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Eduardo Gramani Hipolide
Eduardo Gramani Hipolide
Eduardo Gramani Hipolide
PUC-SP
MESTRADO EM HISTÓRIA
SÃO PAULO
2012
EDUARDO GRAMANI HIPÓLIDE
SÃO PAULO
2012
Banca Examinadora
_________________________________
_________________________________
_________________________________
À Leisa Alves Ribeiro, pessoa especial que
compartilhou quase todos os momentos desta
pesquisa. A você dedico este trabalho.
AGRADECIMENTOS
Desde já, ficam aqui os meus mais sinceros agradecimentos aos professores do
Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
sobretudo à minha orientadora, Maria do Rosário da Cunha Peixoto, a quem devo tudo o que
possa haver de mais interessante nesta pesquisa. Se não fosse ela, as discussões mais instigantes
deste trabalho talvez não fossem levantadas. Também não posso deixar de agradecer, de forma
especial, às professoras Heloísa de Faria Cruz e Estefânia Knotz Canguçu Fraga. Ambas, em
meio às aulas, apontaram inúmeros caminhos e perspectivas de análise. Às três professoras
expressamente citadas, dedico um profundo respeito e uma admiração inigualável.
Agradeço também às instituições de fomento à pesquisa que me ofereceram as bolsas de
estudo sem as quais não teria condições de levar adiante minha pesquisa. Manifesto aqui minha
gratidão ao Centro Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), cuja bolsa
oferecida no ano de 2011 permitiu que eu me dedicasse integramente aos estudos. Agradeço
também à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pela bolsa
oferecida em 2010. Com ela pude iniciar minha pesquisa sem arcar com as despesas de
mensalidade. Às duas instituições, dedico minha mais sincera gratidão.
Agradeço também à Leisa Alves Ribeiro, uma pessoa especial que incentivou minha
pesquisa desde o início. Foi graças a ela que tomei coragem para entregar o meu Projeto de
Pesquisa à PUC-SP. Foi ela também quem me ajudou na coleta e na análise da bibliografia e das
fontes que utilizei nesta pesquisa. Lendo meus textos, ela indicou alguns caminhos importantes
que depois foram seguidos em meu trabalho. A essa pessoa maravilhosa, ficam aqui os meus
mais sinceros agradecimentos.
Meus pais (Henrique Hipólide Filho e Maria Eliza Gramani Hipólide) também me
auxiliaram o tempo todo nesses dois anos de pesquisa. Nos momentos de maiores dificuldades,
eles estiveram sempre presentes, prestando todo apoio possível aos meus trabalhos. Aos dois,
ficam aqui meus mais sinceros sentimentos de gratidão.
Agradeço também às dicas e sugestões oferecidas por Rose Silveira, uma “criatura”
com experiência e sensibilidade que me auxiliou nos momentos finais e mais difícieis deste
trabalho. A esta pessoa especial, ofereço minha mais sincera gratidão.
Por fim, devo agradecer também a William Romano Filho, um “comunista” de tipo
diferente que, em meio às conversas de botequim, não raramente dedicou uma atenção especial
aos rumos que minha pesquisa vinha tomando. Foi ele também quem ofereceu o “suporte
técnico” desta pesquisa, auxiliando-me com os complicados recursos tecnológicos com os quais
ainda não aprendi a lidar. A este grande amigo, muito obrigado.
RESUMO
Esta pesquisa tem como principal objetivo analisar o teatro anarquista como prática
social do movimento libertário nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Utilizamos como recorte cronológico os anos entre 1901 e 1922, quando os segmentos
anarquistas e sindicalistas revolucionários da classe trabalhadora influenciaram
diretamente o movimento operário. Além de tentar “reconstituir” as trajetórias dos
diferentes grupos amadores que atuaram nas festas operárias, buscamos conhecer
melhor alguns dos sujeitos sociais envolvidos nas atividades daquela dramaturgia.
Convencidos de que aquele teatro estabelecia inúmeras interlocuções com os segmentos
libertários da classe trabalhadora, pretendemos analisar as atividades dos grupos
amadores em suas relações com outras práticas sociais que também constituíam o
movimento operário de cunho anarquista e/ou sindicalista revolucionário. Portanto, a
abordagem que fizemos das peças encenadas nas festas operárias buscou sempre ir além
de um enfoque meramente estrutural. Nosso objetivo foi encarar o sentido político
daquelas obras e as possíveis ressonâncias de seus conteúdos específicos nas páginas da
imprensa operária. Além dos textos teatrais, tivemos de investigar os indícios
fragmentários que aquela imprensa traz sobre as práticas teatrais e sobre as ideias-
imagens veiculadas pelas obras que compõem o corpus de nossa pesquisa. Buscamos o
tempo todo analisar o teatro anarquista como parte constituinte do complexo
movimento libertário no início do século XX. Nessa perspectiva, as atividades em torno
daquele teatro adquiriram um caráter ativo e dinâmico. Sendo assim, tanto as peças
quanto as encenações foram aqui abordadas como intervenções diretas no seio do
movimento organizado da classe trabalhadora.
This master dissertation is about the Anarchist Theater in Rio de Janeiro and São Paulo,
between 1901 and 1922. The main objective to conduct this study is to analyze theater
as a social practice of the libertarian movement occurred in those important Brazilian
cities. The clip shown here chronologically covers the period when libertarian segments
of the working class directly influenced the labor movement. In an attempt “to
reconstruct” the trajectories of different amateur groups who played in worker’s parties,
we seek in this research to find out about some of the subjects involved in those
dramatic activities. Sure that the anarchist theater established dialogues with numerous
libertarian segments in the working class, we analyze the relationships between the
activities of amateur theater groups with other social practices of the anarchist labor
movement trend, or socialist revolutionary, who also constituted the movement in that
period. The focus of the approach to the plays that were staged in the worker’s parties
was not confined to mere structural analysis of that. Our focus was to face the political
meaning of such plays and the possible resonance of the specific content of these texts
on the pages of the Press Working. In addition to the theater texts, we also investigate
the fragmentary evidences of what the Press working brought about the theater practices
and about the ideas-images conveyed by the works that comprise the corpus of this
research. Our continuous effort was not to lose sight of the focus in this research that is
the analysis of Anarchist Theater as constituent part of the complex labor movement in
the early 20th Century. From this perspective, the activities around that theater acquired
a dynamic and active character. Thus, both, scenarios and plays were discussed here as
direct interventions within the organized movement of the working class.
Imagem 11. Ilustração veiculada nas edições de A Lanterna dos anos de 1912 e 1913.
Arquivo Edgard Leuenroth, UNICAMP-SP. ________________________________236
Imagem 12. Charge publicada em A Lanterna no dia 1º. de julho de 1911. Arquivo
Edgard Leuenroth, UNICAMP-SP. _______________________________________236
INTRODUÇÃO_____________________________________________________________12
PARTE I – PRÁTICAS TEATRAIS E CONCEPÇÕES DE ARTE __________________35
CAMINHOS E DESCAMINHOS DO TEATRO AMADOR________________________37
1.1. Os grupos relâmpagos – poucas informações _____________________________37
1.2. São Paulo e Rio de Janeiro – diferentes repercussões na imprensa operária____45
1.3. Reuniões e ensaios ____________________________________________________50
1.4. As experiências do teatro amador: um eixo e algumas ramificações ___________52
1.4.1. Os vínculos com o movimento operário e as possíveis tensões entre “doutrina” e
“prazer descomprometido” ________________________________________________53
1.4.2. Os nobres propósitos e os apertos orçamentários _________________________60
1.4.3. A difícil tarefa de organizar uma festa e o curioso prazer das formalidades ___64
1.4.4 Novas dicotomias... __________________________________________________68
1.4.5. O Grupo Teatro Social e o Grupo Teatro Livre: imbricações, um entreato e
muitas confusões ________________________________________________________76
1.5. Os amadores e suas perambulações _____________________________________80
1.6. Recapitulando _______________________________________________________84
1
Para uma abordagem sucinta sobre a produção acadêmica a respeito do movimento operário, ver Paoli,
Maria Célia; Sáder, Eder e Silva Telles, Vera da. Pensando a classe operária: os trabalhadores sujeitos
ao imaginário acadêmico. In: Revista Brasileira de História, vol. 3 (no. 6).
2
Sobre a noção de “popular” que ora utilizo, ver capítulo intitulado Notas Sobre a Desconstrução do “Popular” em
Hall, Stuart. Da Diáspora – Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2009. Nesse artigo,
o autor analisa o contexto – entre fins do século XIX e início do XX - em que a indústria cultural exerceria uma
influência crescente sobre a cultura popular como um todo. Para ele, um dos principais efeitos desse fenômeno foi “a
reconstituição das relações políticas e culturais entre as classes dominantes e dominadas” (p. 234). Com essa
mudança engendrada pela nova indústria cultural, torna-se difícil (senão mesmo impossível) analisar a cultura da
classe trabalhadora como algo “autêntico”, isolado, “puro”. Por isso, para Stuart Hall, encarar a cultura das classes
populares exclusivamente a partir de seu interior, sem levar em consideração as relações complexas que ela
estabelece com as “instituições da produção cultural dominante, não é viver no século vinte” (pp. 236/237). É com
essa definição de “cultura popular” que trabalharei em minha pesquisa.
13
percebi que seria necessário abordar os conteúdos de algumas das peças encenadas nas
próprias festas operárias. Estava já convencido de que o teor (ideológico e cênico) de
cada peça indicaria a construção de alguns sentidos sociais específicos; sentidos que,
diga-se de passagem, eram partes constituintes do universo cultural em que se inseria o
teatro que desejava estudar. Enfim, cada vez mais em contato com o tema, percebi que,
ao menos em parte, as práticas sociais em torno do teatro anarquista - assim como as
peças que constituíam aquele teatro - ajudar-me-iam a entender melhor a complexa
construção de significados sociais e ideológicos avocados por uma parcela bem atuante
do movimento operário de então.
Como primeiro passo, entrei em contato com algumas das peças encenadas nos
palcos das festas operárias dos primeiros anos do século passado. Tais obras foram
reunidas, no final dos anos 70, por Maria Thereza Vargas e Mariângela Alves de Lima,
pesquisadoras do extinto Idart (Departamento de Informação e Documentação
Artística). Hoje, tais peças encontram-se disponíveis para pesquisa no Arquivo
Multimeios do Centro Cultural de São Paulo. O acervo reunido pelas duas
pesquisadoras totaliza 39 títulos, muitos dos quais em italiano. Das obras em língua
portuguesa (pouco mais da metade), algumas surgiram em um período não abarcado
nesta pesquisa. Para as demais (aproximadamente 20), voltaram-se a partir de então as
minhas atenções.
A leitura de algumas dessas peças suscitou-me indagações sobre as atividades
teatrais da classe trabalhadora. Como se organizavam os grupos teatrais que encenavam
essas obras? Quais as dificuldades por eles enfrentadas? Tais encenações eram
assistidas por muita gente? Como atuavam aqueles atores operários? Além disso, senti a
necessidade de entender melhor as relações que aquelas obras estabeleciam com o
universo social no qual elas eram encenadas – as festas operárias e, por extensão, o
próprio ambiente militante da época. Os problemas enfrentados pela classe trabalhadora
e seu movimento organizado manifestavam-se de alguma forma naquelas peças de forte
cunho ideológico? De que forma? Foi em busca de respostas para tais questões que eu
resolvi procurar, para além dos textos teatrais, notícias sobre as encenações daquelas
peças. Desejava também entender melhor como se organizavam aquelas festas no
interior das quais as ditas peças eram representadas.
Foi então que me debrucei sobre os apontamentos realizados por Maria Thereza
Vargas e Mariângela Alves de Lima em 1977. Teatro Operário na Cidade de São
14
Paulo, obra pioneira das duas autoras, foi um estudo financiado pelo Idart no final dos
anos 70 do século passado. Nele, além de comentários gerais sobre as peças com que
trabalharia, há também transcrições de anúncios de festas e de artigos sobre o teatro
amador publicados na imprensa operária de São Paulo no início do século XX. É uma
importante fonte de informações que traz ainda algumas abordagens a respeito dos
conteúdos e dos padrões estéticos das peças do teatro anarquista.
Por meio dessa obra, pude notar que a imprensa operária traria subsídios
importantes para a minha pesquisa. Percebi que, para responder às minhas indagações,
precisaria pôr frente a frente os conteúdos das peças e as informações que aquela
imprensa apresenta. Na época em que elaborava meu projeto de Mestrado, fui algumas
vezes ao Arquivo Edgard Leuenroth, na Unicamp, onde se encontra o maior acervo de
imprensa operária do estado de São Paulo. Realizei então uma rápida investigação sobre
alguns periódicos paulistanos daquela imprensa.
Sendo assim, diante da relativa escassez de fontes em São Paulo, resolvi propor
à minha orientadora que ampliássemos o recorte territorial de nossa pesquisa, abarcando
também, além de São Paulo, a cidade do Rio de Janeiro. Chegamos à conclusão de que
não haveria problemas metodológicos maiores a ser enfrentados por causa dessa
ampliação. Isso porque, em primeiro lugar, o padrão das festas operárias de São Paulo
era muito parecido com o do Rio de Janeiro. Segundo: a mobilização dos trabalhadores
na então Capital de nosso país era também intensa. Não obstante a forte presença
reformista no movimento operário carioca 3, a influência das idéias libertárias também
era marcante naquela cidade. Em terceiro lugar, as peças encenadas em São Paulo eram,
no mais das vezes, as mesmas encenadas no Rio. E, por fim, muitos dos sujeitos sociais
que compõem nossas narrativas transitaram entre São Paulo e Rio com certa freqüência;
alguns deles, inclusive, atuaram no teatro tanto aqui quanto lá. Por tudo isso, essa
ampliação de nosso recorte territorial não trouxe conseqüências prejudiciais à pesquisa;
pelo contrário, apresentou um leque mais amplo de possibilidades e indagações.
Se nosso recorte de território foi mudado, no entanto, as balizas temporais
mantiveram-se praticamente as mesmas que apareciam em meu projeto. Iniciamos
nossos estudos no ano de 1901 porque foi nele que, pela primeira vez em São Paulo,
subiu ao palco a peça Primeiro de Maio, de Pietro Gori. Tal obra, na definição de Jayme
Cuberos, era a “Paixão de Cristo” do anarquista4 - ou, como preferem Maria Thereza e
Mariângela Alves, ela foi o “carro-chefe” da dramaturgia libertária. Nosso recorte
temporal termina em 1922, quando foi à cena pela primeira vez (em São Paulo e no
Brasil) a peça Ao Relento, de Afonso Schmidt. Assim como Primeiro de Maio, de
Pietro Gori, Ao Relento estrutura-se como um poema dramático em um ato só. O tom
lírico e as características emblemáticas dos personagens são traços que aproximam as
3
A respeito da influência “reformista” entre o operariado carioca, ver Pinheiro, Paulo Sérgio. O proletariado
industrial na Primeira República. In.: Fausto, Boris (org.). O Brasil Republicano – Sociedade e Instituições (1889-
1930); Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil, 2004; p.163. Para Paulo Sérgio Pinheiro, o caráter específico da classe
operária carioca talvez se devesse à sua proximidade física “com o governo e os centros vitais do aparelho de
Estado”. Ver também Batalha, Cláudio. O Movimento Operário na Primeira República; Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Editor, 2000; pp. 31-32. Tal obra de Batalha questiona inclusive um posicionamento que o próprio autor adotara em
seus trabalhos anteriores. Se antes ele utilizava abertamente o termo “sindicalismo amarelo”, aqui ele preferiu a
expressão “sindicalismo reformista”. Nessa obra mais recente, o autor justifica a escolha afirmando que “sindicalismo
amarelo” seria uma designação “que indicava no caso francês um sindicalismo estimulado e financiado pelos patrões
(fenômeno que no Brasil foi extremamente marginal, reduzido ao caso de algumas associações beneficentes de
empresas)”. Ver também Fausto, Boris. Trabalho Urbano e Conflito Social. São Paulo, Difel, 1986. Fausto, nessa
obra, prefere a expressão “trabalhismo carioca”.
4
Ver, no Arquivo Multimeios (CCSP), relato de Jayme Cuberos em P318/AC – TR 1067 (entrevista com artistas do
Centro de Cultura Social). “Era uma peça que era necessária para comemorar. Se comemorava o Primeiro de Maio e
tinha essa peça. Era tradicional. Se levava a peça fatalmente. Era a mesma coisa que a `Paixão de Cristo´, na Semana
Santa. A `Paixão de Cristo´ do anarquista era o Primeiro de Maio.”
16
5
Castello, Aderaldo e Candido, Antonio. Presença da Literatura Brasileira – do Romantismo ao Simbolismo; São
Paulo, Difel, 1974, p.89.
6
Para uma breve diferenciação entre anarquismo e sindicalismo revolucionário, ver em Toledo, Edilene. Anarquismo
e Sindicalismo Revolucionário – Trabalhadores e Militantes em São Paulo na Primeira República; São Paulo,
Editora Fundação Perseu Abramo, 2004, capítulo intitulado Entre o anarquismo e o sindicalismo (pp. 41- 53). Para a
autora citada, os anarquistas pregavam “uma sociedade organizada por livres associações e federações de produtores
e consumidores, formadas e modificadas segundo a vontade dos associados, guiados pela ciência e pela experiência e
livres de toda imposição que não derivasse das necessidades naturais” (pp.42,43). Já o sindicalismo revolucionário
“aceitava e defendia a luta cotidiana por melhorias, mesmo que a linguagem fosse revolucionária, e era um esforço
para atenuar divergências que dividiam os operários, ou seja, era um fator de unificação importante” (p. 53). Não
obstante as diferenciações ideológicas visíveis no seio do movimento operário de então, é importante salientar desde
já que não levaremos muito a sério segmentações excessivamente rígidas na análise das trajetórias dos sujeitos com
os quais trabalharemos em nossa pesquisa. Isso porque, como o próprio estudo de Edilene Toledo acaba
17
Além das peças mencionadas acima, selecionamos outras quatro para compor o
corpus da pesquisa. Ao todo foram seis as obras escolhidas dentre aquelas que Maria
Thereza Vargas e Mariângela Alves de Lima recolheram no final dos anos 70. Os
critérios de seleção por nós adotados para a escolha dessas peças, em detrimento das
outras, referem-se basicamente a dois motivos principais: primeiramente, a recorrência
de seus títulos nos anúncios da imprensa operária (ou seja, foram encenadas com certa
freqüência nas festas de propaganda e nos festivais organizados pelas ligas de
resistência, sindicatos e órgãos da imprensa operária). Em segundo lugar, e para além do
“sucesso” alcançado, selecionamo-nas por causa das questões importantes que elas nos
permitem levantar sobre as práticas sociais do movimento operário de então. Foram
esses dois critérios que modularam no momento da escolha das peças que compõem o
nosso corpus – ora um, ora outro predominou na seleção. Mas os dois,
7
concomitantemente, tiveram relevância nesse difícil processo de escolha.
No entanto, é importante ressaltar que a centralidade que tais obras apresentam
neste estudo não exclui abordagens pontuais de outras peças também encenadas
naquelas festas. Portanto, mesmo que algumas peças não sejam analisadas de forma
mais detida, nem por isso elas estão descartadas de antemão. Serão freqüentes as
menções a algumas delas nesta pesquisa.
As festas
Antes de mais nada, precisamos tecer um breve comentário sobre os eventos
dentro dos quais as peças do teatro anarquista eram encenadas. Acreditamos que só
assim poderemos, depois, entender melhor suas características.
reconhecendo, existia no interior do movimento operário da época uma enorme fluidez de idéias e os próprios
militantes transitavam de uma ideologia à outra “sem que isso fosse experimentado como falta de coerência” (p.120).
Em muitos momentos de nossa pesquisa não levaremos em consideração essas diferenciações mais rígidas, chamando
quase sempre os militantes com os quais lidaremos de “anarquistas”.
7
Brevemente citamos agora as peças que compõem o corpus da pesquisa. Como dito acima, nosso recorte
cronológico inicia-se com a data em que, pela primeira vez em São Paulo, foi à cena a peça Primeiro de Maio, de
Pietro Gori. Quase tão encenada quanto ela era a peça O Pecado de Simonia, de Neno Vasco, representada pela
primeira vez, em São Paulo, no dia 14 de julho de 1907. Outra comédia de Neno Vasco recorrente nas festas de
propaganda era Greve de Inquilinos. Electra, de Pérez Galdós, outra peça anticlerical, entrou em nossa pesquisa
porque estamos convencidos de que O Pecado de Simonia faz alusão a ela. Ainda na análise que fizemos da peça
anticlerical de Neno Vasco, achamos necessário fazer alguns comentários pontuais sobre a peça A Bandeira
Proletária, de Marino Spagnolo, que estreou nos palcos das festas operárias no segundo semestre de 1922. Por fim,
fechando nosso recorte cronológico, a escolha que fizemos recaiu sobre a “fantasia em verso” Ao Relento, de Afonso
Schmidt.
18
8
Ver Foot Hardman, Francisco. Nem pátria, nem patrão. São Paulo, Editora Unesp, 2002, p. 25.
19
foot-ball – esporte que, assim como o baile, sofreu críticas violentas por parte de alguns
militantes da imprensa operária 9.
Poderíamos dizer que os novos festivais foram o “triunfo do lúdico” nas festas
operárias? Para Francisco Foot Hardman, sim. Segundo ele, enquanto a festa de
propaganda, de caráter “doutrinário”, ligava-se a uma determinação dos “núcleos
diretivos”, o festival, sob a forma de espetáculo, seria muito mais “uma determinação da
classe”10. Tal enfoque sedutor, no entanto, merece uma análise mais atenta. Sem deixar
de considerar as evidentes distinções entre “movimento” e “classe”, ou entre “núcleos
dirigentes” e “bases”, o desafio a ser enfrentado em nossa pesquisa será o de evitar
segmentações muito rígidas entre esses dois pólos no contexto analisado – ou seja, o do
teatro anarquista e o das festas operárias em geral. Separar de forma esquemática os
grupos que influíam no processo de configuração das festas levar-nos-ia a reduzir os
sujeitos que dele participavam a modelos previamente estabelecidos de comportamento
- “núcleos dirigentes” querendo uma coisa, “público” querendo outra. Depreende-se da
análise atenta das fontes que até militantes que condenavam as atividades mais lúdicas
estavam sim atentos a elas. Podemos afirmar, sem risco de exagero, que mesmo esses
militantes não só utilizavam essas atividades para seus propósitos, como também (em
alguma medida) as valorizavam.
Quanto aos padrões da festa, o próprio Foot Hardman atenta para o problema de
esquematizarmos demais suas diferenciações. Segundo o autor citado, essas
diferenciações talvez não fossem muito claras na época. Muitos jornais da imprensa
operária divulgaram, como festivais, eventos realizados em salões fechados e com
programações típicas das festas de propaganda. No geral, os festivais de São Paulo
divulgados por A Plebe a partir de 1917 eram realizados, em grande parte, em salões
como o Celso Garcia (situado então na rua do Carmo, nº. 39) e o pertencente à
Sociedade de Beneficência Guglielmo Oberdan (na então rua Brigadeiro Machado, n º.
5), ambos intensamente utilizados no período anterior (das festas de propaganda). No
caso do Rio de Janeiro, tais festivais eram freqüentemente realizados ainda no salão do
Centro Galego, situado na Rua Visconde do Rio Branco, nº. 55 e bastante utilizado já
para as festas de propaganda do período anterior a 1917. Ou então, os grupos cariocas
de teatro amador utilizavam o palco da sede da Resistência dos Cocheiros, situado na
9
Ver, a respeito, severo comentário de Sejo Costa em A Plebe do dia 30 de outubro de 1917.
10
Ver Foot Hardman, Francisco, op. cit. p. 54.
20
O teatro
Segundo Antonio Arnoni Prado, as obras encenadas pelos grupos amadores
operários eram, de uma forma geral, caracterizadas pela “brevidade do episódio”, pela
“simplificação da trama” e pela “clareza da mensagem”. Isso porque seu objetivo
principal era apresentar um conteúdo pedagógico e exemplar 11. Para Maria Thereza
Vargas e Mariângela Alves de Lima, esse teatro preocupava-se, sobretudo, com a
“clareza na transmissão de uma idéia”. Para tanto, reproduzia uma “visão binária que
não exige uma caracterização complexa”, nem do contexto nem dos personagens 12.
Muitas vezes, as peças com as quais trabalhamos apresentavam personagens alegóricos,
emblemáticos, destituídos de características individuais marcantes. Nem sempre se
preocupavam com problemas específicos – particulares – e sim com a situação de
exploração em que viviam os trabalhadores – fossem eles operários, artesãos, soldados
ou camponeses. O importante em tais peças era a transmissão de uma idéia geral de
libertação; idéia que os militantes libertários desejavam divulgar aos trabalhadores.
Ao analisar de perto algumas das peças desse teatro, perceberemos que as
caracterizações que acabamos de ver devem, em alguns momentos, ser relativizadas –
quando não mesmo questionadas profundamente. É claro que as definições criadas pelos
autores acima mencionados contribuem bastante para que possamos entender melhor
essas peças. No entanto, tais definições não devem engessar nossas análises. De
maneira alguma as utilizaremos como dogmas esquemáticos, visando, por meio deles, a
busca de soluções fáceis para a abordagem dessas obras. Estas, como veremos ao longo
da pesquisa, são às vezes mais complexas do que os teóricos propugnam.
Muito já se disse a respeito do caráter simplório, até mesmo maniqueísta, desse
tipo de obra com que trabalhamos. Foram muitas as críticas - dentro e fora dos círculos
militantes - que surgiram contra esse tipo de produção “panfletária”. Os críticos
questionam inclusive a própria eficácia do projeto de “conscientização” que tais
11
Ver Prado, Antonio Arnoni. Trincheira, Palco e Letras; São Paulo, Cosacnayf, 2004; pp.161, 162.
12
Ver Alves de Lima, Mariângela e Thereza Vargas, Maria. Teatro Operário na Cidade de São Paulo. Laboratório
do Idart, 1980, p. 25.
21
13
Para uma breve análise dessas críticas, ver, por exemplo, o conceito de “obras de tese” em Serge, Victor. Literatura
e Revolução. São Paulo, 1989. Editora Ensaio; pp. 33-36. Esse autor questiona, dentre outras coisas, a suposta
“qualidade inferior” dessas “obras de tese” – assim como a “confusão”, inerente a elas, entre agitação (propaganda) e
literatura. Sobre o papel das obras de arte na luta social e a possível função das instituições sociais na produção
artística, ver Lukács, Georg. Marxismo e Teoria da Literatura. Rio de Janeiro, 1968, Civilização Brasileira, p. 273.
14
Benjamin, Walter. Obras Escolhidas – Magia e Técnica, Arte e Política.Editora Brasiliense, São Paulo, 1996.
15
Ibid.; p.132.
16
Uma lista pequena com os nomes de grupos teatrais que atuaram no curto período que estudamos é por si só
eloqüente. Mostra-nos que esse trabalho coletivo de escritores-produtores teve sim repercussões enormes no seio da
classe trabalhadora. Citaremos apenas alguns dos que mais se destacaram: Nucleo Filodrammatico Libertario /
Grupo Filodrammatico “L´Attore Infantile” / Grupo Filodramático Social / L´Attore Giovanile / Amantes del
Progresso / Grupo Teatral Trabalhadores Livres / Grupo Dramático Anticlerical / Grupo Dramático Cultura Social /
Circolo Maria Falcão / Grupo Dramático Teatro Social (houve três diferentes grupos com este nome)/ Pensamento e
Ação / Grupo Dramático Maximo Gorki / La Propaganda / Grupo Filodramático anexo ao Centro de Estudos Sociais /
Giovanni Bovio (filósofo e político republicano do Risorgimento italiano)/ Societá Filodrammatica Studio e Diletto /
Grupo Dramático 13 de Outubro / Centro Filodramático de São Paulo / Grupo Dramático Libertário Mario Rapizardi
22
As matrizes culturais
Voltemos às críticas dos detratores que mencionamos acima. Elas, no mais das
vezes, enveredam para uma discussão acerca da estrutura textual e dos aspectos formais
da produção dita “engajada”. No interior dessa discussão está muitas vezes a
preocupação em saber se obras como as que estudamos seriam ou não “verdadeiras”
obras de arte. Levar adiante tal problema requer uma análise de teoria estética que, em
razão de nossos objetivos no campo da história social, não pretendemos desenvolver17.
Pensamos que, para além das considerações exclusivamente estéticas, cabe aqui
indagarmos a respeito das matrizes culturais que originaram esse tipo de dramaturgia (o
teatro anarquista). São tais matrizes que, em alguma medida, configurarão o padrão de
produção das obras que analisaremos.
Foi em busca de tais matrizes que pudemos notar, no âmbito das táticas de
divulgação da ideologia anarquista, uma rica apropriação, por parte de nossos
militantes, de inúmeras práticas culturais de origem popular. Segundo Jesús Martin-
Barbero, os anarquistas foram capazes de estabelecer relações importantes com a cultura
popular, instrumentalizando-a no processo de lutas cotidianas e, assim, valorizando-a –
mesmo que às vezes de forma não tão explícita. O autor ressalta que, nesse processo de
instrumentalização, são incorporados elementos da cultura popular como “as coplas e
os romances de folhetim, os evangelhos, a caricatura ou a leitura coletiva dos
periódicos”18 - enfim, tudo aquilo que, numa visão segmentada da cultura, seria o
oposto do “erudito”. Nesse processo de instrumentalização da cultura popular, surge
então uma “nova imagem” no âmbito dessa relação entre o povo e a cultura. Para
Martin-Barbero, “um primeiro traço-chave dessa imagem é a lúcida percepção da
cultura como espaço não só de manipulação mas também de conflito, e a possibilidade
então de transformar em meios de liberação as diferentes expressões ou práticas
(poeta italiano do Risorgimento) / Academia Dramática Brasileira / Centro de Cultura Social Dramática Jovenes
Incansables / Grupo Filodramático Cultura Moderna / Grupo Dramático Francisco Ferrer / Grupo Dramático Emilio
Zola / Grêmio Dramático Luzitano / Grupo Filodramático Libertas / Grupo Dramático Joaquim Dicenta (dramaturgo
espanhol) / Grupo Dramático Os Modestos / Grupo Dramático Pierrot / Grupo Dramático Amor e Mocidade / G. D.
Amadores d´Arte / Grupo Filodramático Solidariedade. Atenção: além dos excluídos desta lista incompleta, havia
inúmeros outros grupos anônimos que atuavam vinculados aos órgãos da imprensa operária ou aos sindicatos e ligas
de resistência. Por não possuírem nomes próprios, também ficaram excluídos desta modesta lista.
17
Não queremos com isso descartar a importante análise das concepções estéticas dos anarquistas do período que
estudamos, objeto de análise de nosso segundo capítulo. No entanto, na tentativa de compreender tais concepções,
utilizaremos as ferramentas conceituais próprias da história social, não as da teoria estética.
18
Martin-Barbero, Jesús. Dos meios às mediações – comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora
UFRJ, 2009, p.44.
23
culturais”19. Segundo Martin-Barbero, essa nova concepção seria responsável por uma
política cultural voltada para a promoção de instituições de educação operária. No
interior desse projeto maior de educação poderíamos incluir, sem risco de exagero, as
festas operárias – assim como, é claro, o teatro que as constituía.
Ainda em contato com a obra já citada de Martin-Barbero, pudemos identificar
duas matrizes culturais a que o teatro anarquista possivelmente se remete: o melodrama
e o folhetim. O primeiro, segundo Martin-Barbero, apresenta uma estrutura que sacrifica
a complexidade da trama em favor da intensidade. Assim como as peças do teatro
anarquista, o melodrama apresenta personagens com características emblemáticas – “o
Traidor, o Justiceiro, a Vítima e o Bobo”. Ainda como nas peças daquele teatro, o
melodrama – segundo o autor citado - põe em funcionamento “duas operações”
sistemáticas e recorrentes: a “esquematização” e a “polarização”. A primeira é
“entendida pela maioria dos analistas em termos de ausência de psicologia´” 20. Ou seja,
os personagens do melodrama também são destituídos de complexidade subjetiva. A
segunda operação – intimamente relacionada com a primeira – refere-se à “polarização
maniqueísta”. De acordo com ela, os personagens apresentariam um plano de ação
previsível – seriam ou bons ou maus, ou puros ou irremediavelmente corrompidos.
Ainda na esteira de Martin-Barbero, devemos considerar como segunda matriz
do teatro anarquista os mais do que populares romances de folhetim. Sucessos
estrondosos a partir de meados do século XIX, os folhetins impulsionaram os meios de
comunicação de massa e estabeleceram “um novo modo de comunicação entre as
classes”21. Aqui também, nos enredos folhetinescos, verificamos uma separação rígida,
numa “perspectiva vertical”, entre heróis e vilões, suprimindo qualquer possibilidade de
ambigüidades que sejam a expressão de uma maior complexidade psicológica. Assim
como no melodrama (e, por extensão, nas peças do teatro anarquista), vemos no
folhetim uma certa pressão no sentido de fazer com que o receptor (no caso, o leitor)
tome uma posição diante dos personagens e da trama desenvolvida. Como veremos em
nossa pesquisa, as peças com que lidamos também apelam para o posicionamento dos
espectadores. Por tudo isso, pensamos que não seria incorreto relacioná-las com os
padrões culturais do melodrama e do folhetim. Tais associações (ou, se preferir,
imbricações) serão em alguma medida mencionadas no decorrer da pesquisa.
19
Ibid., p.44.
20
Ibid., p.168.
21
Ibid., p.176.
24
Experiência e classe
Para melhor compreender esse intricado processo de constituição social,
lançamos mão dos conceitos de experiência e, subsidiariamente, de classe – ambos
muito bem trabalhos por E. P. Thompson. No que se refere ao primeiro (conceito de
experiência), foi com ele que o autor britânico pretendeu analisar as complexas
correspondências verificadas na interação dos sujeitos com “suas situações e relações
produtivas determinadas”23. Evitando abstrações generalizantes e reducionismos em
excesso, Thompson tratou a experiência humana como um conjunto multifário e
contraditório de inserções dos sujeitos no interior das relações produtivas. Para ele, tais
inserções não ocorrem de forma mecânica e direta. Passam, pelo contrário, pela
“consciência” e pela “cultura” desses mesmos sujeitos. Estes, por sua vez, ao atribuírem
significado a tais relações, agem sobre a situação em que se encontram nem sempre (ou
quase nunca) de forma previsível ou unívoca; mas, nem por isso, suas ações seriam
“inconscientes” ou “instintivas”.
É por meio desse conceito que podemos minimamente encarar, por exemplo, a
grande profusão de idéias divulgadas entre os diferentes segmentos do movimento
operário da época (ou seja, o caráter difuso das ideologias professadas por aqueles
militantes). Com esse conceito de experiência, podemos também abordar com mais
acuidade as diferentes práticas sociais levadas adiante pelo movimento operário da
época e os complexos mecanismos de construção de significados engendrados por
aquele mesmo movimento.
Ora, se nas peças do teatro anarquista vislumbramos um amplo leque de valores
e concepções, se tais valores e concepções estabeleceram certos padrões identitários e
contribuíram para a construção de uma imagem própria para alguns setores da classe
trabalhadora, é o conceito de experiência em Thompson que nos ajudará a entender
melhor como se deu o complexo processo de construção daquela auto-imagem; auto-
imagem que os segmentos organizados avocavam para si e, em alguns casos, atribuíam
também à classe trabalhadora como um todo. Diante da enorme complexidade das
23
Para a noção de experiência humana, ver Thompson, E. P. Miséria da Teoria ou Um Planetário de Erros. Rio de
Janeiro, Zahar Editores, 1981; p.182.
26
24
Para tal noção de classe, ver Thompson, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa – A Árvore da Liberdade
(vol. I). Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1987; pp. 9, 10.
25
Sobre a noção de classe em Mike Savage, ver Batalha, Cláudio H. M.; Silva, Fernando Teixeira da e Fortes,
Alexandre (org.). Culturas de Classe. Campinas, Editora da UNICAMP, 2004; cap. 1.
26
Ibid., p.26.
27
ele vista muitas vezes como estéril, entre os defensores da “guinada cultural” (cultural
turn) e os partidários da abordagem marxista ou neomarxista. Apesar de enfocar os
reducionismos nas análises de alguns defensores da “guinada cultural”, Mike Savage
ressalta também os graves equívocos cometidos por aqueles que insistem em utilizar as
noções “costumeiras do conceito de classe” (provenientes de uma visão mais
“ortodoxa” do marxismo clássico). Criticando aqueles que se entrincheiram na defesa
do “status quo intelectual”, o autor faz um apelo aos historiadores do trabalho para que
repensem seus objetos, de maneira a enfrentar os novos desafios encetados pelas
abordagens mais recentes da historiografia.
Situando melhor as abordagens teóricas em torno do conceito de classe, Mike
Savage distingue dois diferentes campos de análise: o de origem marxista e aquele
tributário das abordagens de Max Weber. O primeiro enfatiza a questão econômica
como fundamento das discussões e situa a noção de classe no interior das relações de
produção. O segundo (de origem weberiana), enfatiza as relações de mercado e “adota
uma abordagem multifacetada da estratificação social, discernindo classe, estamento e
partido”27. De acordo com Savage, enquanto o primeiro campo torna as fronteiras
sociais de classe rígidas demais, o segundo seria excessivamente vago, tornando
praticamente impossível o delineamento claro de seus limites.
Sem descartar de forma imprudente a noção de classe, o autor citado pretende
“contornar os reducionismos” das duas abordagens anteriores. Para ele, é preciso
analisar a formação da classe operária no âmbito de suas complexas e contraditórias
relações internas. Só assim superaríamos a visão homogeneizadora de classe sem cair
no vazio teórico proposto por aqueles historiadores que só enxergam dissensões,
disjunções e disputas nas relações entre os trabalhadores. Para Savage, com tal
perspectiva, conseguiríamos analisar melhor a grande variedade de culturas e atitudes
no interior da mesma classe social, explorando “as complexas mediações entre a
diversidade dos fenômenos econômicos, culturais e sociais” 28. Pensamos que tal
perspectiva de análise está de acordo com as intricadas redes de relações que
conseguimos vislumbrar no seio da classe operária – assim como do movimento que a
constitui – no contexto analisado em nossa pesquisa. Sem embargo, é com essa
perspectiva que trabalhamos.
27
Ibid.; p. 31.
28
Ibid.; p.34.
28
Os eixos
Antes de fazer um esboço dos capítulos de nossa pesquisa, teceremos algumas
considerações sobre a estrutura que a configura. Ou seja, primeiro apresentaremos os
eixos temáticos que delinearam nosso trabalho para depois abordar a divisão dos
capítulos.
A análise do papel que o teatro (como prática social específica) desempenhava
no interior do movimento operário anarquista (e/ou sindicalista revolucionário) -
ressaltando seu caráter popular e de propaganda - deve constituir o eixo central de nossa
pesquisa. Dedicaremos dois capítulos específicos exclusivamente à investigação do
teatro – e, por extensão, da arte - como prática social daquele movimento29. Para tanto, a
imprensa operária oferece-nos inúmeros anúncios, artigos sobre arte e teatro e notícias
sobre as encenações realizadas por alguns grupos teatrais.
