pudesse manifestar.
Mas, obviamente, o que nos interessa aqui não é O Estado de São Paulo e sim a
imprensa operária. É para ela que temos de voltar a nossa atenção. É a ela que devemos
perguntar: qual o sentido que a valorização da verossimilhança adquire nos discursos
dos articulistas? Por que a idéia de “retrato fiel” da realidade é incentivada naquela
imprensa? Por que seus articulistas valorizam tanto a encenação “natural” dos papéis?
É claro que, neste ponto, assim como no caso dos dramalhões, não devemos
descartar por completo a influência de certos padrões estéticos já consagrados naquele
momento. Afinal, como já frisamos, os articulistas da imprensa operária não escreviam
seus textos no interior de algum nicho cultural estanque, isolado e puro. Mesmo
atribuindo à sua concepção um caráter autônomo, é claro que, de uma forma ou de
outra, eles também dialogavam com o sistema hegemônico de referências culturais. E,
em alguns momentos, descobrimos zonas de interseção curiosas entre suas concepções e
aquelas já incorporadas nos padrões estéticos legitimados. No entanto, se os próprios
articulistas da imprensa operária enfatizam suas diferenças em relação à cultura
“burguesa”, “aristocrática” e/ou “dominante”, devemos levá-los a sério e procurar em
seus discursos onde se manifestam tais diferenças. Estas de fato existem, cabe a nós
identificá-las.
Na própria notícia assinada por Salvador Alacid, temos indícios que nos
apontam para o sentido que a valorização da verossimilhança adquire em seu discurso.
Vimos já que Alacid não gostou da peça Antonio. No entanto, sua opinião parece não se
coadunar com a do público que assistiu ao drama pela primeira vez. Segundo o autor, a
peça “agradou imensamente”. Para ele, isso ocorreu por causa de suas cenas
“profundamente dramáticas”. Alacid diz que o público aprecia bastante essas
“ficelles”151 . Tal apreço do público teria motivado o “sucesso” da obra. Mais adiante, já
no final de seus comentários, ele sugere ao autor que renuncie a se subordinar ao
público: “não se importe com a maneira com que o povo interpreta o teatro e a arte”.

151
Ficelle é uma espécie de baguete fina apreciada pelos franceses.
112

Para Alacid, o povo precisa ser “educado” e, por isso, precisa ser “contrariado” [as
palavras entre aspas são do próprio Alacid].
Prestemos atenção no que diz o crítico. Não obstante seus possíveis deslizes
autoritários, a preocupação de Alacid em “educar” o povo não seria justamente a
expressão daquela valorização da “finalidade social” com a qual o teatro (e a arte em
geral) deveria se relacionar? Se Alacid pede ao autor (Guedes Coutinho) para, em parte,
esquecer as preferências do público, privilegiando assim o caráter “educacional” de sua
produção, é porque ele atribui a tal caráter uma importância fundamental. Sendo assim,
para ele, o dramaturgo deve “educar” o público, torná-lo “consciente” de sua situação
social, fazê-lo compreender o que se passa consigo e com a sociedade em geral. Alacid
não utiliza a expressão, mas não seria exagero dizer que, na verdade, para ele, o autor de
uma peça deve, na verdade, buscar aquela tão propalada “finalidade social” que tantos
outros defendiam na imprensa operária. Aliás, podemos mesmo dizer que, para Alacid
(assim como para os outros articulistas com os quais trabalhamos), todo o resto deve, de
alguma forma, relacionar-se com aquela “finalidade” – incluindo aqui (por que não?) a
própria verossimilhança. A preocupação com esta, em inúmeros casos por nós
analisados, aparece nos discursos dos articulistas quase sempre associada àquela
“finalidade social” – seja de forma direta ou de forma indireta (por meio das idéias
correlacionadas de “educação”, “conscientização”, “moralização” e/ou
152
“propaganda”) .
Como vimos, na imprensa operária a busca daquela “finalidade social” se dá por
meio da “conscientização” do povo (ou, em outras palavras, por meio de sua
“educação”). No entanto, para “conscientizar” esse povo é preciso “sensibilizá-lo”. Tal

152
Ver, em O Amigo do Povo do dia 25 de outubro de 1902, notícia já citada sobre a encenação de Il
Giustiziere!. Nela, o autor anônimo afirma que o drama dá “pretexto para muita propaganda”. Isso
porque, dentre outras coisas, ele foi escrito por um operário que põe em cena a vida que ele conhece,
sente e, por conseguinte, consegue retratar de forma fiel. Ver artigo já comentado de Otávio Brandão em
Spartacus, edição de 20 de setembro de 1919. Para Brandão, como vimos, o retrato convincente da “dura
realidade” teria o poder de comover as “boas almas” que assim viriam em “auxílio dos deserdados”
[“finalidade social”]. O próprio Capllonch, como também já vimos, em Renovação de março de 1922,
acha que a arte, para cumprir com sua “finalidade elevada”, precisa “documentar” as misérias e injustiças
sociais. Para ele, uma obra deve “plasmar” o sofrimento humano para chocar e/ou sensibilizar o grande
público. Em A Lanterna de 17 e 18 de outubro de 1903, ver comentários de José Rizal a respeito do
drama anticlerical O Dever, de Joaquim Alves Torres. Para Rizal, essa obra seria “muitíssimo melhor” do
que a peça Electra, de Pérez Galdós. Isso porque O Dever exprimiria de forma mais correta o “perigo
negro” representado pela Igreja. O jesuíta Angelini, personagem dessa peça, seria o retrato perfeito do
padre “tal como ele é” [palavras de Rizal]. O comentarista termina chamando a obra de “sã”, de
“moralizadora”; para ele, trata-se de uma “obra de combate contra a mentira e o erro”, combate que,
como vimos, seria um meio para se atingir aquela “finalidade”.
113

“sensibilização”, por sua vez, só ocorre quando o artista consegue retratar a realidade de
forma comovente. E para comover, é preciso que ele expresse a vida “como ela é”. Até
porque, em diferentes concepções artísticas com as quais os anarquistas lidavam, a
sensibilidade artística do povo brota justamente da experiência vivida. Sendo assim,
uma obra-de-arte que não consiga retratar essa experiência de forma convincente
(destacando seus aspectos mais pungentes) afasta-se do povo e, por isso mesmo, não o
sensibiliza. E sem sensibilizar, uma obra-de-arte não prepara ninguém para o advento da
“grande transformação” social projetada para o futuro. Numa palavra, obras assim, que
não expressam as situações como “de fato são”, não cumprem com sua “finalidade
social”. Resumindo: para os articulistas com os quais lidamos, a valorização da
verossimilhança aparece quase sempre relacionada (mas nem sempre submetida) àquela
“finalidade social” que vimos analisando. Portanto, tal valorização adquire na imprensa
operária um caráter não só estético, como também moral. Retratar “fielmente” a
realidade não é apenas uma questão de “bom gosto” (embora também o seja), é
sobretudo um dever. Todo artista “comprometido socialmente” deve preocupar-se de
maneira séria com a “fidelidade” ao real (embora, como veremos, não só com ela). Caso
contrário, não cumprirá com sua função precípua.
Conclusão semelhante a esta chegara já Francisco Foot Hardman. Em sua
influente obra Nem Pátria, Nem Patrão, o citado autor afirma que, na concepção dos
militantes anarquistas, o comprometimento da verossimilhança prejudicaria “a eficácia e
os efeitos da desejada propaganda” 153. Até aqui, estamos plenamente de acordo. No
entanto, o problema é que, nas abordagens de Foot Hardman (como, ademais, em quase
todas as pesquisas sobre o tema), haveria entre os “núcleos dirigentes” e a “classe” uma
espécie de fosso. No interior das “festas de propaganda”, esse fosso só seria transposto
quando os elementos culturais da segunda ficassem subordinados aos desígnios
“doutrinários” dos primeiros154 .

153
Ver Foot Hardman, Francisco. Nem Pátria, Nem Patrão. São Paulo: Editora UNESP, 2002; p.108.
154
Ibid.; p. 90. Ao comentar as apropriações do lúdico pelos militantes anarquistas, o autor afirma: “a
`alegria estuante´ deve aliar-se à utilidade da `propaganda fecunda´, como meio eficaz e subordinado´ [os
grifos são do próprio autor]. A presença daqueles elementos [lúdicos] só se justificaria se eles fossem
fiéis, como instrumentos mobilizatórios, aos desígnios da propaganda libertária”. Ou seja, para Foot
Hardman, haveria uma relação de subordinação da “alegria estuante” frente aos “desígnios da
propaganda”.
114

Analisemos de perto dois fragmentos da obra do influente autor de Nem Pátria,


Nem Patrão. Transcrevê-los aqui mantendo suas sutis nuances é, em nosso ver, a única
forma de analisar o pensamento daquele autor sem distorcer o seu sentido original.

Mas, se a concepção cultural anarquista sempre manteve um pé atrás diante das


manifestações folclóricas e da tradição popular que escapassem ao controle dos próprios núcleos
de propaganda ácrata, associações sindicais e outros organismos libertários, trata-se então de
examinar, um pouco mais detidamente, os materiais de construção dessa mitológica e
impenetrável cidadela obreira. E, nesse sentido, os grupos de teatro social, ao configurarem uma
representação – dramática ou hilariante – que se localizava num cenário e tempo distintos,
fornecem algumas pistas [grifos do próprio Foot Hardman].155

Parece-nos claro que o autor parte da seguinte premissa: os militantes


anarquistas, sempre desconfiados de tudo aquilo que fugisse ao “controle” dos núcleos
de propaganda, manteriam certa suspeita frente às “manifestações folclóricas e da
tradição popular”. Não estamos aqui dizendo que Foot Hardman construiu tal premissa
partindo de alguma noção forjada a priori. Por certo, tal premissa surgiu do próprio
contato que o autor manteve com as fontes. Analisamos já alguns documentos que
parecem, à primeira vista, apontar para uma concepção mais reservada frente aos
elementos culturais que não se adequassem às exigências da militância libertária. No
entanto, quando Foot Hardman atribui à concepção cultural anarquista a construção de
uma “mitológica e impenetrável cidadela obreira”, percebemos bem qual é a conclusão
a que aquela premissa acaba conduzindo. Vemos, na metáfora da cidadela obreira156, a
projeção de uma imagem em que os militantes anarquistas, de tão agarrados que eram às
suas próprias idéias, acabavam por se fechar no interior de um mundo “impenetrável” e
isolado.

155
Ibid.; p. 94.
156
A metáfora da “cidadela obreira” talvez seja uma vaga referência à “cidade operária” de Georges
Sorel. Caso Foot Hardman tenha feito tal associação, devemos salientar que o uso da expressão “cidade
operária” no pensamento soreliano reveste-se de um sentido bem diferente daquele que Foot Hardman
parece conferir à sua “cidadela obreira”. Isso porque, para Sorel, embora a “cidade operária” opusesse-se
à decadente “cidade estética” engendrada por nossa civilização, em sua concepção não havia entre as
duas uma relação necessária de exclusão e nem mesmo de subordinação. Na visão de Sorel, embora a arte
no futuro socialista só consiga sobreviver como criação proletária, tal sobrevivência só ocorreria de fato
quando a “cidade operária” retomasse a “cidade estética”. Ou seja, a “cidade operária” de Sorel não se
fechava à influência do passado e, ao que tudo indica, também não o submetia de forma imediata (Sorel
estava atento às inúmeras mediações que a produção artística envolvia). Embora haja no espírito de Sorel
uma oposição entre os desejos de conservação e de movimento, essas “duas direções opostas dão às suas
teses a sua tensão criadora e a sua extrema integridade”. A respeito da concepção soreliana aqui adotada,
ver Reszler, André. Op. Cit.; capítulo 5.
115

No entanto, o problema que identificamos na construção daquela metáfora recai


sobre as escolhas metodológicas adotadas pelo autor de Nem Pátria, Nem Patrão. Nas
páginas por ele dedicadas à abordagem da “cidadela obreira”, Foot Hardman mostra-se
um tanto avaro na citação e análise de fontes. Pouco antes do trecho citado acima, ele se
referira às críticas ao baile que emergem das páginas da imprensa operária. Todavia,
não vemos aí nenhuma análise mais detida de qualquer artigo que manifestasse aquele
desacordo frente a tal aspecto lúdico das festas operárias. Sabemos que artigos
criticando o baile existem (alguns deles foram já citados em nossa pesquisa). A única
coisa que desejávamos era que esses indícios que supostamente manifestam uma
suspeita dos militantes anarquistas diante da “tradição popular” fossem analisados de
perto. Só assim seria possível comprovar (ou não) a existência daquela “cidadela
obreira” a que se refere o autor citado.
No que diz respeito às atitudes dos círculos militantes frente ao carnaval, Foot
Hardman demonstra quase o mesmo descuido. Aqui, no entanto, ele chega a citar um
artigo que, ao contrário do que seria de se esperar, conspira contra a “cidadela obreira”
que, na seqüência, ele irá conceitualmente construir. Trata-se de um texto publicado
pelo periódico anarquista A Guerra Social em 1912. Nele, o articulista, nas palavras de
Foot Hardman, “apesar da reafirmação de sua crítica à `mascarada´, revela lucidez no
julgamento de que a atitude popular foi uma demonstração de desprezo pelo Estado,
pois tratava-se de um carnaval subseqüente à morte do barão do Rio Branco” 157. Ou
seja, na análise desse artigo sobre o carnaval, o que, em nossa visão, Foot Hardman
poderia também identificar é uma verdadeira valorização (embora reticente) do caráter
subversivo que a mascarada carregava consigo, não uma desconfiança antecipada do
articulista de A Guerra Social frente a “alegria estuante” que brotava daquela
manifestação popular.
Um pouco mais adiante, o autor tece alguns comentários sobre a moral
anarquista e a concepção estética dos militantes que estudamos. Por vincular-se
diretamente com a discussão que ora mantemos em nossa pesquisa, transcreveremos tais
comentários.

157
Ver Foot Hardman, Francisco. Op. Cit.; p. 93.
116

Feita a digressão indicando a permanência de certas representações ideológicas, apenas


apresentadas na atualidade com novas fantasias, retomemos o tema principal. A moral anarquista
esteve sempre preocupada em montar uma fortaleza cultural que resistisse aos males da ordem
dominante e fosse um campo de treinamento para a comunidade do porvir. No plano estético,
essa atitude traria, em muitos casos, uma tensão não resolvida entre o novo e o velho, entre a
tradição do conhecido e a energia explosiva e criadora do desconhecido [grifos nossos] 158.

Deixemos bem claro, antes de tudo, que Foot Hardman não despreza os
inúmeros contatos que os militantes anarquistas mantiveram com os elementos da
cultura popular. Por exemplo, vimos já em outros momentos que ele é bastante sensível
àquela aproximação entre o “doutrinário” e o “lúdico”159. E quando, no trecho acima,
ele se refere à “fortaleza cultural” que a moral anarquista supostamente construiu, seu
objetivo é enfatizar a resistência daqueles militantes frente aos “males da ordem
dominante”, não aos supostos efeitos perniciosos das manifestações culturais do povo.
No entanto, aqui também, a metáfora da “fortaleza cultural” parece ser uma conclusão
lógica daquela premissa acima indicada. Ou seja, por se manterem sempre desconfiados
diante de toda manifestação cultural que fugisse ao “controle” dos núcleos de
propaganda, os militantes anarquistas, entrincheirados no interior de sua “cidadela
obreira”, viam-se na obrigação de construir uma “fortaleza” que desse conta de protegê-
los dos efeitos “maléficos” da influência cultural externa.
Ora, tendo em vista que no plano estético a atitude reticente dos anarquistas
gerava uma tensão entre o velho e o novo, entre o conhecido e o desconhecido, cabe a
nós indagar sobre a existência ou não daquela “fortaleza cultural”. Seria ela efetiva ou
aparente? Caso ela de fato existisse, onde a encontraríamos? E o que diríamos a
respeito da metáfora da “cidade obreira”? Resistiria ela a uma análise atenta das fontes?
Vejamos na seqüência.

158
Ibid.; p. 95.
159
No que se refere, por exemplo, ao período dos grandes festivais em praça pública (1917-1920), Foot
Hardman chega mesmo a enfatizar o caráter permeável das práticas culturais desenvolvidas por nossos
militantes. No capítulo 2 de sua importante obra, nosso autor afirma. “Se, por um lado, essa atitude menos
puritana e mais permeável à influência de elementos `estranhos´ à `cultura operária´ tornava as atividades
culturais anarquistas mais suscetíveis às técnicas e aos artefatos de uma embrionária indústria cultural,
por outro, retomava, no aspecto lúdico e multiforme do espetáculo, uma tradição popular anterior à era
industrial, vinculada à trajetória do carnaval e do circo”[ grifo dos próprio Foot Hardman]. Ibid.; p. 89.
117

2.4. Público e articulistas – algumas tensões, inúmeras aproximações


Nos comentários de Salvador Alacid, notamos uma indisfarçável tensão entre as
inclinações do público e a sua própria concepção de arte. Para Alacid, o apreço dos
espectadores à peça Antonio deve-se às cenas “profundamente dramáticas” que ela
apresenta. Quando ele pede a Guedes Coutinho para que não se submeta aos desejos do
público, dizendo que este deve, sobretudo, ser “educado” (e, para tanto, “contrariado”),
devemos refletir sobre o significado desse conselho. Podemos atribuir a tal sugestão
alguma espécie de “divórcio” entre o crítico e o público? Estariam Alacid e público
irremediavelmente apartados? Seria difícil (ou mesmo impossível) reconciliá-los?
Não cremos nessa hipótese. Primeiro porque, não obstante suas possíveis
inverossimilhanças, a peça Antonio apresentava um nítido conteúdo “social”. Por isso,
estava bem de acordo com a concepção de arte defendida pelos articulistas da imprensa
operária, incluindo aqui Alacid. Este não deixa de reconhecer o valor da peça. Ele não
só elogia os dois primeiros atos como confere ao drama (e, por extensão, a Guedes
Coutinho) “aptidões para o teatro”. Se o público gostou da peça (e não temos razões
para desconfiar de Alacid neste ponto) e o próprio crítico reconhece nela algum mérito
é porque, de fato, em algum momento, os dois se aproximam em suas preferências.
Entre o gosto de ambos, percebemos zonas de interseção não desprezíveis.
Portanto, devemos tomar cuidado com as palavras daquele crítico, buscando
nelas sempre um sentido mais profundo e sutil. Por exemplo, quando Alacid atribui ao
público um gosto pelas cenas “profundamente dramáticas”, deveríamos concluir que ele
(Alacid) fosse contra cenas desse tipo? Acreditamos que não. Afinal, por que teria ele
apreciado os dois primeiros atos? Estes, quando expressam o desespero de Antonio
diante da fome dos filhos e do descaso das autoridades, não seriam também
“profundamente dramáticos”?
Depreendemos dos comentários de Alacid duas questões importantes que se
encontram intimamente relacionadas. Primeiro: apesar do relativo desprezo que suas
palavras expressam sobre o gosto do público, não devemos conferir ao crítico um
esnobismo que ele de fato não manifesta. Nem sequer podemos afirmar que Alacid não
valorizava também, assim como o público, o caráter “profundamente dramático” da
peça. A não ser que acreditemos que as cenas nas quais Antonio se desespera diante da
aflição de seus entes queridos e do absoluto descaso das autoridades não fossem tão
“profundamente dramáticas” quanto as demais. Se, pelo contrário, atribuirmos aos dois
118

primeiros atos a mesma dramaticidade dos seguintes (e achamos que este é o caso),
temos de reconhecer que o crítico justamente os valorizou pelo caráter intensamente
comovente de suas cenas. Segundo: o público, ao que tudo indica, também não estava
na contramão do que fundamentalmente era pregado pelos “núcleos dirigentes”. Como
vimos, a peça Antonio manifestava um nítido conteúdo “social”. Se ela “agradou
imensamente” o público, é porque, em alguma medida, este também estava de acordo
com os propósitos ditos “doutrinários” da obra. Aliás, é preciso salientar que, em meio a
seus comentários, Alacid critica a “obsecação [sic] que tem o autor de fazer
propaganda”.
Alacid, que numa visão mais segmentada seria considerado como membro dos
tais “núcleos dirigentes”160, coloca-se contra a obsessão pela propaganda. Ora, não
deveria ser ele, como membro daquele “núcleo”, o primeiro a defender a ênfase na
propaganda, no caráter “doutrinário” da peça? No entanto, não é o que ocorre aqui.
Mas, e o público? Este, de acordo com aquela mesma visão segmentada, deveria
menosprezar a “doutrina” (e com ela a propaganda) e buscar na festa aquilo que ela
oferecia de “puramente lúdico” (se é que isso existe em algum lugar!). No entanto,
como nós vimos no primeiro capítulo, é impossível separar, no contexto analisado, o
“doutrinário” do “lúdico”. Por isso mesmo, o distinto público foi à festa, assistiu à peça
(eminentemente “doutrinária”) e se deleitou tanto que Alacid não deixou de mencionar
o tal apreço. Sendo assim, fica difícil dizer onde começa o desejo do público e termina o
desígnio do articulista. Como fica então a tensão entre público e articulistas nos demais
discursos da imprensa operária? Analisemos outros exemplos.
Em 9 de junho de 1921 o periódico paulistano A Vanguarda publicou uma
notícia sobre uma festa organizada pela União dos Trabalhadores Graphicos de São
Paulo. Realizado duas semanas antes no salão do Centro Republicano Português, o
evento comemorava o segundo ano da reorganização daquele sindicato. A notícia
informa que, como as anteriores, “essa festa dos gráficos teve bastante animação”.
Segundo seu autor anônimo, o salão estava lotado e o programa foi “satisfatoriamente
executado”. Após as conferências, houve a representação de uma comédia intitulada
Casamento Inesperado. Esta, sempre de acordo com o autor da notícia, teria sido uma
160
Segundo Edgar Rodrigues, Salvador Alacid “já militava no Rio de Janeiro no dobrar do século XIX”.
Como elemento ativo do movimento operário anarquista naquela cidade, ele ajudou a fundar o jornal
Novo Rumo (provavelmente em 1905) e, mais tarde, o periódico A Guerra Social. De acordo com
Rodrigues, “Salvador escrevia bem e falava com clareza em defesa de suas idéias”. Ver Rodrigues, Edgar.
Os Companheiros – vol. 5. Florianópolis: Insular, 1998; p.152.
119

“infeliz escolha” feita pelo grupo cênico. Isso porque ela seria “uma velha comédia,
cujo autor teve a preocupação exclusiva de fazer rir” por meio de “batidos qüiproquós e
de frases apimentadas absolutamente impróprias para as festas operárias”. Nestas, para
o autor, “mesmo rindo, se divertindo, se deve procurar emprestar um fundo moral às
representações de nossos grupos”.
Dois aspectos correlacionados destacam-se nos comentários acima mencionados.
Primeiro: apesar da condenação moral à comédia Casamento Inesperado, nós não
observamos, no juízo do autor, nenhum traço de intolerância severa. Pelo contrário, o
mais interessante é que, no final, ele afirma que os “amadores, entretanto, trabalharam a
contento geral”. Segundo: como o autor não é assim tão intransigente, não encontramos
em seu texto nenhuma condenação ao riso propriamente dito. O que ele condena,
simplesmente, é “a preocupação exclusiva de fazer rir”. Para ele, uma comédia deve ir
além, buscando mesclar o prazer do entretenimento com a instrução moral. Foot
Hardman, em sua análise das “festas de propaganda”, também aponta para essa tentativa
de “aliar o prazer do entretenimento às tarefas de convencer o público da necessidade da
`emancipação social´”161. No entanto, ao enfatizar o excessivo rigor moral manifestado
por alguns elementos dos “núcleos dirigentes”, Foot Hardman talvez não tenha
percebido que, tanto na prática quanto no discurso, aquela “fortaleza cultural”
supostamente construída pela “moral anarquista” era menos inexpugnável do que às
vezes parecia ser. Enfim, a “cidadela obreira” (se é que ela existiu) não era assim tão
“impenetrável”.
Para esclarecer melhor o nosso ponto de vista, fiquemos apenas nos casos que
sugerem um sentido positivo do riso na imprensa operária. Afinal, é por meio dele que a
“alegria estuante” a qual se refere o autor citado manifesta-se francamente.
O periódico carioca Liberdade162, em sua edição da segunda quinzena de maio
de 1918, publicou uma notícia sobre o desempenho da Escola Dramatica do “Club
Ginastico Portuguez”. Do elenco, fizeram parte alguns amadores que já haviam atuado
163
em apresentações realizadas por outros grupos cariocas de teatro amador . O autor

161
Ver Foot Hardman, Francisco. Op. Cit.; p. 25.
162
Segundo Maria Nazareth Ferreira, o periódico Liberdade foi criado em 1917 e tinha como editor o
sapateiro anarquista Pedro Matera. Este, de acordo com Edgar Rodrigues, também “tomou parte nos
grupos de teatro anarquista”. Ver Ferreira, Maria Nazareth. A Imprensa operária no Brasil – 1880-1920.
Petrópolis: Vozes; 1978; p.98. Ver ainda Rodrigues, Edgar. Os Companheiros – vol. 5. Florianópolis:
Insular, 1998; p.19.
163
Dentre os amadores que tomaram parte nesse espetáculo estão Auzentina Neiva, pertencente na mesma
época ao Grupo Dramatico 1º. de Maio (ver Liberdade, edições de abril, maio e junho de 1918); R.
120

anônimo dessa notícia comenta a récita da Escola Dramática afirmando que ela
alcançara um “ruidoso sucesso”. A peça nela encenada era uma “engraçada comédia
francesa” chamada Um Filho da América. As situações cômicas do terceiro ato teriam
provocado a “hilaridade na numerosa e seleta assistência”. O último ato, por sua vez,
teria sido “delicioso” - não só pelo humor e emoção, como também “pelo cenário rico e
deslumbrante”.
Impossível saber, pelos comentários do autor da notícia, qual era o conteúdo da
peça. Não temos aqui nenhum indício sobre o possível caráter “social” da comédia. O
silêncio do autor é eloqüente. Ao que tudo indica, se ele nada diz a esse respeito é
porque, no fundo, isso talvez não fosse assim – ao menos naquele momento – tão
relevante. Para ele, o mais importante parece ter sido ressaltar a hilaridade provocada
pela encenação. E, aqui também, não temos razão para duvidar de seu relato.
Outro aspecto a frisar é que, nessa notícia, nós temos um dos poucos indícios
que a imprensa operária nos oferece sobre recursos cênicos. A exuberância do cenário é
um dado curioso que aponta para um cuidado dos amadores como o aparato do palco.
Temos aqui, mais uma vez, uma nítida preocupação com o efeito sensitivo dos
espetáculos junto ao público. E o articulista, por que não criticou aquele “cenário rico e
deslumbrante” – assim como seu apelo meramente sensorial? Afinal, se na concepção
dos militantes que estudamos era preciso “sacrificar a forma ao fundo”, porque o autor
da notícia não fez nenhuma objeção a respeito? Em nossa opinião, por uma razão bem
simples: ele também foi seduzido pelo cenário. Ora, se o autor nada diz sobre o
conteúdo da peça - se suas preocupações voltam-se principalmente para o riso do
público e para o efeito encantador do cenário - é porque, das duas, uma: ou ele escrevia
no jornal errado ou, na verdade, ele era menos “doutrinário” (e/ou “puritano”) do que a
164
historiografia sobre o movimento anarquista muitas vezes nos faria crer . De forma
categórica, estamos inclinados a adotar a segunda hipótese.

Malheiros, que naquele mesmo mês de julho encenaria um monólogo em festa onde também atuaria o
Grupo 1º. de Maio (ver Liberdade, 1ª. quinzena de agosto de 1918) e Delfim Rato, que cinco anos antes
recitara uma poesia em festa organizada pela Liga Anticlerical do Rio de Janeiro (ver A Voz do
Trabalhador, edição de 15.08.1913).
164
Para além das obras já citadas de Francisco Foot Hardman e de Maria Thereza Vargas e Mariângela
Alves de Lima, obras que - como já vimos em diferentes momentos de nossa pesquisa – dão uma ênfase
maior ou menor ao suposto caráter “doutrinário” e/ou “puritano” dos militantes anarquistas, temos outros
exemplos da historiografia que apontam para o mesmo sentido. Ver, por exemplo, Hobsbawm, Eric J.
Mundos do Trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; p. 109. Ver ainda Fausto, Boris. Trabalho
Urbano e Conflito Social. São Paulo: Difel, 1986; pp.86-87. Ver ainda Toledo, Edilene. Anarquismo e
Sindicalismo Revolucionário. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo; p. 45. Para a última autora,
121

Continuemos na análise das complexas relações entre articulistas e público. O


periódico A Lanterna, em sua edição de 11 de maio de 1912, publicou um comentário
sobre uma festa organizada pelo Grupo Dramatico Anticlerical no dia 1º. de maio
daquele mesmo ano. Uma das peças encenadas naquele evento foi O Pecado de
Simonia, uma comédia anticlerical que será por nós analisada mais adiante. Segundo o
autor anônimo dessa notícia, a representação da comédia de Neno Vasco teria sido “um
verdadeiro sucesso”. Nas palavras do autor, “o riso franco sublinhou as melhores
passagens da obra-prima do escritor libertário”. No final, os atores, chamados de volta à
cena, foram “calorosamente aplaudidos” pelo público. Se nada sabemos sobre o
conteúdo da comédia Um Filho da América, o mesmo não podemos dizer de O Pecado
de Simonia. Nesta obra, temos não apenas uma crítica anticlerical hilariante, como
também a apologia de um jovem anarquista que, junto com sua amada, acaba
desmascarando um padre tão astuto quanto insinuante. Portanto, observamos aqui mais
um caso emblemático em que, nas palavras de Foot Hardman, o “prazer do
entretenimento” alia-se “às tarefas de convencer o público da necessidade da
`emancipação social´”. Temos também, novamente, um outro exemplo de franca
aproximação entre articulista e público. Este, ao que tudo indica, foi buscar na festa
acima citada algo não muito distante daquilo que desejavam oferecer os tais “núcleos
dirigentes”: diversão e (por que não?) propaganda.
Outra peça que provavelmente buscava aliar entretenimento e “doutrina” era a
farsa Pacatos, de Zenon de Almeida e Joaquim dos Santos Barbosa. Na verdade, não
conhecemos o enredo dessa farsa. No entanto, sabemos alguma coisa sobre as vidas de
seus autores. Segundo Edgar Rodrigues, Zenon de Almeida nasceu no Sul do Brasil e
desde jovem tornou-se anarquista. Trabalhou como químico no Frigorífico Anglo,
situado em Pelotas. Foi então que Zenon de Almeida participou de uma greve com o
pessoal daquele frigorífico e acabou sendo preso. Depois de solto, foi para São Paulo,
viveu algum tempo em Santos e, por fim, fixou-se no Rio de Janeiro. Além da obra
Pacatos (em parceria com Santos Barbosa), Zenon de Almeida produziu inúmeras
outras peças, incluindo a comédia Amores em Cristo e o drama Fuzilamento de Ferrer,
ambos encenados com certa freqüência pelos grupos amadores cariocas 165. Joaquim dos

“de forma geral, os anarquistas procuravam dar ênfase à honestidade exemplar dos operários e
anarquistas, também porque o anarquismo tinha um caráter de conversão quase religiosa” [grifos
nossos].
165
Ver Rodrigues, Edgar. Op. Cit.; pp. 201-202.
122

Santos Barbosa, por sua vez, produziu também inúmeras peças sociais. Famintos,
Pecados de Maio e A Jaula são algumas das que mais aparecem nos anúncios de festas
operárias do Rio de Janeiro. Além de dramaturgo, Santos Barbosa escrevia na imprensa
operária carioca e era um ativo militante da União dos Operários em Construção
Civil. 166
Voltemos à farsa Pacatos. A crer em comentários publicados em A Voz do
Trabalhador 167, sua estréia obteve um grande sucesso. Encenada pela primeira vez pelo
Grupo Dramatico de Cultura Social, do qual faziam parte os dois autores da peça, esta
“provocou muitas gargalhadas, especialmente entre a petizada”. Aqui, novamente, o
autor dos comentários nada diz sobre o conteúdo da farsa. Para ele, mais importante
talvez fosse ressaltar seu caráter cômico. No entanto, diante dos currículos de Zenon de
Almeida e Santos Barbosa, não temos razões para suspeitar do caráter “social” da farsa
por eles composta. Mas, é importante frisar, tais conclusões são nossas. Nada nas
notícias sobre as encenações dessa farsa nos aponta para seu conteúdo específico. Mais
uma vez, a menção ao aspecto cômico da peça e o silêncio a respeito de seu possível
aspecto “social”, parece que nos aponta para uma hipótese no mínimo plausível: o riso
aqui (como ademais em outros discursos da imprensa operária) aparece conjugado ao
caráter “social”, mas não submetido a ele.
Neste momento, o leitor atento pode questionar: “Ora, se o autor da notícia não
mencionou o caráter `social´ da farsa é porque não havia necessidade disso, uma vez
que, neste aspecto, a obra talvez estivesse de acordo com o seu juízo”. Mesmo
acreditando que o aspecto “social” da peça estivesse implícito nos comentários do autor
da notícia, o silêncio a seu respeito – assim como a menção ao caráter hilariante - sugere
uma complexa relação entre riso e “doutrina”. Relação na qual não se verifica nenhuma
espécie de subordinação plena de um termo a outro. Caso contrário, a ênfase recairia
sobre o termo determinante, não sobre o subordinado (mesmo que este fosse o motivo
desencadeador dos comentários).
Lançaremos mão aqui de mais dois exemplos com o intuito de dissipar qualquer
dúvida a respeito do que pretendemos afirmar.
O mesmo Grupo Dramatico de Cultura Social, numa festa organizada em
benefício do periódico A Voz do Trabalhador, levou ao palco, em julho de 1914, a

166
Ver Rodrigues, Edgar. Os Companheiros – vol. 3. Florianópolis: Insular, 1997; pp. 89-90.
167
Ver A Voz do Trabalhador de 1º. de janeiro de 1914.
123

comédia Amores em Cristo, de Zenon de Almeida. Nove dias depois, o mesmo


168
periódico comentou o espetáculo . Segundo o autor anônimo da notícia, a comédia
“conquistou as honras da noite, trazendo a platéia em contínua hilaridade”. Nosso
objetivo não é saber o que exatamente ocorreu naquele evento (ou em qualquer outro).
O que pretendemos aqui é entender como a imprensa operária tratava o teatro que
estudamos. De novo, o que verificamos nessa notícia é uma valorização do aspecto
hilariante da peça. Nenhuma informação sobre seu conteúdo específico.
Todos os exemplos até agora fornecidos provêm do Rio de Janeiro. E em São
Paulo, ninguém dava risada? É claro que sim. Aqui, como no Rio, quando sobrava
algum tempinho, até mesmo os trabalhadores conseguiam aliviar a fadiga do dia-a-dia
por meio do riso desbragado. No dia 20 de setembro de 1902, O Amigo do Povo
publicou uma notícia sobre um evento em que o Nucleo Filodrammatico Libertario
encenara Il Primo Maggio, de Pietro Gori, e “uma engraçadíssima farsa” (como diz um
anúncio publicado anteriormente). Segundo o autor da notícia, essa teria sido “uma das
melhores festas libertárias que se tem visto aqui”. Um dos atores que participaram da
farsa foi o já citado Giulio Sorelli. A crer nos comentários elogiosos do autor da notícia,
a farsa fez “rir às bandeiras despregadas”! Aqui também, os propósitos de emancipação
social parecem aliar-se claramente ao prazer do entretenimento. Riso e “doutrina”
caminham juntos, em uma intricada simbiose em que fica difícil (se não impossível)
dizer onde começa um e termina a outra.

2.4.1. A valorização do popular


A multifária polêmica que os articulistas da imprensa operária desenvolveram
em torno do gosto do público estabelece relações intrínsecas com uma outra discussão
não menos recorrente: aquela que se refere à questão do possível pendor artístico do
homem comum. Questão complexa, uma vez que, para elucidá-la, os articulistas são
obrigados a analisar de perto as inúmeras contradições sociais em que o povo se insere.
Para lidar com essa questão, os autores de alguns artigos da imprensa operária ora
valorizam uma suposta “vocação” artística do povo, ora fulminam a ampla aceitação
popular de certas produções artísticas de apelo “vulgar”. Ou seja, na análise das
complexas relações do povo com a arte, a discussão invariavelmente se desdobra em
um enfoque social centrado na noção de desigualdade. Esta, nos juízos emitidos por

168
Ver A Voz do Trabalhador de 20 de julho de 1914.
124

alguns dos articulistas com os quais lidamos, é quase sempre a razão de seus
desencantos; desencantos que, no entanto, nunca são irrestritos. A sensação que nos fica
– mesmo diante do artigo mais severo – é a de que, das camadas mais profundas do
discurso, sempre emerge uma exaltação do pendor artístico do povo (e a correspondente
valorização da cultura popular).
Vejamos um exemplo emblemático. Em agosto de 1909, o periódico carioca
Liberdade publicou um artigo escrito seis anos antes por Manuel Ugarte. Intitulado A
Arte e o Povo, o artigo começa com uma crítica à “influência embrutecedora que a má
literatura exerce sobre o povo”. No caso, o autor se refere nomeadamente aos “dramas e
romances populares”. Estes, apelando para o gozo fácil, explorariam sentimentos
egoístas e baixos que a “ignorância cultiva na multidão”. Para os produtores dessas
obras, “tudo se reduz a alcançar êxito”.
Indignado, Manuel Ugarte pergunta então: por que não substituir essa literatura
por outra “mais benéfica e redentora”, que impulsione os homens “para o
aperfeiçoamento”? Segundo o autor, era o que estariam tentando Mirbeau, Quillar,
Bouchor, Tailhade e outros. Estes autores buscariam então trocar os “bonecos
criminosos e fanáticos do teatro de subúrbio, pelos homens sãos, fortes e bem
intencionados que admiramos no `Teatro Cívico´”.
Na seqüência, Ugarte inicia uma reflexão comum aos demais artigos com os
quais lidamos: aquela sobre as injustiças que mantêm o povo afastado dos gozos da arte
e da ciência. Segundo o autor, durante séculos, o “egoismo [sic] duma minoria” negou
ao povo os “gozos intelectuais”. No entanto, com o tempo, o progresso teria alargado e
divulgado os “conhecimentos adquiridos”. Um exemplo disso seriam as bibliotecas,
hoje acessíveis ao público. Temos aqui, mais uma vez, uma valorização dos avanços
tecnológicos que ensejam a disseminação da ciência e das artes. Não obstante tais
avanços, Ugarte ressalta que grande parte das “satisfações do espírito continuam sendo
inacessíveis às classes laboriosas”. Dentre todas as artes distantes do povo, o teatro seria
a mais inacessível. Isso porque as grandes companhias, “que representam bons dramas”,
gastam muito na montagem de seus espetáculos e, por isso, cobram preços altos pelos
ingressos, afastando assim o povo. Este se vê então obrigado a procurar diversão nos
“teatrinhos de arrabalde, onde perverte seu espírito” com cenas de apelo pornográfico e
nas quais a injustiça sempre triunfa.
125

De fato, a observação de Manuel Ugarte encontra respaldo na situação concreta


do momento. O periódico carioca A Vanguarda, em sua edição de 10 de junho de 1911,
fez um pequeno comentário sobre a temporada teatral daquele mesmo ano no Rio de
Janeiro. Comentando os espetáculos comerciais encenados então nos grandes teatros
daquela cidade, o autor anônimo não deixa de criticar os altos preços dos ingressos.
Hoje, é claro, não temos do que nos queixar a esse respeito. Afinal, os ingressos para os
grandes espetáculos são atualmente bem acessíveis às camadas populares, não é
mesmo? No entanto, naquela época, as entradas para as récitas das companhias
profissionais pareciam alcançar valores exorbitantes! O autor anônimo de A Vanguarda
afirma que apenas “os abastados podem freqüentar as grandes representações”. A
“classe proletária”, por sua vez, “mal ganha para as suas primeiras necessidades”.
Segundo dados oferecidos pelo autor da notícia, o “preço da entrada em um desses
espetáculos representa uma semana de trabalho”. Não temos razão alguma para duvidar
dos cálculos aproximados do autor. Lançando mão de um argumento bem sensato, ele
afirma, logo em seguida, que os “senhores empresários não compreenderam ainda que
mais vale uma casa cheia a 1$ e 1$500 do que meia dúzia de cadeiras a 8$ e 12$000”.
Ora, é importante salientar que, se os grandes empresários obstinavam-se em cobrar
preços exorbitantes pelos ingressos, os organizadores das festas de propaganda sobre as
quais nos debruçamos não. Isso porque, acompanhando os anúncios e balancetes,
descobrimos que, ao longo de todo o período abordado em nossa pesquisa, o preço para
a entrada em um daqueles eventos da classe operária alcançava no máximo os 2$000.
Encontramos um único registro que aponta para a venda de ingressos com o valor
superior a este169. Na maioria das vezes, no entanto, o preço cobrado era de 1$000. De
fato, uma pechincha!
Não percamos o fio da meada. Voltemos ao texto de Manuel Ugarte. Vimos que,
até o ponto em que paramos, o autor fez uma abordagem um tanto crítica das
inclinações do gosto popular. Afinal, se o povo vai aos “teatrinhos de arrabalde” à
procura de obras “vulgares” que “pervertem” o espírito é não só porque as grandes
peças são caras, como também porque os dramas “populares” exercem algum fascínio
(caso contrário, aquele mesmo “povo” procuraria outra coisa, não o “teatrinho de

169
Trata-se de uma festa em que o Grupo Dramatico Anticlerical encenaria, no dia 30 de abril de 1913, as
peças Primeiro de Maio e Amanhã. O preço cobrado pelos ingressos era de 2$500. Ver, em A Voz do
Trabalhador, anúncios publicados nos dias 1º e 15 de abril de 1913.
126

arrabalde”) 170. No entanto, um pouco mais adiante, Manuel Ugarte parece desviar
sensivelmente o rumo de seu julgamento, chegando inclusive a vislumbrar no povo uma
possibilidade real de “conceber a beleza”. Até o homem sem instrução seria capaz disso.
Para Ugarte, ninguém pode dizer que não “se pode ser um poeta considerável, sem saber
ler e escrever”. Aliás, a grande perversidade da sociedade atual residiria justamente aí:
sendo a arte manifestação do espírito humano, é “inaudito [...] que esteja a imensa
maioria afastada dela”.
Ugarte termina dizendo que, conforme a “verdade” abre caminho nos espíritos,
esses problemas tornam-se “interrogações imperiosas”. Em cada tentativa de resolvê-los
haveria uma coroa de louros.
Numa análise superficial do artigo de Manuel Ugarte, o historiador inclinado em
ressaltar os propósitos “doutrinários” dos militantes anarquistas ficaria tentado a
perceber em suas palavras uma espécie de divórcio entre ele (articulista) e o gosto
popular. No entanto, buscando nos desvãos do discurso seu sentido mais profundo,
vemos que, na verdade, aquela suposta disjunção é mais aparente do que real.Ou,
melhor dizendo, a condenação ao gosto popular reside não no povo, mas alhures.
Vimos já algo sobre a crítica que os expoentes do pensamento anarquista sempre
fizeram ao “artista genial” e às grandes “obras-primas”. Em contraposição a essa arte
pretensiosamente sublime, são ainda os mesmos pensadores libertários que, em seus
escritos, voltam suas atenções para o povo, atribuindo a ele uma sensibilidade
“verdadeira”, “sincera”, “genuína”. Influenciados pelas idéias românticas171, alguns
teóricos anarquistas valorizam aquilo que seria a suposta “vocação artística” do homem
comum. Dentre tais pensadores, um dos que mais enfatizaram o “pendor artístico” do
povo foi Tolstoi. Não obstante seu arraigado cristianismo, o anarquismo peculiar
professado pelo escritor russo influenciou bastante o pensamento libertário
internacional, incluindo o que se desenvolveu em terras brasileiras. Segundo André

170
Um importante campo de pesquisa poderia ser aberto em razão desses comentários de Manuel Ugarte.
Eles suscitam indagações sobre as complexas relações que o teatro anarquista podia ou não estabelecer
com um outro tipo de teatro amador da época - também popular, mas sem comprometimento ideológico
mais definido. A respeito desse tipo de teatro amador - feito não apenas nos “arrabaldes”, como também
no centro da cidade do Rio de Janeiro no período estudado em nossa pesquisa -, ver em
http://www.historia.uff.br/stricto/td/1542.pdf, Franca, Luciana Penna. Teatro amador: a cena carioca
muito além dos arrabaldes. Dissertação de Mestrado apresentada na Universidade Federal Fluminense
(UFF-Niterói) em 2011.
171
Sobre a influência das teorias românticas na concepção anarquista, ver Martin-Barbero, Jesús. Dos
Meios às Mediações – Comunicação, Cultura e Hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009; pp. 42-
43.
127

Reszler, a “distinção entre a arte `verdadeira´ e a arte `falsa´ (a arte do povo e a arte da
elite) é o fundamento da estética tolstoiana”. Em outras palavras, enquanto a arte
“verdadeira” pertenceria fundamentalmente ao artista “inocente”, a arte “falsa” nasceria
justamente “da divisão da sociedade em classes opostas”172.
Temos aqui a chave para compreender o raciocínio de alguns articulistas da
imprensa operária – incluindo o próprio Manuel Ugarte. Este, como vimos, inicia seu
artigo criticando a “influência embrutecedora” que os “dramas e romances populares”
supostamente exercem sobre o povo [as palavras entre aspas são de Ugarte]. No entanto,
mais adiante, é o próprio articulista quem afirma ser o homem do povo (mesmo sem
instrução) capaz de “conceber a beleza”. Para ele, inclusive sem saber ler e escrever, é
possível que o homem comum desenvolva aptidão para a poesia. Sendo assim, se o
homem do povo é capaz de conceber o belo, por que ele busca “perverter” o espírito nos
“teatrinhos de arrabalde”? A resposta a essa intrincada questão é dada pelo próprio
Ugarte. Mostrando afinidade com o pensamento de Tolstoi, o articulista atribui essa
suposta contradição não ao povo propriamente dito, mas sim à atroz desigualdade
social. Esta seria a verdadeira responsável pela situação de “embrutecimento” em que se
encontra o povo, pois é justamente ela que nega à imensa maioria o “direito inalienável
173
do homem à criação” . Ou seja, são as clivagens sociais que engendram a
“ignorância” da multidão, impedindo a manifestação natural da sensibilidade artística
do homem comum e levando-o a buscar o gozo fácil nos romances e dramas populares.
Estes, é importante dizer, apesar de serem expressamente chamados de “populares”, não
emanariam “verdadeiramente” do povo. Seriam, pelo contrário, simples mercadorias
fabricadas por produtores que desejariam apenas “alcançar o êxito”. Ugarte parece não
reconhecer nesses dramas e romances nenhum traço genuinamente “popular” – não
obstante o nome que ele mesmo os dá.
Portanto, não podemos dizer que, no discurso de Ugarte, a condenação a essa
produção “popular” tenha como alvo o próprio povo. O que o articulista parece criticar
é a segmentação social das artes; segmentação que destinaria às elites os “gozos
intelectuais” (ou a apreciação de “bons dramas”) e relegaria à multidão uma arte de
qualidade “inferior”. É importante ressaltar que, em seu artigo, Ugarte critica não o
gosto popular propriamente dito, mas sim as desigualdade sociais e aquilo que, em

172
Ver Reszler, André. Op. Cit.; pp. 24-25.
173
As palavras entre aspas são de Reszler, André. Op. Cit.; p.7.
128

termos artísticos, elas engendrariam: a produção de uma arte “vulgar” e “perversora”


voltada exclusivamente às camadas populares.
Embora com um sentido bem diferente, um outro exemplo de como a influência
das desigualdades sociais na produção cultural é vista na imprensa operária
encontramos em A Plebe, edição de 9 de setembro de 1919. Em artigo intitulado Pelo
mundo das artes, seu autor anônimo afirma que, na “sociedade atual”, sobretudo nos
“países plutocráticos das Américas”, a arte, “legado das gerações extintas”, tornou-se
produto quase que exclusivo das “classes privilegiadas”. Para o autor, desde os tempos
primitivos o ser humano aprendeu a apreciar o belo, transformando a arte em um doce
confidente para seus anseios, esperanças, desejos, revoltas, amores e ódios.
Sintomaticamente, o autor anônimo cita Tolstoi, dizendo que a arte seria o “Sofrimento
que produz beleza”. No entanto, sempre segundo o autor, um estudante artista
contemporâneo seu, parodiando o escritor russo, teria dito, “com justeza”, que entre nós
(brasileiros) a “Arte” seria “a beleza que produz sofrimento”.
O autor anônimo afirma ainda que, por ser uma fiel companheira do ser humano,
a arte não pôde “esquivar-se às influências políticas e religiosas”. Para ele, em “sua
ascensão social, do pária ao banqueiro”, a arte teria sofrido um processo de
“degradação”. Devemos salientar que essa analogia se desenvolve numa lógica em que
os termos encontram-se em uma relação inversamente proporcional. Ou seja, quanto
mais ascende socialmente, mais “degradada” fica a arte. Além disso, paralela à trajetória
ascensional da arte na sociedade (e sua conseqüente “degradação”), o autor projeta um
outro traçado direcional: aquele que se verifica na sucessão linear do tempo, das épocas
“primitivas” aos dias de hoje. Na construção de ambas as trajetórias, provavelmente a
matriz ideológica parece provir também de Proudhon. Fora ele quem associara a
situação atual da sociedade (com tudo o que ela apresenta de desigualdades e injustiças)
à “degradação” incurável das artes. 174 Foi o anarquista francês quem, de certa forma,
reconheceu (talvez pela primeira vez no discurso anarquista) o valor da arte do passado.
Como vimos acima, em sua “síntese incessantemente renovada do novo e do antigo”,
Proudhon parece buscar a reconciliação entre o “conhecido” (a arte do passado) e o

174
Ver a respeito, Reszler, André. Op. Cit.; p. 17.
129

impulso vital rumo ao desconhecido (a revolução e, por extensão, a emancipação


humana).175
Outra coisa que não podemos deixar de sublinhar é que, no trecho ora analisado,
o autor anônimo manifesta uma explícita valorização daquilo que seria a “vocação”
artística popular. Ao contrário do que ocorre com o discurso de Ugarte, aqui, no texto
do articulista de A Plebe, parece que, de fato, não há espaço para equívocos:
terminantemente, o “degradado” não é a arte popular, mas sim aquela que provém da
elite. Se no texto de Ugarte o teatro profissional, freqüentado pelas elites, chega mesmo
a ser valorizado, aqui parece que não há espaço para tal valorização.
Esmiuçando seu argumento, na seqüência o autor anônimo afirma que, em
“nosso meio”, haveria dois tipos de artistas: os sinceros, que se entregam à arte e
“passam pela vida inglórios”, e os “charlatães”, que se utilizam da arte como um gatuno
se utiliza de uma escada para se “encostar ao muro da popularidade” e forçar “com pés-
de-cabra a despensa das sinecuras”. Os últimos são justamente os que, nas gazetas,
fazem “os próprios panegíricos”. Ou seja, elogiam nos jornais a arte que expressa seus
próprios sentimentos – falam de si mesmos, gabando-se do que produzem. Aqui, com
admirável perspicácia, o autor anônimo aponta para o dinâmico mecanismo que produz
os padrões hegemônicos no campo das artes. Por detrás do patente sarcasmo, o
articulista desenvolve um raciocínio sagaz. Para ele, a imprensa burguesa, comentando a
produção das próprias elites, confere a essa mesma produção sua chancela,
referendando-a com elogios e criando assim um paradigma para toda a arte.
Inicia-se então uma análise social interessante. Para o autor, a exclusão das
camadas populares se realiza por meio de uma engrenagem perversa; esta, por sua vez,
reproduz as desigualdades e perpetua o status quo. Segundo ele, as escolas excluem o
trabalhador, assim como os concertos e espetáculos, realizados em “salões luxuosos”.
Tais salões, apesar de “construídos pelos trabalhadores”, teriam seus acessos restritos a
uma pequena minoria - seja por causa dos altos preços dos ingressos, seja por causa das
roupas exigidas para freqüentá-los.

175
Ver, a respeito, Reszler, André. Op. Cit.; pp.22-23. No entanto, além de Proudhon, outros pensadores
que influenciaram o anarquismo deram uma ênfase maior à exaltação da arte do passado. Tolstoi, é claro,
é um desses teóricos. Mas devemos ressaltar também os pensamento de Wagner e, sobretudo, Bakunin.
Este talvez tenha levado a exaltação da arte primitiva às suas últimas conseqüências, atribuindo a seu
suposto caráter “instintivo” um curioso potencial revolucionário. Ver, a respeito, Reszler, André. Op. Cit.;
pp.27-28.
130

Transcreveremos o último parágrafo do artigo que estamos analisando. Ele


parece condensar o sentido que a produção de padrões estéticos adquire no discurso do
autor anônimo.

Por isso, quando os jornais burgueses noticiam que tal artista foi muito aplaudido ou tal
obra recebeu uma verdadeira consagração, os homens conscientes não negam o seu valor, mas
dizem lá consigo e com muita razão: - Pode ser que seja verdade... Mas nós não acreditamos
nesses triunfos obtidos em presença do elegante tout Paris ou do rastaqüera tout São Paulo,
sempre as mesmas pessoas que se vestem pelo mesmo figurino afinam pelo mesmo diapasão
intelectual e na sua generalidade aplaudem os trabalhos sublinhados a lápis vermelho...

De forma eloqüente, o parágrafo acima revela um pouco do que, em nosso ver,


as relações de hegemonia constituem no campo das produções artísticas. Primeiro,
porque, por meio dele, o autor desvela o processo de construção dos paradigmas
estéticos no âmbito da grande imprensa. Sempre muito crítico, ele aponta para os
complexos mecanismos que engendram a consagração de determinadas obras em
detrimento de outras. Fazendo a denúncia daquilo que seria a constituição das
convenções estéticas, o autor mata dois coelhos com uma só cajadada. Ele não apenas
desnaturaliza aquelas convenções, encarando-as como socialmente construídas, como
nega às “panelinhas” que as forjaram a autoridade exclusiva de julgar as produções
artísticas. Conseqüentemente, o articulista relativiza tudo aquilo que, na concepção
hegemônica, passa a ser considerado como de “bom gosto”, “refinado” ou “belo”.
Em segundo lugar, no que tange às relações de hegemonia, o parágrafo citado
aponta para algo importante na constituição de um discurso alternativo (ou, se preferir,
contra-hegemônico). Ao fazer a crítica às convenções estéticas, o autor anônimo não
chega a negar completamente o possível valor das obras consagradas. Para ele, os
“homens conscientes” não refutam precipitadamente a qualidade de uma produção
referendada pelos cânones hegemônicos. No entanto, por serem “conscientes”, esses
mesmos homens não poderiam deixar de investigar o sentido social que aquela
consagração possui. Se, por um lado, a investigação crítica do processo de construção
das convenções desnaturaliza os padrões hegemônicos, por outro, não nega cabalmente
o valor de qualquer produção consagrada. Sendo assim, o autor anônimo não fecha as
portas para o fluxo de elementos culturais provenientes das elites. Extensivamente, o
processo de constituição de qualquer modelo alternativo ao hegemônico também se faz
131

assim: muitas rupturas, mas não poucas apropriações. Afinal, nenhuma produção
artística ocorre de forma isolada. Pelo contrário, mesmo que de forma reticente e
contraditória, os intercâmbios parecem ser inevitáveis. Concluindo, mais uma vez: a
“fortaleza cultural” de nossa “cidadela obreira” é, aqui também, menos inexpugnável do
que se suspeitara alhures.
Neste capítulo, mais importante do que entender os mecanismos de produção do
hegemônico é destacar, na concepção estética veiculada pela imprensa operária, a
efetiva valorização da suposta “vocação” artística do povo. Para tanto, precisamos
entender melhor o que é, para os articulistas daquela imprensa, uma arte que
genuinamente provém do povo. Em parte, parece que já delineamos o significado que
adquire o popular nos discursos daqueles articulistas. No entanto, para finalizar,
analisaremos de perto um outro artigo que, mais do que os anteriores, parece condensar
o sentido dessa valorização do popular que tanto nos persegue.
Em fevereiro de 1922, lembramo-nos bem, a revista Renovação publicou um
artigo assinado por Romualdo Figueiredo, ator de teatro de origem portuguesa176 que
possuía sua própria seção (No meu cantinho) naquela revista. Sob o sugestivo título A
Arte e o Povo, Romualdo inicia seu artigo replicando alguns amigos seus por
acreditarem que o povo não é capaz de compreender uma obra de arte. Questionando tal
proposição, o ator de origem lusitana afirma justamente o contrário. Para ele, “o espírito
popular é um foco maravilhoso de arte”, sempre disposto a “receber e compreender uma
obra artística”, desde que tal obra “seja intuitiva, humana, vivida”.
Seguindo o mesmo raciocínio, Romualdo continua seu artigo afirmando que as
“grandes e eternas obras de Arte, daquela Arte que o povo pode sentir e criar sem larga
preparação”, seriam de autores anônimos e, portanto, pertencentes ao chamado
“espírito popular”. Mas quais seriam essas “grandes e eternas obras” que o povo sente e

176
Segundo Edgar Rodrigues, Romualdo Figueiredo nasceu em Portugal e estudou na Universidade de
Coimbra. Logo depois, foi para o Rio de Janeiro e lá se estabeleceu. Desde cedo se tornou ator
profissional. Chegou a ter uma companhia de teatro com o seu nome. Encontramos indícios dela em A
Vanguarda, edições de 10 de junho e 22 de julho de 1911. Sabemos que tal companhia excursionou pelo
Brasil naquele mesmo ano e em agosto apresentou-se no Rio de Janeiro com a peça O Papá Lebonnard.
Mais tarde, em 1920, na mesma cidade, Romualdo participou do elenco da Companhia Dramática
Nacional, cujo diretor cênico era Gomes Cardim. Em meados daquele ano, no teatro Carlos Gomes, junto
com Itália Fausta (atriz que atuara no teatro amador paulistano e agora compunha o elenco da Companhia
Nacional), Romualdo atuou na estréia da peça Pedra que Rola, de José Oiticica. Ver, a respeito, A Voz do
Povo, edição de 5 de julho de 1920. De acordo com Edgar Rodrigues, apesar de entregar-se de corpo e
alma ao teatro, Romualdo nunca conseguiu prosperar. Foi por muitos anos ensaiador dos grupos
anarquistas. Dedicava boa parte do tempo ensinando os trabalhadores a representar. Ver Rodrigues,
Edgar. Os Companheiros – Vol. 5. Florianópolis: Insular, 1998; p. 130.
132

cria sem muito apresto? O autor vai logo citando: “a harmonia e o sentimento do som,
(a música) e a harmonia e o sentimento da fantasia falada, (a Lenda)” 177. Portanto,
descortina-se em seu discurso uma estreita vinculação entre o popular e o artístico. Mas
qual seria o sentido dessa relação? Quais os desdobramentos dessa associação no
argumento que Romualdo desenvolve ?
Acompanhemos o raciocínio do autor/ator. Para ele, o povo é artista por causa de
“seus amores”, de “suas paixões veementes” e da “simplicidade de sua alma”. É esse
povo que produz os artistas individuais. Segundo Romualdo Figueiredo, o “gosto
artístico do `Artista-Povo´, é a pedra de toque da criação artística do `Artista-
Indivíduo´”. Portanto, para ele, não haveria “indivíduos-artistas” sem um “povo-
artista”. Temos aqui uma inextricável relação entre povo (coletivo) e indivíduo. Este,
para Romualdo, não deve se considerar separado daquele. Não pode nem sequer atribuir
a si os méritos para a produção de sua obra, uma vez que esta nada mais seria do que
tributária daquele espírito popular de onde toda arte genuína brotaria.
Romualdo lança então uma interessante conclusão. Segundo ele, se a arte emana
do povo, o verdadeiro artista seria aquele que possui “a força estética necessária para
dominar o povo por meio da Beleza”. Emerge aqui a identificação de um poder da arte
sobre o povo. Tal constatação conduz o autor a afirmar a necessidade de
instrumentalizar o potencial que a arte carrega consigo.Ou seja, para Romualdo, se a
arte exerce uma influência sobre o povo, ela “deve ter uma finalidade educativa”.
Justamente por isso, todo artista deve pensar “no fim social” de sua produção. O
princípio em que se assenta esse raciocínio é um velho conhecido nosso: todas as obras
que “recreiem e deleitem os sentidos”, desde que busquem sua “finalidade social e
moral”, são consideradas como “Arte” (sempre com A “maiusculoso”!!!) .
Para finalizar, Romualdo sugere uma contraposição entre as inclinações
artísticas do povo e aquilo que seria a sofisticação pedante cultivada provavelmente
pelos estetas. Vejamos de perto o que o autor afirma no último parágrafo de seu artigo.

177
Como os outros articulistas, Romualdo também parece se inspirar naquilo que os pensadores
anarquistas defendiam. É curiosa, por exemplo, a exaltação das lendas populares no pensamento dos
teóricos do anarquismo. Para Tolstoi, os contos e lendas populares constituem, junto com as parábolas
dos evangelhos e as canções populares, a “verdadeira” arte, pois satisfazem “os critérios da sinceridade e
da simplicidade”. A respeito, ver Reszler, André. Op. Cit.; p. 25. Outro teórico anarquista que fez a
exaltação de lendas e mitos populares foi Bakunin. Ver, a respeito, na mesma obra de André Reszler,
discussão sobre a concepção de arte do anarquista russo (capítulo 3).
133

E ao povo, agrada mais as sínteses rudes e humanas, que dão lições à presente
mentalidade raquítica, que as refinadas e enfermiças decadências de cérebros impotentes e
luxuriosos.