Por meio dos anúncios, podemos acompanhar (mesmo que de forma descontínua
e fragmentária) as trajetórias dos grupos de amadores que atuavam em São Paulo e no
Rio de Janeiro. Muito nos auxiliará nessa investigação das trajetórias uma importante
obra de Edgar Rodrigues intitulada Os Companheiros. Nela, o memorialista oferece
uma pequena biografia de alguns militantes anarquistas que ele considerava importantes
para o movimento. Muitos desses militantes atuaram nos grupos de teatro com os quais
trabalhamos. Ao todo, pudemos identificar, na obra do autor citado, aproximadamente
cem artistas amadores, muitos dos quais, de alguma forma, irão compor a nossa
narrativa.
Já os artigos e notícias da imprensa anarquista permitem-nos perceber duas
coisas: primeiramente, como os órgãos daquela imprensa encaravam a prática social em
torno do teatro (qual deveria ser sua função, qual o teor ideológico atribuído a ela, como
ela deveria se diferenciar da prática engendrada pela produção “burguesa”, quais as
concepções estéticas apregoadas etc.); em segundo lugar, como os grupos amadores se
relacionavam com aquela (s) concepção (ões) veiculada (s) pela imprensa operária - até
que ponto aqueles grupos estavam ou não de acordo com essa (s) concepção (ões). A
aproximação (ou não) desses grupos em relação àquela (s) concepção (ões) transparece
no próprio tom utilizado pelos articulistas quando comentam obras e encenações. Ficar
atento a tais comentários permitir-nos-á enfocar as freqüentes tensões e divergências
29
O fato de dedicar a esse eixo central dois capítulos próprios não exclui a sua recorrência nos demais capítulos –
caso contrário, não seria ele um “eixo central”.
32
30
Toda encenação envolve recursos cênicos. Com relação a estes últimos, cabe aqui ressaltar uma dificuldade
encontrada ao longo de toda a pesquisa: a falta incurável de informações para além do próprio texto da peça. Os
principais elementos de que dispomos para enfocar a encenação propriamente dita são aqueles apresentados pelos
opúsculos analisados. São extremamente escassas quaisquer informações adicionais a respeito de cenários e figurinos,
por exemplo. Os poucos dados complementares de que dispusemos para a análise desses recursos provêm de
balancetes publicados ocasionalmente na imprensa operária. Estes, no entanto, na maioria das vezes, especificam
apenas o total gasto para cada um desses itens. De forma bem genérica e lacônica, temos somente a vaga noção do
que representava, em termos financeiros, a parte cênica no interior de nossas festas. Foi também extremamente difícil
conceber, para cada peça encenada, as dimensões do palco e a posição dos atores sobre ele. Para uma análise sobre as
relações entre texto escrito e encenação – assim como sobre as circunstâncias cênicas -, ver Williams, Raymond.
Drama em Cena.Editora Cosacnaify, São Paulo, 2009; p.36.
31
Chartier, Roger. À beira da falésia: a História entre incertezas e inquietudes. Porto Alegre, Editora
Universidade/UFRGS, 2002; p.7.
33
Os capítulos
Nossa pesquisa está dividida em duas partes. A primeira abarca dois capítulos e
adota como fontes preferenciais os diferentes órgãos da imprensa operária com os quais
lidamos. Em nosso primeiro capítulo, Caminhos e descaminhos do teatro amador,
tentamos “reconstituir” as trajetórias de alguns grupos de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Tarefa complicada, uma vez que, como vimos, os vestígios encontrados sobre eles na
imprensa operária são descontínuos e excessivamente fragmentários. No entanto, mais
importante do que essa pretensa “reconstituição” é enfocar os obstáculos enfrentados
pelos amadores em suas atividades teatrais, assim como o caráter errante dos grupos por
eles constituídos.
No capítulo dois, intitulado As concepções de arte na imprensa operária,
analisaremos os artigos relativos ao teatro e à arte em geral, colocando-os em
articulação com os anúncios e notícias que tratam das peças encenadas e das atuações
dos amadores em palco. Buscaremos ainda as possíveis matrizes ideológicas que os
articulistas da imprensa operária utilizavam para defender suas próprias concepções
estéticas. Faremos também, quando necessário, o confronto entre as concepções de arte
expressas por tais articulistas e aquelas já incorporadas pelos padrões estéticos
hegemônicos. Só assim conseguiremos dimensionar melhor a própria noção de arte
cultivada pelos militantes com os quais lidamos.
A segunda parte de nossa pesquisa também é constituída por dois capítulos.
Aqui, nossas fontes centrais são as peças do teatro anarquista. São elas que suscitam
indagações e nos levam à busca das articulações entre seus conteúdos específicos e o
universo social no interior do qual elas eram encenadas. O capítulo três, por exemplo,
34
tem como eixo central a análise da peça Primeiro de Maio, de Pietro Gori. Por meio
dessa obra, pudemos levantar questões sobre a enorme quantidade de significados
simbólicos que os militantes anarquistas (e/ou sindicalistas revolucionários) conferiam
àquela data. Confrontando as idéias-imagens da peça com aquelas veiculadas pela
imprensa operária, identificamos entre elas relações bem próximas. Além disso,
debruçando-nos sobre o imaginário em torno do 1º. de Maio, percebemos, em meio às
comemorações daquela data, a constituição de um complexo campo de disputas pelo
simbólico; campo este que encerrava conflitos por vezes acirrados e de conseqüências
efetivas. No final de nossa pesquisa, há também um anexo em que abordamos a obra Ao
Relento, de Afonso Schmidt. Isso porque, como já vimos nesta Introdução, ela apresenta
algumas semelhanças não desprezíveis com a obra de Pietro Gori.
Por fim, nosso quarto capítulo será dedicado à análise de duas comédias de Neno
Vasco: Greve de Inquilinos e O Pecado de Simonia. A primeira, em sintonia íntima com
a agitação de inquilinos no Rio de Janeiro, apresenta um enredo que se articula
claramente com as práticas sociais em torno da Liga de Inquilinos que lá surgiu. A
segunda, uma bem-humorada sátira anticlerical, muito nos diz sobre os valores e
concepções do anticlericalismo libertário no Brasil da época. Ela enseja uma abordagem
das práticas sociais anticlericais organizadas pelos mesmos militantes operários que
atuavam nos órgãos da imprensa operária, nos sindicatos e nas ligas de resistência de
São Paulo e do Rio. Na análise desta última peça, voltaremos um pouco as nossas
atenções para duas outras obras do teatro anarquista : Electra, de Perez Galdós e A
Bandeira Proletária , de Marino Spagnolo. Tais associações não são fortuitas: elas se
referem às interlocuções que pudemos identificar entre os respectivos conteúdos das
peças.
Duas palavras sobre as opções ortográficas de nossa pesquisa. Primeiro, nas
transcrições de documentos, preferimos adaptar a escrita da época aos padrões
ortográficos atuais. No entanto, no que se refere aos nomes dos grupos amadores e de
associações da classe operária da época, assim como dos periódicos com os quais
lidamos, resolvemos manter a grafia original. Sendo assim, por exemplo, o Grupo
Dramático 1º. de Maio foi em nossa pesquisa registrado como Grupo Dramatico 1º. de
Maio, pois esta é a forma como ele é mencionado nos anúncios e notícias. A Liga das
Artes Gráficas, do Rio de Janeiro, será registrada em nossa pesquisa também com a
grafia original: Liga das Artes Graphicas.
PARTE I
32
Ver catálogo de reproduções anexado em Alves de Lima, Mariângela e Vargas, Maria Thereza. Teatro
Operário na Cidade de São Paulo, Laboratório do Idart, 1980, p. 174. Nele a peça Militarismo e Miséria
é atribuída a Marino Spagnolo. Já para Antonio Arnoni Prado a obra é de autor anônimo. Ver Prado,
Antonio Arnoni. Trincheira, Palco e Letras; São Paulo, Cosacnayf, 2004; p.160. O opúsculo manuscrito
recolhido pelas duas pesquisadoras do extinto Idart de fato não indica autoria alguma. No entanto, a peça
apresenta não poucas semelhanças de estilo com uma outra obra, esta sim de Marino Spagnolo: A
Bandeira Proletária. Analisaremos um pouco desta última peça no capítulo 4.
38
33
Ver A Plebe, edições de 15.01.1921, 29.01.1921, 05.02.1921, 12.02.1921 e 19.02.1921. O mesmo
anúncio foi publicado, em italiano, no periódico Alba Rossa, da mesma época.
34
Ver anúncios publicados em A Plebe nos dias 17 de julho e 21 de agosto de 1920.
39
Em 1º. de março de 1921, quase dez dias depois da data marcada para o evento,
apareceu no periódico A Vanguarda35 um anúncio que, a partir de então, seria
apresentado com uma freqüência ainda maior 36 do que aquele divulgado por A Plebe.
Intitulado “Grupo Filodramatico `Solidariedade´”, ele apresenta uma espécie de
introdução, por meio da qual tomamos conhecimento de que se trata da mesma festa
anunciada antes (aquela prevista para o dia 19 de fevereiro). Segundo o novo anúncio, o
evento anteriormente divulgado em A Plebe teve de ser adiado. Isso porque a diretoria
da Sociedade Italiana negou o salão da Rua da Mooca apenas quatro dias antes do
evento e os organizadores não conseguiram arranjar um outro espaço em tempo hábil.
De acordo com o autor do novo anúncio, o grupo já havia passado “procuração a um
advogado afim de obter indenização”. Ele afirmava ainda que os ingressos do festival
anterior seriam válidos para este também. Agora, a festa seria realizada no salão Itália
Fausta, situado na Rua Florêncio de Abreu, nº. 45. A programação do espetáculo
continuava a mesma. No entanto, a novidade aqui é que a comédia em italiano é
nomeada: Un Uomo D´Affari. O grupo pedia para que os interessados em ajudar
enviassem prendas para a Rua Visconde de Laguna, nº. 5. Isso porque, como em outros
eventos do gênero, nos intervalos da programação ocorreriam leilões para angariar
fundos.
35
Houve dois periódicos intitulados A Vanguarda no período que estudamos. O primeiro surgiu no Rio de
Janeiro no ano de 1911 e o segundo foi publicado em São Paulo, em 1921. Evidentemente, utilizamos
aqui as informações deste último.
36
Ver A Vanguarda dos dias 01.03.1921, 02.03.1921, 05.03.1921, 08.03.1921, 09.03.1921, 10.03.1921 e
12.03.1921.
40
É preciso atentar para o que dizia a nota anexada ao novo anúncio. Segundo ela,
o Grupo Solidariedade acabara de receber uma carta do “companheiro Conrado
Bernaca, um dos interessados no benefício”. Na missiva, ele dizia que já não precisava
mais da ajuda oferecida, uma vez que se encontrava “em vias de normalização de sua
situação”. Ou seja, em meio às inúmeras atribulações, a espera foi tanta que, no
momento, Bernaca estava já em franco processo de convalescimento, abrindo mão do
auxílio em favor do outro enfermo, Tadeu Galo.
Quinze dias depois do evento, portanto em 27 de março de 1921, o mesmo
periódico A Vanguarda divulgou o balancete da festa insistentemente anunciada. Desta
vez, a iniciativa dos amadores não obteve os resultados pecuniários desejados. “Apesar
da boa vontade e do esforço dos camaradas que fazem parte deste grupo [o
Solidariedade]”, a festa foi deficitária. Dentre as despesas arroladas, é preciso ressaltar
que os amadores gastaram inicialmente 50$000 de sinal para alugar o salão da Rua da
Mooca - aquele da Sociedade Italiana que desmarcou o evento em cima da hora. Já pelo
salão Itália Fausta, foram gastos mais 130$000 de aluguel. Duas damas para o palco 37
foram “pagas duplamente” (subentende-se: duas para a primeira festa e duas para a
segunda). Ao todo foram gastos 468$200. No campo das entradas, temos 144$000 de
ingressos vendidos antecipadamente. Alguns ingressos foram vendidos na porta. Com
eles o grupo arrecadou 54$000. Para cobrir as despesas da festa, os amadores entraram
ainda com 80$000 já disponíveis em seu caixa. A somatória de toda a renda, incluindo a
quantia disponível no caixa, totalizou um saldo bruto de 336$000. Descontadas as
despesas, temos um déficit de 132$200. Trágico resultado pecuniário para um evento
exaustivamente divulgado e que contava com uma bem elaborada programação. O pior
da história é que, desde então, não se tem mais notícia na imprensa operária do Grupo
Filodramatico Solidariedade, cujo próprio nome indica seus abnegados propósitos.
Sabemos apenas que Francisco Crusco, diretor das duas primeiras peças encenadas
nessa última festa, dirigiria logo em seguida um outro espetáculo, desta vez organizado
37
Menções aos gastos com as “damas para o palco” são freqüentes nos balancetes que analisamos.
Impossível saber exatamente qual o papel desempenhado pelas damas nas festas operárias. Isso porque as
notícias publicadas após os eventos nada dizem sobre elas. Mas, como as referências a elas são constantes
nos balancetes, certamente tais personagens eram consideradas importantes nas festas que estudamos.
41
38
Ver anúncio publicado em A Plebe no dia 23.04.1921. Nele temos a informação de que Francisco
Crusco dirigiu a peça O Mártir do Ideal, que seria pela primeira vez representada naquele mesmo dia 23
de abril.
39
Ver Rodrigues, Edgar. O Anarquismo na Escola, no Teatro, na Poesia. Edições Achiamé Ltda, Rio de
Janeiro, 1992; p.111.
42
fontes não seriam um porto seguro. Sem uma mínima noção sobre a longevidade dos
grupos anônimos, devemos forçosamente excluí-los da relação abaixo.
Esqueçamos por enquanto os anônimos, voltemos aos grupos relâmpagos. O
curioso é que quase todos eles são de São Paulo. Chamamos de grupos relâmpagos
aqueles que tiveram uma curta existência ou simplesmente foram pouco divulgados na
imprensa operária. Este é o caso da Societá Filodrammatica Andrea Maggi, que
pertenceu à antiga cepa de filodramáticos paulistanos de língua italiana. Seu nome é
uma referência direta ao ator e diretor italiano homônimo, indicando assim uma nítida
filiação do grupo às atividades dramáticas provenientes da Itália. O grupo atuou em
festa organizada pela Lega di Resistenza fra Capellai em 9 de agosto de 190240.
Pertencente ao mesmo grupo de filodramáticos italianos, temos o Grupo
Filodrammatico Donna Elvira C. Milli41. O anúncio em que seu nome aparece
registrado foi publicado em 22 de novembro de 1903 no periódico O Amigo do Povo,
um dos mais antigos jornais libertários de São Paulo. Poucos meses antes, na edição de
5 e 6 de setembro de 1903, A Lanterna anunciara a estréia do Grupo Dramatico
Giovanni Bovio. A escolha deste nome revela-nos muito sobre a identidade que o grupo
procurava criar para si. Político republicano radical e filósofo italiano, Giovanni Bovio
foi uma figura central do Risorgimento. Morreu no começo de 1903, mesmo ano em que
apareceu, em São Paulo, esse grupo filodramático com seu nome. Sem dúvida, trata-se
de uma homenagem clara a tal personagem proeminente. O espetáculo em que o Grupo
Giovanni Bovio atuaria estava marcado para o dia 26 daquele mesmo mês de setembro.
Se ele voltou a encenar nos palcos de São Paulo, não pudemos saber - nenhum outro
vestígio de sua atuação foi por nós encontrado.
Também só encontramos um único registro de atuação do Centro Ricreativo e
Drammatico Minerva. O indício de que este grupo atuou em São Paulo desponta em
anúncio publicado no periódico La Battaglia do dia 2 de fevereiro de 1907. Nele
aparece uma programação em que consta a encenação da peça Primo Maggio, que será
analisada mais de perto em nossa pesquisa.
Dentre todos os órgãos da imprensa operária do período, o campeão em anúncios
de grupos relâmpagos foi A Plebe. Conseguimos reunir um conjunto de dez grupos
aparentemente efêmeros divulgados por este periódico entre os anos de 1919 e 1923. O
40
Ver O Amigo do Povo do dia 2 de agosto de 1902.
41
Provavelmente, seu nome era Grupo Filodrammatico Donna Elvira Camilli. Veremos mais adiante por
quê.
43
primeiro caso a ser mencionado é o do Grupo Dramatico Cultura Moderna, nome que
indica uma clara afinidade com o pensamento e os usos culturais cultivados pelos
núcleos libertários da época que estudamos. Obtivemos apenas um anúncio registrando
seu nome. Ele foi publicado naquele periódico no dia 9 de agosto de 1919. Após essa
data, temos somente duas pequenas notas convocando os membros do grupo para uma
reunião. Ambas foram publicadas naquele jornal em outubro do mesmo ano de 1919.
Um pouco depois, o nome do Gremio Dramatico Luzitano aparece no mínimo
três vezes em A Plebe42. Tratava-se de um anúncio de uma festa organizada pela União
dos Operários Metalúrgicos e prevista para ocorrer no dia 19 de junho de 1920. Nela o
grupo encenaria a peça O Veterano da Liberdade, “drama em três atos, de caráter
social”. Provando que, de fato, “nem tudo era italiano” 43 em São Paulo, o Grupo
Luzitano aponta para uma clara filiação portuguesa de seus integrantes.
Dois dias antes, em 17 de julho de 1920, aparecera o primeiro indício que
pudemos encontrar do Grupo Filodramatico Libertas, já citado acima. O anúncio previa,
para uma data não definida do “próximo mês” (no caso, agosto), uma festa em benefício
de A Plebe. Nela, o espetáculo estaria nas mãos do “hábil e conhecido ensaiador sr.
Francisco França”. Devemos frisar que, no mês seguinte, em 21 de agosto de 1920, um
anúncio muito parecido (com a mesma programação) apareceu no mesmo jornal. Ele
informava sobre a realização de uma festa que, não por acaso, também seria em
benefício de A Plebe. O evento foi previsto para uma data não definida de setembro - ao
que tudo indica, aquela mesma festa anunciada em 17 de julho foi protelada. Como não
encontramos nenhum outro anúncio apresentando uma data específica para a realização
do evento, não podemos nem sequer dizer que ele de fato ocorreu. Quanto ao nome do
grupo, parece desnecessário dizer que ele é uma clara referência aos propósitos
libertários que seus membros provavelmente defendiam.
Não menos fugidios do que os anteriores são os grupos dramáticos Francisco
Ferrer (homenagem ao educador libertário espanhol) e Joaquim Dicenta (referência ao
dramaturgo espanhol morto em 1917), também divulgados por A Plebe – o primeiro em
anúncio publicado no dia 21 de fevereiro de 1920 e o segundo em 13 de novembro
daquele mesmo ano.
42
Ver A Plebe dos dias 29.05.1920, 12.06.1920 e 19.06.1920.
43
Uma análise mais profunda sobre alguns agrupamentos humanos de São Paulo que não provinham da
Itália aparece em Santos, Carlos José Ferreira dos. Nem Tudo era Italiano – São Paulo e Pobreza. São
Paulo: Annablume/Fapesp, 2003.
44
44
Ver A Plebe do dia 13 de novembro de 1920.
45
Ver A Plebe do dia 27 de novembro de 1920.
45
imprensa operária. Certamente, naquele início do século XX, constituíram-se, nas duas
cidades, diferentes gramáticas perceptivas. Estas, de maneira desigual, configuraram
nosso entendimento sobre as atividades dos grupos com os quais lidamos. Sendo assim,
pensamos que o mais importante não é saber o quanto os periódicos das duas cidades
expressavam “de verdade” o que acontecia na vida dos grupos amadores. O que nós
tentaremos aqui é compreender por que alguns órgãos da imprensa operária carioca
davam aos grupos amadores um destaque maior do que o observado na imprensa
paulistana. Para tanto, devemos ficar atentos para o significado desse tratamento
diferenciado no interior dos discursos veiculados pelos periódicos das duas cidades. A
ênfase dada por uns e a relativa falta de atenção manifestada por outros expressam
diferentes atribuições de significados às práticas concretas do teatro amador que
estudamos. Antes de tentar “reconstituir” essas práticas, devemos encarar o que
significavam essas diferentes formas de tratamento nas representações produzidas pela
imprensa das duas cidades.
No entanto, devemos fugir da perigosa cilada de achar que tudo é mero discurso
e que, portanto, as práticas sociais dos grupos que estudamos importariam menos do que
o que se diz a seu respeito. Se acreditarmos que, por trás dos vestígios veiculados pela
imprensa, há de fato um conjunto de práticas às quais eles se referem, então devemos,
nos desvãos da palavra enunciada, procurar indícios das experiências concretas dos
grupos que resolvemos pesquisar. Se fôssemos nos fiar apenas no grau de repercussão
que o teatro amador obteve na imprensa operária, concluiríamos, de forma simplória,
que suas atividades foram mais intensas no Rio do que em São Paulo. No entanto, uma
análise atenta de nossas fontes mostra que tal dedução é não apenas temerária, como
também incorreta. Isso porque, não obstante a escassez incurável de notícias sobre as
atuações dos grupos paulistanos, encontramos, por outro lado, uma quantidade enorme
de anúncios divulgando as programações de suas atividades. Podemos inclusive afirmar
que o número de festas operárias com programação teatral anunciadas pela imprensa
paulistana é maior do que o veiculado pela imprensa carioca. No entanto, o que nos falta
nos jornais de São Paulo são os preciosos comentários que, depois das festas, alguns
periódicos do Rio faziam, com mais freqüência, sobre as atuações dos amadores.
Novamente, por que isso acontecia?
Como salientamos acima, parte da resposta para essa questão será suscitada pela
análise dos diferentes ambientes culturais nos quais os amadores de São Paulo e do Rio
47
atuavam. Segundo David José Lessa Mattos, no início do século XX, “a arte do
espetáculo teatral em São Paulo não era uma diversão ampliada, não ganhava as ruas,
não invadia a cidade, não era sinônimo de cosmopolitismo tal como acontecia no Rio de
Janeiro”48. Enquanto no ambiente carioca, desde o século XIX, o teatro profissional
conquistara um espaço considerável na vida cultural das pessoas, em São Paulo, ainda
na alvorada do século XX, as atividades artísticas em geral (incluindo as teatrais) eram
bem mais tacanhas. Na condição de capital da República – e, anteriormente, de sede da
corte imperial - o Rio de Janeiro “concentrava praticamente toda a arte do espetáculo
nacional” 49. Desde meados do século XIX, graças à influência da imigração
portuguesa, aquela cidade assumia já “certos ares cosmopolitas”. Para lá se dirigiam,
ainda durante o Império, inúmeras companhias teatrais européias, coisa que em São
Paulo só começou a acontecer (de forma bem tímida) na passagem do século XIX para
o XX. Some-se a isso a condição portuária do Rio e o relativo isolamento geográfico de
São Paulo e teremos uma dimensão maior do indiscreto contraste entre os dois centros
urbanos.
Outra diferença assinalada por David José Lessa Mattos refere-se à composição
do público que freqüentava as salas de espetáculos nas duas cidades. Se em São Paulo,
ainda no início do século XX, as representações profissionais eram assistidas “quase
que exclusivamente por pessoas da elite”, no Rio, desde o fim do século XIX, os
espetáculos eram freqüentados por um público bem mais diversificado: “empregados
públicos, gente do comércio, oficiais da Guarda Nacional, [...] políticos, viajantes,
marinheiros e, também, os visitantes provincianos das diversas regiões do país” 50. Toda
essa “fauna humana” constituía já, no limiar do século XX, as heterogêneas platéias que
enchiam as salas de espetáculos da então capital de nosso país.
Foi nesse contexto de intensas atividades artísticas que se afirmou, no Rio de
Janeiro, o influente teatro de revista. Vindo de Portugal, o gênero chegou à capital do
Brasil durante a segunda metade do século XIX. Desde então, ele conquistou os
corações e mentes do crescente público carioca, cada vez mais ávido pelo consumo de
novidades no campo das artes e do entretenimento. Apesar de sua origem européia, o
teatro de revista acabou se transformando no “gênero mais característico da cena teatral
48
Ver Mattos, David José Lessa. O Espetáculo da Cultura Paulista – Teatro e TV em São Paulo (1940-
1950). São Paulo, Editora Codex, 2002; p. 111.
49
Ibid.; p.102.
50
Ibid.; p.103.
48
brasileira”51. Grande parte dessa influência deveu-se à obra de Arthur Azevedo, que
soube incorporar ao teatro de revista “expressões regionais e bem brasileiras” 52. Até
quase a metade do século XX, o gênero e suas vedetes dominaram os palcos e o gosto
das platéias cariocas e, mais tarde, “nacionais”.
No interior de um ambiente cultural assim tão pulsante, não surpreende
constatar, nos órgãos da imprensa carioca (incluindo aqui a operária) uma maior
preocupação com as atividades artísticas em geral. Se os espetáculos teatrais
dominavam a cena cultural e vibravam nos corações da cosmopolita população do Rio,
por que seus órgãos de imprensa não modulariam na mesma freqüência? E se os jornais
tidos como “comerciais” preocupavam-se em divulgar os espetáculos das grandes
companhias de teatro (nacionais e estrangeiras), por que os pequenos periódicos
operários não fariam o mesmo com o teatro amador? Portanto, parece-nos que, no
contexto do Rio, a agitada vida cultural mantinha o carioca numa relação mais estreita
com a produção artística e as novidades do entretenimento. E, é claro, os jornais não
poderiam deixar de repercutir tal excitação do público.
Tudo bem, mas o que dizer então das atividades dos grupos amadores
paulistanos? A pouca ressonância delas nos periódicos da imprensa operária da
Paulicéia seria indício de uma incurável letargia? Não necessariamente. O fato de tal
imprensa não acompanhar de perto as atividades desses grupos não significa que eles
fossem menos ativos. Aliás, como já vimos, temos razões de sobra para acreditar que,
na verdade, tais atividades eram até mais dinâmicas aqui do que lá. Afinal, no afã de
compensar a exígua programação artística profissional, é possível que o teatro amador
tenha adquirido, na vida cultural de São Paulo, uma importância até maior do que a
existente no Rio. Ainda de acordo com David José Lessa Mattos, “mostrando-se
incapaz de suplantar um certo provincianismo que predominava no meio sócio-
cultural”, o “espetáculo teatral paulista” seria preenchido pelas inúmeras atuações
levadas adiante, desde fins do século XIX, pelos grupos amadores, sobretudo os
chamados filodrammatici (ou “filodramáticos”)53.
Vinculados às sociedades de ajuda mútua que surgiam em São Paulo para prestar
assistência aos imigrantes que acabavam de chegar, os filodrammatici criaram “um
teatro com características próprias, feito por italianos e dirigido principalmente à
51
Ibid.; p.105.
52
Ibid.; p. 106.
53
Ibid.; p.113.
49
54
Ver Magaldi, Sábato e Vargas, Maria Thereza. Cem Anos de Teatro em São Paulo (1875-1974). São
Paulo, Editora SENAC, 2001; p. 32.
55
Em Novo Rumo (20.01/05.02.1906), ver anúncio de festa organizada pela Liga das Artes Graphicas do
Rio de Janeiro; nele aparece, na programação, a peça Primeiro de Maio, representada em São Paulo desde
1901, em italiano; no anúncio, sabemos que sua tradução foi feita por “um dos membros” da própria Liga.
Ver notícia publicada em A Terra Livre no dia 15 de fevereiro de 1908; por meio dela sabemos que um
grupo anônimo vinculado à Federação Operária do Rio de Janeiro encenaria, “pela primeira vez em
português”, a peça A Canalha, já bastante representada antes em São Paulo (em sua versão original em
italiano). Em A Lanterna de 4 de julho de 1914, ver anúncio sobre festa organizada pela Liga Anticlerical
do Rio de Janeiro; em sua programação, aparece a peça Triste Carnaval, traduzida pelo químico Zenon de
Almeida, também ele um amador ativo que, no Rio de Janeiro, além de atuar como ator nos palcos,
escreveu sua próprias peças.
50
anônimos e que, por isso, não foram abordados até o momento. Analisaremos as
atuações de alguns deles mais adiante.
56
Ver Mattos, David José Lessa. Op. Cit. p.116.
57
Ver A Lanterna de 10 de janeiro de 1914.
51
58
Precisamos ressaltar que a constituição de uma “classe operária” no contexto que analisamos envolve
experiências de luta que extrapolam uma categorização restrita ao setor secundário da economia. Na
esteira de estudos pioneiros como o de Heloisa de Faria Cruz, inserimos na categoria de “classe operária”
os inúmeros “trabalhadores em serviços” que, junto com os operários de fábricas, participavam das
intensas mobilizações que agitavam os anos de luta que estudamos em nossa pesquisa. Ver Cruz, Heloísa
de Faria. Trabalhadores em Serviços: Dominação e Resistência (São Paulo – 1900/1920). São Paulo,
Editora Marco Zero, 1990; p.8. “A experiência de luta dos trabalhadores em serviços se constitui como
parte integrante da experiência do proletariado urbano no período. Constituindo-se, enquanto parcela
significativa da força de trabalho, trabalhadores como ferroviários, motorneiros e condutores,
trabalhadores em limpeza urbana, entre outros, estiveram presentes na maioria das lutas do proletariado
urbano de então”. Devemos lembrar que muitos desses trabalhadores possuíam horários de trabalho
diferentes dos operários fabris. Consideramos também em nossa pesquisa os trabalhadores autônomos que
possuíam suas próprias oficinas de trabalho: alfaiates e sapateiros, por exemplo. Dessa forma,
conseguimos entender melhor a exeqüibilidade de algumas das reuniões que acima mencionamos
(programadas para horários ditos “comerciais”).
59
Para o conceito de “tática” aqui utilizado, ver Certeau, Michel de. A Invenção do Cotidiano: Artes de
Fazer. Petrópolis, Editora Vozes, 1994; p. 100. Para o autor citado, tática é “a ação calculada que é
determinada pela ausência de um próprio. Então nenhuma condição de fora lhe fornece a condição de
autonomia. A tática não tem por lugar senão o outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é
imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha. [...] Este não-lugar lhe permite sem dúvida
mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar no vôo as possibilidades oferecidas
por um instante”.
60
No período abarcado em nossa pesquisa, temos pelo menos mais dois grupos homônimos atuando entre
São Paulo e Rio de Janeiro. No contexto carioca, um outro grupo intitulado Theatro Social desponta em
anúncios de A Plebe (11.06.1921), de Lucta Social (18.06.1922) e da revista Renovação (outubro e
dezembro de 1921). Ver também balancete publicado em A Plebe em 18.03.1922. Em São Paulo, um
outro grupo homônimo apareceu em 1922. Tendo como “patrono” o alfaiate Marino Spagnolo, o primeiro
indício da organização deste grupo paulistano desponta em uma pequena nota publicada em A Plebe no
dia 22 de julho de 1922. Sua estréia, no entanto, ocorreria apenas três meses depois, em 28 de outubro de
53
mais deixou vestígios na imprensa operária. Por isso, utilizaremos sua história como
eixo central. Por meio dela, teceremos uma narrativa que pretende, de maneira um tanto
presunçosa, lançar um pouco de luz sobre as obscuras trajetórias dos grupos amadores
anarquistas, enfocando suas formas de organização, suas vicissitudes e as inúmeras
dificuldades por eles enfrentadas. Sendo assim, quando necessário, interromperemos a
narrativa sobre o Grupo Teatro Social para abordar também as fragmentárias histórias
dos outros grupos que atuaram no período compreendido pela pesquisa. Como o leitor
perceberá, são inúmeros os casos em que as trajetórias dos outros grupos assemelham-se
com a do Grupo Teatro Social. Mas, além das semelhanças, é claro, as diferenças
também se descortinam. Não perderemos as oportunidades de enfocá-las quando
necessário.
1922. Ver, em A Plebe, anúncios dos dias 23.09 e 07.10.1922. Ver também, no mesmo jornal, notícia
sobre a estréia do grupo na edição de 4 de novembro de 1922.
61
Na edição de 19 de setembro de 1906 do periódico carioca Novo Rumo, após um longo comentário
sobre a peça O Infanticídio, de Mota Assunção, cuja estréia coube ao Grupo Teatro Social, D. Venegas
aproveita para dizer que no dia 12 de outubro o grupo comemoraria seu primeiro aniversário. Faremos
menção a esse texto na seqüência.
54
62
Ver a transcrição completa do documento aprovado naquele congresso em Rodrigues, Edgar.
Socialismo e Sindicalismo no Brasil – 1675-1913. Editora Laemmert, Rio de Janeiro, 1969; pp.114-140.
A deliberação relativa à exclusão de mestres e contramestres encontra-se na pág. 127.
55
primeiros. Isso indica que, não obstante o rigor da primeira cláusula, a composição
“obreira” do grupo era menos “autêntica” do que imaginávamos a princípio.
A mesma tensão entre restrição e acolhimento manifesta-se por ocasião de uma
reunião dos “aderentes à iniciativa de um `Grupo filodramático social´” em São Paulo.
O periódico A Lucta Proletaria, órgão vinculado à FOSP (Federação Operária de São
Paulo), em sua edição de 7 de março de 1908, publicou uma nota sobre aquela
reunião.Segundo a nota, os membros aderentes daquela iniciativa deliberaram então
“aceitar como sócios todos os que têm disposição para este meio de propaganda” [grifos
nossos]. Bastava que os interessados fossem membros das Ligas de Resistência e
demonstrassem ser operários “de dignidade e consciência”. Temos mais um caso que
aponta para uma possível ambigüidade de propósitos. Se, por um lado, aceitava-se
qualquer um que tivesse “disposição”, por outro, este “qualquer um” tinha de estar
vinculado ao movimento operário – além de ser “digno” e “consciente” 63.
A nota de A Lucta Proletaria indica ainda outras deliberações tomadas pelos
aderentes à iniciativa do grupo filodramático que se formava. Na reunião por ela
divulgada, sabemos ainda que os amadores decidiram cotizar as despesas do grupo. De
acordo com a deliberação tomada, cada membro ajudaria mensalmente com 500 réis
para as despesas com “papel, tinta, penas etc.”. Segundo Maria Thereza Vargas e
Mariângela Alves de Lima, a cobrança daquela quantia mensal reduziria “a
possibilidade do prazer descomprometido” e mostraria “o grupo teatral como uma
forma de trabalho doutrinário” [grifos nossos]64.
As duas pioneiras autoras não foram as únicas a segmentar “caráter lúdico” e
desígnios “doutrinários”. Talvez de forma menos rígida, também Francisco Foot
Hardman chegou a conclusão semelhante analisando as “festas de propaganda” nas
quais as peças anarquistas eram encenadas. Segundo ele, tais eventos “tentavam aliar o
prazer do entretenimento às tarefas de convencer o público da necessidade da
`emancipação social´”. Até aqui, tudo bem. O problema é que, logo em seguida, Foot
Hardman afirma ser a “tensão permanente” entre esses dois propósitos a “expressão, em
certo nível, da própria relação contraditória entre massas e direções” 65. Temos aqui o
63
Ao longo deste capítulo citaremos ainda inúmeras festas organizadas em favor dos sindicatos e ligas de
resistência. Em todas elas as programações teatrais denotam o estreito vínculo que se estabelecia entre os
grupos teatrais e as associações de classe.
64
Ver Alves de Lima, Mariângela e Thereza Vargas, Maria. Teatro Operário na Cidade de São Paulo.
Laboratório do Idart, 1980, p. 28.
65
Ver Foot Hardman, Francisco. Nem pátria, nem patrão. São Paulo, Editora Unesp, 2002, p. 25.
56
princípio segundo o qual, no interior das festas operárias, as “massas” querem uma
coisa e as “direções” desejam outra.
É claro que as conclusões a que chegaram os importantes autores acima
mencionados não são fortuitas. É exatamente isso que depreendemos de alguns (mas
não todos) textos publicados na imprensa libertária. Como veremos ao longo da
pesquisa, os articulistas que comentavam os eventos e manifestavam suas concepções
artísticas nem sempre estavam de acordo com as programações das “festas de
propaganda”. Muitas vezes, inclusive, eles fulminavam algumas das peças nelas
encenadas66 . No entanto, nosso desafio é o de evitar a reprodução mecânica do discurso
veiculado na imprensa. Na esteira do que disse Jesús Martin-Barbero, buscaremos
entender de que maneira, no interior das “festas de propaganda”, os elementos da
cultura popular (incluindo os entretenimentos manifestamente lúdicos) são não apenas
assimilados como também valorizados67. Sendo assim, veremos ao longo de todo o
nosso trabalho que a tão propalada dissociação entre “prazer descomprometido” e
“trabalho doutrinário” é mais aparente do que real.
Analisando os inúmeros anúncios veiculados na imprensa operária – assim como
alguns comentários de festas realizadas -, percebemos que a dissociação entre atividades
lúdicas e trabalho de “conscientização”, na prática, não se verifica 68. Com exceção,
talvez, da conferência (esta sim de caráter instrutivo ou, como quer a fórmula repisada,
“doutrinário”), todas as outras partes de nossas festas, incluindo o teatro, manifestam
66
Ver em O Amigo do Povo de 9 de julho de 1904, críticas ao drama Amor e Desventura, “arcaico
dramalhão de capa e espada”, “borracheira idiota” etc. Em Liberdade (2ª. quinzena de maio de 1918), ver
notícia intitulada Uma festa libertária; nela, o autor anônimo critica severamente a parte teatral,
sobretudo a “revista-estilete” levada ao palco pelo amador Santos Barbosa. Ver em A Lanterna
(12.10.1912), anúncio sobre a criação do Grupo Idéia Moderna que, “rompendo com a velharia a que se
agarram em geral os amadores”, prometia encenar somente peças de “índole social”. Ver também, na
introdução à obra O Infanticídio, de Mota Assunção (Arquivo Multimeios; DT-2314), a crítica de Neno
Vasco à obra Gaspar, o Serralheiro (“de arrepiar os cabelos da alma e do coração”). Ver em Novo Rumo
(20.02.1906) comentários de uma festa em que o autor critica outros eventos do gênero em que “só se
cultiva a banalidade vista através de uma arte chatíssima de dramalhões sexagenários”. Em A Vanguarda
(09.06.1921), comentarista anônimo critica severamente uma comédia “cujo autor teve a preocupação
exclusiva de fazer rir”. Enfim, a impressão que tais registros nos passam é a de que nossos militantes
desprezavam as influências dos antigos dramalhões e de toda arte que não expressasse um nítido conteúdo
de transformação social.
67
Sobre a valorização da cultura popular por parte dos anarquistas, ver Martin-Barbero, Jesús. Dos meios
às mediações – comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009, p.44.
68
Neste ponto, Maria Thereza Vargas e Mariângela Alves de Lima chegam a concordar com a posição
aqui adotada. Para elas, as “críticas a uma atividade puramente recreativa [...] não prevalecem na
organização da festa operária”. Ver Alves de Lima, Mariângela e Thereza Vargas, Maria. Op. Cit; p.43.
No entanto, ao atribuir ao “Grupo filodramatico social” a intenção de reduzir o “prazer
descomprometido” em favor do “trabalho doutrinário”, as duas autoras parecem identificar, nos próprios
amadores, uma severidade moral que talvez habitasse alhures. Mais adiante analisaremos um outro
excerto da obra citada em que as autoras manifestam um posicionamento semelhante.
57
não uma oposição, mas uma complementaridade entre “lúdico” e “doutrinário”. Ou,
melhor dizendo, os dois aspectos aparecem tão intimamente relacionados que nos
arriscamos a dizer que eles estabelecem de fato uma unidade, muito embora nem
sempre harmônica.
Alguns exemplos podem ser dados. Primeiramente, vejamos o caso do baile.
Fulminado por alguns órgãos da imprensa operária 69, ele permanece praticamente
intocável ao longo de todo o período analisado. Disso nossas pioneiras autoras também
estavam conscientes70. Outro indício eloqüente da aproximação entre “lúdico” e
“doutrinário” é o das quase obrigatórias comédias, muitas das quais com conteúdos
libertários, anticlericais ou de forte crítica social. Aliás, somos favoráveis à tese
segundo a qual o riso é um meio eficientíssimo de protesto. Diante do escárnio não há
autoridade constituída que passe incólume! Os anarquistas com os quais lidamos sabiam
disso e valorizavam esse potencial irreverente do riso, incorporando-o em suas festas
por meio das comédias. Incorporavam também outros gêneros divertidos do teatro
“popular”, como os guignols franceses71, as zarzuelas72 espanholas e as revistas (já bem
populares no Brasil do início do século XX) 73 .
69
No que tange às críticas ao baile, ver, em Guerra Sociale de 28.10.1916, artigo intitulado A
propaganda e o baile. Em A Terra Livre de 05.02.1907, ver artigo intitulado O Baile – aos círculos
recreativos, assinado por Lucífero; no mesmo periódico, ver em edição de 23.02.1907 O Baile
(continuação), também de Lucifero . Em A Plebe, de 05.11.1921, ver estatuto do segundo Grupo de
Teatro Social que aparece no Rio de Janeiro; nele, o grupo afirma que não trabalhará em “certames nos
quais se realizem bailes”. De fato, acompanhando os anúncios que apresentam o nome do grupo, não
encontramos, em nenhum deles, o baile como parte da programação. Aqui, sim, poderíamos atribuir ao
grupo um rigor moral não explicitamente identificado nos congêneres. No entanto, mesmo este grupo
valorizava o aspecto lúdico das festas. Em quase todos os eventos dos quais ele participava, as
encenações cômicas tinham espaço garantido. Em um deles, das três peças encenadas, duas eram
comédias (ver a revista Renovação de dezembro de 1921). Em um dos eventos nos quais este grupo
encenou (um “Grande Festival” no Jardim Zoológico do Rio, programado para 18 de junho de 1922), a
programação aparecia repleta de atividades lúdicas: corrida de bicicletas, “match de football” , corrida de
saco, leilão de prendas etc.
70
Ver Alves de Lima, Mariângela e Thereza Vargas, Maria. Op. Cit; p.43.
71
O guignol é uma espécie de teatro de fantoches que surgiu em Lyon, na França, no final do século
XVIII. Recebeu esse nome em razão de um de seus personagens mais importantes: Guignol. Os enredos
desse gênero são satíricos e seus personagens caricaturam figuras do cotidiano. Um século depois, o
cômico cede espaço para o horror. Agora, em Paris, surge o gênero grand guignol, um teatro também de
bonecos, mas de caráter mais macabro e violento. Com o tempo, os bonecos foram substituídos por
atores de verdade. Sobre a influência do guignol no teatro amador sobre o qual nos debruçamos, ver em
Liberdade (2ª. quinzena de maio de 1918), anúncio do Grupo Editor Germinal, do Rio de Janeiro, em que
está prevista a representação de um drama “à guisa de grand grügnol” [sic]. Ver também anúncio
publicado em Renovação de dezembro de 1921 em que está prevista, em festa no Rio, a representação de
A Jaula, “vigoroso `grand-guignol´” de Santos Barbosa, ele próprio um amador que atuara, em 1913, no
Grupo Dramático de Cultura Social. Impossível saber se os conteúdos das peças destas duas atrações
assemelham-se com os dos clássicos franceses. É possível que a influência do grand guignol no teatro
anarquista do Brasil tenha vindo por meio de Octave Mirbeau, cuja peça Le Jardin de Supplices tornou-
se um clássico do gênero.
58
72
A zarzuela é um gênero lírico-dramático de origem espanhola. Inspirada na ópera cômica francesa, a
zarzuela mistura cenas faladas com cenas cantadas, além de incorporar episódios em que as danças
merecem destaque. Sobre a influência das zarzuelas em nosso teatro amador, ver anúncio de festa no
Centro Galego (Rio de Janeiro) em A Terra Livre do dia 14.03.1908. Nele aparece a previsão da
representação de uma “zarzuela cômica” de Carlos Arniches com acompanhamento musical do Grupo
Lírico Dramático del Centro Gallego.
73
Ver anúncio de festa organizada pelo Grupo F. C. Social (Rio de Janeiro), publicado em Liberdade da
2ª. quinzena de abril de 1918. Vemos uma programação em que está prevista uma “revista-estilete” com
vários números de música”.
74
Ver Alves de Lima, Mariângela e Tereza Vargas, Maria, Op. Cit; pp. 17 e 18.
75
Ver, em Novo Rumo edição de 20 de julho de 1906.
59
76
Ver Novo Rumo, edição de 19 de setembro de 1906.
77
Ver em A Vanguarda (13.04.1921), anúncio de festa em São Paulo em que, na programação, aparecem
como prêmios para a tômbola um “belo quadro [...] alusivo à execução de um mártir da Grande
Revolução [...] e um bom livro de sociologia”.
60
78
Não confundir com o grupo homônimo carioca que nos serve de eixo central nesta análise. Ver a
composição do grupo Theatro Social, de São Paulo, em Rodrigues, Edgar. Os Companheiros – vol. 4.
61
Editora Insular Ltda, Florianópolis, 1997; p.126. Segundo o autor citado, o Theatro Social de São Paulo
tinha em sua primeira formação, além do já citado alfaiate Marino Spagnolo, os amadores Garibaldi
Brolcati, Helena Santini, Manuel Sanchez, Emílio Martins, Noé Parente, Atílio Grondisola, Poério
Bernardini, José Galan, Manuel Bueno e Lúcia Santini.
79
Esta amadora atuou também, anos mais tarde, em um grupo vinculado à Liga Anticlerical do Rio de
Janeiro. Vemos ainda este mesmo nome assinalado em uma outra notícia, desta vez publicada em A
Lanterna do dia 11 de maio de 1912. Por meio dela, descobrimos que uma Encarnacion atuou na peça
Avatar, de Marcelo Gama. Segundo o autor anônimo da notícia, seu papel teria sido “bem
desempenhado”.
62
O balancete acima traz alguns indicadores sobre a saúde financeira do grupo nos
meses subseqüentes à divulgação de suas “bases fundamentais”. A análise atenta dos
números demonstra uma situação orçamentária bastante instável. Se projetássemos a
variação dos números em um gráfico de linha, teríamos uma variável oscilando bastante
(mais para baixo do que para cima). Analisando as contas do mês de setembro de 1906
(quando o grupo manifestou, em suas “bases”, o desejo de empreender o projeto da
Casa do Povo), observamos uma situação relativamente satisfatória. Temos para aquele
mês um saldo líquido de 257$500.
No entanto, observando atentamente a tabela, percebemos que nos meses
subseqüentes, de outubro de 1906 a abril de 1907, não há registro algum. O que
aconteceu com o grupo durante esses sete meses? Ao que tudo indica, ele não atuou.
Isso porque não encontramos nesse período nenhuma menção ao seu nome nos
63
80
Não devemos confundir esta Carolina, tratada na notícia de D. Venegas como “senhora”, com uma
outra amadora chamada Carolina Boni, que recitava poesias nas festas da Liga Anticlerical do Rio de
Janeiro nos anos de 1912 e 1913. Em um anúncio publicado em A Voz do Trabalhador do dia 15 de julho
de 1913 (portanto, lançado sete anos depois daquela notícia assinada por D. Venegas), Carolina Boni é
apresentada como uma “menina” que recitaria uma poesia em festa prevista para 2 de agosto de 1913.Ora,
se em 1913 ela era uma “menina”, em 1906 ela não poderia ser uma “senhora”. Temos notícia da atuação
de Carolina Boni, anos mais tarde, no Grupo Dramático 1º. de Maio (ver notícia publicada no periódico
Liberdade da 1ª quinzena de abril de 1918). Segundo Edgar Rodrigues, ela atuou como amadora, nos anos
1921-1922, no Gremio Artistico Renovação. Para saber mais sobre a trajetória de Carolina Boni, ver
Rodrigues, Edgar. Os Companheiros – vol. 1. VJR-Editores Associados, Rio de Janeiro, 1994; p.136.
Voltaremos a enfocar a família Boni mais adiante.
64
1.4.3. A difícil tarefa de organizar uma festa e o curioso prazer das formalidades
Diante de toda essa precariedade financeira, certamente o bem intencionado
projeto da Casa do Povo foi abandonado. Isso não significa que os amadores do Grupo
Teatro Social deixaram de ser abnegados e altruístas. Manifestando um espírito de
solidariedade que, aliás, era uma característica notada também nos outros grupos (vimos
já pelo menos dois exemplos acima), os artistas operários estavam sempre atuando em
festas cujas receitas seriam destinadas a outrem. Talvez advenha daí sua periclitante
situação financeira.
Vejamos mais um exemplo. No dia 25 de janeiro de 1908, novamente A Terra
Livre publicou um anúncio do Grupo Teatro Social. Desta vez, tratava-se de uma festa
organizada pelo próprio grupo e prevista para ocorrer em “fins de fevereiro” no salão do
Centro Galego, situado então na Rua da Constituição. O evento seria “em benefício de
uma obra de educação e de solidariedade de iniciativa do camarada Campos Machado”.
Na programação da festa, havia inclusive uma peça deste “camarada” intitulada A Ceia
dos Pobres. Além dela, subiriam ao palco também A Escala, de E. Norès e Greve de
Inquilinos, comédia de Neno Vasco que analisaremos adiante. Um mês depois, em 26
de fevereiro de 1908, o mesmo periódico trouxe um novo anúncio do grupo. Desta vez,
sabemos que a festa programada para o fim de fevereiro foi, “por motivos imprevistos”,
adiada para 28 de março de 1908. O preço do ingresso? Uma bagatela: apenas 1$000.
Quanto à programação, temos uma mudança: em vez de encenar A Escala, agora o
grupo resolveu levar ao palco O Mestre, de Rousselle. Há mais um detalhe: ficamos
sabendo que Greve de Inquilinos seria representada pela primeira vez. Mais tarde, em
14 de março de 1908, a mesma festa foi anunciada em A Terra Livre. Na programação
65
deste último anúncio, a peça O Mestre foi suprimida e, em seu lugar, foi prevista uma
“zarzuela cômica” a ser apresentada pelo Grupo Lírico Dramático del Centro Gallego.
Como foi a festa? Não sabemos. Não encontramos notícia alguma dela nos
periódicos pesquisados. Caso seu resultado pecuniário não tenha sido positivo, é
provável que - assim como provavelmente ocorrera com o projeto da Casa do Povo - a
bem intencionada “obra de educação e solidariedade” de Campos Machado não tenha
prosperado.
De qualquer forma, o que é importante ressaltar, no caso específico deste último
evento citado, é o tempo gasto para sua organização. Certamente o esforço envidado na
preparação de festas como essa não era desprezível. Tendo em vista que no fim de
janeiro o evento fora já anunciado, podemos deduzir que os preparativos para ele já
estavam sendo feito desde, pelo menos, meados daquele mês. É possível, inclusive, que
os próprios ensaios das peças também estivessem ocorrendo naquele momento. Ora, de
meados de janeiro até o dia 28 de março, temos um período de aproximadamente dois
meses e meio. No caminho, uma das atrações teatrais programadas foi alterada duas
vezes, até que, por fim, se decidiu pela escolha de um grupo convidado para levar
adiante uma representação cômica.
Ora, em se tratando de um grupo experiente como o Teatro Social, que mantinha
uma atividade constante81 e bem divulgada nos periódicos, poderíamos refletir sobre as
enormes dificuldades que os amadores em geral enfrentavam para organizar as suas
festas.
Para não usar um único exemplo, faremos uma pequena digressão apresentando
um outro caso que, assim como o anterior, expressa bem as vicissitudes e adversidades
enfrentadas pelos grupos amadores na organização de suas festas.
Direcionemos nossa atenção para o que ocorreu por ocasião da estréia oficial do
Grupo Dramatico Anticlerical, também do Rio de Janeiro. No dia 5 de outubro de 1912,
o periódico A Lanterna publicou uma pequena nota anunciando a fundação definitiva
daquele grupo amador. Assim como outros já citados, este conjunto de artistas também
fez questão de afirmar que “unicamente representará peças anticlericais e sociais”. O
autor anônimo da nota aproveitou a oportunidade para informar que a primeira
encenação do grupo estava programada para “dezembro próximo”. A peça a ser levada
81
Além das festas em benefício de outrem, o Grupo Teatro Social promovia suas próprias “récitas
mensais”. Tal periodicidade observamos, sobretudo, ao longo do ano de 1907. Ver anúncios publicados
em A Terra Livre nos dias 27.07.1907, 18.08.1907, 15.09.1907 e 27.10.1907.
66
82
Ver Hobsbawm, Eric. Mundos do Trabalho; Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra,1987; p. 110.
68
83
Ver Alves de Lima, Mariângela e Tereza Vargas, Maria, Op. Cit; p. 51.
69
84
Ver Alves de Lima, Mariângela e Tereza Vargas, Maria, Op. Cit; p. 51.
85
Ibid.; p.38.
86
Ibid; p.52.
87
Citaremos alguns exemplos de comentários na imprensa operária que fazem menção elogiosa ao
“esforço” e/ou à “dedicação” dos amadores. Observação: outros mais poderiam ser citados. A Plebe,
05.02.1921: notícia sobre atuação do grupo dramático vinculado ao Centro de Estudos Sociais Juventude
do Futuro. A Vanguarda, 27.03.1921: balancete acima analisado de festa deficitária do Grupo
Solidariedade. A Terra Livre, 01.06.1907: notícia sobre Grupo Teatro Social, do Rio de
70
Janeiro.Liberdade, 2ª. quinzena de maio de 1918: notícia sobre atuação do Grupo Dramatico 1º. de Maio,
do Rio de Janeiro. Novo Rumo, 19.09.1906: comentários sobre atuação do Grupo Dramatico Social
(provavelmente, trata-se do próprio Grupo Teatro Social que analisamos). .A Vanguarda, 27.04.1921:
notícia sobre atuação de grupo anônimo vinculado à União dos Operários em Fábricas de Tecidos (São
Paulo). Novo Rumo, 20.02.1906: comentários sobre atuação do grupo dramático da Liga das Artes
Graphicas (Rio de Janeiro). A Lucta Proletaria, 29.02.1908: comentários sobre atuação de grupo anônimo
vinculado à Liga dos Marceneiros (São Paulo). A Plebe, 26.06.1920: notícia sobre espetáculo realizado
por um grupo anônimo vinculado à União dos Operários Metalúrgicos (provavelmente de São Paulo).
Temos ainda um anúncio publicado em A Plebe em 21.02.1920; nele há uma nota afirmando que uma
“comissão organizadora premiará com uma medalha de ouro o amador que melhor desempenhar o seu
papel”. O que seria tal premiação senão um estímulo ao tal do “esforço”?
71
interesse pelo teatro era muito mais artístico do que político”, e os “grupos teatrais
anarquistas”, supostamente mais engajados e sem maiores pretensões estéticas. Segundo
o autor citado, enquanto os primeiros seriam motivados por uma “paixão pelo teatro” e
pela “vontade de representar”, os últimos manifestariam uma maior “filiação
ideológica” aos propósitos libertários e estariam dispostos a sacrificar-se não pelo
prazer de atuar, mas sim pela fidelidade à causa abraçada. Enquanto os primeiros,
principalmente de origem italiana, manifestariam “o desejo de manter viva a lembrança
dos costumes e tradições de seus países”, os últimos expressariam um
comprometimento político diferente: por assim dizer, mais radical. Em uma perspectiva
diacrônica de análise, a diferenciação entre ambos teria se constituído com o tempo: aos
poucos, “os grupos teatrais anarquistas sentiram a necessidade de distinguirem-se dos
filodramáticos, considerados por eles como diletantes”. A prova disso estaria nos
próprios nomes que os grupos anarquistas assumiram com o tempo: “Os Libertários,
Pensamento e Ação, Germinal etc”. David Lessa chega inclusive a apontar uma data
aproximada como divisor de águas: tal diferenciação teria acontecido “por volta de
1908, quando as associações operárias achavam-se mais preparadas para o trabalho de
propaganda”. Segundo ele, a partir de então, a “denominação filodramático foi aos
poucos desaparecendo”88 e os grupos amadores foram adquirindo uma tendência cada
vez mais militante.
Em um trabalho mais recente, Samanta Colhado Mendes chega a nuançar a
segmentação acima mencionada. Sem deixar de reconhecer as diferenças entre
filodramáticos e grupos libertários, ela ressalta que os primeiros, desde o final do século
XIX, encenavam já inúmeras peças de “cunho libertário”89 . Dentre as semelhanças
entre eles, a autora citada afirma que os filodramáticos, assim como os grupos
libertários, promoviam uma “convivência livre entre os trabalhadores imigrantes e um
lazer criativo, educativo e crítico para o grande contingente populacional urbano da
época”90 . De fato, o que percebemos ao analisar os anúncios veiculados na imprensa
operária de São Paulo é que aquela segmentação não deve ser exagerada.
Vejamos alguns casos que ilustram nossa concepção. Desde 1902 existia um
Nucleo Filodrammatico Libertario atuando com certa freqüência em São Paulo. Parece-
88
Ver Mattos, David José Lessa. Op. Cit.; p.119.
89
Ver em http://www.franca.unesp.br/poshistoria/samanta.pdf, Mendes, Samanta Colhado. As Mulheres
Anarquistas na Cidade de São Paulo (1889-1930). Dissertação de Mestrado apresentada na Faculdade de
História, Direito e Serviço Social (UNESP-Franca); p.221.
90
Ibid.; p.222.
72
nos claro que o próprio nome dele revela uma aproximação entre os propósitos daqueles
dois grupos aparentemente segmentados. Afinal, muito antes de 1908, ele era já, ao
mesmo tempo, “filodramático” e “libertário”. Em 6 de setembro de 1902, O Amigo do
Povo publicou um anúncio de uma festa organizada pelo grupo no Cassino Penteado,
situado no Brás91. Nela seriam encenadas, em italiano, Il Primo Maggio, de Pietro Gori
e “uma engraçadíssima farsa”. No mesmo anúncio, percebemos que um dos amadores
que atuaram no grupo foi o influente militante Giulio Sorelli, imigrante italiano que
exercia o ofício de marceneiro e morava então no Cambuci. Sorelli, na mesma época,
escreveu uma peça intitulada Il Giustiziere, encenada pouco depois, em 18 de outubro92,
no teatro Andrea Maggi, “cujo proprietário era o anarquista italiano Giovanni Gargi” 93.
Por meio de um anúncio publicado no mesmo jornal em 11 de abril de 1903, sabemos
também que outra amadora importante do Nucleo Filodrammatico Libertario foi Dona
Elvira Camilli. Esta, segundo Samanta Colhado Mendes, “participou ativamente”
daquele grupo, “atuando em várias outras peças”94. É provável, inclusive, que esta
influente amadora tenha fundado seu próprio grupo filodramático na mesma época. Isso
porque, como vimos no início deste capítulo, em 25 de novembro de 1903, ainda em O
Amigo do Povo, saiu um anúncio que apresentava um grupo filodramático com seu
nome: “Grupo Filodrammatico Donna Elvira C. Milli” [registrado exatamente desta
forma]. Para este registro, temos duas hipóteses: ou o sobrenome “C. Milli” aponta para
uma outra pessoa (não a Dona Elvira do Filodrammatico Libertario) ou tal registro é
uma simples corruptela de “Camilli”. Tendo em vista a influência de Elvira Camilli no
teatro amador da época e os anúncios freqüentes de suas atuações em O Amigo do Povo,
estamos inclinados a aceitar a segunda hipótese, não a primeira.
Façamos agora uma análise do que todas essas informações indicam.
Primeiramente, é preciso ressaltar que, para além do nome, a composição e as atividades
do Nucleo Filodrammatico Libertario mostram uma nítida confluência entre o que
seriam, numa visão segmentada, os propósitos de “filodramáticos” e de “libertários”.
91
Segundo Mattos, David José Lessa, Op.Cit, p.115, “a prática do teatro amador no meio operário” era
tão intensa “que, por exemplo, os tecelões da Fábrica Santana, no Brás, dispunham de um teatro próprio,
o Cassino Penteado, mandado construir pelo patrão, Antonio Álvares Penteado”. Acompanhando os
anúncios da imprensa operária, vemos que este teatro foi bastante utilizado nas representações de nosso
teatro operário amador.
92
Ver notícia em O Amigo do Povo, 25.10.1902.
93
Ver Toledo, Edilene. Anarquismo e Sindicalismo Revolucionário – Trabalhadores e Militantes em São
Paulo na Primeira República; São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2004; p.22.
94
Ver Mendes, Samanta Colhado. Op. Cit; p.231.
73
Ele era um grupo formado por italianos, assim como os tradicionais filodrammatici de
São Paulo e, ao mesmo tempo, possuía uma nítida inclinação libertária, se não pelo
nome, pelas peças por ele encenadas.
A participação de Giulio Sorelli no grupo também não esconde seus desígnios
libertários. Não vem ao caso discutir aqui se Sorelli era anarquista, sindicalista
95
revolucionário ou socialista . Basta-nos aqui ressaltar que seus propósitos não eram
outros, a não ser os de qualquer militante libertário de então: combater em favor da
“emancipação humana”. Sabemos, por exemplo, que a peça Il Giutiziere, de sua autoria,
é um drama que está bem de acordo com os objetivos “doutrinários” assumidos pelos
grupos libertários em geral. Por isso mesmo, foi bastante encenada a partir de então nas
chamadas “festas de propaganda”. Seu enredo refere-se ao episódio em que o anarquista
Gaetano Bresci assassinou o rei italiano Umberto I, em 1898. Ora, não precisamos
assistir à peça para saber qual o juízo que Sorelli fez daquele incidente: basta atentar
para o título da obra.
E o que diríamos de Elvira Camilli, o outro membro do grupo de quem nós
temos alguma notícia? Nada sabemos sobre sua militância, para além das atividades no
Nucleo Filodrammatico Libertario. Sabemos apenas que em 5 de dezembro de 1903
aquele grupo filodramático com o seu nome representou uma peça intitulada Guglielmo
Tell, em homenagem ao lendário herói suíço que, no início do século XIV, teria lutado
contra o domínio austríaco. Ora, desnecessário dizer que um herói desse tipo, em uma
época de litígios territoriais entre Itália e Império Áustro-Húngaro, fazia também um
apelo aos sentimentos nacionalistas que alguns italianos, influenciados pelo
Risorgimento, cultivavam então.
Sendo assim, se levássemos a sério uma rígida segmentação entre filodrammatici
e amadores libertários, diríamos que, no interior do Nucleo Filodrammatico Libertario,
Elvira Camilli representaria os primeiros e Sorelli os últimos. No entanto, insistimos
que as fronteiras ideológicas podiam ser mais tênues do que imaginamos às vezes. O
próprio Sorelli, em um texto atribuído por Edilene Toledo “provavelmente” a ele,
manifestara em outros tempos um sentimento nacionalista não muito diferente daquele
de alguns filodrammatici de São Paulo.
Vejamos o que esse militante italiano teria dito sobre suas idéias pregressas:
95
Sobre a polêmica, ver em Toledo, Edilene, Op. Cit., capítulo intitulado A formação política de um
imigrante.
74
“Eu também fui republicano apaixonadíssimo e convicto. Admirei sempre em Mazzini a sua
inteligência, sua alma fortemente revolucionária. Mazzini acordou o povo quando ele dormia,
falou a ele de liberdade e o povo ouviu sua boa palavra e começou o trabalho para a revolução.
Entretanto, amigo, as idéias de Mazzini eram sublimes a seu tempo. Mas como o progresso
caminha [...] eu me declarei socialista após ter me convencido de que uma República, por melhor
que seja, nunca fará com que o trabalhador seja realmente econômica e politicamente
emancipado”96 .
Tal admiração por certo não era exclusividade de Sorelli. Outros militantes
parecidos com ele devem ter também, em algum momento de suas vidas, namorado os
princípios revolucionários do republicanismo italiano. Da mesma forma, aqueles
imigrantes que louvavam os heróis nacionais do Risorgimento, em muitos momentos,
devem ter admirado também os princípios libertários propagados pelos militantes
anarquistas (e/ou sindicalistas revolucionários). A atmosfera ideológica de então era, de
fato, bem complexa. Não nos surpreende, assim, a enorme fluidez de idéias que aqueles
imigrantes não raro manifestavam. Com isso não queremos dizer que não houvesse
distinções ideológicas definidas. Mas, como a própria Edilene Toledo acaba
reconhecendo em sua obra, as “classificações rígidas não levam em consideração as
mudanças que os militantes viveram ao longo de suas vidas e a própria natureza de
alguns momentos”97.
Não seria exagero dizer o mesmo para os grupos amadores de São Paulo.
Classificá-los de forma rígida como “filodramáticos diletantes” e/ou “amadores
libertários” seria atribuir a eles um esquematismo didático que dificilmente possuiriam.
Mesmo considerando a severidade de alguns discursos militantes na imprensa operária,
notamos que, na prática, as aproximações e os intercâmbios entre amadores da classe
trabalhadora eram mais constantes do que as disjunções. Aliás, em momento algum os
atores dos grupos ditos libertários deixaram de se considerar amadores. Enfim, se eles
não se julgavam profissionais, por que diferenciá-los daquilo que se chama de
“diletantes”? Aliás, o próprio nome “filodramático” permaneceu em grupos ditos
“libertários” que surgiram bem depois de 1908. Não nos esqueçamos do Grupo
Filodramatico Solidariedade (1920-1921) e do Grupo Filodramatico Libertas (1920), já
citados no início do capítulo. Temos também o Circulo Filodramatico Libertário (não
96
Ver a citação em Toledo, Edilene. Op. cit.; p.28.
97
Ibid.; p. 120.
75
confundir com o grupo homônimo supracitado), que atuou, dentre outras, em uma festa
organizada pelo Círculo de Estudo Sociais Conquista do Porvir, em 13 de abril de
191298. Encontramos também uma Societá Filodrammatica Studio e Dilletto; esta, em
99
30 de abril de 1912, organizou uma festa em favor do periódico La Battaglia .
Poderíamos ainda citar outros grupos amadores de São Paulo que, mesmo surgindo
depois de 1908, possuíam nomes que, apesar de não indicarem inclinação libertária,
atuavam em festas beneficiando ligas de resistência, sindicatos, periódicos anarquistas
ou “companheiros” necessitados100.
Vejamos mais um exemplo que ilustra o que pretendemos dizer. O periódico
paulistano O Amigo do Povo, em sua edição de 22 de novembro de 1903, publicou uma
pequena nota sobre as chamadas “festas libertárias”. Estas, expressamente nomeadas
assim, estariam sucedendo-se “ininterruptamente” em São Paulo. Nelas, “milhares de
pessoas” estariam se reunindo para assistir a peças que “os grupos filodramáticos são
obrigados a repetir”. Por que tais grupos repetiam aquelas encenações? Segundo a nota,
para satisfazer o desejo do público, sempre ávido de ver e sintetizar “naquelas cenas a
sociedade que morre para dar lugar à sociedade que nasce”. A crer no que diz a nota,
bem antes de 1908, portanto, aqueles filodramáticos de origem italiana estariam já
encenando peças que, ao que parece, estavam bem de acordo com os propósitos dos
libertários. Afinal, quem, senão os próprios libertários, pregava explicitamente o ocaso
da sociedade capitalista e o advento de um “porvir melhor”? Aqui, ao invés de crítica,
temos, da parte de um periódico libertário, um verdadeiro elogio ao trabalho realizado
pelos filodramáticos de São Paulo.
Portanto, deixemos de lado essa distinção entre filodramáticos “diletantes” e
amadores “libertários”. Até porque essa discussão refere-se exclusivamente ao contexto
paulistano. E, se em São Paulo tal segmentação é suspeita, no Rio então ela nem sequer
pode ser mencionada. E por falar em Rio, voltemos ao caso do Grupo Teatro Social
98
Ver, em A Lanterna, anúncio publicado em 02.03.1912. Em La Battaglia, ver anúncio de 13.04.1912.
99
Ver, em La Battaglia, anúncio publicado em 01.05.1912.
100
Por exemplo: ver em A Plebe (29.05-12.06 e 19.06.1920) anúncio de festa organizada pela União dos
Operários Metalúrgicos em que o Grêmio Dramático Luzitano encenaria a peça O Veterano da
Liberdade. Ainda em A Plebe (27.11.1920), ver anúncio da festa organizada em benefício do Grupo
Editor “Neno Vasco”; nela o Grupo Dramático Pierrot representaria a peça O Vagabundo. No mesmo
jornal, em anúncio publicado no dia 13 de novembro de 1920, o Grupo Dramático Amor e Mocidade
aparece na programação de uma festa em favor de um operário paralítico; nela os amadores encenariam
Os Filhos da Canalha e O Pecado de Simonia. Em Alba Rossa (13.10.1919), ver notícia de festa em que
o corpo cênico do Círculo Maria Falcão atuou em favor de A Plebe. Além de Primo Maggio, o grupo
encenou o drama anticlerical Os Ladrões da Honra, também bastante representado em nossas festas.
76
daquela cidade. Ficou faltando analisar uma única cláusula do regulamento aprovado
em assembléia pelos elementos daquele conjunto teatral. Analisemo-na.
Até aqui, tudo bem. As migrações acima citadas, como tantas outras,
expressariam os constantes deslocamentos que marcavam as trajetórias bem errantes de
dos amadores que estudamos. Era comum um determinado amador atuar em diferentes
101
Em notícia publicada em A Terra Livre de 4 de agosto de 1907, o autor (C.M.), ao se referir a um
espetáculo do Grupo Teatro Social, afirma que “o camarada Portas tem em casa um viveiro de futuros
artistas, porque a Tata e o Armando, que sempre trabalharam no `Mestre´[de Rousselle], são um encanto”.
102
Ver Rodrigues, Edgar. Os Companheiros – vol. 4. Florianópolis, Editora Insular, 1997; p.153.
78
103
Ver na página 42 desta pesquisa a transcrição do estatuto publicada em Novo Rumo de 19 de setembro
de 1906.
104
Sobre a questão, ver Rodrigues, Edgar. Os Companheiros – Vol. 1. Rio de Janeiro, VJR – Editores
Associados, 1994; p. 149. Ver também Rodrigues, Edgar. O Anarquismo na Escola, no Teatro, na
Poesia. Edições Achiamé Ltda, Rio de Janeiro, 1992;p.113.
79
ele não é o mesmo ao qual estamos nos referindo aqui. Em nossa pesquisa, tomamos
muito cuidado com as informações que o importante memorialista apresenta: elas nem
sempre correspondem ao que encontramos nos documentos. Edgar Rodrigues não
manifestava o rigor que é cobrado dos trabalhos acadêmicos. Acreditamos que muitas
de suas informações têm como lastro apenas a sua memória. Isso não desmerece, é
claro, o importante trabalho por ele realizado. Sem esse trabalho nossa pesquisa seria
bem mais complicada!
O outro problema da solução por nós encontrada é que, de fato, existiu no Rio de
Janeiro um grupo intitulado Teatro Livre. No entanto, as informações que temos sobre
ele só se tornaram mais constantes a partir de agosto de 1908, ocasião em que já não
aparecem mais informações sobre o Grupo Teatro Social (vimos que o último indício
deste conjunto teatral aparecera em 14 de março de 1908). E o mais intrigante é que, em
anúncio publicado no periódico A Voz do Trabalhador do dia 22 de novembro de 1908,
está prevista para o dia 28 daquele mês uma festa em que o Grupo Teatro Livre,
“ensaiado pelo ator Mariano Ferrer y Goñi, ex-ensaiador do Grupo Dramatico Teatro
Social”, encenaria a peça Os Maus Pastores, de Octave Mirbeau (“tradução do amador
Ulisses Martins”). Sendo assim, ao que tudo indica, é possível que, naquele momento
(segundo semestre de 1908), o Grupo Teatro Social já não mais atuasse e o Grupo
Teatro Livre tivesse se tornado o seu sucedâneo. No entanto, para além de Mariano
Ferrer, é impossível saber se outros membros do Teatro Social estiveram também
presentes no Teatro Livre.
O último indício que encontramos do Grupo Teatro Livre apareceu em A Voz do
Trabalhador no dia 1º. de maio de 1909. Trata-se de um anúncio de uma festa prevista
para ocorrer no dia 15 daquele mesmo mês. Dentre outras peças, consta da programação
a representação de O Triunfo, de Carrasco Guerra. O anúncio informa que a peça fora
proibida pela polícia em Lisboa e depois levada à cena naquela cidade com alguns
cortes. Aqui, no entanto, a representação seria “na íntegra”! Outro traço curioso deste
anúncio é que ele apresenta um dos raros momentos em que um grupo amador resolvia
investir em si mesmo. Contrariando a tendência de realizar eventos em benefício de
outrem, desta vez o Teatro Livre resolveu “colocar as manguinhas de fora”. Afirmava-
se no anúncio que a renda da festa seria destinada “a cenários, adereços e guarda roupa”
para as próximas encenações. A justificativa era a de que o grupo vinha recebendo uma
80
grande quantidade de peças novas e os gastos com os recursos cênicos estavam sendo
“dispendiosos”. No anúncio, o grupo fez um apelo ao auxílio de todos.
Não sabemos se essa festa de fato ocorreu – não encontramos nenhuma notícia
posterior relativa a ela. Também não sabemos se o Grupo Teatro Livre continuou
atuando depois disso - nenhum outro registro dele foi encontrado nos órgãos da
imprensa operária.
No entanto, veja que interessante! Se uns desaparecem, outros ressurgem. Dois
anos depois, o periódico carioca A Vanguarda publicou uma pequena notícia
105
informando que o Grupo Teatro Social estava “definitivamente reorganizado” . Por
meio desse registro, sabemos também que as suas “bases” seriam as mesmas já
analisadas acima e que de seus serviços só poderiam se utilizar os sindicatos “desta
Capital” (ou seja, do Rio). Outra coisa: depois de um longo entreato, o grupo voltava
sob a direção de quem? De Mariano Ferrer, o mesmo que fora já seu diretor de cena e
que transitara também pelo Grupo Teatro Livre. Não sabemos o que aconteceu com os
demais membros da formação anterior. É provável que alguns deles tenham novamente
se juntado à nova formação. Também não sabemos se esta reedição durou muito tempo.
Ao que tudo indica, não – nenhum outro registro dela foi por nós encontrado. Daqui em
diante, só encontraremos, no contexto do Rio, um outro grupo homônimo que apareceu
bem mais tarde, em 1921. Mas, com certeza, sua constituição era bem diferente e esta já
é uma outra história. Chega de confusões!.
105
Ver A Vanguarda do dia 17 de junho de 1911.
81
daquele anúncio em que surge pela primeira vez a menção ao Grupo Teatro Livre.
Vimos, no entanto, que tal anúncio provavelmente referia-se ao próprio Teatro Social.
Naquela programação de festa, Ulisses Martins aparecia como um dos atores que
encenariam a peça A Escala, “comédia social” de E. Norès. Mais tarde, o tipógrafo
ingressou na Liga Anticlerical do Rio de Janeiro e passou a atuar no grupo dramático
vinculado a ela. Sabemos, por exemplo, que no dia 2 de maio de 1912 Ulisses Martins
tomou parte na encenação de Avatar, um drama social de Marcelo Gama 106.
Outra amadora que também pulou de um grupo para outro foi Auzentina Neiva.
Em notícia publicada em Liberdade (1ª. quinzena de abril de 1918), seu nome apareceu
no elenco de O Pecado de Simonia, obra anticlerical que analisaremos em nossa
pesquisa. Ela atuou, junto com o Grupo Dramatico 1º. de Maio, em uma festa
organizada pelos marceneiros do Rio e realizada no dia 16 de março de 1918.O autor
anônimo da notícia referiu-se a ela como sendo uma “novel amadora”, o que nos faz
pensar que aquela era sua estréia nos palcos. Tecendo um elogio à atuação de
Auzentina, o comentarista afirmava que, na ocasião, ela “teve o ensejo de mostrar suas
aptidões” para o teatro, mostrando-se ser alguém que “de futuro será uma amadora de
merecimento”. De fato, parece que Auzentina gostou da experiência. Isso porque, nos
meses seguintes, ela continuou atuando. Vemos seu nome aparecer depois em outros
registros sobre o Grupo 1º. de Maio. Sabemos também de sua atuação, em meados
daquele ano, na Escola Dramática do Clube Ginástico Português. Em notícia publicada
no mesmo periódico Liberdade (2ª. quinzena de julho de 1918), o comentarista anônimo
fez elogios rasgados à atuação dos amadores, ressaltando que Auzentina Neiva “vai dia
a dia acentuando o carinho com que estuda os seus papéis”.
As perambulações dos amadores não ocorriam apenas no interior de uma mesma
cidade. Sabemos, por exemplo, que alguns deles transitavam entre grupos teatrais de
diferentes cidades. Este é o caso das irmãs do ativo militante Raimundo Primitivo
Soares, mais conhecido como Florentino de Carvalho. Matilde, Maria Angelina, Maria
Antonia e Pilar Soares, influentes amadoras do teatro anarquista, acompanharam o
irmão mais velho não apenas na adoção da ideologia ácrata, como também em suas
mudanças de cidade. Sabemos que a família Soares provinha da Espanha. Segundo
Edgar Rodrigues, Florentino de Carvalho, irmão mais velho, veio de Oviedo para São
Paulo com a idade de 10 anos, aqui chegando provavelmente em 1889. Mais tarde, vai
106
Ver A Lanterna de 11 de maio de 1912.
82
com sua família para Santos, ingressa no sindicalismo, é preso e se vê obrigado a partir
para a Argentina (provavelmente sozinho). Em 1914, a família Soares voltou para São
Paulo, estabelecendo-se na Rua Bresser, no bairro do Brás. Ao que tudo indica, foi a
partir de então que se iniciou o envolvimento das irmãs Soares com a dramaturgia
libertária. No entanto, devido ao caráter fragmentário e esquivo das informações sobre
teatro na imprensa operária paulistana, encontramos um único registro assinalando o
nome de uma das irmãs Soares na programação de uma festa em favor do periódico A
Obra. Trata-se de um anúncio já mencionado no início do capítulo. Ele apresenta o
nome de Maria Antonia Soares como membro do Grupo Os Modestos. No entanto, não
temos por que duvidar do grande envolvimento teatral das irmãs Soares em São Paulo.
Em entrevista oferecida por Maria Angelina a Edgar Rodrigues, em 1984, fica evidente
que suas atividades nos palcos das festas operárias já eram intensas naquele período de
suas vidas107.
Sabemos também que, em 1923, a família Soares partiu para o Rio de Janeiro e a
sua casa, situada na Penha, virou ponto de encontro para reuniões anarquistas e para
ensaios de peças libertárias. Segundo Edgar Rodrigues, as obras agora ensaiadas seriam
108
depois representadas nos salões do Centro Galego e da Associação dos Cocheiros .