Podemos notar que, ao longo de sua argumentação, Romualdo Figueiredo


pontua diversos elementos com os quais lidamos neste capítulo. No entanto, em seu
texto, a ênfase na valorização do povo parece-nos bem mais evidente. Mais do que nos
outros artigos, aqui o sentido de tal valorização distingue-se de maneira bem clara.
Nosso intuito agora é duplo: por meio da análise do artigo de Romualdo, tentaremos
retomar os aspectos mais recorrentes da concepção de arte na imprensa operária e, ao
mesmo tempo, analisar o sentido da valorização do popular com o qual muitos
articulistas daquela imprensa (e, por extensão, os militantes em geral) lidavam.
Logo no início, contrariando alguns de seus amigos, Romualdo afirma que o
povo está sempre propenso a compreender e apreciar as obras artísticas. Todas as obras
artísticas? Não, apenas aquelas que sejam “intuitivas”, “humanas” e “vividas”. Para o
autor, as grandes obras de arte pertencem sempre ao “espírito popular” e, por isso, são
muitas vezes atribuídas a autores anônimos - artistas que não se preocuparam com o
reconhecimento alheio e muito menos com a profissionalização. Romualdo destaca a
música e a lenda como gêneros artísticos eminentemente populares. Talvez porque tais
gêneros consigam, na percepção de Romualdo, transmitir melhor os “amores”, as
“paixões veementes” e a “simplicidade” da alma popular.
Assim como os demais articulistas com os quais lidamos, Romualdo também
nos remete – embora de maneira difusa – às concepções estéticas desenvolvidas por
diversos expoentes do pensamento anarquista. Não seria descabido associar as idéias do
articulista àquelas que Proudhon desenvolvera por meio de seu conceito de “arte de
situação”. Para o anarquista francês, tal arte é aquela que nasce não da inspiração
sublime de um artista “genial”, mas sim do espírito vivo da coletividade. Fruto de uma
experiência vivida, a “arte de situação” brota sempre da sensibilidade coletiva. Como
exemplo, Proudhon cita sua própria experiência na época em que esteve recluso no
presídio de Santa Pelágia. Todas as noites, antes das celas serem trancadas, os detentos
daquele presídio reuniam-se no pátio e entoavam um hino à liberdade atribuído a
Armand Marrast. “A estrofe era dita por uma só voz e repetida a seguir pelos 500
desgraçados encerrados na outra ala da prisão. [...] Era música real, realista, aplicada,
134

arte de situação como os cânticos da igreja, as fanfarras na parada, e não há música que
mais me agrade”178. Numa palavra, a “arte de situação” é aquela que, na concepção de
Proudhon, brota necessariamente do “espírito popular” e da experiência vivida do
homem comum.
Em parte é isso o que parece defender Romualdo Figueiredo. Para ele, toda obra
artística “verdadeira” provém da coletividade. Na íntima relação que ele estabelece
entre o “Artista-Povo” e o “Artista-Indivíduo”, Romualdo faz questão de ressaltar a
vinculação direta do último frente ao impulso criador que emana do primeiro. Reside aí
a chave para a compreensão da crítica à profissionalização no campo das artes. Como
sabemos (e alguns artigos já analisados deixam entrever), o pensamento anarquista está
quase sempre propenso a rechaçar o artista profissional; este, por meio do
desenvolvimento técnico de sua especialidade, produziria uma arte distante dos
interesses e sentimentos genuinamente populares. Contrariamente, o mesmo
pensamento anarquista atribui ao trabalhador, ao homem simples do povo, uma
profunda inclinação para a arte. Mais uma vez, quem nos aponta para essa valorização
da sensibilidade do homem comum é Tolstoi. Vejamos o que ele nos diz em sua obra O
que é a Arte?

A arte do futuro não será obra de artistas profissionais com uma atividade remunerada e
nenhuma outra. A arte do futuro será obra de todos os homens, vindos do povo, que se
consagrarão a essa atividade quando disso sentirem necessidade. 179

Em sintonia com tal pensamento, Romualdo não apenas vincula o “Artista-


Indivíduo” ao “Artista-Coletivo”, como também opõe de forma clara as “sínteses rudes
e humanas” às “refinadas e enfermiças decadências de cérebros impotentes e
luxuriosos”. Além de retomar aquela noção de “decadência” que já analisamos acima,
essa oposição sugere-nos uma outra não menos importante: aquela na qual a fruição
estética de uma arte refinada defronta-se com a experiência livre e espontânea da arte do
povo. Enquanto a primeira, carente de vivacidade, emanaria de “cérebros impotentes e
luxuriosos”, a segunda brotaria das “paixões” e dos sentimentos sinceros do “espírito
popular”. De forma clara, o “popular” aqui se reveste de uma vitalidade essencial que
só poderia provir do homem comum, daquele que sente no dia-a-dia o fardo das

178
Ver Proudhon, Pierre-Joseph apud Reszler, André. Op. Cit.; p. 23.
179
Ver Tolstoi, Leon apud Reszler, André. Op. Cit.; p. 26.
135

injunções cotidianas e recorre à arte como forma de expressar os sentimentos mais


puros e sinceros. A arte do povo, portanto, nada tem a ver, na concepção de Romualdo
(como, ademais, na dos outros articulistas com os quais lidamos) com a exibição
“artificial” da sofisticação artística destinada à fruição de estetas. Apesar de “rude” e
“intuitiva”, tal arte também não tem nada a ver com a suposta “vulgarização banal”
contra a qual alguns articulistas da imprensa operária vociferavam. Isso porque, na
concepção de tais articulistas, aquilo que se considera como sendo uma obra “vulgar”
não brota do sentimento “sincero” e “puro” do homem comum. Pelo contrário, assim
como a obra “sofisticada”, a “vulgar” seria fruto da “decadência” que nossa sociedade
desigual engendrou. Como simples mercadoria voltada para o consumo das camadas
populares, ela apelaria não para os sentimentos “sinceros” do povo, mas sim para o
“gozo fácil” ou, como prefere Manuel Ugarte, “embrutecedor”. Assim como a arte
“sofisticada”, ela também não passa de um sintoma da “decadência” incurável em que
se encontra a sociedade atual.
Resumindo, a tão propalada “arte do povo, pelo povo e para o povo” não deve
ser nem “sublime” nem “vulgar”. Ela é, necessariamente, uma arte que expressa
sentimentos “sinceros” porque parte da experiência vivida. Ela pulsa no coração do
homem comum. Ela é uma necessidade vital; um alimento cotidiano sem o qual o povo
dificilmente conseguiria sobreviver. Essa arte, fruto do ato criador que emana da
coletividade, é parte indissociável da vida do homem comum, um elemento constituinte
e elementar de sua existência. Daí sua “pureza” e “simplicidade” necessárias
Ainda de acordo com o argumento de Romualdo Figueiredo, uma arte assim tão
“sincera” e “verdadeira” só pode destinar-se a alguma “finalidade maior”. Em sintonia
com os demais articulistas com os quais lidamos até aqui, Romualdo também defende a
necessidade de atribuir à arte uma “função social” sem a qual ela seria destituída de
valor. Não precisamos explicar novamente o que significa essa “finalidade social” no
discurso de nossos articulistas – já dedicamos a ela uma parte grande deste capítulo 180.
A única coisa que gostaríamos aqui de ressaltar é que tal “finalidade” não prescinde e
muito menos se opõe ao deleite e ao lúdico. Pelo contrário, como Romualdo deixa claro,
prazer e “função social” andam juntos, são elementos constituintes e inextrincavelmente
associados em toda e qualquer obra de arte “verdadeira”. Aliás, arriscamo-nos a dizer
que, em seu discurso, Romualdo parece até inverter aquele axioma segundo o qual os

180
Ver, na página 89, alguns aspectos da definição de “finalidade social” adotada nesta pesquisa.
136

elementos populares, quando incorporados pela arte social, devem necessariamente


submeter-se aos propósitos da “finalidade social” (e/ou da propaganda). Afinal, se toda
produção artística “verdadeira” emana do “Artista-Povo” é porque este, de alguma
forma, parece anteceder aquela finalidade na abordagem de nosso autor. E se a
afinidade do povo com a arte confere a esta um poder sobre aquele, possibilitando sua
utilização como instrumento de educação, cabe então perguntar: na complexa relação
entre povo e propaganda (e/ou “doutrina”), quem, na concepção de Romualdo, parece
ter a primazia? No discurso do autor, quem se submeteria a quem: os elementos da
cultura popular aos propósitos da propaganda ou estes às inclinações culturais do povo?
Pois é, parece que os articulistas da imprensa operária desenvolvem uma lógica
que escapa às esquematizações com as quais nos acostumamos a lidar. Por isso,
procuramos sempre as águas submersas que se escondem sob a superfície das correntes.
Os discursos sobre arte e cultura que encontramos na imprensa operária carregam
significados mais complexos do que aqueles com os quais já nos afeiçoamos. Fiquemos
atentos a tais significados.

2.5. Concluindo
Ao longo deste capítulo buscamos entender melhor a concepção de arte
veiculada no interior da imprensa operária. Em nosso percurso, alguns elementos dessa
concepção, por serem mais explícitos, foram mais facilmente identificados; outros, no
entanto, por estarem assentados nas camadas mais profundas dos discursos, tiveram de
ser revolvidos para aparecer diante de nossos olhos. Grande foi a nossa surpresa quando
nos deparamos com esses elementos mais obscuros. Confrontando-os com alguns
indícios sobre as práticas sociais em torno das festas operárias, pudemos perceber que,
não obstante sua relativa obscuridade no plano discursivo, tais elementos insuspeitados
da concepção de arte dos articulistas eram, na verdade, tão efetivos quanto aqueles que
saltavam aos olhos.
No começo de nossa pesquisa, não conseguíamos divisar muito bem esses
elementos mais obscuros. Isso porque, naquela época, nós estávamos ainda presos
demais a uma concepção esquemática que transformava o anarquista em uma espécie de
“puritano” preocupado quase que exclusivamente com a divulgação “doutrinária” de
seus princípios. Tal concepção esquemática, por sua vez, levava-nos a encarar os
complexos processos de apropriação cultural de forma demasiadamente rígida. A leitura
137

atenta das fontes despertou em nós a necessidade de desconstruir algumas dessas


segmentações esquemáticas.
Percebemos então que, se nos desprendêssemos do estereótipo do anarquista
“doutrinador” e “puritano”, quase um fanático fundamentalista que se apegava
rigidamente aos princípios por ele propugnados – estereótipo alimentado justamente
pela historiografia clássica sobre o movimento anarquista - , conseguiríamos então
visualizar, na concepção e nas práticas do movimento anarquista, em vez de uma pura
supremacia da “doutrina”, uma genuína valorização dos elementos da cultura popular.
Numa palavra, onde outros viram “doutrinação” cerrada, desvelaríamos um curioso
processo de apropriação cultural em que nem sempre um termo (no caso, o “popular” ou
o “lúdico”) encontrava-se subordinado a outro (a “propaganda” ou a “doutrina”).
Descobrimos que os processos multifários de incorporação cultural desenvolvidos pelos
militantes anarquistas possuíam uma dinâmica própria; dinâmica que, de tão complexa,
seria irredutível às sistematizações que encerrassem qualquer sentido unívoco. Sendo
assim, constatamos que cada discurso específico encerra seu próprio campo de
significados. O mesmo podemos dizer com relação às práticas em torno das festas e do
teatro anarquista – cada prática com seus significados específicos. Postos em relação
com o ambiente sócio-cultural em que se inserem, tais práticas (incluindo aí as
discursivas) revelam-nos um intrincado movimento de apropriação cultural. Tal
movimento sem dúvida encerra não poucas tensões. No entanto, se há tensões (e todos
os estudiosos que se debruçaram sobre o assunto concordam com isso), é porque o
movimento de incorporação se faz de forma contraditória. E, como em todo processo
contraditório de constituição, neste também os termos em disputa recusam-se a
submeter-se a qualquer movimento unidirecional de subordinação. Caso contrário, não
haveria contradição nenhuma em seu interior. Além disso, por ser contraditório, tal
processo constitui-se não apenas de disjunções, como também de inúmeras
aproximações.
Em outras palavras, pode até ser que em alguns momentos o aspecto
“doutrinário” tenha prevalecido sobre o “lúdico” (e/ou “popular”). No entanto, voltamos
a insistir, nem sempre isso se verifica claramente. Se nos próprios discursos da imprensa
operária, como vimos, fica difícil muitas vezes saber onde começa a “doutrina” e
termina o “lúdico”, o que dizer na prática efetiva da festa propriamente dita? Nesta,
138

sempre mais permissiva, parece que a indistinção entre os termos era de fato
preponderante.
É possível também que em alguns dos artigos analisados a noção de “finalidade
social” tenha aparentemente sobrepujado a valorização dos aspectos formais e estéticos
da arte em geral. No entanto, como tentamos esclarecer, o relativo descaso dos
articulistas em julgar as obras pelo seu valor estético não significa, em suas definições,
uma ausência de qualquer concepção estética – nem mesmo uma anulação do estético
frente à “finalidade social”. Pelo contrário, a própria crítica aos padrões de arte
consagrados aponta para a constituição de novas concepções estéticas - nem mais nem
menos importantes do que aquela “finalidade” que as constituía. Pudemos perceber
também que tais concepções se manifestam de diferentes maneiras, dependendo dos
sentidos específicos que cada articulista desejava imprimir em seu próprio discurso.
Alguns desses novos sentidos propostos emergiram da análise que fizemos neste
capítulo das fontes provenientes da imprensa operária.
No entanto, como também pudemos perceber, não obstante os inúmeros matizes
entre os textos dos vários articulistas (ou, melhor dizendo, por causa mesmo desses
matizes), notamos um processo complexo de constituição de uma sintaxe perceptiva
própria. Os elementos dessa sintaxe condensam-se, em parte, no próprio conceito de
arte social e em seus aspectos mais visíveis: verossimilhança, “finalidade social”,
valorização do popular etc. Cada um desses aspectos expressa sentidos próprios, mas
não independentes. Pelo contrário, relacionam-se intimamente com outros sentidos
congêneres que com eles se articulam, constituindo também aquela mesma sintaxe e
sendo por ela constituída. Sem a mínima pretensão de esgotar o tema, parece que, para
além de qualquer conclusão terminante, as abordagens aqui presentes indicam novos
campos de pesquisa que devem ser abertos. Esperamos que as questões aqui levantadas
gerem não poucos frutos.
PARTE II

O TEATRO ANARQUISTA E SUAS RELAÇÕES COM OUTRAS PRÁTICAS SOCIAIS


140

Nesta segunda parte de nossa pesquisa, daremos atenção especial a algumas das
peças que foram encenadas nos palcos das festas operárias que analisamos. Como já
dissemos em nossa Introdução, os critérios para a escolha dessas peças (em detrimento
das demais) têm a ver não só com o “sucesso” delas, como também com as
possibilidades que elas abrem para a análise de outras práticas sociais importantes que
também constituíam o movimento operário da época.
As comemorações em torno do 1º. de Maio, por exemplo, são analisadas no
capítulo 3 à luz das reflexões suscitadas pela obra Primeiro de Maio, de Pietro Gori.
Notamos, nessa obra, que o autor de origem italiana utilizou inúmeras idéias-imagens
que se articulam diretamente com o imaginário anarquista em torno daquela efeméride.
Nosso objetivo foi não apenas estabelecer as relações entre aquelas idéias-imagens e seu
imaginário correspondente, como também enfocar as inúmeras disputas pelo simbólico
que a data ensejava. Veremos que tais disputas adquiriram uma efetividade muitas vezes
insuspeitada.
Após as Considerações Finais, no final de nossa pesquisa, colocamos em anexo
uma pequena análise da peça Ao Relento, de Afonso Schmidt. Isso porque, como já
vimos na Introdução, ela apresenta algumas semelhanças não desprezíveis com a obra
de Pietro Gori.
No quarto capítulo, fizemos uma abordagem das peças O Pecado de Simonia e
Greve de Inquilinos, ambas de Neno Vasco. O objetivo aqui foi analisar de perto
algumas das práticas sociais que se articularam direta ou indiretamente com os
conteúdos dessas peças. Graças à análise da peça O Pecado de Simonia, pudemos
entender melhor algumas idéias-imagens cultivadas pelos círculos anticlericais
libertários. Aqui, como em Primeiro de Maio, tais idéias não estão pairando em alguma
esfera descolada da realidade concreta. Pelo contrário, elas possuem uma grande
efetividade no conjunto das atividades levadas adiante pelos círculos anticlericais. O
potencial dessas idéias-imagens manifesta-se inclusive nas articulações que os
militantes libertários fizeram para enfrentar as forças clericais da época. Surgiram, no
período analisado em nossa pesquisa, três Ligas Anticlericais entre São Paulo e Rio de
Janeiro. Analisaremos nesse capítulo um pouco das atividades dessas Ligas para
entender melhor como os militantes anticlericais libertários organizavam-se na luta
contra o poderio da Igreja Católica.
141

Por fim, ainda nesse Capítulo 4, analisaremos de perto o conteúdo da peça Greve
de Inquilinos, do mesmo autor de origem portuguesa. A abordagem em torno dessa peça
levou-nos a investigar um pouco as atividades organizadas pela Liga dos Inquilinos que
surgiu na cidade do Rio de Janeiro no segundo semestre de 1907. Indícios sobre as
atividades dessa Liga (assim como de sua congênere paulistana) aparecem nas páginas
de A Terra Livre. Acompanhando os artigos sobre as agitações do inquilinato, pudemos
perceber que a peça de Neno Vasco faz referências diretas àquela mobilização
específica. Sendo assim, Greve de Inquilinos (assim como O Pecado de Simonia)
ensejou uma análise que vai muito além do texto “em si”.
Ou seja, por meio das duas obras de Neno Vasco, pudemos entender melhor
algumas importantes práticas sociais que constituíam o movimento libertário da época
que estudamos.
É importante lembrar que, nesta segunda parte, apesar de fazermos uma
abordagem de outras práticas sociais que constituíam o movimento libertário, o teatro,
como prática social daquele movimento, continua sendo nosso eixo central.
Dedicaremos uma atenção especial às peças encenadas nas festas operárias e, quando
possível, lançaremos um olhar atento sobre as atuações dos amadores nas encenações
das referidas peças.
142

DRAMATURGIA E IMAGINÁRIO SOCIAL – O PRIMEIRO DE MAIO, DE


PIETRO GORI

3.1. O Primeiro de Maio, de Pietro Gori


Era noite de sábado, dia 7 de junho de 1902. Assistia-se tranqüilamente à
encenação de Primo Maggio - drama social de Pietro Gori - quando os “mantenedores
da desordem burguesa” chegaram ao Cassino Penteado para “perturbar o sossego”.181
Não obstante os avisos de que o “espetáculo era particular”, os insistentes
“homenzinhos teimaram em entrar”. Com toda a proverbial delicadeza de bons
policiais, eles “irromperam furiosamente” no salão, assustando mulheres e crianças.
Chamaram tropas! Até a cavalaria foi acionada! Na ânsia de encontrar alguma coisa que
incriminasse alguém, os “mantenedores da desordem” revistaram os espectadores. Não
satisfeitos, suspenderam o espetáculo e prenderam três: Torti, Marconi e Cherchiai. Um
dos distintos policiais, mostrando toda a valentia que certamente lhe faltava em outras
ocasiões, puxou um “facalhão” – ao que tudo indica, em pleno salão.
Essa não foi a primeira vez que Primo Maggio subiu ao palco em São Paulo.
Mais de um ano antes, na edição de 10 de maio de 1901, comentando as comemorações
do 1º. de Maio em São Paulo, O Amigo do Povo referira-se a uma festa organizada no
Teatro Nasi (situado então no Cambuci). Naquele evento do dia 30 de abril a famosa
obra de Pietro Gori fora já encenada – talvez, pela primeira vez em nossa Paulicéia.
Tomaram parte em tal espetáculo, dentre outros amadores, Giulio Sorelli, S. Bigi e Irene
Zamboni. Desde então, a peça Primo Maggio (mais tarde traduzida para o português)
tornou-se “o carro-chefe do teatro libertário”182 – tanto em São Paulo quanto no Rio de
Janeiro.
Não é possível dizer ao certo quando surgiu a primeira tradução da peça para o
português. O próprio artigo acima mencionado (do dia 21de junho de 1902), diz que o
espetáculo encenado no Cassino Penteado era “em favor da propaganda pelo opúsculo
em português”. Não se sabe, no entanto, quando tal opúsculo saiu (se é que saiu). Quase
quatro anos depois, apareceram indícios de uma tradução em português. No dia 20 de

181
A respeito de tal incidente e da versão que aqui narramos, ver O Amigo do Povo, edição de
21.06.1902.
182
Ver Alves de Lima, Mariângela e Thereza Vargas, Maria; Teatro Operário na Cidade de São Paulo.
Laboratório do Idart, 1980, p. 48.
143

janeiro de 1906 (ano de intensas agitações operárias 183), o periódico carioca Novo Rumo
publicou um anúncio de uma festa organizada pelo grupo dramático da Liga das Artes
Gráficas (ver programação da festa abaixo). Diz o anúncio que o drama de Pietro Gori
seria representado em português e que a tradução fora feita por “um sócio da Liga”. No
programa da festa, o título da peça está em língua portuguesa (“O Primeiro de Maio”).

Imagem 5 – trecho de anúncio publicado em Novo Rumo (20.01.1906)

Os demais anúncios que encontramos na imprensa carioca apresentam o título


também em português. Não surpreende que os primeiros sinais de uma tradução para a
língua nacional apareçam em jornais cariocas. Desnecessário dizer, no Rio, a
quantidade de imigrantes italianos era muito menor do que em São Paulo. Nesta última
cidade, os anúncios seguem apresentando a peça com seu título em italiano (“Primo
Maggio” ou “Il Primo Maggio”). O primeiro anúncio que até agora encontramos de uma
festa em São Paulo que apresenta a peça com seu título em português é de uma edição

183
Na própria cidade do Rio de Janeiro, foi criada naquele ano uma Federação Operária que teve uma
curta duração, voltando a se organizar em 1907. Em abril de 1906, ainda no Rio de Janeiro, ocorreu o
Primeiro Congresso Operário Brasileiro (terceiro, se considerarmos os congressos socialistas de 1892 e
1902). Em São Paulo, no mês de maio, uma grande paralisação dos ferroviários da Companhia Paulista
mostrava sinais de que a agitação estava surtindo efeito. Sem dúvida, a festa que analisamos fez parte
desse esforço de mobilização.
144

de abril de 1909 do jornal La Battaglia (curiosamente, um jornal predominantemente


em língua italiana). A partir de então, anúncios com o título em português tornam-se
mais comuns em São Paulo 184.
Ambientado em um latifúndio qualquer, o bozzetto drammatico transcorre em
um 1º. de Maio também indefinido. O cenário é simples: ao fundo, um pano
representando campos e colinas; do lado esquerdo encontra-se a “casa rica” e do lado
direito a “casa pobre” – ambas separadas por uma grade.
Após um preâmbulo em que um ator apresenta (em versos rimados) os
personagens e o argumento da peça, ouve-se vozes distantes que entoam o hino
Primeiro de Maio (também de autoria de Pietro Gori). Ao mesmo tempo, Ida, uma
jovem camponesa que personifica a Idéia, “joga flores na soleira da casa rica”
(anunciando a primavera). Assim como Ida, os demais personagens são alegóricos,
emblemáticos, destituídos de características individuais marcantes185. Desde o início,
uma atmosfera idílica – associada aos eflúvios primaveris que a data evoca – envolve os
personagens. Estes, de acordo com Maria Thereza Vargas e Mariângela Alves de Lima,
não estabelecem propriamente um diálogo; o que os põe em cena não são as múltiplas
relações que personagens complexos estabeleceriam entre si. As posições e conflitos
mais sérios entre eles se manifestam no conteúdo do discurso, não no embate cotidiano
das relações sociais. Além disso, o papel que cada um desempenha na trama encenada é
mais ou menos previsível.
Antes de iniciar um breve resumo comentado da peça, pensamos que valeria a
pena analisar rapidamente a pequena caracterização de personagens que se encontra na
página 5 da versão com a qual trabalhamos.

Senhora aristocrata....50anos
Jovem........................23 anos
Ida, camponesa..........19 anos
Estrangeiro................28 anos
Operário....................25 anos
Marinheiro................30 anos
Velho camponês.......60 anos

184
A versão que utilizamos nesta análise é em língua portuguesa (data indefinida).
185
Para uma melhor caracterização dos personagens de Primeiro de Maio, ver Alves de Lima, Mariângela
e Thereza Vargas, Maria; Op. Cit., pp. 57 e 58.
145

Para além das diferenças etárias que podemos identificar entre os personagens,
notamos nas caracterizações acima uma ênfase na diversidade do mundo do trabalho. O
sentido político dessa diversidade parece ser o de abrir espaço para uma maior
interlocução com o público: fazer com que um número sempre maior de espectadores
possa se identificar com os personagens e, dessa forma, inserir-se na trama encenada –
mesmo que de forma indireta. Para entender melhor esse sentido político, façamos um
panorama geral do enredo.
Já no início da cena 1, o Jovem e sua mãe (Senhora aristocrata), entram
abraçados no palco. O primeiro, com ar enfermo, afirma estar triste. A segunda sugere
que, talvez, a razão dessa tristeza fossem os “cantos plebeus” entoados por ocasião da
data (o hino Primeiro de Maio acabara de ser ouvido). O Jovem refuta a insinuação e
diz que, na verdade, ele sente um “vácuo na alma”. Um pouco mais adiante, ele indica
precisamente onde fica aquele “vácuo”: em seu coração. Aliás, ao longo de toda a peça,
ele aponta para o peito quando se trata de indicar onde reside o seu mal. Este
personagem merece uma atenção especial. Filho da Senhora aristocrata, apesar de sua
situação social privilegiada, o Jovem é na verdade um “nobre coração”. Manifesta a
indignação e o desconforto de pertencer a um grupo da sociedade que explora e oprime
para viver na opulência. Desde o início do bozzetto, ele se mostra atormentado com as
injustiças de que é testemunha.
A Senhora aristocrata, ao mesmo tempo compassiva e confusa com as coisas que
o filho lhe diz, dirige-se com ele para sua vistosa casa. Ao chegar à porta, o Jovem
encontra as flores que Ida lá deixara. Sua mãe, um tanto contrariada, carrega-o “com
doce violência” para o interior da casa.
Eis que muda a cena. Ida sai de sua humilde morada e dirige-se para a porta da
casa do Jovem, jogando um beijo para dentro dela. Surge então a figura do “misterioso
Estrangeiro”. Ele encosta-se na cancela e pede à Ida um pouco de água. A garota corre
para dentro e volta com um jarro. Ida, com “curiosidade infantil”, pergunta ao rapaz:
“Quem és?”. O Estrangeiro afirma ser um peregrino que está de regresso ao seu país,
uma terra distante que fica no Oriente, em direção ao Levante - “verso la parte donde si
leva il sole”, repete sempre o Estrangeiro. A jovem camponesa, sempre curiosa,
pergunta então ao peregrino como é o seu país. Abre-se espaço para a descrição de um
cenário que poderíamos chamar de “utópico” e que, sem exagero, bem poderia ser o
ideal de todos os anarquistas da época. Lá, no país distante do “misterioso peregrino”,
146

todos trabalham, menos as crianças e os idosos; os homens são irmãos, não há


desigualdade social ou econômica e a única lei é “a Liberdade”. Conseqüentemente,
também não existe miséria naquele ditoso país; as crianças são educadas sem dogmas,
“racionalmente”. Enfim, aquele é um lugar sem miséria, sem obscurantismo ou qualquer
espécie de injustiça.
Entusiasmada com os relatos que o Estrangeiro faz, Ida mostra-se disposta a
seguir com ele de volta a sua terra. O peregrino pergunta à jovem camponesa se ela tem
noivo. Ela, de cabeça baixa, diz que sim. “E o amor não te basta?”, pergunta o
Estrangeiro. Ida ergue a fronte com orgulho e responde: “Não!”. “Que quereis mais?”,
indaga o peregrino. “A liberdade...”, afirma a camponesa. Apesar dos possíveis pesares,
Ida acredita ainda que seu noivo seguirá com ela ao país de seu sonho.
Surge então o Operário. Ida, “com surpresa”, pergunta se ele vai ao trabalho
naquele 1º. de Maio. O humilde trabalhador diz que sim - afinal, o patrão ameaça
despedir quem se ausentar naquele dia. O Estrangeiro, um tanto admirado, pergunta se
“um homem pode ter um patrão”. O Operário afirma que, se ele é pobre, sim. O
Estrangeiro indaga sobre o que ele fez para merecer aquela situação de pobreza. O
Operário responde que trabalha desde a aurora até o pôr-do-sol. O “misterioso
peregrino” aconselha então o pobre trabalhador a segui-lo em sua difícil jornada,
dizendo aos patrões: “Basta por hoje”.
Agora, despontando ao longe, é a vez do Marinheiro. Ida interpela-o:
“Marinheiro, onde vais?”. Ouve-se a voz dele ainda distante: “Vou ao trabalho”. Ida
questiona-o com relação à sua pretendida presença no trabalho. O Marinheiro justifica-
se dizendo que ele não é o patrão. A jovem camponesa, um tanto irônica, diz então: “É
verdade...tu és um simples escravo impotente para rebelares-te”. O Marinheiro põe-se a
refletir. Ida, com “inspirado acento”, inicia uma preleção em favor da abstenção do
trabalho naquele dia.

Ida - Uma canção misteriosa, paira, esta manhã, no ambiente... Serão, por ventura, os
dispersos suspiros de todos os mortos de fome, que hão coligado para reclamar vindita? Dos
mineiros sepultados nos negros fundos das minas? Dos operários despedaçados pelas
engrenagens das máquinas, ou das crianças e velhos mortos de fome e frio, nos umbrais dos
portentosos palácios? [...] Não sei; não posso explicar-me... O que vos posso dizer é que : da
grande família dos trabalhadores, o que hoje faltar ao pacto de solidariedade, é um covarde.
147

Como algumas outras figuras dramáticas do teatro anarquista, Ida encarna aqui
o papel de um típico personagem recitante. Segundo Eva Golluscio de Montoya, o
“personagem recitante” é aquele que cumpre o papel de transmitir em cena a mensagem
ideológica defendida pelos círculos ácratas186. A autora argentina associa as
características desse personagem ao estilo “monológico” das peças anarquistas; estilo
“no qual se privilegiam a declamação e a conseqüente postura corporal do intérprete”.
Veremos, no entanto, que a dramaturgia com a qual lidamos nem sempre é assim tão
“monológica”. Além disso, se Ida parece enquadrar-se na tipificação de Eva Golluscio
de Montoya, outros personagens semelhantes daquele teatro são refratários a tal
padronização.
Voltemos ao enredo da peça. Convencidos por aquela jovem idealista, o
Operário e o Marinheiro resolvem não apenas paralisar o trabalho naquele dia, como,
também, seguir o peregrino na difícil viagem. Estamos já no final da cena IV. Os dois
personagens saem determinados a convencer seus companheiros: estes não podem
trabalhar naquele dia especial!
Tanto o Operário quanto o Marinheiro, assim como vários outros personagens
do teatro anarquista, servem de ensejo para preleções didáticas – no caso, em favor da
abstenção do trabalho. Nesse sentido, identificamos neles certas relações com aquilo
que Eva Golluscio de Montoya chamou de “personagens-espelho”. Para a autora citada,
os “personagens-espelho” são aqueles que recebem os ensinamentos libertários que o
autor deseja transmitir ao público. São eles que abrem espaço para a “doutrinação” em
cena187. De fato, o Marinheiro e o Operário não deixam de cumprir com essa função.
Mas não só isso... Apesar de coadjuvantes, os dois desempenham um papel importante
no argumento da peça – mesmo que tal papel seja mais deduzido do que encenado.
Como veremos, são eles que convencem seus companheiros a suspender o trabalho

186
Sobre os “personagens recitantes”, ver Golluscio de Montoya, Eva; El monólogo: una convención de
la escena libertaria (Rio de la Plata, 1900); Buenos Aires, 1990. Para nossa autora argentina, “la
dramaturgia libertaria favorece en el actor la actitud escénica de `recitante´ -ligada al estilo monológico y
al objetivo proselitista- en el cual se privilegian la declamación y la consecuente postura corporal del
intérprete. En el momento en el cual el actor se desprendía de los otros actores presentes en el tablado y
avanzaba cara al público para decir su mensaje fue siempre un instante de emoción en las veladas
teatrales anarquistas.” Sobre a questão, ver também, da mesma autora, Elementos para uma
“teoria”teatral libertaria (Argentina 1900); artigo de 1987.
187
Para saber mais sobre “personagens-espelho”, ver Montoya, Eva Golluscio de; Pactos de
representación en un teatro militante: el problema del destinatário. In: Roste, Peter y Rojas, Mario
(editores); De la Colonia a la Postmodernidad – Teoría Teatral e Crítica Sobre Teatro Latinoamericano.
Buenos Aires, Editorial Galerna/IITCTL, 1992; p. 116. Ver também Prado, Antonio Arnoni; Op. Cit., pp.
136-160.
148

naquele 1º. de Maio. Embora a peça não nos demonstre como os dois conseguiram
engajar os seus respectivos companheiros de trabalho, parece-nos claro que o Operário e
o Marinheiro exercem uma ação política subjacente ao enredo – apesar de tal ação ser
apenas anunciada (e não construída em meio à trama encenada). Portanto, aqui, como
alhures, os modelos de tipificação com os quais lidamos devem ser relativizados,
embora não rejeitados integralmente.
Estamos já na cena 5. Nela, temos no palco apenas Ida e o Jovem. Este, “com
tremente passo”, sai de seu portentoso lar dizendo temê-lo. Quando ele vê a jovem
camponesa, seu rosto irradia prazer. Ida pergunta por que ele demorou. O Jovem
responde que, apesar de ter demorado, seu coração não a esqueceu. Ida repara na
palidez do Jovem, sinal da doença que ele carrega. Ele afirma que a tristeza dos demais
o entristece e suas próprias riquezas o envergonham. Com “misterioso terror”, o bom
Jovem confessa ser a sua doença uma “herança das culpas” de seus pais. Para ele, seus
progenitores teriam gozado em demasia - enquanto os pais de Ida, por outro lado, teriam
sofrido bastante. Segundo o Jovem, seus próprios pais transmitiram-lhe o sangue já
envenenado. Entende-se agora a origem dos males pelos quais ele padece. Não é à toa
que sua doença reside no coração.
Por fim, Ida conta ao Jovem sobre a passagem daquele “misterioso estrangeiro”
que caminha rumo ao Oriente (“verso la parte donde si leva il sole”), ao “país ditoso”,
com o qual ela sonhara. O amável Jovem fica extasiado com a descrição; sente-se
rejuvenescido e deseja partir com o tal Estrangeiro. Ida previne-o das dificuldades que
eles enfrentarão no caminho. Informa-lhe sobre a jornada perigosa e sacrificante. O
Jovem, arrebatado com tal visão, afirma resolutamente que é isso o que ele deseja: “a
luta, a peregrinação misteriosa e fatal para lá, para o país das gentes livres e iguais”.
Eis que surge um novo personagem: o Velho camponês, pai de Ida. Encarnação
do servilismo vil, o Velho “simboliza a ignorância”. Nas palavras proferidas durante o
prólogo, é ele quem “forja e eterniza as algemas [...] às quais ele mesmo se sujeita”.
Constantemente ranzinza, o Velho chama Ida do interior de sua pobre casa,
reclamando por ela estar “sempre fora”. Ida responde-lhe que procura “o ar e a luz”. O
camponês sai com “a ferramenta do trabalho”, encontra o Jovem e, obsequioso, tira o
chapéu em sinal de reverência; o pai de Ida cumprimenta o Jovem respeitosamente. O
Jovem indigna-se diante de tamanho servilismo e exige que o camponês coloque de
volta o seu chapéu.
149

Segue-se uma discussão entre pai e filha. O Jovem intervém em favor de Ida.
Desnecessário dizer, o humílimo camponês cala-se diante dos argumentos do Jovem e
dispõe-se a “recolher as ferramentas”. O Velho aderiu ao protesto? Ainda não. Ele
“recolhe as ferramentas” para se dirigir ao serviço. O Jovem, com nítida indignação,
pergunta se ele vai mesmo trabalhar - enquanto os demais camponeses paralisam os
serviços naquele dia. “Porventura o homem não nasceu para trabalhar?”, argumenta o
Velho. Pobre Velho...
Na seqüência, tanto o Jovem quanto Ida assumem o papel de “personagens
recitantes” e tentam mostrar ao Velho seus inúmeros enganos. Após a eloqüente fala de
Ida, o camponês, indiferente, afirma que não pode compreender aquela linguagem e
predispõe-se novamente a sair: “Se não se trabalha não se come”, afirma resoluto o pai
da moça. Segue-se uma discussão entre ele e o Jovem. Em sua incapacidade de
enfrentar o patrãozinho, o Velho camponês volta-se contra Ida, ameaçando-a com o
trabalho extenuante no arrozal. Ida nega com veemência sujeitar-se a tal condição e seu
pai ameaça expulsá-la de casa. A jovem camponesa encontra o pretexto que precisava,
anunciando então que partirá: “tanto melhor...desejava-o”. Aproveita a ocasião para
reiterar sua repulsa à lida no arrozal, denunciando as péssimas condições de trabalho
enfrentadas pelas mulheres das aldeias ao redor. O Jovem, sempre sensível, horroriza-se
com os relatos de Ida. Esta termina seu discurso afirmando que partirá e,
“impressionada”, diz que está sentindo a volta do “estrangeiro misterioso”.
Aparecem novamente o Estrangeiro, o Marinheiro e o Operário - todos prontos
para partir (“com seus sacos de viagem ao ombro”). Ida, “adiantando-se resoluta”,
afirma: “Estou pronta”. O Jovem intervém, pedindo para que ela o deixe ir também. A
camponesa pergunta, “com acento solene”, se ele está mesmo preparado para encarar a
difícil viagem. O Jovem afirma que está disposto a enfrentar a morte para ser fiel a Ida.
Esta lhe dá a mão e diz: “Sê, pois, meu companheiro”.
No entanto, a coragem do Jovem dura pouco. Já na última cena, entra a Senhora
aristocrata e pergunta: “Filho! Onde vais?”. A simples presença daquela velha dama
oprime o coração do sensível Jovem – ele é tomado por um “súbito temor”. Segue-se
uma pequena conversa entre mãe e filho em que as palavras da primeira despedaçam o
coração do segundo. No fim, o Jovem diz a Ida que já não tem mais forças para segui-la.
Diante da fraqueza do Jovem, Ida sugere que ele fique. Ele pergunta, no entanto: “E
tu?”. Ida responde resoluta: “Eu... Partirei, apesar de tudo”.
150

Em meio àquela trágica cena, a mãe – após uma sessão de chantagem emocional
- pede perdão ao filho. Este, “com voz entrecortada pelos soluços”, afirma novamente
que a doença de que ele sofre é herança de seus pais. O Jovem, já moribundo, diz que
sonhara morrer como um “lutador da vida”, mas que, no entanto, a “noite que o
circunda” não o permite ver o sol nem a primavera. A Senhora cobre-o de beijos e ele
afirma que aqueles beijos são frios. O bom rapaz levanta-se “com violento esforço” e
pede ar e luz. Ele chama por Ida e esta o acode. Ida e a Senhora ajoelham-se diante do
Jovem. Ao longe, ouve-se o hino Primeiro de Maio. O Jovem incita Ida a partir. Esta se
despede chorando. O Estrangeiro ampara a jovem camponesa e ambos encaminham-se
para a cancela. O peregrino, “com solenidade”, dirige-se também ao Operário e ao
Marinheiro, encorajando-os a partir. Por fim, o Jovem desfalece, enquanto o Velho
camponês e a Senhora aristocrata choram.

3.2. A dualidade passado /futuro, as metáforas do sol e da luz e as representações


do “novo mundo”
Por que o bom Jovem não segue sua amada Ida e os demais companheiros para o
“país ditoso”? Por que ele perece no fim, ao lado da Senhora aristocrata e do Velho
camponês?
Ao longo de toda a peça temos indicações claras do destino do Jovem e das
razões que o prendem a tal sina. Já no prólogo, ele é descrito como alguém “que
compreende e, amando, os braços para o justo estende”. Nesse prelúdio elucidativo, o
ator que apresenta os personagens arremata a descrição anunciando já que o “jovem
ardente”, débil de corpo e muito cansado, “não pode desprender-se do passado” e, “no
final, algemado morre”. Vimos no resumo acima que a grave doença que acomete o
rapaz nada mais é do que uma “herança das culpas” de seus pais; estes teriam
transmitido a ele o sangue envenenado. Por isso, apesar de sua nobre alma, o amável
Jovem ainda está por demais preso a suas origens; ele não consegue se libertar das
amarras que o prendem a sua condição. A ele o país da liberdade não está destinado.
Podemos afirmar, sem risco de exagero, que o Jovem encarna em sua pessoa o
embate entre o passado e o futuro – tema que se repete ao longo de toda a obra. Dentro
da alma convulsionada do ardente rapaz, manifesta-se a conflagração entre dois mundos
opostos: um, atado ao passado (“herança das culpas” dos pais), não comporta as
mudanças engendradas pelos novos tempos; o outro, projetado para o futuro, impele os
151

espíritos conscientes e resolutos para a inevitável e benfazeja transformação. Quanto aos


personagens, não obstante algumas nuanças não desprezíveis, fica mais ou menos
patente qual se encontra em cada lado no enredo. Desnecessário seria nomeá-los.
A oposição entre as duas dimensões de tempo aparece em diferentes momentos
da peça. Por exemplo, no início da cena 5, quando o Jovem sai de sua casa e encontra
Ida, depreendemos de sua conversa com a camponesa essa dualidade fundamental nos
sentimentos que ele manifesta. Expressando um nítido contraste de sensações, o rapaz
afirma que, por um lado, a presença de sua amada o revigora, fazendo-o recobrar as suas
forças e melhorando seu débil estado de saúde; junto dela ele sente o “suave calor
primaveril”. Por outro lado, em sua própria casa, ele sofre com o “glacial frio da morte”,
associado sempre às tormentosas recordações de infância. Claramente, temos aqui a
oposição entre um mundo que se renova e outro que enregela – porque retrógrado, atado
ao passado.
Outro evidente indício desse embate entre os dois mundos manifesta-se por meio
de um diálogo entre a ardente Ida e seu submisso pai. Naquele episódio em que o Velho
camponês aparece em cena pela primeira vez, inicia-se uma discussão entre ele e sua
filha. Esta última tece então uma interessante comparação. Antes de tudo, ela afirma que
respeita seu velho pai e compadece-se dele. No entanto, para Ida, ele “é o passado” e
ela, por sua vez, pertence “ao porvir”. Mais adiante, em outra discussão com o velho
camponês, novas imagens do embate mencionado manifestam-se na fala de Ida. Para
ela, seu pai não a compreende porque é a “árvore que tomba” – enquanto ela própria
seria a “flor que nasce”.
O sentido político dessa insistente oposição retratada na peça parece-nos claro.
Trata-se de uma clara contraposição entre uma sociedade capitalista desigual e uma
outra que está para ser construída. O objetivo maior de nossa peça parece ser o de
intervir na ordem social vigente, mostrando a todos a possibilidade concreta de
superação daquelas desigualdades que o próprio capitalismo engendrou. A confrontação
entre passado e porvir não é, na peça, um mero exercício retórico. Pelo contrário, ela
indica uma necessária transformação da realidade vigente. Ela aponta para a
constituição de um mundo novo, avesso às desigualdades produzidas pelo velho e
carcomido mundo capitalista fadado a desaparecer.
Obviamente, não foi só na peça que a dualidade passado/futuro se manifestou.
Ela emerge também em outras imagens construídas em torno do 1º. de Maio. Uma
152

nítida expressão dessa dualidade aparece em uma figura alegórica veiculada com certa
freqüência nos órgãos da imprensa operária. O primeiro registro de tal alegoria que
pudemos identificar apareceu em 1906 no periódico carioca Novo Rumo, em sua edição
de 11 de novembro – data que celebra a execução dos Mártires de Chicago 188. Mais
tarde, A Terra Livre – naquele momento em São Paulo - publica a mesma figura em sua
edição de 1º. de maio de 1910. Encontramos mais uma ocorrência dessa imagem no
periódico O Trabalhador do dia 13 de maio de 1933.
A imagem é uma alegoria da Revolução Social
rodeada pelos retratos dos Mártires de Chicago. Além
dos cinco mortos, aparecem nela também os nomes e
efígies dos outros três que foram presos e, mais tarde,
libertados. No centro, as palavras “Remember
Chicago!” e, logo abaixo, a data comemorativa: “11 de
novembro 1887”. A alegoria da Revolução Social é
aqui representada por uma jovem garota que aparece
com os ombros e canelas descobertos. Com os trajes
esvoaçantes, ela manifesta um ar de altivez e
determinação. Situada no canto direito da imagem, a
jovem Revolução segura uma bandeira (vermelha ou
Imagem 6 – alegoria da Revolução
Social publicada em Novo Rumo
preta?) e tem aos seus pés os resquícios do mundo
(11.11.1906)
velho, suplantado aqui pela nova ordem social. Na
imagem, captada por meio do microfilme, pudemos identificar três inequívocos
símbolos representativos daquela velha sociedade: uma coroa, caída entre os dois pés da

188
Os acontecimentos que inspiraram a transformação do 1º. de Maio em data comemorativa
desenrolaram-se em 1886. Naquele dia, mês e ano iniciou-se, nos Estados Unidos, uma greve em favor da
jornada de oito horas. Dois dias depois (em 3 de maio), um pequeno levante de trabalhadores terminou
com a morte de alguns manifestantes. No dia seguinte (4 de maio), realizou-se uma grande manifestação
na praça Haymarket, em Chicago. No momento em que os policiais tentavam dispersar os manifestantes,
uma bomba foi lançada (não se sabe por quem) no meio das tropas. Esse foi o pretexto para que os
policiais lançassem fogo contra os manifestantes, matando doze e ferindo dezenas. Em 21 de junho de
1886 iniciou-se um processo para, supostamente, apurar os responsáveis pelo atentado. Tal processo,
feito em meio aos atropelamentos da própria formalidade legal, terminou com a condenação de oito
acusados: cinco (Engel, Fischer, Parsons, Spies e Linng) foram condenados à morte e três (Fielden, Neebe
e Schwab) obtiveram a sentença de prisão. Em 11 de novembro de 1887, Engel, Fischer, Parsons e Spies
foram executados (Linng cometera já suicídio). Surgem então os tais “Mártires de Chicago”. Após uma
revisão do processo, os condenados foram considerados inocentes e os três presos foram libertados.
153

alegoria; uma provável tábua de lei, pisada com o pé esquerdo da jovem Revolução e,
no canto direito inferior, uma espada (símbolo da nobreza e do militarismo).
É preciso ressaltar que, tanto na peça quanto na alegoria, as representações da
dualidade supramencionada não são meras alusões ao conflito de gerações; nem seriam
elas somente uma manifestação do antagonismo entre dois mundos estranhos. Acima de
tudo, o confronto entre passado e futuro significa aqui a afirmação do último sobre o
primeiro. Primeiro de Maio, de Pietro Gori, assim como a alegoria acima mencionada,
anuncia de forma clara o advento de um “novo mundo”; este surge da decadência ou
dos escombros daquele velho e carcomido mundo de explorações e injustiças.
Uma outra imagem que faz alusão ao
advento de um “porvir melhor” foi publicada em
A Voz do Trabalhador no dia 1º. de maio de
1913. Podemos dizer que ela nada mais é do
que a representação, de forma também
alegórica, do que seria a alvorada de uma “nova
era”. Intitulada Primeiro de Maio, ela representa
um forte trabalhador de costas para quem o vê,
mas de frente para o horizonte. Neste, vê-se o
Sol, dentro do qual está escrita a palavra
“Liberdade”. O trabalhador porta o signo de seu
ofício: um martelo em sua mão direita; no pulso
esquerdo, uma algema cuja corrente foi rompida
Imagem 7 – A Voz do Trabalhador (metáfora da libertação dos grilhões da
(01.05.1913)
escravidão). Aos pés do trabalhador, vemos
ossos e crânios; nestes últimos lemos as palavras “capitalismo”, “militarismo”,
“aristocracia”, “nobreza”, “clero” etc. Ou seja, mais uma vez, a nítida idéia de uma
velha ordem suplantada, no caso, por um trabalhador emancipado. Este, apesar de
retratado de costas para o leitor, assume uma postura altiva e determinada (assim como
a alegoria da Revolução que analisamos logo acima). No entanto, devemos frisar que,
nesta imagem, a Liberdade é representada pelo Sol - e seu advento, pela aurora.
No poema que vem logo abaixo da imagem, as metáforas do Sol e da aurora
aparecem novamente.
154

Dia grande e cruel à memória operária,


Hinos brancos de Paz, hinos rubros de Guerra,
A Bandeira do Amor que se fez incendiária...

Data fatal que em si ao mesmo tempo encerra


A promessa do Bem ao coração do Pária
E juramentos de Ódio aos senhores da Terra!

Olhar perdido além, num horizonte vago,


Num sonho em que se vê o Mundo Comunista,
Ou se lembram talvez os mortos de Chicago!

Grande marco miliário à suprema conquista


Do País Ideal onde se esplaina o Lago
Verde-azul da Concórdia a consolar a vista...

Calendimaio! O Sol que te ilumina seja


O último a iluminar as grades da Prisão,
Os muros do Quartel e as fachadas da Igreja;

E amanhã, ao brotar do grande Astro o clarão,


Que aos seus raios triunfais o Homem por fim se veja
Sobre a Terra, a cantar, liberto do patrão!...

Composto por Max dos Vasconcelos, o poema manifesta a esperança de que o


“Sol” de hoje ilumine pela última vez a “Prisão”, o “Quartel” e a “Igreja”; e que
amanhã, “ao brotar do grande Astro o clarão”, o Homem se veja finalmente “liberto do
patrão!”. A oposição entre capitalismo e “Mundo Comunista” também se faz presente.
O sentido dessa oposição é, aqui, assim como na peça, sintomático desse esforço de
intervenção concreta que o autor pretendia conferir à sua obra. Assim como Pietro Gori,
Max de Vasconcelos não expressa um simples apelo ideológico. Seu poema adquire um
sentido político explícito que vai além de um mero exercício retórico.
As idéias-imagens do “porvir melhor” são recorrentes na peça que analisamos-
assim como nos artigos, poemas e alegorias da imprensa anarquista em torno do 1º. de
Maio. Antes dessa edição de A Voz do Trabalhador, o periódico carioca A Greve, no dia
1º. de maio de 1903, lançara um extenso artigo em que as associações do Sol com a
noção de um “novo mundo” já estavam presentes. No final desse artigo publicado em A
155

Greve, órgão da imprensa operária vinculado ao Sindicato dos Estivadores do Rio de


Janeiro189, o autor, Elysio de Carvalho 190 , refere-se a um “clarão que fulgurou naquele
firmamento cheio de horror lúgubre”. Para ele, tal clarão seria o “prenúncio da grande
aurora” que nada mais seria do que “o eterno Sol da Justiça e da Razão absolutas”.
Segundo o autor, esse clarão brilharia sobre a Terra “num dia límpido e puro”.
Logo na seqüência, Elysio de Carvalho elabora uma imagem que bem
poderíamos chamar de apocalíptica191:

Então, ó exploradores, pensais vós que aqueles ventos semeados por mãos generosas
não formarão a tempestade que há de desabar sobre vossas cabeças, destruir vossos palácios,
vossos tesouros, vossos poderes, vossos privilégios, cuja bonança será a luz dos tempos melhores
iluminando as vossas frontes?

Em A Lucta Proletaria, edição de 1º. de maio de 1908, novamente a metáfora da


luz encarnada no Sol indica um “porvir melhor”. Num dos textos dedicados ao 1º. de
Maio, o autor (Sebastião Eugenio) afirma que os Mártires “pelejavam por um Mundo
novo, iluminado pelo Sol da Liberdade”. Mais adiante, na mesma edição, o sexto e
último texto dedicado à efeméride - assinado por César Antunha - anuncia, no
horizonte, o surgimento da “aurora belíssima do 1º. de Maio”.
Pudemos perceber que, na peça de Pietro Gori, pululam também as referências à
luz, ao Sol e ao Oriente – lugar onde nasce o “grande Astro”. Em diferentes momentos,
ao referirem-se ao “país ditoso” que fica no Levante, tanto o misterioso Estrangeiro
quanto a ardente Ida repetem a infalível frase em italiano: “Laggiù, verso la parte donde
si leva il sole”. No final da cena 5, quando Ida narra o sonho que ela tivera de sua
jornada rumo àquela “cidade feliz”, ela enfatiza não só as agruras daquela difícil
viagem, como também o alento que sua visão do horizonte lhe proporcionava. Em sua
fantasia onírica, a jovem camponesa caminhava sempre para o Oriente; lá, no horizonte,

189
Segundo Maria Nazareth Ferreira, o periódico carioca A Greve vinculava-se ao Sindicato dos
Estivadores. O próprio caráter combativo desse jornal é um sinal indicativo do pendor revolucionário dos
dirigentes sindicais da categoria dos estivadores do Rio de Janeiro. Ver Nazareth Ferreira, Maria. A
Imprensa Operária no Brasil – 1880-1920. Petrópolis: Vozes, 1978; p. 97.
190
De acordo com Edgar Rodrigues, Elysio de Carvalho foi um intelectual anarquista que no início do
século XX “fundou e/ou ajudou a fundar jornais e revistas ácratas e colaborou intelectual e
economicamente para o nascimento do jornal A Greve (1903), a revista Kultur e da Universidade Popular
(1904) entre outras iniciativas de fundo e forma libertárias”. Ver Rodrigues, Edgar. Os Companheiros –
vol. 2. Rio de Janeiro: VRJ , 1995; p. 43.
191
Sobre as influências do Apocalipse nas peças do teatro anarquista, ver Antônio de Souza, Dimas. O
Mito Político no Teatro Anarquista Brasileiro; Rio de Janeiro, Editora Achiamé; 2003; pp. 63-66 .
156

lhe “sorria uma faixa de azulado céu”. Vimos já o episódio em que, no início da cena 6,
a mesma camponesa assevera a seu pai que procura “o ar e a luz”. O enfermo Jovem
também alude à metáfora do Sol, em oposição às trevas que obscurecem sua existência.
Na última cena, já prestes a desfalecer, ele afirma que sonhara morrer como um “lutador
da vida”; no entanto, para seu infortúnio, a “noite que o circunda” não o permite ver o
sol nem a primavera.
Desde o início, sentimo-nos bastante inclinados a pensar nas alusões ao Oriente
relacionando-as com os mitos bíblicos do Paraíso Perdido e da Terra Prometida. As
sugestões neste sentido são bastante tentadoras. Já no prólogo, o país almejado por Ida é
anunciado como um “mundo prometido”. Assim como no mito do Paraíso Perdido, a
“Utopia” do “misterioso Estrangeiro” também fica no Oriente. Se os hebreus vagaram
pelo deserto por 40 anos para alcançar Canaã, os idealistas da peça enfrentarão também
uma dura peregrinação pela frente.
Em sua obra sobre o mito político no teatro anarquista, Dimas Antônio de
Souza realiza uma análise da incorporação de mitos religiosos no imaginário e na
ideologia anarquistas192.É evidente que os anarquistas apropriaram-se de elementos do
imaginário religioso em suas diferentes produções culturais. Como bem salientou
Bronislaw Baczko, os imaginários sociais são complexos e estabelecem inúmeras
relações entre si. Por isso, parece-nos evidente que os anarquistas incorporaram, em
seus sistemas simbólicos, elementos oriundos de outros sistemas imaginários (incluindo
os religiosos)193. Parece-nos claro, também, que tais incorporações revestiram-se de um
caráter utilitário, uma vez que foram usadas para promover (por meio da propaganda) o
próprio ideário anarquista.
No entanto, para além das identidades entre mitos políticos e religiosos, o que
pretendemos é entender os novos sentidos que os últimos adquirem ao se transformarem
nos primeiros. No caso específico que por ora analisamos, devemos tomar cuidado com
uma junção muito mecânica da metáfora do Oriente com os mitos bíblicos a ela
associados. Sem desprezar suas influências intrínsecas, pensamos que aqui, para além

192
Ver Antônio de Souza, Dimas. O Mito Político no Teatro Anarquista Brasileiro; Rio de Janeiro,
Editora Achiamé; 2003.
193
Sobre os intercâmbios entre diferentes imaginários sociais, ver Baczko, Bronislaw. Imaginação Social
In: Romano, Ruggiero (org.); Enciclopédia Einaudi – volume 5 (Anthropos-Homem). Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1985; p. 312. “Apenas insistimos no fato de os imaginários sociais não
funcionarem isoladamente, entrando, sim, em relações diferenciadas e variáveis com outros tipos de
imaginários e confundindo-se por vezes com eles e com a sua simbologia (por exemplo, a utilização do
simbolismo do sagrado a fim de legitimar um poder)”.
157

de qualquer visão religiosa mais estrita, o Oriente seja principalmente uma alusão à
busca do “novo dia”, do futuro, do lugar onde o tempo está adiantado em relação ao
resto (que fica “para trás”). Se o Oriente alude ao amanhã, podemos relativizar também
qualquer relação direta da terra do Estrangeiro com o mito do Paraíso Perdido. Este,
como bem salientou Mircea Eliade 194, está em sintonia com o desejo de resgatar um
passado ideal; ou seja, remete-nos para uma origem distante e encerra uma nostalgia.
Este não parece ser o caso na peça (nem nas demais representações que estamos
analisando). Tal nostalgia seria melhor assimilada aos mitos das “origens primordiais”
(incluindo os das Idades de Ouro).
Como acabamos de ver, a obra Primeiro de Maio, de Pietro Gori, faz uma nítida
projeção para o futuro. Nela, o passado é quase sempre relacionado ao atraso e está
fadado a desaparecer. É claro que não devemos menosprezar a chamada “síntese
incessantemente renovada do novo e do antigo”, preconizada por muitos pensadores
anarquistas (primeiramente Proudhon). Na esteira de André Rezsler, referimo-nos a ela
no capítulo anterior, quando analisávamos a concepção de arte na imprensa anarquista
195
. Dimas Antônio de Souza, de maneira perspicaz, também fez menção a ela em sua
obra sobre o teatro anarquista196. É possível que essa “síntese” se encontre presente
também na peça de Pietro Gori. A única coisa que gostaríamos de ressaltar é que, em
Primeiro de Maio, os elementos que a compõem parece que não possuem o mesmo
peso. Na peça, a possível fusão entre futuro e passado resulta em imagens que
sancionam muito mais o primeiro dos termos, não o segundo. Em suma, na peça de
Pietro Gori, o futuro parece avançar sobre o passado. Este último não se reveste aqui de
nenhum traço idealizado que estimule qualquer nostalgia; pelo contrário.
De forma semelhante, chegamos a uma conclusão parecida com relação às
metáforas da luz. Se no discurso estritamente religioso as representações em torno da
iluminação revestem-se de um caráter místico, transcendente, aqui, pelo contrário, elas

194
Ver Eliade, Mircea. O Mito do Eterno Retorno. Lisboa, Edições 70, 2000; p.104. Eliade, quando se
refere à “renovação contínua do tempo”, afirma que o “passado não é mais do que a prefiguração do
futuro. Nenhum acontecimento é irreversível, nenhuma transformação é definitiva. De certo modo,
podemos até afirmar que no mundo não se produz nada de novo, pois tudo consiste na repetição dos
mesmos arquétipos primordiais”. Definitivamente, a peça não se afina por esse diapasão.
195
Ver Rezsler, André. Op. Cit. p, 22.
196
Ver em Antônio de Souza, Dimas. Op. Cit. p.62. “ Como vimos, tanto o novo homem anarquista
quanto a sua sociedade do futuro, mesclam, sem se contradizer, se nos colocarmos na perspectiva
antinômica desta ideologia, o pretérito e o futuro. Para os anarquistas, a revolução é ao mesmo tempo
uma realização passo a passo do desconhecido e a recriação de formas sociais que já existiram no passado
da humanidade”.
158

aparecem associadas à noção mais prosaica de “esclarecimento”. Este, por sua vez,
projeta-se tanto numa representação da “grande Idéia” (encarnada em Ida) como numa
concepção difusa de Razão 197. A luz esclarece, mas, por si só, não redime. A única
redenção possível, como veremos mais adiante, parte da ação, não da fé.
Além disso, precisamos salientar que, ao contrário de Dimas Antonio de Souza,
pretendemos, nesta análise, deixar um pouco de lado o enfoque “doutrinário”. Não que
ele seja “errado” (ou menos importante). Apenas queremos aqui enfatizar a valorização
que, em suas práticas culturais, os anarquistas faziam da “cultura popular”. Ou seja,
enquanto outros pesquisadores analisaram as obras anarquistas sob a ótica do
“apostolado” (a expressão foi utilizada pelo próprio autor), pretendemos aqui enfocar
essas mesmas obras pelo que elas apresentam de elementos “populares”. Tal escolha
não é uma simples arbitrariedade nossa. Pelo contrário, ela nos foi imposta pela própria
análise das fontes com as quais trabalhamos – dentre elas, a própria peça.
No entanto, é preciso ressaltar que nem de longe queremos afirmar que os ateus
e/ou agnósticos anarquistas rejeitavam os elementos da religiosidade popular. Pelo
contrário, eles não apenas se apropriavam desses elementos, como também os
valorizavam – de uma maneira específica, é claro.
Por isso, para entender melhor esse complexo processo de incorporação do
“popular” nas obras do teatro anarquista, é preciso despir o conceito de “cultura
popular” de toda a sua pretensa aura de “pureza” e “sublimação”198. Ora, se a “cultura
popular” não é “autêntica” nem “pura”, então o discurso religioso hegemônico passa
197
É importante lembrar que não poucas vezes os anarquistas que estudamos utilizam a idéia de “razão”
para se oporem ao presumido obscurantismo das religiões. No entanto, até mesmo o uso que os
anarquistas faziam do conceito de “razão” adquire um sentido diferenciado. Ver, a respeito da
racionalidade (ou da ausência dela) no discurso anarquista, Martin-Barbero, Jesús. Dos meios às
mediações – comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009; p. 43 Para o autor
citado, enquanto os marxistas recuperam “não poucos traços da racionalidade ilustrada”, os anarquistas,
pelo contrário, manifestam “certos traços da concepção romântica num projeto e em algumas práticas
revolucionárias”. Em sua confiança no “instinto de justiça”, os anarquistas conferem à “razão” um sentido
muito menos rígido do que às vezes se imagina. Outra questão que devemos salientar é que, ao contrário
do que ocorre em um discurso racionalista mais rigoroso, na peça Primeiro de Maio (assim como em
muitas idéias-imagens veiculadas pela imprensa anarquista) não se verifica uma oposição clara entre
“real” e “imaginário”. Pelo contrário, em vários momentos as duas instâncias se confundem. O país
imaginário do Estrangeiro, por exemplo, é frequentemente tratado como “realidade”. O próprio sonho de
Ida, como veremos mais adiante, em muito se parece com as descrições “reais” que o Estrangeiro faz de
seu país e do caminho que leva a ele. Portanto, o sentido que a peça de Pietro Gori (e, por extensão,
muitos anarquistas de seu tempo) confere à noção difusa de “razão” não deve ser encerrado no interior de
um cartesianismo estrito e rígido.
198
Ver, a respeito da noção de cultura popular com a qual lidamos, capítulo intitulado Notas Sobre a
Desconstrução do “Popular” em Hall, Stuart. Da Diáspora – Identidades e Mediações Culturais. Belo
Horizonte, Editora UFMG, 2009.
159

por ela revestindo-se de novos significados. O que precisamos aqui salientar é que, em
suas práticas culturais, os anarquistas incorporaram os elementos religiosos pelo que
eles apresentam de matrizes “populares”. É por meio de sua dimensão “popular” que o
imaginário religioso é assimilado nas práticas culturais libertárias, configurando-se
novamente para adquirir um sentido próprio. A incorporação de certas crenças
milenaristas que passam a povoar o imaginário anarquista é um forte indício desse
movimento de assimilação e reconfiguração da tradição religiosa popular.
Desnecessário dizer, nossa peça (assim como inúmeras fontes com as quais lidamos) é
repleta de idéias-imagens que provêm dessa matriz popular. Cabe a nós identificar os
sentidos próprios que os elementos incorporados adquirem no imaginário dos militantes
com os quais lidamos.