Matilde, Maria Angelina, Maria Antonia e Pilar Soares109 ingressaram, provavelmente
em 1925, no Grupo Renovação Teatro e Música, que estendeu suas atividades até
1935110.
Outra família bem ativa no teatro amador era a dos irmãos Boni. Mais uma vez,
é Edgar Rodrigues que nos ajuda a reconstituir parte das trajetórias de seus membros.
Em Os Companheiros, o memorialista afirma que a família Boni, de origem italiana,
saiu de Espírito Santo do Pinhal (estado de São Paulo) e foi para Cordovil (subúrbio do
Rio de Janeiro) no início do século XX. Os nomes dos irmãos Amílcar, Estevam, Elvira
e Carolina Boni foram encontrados em diferentes registros sobre teatro na imprensa
operária (sobretudo carioca). Não sabemos o nome do pai desses três irmãos . Mas, de
107
Ver menção a tal entrevista em Rodrigues, Edgar. Os Companheiros – vol. 4. Florianópolis, Editora
Insular, 1997; p.121.
108
Ibid.; p.87.
109
Não temos motivo para confundir esta Pilar Soares com uma outra Pilar que atuava já em 1907 no
Grupo Teatro Social (eixo central deste capítulo). Isso porque, se acreditarmos na biografia de Edgar
Rodrigues, Pilar Soares (assim como todas as suas irmãs), viviam ainda em São Paulo naquele ano .
Sobre a Pilar do Grupo Teatro Social, ver notícia publicada em A Terra Livre no dia 4 de agosto de 1907.
110
Não devemos confundir este grupo com o Grêmio Artístico Renovação, que atuara nos anos de 1921 e
1922, também no Rio. Pode ser que houvesse alguma relação de continuidade entre um e outro. No
entanto, suas composições são diferentes, assim como os contextos em que atuam.
83
acordo com Rodrigues, ele já professava idéias socialistas na época em que ainda vivia
no interior de São Paulo 111. No entanto, foi provavelmente no Rio que os irmãos Boni
passaram a defender, de forma mais direta, os princípios anarquistas e anticlericais.
Desde o início da década de 1910 temos importantes indícios da atuação dos irmãos
Boni no grupo vinculado à Liga Anticlerical do Rio de Janeiro (a partir de 1912
nomeado Grupo Dramático Anticlerical).112 Nesta época, Elvira e Carolina ainda eram
crianças e subiam aos palcos principalmente para recitar poesias.
Mais tarde, em 1918, sabemos que os irmãos Boni atuaram também no Grupo
Dramatico 1º. de Maio. Em notícia publicada no periódico Liberdade da 1ª. quinzena de
abril de 1918, temos a informação de que Elvira e Carolina, já não tão crianças,
participaram - em festa mencionada logo acima (aquela organizada pelos marceneiros
do Rio) - de um “ato de cabaret”. Devemos frisar que, para esta apresentação, além dos
nomes já conhecidos, temos referência a uma outra integrante da família: a jovem
Ernestina Boni, provavelmente uma prima dos já citados irmãos. Na mesma festa,
realizada no “Salão Teatro” dos marmoristas, Amílcar Boni, junto com Auzentina
Neiva, atuou na representação de O Pecado de Simonia, comédia anticlerical de Neno
Vasco. Meses depois, o mesmo Amílcar Boni tomou parte na peça citada, desta vez em
uma festa organizada em benefício do já mencionado periódico Liberdade113.
Impossível calcular a extensão exata das atuações teatrais desta família. Temos
algumas referências de outras pessoas, com o mesmo sobrenome, que atuaram anos
antes em grupos amadores de São Paulo. Sabemos, por exemplo, que no dia 6 de
setembro de 1903, por ocasião da inauguração do Teatro de Vila Mariana, um amador
114
chamado G. Boni atuou em um drama intitulado Francesca da Rimini . Anos depois,
por ocasião de festa organizada em favor da fundação de uma Liga Anticlerical em São
Paulo, o nome de Tobias Boni aparece registrado como tendo encenado no drama
115
Galileu Galilei . Como saber se estes dois amadores que atuaram em São Paulo
111
Sobre a questão, ver Rodrigues, Edgar. Os Companheiros – Vol. 1. Rio de Janeiro, VJR – Editores
Associados, 1994; p. 39.
112
Sobre as atuações da família Boni junto à Liga Anticlerical, ver os seguintes registros: A Lanterna,
notícias publicadas em 10.02.1912, 28.09.1912 e 28.02.1914; no mesmo jornal, ver anúncio de
13.07.1912; em A Guerra Social, anúncio publicado em 21.09.1912; em A Voz do Trabalhador, anúncio
de 15.07.1913.
113
Ver Liberdade da 2ª. quinzena de junho de 1918.
114
Ver A Lanterna, 12 e 13.09.1903.
115
Ver A Lanterna, 14.04.1911. Menos de um mês depois, Tobias Boni aparece ao lado de Edgard
Leuenroth, Oreste Ristori e Benjamin Mota como um dos fundadores da Liga Anticlerical de São Paulo.
Ver, a respeito, A Lanterna, edição de 6 de maio de 1911.
84
pertenciam ou não à mesma família Boni que representava no Rio? Talvez jamais
tenhamos uma resposta conclusiva a esta questão. No entanto, temos ao menos uma
razão para acreditar que sim: ambos atuaram em espetáculos que foram divulgados por
A Lanterna, órgão eminentemente anticlerical. Como os irmãos Boni do Rio também
eram ativos militantes anticlericais e também atuavam no teatro, G. Boni e Tobias Boni,
apesar de estarem em São Paulo, talvez tivessem algum parentesco com a família
radicada no Rio. No entanto, não dispomos de nenhum dado concreto que confirme
nossa hipótese.
1.6. Recapitulando
Com tudo isso, gostaríamos apenas de ressaltar o quanto as histórias dos
amadores e de seus grupos eram sinuosas e repletas de contratempos. Pelo menos em
certo sentido, o caráter fragmentário das informações que obtivemos sobre eles expressa
a descontinuidade de seus próprios descaminhos. É claro que suas trajetórias eram
errantes, cheias de obstáculos e adversidades.
O historiador francês Jacques Rancière estudou alguns casos em que indivíduos
do proletariado sentiam-se inclinados para as práticas intelectuais ou artísticas. Já no
prólogo de sua obra A Noite dos Proletários, Rancière afirma que o título não é de
forma alguma uma metáfora. Ou seja, o autor desenvolve um estudo sobre aquilo que
alguns poucos trabalhadores realizavam à noite - não no ambiente de trabalho, mas em
casa. Aquele historiador debruça-se sobre “a dor pelo tempo roubado a cada dia
trabalhando”.116 Os sujeitos sociais que ele pretende analisar eram trabalhadores que
cultivavam uma sensibilidade e um pendor intelectual que dificilmente se coadunavam
com as atividades que exerciam – não porque tais atividades fossem “inferiores” ou
menos dignas, mas por consumirem-lhes todo o tempo que poderiam dedicar a outras
práticas mais introspectivas e/ou menos tormentosas. Nessas noites não dormidas, esses
trabalhadores cultivavam seus “sonhos para o futuro”, assim como seu “paraíso da
identidade”117.
116
Ver, Rancière, Jacques. A Noite dos Proletários – Arquivos do Sonho Operário; São Paulo,
Companhia das Letras, 1988; p. 9.
117
Expressão de Alan Corbin extraída de Corbin, Alan. O segredo do indivíduo. In: Áries, Philippe e
Duby, George. História da Vida Privada – Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo,
Companhia das Letras, 1991; p.461.
85
2.1. Preâmbulo
O tempo estava “bastante ruim” em São Paulo naquela noite de sábado, dia 15
de fevereiro de 1908. Mesmo assim, segundo comentários de Crítico em A Lucta
Proletaria, o salão do Eden Club – situado então na Rua Florêncio de Abreu, nº. 22 –
“estava bem cheio de público”. A grande maioria dos que lá se encontravam era
composta por marceneiros, “com suas respectivas famílias”. Também, não era para
menos: a festa fora organizada justamente pela Liga dos Marceneiros de São Paulo. O
mais interessante, para nossos propósitos, é que ela contou com uma programação
repleta de espetáculos teatrais118.
Cada peça encenada naquele evento manifestava um nítido caráter “social”. Il
Martire, por exemplo, que deu início à festa, nada mais era do que o prólogo de um
drama social de Giulio Sorelli intitulado Il Giustiziere. Este drama, como vimos no
capítulo 1, trata da vida de Gaetano Bresci, um justiceiro anarquista “a quem tanta
miséria, tanto sofrimento faz erguer o braço num gesto desesperado de protesto e de
vingança”119. Segundo Crítico, os amadores que encenaram aquele prólogo, “embora
ainda novos na cena”, desempenharam bem seus respectivos papéis. O mesmo elogio
recaiu sobre as atuações de Jorge, Tonio e Anita, amadores de São Paulo que, naquela
festa, atuaram em Senza Patria, de Pietro Gori - drama social cujo próprio título já
indica em parte seu teor ideológico. No entanto, para Crítico, nem tudo estava perfeito
na encenação de Senza Patria. Fazendo jus ao codinome adotado, ele não se esquivou
de tecer alguns comentários desabonadores às atuações em cena. Para ele, o amador
Arthur, por exemplo, “não esteve à altura de seu papel”. Dona Andrea e Giovanna
“podiam fazer melhor” se estudassem bem seus personagens. Por fim, fechando a parte
teatral da festa, subiu ao palco um outro drama social: Triste Carnevale. Este, para
Crítico, estava “ficando velho – apesar de novo – por ter sido representado em todos os
salões de São Paulo”. No que se refere a este último espetáculo, o único destaque do
articulista recaiu sobre Carlos, que teria desempenhado bem o seu papel. Sobre os
demais amadores que participaram da encenação de Triste Carnevale, nenhuma palavra
foi dita.
118
Ver notícia sobre a festa organizada pela Liga dos Marceneiros em A Lucta Proletaria de 29.02.1908.
119
Ver comentários sobre a primeira encenação de Il Giustiziere em O Amigo do Povo de 25.10.1902.
87
Novelli. Em uma crítica fulminante, o autor afirma que a obra era um “arcaico
dramalhão de capa e espada”, cheio de duelos e frases “grotescamente heróicas”. Para
ele, Amor e Desventura (“que nome!”), não passava de uma “borracheira idiota, capaz
de fazer evacuar uma sala cheia de gente de bom gosto mais depressa do que uma carga
de cavalaria com o `salve-se quem puder´ dos momentos de pânico”. O drama serviria
para muita coisa, “mas para educar os assistentes nem por sombras!”. Concluindo seu
raciocínio, o autor afirma que as sociedades de resistência só cumprirão com o seu papel
“quando deste forem conscientes os associados e o mostrarem nos seus atos”. Portanto,
não seria “imitando pessimamente os burgueses nas exterioridades” que se ganharia
força. Esta, pelo contrário, adviria da “consciência que fortifica as uniões”.
Por fim, contendo os ataques, o autor pede para que os associados da União não
levem a mal seus comentários. Incita-os a não desistirem de “aumentar as suas forças,
enveredando pelo caminho seguido pelo proletário moderno”. Para o Grupo Ermette
Novelli, recomenda a escolha de “obras modernas, emancipadoras”, com as quais seja
possível “honestamente arcar”. Ele pede ainda aos amadores para que não o ponham
de “cabelos em pé com a fereza das suas estocadas e a fúria descatelada dos seus
brados...”.
Impossível saber até que ponto críticas desse tipo influenciavam ou não as
atividades dos grupos amadores. O fato é que, desde então, nunca mais encontramos
vestígios da atuação do Grupo Ermette Novelli.
Um outro indício do que seria a concepção de “velho” na imprensa operária
aparece em uma notícia publicada no periódico carioca Novo Rumo, fundado em 1905 e
cujo editor era o alfaiate espanhol Alfredo Vasquez. No dia 20 de fevereiro de 1906,
saiu naquele jornal a apreciação que um autor anônimo fez a respeito de “um espetáculo
promovido pelo grupo editor do Novo Rumo” . Realizado no salão do Centro Galego, o
evento teria contado com a presença de “mais de 500 pessoas entre as quais muitas
jovens”. Apesar do público considerável, o autor afirma que o “espetáculo correu
discretamente, à altura dos amadores, despretensiosos porém cheios de boa vontade”.
Para ele, a festa não foi uma “noitada”, mas bem poderia ser considerada fora do
comum. Isso porque ela teria sido bem diferente dos outros eventos do tipo, nos quais
“só se cultiva a banalidade vista através de uma arte chatíssima de dramalhões
sexagenários – produtos de uma literatura gotosa e caduca”. O que nos chama a atenção
nos comentários do autor anônimo é a valorização da presença de um público jovem no
90
espetáculo por ele comentado. De certa forma, a própria menção a esse tipo público
aparece como sinal de que aquele evento fora diferente dos demais.
Mas, enfim, o que diríamos sobre a noção de “velho” nas duas notícias citadas?
O que ambas explicitam é que, para alguns articulistas da imprensa operária, o “velho”
na dramaturgia estava associado aos dramalhões. Estes, se eram fulminados por alguns
críticos daquela imprensa, é porque, evidentemente, alcançavam aceitação não
desprezível junto ao público. Caso contrário, seriam simplesmente desprezados.
Mas o que nos chama a atenção é que, na verdade, a aversão aos dramalhões não
era privilégio da imprensa operária e nem era tão recente. Já em 1889, o jornal A
Província de São Paulo – mais tarde nomeado O Estado de São Paulo – lançou uma
severa crítica ao drama Rogério Laroque, encenado naquele ano em nossa Paulicéia.
Segundo os comentários do autor, a peça seria um daqueles dramalhões que misturam
ingredientes convencionais: paixões “arrebatadas e infelizes”, “adultério punido”,
“condenação injusta de um inocente” e, por fim, a mão invisível da “justiça divina”, que
redime o injustiçado no último ato. Não indiferente ao enredo, o comentarista ressalta
que o drama era perfeitamente “insuportável”, apesar de ter agradado ao público 121.
Alguns anos depois, em 1895, no mesmo jornal, apareceu uma nova estocada: “O
público quer o ruim: operetas descosidas, dramalhões à la croix de ma mère. Não há
papéis a criar”, afirma o comentarista numa violenta crítica aos atores brasileiros. Por
fim, completa o descontente de O Estado de São Paulo: “A condição geral do artista é
nada”122.Ainda no mesmo jornal, quase vinte anos depois (os dramalhões são mesmo
irredutíveis!), em comentário sobre a Companhia Dramática Nacional, a crítica
afirmava: “O que [ela] precisa é um outro repertório, isto é, peças do nosso tempo. Os
dramalhões e os melodramas não são para as platéias de hoje” 123.
Portanto, notamos que em O Estado de São Paulo, assim como nos periódicos
“operários”, os dramalhões também aparecem associados à idéia de “velho”, de “gasto”
ou de “mau gosto”. É provável que, diante do ambiente cultural da época, uma parcela
significativa da crítica em geral estivesse mesmo inclinada a censurar os surrados
dramalhões. Com suas fórmulas gastas e todos os seus ingredientes previsíveis, o
gênero não passava incólume pelo crivo daqueles que se incumbiam de sancionar (ou
121
Ver citação do excerto em Magaldi, Sábato e Vargas, Maria Thereza. Cem Anos de Teatro em São
Paulo. São Paulo: Editora SENAC, 2001; p. 22.
122
Ibid.; p.29.
123
Ibid.; p. 59.
91
não) as obras alheias. Ao que tudo indica, havia na época (assim como, em parte, ainda
hoje) todo um complexo de códigos e juízos que apontava para o “bom gosto” no
sentido diametralmente oposto ao lugar onde se encontravam os dramalhões.
Certamente, não seria de “bom-tom” um crítico elogiar então uma obra do gênero.
Sendo assim, os tão populares dramalhões estavam fadados a ser fulminados pela crítica
em geral.
No entanto, tomemos cuidado para não assimilar mecanicamente os juízos
proferidos em O Estado de São Paulo aos que emergem da leitura dos jornais operários.
Nestes, os insultos contra os dramalhões revestem-se de sentidos próprios. Tentaremos
compreender esses sentidos seguindo a senda daquilo que seria o reverso do “velho”, ou
seja, a noção de “novo”.
Em sua edição de 12 de outubro de 1912, o periódico anticlerical A Lanterna
publicou uma nota informando sobre a recente criação, em São Paulo, do Grupo
Dramatico Ideia Moderna. Analisemos um trecho daquela pequena notícia.
De há muito era sentida entre nós a falta de um grupo que se dedicasse à propaganda
por meio do teatro e que, rompendo com a velharia a que se agarram em geral os amadores do
palco, se dedicasse a representar peças de índole social e educativa.
Pois essa lacuna acaba de ser preenchida com a fundação do Grupo Dramatico Ideia
Moderna [...].
Bom, parece-nos evidente que, pelo menos em certa medida, a tal “velharia” a
que se refere o autor da nota tem a ver, é claro, com os tão achincalhados “dramalhões
sexagenários”. No entanto, aqui, a alusão ao que estaria ultrapassado aparece
inversamente associada àquilo que o autor considera como positivo: ou seja, as “peças
de índole social e educativa”. Neste documento, como nos outros registros já descritos,
entender o sentido da crítica ao “velho” na dramaturgia passa pela compreensão daquilo
que os articulistas da imprensa operária julgavam ser a sua contraparte. Esta, sempre
num sentido positivo, reveste-se, na maioria das vezes, do mesmo caráter “social” e/ou
“educativo” mencionado acima. Ou então, como já vimos na crítica ao Grupo Ermette
Novelli, aquilo que se considera como “positivo” na produção dramática aparece
relacionado com o adjetivo “moderno”.
92
124
Ver em A Lanterna de 18 de outubro de 1913, artigo de Neno Vasco intitulado Cinema do Povo.
125
A respeito da concepção de arte proposta por Proudhon, ver Reszler, André. A Estética Anarquista.
Rio de Janeiro: Achiamé, 2009; cap. 2. A expressão entre aspas é do próprio André Reszler e encontra-se
na pág. 22 da mesma edição.
94
coletividade”, caso se identificasse com a arte. Para Capllonch, era preciso arrancar das
elites o monopólio sobre as artes. Só assim os artistas poderiam buscar inspiração em
seu próprio meio: o povo, pois a arte é eminentemente popular. O autor pergunta: por
que tornar a arte subalterna a “objetivos inconfessáveis” se o “seu profundo e grande
poder de sugestão muito aproveitaria a sociedade, encaminhando para fins mais úteis e
sãos”?
Por fim, o autor afirma que urge conduzir a arte em “roteiros novos”. Seria
preciso propagar e implantar a arte social. Esta teria uma “finalidade elevada” e a todos
interessaria. Capllonch termina a primeira parte de seu artigo dedicado à arte social com
palavras que expressam bem os seus propósitos: “Educar, melhorar, elevar” - e não
apenas divertir. Sem risco de exagero, podemos dizer que todos os demais articulistas
da imprensa operária que trataram da arte modulavam na mesma freqüência.
Ao longo de toda essa primeira parte, ao discutir o que seria a arte social,
Capllonch não foi além da enunciação de objetivos vagos. A defesa de uma arte mais
“humana” e “útil”, voltada para o alcance de uma finalidade “elevada” e “sã”, expressa
uma boa intenção, mas nada nos diz sobre o que, de forma concreta, Capllonch entende
por arte social. Só descobrimos o que de fato pensa o autor sobre o assunto na segunda
parte de seu artigo: Arte social II (março de 1922).
Nela, Capllonch retoma algumas reflexões iniciadas já no primeiro excerto.
Além de apontar novamente para a direção de uma produção artística mais “humana”,
“sã” e “útil”, ele sofistica ainda mais seu raciocínio a respeito da função social da arte.
Abordando a produção artística inserida no contexto da sociedade de classes, Capllonch
afirma que aqueles que fazem da arte privilégio da riqueza e do poder “obram mal”. O
raciocínio do autor parece claro. A “tendência evolutiva do Século” é a de os povos
aproximarem-se. Para ele, o capitalismo inevitavelmente desaparecerá (e com ele a
exploração de uns pelos outros), assim como as “superstições religiosas”. Dessa forma,
a quem os artistas submeter-se-iam no futuro? Com o fim do dinheiro, a quem tais
artistas “subservientes” poderiam oferecer suas obras, “se elas carecem do atrativo
coletivo e humano”?
Diante da inevitável derrocada do capitalismo, Capllonch afirma que aos
“figuristas”126 cabe ir treinando “suas futuras concepções, em novos padrões”. É tempo
126
O curioso é que nos dois artigos, apesar de tratar da “Arte” em geral, Capllonch centra suas atenções
na pintura. Seria ele próprio um pintor? Ou sua atenção à pintura tem a ver com a idéia de que este ramo
95
das artes poderia retratar a realidade de maneira mais eficiente aos propósitos de “conscientização” do
povo? Impossível elaborar alguma resposta a tais questões. De qualquer modo, é à pintura que Capllonch
se refere toda vez que ele sente a necessidade de oferecer algum exemplo mais concreto.
96
quais lidamos, a tão propalada arte social (e, por extensão, o teatro anarquista).
Vejamos mais de perto o raciocínio desenvolvido por Capllonch relacionando-o com os
seus prováveis referenciais ideológicos e culturais.
129
Ibid.; p. 116.
130
Ver, em A Terra Livre de 23 de setembro de 1906, artigo intitulado Crônicas do Rio.
98
131
havia levantado a questão da utilização da arte como instrumento de poder . Abria, a
partir de então, uma prolífica discussão que visava, antes de tudo, atingir o conceito de
“obra-prima” e a própria autoridade adquirida pelo “artista genial”. Em meio a tal
discussão, não raro a profissão de artista e a própria arte foram colocadas em xeque. No
afã de desautorizar a manifestação de autoridade arrogada pelos artistas, alguns
expoentes do anarquismo passaram a debater o papel social da arte.
Nesse enfrentamento, talvez tenha sido Proudhon quem chegou a conclusões
mais extremadas. Em Do Princípio da Arte e do seu Destino Social, Proudhon inclusive
anuncia a morte da arte. Vejamos o que diz a respeito o próprio anarquista francês em
sua obra.
A sociedade separa-se da arte; coloca-a fora da vida real; faz dela um meio de prazer e
de divertimento, um passatempo que não a preocupa; é o supérfluo, o luxo, a vaidade, a ilusão; é
tudo o que se quiser. Não é uma faculdade nem uma função, uma forma de vida, uma parte
integrante e constituinte da existência 132.
131
Sobre as discussões levantadas por William Godwin, ver Reszler, André. Op. Cit.; p.8.
132
Ver Proudhon, Joseph apud Reszler, André. Op. Cit; p. 17.
133
Ver Reszler, André. Op. Cit.; p.18.
134
Ibid.; p.18.
135
Ibid.; p.50.
99
desenvolver uma “arte social” que estaria em franca oposição à “arte burguesa”.
Desenvolvendo uma intensa atividade cultural junto à classe trabalhadora de Paris
(atividade que, por sinal, incluía inúmeras representações teatrais), o grupo chega até a
publicar uma revista intitulada, não por acaso, L´Art Social. É justamente em tal revista
que Pelloutier afirma: “Só é grande a arte que subordina a forma à Idéia (isto é, à Idéia
Social) e nesta encontra a sua razão de ser [grifos nossos]” 136.
Tanto no contexto francês como naquele analisado em nossa pesquisa, parece-
nos evidente que o objetivo das atividades culturais organizadas pelos militantes era o
de promover um declarado enfrentamento à produção cultural das elites. Para tanto, era
preciso revestir aquelas atividades de um proclamado caráter popular e/ou operário.
Não obstante o discurso por vezes segmentário de alguns dirigentes sindicais, vimos -
no caso das apropriações dos recursos tecnológicos da indústria cultural - que, na
verdade, a constituição de uma identidade operária (mesmo que militante) fazia-se de
forma menos “autêntica” do que às vezes se propugnava 137. No entanto, se a proposta
estética defendida pelos militantes com os quais lidamos não era assim tão “autêntica”,
nem por isso deixava de ser efetivamente alternativa. O que observamos claramente no
discurso de Capllonch, como nos demais, é a constituição de um complexo referencial
contra-hegemônico – no campo das artes como no da cultura em geral. E como toda
dinâmica vinculada aos processos de hegemonia e contra-hegemonia, esta também não
deixa de comportar em sua constituição inúmeras contradições. Se, por um lado, a
tentativa de constituir uma identidade operária própria impulsionava os militantes que
estudamos no sentido contrário aos padrões hegemônicos, por outro, notamos em
diversos momentos uma sensível incorporação de elementos culturais que já haviam
conquistado respaldo junto aos padrões hegemônicos consagrados. Afinal, é o próprio
Capllonch quem nos diz: “`Arte-Social´, de interesse e proveito coletivos será aquela á
[sic] que contendo `tudo´ quanto de bom, útil e indispensável possua a arte atual, se
agregue `finalidade elevada´”. O que significa o “tudo” entre aspas no discurso de
Capllonch? A nosso ver, uma indisfarçável disposição para selecionar os elementos que,
de alguma forma, sejam de bom proveito na “arte atual”. Arte que, diga-se de passagem,
Capllonch não deixa de criticar – por vezes violentamente.
136
Pelloutier, Fernand apud Reszler André. Op. Cit.; p.51.
137
Ao longo desta pesquisa, analisaremos inúmeros indícios que também nos obrigam a relativizar
(embora não rejeitar totalmente) a noção de “autenticidade”.
100
138
Ver Reszler, André; p.19.
139
Ibid.; p. 42.
140
Ver Kropotkin, P. apud Reszler, André. Op. Cit.; p.42.
141
Ver Reszler, André. Op. Cit.; p. 43.
101
Segundo Cristiano, tais autores, forçando a “razão fácil das platéias populares”, não
apresentam nenhum “conceito honesto que traduza intuitos de educação ou de beleza”.
Mesmo assim, passariam impunes diante dos jornalistas (que os favoreceriam) e da
“ignorância manifesta do público” (que os aceitaria).
Para além da crítica, o que importa aqui é que, mais adiante, Cristiano de
Carvalho começa a demonstrar um pouco de sua própria concepção de arte. Para ele,
uma arte “sem um puro objeto de sinceridade ou de fé”, sem intenções de “purificar os
espíritos obcecados por doentios preconceitos”, é uma arte que “falta à nobreza da sua
missão social” – é uma arte que visa “se adaptar ao cretinismo plutocrático do meio”.
Para ele, uma “literatura dramática” que não seja capaz de arrancar o povo do “torpor
da vida cotidiana” não pode “despertar os nossos pensamentos [...] no conflito moral do
século”.E, segundo o autor, é justamente uma benéfica ação moral “que se requer na
arte de hoje”. De acordo com ele, toda essa “cantata de polichinelos” ou essa
“pretensiosa filosofia de ratos de biblioteca” é exatamente o que constitui a “bagagem
artística das empresas teatrais”. O grande problema dessas encenações profissionais
seria que, apesar de seu “recorte plástico” apresentar uma certa “graça estética” 145, seus
personagens, no entanto, nos contariam apenas “intrigas anedóticas”. Por isso, tais
encenações não seriam capazes de nos oferecer a “nota intensa dum largo sentimento
d´alegria ou d´angústia humanas em que a multidão se reconheça”. Nelas não se
exaltaria a sinceridade nem se sentiria latejar a “Vida que queremos glorificar e de que o
povo só pode tirar os elementos dum lógico ensino moral e intelectual”. O autor
pergunta então: de que serve “ouvir gritar pela gorja [deslavadamente, cinicamente?] o
procurado vocabulário das crônicas” de idades antigas, colocando na ação dramática a
“fascinação mortal do passado, anestésico de todas as energias [...], desânimo para a luta
[...]?”. De forma categórica, ele afirma, na seqüência, que isto não é o teatro do povo, o
“nosso teatro”. Para o autor, a “literatura dramática de hoje democratiza-se”. Sendo
assim, não se compreende o esforço de um dramaturgo interessado simplesmente em
apresentar “a existência mais ou menos complicada de um tipo d´exceção”.
Na seqüência, Cristiano de Carvalho faz uma sintomática reflexão: para ele, a
“observação chamada imparcial nada quer dizer”. Ou seja, se o artista cria personagens,
ele o faz no “interesse da demonstração. No teatro não se representa para descrever, mas
145
Vemos aqui mais um indício de que nem tudo no campo adversário é refutado. Parece evidente a
valorização da “graça estética” proporcionada pelo “recorte plástico” do teatro profissional. Isso, mais
uma vez, obriga-nos a relativizar a suposta “pureza” cultural dos militantes com os quais trabalhamos.
104
sim para provar.” Para ele, uma dramaturgia que se pretende descomprometida trai a
própria noção de teatro, seu caráter intrínseco de “provar” alguma coisa, não apenas de
descrever. O que Cristiano espera então do “Teatro do Povo”? “Desenvolver uma alta e
serena filosofia social de justiça, de liberdade, de igualdade” e, ao mesmo tempo, fazer
uma “acerba crítica do mundo atual”; o objetivo desse tipo de teatro seria ativar “o fogo
instintivo da insubmissão”. Seu interesse não seria fazer do escritor um “retórico
moralista”. Tal escritor, comprometido com o “Teatro do Povo”, não poderia viver
indiferente “ao seu meio e aos seus contemporâneos”.
Inicia-se então uma argumentação que muito nos interessa. Mais adiante
analisaremos melhor esse argumento do autor. De acordo com ele, se uma obra-prima
nada mais é do que a “idealização do sentimento e da inteligência populares”, ela há de
se reconhecer nos heróis que fez criar. No entanto, para isso, é preciso que a alma do
povo encontre-se “livre pelo cérebro do entrave artificial das atuais relações”. Não
obstante todos os empecilhos criados pela sociedade de classes, apesar de toda a
desigualdade manter a arte distante do povo, Cristiano de Carvalho consegue enxergar
uma promissora luz no fim do túnel. Para ele, uma noção de verdade, justiça e beleza
persiste, “em gradações diferentes”, em todas as almas. Cumpriria ao “Teatro do Povo”
popularizar este sentimento comum. O mais interessante é que, sempre segundo o autor,
a tal popularização deve ser feita “num sentido favorável a sua exaltação”.
Devemos assim ressaltar que, nos três artigos acima comentados (assim como
naquele de Capllonch), algumas características da “finalidade social” da arte e/ou do
teatro encontram-se nitidamente reveladas. Para Neno Vasco, toda arte, em suas
“formas superiores”, é “verdadeiramente revolucionária”. Sendo assim, a educação
estética do povo seria capaz de promover uma conscientização; esta, por sua vez,
abriria caminho para uma profunda transformação social. Para Otávio Brandão, a arte,
mais do que a ciência, está destinada a cumprir um papel fundamental na “libertação
dos pequenos”. Segundo ele, cabe ao artista retratar a miséria humana e, assim, comover
as “boas almas”. Estas, devidamente sensibilizadas, acorreriam em “auxílio dos
deserdados”. Já para Cristiano de Carvalho, uma arte “sem um puro objeto de
sinceridade ou de fé” faltaria “à nobreza da sua missão social”. O verdadeiro teatro, por
sua vez, não poderia ser “imparcial”. Para além de “descrever”, ele deveria
“demonstrar”, “provar”. Aquilo que Cristiano chama de “Teatro do Povo” deve não só
desenvolver “uma alta e serena filosofia social”, como também fazer uma “acerba
105
crítica do mundo atual”. Numa palavra, seu objetivo seria ativar “o fogo instintivo da
insubmissão”.
No que tange ao significado da “finalidade social”, devemos ressaltar dois
aspectos que mais sobrassem nos textos aqui comentados. Primeiramente, identificamos
uma noção de telos que perpassa as mensagens de quase todos eles. Excetuando-se
talvez o artigo de Cristiano de Carvalho, os demais projetam claramente uma espécie de
“fim último” que, não por acaso, aparece relacionado invariavelmente com a idéia de
inevitabilidade da revolução. O advento desta, apesar de “inevitável”, seria mais ou
menos demorado, dependendo do uso que se fizesse da arte. Esta, desde que de acordo
com sua “finalidade social”, teria o poder de acelerar o ritmo da história, precipitando os
acontecimentos e, dessa forma, antecipando a supressão das dores daqueles que sofrem
em nossa sociedade. Ou seja, a arte fundada em sua “finalidade social” contribuiria para
a “conscientização” do povo, abrindo assim caminho para a grande transformação
prevista para o futuro. Uma arte comprometida com sua “finalidade social” cumpriria
com sua “missão” precípua: a emancipação humana ou, como quer Brandão, a
“libertação dos pequenos”.
Projetada assim para o futuro, a arte social adquire, na concepção de muitos
articulistas da imprensa operária, um irretorquível caráter de “novo”, de “moderno”.
Para os articulistas com os quais trabalhamos, o “novo” (e/ou “moderno”) em arte é
claramente associado com a noção subjacente de “finalidade social”. Afinal, se o
capitalismo está fadado a desaparecer e, em seu lugar, uma nova ordem há de surgir,
toda produção artística, para ser “moderna”, deve estar de acordo com essa nova
realidade a ser criada. Sendo assim, na imprensa operária, quase sempre a “verdadeira”
obra-de-arte é aquela que manifesta, no juízo de cada articulista, um inequívoco
comprometimento com as “causas sociais” (igualdade, justiça, liberdade etc.), por mais
abstratas que estas possam ser. Por outro lado, uma produção artística que não manifeste
aquela nobre “finalidade” fica relegada ao “passado”, é categoricamente tachada de
“arcaica”, “sexagenária”, “obsoleta”, “caduca” etc. Portanto, se tais estigmas recaem
sobre esse tipo de arte, isso ocorre por dois motivos correlacionados: primeiro, porque
ele não manifesta aquela “finalidade elevada” de que nos fala Capllonch; segundo,
porque, por não manifestar aquela tal “finalidade”, ele aparece intimamente associado à
106
integralmente em cânones estéticos hegemônicos para julgar uma obra como de “bom
gosto” ou não. Isso não quer dizer que eles não fossem de forma alguma influenciados
por esses cânones. Apenas que, para tais articulistas, a incorporação dos padrões
hegemônicos (quando se verifica) dava-se sempre de forma crítica e reticente Além
disso, voltamos a insistir, a “finalidade social” é um dos critérios de julgamento que
sobressaem na imprensa operária – embora, como veremos, não o único.
De qualquer forma, parece-nos claro que, na concepção estética sobre a qual nos
debruçamos, uma obra-de-arte “verdadeira”, para cumprir com sua “finalidade social”,
deveria preocupar-se sobremaneira com a verossimilhança 147. Encontramos inúmeros
147
Utilizamos aqui a palavra em seu sentido mais comum. Ou seja, não estamos nos referindo ao sentido
de “verossimilhança” na teoria literária, em que a palavra relaciona-se com a coerência interna de uma
obra literária no tocante ao mundo imaginário das situações recriadas. Em nossa pesquisa,
“verossimilhança” adquire o sentido mais prosaico de “verossímil”, refere-se àquilo que se assemelha à
realidade, que parece “verdadeiro”. Embora em determinados artigos a preocupação com o primeiro
sentido (da teoria literária) também se manifeste, é com a noção mais prosaica que nós trabalharemos em
nossa pesquisa – não porque desejamos, mas porque ele parece ser mais enfatizado nas fontes sobre as
quais nos debruçamos.
108
148
Ver A Terra Livre do dia 1º. de junho de 1907.
109
cometer uma injustiça dessas [será?]. Além disso, os episódios que culminam na revolta
e na fuga dos condenados são representados “com uma facilidade que absolutamente
nada tem que ver com a realidade”. Primeiro porque o guarda que vigiava os
prisioneiros ficava dentro do cubículo que servia como cela. Segundo porque, diante de
uma insolência do guarda, os prisioneiros se revoltam e o guarda, em vez de castigá-los
como de costume, recorre ao diretor do presídio. Este, por sua vez, entra na masmorra
com chicote na mão e sem escolta alguma – coisa que, segundo Alacid, nunca
aconteceria de fato. Tem mais: Alacid afirma que, na vida real, se um diretor cometesse
um erro desses seria imediatamente destituído do cargo, o que não acontece até o fim da
peça. Além de tudo, os presos, após a revolta, fogem pela porta. O autor da notícia acha
que seria bem melhor se Guedes Coutinho criasse uma condição de fuga mais
complexa, mostrando as argúcias e sutilezas envolvidas nos complicados planos de
evasão em cadeias reais.
Por fim, Alacid pede para que o autor não desanime. Afinal, o drama “revela
aptidões para o teatro”. Alacid sugere ao autor (Guedes Coutinho) que estude melhor os
personagens e observe com mais atenção os tipos humanos.
Ora, parece-nos evidente que as críticas feitas à peça Antonio recaem
principalmente sobre seus aspectos “inverossímeis”. É importante reiterar que Salvador
Alacid não era o único, na imprensa operária, a se opor às inverossimilhanças nas peças
teatrais. Observamos vários outros exemplos do tipo nos artigos e notícias que
pesquisamos 149.
Aliás, a oposição aos aspectos “artificiais” da dramaturgia não era privilégio da
imprensa operária. Mais uma vez, os jornais operários não estavam sozinhos. Exemplos
149
Em A Voz do Trabalhador de 15.08.1908, ver comentários sobre a peça O Exemplo, de Mota
Assunção. Neles, o autor afirma que a obra, “em conjunto, é muito interessante e bem elaborada”. Isso
porque ela “tem cenas cheias de vida e realidade”. A única crítica recai sobre o primeiro ato. Este
apresentaria um final “um tanto ilógico”. Ver em A Lanterna de 11 de junho de 1914, crítica à peça Santa
Aquilina Mártir, levada ao palco por um grupo de amadores católicos. Para João Eduardo (autor da
crítica), o drama está cheio de “asnices, inverossimilhanças e infâmias”. Ver em A Terra Livre de 20 de
dezembro de 1907 comentários sobre o desempenho de ator que representou o papel de um velho na peça
As Vítimas, de F. Boutet. Caracterizado “muito jovem” e desempenhando o papel com “voz sonora”, ele
não se parecia com um “velhote degenerado pelo álcool e alquebrado por uma longa vida de misérias e
sofrimentos”. Ver edição da 2ª. quinzena de maio de 1918 do periódico Liberdade; nela, O Leigo comenta
atuação de Auzentina Neiva na peça Primeiro de Maio dizendo que a menina estava “vestida de
camponesa, com sapatos que nunca viram o campo”. Ver em A Terra Livre (edição de 23.09.1906) elogio
à peça O Infanticídio, de Mota Assunção. Questionando aqueles que acharam o julgamento retratado no
quarto ato maçante demais, Frederico Bessa (autor dos comentários) afirma que também aqui há um
grande valor na peça, uma vez que aquelas cenas retratam o que de fato ocorreria no interior dos
tribunais. Outros exemplos do gênero poderiam ser dados. No entanto, apesar da longa vida, o espaço é
curto. Fiquemos por aqui.
110
150
Ver A Província de São Paulo apud Magaldi, Sábato e Vargas, Maria Thereza. Op. Cit.; p.15.
111
151
Ficelle é uma espécie de baguete fina apreciada pelos franceses.
112
Para Alacid, o povo precisa ser “educado” e, por isso, precisa ser “contrariado” [as
palavras entre aspas são do próprio Alacid].