3.2.1. A primavera conflagrada e o cenário campestre


Voltemos à peça. Quando Ida conversava com seu pai, notamos já algumas
alusões aos ciclos da Natureza. Por exemplo, enquanto a jovem camponesa seria a “flor
que nasce”, seu velho pai seria a “árvore que tomba”. É claro que a menção aos ciclos
naturais no trecho citado é uma referência à primavera; esta, como se sabe, no
hemisfério norte, apresenta seus sinais mais evidentes no mês de maio. As metáforas
primaveris são uma constante em toda a peça. Nelas embrenhamo-nos em um complexo
campo simbólico, repleto de imagens associadas aos ciclos da Natureza e aos eflúvios
trazidos por aquela estação. Tais imagens, simbolicamente, também anunciam o
advento de um “mundo novo”, liberto das amarras do passado.
Se, por um lado, na peça, a exuberância de representações em torno da
primavera é evidente, por outro, nos artigos da imprensa anarquista, essas
representações são muito mais escassas. As razões desse relativo desprezo pelas
imagens primaveris na imprensa nacional são explicitadas em um divertido texto
anticlerical publicado em A Lanterna, no dia 2 de julho de 1907. Logo no início, o autor
(M. Doriz) assinala a inviabilidade de associar, “aqui pelas zonas tropicais”, o mês de
maio aos eflúvios primaveris. Desnecessário dizer: aqui, em terras tropicais, estamos
nesse mês em pleno outono.
Se na imprensa anarquista do Brasil as referências à primavera são escassas,
como vimos, em Primeiro de Maio (peça composta, devemos lembrar, por um italiano
oriundo das “zonas temperadas”) elas são abundantes. Já no prólogo, quando o ator
160

aponta para o fundo do cenário, composto por representações de um campo e de um


mar, ele declama uma estrofe carregada de imagens primaveris. Primando sempre pelo
didatismo, o ator descreve o cenário apresentando os “verdes prados sorridentes” e os
“frescos jardins florescentes”. A presença dessas representações aqui não é fortuita - a
lírica peça é permeada, do início ao fim, por metáforas e símbolos repletos de
significados. Logo na seqüência, ainda na mesma estrofe, o ator prenuncia a chegada da
liberdade. Naquele “primeiro de maio venturoso, o mundo obreiro” a vê sorrir “por vez
primeira – qual nova bandeira”. Identificamos aqui uma imbricação entre os eflúvios
primaveris e as imagens que anunciam o advento de um “novo mundo” livre e justo –
imbricação recorrente na peça. A primavera que faz germinar as plantas traz também a
semente da “renovação” na sociedade.
Além de associar os eflúvios da primavera ao advento da liberdade, a peça
(ainda em sua cena introdutória) deixa claro que a Natureza é generosa, mas, por si só,
não exatamente pródiga. Ela pouco oferece sem o esforço que envolve o trabalho
humano. No poema que constitui o prólogo, já em sua penúltima estrofe, o campo
“salpicado de flores e verdura” é, na verdade, fruto dos suores de “ativos produtores”;
são as “hostes de oprimidos” que o cultivam.
Portanto, não nos iludamos com a exaltação da Natureza em Primeiro de Maio.
As alusões a ela servem aqui como um mero pretexto para defender outros ideais mais
“elevados”: a valorização do trabalho e, por extensão, a criação de um mundo melhor. O
cenário campestre e o tom bucólico da obra nem de longe podem ser associados ao
locus amoenus do Arcadismo (o Jovem não é Dirceu e Ida não é Marília!). Tivemos já a
oportunidade de conhecer, no pequeno resumo acima, a descrição que Ida faz dos
horrores da lida no arrozal. Além disso, em toda a peça, são constantes as menções à
exploração e às injustiças que aquele velho mundo teima em perpetuar. Ora, se esse
mundo, fadado a perecer, não é de fato nenhum paraíso, o que dizer do país distante do
Estrangeiro? Parece-nos claro que ele se constitui em uma utopia. No entanto, essa
simples constatação não nos basta. A questão sobre a qual devemos nos debruçar é
outra: que tipo de utopia seria esta? Tal questão, mais complexa do que se imagina, nós
discutiremos mais adiante. Voltemos à primavera.
Podemos dizer que as metáforas primaveris da peça condensam-se no hino
Primeiro de Maio, entoado logo após o prólogo. Composto também por Pietro Gori, em
1892 - quando o autor esteve detido no cárcere de San Vittore (em Milão) -, ele sintetiza
161

o argumento da “renovação”, associado aos sinais da primavera e aos ciclos da


Natureza. Se o hino condensa os significados primaveris do 1º. de Maio, pensamos que,
por ora, ele deva ser o nosso eixo central. Isso não descarta digressões pelos episódios
da peça e pelos artigos da imprensa que também manifestem as imagens simbólicas
daquela estação.
Como já dissemos, o hino de Pietro Gori mescla imagens da primavera com
sentimentos de esperança de um “porvir melhor”. No entanto, do início ao fim,
permeiam-no freqüentes incitações à luta e à abstenção do trabalho. Vejamo-no mais de
perto, começando pelos seus dois primeiros versos.

Vem ó Maio, saúdam-te os povos,


Em ti colhem viril confiança;

Após invocar o mês de maio, os dois primeiros versos expressam uma imagem
agrícola mesclada pela afirmação de uma vigorosa determinação. Para além do ideal
internacionalista199, depreendido da menção aos “povos” que saúdam aquele mês,
pensamos que a representação da “colheita” sugere aqui algumas reflexões. Os mesmos
povos que saúdam aquele mês, “colhem” nele uma “viril confiança”. “Colher
confiança” mistura aqui significados diversos: a colheita remete-nos ao que proporciona
a estação primaveril (alusão ao ciclo natural); por outro lado, a noção de confiança
sugere-nos uma disposição (mesmo que ainda vaga) para a luta; esta, no imaginário
anarquista, está intimamente relacionada com o significado de protesto atribuído à data.
Além do mais, devemos lembrar que só se colhe aquilo que se planta. E as sementes,
aqui, podem tanto ser as que germinam na terra quanto aquelas que florescem na
cabeça (os germes do grande Ideal que deve ser propagado pelos quatro cantos do
mundo). Sendo assim, a faina do campo, realizada pelas “hostes de oprimidos”,
imbrica-se com a idéia de vigor e determinação – assim como com a noção de
propagação do Ideal que há de redimir a todos.

199
Sobre o sentimento internacionalista vinculado ao 1º. de Maio, ver Hobsbawm, Eric J. Mundos do
Trabalho. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, pp. 111- 112. O autor insinua que parte da força que o 1º. de
Maio possui talvez esteja ligada ao sentimento internacionalista. Afinal, a efeméride foi planejada para
ser “uma única manifestação simultânea internacional”. Na esteira de Hobsbawm, ressaltamos ainda que
as “reivindicações públicas de raízes populares impuseram aos partidos e à Internacional a repetição
anual” da comemoração. Mais adiante voltaremos ao tema da transformação do 1º. de Maio em data
comemorativa da classe trabalhadora.
162

Outra imagem primaveril desponta no terceiro verso da primeira estrofe, quando


o autor clama ao mês de maio para que ele traga “cerúlea bonança”. Aqui, a imagem
primaveril é diretamente relacionada com a esperança de tempos melhores. O mesmo
ocorre no quarto verso. Nele, o autor pede para que o mesmo mês traga, a todos, “dias
novos”. Como dissemos acima, as imagens de um futuro melhor e de um “mundo novo”
são recorrentes, tanto na peça de Pietro Gori quanto nos inúmeros artigos da imprensa
anarquista referentes à data. Cabe aqui apenas reforçar a nítida associação entre
primavera e “renovação”.
Para além do trecho supracitado - em que Ida afirma a seu pai que ele é a “árvore
que tomba” e ela a “flor que nasce” -, tal associação manifesta-se de forma clara em
pelo menos mais dois episódios da peça. Primeiramente, devemos mencionar, já no
início da cena 1, o momento em que o Jovem pede para a sua mãe não amaldiçoar os
“modernos tempos”. Estes, segundo o bom rapaz, “fizeram germinar a semente e
frutificar as searas”, dando margem à ciência e “justificando a história da evolução
humana”. Nesta passagem, não é apenas a relação entre os novos tempos e a primavera
que deve ser ressaltada. Para além dela, aparece também uma outra associação: aquela
entre os “modernos tempos” e o desenvolvimento da ciência. Digna de nota é também a
referência à evolução humana 200.
O segundo momento em que as metáforas da primavera imbricam-se com as
imagens de um “novo tempo” encontra-se no final da cena 6. É lá que Ida, em um de
seus rompantes recitativos, tenta explicar ao seu velho pai as razões pelas quais o 1º. de
Maio é tão importante para os trabalhadores. Em determinado momento da discussão, a
jovem camponesa relaciona as imagens da primavera com aquelas vinculadas à idéia de
“renovação”. Após dizer que, naquela data, os trabalhadores “compreenderam que eles
são o tudo nesta sociedade meramente econômica”, Ida afirma que a efeméride significa

200
Aqui, como em vários outros momentos em nossa pesquisa, devemos assinalar que a apropriação de
um conceito elaborado algures sofre – em seu processo de assimilação - uma transformação em seu
significado original. Ou seja, a concepção de evolucionismo no interior do pensamento anarquista adquire
um sentido por vezes radicalmente diferente daquele elaborado por Darwin (ou pelos positivistas que
também faziam uso da expressão). A teoria evolutiva elaborada por Kropotkin – para ficarmos no
exemplo mais emblemático – leva em consideração um fator importante que o naturalista inglês
desprezou em seus estudos: a colaboração e aquilo que Kropotkin e outros anarquistas chamaram de
“ajuda mútua”. Para além da luta pela sobrevivência, o anarquista russo destacou o papel da solidariedade
como fundamental na adaptação dos seres vivos (incluindo o próprio Homem) à Natureza. Para a noção
de “evolução” no pensamento do anarquista russo, ver Kropotkin, Peter; Anarchism – A Collection of
Revolutionary Writings. Mineola - New York, Dover Publications, 2002; pp. 53/54. Sobre a noção de
“ajuda mútua” no autor citado, ver Tragtenberg, Maurício (sel.); Kropotkin – Textos Escolhidos. Porto
Alegre, L&PM, 1987; pp. 143/170.
163

também que “Maio, após o inverno sem o fogo e sem pão, vem enflorar as fontes [sic]
banhadas de suor”. Poderíamos dizer que, neste trecho, mais uma vez, os eflúvios
primaveris trazem alento àqueles que trabalham. Se o inverno, fincado no mundo velho
e decadente, trouxe frio e trouxe fome, a benfazeja primavera, por sua vez, traz consigo
a possibilidade de um “novo mundo”. Em tal significado conferido à data, Ida ressalta a
esperança de um “porvir melhor”.
Identificamos ainda novos ares de esperança e promessas de um futuro melhor
na segunda estrofe do hino de Pietro Gori. Aqui, como poderemos perceber, a ênfase
recai sobre a idéia de frutificação. Analisemos mais de perto seus versos.

Vibre o hino de esperanças aladas


Ao grão verde que o fruto matura,
À campina onde a messe futura,
Já flori sobre as negras queimadas.

Mais uma vez, parece evidente a associação do ideal internacionalista


(“esperanças aladas”, que atravessam fronteiras) com as metáforas primaveris. Alude-se
aqui a um campo já semeado, esperando apenas a maturação. Já nos dois últimos versos
temos a mesma metáfora do campo semeado vinculada a uma vaga sugestão
revolucionária. Novamente, é preciso lembrar que, se a messe futura já flori, é porque as
sementes já foram lançadas ao solo. Poderíamos pensar em que consistem essas
sementes e quem foram os “heróis” que as lançaram ao solo. Depreendemos outra
associação nesses dois últimos versos: a “messe futura” flori sobre as “negras
queimadas”. Na lógica do hino, a aurora de um “novo tempo” deve surgir das ruínas do
velho. Já tivemos a oportunidade de analisar parte da dualidade passado/futuro que
emerge em alguns momentos na peça. Cabe agora apenas notar que, assim como nas
duas alegorias acima analisadas, a aurora do “novo tempo” sucede algum cataclismo
revolucionário que podemos subentender da idéia de “negras queimadas”. Ou seja, para
o campo florir, é preciso incendiar o que nele havia anteriormente.
Sendo assim, fica difícil afirmar que, nessa obra de Pietro Gori (e o hino é parte
constituinte dela), “o `velho mundo´ [...] não precisa ser combatido frontalmente” 201.

201
A respeito de tal visão sobre a obra Primeiro de Maio, ver Alves de Lima, Mariângela e Thereza
Vargas, Maria. Op. Cit.; p.58. “Nesse trabalho [Primeiro de Maio] o `velho mundo´ dos senhores da terra
e da burguesia industrial não precisa ser combatido frontalmente. Basta um movimento no sentido de
164

Não obstante a atmosfera idílica, pensamos que em Primeiro de Maio o ideal


revolucionário, apesar de não explicitado, insinua-se freqüentemente. Não é apenas no
hino que ele se manifesta. Em outros momentos importantes, como já mencionamos
anteriormente, a combatividade é estimulada por Ida, pelo Estrangeiro e mesmo pelo
Jovem enfermo. Além disso, as próprias descrições que o Estrangeiro (e depois também
a ardente Ida) faz da árdua viagem ao seu país implicam uma disposição para a luta que
deve ser constantemente estimulada. O caminho é difícil, cheio de ameaças; tão difícil
que o debilitado Jovem não pode segui-lo! Resumindo: atmosfera idílica, sim; “paz e
amor”, não! Ou melhor, buscando o sentido implícito de algumas idéias-imagens
veiculadas pelos círculos ácratas: “Paz entre nós, guerra aos senhores”.
Encontramos outra identificação semelhante entre combatividade e “renovação”
em um poema de Celso Mendes, publicado em A Plebe no dia 30 de abril de
1921.Vejamo-no de perto.

Maio. Mês da Esperança. As alvoradas


São lâminas azuis, ensangüentadas,
De imensas guilhotinas.

A terra canta. O céu se arqueia. Tudo


É forte, luminoso, ardente, agudo,
Nos céus e nas campinas.

Maio do Amor, do Ódio e da Vingança,


Maio de Redenção e da Esperança.
Tudo germina e cria.

Que o teu seio materno docemente


Fecunde e frutifique esta semente
De brasas: a Anarquia!

Composto por quatro pequenas estrofes, o poema, não por acaso intitulado 1º.
de Maio, mistura imagens de esperança e rebeldia. Nele, as alvoradas são “lâminas
azuis ensangüentadas”, o Amor mistura-se com o “Ódio” e a “Vingança”. Nesse poema,
em maio, “tudo germina e cria”; no entanto, a semente que fecunda e frutifica é “de

inaugurar uma nova sociedade. Há no velho mundo uma podridão natural que torna próxima a sua
extinção”.
165

brasas”: chama-se “Anarquia”. Aqui, de forma inequívoca, a esperança renovada pelo


maio primaveril imbrica-se na idéia de revolta. Se na peça o espírito revolucionário
deixa-se entrever, no poema de Celso Mendes ele se manifesta de forma explícita. Nele,
não há espaço para dúvidas: a renovação só se faz por meio da conflagração!
Não abandonemos a imprensa anarquista por enquanto. Nela, são recorrentes os
textos rememorando os acontecimentos que culminaram na execução dos Mártires de
Chicago. Dentre esses textos, destaca-se aquele extenso artigo publicado no periódico
carioca A Greve do dia 1º. de maio de 1903. Nesse já citado texto, o autor (Elysio de
Carvalho), em parte utilizando um excerto de um texto de Neno Vasco, refere-se
àqueles trágicos episódios como sendo uma “flor de revolta e de sentimento, rubra e
viva”. Mais adiante, Elysio traça as linhas gerais que configuram a idéia de “sangue
fecundo”. Aqui, o sangue dos combativos trabalhadores de Chicago seria transformado
em “excelente adubo para as abundantes e gloriosas colheitas”. 202 Para finalizar o trecho
dedicado aos acontecimentos em torno da execução dos Mártires, o autor afirma
terminantemente: “A semente foi lançada e ela fecundará a Terra”. “Flor de revolta”,
“semente”, “sangue fecundo”... Apesar das representações primaveris não serem aqui
mencionadas diretamente, é difícil não ver nessas imagens a idéia de “fecundidade”
(relacionada sempre à noção de renovação que a primavera carrega consigo).
Essa noção de fertilidade aparece claramente nos dois primeiros versos da quarta
estrofe do hino que serve de eixo central na presente análise .

Levantemos as mãos doloridas


E formemos um feixe fecundo;

Aqui, a alusão à fecundidade imbrica-se com a noção de união. Na estrofe


seguinte, ela sugere uma ligeira incitação à combatividade. Vejamo-na de perto.

202
Não são poucos os artigos da imprensa anarquista que trabalham com a metáfora do sangue; esta
sempre aparece relacionada com os exemplos de martírio que as histórias dos combativos trabalhadores
manifestam. Às vezes, a imagem do sangue associa-se com as idéias de “purificação” e “batismo”. Isso
ocorre, por exemplo, em O Vehiculo (edição de 8 de novembro de 1906). Ou então, o sangue é
relacionado com a idéia de “santificação”, como em um artigo de A Greve publicado em 15 de maio de
1903. A metáfora do “sangue fecundo”, por sua vez, pode ser identificada não apenas no artigo que
analisamos agora (A Greve de 1º. de maio de 1903), como também na edição de 8 de junho de 1915 do
periódico carioca A Voz do Trabalhador.Em um outro texto sobre as comemorações em torno do 1º. de
Maio, publicado em A Lucta Proletaria do dia 1º. de maio de 1908, o autor refere-se à data como estando
sob o signo de “um mar vermelho de sangue”.
166

Sofrimentos, ideais, juventudes,


Primaveras de túrbido arcano,
Verde Maio do gênero humano,
Dae coragem aos ânimos rudes!

Devemos ressaltar nessa estrofe o sentido sombrio e misterioso que a primavera


adquire – assim como a associação do “sofrimento” com os “ideais” e a noção de
“juventude”. O imaginário anarquista em torno do 1º. de Maio é repleto de imagens
contraditórias que encerram quase sempre uma nítida oposição de idéias e sentimentos.
No trecho acima transcrito, podemos identificar dois elementos que nos chamam a
atenção: primeiro, a identificação dos ciclos de renovação naturais com o impulso
transformador do ser humano; segundo, a confiança no espírito de mudança que maio
suscita. Se na Natureza tudo floresce e frutifica, no “gênero humano” aquele mês deve
ensejar o impulso à indispensável renovação social. Verifica-se o mesmo na última
estrofe do hino.

Enflorai ao rebelde caído,


Com os olhos, fixando o nascente,
Ao obreiro que luta fremente,
Ao poeta, gentil, esvaído.

O “rebelde caído” e o “obreiro que luta fremente” encerram ainda uma outra
idéia que, assim como a de luta, une-se à metáfora primaveril da “renovação”: a noção
de “sacrifício”. Esta, como vimos acima, transparece nas descrições que Ida e o
Estrangeiro fazem do caminho que leva ao “país ditoso”. Em outra passagem da peça a
renovação ensejada pelo mês de maio também aparece entrelaçada com a idéia de
“sacrifício”. Trata-se do episódio em que o enfermo Jovem, na última cena, perece
tragicamente. Nesta passagem devemos atentar para o que diz o Jovem antes de morrer.
Para ele, “o dia da reparação, virá [...] ante o florescimento deste Maio que abre as rosas
que ornarão meu túmulo ”. Ou seja, é preciso que o amável Jovem morra para que o
“novo mundo” apareça. “Renovação” e “sacrifício”, mais uma vez, aparecem ligados de
forma intricada. Ou melhor, o segundo transmuta-se na primeira.
Como ressaltamos acima, no hino de Pietro Gori – assim como nos artigos e na
peça em geral – a conquista de um “porvir melhor” não ocorrerá de forma “natural” (ou,
como sempre se atribui ao anarquismo, de modo “espontâneo”). Parece-nos evidente
167

que a “renovação” ensejada pelo maio “ridente” (mas, por vezes, também “túrbido”) só
será efetivada por meio de um concentrado esforço e de uma luta indispensável. Cabe
àquele mês estimular a conflagração final que, das ruínas do velho mundo, fará brotar as
sementes (já plantadas) de um mundo melhor.

3.3. O país do Estrangeiro: uma Utopia de tipo diferente


Articuladas com as metáforas primaveris, não foram poucas as mensagens de
esperança que Primeiro de Maio transmitiu. Já nos artigos da imprensa anarquista,
como afirmamos anteriormente, as metáforas da primavera são menos prolíficas. Isso
porque, como vimos, os periódicos que analisamos foram todos publicados aqui, nas
“zonas tropicais”. Se as imagens primaveris são escassas naquela imprensa, o mesmo
não acontece com as mensagens de esperança. Tivemos já a oportunidade de entrever
algumas delas em poemas, figuras e artigos analisados acima. Ligadas sempre à idéia
difusa de um “porvir melhor”, as mensagens de esperança na imprensa anarquista
associam-se também com a noção de revolução203.
Mas, afinal: o que seria, para um anarquista de então, o ideal triunfante tão
almejado? Um bom indício desse ideal nós podemos detectar na análise do país de onde
vem o intrépido Estrangeiro da peça. Já tivemos a oportunidade de conhecer um pouco
das características desse país. Mas, para que possamos entender melhor essa terra,
transcreveremos a descrição feita sobre ela pelo próprio Estrangeiro.
Já na cena 2, quando Ida pergunta ao peregrino (que acabara de chegar) como é
o seu país, ele, transportado “pela evocação das lembranças”, afirma:

É ali... o país feliz... “verso la parte donde si leva il sole...” A terra é de todos como o ar e a luz.
Os homens são irmãos... o trabalho honra a quem o executa e só os inválidos ou as crianças são
os que não cultivam esse belo esporte... o ódio não existe; tudo é paz e amor... a única lei: a
Liberdade... o único laço, o Amor... Para todos o bem-estar, para todos a ciência. A mulher não é
a escrava, mas a companheira reconfortadora do homem. A miséria é desconhecida... A
igualdade econômica e social para todos... Não há exércitos; as guerras são desconhecidas; o

203
A respeito das associações entre as mensagens de esperança e a projeção da Revolução, ver ainda os
artigos sobre 1º. de Maio publicados em A Greve (01.05.1903), La Propaganda Libertaria (01.05.1914) e
A Plebe (30.04.1921). No primeiro artigo, o autor (Elysio de Carvalho) faz um prognóstico bem
alvissareiro: para ele, “o triunfo não pode estar longe”. Para o autor do segundo artigo citado, o 1º. de
Maio faria acordar nos corações “um sentimento forte”, que impeliria o povo a tomar as praças públicas;
promoveria também sonhos “com novos arrebores [sic] iluminados de esperanças”. Já o autor do terceiro
artigo mencionado afirma que, não obstante todas as repressões desencadeadas pelo perverso sistema,
nada impedirá o “advento da revolução que deverá em breve transformar a face da terra”
168

homem é livre para pensar e agir; as crianças são educadas sem dogmas: racionalmente... os
velhos descansam no conforto do lar, rodeados pela juventude que alegremente entoa um hino de
paz e de bondade. Este venturoso país, está ali... ali, “verso la parte donde si leva il sole”.

Em toda a peça, esta é praticamente a única descrição que o “misterioso


peregrino” faz de seu país. E o que é importante frisar é que apenas ela já basta para
encantar todos (ou quase todos). Um outro episódio que, por via oblíqua, faz menção
àquele país desenrola-se quando a ardente Ida descreve ao Jovem o sonho que ela tivera.
No entanto, no relato que Ida faz ao noivo dessa visão onírica, ela apenas repete, em
parte, a descrição que o Estrangeiro já fizera. Vejamos mais de perto a descrição
daquele sonho.

Ida (extática, ao evocar a beleza de seu sonho) – A cidade misteriosa... o país feliz... A terra na
qual o trabalho é brasão de nobreza. Em cujo seio o ócio não existe... A única lei é a liberdade...
o único laço, o amor. Para todos o bem-estar... para todos a ciência. A mulher não é escrava, mas
a companheira do homem.

Como podemos notar, em sua descrição do “venturoso país” com o qual


sonhara, Ida contenta-se em apresentar, de forma breve e resumida, alguns elementos já
presentes na descrição do Estrangeiro. Nada fundamentalmente diferente aparece em
sua visão.
Vimos já que o país imaginário do Estrangeiro é de fato uma utopia. No entanto,
que tipo de utopia seria essa? Podemos compará-la de forma direta com as demais
utopias? Até que ponto tais comparações são (ou não) pertinentes? As questões que
colocamos são, de fato, mais complicadas do que podemos supor. Para tentar solucioná-
las, faremos uma breve genealogia dos modelos utópicos estruturadores. Em seguida,
verificaremos até que ponto a terra do misterioso Estrangeiro aproxima-se (ou não)
desses modelos. Para nos ajudar nessa difícil empreitada, recorreremos à análise feita
por Bronislaw Baczko em um artigo intitulado (não por acaso) Utopia204.
O autor inicia sua abordagem debruçando-se sobre a obra homônima de Thomas
Morus. Para Baczko, a Utopia do humanista inglês esconde “uma grande complexidade
por detrás de uma aparente simplicidade”. Melhor dizendo, a obra de Thomas Morus
“define um campo de multiplicidade de sentidos, prestando-se assim a leituras

204
Ver Baczko, Bronismlaw; Utopia. In.: Romano, Ruggiero (org.); Op. Cit.; pp.333-396.
169

igualmente múltiplas”205. Sem embargo - e de forma categórica -, o mesmo podemos


dizer sobre a peça de Pietro Gori e sobre o país de onde vem o Estrangeiro.
Para Baczko, a obra de Thomas Morus define o paradigma que influenciou
durante séculos as produções literárias do gênero “utópico”. Entre os séculos XVI e
XVIII, surgiram inúmeros romances e narrativas que, em linhas gerais, seguiram o
modelo estruturador da Utopia do humanista inglês. São histórias de viagens
imaginárias não destituídas de aventuras e emoções. Nelas, o corte espacial é recorrente:
o lugar imaginário fica sempre algures, em uma terra distante daquela de onde vem o
narrador. O episódio do desembarque naquele lugar segue também um modelo
relativamente rígido: os aventureiros, em contato com a população nativa, enfrentam, no
início, grandes dificuldades de comunicação. Por fim, uma característica central nessas
obras “utópicas” refere-se às narrativas em torno da organização da “Cidade Feliz”
imaginária. Praticamente toda a literatura que segue o “paradigma utópico” faz alusão a
um “projeto de legislação ideal”. Nas obras do gênero, o papel de organizador da
sociedade cabe sempre ao “grande legislador [...], cuja palavra e atos fundam uma
história perfeitamente racional” 206. É justamente isso o que ocorre na Utopia de Thomas
Morus. Portanto, esqueçamos por enquanto as obras a jusante; voltemo-nos à fonte, ou
seja, à obra fundadora do humanista inglês.
Esqueçamos também os inúmeros pormenores que só interessam àqueles
preocupados em entender a Utopia, de Morus, em sua completude. Aqui, o que nos
atrai, principalmente, são as descrições que o personagem Rafael Hitlodeu 207 faz
daquela ilha imaginária – sobretudo as referências a sua organização social. Antes de
mais nada, nos relatos de Hitlodeu, precisamos lembrar do papel desempenhado por
Utopus, fundador e primeiro legislador de Utopia. Foi ele que, num passado já remoto,
conquistou a ilha e conferiu a sua população a condição elevada em que ela se encontra.
Foi Utopus também quem projetou as cidades edificadas a partir de então naquela ilha;
cidades que, por sinal, seguiam todas um mesmo modelo. Elas eram tão iguais que, para

205
Ibid; p. 342.
206
Ibid.; p.357.
207
Na obra de Thomas Morus, Rafael Hitlodeu é um marinheiro experiente com quem o narrador teria
conversado em Antuérpia. Tal personagem teria viajado o mundo todo. Ele pertence àquela geração de
navegadores que constituíram o que chamamos de Expansão Marítima; acompanhara Américo Vespúcio
em suas viagens pelo Novo Mundo e conhecera inúmeros lugares exóticos e recônditos. Mas, além de
marinheiro, Hitlodeu era também uma espécie de filósofo letrado que conhecia muito bem o latim e o
grego. Além disso, gostava de refletir sobre os problemas humanos em geral. Sem hesitação, podemos
considerá-lo um típico humanista do século XVI.
170

Hitlodeu, quem conhece uma conhece todas. Iguais também parecem ser os hábitos
daqueles que vivem dentro delas. Todos os dias, em horas fixas, os toques de trombetas
anunciam as refeições coletivas. Os utopianos até podem comer em casa, mas
sacrificam esse direito em favor do prazer de saborear os deliciosos repastos junto aos
demais citadinos.
Os habitantes das cidades vivem em casas que não lhes pertencem; aliás, de dez
em dez anos, é realizado um sistema de sorteio e os moradores mudam de uma casa para
outra (expediente que impede as famílias de enraizarem-se). As cidades de Utopia não
crescem desordenadamente. Podemos dizer, inclusive, que elas nem sequer conseguem
crescer. Isso porque cada uma delas é formada por 6 mil famílias. Como cada família
pode ter no mínimo 10 e no máximo 16 adultos, cada cidade pode apresentar entre 60
mil e 96 mil adultos. Segundo Baczko, o “governo vela cuidadosamente pelo equilíbrio
demográfico”208 de Utopia. Se uma cidade apresentar um número excedente de
habitantes, alguns utopianos podem ser deslocados.
Não é só no interior das cidades (ou entre elas) que se verifica um implacável
sistema de rotação. Este também ocorre entre os habitantes das cidades e os do campo.
Periodicamente, os moradores das primeiras eram designados para viver no segundo e
vice-versa. Ora, se os habitantes de Utopia não podiam se fixar permanentemente em
nenhum lugar, percebemos então que, na ilha imaginária, não existe propriedade privada
- conseqüentemente, não se verificam nela grandes desigualdades sociais. Sendo assim,
quem cuida da gestão pública em Utopia? No topo da administração existe um príncipe.
Este não desfruta de um poder absoluto; pelo contrário, ele se submete a um Senado. Na
base desse sistema de administração, as famílias encontram-se divididas em grupos de
trinta; cada um desses grupos elege anualmente um magistrado. O conjunto de
magistrados, por sua vez, escolhe o governador. Portanto, temos um modelo de
administração que, em seus aspectos formais, assemelha-se muito com o de uma
democracia parlamentar atual; ou, melhor dizendo, na definição do próprio Hitlodeu, tal
modelo seria tipicamente republicano (qualquer possível alusão à República, de Platão,
por certo não seria mera coincidência!).
No entanto, não devemos nos entusiasmar demasiadamente com as aparentes
liberalidades de Utopia. Na verdade, como afirma Baczko, nela a “vida econômica,
assim como a social, são rigorosamente ordenadas”. As roupas, por exemplo, são iguais

208
Baczko, Bronislaw. Op. Cit.; p.339.
171

para todos os habitantes. Estes, apesar de trabalharem apenas seis horas por dia, estão
proibidos de viver às custas dos outros: “A ociosidade foi banida da Utopia” 209. Como
assim? Todo mundo trabalha da mesma forma e na mesma quantidade? Não, ainda
estamos longe das ideologias socialistas do século XIX - Thomas Morus é um
humanista do século XVI, não um militante de esquerda. Na sociedade por ele
imaginada, aqueles que possuem talentos excepcionais devem dedicar-se
exclusivamente aos estudos. Além disso, existe servidão na ilha imaginária! Os servos
(estrangeiros e utopianos culpados de ignomínia) andam inclusive acorrentados. Aliás, a
própria liberdade de locomoção é restrita em Utopia. Nela, aquilo que entendemos por
“direito de ir e vir” está condicionado a uma autorização prévia das autoridades. Quem
desrespeitar essa lei será punido com a servidão. Cá entre nós: tal modelo de
organização encantaria os governantes de hoje em dia, não é mesmo? Esqueçamo-nos,
no entanto, daqueles que não são dignos de memória. Voltemos ao que interessa no
momento: a obra de Thomas Morus.
Muito já se disse a respeito do caráter autoritário dos modelos utópicos. De fato,
baseando-nos no exemplo fornecido por Thomas Morus (criador, como vimos, do
“paradigma utópico”), as expectativas em torno do que entendemos hoje por “liberdade”
não são lá muito alvissareiras. No entanto, parece-nos que, com o passar do tempo (e
por influência mesmo da obra do humanista inglês), o discurso utópico conquistou uma
notável autonomia diante das narrativas literárias. A impressão que fica é a de que
Thomas Morus, mesmo sem talvez o desejar, encorajou as gerações seguintes a criar,
no plano narrativo, outros modelos utópicos que podem ou não estar de acordo com
aquele de sua ilha imaginária.
Analisemos de perto o que diz Bronislaw Baczko a respeito da autonomia do
discurso utópico.

[...] Pela força da imitação, as narrativas utópicas multiplicam-se e constituem por si sós
uma longa série. Contudo, o discurso utópico não fica de modo algum preso ao modelo narrativo
inventado por Morus. A utopia, enquanto representação da alteração social, da Cidade Nova
situada num algures imaginário, depressa se revela multiforme no plano discursivo. [...] A utopia
mantém, pois, relações múltiplas e complexas com as idéias filosóficas, as letras, os movimentos
sociais, as correntes ideológicas, o simbolismo e o imaginário coletivos. As fronteiras das
utopias tornam-se tanto mais móveis quanto mais abarcam a dinâmica social e cultural.

209
Ibid.; p. 338.
172

Oferecem estruturas de acolhimento às esperanças coletivas em busca de uma idéia moral e


social, intervindo assim como agente ativo que contribui para a cristalização de sonhos confusos.
As representações da Cidade Nova tornam-se deste modo um dos lugares, por vezes o lugar
privilegiado, onde se exerce a imaginação social e onde são acolhidos, elaborados e produzidos
os sonhos sociais.

Ou seja, parece-nos evidente que o discurso utópico não se reduz ao modelo


instituído por Thomas Morus. Aliás, poderíamos mesmo afirmar que tal discurso não se
reduz de forma mecânica (ou por força natural de derivação) a nenhum modelo rígido e
previamente definido. É lógico que os padrões da narrativa utópica estruturam os
confusos imaginários sociais, dando a eles uma forma discernível. No entanto, em suas
complexas relações com tais imaginários, as estruturas narrativas não definem
esquematicamente os conteúdos das representações coletivas. Tais conteúdos possuem
vida própria; assumem características específicas que dependem, sobretudo, da
dinâmica social de sua época – assim como dos princípios e valores com os quais eles
se relacionam. Se, no interior da narrativa utópica, tais conteúdos adquirem uma forma
definida, nem por isso eles se submetem irrestritamente ao rigor estrutural do gênero
narrativo. Resumindo, podemos dizer que a Utopia de Thomas Morus definiu um
padrão literário, mas nem de longe fixou um modelo utópico monolítico. Parece mesmo
que a obra do humanista inglês abriu espaço para uma infinidade de exercícios lúdicos
que se sucederam (e ainda se sucedem) no interior do “paradigma utópico” (ou mesmo
em oposição a ele) e da literatura em geral.
Portanto, não devemos nos apegar demais ao modelo social instituído por
Thomas Morus (como se ele fosse o único possível). Neste caso, reduziríamos a enorme
complexidade do gênero utópico a um padrão monolítico de projeções com um fundo
eminentemente autoritário. Nem por isso devemos sustentar a tese oposta, segundo a
qual todas as utopias encerram a promessa de um mundo livre de opressões e misérias.
É claro que a ilha imaginária de Thomas Morus (assim como várias outras construções
utópicas que lhe seguiram) está bem distante de ser um modelo libertário de igualdade e
liberdade. Nem mesmo uma sociedade democrática e liberal ela parece apresentar. É
lógico que, nos relatos feitos por Hitlodeu, toda a rigidez da organização de Utopia é
justificada pelo compromisso com a preservação da paz e a manutenção da felicidade
geral de seus habitantes. Estes, em momento algum parecem insatisfeitos: em Utopia,
praticamente não há discórdias; a harmonia entre os cidadãos reina quase plenamente.
173

Enfim, se a ilha imaginária de Thomas Morus e vários outros lugares utópicos


parecem encerrar uma concepção autoritária de sociedade, o que dizer então do “país
ditoso” do Estrangeiro na peça Primeiro de Maio? Seria ele também um modelo
enganador de sociedade “ideal”? Por trás das imagens atraentes apresentadas pelo
“misterioso peregrino”, haveria os germes de um mundo rígido e (por que não?)
totalitário?
Para responder a tais questões, devemos, antes de tudo, analisar com atenção
onde residem os elementos possivelmente autoritários das utopias clássicas. Não por
acaso, utilizaremos justamente o modelo fundador criado por Thomas Morus; afinal,
como vimos, sua influência foi (e continua sendo) forte nas narrativas utópicas
subseqüentes. E, quando nos debruçamos sobre o modelo de organização criado em
Utopia, logo ficamos surpresos com a imensa quantidade de detalhes que Hitlodeu
oferece em sua descrição. O mundo por ele apresentado caracteriza-se por uma
acentuada racionalidade organizacional. Trata-se de uma sociedade ordenada
rigidamente; nela os traços individualizantes parecem desaparecer diante do projeto
civilizador imposto, no passado, por Utopus; projeto que, diga-se de passagem, foi
reproduzido com exatidão pelas autoridades que lhe sucederam. É a mesma
racionalidade obsessiva que confere àquela sociedade uma irritante uniformidade. Todas
as cidades são iguais, assim como as roupas utilizadas pelos habitantes da ilha. Até
mesmo os horários das refeições são definidos por igual para todos. Os hábitos e
costumes que regem a cotidianidade dos utopianos são regulamentados de forma
esquemática e invariável.
A excessiva racionalidade esquemática da ilha imaginária de Thomas Morus
transparece na descrição detalhada que Hitlodeu faz de sua organização. Parece-nos
que, para provar a todos que aquele mundo é de fato o melhor, Hitlodeu não poupa
palavras. Ele descreve, nos seus mínimos detalhes, cada pormenor que lhe pareça
relevante na configuração organizacional daquela ilha. Não descuida nem mesmo de
apresentar os padrões de comportamento reproduzidos pela sociedade utopiana. Ou seja,
naquele mundo descrito por Hitlodeu, cada um tem seu lugar, cada lugar tem sua função
e cada função é previamente estabelecida por aqueles que cuidam da res publica.
Atentemos então para um dado interessante: o que em Utopia, de Thomas
Morus, sobeja, em Primeiro de Maio, de Pietro Gori, carece. Referimo-nos, é claro, aos
detalhes descritivos que os respectivos autores oferecem sobre a organização e os
174

padrões de comportamento de seus mundos imaginários. Se em Utopia há detalhes


minuciosos sobre como a ilha está organizada, em Primeiro de Maio temos apenas
indícios vagos de como seria o país do Estrangeiro. O que este anuncia além de vagas
promessas de felicidade e bem-estar? Sobre o “país ditoso” do peregrino de Primeiro de
Maio, sabemos apenas que nele não existe miséria, o amor reina entre todos, não há
exércitos (portanto, não há guerras) e todos trabalham – menos os inválidos e as
crianças; estas, por sua vez, são educadas sem dogmas. Além disso, naquele mundo
imaginário, as mulheres não são escravas. Agora, como seria a educação daquelas
crianças? Para não haver miséria, como os bens seriam geridos naquele país? Se não há
exércitos, quais os dispositivos de segurança diante de uma possível ameaça externa? Se
essa ameaça não existe, por que isso ocorre? Não haveria riquezas a conquistar nesse
país? O que seria feito com tais riquezas? Como elas seriam distribuídas entre os
membros da sociedade? E o trabalho, como é organizado? Se todos trabalham, como
são repartidas as funções entre os membros daquela sociedade? O leitor atento há de
dizer: “Ora, se o Estrangeiro afirma que todo habitante `é livre para pensar e agir´, logo,
cada qual escolhe seu trabalho”. Voltamos, assim, ao caráter difuso e vago da descrição
que o Estrangeiro faz de seu país. Quais as atividades desempenhadas pelos que
trabalham? Quantas horas por dia cada um dedica ao serviço? Além disso, o que
sabemos, por exemplo, sobre os hábitos e costumes dos habitantes desse país
imaginário? Nele há cidades? Em caso afirmativo, como elas são? Quais relações elas
estabelecem com o campo? Será que há distinção entre rural e urbano? Por quê?
Todas essas perguntas ficam sem respostas. Impossível dizer, com exatidão,
como é o mundo do Estrangeiro. Ele escapa a qualquer precisão mais esquemática; sua
racionalidade não se deixa entrever – muito menos uma suposta uniformização
organizacional ou comportamental. Se a Utopia de Morus está pronta e acabada, o país
do “misterioso peregrino” parece estar por construir. Sabe-se apenas que ele está lá, no
Oriente (“verso la parte donde si leva il sole”); mas, dizer exatamente como ele é
parece-nos impossível. Ele é apenas uma tênue projeção ideal genérica, é aquilo que se
almeja; tanto mais o desejamos quanto menos o conhecemos. Aliás, arriscamo-nos a
dizer que seus encantos residem justamente no caráter difuso de sua projeção.
Se, como salientou Baczko, não podemos “reduzir a variedade das invenções
utópicas a um denominador comum”, se “a tradição utópica é plural e múltipla”, é claro
que cada utopia nos remete a um quadro próprio de princípios e idéias – assim como a
175

um período histórico específico. Neste sentido, podemos afirmar que existem utopias de
diferentes tipos. Algumas apresentam projetos imaginários racionais e unificadores
vindos de cima, “designadamente do Estado”; outras, por sua vez, podem ser
imaginadas como vindas de baixo, “como resultados das ações espontâneas de homens
livres de qualquer constrangimento, nomeadamente o constrangimento estatal” 210.
Desnecessário dizer que a terra imaginária do Estrangeiro pertence ao segundo grupo,
não? Inserida na atmosfera ideológica em que foi criada, a utopia de Pietro Gori
relaciona-se com os princípios e valores cultivados pelos anarquistas de sua época. Por
isso, o projeto utópico por ele criado é um campo aberto a futuras discussões. Nele, por
exemplo, não existe nenhum “grande legislador” que toma para si a tarefa de normatizar
a sociedade com suas leis implacáveis; desse projeto utópico só se entrevê a mensagem
de esperança e a promessa de redenção, nada mais. A construção desse mundo cabe às
novas gerações, a elas pertence o “porvir melhor”; são elas que deverão configurar com
nitidez as nuances dessa vaga concepção ideal.
Portanto, podemos afirmar, sem receio, que a terra do Estrangeiro de Primeiro
de Maio constitui, sim, um projeto utópico; mas de um tipo bem diferente! Um projeto
utópico que não se reduz ao modelo racional e uniformizador do paradigma fundado por
Thomas Morus. Um projeto utópico aberto, avesso a rígidos esquemas unitários e
acabados; avesso também (e por isso mesmo) a minúcias descritivas. A utopia do
“misterioso peregrino”, portanto, não pertence exclusivamente a ele nem a ninguém.
Na verdade, podemos dizer que a terra imaginária de Primeiro de Maio é sua, minha e
de todos aqueles que se mostrem dispostos a seguir o Estrangeiro em sua difícil jornada.
Esse país está lá, no Oriente. Basta que nos desprendamos de nosso carcomido mundo
para que, enfrentando as agruras do caminho, consigamos finalmente atingi-lo.
Nós, aqui, já nos decidimos: também iremos com o peregrino em sua viagem –
“verso la parte donde si leva il sole”! Então, sigamos em frente.

3.4. As metáforas do sacrifício e o caráter de luta atribuído ao 1º. de Maio


Vimos já a descrição que Ida fez de seu sonho com o país venturoso. Vimos
também que a jovem camponesa contentou-se em apresentar, de forma breve e
resumida, alguns elementos já presentes no relato que o Estrangeiro fizera de sua terra.
Portanto, na exposição desse sonho, mais importante do que as descrições da “cidade

210
Ibid.; p.388.
176

feliz” são as metáforas do “sacrifício” presentes no relato das agruras enfrentadas


durante a viagem ao “país ditoso”.
No início, seu sonho revestia-se de um aspecto “terrível”. Ela estava perdida em
uma planície infinita e deserta. A tempestade rugia e a chuva batia com força em seu
rosto; o vento soprava tão forte que a ensurdecia. Várias vezes ela caiu e se levantou.
Caminhava sempre para o Oriente onde, no horizonte, lhe “sorria uma faixa de azulado
céu”. No extremo da planície, ela encontrou uma subida espinhosa e árdua. Foi só
depois de enfrentar aquela extenuante subida que, finalmente, Ida pôde visualizar a
“cidade misteriosa”, o “país feliz” que é praticamente idêntico ao do Estrangeiro.
Entusiasmado com a descrição onírica de Ida, o amável Jovem dispõe-se a seguir
a camponesa rumo ao país imaginário. Frente a tal inclinação de seu noivo, Ida, no
entanto, alerta-o a respeito das asperezas que enfrentarão durante a viagem.

Ida: Olha que teremos de caminhar muito... caminhar sem medo, sem cansaço... Atravessar
montanhas e colinas, rios e mares. Os abrolhos dos bosques despedaçarão nossos vestidos e
nossas carnes... e o calor do verão queimará nosso sangue; as chuvas hibernais arrochearão [sic]
nosso rosto...

Não por acaso, muito parecidas são também as metáforas do sacrifício presentes
na descrição que o Estrangeiro fizera do caminho que leva ao seu país. Em seus relatos
à Ida, o “misterioso peregrino” afirma que já havia andado um bom bocado – cruzara
montes e colinas, atravessara rios e mares, esfarrapara suas vestes, dilacerara suas
carnes e enfrentara o calor abrasante do verão e as frias chuvas do inverno. Um outro
tanto de dificuldades faltava ainda ao Estrangeiro encarar. Ele sabia que teria de
atravessar “outros montes e vales; rios e mares”. Estava consciente de que deveria ainda
suportar os “cálidos ventos” e as “gélidas chuvas”.
Mais uma vez, nossa peça não está pairando no ar. Ela finca raízes profundas no
imaginário social anarquista em torno do 1º. de Maio. E, por isso mesmo, as imagens de
sacrifício e martírio são freqüentes também na imprensa operária. Referimo-nos já às
metáforas do “sangue fecundo” que emergem dos artigos publicados naquela imprensa.
Sobretudo, tais metáforas sobressaem nos textos que rememoram os acontecimentos em
torno dos Mártires de Chicago. O mesmo ocorre, em geral, com as imagens de
“sacrifício” e “martírio”; elas também se concentram nos artigos desse gênero.
177

Um exemplo emblemático encontramos em A Plebe do dia 30 de abril de 1921.


Um artigo intitulado 1º. de Maio relembra os acontecimentos que culminaram na
execução dos cinco trabalhadores norte-americanos. Logo no início, seu autor
(anônimo) afirma que, naquela data, em 1886, “consumou-se um dos atentados mais
nefandos que a luta de classes enumera no seu passado, repleto de sacrifícios e de
martirológios”. Mais adiante, o mesmo autor declara que os denodados Mártires
“apontaram à humanidade com seu sacrifício o verdadeiro caminho da redenção
humana”. Neste caso, como em outros, a noção de “sacrifício” transmuta-se na de
“redenção”. Ou seja, é o exemplo dos Mártires que, levado adiante, frutificará as
sementes da emancipação humana.
O mesmo verificamos em um artigo posterior, publicado no periódico carioca
Lucta Social211 do dia 1º. de maio de 1922. Nele, o autor (Aniceto) reproduz um
discurso que fora feito por Spies (um dos Mártires) por ocasião de um comício contra os
“fuzilamentos infames” que ocorreram no tumultuado maio de 1886. Em seu discurso,
Spies fora bastante veemente, incitando a “guerra de classe” e asseverando que, diante
do “Terror Branco”, os trabalhadores devem reagir com o “Terror Vermelho”. Spies
terminara dizendo que é “a necessidade que nos leva a gritar às armas”. Aniceto, por
sua vez, afirma que as palavras do corajoso Mártir encerram “toda uma luta” que deve
ser levada adiante, mesmo que “com o sacrifício da própria vida” 212.
Poderíamos estender os exemplos em torno da idéia de “sacrifício” citando uma
quantidade não pequena de artigos publicados na imprensa anarquista da época.
Todavia, mencionaremos apenas mais um texto que traduz melhor o sentido de
“martírio” com o qual estamos lidando. Trata-se de um artigo publicado no periódico
carioca A Greve, em 15 de maio de 1903 – portanto, bem antes dos que acabamos de
citar. Como em vários outros artigos do gênero, o autor, Pausílippo da Fonseca, nega
aqui o caráter festivo que alguns atribuíam à data. No esforço de erradicar esse caráter
que a efeméride vinha adquirindo, ele lembra o sofrimento dos “primeiros mártires” (os
de Chicago) e de todos os outros que, depois, foram vítimas da perseguição cruel
perpetrada pelos “assassinos oficiais”. Pausílippo afirma ainda que aquele dia fora
“santificado pelo sangue dos obreiros do edifício imenso da nossa emancipação”. Mais

211
O periódico Lucta Social surgiu no Rio de Janeiro naquele mesmo ano de 1922 e era editado pelo
Grupo de Propaganda Social daquela cidade. A respeito, ver Ferreira, Maria Nazareth. Op. Cit.; p.99.
212
Na mesma data (1º. de maio de 1922), ver também artigo de A Plebe em que autor afirma que a data
deve ser vista como a condensação do “martirológio dos abnegados combatentes da causa proletária”.
178

uma vez, a idéia de “sacrifício” associa-se intimamente com a esperança de


“emancipação”.
Confrontando com a situação nacional das comemorações em torno da data, o
autor menciona o caráter de protesto que o 1º. de Maio assumia em “toda a parte” - ou
seja, no exterior. Lá, segundo o articulista, “a tradição dos martirológios ainda não foi
olvidada”. Vejamos de perto o que diz o próprio autor na seqüência.

Só entre nós, onde a linguagem interesseira de certos doutrinadores tem feito das teorias
socialistas um caos afim de ver se dele pode sair um deputado com jus à gorda mamata de
75$000 diários, é que se observa tão curioso fenômeno. Pois se até há quem dá louvores aos
donos das fábricas pela grande mercê de paralisarem as suas oficinas, como se fosse possível
máquina alguma se mover sem o concurso do braço operário! E assim folga do primeiro de maio
perde o seu caráter, a sua feição primitiva de greve, que é a única compatível com a dignidade do
operariado.

Atrelado às críticas ao caráter festivo que emergia nas comemorações da data,


notamos no trecho acima a idéia segundo a qual, entre nós, “certos doutrinadores”
transformavam as teorias socialistas em um “caos” no intuito de obter o cargo político
de deputado. Parece-nos evidente que o alvo de Pausílippo é aqui o conjunto de
políticos socialistas. Estes, no juízo do autor, assumiam um discurso reformista e
conciliador e, por isso mesmo, desvirtuavam o sentido de protesto que o Primeiro de
Maio deveria possuir. Contrapondo-se ao congraçamento de classes e ao correspondente
gozo das festividades, Pausílippo enfatiza o que ele considera como sendo a “feição
primitiva” da efeméride: seu caráter de protesto, expresso por meio da realização de
uma greve de um dia.
Voltemos, no entanto, à noção de “sacrifício”. Em muitos momentos em que ela
aparece, temos a ênfase insistente nas idéias de luta e protesto. É realmente
impressionante a quantidade de artigos ressaltando tais idéias. Por isso mesmo, quase
todos eles combatem a tendência em transformar a data em uma “festa” do trabalho.
Analisar todos esses artigos seria não apenas enfadonho como desnecessário aos
propósitos desta pesquisa. Por isso, debruçar-nos-emos sobre alguns casos mais
emblemáticos que condensam a complexidade de significados sociais que os militantes
sobre os quais nos debruçamos atribuíam à noção de “sacrifício”. Em seguida,
teceremos algumas conclusões a respeito.
179

A Lucta Proletaria, em sua edição de 1º. de maio de 1908, publicou uma série de
seis textos dedicados à efeméride. O primeiro deles, assinado pela Federação Operária
de São Paulo (lembremos: o periódico citado era um órgão da FOSP), é um verdadeiro
manifesto contra uma das tendências verificadas na época: a de transformar o 1º. de
Maio em uma data festiva. Logo no início, o autor afirma que o 1º. de Maio está
perdendo o seu “primitivo caráter puro” para se transformar em uma “simples
manifestação festeira”. Diante da exploração vivida pelos trabalhadores, de acordo com
o texto, seria um absurdo festejar a data que, por sinal, lembra-nos do sacrifício sofrido
pelos Mártires de Chicago. Para o autor, tal sacrifício teria caído no esquecimento. Mais
adiante, ele afirma em tom imperativo: “Nada de festejos”. Ressalta ainda que a data
fora escolhida pelo Congresso de 1889 213 para que o trabalhador, “reativando energias e
despertando consciências”, lançasse-se no “caminho de suas reivindicações, começando
pela obtenção da jornada de oito horas”. Seria então necessário conferir novamente ao
1º. de maio a sua “verdadeira característica”. Para o autor, festejar naquele dia seria
“engrandecer bestialmente a escravidão do salariado”. O operário brioso deve ser
“insubmisso e rebelde”. O autor do apelo exorta os trabalhadores a abandonar o trabalho
- não para atividades de recreio ou para embriagar-se, mas, obviamente, para promover
protestos e afirmar moralmente o valor do proletariado.
Vimos na peça que, em seus discursos para o Marinheiro e o Operário (assim
como para o seu velho pai), Ida também se preocupa em ressaltar, na data, seu caráter
de protesto. Este manifestar-se-ia por meio da abstenção ao trabalho. Segundo
Hobsbawm, tal abstenção em memória dos sacrificados Mártires de Chicago seria “uma
afirmação simbólica da força fundamental dos trabalhadores” 214. Essa necessidade de
afirmação simbólica a qual se refere Hobsbawm faz com que, na imprensa anarquista,
sejam recorrentes os artigos enfatizando o caráter de protesto que o 1º. de Maio deveria
possuir. Muitas vezes, para justificar esse caráter em detrimento da configuração festiva,
os articulistas daquela imprensa recorriam ao mito da “origem fundamental” 215 da
efeméride. Vejamos um exemplo emblemático.

213
Este Congresso foi organizado pela Segunda Internacional Socialista na cidade de Paris e foi
considerado o primeiro dessa nova entidade. Predominantemente marxista, discutiu, dentre outras coisas,
uma legislação internacional para impor a jornada de oito horas e uma possível abolição dos exércitos
nacionais. Foi esse Congresso, também, que escolheu o 1º. de Maio como Dia do Trabalho.
214
Ver Hobsbawm, Eric. Op. Cit.; p. 112.
215
Além do artigo a ser analisado na seqüência, ver também, sobre o mito da origem fundamental do 1º.
de Maio, A Terra Livre, 7 de fevereiro de 1906; La Propaganda Libertaria, 1º. de maio 1914 e Alba
Rossa, 1º. de maio de 1919. De certa forma, o artigo anteriormente citado – de A Lucta Proletária
180

Trata-se de um outro artigo publicado na mesma edição de A Lucta Proletaria


(1º. de maio de 1908). Em texto intitulado (não por acaso) Festa ou Revolta?, Sebastião
Eugênio afirma que o trabalhador deve considerar o 1º. de Maio como uma “data
lutuosa” e, por isso mesmo, conferir a ela um significado de revolta. Logo em seguida,
ele inicia (como muitos articulistas faziam) uma breve rememoração dos fatos em torno
das lutas nos EUA e da transformação do 1º. de Maio em data comemorativa. Ao se
referir ao Congresso de 1889, o autor anônimo afirma:

Um congresso proclama o 1º. de Maio para os proletários exigirem direitos e para afirmarem
suas forças, imprimindo ao mesmo tempo um caráter revolucionário, para as reivindicações
econômicas e sociais a conquistar. Porém, trocaram, por velhacaria ou por imbecilidade, idéias
nobres e altruístas, por outras espetaculosas e ridículas para atrofiar a energia dos trabalhadores,
e inocularem nos seus cérebros a indolência e o definhamento, cortando toda ação individual e
coletiva, que pudesse conduzi-los para a cultura moral e intelectual.

Parece claro que, para Sebastião Eugênio, o objetivo inicial (intrinsecamente


enredado em sua origem) era fazer com que os trabalhadores exigissem seus direitos,
afirmassem sua força e imprimissem à data um caráter revolucionário.
Não vem ao caso discutir sobre os “verdadeiros” objetivos daquele Congresso.
No entanto, vale lembrar que o autor da idéia original (de usar o 1º. de Maio como
marco na luta pelas oitos horas) foi Raymond Lavigne, um guesdista francês, portanto,
marxista (como, por sinal, era nomeadamente a maioria naquele Congresso e na
Segunda Internacional) 216. Aliás, segundo Perrot, os anarquistas da França, no início,
colocaram-se contra aquela decisão do Congresso; só depois, de forma sagaz,
apropriaram-se das comemorações e conferiram a elas os significados que acharam mais
adequados.

(1.05.1907) -, ao se referir ao “primitivo caráter puro” da data, também trabalha com o mesmo mito da
origem fundamental.
216
Sobre as intrincadas resoluções em torno da escolha do marco simbólico, ver Perrot, Michelle. Os
Excluídos da História – Operários, Mulheres, Prisioneiros. Rio de Janeiro. Editora Paz e Terra, 1992; pp.
127-138. Nas abordagens feitas pela autora, notamos não poucas características que destoam do caráter
puramente de protesto que os anarquistas atribuíam às “origens” do 1º. de Maio. Segundo Perrot, a
escolha da data pelos socialistas visou oferecer à classe operária “uma unidade política e cultural através
daquela pedagogia da Festa”, tributária da experiência da Revolução Francesa (p.127). Ainda para a
autora, em “sua iniciativa, o Primeiro de Maio é incontestavelmente criação de cima, e em particular da
corrente mais organizada em termos políticos, a corrente marxista” (pp. 127/128). Sem embargo, para a
autora, no ato de “criação” da efeméride, duas tendências contrárias à orientação anarquista teriam de
imediato se vinculado à data: a “pedagogia da Festa” e a conotação socialista (de influência marxista).
Ainda para Perrot, no complexo campo de disputas pelo simbólico em que a data se transformou, cada
grupo em confronto “`puxa a brasa para sua sardinha´” (p.131).
181

Com tudo isso, queremos ressaltar apenas que, por trás do mito das “verdadeiras
origens”, está a construção de um sistema simbólico complexo por meio de um discurso
bem articulado; tal discurso (imbuído de todo o seu simbolismo) visa imprimir um
caráter próprio diante desse campo de disputas que se tornou a comemoração em torno
do 1º. de Maio. Aqui, o mais importante não é a reconstituição do que aconteceu “de
fato” naquele Congresso de 1889 (e nos meses subseqüentes). Queremos apenas
ressaltar que os anarquistas construíram a noção de um princípio original (“verdadeiro”
e “puro”) para legitimar seu discurso combativo e refutar o caráter festivo que outros
setores desejavam atribuir ao 1º. de Maio. Divisamos a constituição um verdadeiro
campo de disputas pelo simbólico. Em seu interior, os anarquistas elaboraram discursos
mais ou menos convincentes em que os significados conferidos à data pelos outros
grupos são muitas vezes vistos como “deturpações” daquele sentido supostamente
“original” e “genuíno”.
Vejamos mais de perto o que nos diz, por exemplo, um artigo publicado em A
Plebe no dia 1º. de maio de 1919. Nele, o autor inicia afirmando que “o dia de hoje” (1º.
de maio) não é um dia de festa. Para ele, quem pretende transformar a efeméride em
ocasião para festa são “os falsos amigos do proletariado”. Festa mesmo só poderia
existir no dia “em que a tenebrosa e velha bastilha do Capital e do Poder” for desfeita
pelo “machado bendito da Revolução”.
O mesmo notamos no artigo de Matilde Magrassi publicado no periódico Novo
Rumo em 1º. de maio de 1906. Nele, a autora afirma que só no dia em que não houver
mais exploração na sociedade é que será possível comemorar de forma festiva a data.
Para ela, na situação atual em que vive o trabalhador, “a glorificação do trabalho torna-
se um ato irrisório, digno da lástima e da compaixão dos operários conscientes”.
No periódico paulistano e anarco-comunista Alba Rossa, editado por Oreste
Ristori e A. Bandoni, em sua edição de 1º. de maio de 1920, esse dia festivo já havia
chegado – não para nós, mas para os russos. Em um artigo bastante otimista em relação
aos acontecimentos na Rússia, o autor constrói um encadeamento linear e teleológico de
fatos, estabelecendo uma continuidade intrínseca entre as lutas encetadas em Chicago e
aquelas levadas adiante pelos trabalhadores russos. Segundo Paulino Biasi, autor desse
texto, o proletariado russo estaria satisfazendo, por meio de suas conquistas, “o desejo
manifestado nos últimos momentos de vida pelos camaradas barbaramente enforcados
pelos capitalistas de Chicago.” Agora, finalmente, para Biasi, os russos não têm mais
182

por que protestar no 1º. de Maio. O aspecto a ser ressaltado nesse artigo é que o ideal
teleológico da “redenção final” (tantas vezes propagado na imprensa anarquista) aparece
aqui como consumado alhures, em terras russas. Se conseguíssemos alcançar também
esse ideal, poderíamos então descartar o protesto e festejar efusivamente as conquistas
fundamentais da “emancipação humana”.
Em contato com os artigos da imprensa anarquista, notamos que, na verdade,
nem todos os articulistas opunham-se integralmente ao caráter festivo do 1º. de Maio.
Em alguns casos, certos artigos chegam mesmo a encarar as festividades em torno da
efeméride com uma não disfarçada condescendência. Mencionamos anteriormente um
artigo publicado em A Lanterna no dia 2 de junho de 1907. Nele, seu autor, M. Doriz,
analisa a situação do mês de maio na Europa. Naquele continente, ele entrevê um nítido
contraste entre o campo (mais “carola”) e a cidade (em relação ao campo, mais
“avançada”). Na zona rural, predominaria “a tristeza, o receio de que o diabo apareça”;
já na cidade, verificar-se-ia “o desafio a todo o mal, a festa enfim” [grifos nossos]. Aqui
o autor opõe de forma nítida a festa proletária (associada ao urbano) à beatice rural;
nessa oposição fundamental, é evidente que a primeira aparece valorizada em relação à
segunda.
Outros artigos da imprensa anarquista modulam também na mesma sintonia.
Questionam não a festa “em si”, mas o despropósito de realizá-la nas conjunturas em
que se encontravam os trabalhadores 217. Poderíamos analisar esses textos mais
detidamente. Mas, achamos que os artigos já citados dão indícios de sobra para levar a
cabo uma conclusão parcial.
Despojando-nos de preconceitos inveterados, o que pudemos notar é que em
muitos artigos (mas não em todos) não há, de fato, uma aversão à festa. O que não
poucos articulistas propugnavam é que, diante da situação de exploração em que viviam
os trabalhadores, festejar no 1º. de Maio seria, no mínimo, um contra-senso. Tais
articulistas sabiam claramente que não há atitudes “neutras”; sabiam também que todo
gesto reveste-se de significados sociais e simbólicos não isentos de conseqüências. Para
eles, o problema não era a festa e sim o sentido que ela poderia ter diante da correlação
de forças presente na sociedade. Nos artigos dedicados a refutar o caráter festivo, o que

217
Ver também em A Plebe de 1º. de maio de 1922, artigo intitulado 1º. De maio – Ao proletariado e
aos assalariados em geral. Em A Voz do Trabalhador, ver edição de 1º. de Maio de 1909. Em A Lucta
Proletaria, ver artigo intitulado 1º. de Maio na edição de 1º. de maio de 1908.
183

notamos muitas vezes é a inserção do discurso combativo no âmbito das condições


concretas de existência que os trabalhadores enfrentavam. O discurso de luta, “em si”,
nada significava (assim como o caráter festivo atribuído à efeméride). A afirmação da
combatividade conferida ao 1º. de Maio estava sempre atrelada às conjunturas
específicas do momento. A data, por si só, também não significava nada; quem iria
conferir a ela significados específicos eram os atores sociais que dela se apropriavam. E
disso os anarquistas com os quais lidamos tinham clara consciência!