Prestemos atenção no que diz o crítico. Não obstante seus possíveis deslizes
autoritários, a preocupação de Alacid em “educar” o povo não seria justamente a
expressão daquela valorização da “finalidade social” com a qual o teatro (e a arte em
geral) deveria se relacionar? Se Alacid pede ao autor (Guedes Coutinho) para, em parte,
esquecer as preferências do público, privilegiando assim o caráter “educacional” de sua
produção, é porque ele atribui a tal caráter uma importância fundamental. Sendo assim,
para ele, o dramaturgo deve “educar” o público, torná-lo “consciente” de sua situação
social, fazê-lo compreender o que se passa consigo e com a sociedade em geral. Alacid
não utiliza a expressão, mas não seria exagero dizer que, na verdade, para ele, o autor de
uma peça deve, na verdade, buscar aquela tão propalada “finalidade social” que tantos
outros defendiam na imprensa operária. Aliás, podemos mesmo dizer que, para Alacid
(assim como para os outros articulistas com os quais trabalhamos), todo o resto deve, de
alguma forma, relacionar-se com aquela “finalidade” – incluindo aqui (por que não?) a
própria verossimilhança. A preocupação com esta, em inúmeros casos por nós
analisados, aparece nos discursos dos articulistas quase sempre associada àquela
“finalidade social” – seja de forma direta ou de forma indireta (por meio das idéias
correlacionadas de “educação”, “conscientização”, “moralização” e/ou
152
“propaganda”) .
Como vimos, na imprensa operária a busca daquela “finalidade social” se dá por
meio da “conscientização” do povo (ou, em outras palavras, por meio de sua
“educação”). No entanto, para “conscientizar” esse povo é preciso “sensibilizá-lo”. Tal
152
Ver, em O Amigo do Povo do dia 25 de outubro de 1902, notícia já citada sobre a encenação de Il
Giustiziere!. Nela, o autor anônimo afirma que o drama dá “pretexto para muita propaganda”. Isso
porque, dentre outras coisas, ele foi escrito por um operário que põe em cena a vida que ele conhece,
sente e, por conseguinte, consegue retratar de forma fiel. Ver artigo já comentado de Otávio Brandão em
Spartacus, edição de 20 de setembro de 1919. Para Brandão, como vimos, o retrato convincente da “dura
realidade” teria o poder de comover as “boas almas” que assim viriam em “auxílio dos deserdados”
[“finalidade social”]. O próprio Capllonch, como também já vimos, em Renovação de março de 1922,
acha que a arte, para cumprir com sua “finalidade elevada”, precisa “documentar” as misérias e injustiças
sociais. Para ele, uma obra deve “plasmar” o sofrimento humano para chocar e/ou sensibilizar o grande
público. Em A Lanterna de 17 e 18 de outubro de 1903, ver comentários de José Rizal a respeito do
drama anticlerical O Dever, de Joaquim Alves Torres. Para Rizal, essa obra seria “muitíssimo melhor” do
que a peça Electra, de Pérez Galdós. Isso porque O Dever exprimiria de forma mais correta o “perigo
negro” representado pela Igreja. O jesuíta Angelini, personagem dessa peça, seria o retrato perfeito do
padre “tal como ele é” [palavras de Rizal]. O comentarista termina chamando a obra de “sã”, de
“moralizadora”; para ele, trata-se de uma “obra de combate contra a mentira e o erro”, combate que,
como vimos, seria um meio para se atingir aquela “finalidade”.
113
“sensibilização”, por sua vez, só ocorre quando o artista consegue retratar a realidade de
forma comovente. E para comover, é preciso que ele expresse a vida “como ela é”. Até
porque, em diferentes concepções artísticas com as quais os anarquistas lidavam, a
sensibilidade artística do povo brota justamente da experiência vivida. Sendo assim,
uma obra-de-arte que não consiga retratar essa experiência de forma convincente
(destacando seus aspectos mais pungentes) afasta-se do povo e, por isso mesmo, não o
sensibiliza. E sem sensibilizar, uma obra-de-arte não prepara ninguém para o advento da
“grande transformação” social projetada para o futuro. Numa palavra, obras assim, que
não expressam as situações como “de fato são”, não cumprem com sua “finalidade
social”. Resumindo: para os articulistas com os quais lidamos, a valorização da
verossimilhança aparece quase sempre relacionada (mas nem sempre submetida) àquela
“finalidade social” que vimos analisando. Portanto, tal valorização adquire na imprensa
operária um caráter não só estético, como também moral. Retratar “fielmente” a
realidade não é apenas uma questão de “bom gosto” (embora também o seja), é
sobretudo um dever. Todo artista “comprometido socialmente” deve preocupar-se de
maneira séria com a “fidelidade” ao real (embora, como veremos, não só com ela). Caso
contrário, não cumprirá com sua função precípua.
Conclusão semelhante a esta chegara já Francisco Foot Hardman. Em sua
influente obra Nem Pátria, Nem Patrão, o citado autor afirma que, na concepção dos
militantes anarquistas, o comprometimento da verossimilhança prejudicaria “a eficácia e
os efeitos da desejada propaganda” 153. Até aqui, estamos plenamente de acordo. No
entanto, o problema é que, nas abordagens de Foot Hardman (como, ademais, em quase
todas as pesquisas sobre o tema), haveria entre os “núcleos dirigentes” e a “classe” uma
espécie de fosso. No interior das “festas de propaganda”, esse fosso só seria transposto
quando os elementos culturais da segunda ficassem subordinados aos desígnios
“doutrinários” dos primeiros154 .
153
Ver Foot Hardman, Francisco. Nem Pátria, Nem Patrão. São Paulo: Editora UNESP, 2002; p.108.
154
Ibid.; p. 90. Ao comentar as apropriações do lúdico pelos militantes anarquistas, o autor afirma: “a
`alegria estuante´ deve aliar-se à utilidade da `propaganda fecunda´, como meio eficaz e subordinado´ [os
grifos são do próprio autor]. A presença daqueles elementos [lúdicos] só se justificaria se eles fossem
fiéis, como instrumentos mobilizatórios, aos desígnios da propaganda libertária”. Ou seja, para Foot
Hardman, haveria uma relação de subordinação da “alegria estuante” frente aos “desígnios da
propaganda”.
114
155
Ibid.; p. 94.
156
A metáfora da “cidadela obreira” talvez seja uma vaga referência à “cidade operária” de Georges
Sorel. Caso Foot Hardman tenha feito tal associação, devemos salientar que o uso da expressão “cidade
operária” no pensamento soreliano reveste-se de um sentido bem diferente daquele que Foot Hardman
parece conferir à sua “cidadela obreira”. Isso porque, para Sorel, embora a “cidade operária” opusesse-se
à decadente “cidade estética” engendrada por nossa civilização, em sua concepção não havia entre as
duas uma relação necessária de exclusão e nem mesmo de subordinação. Na visão de Sorel, embora a arte
no futuro socialista só consiga sobreviver como criação proletária, tal sobrevivência só ocorreria de fato
quando a “cidade operária” retomasse a “cidade estética”. Ou seja, a “cidade operária” de Sorel não se
fechava à influência do passado e, ao que tudo indica, também não o submetia de forma imediata (Sorel
estava atento às inúmeras mediações que a produção artística envolvia). Embora haja no espírito de Sorel
uma oposição entre os desejos de conservação e de movimento, essas “duas direções opostas dão às suas
teses a sua tensão criadora e a sua extrema integridade”. A respeito da concepção soreliana aqui adotada,
ver Reszler, André. Op. Cit.; capítulo 5.
115
157
Ver Foot Hardman, Francisco. Op. Cit.; p. 93.
116
Deixemos bem claro, antes de tudo, que Foot Hardman não despreza os
inúmeros contatos que os militantes anarquistas mantiveram com os elementos da
cultura popular. Por exemplo, vimos já em outros momentos que ele é bastante sensível
àquela aproximação entre o “doutrinário” e o “lúdico”159. E quando, no trecho acima,
ele se refere à “fortaleza cultural” que a moral anarquista supostamente construiu, seu
objetivo é enfatizar a resistência daqueles militantes frente aos “males da ordem
dominante”, não aos supostos efeitos perniciosos das manifestações culturais do povo.
No entanto, aqui também, a metáfora da “fortaleza cultural” parece ser uma conclusão
lógica daquela premissa acima indicada. Ou seja, por se manterem sempre desconfiados
diante de toda manifestação cultural que fugisse ao “controle” dos núcleos de
propaganda, os militantes anarquistas, entrincheirados no interior de sua “cidadela
obreira”, viam-se na obrigação de construir uma “fortaleza” que desse conta de protegê-
los dos efeitos “maléficos” da influência cultural externa.
Ora, tendo em vista que no plano estético a atitude reticente dos anarquistas
gerava uma tensão entre o velho e o novo, entre o conhecido e o desconhecido, cabe a
nós indagar sobre a existência ou não daquela “fortaleza cultural”. Seria ela efetiva ou
aparente? Caso ela de fato existisse, onde a encontraríamos? E o que diríamos a
respeito da metáfora da “cidade obreira”? Resistiria ela a uma análise atenta das fontes?
Vejamos na seqüência.
158
Ibid.; p. 95.
159
No que se refere, por exemplo, ao período dos grandes festivais em praça pública (1917-1920), Foot
Hardman chega mesmo a enfatizar o caráter permeável das práticas culturais desenvolvidas por nossos
militantes. No capítulo 2 de sua importante obra, nosso autor afirma. “Se, por um lado, essa atitude menos
puritana e mais permeável à influência de elementos `estranhos´ à `cultura operária´ tornava as atividades
culturais anarquistas mais suscetíveis às técnicas e aos artefatos de uma embrionária indústria cultural,
por outro, retomava, no aspecto lúdico e multiforme do espetáculo, uma tradição popular anterior à era
industrial, vinculada à trajetória do carnaval e do circo”[ grifo dos próprio Foot Hardman]. Ibid.; p. 89.
117
primeiros atos a mesma dramaticidade dos seguintes (e achamos que este é o caso),
temos de reconhecer que o crítico justamente os valorizou pelo caráter intensamente
comovente de suas cenas. Segundo: o público, ao que tudo indica, também não estava
na contramão do que fundamentalmente era pregado pelos “núcleos dirigentes”. Como
vimos, a peça Antonio manifestava um nítido conteúdo “social”. Se ela “agradou
imensamente” o público, é porque, em alguma medida, este também estava de acordo
com os propósitos ditos “doutrinários” da obra. Aliás, é preciso salientar que, em meio a
seus comentários, Alacid critica a “obsecação [sic] que tem o autor de fazer
propaganda”.
Alacid, que numa visão mais segmentada seria considerado como membro dos
tais “núcleos dirigentes”160, coloca-se contra a obsessão pela propaganda. Ora, não
deveria ser ele, como membro daquele “núcleo”, o primeiro a defender a ênfase na
propaganda, no caráter “doutrinário” da peça? No entanto, não é o que ocorre aqui.
Mas, e o público? Este, de acordo com aquela mesma visão segmentada, deveria
menosprezar a “doutrina” (e com ela a propaganda) e buscar na festa aquilo que ela
oferecia de “puramente lúdico” (se é que isso existe em algum lugar!). No entanto,
como nós vimos no primeiro capítulo, é impossível separar, no contexto analisado, o
“doutrinário” do “lúdico”. Por isso mesmo, o distinto público foi à festa, assistiu à peça
(eminentemente “doutrinária”) e se deleitou tanto que Alacid não deixou de mencionar
o tal apreço. Sendo assim, fica difícil dizer onde começa o desejo do público e termina o
desígnio do articulista. Como fica então a tensão entre público e articulistas nos demais
discursos da imprensa operária? Analisemos outros exemplos.
Em 9 de junho de 1921 o periódico paulistano A Vanguarda publicou uma
notícia sobre uma festa organizada pela União dos Trabalhadores Graphicos de São
Paulo. Realizado duas semanas antes no salão do Centro Republicano Português, o
evento comemorava o segundo ano da reorganização daquele sindicato. A notícia
informa que, como as anteriores, “essa festa dos gráficos teve bastante animação”.
Segundo seu autor anônimo, o salão estava lotado e o programa foi “satisfatoriamente
executado”. Após as conferências, houve a representação de uma comédia intitulada
Casamento Inesperado. Esta, sempre de acordo com o autor da notícia, teria sido uma
160
Segundo Edgar Rodrigues, Salvador Alacid “já militava no Rio de Janeiro no dobrar do século XIX”.
Como elemento ativo do movimento operário anarquista naquela cidade, ele ajudou a fundar o jornal
Novo Rumo (provavelmente em 1905) e, mais tarde, o periódico A Guerra Social. De acordo com
Rodrigues, “Salvador escrevia bem e falava com clareza em defesa de suas idéias”. Ver Rodrigues, Edgar.
Os Companheiros – vol. 5. Florianópolis: Insular, 1998; p.152.
119
“infeliz escolha” feita pelo grupo cênico. Isso porque ela seria “uma velha comédia,
cujo autor teve a preocupação exclusiva de fazer rir” por meio de “batidos qüiproquós e
de frases apimentadas absolutamente impróprias para as festas operárias”. Nestas, para
o autor, “mesmo rindo, se divertindo, se deve procurar emprestar um fundo moral às
representações de nossos grupos”.
Dois aspectos correlacionados destacam-se nos comentários acima mencionados.
Primeiro: apesar da condenação moral à comédia Casamento Inesperado, nós não
observamos, no juízo do autor, nenhum traço de intolerância severa. Pelo contrário, o
mais interessante é que, no final, ele afirma que os “amadores, entretanto, trabalharam a
contento geral”. Segundo: como o autor não é assim tão intransigente, não encontramos
em seu texto nenhuma condenação ao riso propriamente dito. O que ele condena,
simplesmente, é “a preocupação exclusiva de fazer rir”. Para ele, uma comédia deve ir
além, buscando mesclar o prazer do entretenimento com a instrução moral. Foot
Hardman, em sua análise das “festas de propaganda”, também aponta para essa tentativa
de “aliar o prazer do entretenimento às tarefas de convencer o público da necessidade da
`emancipação social´”161. No entanto, ao enfatizar o excessivo rigor moral manifestado
por alguns elementos dos “núcleos dirigentes”, Foot Hardman talvez não tenha
percebido que, tanto na prática quanto no discurso, aquela “fortaleza cultural”
supostamente construída pela “moral anarquista” era menos inexpugnável do que às
vezes parecia ser. Enfim, a “cidadela obreira” (se é que ela existiu) não era assim tão
“impenetrável”.
Para esclarecer melhor o nosso ponto de vista, fiquemos apenas nos casos que
sugerem um sentido positivo do riso na imprensa operária. Afinal, é por meio dele que a
“alegria estuante” a qual se refere o autor citado manifesta-se francamente.
O periódico carioca Liberdade162, em sua edição da segunda quinzena de maio
de 1918, publicou uma notícia sobre o desempenho da Escola Dramatica do “Club
Ginastico Portuguez”. Do elenco, fizeram parte alguns amadores que já haviam atuado
163
em apresentações realizadas por outros grupos cariocas de teatro amador . O autor
161
Ver Foot Hardman, Francisco. Op. Cit.; p. 25.
162
Segundo Maria Nazareth Ferreira, o periódico Liberdade foi criado em 1917 e tinha como editor o
sapateiro anarquista Pedro Matera. Este, de acordo com Edgar Rodrigues, também “tomou parte nos
grupos de teatro anarquista”. Ver Ferreira, Maria Nazareth. A Imprensa operária no Brasil – 1880-1920.
Petrópolis: Vozes; 1978; p.98. Ver ainda Rodrigues, Edgar. Os Companheiros – vol. 5. Florianópolis:
Insular, 1998; p.19.
163
Dentre os amadores que tomaram parte nesse espetáculo estão Auzentina Neiva, pertencente na mesma
época ao Grupo Dramatico 1º. de Maio (ver Liberdade, edições de abril, maio e junho de 1918); R.
120
anônimo dessa notícia comenta a récita da Escola Dramática afirmando que ela
alcançara um “ruidoso sucesso”. A peça nela encenada era uma “engraçada comédia
francesa” chamada Um Filho da América. As situações cômicas do terceiro ato teriam
provocado a “hilaridade na numerosa e seleta assistência”. O último ato, por sua vez,
teria sido “delicioso” - não só pelo humor e emoção, como também “pelo cenário rico e
deslumbrante”.
Impossível saber, pelos comentários do autor da notícia, qual era o conteúdo da
peça. Não temos aqui nenhum indício sobre o possível caráter “social” da comédia. O
silêncio do autor é eloqüente. Ao que tudo indica, se ele nada diz a esse respeito é
porque, no fundo, isso talvez não fosse assim – ao menos naquele momento – tão
relevante. Para ele, o mais importante parece ter sido ressaltar a hilaridade provocada
pela encenação. E, aqui também, não temos razão para duvidar de seu relato.
Outro aspecto a frisar é que, nessa notícia, nós temos um dos poucos indícios
que a imprensa operária nos oferece sobre recursos cênicos. A exuberância do cenário é
um dado curioso que aponta para um cuidado dos amadores como o aparato do palco.
Temos aqui, mais uma vez, uma nítida preocupação com o efeito sensitivo dos
espetáculos junto ao público. E o articulista, por que não criticou aquele “cenário rico e
deslumbrante” – assim como seu apelo meramente sensorial? Afinal, se na concepção
dos militantes que estudamos era preciso “sacrificar a forma ao fundo”, porque o autor
da notícia não fez nenhuma objeção a respeito? Em nossa opinião, por uma razão bem
simples: ele também foi seduzido pelo cenário. Ora, se o autor nada diz sobre o
conteúdo da peça - se suas preocupações voltam-se principalmente para o riso do
público e para o efeito encantador do cenário - é porque, das duas, uma: ou ele escrevia
no jornal errado ou, na verdade, ele era menos “doutrinário” (e/ou “puritano”) do que a
164
historiografia sobre o movimento anarquista muitas vezes nos faria crer . De forma
categórica, estamos inclinados a adotar a segunda hipótese.
Malheiros, que naquele mesmo mês de julho encenaria um monólogo em festa onde também atuaria o
Grupo 1º. de Maio (ver Liberdade, 1ª. quinzena de agosto de 1918) e Delfim Rato, que cinco anos antes
recitara uma poesia em festa organizada pela Liga Anticlerical do Rio de Janeiro (ver A Voz do
Trabalhador, edição de 15.08.1913).
164
Para além das obras já citadas de Francisco Foot Hardman e de Maria Thereza Vargas e Mariângela
Alves de Lima, obras que - como já vimos em diferentes momentos de nossa pesquisa – dão uma ênfase
maior ou menor ao suposto caráter “doutrinário” e/ou “puritano” dos militantes anarquistas, temos outros
exemplos da historiografia que apontam para o mesmo sentido. Ver, por exemplo, Hobsbawm, Eric J.
Mundos do Trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; p. 109. Ver ainda Fausto, Boris. Trabalho
Urbano e Conflito Social. São Paulo: Difel, 1986; pp.86-87. Ver ainda Toledo, Edilene. Anarquismo e
Sindicalismo Revolucionário. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo; p. 45. Para a última autora,
121
“de forma geral, os anarquistas procuravam dar ênfase à honestidade exemplar dos operários e
anarquistas, também porque o anarquismo tinha um caráter de conversão quase religiosa” [grifos
nossos].
165
Ver Rodrigues, Edgar. Op. Cit.; pp. 201-202.
122
Santos Barbosa, por sua vez, produziu também inúmeras peças sociais. Famintos,
Pecados de Maio e A Jaula são algumas das que mais aparecem nos anúncios de festas
operárias do Rio de Janeiro. Além de dramaturgo, Santos Barbosa escrevia na imprensa
operária carioca e era um ativo militante da União dos Operários em Construção
Civil. 166
Voltemos à farsa Pacatos. A crer em comentários publicados em A Voz do
Trabalhador 167, sua estréia obteve um grande sucesso. Encenada pela primeira vez pelo
Grupo Dramatico de Cultura Social, do qual faziam parte os dois autores da peça, esta
“provocou muitas gargalhadas, especialmente entre a petizada”. Aqui, novamente, o
autor dos comentários nada diz sobre o conteúdo da farsa. Para ele, mais importante
talvez fosse ressaltar seu caráter cômico. No entanto, diante dos currículos de Zenon de
Almeida e Santos Barbosa, não temos razões para suspeitar do caráter “social” da farsa
por eles composta. Mas, é importante frisar, tais conclusões são nossas. Nada nas
notícias sobre as encenações dessa farsa nos aponta para seu conteúdo específico. Mais
uma vez, a menção ao aspecto cômico da peça e o silêncio a respeito de seu possível
aspecto “social”, parece que nos aponta para uma hipótese no mínimo plausível: o riso
aqui (como ademais em outros discursos da imprensa operária) aparece conjugado ao
caráter “social”, mas não submetido a ele.
Neste momento, o leitor atento pode questionar: “Ora, se o autor da notícia não
mencionou o caráter `social´ da farsa é porque não havia necessidade disso, uma vez
que, neste aspecto, a obra talvez estivesse de acordo com o seu juízo”. Mesmo
acreditando que o aspecto “social” da peça estivesse implícito nos comentários do autor
da notícia, o silêncio a seu respeito – assim como a menção ao caráter hilariante - sugere
uma complexa relação entre riso e “doutrina”. Relação na qual não se verifica nenhuma
espécie de subordinação plena de um termo a outro. Caso contrário, a ênfase recairia
sobre o termo determinante, não sobre o subordinado (mesmo que este fosse o motivo
desencadeador dos comentários).
Lançaremos mão aqui de mais dois exemplos com o intuito de dissipar qualquer
dúvida a respeito do que pretendemos afirmar.
O mesmo Grupo Dramatico de Cultura Social, numa festa organizada em
benefício do periódico A Voz do Trabalhador, levou ao palco, em julho de 1914, a
166
Ver Rodrigues, Edgar. Os Companheiros – vol. 3. Florianópolis: Insular, 1997; pp. 89-90.
167
Ver A Voz do Trabalhador de 1º. de janeiro de 1914.
123
168
Ver A Voz do Trabalhador de 20 de julho de 1914.
124
alguns dos articulistas com os quais lidamos, é quase sempre a razão de seus
desencantos; desencantos que, no entanto, nunca são irrestritos. A sensação que nos fica
– mesmo diante do artigo mais severo – é a de que, das camadas mais profundas do
discurso, sempre emerge uma exaltação do pendor artístico do povo (e a correspondente
valorização da cultura popular).
Vejamos um exemplo emblemático. Em agosto de 1909, o periódico carioca
Liberdade publicou um artigo escrito seis anos antes por Manuel Ugarte. Intitulado A
Arte e o Povo, o artigo começa com uma crítica à “influência embrutecedora que a má
literatura exerce sobre o povo”. No caso, o autor se refere nomeadamente aos “dramas e
romances populares”. Estes, apelando para o gozo fácil, explorariam sentimentos
egoístas e baixos que a “ignorância cultiva na multidão”. Para os produtores dessas
obras, “tudo se reduz a alcançar êxito”.
Indignado, Manuel Ugarte pergunta então: por que não substituir essa literatura
por outra “mais benéfica e redentora”, que impulsione os homens “para o
aperfeiçoamento”? Segundo o autor, era o que estariam tentando Mirbeau, Quillar,
Bouchor, Tailhade e outros. Estes autores buscariam então trocar os “bonecos
criminosos e fanáticos do teatro de subúrbio, pelos homens sãos, fortes e bem
intencionados que admiramos no `Teatro Cívico´”.
Na seqüência, Ugarte inicia uma reflexão comum aos demais artigos com os
quais lidamos: aquela sobre as injustiças que mantêm o povo afastado dos gozos da arte
e da ciência. Segundo o autor, durante séculos, o “egoismo [sic] duma minoria” negou
ao povo os “gozos intelectuais”. No entanto, com o tempo, o progresso teria alargado e
divulgado os “conhecimentos adquiridos”. Um exemplo disso seriam as bibliotecas,
hoje acessíveis ao público. Temos aqui, mais uma vez, uma valorização dos avanços
tecnológicos que ensejam a disseminação da ciência e das artes. Não obstante tais
avanços, Ugarte ressalta que grande parte das “satisfações do espírito continuam sendo
inacessíveis às classes laboriosas”. Dentre todas as artes distantes do povo, o teatro seria
a mais inacessível. Isso porque as grandes companhias, “que representam bons dramas”,
gastam muito na montagem de seus espetáculos e, por isso, cobram preços altos pelos
ingressos, afastando assim o povo. Este se vê então obrigado a procurar diversão nos
“teatrinhos de arrabalde, onde perverte seu espírito” com cenas de apelo pornográfico e
nas quais a injustiça sempre triunfa.
125
169
Trata-se de uma festa em que o Grupo Dramatico Anticlerical encenaria, no dia 30 de abril de 1913, as
peças Primeiro de Maio e Amanhã. O preço cobrado pelos ingressos era de 2$500. Ver, em A Voz do
Trabalhador, anúncios publicados nos dias 1º e 15 de abril de 1913.
126
arrabalde”) 170. No entanto, um pouco mais adiante, Manuel Ugarte parece desviar
sensivelmente o rumo de seu julgamento, chegando inclusive a vislumbrar no povo uma
possibilidade real de “conceber a beleza”. Até o homem sem instrução seria capaz disso.
Para Ugarte, ninguém pode dizer que não “se pode ser um poeta considerável, sem saber
ler e escrever”. Aliás, a grande perversidade da sociedade atual residiria justamente aí:
sendo a arte manifestação do espírito humano, é “inaudito [...] que esteja a imensa
maioria afastada dela”.
Ugarte termina dizendo que, conforme a “verdade” abre caminho nos espíritos,
esses problemas tornam-se “interrogações imperiosas”. Em cada tentativa de resolvê-los
haveria uma coroa de louros.
Numa análise superficial do artigo de Manuel Ugarte, o historiador inclinado em
ressaltar os propósitos “doutrinários” dos militantes anarquistas ficaria tentado a
perceber em suas palavras uma espécie de divórcio entre ele (articulista) e o gosto
popular. No entanto, buscando nos desvãos do discurso seu sentido mais profundo,
vemos que, na verdade, aquela suposta disjunção é mais aparente do que real.Ou,
melhor dizendo, a condenação ao gosto popular reside não no povo, mas alhures.
Vimos já algo sobre a crítica que os expoentes do pensamento anarquista sempre
fizeram ao “artista genial” e às grandes “obras-primas”. Em contraposição a essa arte
pretensiosamente sublime, são ainda os mesmos pensadores libertários que, em seus
escritos, voltam suas atenções para o povo, atribuindo a ele uma sensibilidade
“verdadeira”, “sincera”, “genuína”. Influenciados pelas idéias românticas171, alguns
teóricos anarquistas valorizam aquilo que seria a suposta “vocação artística” do homem
comum. Dentre tais pensadores, um dos que mais enfatizaram o “pendor artístico” do
povo foi Tolstoi. Não obstante seu arraigado cristianismo, o anarquismo peculiar
professado pelo escritor russo influenciou bastante o pensamento libertário
internacional, incluindo o que se desenvolveu em terras brasileiras. Segundo André
170
Um importante campo de pesquisa poderia ser aberto em razão desses comentários de Manuel Ugarte.
Eles suscitam indagações sobre as complexas relações que o teatro anarquista podia ou não estabelecer
com um outro tipo de teatro amador da época - também popular, mas sem comprometimento ideológico
mais definido. A respeito desse tipo de teatro amador - feito não apenas nos “arrabaldes”, como também
no centro da cidade do Rio de Janeiro no período estudado em nossa pesquisa -, ver em
http://www.historia.uff.br/stricto/td/1542.pdf, Franca, Luciana Penna. Teatro amador: a cena carioca
muito além dos arrabaldes. Dissertação de Mestrado apresentada na Universidade Federal Fluminense
(UFF-Niterói) em 2011.
171
Sobre a influência das teorias românticas na concepção anarquista, ver Martin-Barbero, Jesús. Dos
Meios às Mediações – Comunicação, Cultura e Hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009; pp. 42-
43.
127
Reszler, a “distinção entre a arte `verdadeira´ e a arte `falsa´ (a arte do povo e a arte da
elite) é o fundamento da estética tolstoiana”. Em outras palavras, enquanto a arte
“verdadeira” pertenceria fundamentalmente ao artista “inocente”, a arte “falsa” nasceria
justamente “da divisão da sociedade em classes opostas”172.
Temos aqui a chave para compreender o raciocínio de alguns articulistas da
imprensa operária – incluindo o próprio Manuel Ugarte. Este, como vimos, inicia seu
artigo criticando a “influência embrutecedora” que os “dramas e romances populares”
supostamente exercem sobre o povo [as palavras entre aspas são de Ugarte]. No entanto,
mais adiante, é o próprio articulista quem afirma ser o homem do povo (mesmo sem
instrução) capaz de “conceber a beleza”. Para ele, inclusive sem saber ler e escrever, é
possível que o homem comum desenvolva aptidão para a poesia. Sendo assim, se o
homem do povo é capaz de conceber o belo, por que ele busca “perverter” o espírito nos
“teatrinhos de arrabalde”? A resposta a essa intrincada questão é dada pelo próprio
Ugarte. Mostrando afinidade com o pensamento de Tolstoi, o articulista atribui essa
suposta contradição não ao povo propriamente dito, mas sim à atroz desigualdade
social. Esta seria a verdadeira responsável pela situação de “embrutecimento” em que se
encontra o povo, pois é justamente ela que nega à imensa maioria o “direito inalienável
173
do homem à criação” . Ou seja, são as clivagens sociais que engendram a
“ignorância” da multidão, impedindo a manifestação natural da sensibilidade artística
do homem comum e levando-o a buscar o gozo fácil nos romances e dramas populares.
Estes, é importante dizer, apesar de serem expressamente chamados de “populares”, não
emanariam “verdadeiramente” do povo. Seriam, pelo contrário, simples mercadorias
fabricadas por produtores que desejariam apenas “alcançar o êxito”. Ugarte parece não
reconhecer nesses dramas e romances nenhum traço genuinamente “popular” – não
obstante o nome que ele mesmo os dá.
Portanto, não podemos dizer que, no discurso de Ugarte, a condenação a essa
produção “popular” tenha como alvo o próprio povo. O que o articulista parece criticar
é a segmentação social das artes; segmentação que destinaria às elites os “gozos
intelectuais” (ou a apreciação de “bons dramas”) e relegaria à multidão uma arte de
qualidade “inferior”. É importante ressaltar que, em seu artigo, Ugarte critica não o
gosto popular propriamente dito, mas sim as desigualdade sociais e aquilo que, em
172
Ver Reszler, André. Op. Cit.; pp. 24-25.
173
As palavras entre aspas são de Reszler, André. Op. Cit.; p.7.
128
174
Ver a respeito, Reszler, André. Op. Cit.; p. 17.
129
175
Ver, a respeito, Reszler, André. Op. Cit.; pp.22-23. No entanto, além de Proudhon, outros pensadores
que influenciaram o anarquismo deram uma ênfase maior à exaltação da arte do passado. Tolstoi, é claro,
é um desses teóricos. Mas devemos ressaltar também os pensamento de Wagner e, sobretudo, Bakunin.
Este talvez tenha levado a exaltação da arte primitiva às suas últimas conseqüências, atribuindo a seu
suposto caráter “instintivo” um curioso potencial revolucionário. Ver, a respeito, Reszler, André. Op. Cit.;
pp.27-28.
130
Por isso, quando os jornais burgueses noticiam que tal artista foi muito aplaudido ou tal
obra recebeu uma verdadeira consagração, os homens conscientes não negam o seu valor, mas
dizem lá consigo e com muita razão: - Pode ser que seja verdade... Mas nós não acreditamos
nesses triunfos obtidos em presença do elegante tout Paris ou do rastaqüera tout São Paulo,
sempre as mesmas pessoas que se vestem pelo mesmo figurino afinam pelo mesmo diapasão
intelectual e na sua generalidade aplaudem os trabalhos sublinhados a lápis vermelho...
assim: muitas rupturas, mas não poucas apropriações. Afinal, nenhuma produção
artística ocorre de forma isolada. Pelo contrário, mesmo que de forma reticente e
contraditória, os intercâmbios parecem ser inevitáveis. Concluindo, mais uma vez: a
“fortaleza cultural” de nossa “cidadela obreira” é, aqui também, menos inexpugnável do
que se suspeitara alhures.
Neste capítulo, mais importante do que entender os mecanismos de produção do
hegemônico é destacar, na concepção estética veiculada pela imprensa operária, a
efetiva valorização da suposta “vocação” artística do povo. Para tanto, precisamos
entender melhor o que é, para os articulistas daquela imprensa, uma arte que
genuinamente provém do povo. Em parte, parece que já delineamos o significado que
adquire o popular nos discursos daqueles articulistas. No entanto, para finalizar,
analisaremos de perto um outro artigo que, mais do que os anteriores, parece condensar
o sentido dessa valorização do popular que tanto nos persegue.
Em fevereiro de 1922, lembramo-nos bem, a revista Renovação publicou um
artigo assinado por Romualdo Figueiredo, ator de teatro de origem portuguesa176 que
possuía sua própria seção (No meu cantinho) naquela revista. Sob o sugestivo título A
Arte e o Povo, Romualdo inicia seu artigo replicando alguns amigos seus por
acreditarem que o povo não é capaz de compreender uma obra de arte. Questionando tal
proposição, o ator de origem lusitana afirma justamente o contrário. Para ele, “o espírito
popular é um foco maravilhoso de arte”, sempre disposto a “receber e compreender uma
obra artística”, desde que tal obra “seja intuitiva, humana, vivida”.
Seguindo o mesmo raciocínio, Romualdo continua seu artigo afirmando que as
“grandes e eternas obras de Arte, daquela Arte que o povo pode sentir e criar sem larga
preparação”, seriam de autores anônimos e, portanto, pertencentes ao chamado
“espírito popular”. Mas quais seriam essas “grandes e eternas obras” que o povo sente e
176
Segundo Edgar Rodrigues, Romualdo Figueiredo nasceu em Portugal e estudou na Universidade de
Coimbra. Logo depois, foi para o Rio de Janeiro e lá se estabeleceu. Desde cedo se tornou ator
profissional. Chegou a ter uma companhia de teatro com o seu nome. Encontramos indícios dela em A
Vanguarda, edições de 10 de junho e 22 de julho de 1911. Sabemos que tal companhia excursionou pelo
Brasil naquele mesmo ano e em agosto apresentou-se no Rio de Janeiro com a peça O Papá Lebonnard.
Mais tarde, em 1920, na mesma cidade, Romualdo participou do elenco da Companhia Dramática
Nacional, cujo diretor cênico era Gomes Cardim. Em meados daquele ano, no teatro Carlos Gomes, junto
com Itália Fausta (atriz que atuara no teatro amador paulistano e agora compunha o elenco da Companhia
Nacional), Romualdo atuou na estréia da peça Pedra que Rola, de José Oiticica. Ver, a respeito, A Voz do
Povo, edição de 5 de julho de 1920. De acordo com Edgar Rodrigues, apesar de entregar-se de corpo e
alma ao teatro, Romualdo nunca conseguiu prosperar. Foi por muitos anos ensaiador dos grupos
anarquistas. Dedicava boa parte do tempo ensinando os trabalhadores a representar. Ver Rodrigues,
Edgar. Os Companheiros – Vol. 5. Florianópolis: Insular, 1998; p. 130.
132
cria sem muito apresto? O autor vai logo citando: “a harmonia e o sentimento do som,
(a música) e a harmonia e o sentimento da fantasia falada, (a Lenda)” 177. Portanto,
descortina-se em seu discurso uma estreita vinculação entre o popular e o artístico. Mas
qual seria o sentido dessa relação? Quais os desdobramentos dessa associação no
argumento que Romualdo desenvolve ?
Acompanhemos o raciocínio do autor/ator. Para ele, o povo é artista por causa de
“seus amores”, de “suas paixões veementes” e da “simplicidade de sua alma”. É esse
povo que produz os artistas individuais. Segundo Romualdo Figueiredo, o “gosto
artístico do `Artista-Povo´, é a pedra de toque da criação artística do `Artista-
Indivíduo´”. Portanto, para ele, não haveria “indivíduos-artistas” sem um “povo-
artista”. Temos aqui uma inextricável relação entre povo (coletivo) e indivíduo. Este,
para Romualdo, não deve se considerar separado daquele. Não pode nem sequer atribuir
a si os méritos para a produção de sua obra, uma vez que esta nada mais seria do que
tributária daquele espírito popular de onde toda arte genuína brotaria.
Romualdo lança então uma interessante conclusão. Segundo ele, se a arte emana
do povo, o verdadeiro artista seria aquele que possui “a força estética necessária para
dominar o povo por meio da Beleza”. Emerge aqui a identificação de um poder da arte
sobre o povo. Tal constatação conduz o autor a afirmar a necessidade de
instrumentalizar o potencial que a arte carrega consigo.Ou seja, para Romualdo, se a
arte exerce uma influência sobre o povo, ela “deve ter uma finalidade educativa”.
Justamente por isso, todo artista deve pensar “no fim social” de sua produção. O
princípio em que se assenta esse raciocínio é um velho conhecido nosso: todas as obras
que “recreiem e deleitem os sentidos”, desde que busquem sua “finalidade social e
moral”, são consideradas como “Arte” (sempre com A “maiusculoso”!!!) .
Para finalizar, Romualdo sugere uma contraposição entre as inclinações
artísticas do povo e aquilo que seria a sofisticação pedante cultivada provavelmente
pelos estetas. Vejamos de perto o que o autor afirma no último parágrafo de seu artigo.
177
Como os outros articulistas, Romualdo também parece se inspirar naquilo que os pensadores
anarquistas defendiam. É curiosa, por exemplo, a exaltação das lendas populares no pensamento dos
teóricos do anarquismo. Para Tolstoi, os contos e lendas populares constituem, junto com as parábolas
dos evangelhos e as canções populares, a “verdadeira” arte, pois satisfazem “os critérios da sinceridade e
da simplicidade”. A respeito, ver Reszler, André. Op. Cit.; p. 25. Outro teórico anarquista que fez a
exaltação de lendas e mitos populares foi Bakunin. Ver, a respeito, na mesma obra de André Reszler,
discussão sobre a concepção de arte do anarquista russo (capítulo 3).
133
E ao povo, agrada mais as sínteses rudes e humanas, que dão lições à presente
mentalidade raquítica, que as refinadas e enfermiças decadências de cérebros impotentes e
luxuriosos.
arte de situação como os cânticos da igreja, as fanfarras na parada, e não há música que
mais me agrade”178. Numa palavra, a “arte de situação” é aquela que, na concepção de
Proudhon, brota necessariamente do “espírito popular” e da experiência vivida do
homem comum.
Em parte é isso o que parece defender Romualdo Figueiredo. Para ele, toda obra
artística “verdadeira” provém da coletividade. Na íntima relação que ele estabelece
entre o “Artista-Povo” e o “Artista-Indivíduo”, Romualdo faz questão de ressaltar a
vinculação direta do último frente ao impulso criador que emana do primeiro. Reside aí
a chave para a compreensão da crítica à profissionalização no campo das artes. Como
sabemos (e alguns artigos já analisados deixam entrever), o pensamento anarquista está
quase sempre propenso a rechaçar o artista profissional; este, por meio do
desenvolvimento técnico de sua especialidade, produziria uma arte distante dos
interesses e sentimentos genuinamente populares. Contrariamente, o mesmo
pensamento anarquista atribui ao trabalhador, ao homem simples do povo, uma
profunda inclinação para a arte. Mais uma vez, quem nos aponta para essa valorização
da sensibilidade do homem comum é Tolstoi. Vejamos o que ele nos diz em sua obra O
que é a Arte?