3.5. As disputas pelo simbólico e seus atores sociais


Mas, afinal, quem eram esses atores sociais que disputavam com os anarquistas
os significados simbólicos do 1º. de Maio? Já entrevemos os traços gerais de alguns
deles alhures. Novamente, a imprensa anarquista traz indícios desses sujeitos e das
disputas por eles travadas em meio às organizações e comemorações da data.
Já em sua edição do dia 10 de maio de 1901 (aquela mesma em que se encontra
o primeiro sinal de representação da peça Primo Maggio em São Paulo), O Amigo do
Povo, editado por Neno Vasco, fez um panorama geral das comemorações da
efeméride, naquele ano, em nossa Paulicéia e no Rio. No caso de São Paulo, notamos,
nos relatos do autor anônimo, que socialistas, anarquistas e sindicalistas revolucionários
encontravam-se muito próximos uns dos outros. Primeiramente, o autor faz um relato
das “reuniões populares” ocorridas no Cambuci, na noite do dia 30 de abril. Lá, no
interior do Teatro Nasi, após a encenação de Primo Maggio, seguiu-se uma conferência
proferida pelo socialista Alcibiade Bertolotti. Este, segundo o articulista, “foi feliz em
alguns pontos, nos quais colheu unânimes aplausos”. Logo na seqüência, disse algumas
palavras o sindicalista revolucionário e (por que não?) anarquista Giulio Sorelli. Este,
em seu discurso, teria mostrado “o lado revolucionário do Primeiro de Maio”.
Marcando posição diante dos socialistas ali presentes, Sorelli não perdeu a oportunidade
de censurar energicamente os deputados socialistas italianos que, na mesma época,
propunham ao governo daquele país o “reconhecimento oficial” do 1º. de Maio.
Segundo o autor, em meio à conferência de Sorelli, alguns “socialistas – oh! a liberdade
de pensamento! – tentaram interromper o nosso camarada com alaridos e uivos”.
Em seguida, temos, no mesmo texto, um breve relato das comemorações do dia
1º. de Maio em Vila Mariana, onde o anarquista Alexandre Cherchiai, da redação de O
Amigo do Povo, discursou durante cerca de uma hora e recebeu “aplausos calorosos da
184

parte dos ouvintes”. Terminada a conferência, os companheiros reunidos em Vila


Mariana caminharam até o centro “cantando hinos revolucionários”. Lá chegando,
dirigiram-se à sede da Liga Democrática, situada então na rua Florêncio de Abreu. Lá,
Cherchiai discursou novamente, seguido pelo já mencionado socialista Alcebiade
Bertolotti. Este, segundo o autor do texto, “entretendo o auditório por cerca d´uma
hora”, fez um discurso com “passagens que mereceram, de todos, aplausos sem
reservas”.
Duas questões importantes devem ser ressaltadas a partir da leitura do trecho
acima mencionado. Primeiro, é preciso lembrar as inúmeras zonas de intersecção que os
diferentes grupos políticos socialistas (incluindo anarquistas e sindicalistas
revolucionários) estabeleciam entre si no contexto analisado em nossa pesquisa. Ao
contrário das segmentações ideológicas rígidas que os teóricos descrevem a posteriori
em seus estudos, percebemos que, na prática, verificava-se uma permeabilidade
ideológica por vezes surpreendente. Aliás, podemos dizer que foram justamente tais
intercâmbios políticos que permitiram, não raras vezes, as comemorações conjuntas
entre militantes de diferentes tendências socialistas. No entanto, como o próprio artigo
demonstrou, intercâmbios e influências não significam ausência de conflitos e de
disputas. Por trás de uma aparente complacência, escondem-se não desprezíveis
divergências. O autor do artigo citado não tece seus comentários de forma isenta.
Embora sutis, suas ironias denotam um indisfarçável posicionamento crítico diante dos
socialistas e suas propostas; o “lugar” de onde ele fala não é neutro e, por isso mesmo,
ele marca posição em seu relato – assim como os demais contendores nessa disputa
política pelo potencial simbólico do 1º. de Maio.
Se, nos relatos sobre as comemorações em São Paulo as críticas são
relativamente sutis, o mesmo não ocorre com os comentários a respeito da situação no
Rio de Janeiro. Aqui, Queiroz (o autor de outro texto publicado na mesma edição de O
Amigo do Povo) compõe uma espécie de “crônica” na qual ele narra os acontecimentos
das ruas por onde passou naquele 1º. de Maio (à procura de eventos dignos de nota). De
forma um tanto irônica, ele inicia seu relato dizendo que saiu às ruas “com um desejo
enorme de conhecer a característica emotiva [...] da anunciada festa do trabalho”. No
entanto, ao invés daquele transbordamento efusivo, o que Queiroz de fato encontrou,
sempre de acordo com seu próprio relato, foi uma “procissão” desanimada, monótona e
tediosa. O motivo para as queixas é que, dentre os participantes, não se notava nenhuma
185

“afirmação de idéias”. Depois de algumas perambulações com direito à “música


marcial”, finalmente a triste “procissão” chegou ao teatro (não sabemos qual). Em seu
relato sobre os eventos que lá se desenrolaram, o autor critica o orador que, do alto da
tribuna, propôs a substituição do “capitalismo burguês” pelo “capitalismo social”. Para
Queiroz, o infeliz orador desejava “curar um mal com outro ainda mais pernicioso”.
Mais adiante, citando o apelo que os organizadores daquelas comemorações fizeram
dias antes, Queiroz explica por que a festa foi tão “triste”. Vale a pena analisar de perto
os trechos desse apelo que o autor transcreveu no final de seu artigo.

“O fechamento das oficinas n´esse dia, não significa o protesto do operário contra o capital,
como tem [sic] espalhado os maus socialistas, que em tudo descobrem privilégios e exceções
ruinosas ao bem-estar da sociedade.
“Ele representa, apenas, uma manifestação festiva e legítima. Interessados na vida da fábrica, da
indústria e do trabalho, associam às alegrias, pela nobreza de seu ofício, o respeito e a estima dos
seus patrões, de cuja prosperidade só benefícios podem esperar os que trabalham para ela.”

Infelizmente, Queiroz não citou expressamente quem eram os autores desse


apelo transcrito em seu artigo. No entanto, em um outro texto, publicado em 1º. de maio
de 1903 no periódico carioca A Greve, temos indícios de quem seriam tais autores.
Devemos lembrar que tal artigo (o maior que encontramos sobre a efeméride) foi já
mencionado em outros momentos desta análise. Seu autor, Elysio de Carvalho, também
cita textualmente o apelo acima e atribui sua autoria aos “chefes socialistas”, chamados
de “maus pastores” do proletariado e “bons aliados da burguesia” [grifos do autor].
Para o já conhecido Elysio, o 1º. de Maio, “que tem sua origem naquele protesto
enérgico contra o capital erguido por um punhado de bravos revolucionários, querem os
socialistas cinicamente usurpar”.
Esse pequeno excerto permite-nos levantar duas questões que se correlacionam
na abordagem desenvolvida por Elysio. A primeira tem a ver com a noção de
“usurpação”, ela própria reveladora de um campo de disputas que já divisamos em
nossa análise. A segunda, já em parte elucidada, refere-se ao mito das “origens” da
efeméride. Vejamos que, aqui, de maneira bem inteligente, Elysio remete-nos a uma
“origem” diferente daquela que, na edição supracitada de 1º. de Maio de 1908, A Lucta
Proletaria (órgão vinculado à FOSP) veicularia cinco anos depois. Lembremos que,
naquela edição, três artigos de primeira página projetam as “origens” da data sobre os
186

acontecimentos em torno do Congresso Internacional de 1889. Dois deles (assinados


respectivamente por Sebastião Eugênio e pela FOSP) já analisamos acima; o outro,
ainda não mencionado, não por acaso se chama “O Primeiro de Maio – Sua origem
histórica”. Neste, como nos demais da mesma edição, as verdadeiras “origens” da data
remontam às decisões tomadas por aquele congresso. Já no texto de Elysio, pelo
contrário, as “raízes” da efeméride encontrar-se-iam não no Congresso, mas sim nos
próprios acontecimentos de maio de 1886. Não por acaso, ele despreza o Congresso de
1889 que, de fato, transformou o 1º. de Maio em data comemorativa. Por que isso
ocorre?
Podemos apenas sugerir uma hipótese plausível. Nos diferentes artigos da
imprensa operária com os quais lidamos, notamos um deslocamento constante das
“verdadeiras origens” do 1º. de Maio. Tal deslocamento que os textos daquela imprensa
apresentam – ora atribuindo aquelas “origens” ao Congresso de 1889, ora remetendo-as
aos próprios acontecimentos de 1886 – tem a ver com o viés político adotado pelo
oponente com o qual cada articulista em questão está se contrapondo. Ora, como no
presente caso Elysio de Carvalho esforça-se em detratar seus oponentes “socialistas”,
seria no mínimo sensato desprezar a importância dos eventos realizados no Congresso
de 1889. Este, como vimos, foi composto principalmente por socialistas (no caso, de
tendência marxista). Desprezando as deliberações daquele Congresso, de forma sagaz, o
autor reporta-se para uma “origem” supostamente mais “pura” e “autêntica” do que
aquela que, a posteriori, transformou o 1º. de Maio em data comemorativa. Com isso,
ele não apenas legitima seu discurso, conferindo às “origens” o significado por ele
desejado, como também desautoriza seus oponentes, descolando-se deles e demarcando
seu próprio território naquele campo de disputas pelo simbólico. Mas, para entender
melhor o que vem a ser esse campo de disputas, precisamos voltar aos artigos.
A percepção de uma diferença entre São Paulo e Rio de Janeiro volta a se
manifestar em um outro texto, desta vez publicado em A Greve, órgão vinculado ao
Sindicato dos Estivadores da cidade carioca. Duas semanas depois do artigo acima
analisado (de Elysio de Carvalho), agora (em 15 de maio de 1903) o periódico carioca
apresenta uma reportagem narrando as comemorações da data naquele ano. Os eventos
no Rio, organizados pelo Centro das Classes Operárias, são descritos pelo autor (A.V.)
como sendo uma verdadeira “procissão”, com direito a “andores” portando os retratos
de Marx, Proudhon, Tolstoi etc. Como em outros relatos do gênero, A.V. descreve a
187

“procissão” (“acompanhada de bandas marciais”) parando às vezes em frente às


redações dos jornais para ouvir oradores dizendo palavras amenas de incentivo à
humildade, à conciliação e ao respeito às leis. Entre os oradores, o autor destaca a figura
de um candidato socialista chamado Vicente de Souza. Este, segundo o autor, além de
aconselhar o respeito às autoridades, no final convidou o chefe de polícia e outros
amigos a tomar uma taça de champanhe. Entre os “vivas” que os assistentes atiravam,
vez ou outra ouviam-se saudações ao chefe de polícia, ao presidente e a alguns
jornalistas conhecidos pela sua “exploração mercantil”. O autor afirma ainda que, na
ocasião, foi entregue ao presidente uma petição para se conseguir a jornada de 8 horas
de forma legal. A.V. cita também uma mensagem entregue ao prefeito lembrando
medidas facilmente praticáveis para melhorar as condições de vida do trabalhador.
Contrapondo-se à atmosfera aparentemente amena do Rio, A.V. reporta-se em
seguida às festas comemorativas organizadas em São Paulo. Aqui, de forma clara, o
tom é mais esperançoso. O autor afirma que os camaradas daquela cidade realizaram
uma “bela manifestação” para ver qual o grau de solidariedade dos trabalhadores. Ele
transcreve as palavras finais de um manifesto que fora profusamente espalhado entre os
trabalhadores antes do dia 1º. de Maio. Tal documento anunciava a criação de um
comitê operário com o objetivo de “festejar dignamente o primeiro de maio”. O
“escopo” da manifestação programada, segundo o mesmo documento, era “ver que
força de solidariedade oferece o elemento operário de São Paulo”. Vemos aqui sinais de
uma articulação se constituindo entre os militantes anarquistas (e/ou sindicalistas
revolucionários) de São Paulo. Ao que tudo indica, temos já, em franco
desenvolvimento, um processo de disputa pela configuração das comemorações em
torno da data. Ou seja, os anarquistas estão já medindo suas forças, tateando a zona de
combate e articulando suas mobilizações.
O manifesto citado por A. V. afirmava ainda que, naquela “pacífica
manifestação” planejada para a comemoração da data em São Paulo, vários “oradores
populares” explicariam o “significado reivindicador” do 1º. de Maio. Por fim, A.V.
termina afirmando que aquela mobilização paulistana “nos consola sobremodo,
porquanto, entre nós [lembre-se: o periódico é carioca], é outro o pensamento que dirige
[sic] os explorados pela burguesia e pelo charlatanismo”.
Tanto os relatos de O Amigo do Povo quanto aqueles de A Greve são bem
reticentes (se não mesmo severos) diante das comemorações no Rio de Janeiro. Muito já
188

se disse sobre a forte influência, na “Cidade Maravilhosa”, do “reformismo” chamado


(corretamente ou não) de “amarelo”. Fizemos menção a tal influência em nossa
Introdução. Não surpreenderia se constatássemos, por meio dos artigos da imprensa
anarquista, indícios de uma forte presença de tal segmento nas organizações
comemorativas em torno do 1º. de Maio no Rio de Janeiro. Aliás, pelos comentários
acima (principalmente os de Elysio), parece-nos evidente que os próprios socialistas
daquela cidade apresentavam não poucas marcas desse “reformismo” em seus discursos
e práticas. Por isso, não por acaso, os comentários que os articulistas com os quais
trabalhamos fazem sobre as comemorações da efeméride no Rio de Janeiro são, na
maioria das vezes, desabonadores (quando não mesmo irônicos e/ou violentamente
críticos).
Uma das raras exceções à regra encontra-se em um artigo publicado em 13 de
junho de 1906 no periódico A Terra Livre. Comparado com os relatos de O Amigo do
Povo que acabamos de acompanhar, aqui, a situação quase se inverte. As
comemorações que se desenrolaram no Rio são encaradas agora de forma mais
alentadora. O autor da notícia (Cecílio Dinorá?) afirma que, naquele ano, o operariado
carioca “abandonou as ridículas palhaçadas dos anos passados”. Isto ele atribui à
influência benéfica do Congresso Operário 218. No entanto, o otimismo do autor não
deve ser exagerado. Ele próprio afirma, logo depois: “Não se fez muito, persistem
defeitos certamente; mas caminha-se”. Já, no comentário a respeito das comemorações
do 1º. de Maio em São Paulo, o tom é de desencanto. Logo no início, o autor (
“M.F.C.”?) afirma categoricamente: “Nada de importante. Um pouco de festa... e foi
tudo”. Em sua crítica curta e mordaz, ele termina afirmando que a Federação Operária
ficara “calada como um rato”.
No ano seguinte, no entanto, a crer no mesmo periódico A Terra Livre (em sua
edição de 10 de maio de 1907), as comemorações da efeméride em São Paulo parecem
ter sido mais agitadas. O autor da reportagem relata sucintamente as manifestações que

218
De fato, sabemos que o Primeiro Congresso Operário do Brasil, com forte influência sindicalista
revolucionária e anarquista, realizou-se na cidade do Rio de Janeiro na segunda metade do mês de abril de
1906. Aliás, curiosamente, ele teve início no Centro Galego, situado na rua da Constituição – sede
também de inúmeras festas onde nossos anarquistas representaram suas peças durante todo o período que
abarca nossa pesquisa.Ora, não surpreenderia se, em meio às atividades daquele importante Congresso
(cujo encerramento ocorreu em 22 de abril), as influências mais aguerridas do movimento operário se
intensificassem na “Cidade Maravilhosa”, influenciando assim as comemorações do 1º. de Maio naquele
ano. Para saber mais sobre o Primeiro Congresso e suas resoluções, ver Rodrigues, Edgar. Socialismo e
Sindicalismo no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Laemmert, 1969; pp. 114-135.
189

ocorreram desde a noite do dia 30 de abril, no salão Ibach, até a noite do dia seguinte,
no teatro Politeama – passando pelo piquenique que o Centro Socialista Internacional
organizou no Bosque da Saúde e pela reunião que os metalúrgicos promoveram no
Centro Espanhol. Os relatos feitos pelo autor apresentam alguns pormenores não
destituídos de interesse para nós. Por exemplo, sabemos que, desta vez, a Federação
Operária não ficara “calada como um rato”! Segundo o autor, ela “publicou um
manifesto convocando um comício de propaganda, na sua sede, às 2 horas da tarde”.
Segundo a reportagem, nesse comício a “concorrência foi numerosa”. Sabemos também
que o espetáculo organizado pela Companhia Bolognesi, no Politeama, contou com a
encenação de Primo Maggio. No entanto, para o autor da reportagem, a representação
naquela noite “não foi nada boa”. A peça teria sido mutilada: o prólogo foi cortado e
“muitas frases que fazem do `bozzetto´de Gori um bom trabalho de propaganda” foram
também suprimidas.
No entanto, não são os relatos presentes na reportagem que fazem dela uma
fonte valiosa no presente instante de nossa pesquisa. Muito mais importantes aqui, para
nossos propósitos, são os posicionamentos claros do jornal diante das manifestações
organizadas pelos diferentes grupos que participaram das comemorações naquele 1º. de
Maio de 1910. Ao longo de toda a reportagem, fica evidente a ênfase que o autor dá às
manifestações comemorativas levadas adiante pelos libertários em geral (anarquistas e
sindicalistas revolucionários). Um pequeno espaço (um parágrafo apenas) é dedicado ao
piquenique realizado, no Bosque da Saúde, pelo Centro Socialista. E, é claro, o tom aqui
é crítico (até irônico). Manifestando uma nítida contrariedade, o autor afirma que, na
verdade, nem sequer houve comemoração. Para ele, teria sido apenas “um giro
campestre onde um certo número de pessoas foram [sic] comer, beber e se divertir... e
nada mais”. Contrapondo-se a essa suposta pasmaceira, as demais reuniões - às quais os
organizadores conferiram um caráter de nítido protesto - foram vistas de forma mais
positiva.
Notamos já que as representações simbólicas atribuídas ao 1º. de Maio
constituem um campo de disputas efetivas que não podemos desprezar. Foi-se o tempo
em que as ciências humanas consideravam o imaginário social como uma esfera
descolada da realidade concreta e material, como o lugar, por excelência, do “ilusório” e
do “quimérico”. Segundo Baczko, o “imaginário social é cada vez menos considerado
como uma espécie de ornamento de uma vida material considerada como a única
190

`real´”219. Em nossa pesquisa, a perspectiva adotada desde o início é a de encarar os


sistemas simbólicos como partes constituintes das relações materiais concretas em que
um determinado grupo se insere. O desafio aqui enfrentado é o de perceber como uma
determinada simbologia atua no interior do campo de disputas em que ela se constitui.
Analisando os artigos acima citados, percebemos que é justamente em meio aos
embates concretos que se configuram os significados simbólicos; estes, em vez de
“deturpar” (ou “mistificar”) a realidade, acabam sendo os veículos privilegiados por
meio dos quais os grupos em tensão fazem prevalecer seus interesses concretos 220.
Parece-nos evidente que os anarquistas sabiam do poder de galvanização que os
símbolos carregam consigo. Estavam conscientes da íntima associação entre atos e
imagens. Eles conheciam bem o poder que as representações imaginárias possuem para
guiar as ações e mobilizar as energias. Sendo assim, resta a perguntar: por que, diante de
tal consciência, não poucos militantes insistiam, no âmbito discursivo, em rejeitar
ostensivamente qualquer traço ritualístico aparente? Os artigos que encontramos
freqüentemente reprovam os rituais e, por extensão, a simbologia por trás deles.
Vejamos apenas dois casos.
O primeiro deles aparece no periódico carioca Novo Rumo, em sua edição de 11
de novembro de 1906. Tal edição foi quase toda dedicada aos Mártires de Chicago.
Estes, como sabemos, foram executados em 11 de novembro 1887. Por se tratar de uma
comemoração cujo significado relaciona-se intimamente com o do 1º. de Maio, a análise
desse artigo (que, de resto, é bem parecido com os já analisados) torna-se uma
exigência.
Em sua introdução, o autor começa com uma espécie de justificativa para a
comemoração dos Mártires. Ele manifesta certo desconforto diante da possibilidade de
se atribuir à comemoração um caráter de idolatria. De forma objetiva e direta, o autor
afirma que o fato que naquele dia se comemora (ou seja, a execução dos Mártires) não é
revestido “do aparato fetichista que caracteriza a todas as seitas religiosas e políticas”.
Temos aqui uma negação declarada de aspectos rituais que aquela comemoração
poderia apresentar. O fetichismo acima mencionado negaria os mais belos sentimentos
revolucionários e seria contrário “a nossa maneira de ser, adversa aos ídolos”. Para o

219
Ver Baczko, Bronislaw. Imaginação Social. In.: Romano, Ruggiero (org.). Op. Cit.; p.298.
220
Ver Baczko, Bronislaw. Ibid.; p.311. “A função do símbolo não é apenas instituir uma classificação,
mas também introduzir valores, modelando os comportamentos individuais e coletivos e indicando as
possibilidades de êxito dos seus empreendimentos”.
191

autor, “a rebeldia altiva e heróica daqueles Espartacos [sic] modernos, não deve ser um
objeto a adorar mas sim um exemplo a seguir”.Ou seja, a justificativa parece clara: não
se trata de idolatrar ninguém, mas sim de incitar, por meio do exemplo dos denodados
Mártires, o pendor revolucionário e o espírito de revolta.
O segundo artigo que gostaríamos de mencionar foi publicado em A Plebe, em
17 de maio de 1919. Trata-se de um texto entusiástico tecendo comentários sobre o
comício que naquele ano ocorrera, em São Paulo, por ocasião das comemorações do 1º.
de Maio. O autor, Otávio (provavelmente Otávio Brandão) descreve de forma emotiva a
multidão e os oradores (“Demóstenes de blusa”) que o eletrizaram. Ele afirma que “pela
primeira vez em São Paulo passeou-se a bandeira negra da anarquia”. Inicia-se então
um curioso excerto por meio do qual, enredado no próprio emaranhado simbólico da
bandeira negra - com suas inúmeras imagens (“bandeira dos desgraçados”, “bandeira-
filosofia”, “bandeira da Dor”) -, Otávio ressalta o caráter supostamente avesso aos
ritualismos que ela carregaria. Para ele, sem “inscrições e emblemas”, tal bandeira seria
“a negação de todos os símbolos e superstições boçais”. Nesse trecho, o autor desfia
uma série de imagens simbólicas por trás da representação do negro. Para ele, sem cor é
a “Fraternidade Universal, a não divisão dos homens em partidos que se digladiam”.
Sem cor é ainda a “Igualdade”. A bandeira é negra porque “não considera divisas nem
galões dourados”. Ela “passa como um protesto e um grito de revolta da multidão”. Para
Otávio, ela é negra enquanto a situação vigente perdurar. Quando o Estado burguês
desaparecer, “ela despirá seu luto e os povos libertados de todos os jugos a desfraldarão
de pólo a pólo, branca como a paz, resplandecente como a Liberdade”.
Parece-nos nítido que os anarquistas (assim como os socialistas em geral),
apesar de rejeitarem no discurso o simbolismo e os ritualismos, não conseguem se
desvencilhar deles. Não devemos achar que essa contradição passou desapercebida
pelos atentos militantes com os quais lidamos. Em um interessante (e não menos
saboroso) artigo publicado em A Voz do Trabalhador no dia 1º. de maio de 1909,
Manuel Moscoso tenta explicitar as inclinações ritualísticas e festivas mal dissimuladas
pelos libertários que estudamos.
Moscoso inicia seu texto (não por acaso intitulado “Contradições...”) dizendo
que os revolucionários estão sempre questionando o caráter festivo da data – assim
como todo o seu simbolismo. Para ele, tal insistência tornou-se uma “rotina” que já
“não produz efeito”. Isso porque, segundo o autor, os “mesmos que a repetem, negam-
192

na com os fatos”. Apesar de se colocarem contra a festa, muitos “tomam parte ativa na
sua organização”. Os próprios revolucionários a sancionariam com sua “transigência”.
Vejamos em que termos o próprio Moscoso coloca aquela situação.

Querendo ser coerentes até o extremo, chegamos ao exagero, e, às vezes, ao ridículo.


Insurgimo-nos contra o culto externo, contra o que chamamos sentimentalismo e contra os
símbolos, porém falamos ao sentimento das massas, marchamos atrás duma bandeira
vermelha221, e o som dum canto revolucionário comove-nos...
O nosso mal consiste em alimentar-nos de ilusões. A realidade espanta-nos. À procura de
justificações, enveredamos com freqüência pelo terreno da metafísica e do sofisma.

Ele termina fazendo um apelo para que “gritemos menos contra o caráter de
festa [...] e trabalhemos mais por dar o caráter de protesto que afirmamos deve ter.”
Portanto, Manuel Moscoso não nega (pelo contrário) o caráter de protesto que a data
deveria possuir. O que ele diz é que não adianta insurgir-se contra seu aspecto festivo
(e, por extensão, simbólico) porque até o mais empedernido revolucionário comove-se
com ele e é com ele “aquiescente”.
Com todas as letras, o camarada Moscoso expõe claramente a questão. Em seu
artigo ele aponta para a incongruência que os militantes anarquistas manifestariam todos
os anos: em seus artigos, insurgiam-se contra a festa e os símbolos; nas ruas, em praça
pública ou nos salões, comoviam-se com os aspectos externos e ritualísticos das
comemorações. Moscoso indica também a ineficácia do discurso diante da atração
exercida pela festa e pelo símbolo. Para ele, o palavreado vão e ostentoso já não produz
efeito. Talvez o mais interessante aqui seja que, em seu raciocínio, o autor coloque a
“metafísica” e o “sofisma” não ao lado do simbolismo, mas sim atrelados à sua suposta
negação. Por fim, Moscoso consegue, em seu artigo, conciliar os dois termos da
questão que pareciam incompatíveis: a “festa” e o “protesto”. Sem descartar a primeira,
ele demonstra a necessidade de se enfatizar o segundo.
Finalmente, podemos perguntar: em que consistem aquelas “contradições” a que
se refere Moscoso no título de seu interessante artigo? Segundo Hobsbawm, o mais
interessante na análise dos rituais do operariado é que eles justamente se desenvolveram
em um “movimento que era em alguns pontos não apenas indiferente ao ritualismo, mas

221
Sobre as relações entre a bandeira vermelha e o 1º. de Maio, ver Hobsbawm, Eric. Op. Cit.; p. 110.
Segundo o autor, “a demonstração de 1º. de Maio”, pelo menos na França, “institucionalizou a bandeira
vermelha”.
193

ativamente hostil a ele, como forma de irracionalismo” 222.Sendo assim, por que, afinal,
tanto na peça como nos artigos e imagens da imprensa anarquista pululam as
representações simbólicas? Por que, nas próprias comemorações que os céticos
libertários organizavam, manifestavam-se não poucos traços rituais?
Mais uma vez, quem nos ajudará a enfrentar estas questões é o historiador
Bronislaw Baczko. Segundo ele, as ciências humanas já reconheceram “as funções
múltiplas e complexas que competem ao imaginário na vida coletiva e, em especial, no
exercício do poder”. Após anos de elucubrações, os cientistas sociais finalmente
descobriram aquilo que os anarquistas já sabiam, na prática, há muito tempo: que “o
domínio do imaginário e do simbólico é um importante lugar estratégico” 223 - e que os
poderes constituídos são zelosos na proteção de seus bens simbólicos (monumentos,
emblemas, carisma etc.).
Ora, não é à toa que, desde o início das comemorações em torno do 1º. de Maio,
não foram poucos os governantes que entraram nas disputas simbólicas (mas não
ilusórias) com os socialistas de todos os matizes. Aqui mesmo, no Brasil (em plena
República Velha!), discutiu-se seriamente o reconhecimento oficial da data. Por fim, o
excelentíssimo presidente Arthur Bernardes transformou o 1º. de Maio em feriado
nacional, conferindo a ele novos significados. Desnecessário dizer, esse nobre gesto de
Bernardes destituiu os anarquistas de uma parcela não desprezível de influência sobre
aquele dispositivo galvanizador de energias.
Por isso, a aversão aos rituais que os libertários em geral manifestavam não era
um simples acesso de fúria racionalista. Na verdade, assim como na questão da festa -
só que de uma maneira mais sutil -, o problema aqui não residia no ritual “em si”. O que
estava em questão eram os usos que os poderes constituídos (e/ou os oponentes de
outros matizes) faziam dos mecanismos simbólicos como forma de controle político e
social. Conscientes da força real do imaginário e dos símbolos, os anarquistas que
estudamos resolveram enfrentar os poderosos utilizando-se de suas armas, travando
uma batalha “no terreno que eles [poderosos] haviam açambarcado”.Criaram então uma
espécie de “contra-imaginário” que serviu como “arma de combate” e, ao mesmo
tempo, como “instrumento de educação destinado a inculcar no espírito do povo novos

222 Ibid.; p. 101.


223
Ver Baczko, Bronislaw. Imaginação Social. In. Romano, Ruggiero (org.). Op. Cit.; p. 297.
194

valores e novos modelos formadores”224. Daí aquele indisfarçável ritualismo (ou, se


preferir, “ritualismo às avessas”) que - mesmo por detrás da mais virulenta iconoclastia
- teimava em se manifestar (nos textos e nas ruas, nos artigos e no calor das
comemorações).
Na constituição de seu “contra-imaginário”, os anarquistas recorreram a
representações simbólicas oriundas de fontes adversas aos poderes constituídos. Não
foram poucos, por exemplo, os mitos políticos revolucionários incorporados no
imaginário ácrata daqueles militantes.
Em sua análise dos mitos revolucionários da Revolução Francesa, Baczko
ressaltou o caráter de “ruptura temporal” que, segundo ele, estaria no próprio “centro”
do imaginário social que se constituiu naquele evento. Vejamos de perto o que diz o
historiador polonês. Referindo-se ao calendário republicano que surgiu no período da
Convenção – calendário que representa, no campo simbólico, essa “ruptura”
fundamental com o passado -, Baczko afirma:

Esta representação desdobra-se, por sua vez, num vasto sistema de símbolos – Nação regenerada,
Homem novo, Cidade nova, etc. – que agem por reação em cadeia, de forma a reforçarem-se e a
convergirem na promessa de um futuro outro, numa promessa indefinida de Vida Nova, feliz e
virtuosa, libertada de todos os males do passado.
Dizer e imaginar a Revolução enquanto ruptura corresponde a opor o passado, ao qual ela põe
termo, ao futuro que ela inaugura. A grande promessa revolucionária é também mobilizadora
pelo seu reverso: a representação da ruptura temporal apela para a destruição do antigo, do ci-
devant.225

Pudemos perceber que são inúmeras as idéias-imagens de “ruptura” e


“transformação” que emergem tanto na peça de Gori quanto nos artigos sobre o 1º. de
Maio que analisamos. Todas essas imagens, como vimos, transmutam-se nas complexas
representações de “mundo novo”, “porvir melhor”, “cidade feliz” etc. A superação
daquele velho mundo de opressões que o Estado (associado ao Capital) engendrou, é
uma projeção imaginária recorrente nos documentos sobre os quais nos debruçamos até
aqui (principalmente nas abordagens da peça). É claro que os mitos políticos da
Revolução Francesa (assim como os de outras revoluções e protestos igualmente
inspiradores), quando incorporados no imaginário anarquista, adquirem novas

224
Ibid.; 301.
225
Ver Baczko, Bronislaw. Utopia. In. Romano, Rugiero. Op. Cit.;pp.370-371.
195

conotações e constituem uma sintaxe perceptiva peculiar. No entanto, parece-nos


evidente que os mesmos mitos revolucionários citados por Baczko no exemplo francês
manifestam-se também (em sua configuração atualizada) no imaginário dos anarquistas.
Se no centro do imaginário que esses anarquistas desenvolveram estavam os
mitos políticos revolucionários, se estes, por sua vez, só funcionam quando afinados
pelo diapasão da “ruptura”, parece-nos claro que, para garantir a eficácia de suas
representações específicas, seria preciso que esse mesmo imaginário (assim como sua
promessa revolucionária) fosse, também ele, “mobilizador pelo seu reverso”.Ou seja,
era necessário fazer com que o seu simbolismo revestisse-se de um aspecto anti-
simbólico; era preciso que sua exterioridade (naquilo que ela possui de mais
“ritualizada”) manifestasse um aspecto invertido, declaradamente “anti-ritual”.
Sendo assim, da perspectiva de um “contra-imaginário” fundamental, as tais
“contradições” identificadas por Moscoso são, na verdade, necessárias na constituição
intrínseca daquele sistema simbólico específico. Poderíamos mesmo dizer que sem elas
aquele “contra-imaginário” nem sequer se constituiria; ou, pelo menos, constituir-se-ia
de maneira bem diversa, talvez contrária às expectativas dos militantes que estudamos.
Mesmo no esforço explícito de desmascarar as incongruências entre “prática” e
“discurso”, Moscoso, em seu artigo, demonstra que, no âmbito das próprias
comemorações em torno do 1º. de Maio, não havia, de fato, nenhuma incompatibilidade
irreconciliável entre “ritos” e “protestos”. Ambos conjugavam-se intrinsecamente - se
não sempre nos textos, ao menos nas comemorações coletivas.
Agora, é claro, por se tratar de um ritualismo “mobilizador por seu reverso”, tal
conjugação não poderia mesmo ocorrer de forma suave, tranqüila, sem “contradições”.
A condição para que aquele “contra-imaginário” se desenvolvesse residia na própria
negação das “exterioridades” e dos simbolismos. Estes, como bem salientou Baczko,
nunca foram negligenciados pelos donos do poder. Portanto, na constituição do “contra-
imaginário” anarquista, os simbolismos precisavam ser combatidos. Caso contrário, os
combativos militantes com os quais trabalhamos perderiam a oportunidade de imprimir
às disputas pelo simbólico as configurações com as quais eles tanto se identificavam.
Ou, o que seria pior (do ponto de vista deles), os anarquistas relacionar-se-iam com os
outros grupos que constituíam aquele campo de disputas pelo simbólico sem demarcar
196

seu território, sem configurar sua própria identidade226, confundindo-se com os outros e
perdendo, já de antemão, um importante espaço de afirmação no interior daquela zona
conflituosa.
Não obstante o necessário desabafo de Moscoso (alguém precisava dizer o que
ele disse!), na verdade, pensamos que as tais “contradições” a que ele se refere são
partes constitutivas do “contra-imaginário” que os anarquistas desenvolveram; são
mesmo necessárias em sua constituição. Ao insistir, no fim do texto, no caráter de
protesto que, apesar da festa (ou mesmo em sintonia com ela), o 1º. de Maio deveria
manifestar, o próprio Moscoso sabia que não dava simplesmente para reproduzir os
símbolos e rituais identificados alhures; era preciso conferir a eles um caráter próprio,
específico, que garantisse aos anarquistas, naquele campo de disputas pelo simbólico,
uma posição de enfrentamento digna de reconhecimento pelos adversários. Era
necessário que os anarquistas participassem daquela luta pelo simbólico de forma altiva
e descolada dos demais antagonistas. Por mais “contraditória” que possa parecer, a
solução encontrada foi a seguinte: conferir aos símbolos e rituais um caráter de protesto,
recusando a eles justamente seu estatuto simbólico e ritual. E essa é, talvez, a
característica mais intrigante que o imaginário anarquista manifesta; ela bem mereceria
um estudo específico.

3.5.1. Imaginário e mobilização – o período entre 1917 e 1919


No presente estado de nossa análise, cabe perguntar: afinal, se as representações
simbólicas possuem um poder de persuasão não desprezível, se os anarquistas vinham já
demarcando seu território nesse campo de disputas que o imaginário constitui, teriam
eles conquistado alguma influência efetiva sobre o sistema de representações em torno
do 1º. de Maio? De alguma forma, os significados que os militantes anarquistas
desejavam conferir ao 1º. de Maio obtiveram uma ressonância maior junto à classe
trabalhadora? Há indícios de que aquelas batalhas por eles travadas nessa zona
conflituosa não foram em vão?

226
Sobre a questão da “identidade” e suas relações com o imaginário social, ver Baczko, Bronislaw.
Imaginação Social. In.: Romano, Ruggiero (org.). Op. Cit.; p.309. Para o autor, “designar a identidade
coletiva corresponde, do mesmo passo, a delimitar o seu `território´ e as suas relações com o meio
ambiente e, designadamente, com os `outros´; e corresponde ainda a formar as imagens dos inimigos e
dos amigos, rivais e aliados, etc. O imaginário social elaborado e consolidado por uma coletividade é uma
das respostas que esta dá aos seus conflitos, divisões e violências reais ou potenciais”.
197

As reportagens e artigos analisados até aqui denotam um indisfarçável


desencanto frente aos resultados com o esforço de mobilização envidado pelos círculos
libertários. Os articulistas que investigamos, na maioria das vezes, atribuíam às classes
trabalhadoras uma decepcionante indiferença diante das comemorações em torno do 1º.
de Maio e, por extensão, diante de seu próprio destino. Uma das exceções até agora
identificadas foi aquele texto de Otávio, publicado em 1919 no periódico A Plebe. Ao
narrar as comemorações da efeméride naquele ano, o autor, num estilo arrebatado e
entusiástico, afirma: “Agora sei, ó multidão, o que é o `frisson´ das grandes emoções.
Agora compreendo, ó massa, a tua força, o teu magnetismo, a tua fúria irresistível”. Ao
se referir aos oradores que discursaram naquelas comemorações, Otávio, de forma
efusiva, chama-os de “Demóstenes de blusa”.
Não por acaso, o tom otimista manifestado por Otávio insere-se em um período
novo, diferente daquele que existira até então. Podemos dizer que o tom geral dos
comentários a respeito das comemorações em torno do 1º. de Maio muda sensivelmente
entre os anos de 1917 e 1919, considerados por Foot Hardman como período de
“ascenso mobilizatório” das classes trabalhadoras227. Nesses agitados anos, os
periódicos anarquistas descrevem manifestações massivas nas comemorações da
efeméride. Ao que tudo indica, as propagandas e os esforços de anos anteriores estavam
dando frutos! Vejamos de perto como se expressa esse novo tom entusiástico.
Em reportagem intitulada Guerra à Guerra!- A entusiástica manifestação de 1º.
de Maio, publicada no periódico Guerra Sociale228 do dia 19 de maio de 1917, o autor
anônimo faz um jubiloso relato das comemorações da data em São Paulo. Ele inicia
dizendo que a manifestação de 1º. de Maio “correu muito animada”, talvez a “mais
entusiástica realizada nestes últimos tempos em São Paulo”. Tal estado de mobilização
seria, segundo o autor, “a prova de quanto vale a vontade de agir em prol da causa por
nós esposada”. Depois de narrar os meetings localizados que ocorreram na Lapa, no
Brás, no Bom Retiro e no Pari, o autor compõe o clímax de seu texto relatando os
episódios que se desenrolaram na praça da Sé, onde aqueles diferentes grupos locais
reuniram-se por volta das 8 horas da noite.

227
Sobre o período de ascenso da classe trabalhadora, ver Foot Hardman, Francisco. Nem Pátria, Nem
Patrão!; São Paulo, Editora Unesp; 2002, pp. 53-54. Ver também Fausto, Boris. Op. Cit.; pp.158-159.
228
O periódico Guerra Sociale surgiu em São Paulo no ano de 1915 e era editado por Angelo Bandoni. A
respeito, ver Ferreira, Maria Nazareth. Op. Cit.; p. 93.
198

O mesmo tom nós percebemos, naqueles agitados anos, nas notícias referentes
às comemorações no Rio de Janeiro. Naquele período de intensa mobilização, parece
que até mesmo aquela cidade - vista antes de forma tão desalentadora pelos articulistas
da imprensa operária - resolveu protestar! Em reportagem de A Plebe, publicada em 10
de maio de 1919, o autor utiliza um estilo entusiástico ao narrar o 1º. de Maio no Rio.
Segundo ele, “todos os jornais” comentaram que nunca houve, na cidade, comemoração
tão grandiosa quanto aquela: 50 mil manifestantes participaram do comício (na praça
Mauá) e depois desfilaram pelas ruas. Segundo o autor, os oradores foram muito
aplaudidos, sobretudo quando se referiam “aos novos tempos que se aproximam”. Esse
grande contingente (e o próprio sucesso do protesto) seria a manifestação da força
arregimentada para enfrentar a burguesia nas “pugnas de amanhã”229.
Os textos que acabamos de analisar, publicados na imprensa anarquista dos anos
1917-1919, são nitidamente mais otimistas do que aqueles do período anterior. Diante
do espírito crítico aguçado dos articulistas daquela imprensa, diante das infalíveis
observações mordazes que eles faziam contra aquilo que fugisse às suas expectativas
(incluindo as próprias organizações de seus estimados companheiros), podemos
acreditar na sinceridade do entusiasmo manifestado nos artigos acima. Estes, sem
dúvida, oferecem indícios consistentes de uma reciprocidade da classe trabalhadora
frente às mensagens transmitidas pelos militantes libertários.
Tomando Baczko como fundamento, poderíamos dizer que boa parte dessa
influência dos militantes que estudamos junto aos trabalhadores foi conquistada por
meio de suas pressões no campo das representações simbólicas. Vejamos, mais uma
vez, o que diz o autor citado.

O controle do imaginário social [...] assegura em graus variáveis uma real influência sobre os
comportamentos e as atividades individuais e coletivas, permitindo obter os resultados práticos
desejados, canalizar as energias e orientar as esperanças.230

Tendo em vista que os militantes com os quais lidamos combatiam há anos no


campo das representações simbólicas, não seria exagero concluir afirmando que, de

229
Em geral, nos artigos que analisamos, as manifestações do 1º. de Maio são vistas como uma espécie de
“termômetro” que mediria o grau de mobilização e consciência das classes trabalhadoras. As
comemorações seriam, assim, uma oportunidade de medir forças com a burguesia e de fazer um ensaio
geral para a luta que não tardaria.
230
Ver Baczko, Bronislaw. Imaginação Social. In. Romano, Ruggiero (org.). Op. Cit.; p. 312.
199

fato, naquele período de intensa mobilização, eles obtiveram importantes conquistas na


orientação da classe trabalhadora. Os artigos acima citados permitem-nos perceber que,
por meio do domínio das representações simbólicas, naqueles agitados anos de 1917 a
1919 (ou 1920), os anarquistas (e/ou sindicalistas revolucionários) conseguiram grande
projeção no interior movimento operário, configurando muitas de suas práticas e
conferindo a tal movimento seus significados simbólicos específicos. Aliás, arriscamo-
nos a dizer que foi por meio da afirmação de tais significados simbólicos que eles
conseguiram então impor seus valores e sua própria visão de mundo. Mas, como
sabemos, nada dura para sempre. Na verdade, nuvens de chumbo adensavam-se no céu
do movimento operário. A feroz repressão, associada às eficientes estratégias oficiais de
controle do imaginário, quebraram as pernas dos combativos militantes anarquistas. De
lá para cá... Bom, isso já é uma outra história.
200

O PECADO DE SIMONIA E GREVE DE INQUILINOS, DE NENO VASCO

4.1. Preâmbulo
Vimos, no primeiro capítulo, que um dos grupos amadores mais ativos do Rio de
Janeiro foi o Grupo Dramatico Teatro Social (o primeiro). Este, como sabemos, atuou
intensamente entre os anos de 1906 e 1908. Suas atividades eram divulgadas com
freqüência no periódico A Terra Livre, sobretudo na época em que tal jornal foi
publicado naquela cidade – entre os anos de 1907 e 1908231. Foi justamente nessa
época de encenações constantes que o Grupo Teatro Social levou ao palco duas peças
inéditas escritas por Neno Vasco, um influente anarquista português que viveu entre São
Paulo e Rio de Janeiro na primeira década do século XX 232. As duas obras de sua
autoria, O Pecado de Simonia e Greve de Inquilinos, foram escritas num período de
menos de um ano e possuem alguns traços em comum: são relativamente curtas (ambas
foram compostas em um único ato) e apresentam inúmeras cenas hilariantes. A primeira
peça é nomeadamente uma “comédia anticlerical”, enquanto que a segunda é
qualificada como uma “farsa”. Devemos frisar que as duas foram muito bem aceitas
pelo público. Após o Grupo Teatro Social apresentar as duas peças nos palcos do Rio,
elas aparecem constantemente nos anúncios de festas operárias – tanto naquela cidade
quanto em São Paulo. Junto com Primeiro de Maio, de Pietro Gori, O Pecado de
Simonia e Greve de Inquilinos talvez tenham sido as peças mais encenadas do teatro
anarquista no período que estudamos em nossa pesquisa.
Para se ter uma idéia do “sucesso” e da perenidade das duas obras, mais de doze
anos depois de suas respectivas estréias elas continuaram bastante “badaladas”. Ambas
são não apenas encenadas com freqüência nos salões das festas operárias, como também
um tanto procuradas para publicação.
Na edição de 9 de outubro de 1920, o periódico A Plebe publicou uma nota
informando que o Grupo Juventude do Futuro acabara de editar a comédia O Pecado de

231
O periódico A Terra Livre foi fundado originalmente em São Paulo por Neno Vasco, Manuel Moscoso
e Edgar Leuenroth. Até 10 de maio de 1907 esse periódico foi publicado ainda nesta cidade. A partir de
25 de maio de 1907, ele se estabeleceu no Rio de Janeiro, onde ficou até 20 de agosto de 1908. Desde
então, o periódico A Terra Livre volta a ser publicado em São Paulo - até o ano de 1910, quando
desaparece.
232
Gregório Nazarieno Moreira de Queiroz e Vasconcelos, mais conhecido como Neno Vasco, nasceu em
Portugal no ano de 1878. Em 1901, ele emigrou pela segunda vez ao Brasil. Iniciava-se então uma fase de
intensa militância. Até 1910, Neno Vasco transitou entre as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.
Naquele mesmo ano de 1910, o advogado, escritor e jornalista anarquista (ou anarcossindicalista) voltou
para Portugal, onde faleceu dez anos depois.
201

Simonia. Uma semana depois (em 16 de outubro de 1920), o mesmo periódico


apresentava outra nota divulgando o lançamento do opúsculo. Por meio dela,
descobrimos que cada exemplar daquela comédia recém-publicada seria vendido por
500 réis, sendo que as encomendas com mais de 25 exemplares teriam um desconto de
25% (de fato, um preço bem baixo). Graças ao trabalho desenvolvido por Maria
Thereza Vargas e Mariângela Alves de Lima, uma das cópias dessa edição
(provavelmente a primeira e única) encontra-se em nossas mãos. Trata-se de uma
daquelas edições de bolso acessíveis ao grande público. Tem o formato parecido com o
de um cordel. Para além do intuito claro de divulgação e propaganda, o que salta aos
olhos nessa edição é que seu preço e seu formato revelam-nos uma nítida apropriação
dos modos e usos da cultura popular. Como veremos neste capítulo, o próprio conteúdo
dessa obra apresenta também inúmeros elementos provenientes dessa mesma cultura.
Certamente empolgados com a edição de O Pecado de Simonia, menos de um
mês depois, os membros do Grupo Juventude do Futuro lançam uma nova nota naquele
mesmo periódico. Esta afirma expressamente:

Pede-se a quem tiver “A Greve de Inquilinos”, comédia do camarada Neno Vasco,


enviá-la a Cecílio Martins – caixa, 195 – S. Paulo.
Este centro solicita também aos camaradas que possuírem originais de trabalhos de
propaganda do companheiro Neno, enviá–los ao mesmo endereço, para serem editados233

Infelizmente, não sabemos se o Grupo Juventude do Futuro conseguiu editar


também essa outra peça de Neno Vasco – não encontramos nenhum exemplar dessa
obra que tenha sido editado pelo grupo. No entanto, aproximadamente três anos depois
(em 1923), apareceu em Portugal um opúsculo de Greve de Inquilinos editado em
Lisboa pela “Seção Editorial de `A Batalha´”. Se esta peça de Neno Vasco foi
publicada naquele país, é porque também lá ela despertava algum interesse junto ao
público anarquista. É com essa edição portuguesa que trabalharemos em nossa pesquisa.
Ela apresenta o mesmo formato “de bolso” daquela de O Pecado de Simonia. Quanto ao
preço desse opúsculo, nada podemos dizer: ele não foi registrado na capa e não
encontramos nenhuma indicação a esse respeito nos periódicos da imprensa operária.

233
Ver A Plebe, 6 de novembro de 1920.
202

Fica claro, portanto, que essas duas obras de Neno Vasco fizeram um relativo
“sucesso” nas festas operárias de São Paulo e do Rio durante as duas primeiras décadas
do século XX. É evidente também que elas repercutiram para além do período e das
cidades que abarcamos em nossa pesquisa. Por tudo isso, dar a elas uma atenção
especial chega a ser uma exigência – quando não um prazer.
Neste capítulo, analisaremos essas duas peças respeitando o critério cronológico
de antecedência. Primeiro, voltaremos nossas atenções para O Pecado de Simonia
(encenada pela primeira vez em julho de 1907); depois, faremos uma análise de Greve
de Inquilinos, cuja estréia ocorreu em março de 1908.

4.2. A estréia de O Pecado de Simonia – um espetáculo bem comentado


Entre os meses de junho e julho de 1907, o periódico A Terra Livre anunciou,
em suas edições semanais, a realização de uma festa prevista para ocorrer no dia 14 de
julho daquele ano no sempre requisitado salão do Centro Galego 234. De acordo com o
anúncio, o evento organizado pelo Grupo Dramático Teatro Social seria em benefício
do mesmo periódico acima citado e de “`Tierra y Libertad´ de Madri” 235. Da
programação constavam as estréias, no Brasil, de três peças que depois encontramos em
outros anúncios divulgados pela imprensa operária. A primeira delas era As Vítimas, de
Frederico Boutet (com tradução de Carlos Nobre). A segunda era Hambre!, um “boceto
social num ato de Romolo Ovidi”, anarquista de origem italiana que viveu entre a
Argentina e o Brasil nos primeiros anos do século XX. Por fim, completamente inédita,
subiria ao palco O Pecado de Simonia, “comédia num ato do camarada Neno Vasco”.
Dias depois, em 4 de agosto de 1907, A Terra Livre publicou uma notícia dessa
festa anunciada com regularidade. Seu autor, C.M., logo no início afirma que aquele
evento “teve o mais franco êxito, estando a casa repleta”. Vejamos melhor o que isso
significa para o autor analisando outro registro sobre o evento.
Um balancete publicado no mesmo periódico no próprio dia do espetáculo (14
de julho) oferece-nos algumas pistas sobre custos e espectadores. A análise atenta deste
documento mostra um pouco a dimensão daquilo que C.M. julgava ser uma “casa
repleta”. Segundo o balancete, foram vendidas com antecedência “185 entradas a 2$”,
totalizando um saldo bruto de 370$000 só com os convites. Em nota, o grupo afirma
234
Ver A Terra Livre, edições de 22.06.1907, 30.06.1907, 07.07.1907 e 14.07.1907.
235
No balancete da festa, publicado naquele mesmo periódico em 14 de julho de 1907, aparece a
informação de que o jornal Tierra y Libertad era de Barcelona, não de Madri.
203

que faltavam “ainda para cobrar 8 entradas”. Sabemos que em eventos do tipo era
comum a venda de ingressos na porta.O que se obteve com a venda desses ingressos,
obviamente, não poderia aparecer no balancete, uma vez que este foi publicado no exato
dia em que o evento iria acontecer. No entanto, não devemos exagerar o número de
entradas no momento do espetáculo. Nas festas com as quais lidamos, os convites
adquiridos na porta nunca excediam os 15 ou 20% das entradas vendidas com
antecedência. Também devemos considerar que nem todos os que compravam ingressos
antecipadamente acabavam indo à festa. Portanto, podemos dizer, sem receio, que havia
naquele evento um público de aproximadamente 200 pessoas.
Esse dado serve apenas para que possamos mensurar o que C.M. entendia como
sendo uma “casa repleta”. No entanto, esse número, por si só, não dá conta de explicar o
que o mesmo autor julgava ser o “franco êxito” daquele evento. Afinal, como vimos em
nossa introdução, o “sucesso” ou “fracasso” de espetáculos como os que estudamos não
se mede por meio de dados numéricos que totalizam a quantidade de consumidores. Na
esteira de Walter Benjamin, acreditamos que o trabalho do “autor consciente [...] não
visa nunca a fabricação exclusiva de produtos, mas sempre, ao mesmo tempo, a dos
meios de produção”236. Ou seja, é preciso analisar com certa profundidade o efeito que
um espetáculo do gênero pode ter causado junto ao público – mesmo que este não seja
numericamente muito grande. Acreditamos que, mesmo sem conhecer Benjamin, os
militantes com os quais lidamos (e C.M. não pode ser uma exceção) sabiam, à sua
maneira, que o “sucesso” de seu esforço media-se não pela quantidade de consumidores,
mas sim pela qualidade da “propaganda” realizada. Portanto, se buscamos indícios
sobre esse efeito causado no público, devemos esquecer o balancete e atentar um pouco
para o que nos diz C.M. em sua notícia sobre a festa.
Nela, descobrimos, por exemplo, que a peça Hambre! (em espanhol), “por falta
de uma amadora”, teve de ser substituída “à última hora” por O Mestre, de Rousselle,
“já bem conhecida e sempre apreciada”. A atuação dos amadores em As Vítimas, de
Frederico Boutet, não mereceu de C.M. comentários muito abonadores. Vejamos o que
diz o autor a seu respeito: “`As Vítimas´ [...] deixou muito a desejar quanto à
representação, o que não admiro conhecendo-se a psicologia que aí entra em ação e as

236
Ver Benjamin, Walter. Obras Escolhidas – Magia e Técnica, Arte e Política.Editora Brasiliense, São
Paulo, 1996; p.131.
204

dificuldades materiais com que luta o nosso prestimoso e abnegado grupo de


amadores”.
Ora, se a encenação de As Vítimas não agradou muito C.M, o mesmo não
podemos dizer sobre a atuação do grupo em O Pecado de Simonia. Segundo o autor, “o
clou da festa, o que fez desamonar [?] a sala” foi a encenação da comédia anticlerical
“do camarada Neno Vasco”. Num sincero elogio à peça, C.M. afirma que “não pode
haver melhor para o teatro de amadores”. Logo em seguida, o autor inicia um pequeno
resumo do enredo. Tal resumo termina com o relato da hilariante cena final. Esta, de tão
engraçada, teria feito os espectadores apertarem “a barriga para não arrebentar de riso”.
Finda a festa, o público, sempre de acordo com o autor, “muito contente e aliviado das
contrariedades da vida”, foi dormir “tranqüilo e feliz sob a doce impressão daquela
noite”. Quanto à peça O Pecado de Simonia, C.M. arrisca um vaticínio: “Tão cedo os
habitués do G.D. Social não largam a comédia do nosso estimado camarada Neno
Vasco”. De fato, acompanhando os anúncios posteriores daquele grupo teatral, vemos
que aquela comédia anticlerical foi incorporada de vez ao seu repertório. Aliás, não foi
apenas o Grupo Teatro Social que passou a encená-la com freqüência. Como vimos
acima, a peça O Pecado de Simonia transformou-se em uma espécie de carro-chefe do
teatro anarquista, sendo encenada por diferentes grupos amadores de São Paulo e do
Rio. Vedete das festas operárias, aquela comédia de Neno Vasco manteve sua vitalidade
para além da morte do próprio autor, ultrapassando até o período abarcado em nossa
pesquisa.
No entanto, nosso objetivo não é saber o que “de fato” aconteceu naquela noite.
O que pretendemos aqui é simplesmente entender qual o sentido dos comentários que
aquele autor tece em sua notícia. Quando C.M. afirma que aquele evento obtivera um
“franco êxito”, o que exatamente ele quer dizer com isso? A conclusão a que chegamos
é que, de fato, o que ele entende como sendo o “sucesso” de uma festa está bem de
acordo com a perspectiva benjaminiana adotada em nossa pesquisa. Atento ao impacto
da encenação junto ao público, C.M. faz um prognóstico que, do ponto vista
retrospectivo do historiador, chega mesmo a surpreender! Afinal, ele percebe desde
aquele momento que a peça de Neno Vasco teria vida longa nos palcos das festas
operárias (pelo menos naquelas organizadas pelo grupo Teatro Social). Não que C.M.
fosse algum profeta iluminado capaz de fazer qualquer espécie de previsão futurista.
Não. Ao que tudo indica, ele era apenas um militante experiente e sensível ao gosto do
205

público que freqüentava aqueles eventos. Com certeza, o espetáculo por ele comentado
não foi o primeiro que ele assistiu (e provavelmente não seria o último). Não
surpreende, então, a agudeza de suas observações no tocante àquilo que estava ou não
de acordo com as preferências dos “habitués” aos quais ele se refere.
Sendo assim, tendo em vista que a comédia O Pecado de Simonia passa a ser
encenada com freqüência naquelas festas, ensejando novos eventos e mobilizando os
militantes a publicá-la e divulgá-la (isto é um fato, não uma previsão), cabe então a
pergunta: na perspectiva adotada em nossa pesquisa (que, por sinal, é semelhante a de
C.M.), aquela festa em que a obra do anarquista português aparece pela primeira vez
obteve ou não um “franco êxito”?

4.3. Um resumo
Antes de tudo, faremos um pequeno resumo de O Pecado de Simonia com o
intuito de preparar o leitor para as reflexões que esta peça nos sugere.
É claro que, nos textos dramáticos, as informações sobre cenário e personagens
que antecedem o enredo são de suma importância. Por isso, iremos transcrevê-las
abaixo exatamente do jeito que elas aparecem na página 3 da edição com a qual
lidamos.

Rosa Rodrigues, viúva, de cerca de 50 anos.


Eva, sua filha, florista, 20 anos; jovem viva, alegre e saltitante.
Ciro Leal, operário gravador, 23 anos; caráter enérgico, mas afável; ar inteligente.
Padre João, jesuíta, de meia idade, magro e sorna. Usa sotaina.
José vendedor de bilhetes: “Corre hoje”.
Dois homens e duas mulheres nos bastidores.

Atualidade

A cena representa uma sala de família pobre. Algumas cadeiras modestas: uma mesa
com apetrechos de florista a um lado, do outro um oratório, defronte da porta que dá para o
jardim. Ao fundo, uma porta e uma janela baixa para a rua; à esquerda, duas portas para
aposentos da casa; à direita, uma janela baixa, perto do proscênio, e uma porta, perto da janela da
rua: ambas deitam para um corredor descoberto que leva ao quintal. Quando o pano sobe, Eva
conversa com Ciro, que está na rua, do lado de fora da janela.
206

Inicia-se a cena 1 com Eva contando a Ciro as desconfianças de sua mãe para
com a figura do rapaz. Segundo a garota, sua mãe não gosta dele por causa da fama que
ele possui: “fama de herege... de incrédulo... de inimigo dos padres e da igreja”. Eva
afirma que quem coloca essas idéias na cabeça de sua mãe são as vizinhas e o padre
João (a quem a garota manifestamente odeia). Ciro afirma que, para essas pessoas, ele
deve ser um “Anti-Cristo”. Segundo o rapaz, isso ocorre porque ele não se encobre.
Continuando seu relato ao jovem operário, Eva afirma que o jesuíta tentou
convencer a sua mãe de que ele, Ciro, pertencia a uma sociedade secreta em que, por
meio de sorteio, escolhe-se quem matará o próximo “rei ou qualquer poderoso”. Ciro dá
risada: “Ah, ah, ah... é isso que entende por anarquista?”. O operário gravador pergunta
a Eva o que ela dissera então para sua inocente mãe. Eva afirma que tentou convencê-la
de que o padre João era um mentiroso. Baldada foi a tentativa: na descrição da jovem
florista, sua mãe ficou zangada com a acusação, sustentando que aquele padre não era
capaz de mentir.
Na seqüência, Eva afirma que, num daqueles dias, sua mãe encontrou um
“livrinho” sobre “amor livre” que o Ciro lhe emprestara. Segundo Eva, sua mãe ficou
indignada, dizendo que aquilo era “uma coisa diabólica”. Aproveitando o ensejo, Ciro
pergunta à jovem se ela estava lendo os livros e folhetos que ele lhe dera. Com a
resposta afirmativa de Eva, Ciro pergunta se ela gosta daquelas leituras. “Muito...”,
responde Eva - “Quantas verdades!”.
Estamos já no final da cena 1, momento afetuoso em que Eva e Ciro dão-se as
mãos. Neste exato instante, quem aparece? A “sogra”, como em muitas cenas do
gênero. Ciro, quando a vê, “retira-se sem precipitação”. Eva, por sua vez, senta-se à
mesa de trabalho e “fica com os olhos baixos, mas digna” [grifos nossos]. Já na cena 2,
Rosa dirige-se a Eva perguntando ironicamente: “A velha veio espantar os dois
pombinhos?... Coitados!...”. Logo em seguida, ralha com a garota e justifica sua
indignação mencionando os mexericos das vizinhas, sempre atentas ao que se passa
entre a garota e o jovem “atrevido”. “E sabes o que diz o sr. Padre João?”, pergunta
Rosa à jovem florista. Esta sorri e sua mãe indigna-se com a suposta insolência da
garota.
Eva pergunta à mãe o que importa o que as vizinhas e o padre (“intrometido e
vagabundo”) dizem. Preservando a reputação de Ciro (e a sua própria), a jovem contra-
ataca ofendendo o padre. Rosa indigna-se de novo, acusando Ciro de ter transtornado a
207

cabeça da moça. Furiosa, a mãe atira um chinelo na filha. “Ah! pensas que já não tenho
mãos para te sovar como d´antes?”, pergunta a senhora em tom ameaçador.
Eva,“revoltada”, diz que não aceita intimidações desse tipo. Depois, mais amável, tenta
convencer a sua mãe de que tudo tem feito para dar a ela o melhor (respeito, amor,
alegria...). O curioso de sua fala é que, por meio dela, descobrimos que Rosa tinha mais
um filho, Antonio. Este, desde que virou soldado, sumiu: não escreve, nem quer saber
da família. Eva é quem assume sozinha todas as obrigações da casa. De relance,
insinua-se em cena o importante tema do antimilitarismo, tão cultivado pelos militantes
libertários de então.
Ante a defesa que Eva faz de si mesma, Rosa afirma: “Fizeste a tua
obrigação...”. A afetuosa garota diz que tudo o que fez foi por amor, não por obrigação.
Mais: gostaria de continuar; mas só não aceita ser tratada “como uma escrava”[grifos
nossos]. Eva tenta novamente convencer a sua mãe de que tem razão. Rosa, mais uma
vez irritada, pressiona sua filha a deixar “aquele demônio” do Ciro. Para a senhora, ele
será a “perdição” da jovem. Chantageando a filha, Rosa diz: “Se me tens amor, larga
então aquele rapaz”. A jovem florista defende-o novamente, dizendo ser ele “um
excelente moço”. Tentando convencer a mãe, Eva pergunta se ela gostaria “que a
obrigassem a mandar embora um moço de que gostasse, quando era moça”. Rosa
contra-argumenta declarando que Ciro seria bem capaz de abandoná-la - uma vez que
o rapaz era contra o casamento. Para a mãe, Ciro quer “divertir-se e depois...”. Eva mais
uma vez apóia Ciro, dizendo que ele faz jus ao sobrenome: Leal (só agora o sobrenome
expresso desde o início no texto escrito entra em cena). Segundo a jovem, ele seria
incapaz de uma traição; ele nunca fugiria às suas responsabilidades. Rosa retruca,
chamando sua filha de “tola” por acreditar em alguém que não teme a Deus. Eva, de
forma irônica, cita então exemplos (conhecidos pelas duas) de homens que se diziam
religiosos, posavam de “sérios”, mas, na verdade, haviam se revelado pessoas vis. Para
Eva, Ciro é diferente: “não faz promessas enganadoras”. Desde sempre o rapaz defende
que “casamento não garante nada”; para ele, “a única garantia é o amor”.
Diante dos argumentos convincentes de Eva, Rosa aplaca sua ira, mas não
abandona a intransigência. Para aquela senhora, seria um “pecado mortal” juntar-se a
um homem que não vai à igreja. Rebatendo o raciocínio usado pela mãe, Eva argumenta
que “os padres é que o dizem... Lá lhes ia o negócio, se não fizessem acreditar nisso...”.
A discussão serve de pretexto para Eva ressaltar o caráter mercantil do sacerdócio. Rosa
208

indigna-se diante de “tamanhas heresias”; acusa de novo Ciro por não querer nem
mesmo o casamento civil. Eva contra-argumenta, citando de novo casos alheios: D.
Zulmira, coitada, “abandonada pelo marido com dois filhos”... Lança ainda um exemplo
ao reverso, neste caso positivo: o de seu próprio pai. Segundo Eva, ele nem era muito
religioso. No entanto, sempre foi fiel à sua mãe e seria mesmo sem os “`laços do
sagrado matrimônio´”. Com isso sua mãe concorda. No entanto, diz a senhora: “eu
soube escolher... eu bem sabia com quem casava...”. Eva ri perguntando se sua mãe
acha que só ela sabe escolher. Rosa lamenta a condição em que se encontra a filha
exclamando: “Ai! que tola!... que tola!...”.
Eva, já descontraída, diz que vai ao jardim regar as flores. Sorridente e saltitante,
dança “em roda da mãe, fazendo-a girar”. Sugere que as duas façam as pazes e
esqueçam aquelas rusgas. Sai pela direita e a mãe repete: “Que tola!... que tola!...”.
A cena 3 começa com Rosa dirigindo-se ao oratório para rezar em
“contemplação piedosa”. Tira um crucifixo de prata, beija-o e torna a colocá-lo no
oratório. Em seguida, ajoelha-se e reza “umas contas”.
Temos aqui a representação da imagem de beata que incide sobre a figura da
mãe. Neno Vasco caricaturiza esta personagem em sua obra, carregando na tinta ao
caracterizá-la psicologicamente. Como veremos, Rosa não é apenas uma senhora
apegada à religião. Ela se apresenta como uma criatura supersticiosa e ingênua, sempre
suscetível a manipulações alheias. É nesta cena que ela se revela por inteiro. Vejamos
como.
Enquanto Rosa reza piedosamente frente ao oratório privado, da rua ouve-se o
pregão de José, o vendedor de bilhetes para o jogo do bicho. Ele anuncia seu último
jogo: “Corre hoje!... 3412... Corre hoje!... 12 contos!”. Além do anúncio de José,
diversas outras pessoas na rua insinuam o mesmo palpite (lembremos: nos bastidores
havia dois homens e duas mulheres que, dentre outras coisas, deviam fazer as vozes que
vinham “de fora”). Uma mulher pergunta para outra qual o seu palpite para o bicho que
sairá naquele mesmo dia. A outra afirma: “ o burro com 12... Sonhei que meu marido...
(Risadas na rua)”. Uma outra voz (desta vez de homem) ofende um outro transeunte:
“Seu burro!”. O ofendido responde: “Burro é você”. José continua anunciando o bilhete:
“Corre hoje!... 3412... Corre hoje!”. Uma outra mulher insinua: “A minha galinha tem
doze pintinhos, sra. Anninhas”. Um outro homem diz: “Levou 12 facadas”. José
209

continua anunciando o último bilhete. Rosa desespera-se e olha para o oratório, tentada
por alguma inquietante sugestão.
José, tão insinuante quanto o palpite, aparece na janela do quarto de D. Rosa
oferecendo-lhe o bilhete. A oferta é tentadora! No mesmo instante, aparece Eva. Ela
efusivamente anuncia à mãe que sua roseira acabara de abrir doze lindos botões. José
sugere que aquilo é um palpite que não se deve rejeitar. Rosa desespera-se e José
garante a ela que aquele é o bilhete premiado. A crédula senhora afirma que não possui
nenhum tostão e que não lhe sobrara nenhum objeto de ouro para uma possível
negociação. Ela inadvertidamente mira seu olhar no oratório. José, muito esperto,
propõe empenhar, “no Correia”, algum objeto que porventura Rosa possuísse: objeto
como, por exemplo... Aquele crucifixo. Rosa, após alguma hesitação (ela teme cometer
algum pecado), resolve por fim empenhar o objeto sagrado (não sem manifestar um
indisfarçável arrependimento). José imediatamente tira-lhe o crucifixo da mão e diz que
logo mais voltará com o dinheiro recebido. Rosa cai de joelhos e exclama: “Ai! meu
Deus! Perdoai-me!”. Termina assim a cena 3.
Na cena seguinte, chega o padre João. Sempre intrometido, ele olha pela janela e
depara-se com Rosa rezando em frente ao oratório. Logo após um breve elogio à
conduta religiosa da senhora, o jesuíta pergunta sobre Eva. Não satisfeito com a
pergunta enxerida, padre João entra na casa e inicia-se uma conversa sobre os
“descaminhos” da moça. Chamando Ciro de “diabo tentador”, o jesuíta acusa o rapaz de
corromper a garota. Neste instante, Eva faz menção de entrar, mas, vendo o padre,
“volta para trás”. Rosa concorda com as asserções do padre e lamenta-se com o rumo
que sua filha está seguindo. Padre João assevera que a senhora possui uma grande
responsabilidade. Em tom de ameaça, diz que ela deve “prestar contas a Deus”,
assegurando inclusive que a garota já estava corrompida. “Sim... Ainda agora chegou ali
à porta e fugiu... quando me viu...”, acentua o jesuíta como ilustração.
Eis que chega José, trazendo o dinheiro do penhor e declarando abertamente o
resultado da transação com o “Cristo de prata”. Obviamente, diante do padre, Rosa fica
toda embaraçada. Em sua fala, mais uma vez José revela sua astúcia. Acusando o
penhorista de ser “um ladrão”, diz à dona Rosa que conseguiu apenas a quantia de
5$000, “quando o Cristo de prata vale mais de... 30 dinheiros. (Ri)” [fala de José]. O
padre olha para o oratório e se dá conta da ausência do crucifixo lá. Rosa, encabulada,
faz “inúteis sinais para que José se cale”. Revelando uma indisfarçável inquietação, a
210

senhora pede para que o vendedor acerte logo as contas, cobrando o bilhete e
devolvendo-lhe o resto. José entrega-lhe o dinheiro e reitera que daqui a pouco a “sorte
grande” sairá para a senhora. Antes de se retirar, ele faz questão de lembrar à ingênua
senhora de que fora ele mesmo quem vendera o bilhete.
Após um silêncio “embaraçador”, já na cena 6, padre João ralha severamente
com a crédula senhora. Em tom solene e ameaçador, acusa Rosa de ter cometido o
“hediondo pecado de simonia”. A senhora, “trêmula e chorosa”, exclama: “Ai! minha
Nossa Senhora!... Jesus! Nossa Senhora!!!”. Rispidamente, o jesuíta denuncia as ações
do demônio naquela casa. Para ele, além da filha, a própria senhora também “está
perdida”. Rosa, amedrontada, exclama sempre: “Meu Deus!... Nossa Senhora! Jesus!
Jesus! Nossa Senhora!”.
No auge da reprimenda do jesuíta, uma voz feminina pergunta na rua: “Que
bicho deu?”. “Deu o burro, com o 12...”, responde a outra voz feminina. Rosa levanta-se
abruptamente e solta um grito: “Ah!”. Padre João, “erguendo-se vivamente”, pergunta:
“Que é?...”. Rosa festeja exultante a sorte que lhe acabara de sair. De imediato, ela
associa o prêmio a um suposto perdão pelo pecado que cometera. Padre João, “com
vivacidade”, pergunta à Rosa quanto ela receberia. Rosa responde: “Seis contos de
réis!” (ela comprara um meio-bilhete, portanto ficaria com a metade do prêmio, que era
de 12$000). Com irreprimível entusiasmo, até mesmo padre João, num primeiro
momento, felicita a senhora: “Meus parabéns!... está com sorte... Sim, senhora...”. No
entanto, após uma pausa, o ladino jesuíta sugere que, na verdade, aquilo poderia ser uma
cilada do demônio. No discurso maroto do padre, aquele “dinheiro está amaldiçoado
[...] é dinheiro do inferno...”. Rosa aterra-se novamente e, confusa, lamenta-se,
afirmando que pensara ser aquele prêmio um perdão de Deus, uma dádiva divina.
Afinal, ela pedira tanto a Deus para que ajudasse a ela e à sua filha. O padre contra-
argumenta dizendo que “Deus quer experimentar as suas criaturas...”.
Rosa lamenta-se dizendo ser uma infeliz. Em sua fala, ela afirma que, desde a
morte de seu marido, sua vida estava sendo uma desgraça. O padre, “que esteve
meditando e prestou atenção às palavras de Rosa”, é acometido por uma “idéia súbita”.
Dizendo ter encontrado um meio de obter o perdão para o pecado da senhora, pergunta-
lhe sobre um sonho que ela tivera dias antes com seu falecido marido. Rosa relata
novamente ao padre que, naquele dia, seu marido aparecera-lhe “todo vestido de
branco”. Explorando a credulidade da senhora, o jesuíta afirma que aquilo, na verdade,
211

não fora um sonho e sim a própria “alma de seu marido”. Este, sempre de acordo com o
padre, apesar de ser uma boa pessoa, não era lá muito religioso. No entanto, Deus, em
vez de uma punição eterna, teria concedido àquela alma benévola uma temporária
estadia no purgatório. No entanto, para aliviar os seus tormentos e diminuir o tempo de
punição naquela instância do além, o marido de Rosa, sempre no discurso do padre,
teria aparecido naquela noite para pedir a ela uma intervenção em seu favor. Rosa
apieda-se de seu falecido esposo e, com isso, mostra-se inclinada a ajudá-lo naquela
difícil situação: “coitado! Deus lhe alivie os sofrimentos!”, afirma a crédula senhora.
Ouvindo isso, o ladino padre afirma que as missas têm esse poder de aliviar os
sofrimentos das almas no purgatório. Rosa dispõe-se imediatamente a mandar dizer
missas em nome de seu falecido esposo. Padre João concorda com a decisão e diz que,
dessa forma, ela não apenas neutralizaria os efeitos do pecado que cometera (utilizando
aquele dinheiro diabólico em obras piedosas e evitando a perdição dela própria e de sua
filha), como também ajudaria seu falecido marido. Depois que Rosa pergunta quantas
missas eram necessárias, o jesuíta é acometido por uma nova “idéia súbita”. Mais uma
vez explorando a credulidade da senhora, padre João anuncia que naquela mesma noite
seu marido apareceria novamente a ela. Rosa assusta-se diante da sugestão: “Jesus!
Jesus! Credo!”. O jesuíta tenta acalmá-la dizendo que ela deve se armar de coragem
para, na oportunidade, perguntar a seu amado Manuel “de quantas missas precisa” ele.
Rosa dispõe-se a fazer exatamente o que o padre está dizendo.
O padre faz algumas recomendações: diz para Rosa ter cuidado, pois se trata da
alma de seu marido e da sua filha (“que ainda se salvará... porque o demônio fugirá
desta casa”) Ele ordena ainda que a senhora resgate seu crucifixo, benza-o e faça-lhe
“uma festa”; por fim, diz que ela deverá fazer uma “severa penitência” que só será
ministrada quando de sua absolvição (por ocasião de sua próxima confissão). Rosa
concorda com tudo e diz que assim que receber algum dinheiro, imediatamente buscará
de novo o crucifixo.
O padre determina que Rosa se previna diante das “ciladas do demônio”,
proibindo-a de contar alguma coisa para sua filha. Esta, segundo o padre, sempre
influenciada por aquele herege do Ciro, bem poderia colocar em risco a salvação de seu
marido e dela própria (mãe). Rosa, no entanto, afirma que seria impossível guardar
segredo, uma vez que o vendedor de bilhetes, “tão tagarela”, já teria anunciado a toda a
vizinhança que ela ganhara o polpudo prêmio. João determina que ela diga que rasgou o
212

bilhete. Rosa, admirada, indaga: “Mentir à minha filha?”. O padre justifica dizendo que
a mentira não é pecado “quando feita com tão santas intenções”. Em seguida, o padre
despede-se recomendando novamente que a senhora fizesse tudo o que o seu “marido”
pedisse; reitera também os conselhos de cautela diante das “ciladas do demônio... e dos
seus instrumentos”. D. Rosa diz para o padre ir “descansado” e, por influência das
pregações que acabara de receber, afirma que “mais vale a salvação da nossa alma do
que todas as riquezas do mundo!”. O padre, “untuoso e solene”, concorda plenamente,
afirmando que “esta mísera vida” de nada vale diante da promessa de salvação eterna.
Reforçando seu argumento, ele enfatiza que tal salvação está destinada “aos bons... aos
submissos... aos humildes”. Ele despede-se e a incauta Rosa afirma: “Deus lhe pague a
sua caridade”.
Com a saída do padre, inicia-se a curta cena 7. Rosa percorre a sala arrumando
as coisas e suspirando. Eva espreita pela janela para ver se o padre já se foi. Ela entra
por uma porta enquanto sua mãe sai pela esquerda. Quando Eva diz “mamã...”, Rosa
estremece: “Ai!... Padre nosso que estais no céu...”. Rosa sai dizendo que vai pegar “a
luz que está bastante escuro”.
Já na cena 8, eis que reaparece José, o vendedor de bilhetes. Ele pára na janela e,
achando que no interior da casa estava Rosa, logo pergunta pelo prêmio. Ao perceber
que quem se encontrava lá era Eva, José pergunta se sua mãe fora já “receber o cobre”.
Eva, admirada, pergunta: “O cobre?! Que cobre?”. José explica-lhe tudo. Em sua fala,
notamos um nítido tom irônico quando ele se refere ao palpite em torno do burro. José
afirma chistoso: “eu também sempre gostei do burro... É muito boa pessoa!”. Ora,
desnecessário dizer que a associação do burro com a credulidade da mãe é eloqüente na
peça.
Diante da informação dada pelo vendedor de bilhetes, Eva festeja o prêmio.
José, para garantir a sua recompensa, afirma à jovem que se não fosse ele a sugerir a
penhora do crucifixo, Rosa não ganharia. Ao notar que o crucifixo não estava no
oratório, Eva ri às gargalhadas. José, que também riu, diz que o Cristo acabara de fazer
um verdadeiro milagre. Sem muito se estender, José anuncia sua volta no dia seguinte,
reiterando sua intenção em “receber a gorgeta [sic]”. Eva convida José a entrar. O
vendedor diz que não precisa e que voltará depois.
Eva continua rindo e põe-se a dar voltas quando entra sua mãe com o candeeiro
e quase vai de encontro a ela. “Ah! ... que é isso, filha?”, pergunta a senhora assustada.
213

Eva bate palmas e indaga sua mãe sobre o jogo que ela fizera. Rosa, “embaraçada” e
“titubeante”, diz que rasgara o bilhete antes mesmo do sorteio ocorrer. Com gestos
desencontrados, “movimentos incoerentes” e “arrumações inúteis”, ela afirma que
tomou aquela atitude porque o bilhete que comprara era fruto de um “grande pecado”.
Rosa justifica seu ato dizendo que fora tentada pelo demônio. Sempre embaraçada,
declara-se cansada e diz que vai se deitar - depois de rezar o rosário, é claro. Pede para
que a filha também vá para a cama. Intrigada, Eva pergunta se a idéia de rasgar e
queimar o bilhete era do padre João. Rosa confirma dizendo que ele “tinha razão”. Rosa
sai.
Na cena 10 - quando Eva está sozinha, pensativa e com “um leve sorriso triste
nos lábios” -, Ciro aparece na janela e, “com voz discreta”, chama: “Eva!”. A garota
assusta-se. Ao perceber que era o Ciro, desconfiada, ela lhe conta toda a história e pede
para que ele fique por perto para que ambos possam combinar alguma coisa. Eva fecha
a janela.
Já na cena 11, a jovem senta-se em sua mesa de trabalho e Rosa entra. A ingênua
senhora pede novamente para que a filha vá se deitar. Eva assente dizendo que está com
dor de cabeça e que o melhor mesmo seria ir para a cama. No mesmo instante, passa “de
relance” pela janela um vulto. Nenhuma das duas o vê. Quem seria? Na continuação da
conversa, Rosa, denotando preocupação, pergunta se Eva não gostaria de tomar um chá.
“Dóe-te muito a cabeça?”, indaga a mãe. “Não mamã; muito não”. Eva olha para a mãe;
esta, sempre embaraçada, baixa os olhos, mal dissimulando um ar de culpa.
Rosa, sozinha em seu quarto, tira do bolso “umas contas” e começa a rezar. Eis
então que aparece “um vulto envolto num lençol” e, com “voz cavernosa”, chama por
Rosa. Esta, “voltando-se, dá um grito de pavor” e continua rezando, agora
atrapalhadamente. O “fantasma” apresenta-se como seu marido e pergunta se ela quer
acudi-lo. Ela responde que sim. Então, o “fantasma” pede para que ela mande rezar mil
missas, afirmando que cada missa corresponde a mil anos de perdão no purgatório.
Repentinamente, entra Eva, correndo e gritando: “Ah! canalha!... Ah! ladrão!”.
Ela agarra o lençol do “fantasma” e grita: “Socorro!... socorro!...”. Segue-se uma cena
de agitada confusão. A mãe, “atarantada”, foge e grita; depois, ajoelha-se e volta a
rezar. O “fantasma” tenta pular pela janela; esta, no mesmo instante, abre-se e Ciro
aparece de surpresa. Inicia-se uma atrapalhada perseguição em cena, com direito a
gritaria e atropelos. Primeiro, Ciro corre atrás do fantasma no quintal. Enquanto isso,
214

Eva fecha a janela e, em seguida, corre para o quintal também. A mãe, sempre rezando,
tenta seguir o mesmo caminho, mas acaba sendo atropelada pelo “fantasma” que entra
desabaladamente. No interior, “caem cadeiras, panelas, louças, etc.”. O “fantasma”
atravessa novamente a cena, perseguido por Ciro e Eva. Na seqüência, entra de novo o
“fantasma”, desta vez “debatendo-se nos braços fortes de Ciro”. Eva desmascara o
“fantasma” tirando-lhe repentinamente o lençol. O jovem anarquista exclama: “Com
estes hereges é que você não contava, reverendo! Heim?”.
Diante da desmoralização do padre, Rosa, “aterrada”, fica enfurecida. Ciro
afirma que, na verdade, quem comete o pecado de simonia é a Igreja. Indulgências,
exorcismos, relíquias e sortilégios são vendidos por ela. O jovem afirma
categoricamente ao padre: “a essência do teu estabelecimento é o pecado de simonia!”.
Diante de uma nova tentativa de fuga, Ciro obriga o padre João a ficar “com o traseiro
voltado para o público”. Rosa tira o chinelo do pé e bate “vigorosamente nos fundos
redondos do padre”. Eva ri e bate palmas. “Bravo mamã!”, exclama entusiasmada. Por
fim, Ciro declara irônico que ele é quem deseja sovar o padre. Porém, como Rosa já
realizou sua aspiração, deixaria assim o jesuíta partir. Agora, quem recomenda cautela é
nosso herói. Caso o padre não se emende, o jovem ameaça cuidar ele próprio de aplicar
a sova. Esta, anuncia o herói, irá muito além de simples chineladas. Já com a porta
aberta, Ciro diz para o padre ir embora, dando-lhe um “ponta-pé [?] no traseiro”.
Rosa, desiludida, diz que nunca imaginaria que o padre João faria algo parecido
com o que fez. Ciro diz que, no ofício de padre, coisas do gênero são comuns. “Quem
havia de dizer!”, exclama Rosa. Eva intervém lembrando à mãe de que ela própria já a
havia advertido.
Na seqüência, abre-se espaço para uma indisfarçável afirmação moral. Assim
que Ciro Leal (após o cumprimento de seu dever) pede licença para se retirar, Eva
intercede em seu favor perguntando à mãe se ela não agradeceria ao rapaz. Rosa, não
obstante uma alegre reprimenda contra a filha, oferece a Ciro o bilhete premiado.
“Receba o dinheiro... e arranje o casamento...”. Ciro agradece, mas recusa a oferta: ele
pode trabalhar e, com isso, ganhará o bastante. Eva insiste, convidando Ciro para vir
morar com as duas e sugerindo que o herói utilize o dinheiro para construir sua própria
oficina de gravador, livrando-se assim do patrão. Assim, “viveremos contentes no nosso
canto...”, afirma Eva. Descobrimos aqui que Ciro, além de anarquista, era tipógrafo.
215

Nessa altura, Rosa já manifesta certa simpatia pelo rapaz. No entanto, a


obstinada senhora não se desvencilha totalmente de sua mentalidade anterior. Ela
reforça a idéia segundo a qual o jovem precisaria daquele dinheiro para os gastos com o
casamento, “no civil e na igreja”. Desnecessário dizer, Ciro recusa veementemente a
proposta afirmando que seria “uma estupidez” voltar a cair nas mãos do padre. Rosa
exclama: “Ai! os meus pecados! Ai! Nossa Senhora! Em que mãos eu estou metida!”.
Eva argumenta que, daquele jeito, “‘sempre ficaríamos roubados pelo padre”. Rosa
insiste que o “sagrado matrimônio é um sacramento necessário”. Ciro contra-argumenta
dizendo que só o amor é de fato um sacramento necessário. Rosa sugere então que os
dois se casem só no civil. Eva rebate: “Outro padre...”. A senhora, pondo as mãos na
cabeça, exclama: “Estou metida com loucos!”. Eva e Ciro abraçam-se e afirmam:
“Não!... Mas sim com pessoas que sabem amar!...”.

4.4. O Pecado de Simonia e as idéias-imagens do anticlericalismo


Como pudemos notar, O Pecado de Simonia apresenta como tema central a
suposta cupidez do clero. Por isso, as imagens que representam as constantes
manipulações que os padres presumidamente exercem sobre as consciências alheias são
tão vivas e recorrentes. Como nas demais peças que analisamos, aqui também as
representações veiculadas não estão pairando no ar. Na imprensa operária da época, são
inúmeras as imagens que incidem sobre a suposta cobiça clerical e a exploração da
ingenuidade alheia a ela associada. Encontramos várias charges e artigos dedicados ao
tema. O que faremos agora é investigar de perto apenas alguns desses materiais que se
relacionam diretamente com as questões que a própria peça sugere. Lembremos que, nas
análises de peças, são estas que nos servem de eixo central. Portanto, é O Pecado de
Simonia que suscita alguns problemas sobre os quais nos debruçaremos a partir de
agora.
No que tange às imagens da cupidez clerical, em sua edição de 24 e 25 de
outubro de 1903, o periódico anticlerical A Lanterna publicou uma espécie de resenha
intitulada “Religião Monetária”. Ela se refere a um opúsculo de Napoleão Roussel
publicado originalmente na França. Segundo B. Rodrigues (autor da “resenha” de A
Lanterna), Roussel, depois de combater os “disparates clericais”, fez menção a “uma
circular dirigida ao `Clero Católico Francês´” pela Agência do Apostolado Católico,
sediada em Roma. Percebemos, pelos comentários de B. Rodrigues, que tal circular era
216

uma espécie de lista tarifária especificando o preço a ser cobrado por cada serviço
religioso prestado aos fiéis. Voltando sua atenção para esse aspecto pitoresco do relato
de Roussel, Rodrigues cita literalmente alguns dos itens dessa circular. O primeiro item
mencionado (o de número 1 no original da Agência) tratava justamente da venda de
“indulgência plenária” por meio do “santo refrigério da missa”, para o qual devia ser
cobrada a quantia de 12 francos e 50 centavos. Na esteira de Roussel, Rodrigues
ironicamente afirma (caricaturando a lógica dos fiéis) que seria uma crueldade da parte
dos parentes e amigos “não aproveitar-se de tão boa ocasião e por tão baixo preço”.
Inevitável foi aqui lembrar do padre João. Afinal, o estratagema criado por ele
para ficar com o prêmio da crédula senhora foi justamente o de convencê-la da
necessidade de mandar rezar inúmeras missas a seu falecido esposo. Em sua edição de
18 de maio de 1912, o mesmo periódico anticlerical publicou uma charge cujo título é
“A carestia da vida”. Em sintonia com esse mesmo aspecto da exploração clerical, ela
apresenta um vigário sentado em uma mesa repleta de bebida e comida. Diante da
mesa, uma pobre mulher segura a mão de sua filha. Queixando-se ao clérigo, ela afirma
que seu marido está doente e que possui em casa apenas “4$”. “Tudo está tão caro...”,
arremata a pobre mulher em seu doloroso lamento. O vigário, diante disso, sugere que
ela lhe ofereça então “3$” para que ele reze uma missa em favor de seu enfermo marido.
A este seria então concedida a promessa de uma “bem-aventurança eterna”.

Imagem 8 – A Lanterna, 18 de maio de 1912


A idéia que o padre nos transmite parece evidente: diante das necessidades da
vida, ao pobre caberia apenas esperar pela “bem-aventurança eterna”. Em vez de
aconselhar aquela mulher a enfrentar seus problemas e usar seus parcos recursos para
217

tentar melhorar sua própria condição, o ladino padre sugere que ela lhe conceda quase
tudo o que lhe restara. O objetivo seria garantir à alma de seu enfermo esposo uma
duvidosa salvação depois da morte. Outra coisa que devemos ressaltar é que esta
imagem, como várias outras veiculadas em A Lanterna, retrata o padre como um
homem gordo sentado em uma mesa repleta de comida. Como em outras charges do
tipo, aqui também ele é representado com os traços visivelmente grotescos. Precisamos
ressaltar que o estigma de glutão recai frequentemente sobre os clérigos nas
representações daquele periódico. Teremos a oportunidade de analisar outras imagens
semelhantes. Gostaríamos apenas de ressaltar que aqui também a referência à missa
paga sugere-nos não poucas associações com o conteúdo de O Pecado de Simonia. Sem
dúvida, trata-se de uma mesma tradição anticlerical que problematiza os mesmos temas.
Nesse sentido, nosso objetivo é identificar esses temas recorrentes e analisar como eles
são tratados nos diferentes meios utilizados pelos militantes anticlericais (artigos, teatro,
charges etc.).
Três meses depois, em 17 de agosto de 1912, o
mesmo periódico publicou uma outra charge que
modula mais ou menos na mesma freqüência. A nova
imagem retrata um padre bem rechonchudo sentado à
mesa, desta vez com um casal de distintos senhores
(pessoas ricas, com certeza, porque bem vestidas e
próximas ao elemento clerical). Entre eles, uma
garrafa, copos e pratos. Logo atrás, um serviçal prestes
a servir alguma coisa. O padre afirma aos senhores:
“Eles trabalham agora para nós, mas nós rezamos para
que eles possam ganhar na outra vida o reino do céu”.
Novamente, o retrato da cobiça clerical – associada
Imagem 9 – A Lanterna, 17 de agosto mais uma vez ao gozo dos prazeres da mesa – é
de 1912
patente. Como na charge anteriormente analisada,
devemos atentar para o simbolismo do prato farto. Ele aparece como sinal de uma vida
boa e confortável. Nesta charge, devemos ainda ressaltar a idéia de exploração; neste
caso, tanto da boa-fé quanto da mão-de-obra alheia. Afinal, enquanto os pobres
trabalham “para nós”, “nós rezamos” para que eles alcancem, só na outra vida, a “bem-
aventurança”. Assim como na peça e nos demais exemplos citados, a idéia de
218

manipulação da ingenuidade por meio da promessa de uma vida melhor após a morte é
o tema central.
No entanto, apesar da “exploração clerical” sobre a credulidade alheia ser a
questão central da peça de Neno Vasco, devemos lembrar que ela não é a única, nem
talvez a mais importante. Para além desse tema, percebemos que O Pecado de Simonia
trata de algumas outras questões fundamentais no discurso anticlerical de tendência
libertária. Uma dessas questões é a que se refere ao complexo assunto do amor livre.
Polêmico por excelência, ele ensejou debates acalorados durante a República Velha.
Como todo tema polêmico, este também se constitui de inúmeros elementos que são
recorrentes nas discussões em seu redor. O que faremos agora é analisar de perto alguns
desses elementos que a própria peça sugere.
Uma das coisas que depreendemos das últimas falas de Eva é a associação do
casamento religioso com o civil. No que tange ao reconhecimento da relação conjugal,
para a jovem florista, o juiz nada mais seria do que um “outro padre”. Na juízo de Eva,
as leis civis que regulamentam o matrimônio parecem possuir o mesmo valor das
normas eclesiásticas. Haveria ressonância dessa associação conceitual nos discursos
anarquistas em torno do amor livre? Até que ponto a intromissão religiosa era associada
à civil naqueles discursos? De que maneira se dava tal associação? Para responder a
estas perguntas, recorreremos, mais uma vez, à imprensa operária. Os artigos sobre
amor livre publicados naquela imprensa trazem alguns indícios a respeito.
Cinco anos antes de O Pecado de Simonia estrear nos palcos das festas
operárias, algumas questões sugeridas pela peça eram já discutidas em O Amigo do
Povo, periódico anarquista que surgiu em São Paulo em 1902 e que, sintomaticamente,
tinha como editor o próprio Neno Vasco. No dia 2 de agosto daquele ano, apareceu
naquele mesmo jornal um artigo intitulado O matrimônio e a mulher – Moral burguesa
e moral futura. Assinado por Tibi, o artigo condensa alguns dos principais elementos
que compõem a complexa concepção de amor livre no discurso libertário. Em seu
texto, o autor faz uma crítica feroz à instituição do matrimônio e às falsidades que a
moral burguesa engendraria. Logo no início, Tibi afirma que o “atual matrimônio” é
uma das instituições mais perversas que existem. Isso porque ele “decide do futuro de
dois seres”. Em seguida, Tibi coloca sob suspeita o juramento de amor que se faz diante
de um padre ou de um juiz. Vejamos de perto o argumento do autor:
219

Essa afirmação sentimental e ingênua, quando não é hipócrita e mentirosa, da


inextinguivel chama do amor, não basta. [...] essa afirmação, esse juramento há-de fazer-se na
presença dum sujeito togado, cingido por uma faixa multicolor; o teu para sempre, o tua até a
morte há-de ouvi-los também essa entidade grave e solene cuja influência sobrenatural sobre o
afeto é manifesta...E aí temos o par! E se fosse só isso! Se se ficassem neste fetichismo, neste
respeito pelo feiticeiro, pelo bruxo religioso ou oficial... Mas tudo isto é fértil em conseqüências.

“E aí temos o par!”. Eis uma frase enigmática que expressa uma dubiedade de
sentido provavelmente intencional. A qual “par” exatamente Tibi se refere: ao casal que
acaba de jurar amor eterno ou à dupla Estado/Igreja? Difícil uma resposta conclusiva.
De qualquer forma, depreendemos da fala do autor uma verdadeira aversão ao
reconhecimento das duas instituições que exerciam sua influência direta sobre o
matrimônio. No discurso de Tibi, assim como no de Eva, Estado e Igreja aparecem
submetidos ao mesmo juízo crítico. Ambos são igualmente deslegitimados. Para o
autor, o casamento é perverso não apenas por seu caráter indissolúvel, como também
porque depende da sanção daquelas duas odiosas instituições que oprimem e
embrutecem. No que tange ao casamento, não há, no juízo de Tibi, nenhuma
diferenciação específica entre Estado e Igreja. Ambos são igualmente questionados:
“bruxo religioso ou oficial”. Nem um nem outro possui o direito de legitimar ou não
uma união entre um homem e uma mulher que verdadeiramente se amam. A chancela
de ambos é sintomática do caráter hipócrita e/ou insuficiente daquela “afirmação
sentimental e ingênua” que constitui o juramento matrimonial.
Chegamos a uma conclusão semelhante ao analisar um outro texto publicado
dois anos depois no mesmo periódico O Amigo do Povo. Assinado por J. Lleros, o texto
não é propriamente um artigo 237. Na verdade, ele se estrutura como um diálogo fictício
“entre operários” que se encontram numa situação cotidiana qualquer. O tema sobre o
qual os dois conversam é justamente o do polêmico amor livre. Um dos personagens,
Joãozinho, encarna o tipo resignado; o outro, Luís, é um inconfundível militante
anarquista que escreve artigos em um periódico libertário não especificado. Após uma
didática preleção de Luís em favor do amor livre, Joãozinho, já devidamente
convencido dos argumentos do colega operário, pergunta a ele como evitar os
problemas todos associados ao matrimônio tradicional. Vejamos então o que responde o
anarquista Luís:

237
Ver O Amigo do Povo, edição de 13 de fevereiro de 1904.
220

Como evitá-las [as “coisas” perversas que o casamento engendra]? Com a união livre,
meu caro! Quando os homens tiverem compreendido que é uma infâmia sancionar com
indissolúvel nó um ato natural da vida [...], quando enfim dois jovens decidirem unir-se sem
esperar a licença dum padre ou dum magistrado qualquer, então a questão da família poderá
desenvolver-se num ambiente mais belo e moral; então cessarão as injustiças que resultam da
família atual.

Vemos aqui o mesmo juízo que associa o matrimônio civil ao religioso. J.


Lleros, autor do diálogo, utiliza seu personagem Luís para expressar uma idéia bem
comum no discurso libertário de então: diante de um autêntico sentimento de amor, o
recurso ao padre e/ou ao magistrado torna-se dispensável, quando não insensato.
No entanto, nos artigos encontrados na imprensa operária da época, nem sempre
a associação entre casamento civil e religioso aparece de forma assim tão direta.
Algumas nuances não desprezíveis notamos nos diferentes artigos que tratam do amor
livre. Vejamos um exemplo.
No dia 1º. de março de 1910, o periódico A Terra Livre, então publicado em São
Paulo, lançou um artigo de Heliodoro Salgado intitulado A família. Nele, o autor revela
uma indisfarçável visão positivista da evolução dessa instituição social. Heliodoro
Salgado traça um panorama histórico linear da família, desde as “sociedades bárbaras”
até a época em que ele próprio vivia. Para o autor, naquele distante estágio “primitivo”,
a “lascívia brutal” do macho predominaria de fato. Segundo seu argumento, naqueles
tempos primordiais ainda não havia se desenvolvido “o sentimento da dignidade
específica” nem o “respeito pela mulher”. Tais sentimentos só apareceriam depois, “em
estado de grande cultura intelectual”. Só então, “à bestialidade do desejo lúbrico juntar-
se-ia um sentimento de estima, de amizade, uma ânsia de posse moral” a que se chama
de “`amor´”.
Ao longo de todo o seu panorama evolutivo do casamento, Heliodoro chega
mesmo a atribuir certo valor histórico à instituição do casamento religioso. Vejamos de
perto seu argumento.

A bênção sacerdotal foi necessária, em quanto [sic] se entendeu útil chamar sobre o lar
que se formava as bênçãos do Altíssimo. Reconhecido que a prole prospera bem sem essas
bênçãos, pode dispensar-se o padre; tanto mais que ele impunha condições pesadas.
221

Sendo assim, Heliodoro não chega a descartar cabalmente a relativa importância


que a intervenção religiosa teria apresentado no passado. No entanto, em seu panorama
evolutivo da história, a bênção sacerdotal ficava para trás, abrindo espaço para novas
formas de organização familiar.
De acordo com sua visão dos estágios evolutivos, Heliodoro afirma que a
transição entre a “concepção religiosa” e a “concepção naturalista” (aquela que
prevaleceria no futuro) foi feita pela “concepção civilista”. O que seria isso para o
autor?

Visto que da constituição da família resultam efeitos civis [...] substituiu-se o


desacreditado funcionário religioso pelo funcionário do Estado, e tivemos o oficial do registro
civil, arquivando as uniões.
Como transição para uma superior organização, está bem. Mas ainda é um terceiro a
intervir no que deve ser a comunhão apenas de dois.
De resto, ou ante o altar ou na administração ante o livro do registro, o casamento
termina sempre pela subalternização, pela escravização da mulher.

Depreendemos do trecho acima duas questões inextricáveis na concepção


evolutiva que Heliodoro traça em seu artigo. Primeiramente, a idéia segundo a qual, na
seqüência teleológica dos estágios evolutivos, o casamento civil seria superior ao
casamento religioso. No entanto, para Heliodoro, tal superioridade, por si só, não basta.
Isso porque, tanto “ante o altar” quanto “ante o livro do registro”, a instituição do
matrimônio reserva à mulher uma condição perversamente subalterna. No que tange à
evolução histórica, o magistrado até seria superior ao padre. Porém, na perspectiva da
emancipação feminina, os dois tipos de casamento equivalem-se. Em ambos teríamos
sempre “um terceiro” imiscuindo-se naquilo “que deve ser a comunhão apenas de dois”.
Para o autor, a mulher só se emanciparia de fato quando prevalecesse aquilo que ele
chama de “concepção naturalista” da família. Esta, por sua vez, encontra-se
intimamente relacionada com o conceito de amor livre delineado em seu próprio
discurso. E o que impede o desenvolvimento do amor livre nas relações conjugais da
sociedade atual? Numa palavra, “são as necessidades econômicas de um regime das
riquezas fundado sobre a propriedade individual”. Quando o socialismo por fim
conseguir “mirrar e derruir as instituições econômicas que herdamos dum passado
bárbaro”, a “família legal” desaparecerá e, em seu lugar, a família terá como única base
222

o amor. Portanto, assim como em outros artigos sobre o amor livre que analisamos, a
crítica do articulista não recai sobre o casamento “em si”. O que está em questão são as
condições concretas em que ele se efetua na sociedade, conferindo à mulher uma
inequívoca posição subordinada.
Uma constatação semelhante fora feita oito anos antes, no artigo supracitado de
Tibi. Num ataque contundente às relações conjugais que a sociedade engendra, ele
afirma que o matrimônio “apenas serve para abreviar a duração do amor, tornar odiosa a
união. No lar, a mulher é a escrava, o homem o senhor; este tem o direito de mandar,
aquela... de obedecer. E ai dela se tenta levantar a cabeça”. Por de trás dessa opressão
masculina, Tibi desvela o consentimento da sociedade em geral. Segundo o autor,
inclusive a lei (“que consagra todas as iniqüidades”) respalda o marido em seus
inúmeros desvios de conduta. Em tais condições, seria mesmo impossível o
desenvolvimento de um verdadeiro amor entre os cônjuges (expressamente, “uma
escrava e um senhor”). A crítica ao matrimônio passa assim por uma avaliação da
condição feminina em relação ao marido. É uma crítica que recai sobre as injustiças de
gênero que se verificam nos relacionamentos conjugais. A “obrigação” imposta pelo
contrato conjugal é vista como razão de toda a infelicidade no interior da vida de um
casal. Para Tibi, “o casamento é a morte do amor...”.
Mais adiante, referindo-se novamente à mulher, o autor afirma que muitas vezes
ela escolhe um cônjuge por razões que raramente têm a ver com seu verdadeiro amor:
“para satisfazer o desejo dos pais”, “para salvar a honra da família” ou “por puro
interesse”. Ela despreza “as indicações do próprio coração” e “vende-se sem amor”,
“chegando a odiar o companheiro”. No quadro sombrio pintado por Tibi, parece
realmente impossível surgir qualquer espécie de amor sincero no interior das relações
conjugais. No casamento, a felicidade parece mesmo ser uma quimera.
No entanto, precisamos ressaltar que nem todos viam as relações matrimoniais
exatamente do mesmo jeito. Citaremos apenas um caso em que, não obstante as críticas
às desigualdades de gênero no interior do casamento, a possibilidade do
desenvolvimento do afeto (senão mesmo do amor sincero) não está descartada. Isso é o
que depreendemos de um artigo publicado no dia 1º. de fevereiro de 1915 no periódico
carioca A Voz do Trabalhador. Seu autor, Antonio C. Altavila, após uma preleção
didática sobre o tema, dirige-se diretamente às mulheres.
223

E ponham nisto os olhos as mulheres que aceitam o poder despótico dos pais que as
submetem pelo casamento a este ou àquele de seu agrado, ou as que se entregam ao poder de um
marido, que, conforme a lei o declara, será o seu dono e o seu tirano, embora seja muitas vezes
um amigo sincero e até dedicado.

Devemos destacar três questões


correlacionadas no excerto acima. Primeiramente, o
fato de que a mulher aparece aqui sob uma dupla
opressão: a do marido e a do pai, este escolhendo
aquele de acordo com suas próprias intenções. Em
segundo lugar, a menção à lei que, em detrimento dos
interesses da mulher, favorecia incontestavelmente o
marido. Por fim, e este era o ponto em que
desejávamos chegar, a questão do afeto. Não obstante
toda a opressão exercida sobre a mulher, Altavila
chega a vislumbrar a possibilidade do marido vir a se
tornar “muitas vezes um amigo sincero e até
dedicado”. Ora, neste caso, mesmo diante de todas as
adversidades, não se descarta cabalmente os vínculos
de afeto e, quiçá, do próprio amor. A esse respeito, Imagem 10 - A Lanterna, 5 de outubro de
1912.
Altavila parece ser menos pessimista do que Tibi.
São inúmeros os artigos da imprensa operária que tratam da desigualdade de
gênero nas relações conjugais. Desnecessário seria aqui analisar todos eles. Devemos
ressaltar que, para além dos textos escritos, algumas imagens publicadas naquela mesma
imprensa tratam comicamente da mesma questão. Um exemplo emblemático aparece no
periódico anticlerical A Lanterna do dia 5 de outubro de 1912. Trata-se de uma charge
intitulada “A questão do divórcio”. Veiculada na primeira página (como todas as outras
charges daquele jornal), ela retrata um padre com feições fortemente grotescas. Dentre
outros exageros fisionômicos, o clérigo apresenta um enorme nariz sobre o qual existe o
banco de uma gangorra. Nesta, de um lado está o homem, do outro a mulher. Sob a
influência do padre, a balança mostra um nítido desequilíbrio, com o homem (no caso, o
marido) pesando muito mais do que a esposa. Abaixo da imagem, aparecem os
seguintes dizeres: “A Igreja e o equilíbrio matrimonial”.
224

Para além das desigualdades de gênero, a charge faz menção à polêmica questão
do divórcio. Esta fora tema de um artigo publicado um mês e meio antes no mesmo
periódico anticlerical. Na sessão “Hóstias amargas”, num artigo intitulado “Ainda o
divórcio”, o autor (Ignoto) tece uma crítica às objeções dos padres ao divórcio civil238.
Utilizando o raciocínio dos próprios clérigos de então, Ignoto tenta desautorizar os
questionamentos da Igreja no que se refere à questão do divórcio civil. Ele se indigna
com a objeção dos padres, pois estes não reconheciam o casamento civil, não conferiam
a ele nenhum valor. Sendo assim, por que haveriam eles de recusar o divórcio civil?
Dirigindo-se aos padres, Ignoto indaga: “que vos importa a vós que o poder legislativo
faculte às partes contratantes a dissolução, quando lhes aprouver de um vínculo que
considerais criminoso, condenável?”. Em suma, tentando corrigir as premissas do
silogismo clerical, Ignoto observa: se os padres condenavam tanto o casamento civil, o
divórcio civil, para eles, não deveria ser assim tão condenável.
É importante salientar que Ignoto não chega a defender a legislação
propriamente dita. Esta não é sua preocupação. Ele apenas tenta mostrar com seus
argumentos as contradições que a objeção da Igreja carrega consigo.Mas por que a
questão do divórcio era objeto de atenção do discurso libertário e/ou anticlerical? Tal
preocupação relaciona-se não com o divórcio “em si”, mas com um outro elemento
importante nas concepções de amor livre veiculadas na imprensa operária: a crítica à
indissolubilidade do casamento. Desnecessário dizer, se os adeptos do amor livre eram
contra as exigências dessa indissolubilidade, mesmo opondo-se às ingerências do
Legislativo nas relações conjugais, eles não poderiam ver com maus olhos a instituição
do divórcio civil. E Ignoto não perde a oportunidade de apontar as incongruências da
Igreja no que tange às suas posturas ante essa questão.
No discurso libertário e anticlerical, muitas vezes a questão da emancipação
feminina imbrica-se nas críticas à indissolubilidade do casamento. Desnecessário dizer,
tais críticas geraram na época inúmeros mal-entendidos. Em O Pecado de Simonia, é a
beata Rosa quem se encarrega de encarnar em cena essa confusão que deveria povoar o
imaginário popular da época. Vejamos de perto o trecho da peça em que a mãe de Eva
tenta convencer a garota do caráter supostamente oportunista de Ciro.
Rosa: [...] Escuta, Eva: como queres um homem como aquele, muito capaz de te deixar para aí
abandonada?... Tu bem sabes o que ele diz do casamento... E olha que o sr. Padre João também

238
Ver A Lanterna, edição de 24 de agosto de 1912.
225

sabe... Não o dizia o livro que esse diabo te deu, para te tentar?... O que ele quer... bem sei... É
divertir-se e depois...
Eva: Não, mamã. Eu conheço bem o Ciro... o sr. Leal. Tive ocasião e tempo para isso. É
absolutamente incapaz duma traição , duma infâmia... O seu nome não mente: é um rapaz “leal”,
que não foge às responsabilidades que toma...

Duas coisas nós devemos ressaltar no excerto transcrito acima. Primeiramente, a


aflição de Rosa perante a possibilidade de Ciro abandonar a garota, depois de
“aproveitar-se” dela. Segundo: a necessidade que Eva manifesta de rebater os
argumentos da mãe afirmando a lealdade e o caráter respeitável de Ciro. Segundo
Eduardo Valladares, os “padres não perdiam nenhuma oportunidade para, distorcendo a
proposta anarquista, afirmar que por detrás da propaganda do amor livre encontrava-se a
intenção de fazer da sociedade um grande bordel”239. Parece-nos evidente que um dos
elementos da concepção de amor livre que mais geravam suspeita era justamente a
crítica à indissolubilidade do casamento. Rosa não era uma personagem que pairava em
alguma esfera acima da sociedade. Temos razões de sobra para acreditar que, por
influência do próprio discurso clerical, suas objeções ecoavam na mentalidade de muita
gente. Para beatas como Rosa, o que os defensores do amor livre no fundo queriam era
“divertir-se e depois...”.
É por isso que, no afã de rebater as acusações, “os redatores libertários eram
obrigados a escrever artigos para melhor explicitar a proposta e refutar as calúnias dos
religiosos”240. Assim como Eva, tais redatores sentiam também a necessidade de afirmar
a superioridade moral de sua concepção e daqueles que a propugnavam. É claro que
todos os elementos da concepção de amor livre contribuíam para desencadear a feroz
ofensiva clerical. No entanto, a recorrência das críticas à indissolubilidade do casamento
no discurso libertário é eloqüente. São vários os artigos da imprensa operária que tratam
dessa questão. Se os redatores libertários preocupavam-se tanto com tal questão é
porque ela de fato gerava não poucas inquietações nos círculos mais conservadores da
sociedade. Aqui também seria desnecessário abordar todos os textos que lidam com
essa questão. Como em O Pecado de Simonia a implícita apologia ao amor livre
relaciona-se intimamente com a afirmação moral de Ciro, analisaremos mais

239
Ver Valladares, Eduardo. Anarquismo e Anticlericalismo. São Paulo, Editora Imaginário, 2000; p.75.
240
Ibid.; p.75.
226

detidamente um único texto em que a discussão da indissolubilidade aparece associada


de forma direta àquela necessária afirmação.
Referimo-nos já ao diálogo fictício que J. Lleros criou entre dois operários que
se encontram em uma situação cotidiana qualquer. Luís (um militante anarquista que
escrevia artigos para a imprensa operária) e Joãozinho (um operário de feitio mais
resignado) entabulam uma conversa sobre amor livre. Já no início daquele diálogo,
Luís pergunta a Joãozinho: “A propósito: tens lido os jornais?” . Diante da resposta
afirmativa, o militante anarquista tece uma nova indagação: “Mas que te pareces o que
leste?”. Vejamos de perto o trecho do diálogo que se segue.

[Joãozinho] Não digo que na maioria tuas idéias não sejam aceitáveis... Mas há cá uma coisa
que não me entra na cabeça....
[Luís] Qual é?
[Joãozinho] Aquela história do amor livre. Não, aquilo é que eu não posso aprovar, e até estou
mais do que convencido que se os anarquistas se decidissem a pôr de parte essa questão, teriam
muito mais aderentes à sua idéia.
[Luís] Pode ser; mas, olha, a nós não nos importa o sermos muitos, quando não sejamos
verdadeiramente conscientes da idéia que abraçamos. Mais do que ao número dos aderentes
olhamos à formação das suas consciências[...].

Da fala de Joãozinho depreendemos nitidamente aquela inquietação a qual nos


referimos acima. Parece-nos evidente que ele, assim como Rosa, é um personagem que
retrata bem alguns tipos sociais concretos que existiam na época. É por isso que Luís,
porta-voz de J. Lleros no diálogo fictício, põe-se então a defender sua concepção de
amor livre. O militante anarquista sugere que o colega não aceita a idéia porque não
compreendeu “todo o lado altamente moral da nossa afirmação”. Joãozinho indigna-se
com a afirmação moral da idéia de amor livre e arremata dizendo que “o vosso amor
plural é o non-plus-ultra da imoralidade, é a prostituição legalizada”. Muitas pessoas
deveriam entender a proposta libertária de amor dessa maneira. Para combater essa
associação negativa, era preciso envidar um esforço de afirmação moral. No afã de
defender sua posição, são os anarquistas que passam a acusar de imoralidade a
sociedade e seus valores. É isso o que faz Luís logo na seqüência: “deixa esses
palavrões e verás que a família, como está hoje constituída, é um foco de imoralidade,
incompatível com o nosso título de animais racionais”, sugere o anarquista em seu
227

diálogo com Joãozinho. Luís afirma que a união entre dois seres de sexos diferentes é
algo que não se discute. Mas, para ele, “esta união sexual torna-se imoral e detestável
quando não tenha por único motivo o amor, a afeição entre dois seres”. Se essa afeição
mútua vem a faltar, ambos “devem pôr ponto nas suas relações íntimas, que se tornaram
imorais, anti-naturais...”.
O argumento utilizado por Luís desenvolve-se então em torno da situação
feminina dentro do casamento. Para ele, não é justo que a mulher, só por causa de um
juramento feito ao juiz ou ao padre, “seja condenada a prostituir-se constantemente ao
homem que não ama” [o itálico é do texto original]. Esse relacionamento é que, para
Luís, é um “ato imoralíssimo”. Por fim, no momento em que Joãozinho já se mostra
convencido dos argumentos de Luís, este novamente questiona a indissolubilidade da
união matrimonial. Vejamos seu argumento.

Quando os homens tiverem compreendido que é uma infâmia sancionar com


indissolúvel nó um ato natural da vida pois que ninguém pode garantir a si próprio ou a outros
contra as exigências do futuro, quando a nossa ação moralizadora tiver convencido os homens de
que o amor incondicional entre dois seres deve ser o único laço de união, quando o homem ou a
mulher tiverem plena e ampla liberdade de abandonar o teto conjugal , se morreu a afeição [...],
então a questão da família poderá desenvolver-se num ambiente mais belo e moral.

No discurso de Luís, a questão da indissolubilidade do casamento enreda-se na


discussão sobre o caráter “altamente moral” do amor livre. Rebatendo os argumentos de
Joãozinho, Luís inverte os termos de sua proposição, atribuindo ao casamento um
caráter imoral e avesso à natureza humana. Como em outros textos da imprensa operária
sobre a questão, neste também a prostituição incide sobre as próprias relações conjugais
tradicionais. Isso porque, em razão dos laços indissolúveis do casamento, a mulher é
obrigada a conviver com um homem a quem verdadeiramente não ama, oferecendo-se a
ele como faria uma prostituta. No raciocínio de Luís, aí reside toda a imoralidade do
casamento. É por isso que ele defende a separação dos cônjuges que não mais se amam.
Notamos no discurso de Luís a utilização de um recurso francamente utilizado
pelos militantes da época: a inversão dos termos utilizados pelos oponentes em suas
acusações contra o amor livre. Um recurso semelhante é utilizado também na peça de
Neno Vasco. Tentando defender a dignidade de Ciro, Eva não perde a oportunidade de
lançar suas invectivas morais contra o casamento tradicional e a hipocrisia daqueles
228

que se escondem sob sua aparente respeitabilidade. Aqui também a utilização do


espelho invertido projeta uma imagem em que os termos do discurso hegemônico são
descentrados. Diante das acusações de Rosa contra Ciro, Eva passa a citar inúmeros
casos que ilustram ao avesso aquilo que em seu juízo deve ser valorizado. Vejamos de
perto esse trecho da conversa.

Rosa: És uma tola! Quem é que se pode fiar num homem que nem tem o temor de Deus?...
Eva: Tinha-o o filho do capitão Fernandes... muito santinho... muito seriozinho... sempre com os
padres... e que se casou com uma rica, deixando aquela pobre com três filhos... Lembra-se
quando ela veio aqui contar a sua vida, chorando?... E o padre Lopes, não tinha o temor de
Deus?... E o sr. Roberto?... O Ciro é franco, não faz promessas enganadoras... diz que o
casamento não garante nada... que a única garantia é o amor e a lealdade de ambos... e a coragem
de cada um...Mas aqueles “bons moços” prometiam... prometiam... enganavam... deixavam as
pobres ingênuas na ignorância... na imprevidência....

Mais adiante, contra-argumentando ainda com a mãe, a jovem florista lança


novos exemplos:

Serviu de muito o casamento à d. Zulmira, abandonada pelo marido com dois filhos...
(Cariciosa) O papá não era muito religioso, e era bom... não era? (Rosa acena que sim). A
senhora pensa que ele, se não houvesse entre os dois os “laços do sagrado matrimônio”, como
diz o padre João, a abandonava ... com os filhos, como fez o marido de d. Zulmira?
Rosa, branda: Oh! Não! Teu pai não faria isso... Era tão bom!... tão honrado!...

Eva utiliza-se de um procedimento semelhante ao de Luís, personagem de J.


Lleros. Ela rebate os argumentos da mãe acusando aqueles que vestem a pele de “bons
moços” e cometem toda espécie de iniqüidades. No entanto, é importante ressaltar, no
rol de exemplos ao revés que Eva apresenta para sustentar seu argumento, desponta um
que não recebe a carga negativa dos demais. Pelo contrário, exprime benevolência e
honradez. Trata-se do pai de Eva, o falecido marido de Rosa. Afora ele, todos os
outros exemplos citados pela moça revelam os traços sórdidos que os anarquistas
costumavam atribuir a seus potenciais oponentes. O filho do capitão Fernandes, por
exemplo, “muito santinho... muito seriozinho”, abandonara, no entanto, uma pobre
mulher (com três filhos) para se casar com uma rica; o padre Lopes, o Sr. Roberto, o
marido de dona Zulmira... Todos são exemplos ao avesso que a jovem Eva utiliza para
229

convencer sua mãe do caráter honrado e sincero de Ciro. Este, o reverso daqueles, como
a própria Eva não deixa de lembrar, possui um nome que “não mente”: “sr. Leal”.
Mais uma vez, nossa peça não está pairando no ar. A afirmação moral do
militante anarquista não era exclusividade dela. Para além de O Pecado de Simonia,
devemos buscar ressonâncias dessa afirmação moral alhures.
Estamos vendo já de que forma tal afirmação repercutia na imprensa operária.
Ademais, outras peças do teatro anarquista apresentam personagens militantes de
conduta irrepreensível. Esse é o caso de A Bandeira Proletária, de Marino Spagnolo.
Algumas comparações pontuais entre esta peça e aquela (de Neno Vasco) ajudar-nos-ão
a compreender melhor o caráter respeitável e honrado que os militantes anarquistas
desejavam atribuir a si mesmos.
A primeira encenação de A Bandeira Proletária ocorreu no dia 28 de outubro de
1922 no requisitado salão Celso Garcia, situado na Rua do Carmo, nº. 23. Por meio do
anúncio divulgado insistentemente no periódico paulistano A Plebe, sabemos que a festa
fora organizada pelo Grupo Regeneração Social e seria em benefício da “Biblioteca
Social `A Inovadora´”. A parte cênica ficou ao encargo do Grupo Theatro Social de São
Paulo, do qual fazia parte o próprio Marino Spagnolo, autor de A Bandeira Proletária.
Desde então, a peça é freqüentemente representada na Paulicéia.
Mais adequada aos objetivos “doutrinários” das festas de propaganda, a peça de
Marino Spagnolo é, na verdade, um libelo contra os vícios da bebida e do jogo. No
enredo, o herói é Paulo, um militante anarquista que se apaixona por Rosa. Esta, por sua
vez, não obstante o bom coração, é retratada na peça como uma moça ingênua que se
deixa seduzir por Fernandes, um agiota mesquinho interessado por ela. Enquanto Paulo
esteve preso, Rosa casou-se com Fernandes, mas logo se decepcionou. E o auge de tal
decepção ocorre no dia em que Paulo é libertado – significativamente, um 1º. de Maio.
Nesse momento, Fernandes, que nunca demonstrara “amor sincero” pela garota, resolve
se livrar dela: “Ah! Ah! Ah! O Fernandes cede o lugar ao grande Paulo, ao célebre
Paulo... ao preso que hoje foi posto em liberdade!” – diz o agiota, no último ato,
anunciando sua separação.
No mesmo instante de completa desilusão, como que em contrapartida aos
dissabores amorosos, inicia-se a grande revolução social que irá redimir a humanidade.
Rosa, que no final da peça toma consciência do verdadeiro caráter de Fernandes, resolve
seguir Paulo na difícil luta pela emancipação social, tornando-se por fim sua fiel
230

companheira. Em meio aos conflitos violentos desencadeados pelo início da revolução,


Mario, companheiro militante de Paulo, é ferido mortalmente e seu sangue transforma-
se em cena num poderoso incentivo à luta. A “bandeira proletária” que intitula a obra
nada mais é do que o lenço que Paulo usara para limpar o peito ensangüentado do
jovem mártir.
Lancemos um breve olhar sobre alguns dos personagens que contracenam na
peça. Como em outras obras do tipo, aqui também eles estão dispostos em campos mais
ou menos distintos. De um lado, estão os quatro companheiros anarquistas: Paulo
Dorvan (o operário que faz o papel de herói), Mário, Alberto e Chiquinho; todos de
conduta irrepreensível, eles não bebem nem se deixam seduzir pelas ilusões da jogatina.
Do outro lado, encontram-se principalmente o Fernandes - agiota que ludibria a ingênua
Rosa levando-a a se casar consigo - e Gertrudes, uma senhora supersticiosa e amante do
jogo do bicho. Entre os dois campos poderíamos colocar o André - taverneiro
preocupado principalmente com seu próprio negócio - e Lourenço, o pobre bêbado que,
no fim da peça, em uma tentativa de assalto na casa de Fernandes, encontra Rosa e
acaba descobrindo que aquela jovem era, na verdade, sua filha.
Parece-nos evidente que A Bandeira Proletária é uma peça em que a ênfase
recai justamente sobre aquela afirmação moral a qual nos referíamos acima.
Encontramos nela inclusive alguns traços daquele “puritanismo” que muitos
historiadores, acertadamente ou não, atribuíram aos militantes anarquistas em geral.
Além dos ataques constantes ao jogo e ao álcool presentes nas falas dos companheiros
anarquistas, precisamos lembrar que algumas das cenas “sórdidas” da peça transcorrem
no interior do botequim do André. Logo no primeiro ato, uma confusão ocorrida
naquela taverna leva ao assassinato de uma pessoa – mais uma vítima do vício... É lá
naquele mesmo botequim que, na cena 3 do segundo ato, dona Gertrudes entra para
comprar uma garrafa de bebida e aproveita para pedir ao André um palpite para o jogo
do bicho. O taverneiro lhe oferece não só o palpite (a vaca), como ainda empresta à
gananciosa senhora o dinheiro para ela fazer a sua “fezinha”. Se em O Pecado de
Simonia a crédula dona Rosa compra um bilhete que depois será sorteado, em A
Bandeira Proletária a supersticiosa dona Gertrudes não possui a mesma sorte. Em sua
conversa com a jovem Rosa, aquela senhora relata seu infortúnio.
Gertrudes (entrando): Maldita sorte a minha! Ninguém, ninguém é tão infeliz como eu!
Imagina que hoje joguei na vaca com noventa e nove pelo Rio, e no burro com zero nove por
231

São Paulo. Sabes o que deu? O burro com zero nove pelo Rio, e a vaca com noventa e nove por
São Paulo. Até parece mentira, Rosinha. (vendo que Rosinha está muda, continua) Imagina
que... mas não me respondes, rapariga?