A arte do futuro não será obra de artistas profissionais com uma atividade remunerada e
nenhuma outra. A arte do futuro será obra de todos os homens, vindos do povo, que se
consagrarão a essa atividade quando disso sentirem necessidade. 179
178
Ver Proudhon, Pierre-Joseph apud Reszler, André. Op. Cit.; p. 23.
179
Ver Tolstoi, Leon apud Reszler, André. Op. Cit.; p. 26.
135
180
Ver, na página 89, alguns aspectos da definição de “finalidade social” adotada nesta pesquisa.
136
2.5. Concluindo
Ao longo deste capítulo buscamos entender melhor a concepção de arte
veiculada no interior da imprensa operária. Em nosso percurso, alguns elementos dessa
concepção, por serem mais explícitos, foram mais facilmente identificados; outros, no
entanto, por estarem assentados nas camadas mais profundas dos discursos, tiveram de
ser revolvidos para aparecer diante de nossos olhos. Grande foi a nossa surpresa quando
nos deparamos com esses elementos mais obscuros. Confrontando-os com alguns
indícios sobre as práticas sociais em torno das festas operárias, pudemos perceber que,
não obstante sua relativa obscuridade no plano discursivo, tais elementos insuspeitados
da concepção de arte dos articulistas eram, na verdade, tão efetivos quanto aqueles que
saltavam aos olhos.
No começo de nossa pesquisa, não conseguíamos divisar muito bem esses
elementos mais obscuros. Isso porque, naquela época, nós estávamos ainda presos
demais a uma concepção esquemática que transformava o anarquista em uma espécie de
“puritano” preocupado quase que exclusivamente com a divulgação “doutrinária” de
seus princípios. Tal concepção esquemática, por sua vez, levava-nos a encarar os
complexos processos de apropriação cultural de forma demasiadamente rígida. A leitura
137
sempre mais permissiva, parece que a indistinção entre os termos era de fato
preponderante.
É possível também que em alguns dos artigos analisados a noção de “finalidade
social” tenha aparentemente sobrepujado a valorização dos aspectos formais e estéticos
da arte em geral. No entanto, como tentamos esclarecer, o relativo descaso dos
articulistas em julgar as obras pelo seu valor estético não significa, em suas definições,
uma ausência de qualquer concepção estética – nem mesmo uma anulação do estético
frente à “finalidade social”. Pelo contrário, a própria crítica aos padrões de arte
consagrados aponta para a constituição de novas concepções estéticas - nem mais nem
menos importantes do que aquela “finalidade” que as constituía. Pudemos perceber
também que tais concepções se manifestam de diferentes maneiras, dependendo dos
sentidos específicos que cada articulista desejava imprimir em seu próprio discurso.
Alguns desses novos sentidos propostos emergiram da análise que fizemos neste
capítulo das fontes provenientes da imprensa operária.
No entanto, como também pudemos perceber, não obstante os inúmeros matizes
entre os textos dos vários articulistas (ou, melhor dizendo, por causa mesmo desses
matizes), notamos um processo complexo de constituição de uma sintaxe perceptiva
própria. Os elementos dessa sintaxe condensam-se, em parte, no próprio conceito de
arte social e em seus aspectos mais visíveis: verossimilhança, “finalidade social”,
valorização do popular etc. Cada um desses aspectos expressa sentidos próprios, mas
não independentes. Pelo contrário, relacionam-se intimamente com outros sentidos
congêneres que com eles se articulam, constituindo também aquela mesma sintaxe e
sendo por ela constituída. Sem a mínima pretensão de esgotar o tema, parece que, para
além de qualquer conclusão terminante, as abordagens aqui presentes indicam novos
campos de pesquisa que devem ser abertos. Esperamos que as questões aqui levantadas
gerem não poucos frutos.
PARTE II
Nesta segunda parte de nossa pesquisa, daremos atenção especial a algumas das
peças que foram encenadas nos palcos das festas operárias que analisamos. Como já
dissemos em nossa Introdução, os critérios para a escolha dessas peças (em detrimento
das demais) têm a ver não só com o “sucesso” delas, como também com as
possibilidades que elas abrem para a análise de outras práticas sociais importantes que
também constituíam o movimento operário da época.
As comemorações em torno do 1º. de Maio, por exemplo, são analisadas no
capítulo 3 à luz das reflexões suscitadas pela obra Primeiro de Maio, de Pietro Gori.
Notamos, nessa obra, que o autor de origem italiana utilizou inúmeras idéias-imagens
que se articulam diretamente com o imaginário anarquista em torno daquela efeméride.
Nosso objetivo foi não apenas estabelecer as relações entre aquelas idéias-imagens e seu
imaginário correspondente, como também enfocar as inúmeras disputas pelo simbólico
que a data ensejava. Veremos que tais disputas adquiriram uma efetividade muitas vezes
insuspeitada.
Após as Considerações Finais, no final de nossa pesquisa, colocamos em anexo
uma pequena análise da peça Ao Relento, de Afonso Schmidt. Isso porque, como já
vimos na Introdução, ela apresenta algumas semelhanças não desprezíveis com a obra
de Pietro Gori.
No quarto capítulo, fizemos uma abordagem das peças O Pecado de Simonia e
Greve de Inquilinos, ambas de Neno Vasco. O objetivo aqui foi analisar de perto
algumas das práticas sociais que se articularam direta ou indiretamente com os
conteúdos dessas peças. Graças à análise da peça O Pecado de Simonia, pudemos
entender melhor algumas idéias-imagens cultivadas pelos círculos anticlericais
libertários. Aqui, como em Primeiro de Maio, tais idéias não estão pairando em alguma
esfera descolada da realidade concreta. Pelo contrário, elas possuem uma grande
efetividade no conjunto das atividades levadas adiante pelos círculos anticlericais. O
potencial dessas idéias-imagens manifesta-se inclusive nas articulações que os
militantes libertários fizeram para enfrentar as forças clericais da época. Surgiram, no
período analisado em nossa pesquisa, três Ligas Anticlericais entre São Paulo e Rio de
Janeiro. Analisaremos nesse capítulo um pouco das atividades dessas Ligas para
entender melhor como os militantes anticlericais libertários organizavam-se na luta
contra o poderio da Igreja Católica.
141
Por fim, ainda nesse Capítulo 4, analisaremos de perto o conteúdo da peça Greve
de Inquilinos, do mesmo autor de origem portuguesa. A abordagem em torno dessa peça
levou-nos a investigar um pouco as atividades organizadas pela Liga dos Inquilinos que
surgiu na cidade do Rio de Janeiro no segundo semestre de 1907. Indícios sobre as
atividades dessa Liga (assim como de sua congênere paulistana) aparecem nas páginas
de A Terra Livre. Acompanhando os artigos sobre as agitações do inquilinato, pudemos
perceber que a peça de Neno Vasco faz referências diretas àquela mobilização
específica. Sendo assim, Greve de Inquilinos (assim como O Pecado de Simonia)
ensejou uma análise que vai muito além do texto “em si”.
Ou seja, por meio das duas obras de Neno Vasco, pudemos entender melhor
algumas importantes práticas sociais que constituíam o movimento libertário da época
que estudamos.
É importante lembrar que, nesta segunda parte, apesar de fazermos uma
abordagem de outras práticas sociais que constituíam o movimento libertário, o teatro,
como prática social daquele movimento, continua sendo nosso eixo central.
Dedicaremos uma atenção especial às peças encenadas nas festas operárias e, quando
possível, lançaremos um olhar atento sobre as atuações dos amadores nas encenações
das referidas peças.
142
181
A respeito de tal incidente e da versão que aqui narramos, ver O Amigo do Povo, edição de
21.06.1902.
182
Ver Alves de Lima, Mariângela e Thereza Vargas, Maria; Teatro Operário na Cidade de São Paulo.
Laboratório do Idart, 1980, p. 48.
143
janeiro de 1906 (ano de intensas agitações operárias 183), o periódico carioca Novo Rumo
publicou um anúncio de uma festa organizada pelo grupo dramático da Liga das Artes
Gráficas (ver programação da festa abaixo). Diz o anúncio que o drama de Pietro Gori
seria representado em português e que a tradução fora feita por “um sócio da Liga”. No
programa da festa, o título da peça está em língua portuguesa (“O Primeiro de Maio”).
183
Na própria cidade do Rio de Janeiro, foi criada naquele ano uma Federação Operária que teve uma
curta duração, voltando a se organizar em 1907. Em abril de 1906, ainda no Rio de Janeiro, ocorreu o
Primeiro Congresso Operário Brasileiro (terceiro, se considerarmos os congressos socialistas de 1892 e
1902). Em São Paulo, no mês de maio, uma grande paralisação dos ferroviários da Companhia Paulista
mostrava sinais de que a agitação estava surtindo efeito. Sem dúvida, a festa que analisamos fez parte
desse esforço de mobilização.
144
Senhora aristocrata....50anos
Jovem........................23 anos
Ida, camponesa..........19 anos
Estrangeiro................28 anos
Operário....................25 anos
Marinheiro................30 anos
Velho camponês.......60 anos
184
A versão que utilizamos nesta análise é em língua portuguesa (data indefinida).
185
Para uma melhor caracterização dos personagens de Primeiro de Maio, ver Alves de Lima, Mariângela
e Thereza Vargas, Maria; Op. Cit., pp. 57 e 58.
145
Para além das diferenças etárias que podemos identificar entre os personagens,
notamos nas caracterizações acima uma ênfase na diversidade do mundo do trabalho. O
sentido político dessa diversidade parece ser o de abrir espaço para uma maior
interlocução com o público: fazer com que um número sempre maior de espectadores
possa se identificar com os personagens e, dessa forma, inserir-se na trama encenada –
mesmo que de forma indireta. Para entender melhor esse sentido político, façamos um
panorama geral do enredo.
Já no início da cena 1, o Jovem e sua mãe (Senhora aristocrata), entram
abraçados no palco. O primeiro, com ar enfermo, afirma estar triste. A segunda sugere
que, talvez, a razão dessa tristeza fossem os “cantos plebeus” entoados por ocasião da
data (o hino Primeiro de Maio acabara de ser ouvido). O Jovem refuta a insinuação e
diz que, na verdade, ele sente um “vácuo na alma”. Um pouco mais adiante, ele indica
precisamente onde fica aquele “vácuo”: em seu coração. Aliás, ao longo de toda a peça,
ele aponta para o peito quando se trata de indicar onde reside o seu mal. Este
personagem merece uma atenção especial. Filho da Senhora aristocrata, apesar de sua
situação social privilegiada, o Jovem é na verdade um “nobre coração”. Manifesta a
indignação e o desconforto de pertencer a um grupo da sociedade que explora e oprime
para viver na opulência. Desde o início do bozzetto, ele se mostra atormentado com as
injustiças de que é testemunha.
A Senhora aristocrata, ao mesmo tempo compassiva e confusa com as coisas que
o filho lhe diz, dirige-se com ele para sua vistosa casa. Ao chegar à porta, o Jovem
encontra as flores que Ida lá deixara. Sua mãe, um tanto contrariada, carrega-o “com
doce violência” para o interior da casa.
Eis que muda a cena. Ida sai de sua humilde morada e dirige-se para a porta da
casa do Jovem, jogando um beijo para dentro dela. Surge então a figura do “misterioso
Estrangeiro”. Ele encosta-se na cancela e pede à Ida um pouco de água. A garota corre
para dentro e volta com um jarro. Ida, com “curiosidade infantil”, pergunta ao rapaz:
“Quem és?”. O Estrangeiro afirma ser um peregrino que está de regresso ao seu país,
uma terra distante que fica no Oriente, em direção ao Levante - “verso la parte donde si
leva il sole”, repete sempre o Estrangeiro. A jovem camponesa, sempre curiosa,
pergunta então ao peregrino como é o seu país. Abre-se espaço para a descrição de um
cenário que poderíamos chamar de “utópico” e que, sem exagero, bem poderia ser o
ideal de todos os anarquistas da época. Lá, no país distante do “misterioso peregrino”,
146
Ida - Uma canção misteriosa, paira, esta manhã, no ambiente... Serão, por ventura, os
dispersos suspiros de todos os mortos de fome, que hão coligado para reclamar vindita? Dos
mineiros sepultados nos negros fundos das minas? Dos operários despedaçados pelas
engrenagens das máquinas, ou das crianças e velhos mortos de fome e frio, nos umbrais dos
portentosos palácios? [...] Não sei; não posso explicar-me... O que vos posso dizer é que : da
grande família dos trabalhadores, o que hoje faltar ao pacto de solidariedade, é um covarde.
147
Como algumas outras figuras dramáticas do teatro anarquista, Ida encarna aqui
o papel de um típico personagem recitante. Segundo Eva Golluscio de Montoya, o
“personagem recitante” é aquele que cumpre o papel de transmitir em cena a mensagem
ideológica defendida pelos círculos ácratas186. A autora argentina associa as
características desse personagem ao estilo “monológico” das peças anarquistas; estilo
“no qual se privilegiam a declamação e a conseqüente postura corporal do intérprete”.
Veremos, no entanto, que a dramaturgia com a qual lidamos nem sempre é assim tão
“monológica”. Além disso, se Ida parece enquadrar-se na tipificação de Eva Golluscio
de Montoya, outros personagens semelhantes daquele teatro são refratários a tal
padronização.
Voltemos ao enredo da peça. Convencidos por aquela jovem idealista, o
Operário e o Marinheiro resolvem não apenas paralisar o trabalho naquele dia, como,
também, seguir o peregrino na difícil viagem. Estamos já no final da cena IV. Os dois
personagens saem determinados a convencer seus companheiros: estes não podem
trabalhar naquele dia especial!
Tanto o Operário quanto o Marinheiro, assim como vários outros personagens
do teatro anarquista, servem de ensejo para preleções didáticas – no caso, em favor da
abstenção do trabalho. Nesse sentido, identificamos neles certas relações com aquilo
que Eva Golluscio de Montoya chamou de “personagens-espelho”. Para a autora citada,
os “personagens-espelho” são aqueles que recebem os ensinamentos libertários que o
autor deseja transmitir ao público. São eles que abrem espaço para a “doutrinação” em
cena187. De fato, o Marinheiro e o Operário não deixam de cumprir com essa função.
Mas não só isso... Apesar de coadjuvantes, os dois desempenham um papel importante
no argumento da peça – mesmo que tal papel seja mais deduzido do que encenado.
Como veremos, são eles que convencem seus companheiros a suspender o trabalho
186
Sobre os “personagens recitantes”, ver Golluscio de Montoya, Eva; El monólogo: una convención de
la escena libertaria (Rio de la Plata, 1900); Buenos Aires, 1990. Para nossa autora argentina, “la
dramaturgia libertaria favorece en el actor la actitud escénica de `recitante´ -ligada al estilo monológico y
al objetivo proselitista- en el cual se privilegian la declamación y la consecuente postura corporal del
intérprete. En el momento en el cual el actor se desprendía de los otros actores presentes en el tablado y
avanzaba cara al público para decir su mensaje fue siempre un instante de emoción en las veladas
teatrales anarquistas.” Sobre a questão, ver também, da mesma autora, Elementos para uma
“teoria”teatral libertaria (Argentina 1900); artigo de 1987.
187
Para saber mais sobre “personagens-espelho”, ver Montoya, Eva Golluscio de; Pactos de
representación en un teatro militante: el problema del destinatário. In: Roste, Peter y Rojas, Mario
(editores); De la Colonia a la Postmodernidad – Teoría Teatral e Crítica Sobre Teatro Latinoamericano.
Buenos Aires, Editorial Galerna/IITCTL, 1992; p. 116. Ver também Prado, Antonio Arnoni; Op. Cit., pp.
136-160.
148
naquele 1º. de Maio. Embora a peça não nos demonstre como os dois conseguiram
engajar os seus respectivos companheiros de trabalho, parece-nos claro que o Operário e
o Marinheiro exercem uma ação política subjacente ao enredo – apesar de tal ação ser
apenas anunciada (e não construída em meio à trama encenada). Portanto, aqui, como
alhures, os modelos de tipificação com os quais lidamos devem ser relativizados,
embora não rejeitados integralmente.
Estamos já na cena 5. Nela, temos no palco apenas Ida e o Jovem. Este, “com
tremente passo”, sai de seu portentoso lar dizendo temê-lo. Quando ele vê a jovem
camponesa, seu rosto irradia prazer. Ida pergunta por que ele demorou. O Jovem
responde que, apesar de ter demorado, seu coração não a esqueceu. Ida repara na
palidez do Jovem, sinal da doença que ele carrega. Ele afirma que a tristeza dos demais
o entristece e suas próprias riquezas o envergonham. Com “misterioso terror”, o bom
Jovem confessa ser a sua doença uma “herança das culpas” de seus pais. Para ele, seus
progenitores teriam gozado em demasia - enquanto os pais de Ida, por outro lado, teriam
sofrido bastante. Segundo o Jovem, seus próprios pais transmitiram-lhe o sangue já
envenenado. Entende-se agora a origem dos males pelos quais ele padece. Não é à toa
que sua doença reside no coração.
Por fim, Ida conta ao Jovem sobre a passagem daquele “misterioso estrangeiro”
que caminha rumo ao Oriente (“verso la parte donde si leva il sole”), ao “país ditoso”,
com o qual ela sonhara. O amável Jovem fica extasiado com a descrição; sente-se
rejuvenescido e deseja partir com o tal Estrangeiro. Ida previne-o das dificuldades que
eles enfrentarão no caminho. Informa-lhe sobre a jornada perigosa e sacrificante. O
Jovem, arrebatado com tal visão, afirma resolutamente que é isso o que ele deseja: “a
luta, a peregrinação misteriosa e fatal para lá, para o país das gentes livres e iguais”.
Eis que surge um novo personagem: o Velho camponês, pai de Ida. Encarnação
do servilismo vil, o Velho “simboliza a ignorância”. Nas palavras proferidas durante o
prólogo, é ele quem “forja e eterniza as algemas [...] às quais ele mesmo se sujeita”.
Constantemente ranzinza, o Velho chama Ida do interior de sua pobre casa,
reclamando por ela estar “sempre fora”. Ida responde-lhe que procura “o ar e a luz”. O
camponês sai com “a ferramenta do trabalho”, encontra o Jovem e, obsequioso, tira o
chapéu em sinal de reverência; o pai de Ida cumprimenta o Jovem respeitosamente. O
Jovem indigna-se diante de tamanho servilismo e exige que o camponês coloque de
volta o seu chapéu.
149
Segue-se uma discussão entre pai e filha. O Jovem intervém em favor de Ida.
Desnecessário dizer, o humílimo camponês cala-se diante dos argumentos do Jovem e
dispõe-se a “recolher as ferramentas”. O Velho aderiu ao protesto? Ainda não. Ele
“recolhe as ferramentas” para se dirigir ao serviço. O Jovem, com nítida indignação,
pergunta se ele vai mesmo trabalhar - enquanto os demais camponeses paralisam os
serviços naquele dia. “Porventura o homem não nasceu para trabalhar?”, argumenta o
Velho. Pobre Velho...
Na seqüência, tanto o Jovem quanto Ida assumem o papel de “personagens
recitantes” e tentam mostrar ao Velho seus inúmeros enganos. Após a eloqüente fala de
Ida, o camponês, indiferente, afirma que não pode compreender aquela linguagem e
predispõe-se novamente a sair: “Se não se trabalha não se come”, afirma resoluto o pai
da moça. Segue-se uma discussão entre ele e o Jovem. Em sua incapacidade de
enfrentar o patrãozinho, o Velho camponês volta-se contra Ida, ameaçando-a com o
trabalho extenuante no arrozal. Ida nega com veemência sujeitar-se a tal condição e seu
pai ameaça expulsá-la de casa. A jovem camponesa encontra o pretexto que precisava,
anunciando então que partirá: “tanto melhor...desejava-o”. Aproveita a ocasião para
reiterar sua repulsa à lida no arrozal, denunciando as péssimas condições de trabalho
enfrentadas pelas mulheres das aldeias ao redor. O Jovem, sempre sensível, horroriza-se
com os relatos de Ida. Esta termina seu discurso afirmando que partirá e,
“impressionada”, diz que está sentindo a volta do “estrangeiro misterioso”.
Aparecem novamente o Estrangeiro, o Marinheiro e o Operário - todos prontos
para partir (“com seus sacos de viagem ao ombro”). Ida, “adiantando-se resoluta”,
afirma: “Estou pronta”. O Jovem intervém, pedindo para que ela o deixe ir também. A
camponesa pergunta, “com acento solene”, se ele está mesmo preparado para encarar a
difícil viagem. O Jovem afirma que está disposto a enfrentar a morte para ser fiel a Ida.
Esta lhe dá a mão e diz: “Sê, pois, meu companheiro”.
No entanto, a coragem do Jovem dura pouco. Já na última cena, entra a Senhora
aristocrata e pergunta: “Filho! Onde vais?”. A simples presença daquela velha dama
oprime o coração do sensível Jovem – ele é tomado por um “súbito temor”. Segue-se
uma pequena conversa entre mãe e filho em que as palavras da primeira despedaçam o
coração do segundo. No fim, o Jovem diz a Ida que já não tem mais forças para segui-la.
Diante da fraqueza do Jovem, Ida sugere que ele fique. Ele pergunta, no entanto: “E
tu?”. Ida responde resoluta: “Eu... Partirei, apesar de tudo”.
150
Em meio àquela trágica cena, a mãe – após uma sessão de chantagem emocional
- pede perdão ao filho. Este, “com voz entrecortada pelos soluços”, afirma novamente
que a doença de que ele sofre é herança de seus pais. O Jovem, já moribundo, diz que
sonhara morrer como um “lutador da vida”, mas que, no entanto, a “noite que o
circunda” não o permite ver o sol nem a primavera. A Senhora cobre-o de beijos e ele
afirma que aqueles beijos são frios. O bom rapaz levanta-se “com violento esforço” e
pede ar e luz. Ele chama por Ida e esta o acode. Ida e a Senhora ajoelham-se diante do
Jovem. Ao longe, ouve-se o hino Primeiro de Maio. O Jovem incita Ida a partir. Esta se
despede chorando. O Estrangeiro ampara a jovem camponesa e ambos encaminham-se
para a cancela. O peregrino, “com solenidade”, dirige-se também ao Operário e ao
Marinheiro, encorajando-os a partir. Por fim, o Jovem desfalece, enquanto o Velho
camponês e a Senhora aristocrata choram.
nítida expressão dessa dualidade aparece em uma figura alegórica veiculada com certa
freqüência nos órgãos da imprensa operária. O primeiro registro de tal alegoria que
pudemos identificar apareceu em 1906 no periódico carioca Novo Rumo, em sua edição
de 11 de novembro – data que celebra a execução dos Mártires de Chicago 188. Mais
tarde, A Terra Livre – naquele momento em São Paulo - publica a mesma figura em sua
edição de 1º. de maio de 1910. Encontramos mais uma ocorrência dessa imagem no
periódico O Trabalhador do dia 13 de maio de 1933.
A imagem é uma alegoria da Revolução Social
rodeada pelos retratos dos Mártires de Chicago. Além
dos cinco mortos, aparecem nela também os nomes e
efígies dos outros três que foram presos e, mais tarde,
libertados. No centro, as palavras “Remember
Chicago!” e, logo abaixo, a data comemorativa: “11 de
novembro 1887”. A alegoria da Revolução Social é
aqui representada por uma jovem garota que aparece
com os ombros e canelas descobertos. Com os trajes
esvoaçantes, ela manifesta um ar de altivez e
determinação. Situada no canto direito da imagem, a
jovem Revolução segura uma bandeira (vermelha ou
Imagem 6 – alegoria da Revolução
Social publicada em Novo Rumo
preta?) e tem aos seus pés os resquícios do mundo
(11.11.1906)
velho, suplantado aqui pela nova ordem social. Na
imagem, captada por meio do microfilme, pudemos identificar três inequívocos
símbolos representativos daquela velha sociedade: uma coroa, caída entre os dois pés da
188
Os acontecimentos que inspiraram a transformação do 1º. de Maio em data comemorativa
desenrolaram-se em 1886. Naquele dia, mês e ano iniciou-se, nos Estados Unidos, uma greve em favor da
jornada de oito horas. Dois dias depois (em 3 de maio), um pequeno levante de trabalhadores terminou
com a morte de alguns manifestantes. No dia seguinte (4 de maio), realizou-se uma grande manifestação
na praça Haymarket, em Chicago. No momento em que os policiais tentavam dispersar os manifestantes,
uma bomba foi lançada (não se sabe por quem) no meio das tropas. Esse foi o pretexto para que os
policiais lançassem fogo contra os manifestantes, matando doze e ferindo dezenas. Em 21 de junho de
1886 iniciou-se um processo para, supostamente, apurar os responsáveis pelo atentado. Tal processo,
feito em meio aos atropelamentos da própria formalidade legal, terminou com a condenação de oito
acusados: cinco (Engel, Fischer, Parsons, Spies e Linng) foram condenados à morte e três (Fielden, Neebe
e Schwab) obtiveram a sentença de prisão. Em 11 de novembro de 1887, Engel, Fischer, Parsons e Spies
foram executados (Linng cometera já suicídio). Surgem então os tais “Mártires de Chicago”. Após uma
revisão do processo, os condenados foram considerados inocentes e os três presos foram libertados.
153
alegoria; uma provável tábua de lei, pisada com o pé esquerdo da jovem Revolução e,
no canto direito inferior, uma espada (símbolo da nobreza e do militarismo).
É preciso ressaltar que, tanto na peça quanto na alegoria, as representações da
dualidade supramencionada não são meras alusões ao conflito de gerações; nem seriam
elas somente uma manifestação do antagonismo entre dois mundos estranhos. Acima de
tudo, o confronto entre passado e futuro significa aqui a afirmação do último sobre o
primeiro. Primeiro de Maio, de Pietro Gori, assim como a alegoria acima mencionada,
anuncia de forma clara o advento de um “novo mundo”; este surge da decadência ou
dos escombros daquele velho e carcomido mundo de explorações e injustiças.
Uma outra imagem que faz alusão ao
advento de um “porvir melhor” foi publicada em
A Voz do Trabalhador no dia 1º. de maio de
1913. Podemos dizer que ela nada mais é do
que a representação, de forma também
alegórica, do que seria a alvorada de uma “nova
era”. Intitulada Primeiro de Maio, ela representa
um forte trabalhador de costas para quem o vê,
mas de frente para o horizonte. Neste, vê-se o
Sol, dentro do qual está escrita a palavra
“Liberdade”. O trabalhador porta o signo de seu
ofício: um martelo em sua mão direita; no pulso
esquerdo, uma algema cuja corrente foi rompida
Imagem 7 – A Voz do Trabalhador (metáfora da libertação dos grilhões da
(01.05.1913)
escravidão). Aos pés do trabalhador, vemos
ossos e crânios; nestes últimos lemos as palavras “capitalismo”, “militarismo”,
“aristocracia”, “nobreza”, “clero” etc. Ou seja, mais uma vez, a nítida idéia de uma
velha ordem suplantada, no caso, por um trabalhador emancipado. Este, apesar de
retratado de costas para o leitor, assume uma postura altiva e determinada (assim como
a alegoria da Revolução que analisamos logo acima). No entanto, devemos frisar que,
nesta imagem, a Liberdade é representada pelo Sol - e seu advento, pela aurora.
No poema que vem logo abaixo da imagem, as metáforas do Sol e da aurora
aparecem novamente.
154
Então, ó exploradores, pensais vós que aqueles ventos semeados por mãos generosas
não formarão a tempestade que há de desabar sobre vossas cabeças, destruir vossos palácios,
vossos tesouros, vossos poderes, vossos privilégios, cuja bonança será a luz dos tempos melhores
iluminando as vossas frontes?
189
Segundo Maria Nazareth Ferreira, o periódico carioca A Greve vinculava-se ao Sindicato dos
Estivadores. O próprio caráter combativo desse jornal é um sinal indicativo do pendor revolucionário dos
dirigentes sindicais da categoria dos estivadores do Rio de Janeiro. Ver Nazareth Ferreira, Maria. A
Imprensa Operária no Brasil – 1880-1920. Petrópolis: Vozes, 1978; p. 97.
190
De acordo com Edgar Rodrigues, Elysio de Carvalho foi um intelectual anarquista que no início do
século XX “fundou e/ou ajudou a fundar jornais e revistas ácratas e colaborou intelectual e
economicamente para o nascimento do jornal A Greve (1903), a revista Kultur e da Universidade Popular
(1904) entre outras iniciativas de fundo e forma libertárias”. Ver Rodrigues, Edgar. Os Companheiros –
vol. 2. Rio de Janeiro: VRJ , 1995; p. 43.
191
Sobre as influências do Apocalipse nas peças do teatro anarquista, ver Antônio de Souza, Dimas. O
Mito Político no Teatro Anarquista Brasileiro; Rio de Janeiro, Editora Achiamé; 2003; pp. 63-66 .
156
lhe “sorria uma faixa de azulado céu”. Vimos já o episódio em que, no início da cena 6,
a mesma camponesa assevera a seu pai que procura “o ar e a luz”. O enfermo Jovem
também alude à metáfora do Sol, em oposição às trevas que obscurecem sua existência.
Na última cena, já prestes a desfalecer, ele afirma que sonhara morrer como um “lutador
da vida”; no entanto, para seu infortúnio, a “noite que o circunda” não o permite ver o
sol nem a primavera.
Desde o início, sentimo-nos bastante inclinados a pensar nas alusões ao Oriente
relacionando-as com os mitos bíblicos do Paraíso Perdido e da Terra Prometida. As
sugestões neste sentido são bastante tentadoras. Já no prólogo, o país almejado por Ida é
anunciado como um “mundo prometido”. Assim como no mito do Paraíso Perdido, a
“Utopia” do “misterioso Estrangeiro” também fica no Oriente. Se os hebreus vagaram
pelo deserto por 40 anos para alcançar Canaã, os idealistas da peça enfrentarão também
uma dura peregrinação pela frente.
Em sua obra sobre o mito político no teatro anarquista, Dimas Antônio de
Souza realiza uma análise da incorporação de mitos religiosos no imaginário e na
ideologia anarquistas192.É evidente que os anarquistas apropriaram-se de elementos do
imaginário religioso em suas diferentes produções culturais. Como bem salientou
Bronislaw Baczko, os imaginários sociais são complexos e estabelecem inúmeras
relações entre si. Por isso, parece-nos evidente que os anarquistas incorporaram, em
seus sistemas simbólicos, elementos oriundos de outros sistemas imaginários (incluindo
os religiosos)193. Parece-nos claro, também, que tais incorporações revestiram-se de um
caráter utilitário, uma vez que foram usadas para promover (por meio da propaganda) o
próprio ideário anarquista.
No entanto, para além das identidades entre mitos políticos e religiosos, o que
pretendemos é entender os novos sentidos que os últimos adquirem ao se transformarem
nos primeiros. No caso específico que por ora analisamos, devemos tomar cuidado com
uma junção muito mecânica da metáfora do Oriente com os mitos bíblicos a ela
associados. Sem desprezar suas influências intrínsecas, pensamos que aqui, para além
192
Ver Antônio de Souza, Dimas. O Mito Político no Teatro Anarquista Brasileiro; Rio de Janeiro,
Editora Achiamé; 2003.
193
Sobre os intercâmbios entre diferentes imaginários sociais, ver Baczko, Bronislaw. Imaginação Social
In: Romano, Ruggiero (org.); Enciclopédia Einaudi – volume 5 (Anthropos-Homem). Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1985; p. 312. “Apenas insistimos no fato de os imaginários sociais não
funcionarem isoladamente, entrando, sim, em relações diferenciadas e variáveis com outros tipos de
imaginários e confundindo-se por vezes com eles e com a sua simbologia (por exemplo, a utilização do
simbolismo do sagrado a fim de legitimar um poder)”.
157
de qualquer visão religiosa mais estrita, o Oriente seja principalmente uma alusão à
busca do “novo dia”, do futuro, do lugar onde o tempo está adiantado em relação ao
resto (que fica “para trás”). Se o Oriente alude ao amanhã, podemos relativizar também
qualquer relação direta da terra do Estrangeiro com o mito do Paraíso Perdido. Este,
como bem salientou Mircea Eliade 194, está em sintonia com o desejo de resgatar um
passado ideal; ou seja, remete-nos para uma origem distante e encerra uma nostalgia.
Este não parece ser o caso na peça (nem nas demais representações que estamos
analisando). Tal nostalgia seria melhor assimilada aos mitos das “origens primordiais”
(incluindo os das Idades de Ouro).
Como acabamos de ver, a obra Primeiro de Maio, de Pietro Gori, faz uma nítida
projeção para o futuro. Nela, o passado é quase sempre relacionado ao atraso e está
fadado a desaparecer. É claro que não devemos menosprezar a chamada “síntese
incessantemente renovada do novo e do antigo”, preconizada por muitos pensadores
anarquistas (primeiramente Proudhon). Na esteira de André Rezsler, referimo-nos a ela
no capítulo anterior, quando analisávamos a concepção de arte na imprensa anarquista
195
. Dimas Antônio de Souza, de maneira perspicaz, também fez menção a ela em sua
obra sobre o teatro anarquista196. É possível que essa “síntese” se encontre presente
também na peça de Pietro Gori. A única coisa que gostaríamos de ressaltar é que, em
Primeiro de Maio, os elementos que a compõem parece que não possuem o mesmo
peso. Na peça, a possível fusão entre futuro e passado resulta em imagens que
sancionam muito mais o primeiro dos termos, não o segundo. Em suma, na peça de
Pietro Gori, o futuro parece avançar sobre o passado. Este último não se reveste aqui de
nenhum traço idealizado que estimule qualquer nostalgia; pelo contrário.
De forma semelhante, chegamos a uma conclusão parecida com relação às
metáforas da luz. Se no discurso estritamente religioso as representações em torno da
iluminação revestem-se de um caráter místico, transcendente, aqui, pelo contrário, elas
194
Ver Eliade, Mircea. O Mito do Eterno Retorno. Lisboa, Edições 70, 2000; p.104. Eliade, quando se
refere à “renovação contínua do tempo”, afirma que o “passado não é mais do que a prefiguração do
futuro. Nenhum acontecimento é irreversível, nenhuma transformação é definitiva. De certo modo,
podemos até afirmar que no mundo não se produz nada de novo, pois tudo consiste na repetição dos
mesmos arquétipos primordiais”. Definitivamente, a peça não se afina por esse diapasão.
195
Ver Rezsler, André. Op. Cit. p, 22.
196
Ver em Antônio de Souza, Dimas. Op. Cit. p.62. “ Como vimos, tanto o novo homem anarquista
quanto a sua sociedade do futuro, mesclam, sem se contradizer, se nos colocarmos na perspectiva
antinômica desta ideologia, o pretérito e o futuro. Para os anarquistas, a revolução é ao mesmo tempo
uma realização passo a passo do desconhecido e a recriação de formas sociais que já existiram no passado
da humanidade”.
158
aparecem associadas à noção mais prosaica de “esclarecimento”. Este, por sua vez,
projeta-se tanto numa representação da “grande Idéia” (encarnada em Ida) como numa
concepção difusa de Razão 197. A luz esclarece, mas, por si só, não redime. A única
redenção possível, como veremos mais adiante, parte da ação, não da fé.
Além disso, precisamos salientar que, ao contrário de Dimas Antonio de Souza,
pretendemos, nesta análise, deixar um pouco de lado o enfoque “doutrinário”. Não que
ele seja “errado” (ou menos importante). Apenas queremos aqui enfatizar a valorização
que, em suas práticas culturais, os anarquistas faziam da “cultura popular”. Ou seja,
enquanto outros pesquisadores analisaram as obras anarquistas sob a ótica do
“apostolado” (a expressão foi utilizada pelo próprio autor), pretendemos aqui enfocar
essas mesmas obras pelo que elas apresentam de elementos “populares”. Tal escolha
não é uma simples arbitrariedade nossa. Pelo contrário, ela nos foi imposta pela própria
análise das fontes com as quais trabalhamos – dentre elas, a própria peça.
No entanto, é preciso ressaltar que nem de longe queremos afirmar que os ateus
e/ou agnósticos anarquistas rejeitavam os elementos da religiosidade popular. Pelo
contrário, eles não apenas se apropriavam desses elementos, como também os
valorizavam – de uma maneira específica, é claro.
Por isso, para entender melhor esse complexo processo de incorporação do
“popular” nas obras do teatro anarquista, é preciso despir o conceito de “cultura
popular” de toda a sua pretensa aura de “pureza” e “sublimação”198. Ora, se a “cultura
popular” não é “autêntica” nem “pura”, então o discurso religioso hegemônico passa
197
É importante lembrar que não poucas vezes os anarquistas que estudamos utilizam a idéia de “razão”
para se oporem ao presumido obscurantismo das religiões. No entanto, até mesmo o uso que os
anarquistas faziam do conceito de “razão” adquire um sentido diferenciado. Ver, a respeito da
racionalidade (ou da ausência dela) no discurso anarquista, Martin-Barbero, Jesús. Dos meios às
mediações – comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009; p. 43 Para o autor
citado, enquanto os marxistas recuperam “não poucos traços da racionalidade ilustrada”, os anarquistas,
pelo contrário, manifestam “certos traços da concepção romântica num projeto e em algumas práticas
revolucionárias”. Em sua confiança no “instinto de justiça”, os anarquistas conferem à “razão” um sentido
muito menos rígido do que às vezes se imagina. Outra questão que devemos salientar é que, ao contrário
do que ocorre em um discurso racionalista mais rigoroso, na peça Primeiro de Maio (assim como em
muitas idéias-imagens veiculadas pela imprensa anarquista) não se verifica uma oposição clara entre
“real” e “imaginário”. Pelo contrário, em vários momentos as duas instâncias se confundem. O país
imaginário do Estrangeiro, por exemplo, é frequentemente tratado como “realidade”. O próprio sonho de
Ida, como veremos mais adiante, em muito se parece com as descrições “reais” que o Estrangeiro faz de
seu país e do caminho que leva a ele. Portanto, o sentido que a peça de Pietro Gori (e, por extensão,
muitos anarquistas de seu tempo) confere à noção difusa de “razão” não deve ser encerrado no interior de
um cartesianismo estrito e rígido.
198
Ver, a respeito da noção de cultura popular com a qual lidamos, capítulo intitulado Notas Sobre a
Desconstrução do “Popular” em Hall, Stuart. Da Diáspora – Identidades e Mediações Culturais. Belo
Horizonte, Editora UFMG, 2009.
159
por ela revestindo-se de novos significados. O que precisamos aqui salientar é que, em
suas práticas culturais, os anarquistas incorporaram os elementos religiosos pelo que
eles apresentam de matrizes “populares”. É por meio de sua dimensão “popular” que o
imaginário religioso é assimilado nas práticas culturais libertárias, configurando-se
novamente para adquirir um sentido próprio. A incorporação de certas crenças
milenaristas que passam a povoar o imaginário anarquista é um forte indício desse
movimento de assimilação e reconfiguração da tradição religiosa popular.
Desnecessário dizer, nossa peça (assim como inúmeras fontes com as quais lidamos) é
repleta de idéias-imagens que provêm dessa matriz popular. Cabe a nós identificar os
sentidos próprios que os elementos incorporados adquirem no imaginário dos militantes
com os quais lidamos.