Impossível seria deixar de estabelecer algumas comparações tentadoras entre O


Pecado de Simonia e A Bandeira Proletária. Primeiramente, no que diz respeito ao
caráter de seus respectivos heróis, saltam aos olhos as inúmeras aproximações que
podemos identificar entre Ciro e Paulo. Ambos são personagens de conduta
irrepreensível. Francos, sinceros, honrados e sóbrios, ambos parecem esforçar-se para
construir ao redor de si mesmos uma contra-imagem que serve como antídoto perante as
possíveis acusações a que estão expostos na sociedade. Na peça de Spagnolo, assim
como na de Neno Vasco, o recurso do espelho invertido também é acionado. Parece-nos
evidente que o Sr. Fernandes e a dona Gertrudes são o exato oposto de Paulo.
Mesquinhos, arrogantes, hipócritas e gananciosos, em sua exemplaridade ao revés,
ambos servem de lastro para a necessária afirmação moral de Paulo (assim como dos
demais companheiros).
No entanto, tão relevantes quanto as semelhanças parecem ser as inúmeras
diferenças entre as duas peças. Primeiramente, no que se refere aos seus respectivos
gêneros, O Pecado de Simonia é uma comédia, enquanto A Bandeira Proletária é um
drama salpicado por inúmeros acontecimentos trágicos. Talvez por isso mesmo a ênfase
moral da segunda seja muito maior do que a da primeira.
Voltemos nossas atenções para o tratamento que ambas oferecem para a questão
do jogo do bicho. É claro que em O Pecado de Simonia a condenação ao jogo também
se faz presente. Ela se manifesta por meio da associação direta entre a tentação do
palpite e a credulidade de dona Rosa, mãe de Eva. O próprio palpite que seduz aquela
crédula senhora (“o burro, com 12”) contém uma indisfarçável condenação moral ao
“vício” de jogar. Aliás, vimos que também dona Gertrudes, em A Bandeira Proletária,
aposta no “burro com zero nove por São Paulo”. No entanto, nesta peça de Marino
Spagnolo a condenação moral àquele “vício” é muito mais severa. Primeiro porque, em
diferentes momentos da peça, os companheiros anarquistas expressam tal condenação
em suas próprias falas. Além disso, como vimos, dona Gertrudes não possui a mesma
sorte que dona Rosa. Se para esta a solução encontrada por Neno Vasco foi a
premiação, para aquela Marino Spagnolo reserva a mais pura decepção. Se em O
232

Pecado de Simonia o produto do “vício” acaba sendo utilizado de forma positiva (com
ele Ciro pode construir sua própria oficina, libertando-se do patrão), em A Bandeira
Proletária tal saída parece mesmo impossível. A ênfase no caráter exemplar desta peça
não abre espaço para nenhum resultado positivo advindo de um ato tão “condenável”.
Um dinheiro “sujo” como aquele não poderia servir para a emancipação de ninguém.
Aliás, esse dinheiro nem sequer aparece. Dona Gertrudes está condenada a ser sempre
uma “infeliz”. Em A Bandeira Proletária, a única emancipação possível se dá por meio
da revolução social. Qualquer solução fora esta está cabalmente descartada.
Assim como em O Pecado de Simonia, em A Bandeira Proletária a questão do
matrimônio também está presente. A diferença aqui é que o casamento propriamente
dito não chega a ser descartado. Pelo contrário. Não obstante a ênfase na infelicidade
conjugal (Rosa casara-se com Fernandes e desiludira-se completamente), Paulo mostra-
se desde o início inclinado a se casar com Rosa. Numa conversa que, na cena 5 do
primeiro ato, o herói mantém com Chiquinho, este propõe àquele que se case com Rosa
“o mais breve possível”. O objetivo era impedir as artimanhas danosas arquitetadas por
dona Gertrudes e pelo Sr. Fernandes. Diante da sugestão, Paulo responde com
determinação: “Sim, é o que devo fazer e o farei”.
No entanto, não devemos exagerar a relativa complacência diante do
matrimônio. Em A Bandeira Proletária, o único caso conjugal encenado é marcado
pela desilusão da esposa. Desde o início, Rosa decepciona-se com seu casamento. É
claro que a imagem da infelicidade nas relações conjugais não era privilégio de A
Bandeira Proletária. Ela já se encontrava presente nos inúmeros relatos que a jovem
Eva fizera à sua mãe em O Pecado de Simonia, de Neno Vasco. Não era só o teatro que
retratava os dissabores amorosos no interior do casamento. Como vimos, inúmeros
artigos sobre amor livre veiculados na imprensa operária também trabalhavam com
imagens semelhantes. O que devemos ressaltar é que, no discurso anarquista, na maioria
das vezes era a mulher a principal vítima da infelicidade conjugal. Os exemplos
oferecidos pela jovem Eva à sua mãe são todos emblemáticos da situação desfavorável
da esposa em relação ao marido.
Em muitos momentos, no discurso anarquista, a mulher é representada como o
“alvo” preferido das inúmeras manipulações dos elementos masculinos que compunham
a sociedade de então. No que tange às relações conjugais, vimos já como a mulher é
retratada diante do poder exercido pelo pai e pelo marido. Também, não era para menos:
233

como muitos artigos da imprensa operária sugerem, o poder do marido sobre a esposa
contava inclusive com o respaldo da lei. No entanto, não era apenas no interior do
casamento que a mulher era vista como “alvo” privilegiado das manipulações alheias.
Como a peça de Neno Vasco aponta, as duas figuras femininas são sempre objetos das
inoportunas ingerências do padre João. Sempre insinuante, o jesuíta não perde a
oportunidade de se imiscuir na conduta da jovem Eva. Dona Rosa, por sua vez, ao longo
de quase toda a peça, encontra-se absolutamente sob o controle dele. Ambas são
atentamente vigiadas e tolhidas pelas irritantes intromissões do padre em suas
respectivas vidas particulares.
Outra antiga peça anticlerical representada no início do século XX foi Electra,
de Perez Galdós. De origem espanhola, a primeira notícia registrada da encenação dessa
obra em São Paulo aparece no jornal A Lanterna, em sua edição de 20 de janeiro de
1901241. Electra é, na história de Perez Galdós, uma jovem garota, faceira e muito viva,
que cedo se tornou órfã. Desde então, passou a viver com d. Urbano, “senhor de Garcia
Yuste”, e sua mulher, Evarista. Cortejada por Cuesta, corretor da Bolsa que trabalha
para d. Urbano, Electra gosta mesmo é de Maximo, sobrinho do “senhor de Yuste”.
Em meio à trama, o padre Pantoja (também um jesuíta), sempre maquinando
planos para manter o controle sobre as pessoas, desempenha um papel central em
Electra. Aqui, ele não só se relaciona muito bem com d. Urbano e sua mulher, como
também se arvora “protetor” da jovem Electra. Primeiro, o jesuíta consegue afastar
Maximo de Electra, inventando para ela uma história segundo a qual o sobrinho do
senhor de Yuste seria seu meio-irmão. Depois, convence a família da necessidade de
internar a garota em um convento.
No fim da peça, em meio a cenas fantasmagóricas, a verdade se revela para
Electra. Sob uma possível influência de Shakespeare, Perez Galdós põe em cena o
próprio fantasma de sua mãe (Eleutéria). Ele aparece para dissipar os mal-entendidos e
reaproximar a garota de Maximo.
Notamos algumas semelhanças entre essa peça, de Perez Galdós, e O Pecado se
Simonia, de Neno Vasco. Além do conteúdo anticlerical, ambas possuem um enredo
parecido: um padre muito influente se intromete nas relações amorosas de uma jovem.
Em ambas vemos cenas fantasmagóricas no final – em O Pecado de Simonia muito
mais cômicas do que em Electra. Além disso, os padres enxeridos das duas peças são,

241
Não encontramos registro algum da encenação dessa peça no Rio de Janeiro.
234

não por acaso, jesuítas. Tendo em vista a enorme repercussão que, nos primeiros anos
do século XX, a obra de Perez Galdós obteve nos círculos ácratas e anticlericais de São
Paulo,242 parece-nos claro que há entre O Pecado de Simonia e Electra um nítido caso
de intertextualidade, sendo a primeira uma alusão cômica à segunda.
Devemos salientar que nas duas peças a ênfase recai sobre as tentativas dos
padres jesuítas de intervir na educação e nos destinos das respectivas jovens retratadas.
Padre João, em O Pecado de Simonia, deseja afastar a influência de Ciro sobre Eva.
Pantoja, na peça de Perez Galdós, faz de tudo para influenciar na educação da pequena
Electra, acabando por interná-la em um convento.
Mais uma vez, os conteúdos das peças que analisamos ecoam no imaginário
anticlerical e libertário da época que estudamos. Acompanhando as páginas dos
diferentes órgãos da imprensa operária, notamos inúmeras vezes que as mulheres e as
crianças são retratadas como “alvos” privilegiados de padres insinuantes e insidiosos.
A preocupação dos círculos anticlericais era, a esse respeito, bem grande. Para se
ter uma idéia, quando foi fundada a Liga Anticlerical Brasileira, em outubro de 1910, o
periódico A Lanterna divulgou suas “bases” (princípios gerais que norteariam as
atividades daquela entidade recém-criada em São Paulo). Voltaremos a discuti-las mais
adiante. Por enquanto, cabe apenas ressaltar que, nesse documento, a quinta “base”
tratava justamente da preocupação em afastar dos confessionários as crianças e
mulheres. No imaginário anticlerical, parece que, de fato, o confessionário representava
uma ameaça não desprezível. Afinal, embora não passivas em suas relações com a
religião, as mulheres (e também as crianças) eram provavelmente a maioria do público
nos cultos católicos. Daí a necessidade que os militantes anticlericais sentiam de desviá-

242
Em A Lanterna, edição de 20 de janeiro de 1901, uma reportagem intitulada “A Electra de Pérez
Galdós” faz referência a uma encenação dessa peça ocorrida no teatro Sant´anna. Após o espetáculo, o
“nosso diretor” (Benjamin Mota) foi impedido pelo Major José Bento de subir ao palco para falar ao
público. Já fora do teatro, depois de finalmente ouvir aquele diretor, o povo que enchia o salão percorreu
as ruas do centro de São Paulo “levantando vivas à liberdade e morras ao jesuitismo”. Confluindo para o
Largo de São Bento, aquela pequena multidão, “em sinal de protesto”, chegou a quebrar “algumas
vidraças do mosteiro de São Bento”. Por causa dessa agitação, “o chefe de polícia que proibiu a
representação do drama de P. G. [...] mandou convidar o nosso diretor a ir conferenciar com S. Excia”. O
Dr. Antônio de Godoy (“primeiro-delegado”) informou ao “nosso diretor” que “quaisquer manifestações
anticlericais seriam reprimidas com toda a energia, bem assim que estavam proibidas as representações de
`Electra´”. Inquietos com tal proibição, os militantes anticlericais provavelmente pressionaram para
liberar as encenações daquela peça. Isso porque, em 26 de junho de 1901, o mesmo periódico A Lanterna
publicou um anúncio informando que “a Companhia do ator Cristiano de Sousa” levaria o drama Electra
novamente ao palco do teatro Sant´anna. Precavendo-se diante de possíveis confusões, o autor do anúncio
pediu aos “nossos amigos” para que “se abstenham de quaisquer confusões, durante ou depois do
espetáculo, para não dar pretexto à polícia de fazer violências estúpidas, que depõe contra os nossos foros
de povo civilizado”.
235

las da influência clerical. O Pecado de Simonia - assim como a “base” supracitada – faz
parte desse esforço maior. Outros indícios dessa preocupação aparecem na imprensa
operária.
Acompanhando as notícias sobre as atividades da Liga Anticlerical do Rio de
Janeiro, notamos que os jovens e as mulheres adquiriam uma importância muito grande
para aquela entidade. Ficaremos em apenas dois exemplos. O primeiro provém de uma
notícia publicada em A Lanterna no dia 10 de fevereiro de 1912. Ela nos informa sobre
a realização de uma festa que o Philadelpho-Club oferecera àquela Liga. Segundo o
autor dessa notícia, o orador da noite, Ulysses Martins, estivera “verdadeiramente
inspirado”, realizando assim uma “bela conferência”. Nesta, o orador teria se dirigido às
senhoras, exortando-as a ficarem do lado daqueles que querem emancipá-las do jugo
clerical. Para Ulysses Martins, o clero considerava as mulheres como seres inferiores,
quando na verdade seriam iguais em direitos e deveres ao sexo oposto. Dois anos
depois, mais exatamente em 1º. de março de 1914, o periódico carioca A Voz do
Trabalhador veiculou uma notícia de uma outra festa organizada pela mesma Liga
Anticlerical do Rio de Janeiro. Nela, a “companheira Juana Buela” teria feito uma
“breve oração concitando os trabalhadores a se organizarem” afim de lutarem por seus
interesses.A tônica de sua fala acabou recaindo sobre as mulheres. Segundo Juana, elas
deveriam educar seus filhos “fora do estreito exclusivismo religioso, auxiliando seus
maridos na grandiosa obra de emancipação do operariado”.
No entanto, para além dos textos escritos, encontramos na imprensa operária
(sobretudo em A Lanterna) inúmeras representações gráficas que trabalham com a
noção segundo a qual mulheres e crianças seriam “alvos” privilegiados dos clérigos.
Não raramente, essas imagens imbricam-se naquelas que retratam os padres como
lúbricos e degenerados. Para lidar com tais representações, recorreremos aqui não aos
artigos, mas sim à linguagem gráfica. Esta parece ser, no caso, muito mais eloqüente do
que aqueles.
Nas edições de A Lanterna do ano de 1912, encontramos uma figura
insistentemente veiculada entre os artigos. Essa ilustração desempenha, na editoração do
periódico, uma dupla função: ilustrativa e delimitadora de textos. Ela retrata um padre
insidioso dirigindo-se a uma donzela. Enquanto esta é representada com um semblante
sereno e meigo, aquele aparece com os traços grotescos e o olhar desavergonhado.
Parece-nos evidente que essa ilustração transmitia não apenas a idéia de desfaçatez que
236

incidia sobre o padre, como também a noção de que a mulher seria sua mira preferida –
até por causa daquele caráter despudorado atribuído ao elemento clerical e da educação
religiosa que as mulheres concretas, na maioria das vezes, recebiam na família.

Imagem 11 – ilustração veiculada nas edições de A Lanterna


dos anos de 1912 e 1913

Em 1º. de julho de 1911, o


mesmo periódico anticlerical
veiculara uma charge que apresenta
duas imagens, uma contrastando com
a outra. A primeira (da esquerda)
mostra dois clérigos ajoelhados na
frente do altar. Com as mãos juntas
(em sinal de oração) e transmitindo
um ar de profunda piedade, ambos são
representados ministrando seus
Imagem 12 - A Lanterna, 1º de julho de 1911
ofícios litúrgicos. A segunda imagem
(do lado direito) apresenta um padre gordo sentado numa mesa com um charuto na mão
e um copo de bebida em sua frente. Em seu colo, aparece uma donzela formosa com um
sorriso no rosto e parte das pernas à mostra. O autor da charge fez questão de
representá-la transmitindo um indisfarçável olhar sensual. Logo abaixo, aparecem os
dizeres: “Na igreja e em casa – às claras e às escuras...”. Notamos aqui uma
característica comum em outros retratos representando os elementos clericais: os traços
grotescos. Feios e relaxados, os padres aqui retratados transmitem a sensação de pessoas
degeneradas e, no caso da imagem da direita, lúbricas.
Vimos a pouco o quanto a confissão inquietava certos círculos anticlericais e
libertários. Um novo indício dessa inquietação manifesta-se na edição de 31 de agosto
de 1912 do mesmo periódico acima citado. Trata-se de uma outra charge que enfoca a
237

suposta lascívia e desfaçatez do clero. Ela retrata um padre em pé, vestido de negro
(como em muitos outros casos) e dirigindo-se a uma bonita mulher. Esta aparece usando
um longo vestido branco; com ar angelical, a linda dama encontra-se sentada em uma
poltrona no interior de seu lar. Logo abaixo, por meio do texto que apresenta a
conversação entabulada pelos dois, notamos que, na verdade, o padre está se insinuando
à mulher. Esta, diante da impertinência do clérigo, exclama: “Cale-se, que pode vir meu
marido!”. “Deitar-lhe-ei a bênção; deitar-lhe-ei a bênção e fa-lo-ei sair, porque a
confissão não permite a presença de um terceiro”, responde o insinuante padre.
Para além da preocupação com os abusos que porventura pudessem advir do
momento em que aquele sacramento era ministrado, devemos notar que, neste caso, o
padre não é retratado de forma grotesca. Pelo contrário, ele parece até “bem apessoado”.
Devemos atentar para esse contraste em relação às outras imagens. Analisando as
representações gráficas em torno dos elementos clericais, percebemos que a recorrência
de padres mais elegantes e vistosos é maior quando eles são retratados em situações de
galanteio. Nas demais imagens de padres, temos quase sempre a incidência de
representações grotescas. Esse seria mais um indício daquela inquietação que a presença
constante dos clérigos nas relações familiares representava no imaginário anticlerical
da época.
Sem dúvida, tal inquietação deve-se àquilo que Michelle Perrot chamou de
“superinvestimento do imaginário e do simbólico masculino nas representações
femininas”243. Como bem apontou a autora, os materiais utilizados pelos historiadores
em seus estudos “são produtos de homens que têm o monopólio do texto e da coisa
públicos”244 . O próprio movimento operário, do qual a imprensa que investigamos é
parte constituinte, “mesmo fazendo o elogio da dona-de-casa, prefere-a em casa e
desconfia de suas intervenções” 245. Também Hobsbawm apontara já para esse relativo
alijamento das mulheres no seio do movimento organizado da classe trabalhadora. Para
ele, “a política de todos os sindicatos capazes disso era excluir as mulheres de seu
trabalho”. No entanto, precisamos ressaltar que o discurso militante apresentava um
outro aspecto não menos importante. Como o próprio Hobsbawm reconhece,

243
Ver Perrot, Michelle. Os Excluídos da História – Operários, Mulheres, Prisioneiros. Rio de Janeiro.
Editora Paz e Terra, 1992; p. 180.
244
Ibid.; p. 186.
245
Ibid.; p.210.
238

O movimento operário forneceu as melhores oportunidades para que [as mulheres] se


desenvolvessem como seres humanos de fato, como líderes e figuras públicas. Provavelmente ele
forneceu o único ambiente no século XIX que lhes deu tais oportunidades246.

Desnecessário dizer, aqui também, no contexto que analisamos, essas duas


facetas da situação feminina no movimento operário também se faziam presentes. Já
investigamos acima alguns artigos sobre o amor livre que enfatizavam a necessidade da
luta pela emancipação feminina. Nos discursos de quase todos os articulistas com os
quais lidamos, era preciso sacudir o jugo da dominação masculina no interior das
relações conjugais. Para além da esfera privada propriamente dita, muitos artigos faziam
a crítica contra as leis da época; leis que, como sabemos, favoreciam quase sempre o
homem, não a mulher.
Na peça O Pecado de Simonia, observamos duas distintas representações em
torno da mulher: a mulher “emancipada” e a “conservadora” (ou, se preferir, “carola”).
Como os outros personagens da peça, mãe e filha não estão pairando em alguma esfera
descolada da vida concreta. Sem dúvida, elas retratam sujeitos que existiam de fato na
sociedade. No entanto, Eva e Rosa não são apenas “reflexos” de elementos sociais
encontrados na realidade. As representações em torno das duas figuras cumprem com
um outro papel: o de intervir de forma efetiva naquela mesma sociedade. O objetivo
claro de Neno Vasco parece ter sido o de suscitar nos espectadores reflexões sobre suas
próprias experiências vividas.
Analisando a peça e seu argumento, parece-nos evidente que Eva é o retrato
invertido de sua mãe. Esta, retratada sempre como uma mulher crédula, é a nítida
projeção do que seriam aquelas figuras femininas que os membros das ligas anticlericais
queriam resgatar das garras da Igreja, restituindo-lhes a consciência crítica e
canalizando suas energias para a obra maior da emancipação humana. Eva, por sua vez,
nada mais é do que o retrato da mulher emancipada, cônscia do papel a desempenhar na
luta contra todas as forças que exploram e oprimem (no caso, principalmente os
elementos clericais). Equivalente a Ida, em Primeiro de Maio, Eva possui autonomia;
ela não é apenas uma garota influenciada por Ciro. Eva possui consciência e vida
próprias. São suas ações e sua sagacidade que determinam o desfecho que Neno Vasco
imprime na peça. Como antídoto frente às manipulações do padre João, Eva cultiva um

246
Ver Hobsbawm, Eric J. Op. Cit; pp. 137-138.
239

pensamento francamente emancipado; este - conjugado ao amor sincero que ela dedica a
Ciro - serve de escudo contra as intromissões inoportunas do velhaco padre João.
Desnecessário dizer, assim como as mulheres religiosas, aquelas que eram vistas como
“emancipadas” também existiam na vida concreta. Muitas delas participavam das
reuniões anticlericais e escreviam textos nos periódicos da imprensa operária de São
Paulo e do Rio de Janeiro. Como vimos, tais mulheres atuavam inclusive no próprio
teatro anarquista.
Se no discurso em torno da mulher a existência desse duplo aspecto
(“emancipada”/“conservadora”) é muito mais evidente, o mesmo não podemos dizer a
respeito das representações que incidem sobre as crianças. “Alvos fáceis” por
excelência, elas são objeto de uma preocupação especial dos círculos anticlericais. A
ênfase no caráter “suscetível” da infância aumentava os temores contra a suposta
manipulação clerical. Essa inquietação frente às influências do clero na educação das
crianças já se manifestava em Electra, de Perez Galdós. Houve até quem sugerisse
vagamente uma concupiscência que Pantoja (o jesuíta da peça) não chega a manifestar
abertamente. Em nenhum momento temos indícios concretos de que o jesuíta possuísse
algum outro intuito além de encaminhar a menina travessa pelas sendas da vida
religiosa. No entanto, em edição de A Lanterna do dia 6 de abril de 1901, um autor
anônimo, tecendo comentários sobre a peça de Perez Galdós, afirmava que “o vigor da
verdade que encerra o drama” chegaria “até nós num grito violentíssimo contra os
jesuítas que seduzem donzelas”. Diante das recorrentes denúncias de
abusos sexuais cometidos por padres na época que estudamos, não
admira a associação que o autor anônimo provavelmente sugere em
seu artigo. Não totalmente por acaso, parece mesmo que, no
imaginário anticlerical, a fronteira entre as interferências
educacionais do clero e os possíveis abusos sexuais cometidos pelos
padres era bem tênue.
Um exemplo emblemático do que seria essa preocupação
com a infância aparece registrado em uma charge publicada em 27
de abril de 1912 no mesmo periódico anticlerical citado acima. Ela
representa um clérigo como uma víbora. Em sua frente, encontra-se
Imagem 13 – A
uma pequena menina retratada como estudante. Com os olhos Lanterna,
sintomaticamente fechados, na mão direita ela segura uma pasta e 27.04.1911
240

sob o braço esquerdo um caderno (ou uma prancheta?). O padre, por sua vez, veste o
hábito preto e aparece com a língua de fora (como se estivesse pronto para “dar o
bote”). O clérigo é representado de perfil e bem mais alto do que a criança. A diferença
descomunal de altura entre ambos não pode ser desprezada; ela muito nos diz sobre o
que o cartunista entendia como sendo as relações entre o padre educador e sua pobre
“vítima”. Logo abaixo da imagem, vêm os dizeres: “A víbora que empeçonha o cérebro
inocente da criança, preparando-a para a exploração e o sofrimento do futuro”. Para
além da noção da criança como “alvo fácil”, devemos aqui atentar para as “lições” que
caberia ao clero transmitir às crianças em seus ensinamentos. O objetivo dessa educação
clerical seria, de acordo com o cartunista, preparar os pupilos para a exploração e para o
sofrimento. Ou seja, tratar-se-ia de um ensino avesso à emancipação, voltado para a
resignação e a perpetuação das injustiças.
A inquietação diante da influência da Igreja
na educação das crianças articula-se com as
críticas anticlericais que recaíam preferencialmente
sobre os jesuítas. É impressionante a quantidade de
idéias-imagens construídas em torno da figura do
padre vinculado à Companhia de Jesus. A
utilização de metáforas terrificantes e de adjetivos
depreciativos confere às representações em torno
dos jesuítas um caráter visceralmente corrosivo.
Isso é o que depreendemos, por exemplo, de uma
charge publicada na primeira página de A Lanterna
do dia 25 de novembro de 1911. Ela representa o
jesuitismo como uma serpente devorando uma
Imagem 14- A Lanterna 25.11.1911
pessoa que encarna a Humanidade. A serpente,
toda enrolada ao redor da pessoa, abocanha sua cabeça. Abaixo vêm as palavras:
“Quando conseguirá a humanidade livrar-se da terrível serpente negra”. Nas idéias-
imagens veiculadas pela imprensa operária, o próprio negro (vinculado às noções de
“trevas” e “obscuridade”) é muitas vezes associado ao jesuitismo e, por extensão, ao
clero em geral. Não por acaso, a cor negra da batina é com freqüência enfatizada nas
referências ao jesuíta, em particular, e ao clero como um todo.
241

Aliás, além dos ataques feitos contra os jesuítas, devemos salientar que, na
imprensa operária, muitas vezes os jesuítas são confundidos com o próprio clero.
Notamos freqüentemente o uso generalizante da palavra “jesuíta”; esta, nos discursos
dos articulistas, aparece às vezes como sendo sinônimo de “clero”.
Tendo em vista a importância central que padre João (um jesuíta) desempenha
na peça O Pecado de Simonia – assim como, antes dele, Pantoja (também jesuíta), em
Electra -, devemos nos perguntar: de onde vem essa atenção especial que os militantes
anticlericais dedicavam ao jesuitismo? Por que os membros da Companhia fundada por
Loyola eram colocados em destaque no discurso anticlerical libertário?
Parece-nos claro que, em grande parte, a ênfase no jesuíta deve-se ao seu papel
na educação – sobretudo em um país no qual as “origens” do ensino provêem
justamente das atividades desempenhadas por ele. Segundo a historiadora Heloísa de
Faria Cruz,

São os franciscanos, beneditinos, carmelitas, mas principalmente os jesuítas que, desde


a metade do século XVI, instituem os primeiros empreendimentos colonizadores na área da
instrução. Nos séculos XVII e XVIII, a Companhia de Jesus, alimentada pela redízima [...],
fundaria colégios de Norte a Sul da colônia portuguesa.247

Diante de uma influência assim tão arraigada, não surpreende a preocupação que
os militantes anticlericais manifestavam diante das atividades dos membros da
Companhia de Jesus. No dia 6 de novembro de 1909, em edição especial dedicada à
execução de Francisco Ferrer, o periódico A Lanterna, em uma extensa matéria, atribuiu
aos jesuítas a responsabilidade pela condenação final daquele educador espanhol.
Tendo em vista a grande influência das concepções pedagógicas de Francisco
Ferrer junto ao movimento libertário, consideramos indispensável tecer alguns
comentários breves sobre sua biografia. Francisco Ferrer y Guardia (10 de janeiro de
1849 - 13 de outubro de 1909), originário da Catalunha, foi o criador da Escola
Moderna (1901), um projeto prático de pedagogia libertária. Em 1906, já bastante
influenciado pelo pensamento anarquista, Ferrer foi preso sob suspeita de envolvimento
no atentado frustrado que Mateo Morral perpetrara contra o rei Alfonso XIII. Absolvido

247
Ver Cruz, Heloísa de Faria. São Paulo em Papel e Tinta: periodismo e vida urbana – 1890-1915. São
Paulo, EDUC, 2000; p. 39.
242

um ano depois, Ferrer viajou para a França e a Bélgica, sempre divulgando seu método
libertário de ensino. Em 13 de outubro de 1909, acusado de ter sido o instigador da
revolta conhecida como a Semana Trágica de Barcelona, Ferrer foi executado na prisão
de Montjuich, durante o período em que a Espanha vivia sob uma rígida lei marcial. Seu
projeto pedagógico inspirou a fundação de inúmeras Escolas Modernas em diferentes
partes do mundo, inclusive no Brasil.
“O crime horrendo dos jesuítas patenteado ao mundo”, acusava logo de cara o
título estampado na parte superior da primeira página da edição de A Lanterna que
acabamos de mencionar. Logo em seguida, servindo como subtítulo, novos ataques ao
jesuitismo: “As infâmias dos jesuítas do Brasil desmascaradas pelas notícias vindas da
Europa – Ferrer lançado à história como vítima do maior crime do século XX – À luta
contra os seus assassinos!”.
Logo no início de seu texto, José S. Salles atribui o “nefando atentado” contra
Francisco Ferrer ao “governo reacionário, déspota e jesuíta da Espanha”. A associação
direta com o governo espanhol expressa bem o sentido que o autor imprime ao
jesuitismo. Mancomunados com os poderosos, o jesuítas são retratados como “sicários”
empedernidos e manipuladores. Para além das imagens que o imaginário anticlerical e
libertário criava em torno dos jesuítas, devemos ressaltar o quanto as influências desses
padres na educação contribuíam para suscitar a fúria anticlerical. Eram essas mesmas
influências jesuíticas que conferiam ao projeto pedagógico de Ferrer seu caráter
alternativo. Com ele, tornava-se viável apresentar uma contraproposta educacional que
estivesse à altura de rivalizar com o programa dos jesuítas (e, por extensão, do clero em
geral). No texto de Salles, a oposição real ao projeto de dominação jesuítica era
assumido justamente por Francisco Ferrer. Com sua nova concepção pedagógica, Ferrer
é descrito como aquele que “mais funda brecha vinha de há muito abrindo [...] nas
torpezas execrandas desses negros abutres de Loyola”. Ou seja, no campo de disputas
em que se constituíam os projetos educacionais, os oponentes privilegiados dos
militantes anticlericais pareciam mesmo ser os jesuítas. O trabalho pedagógico
desenvolvido por Ferrer era visto como uma arma de luta contra a influência “maléfica”
dos “abutres de Loyola”.
Um outro indício desse embate com os jesuítas e suas obras educacionais
aparece em um artigo publicado em A Lanterna no dia 3 de fevereiro de 1912. Intitulado
“Jesuítas – A atividade jesuítica no Brasil”, o artigo, assinado por Mucio da Paixão,
243

oferece um enfoque alternativo a respeito da obra educativa desenvolvida pelos


membros da Companhia de Jesus aqui no Brasil. Enquanto a história oficial parecia
preocupar-se em exaltar as atividades pedagógicas dos jesuítas, Mucio propunha uma
abordagem bem mais crítica para a questão. Desde o início, o autor afirma que o
verdadeiro objetivo da vinda dos jesuítas ao Brasil não foi o de “propagar a fé pelos
autóctones e espalhar a instrução pelos colonizadores”. Para Mucio, na verdade, os
jesuítas chegaram ao Brasil no intuito de explorar as suas riquezas. Com isso, ele não só
acusa os jesuítas, como também relativiza a importância de sua obra pedagógica.
Partes integrantes de um projeto maior de dominação, os jesuítas teriam
aportado no Brasil para devassar o território à procura de riquezas e para transmitir as
informações aqui obtidas para o “papa negro, que tinha, na cidade eterna, as suas
cobiçosas vistas espalhadas por toda a terra”. Esse projeto maior de exploração teria
levado os jesuítas aos mais recônditos cantos do planeta. A catequese servia apenas para
mascarar essa “tenebrosa empreitada” e desviar as “atenções do povo”.
Em seu longo artigo, Mucio atenta não só para os “fins” da obra jesuítica, como
também para os “meios” por eles empregados. Segundo o autor, antes de colocarem em
prática “os meios brandos” de catequese, os jesuítas teriam cometido “dispensáveis
brutezas e crueldades contra os pobres selvagens”. Ele cita alguns documentos que
“provariam” que a “catequese não foi feita pelos meios brandos e suasórios [sic], mas
sim pela violência física”.
Atento às estratégias de conversão usadas pelos jesuítas, Mucio afirma: “Não
foram, portanto, a música e a dança somente, os meios empregados pelos jesuítas para
atraírem os selvagens”. Os “chuços e arcabuzes” teriam também cumprido um
importante papel nesse processo de conversão.
Atribuindo aos jesuítas os métodos violentos de imposição de sua doutrina,
Mucio questiona em seu texto o projeto pedagógico daqueles padres, contribuindo para
desconstruir os mitos edificantes que já na época haviam se consolidado em torno deles.
Enfim, queremos apenas enfatizar que, na luta contra a insinuação clerical, o
enfrentamento no campo do ensino e da instrução parecia ser uma exigência. Como as
instituições clericais de ensino eram bastante influentes no Brasil, os militantes
anticlericais e libertários deviam mobilizar suas forças e combater a Igreja naquele que
era um de seus campos de ação mais efetivos: a educação. Para tanto, era preciso eleger
um representante sobre o qual recaísse a maior parte dos ataques. Tal representante
244

parece que foi, de fato, o jesuíta. Sobre sua figura recaíam os ataques contra a Igreja (de
modo geral) e seus projetos específicos de ensino. Ou seja, a concentração dos ataques
na figura do jesuíta cumpria com uma dupla função: combater os projetos pedagógicos
clericais e, ao mesmo tempo, a Igreja como um todo (uma vez que o jesuíta
transformava-se em elemento emblemático, símbolo essencial do clero).
Enfim, o direcionamento das invectivas na figura do jesuíta parecia ter o
condão de galvanizar as energias esparsas que o inconformismo anticlerical gerava,
canalizando-as para aquele elemento particular e ao mesmo tempo central. A escolha do
jesuíta, portanto, não era casual. Ela fazia parte de todo um complexo simbólico em
torno do qual orbitavam as práticas discursivas (ou não) dos militantes com os quais
lidamos nesta pesquisa. Dirigir os ataques aos jesuítas parecia ser uma necessidade
premente na luta contra a influência clerical na sociedade (de uma forma geral) e na
educação (de uma forma específica).

4.5. As práticas sociais em torno das Ligas: articulações na luta anticlerical

Diante dessa “ameaça” representada pelo jesuitismo – sobretudo no que se refere


à consciência infantil -, não foram poucos os esforços envidados para impedir o avanço
da educação clerical. Referimo-nos já ao documento fundador da Liga Anticlerical
Brasileira em sua quinta “base” – aquela que manifestava a necessidade de afastar as
mulheres e crianças do confessionário. O mesmo documento, em sua quarta base,
expressava também uma nítida preocupação com a influência religiosa na educação das
crianças. Neste item, o autor se refere aos educadores religiosos como “prepostos” dos
padres e “jesuítas de calça”.

A “ameaça” clerical parecia ser efetiva. Opor-se a ela era visto como necessário.
A própria fundação da Liga Anticlerical Brasileira denotava um nítido anseio por uma
maior organização da luta contra o poder da Igreja. Era preciso congregar as forças
então dispersas e coordenar as atividades de combate ao elemento clerical. Em sua
edição de 29 de outubro de 1910, o periódico A Lanterna noticiou a recente fundação da
Liga. Por meio dessa destacada matéria de primeira página, conhecemos também quais
as bases fundamentais que serviriam de orientação para os trabalhos dessa associação.
Logo no início da notícia, o autor anônimo deixava claro o porquê daquela necessidade
245

de união dos anticlericais em todo o País. Vejamos de perto o excerto inicial desse
texto e algumas das bases que norteariam as atividades da Liga.

Desejando estabelecer os anticlericais do Brasil o necessário vínculo moral para o


melhor proveito e probabilidade maior de vitória na luta contra a nefasta e deletéria
preponderância do clero na vida e nos destinos do povo, um grupo de intransigentes
batalhadores, inimigos acérrimos da batina – símbolo da treva e do mal – resolveu estabelecer
em São Paulo a Liga Anticlerical Brasileira, cujo propósito é este:

1º. Agremiar todas as forças e todas as boas vontades decididas a combater pela
liberdade de consciência.

2º. Promover por todos os meios a resistência à invasão e assalto das congregações
religiosas e do clero em geral.

3º. Combater todos os elementos reacionários que, direta ou indiretamente, procurem


cercear e limitar a liberdade.

[...]

6º. Auxiliar todas as iniciativas que se proponham desenvolver o ensino racionalista.

[...]

11. Batalhar incessantemente para obter que as escandalosas subvenções dadas pelos
governos municipais, estaduais e federais, aos bispados e congregações sejam suprimidas a bem
do povo.

Por fim, a Liga dispunha-se a receber adesões provenientes de todo o País. Os


interessados deviam enviar suas adesões pelo correio. Afirmava ainda o autor da notícia
que as contribuições à Liga seriam voluntárias, mas todos os aderentes deveriam pagar
uma quota mínima de 500 réis “para ocorrer às despesas de secretaria e expediente”.
Ficava ainda decidido que em qualquer lugar as pessoas poderiam criar suas
próprias associações. Estas, fundamentando-se nas “bases da Liga Anticlerical
Brasileira”, receberiam dela “cooperação moral e material”. Devemos frisar que a caixa
postal 195, para a qual todas as correspondências enviadas à Liga seriam destinadas, era
a mesma utilizada pelo periódico A Lanterna. Portanto, ao que tudo indica, a “sede”
provisória da Liga Anticlerical Brasileira ficava no mesmo endereço em que aquele
jornal era editado: ou seja, Largo da Sé, nº. 5.
246

Atentando exclusivamente para as “bases” da Liga, assinalamos já a inquietação


dos membros anticlericais diante da “ameaça” que os padres supostamente
representavam às mulheres e crianças. Para além dessa indisfarçável preocupação, os
excertos acima transcritos apontam para três questões que permeiam as práticas sociais
em torno do anticlericalismo. Primeiramente, o caráter abrangente que os círculos
anticlericais desejavam conferir às suas atividades, congregando “todas as forças e todas
as boas vontades” dispostas a combater a Igreja. Em segundo lugar, notamos nas bases
dessa Liga (sobretudo na terceira) a ênfase na luta pela liberdade de consciência e, por
extensão, pela própria liberdade de expressão. Por fim, a necessidade de incentivar o
ensino racionalista, visto aqui como antídoto diante da educação religiosa.
Em meio à nossa tentativa de “reconstituir” as trajetórias do movimento
anticlerical, debruçar-nos-emos sobre cada uma dessas questões que marcaram as
diferentes práticas sociais do anticlericalismo. Lancemos um rápido olhar sobre o
caráter abrangente que os círculos anticlericais desejavam conferir a si próprios. Como
bem salientou Eduardo Valladares, o anticlericalismo, no período que estudamos,
“agregou elementos de várias posições políticas e sociais: setores da maçonaria, liberais,
positivistas, jacobinistas, livres-pensadores, agnósticos, socialistas e anarquistas. Enfim,
reuniu aqueles que se insurgiam [...] contra a Igreja [...] e sua ordem sacerdotal” 248.
Portanto, ao voltar nossas atenções para as práticas sociais em torno do anticlericalismo,
devemos sempre lembrar que elas não se restringiam aos círculos ácratas que estamos
estudando nesta pesquisa. No entanto, como veremos em vários momentos, parece
indiscutível que tais círculos assumiram sim um papel fundamental, se não mesmo
preponderante – pelo menos no que tange às atividades das Ligas Anticlericais sobre as
quais voltaremos nossas atenções. O próprio vínculo da Liga Anticlerical Brasileira
com o periódico A Lanterna, editado então pelo anarquista Edgard Leuenroth, parece-
nos um indício claro dessa influência dos círculos ácratas sobre as atividades daquela
agremiação.
Outro sinal inequívoco da mesma influência aparece na edição de 14 de abril de
1911 daquele jornal. Trata-se de uma pequena notícia intitulada “A festa de sábado”.
Ela faz um resumo sobre “a grande festa popular” realizada em benefício da Liga
Anticlerical recentemente formada (ou seja, a Liga Anticlerical Brasileira). Na
programação do evento, desnudamos atrações com temáticas bem anticlericais. Para

248
Ver Valladares, Eduardo. Op. Cit.; p.11.
247

além da encenação do drama Galileu Galilei, que preencheu a primeira parte daquele
evento, destacaram-se as inúmeras conferências anticlericais. Dentre elas, o autor da
notícia destacou a que foi realizada pelo “operário Julio Sorelli”. Sem dúvida, o autor da
notícia refere-se aqui ao ativo militante anarquista (ou sindicalista revolucionário)
Giulio Sorelli, autor da peça Il Giustiziere, citada já em outros momentos de nossa
pesquisa. Nessa festa promovida em São Paulo pela Liga Anticlerical Brasileira, Sorelli
proferiu uma conferência intitulada, não por acaso, “O movimento anticlerical”.
Precisamos salientar que a notícia acima mencionada foi o último indício que
encontramos sobre as atividades desenvolvidas pela Liga Anticlerical Brasileira, sediada
em São Paulo. No entanto, três semanas depois, o mesmo periódico A Lanterna
informa-nos sobre a recente criação da Liga Anticlerical de São Paulo 249. A partir desse
momento, haveria então duas Ligas atuando nesta cidade, a Brasileira e a de São Paulo?
Ou a segunda substituiu a primeira? Neste caso, o que teria ocorrido com a Liga
Anticlerical Brasileira? Analisando de perto a trajetória evasiva da nova Liga de São
Paulo, podemos apenas formular algumas hipóteses para responder a tais questões.
Investiguemos então os poucos vestígios que nos restaram sobre as atividades dessa
entidade anticlerical paulistana.
Nesse anúncio sobre a criação da Liga paulistana, por exemplo, de novo salta
aos olhos a influência ativa dos círculos ácratas sobre o movimento anticlerical. O texto,
intitulado “Liga Anticlerical de São Paulo – AO POVO!”, é assinado por Edgard
Leuenroth, Oreste Ristori, Gustavo Fischer, Tobia Boni e Benjamin Mota – todos
pertencentes à Comissão de Propaganda dessa nova entidade. Para os que já estão
familiarizados com a história do movimento operário, desnecessário seria enfatizar a
postura ideológica francamente libertária assumida por praticamente todos os que
fizeram parte daquela comissão. Vejamos então qual o teor do anúncio por eles
assinado.
Já em seu primeiro parágrafo, o anúncio afirma:

Diante do perigo negro que sufoca o Brasil, e da urgente necessidade de reunir num
formidável grupo de luta todas as forças vivas dos elementos liberais, até agora desunidos e
inertes, em defesa das mais elementares liberdades dos cidadãos ameaçados pela soberba
opressora e reacionária de uma seita sacerdotal, que numa obra surda e tenebrosa de
embrutecimento moral, conspira nas sacristias e nos conventos contra a civilização e o progresso

249
Ver A Lanterna, edição de 6 de maio de 1911.
248

– os partidos adiantados de São Paulo, pela oportunidade de uma ação conjunta contra o comum
inimigo, puseram de lado as divergências doutrinárias dos seus respectivos programas e
fundaram uma LIGA ANTICLERICAL destinada a incorporar e lançar em fecunda campanha
todos os grupos de combatentes – livres-pensadores, ateus, materialistas etc. que, isoladamente
seriam impotentes para fazer frente ao grosso das forças adversárias.

No parágrafo transcrito acima, parece-nos evidente a necessidade de afirmação


daquele caráter “universalista” e heterogêneo ao qual nos referimos anteriormente.
Segundo os autores, era preciso reunir numa única entidade “todas as forças vivas dos
elementos liberais” no intuito de defender as “mais elementares liberdades dos
cidadãos”. Para tanto, foi preciso que os “partidos adiantados” deixassem de lado suas
“divergências doutrinárias” para juntos abraçarem a mesma causa anticlerical que os
unia. A própria utilização de algumas palavras (“liberais”, “cidadãos” e “partidos”) -
sem a nota crítica com a qual viriam acompanhadas em outros textos dos autores-, é
bastante eloqüente sobre o caráter “ecumênico” que a Comissão de Propaganda
desejava conferir à Liga de São Paulo.
No entanto, como não poderia deixar de ser, mais adiante os autores fazem
questão de imprimir em seu discurso um indisfarçável tom libertário e “classista”.
Assim, os objetivos que a Liga pretendia alcançar seriam, nas palavras dos autores, “a
mais elevada expressão das aspirações do proletariado mundial”. Além disso, se no
primeiro parágrafo os membros da Comissão de Propaganda referem-se à necessidade
de reunir “as forças vivas dos elementos liberais”, mais abaixo eles dirigem-se aos
“elementos libertários desta república”. Estes teriam como “grande missão” enfrentar a
“ação embrutecedora e assassina do clero”. O que era “liberal” transmuta-se em
“libertário”. A própria menção à República com “r” minúsculo não deixa de ser
indicativa da nuança libertária que o texto adquire conforme se desenvolve.
Nos três últimos parágrafos, a relação complementar entre geral e particular
volta a se manifestar. Por um lado, os autores lançam mão de um novo apelo para que as
pessoas “de todas as nacionalidades e de todos os partidos” engajem-se nessa “obra
santa de redenção” e de luta contra a opressão clerical. Na seqüência, no entanto, as
atenções voltam-se novamente para os trabalhadores. Particularizando melhor o apelo
anteriormente feito a todos, os autores dirigem-se agora preferencialmente aos
“trabalhadores do braço e do pensamento”, conclamando-os a inscreverem-se na Liga.
Por fim, fazem um apelo a todos os que “tenham conosco comunidade de aspirações e
249

esperanças” para que fundem também (regionalmente) suas próprias ligas; estas, no
futuro, reunir-se-iam numa hipotética “Federação Anticlerical do Estado de São Paulo”.
Desnecessário dizer, o próprio ideal federativo não esconde os pendores libertários
daqueles que assinam o documento.
Portanto, voltamos a insistir que o movimento anticlerical era sim bastante
heterogêneo. No entanto, a influência de seus membros anarquistas era dentro dele
muito forte, pelo menos no interior de cada liga que estudamos. Diante dos vários
outros “partidos” que se congraçavam naquele movimento, os que abraçavam a causa
libertária não perdiam a oportunidade de demarcar seu próprio território, conferindo à
luta anticlerical um caráter próprio. Assim como nas comemorações em torno do 1º. de
Maio, aqui também os anarquistas e sindicalistas revolucionários preocupavam-se em
imprimir seus próprios estilos e suas próprias visões de mundo. Não obstante a
aceitação dos posicionamentos alheios, os libertários com os quais lidamos conferiam
ao movimento anticlerical concepções e sentidos particulares. São esses sentidos que
tentamos compreender melhor na presente análise. Sigamos adiante.
Relacionando as bases da Liga Anticlerical Brasileira, publicadas em 29 de
outubro de 1910, com a declaração de propósitos de sua congênere paulistana, notamos
entre essas duas entidades não poucas afinidades. Se aquela agremiação nacional
preocupava-se já com a influência do clero sobre as crianças e as mulheres, a Liga
Anticlerical de São Paulo não deixava de manifestar uma inquietação semelhante. Num
parágrafo totalmente dedicado a acusar a “influência imbecilizadora da educação
clerical”, os autores apontavam para a necessidade de libertar “o espírito vacilante de
nossas mulheres, dos pueris temores do inferno cristão”. Além disso, notamos na
transcrição das bases da Liga Anticlerical Brasileira uma preocupação com os gastos
públicos destinados a sustentar os elementos clericais. A décima primeira base daquele
documento fundador (assim como a sétima, não transcrita) manifestava uma inequívoca
indignação diante das “escandalosas subvenções dadas pelos governos municipais,
estaduais e federais, aos bispados e congregações” religiosas. Uma preocupação
semelhante também emerge do anúncio assinado pela Comissão de Propaganda da nova
Liga Anticlerical de São Paulo. Articulando seu discurso com as eloqüentes imagens de
“ganância” e “ambição” acima analisadas, os membros daquela comissão afirmavam
que era preciso “aplicar um golpe mortal à potência econômica do clero”, obrigando o
Estado e os municípios a não mais subvencionarem os seus cultos. Em sintonia com
250

aquela acusação sobre a suposta “influência imbecilizadora” dos padres, o texto que ora
analisamos aponta ainda para a necessidade de afastar o povo dos ritos religiosos e dos
sacramentos administrados pela Igreja, obrigando assim os clérigos “a ganhar o pão
com o suor da própria fronte” .
As afinidades de propósitos entre as duas Ligas por certo não eram mera
coincidência. Para além de expressar inquietações em comum, tais afinidades
provavelmente indicam uma provável solução de continuidade entre as duas entidades.
Entre a última notícia que encontramos sobre as atividades da Liga Anticlerical
Brasileira (14 de abril de 1911) e a primeira de sua congênere paulistana (6 de maio de
1911), existe um curto espaço de tempo de menos de um mês. Se a partir de maio de
1911 nada mais aparece a respeito da entidade brasileira, por outro lado, indícios sobre a
Liga Anticlerical de São Paulo começam a despontar.
A hipótese segundo a qual a Liga paulistana era sucedânea da Liga brasileira
provém dos vestígios que apontam para suas respectivas composições internas. Ao que
tudo indica, ambas possuíam como núcleo central uma parte da equipe de redatores,
editores e articulistas de A Lanterna. Vimos já que as correspondências dirigidas à Liga
Anticlerical Brasileira deviam ser enviadas para o mesmo endereço no qual ficava a
redação de A Lanterna (Largo da Sé, nº. 5). Vimos também que a Comissão de
Propaganda da Liga paulistana era composta, dentre outros, por Edgard Leuenroth
(editor de A Lanterna) e por Benjamim Motta, militante que, em 1901, segundo Maria
Nazareth Ferreira, ajudara Leuenroth a fundar o mesmo periódico 250. Se as
correspondências destinadas à primeira entidade deviam ser enviadas ao endereço da
redação de A Lanterna, sabemos que pelo menos uma reunião da Liga Anticlerical de
São Paulo (posterior) foi programada para ocorrer também naquele mesmo endereço 251.
Sendo assim, não seria descabido afirmar que a Liga brasileira foi desativada e
boa parte daqueles que a compunham ingressaram quase que automaticamente na Liga
de São Paulo. Caso essa hipótese seja correta, é possível sugerir que, dentre os possíveis
motivos que levaram à desarticulação da entidade brasileira, estejam as enormes
dificuldades em se organizar, na época, uma associação anticlerical de caráter assim tão
amplo. Sem dúvida, esse parecia ser um propósito bastante ousado para as condições

250
Ver Ferreira, Maria Nazareth. A Imprensa Operária no Brasil – 1880-1920. Petrópolis, Editora Vozes,
1978; p. 94.
251
Ver, na página seguinte, nota publicada em A Lanterna no dia 9 de setembro de 1911.
251

organizacionais de então. É provável que o apoio moral e material desejado pelos


líderes da Liga brasileira tenham sido escassos. Por isso, mais sensato seria organizar
uma entidade local para, depois, ensejar a criação de um órgão mais abrangente – se não
brasileiro, ao menos estadual (como propunham os membros da nova Liga paulistana).
Voltemos então à trajetória da recém-fundada Liga paulistana. No dia 9 de
setembro de 1911, A Lanterna publicou um anúncio convocando os membros das
“Comissões Administrativa e de Propaganda da Liga Anticlerical de São Paulo” para
uma reunião. Esta estava prevista para ser realizada no dia 11 daquele mês (uma
segunda), às 8 horas da noite. Por fim, o anúncio fez um apelo para que os membros das
duas comissões não faltassem àquela reunião, pois nela seriam tratados “assuntos
importantes”. Como dissemos acima, o local mencionado para a reunião era o Largo da
Sé, nº. 5 (sobrado), ou seja, o endereço onde ficava a redação de A Lanterna.

Imagem 15 - anúncio da Liga de São Paulo (A Lanterna, 09.09.1911)

A utilização do prédio no qual ficava a redação do periódico anticlerical


expressa as dificuldades que as duas Ligas enfrentavam para encontrar um lugar
definitivo onde pudessem se estabelecer. Se a Liga Anticlerical Brasileira não nos
deixou nenhum indício explícito sobre tais dificuldades (talvez o caráter intermitente e
efêmero de suas atividades não ensejasse informações mais detalhadas), o mesmo não
ocorre com a Liga de São Paulo.
Cerca de dois meses antes de ser realizada a reunião supracitada, o mesmo
periódico A Lanterna, em sua edição de 8 de julho de 1911, apresentara já, em uma
nota, alguns sinais inequívocos do que eram as dificuldades de organização da Liga
Anticlerical de São Paulo. Não obstante o tom geral de entusiasmo, Lucas, o autor da
252

nota, apontava para problemas na escolha e locação da sede definitiva daquela entidade
paulistana. Por meio das informações oferecidas por ele, sabemos que “os trabalhos da
comissão provisória da Liga” já estavam “em bom caminho”. Dentre os expedientes já
adotados, constava a aquisição dos “livros em branco para a sua [da Liga] instalação e
funcionamento”. Segundo Lucas, o “mais difícil era encontrar o salão onde a Liga
pudesse funcionar”. Mais adiante, Lucas afirma que os membros da Liga estavam já
tratando de “instalá-la no belo salão da Associação do Livre Pensamento”. Lucas afirma
ainda que a Liga tratava de adquirir “uma centena de cadeiras e outros móveis
necessários, pois a sede da nossa Liga irá servir para as pessoas que quiserem estudar”.
O autor aponta ainda os expedientes adotados na ocasião para a aquisição de uma
biblioteca – além do intuito de organizar na sede da Liga “conferências de propaganda e
instrução”. Lucas anuncia também (para um futuro indeterminado) a realização de uma
“grande reunião de anticlericais, dando-se completa liberdade de palavra a todos os
amigos da propaganda, para tratarmos da instalação definitiva da Liga”. O autor termina
fazendo votos de que os “valentes anticlericais de São Paulo” consigam em breve se
tornar o “espantalho de toda essa corja de farsantes de batina e de casaca”, iluminando
os “cérebros ofuscados pelas trevas que as igrejas e os interesses inconfessáveis de
classes que vivem do crime, produzem em volta de si”.
Precisamos ressaltar algumas questões intrigantes expressas pelo texto de Lucas.
Primeiro, a menção ao caráter “provisório” conferido à comissão que cuidava da
organização da Liga. Dois meses foram transcorridos desde a fundação daquela entidade
e nenhuma comissão “permanente” fora ainda escolhida. Tal interinidade manifesta não
só o caráter incipiente da Liga de São Paulo, como (talvez) algumas dificuldades não
desprezíveis na organização de reuniões que cuidassem das deliberações
organizacionais daquela entidade. Afinal, como o próprio Lucas revela, o “mais difícil
era encontrar o salão onde a Liga pudesse funcionar”. Sendo assim, tomar decisões e
eleger seus representantes eram tarefas inviáveis naquelas circunstâncias. Outra questão
que salta aos olhos na nota supracitada tem a ver com os propósitos culturais e
instrutivos encampados pela entidade anticlerical. Segundo Lucas, “uma centena de
cadeiras e outros móveis” eram adquiridos na ocasião no intuito de disponibilizar a
futura sede da Liga “para as pessoas que quiserem estudar”. Além disso, alguns
expedientes eram tomados então para a aquisição de uma biblioteca. Ou seja, para além
das reuniões e conferências de propaganda, a Liga Anticlerical manifestava um claro
253

interesse em se tornar uma espécie de Centro de Cultura para onde os interessados


poderiam se dirigir no intuito de adquirir instrução.
No entanto, as dificuldades apontadas por Lucas para a instalação de uma sede
definitiva pareciam mesmo ser grandes. Por isso, parece que os membros da Liga de
São Paulo (assim como, antes, os da Liga Brasileira) precisavam mesmo utilizar as
acomodações da redação de A Lanterna. Até que ponto dificuldades como essa
afetavam diretamente as atividades da Liga de São Paulo. Impossível uma resposta
cabal. De qualquer forma, o fato é que, desde a publicação daquela nota convocando os
membros das Comissões Administrativa e de Propaganda para tratar de “assuntos
importantes” (9 de setembro de 1911), não encontramos mais nenhum indício das
atividades da Liga Anticlerical de São Paulo.
Se a Liga paulistana não nos oferece mais nenhum rastro de sua trajetória, o
mesmo não ocorre com sua congênere carioca. Aliás, as informações que desde então o
periódico A Lanterna oferece sobre as atividades da Liga Anticlerical do Rio de Janeiro
são cada vez mais constantes. Se a associação paulistana provavelmente desapareceu,
pelo menos podemos dizer que ela deixou um legado bastante ativo e proeminente em
sua congênere carioca. Sabemos, por exemplo, que os estatutos da Liga paulistana
inspiraram as bases organizacionais da Liga fundada no Rio de Janeiro.
Pelo menos é isso o que depreendemos de uma nota publicada em A Lanterna no
dia 3 de junho de 1911, cerca de um mês depois da fundação da Liga de São Paulo.
Intitulada “A LIGA ANTICLERICAL DO RIO DE JANEIRO”, a nota, assinada por
Ulysses Martins e Carlos A. de Lacerda, é dirigida aos “Companheiros e amigos”.
Com o claro objetivo de informar sobre o surgimento da nova entidade, ela começa com
as seguintes palavras:

Levo ao vosso conhecimento que ficou fundada hoje, domingo, 28 do corrente, a Liga
Anticlerical do Rio de Janeiro, cuja assembléia geral teve lugar nos vastos salões do Grêmio
Republicano Português, gentilmente cedidos pela sua ilustre diretoria.
Às 2 ½ da tarde, achando-se repleto o salão de associados, foi aberta a sessão pelo sócio
Ulysses Martins, ocupando os lugares de secretários o dr. Coelho Lisboa e Carlos Augusto de
Lacerda.
[...] Iniciou-se em seguida a discussão dos estatutos da Liga, deliberando a assembléia
que se tomasse por norma os da Liga de São Paulo, com pequenas alterações apenas, devido ao
meio em que temos de agir.
254

Fundada em 28 de maio de 1911, a Liga Anticlerical do Rio de Janeiro iniciava a


partir de então uma fase de intensas atividades. Podemos acompanhar um pouco das
práticas sociais desenvolvidas por essa entidade por meio das informações veiculadas
pelo mesmo periódico A Lanterna. Mais uma vez, é ele que nos oferece algumas pistas
na busca de uma maior compreensão sobre as atividades anticlericais da época que
estudamos.
Primeiramente, precisamos ressaltar que as dificuldades com a instalação da
sede e com a busca de espaços onde a Liga pudesse realizar suas reuniões também
inquietaram os membros dessa entidade carioca. Como o excerto citado acima nos
indica, a reunião inaugural da Liga do Rio teve de ser realizada “nos vastos salões do
Grêmio Republicano Português, gentilmente cedidos pela sua ilustre diretoria”. No final
da nota publicada em A Lanterna, os autores mais uma vez agradecem o apoio
dispensado pelo Grêmio Republicano Português pela cessão dos salões utilizados na
reunião inaugural da Liga.
Para além das possíveis afinidades de propósitos que a organização anticlerical
possuía com o Grêmio lusitano (o diretor desta associação foi convidado para compor a
mesa da sessão inaugural da Liga), devemos aqui atentar para o tom cordial que os
representantes da associação anticlerical utilizam quando se referem à diretoria do
Grêmio. Tal cordialidade denota uma sincera gratidão diante do inestimável apoio
material recebido. Sem a cessão dos salões pelo Grêmio, a Liga carioca talvez não
conseguisse organizar sua reunião inaugural.
Esta não foi a única vez em que a Liga carioca utilizou os “vastos salões” da
associação lusitana. No mês de junho de 1912, por exemplo, a associação anticlerical
realizou uma série de conferências na sede do Grêmio Republicano Português252.
Apesar de utilizar os salões do Grêmio Republicano Português, sabemos que a
Liga Anticlerical do Rio de Janeiro não sofria as mesmas carências de sua congênere
paulistana. Se a Liga de São Paulo talvez nunca tenha possuído uma sede própria (ela
recorria aos estabelecimentos de A Lanterna, quando preciso) , a Liga carioca, por sua
vez, possuía a sua. Não pudemos identificar quando a associação anticlerical do Rio se
estabeleceu em sua primeira sede. No entanto, desde o primeiro semestre de 1912
encontramos indicações de que aquela entidade realizava parte de suas reuniões em um

252
Sabemos dessas conferências no Grêmio Republicano Português por meio de duas notas publicadas
em A Lanterna: uma no dia 13 de julho de 1912 e outra no dia 27 daquele mesmo mês.
255

prédio situado então na Rua General Câmara, nº. 335253. No entanto, os membros da
Liga carioca não estavam satisfeitos com o lugar em que se situava a sede de sua
organização. Já no dia 7 de março de 1912, numa quinta-feira (dia da semana em que a
Liga carioca organizava suas reuniões e boa parte de suas atividades culturais), ocorreu,
às 20h30, uma reunião de associados para discutir várias questões que pareciam
urgentes. Dentre outras coisas, ficou decidido naquele encontro que a mensalidade que
os associados deveriam pagar seria de 1$000. A nota sobre a reunião, publicada
posteriormente em A Lanterna, expressa ainda a “urgente necessidade de dar à Liga um
local mais apropriado e vasto onde possam ser realizadas conferências e festas de
propaganda”. Para tanto, foi aberta naquele encontro uma outra lista “onde se
inscreverão todos aqueles que queiram contribuir com 5$000, além da mensalidade”. A
idéia, segundo a nota, teria sido bem acolhida. Muitos associados já teriam assinado a
outra lista.
De fato, parece que não poucos estavam dispostos a contribuir para a
transferência da Liga. No dia 10 de agosto de 1912 – portanto, cinco meses após o
início das contribuições financeiras solicitadas aos associados -, uma nota bem
entusiástica, publicada também em A Lanterna, convidava “todos os amantes da
liberdade a assistir amanhã, às 8 horas da noite à inauguração da nova sede desta Liga, à
Rua Marechal Floriano Peixoto, 118”. Uma semana depois, o mesmo periódico trouxe
informações sobre os festejos de inauguração da nova sede. Segundo o autor anônimo
dessa notícia, haveria na reunião um “elevadíssimo número de associados”. A
propósito, o autor fez questão de ressaltar “que mais da metade das cadeiras estavam
ocupadas por senhoras e senhoritas”. Aliás, nos vários comentários sobre as reuniões e
festas organizadas pela Liga carioca a ênfase na presença feminina é uma constante.
Sem risco de exagero, podemos afirmar que a atenção dada à presença das mulheres nas
reuniões anticlericais denota aquela já mencionada preocupação em desviar o elemento
feminino da esfera de influência da Igreja. Conseguir um grande número de mulheres
nas reuniões e festas organizadas pela Liga parecia ser um tento ganho pelas obras
daquela entidade, em contraposição ao proselitismo do clero. Cada mulher presente na
reunião da Liga era uma a menos nas fileiras da “beatice”.
Por meio dessa notícia, sabemos ainda que quem abriu a sessão naquela noite foi
Carlos Augusto de Lacerda, então 1º. secretário da Liga. Foi ele também quem, mais

253
Ver em A Lanterna, edição de 20 de abril de 1912, nota da Liga Anticlerical do Rio de Janeiro.
256

adiante, mandou “descerrar” os quadros de Francisco Ferrer e Giordano Bruno, ambos


expostos no salão principal da nova sede que a Liga acabava de fundar. “Ao aparecer as
nobres figuras, em tamanho natural, das duas vítimas da ferocidade jesuítica, duas
prolongadas salvas de palmas fizeram-se ouvir”.
Após a inauguração dos dois quadros, foi dada a palavra ao representante da
Associação dos Babeiros e Cabeleireiros, Sr. Manuel Fernandes. O representante da
União dos Alfaiates, Antonio Moreira, também teve a palavra naquele momento solene.
Por fim, terminada a sessão, foram servidos biscoitos e um cálice de vinho do Porto. Era
quase meia noite quando todos se retiraram.
A procura de um novo local para servir de sede à Liga expressa uma necessidade
de espaços mais amplos para a realização das inúmeras atividades culturais que aquela
entidade promovia. Parece-nos claro que a nova sede (situada na Rua Marechal Floriano
Peixoto, nº. 118) era maior do que a anterior (da Rua General Câmara, nº. 335). No
entanto, mesmo assim, a nova sede não comportava alguns eventos de grande porte que
a Liga organizava. Por exemplo, as grandes festas de propaganda, que apresentavam
uma programação mais diversificada (incluindo as encenações teatrais), ainda eram
realizadas em salões alugados. Por exemplo, inúmeras festas do gênero foram
organizadas pela Liga no vasto salão do Centro Galego, muito requisitado pelas demais
festas operárias do Rio de Janeiro. No entanto, se antes a Liga precisava requisitar os
“vastos salões” do Grêmio Português para realizar suas conferências mais concorridas,
agora, ao que tudo indica, as acomodações da nova sede serviam-lhe bem para tais
ocasiões.
Por isso mesmo, notamos, a partir de então, uma nítida intensificação das
atividades culturais e educativas encampadas pela Liga do Rio. No dia 28 de setembro
de 1912, por exemplo, uma pequena nota publicada em A Lanterna anunciava a
organização de um curso voltado exclusivamente aos associados da Liga. Com uma
programação diversificada, o curso seria ministrado por Carlos A. de Lacerda
(Geografia), Coelho Lisboa (História) e José Oiticica (Português). No entanto, a
viabilização do projeto parece ter encontrado obstáculos não desprezíveis. Isso porque,
durante todo o mês seguinte (outubro), nós não encontramos nenhuma outra informação
a seu respeito.
Isso não quer dizer que os projetos culturais da Liga foram suspensos. Sabemos,
por exemplo, que entre outubro e novembro, todas as quintas-feiras, José Oiticica
257

ofereceu aos associados da Liga um curso de Sociologia.


Temos indícios dessas aulas ministradas por Oiticica na edição
de 9 de novembro de 1912 do mesmo periódico anticlerical que
nos serve de esteio. É nessa mesma edição, no interior da
mesma nota destinada à Liga Anticlerical, que encontramos
uma nova menção àquele curso diversificado que fora
anunciado em 28 de setembro. Agora, no entanto, a
programação incluía novas disciplinas que antes não foram
mencionadas. Se as disciplinas de História, Geografia e
Português continuavam com os mesmos professores (Coelho
Lisboa, Carlos Augusto de Lacerda e José Oiticica,
respectivamente), na nova programação eram contemplados
Imagem 16 – A ainda o Francês (ministrado também por Carlos A. de Lacerda)
Lanterna, 09.11.1912
e a disciplina de Aritmética (“a cargo do sr. J. P. da Silva”).
Notamos no anúncio que as aulas estavam previstas para ocorrer no período da noite.
Para as segundas-feiras, estavam previstas as aulas de Geografia e Francês; para as
quartas-feiras, História; aos sábados, seriam ministradas as aulas de Português e
Aritmética. No mesmo anúncio, logo abaixo da programação, temos a informação de
que o novo curso seria oferecido gratuitamente aos sócios da Liga.
Acompanhando atentamente todos os documentos até aqui analisados, chegamos
à conclusão de que a preocupação com a questão da instrução permeava as práticas
sociais (incluindo as próprias declarações de propósitos) organizadas pelas diferentes
Ligas Anticlericais. Vimos, por exemplo, que a cláusula 4 das “bases fundamentais” da
Liga Brasileira expressava o anseio de auxiliar “todas as iniciativas que se proponham
desenvolver o ensino racionalista”. É claro que o incentivo aos métodos do “ensino
racionalista” denotava uma inequívoca indignação diante das intromissões clericais no
campo da educação. Analisamos já aquela notícia sobre a fundação da Liga Anticlerical
de São Paulo. Seu autor manifestava uma nítida inquietação diante da “influência
imbecilizadora da educação clerical”. Vimos também algo sobre aquele texto em que
Lucas apontava para as dificuldades em encontrar uma sede para aquela entidade
anticlerical paulistana. Segundo ele, o objetivo da Liga era estabelecer-se em um local
onde fosse possível criar uma biblioteca e organizar “conferências de propaganda e
instrução”. Para tanto, segundo Lucas, a Liga paulistana estava já adquirindo “uma
258

centena de cadeiras e outros móveis”. Por fim, a notícia sobre a fundação da nova sede
da Liga Anticlerical do Rio de Janeiro aponta para uma nítida valorização dos métodos
racionalistas de ensino encarnados na figura de Franscisco Ferrer, um dos principais
expoentes da educação libertária e “racional”. O fato de a Liga carioca possuir em seu
salão principal um quadro em tamanho natural do “mártir” do ensino racionalista é um
sinal eloqüente dessa valorização específica.
Desnecessário dizer, diante da forte influência do “jesuitismo”, parece que a luta
anticlerical nos campos do ensino e da instrução era uma necessidade urgente. Uma
Liga Anticlerical que se prestasse ao combate da “influência embrutecedora” da Igreja
deveria encampar projetos educacionais pautados numa metodologia avessa àquela
levada adiante pelas instituições religiosas de ensino. A própria instrução “racional”
parecia ter o condão de iluminar as mentes dos indivíduos, despertando neles a
consciência tida como necessária para o enfrentamento efetivo das forças da
“ignorância” e das “trevas” (encarnadas na Igreja). Fizeram parte desse esforço coletivo
os inúmeros projetos educacionais em torno das chamadas “Escolas Modernas” criadas
pelos círculos libertários, sobretudo em São Paulo. Analisar o funcionamento e a
organização dessas escolas foge muito aos objetivos desta pesquisa. Aqui, devemos
apenas ressaltar que os inúmeros cursos e palestras que as diferentes Ligas Anticlericais
promoveram (ou tentaram promover) denotam uma inequívoca necessidade de combater
o clero num de seus campos de atuação mais influentes: a educação. Incentivar a
instrução adotando os métodos do “ensino racionalista” era visto como uma maneira
efetiva de combate contra a influência clerical na sociedade da época. Desprezar as
atividades de instrução seria ceder espaço para o avanço das forças “imbecilizadoras”
do clero.E isto, é claro, os militantes anticlericais que estudamos não poderiam permitir.
Intimamente relacionada com a valorização dos métodos “racionais” de ensino
está a ênfase dada pelos militantes anticlericais à questão da liberdade de consciência
e/ou expressão. Analisar todos os documentos que se referem a ela não seria necessário.
No entanto, podemos mencionar expressamente determinados exemplos que
denotam uma clara preocupação com essa questão. Debruçamo-nos já sobre algumas
das bases que constituíam os estatutos da Liga Anticlerical Brasileira. Uma delas (a
terceira) orientava: “Combater todos os elementos reacionários que, direta ou
indiretamente, procurem cercear e limitar a liberdade”. Encontramos também um
pequeno indício dessa preocupação no texto assinado por Lucas (aquele que trata das
259

dificuldades da Liga de São Paulo em encontrar uma sede própria). Segundo esse autor,
para discutir as questões sobre a futura instalação da sede da Liga, seria realizada uma
reunião na qual todos teriam “completa liberdade de palavra”. A ênfase na liberdade de
expressão também se manifestou por ocasião de um apelo em solidariedade aos livres-
pensadores austríacos. Em uma nota publicada em A Lanterna no dia 3 de janeiro de
1914, a Liga Anticlerical do Rio de Janeiro denunciou aquilo que era visto como um
avanço da “reação clerical” na Áustria. De acordo com o autor da denúncia, a dita
“reação” pretendia então apoderar-se da “soma de 100 mil coroas legada por um livre
pensador de Viena”. O “governo clerical” austríaco, segundo o autor anônimo da
denúncia, teria já suprimido todos os jornais livres- pensadores e fechado as sedes das
associações de Livre Pensamento – além de apoderar-se de seus respectivos “haveres”.
O autor vê na ofensiva uma ameaça ao “movimento racionalista”. Após essa denúncia, a
Liga Anticlerical do Rio de Janeiro faz “um apelo às consciências emancipadas” para
que participem de uma “reunião de solidariedade e protesto internacional” contra a
“opressão exercida em pessoas dos camaradas austríacos”. A reunião estava marcada
para o dia 4 de janeiro de 1914. O apelo terminava com as palavras: “ABAIXO A
REAÇÃO CLERICAL! VIVA A LIBERDADE DE PENSAMENTO!”.
Uma semana após a veiculação desse apelo, no dia 10 de janeiro de 1914, o
mesmo periódico citado publicou uma notícia de uma reunião organizada pela Liga
Anticlerical do Rio no dia 1º. de janeiro de 1914. Segundo o autor anônimo dessa
notícia, Carlos A. de Lacerda teria se referido, nessa reunião, a um interessante
incidente ocorrido em uma reunião anteriormente organizada em Petrópolis (no dia 28
de dezembro de 1913). Nessa reunião de Petrópolis, alguns elementos “clericais [...],
por meio de apartes contínuos”, não estariam deixando o orador (“dr. José Oiticica”)
expor suas idéias. Segundo o autor do texto, Oiticica manteve a calma, pedindo “ao
auditório que não obstasse a que os nossos adversários se manifestassem com toda a
liberdade”. De forma exemplar, o “dr. José Oiticica” teria inclusive ameaçado deixar o
recinto caso seus oponentes não pudessem manifestar-se livremente. Para o autor da
notícia (que ainda se reportava aos comentários de Carlos A. de Lacerda), devido ao
esforço do “bom e erudito companheiro” (Oiticica), a causa anticlerical teria alcançado,
naquela reunião de Petrópolis, uma “grande vitória”. Isso porque, não obstante as
inoportunas intervenções, o orador conseguira convencer que a Igreja sempre esteve “ao
lado dos poderosos contra os oprimidos”.
260

Assim como na questão do ensino, a ênfase dada à liberdade de expressão


revestia-se também de um caráter simbólico cuja efetividade não podemos desprezar. A
luta contra a “clericalha” passava pela utilização de posturas e métodos que fossem
efetivamente contrários aos utilizados pela “reação”. Portanto, como antídoto ante o
obscurantismo clerical, era preciso afirmar de forma categórica e recorrente o
inalienável direito à liberdade de consciência e/ou expressão. A força simbólica de que
o gesto nobre de Oiticica se revestia constituía-se em arma de combate contra a postura
autoritária daqueles que se opunham à causa clerical. Os militantes anticlericais sabiam
que era preciso enfrentar os oponentes nos próprios campos de atuação em que estes
eram influentes. No entanto, era necessário diferenciar-se de forma inequívoca desses
adversários. Afirmar a liberdade de expressão em quaisquer circunstâncias era a única
maneira de conquistar espaço nesse campo de batalha sem se confundir com o inimigo.
Por isso, não surpreende a insistência contínua dos membros anticlericais em afirmar,
de forma inequívoca, o direito de pensar e de dizer, de forma irrestrita, aquilo que se
pensa. Sem dúvida, as palestras e cursos oferecidos pela Liga do Rio constituíam
excelentes oportunidades para o exercício dessa liberdade.

4.5.1. O Grupo Dramático Anticlerical


Além dos cursos para associados, a associação anticlerical carioca incentivou
também inúmeras atividades teatrais. Antes mesmo da inauguração da nova sede, a Liga
já realizava festas nas quais alguns amadores encenavam peças de caráter social e,
principalmente, anticlerical – dentre elas, inclusive, O Pecado de Simonia, de Neno
Vasco. O primeiro indício que encontramos de uma atividade teatral organizada pelos
membros da Liga do Rio aparece em uma notícia publicada em A Lanterna no dia 10 de
fevereiro de 1912. Por meio dela, sabemos que no dia 3 de fevereiro um grupo de
amadores encenou as peças Para Isso Paga, de Ed. Pico e A Escala, de “E. Noves”[sic].
Além disso, a menina Elvira, mais tarde uma amadora de talento reconhecido, recitou a
poesia O Padre, de Elysio (provavelmente Elysio de Carvalho).
A próxima festa da Liga que apresentou uma programação teatral foi realizada
no dia 2 de maio de 1912, em comemoração ao 1º. de Maio. Nela, além da peça de
Pietro Gori, subiram ao palco Avatar, de Marcelo Gama e O Pecado de Simonia, de
Neno Vasco. Segundo o autor anônimo da pequena notícia, Avatar “foi muito bem
desempenhado pelas sras. Adelaide Costa e Encarnacion e Ulisses Martins”. Quanto a O
261

Pecado de Simonia, sua representação teria sido um “verdadeiro sucesso”: “o riso


franco sublinhou sempre as melhores passagens da obra-prima do escritor libertário”.
Portanto, desde pelo menos o início de 1912, um grupo de amadores vinculados
à Liga desenvolvia já suas atividades teatrais. No entanto, ao que tudo indica, a
instalação da Liga na nova sede estimulou também os amadores daquela associação a se
organizarem melhor. Já em 28 de setembro de 1912, um pequena nota publicada no
mesmo jornal convocava os amadores do grupo dramático da Liga “a tomar parte na
reunião que se realiza hoje [um sábado], às 7 horas, na sede da Liga, para tratar-se da
constituição definitiva do grupo e da admissão de novos amadores”. De fato, na semana
seguinte, em sua edição de 5 de outubro de 1912, A Lanterna publicou uma nota
anunciando a fundação definitiva desse grupo, designado a partir de então como Grupo
Dramático Anticlerical.
Acompanhamos já um pouco de sua trajetória em nosso primeiro capítulo. Aqui
devemos apenas ressaltar que, durante quase dois anos, suas atividades foram bem
intensas no Rio de Janeiro. Parece-nos evidente que a instalação da Liga em sua nova
sede incentivou as atividades desse grupo dramático. A partir de então, em todas as
grandes reuniões organizadas pela Liga, os amadores do Grupo Anticlerical subiam ao
palco para encenar peças sociais e anticlericais produzidas aqui no Brasil ou
provenientes da Europa. As peças estrangeiras, devemos frisar, eram traduzidas
previamente para depois serem encenadas pelo grupo. Lembremos: no Rio, a língua
portuguesa sempre foi predominante. As traduções constituíam uma necessidade
premente.
O último indício que encontramos sobre as atividades do grupo dramático
vinculado à Liga aparece em um anúncio publicado no periódico A Voz do
Trabalhador254 em 1º. de abril de 1914. Nesse anúncio, descobrimos que o Grupo
Anticlerical estava se preparando para uma festa prevista para ocorrer em 30 de abril
daquele mesmo ano (véspera do 1º. de Maio). No entanto, não sabemos se de fato essa
festa ocorreu ou não - não obtivemos nenhuma informação posterior sobre ela. Também
não encontramos nenhum outro indício das atividades do Grupo Dramático Anticlerical.
Aliás, as próprias informações sobre a Liga Anticlerical do Rio de Janeiro desaparecem

254
Devemos lembrar que esse periódico carioca, vinculado à Confederação Operária Brasileira, deixou de
ser publicado no final de 1909 e voltou no início de 1913. A partir de então, ele divide com A Lanterna o
papel de divulgar as atividades da Liga, sobretudo as festas nas quais o Grupo Dramático Anticlerical
entrava em cena.
262

das páginas dos periódicos operários. O que aconteceu com a Liga e seu grupo
dramático? Impossível saber. Tendo em vista a grande repercussão que as atividades da
Liga obtinham naquela imprensa, a única hipótese que podemos formular é a de que
aquela associação anticlerical deixou de atuar. Caso contrário, encontraríamos indícios
de suas atividades nas páginas daqueles periódicos – senão em A Lanterna, ao menos
em A Voz do Trabalhador (jornal publicado até junho de 1915).
Foi ainda nesse mesmo mês de abril de 1914 que o periódico A Lanterna lançou
uma fotografia (ver Imagem 17) que possui um valor excepcional em nossa pesquisa.
Ela mostra os membros do Grupo Dramático Anticlerical retratados provavelmente
sobre um palco. Chegamos a essa conclusão analisando o fundo da imagem. Ao que
tudo indica, ele mostra um pano usado como cenário nas encenações do grupo.
Na análise desta imagem, devemos atentar para a disposição dos atores. Os que
estão em primeiro plano aparecem sentados; os de trás, em pé. As únicas duas mulheres
do grupo estão sentadas no centro. Contrastando com os demais elementos masculinos
(todos com roupas escuras), elas estão vestidas com roupas claras. Quem são elas?
Difícil dizer com exatidão. No entanto, em uma notícia anterior, publicada no mesmo
periódico em 28 de fevereiro, o autor (A. B.) comenta a atuação dos atores do Grupo
Anticlerical na encenação de uma peça intitulada Deus e a Natureza. Citando os nomes
dos amadores que atuaram na peça, A. B. refere-se a duas mulheres: dona Maria da
Piedade e Antonieta Pires. Tendo em vista que a foto foi veiculada mais ou menos
naquela mesma época da encenação de Deus e a Natureza, não seria temerário associar
esses dois nomes às amadoras retratadas na foto.
Esta fotografia é um dos poucos documentos que nos oferecem alguns indícios
sobre recursos cênicos. Vimos já que as lacunas a esse respeito são enormes em nossa
pesquisa. Na foto, no entanto, temos vestígios esparsos sobre palco e cenário. O
primeiro, como podemos notar, caracteriza-se pela exigüidade de espaço. O segundo,
bastante modesto, denota uma simplicidade e um despojamento que, sem dúvida, era
comum nas encenações dos amadores com os quais lidamos. Enfrentando os apertos
orçamentários aos quais já nos referimos no capítulo 1, os grupos amadores anarquistas
contentavam-se em utilizar cenários bem humildes. Sem risco de exagero, podemos
dizer que os panos de fundo utilizados nas encenações de uma peça eram provavelmente
reutilizados em outras atuações.
263

Imagem 17 – Grupo Dramático Anticlerical em foto publicada em A Lanterna no dia 11 de abril de 1914

Enfim, acompanhando um pouco das trajetórias das diferentes Ligas


Anticlericais, notamos um leque bem diversificado de atividades organizadas. Parece-
nos evidente que todas essas práticas anticlericais respondem a necessidades específicas
de luta e combate contra o influente elemento clerical. Todas as idéias-imagens que os
militantes anticlericais construíram em torno da Igreja e de suas atividades (ganância,
concupiscência, obscurantismo etc.) - todas as representações elaboradas pelo
imaginário anticlerical e libertário - obtinham ressonância na peça O Pecado de
Simonia. E é claro que tais representações, com toda sua força simbólica, possuíam
uma efetividade não desprezível. Não é à toa que os militantes anticlericais de São
Paulo e do Rio de Janeiro viram-se na necessidade urgente de mobilizar os atores
sociais dispostos a enfrentar o poderio simbólico e efetivo que a Igreja construíra até
então. A grande diversidade das práticas sociais em torno das Ligas Anticlericais
corresponde à própria riqueza das idéias-imagens construídas pelo imaginário
anticlerical. Desprezar essas representações seria perder de vista o conteúdo específico
de cada prática social organizada pelas diferentes Ligas. Nesse sentido, a peça de Neno
Vasco parece ser um documento de valor inestimável. Sem ela, as representações do
264

imaginário anticlerical ficariam dispersas em uma análise das atividades anticlericais.


Sendo assim, O Pecado de Simonia age como o “cimento” que confere às práticas
anticlericais um sentido próprio e uma lógica interior específica. Daí nosso interesse por
ela.

4.6. Greve de Inquilinos, de Neno Vasco (pequena introdução)


Além de O Pecado de Simonia, Neno Vasco produziu uma outra comédia social
que foi bastante encenada nos palcos das festas operárias de São Paulo e do Rio de
Janeiro. Estamos nos referindo à farsa intitulada Greve de Inquilinos. Assim como a
peça anticlerical anteriormente analisada, Greve de Inquilinos também se articula
diretamente com as práticas sociais organizadas pelos segmentos mobilizados da classe
trabalhadora. Se O Pecado de Simonia condensa inúmeras idéias-imagens que
constituíam o imaginário e as práticas sociais em torno do anticlericalismo, Greve de
Inquilinos, por sua vez, surge intimamente relacionada com a agitação de inquilinos que
se desenvolveu nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro no ano de 1907.
Por isso, para compreender melhor o seu conteúdo, faremos aqui um percurso
invertido. Primeiro, analisaremos as articulações do inquilinato por meio de suas
repercussões nas páginas de A Terra Livre, periódico que dedicou uma atenção especial
à agitação de inquilinos durante o segundo semestre de 1907. Só em seguida é que
tentaremos abordar a peça em relação àquela mobilização específica à qual ela se refere.

4.7. As agitações do inquilinato por meio das páginas de A Terra Livre


Era já primavera, naquele distante ano de 1907, quando o periódico A Terra
Livre – temporariamente publicado na cidade do Rio de Janeiro 255 – noticiou, de
maneira um tanto efusiva, uma agitação de inquilinos em Buenos Aires. A informação
original vinha do diário anarquista La Protesta, sediado naquela cidade Argentina. “Um
exemplo a seguir”: com este sugestivo título, o artigo publicado em A Terra Livre no
dia 28 de setembro de 1907 afirmava que a agitação portenha iniciara-se em uma
estalagem na qual cento e trinta inquilinos, “vítimas todos da avareza do senhorio”,
declararam-se em greve, recusando-se a pagar os “preços exorbitantes pelo aluguel dos

255
O periódico A Terra Livre foi fundado originalmente em São Paulo por Neno Vasco, Manuel Moscoso e Edgar
Leuenroth. Até 10 de maio de 1907 esse periódico foi publicado ainda nesta cidade. A partir de 25 de maio de 1907 o
jornal A Terra Livre passa a ser lançado no Rio de Janeiro, onde fica até 20 de agosto de 1908. Desde então o
periódico volta a ser publicado em São Paulo - até o ano de 1910, quando desaparece. Todos os artigos que
analisamos neste tópico são da época em que A Terra Livre esteve no Rio de Janeiro.
265

cômodos”. Os combativos locatários portenhos exigiam uma redução de 30% nos


preços dos aluguéis como condição para retomar os pagamentos regulares.
Iniciava-se então uma campanha em favor da agitação de inquilinos na cidade do
Rio de Janeiro. Encampada pelo periódico A Terra Livre, a idéia de resistência à
exploração dos inquilinos dava ensejo a inúmeras preleções em favor dos métodos de
“ação direta sem intermediários”. Esta, segundo o articulista, seria muito mais “efetiva e
prática do que a pregada pelos ignorantes ou exploradores” que, ingenuamente ou
mesmo de má-fé, defendiam a intervenção do governo ou do Parlamento na resolução
do grave problema habitacional da cidade carioca. Numa série de seis artigos
encontrados a partir de então naquele jornal, o(s) articulista(s) (que nunca assinava(m)
os textos) passava(m) a defender a livre agitação dos inquilinos no Rio de Janeiro. Em
diferentes oportunidades, rebatia(m) de forma contundente as diferentes propostas
aventadas envolvendo o governo; deste, segundo o autor daquele primeiro artigo, “não
há nada que esperar”.
Ainda nessa mesma edição, o articulista anônimo referiu-se vagamente à
construção de casas para operários - proposta encampada pelo governo. Tal expediente
seria “uma mistificação grosseira e irritante” que nada resolveria. Entre as páginas do
próprio jornal, notamos uma nítida exasperação diante daquilo que seria uma suposta
preocupação das autoridades cariocas com a questão habitacional. Em artigo publicado
na edição de 26 de novembro de 1907 (o último da série dedicada à questão), o autor
afirma que, por causa da mobilização já iniciada pelos inquilinos do Rio de Janeiro, “o
conselho municipal se apressou a votar (só votar...) créditos para a construção de casas”
[grifos nossos]. O tom irônico utilizado pelo articulista ao se referir à “ação” das
autoridades denota o nítido desprezo frente às propostas governamentais. De maneira
contundente, o autor anônimo descartou a presumida solução das autoridades
retorquindo: “como se essa gota de água, paga pelo contribuinte, que é sempre e só o
produtor pobre, o operário, resolvesse o mal!”. Congruente com essa mesma posição,
em artigo anterior, publicado em 13 de outubro de 1907, o articulista (seria o mesmo?)
afirmara categoricamente que os inquilinos só resolveriam seus problemas quando
mandassem “ao diabo os senhorios [...] e com eles, os cobradores de impostos e todas as
malditas engrenagens do Estado”.
Como contrapartida às tímidas intervenções estatais, em meio aos seis artigos de
A Terra Livre referentes à “agitação de inquilinos”, notamos a defesa aberta dos meios
266

256
alternativos de ação direta . De forma nítida, tais preleções muito nos revelam sobre
as práticas sociais de luta incentivadas pelo movimento anarquista da época. Já no
primeiro artigo da série (de 28 de setembro de 1907) o autor defende, de maneira
entusiástica, a mobilização encetada pelos inquilinos de Buenos Aires. Estes, além de
levarem adiante uma bem-sucedida greve contra os senhorios, iniciavam também “uma
ativa propaganda para que o exemplo” se tornasse conhecido e fosse posto em prática
por todos os que se vissem “roubados pelos senhorios de casas”. Depreendemos do
artigo citado que as táticas utilizadas pelos inquilinos portenhos apresentavam já
resultados alentadores. Citando informações veiculadas pelo periódico La Protesta,
naquele final de setembro o número de grevistas em Buenos Aires ultrapassava já os
cinco mil. Lembremos: iniciaram o movimento, semanas antes, apenas cento e trinta
denodados inquilinos ativistas!
A influência do movimento portenho não tardou a repercutir na cidade do Rio de
Janeiro. Já no segundo artigo da série, a partir de então intitulada “agitação de
inquilinos”, o autor anônimo anunciou a criação recente de uma Liga de Inquilinos para
cuidar da mobilização na cidade carioca. Naquele mesmo dia em que o citado artigo era
publicado (3 de outubro de 1907) seria realizada a segunda reunião da Liga. Nela seriam
apresentadas as “bases” por meio das quais podemos perceber as intenções daquele
órgão de agitação. Felizmente o autor desse artigo reproduziu as tais “bases” a serem
expostas naquele segundo encontro. Em primeiro lugar, elas manifestavam o objetivo
declarado de obter “uma razoável redução no preço dos aluguéis das casas”, a exemplo
do que pleiteavam os inquilinos de Buenos Aires.
No que tange aos “meios” de atuação propriamente ditos, a utilização da
propaganda (por intermédio de “publicações e conferências”) aparece em primeiríssimo
lugar nas “bases” daquela segunda reunião. Desnecessário dizer, a defesa da propaganda
como meio eficaz de conscientização era incansavelmente veiculada pela imprensa
operária do período. Ainda no mesmo artigo (de 3 de outubro), veiculava-se a notícia de
que a Liga dos Inquilinos distribuiria “manifestos e boletins agitando a questão”. Em
edição posterior (publicada em 27 de outubro de 1907), o articulista propõe “que em

256
Sobre a influência das idéias de ação direta no interior dos grupos anarquistas da época, ver Rago, Luzia
Margareth, Do Cabaré ao Lar – A Utopia da Cidade Disciplinar (Brasil 1890-1930). Rio de Janeiro, Editora Paz e
Terra, 1987; pp. 27 e 28. “As formas originais de resistência criadas no cotidiano pelos próprios operários [...] são
amplamente apoiadas pelos grupos anarquistas e anarco-sindicalistas [sic], que vêem na ação direta o caminho para
sua conscientização. Estas `manifestações da ação direta´ [....] permitiriam associar o conjunto dos trabalhadores [...]
sem ter que passar pela mediação de um organismo burocrático constituído por um reduzido número de pessoas.”
267

cada bairro se formem sub-comitês no intuito de desenvolver a propaganda e coadjuvar


assim a obra da `Liga´”. Para desenvolver o processo de conscientização, o autor afirma
ainda que a Liga publicaria um manifesto a ser “profusamente distribuído” entre os
inquilinos. É importante ressaltar que a prática de publicação de manifestos fora já
utilizada pelos inquilinos de Buenos Aires, sendo assim valorizada aqui no Brasil;
afinal, a mobilização portenha era “um exemplo” a ser seguido, como anunciara o título
do primeiro texto.
No entanto, a simples distribuição de panfletos, manifestos e discursos era vista
pelo(s) articulista(s) da série como insuficiente. Na última edição dedicada à “agitação
de inquilinos” (publicada em 26 de novembro de 1907), o autor afirma que, mais eficaz
do que as publicações da Liga, seria “a propaganda individual, a palestra dentro da
estalagem, da casa de cômodos, de todas as casas”. Aqui, de forma sintomática, as
atenções do autor voltavam-se para as mulheres. Estas deveriam ser o alvo privilegiado
da propaganda, uma vez que, segundo o autor, seriam elas as que mais sentiriam “o mal
das casas caras e incômodas” 257.
Voltemos às “bases” daquela segunda reunião da Liga dos Inquilinos, marcada
para o dia 3 de outubro de 1907. Como dissemos anteriormente, elas foram
afortunadamente publicadas na edição daquele mesmo dia. Além da propaganda, as tais
“bases” estabeleceriam também a organização de uma tabela. Esta estipularia “o preço
máximo dos aluguéis que os inquilinos deverão pagar”. De fato, mais de três semanas
depois (em 27 de outubro de 1907), A Terra Livre anunciou que, “na última reunião da
Liga” (teria sido naquele mesmo dia 3 de outubro?), fora aprovada uma tabela que
serviria “de ponto de partida para a atual agitação”. De acordo com ela, ficava

257
A construção da imagem feminina relacionada diretamente ao lar foi já bastante discutida em Rago,
Luzia Margareth; Op. Cit., capítulo II (A Colonização da Mulher). Até que ponto o movimento operário
da época reproduzia ou não o discurso dominante da “esposa-dona-de-casa-mãe-de-família”? Entrar nessa
discussão não faz parte dos objetivos desta pesquisa. No entanto, é preciso salientar que, na imprensa
operária, a representação da figura feminina é mais complexa do que se imagina. Como a própria autora
reconhece, nos jornais operários, sem dúvida, identificamos “duas imagens femininas que contrastam
frontalmente. Uma mulher submissa, que não sabe como lutar e, ao mesmo tempo, uma figura combativa
que sai às ruas e enfrenta sem reservas as autoridades públicas e policiais”(p. 73). Pensamos que o trecho
acima citado, de certa forma, trabalha ao mesmo tempo com as duas representações.Ambas, na
perspectiva que adotadmos em nossa pesquisa, não estão pairando em alguma esfera descolada da
realidade concreta. Pelo contrário, dialogam intimamente com as diferentes situações vivenciadas por
mulheres de carne e osso. Mulheres que, não obstante, a preponderância masculina, buscavam criar seus
espaços de sociabilidade e seus próprios campos de luta. Se o articulista, por um lado, associa diretamente
a esfera privada à figura feminina, por outro lado, ele atribui à mulher um papel central na luta contra a
exploração dos senhorios. Seria ela o principal alvo do movimento que se pretendia levar adiante. Seria
ela, portanto, a verdadeira protagonista dessa luta coletiva - e não privada (uma vez que a questão dos
aluguéis afetava o interesse da classe trabalhadora como um todo).
268

estabelecida “a diminuição de 40% nos aluguéis das casas de cômodos e estalagens”;


para as demais casas, não por acaso, a redução seria de 30% (vimos que uma exigência
semelhante fora já estabelecida em Buenos Aires). Essa última reunião mencionada no
artigo estabeleceu também o início da greve: a tabela entraria em execução “no próximo
mês de janeiro”. A escolha do prazo obviamente não foi fortuita. O objetivo tático era
conseguir, nos dois meses que sobravam até o início da greve, mobilizar o inquilinato
da cidade por meio da propaganda. Além disso, o prazo era um sensato expediente
adotado para a organização prévia de meios eficazes de resistência aos despejos já
previstos.
Ao longo dos seis artigos dedicados ao tema, são recorrentes os incitamentos à
ação imediata e decisiva. Dentre os “meios” de atuação propostos merece destaque a
greve geral dos inquilinos. Já no primeiro artigo da série, o autor colocava como
“solução única” para enfrentar os abusos dos senhorios “não pagar aluguel”258 [o itálico
é do texto original]. Para estimular a mobilização, a segunda matéria (do dia 3 de
outubro) termina com a publicação de uma curta mensagem enviada pelos inquilinos de
Buenos Aires por meio de um telegrama. Após uma otimista notícia sobre os bons
resultados que a greve de inquilinos estava tendo naquela cidade, vem uma felicitação
solidária a todos os inquilinos “que sabem defender com dignidade seus interesses”. O
breve telegrama termina com as palavras “Ação, pois, e decisão”.
Em meio a tantas articulações e propagandas, torna-se quase inevitável indagar
a respeito do sucesso daquela mobilização. É bem difícil dizer se os esforços da Liga
foram ou não em vão. Isso porque os dois últimos artigos dedicados à “agitação de
inquilinos” foram publicados na edição já citada de 26 de novembro de 1907 – antes do
prazo previsto para o início da “greve de inquilinos”. Desde então, o periódico A Terra
Livre deixa de se referir à questão. No entanto, sobretudo no último artigo da série (o
segundo sobre o tema encontrado nessa edição), notamos alguns indícios de
dificuldades e tensões no esforço de levar adiante o movimento dos inquilinos.
Podemos dizer que, de certa forma, os dois textos sobre inquilinos publicados
nessa edição contrastam. Primeiramente, vemos uma pequena nota que anuncia, de
maneira entusiástica, o início da mobilização na cidade de São Paulo. De acordo com o
autor da pequena nota, os inquilinos paulistanos teriam já realizado algumas reuniões
nas quais se verificara “uma numerosíssima concorrência”. O tom de otimismo em

258
Ver A Terra Livre, edição de 28 de setembro de 1907.
269

relação ao recém-criado movimento de São Paulo, no entanto, é contrabalançado, na


página seguinte, por um certo desalento diante da situação em que se encontrava a
mobilização na cidade do Rio de Janeiro. Apesar do autor deste último artigo iniciar o
seu texto de forma animadora, quando ele passa a analisar o movimento no Rio, o
entusiasmo é deixado de lado e a aspereza parece predominar. Acompanhemos de perto
o que diz o autor desse acrimonioso artigo.

Em Buenos Aires a agitação continua sem desânimos [...]. Em outras cidades, teve repercussão
este movimento. Na Itália a agitação é séria. E mesmo no Brasil, em São Paulo, a idéia e a
propaganda da resistência à avidez dos proprietários ganham raízes.
Será possível que no Rio a indiferença venha mais uma vez sufocar tudo? [grifos nossos]

Analisando o artigo como um todo, percebemos que, no discurso do autor, os


exemplos positivos que vêm de fora (Buenos Aires, Itália e São Paulo) servem como
elementos introdutórios para encetar a crítica contra a situação do movimento no Rio de
Janeiro. Mais adiante, no mesmo texto, o articulista compõe um panorama no qual ele
tenta indicar algumas das prováveis razões para aquela suposta apatia. Transcrevemos
abaixo um parágrafo desse artigo que muito nos diz sobre os métodos de ação
defendidos e as expectativas em torno da Liga dos Inquilinos.

O que falta é iniciativa: todos esperam dos outros [ grifos nossos]. Muitos esperam da “Liga” e
na “Liga” há quem espere que todos os inquilinos se associem para iniciar a greve ou qualquer
modo de resistência! Ora é evidente que a Liga não pode fazer a greve; o seu fim é a propaganda,
e quando muito o exemplo, que pode também vir de fora.

Depreende-se do trecho acima no mínimo três questões inextricavelmente


articuladas. Primeiro que, para o articulista, o papel da Liga não seria o de uma entidade
representativa que resolveria o problema dos aluguéis em nome dos inquilinos.
Congruente com os princípios da ação direta, o autor descarta uma atuação centralizada
naquele órgão, cuja função principal, ainda de acordo com o texto, seria a de fazer
propaganda ou, no máximo, servir de exemplo.
Em segundo lugar, para o mesmo articulista, o movimento só traria resultados
concretos no momento em que os envolvidos (no caso, os próprios inquilinos)
assumissem para si a tarefa de levar adiante a luta pela diminuição dos preços dos
aluguéis. Não caberia assim à Liga o papel desempenhado, por exemplo, pelos partidos
políticos ditos “de vanguarda”, que levariam consigo as “massas” a reboque do
movimento revolucionário. Sendo assim, poderíamos dizer – parodiando Marx!!! - que,
270

do ponto de vista adotado no artigo, a emancipação dos inquilinos seria obra dos
próprios inquilinos.
Por fim, o leitor mais atento pode ter dissecado o trecho acima e notado nele
certo tom de desesperança. Quando o autor do artigo afirma que “o que falta é
iniciativa”, poderíamos novamente indagar sobre os resultados a que chegavam, naquele
momento, os esforços de mobilização dos inquilinos no Rio de Janeiro. No entanto,
responder a tal indagação seria temerário. Primeiro, porque medir o grau de satisfação
geral diante dos resultados obtidos por qualquer movimento é algo que beira o
imponderável. A variação de expectativas dos envolvidos leva quase sempre a um grau
de divergência tão grande que torna arriscada qualquer generalização. Segundo, porque,
no caso específico que ora analisamos, não possuímos elementos concretos para
mensurar quais seriam esses tais resultados. Como já dissemos, A Terra Livre deixa de
acompanhar aquela agitação e, meses depois, pára de ser publicada no Rio, voltando
para São Paulo. Nada mais sobre a “agitação de inquilinos” foi por nós encontrado nos
outros periódicos operários do Rio naqueles anos de 1907 e 1908. Portanto, qualquer
conclusão a respeito do sucesso ou não daquela mobilização seria mera dedução sem
respaldo empírico algum.
No entanto, mais importante do que julgar o movimento pelos resultados
palpáveis que ele trouxe (ou não) é, para os propósitos desta pesquisa, perceber que nem
todos estavam plenamente de acordo no interior daquele movimento. Quando o autor do
artigo afirma, de forma eloqüente, que “todos esperam dos outros”, ele evidencia as
dificuldades e tensões no âmbito daquela luta. A própria ênfase que o(s) articulista(s) da
série dá (ão) à importância da propaganda denota a necessidade de se envidar esforços
enormes para mobilizar os inquilinos de toda a cidade.

4.8. A peça de Neno Vasco e suas interlocuções com a agitação de inquilinos


veiculada por A Terra Livre
Mas, afinal, o que tudo isso tem a ver com o teatro anarquista?. Agora sim,
vamos direto ao assunto. Curiosamente, no dia 14 de março de 1908 (portanto quase
quatro meses após o último artigo da série “agitação de inquilinos”), o mesmo periódico
A Terra Livre (ainda sediado no Rio de Janeiro) publicou o anúncio de uma festa
organizada pelo Grupo Dramatico Teatro Social. O evento estava previsto para o dia 28
daquele mês no Centro Galego, situado então na rua da Constituição. Do programa
271

constava a “primeira representação” de uma farsa de Neno Vasco intitulada (não


fortuitamente) Greve de Inquilinos.259 Trata-se de uma comédia escrita pelo advogado
português que ajudara a fundar, em 1905, o periódico cujos artigos acabamos de
analisar. Não por acaso, a farsa é ambientada na cidade do Rio de Janeiro e pretende
retratar as dificuldades em se pagar os elevados aluguéis naquela cidade.
Antes de analisar as questões que consideramos relevantes em tal obra,
gostaríamos de fazer um breve resumo de seu enredo para que o leitor possa
acompanhar melhor as nossas reflexões.
Desde o início da peça – talvez a mais hilariante do teatro anarquista – seis
companheiros ácratas vêem-se em apuros para pagar o aluguel de dois quartos ao
senhorio (Anastácio). Sugerem vários expedientes: desde a suspensão do pagamento até
a fuga sorrateira. Em meio às discussões sobre o que fazer para evitar a cobrança
iminente, chega da Argentina um companheiro anarquista com uma carta-recomendação
do periódico La Protesta. Ramon, que acabara de chegar ao Rio com a mulher
(Mercedes) e o filho (Manolito), apresenta a carta aos companheiros que, curiosamente,
participavam da publicação de um outro periódico: A Terra Livre. De acordo com a
missiva de La Protesta, Ramon fora obrigado a deixar seu país porque participara lá de
uma greve de inquilinos.
Após algumas discussões sobre o que fazer, eis que, finalmente, Salvador, um
dos inquilinos, tem uma idéia para resolver o problema do aluguel e, ao mesmo tempo,
garantir o apoio aos companheiros argentinos que acabavam de chegar. Ele, que fizera
parte de um grupo de “amadores dramáticos”, resolve enganar o senhorio. Este, além de
ganancioso, é também retratado desde o início da peça como tolo. Num recurso de
metalinguagem utilizado pelo autor da peça, os personagens iniciam a encenação de
uma farsa. Ramon veste-se de mulher para seduzir o senhorio que está prestes a

259
A primeira encenação desta peça fora prevista para acontecer em uma festa organizada pela Liga dos
Marceneiros de São Paulo no dia 15 de fevereiro de 1908. Acompanhando as edições de A Lucta
Proletaria, identificamos três anúncios publicados seguidamente nos dias 17 de janeiro, 1º. e 8 de
fevereiro de 1908.Todos eles apresentavam a peça como “uma belíssima farsa de atualidade, a propósito
da recente agitação dos inquilinos, escrita por NENO VASCO”. No entanto, no dia programado para a
festa dos marceneiros, a peça não foi levada ao palco. Segundo o mesmo periódico (na edição de
29.02.1908), a encenação foi suspensa - “por falta de amadores em português teve a Liga que pedir a
cooperação de outros que à última hora não a representaram por ter caído doente um deles”. Portanto,
Greve de Inquilinos foi mesmo encenada pela primeira vez no dia 28 de março de 1908, como previsto no
anúncio publicado em A Terra Livre no dia 14 de março daquele mesmo ano. Maria Thereza Vargas e
Mariângela Alves de Lima, em obra dedicada ao teatro operário em São Paulo, afirmaram que a primeira
encenação dessa peça teria já ocorrido, em São Paulo, no ano de 1907. Como não encontramos registro
algum nesse sentido, prefirimos seguir as indicações dos anúncios supracitados.
272

aparecer para cobrar o aluguel do mês. Anastácio, o parvo senhorio, facilmente cai na
conversa do argentino, acreditando, de fato, que aquela “donzela” estrangeira estava
interessada nele. Quando Ramon (que se apresenta como Carmen) diz que seu pai era
um homem muito bravo, Anastácio começa a se amedrontar. Nesse mesmo momento,
inesperadamente, surge Fernando – um dos seis inquilinos. Fernando, na farsa, assume
o papel de “pai” de Carmen. Ele entra impetuosamente no quarto, acompanhado dos
outros companheiros que servirão como “testemunhas” naquela representação. Ao
encontrar o senhorio e sua “filha” supostamente desmaiada, Fernando finge estar furioso
e ameaça de morte aquele homem que ousara “desonrar” a sua suposta família.
Anastácio, no auge de seu desespero, aceita um acordo para salvar sua vida.
Após algumas propostas encenadas, fica por fim decidido que o senhorio deverá aceitar
as regras de uma tabela elaborada pela Liga dos Inquilinos. De acordo com tal tabela, os
preços dos aluguéis seriam reduzidos em 40%. Luís, inquilino autor da proposta, exige
também do senhorio o perdão da dívida daquele mês. Sem outra saída, Anastácio (o
senhorio tolo e ambicioso) aceita integralmente a proposta e a farsa termina com uma
solução que pareceu à maioria “muito razoável”.
Desnecessário dizer, o conteúdo dessa peça reporta-se (quase que integralmente)
ao caso que acompanhamos naqueles seis artigos analisados acima. Em primeiro lugar,
é preciso lembrar que a peça de Neno Vasco é ambientada no Rio - e foi justamente
naquela cidade que os seis artigos foram publicados. Vimos também que o primeiro
artigo da série sobre os inquilinos anunciava, como “um exemplo a seguir”, o
desenvolvimento de uma greve de inquilinos em Buenos Aires. A informação sobre
aquele movimento portenho vinha originalmente do periódico La Protesta. Já na peça,
Ramon é justamente um argentino que deixara seu país por ter participado de uma
agitação de inquilinos e, no momento, estava sendo perseguido. Aliás, ele vem ao Brasil
trazendo consigo uma carta-recomendação escrita pelos redatores de La Protesta. Não
por acaso, os seis “operários de idéias avançadas” que o recebem no Rio são, nas
palavras de Ramon, “los compañeros del periódico Tierra Libre”. Temos ainda um
personagem (Luís) que se intitula “membro ativo da Liga” – referência direta à Liga dos
Inquilinos que, como vimos nos artigos, organizava reuniões no Rio de Janeiro para
mobilizar os inquilinos daquela cidade. Além disso, no final da peça, a solução que os
companheiros encontram está de acordo com a proposta pela Liga em outubro de 1907.
Numa das reuniões daquela entidade ficara decidido que os inquilinos obrigariam os
273

senhorios a reduzirem em 40% os preços dos aluguéis das casas de cômodos e


estalagens. Na peça, os companheiros de “idéias avançadas”, seguindo a mesma
resolução, obrigam Anastácio a diminuir em 40% o preço do aluguel dos dois quartos.
Parece evidente o paralelismo que existe entre os artigos (e, por extensão, à
própria agitação dos inquilinos) e a peça. Para lidar com um conteúdo assim tão
diretamente relacionado com experiências de luta cotidiana dos trabalhadores,
salientaremos previamente duas questões importantes.
Primeiramente, utilizamos aqui a seara aberta por Thompson com seu clássico
conceito de experiência humana.260 Esta, como vimos na Introdução, foi tratada pelo
autor como um complexo conjunto de inserções dos sujeitos no interior das relações
produtivas. Para o historiador britânico, tais inserções não ocorrem de forma mecânica e
direta; passam, pelo contrário, pela “consciência” e pela “cultura” dos agentes sociais.
Estes, por sua vez, ao atribuírem significado a tais relações, agem sobre a situação em
que se encontram - nem sempre (ou quase nunca) de forma previsível ou unívoca. No
que tange à discussão já iniciada, queremos dizer que tanto a peça quanto os artigos são
aqui encarados como formas de linguagem que estabelecem mediações de experiências
sociais complexas. Nessa perspectiva, os artigos e a peça são aqui encarados como
instrumentos ativos de intervenção - não só porque questionam a realidade, mas porque
(e principalmente) processam valores e significados que incidem sobre a consciência
alheia, repercutindo coletivamente de maneira não mensurável (mas nem por isso menos
efetiva).
Sendo assim, a segunda questão que devemos levantar (e que está diretamente
relacionada com a anterior) é relativa ao conceito de linguagem que utilizaremos.
Parece inviável – se não mesmo impossível – tratar de qualquer representação textual
(literária ou não) sem utilizar este conceito. Evitando reducionismos e abstrações em
excesso, entendemos a linguagem como parte constituinte e, em alguma medida,
definidora das práticas sociais materiais261. Se acreditarmos que a peça Greve de
Inquilinos (ou qualquer outra de nosso corpus) dialogava com a dinâmica organização
do movimento operário, devemos – para compreender melhor esse diálogo – conceber a
linguagem dessa obra como parte constitutiva das práticas sociais com as quais ela se
relacionava. Nessa perspectiva, nossa peça deixa de parecer estática e adquire um
260
Para a noção de “experiência humana”, ver Thompson, E. P. Op. Cit.; p.182.
261
Ver, sobre o conceito de linguagem a ser utilizado na pesquisa, Williams, Raymond. Op. cit., parte I,
cap. 2. Ainda sobre tal conceito ver, na mesma obra, definição que o autor passa nas páginas 165 e 166.
274

caráter ativo, dinâmico; torna-se um elemento de viva interlocução no interior daquele


grupo ao qual se destinava.
Portanto, tanto a peça quanto os artigos são considerados aqui como meios de
intervenção – e não “espelhos” da situação “tal como ela é”. Não consideramos esses
textos como simples veículos por meio dos quais a realidade supostamente se manifesta.
O que pretendemos aqui não é analisar o que “de fato” aconteceu e sim os propósitos e
significados sociais das fontes que utilizamos.
Voltemos assim à nossa peça. Como vimos, sua estréia ocorreu no dia 28 de
março de 1908 – quatro meses após a publicação daquele último e desalentado artigo da
série “agitação de inquilinos”. Vimos que uma das ênfases de tal série referia-se à
necessidade de se desenvolver uma ativa propaganda junto ao inquilinato do Rio de
Janeiro. Acompanhando os anúncios de festas naquela cidade (assim como, mais tarde,
também em São Paulo), percebemos que Greve de Inquilinos foi uma das peças mais
representadas a partir de então. Sendo assim, indiscutivelmente, ela faz parte desse
esforço maior de conscientização. Nela, Neno Vasco (autor da peça e fundador de A
Terra Livre) constrói uma trama que muito nos diz sobre três aspectos identificados
também nos artigos: os altos custos dos aluguéis no Rio de Janeiro, a propaganda e os
métodos de ação direta defendidos pelos libertários e as tensões em torno dos caminhos
propostos para enfrentar a exploração dos senhorios. A partir de agora, passamos a
analisar cada um desses aspectos.
Primeiramente, uma palavra sobre os altos custos dos aluguéis. Já no início da
cena I, enquanto o “pano vai subindo aos poucos”, o coro entoa o hino dos inquilinos.

Coro
São tão puxados
os aluguéis,
oh! Inquilinos!
Não os pagueis!
Oh! que ladroeira
a do senhorio!
fazei inquilinos
greve em todo o Rio!

Notemos a ênfase dada nos preços dos aluguéis. Para além da incitação à greve,
percebemos também que o hino se reporta à situação específica do Rio. Impossível não
imaginar o efeito que este hino, entoado por um coro no início da peça, podia causar nos
espectadores (quase todos, com certeza, também inquilinos). Sem dúvida, os hinos
estavam bem de acordo com os propósitos das veladas anarquistas. Por isso, são
275

recorrentes - não apenas no interior das peças, como também nos anúncios de festas
publicados na imprensa operária. Aparecem nas programações como abertura daqueles
eventos ou entremeando as diferentes atrações. Algumas vezes, inclusive, são entoados
por crianças (o que devia chamar bastante atenção!). No entanto, em razão do caráter
lacônico das fontes, o efeito causado pelo hino beira o imponderável. Voltemo-nos,
pois, ao seu conteúdo. Por que, no Rio de Janeiro, “São tão puxados os aluguéis”? Seria
este um indício isolado na peça?
Definitivamente, não. Um pouco mais adiante, ainda no começo da cena I,
Manuel afirma: “Tudo quanto se ganha é para comida, quarto e roupa”. Os seis
companheiros contam o dinheiro que possuem para ver se conseguem pagar ao
senhorio. Depreendemos da conversa que o preço do aluguel dos dois quartos onde eles
moram é de 120 mil-réis. Percebe-se que, diante de seus minguados salários, a soma não
é pequena. O peso dos aluguéis no orçamento é exagerado: Manuel ou paga o
restaurante ou o senhorio; Salvador afirma que se pagar a este último fica “sem um
níquel”. Já na cena IV, a questão do elevado peso dos aluguéis nas despesas cotidianas
do trabalhador emerge novamente. Para Fernando, “pagar ao senhorio [...] é ficar sem o
dinheiro para as despesas urgentes”.
É claro que a peça não está pairando no ar. Em A Terra Livre, na edição de 26 de
novembro de 1907, o último artigo da série “agitação de inquilinos” (aquele que
julgamos ser o mais desalentado de todos) é dedicado, em grande parte, a demonstrar o
quanto os preços dos aluguéis pesavam no bolso do trabalhador. Segundo o autor
daquele artigo, “em nenhuma parte, como no Rio, seria tão justificada e necessária a
luta contra [...] as extorsões dos senhorios”. O articulista passa então a defender a
mobilização naquela cidade argumentando que lá “metade ou mais (em regra, mais) do
salário é para a casa”. Já numa edição anterior (de 13 de outubro de 1907), fora feita
uma comparação entre o custo dos aluguéis no Rio e “noutras cidades brasileiras”. Em
outros importantes centros urbanos do País, segundo o autor do texto, os aluguéis
consumiam aproximadamente 1/3 dos salários da classe trabalhadora.
O custo de vida e as condições de moradia do operariado já foram temas
amplamente debatidos em outros importantes trabalhos. O que importa aqui é enfocar
que a questão não passou despercebida na peça – nem poderia ser de outra forma. Ora, é
evidente que o problema da moradia existia e a classe trabalhadora sofria um bocado
para enfrentá-lo. No entanto, pensamos que o mais importante aqui é entender como a
276

trama encenada relacionava-se com a construção do problema da moradia no interior da


imprensa operária – no caso, especificamente, no âmbito de A Terra Livre. Parece
indiscutível que a obra de Neno Vasco dialogava intimamente com os artigos acima
analisados. E nesse diálogo proveitoso, uma nova imagem da questão da moradia é
criada em Greve de Inquilinos. Imagem nem tão igual nem tão diferente daquela já
construída na série de artigos analisada. Vejamos algumas semelhanças e diferenças
entre elas.
Tanto os artigos quanto a peça ressaltam principalmente a questão dos altos
preços dos aluguéis. Segundo Michelle Perrot, essa preocupação com o peso do aluguel
no orçamento foi durante muito tempo a principal reivindicação operária no que se
refere à moradia262. De fato, como vimos acima, aqui também os preços dos aluguéis
(assim como seu peso no orçamento do trabalhador) assumem uma posição de destaque,
tanto na peça como nos artigos.
Todavia, em Greve de Inquilinos, temos alguns poucos indícios que denotam já
uma certa preocupação com as condições de moradia propriamente ditas. Em alguns
poucos episódios notamos inquietações que vão além da questão dos custos dos
aluguéis. Logo no início, por exemplo, o autor descreve a cena representando “um
quarto pobre de moços solteiros” e mobiliário escasso. Segundo a descrição, em um dos
quartos moram quatro e em outro moram dois. Mais adiante, no início da cena VI,
novamente a peça faz menção à precariedade, se não da moradia, ao menos da mobília.
Quando Anastácio pretende se esconder do furioso “pai” de Carmen (Fernando), que
acabara de chegar, a única coisa que ele encontra é uma mesinha que mal encobre a
metade de seu corpo. Com exceção desses dois excertos, nada mais pudemos encontrar
que indicasse as dificuldades enfrentadas pelos seis inquilinos para conviver naqueles
dois quartos. Aqui, nada se diz, por exemplo, sobre as condições de higiene daqueles
ambientes.
Já nos artigos, todavia, identificamos algumas passagens em que a precariedade
habitacional no Rio de Janeiro vem à tona. Primeiramente, no artigo de 3 de outubro de
1907 (o primeiro intitulado “agitação de inquilinos”) o autor acusa as “irmandades

262
Ver Perrot, Michelle. Os Excluídos da Historia – operários, mulheres, prisioneiros. Rio de Janeiro,
1992, Paz e Terra; p. 102. “Por um longo período, a reivindicação operária se refere ao aluguel, não à
moradia. Desta, fala-se em termos de custo, de peso no orçamento, não de conforto ou espaço. Não
surpreende que as greves nada digam a respeito: não é esse seu objeto.”
277

religiosas” - entre elas a Santa Casa de Misericórdia - de explorarem os inquilinos,


cobrando aluguéis altíssimos por suas propriedades naquela cidade. Segundo ele, por
meio dessa “classe de negócio”, tais irmandades contribuiriam “para a criação de
milhares de tuberculosos que depois, com uma percentagem de 5%, recaem no seu
hospital”. Ainda no mesmo artigo, como vimos anteriormente, foram divulgadas as
“bases” por meio das quais a Liga dos Inquilinos adotaria seus meios de ação. Logo de
cara é proclamada a intenção de lutar pela redução dos aluguéis, “fazendo ao mesmo
tempo respeitar as condições de higiene e conforto de acordo com as exigências da
profilaxia moderna” [grifos meus]. Portanto, vemos que a preocupação com a higiene
não foi inventada por A Terra Livre. Na verdade, esta era levada em consideração pela
própria Liga dos Inquilinos. Por fim, no último artigo da série, publicado em 26 de
novembro de 1907, o autor anônimo, defendendo a necessária mobilização no Rio de
Janeiro, além de ressaltar o peso enorme dos aluguéis no orçamento do trabalhador,
enfatiza as péssimas condições daquelas caras moradias cariocas. Para ele, o inquilino
daquela cidade despendia metade do que ganhava “para ter o direito de dormir num
canto, numa instalação péssima, num amontoamento e promiscuidade insalubres”.
Nos três excertos acima mencionados, vemos aflorar uma preocupação com a
insalubridade da moradia operária. Em que medida tal preocupação relacionava-se com
o discurso higienizador propalado então pela burguesia urbana? Estariam os militantes
de A Terra Livre reproduzindo aqui o discurso hegemônico? Qual o sentido que a
defesa das condições de higiene assumia no discurso anarquista da época? Sua ênfase
seria grande naquele momento? Por quê?
Sabemos que, entre fins do século XIX e início do XX, as camadas populares
foram alvo de uma “pedagogia totalitária” 263. Esta partia do princípio de que o povo
possuía um caráter “infecto e selvagem”. Era preciso “desodorizá-lo”, purificá-lo por
meio da adoção de políticas sanitaristas que cumpririam o papel de evitar a
disseminação das doenças nos centros urbanos. Muito já se disse a respeito e não vem
ao caso entrar aqui nessa discussão.264

263
A este respeito, ver Rago, Luzia Margareth. Op. Cit.; p.170.
264
Para um maior contato com tal discussão, ver as quatro obras seguintes. Rago, Luzia Margareth, Op.
Cit.; cap. IV (A desodorização do espaço urbano). Chalhoub, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o
Cotidiano dos Trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque, São Paulo, 1986, Brasiliense. Decca,
Maria Auxiliadora Guzzo. A Vida Fora das Fábricas – Cotidiano Operário em São Paulo (1920/1934).
Rio de Janeiro, 1987, Paz e Terra; capítulos I e II. Sevcenko, Nicolau. Introdução. O prelúdio
republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso. In: Sevcenko, Nicolau (org.), História da Vida
278

Gostaríamos apenas de salientar que, na imprensa operária, a preocupação com a


questão sanitária revestia-se de um sentido diferente daquele propagado pelo discurso
hegemônico. Este se apresentava articulado e contava com o respaldo de diversos
especialistas (médicos, sanitaristas, sociólogos...) que propunham eliminar o problema
adotando métodos “racionais”; determinava, para tanto, um plano de segregação das
camadas pobres, evitando o convívio destas com os setores já “desodorizados” da
população. Aqui, portanto, não notamos uma preocupação efetiva com o problema da
saúde do trabalhador propriamente dito. No discurso hegemônico, o importante é
desinfetar o operário para se evitar o risco de contágio nos demais segmentos da
sociedade (ou, no máximo, garantir uma mão-de-obra disciplinada e suficientemente
saudável para continuar executando seu trabalho de forma satisfatória). Já, no discurso
anarquista, a preocupação com a higiene adquire aspectos diferenciados. Primeiramente,
nesse discurso contra-hegemônico, não se verifica nenhum aparato de especialistas
sugerindo medidas prontas para erradicar as doenças urbanas. Por isso mesmo, não se
propõe nenhum plano acabado de ação visando enfrentar o problema sanitário. Por fim,
a questão da segregação dos pobres, obviamente, não se apresenta no discurso
anarquista. Aqui, o verdadeiro objetivo é resolver o problema social de saúde dos
trabalhadores - e não desinfetá-los para evitar o contágio das elites.
Podemos concluir esta discussão ressaltando que os projetos sanitaristas
propostos e efetivados pela elite da época foram extremamente autoritários, o que não é
nenhuma novidade. No discurso dominante, o pobre era visto como sujo, incivilizado e
ignorante. Cabia às autoridades o papel de “limpá-los” – tanto no sentido literal quanto
metafórico (de afastá-los para longe). As políticas higienizadoras manifestavam um
sentido claro: segregar as camadas pobres da população, controlá-las por meio de
normas públicas institucionais e, principalmente, evitar o contato direto delas com as
demais categorias da sociedade.
Diante de todo esse panorama, é evidente, não devemos nos surpreender com a
pequena ênfase que a série “agitação de inquilinos” dedicou à questão sanitária. E nossa
peça? Esta nem sequer menciona o problema de forma direta. Nela, nada sabemos sobre
as condições higiênicas dos quartos em que os seis inquilinos moram. Nada sobre
arejamento, iluminação, instalações sanitárias etc. Se o movimento anarquista do início

Privada no Brasil – República: da Belle Époque à Era do Rádio, São Paulo, 1998, Companhia das
Letras.
279

do século XX, em alguns momentos não desprezíveis, defendeu medidas


higienizadoras, segundo Margareth Rago, o fez “muito mais numa perspectiva de
crítica”265 do que de assimilação irrestrita do discurso hegemônico. Como vimos, a
perspectiva e o sentido político do problema sanitário na imprensa anarquista assumiam
características bem diferentes daquelas do discurso dominante. No entanto, não nos
debrucemos demais sobre tal questão. Ao que tudo indica, a preocupação maior
naquele momento – seguindo a tradição identificada por Perrot – era com os custos da
moradia. O problema sanitário, parece-nos evidente, era ainda secundário no discurso
libertário do início do século XX.
Para além da questão da moradia, um outro aspecto que deve ser ressaltado na
peça tem a ver com a propaganda e os métodos de ação direta apresentados em cena.
Como outras peças do teatro anarquista, Greve de Inquilinos também manifesta a
intenção deliberada de convencer por meio do exemplo e da arenga em cena. Não
obstante o tom humorístico, esta obra de Neno Vasco apresenta os seis personagens
anarquistas (de “idéias avançadas”) agindo mais ou menos de acordo com o que os
círculos militantes da época pregavam. Mais adiante, no entanto, veremos que a solução
encontrada no final da peça (ludibriar o senhorio para obrigá-lo a seguir a tabela da
Liga) não se deu assim de forma tão imediata e sem divergências. Contrariando certas
definições já consagradas para as obras do teatro anarquista, os personagens em cena
nesta peça são mais complexos do que talvez se imagine. No entanto, o que
pretendemos ressaltar agora é que, apesar do tom irônico, Greve de Inquilinos também
abre espaço para o discurso militante em cena. Como nas demais obras do gênero,
temos aqui, pelo menos em parte, um “personagem recitante”: Fernando. 266 Já na
primeira cena, em meio às discussões sobre o que fazer diante das dificuldades em

265
Ver Rago, Luzia Margareth, Op. Cit.; p.200.
266
Para saber mais sobre os “personagens recitantes”, ver Golluscio de Montoya, Eva; El monólogo: una
convención de la escena libertaria (Rio de la Plata, 1900); Buenos Aires, 1990. Para nossa autora
argentina, “la dramaturgia libertaria favorece en el actor la actitud escénica de `recitante´ -ligada al estilo
monológico y al objetivo proselitista- en el cual se privilegian la declamación y la consecuente postura
corporal del intérprete. En el momento en el cual el actor se desprendía de los otros actores presentes en
el tablado y avanzaba cara al público para decir su mensaje fue siempre un instante de emoción en las
veladas teatrales anarquistas.” Sendo assim, o “personagem recitante” é aquele que cumpre o papel de
transmitir em cena a mensagem ideológica defendida pelos círculos ácratas. Nossa autora associa as
características desse personagem ao estilo “monológico” das peças anarquistas. Sobre a questão, ver
também, da mesma autora, Elementos para uma “teoria”teatral libertaria (Argentina 1900); artigo de
1987.
280

pagar o aluguel ao senhorio, Fernando, num ímpeto, “sobe a cima [sic] da mesa e com
grandes gestos, voz enfática”, começa sua arenga. Vale a pena acompanhar de perto.