Após invocar o mês de maio, os dois primeiros versos expressam uma imagem
agrícola mesclada pela afirmação de uma vigorosa determinação. Para além do ideal
internacionalista199, depreendido da menção aos “povos” que saúdam aquele mês,
pensamos que a representação da “colheita” sugere aqui algumas reflexões. Os mesmos
povos que saúdam aquele mês, “colhem” nele uma “viril confiança”. “Colher
confiança” mistura aqui significados diversos: a colheita remete-nos ao que proporciona
a estação primaveril (alusão ao ciclo natural); por outro lado, a noção de confiança
sugere-nos uma disposição (mesmo que ainda vaga) para a luta; esta, no imaginário
anarquista, está intimamente relacionada com o significado de protesto atribuído à data.
Além do mais, devemos lembrar que só se colhe aquilo que se planta. E as sementes,
aqui, podem tanto ser as que germinam na terra quanto aquelas que florescem na
cabeça (os germes do grande Ideal que deve ser propagado pelos quatro cantos do
mundo). Sendo assim, a faina do campo, realizada pelas “hostes de oprimidos”,
imbrica-se com a idéia de vigor e determinação – assim como com a noção de
propagação do Ideal que há de redimir a todos.
199
Sobre o sentimento internacionalista vinculado ao 1º. de Maio, ver Hobsbawm, Eric J. Mundos do
Trabalho. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, pp. 111- 112. O autor insinua que parte da força que o 1º. de
Maio possui talvez esteja ligada ao sentimento internacionalista. Afinal, a efeméride foi planejada para
ser “uma única manifestação simultânea internacional”. Na esteira de Hobsbawm, ressaltamos ainda que
as “reivindicações públicas de raízes populares impuseram aos partidos e à Internacional a repetição
anual” da comemoração. Mais adiante voltaremos ao tema da transformação do 1º. de Maio em data
comemorativa da classe trabalhadora.
162
200
Aqui, como em vários outros momentos em nossa pesquisa, devemos assinalar que a apropriação de
um conceito elaborado algures sofre – em seu processo de assimilação - uma transformação em seu
significado original. Ou seja, a concepção de evolucionismo no interior do pensamento anarquista adquire
um sentido por vezes radicalmente diferente daquele elaborado por Darwin (ou pelos positivistas que
também faziam uso da expressão). A teoria evolutiva elaborada por Kropotkin – para ficarmos no
exemplo mais emblemático – leva em consideração um fator importante que o naturalista inglês
desprezou em seus estudos: a colaboração e aquilo que Kropotkin e outros anarquistas chamaram de
“ajuda mútua”. Para além da luta pela sobrevivência, o anarquista russo destacou o papel da solidariedade
como fundamental na adaptação dos seres vivos (incluindo o próprio Homem) à Natureza. Para a noção
de “evolução” no pensamento do anarquista russo, ver Kropotkin, Peter; Anarchism – A Collection of
Revolutionary Writings. Mineola - New York, Dover Publications, 2002; pp. 53/54. Sobre a noção de
“ajuda mútua” no autor citado, ver Tragtenberg, Maurício (sel.); Kropotkin – Textos Escolhidos. Porto
Alegre, L&PM, 1987; pp. 143/170.
163
também que “Maio, após o inverno sem o fogo e sem pão, vem enflorar as fontes [sic]
banhadas de suor”. Poderíamos dizer que, neste trecho, mais uma vez, os eflúvios
primaveris trazem alento àqueles que trabalham. Se o inverno, fincado no mundo velho
e decadente, trouxe frio e trouxe fome, a benfazeja primavera, por sua vez, traz consigo
a possibilidade de um “novo mundo”. Em tal significado conferido à data, Ida ressalta a
esperança de um “porvir melhor”.
Identificamos ainda novos ares de esperança e promessas de um futuro melhor
na segunda estrofe do hino de Pietro Gori. Aqui, como poderemos perceber, a ênfase
recai sobre a idéia de frutificação. Analisemos mais de perto seus versos.
201
A respeito de tal visão sobre a obra Primeiro de Maio, ver Alves de Lima, Mariângela e Thereza
Vargas, Maria. Op. Cit.; p.58. “Nesse trabalho [Primeiro de Maio] o `velho mundo´ dos senhores da terra
e da burguesia industrial não precisa ser combatido frontalmente. Basta um movimento no sentido de
164
Composto por quatro pequenas estrofes, o poema, não por acaso intitulado 1º.
de Maio, mistura imagens de esperança e rebeldia. Nele, as alvoradas são “lâminas
azuis ensangüentadas”, o Amor mistura-se com o “Ódio” e a “Vingança”. Nesse poema,
em maio, “tudo germina e cria”; no entanto, a semente que fecunda e frutifica é “de
inaugurar uma nova sociedade. Há no velho mundo uma podridão natural que torna próxima a sua
extinção”.
165
202
Não são poucos os artigos da imprensa anarquista que trabalham com a metáfora do sangue; esta
sempre aparece relacionada com os exemplos de martírio que as histórias dos combativos trabalhadores
manifestam. Às vezes, a imagem do sangue associa-se com as idéias de “purificação” e “batismo”. Isso
ocorre, por exemplo, em O Vehiculo (edição de 8 de novembro de 1906). Ou então, o sangue é
relacionado com a idéia de “santificação”, como em um artigo de A Greve publicado em 15 de maio de
1903. A metáfora do “sangue fecundo”, por sua vez, pode ser identificada não apenas no artigo que
analisamos agora (A Greve de 1º. de maio de 1903), como também na edição de 8 de junho de 1915 do
periódico carioca A Voz do Trabalhador.Em um outro texto sobre as comemorações em torno do 1º. de
Maio, publicado em A Lucta Proletaria do dia 1º. de maio de 1908, o autor refere-se à data como estando
sob o signo de “um mar vermelho de sangue”.
166
O “rebelde caído” e o “obreiro que luta fremente” encerram ainda uma outra
idéia que, assim como a de luta, une-se à metáfora primaveril da “renovação”: a noção
de “sacrifício”. Esta, como vimos acima, transparece nas descrições que Ida e o
Estrangeiro fazem do caminho que leva ao “país ditoso”. Em outra passagem da peça a
renovação ensejada pelo mês de maio também aparece entrelaçada com a idéia de
“sacrifício”. Trata-se do episódio em que o enfermo Jovem, na última cena, perece
tragicamente. Nesta passagem devemos atentar para o que diz o Jovem antes de morrer.
Para ele, “o dia da reparação, virá [...] ante o florescimento deste Maio que abre as rosas
que ornarão meu túmulo ”. Ou seja, é preciso que o amável Jovem morra para que o
“novo mundo” apareça. “Renovação” e “sacrifício”, mais uma vez, aparecem ligados de
forma intricada. Ou melhor, o segundo transmuta-se na primeira.
Como ressaltamos acima, no hino de Pietro Gori – assim como nos artigos e na
peça em geral – a conquista de um “porvir melhor” não ocorrerá de forma “natural” (ou,
como sempre se atribui ao anarquismo, de modo “espontâneo”). Parece-nos evidente
167
que a “renovação” ensejada pelo maio “ridente” (mas, por vezes, também “túrbido”) só
será efetivada por meio de um concentrado esforço e de uma luta indispensável. Cabe
àquele mês estimular a conflagração final que, das ruínas do velho mundo, fará brotar as
sementes (já plantadas) de um mundo melhor.
É ali... o país feliz... “verso la parte donde si leva il sole...” A terra é de todos como o ar e a luz.
Os homens são irmãos... o trabalho honra a quem o executa e só os inválidos ou as crianças são
os que não cultivam esse belo esporte... o ódio não existe; tudo é paz e amor... a única lei: a
Liberdade... o único laço, o Amor... Para todos o bem-estar, para todos a ciência. A mulher não é
a escrava, mas a companheira reconfortadora do homem. A miséria é desconhecida... A
igualdade econômica e social para todos... Não há exércitos; as guerras são desconhecidas; o
203
A respeito das associações entre as mensagens de esperança e a projeção da Revolução, ver ainda os
artigos sobre 1º. de Maio publicados em A Greve (01.05.1903), La Propaganda Libertaria (01.05.1914) e
A Plebe (30.04.1921). No primeiro artigo, o autor (Elysio de Carvalho) faz um prognóstico bem
alvissareiro: para ele, “o triunfo não pode estar longe”. Para o autor do segundo artigo citado, o 1º. de
Maio faria acordar nos corações “um sentimento forte”, que impeliria o povo a tomar as praças públicas;
promoveria também sonhos “com novos arrebores [sic] iluminados de esperanças”. Já o autor do terceiro
artigo mencionado afirma que, não obstante todas as repressões desencadeadas pelo perverso sistema,
nada impedirá o “advento da revolução que deverá em breve transformar a face da terra”
168
homem é livre para pensar e agir; as crianças são educadas sem dogmas: racionalmente... os
velhos descansam no conforto do lar, rodeados pela juventude que alegremente entoa um hino de
paz e de bondade. Este venturoso país, está ali... ali, “verso la parte donde si leva il sole”.
Ida (extática, ao evocar a beleza de seu sonho) – A cidade misteriosa... o país feliz... A terra na
qual o trabalho é brasão de nobreza. Em cujo seio o ócio não existe... A única lei é a liberdade...
o único laço, o amor. Para todos o bem-estar... para todos a ciência. A mulher não é escrava, mas
a companheira do homem.
204
Ver Baczko, Bronismlaw; Utopia. In.: Romano, Ruggiero (org.); Op. Cit.; pp.333-396.
169
205
Ibid; p. 342.
206
Ibid.; p.357.
207
Na obra de Thomas Morus, Rafael Hitlodeu é um marinheiro experiente com quem o narrador teria
conversado em Antuérpia. Tal personagem teria viajado o mundo todo. Ele pertence àquela geração de
navegadores que constituíram o que chamamos de Expansão Marítima; acompanhara Américo Vespúcio
em suas viagens pelo Novo Mundo e conhecera inúmeros lugares exóticos e recônditos. Mas, além de
marinheiro, Hitlodeu era também uma espécie de filósofo letrado que conhecia muito bem o latim e o
grego. Além disso, gostava de refletir sobre os problemas humanos em geral. Sem hesitação, podemos
considerá-lo um típico humanista do século XVI.
170
Hitlodeu, quem conhece uma conhece todas. Iguais também parecem ser os hábitos
daqueles que vivem dentro delas. Todos os dias, em horas fixas, os toques de trombetas
anunciam as refeições coletivas. Os utopianos até podem comer em casa, mas
sacrificam esse direito em favor do prazer de saborear os deliciosos repastos junto aos
demais citadinos.
Os habitantes das cidades vivem em casas que não lhes pertencem; aliás, de dez
em dez anos, é realizado um sistema de sorteio e os moradores mudam de uma casa para
outra (expediente que impede as famílias de enraizarem-se). As cidades de Utopia não
crescem desordenadamente. Podemos dizer, inclusive, que elas nem sequer conseguem
crescer. Isso porque cada uma delas é formada por 6 mil famílias. Como cada família
pode ter no mínimo 10 e no máximo 16 adultos, cada cidade pode apresentar entre 60
mil e 96 mil adultos. Segundo Baczko, o “governo vela cuidadosamente pelo equilíbrio
demográfico”208 de Utopia. Se uma cidade apresentar um número excedente de
habitantes, alguns utopianos podem ser deslocados.
Não é só no interior das cidades (ou entre elas) que se verifica um implacável
sistema de rotação. Este também ocorre entre os habitantes das cidades e os do campo.
Periodicamente, os moradores das primeiras eram designados para viver no segundo e
vice-versa. Ora, se os habitantes de Utopia não podiam se fixar permanentemente em
nenhum lugar, percebemos então que, na ilha imaginária, não existe propriedade privada
- conseqüentemente, não se verificam nela grandes desigualdades sociais. Sendo assim,
quem cuida da gestão pública em Utopia? No topo da administração existe um príncipe.
Este não desfruta de um poder absoluto; pelo contrário, ele se submete a um Senado. Na
base desse sistema de administração, as famílias encontram-se divididas em grupos de
trinta; cada um desses grupos elege anualmente um magistrado. O conjunto de
magistrados, por sua vez, escolhe o governador. Portanto, temos um modelo de
administração que, em seus aspectos formais, assemelha-se muito com o de uma
democracia parlamentar atual; ou, melhor dizendo, na definição do próprio Hitlodeu, tal
modelo seria tipicamente republicano (qualquer possível alusão à República, de Platão,
por certo não seria mera coincidência!).
No entanto, não devemos nos entusiasmar demasiadamente com as aparentes
liberalidades de Utopia. Na verdade, como afirma Baczko, nela a “vida econômica,
assim como a social, são rigorosamente ordenadas”. As roupas, por exemplo, são iguais
208
Baczko, Bronislaw. Op. Cit.; p.339.
171
para todos os habitantes. Estes, apesar de trabalharem apenas seis horas por dia, estão
proibidos de viver às custas dos outros: “A ociosidade foi banida da Utopia” 209. Como
assim? Todo mundo trabalha da mesma forma e na mesma quantidade? Não, ainda
estamos longe das ideologias socialistas do século XIX - Thomas Morus é um
humanista do século XVI, não um militante de esquerda. Na sociedade por ele
imaginada, aqueles que possuem talentos excepcionais devem dedicar-se
exclusivamente aos estudos. Além disso, existe servidão na ilha imaginária! Os servos
(estrangeiros e utopianos culpados de ignomínia) andam inclusive acorrentados. Aliás, a
própria liberdade de locomoção é restrita em Utopia. Nela, aquilo que entendemos por
“direito de ir e vir” está condicionado a uma autorização prévia das autoridades. Quem
desrespeitar essa lei será punido com a servidão. Cá entre nós: tal modelo de
organização encantaria os governantes de hoje em dia, não é mesmo? Esqueçamo-nos,
no entanto, daqueles que não são dignos de memória. Voltemos ao que interessa no
momento: a obra de Thomas Morus.
Muito já se disse a respeito do caráter autoritário dos modelos utópicos. De fato,
baseando-nos no exemplo fornecido por Thomas Morus (criador, como vimos, do
“paradigma utópico”), as expectativas em torno do que entendemos hoje por “liberdade”
não são lá muito alvissareiras. No entanto, parece-nos que, com o passar do tempo (e
por influência mesmo da obra do humanista inglês), o discurso utópico conquistou uma
notável autonomia diante das narrativas literárias. A impressão que fica é a de que
Thomas Morus, mesmo sem talvez o desejar, encorajou as gerações seguintes a criar,
no plano narrativo, outros modelos utópicos que podem ou não estar de acordo com
aquele de sua ilha imaginária.
Analisemos de perto o que diz Bronislaw Baczko a respeito da autonomia do
discurso utópico.
[...] Pela força da imitação, as narrativas utópicas multiplicam-se e constituem por si sós
uma longa série. Contudo, o discurso utópico não fica de modo algum preso ao modelo narrativo
inventado por Morus. A utopia, enquanto representação da alteração social, da Cidade Nova
situada num algures imaginário, depressa se revela multiforme no plano discursivo. [...] A utopia
mantém, pois, relações múltiplas e complexas com as idéias filosóficas, as letras, os movimentos
sociais, as correntes ideológicas, o simbolismo e o imaginário coletivos. As fronteiras das
utopias tornam-se tanto mais móveis quanto mais abarcam a dinâmica social e cultural.
209
Ibid.; p. 338.
172
um período histórico específico. Neste sentido, podemos afirmar que existem utopias de
diferentes tipos. Algumas apresentam projetos imaginários racionais e unificadores
vindos de cima, “designadamente do Estado”; outras, por sua vez, podem ser
imaginadas como vindas de baixo, “como resultados das ações espontâneas de homens
livres de qualquer constrangimento, nomeadamente o constrangimento estatal” 210.
Desnecessário dizer que a terra imaginária do Estrangeiro pertence ao segundo grupo,
não? Inserida na atmosfera ideológica em que foi criada, a utopia de Pietro Gori
relaciona-se com os princípios e valores cultivados pelos anarquistas de sua época. Por
isso, o projeto utópico por ele criado é um campo aberto a futuras discussões. Nele, por
exemplo, não existe nenhum “grande legislador” que toma para si a tarefa de normatizar
a sociedade com suas leis implacáveis; desse projeto utópico só se entrevê a mensagem
de esperança e a promessa de redenção, nada mais. A construção desse mundo cabe às
novas gerações, a elas pertence o “porvir melhor”; são elas que deverão configurar com
nitidez as nuances dessa vaga concepção ideal.
Portanto, podemos afirmar, sem receio, que a terra do Estrangeiro de Primeiro
de Maio constitui, sim, um projeto utópico; mas de um tipo bem diferente! Um projeto
utópico que não se reduz ao modelo racional e uniformizador do paradigma fundado por
Thomas Morus. Um projeto utópico aberto, avesso a rígidos esquemas unitários e
acabados; avesso também (e por isso mesmo) a minúcias descritivas. A utopia do
“misterioso peregrino”, portanto, não pertence exclusivamente a ele nem a ninguém.
Na verdade, podemos dizer que a terra imaginária de Primeiro de Maio é sua, minha e
de todos aqueles que se mostrem dispostos a seguir o Estrangeiro em sua difícil jornada.
Esse país está lá, no Oriente. Basta que nos desprendamos de nosso carcomido mundo
para que, enfrentando as agruras do caminho, consigamos finalmente atingi-lo.
Nós, aqui, já nos decidimos: também iremos com o peregrino em sua viagem –
“verso la parte donde si leva il sole”! Então, sigamos em frente.
210
Ibid.; p.388.
176
Ida: Olha que teremos de caminhar muito... caminhar sem medo, sem cansaço... Atravessar
montanhas e colinas, rios e mares. Os abrolhos dos bosques despedaçarão nossos vestidos e
nossas carnes... e o calor do verão queimará nosso sangue; as chuvas hibernais arrochearão [sic]
nosso rosto...
Não por acaso, muito parecidas são também as metáforas do sacrifício presentes
na descrição que o Estrangeiro fizera do caminho que leva ao seu país. Em seus relatos
à Ida, o “misterioso peregrino” afirma que já havia andado um bom bocado – cruzara
montes e colinas, atravessara rios e mares, esfarrapara suas vestes, dilacerara suas
carnes e enfrentara o calor abrasante do verão e as frias chuvas do inverno. Um outro
tanto de dificuldades faltava ainda ao Estrangeiro encarar. Ele sabia que teria de
atravessar “outros montes e vales; rios e mares”. Estava consciente de que deveria ainda
suportar os “cálidos ventos” e as “gélidas chuvas”.
Mais uma vez, nossa peça não está pairando no ar. Ela finca raízes profundas no
imaginário social anarquista em torno do 1º. de Maio. E, por isso mesmo, as imagens de
sacrifício e martírio são freqüentes também na imprensa operária. Referimo-nos já às
metáforas do “sangue fecundo” que emergem dos artigos publicados naquela imprensa.
Sobretudo, tais metáforas sobressaem nos textos que rememoram os acontecimentos em
torno dos Mártires de Chicago. O mesmo ocorre, em geral, com as imagens de
“sacrifício” e “martírio”; elas também se concentram nos artigos desse gênero.
177
211
O periódico Lucta Social surgiu no Rio de Janeiro naquele mesmo ano de 1922 e era editado pelo
Grupo de Propaganda Social daquela cidade. A respeito, ver Ferreira, Maria Nazareth. Op. Cit.; p.99.
212
Na mesma data (1º. de maio de 1922), ver também artigo de A Plebe em que autor afirma que a data
deve ser vista como a condensação do “martirológio dos abnegados combatentes da causa proletária”.
178
Só entre nós, onde a linguagem interesseira de certos doutrinadores tem feito das teorias
socialistas um caos afim de ver se dele pode sair um deputado com jus à gorda mamata de
75$000 diários, é que se observa tão curioso fenômeno. Pois se até há quem dá louvores aos
donos das fábricas pela grande mercê de paralisarem as suas oficinas, como se fosse possível
máquina alguma se mover sem o concurso do braço operário! E assim folga do primeiro de maio
perde o seu caráter, a sua feição primitiva de greve, que é a única compatível com a dignidade do
operariado.
A Lucta Proletaria, em sua edição de 1º. de maio de 1908, publicou uma série de
seis textos dedicados à efeméride. O primeiro deles, assinado pela Federação Operária
de São Paulo (lembremos: o periódico citado era um órgão da FOSP), é um verdadeiro
manifesto contra uma das tendências verificadas na época: a de transformar o 1º. de
Maio em uma data festiva. Logo no início, o autor afirma que o 1º. de Maio está
perdendo o seu “primitivo caráter puro” para se transformar em uma “simples
manifestação festeira”. Diante da exploração vivida pelos trabalhadores, de acordo com
o texto, seria um absurdo festejar a data que, por sinal, lembra-nos do sacrifício sofrido
pelos Mártires de Chicago. Para o autor, tal sacrifício teria caído no esquecimento. Mais
adiante, ele afirma em tom imperativo: “Nada de festejos”. Ressalta ainda que a data
fora escolhida pelo Congresso de 1889 213 para que o trabalhador, “reativando energias e
despertando consciências”, lançasse-se no “caminho de suas reivindicações, começando
pela obtenção da jornada de oito horas”. Seria então necessário conferir novamente ao
1º. de maio a sua “verdadeira característica”. Para o autor, festejar naquele dia seria
“engrandecer bestialmente a escravidão do salariado”. O operário brioso deve ser
“insubmisso e rebelde”. O autor do apelo exorta os trabalhadores a abandonar o trabalho
- não para atividades de recreio ou para embriagar-se, mas, obviamente, para promover
protestos e afirmar moralmente o valor do proletariado.
Vimos na peça que, em seus discursos para o Marinheiro e o Operário (assim
como para o seu velho pai), Ida também se preocupa em ressaltar, na data, seu caráter
de protesto. Este manifestar-se-ia por meio da abstenção ao trabalho. Segundo
Hobsbawm, tal abstenção em memória dos sacrificados Mártires de Chicago seria “uma
afirmação simbólica da força fundamental dos trabalhadores” 214. Essa necessidade de
afirmação simbólica a qual se refere Hobsbawm faz com que, na imprensa anarquista,
sejam recorrentes os artigos enfatizando o caráter de protesto que o 1º. de Maio deveria
possuir. Muitas vezes, para justificar esse caráter em detrimento da configuração festiva,
os articulistas daquela imprensa recorriam ao mito da “origem fundamental” 215 da
efeméride. Vejamos um exemplo emblemático.
213
Este Congresso foi organizado pela Segunda Internacional Socialista na cidade de Paris e foi
considerado o primeiro dessa nova entidade. Predominantemente marxista, discutiu, dentre outras coisas,
uma legislação internacional para impor a jornada de oito horas e uma possível abolição dos exércitos
nacionais. Foi esse Congresso, também, que escolheu o 1º. de Maio como Dia do Trabalho.
214
Ver Hobsbawm, Eric. Op. Cit.; p. 112.
215
Além do artigo a ser analisado na seqüência, ver também, sobre o mito da origem fundamental do 1º.
de Maio, A Terra Livre, 7 de fevereiro de 1906; La Propaganda Libertaria, 1º. de maio 1914 e Alba
Rossa, 1º. de maio de 1919. De certa forma, o artigo anteriormente citado – de A Lucta Proletária
180
Um congresso proclama o 1º. de Maio para os proletários exigirem direitos e para afirmarem
suas forças, imprimindo ao mesmo tempo um caráter revolucionário, para as reivindicações
econômicas e sociais a conquistar. Porém, trocaram, por velhacaria ou por imbecilidade, idéias
nobres e altruístas, por outras espetaculosas e ridículas para atrofiar a energia dos trabalhadores,
e inocularem nos seus cérebros a indolência e o definhamento, cortando toda ação individual e
coletiva, que pudesse conduzi-los para a cultura moral e intelectual.
(1.05.1907) -, ao se referir ao “primitivo caráter puro” da data, também trabalha com o mesmo mito da
origem fundamental.
216
Sobre as intrincadas resoluções em torno da escolha do marco simbólico, ver Perrot, Michelle. Os
Excluídos da História – Operários, Mulheres, Prisioneiros. Rio de Janeiro. Editora Paz e Terra, 1992; pp.
127-138. Nas abordagens feitas pela autora, notamos não poucas características que destoam do caráter
puramente de protesto que os anarquistas atribuíam às “origens” do 1º. de Maio. Segundo Perrot, a
escolha da data pelos socialistas visou oferecer à classe operária “uma unidade política e cultural através
daquela pedagogia da Festa”, tributária da experiência da Revolução Francesa (p.127). Ainda para a
autora, em “sua iniciativa, o Primeiro de Maio é incontestavelmente criação de cima, e em particular da
corrente mais organizada em termos políticos, a corrente marxista” (pp. 127/128). Sem embargo, para a
autora, no ato de “criação” da efeméride, duas tendências contrárias à orientação anarquista teriam de
imediato se vinculado à data: a “pedagogia da Festa” e a conotação socialista (de influência marxista).
Ainda para Perrot, no complexo campo de disputas pelo simbólico em que a data se transformou, cada
grupo em confronto “`puxa a brasa para sua sardinha´” (p.131).
181
Com tudo isso, queremos ressaltar apenas que, por trás do mito das “verdadeiras
origens”, está a construção de um sistema simbólico complexo por meio de um discurso
bem articulado; tal discurso (imbuído de todo o seu simbolismo) visa imprimir um
caráter próprio diante desse campo de disputas que se tornou a comemoração em torno
do 1º. de Maio. Aqui, o mais importante não é a reconstituição do que aconteceu “de
fato” naquele Congresso de 1889 (e nos meses subseqüentes). Queremos apenas
ressaltar que os anarquistas construíram a noção de um princípio original (“verdadeiro”
e “puro”) para legitimar seu discurso combativo e refutar o caráter festivo que outros
setores desejavam atribuir ao 1º. de Maio. Divisamos a constituição um verdadeiro
campo de disputas pelo simbólico. Em seu interior, os anarquistas elaboraram discursos
mais ou menos convincentes em que os significados conferidos à data pelos outros
grupos são muitas vezes vistos como “deturpações” daquele sentido supostamente
“original” e “genuíno”.
Vejamos mais de perto o que nos diz, por exemplo, um artigo publicado em A
Plebe no dia 1º. de maio de 1919. Nele, o autor inicia afirmando que “o dia de hoje” (1º.
de maio) não é um dia de festa. Para ele, quem pretende transformar a efeméride em
ocasião para festa são “os falsos amigos do proletariado”. Festa mesmo só poderia
existir no dia “em que a tenebrosa e velha bastilha do Capital e do Poder” for desfeita
pelo “machado bendito da Revolução”.
O mesmo notamos no artigo de Matilde Magrassi publicado no periódico Novo
Rumo em 1º. de maio de 1906. Nele, a autora afirma que só no dia em que não houver
mais exploração na sociedade é que será possível comemorar de forma festiva a data.
Para ela, na situação atual em que vive o trabalhador, “a glorificação do trabalho torna-
se um ato irrisório, digno da lástima e da compaixão dos operários conscientes”.
No periódico paulistano e anarco-comunista Alba Rossa, editado por Oreste
Ristori e A. Bandoni, em sua edição de 1º. de maio de 1920, esse dia festivo já havia
chegado – não para nós, mas para os russos. Em um artigo bastante otimista em relação
aos acontecimentos na Rússia, o autor constrói um encadeamento linear e teleológico de
fatos, estabelecendo uma continuidade intrínseca entre as lutas encetadas em Chicago e
aquelas levadas adiante pelos trabalhadores russos. Segundo Paulino Biasi, autor desse
texto, o proletariado russo estaria satisfazendo, por meio de suas conquistas, “o desejo
manifestado nos últimos momentos de vida pelos camaradas barbaramente enforcados
pelos capitalistas de Chicago.” Agora, finalmente, para Biasi, os russos não têm mais
182
por que protestar no 1º. de Maio. O aspecto a ser ressaltado nesse artigo é que o ideal
teleológico da “redenção final” (tantas vezes propagado na imprensa anarquista) aparece
aqui como consumado alhures, em terras russas. Se conseguíssemos alcançar também
esse ideal, poderíamos então descartar o protesto e festejar efusivamente as conquistas
fundamentais da “emancipação humana”.
Em contato com os artigos da imprensa anarquista, notamos que, na verdade,
nem todos os articulistas opunham-se integralmente ao caráter festivo do 1º. de Maio.
Em alguns casos, certos artigos chegam mesmo a encarar as festividades em torno da
efeméride com uma não disfarçada condescendência. Mencionamos anteriormente um
artigo publicado em A Lanterna no dia 2 de junho de 1907. Nele, seu autor, M. Doriz,
analisa a situação do mês de maio na Europa. Naquele continente, ele entrevê um nítido
contraste entre o campo (mais “carola”) e a cidade (em relação ao campo, mais
“avançada”). Na zona rural, predominaria “a tristeza, o receio de que o diabo apareça”;
já na cidade, verificar-se-ia “o desafio a todo o mal, a festa enfim” [grifos nossos]. Aqui
o autor opõe de forma nítida a festa proletária (associada ao urbano) à beatice rural;
nessa oposição fundamental, é evidente que a primeira aparece valorizada em relação à
segunda.
Outros artigos da imprensa anarquista modulam também na mesma sintonia.
Questionam não a festa “em si”, mas o despropósito de realizá-la nas conjunturas em
que se encontravam os trabalhadores 217. Poderíamos analisar esses textos mais
detidamente. Mas, achamos que os artigos já citados dão indícios de sobra para levar a
cabo uma conclusão parcial.
Despojando-nos de preconceitos inveterados, o que pudemos notar é que em
muitos artigos (mas não em todos) não há, de fato, uma aversão à festa. O que não
poucos articulistas propugnavam é que, diante da situação de exploração em que viviam
os trabalhadores, festejar no 1º. de Maio seria, no mínimo, um contra-senso. Tais
articulistas sabiam claramente que não há atitudes “neutras”; sabiam também que todo
gesto reveste-se de significados sociais e simbólicos não isentos de conseqüências. Para
eles, o problema não era a festa e sim o sentido que ela poderia ter diante da correlação
de forças presente na sociedade. Nos artigos dedicados a refutar o caráter festivo, o que
217
Ver também em A Plebe de 1º. de maio de 1922, artigo intitulado 1º. De maio – Ao proletariado e
aos assalariados em geral. Em A Voz do Trabalhador, ver edição de 1º. de Maio de 1909. Em A Lucta
Proletaria, ver artigo intitulado 1º. de Maio na edição de 1º. de maio de 1908.
183
“O fechamento das oficinas n´esse dia, não significa o protesto do operário contra o capital,
como tem [sic] espalhado os maus socialistas, que em tudo descobrem privilégios e exceções
ruinosas ao bem-estar da sociedade.
“Ele representa, apenas, uma manifestação festiva e legítima. Interessados na vida da fábrica, da
indústria e do trabalho, associam às alegrias, pela nobreza de seu ofício, o respeito e a estima dos
seus patrões, de cuja prosperidade só benefícios podem esperar os que trabalham para ela.”
218
De fato, sabemos que o Primeiro Congresso Operário do Brasil, com forte influência sindicalista
revolucionária e anarquista, realizou-se na cidade do Rio de Janeiro na segunda metade do mês de abril de
1906. Aliás, curiosamente, ele teve início no Centro Galego, situado na rua da Constituição – sede
também de inúmeras festas onde nossos anarquistas representaram suas peças durante todo o período que
abarca nossa pesquisa.Ora, não surpreenderia se, em meio às atividades daquele importante Congresso
(cujo encerramento ocorreu em 22 de abril), as influências mais aguerridas do movimento operário se
intensificassem na “Cidade Maravilhosa”, influenciando assim as comemorações do 1º. de Maio naquele
ano. Para saber mais sobre o Primeiro Congresso e suas resoluções, ver Rodrigues, Edgar. Socialismo e
Sindicalismo no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Laemmert, 1969; pp. 114-135.
189
ocorreram desde a noite do dia 30 de abril, no salão Ibach, até a noite do dia seguinte,
no teatro Politeama – passando pelo piquenique que o Centro Socialista Internacional
organizou no Bosque da Saúde e pela reunião que os metalúrgicos promoveram no
Centro Espanhol. Os relatos feitos pelo autor apresentam alguns pormenores não
destituídos de interesse para nós. Por exemplo, sabemos que, desta vez, a Federação
Operária não ficara “calada como um rato”! Segundo o autor, ela “publicou um
manifesto convocando um comício de propaganda, na sua sede, às 2 horas da tarde”.
Segundo a reportagem, nesse comício a “concorrência foi numerosa”. Sabemos também
que o espetáculo organizado pela Companhia Bolognesi, no Politeama, contou com a
encenação de Primo Maggio. No entanto, para o autor da reportagem, a representação
naquela noite “não foi nada boa”. A peça teria sido mutilada: o prólogo foi cortado e
“muitas frases que fazem do `bozzetto´de Gori um bom trabalho de propaganda” foram
também suprimidas.
No entanto, não são os relatos presentes na reportagem que fazem dela uma
fonte valiosa no presente instante de nossa pesquisa. Muito mais importantes aqui, para
nossos propósitos, são os posicionamentos claros do jornal diante das manifestações
organizadas pelos diferentes grupos que participaram das comemorações naquele 1º. de
Maio de 1910. Ao longo de toda a reportagem, fica evidente a ênfase que o autor dá às
manifestações comemorativas levadas adiante pelos libertários em geral (anarquistas e
sindicalistas revolucionários). Um pequeno espaço (um parágrafo apenas) é dedicado ao
piquenique realizado, no Bosque da Saúde, pelo Centro Socialista. E, é claro, o tom aqui
é crítico (até irônico). Manifestando uma nítida contrariedade, o autor afirma que, na
verdade, nem sequer houve comemoração. Para ele, teria sido apenas “um giro
campestre onde um certo número de pessoas foram [sic] comer, beber e se divertir... e
nada mais”. Contrapondo-se a essa suposta pasmaceira, as demais reuniões - às quais os
organizadores conferiram um caráter de nítido protesto - foram vistas de forma mais
positiva.
Notamos já que as representações simbólicas atribuídas ao 1º. de Maio
constituem um campo de disputas efetivas que não podemos desprezar. Foi-se o tempo
em que as ciências humanas consideravam o imaginário social como uma esfera
descolada da realidade concreta e material, como o lugar, por excelência, do “ilusório” e
do “quimérico”. Segundo Baczko, o “imaginário social é cada vez menos considerado
como uma espécie de ornamento de uma vida material considerada como a única
190
219
Ver Baczko, Bronislaw. Imaginação Social. In.: Romano, Ruggiero (org.). Op. Cit.; p.298.
220
Ver Baczko, Bronislaw. Ibid.; p.311. “A função do símbolo não é apenas instituir uma classificação,
mas também introduzir valores, modelando os comportamentos individuais e coletivos e indicando as
possibilidades de êxito dos seus empreendimentos”.
191
autor, “a rebeldia altiva e heróica daqueles Espartacos [sic] modernos, não deve ser um
objeto a adorar mas sim um exemplo a seguir”.Ou seja, a justificativa parece clara: não
se trata de idolatrar ninguém, mas sim de incitar, por meio do exemplo dos denodados
Mártires, o pendor revolucionário e o espírito de revolta.
O segundo artigo que gostaríamos de mencionar foi publicado em A Plebe, em
17 de maio de 1919. Trata-se de um texto entusiástico tecendo comentários sobre o
comício que naquele ano ocorrera, em São Paulo, por ocasião das comemorações do 1º.
de Maio. O autor, Otávio (provavelmente Otávio Brandão) descreve de forma emotiva a
multidão e os oradores (“Demóstenes de blusa”) que o eletrizaram. Ele afirma que “pela
primeira vez em São Paulo passeou-se a bandeira negra da anarquia”. Inicia-se então
um curioso excerto por meio do qual, enredado no próprio emaranhado simbólico da
bandeira negra - com suas inúmeras imagens (“bandeira dos desgraçados”, “bandeira-
filosofia”, “bandeira da Dor”) -, Otávio ressalta o caráter supostamente avesso aos
ritualismos que ela carregaria. Para ele, sem “inscrições e emblemas”, tal bandeira seria
“a negação de todos os símbolos e superstições boçais”. Nesse trecho, o autor desfia
uma série de imagens simbólicas por trás da representação do negro. Para ele, sem cor é
a “Fraternidade Universal, a não divisão dos homens em partidos que se digladiam”.
Sem cor é ainda a “Igualdade”. A bandeira é negra porque “não considera divisas nem
galões dourados”. Ela “passa como um protesto e um grito de revolta da multidão”. Para
Otávio, ela é negra enquanto a situação vigente perdurar. Quando o Estado burguês
desaparecer, “ela despirá seu luto e os povos libertados de todos os jugos a desfraldarão
de pólo a pólo, branca como a paz, resplandecente como a Liberdade”.
Parece-nos nítido que os anarquistas (assim como os socialistas em geral),
apesar de rejeitarem no discurso o simbolismo e os ritualismos, não conseguem se
desvencilhar deles. Não devemos achar que essa contradição passou desapercebida
pelos atentos militantes com os quais lidamos. Em um interessante (e não menos
saboroso) artigo publicado em A Voz do Trabalhador no dia 1º. de maio de 1909,
Manuel Moscoso tenta explicitar as inclinações ritualísticas e festivas mal dissimuladas
pelos libertários que estudamos.
Moscoso inicia seu texto (não por acaso intitulado “Contradições...”) dizendo
que os revolucionários estão sempre questionando o caráter festivo da data – assim
como todo o seu simbolismo. Para ele, tal insistência tornou-se uma “rotina” que já
“não produz efeito”. Isso porque, segundo o autor, os “mesmos que a repetem, negam-
192
na com os fatos”. Apesar de se colocarem contra a festa, muitos “tomam parte ativa na
sua organização”. Os próprios revolucionários a sancionariam com sua “transigência”.
Vejamos em que termos o próprio Moscoso coloca aquela situação.
Ele termina fazendo um apelo para que “gritemos menos contra o caráter de
festa [...] e trabalhemos mais por dar o caráter de protesto que afirmamos deve ter.”
Portanto, Manuel Moscoso não nega (pelo contrário) o caráter de protesto que a data
deveria possuir. O que ele diz é que não adianta insurgir-se contra seu aspecto festivo
(e, por extensão, simbólico) porque até o mais empedernido revolucionário comove-se
com ele e é com ele “aquiescente”.
Com todas as letras, o camarada Moscoso expõe claramente a questão. Em seu
artigo ele aponta para a incongruência que os militantes anarquistas manifestariam todos
os anos: em seus artigos, insurgiam-se contra a festa e os símbolos; nas ruas, em praça
pública ou nos salões, comoviam-se com os aspectos externos e ritualísticos das
comemorações. Moscoso indica também a ineficácia do discurso diante da atração
exercida pela festa e pelo símbolo. Para ele, o palavreado vão e ostentoso já não produz
efeito. Talvez o mais interessante aqui seja que, em seu raciocínio, o autor coloque a
“metafísica” e o “sofisma” não ao lado do simbolismo, mas sim atrelados à sua suposta
negação. Por fim, Moscoso consegue, em seu artigo, conciliar os dois termos da
questão que pareciam incompatíveis: a “festa” e o “protesto”. Sem descartar a primeira,
ele demonstra a necessidade de se enfatizar o segundo.