Fernando - Companheiros! Soou a hora trágica e decisiva da luta a todo o transe! O nosso grito
de guerra ao abutre voraz que se chama senhorio deve ser: Não paguemos! Não paguemos! As
casas para quem nelas mora! Não mais parasitas! Não mais proprietários! [...] (Todos aplaudem
de vez em quando, menos Salvador que enfim, pode interromper)
Salvador - Tudo serve ao Fernando de pretexto para fazer discurso! Que mania!
Fernando - É brincadeira, homem! (desce)
Salvador - Sim, mas brincar ou a sério, por qualquer insignificância lá vai discurso! Discutamos
o nosso caso a valer.

Em outras peças do gênero, o tom altissonante da declamação seria levado mais


a sério pelos outros personagens. Aqui, no entanto, tratando-se de uma comédia,
Fernando representa, na verdade, uma caricatura daqueles personagens que Eva
Golluscio de Montoya chamou de “recitantes”. Salvador (figura dramática que, mais
adiante, terá a idéia de encenar a farsa para ludibriar o senhorio) é quem, em nossa peça,
ironiza Fernando toda vez que este manifesta suas inclinações para a declamação
ideológica. Mais adiante (ainda na cena I), Fernando (que sempre defende o “calote”)
faz menção de iniciar mais uma arenga, mas é logo interrompido por Salvador.

Fernando - Em suma: vocês querem mesmo pagar àquele ladrão? Apraz-lhes o papel de
vítimas? (Exaltando-se) Não vêem vocês que lhes fica a negra miséria em casa, que em breve se
esgotarão os últimos míseros vinténs e que teremos de arrostar a vergonha e a tortura de...
Salvador - (Assustado) Basta, basta! É discurso?

Na cena IV, mais uma vez o eloqüente inquilino discursa para os companheiros
– e, por extensão, para o público em geral.

Fernando – (Com ênfase) Companheiros, tal como os sitiados que, resolvendo uma sortida
desesperada, queimam as portas das fortalezas para não terem para onde recuar e fugir, para
terem de vencer ou morrer, assim nós devemos entregar os cento e vinte mil réis ao companheiro
Ramon, que o desespero da situação nos fará achar expedientes salvadores e decisivos.

(Salvador tenta acalmar com o gesto, mas todos aplaudem, batem palmas e Luís vai logo
entregar o dinheiro a Ramon que se aproxima de Mercedes).

De fato, Fernando cumpre o importante papel de transmitir (mesmo que de


maneira quase patética) a idéia de boicote aos senhorios; idéia esta que, como vimos,
281

fora já defendida veementemente nos artigos da série “agitação de inquilinos”. A


mensagem explícita da greve foi na peça transmitida principalmente por ele. É Fernando
quem, em todo momento, incita os companheiros a não pagarem o aluguel a Anastácio.
Enquanto os demais inquilinos titubeiam (com exceção, talvez, de Luís), Fernando,
sempre enfático, transmite a mensagem já pregada no primeiro artigo que analisamos:
“não pagar aluguel”267. No entanto, não exageremos na identificação de Fernando com
o modelo de “personagem recitante”. Aqui, o papel de tal personagem não assume os
contornos que Eva Golluscio atribui em sua tipificação. Isso porque ele encarna a
condição de arengador de forma caricata, não solene, como deseja a autora argentina.
Fernando é ironizado constantemente por Salvador, este sim o verdadeiro “herói” da
trama (veremos por quê). Voltemos ao enredo.

Para além da franca incitação à greve, a peça é rica em sugestões contra a


exploração dos senhorios. Em diversos momentos, os engajados inquilinos discutem
como driblar Anastácio e superar o problema do aluguel – sempre com métodos de ação
direta e decisiva. Em meio a tais discussões, as divergências entre os personagens vêm à
tona. Não obstante todos estarem de acordo em não recorrer às autoridades para a
resolução de seus problemas (também, de que adiantaria?), os companheiros de “idéias
avançadas” propõem diferentes expedientes para enfrentar o senhorio. É aqui que os
métodos de ação direta sugeridos em cena imbricam-se com o terceiro aspecto que
consideramos relevante discutir na peça: as tensões verificadas entre os companheiros
diante das divergências de propostas.
Vimos acima que um dos personagens mais enfáticos e decididos é Fernando.
Desde o início ele se mostra determinado a não pagar o aluguel. Fernando não está
sozinho: Luís, auto-intitulado “membro ativo da Liga”, também defende o começo de
uma greve contra o senhorio.
Observamos também que quem faz oposição aos rompantes entusiásticos de
Fernando é Salvador. Este encarna o personagem ponderado; alguém que não é dado a
soluções passionais e intempestivas. Talvez, seria um exagero chamá-lo de
“pragmático”. No entanto, veremos que suas sugestões, assim como seus embates com
Fernando, exprimem um caráter mais sereno, racional, fleumático... Ele é quem analisa
as condições concretas antes de desencadear uma ação; pondera sobre as possíveis

267
A Terra Livre, 28 de setembro de 1907.
282

conseqüências negativas de uma atitude mal planejada. Analisamos já a cena em que,


logo no início da peça, Fernando sobe na mesa para arengar em favor da greve.
Salvador, além de criticar a mania que aquele tem de discursar, é quem afirma, um
pouco mais adiante, a necessidade de se pagar o aluguel - sob pena de despejo.
Fernando questiona: “É preciso começar [a greve], que diabo!”. Salvador responde:
“Bom começo! Meia dúzia de rapazes em 2 quartos!”. Manuel e José, dois outros
companheiros ainda não citados, concordam com Salvador.
As discussões em cena acima mencionadas sugerem-nos algumas reflexões
possíveis. Primeiramente, qual a relação que o debate encenado estabelece com as
dificuldades concretas de organização enfrentadas pela Liga? Por fim, quando o sensato
Salvador afirma que “meia dúzia de rapazes” sozinhos não resolveriam nada,
poderíamos nos reportar aos obstáculos enfrentados pela Liga para engajar de fato os
inquilinos?
Vimos anteriormente que, no último artigo da série “agitação de inquilinos”, o
articulista transparece uma certa desilusão diante do estado em que se encontrava a
mobilização no Rio de Janeiro. Inevitável torna-se aqui estabelecer comparações com a
nossa peça. Quando Salvador afirma que apenas aqueles seis inquilinos não
conseguiriam nada, podemos refletir sobre o raciocínio levantado pelo autor daquele
último artigo, publicado em A Terra Livre no dia 26 de novembro de 1907. Para o
articulista, a Liga sozinha “não pode fazer a greve; o seu fim é a propaganda”. Até que
ponto o trabalho da Liga tinha ressonância junto ao inquilinato é uma questão, como já
ressaltamos, impossível de ser resolvida. No entanto, o importante é perceber que tanto
a peça quanto o artigo transparecem as enormes dificuldades para se levar adiante “a
greve ou qualquer modo de resistência”. Ainda para o autor daquele mesmo artigo,
literalmente, o que faltava era iniciativa: “todos esperam dos outros” 268. Muitos
esperariam da Liga e nesta haveria quem esperasse que todos os inquilinos se
associassem para enfrentar a exploração dos senhorios.
Assim como no panorama criado pelo articulista, na obra de Neno Vasco temos
também um grande impasse. O campo está dividido: de um lado, os que defendem a
greve imediata (Fernando e Luís); de outro, aqueles que, na expectativa de uma ocasião
futura mais propícia, sugerem o pagamento do aluguel (Salvador, Manuel e José).
António, personagem até agora não mencionado, não assume posição resoluta alguma;

268
Ver A Terra Livre, edição de 26 de novembro de 1907.
283

aliás, em nossa peça, ele cumpre um papel secundário (de coadjuvante). Para tornar a
situação ainda mais complexa, é importante lembrar que alguns personagens transitam
de um campo para o outro conforme os debates desenrolam-se em cena.
Na tentativa de superar aquele impasse, Fernando sugere uma fuga sorrateira e
rápida para o quarto de um outro companheiro, o Pereira. Tal expediente sugere-nos a
persistência de uma antiga tradição européia que, pelo jeito, continuava tendo
ressonância no imaginário anarquista do contexto que estudamos. Como bem assinalou
Michelle Perrot, em Os Excluídos da História, na França – sobretudo em Paris –, desde
o fim do século XVIII, eram inúmeras as “mudanças na surdina” empreendidas por
inquilinos que se viam em dificuldades com o pagamento dos aluguéis 269. Em julho de
1882, por exemplo, teriam ocorrido “3.695 mudanças em nove bairros do centro e leste
da capital”. Inclusive, segundo a autora, os anarquistas (chamados aqui de
compagnons), esforçavam-se “em transformar essa escapada num ato de protesto”. Em
época de pagamento de aluguéis, esses robustos “cavaleiros da surdina” apareciam para
“prestar auxílio às famílias populares”. Apresentavam-se prontamente para esvaziar os
apartamentos, “com a cumplicidade do bairro e, às vezes, os ouvidos moucos do
porteiro”270.
Esqueçamos, por enquanto, esta antiga tradição européia e voltemos à peça.
Como dissemos, o autor da idéia de fuga fora o eloqüente Fernando. Ora, seu principal
antagonista (Salvador), não perderia aqui a oportunidade de questionar a brilhante
sugestão. Vejamos de perto o seu argumento.

Salvador - [...] O que vocês querem fazer, e que não pode ser um sistema, fazendo-se uma vez
ou outra, não dá remédio a nada; é um simples calote.
Fernando - Que nas nossas circunstâncias vale tanto como a greve, que é tão justa como ela...

Salvador opõe-se à fuga porque, no caso, seria “um simples calote” – não
resolveria de fato o problema. Para Fernando, no entanto, diante das circunstâncias, a
“mudança na surdina” teria então o valor correspondente ao de uma greve. É importante
frisar que, nesse pequeno diálogo (assim como nos outros ao longo da peça), ninguém,
nem mesmo Salvador, discute a validade da greve propriamente dita. Todos parecem
aprovar o recurso. A única coisa que se questiona é se o momento é oportuno ou não.

269
Sobre as fugas sorrateiras organizadas pelos compagnons (anarquistas) franceses desde o final do século XIX, ver
Perrot, Michelle. Op. Cit.; pp.105, 106.
270
Ibid.; p. 105.
284

No caso de Salvador, o que ele defende é que a ação não pode ser isolada, ela depende
de uma articulação mais ampla para que seu resultado seja satisfatório. Sendo assim, de
acordo com seu raciocínio, enquanto os outros não se mobilizam, torna-se inviável
qualquer iniciativa mais arrojada. Será que aqui também (assim como depreendemos do
último artigo) “o que falta é iniciativa: todos esperam dos outros”? Vejamos.
Depois de expor claramente suas táticas de evasão, Fernando consegue o apoio
dos companheiros para iniciar a fuga. No momento em que o senhorio bate na porta,
inicia-se uma confusa agitação que bem nos faz imaginar como seria uma daquelas
“mudanças na surdina” mencionadas por Perrot.

Fernando - Pronto, está desimpedida a passagem. A caminho! (Toma também alguns objetos.
José leva a cabaça, a mesa. Batem à porta. Pânico e confusão).
Todos - (Ao mesmo tempo) Ele!
Fernando - (Saindo a correr pela E.) Salve-se quem puder. (Todos se precipitam com os
objetos. José faz várias tentativas para passar com a mesa; recua, avança, atrapalha-se, anda
em roda. Por fim, sentindo abrir-se a porta, põe a mesa no seu lugar e esconde-se sob ela).

Na seqüência, Anastácio, “metendo a cabeça na porta”, pede licença duas vezes


e, não ouvindo resposta, entra de mansinho. Primeiro, ele bate com a bengala no baú,
esperando que alguém escute. Em seguida, bate com ela sobre a mesa. Esta, com José
embaixo, move-se. Anastácio, o parvo senhorio, assusta-se pensando ser um fantasma e
“foge a tremer”. José sai de baixo da mesa e logo percebe que os demais companheiros
não haviam escapado: a porta dos fundos estava trancada.
Esperando a volta iminente do senhorio, os seis impávidos companheiros
discutem novos expedientes a adotar. Mais uma vez a livre imaginação é colocada em
cena. Fernando sugere pregar um susto em Anastácio, fazendo-o acreditar que a “casa
tem o diabo”. Desta vez, o eloqüente personagem não tem sucesso: a alternativa é
descartada. Segundo António, “o velho é fanático pelo dinheiro e não o perdoa nem ao
diabo em pessoa”. Fernando (sempre ele!) sugere novamente que não se pague. Depois
de algumas discussões, finalmente, eis que os seis inquilinos decidem não pagar: “Não
há outro remédio!”, afirmam todos juntos.
Antes de terminar a cena III, temos ainda uma última sugestão (sem dúvida, a
mais esdrúxula de todas!): fazer uma tourada com Anastácio assim que ele entrar de
novo! O autor da idéia? Ora, nosso querido Fernando. Vejamos seu argumento: “Talvez
ele nos julgue bêbados ou loucos e nos deixe ao menos por algum tempo...”.
Desnecessário dizer, Salvador é contra. No entanto, os demais companheiros aceitam a
285

proposta; quando batem novamente na porta, animados com a idéia, os seis inquilinos
preparam-se para o embuste. Fernando arranja “um trapo vermelho. José empunha uma
trombeta de papel; Luís prepara-se para abrir a porta”. Quanta criatividade demonstram
os seis companheiros! Veremos mais adiante qual o sentido desse transbordamento
imaginativo na peça. Voltemos a ela.
Quando abrem a porta, em vez do senhorio, aparecem os três argentinos
recomendados por La Protesta: Ramon, sua esposa Mercedes e o filho Manolito.
Ramon é toureado por Fernando que, só depois de algum tempo, se dá conta de que
aquele não era o senhorio. “Yo soy casado, pero que yo sepa, no soy toro!”, afirma o
argentino quando entra (todos dão risadas). Logo de cara Ramon apresenta-se como
alguém que vem há tempos “toureando senhorios”.
Com a chegada dos argentinos, a situação tornava-se ainda pior. Isso porque,
além de estarem sem dinheiro para o aluguel, os intrépidos inquilinos tinham de ajudar
os companheiros argentinos (Mercedes, inclusive, de acordo com a missiva de La
Protesta, estava grávida) 271. Iniciam-se novas discussões sobre o que fazer diante da
iminente cobrança. Fernando, como não deixaria de ser, sugere não pagar ao senhorio
para dividir o dinheiro com os outros companheiros. Diante do apoio geral, Salvador
novamente recusa a idéia afirmando que, justamente naquele difícil momento, eles
deveriam preservar os quartos para hospedar os companheiros argentinos.
Segue-se uma sucessão de episódios que já foram narrados em nosso resumo.
Ramon, que participara ativamente na greve de inquilinos em Buenos Aires, ajuda os
companheiros a ludibriar o senhorio. É ele que se fantasia de mulher para seduzir
Anastácio. Este, como vimos, cai no logro e amedronta-se quando surge
inesperadamente o suposto pai furioso daquela “donzela”: Fernando. O resto, o leitor
deve se lembrar: Anastácio é obrigado a aceitar o perdão da dívida naquele mês e uma
redução de 40% nos próximos aluguéis. Lembremos ainda: quem teve a idéia de colocar
em prática este último expediente foi Salvador, o ponderado inquilino que fizera parte
de um grupo de amadores teatrais.

271
Poderíamos aqui encetar uma discussão em torno da solidariedade cultivada pelos militantes
anarquistas da época. No entanto, o espaço é curto e não podemos abrir novos campos de análise.
Devemos ressaltar que essa questão é recorrente em outras peças do teatro anarquista – assim como entre
as páginas da imprensa operária do período.
286

4.9. Concluindo

O que devemos ressaltar, depois de tantos exemplos de atritos e sugestões, são


duas questões relacionadas diretamente. Primeiro que, na peça – assim como já nos
artigos ocorrera –, detectamos sinais de divergências e embates em torno das discussões
sobre o que fazer para enfrentar a exploração do senhorio. Parece-nos claro que a obra
de Neno Vasco dialogava abertamente com as dificuldades de organização do
inquilinato. As discussões e atritos em cena não eram fortuitos. Já anteriormente,
quando analisamos os artigos da série “agitação de inquilinos” (sobretudo aquele
último), percebemos que nem de longe a mobilização no Rio de Janeiro foi fácil.
Certamente os embates dentro e fora da Liga não foram desprezíveis e, por isso mesmo,
repercutiram na série dedicada à questão do inquilinato – e, ao que tudo indica, na peça
também. No entanto, nesta, não podemos dizer (assim como ocorrera no mencionado
artigo de A Terra Livre) que “o que falta é iniciativa”; muito menos podemos afirmar
aqui que “todos esperam dos outros”. Caso contrário, a obra não serviria ao seu
propósito de propaganda. Nem nossos heróis seriam de fato admiráveis; aliás, nem
heróis eles seriam. Sim, tudo bem, na fala de Fernando vemos repercutir a idéia de que
não era mais possível esperar pelos outros para se iniciar o movimento; assim como o
autor daquele último artigo, ele se indigna diante da suposta passividade dos demais
personagens. No entanto, os seis companheiros não ficam parados, esperando que os
outros tomem a iniciativa. Pelo contrário, notamos que eles de fato encontram uma
solução eficaz para enfrentar a exploração do senhorio. Se o ponderado Salvador não
aceita a greve naquelas circunstâncias, não é por franqueza ou falta de orientação
ideológica. É que ele sabe das dificuldades de se iniciar sozinho uma luta, sem que o
resto da categoria mostre-se disposta a seguir o exemplo.
É aí que podemos concluir com uma reflexão sobre outra questão importante na
obra de Neno Vasco: a enorme quantidade de sugestões propostas em cena pelos
inquilinos - todas elas prescindindo das autoridades. Poderíamos dizer que as propostas
e discussões encenadas visavam incitar o público a refletir sobre as possíveis táticas de
ação? Ou seja, a peça pretenderia estimular a criatividade dos inquilinos espectadores
para que estes enfrentassem de maneira eficaz (e criativa) os senhorios?
Acreditamos que sim. Greve de Inquilinos é quase um libelo em favor dos
métodos de ação direta (como, aliás, os artigos já analisados) e das práticas cotidianas
de resistência. Além de não esperarem pelas supostas soluções governamentais, os
287

arrojados inquilinos dão asas à imaginação e propõem uma quantidade incrível de


expedientes que, em outras circunstâncias (quem sabe?), poderiam ser adotados.
Nesse sentido, devemos encarar a peça como um claro exemplo daquilo que,
desde Proudhon, os anarquistas convencionaram chamar de “arte em situação”. Para
Jesús Martin-Barbero, o conceito de “arte em situação” decorre “da transposição para o
espaço estético” da noção de ação direta. Ainda para o autor citado, a estética
anarquista “proclama uma arte antiautoritária, baseada na espontaneidade e na
imaginação”272. Ou seja, uma arte que não pretende ser nem “sublime” nem um simples
“reflexo” da realidade. Apesar de sua nítida inclinação “realista”, por “colocar a
cotidianidade em relação com o conflito”273, a “arte em situação” não pretende ser um
mero “retrato” das coisas que acontecem no dia-a-dia. Na verdade, ela deseja ir além:
ser um instrumento ativo no sentido de transformar a realidade, não se contentando em
apenas “imitá-la”. Seu objetivo é intervir na ordem cotidiana das coisas, arrogando-se
um papel participativo e mobilizador.
Nessa perspectiva, o transbordamento imaginativo que se desenrola em cena, em
Greve de Inquilinos, não seria fortuito. Na verdade, ele era um expediente voltado para
estabelecer uma articulação necessária com as práticas cotidianas de resistência; ou seja,
a peça manifesta uma nítida valorização dos enfrentamentos populares do dia-a-dia –
inclusive daqueles oriundos da imaginação mais fértil. Nela, diríamos sem risco de
exagero, Neno Vasco tenta incentivar a criatividade por meio das sugestões aventadas
e do próprio expediente adotado em cena. Expediente que, diga-se de passagem, não é
lá muito comum: ludibriar o senhorio como forma de conquistar o proposto pela tabela
da Liga. Pudemos notar inclusive que, apesar da obra chamar-se Greve de Inquilinos, o
que acontece de fato não é nem sequer uma greve. Os seis inquilinos enganam o
senhorio e conseguem dele, por meio de um acordo, não apenas a isenção do pagamento
naquele mês difícil, como também a cobiçada redução de 40% no preço do aluguel.
Sabemos que as peças do teatro anarquista visavam conscientizar o público e
incitá-lo a agir. No caso, o autor da obra analisada vai além das sugestões convencionais
e amplia bastante o leque possível de atitudes. Ao que tudo indica, o desencadeamento
de uma greve de inquilinos nas condições concretas do momento parecia algo inviável.
Para nós, a peça representa um claro esforço no sentido de estimular a criatividade

272
Ver Martin-Barbero, Jesús. Op. Cit.; p. 45.
273
Ibid., p.43.
288

popular para driblar as situações adversas e conseguir o pleiteado pela Liga. E isto
constitui uma clara intervenção política, como tantas outras peças do teatro anarquista
também procuravam fazer.
289

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante os anos das décadas de 1970 e 1980, os temas em torno do movimento


operário no início do século XX transformaram-se em “vedetes” dos estudos
acadêmicos. Naqueles já distantes anos, boa parte dos historiadores preocupava-se em
analisar de perto as lutas e mobilizações levadas adiante pelos setores mais engajados da
classe trabalhadora. O próprio conceito de “classe” era tido como central nos estudos
desses pesquisadores. Naqueles anos, surgiram inúmeros trabalhos pioneiros que
abordaram a história do movimento operário por meio de diferentes perspectivas e
abriram novas sendas de análise. Desnecessário dizer, nossa pesquisa inspirou-se nesses
trabalhos e só pôde concretizar-se graças a eles.
No entanto, ao longo dos últimos quinze ou vinte anos, os estudos sobre o
movimento operário e a classe trabalhadora urbana no início do século XX tornaram-se
escassos. Novos temas e abordagens passaram a ter destaque na produção
historiográfica. Com raras e louváveis exceções, boa parte dos historiadores e
acadêmicos em geral deixou de se preocupar com a história do trabalho e dos
movimentos sociais organizados pelos trabalhadores naquele começo do século XX. As
lutas sociais travadas pela classe operária nos grandes centros urbanos daquela época
perderam espaço para outros temas que se tornaram mais “atraentes”.
Analisar as práticas sociais em torno do teatro anarquista ensejou não apenas a
rediscussão das lutas levadas adiante pelos militantes libertários, como também
proporcionou a reavaliação de alguns pormenores de pesquisas consagradas pela
importante historiografia sobre o assunto. Conscientes de que as abordagens das fontes
nunca se esgotam, acreditamos na necessidade de reexaminá-las constantemente,
fazendo a elas novas perguntas e buscando analisá-las à luz de novas perspectivas de
análise e de novas reflexões.
Em contato com as mesmas fontes já investigadas por outros pesquisadores,
notamos que algumas imagens concebidas por aquela historiografia em torno dos
militantes anarquistas poderiam ser reavaliadas. Por exemplo, percebemos que o
estereótipo do anarquista “puritano” - preocupado só com a “doutrina”, quase um
fundamentalista religioso - deveria ser reexaminado à luz de novas indagações. Da
mesma forma, a idéia segundo a qual aqueles militantes isolavam-se no interior de um
universo próprio, quase descolado do resto da sociedade, também deveria ser reavaliada.
290

Na verdade, pudemos notar que os militantes libertários do início do século XX não


apenas incorporavam os elementos da cultura popular, como também os valorizavam
profundamente. Vimos que até mesmo determinados aspectos da cultura hegemônica
foram apropriados e, no processo de apropriação, adquiriram novos significados,
servindo inclusive para a constituição de referenciais alternativos criados pelos
militantes que estudamos.
Outra coisa que devemos enfatizar nestas derradeiras considerações diz respeito
aos caminhos metodológicos adotados em nossa pesquisa. Tentamos o tempo todo
entender o teatro anarquista como parte constituinte das práticas sociais organizadas
pelos militantes libertários da classe trabalhadora. Buscamos não apenas “reconstituir”
as trajetórias de alguns dos grupos amadores daquele teatro, como também realçar o
sentido político de suas atividades. Nosso objetivo foi analisar as atividades teatrais em
suas inúmeras relações com outras atividades organizadas pelos militantes libertários
em suas lutas cotidianas. A preocupação em saber quem eram os sujeitos que atuavam
naquela dramaturgia foi parte dessa tentativa de encarar as atividades teatrais como
elementos constitutivos do movimento anarquista e/ou sindicalista revolucionário.
Nesse sentido, por exemplo, as análises que fizemos das peças que compõem o corpus
da pesquisa tentaram sempre articular os conteúdos dessas obras com as práticas sociais
às quais elas se referem. Deixamos de lado uma abordagem meramente estrutural para
encarar de perto os significados sociais que as peças carregam consigo. No esforço de
não perder nosso eixo central (o teatro como prática social do movimento operário),
tentamos sempre analisar as repercussões que as encenações dessas obras obtiveram na
imprensa operária.
Logo no início de nossa pesquisa, percebemos que havia inúmeras ressonâncias
dos conteúdos específicos de cada peça no interior daquela imprensa. Buscamos o
tempo todo articular as idéias-imagens veiculadas pelas peças com as que possivelmente
emergiam das páginas dos periódico que investigamos. Assim, nosso objetivo foi evitar
uma abordagem daquelas obras “por elas próprias”. A tentativa de analisar as
articulações do conteúdo de cada peça com o universo cultural da militância anarquista
levou-nos a identificar a constituição de uma sintaxe perceptiva própria, por meio da
qual os militantes com que lidamos conseguiam construir sua própria identidade. Os
referenciais sócio-culturais e as idéias-imagens que constituíam o imaginário anarquista
291

serviram como “cimento” das relações identitárias que os militantes de então


estabeleceram entre si.
Não obstante tais identificações, é claro que esses mesmos militantes
manifestavam diferentes maneiras de lidar com os mesmos valores, códigos e
referenciais. Na medida do possível, tentamos também levar em conta essas nuanças
diferenciadas que observamos entre as diferentes abordagens que cada um desses
militantes analisados elaborou.
Mais do que propor a nossa própria versão do teatro anarquista e de suas
relações com o movimento operário, o que desejamos de fato com esta pesquisa é
despertar nos pesquisadores em geral um interesse renovado pelas questões em torno do
movimento organizado da classe trabalhadora, sobretudo da parcela deste movimento
que adotava o ideário ácrata; ideário que tanta influência exerceu nos trabalhadores da
época que estudamos.
Nos dias de hoje, rediscutir a história do movimento operário anarquista parece
ser uma necessidade. Diante da precarização das condições de trabalho e do
ressurgimento de políticas institucionais que não escondem suas facetas autoritárias;
perante a constante criminalização dos movimentos sociais engendrada pela grande
imprensa e pelas forças de segurança, lançar um olhar atento para as atividades
organizadas pela combativa classe trabalhadora do início do século XX parece ser no
mínimo instigante. Acreditamos inclusive que a rediscussão das temáticas em torno da
militância operária seja a parcela de contribuição que o mundo acadêmico pode oferecer
como forma de enfrentar de perto nossa própria situação periclitante. Esperamos apenas
que este trabalho seja nossa pequena parcela de contribuição nesse sentido. Desejamos
simplesmente que novos estudos sobre o teatro (e o movimento) anarquista sejam
instigados pela leitura destas páginas; que outros pesquisadores sintam a necessidade de
abrir novos campos de investigação sobre o tema e de rediscutir a abordagem aqui
adotada.
292

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Greve de Inquilinos, de Neno Vasco – ref.:P0318/AC no. 2312
Militarismo e Miséria, de autor anônimo – ref.: P0318/AC no. 2327
O Pecado de Simonia, de Neno Vasco – ref.: P0318/AC no. 2293
Primeiro de Maio, de Pietro Gori – ref.: P0318/AC nºs. 2297 e 2298
O Infanticídio, de Mota Assunção – ref.: DT-2314

Entrevista (Arquivo Multimeios do Centro Cultural de São Paulo)


Relato de Jayme Cuberos em P318/AC – TR-1067

Periódicos da imprensa operária (Arquivo Edgard Leuenroth – UNICAMP)


A Greve
A Guerra Social
A Lanterna
A Plebe
A Terra Livre
A Voz do Povo
A Voz do Trabalhador
Alba Rossa
Guerra Sociale
La Barricata
La Battaglia
La Propaganda Libertaria
Liberdade
Lucta Proletaria
Lucta Social
Novo Rumo
O Amigo do Povo
293

O Trabalhador
O Vehiculo
Renovação
Spartacus

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298

ANEXO
AO RELENTO, DE AFONSO SCHMIDT – POSSÍVEIS COMPARAÇÕES
COM O PRIMEIRO DE MAIO, DE PIETRO GORI

Findava já o ano de 1922. A “Legião dos Amigos da A Plebe Entre


Trabalhadores em Calçados” decidiu então preparar um “bem organizado festival” em
São Paulo. O local escolhido para o evento, previsto para o dia 30 de dezembro, foi o
requisitado salão Leale Oberdan (ou Gugliemo Oberdan), situado então na Rua
274
Brigadeiro Machado, nº. 5 . O programa da noite estava repleto de atrações: a
execução de “`A Internacional´ pela orquestra”, uma conferência a ser realizada “por
um camarada do Rio” e uma diversificada sessão dramática sob encargo do Grupo
Theatro Social, de São Paulo. Este, como sabemos, era formado, dentre outros, pelo
alfaiate espanhol Marino Spagnolo, autor de A Bandeira Proletária, drama social que
fora escrito meses antes naquele mesmo ano de 1922.

Imagem 18 – anúncio publicado em A Plebe nos dias 19 e 30 de dezembro de 1922

Sabemos que, de fato, o festival divulgado por A Plebe aconteceu no dia


previsto. No entanto, é impossível saber como foi a atuação do Grupo Theatro Social no
palco. Isso porque, naquela noite, um “espetáculo” muito mais trágico acabou roubando
a cena. Em pleno salão, o sapateiro Ricardo Cipolla, figura de destaque na União dos

274
Ver A Plebe, edições de19 e 30 de dezembro de 1922..
299

Artífices em Calçados, foi assassinado a tiros pelo espanhol Indalécio Iglesias. Em


Teatro Operário na Cidade de São Paulo, Maria Thereza Vargas e Mariângela Alves de
Lima apontam para o “impacto visível” que aquele assassinato causou nos “meios
operários”. A repercussão que o caso obteve na imprensa operária seria um sinal
indicativo desse impacto. Podemos dizer que o trauma do assassinato foi tanto mais
agudo quanto maior era a necessidade de afirmação moral dos círculos ácratas. Na
esteira das duas autoras citadas, precisamos salientar que em “todos os seus
empreendimentos, políticos ou culturais, os grupos libertários procuram enfatizar a sua
própria respeitabilidade, contrastando com a corrupção das classes dominantes”. E nós
sabemos que, de fato, nas festas operárias não havia nada de “especialmente proibitivo”.
A própria presença numerosa de crianças e mulheres atesta o caráter “respeitável”
daqueles eventos. Neles, só se “perpetram violências verbais nos dramas e nas palestras
contra os capitalistas e o clero, que nunca foram convidados” 275.
Desnecessário dizer, os comentários sobre o festival que apareceram na
imprensa operária nas semanas seguintes voltaram-se quase todos para o crime,
ofuscando assim a parte teatral.Sabemos apenas que o Grupo Theatro Social de São
Paulo mostrou seu esforço “em corresponder às necessidades de divertir e ao mesmo
tempo de fazer propaganda” 276. Afora essa observação posterior, as poucas informações
que obtivemos provêem justamente do anúncio supramencionado. Por meio dele,
sabemos que, para a noite de 30 de dezembro, estavam previstas as encenações de três
peças: duas delas – Na Escola, de Roussele e Naquela Noite, de Santos Barbosa – já
eram conhecidas do público que freqüentava as festas operárias de São Paulo e/ou do
Rio; a outra, no entanto, subiria ao palco pela primeira vez. Estamos nos referindo à
“fantasia em verso” Ao Relento, de Afonso Schmidt, programada para abrir a parte
teatral do evento.
Se aquela noite seria a estréia de Ao Relento nos palcos das festas operárias, no
entanto, precisamos frisar que a obra não era, na ocasião, completamente inédita. Na
verdade, a “fantasia em verso” do escritor paulista fora já publicada, em 1921, no
periódico A Vanguarda, de São Paulo. A partir do dia 30 de março daquele ano, Ao
Relento, de Afonso Schmidt, passa a ser publicada diariamente como folhetim naquele
jornal.
275
Ver Alves de Lima, Mariângela e Thereza Vargas, Maria; Teatro Operário na Cidade de São Paulo.
Laboratório do Idart, 1980, p. 39.
276
Ver A Plebe, 13.01.1923.
300

Imagem 19– primeira parte da obra de Afonso Schmidt publicada em A Vanguarda como folhetim
(30.03.1921)

A veiculação da peça por meio de um folhetim muito nos diz sobre aquela
incorporação dos elementos da cultura popular a que nos referimos em nossa
Introdução. A própria publicação da obra de Afonso Schmidt em um jornal como A
Vanguarda - que circulava entre os trabalhadores e pretendia imprimir um caráter
combativo a suas ações – revela-nos a dimensão política que a obra pretendia alcançar.
Trata-se de uma estratégia ativa de inserção social junto à classe trabalhadora, não de
um mero discurso a ser veiculado por um órgão da imprensa. O objetivo claro desse
folhetim parece ser não só o de ampliar o campo de divulgação da mensagem, mas
também (e principalmente) o de intervir nas práticas sociais do movimento operário,
conferindo a elas um sentido próprio. Enfim, assim como a posterior encenação, o texto
veiculado antes em folhetim buscava atingir um alcance político mais abrangente. Texto
e encenação constituem, assim, diferentes dimensões políticas da divulgação daquela
obra de Afonso Schmidt. Para entender o sentido dessa intervenção, devemos analisar
de perto a obra.
Maria Thereza Vargas e Mariângela Alves de Lima fazem menção à peça do
escritor paulista. Ao discutirem a força que as peças de origem européia exerciam sobre
a produção do teatro anarquista no Brasil, as duas apontam para as semelhanças entre
Ao Relento (produzida aqui) e Primeiro de Maio (oriunda da Itália). As pioneiras
autoras afirmam que, quando “o autor é nascido no Brasil, como Afonso Schmidt, a
influência do texto europeu é ainda assim predominante (`Ao Relento´, de Afonso
301

Schmidt não pretenderia ser o nosso `Primeiro de Maio´ ?)” 277. Difícil saber se a obra
do escritor paulista tinha de fato esta pretensão. No entanto, parece mesmo que existem
algumas aproximações (assim como não poucas diferenças) entre o bozzetto
drammatico de Pietro Gori e a “fantasia em verso” de Afonso Schmidt. Urge então
relacionar as duas peças, identificando suas semelhanças e diferenças.
Primeiramente, conheceremos melhor a “fantasia em verso” do escritor paulista.
Depois, tentaremos estabelecer algumas comparações pontuais com o bozzetto de Pietro
Gori.
Comecemos pela descrição do cenário em que se desenrola a representação de
Ao Relento. Tal descrição encontra-se logo no frontispício 278 da versão com a qual
trabalhamos.

Praça pública. Horas mortas. Plenilúnio. Ao fundo, numa vidraça iluminada, vê-se,
através da cortina branca, a silhueta de uma mulher vergada sobre a costura. Num banco
praticável, Antonio, João e Pedro, três maltrapilhos, velam. Homens e mulheres elegantes
passam de quando em quando, ao fundo, na vida noturna.

Além dos “três maltrapilhos”, outros personagens contracenam na peça. O


Guarda Noturno, o Varredor, a Mulher que se vê através da vidraça, o Padeiro, o “1º.
Elegante” e o “2º. Elegante”. Aqui, como em Primeiro de Maio, temos também um
Soldado. Este, no primeiro frontispício (feito para o Grupo Theatro Social em 1923),
estava previsto para ser representado por Marino (ao que tudo indica, o já citado Marino
Spagnolo, membro ativo do Grupo Theatro Social).
Inicia-se a cena 1 com o coro dos que passam pelo palco entoando uma canção
que compara a ventura da vida a uma estrela cadente: “É tão rápida que a gente /
Quando pensa no presente / O presente é já passado”, dizem os três últimos versos da
canção .
O Guarda, com ar melancólico, conversa com o Soldado sobre coisas que os dois
vêem no cotidiano solitário do serviço noturno:

277
Ver Alves de Lima, Mariângela e Thereza Vargas, Maria; Op. Cit.; p.72.
278
É importante ressaltar que a cópia com a qual lidamos apresenta dois frontispícios. O primeiro, de
1923, foi produzido para a encenação do Grupo Theatro Social, que estreara a peça. O segundo, ao que
tudo indica produzido em 1946, foi feito para um grupo pertencente à terceira geração do teatro
anarquista.
302

[...]a gente se habitua


Às árvores, aos cães, às portas de uma rua.
Um vulto que se vai e que desaparece
Quase sempre faz falta e até nos entristece.

Assim que pronuncia estas palavras, o melancólico Guarda Noturno despede-se


e sai.
Já no início da cena 2, o Soldado dirige-se aos três “notívagos” em tom
imperativo: “Acordai-vos, mandriões. Este banco da rua / Não se fez para vós,
cavalheiros da lua”, ordena o Soldado que, por fim, ameaça prender os maltrapilhos.
Ouve-se o raspar de uma vassoura e a voz do Varredor, ainda fora do palco, cantando
um triste fado sobre a morte das folhas que ele varre.

As folhas secas que eu levo


São pobrezinhas defuntas;
Viveram no mesmo enlevo
E para a cova vão juntas.

O Soldado repara no Varredor e reflete consigo mesmo sobre o caráter bondoso


e a suposta ausência de tristeza do limpador de ruas: “nunca pode estar triste; / Para o
pobre rapaz a mágoa não existe”, sugere o admirado Soldado. Eis que finalmente entra o
Varredor. Agora ele entoa uma canção de amor sobre dois lindos olhos que lhe
roubaram o sono. O Soldado cumprimenta-o dizendo admirar-lhe o seu cantar e
revelando o desejo de ser tão alegre quanto ele parecia ser. “Mas eu não sou feliz...”,
afirma o Varredor tentando dissuadir o Soldado. “Quando se tem vinte anos / A gente é
bem feliz, mesmo nos desenganos”, arremata o Soldado persistindo na admiração.
Desviando o foco das atenções, o Varredor aponta para o banco e refere-se à
infelicidade daqueles três que lá estavam: “Dormiram sem jantar para acordar sem
pão!”, conclui o Varredor. Diante do gesto pesaroso, o Soldado replica:

Não fazem como tu, não procuram trabalho;


Eles têm medo ao sol, à ferramenta, ao malho;
Desertam da oficina, abominam a forja;
Vivem ao “Deus dará”... São todos uma corja!
303

Eis que se manifestam os três maltrapilhos. João e Antonio logo nos revelam
aspectos importantes de suas respectivas histórias. O primeiro, também admirando a
vida do Varredor, afirma que já foi feliz. Sabemos, por meio de seus versos, que ele
possuíra uma profissão (fora ourives). Além disso, João vivera um amor correspondido
com uma “mulher gentil, com tranças de ouro novo!”. Antonio, por sua vez, também se
dá a conhecer logo na primeira fala. Em sua conversa com João, ele afirma que fora
padeiro e usara o “fato de algodão todo alvo de farinha”. Naqueles distantes e felizes
anos, possuíra sempre uma “canção na boca” e um “sorriso no olhar”. Logo em seguida,
o próprio Antonio manifesta certo desconforto diante da possibilidade de estar
delirando: “Será simples visão? Que formosa mentira...”. Ou seja, é o próprio ex-
padeiro que coloca sob suspeição a ventura de sua vida pregressa. Logo em seguida,
dirigindo-se a Pedro, é João quem diagnostica o estado de Antonio: “É a febre... Ele
delira”, assevera João.
Inicia-se a cena 3. Entram os dois Elegantes e atravessam o palco conversando
sobre a noitada em que houvera “dinheiro à farta” e muita jogatina. “Quatro contos de
réis em cima de uma carta!”, exclama o 1º. Elegante. Os dois passam e deixam em cena
os demais. Logo em seguida, o Varredor despede-se do Soldado e sai varrendo o chão e
cantando algo referente a seu ofício :

Pensa em quem anda a desoras,


Sob as luas indecisas,
Varrendo a rua em que moras,
Beijando o chão em que pisas!

Logo no início da cena 4, “soam três badaladas num relógio longínquo”. A


mulher que está atrás da vidraça, cantando uma triste canção, levanta-se e arruma a
costura. A canção é composta por alguns versos que se referem a um antigo noivado e
ao trabalho infindo que a costureira realiza:

Laranjeira sorridente
[...]
Inda guardas na semente
As flores do meu noivado.

Não tem fim o meu trabalho.


304

Morro do peito, definho


Não sobra nenhum retalho

João, Pedro e Antonio conversam sobre a costureira e seu hábito de cantar. Para
Antonio, a “cantiga é o milhão dos desgraçados”. João pergunta a Antonio se existem
pessoas felizes no mundo. “Certamente que sim. Alguma criatura...”, responde Antonio.
Pedro, irritado, lança uma ofensa e propõe uma indagação. “Pedaço d´animal! Que vem
a ser a ventura?”. O ex-padeiro diz que pode ser qualquer coisa (“dez milhões”, “uma
mulher”, “um brinco”, “uma canção que passa”...) e que uma pessoa feliz pode se
encontrar em qualquer lugar (“Num castelo real, numa prisão escura / Ou sob uma
cabana, uma telha de zinco”). Após esses devaneios, Antonio queixa-se da cabeça “em
brasa” e do frio que sente nas mãos. Sempre solidário, João oferece suas próprias mãos
para esquentar as do enfermo companheiro de rua. Pedro, sempre irrequieto, refere-se a
uma idéia que vez ou outra lhe vem à cabeça. “Vê como a noite é má, como o lugar é
escuro / Aproveita o silêncio e a paz da hora morta / E faze um ato vil: arromba aquela
porta”, revela Pedro sua indisfarçável intenção. Antonio, por sua vez, continua
delirando.
Eis que intervém o Soldado. Em um contrariado apelo, ele pede mais uma vez
para que os três maltrapilhos abandonem a praça.

Procurai os desvãos, os arrabaldes ermos.


[...]
Procurai algum pouso, arranjai uma casa...
Ficai certo que eu sofro em vos mandar assim
Mas tenho que fazer. Não se trata de mim.

A sugestão contumaz de roubar alguma coisa persegue novamente os


pensamentos de Pedro. Este, indignado e sempre nervoso, pergunta então ao contrariado
Soldado: “e quem vos manda?”. “A lei”, responde o Soldado. “Maldita seja a lei!”,
arremata Pedro e sai do palco.
Estamos já no início da cena 6. Antonio, no auge de seu delírio, diz então uma
série de coisas desconexas. O Soldado, mais enérgico do que outrora, resolve expulsar
Antonio e João. Este último ergue-se e, em sua fala, demonstra toda a repulsa que a
sociedade tem dele e de sua condição:
305

[...] Fecharam-se-me as portas.


Agridem-me ao passar os próprios cães das hortas.
Quando eu estendo as mãos, num soluço profundo,
Dizem-me: - Vai trabalhar! Não sejas vagabundo!
Quando eu peço trabalho, os patrões indiferentes
[...]
Repelem-nos dizendo: - Este aqui é dos tais...

O Soldado insiste para que os dois maltrapilhos saiam. João incentiva Antonio a
se levantar. O estímulo não funciona: Antonio, alquebrado, continua padecendo em
plena praça. João sai de cena, deixando nela apenas o Soldado e o enfermo Antonio.
Corta. Justamente neste trecho do documento que utilizamos há uma
interrupção abrupta. A folha 8 literalmente não existe, foi suprimida. O que ocorreu com
ela? A resposta encontra-se logo no segundo frontispício da cópia que nos serve de
base. Ele foi feito provavelmente em 1946. Destinado a um grupo da terceira geração
do teatro anarquista de São Paulo (vinculado provavelmente ao Centro de Cultura
Social), esse segundo frontispício apresenta uma série de informações gerais sobre a
peça (incluindo sua encenação). Em seu canto superior, aparece o nome do autor
(“AFONSO SCHMIDT”). Logo abaixo vêm o título (“AO RELENTO – FANTASIA
SOCIAL EM UM ATO, EM VERSO”) e os nomes dos personagens, com seus
respectivos atores (dentre eles, Cecílio Dias e Maria Valverde aparecem assinalados 279).
Na seqüência, no canto inferior, aparece a descrição do cenário que transcrevemos
acima, no início deste resumo. Mas é para o canto direito desse frontispício que
devemos voltar o olhar. Nele - em cima, no meio e embaixo – aparecem os sinais de que
a obra foi então censurada. Três carimbos de diferentes órgãos públicos atestam as
etapas do processo de censura. O primeiro (o de cima) apresenta a data de 15 de outubro
de 1946. O do meio, da Interventoria Federal - datado do final de 1946 e assinado pelo
censor (Luiz Veigas, provavelmente) - indica expressamente a supressão da folha 8. O
terceiro carimbo (do canto inferior direito), é da Secretaria da Segurança Pública. Ele
reitera a supressão da folha 8 e registra a data de 28 de março de 1947. Finalmente, após

279
A pesquisa realizada por Maria Thereza Vargas e Mariângela Alves de Lima no fim dos anos 1970
inclui depoimentos dos ex-integrantes do grupo amador vinculado ao CCS. Em entrevista gravada em fita
cassete pelas duas pesquisadoras, Cecílio Dias e Maria Valverde aparecem como depoentes. Ver, no
Arquivo Multimeios do CCSP, o documento P318/AC – TR 1067 (entrevista com artistas do Centro de
Cultura Social).
306

mais de cinco meses de processo, a peça parece que foi liberada para a encenação, desde
que não subisse ao palco com o conteúdo expresso naquela malfadada folha .
Mas, afinal, o que essa oitava folha trazia de tão inquietante para uma
autoridade censora? Em busca do conteúdo suprimido, recorremos à versão
originalmente publicada, como folhetim, em A Vanguarda. Entre março e abril de 1921,
o periódico citado veiculou, diariamente, cada um dos seis episódios em que a obra de
Afonso Schmidt ficou dividida. Graças a essa versão anterior, pudemos resgatar
integralmente a peça Ao Relento. Constatamos que o trecho cortado abarca toda a cena 7
e o começo da cena 8.
Após driblar o censor, voltemos ao enredo. João acabara de sair, deixando em
cena Antonio e o Soldado. Este insiste mais uma vez para que o enfermo maltrapilho
deixe a praça. Antonio mostra-se incapaz de sair. “Eu tenho os joelhos bambos / Os
meus pés são de neve. Adormeceram. De ambos / A vida se me foge”, justifica-se o
enfermo Antonio. Em tom ameaçador, o Soldado arremata: “Esta prosa é demais. /
Ponho-te no xadrez se acaso não te vais”. Antonio, no auge de seu delírio, diz algumas
palavras desconexas que, não obstante a desarticulação, sugerem sua possível morte.
Vejamo-nas de perto.

Eis o arcanjo de luz... que me chama... sorrindo...


As mãos de neve e rosa... o rosto suave e lindo...
Vede como eu estou... já sem forças...exangue...

Antonio cai tossindo sobre o banco, deixando nele uma mancha de sangue,
sintoma de sua doença. Termina a cena 7. Até aqui, não há nenhum motivo aparente
para censura. No entanto, logo em seguida, quando começa a cena 8, surge uma nova
situação. Bem no início, aparece um novo personagem. Trata-se do Padeiro, cuja voz se
ouve antes mesmo dele entrar em cena: “Pega! Pega ladrão!”, exclama o Padeiro ainda
fora do palco. Desenrola-se uma confusão na qual Pedro entra correndo, o Soldado
prende-o e o Padeiro aparece a gritar, acusando Pedro de ter lhe roubado um pão. A
justificativa que Pedro oferece para o ato ilegal é o que provavelmente motivou a
censura. Vejamos as escusas de Pedro.

Passava. Tinha fome. Olhei um pão. Tirei-o.


Quando a carga é demais, a besta rompe o freio.
307

A fome também mata e eu era sua presa.


Invoco para mim: “Legítima defesa...”

Parece-nos evidente que a justificativa oferecida por Pedro afronta o sacrossanto


direito à propriedade. Atribuindo ao crime, motivado pela fome, o caráter de “legítima
defesa”, Pedro subordina o direito de propriedade a um outro não menos inalienável: o
direito ao pão e, por extensão, à própria vida. Com isso, ele não apenas justifica o ato
cometido, como também dessacraliza o direito à propriedade, colocando-o em posição
subordinada na hierarquia da justiça humana. Roubar um pão quando se tem fome não é
crime, é “legítima defesa”. Isso parece que foi o suficiente para que o censor, no final de
1946, sentisse a necessidade de censurar a peça do escritor paulista. Não fosse pela
versão em folhetim de A Vanguarda, a lacuna no trecho suprimido ficaria para sempre.
E como na época em que a peça foi encenada pela primeira vez tal lacuna não existia, o
prejuízo em nossa pesquisa seria grave e irremediável. Por isso, a busca da versão
original de A Vanguarda foi para nós um dever.
Enfim, superado o empecilho, podemos deixar a versão em folhetim e voltar
para a cópia que nos serve de base. Nela, já na folha 9 (final da cena 8), João entra
bêbado dizendo que, para comer, “não há nem um figo podre... / Mas quem quiser
beber, pode fazer-se um odre!”. O Soldado, “perplexo”, lamenta a situação: “Este rouba,
esse bebe, aquele delira...”.
Já no começo da cena 9, entra no palco o Poeta, cujas palavras condensam o
argumento da peça. Em sua fala, o novo personagem critica a sociedade que “foge ao
supremo dever / De abrir a porta à vida a quem quiser viver”. Logo em seguida, é o
mesmo Poeta quem anuncia, “em sangue, a madrugada” que vem despontando. Diante
dessa visão apocalíptica, ele termina incitando todos a saudar cantando. O Soldado,
impossibilitado de impedir o advento daquela madrugada, “tampa os ouvidos com os
dedos e senta-se no banco” a exclamar: “Cantai! Cantai! Cantai! Eu faço que não
ouço!”. O “coro geral” entoa duas estrofes de A Internacional enquanto o “pano bem
lento” desce.
Parece-nos evidente que a peça Ao Relento apresenta algumas identidades com
Primeiro de Maio, de Pietro Gori. Assim como esta, aquela também se estrutura como
um poema dramático em um ato só. O tom lírico e as características emblemáticas dos
personagens são traços que aproximam as duas obras. Alguns elementos que compõem
308

a encenação em Ao Relento também nos remetem ao bozzetto drammatico de Pietro


Gori. Devemos apontar, nas duas obras, a presença de personagens que cumprem o
papel de narrador. Em Ao Relento, é o Poeta que, na última cena, condensa o
argumento da peça e anuncia a madrugada em sangue. Em Primeiro de Maio, quem
desempenha função semelhante é o ator que, logo no início, apresenta (também em
versos rimados) os personagens e o argumento da peça. Além disso, precisamos
salientar que a presença do hino é fundamental nas duas obras. Em Primeiro de Maio, o
hino homônimo, composto pelo próprio Pietro Gori, no final do século XIX, é entoado
logo após o Prólogo, antes da cena 1. Na peça de Afonso Schmidt, é A Internacional
que toma seu lugar, encerrando a encenação.
Aliás, precisamos ressaltar aqui a presença marcante da música na peça do
escritor paulista. Ela aparece em diferentes momentos: logo no início, no “coro dos que
passam” pela praça; mais adiante, nas vozes do Varredor e da Costureira e, por fim, na
própria execução de A Internacional, não raro levada adiante pela orquestra (quando
esta se fazia presente nas festas operárias em que a obra era encenada). Por meio do
primeiro frontispício (1923) da cópia com a qual trabalhamos, descobrimos que a
concepção musical da peça ficou sob o encargo de Elias de Magalhães. Foi ele que
musicou os versos de Afonso Schmdit previstos no texto para serem cantados.
Infelizmente, nada sabemos sobre as melodias que Elias de Magalhães produziu para os
diferentes momentos da peça em que a música entra em cena. Tendo em vista o caráter
tristonho dos versos destinados ao canto, podemos apenas supor que, para eles, foram
elaboradas melodias não menos melancólicas.
Uma outra semelhança entre Primeiro de Maio e Ao Relento foi identificada. Em
ambas, muitos personagens são alegóricos e, por isso mesmo, destituídos de
características individuais marcantes. Na obra de Afonso Schmidt, eles se encontram de
madrugada e estabelecem um diálogo marcado muito mais pelo lirismo da obra do que
pelo desenrolar da trama encenada. Como na peça de Pietro Gori, aqui também tais
personagens são apresentados de acordo com as funções que desempenham na
sociedade: o Soldado, o Varredor, o Poeta, o Guarda Noturno etc. Trata-se de
personagens que não revelam suas próprias identidades, apenas deixam entrever suas
posições na hierarquia social. Aliás, nem sequer conhecemos seus nomes. Isso também
ocorre na peça de Pietro Gori.
309

No entanto, não obstante as similaridades entre Primeiro de Maio e Ao Relento,


podemos dizer que as duas obras diferenciam-se no conteúdo específico, assim como na
atmosfera que envolve os personagens (em Ao Relento, muito mais “carregada” do que
em Primeiro de Maio). A atmosfera soturna da obra de Afonso Schmidt manifesta-se
por meio do tom lírico adotado e da constatação reiterada de que a sociedade, em suas
múltiplas relações de dominação e poder, é excludente por excelência: “A sociedade
foge ao supremo dever / De abrir a porta à vida a quem quiser viver”, diz o Poeta na
última cena da peça. Apesar do viés pessimista de sua fala (e da peça como um todo), a
esperança de um mundo melhor não deixa de ser anunciada em cena. Ela se afigura no
final da peça e o seu arauto é, sintomaticamente, o próprio Poeta. É ele quem,
amargurado com as injustiças sociais, anuncia a aurora dos novos tempos: “A terra está
mudada / Olha. Vem despontando, em sangue, a madrugada. / Saudemo-la a cantar...”.
Notemos aqui a presença da metáfora do sangue fecundo, tão cara ao imaginário
construído em torno do 1º. de Maio. Implícita na peça de Gori, na do escritor paulista
essa metáfora apresenta-se francamente.
No que tange aos personagens, é importante ressaltar que, na obra de Afonso
Schmidt, nem todos eram destituídos de características pessoais mais distintas. Os três
maltrapilhos revelam não apenas seus próprios nomes, como também alguns elementos
de suas identidades. João fora ourives e casara-se com uma “mulher gentil, com tranças
de ouro novo!”. Antonio, apesar dos delírios, ao que tudo indica fora padeiro e sempre
possuíra uma “canção na boca” e um “sorriso no olhar”. Pedro, mais arredio, nada
revela sobre sua vida passada. No entanto, sabemos qual foi o seu destino: ele roubou
um pão e acabou preso. Ou seja, se na vida real a sociedade negaria aos três
maltrapilhos qualquer espécie de reconhecimento, na peça, pelo contrário, são eles que
se revelam, dando-nos a conhecer seus nomes e um pouco de suas próprias vidas.
Enfim, o que a sociedade sonegaria (o direito à existência), a peça restitui. Mesmo na
desgraça, os três maltrapilhos possuem nome, história e personalidade.
Outra diferença não desprezível entre as duas obras do teatro anarquista tem a
ver com os ambientes em que se desenrolam os respectivos enredos. Os cenários e os
tempos históricos das duas peças são distintos. Se a trama da obra de Pietro Gori
transcorre em um latifúndio (portanto, na zona rural) e seu tempo não é identificado, em
Ao Relento, pelo contrário, o cenário é urbano e o tempo, ao menos no segundo
frontispício de nossa versão, é expressamente assinalado:“ATUALIDADE”. É verdade
310

que em Primeiro de Maio há a presença de alguns personagens tipicamente urbanos (o


Operário e o Marinheiro, por exemplo). No entanto, os problemas sociais narrados com
mais exatidão na peça (a dura lida no arrozal, cuja descrição Ida faz em uma de suas
falas) e a ênfase na exploração do campesinato, em grande parte encarnada na figura do
Velho, remetem-nos às especificidades da zona rural. Ao Relento, por sua vez, constrói-
se em torno de problemáticas sociais próprias dos centros urbanos. Para além da
presença dos três moradores de rua, os outros personagens também desempenham
papéis que são mais comuns nas grandes cidades do que no campo (o Guarda Noturno,
o Varredor de ruas, os Elegantes que passam pela praça etc.).
Esses personagens apontam para significados específicos que o autor pretendia
conferir à vida urbana. Por meio deles, Afonso Schmidt trabalha com diferentes
dimensões do cotidiano de uma cidade da época. Assim como o Soldado, esses
personagens também são velhos conhecidos dos trabalhadores e mendigos que
circulavam pelas ruas das cidades. Retratá-los significava não só aludir às experiências
concretas vividas no cotidiano urbano, mas, sobretudo, por meio dessas alusões,
possibilitar uma maior interlocução com os espectadores. A representação encenada
dessas diferentes dimensões do cotidiano era um meio de transmitir a mensagem da
peça e, dessa forma, intervir na vida concreta dos espectadores.
Na análise de Primeiro de Maio, vimos que o mundo utópico do Estrangeiro
não estava pronto e acabado, como poderíamos suspeitar. Chegar até ele também não
era assim tão fácil. As imagens de um caminho árduo e tortuoso nada mais são do que a
metáfora das inúmeras lutas que os trabalhadores deveriam enfrentar para alcançar
aquela utopia. No entanto, se as imagens revolucionárias estão implícitas na mensagem
que Pietro Gori transmite em sua peça, em Ao Relento, pelo contrário, essas imagens
são explícitas e inequívocas. Se, no bozzetto drammatico, o caminho para se alcançar o
país utópico é difícil e por vezes perigoso, em Ao Relento, por sua vez, ele é banhado
em sangue. O apelo à união dos trabalhadores na difícil luta pela transformação social
reforça a idéia de conflito, que em Primeiro de Maio existe, mas não se revela de forma
tão explícita. Na obra de Afonso Schmidt, o sonho de redenção está claramente
condicionado à revolução que se anuncia. Só a união dos “excluídos” e o conflito aberto
entre as classes podem levar à eliminação das terríveis iniqüidades sociais.
Significativamente, a peça termina com os versos de A Internacional que conclamam os
trabalhadores de todo o mundo à “luta final”. É claro que a idéia de luta também
311

perpassa toda a peça de Pietro Gori. Mas lá seu caráter é metafórico. Em Primeiro de
Maio, as imagens relacionadas à idéia de luta revestem-se de um conteúdo bem mais
simbólico (mas, nem por isso, menos efetivo). Aqui, em Ao Relento, não há espaço para
dúvida: a mensagem de luta é direta e categórica, o que por certo deve também ter
ajudado a atiçar a sanha persecutória do censor em 1946. A peça de Gori, por sua vez,
com a sua mensagem revolucionária mais sutil, por certo tinha mais chance de passar
incólume pelos crivos dos censores, nem sempre atentos às mensagens subliminares.
Até onde sabemos, a peça de Pietro Gori (a mais encenada do teatro anarquista) nunca
foi censurada. Suas idéias metafóricas e o conteúdo simbólico de suas imagens
provavelmente fizeram com que a peça conseguisse escorregar por entre os dedos dos
censores. É possível que tais recursos de linguagem tenham se constituído como
verdadeiro antídoto contra a censura. Ao Relento, por sua vez, com uma mensagem tão
direta quanto enérgica, não logrou a mesma sorte.
Com seus versos rimados e sua atmosfera melancólica, Ao Relento é, por certo,
uma das mais belas e bem elaboradas peças do teatro anarquista. Não conhecê-la
integralmente seria, de fato, um grande prejuízo. Graças à versão original de A
Vanguarda, disponível no Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp, foi possível restituir
o trecho suprimido pelo censor e devolver à obra sua integralidade.
Por certo, a “fantasia em verso” de Afonso Schmidt apresenta muitas identidades
com Primeiro de Maio, cuja influência não deve ser menosprezada. No entanto, Ao
Relento é uma peça ímpar, com inúmeras características próprias, muitas das quais não
se submetem ao paradigma em que a peça de Gori provavelmente havia se tornado. Na
apreciação de suas relações com as obras estrangeiras, incluindo Primeiro de Maio,
precisamos levar em consideração as especificidades da peça de Afonso Schmidt. As
interlocuções entre a “fantasia em verso” e o bozzetto drammatico abrem espaço para a
compreensão dos complexos mecanismos de apropriação de padrões estilísticos
oriundos da Europa. Até que ponto a produção nacional do teatro anarquista era
influenciada pelos dramas sociais estrangeiros? Como se dava esse diálogo com a
produção de fora? Como os padrões externos eram reconfigurados aqui? Impossível
responder a tais questões nesta pesquisa – até porque, nosso propósito é outro.
Queremos apenas ressaltar que a comparação entre Ao Relento e Primeiro de Maio pode
indicar alguns caminhos de pesquisa para outros estudos, sobretudo no campo da
Literatura.

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