Finalmente, podemos perguntar: em que consistem aquelas “contradições” a que
se refere Moscoso no título de seu interessante artigo? Segundo Hobsbawm, o mais
interessante na análise dos rituais do operariado é que eles justamente se desenvolveram
em um “movimento que era em alguns pontos não apenas indiferente ao ritualismo, mas
221
Sobre as relações entre a bandeira vermelha e o 1º. de Maio, ver Hobsbawm, Eric. Op. Cit.; p. 110.
Segundo o autor, “a demonstração de 1º. de Maio”, pelo menos na França, “institucionalizou a bandeira
vermelha”.
193
ativamente hostil a ele, como forma de irracionalismo” 222.Sendo assim, por que, afinal,
tanto na peça como nos artigos e imagens da imprensa anarquista pululam as
representações simbólicas? Por que, nas próprias comemorações que os céticos
libertários organizavam, manifestavam-se não poucos traços rituais?
Mais uma vez, quem nos ajudará a enfrentar estas questões é o historiador
Bronislaw Baczko. Segundo ele, as ciências humanas já reconheceram “as funções
múltiplas e complexas que competem ao imaginário na vida coletiva e, em especial, no
exercício do poder”. Após anos de elucubrações, os cientistas sociais finalmente
descobriram aquilo que os anarquistas já sabiam, na prática, há muito tempo: que “o
domínio do imaginário e do simbólico é um importante lugar estratégico” 223 - e que os
poderes constituídos são zelosos na proteção de seus bens simbólicos (monumentos,
emblemas, carisma etc.).
Ora, não é à toa que, desde o início das comemorações em torno do 1º. de Maio,
não foram poucos os governantes que entraram nas disputas simbólicas (mas não
ilusórias) com os socialistas de todos os matizes. Aqui mesmo, no Brasil (em plena
República Velha!), discutiu-se seriamente o reconhecimento oficial da data. Por fim, o
excelentíssimo presidente Arthur Bernardes transformou o 1º. de Maio em feriado
nacional, conferindo a ele novos significados. Desnecessário dizer, esse nobre gesto de
Bernardes destituiu os anarquistas de uma parcela não desprezível de influência sobre
aquele dispositivo galvanizador de energias.
Por isso, a aversão aos rituais que os libertários em geral manifestavam não era
um simples acesso de fúria racionalista. Na verdade, assim como na questão da festa -
só que de uma maneira mais sutil -, o problema aqui não residia no ritual “em si”. O que
estava em questão eram os usos que os poderes constituídos (e/ou os oponentes de
outros matizes) faziam dos mecanismos simbólicos como forma de controle político e
social. Conscientes da força real do imaginário e dos símbolos, os anarquistas que
estudamos resolveram enfrentar os poderosos utilizando-se de suas armas, travando
uma batalha “no terreno que eles [poderosos] haviam açambarcado”.Criaram então uma
espécie de “contra-imaginário” que serviu como “arma de combate” e, ao mesmo
tempo, como “instrumento de educação destinado a inculcar no espírito do povo novos
Esta representação desdobra-se, por sua vez, num vasto sistema de símbolos – Nação regenerada,
Homem novo, Cidade nova, etc. – que agem por reação em cadeia, de forma a reforçarem-se e a
convergirem na promessa de um futuro outro, numa promessa indefinida de Vida Nova, feliz e
virtuosa, libertada de todos os males do passado.
Dizer e imaginar a Revolução enquanto ruptura corresponde a opor o passado, ao qual ela põe
termo, ao futuro que ela inaugura. A grande promessa revolucionária é também mobilizadora
pelo seu reverso: a representação da ruptura temporal apela para a destruição do antigo, do ci-
devant.225
224
Ibid.; 301.
225
Ver Baczko, Bronislaw. Utopia. In. Romano, Rugiero. Op. Cit.;pp.370-371.
195
seu território, sem configurar sua própria identidade226, confundindo-se com os outros e
perdendo, já de antemão, um importante espaço de afirmação no interior daquela zona
conflituosa.
Não obstante o necessário desabafo de Moscoso (alguém precisava dizer o que
ele disse!), na verdade, pensamos que as tais “contradições” a que ele se refere são
partes constitutivas do “contra-imaginário” que os anarquistas desenvolveram; são
mesmo necessárias em sua constituição. Ao insistir, no fim do texto, no caráter de
protesto que, apesar da festa (ou mesmo em sintonia com ela), o 1º. de Maio deveria
manifestar, o próprio Moscoso sabia que não dava simplesmente para reproduzir os
símbolos e rituais identificados alhures; era preciso conferir a eles um caráter próprio,
específico, que garantisse aos anarquistas, naquele campo de disputas pelo simbólico,
uma posição de enfrentamento digna de reconhecimento pelos adversários. Era
necessário que os anarquistas participassem daquela luta pelo simbólico de forma altiva
e descolada dos demais antagonistas. Por mais “contraditória” que possa parecer, a
solução encontrada foi a seguinte: conferir aos símbolos e rituais um caráter de protesto,
recusando a eles justamente seu estatuto simbólico e ritual. E essa é, talvez, a
característica mais intrigante que o imaginário anarquista manifesta; ela bem mereceria
um estudo específico.
226
Sobre a questão da “identidade” e suas relações com o imaginário social, ver Baczko, Bronislaw.
Imaginação Social. In.: Romano, Ruggiero (org.). Op. Cit.; p.309. Para o autor, “designar a identidade
coletiva corresponde, do mesmo passo, a delimitar o seu `território´ e as suas relações com o meio
ambiente e, designadamente, com os `outros´; e corresponde ainda a formar as imagens dos inimigos e
dos amigos, rivais e aliados, etc. O imaginário social elaborado e consolidado por uma coletividade é uma
das respostas que esta dá aos seus conflitos, divisões e violências reais ou potenciais”.
197
227
Sobre o período de ascenso da classe trabalhadora, ver Foot Hardman, Francisco. Nem Pátria, Nem
Patrão!; São Paulo, Editora Unesp; 2002, pp. 53-54. Ver também Fausto, Boris. Op. Cit.; pp.158-159.
228
O periódico Guerra Sociale surgiu em São Paulo no ano de 1915 e era editado por Angelo Bandoni. A
respeito, ver Ferreira, Maria Nazareth. Op. Cit.; p. 93.
198
O mesmo tom nós percebemos, naqueles agitados anos, nas notícias referentes
às comemorações no Rio de Janeiro. Naquele período de intensa mobilização, parece
que até mesmo aquela cidade - vista antes de forma tão desalentadora pelos articulistas
da imprensa operária - resolveu protestar! Em reportagem de A Plebe, publicada em 10
de maio de 1919, o autor utiliza um estilo entusiástico ao narrar o 1º. de Maio no Rio.
Segundo ele, “todos os jornais” comentaram que nunca houve, na cidade, comemoração
tão grandiosa quanto aquela: 50 mil manifestantes participaram do comício (na praça
Mauá) e depois desfilaram pelas ruas. Segundo o autor, os oradores foram muito
aplaudidos, sobretudo quando se referiam “aos novos tempos que se aproximam”. Esse
grande contingente (e o próprio sucesso do protesto) seria a manifestação da força
arregimentada para enfrentar a burguesia nas “pugnas de amanhã”229.
Os textos que acabamos de analisar, publicados na imprensa anarquista dos anos
1917-1919, são nitidamente mais otimistas do que aqueles do período anterior. Diante
do espírito crítico aguçado dos articulistas daquela imprensa, diante das infalíveis
observações mordazes que eles faziam contra aquilo que fugisse às suas expectativas
(incluindo as próprias organizações de seus estimados companheiros), podemos
acreditar na sinceridade do entusiasmo manifestado nos artigos acima. Estes, sem
dúvida, oferecem indícios consistentes de uma reciprocidade da classe trabalhadora
frente às mensagens transmitidas pelos militantes libertários.
Tomando Baczko como fundamento, poderíamos dizer que boa parte dessa
influência dos militantes que estudamos junto aos trabalhadores foi conquistada por
meio de suas pressões no campo das representações simbólicas. Vejamos, mais uma
vez, o que diz o autor citado.
O controle do imaginário social [...] assegura em graus variáveis uma real influência sobre os
comportamentos e as atividades individuais e coletivas, permitindo obter os resultados práticos
desejados, canalizar as energias e orientar as esperanças.230
229
Em geral, nos artigos que analisamos, as manifestações do 1º. de Maio são vistas como uma espécie de
“termômetro” que mediria o grau de mobilização e consciência das classes trabalhadoras. As
comemorações seriam, assim, uma oportunidade de medir forças com a burguesia e de fazer um ensaio
geral para a luta que não tardaria.
230
Ver Baczko, Bronislaw. Imaginação Social. In. Romano, Ruggiero (org.). Op. Cit.; p. 312.
199
4.1. Preâmbulo
Vimos, no primeiro capítulo, que um dos grupos amadores mais ativos do Rio de
Janeiro foi o Grupo Dramatico Teatro Social (o primeiro). Este, como sabemos, atuou
intensamente entre os anos de 1906 e 1908. Suas atividades eram divulgadas com
freqüência no periódico A Terra Livre, sobretudo na época em que tal jornal foi
publicado naquela cidade – entre os anos de 1907 e 1908231. Foi justamente nessa
época de encenações constantes que o Grupo Teatro Social levou ao palco duas peças
inéditas escritas por Neno Vasco, um influente anarquista português que viveu entre São
Paulo e Rio de Janeiro na primeira década do século XX 232. As duas obras de sua
autoria, O Pecado de Simonia e Greve de Inquilinos, foram escritas num período de
menos de um ano e possuem alguns traços em comum: são relativamente curtas (ambas
foram compostas em um único ato) e apresentam inúmeras cenas hilariantes. A primeira
peça é nomeadamente uma “comédia anticlerical”, enquanto que a segunda é
qualificada como uma “farsa”. Devemos frisar que as duas foram muito bem aceitas
pelo público. Após o Grupo Teatro Social apresentar as duas peças nos palcos do Rio,
elas aparecem constantemente nos anúncios de festas operárias – tanto naquela cidade
quanto em São Paulo. Junto com Primeiro de Maio, de Pietro Gori, O Pecado de
Simonia e Greve de Inquilinos talvez tenham sido as peças mais encenadas do teatro
anarquista no período que estudamos em nossa pesquisa.
Para se ter uma idéia do “sucesso” e da perenidade das duas obras, mais de doze
anos depois de suas respectivas estréias elas continuaram bastante “badaladas”. Ambas
são não apenas encenadas com freqüência nos salões das festas operárias, como também
um tanto procuradas para publicação.
Na edição de 9 de outubro de 1920, o periódico A Plebe publicou uma nota
informando que o Grupo Juventude do Futuro acabara de editar a comédia O Pecado de
231
O periódico A Terra Livre foi fundado originalmente em São Paulo por Neno Vasco, Manuel Moscoso
e Edgar Leuenroth. Até 10 de maio de 1907 esse periódico foi publicado ainda nesta cidade. A partir de
25 de maio de 1907, ele se estabeleceu no Rio de Janeiro, onde ficou até 20 de agosto de 1908. Desde
então, o periódico A Terra Livre volta a ser publicado em São Paulo - até o ano de 1910, quando
desaparece.
232
Gregório Nazarieno Moreira de Queiroz e Vasconcelos, mais conhecido como Neno Vasco, nasceu em
Portugal no ano de 1878. Em 1901, ele emigrou pela segunda vez ao Brasil. Iniciava-se então uma fase de
intensa militância. Até 1910, Neno Vasco transitou entre as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.
Naquele mesmo ano de 1910, o advogado, escritor e jornalista anarquista (ou anarcossindicalista) voltou
para Portugal, onde faleceu dez anos depois.
201
233
Ver A Plebe, 6 de novembro de 1920.
202
Fica claro, portanto, que essas duas obras de Neno Vasco fizeram um relativo
“sucesso” nas festas operárias de São Paulo e do Rio durante as duas primeiras décadas
do século XX. É evidente também que elas repercutiram para além do período e das
cidades que abarcamos em nossa pesquisa. Por tudo isso, dar a elas uma atenção
especial chega a ser uma exigência – quando não um prazer.
Neste capítulo, analisaremos essas duas peças respeitando o critério cronológico
de antecedência. Primeiro, voltaremos nossas atenções para O Pecado de Simonia
(encenada pela primeira vez em julho de 1907); depois, faremos uma análise de Greve
de Inquilinos, cuja estréia ocorreu em março de 1908.
que faltavam “ainda para cobrar 8 entradas”. Sabemos que em eventos do tipo era
comum a venda de ingressos na porta.O que se obteve com a venda desses ingressos,
obviamente, não poderia aparecer no balancete, uma vez que este foi publicado no exato
dia em que o evento iria acontecer. No entanto, não devemos exagerar o número de
entradas no momento do espetáculo. Nas festas com as quais lidamos, os convites
adquiridos na porta nunca excediam os 15 ou 20% das entradas vendidas com
antecedência. Também devemos considerar que nem todos os que compravam ingressos
antecipadamente acabavam indo à festa. Portanto, podemos dizer, sem receio, que havia
naquele evento um público de aproximadamente 200 pessoas.
Esse dado serve apenas para que possamos mensurar o que C.M. entendia como
sendo uma “casa repleta”. No entanto, esse número, por si só, não dá conta de explicar o
que o mesmo autor julgava ser o “franco êxito” daquele evento. Afinal, como vimos em
nossa introdução, o “sucesso” ou “fracasso” de espetáculos como os que estudamos não
se mede por meio de dados numéricos que totalizam a quantidade de consumidores. Na
esteira de Walter Benjamin, acreditamos que o trabalho do “autor consciente [...] não
visa nunca a fabricação exclusiva de produtos, mas sempre, ao mesmo tempo, a dos
meios de produção”236. Ou seja, é preciso analisar com certa profundidade o efeito que
um espetáculo do gênero pode ter causado junto ao público – mesmo que este não seja
numericamente muito grande. Acreditamos que, mesmo sem conhecer Benjamin, os
militantes com os quais lidamos (e C.M. não pode ser uma exceção) sabiam, à sua
maneira, que o “sucesso” de seu esforço media-se não pela quantidade de consumidores,
mas sim pela qualidade da “propaganda” realizada. Portanto, se buscamos indícios
sobre esse efeito causado no público, devemos esquecer o balancete e atentar um pouco
para o que nos diz C.M. em sua notícia sobre a festa.
Nela, descobrimos, por exemplo, que a peça Hambre! (em espanhol), “por falta
de uma amadora”, teve de ser substituída “à última hora” por O Mestre, de Rousselle,
“já bem conhecida e sempre apreciada”. A atuação dos amadores em As Vítimas, de
Frederico Boutet, não mereceu de C.M. comentários muito abonadores. Vejamos o que
diz o autor a seu respeito: “`As Vítimas´ [...] deixou muito a desejar quanto à
representação, o que não admiro conhecendo-se a psicologia que aí entra em ação e as
236
Ver Benjamin, Walter. Obras Escolhidas – Magia e Técnica, Arte e Política.Editora Brasiliense, São
Paulo, 1996; p.131.
204
público que freqüentava aqueles eventos. Com certeza, o espetáculo por ele comentado
não foi o primeiro que ele assistiu (e provavelmente não seria o último). Não
surpreende, então, a agudeza de suas observações no tocante àquilo que estava ou não
de acordo com as preferências dos “habitués” aos quais ele se refere.
Sendo assim, tendo em vista que a comédia O Pecado de Simonia passa a ser
encenada com freqüência naquelas festas, ensejando novos eventos e mobilizando os
militantes a publicá-la e divulgá-la (isto é um fato, não uma previsão), cabe então a
pergunta: na perspectiva adotada em nossa pesquisa (que, por sinal, é semelhante a de
C.M.), aquela festa em que a obra do anarquista português aparece pela primeira vez
obteve ou não um “franco êxito”?
4.3. Um resumo
Antes de tudo, faremos um pequeno resumo de O Pecado de Simonia com o
intuito de preparar o leitor para as reflexões que esta peça nos sugere.
É claro que, nos textos dramáticos, as informações sobre cenário e personagens
que antecedem o enredo são de suma importância. Por isso, iremos transcrevê-las
abaixo exatamente do jeito que elas aparecem na página 3 da edição com a qual
lidamos.
Atualidade
A cena representa uma sala de família pobre. Algumas cadeiras modestas: uma mesa
com apetrechos de florista a um lado, do outro um oratório, defronte da porta que dá para o
jardim. Ao fundo, uma porta e uma janela baixa para a rua; à esquerda, duas portas para
aposentos da casa; à direita, uma janela baixa, perto do proscênio, e uma porta, perto da janela da
rua: ambas deitam para um corredor descoberto que leva ao quintal. Quando o pano sobe, Eva
conversa com Ciro, que está na rua, do lado de fora da janela.
206
Inicia-se a cena 1 com Eva contando a Ciro as desconfianças de sua mãe para
com a figura do rapaz. Segundo a garota, sua mãe não gosta dele por causa da fama que
ele possui: “fama de herege... de incrédulo... de inimigo dos padres e da igreja”. Eva
afirma que quem coloca essas idéias na cabeça de sua mãe são as vizinhas e o padre
João (a quem a garota manifestamente odeia). Ciro afirma que, para essas pessoas, ele
deve ser um “Anti-Cristo”. Segundo o rapaz, isso ocorre porque ele não se encobre.
Continuando seu relato ao jovem operário, Eva afirma que o jesuíta tentou
convencer a sua mãe de que ele, Ciro, pertencia a uma sociedade secreta em que, por
meio de sorteio, escolhe-se quem matará o próximo “rei ou qualquer poderoso”. Ciro dá
risada: “Ah, ah, ah... é isso que entende por anarquista?”. O operário gravador pergunta
a Eva o que ela dissera então para sua inocente mãe. Eva afirma que tentou convencê-la
de que o padre João era um mentiroso. Baldada foi a tentativa: na descrição da jovem
florista, sua mãe ficou zangada com a acusação, sustentando que aquele padre não era
capaz de mentir.
Na seqüência, Eva afirma que, num daqueles dias, sua mãe encontrou um
“livrinho” sobre “amor livre” que o Ciro lhe emprestara. Segundo Eva, sua mãe ficou
indignada, dizendo que aquilo era “uma coisa diabólica”. Aproveitando o ensejo, Ciro
pergunta à jovem se ela estava lendo os livros e folhetos que ele lhe dera. Com a
resposta afirmativa de Eva, Ciro pergunta se ela gosta daquelas leituras. “Muito...”,
responde Eva - “Quantas verdades!”.
Estamos já no final da cena 1, momento afetuoso em que Eva e Ciro dão-se as
mãos. Neste exato instante, quem aparece? A “sogra”, como em muitas cenas do
gênero. Ciro, quando a vê, “retira-se sem precipitação”. Eva, por sua vez, senta-se à
mesa de trabalho e “fica com os olhos baixos, mas digna” [grifos nossos]. Já na cena 2,
Rosa dirige-se a Eva perguntando ironicamente: “A velha veio espantar os dois
pombinhos?... Coitados!...”. Logo em seguida, ralha com a garota e justifica sua
indignação mencionando os mexericos das vizinhas, sempre atentas ao que se passa
entre a garota e o jovem “atrevido”. “E sabes o que diz o sr. Padre João?”, pergunta
Rosa à jovem florista. Esta sorri e sua mãe indigna-se com a suposta insolência da
garota.
Eva pergunta à mãe o que importa o que as vizinhas e o padre (“intrometido e
vagabundo”) dizem. Preservando a reputação de Ciro (e a sua própria), a jovem contra-
ataca ofendendo o padre. Rosa indigna-se de novo, acusando Ciro de ter transtornado a
207
cabeça da moça. Furiosa, a mãe atira um chinelo na filha. “Ah! pensas que já não tenho
mãos para te sovar como d´antes?”, pergunta a senhora em tom ameaçador.
Eva,“revoltada”, diz que não aceita intimidações desse tipo. Depois, mais amável, tenta
convencer a sua mãe de que tudo tem feito para dar a ela o melhor (respeito, amor,
alegria...). O curioso de sua fala é que, por meio dela, descobrimos que Rosa tinha mais
um filho, Antonio. Este, desde que virou soldado, sumiu: não escreve, nem quer saber
da família. Eva é quem assume sozinha todas as obrigações da casa. De relance,
insinua-se em cena o importante tema do antimilitarismo, tão cultivado pelos militantes
libertários de então.
Ante a defesa que Eva faz de si mesma, Rosa afirma: “Fizeste a tua
obrigação...”. A afetuosa garota diz que tudo o que fez foi por amor, não por obrigação.
Mais: gostaria de continuar; mas só não aceita ser tratada “como uma escrava”[grifos
nossos]. Eva tenta novamente convencer a sua mãe de que tem razão. Rosa, mais uma
vez irritada, pressiona sua filha a deixar “aquele demônio” do Ciro. Para a senhora, ele
será a “perdição” da jovem. Chantageando a filha, Rosa diz: “Se me tens amor, larga
então aquele rapaz”. A jovem florista defende-o novamente, dizendo ser ele “um
excelente moço”. Tentando convencer a mãe, Eva pergunta se ela gostaria “que a
obrigassem a mandar embora um moço de que gostasse, quando era moça”. Rosa
contra-argumenta declarando que Ciro seria bem capaz de abandoná-la - uma vez que
o rapaz era contra o casamento. Para a mãe, Ciro quer “divertir-se e depois...”. Eva mais
uma vez apóia Ciro, dizendo que ele faz jus ao sobrenome: Leal (só agora o sobrenome
expresso desde o início no texto escrito entra em cena). Segundo a jovem, ele seria
incapaz de uma traição; ele nunca fugiria às suas responsabilidades. Rosa retruca,
chamando sua filha de “tola” por acreditar em alguém que não teme a Deus. Eva, de
forma irônica, cita então exemplos (conhecidos pelas duas) de homens que se diziam
religiosos, posavam de “sérios”, mas, na verdade, haviam se revelado pessoas vis. Para
Eva, Ciro é diferente: “não faz promessas enganadoras”. Desde sempre o rapaz defende
que “casamento não garante nada”; para ele, “a única garantia é o amor”.
Diante dos argumentos convincentes de Eva, Rosa aplaca sua ira, mas não
abandona a intransigência. Para aquela senhora, seria um “pecado mortal” juntar-se a
um homem que não vai à igreja. Rebatendo o raciocínio usado pela mãe, Eva argumenta
que “os padres é que o dizem... Lá lhes ia o negócio, se não fizessem acreditar nisso...”.
A discussão serve de pretexto para Eva ressaltar o caráter mercantil do sacerdócio. Rosa
208
indigna-se diante de “tamanhas heresias”; acusa de novo Ciro por não querer nem
mesmo o casamento civil. Eva contra-argumenta, citando de novo casos alheios: D.
Zulmira, coitada, “abandonada pelo marido com dois filhos”... Lança ainda um exemplo
ao reverso, neste caso positivo: o de seu próprio pai. Segundo Eva, ele nem era muito
religioso. No entanto, sempre foi fiel à sua mãe e seria mesmo sem os “`laços do
sagrado matrimônio´”. Com isso sua mãe concorda. No entanto, diz a senhora: “eu
soube escolher... eu bem sabia com quem casava...”. Eva ri perguntando se sua mãe
acha que só ela sabe escolher. Rosa lamenta a condição em que se encontra a filha
exclamando: “Ai! que tola!... que tola!...”.
Eva, já descontraída, diz que vai ao jardim regar as flores. Sorridente e saltitante,
dança “em roda da mãe, fazendo-a girar”. Sugere que as duas façam as pazes e
esqueçam aquelas rusgas. Sai pela direita e a mãe repete: “Que tola!... que tola!...”.
A cena 3 começa com Rosa dirigindo-se ao oratório para rezar em
“contemplação piedosa”. Tira um crucifixo de prata, beija-o e torna a colocá-lo no
oratório. Em seguida, ajoelha-se e reza “umas contas”.
Temos aqui a representação da imagem de beata que incide sobre a figura da
mãe. Neno Vasco caricaturiza esta personagem em sua obra, carregando na tinta ao
caracterizá-la psicologicamente. Como veremos, Rosa não é apenas uma senhora
apegada à religião. Ela se apresenta como uma criatura supersticiosa e ingênua, sempre
suscetível a manipulações alheias. É nesta cena que ela se revela por inteiro. Vejamos
como.
Enquanto Rosa reza piedosamente frente ao oratório privado, da rua ouve-se o
pregão de José, o vendedor de bilhetes para o jogo do bicho. Ele anuncia seu último
jogo: “Corre hoje!... 3412... Corre hoje!... 12 contos!”. Além do anúncio de José,
diversas outras pessoas na rua insinuam o mesmo palpite (lembremos: nos bastidores
havia dois homens e duas mulheres que, dentre outras coisas, deviam fazer as vozes que
vinham “de fora”). Uma mulher pergunta para outra qual o seu palpite para o bicho que
sairá naquele mesmo dia. A outra afirma: “ o burro com 12... Sonhei que meu marido...
(Risadas na rua)”. Uma outra voz (desta vez de homem) ofende um outro transeunte:
“Seu burro!”. O ofendido responde: “Burro é você”. José continua anunciando o bilhete:
“Corre hoje!... 3412... Corre hoje!”. Uma outra mulher insinua: “A minha galinha tem
doze pintinhos, sra. Anninhas”. Um outro homem diz: “Levou 12 facadas”. José
209
continua anunciando o último bilhete. Rosa desespera-se e olha para o oratório, tentada
por alguma inquietante sugestão.
José, tão insinuante quanto o palpite, aparece na janela do quarto de D. Rosa
oferecendo-lhe o bilhete. A oferta é tentadora! No mesmo instante, aparece Eva. Ela
efusivamente anuncia à mãe que sua roseira acabara de abrir doze lindos botões. José
sugere que aquilo é um palpite que não se deve rejeitar. Rosa desespera-se e José
garante a ela que aquele é o bilhete premiado. A crédula senhora afirma que não possui
nenhum tostão e que não lhe sobrara nenhum objeto de ouro para uma possível
negociação. Ela inadvertidamente mira seu olhar no oratório. José, muito esperto,
propõe empenhar, “no Correia”, algum objeto que porventura Rosa possuísse: objeto
como, por exemplo... Aquele crucifixo. Rosa, após alguma hesitação (ela teme cometer
algum pecado), resolve por fim empenhar o objeto sagrado (não sem manifestar um
indisfarçável arrependimento). José imediatamente tira-lhe o crucifixo da mão e diz que
logo mais voltará com o dinheiro recebido. Rosa cai de joelhos e exclama: “Ai! meu
Deus! Perdoai-me!”. Termina assim a cena 3.
Na cena seguinte, chega o padre João. Sempre intrometido, ele olha pela janela e
depara-se com Rosa rezando em frente ao oratório. Logo após um breve elogio à
conduta religiosa da senhora, o jesuíta pergunta sobre Eva. Não satisfeito com a
pergunta enxerida, padre João entra na casa e inicia-se uma conversa sobre os
“descaminhos” da moça. Chamando Ciro de “diabo tentador”, o jesuíta acusa o rapaz de
corromper a garota. Neste instante, Eva faz menção de entrar, mas, vendo o padre,
“volta para trás”. Rosa concorda com as asserções do padre e lamenta-se com o rumo
que sua filha está seguindo. Padre João assevera que a senhora possui uma grande
responsabilidade. Em tom de ameaça, diz que ela deve “prestar contas a Deus”,
assegurando inclusive que a garota já estava corrompida. “Sim... Ainda agora chegou ali
à porta e fugiu... quando me viu...”, acentua o jesuíta como ilustração.
Eis que chega José, trazendo o dinheiro do penhor e declarando abertamente o
resultado da transação com o “Cristo de prata”. Obviamente, diante do padre, Rosa fica
toda embaraçada. Em sua fala, mais uma vez José revela sua astúcia. Acusando o
penhorista de ser “um ladrão”, diz à dona Rosa que conseguiu apenas a quantia de
5$000, “quando o Cristo de prata vale mais de... 30 dinheiros. (Ri)” [fala de José]. O
padre olha para o oratório e se dá conta da ausência do crucifixo lá. Rosa, encabulada,
faz “inúteis sinais para que José se cale”. Revelando uma indisfarçável inquietação, a
210
senhora pede para que o vendedor acerte logo as contas, cobrando o bilhete e
devolvendo-lhe o resto. José entrega-lhe o dinheiro e reitera que daqui a pouco a “sorte
grande” sairá para a senhora. Antes de se retirar, ele faz questão de lembrar à ingênua
senhora de que fora ele mesmo quem vendera o bilhete.
Após um silêncio “embaraçador”, já na cena 6, padre João ralha severamente
com a crédula senhora. Em tom solene e ameaçador, acusa Rosa de ter cometido o
“hediondo pecado de simonia”. A senhora, “trêmula e chorosa”, exclama: “Ai! minha
Nossa Senhora!... Jesus! Nossa Senhora!!!”. Rispidamente, o jesuíta denuncia as ações
do demônio naquela casa. Para ele, além da filha, a própria senhora também “está
perdida”. Rosa, amedrontada, exclama sempre: “Meu Deus!... Nossa Senhora! Jesus!
Jesus! Nossa Senhora!”.
No auge da reprimenda do jesuíta, uma voz feminina pergunta na rua: “Que
bicho deu?”. “Deu o burro, com o 12...”, responde a outra voz feminina. Rosa levanta-se
abruptamente e solta um grito: “Ah!”. Padre João, “erguendo-se vivamente”, pergunta:
“Que é?...”. Rosa festeja exultante a sorte que lhe acabara de sair. De imediato, ela
associa o prêmio a um suposto perdão pelo pecado que cometera. Padre João, “com
vivacidade”, pergunta à Rosa quanto ela receberia. Rosa responde: “Seis contos de
réis!” (ela comprara um meio-bilhete, portanto ficaria com a metade do prêmio, que era
de 12$000). Com irreprimível entusiasmo, até mesmo padre João, num primeiro
momento, felicita a senhora: “Meus parabéns!... está com sorte... Sim, senhora...”. No
entanto, após uma pausa, o ladino jesuíta sugere que, na verdade, aquilo poderia ser uma
cilada do demônio. No discurso maroto do padre, aquele “dinheiro está amaldiçoado
[...] é dinheiro do inferno...”. Rosa aterra-se novamente e, confusa, lamenta-se,
afirmando que pensara ser aquele prêmio um perdão de Deus, uma dádiva divina.
Afinal, ela pedira tanto a Deus para que ajudasse a ela e à sua filha. O padre contra-
argumenta dizendo que “Deus quer experimentar as suas criaturas...”.
Rosa lamenta-se dizendo ser uma infeliz. Em sua fala, ela afirma que, desde a
morte de seu marido, sua vida estava sendo uma desgraça. O padre, “que esteve
meditando e prestou atenção às palavras de Rosa”, é acometido por uma “idéia súbita”.
Dizendo ter encontrado um meio de obter o perdão para o pecado da senhora, pergunta-
lhe sobre um sonho que ela tivera dias antes com seu falecido marido. Rosa relata
novamente ao padre que, naquele dia, seu marido aparecera-lhe “todo vestido de
branco”. Explorando a credulidade da senhora, o jesuíta afirma que aquilo, na verdade,
211
não fora um sonho e sim a própria “alma de seu marido”. Este, sempre de acordo com o
padre, apesar de ser uma boa pessoa, não era lá muito religioso. No entanto, Deus, em
vez de uma punição eterna, teria concedido àquela alma benévola uma temporária
estadia no purgatório. No entanto, para aliviar os seus tormentos e diminuir o tempo de
punição naquela instância do além, o marido de Rosa, sempre no discurso do padre,
teria aparecido naquela noite para pedir a ela uma intervenção em seu favor. Rosa
apieda-se de seu falecido esposo e, com isso, mostra-se inclinada a ajudá-lo naquela
difícil situação: “coitado! Deus lhe alivie os sofrimentos!”, afirma a crédula senhora.
Ouvindo isso, o ladino padre afirma que as missas têm esse poder de aliviar os
sofrimentos das almas no purgatório. Rosa dispõe-se imediatamente a mandar dizer
missas em nome de seu falecido esposo. Padre João concorda com a decisão e diz que,
dessa forma, ela não apenas neutralizaria os efeitos do pecado que cometera (utilizando
aquele dinheiro diabólico em obras piedosas e evitando a perdição dela própria e de sua
filha), como também ajudaria seu falecido marido. Depois que Rosa pergunta quantas
missas eram necessárias, o jesuíta é acometido por uma nova “idéia súbita”. Mais uma
vez explorando a credulidade da senhora, padre João anuncia que naquela mesma noite
seu marido apareceria novamente a ela. Rosa assusta-se diante da sugestão: “Jesus!
Jesus! Credo!”. O jesuíta tenta acalmá-la dizendo que ela deve se armar de coragem
para, na oportunidade, perguntar a seu amado Manuel “de quantas missas precisa” ele.
Rosa dispõe-se a fazer exatamente o que o padre está dizendo.
O padre faz algumas recomendações: diz para Rosa ter cuidado, pois se trata da
alma de seu marido e da sua filha (“que ainda se salvará... porque o demônio fugirá
desta casa”) Ele ordena ainda que a senhora resgate seu crucifixo, benza-o e faça-lhe
“uma festa”; por fim, diz que ela deverá fazer uma “severa penitência” que só será
ministrada quando de sua absolvição (por ocasião de sua próxima confissão). Rosa
concorda com tudo e diz que assim que receber algum dinheiro, imediatamente buscará
de novo o crucifixo.
O padre determina que Rosa se previna diante das “ciladas do demônio”,
proibindo-a de contar alguma coisa para sua filha. Esta, segundo o padre, sempre
influenciada por aquele herege do Ciro, bem poderia colocar em risco a salvação de seu
marido e dela própria (mãe). Rosa, no entanto, afirma que seria impossível guardar
segredo, uma vez que o vendedor de bilhetes, “tão tagarela”, já teria anunciado a toda a
vizinhança que ela ganhara o polpudo prêmio. João determina que ela diga que rasgou o
212
bilhete. Rosa, admirada, indaga: “Mentir à minha filha?”. O padre justifica dizendo que
a mentira não é pecado “quando feita com tão santas intenções”. Em seguida, o padre
despede-se recomendando novamente que a senhora fizesse tudo o que o seu “marido”
pedisse; reitera também os conselhos de cautela diante das “ciladas do demônio... e dos
seus instrumentos”. D. Rosa diz para o padre ir “descansado” e, por influência das
pregações que acabara de receber, afirma que “mais vale a salvação da nossa alma do
que todas as riquezas do mundo!”. O padre, “untuoso e solene”, concorda plenamente,
afirmando que “esta mísera vida” de nada vale diante da promessa de salvação eterna.
Reforçando seu argumento, ele enfatiza que tal salvação está destinada “aos bons... aos
submissos... aos humildes”. Ele despede-se e a incauta Rosa afirma: “Deus lhe pague a
sua caridade”.
Com a saída do padre, inicia-se a curta cena 7. Rosa percorre a sala arrumando
as coisas e suspirando. Eva espreita pela janela para ver se o padre já se foi. Ela entra
por uma porta enquanto sua mãe sai pela esquerda. Quando Eva diz “mamã...”, Rosa
estremece: “Ai!... Padre nosso que estais no céu...”. Rosa sai dizendo que vai pegar “a
luz que está bastante escuro”.
Já na cena 8, eis que reaparece José, o vendedor de bilhetes. Ele pára na janela e,
achando que no interior da casa estava Rosa, logo pergunta pelo prêmio. Ao perceber
que quem se encontrava lá era Eva, José pergunta se sua mãe fora já “receber o cobre”.
Eva, admirada, pergunta: “O cobre?! Que cobre?”. José explica-lhe tudo. Em sua fala,
notamos um nítido tom irônico quando ele se refere ao palpite em torno do burro. José
afirma chistoso: “eu também sempre gostei do burro... É muito boa pessoa!”. Ora,
desnecessário dizer que a associação do burro com a credulidade da mãe é eloqüente na
peça.
Diante da informação dada pelo vendedor de bilhetes, Eva festeja o prêmio.
José, para garantir a sua recompensa, afirma à jovem que se não fosse ele a sugerir a
penhora do crucifixo, Rosa não ganharia. Ao notar que o crucifixo não estava no
oratório, Eva ri às gargalhadas. José, que também riu, diz que o Cristo acabara de fazer
um verdadeiro milagre. Sem muito se estender, José anuncia sua volta no dia seguinte,
reiterando sua intenção em “receber a gorgeta [sic]”. Eva convida José a entrar. O
vendedor diz que não precisa e que voltará depois.
Eva continua rindo e põe-se a dar voltas quando entra sua mãe com o candeeiro
e quase vai de encontro a ela. “Ah! ... que é isso, filha?”, pergunta a senhora assustada.
213
Eva bate palmas e indaga sua mãe sobre o jogo que ela fizera. Rosa, “embaraçada” e
“titubeante”, diz que rasgara o bilhete antes mesmo do sorteio ocorrer. Com gestos
desencontrados, “movimentos incoerentes” e “arrumações inúteis”, ela afirma que
tomou aquela atitude porque o bilhete que comprara era fruto de um “grande pecado”.
Rosa justifica seu ato dizendo que fora tentada pelo demônio. Sempre embaraçada,
declara-se cansada e diz que vai se deitar - depois de rezar o rosário, é claro. Pede para
que a filha também vá para a cama. Intrigada, Eva pergunta se a idéia de rasgar e
queimar o bilhete era do padre João. Rosa confirma dizendo que ele “tinha razão”. Rosa
sai.
Na cena 10 - quando Eva está sozinha, pensativa e com “um leve sorriso triste
nos lábios” -, Ciro aparece na janela e, “com voz discreta”, chama: “Eva!”. A garota
assusta-se. Ao perceber que era o Ciro, desconfiada, ela lhe conta toda a história e pede
para que ele fique por perto para que ambos possam combinar alguma coisa. Eva fecha
a janela.
Já na cena 11, a jovem senta-se em sua mesa de trabalho e Rosa entra. A ingênua
senhora pede novamente para que a filha vá se deitar. Eva assente dizendo que está com
dor de cabeça e que o melhor mesmo seria ir para a cama. No mesmo instante, passa “de
relance” pela janela um vulto. Nenhuma das duas o vê. Quem seria? Na continuação da
conversa, Rosa, denotando preocupação, pergunta se Eva não gostaria de tomar um chá.
“Dóe-te muito a cabeça?”, indaga a mãe. “Não mamã; muito não”. Eva olha para a mãe;
esta, sempre embaraçada, baixa os olhos, mal dissimulando um ar de culpa.
Rosa, sozinha em seu quarto, tira do bolso “umas contas” e começa a rezar. Eis
então que aparece “um vulto envolto num lençol” e, com “voz cavernosa”, chama por
Rosa. Esta, “voltando-se, dá um grito de pavor” e continua rezando, agora
atrapalhadamente. O “fantasma” apresenta-se como seu marido e pergunta se ela quer
acudi-lo. Ela responde que sim. Então, o “fantasma” pede para que ela mande rezar mil
missas, afirmando que cada missa corresponde a mil anos de perdão no purgatório.
Repentinamente, entra Eva, correndo e gritando: “Ah! canalha!... Ah! ladrão!”.
Ela agarra o lençol do “fantasma” e grita: “Socorro!... socorro!...”. Segue-se uma cena
de agitada confusão. A mãe, “atarantada”, foge e grita; depois, ajoelha-se e volta a
rezar. O “fantasma” tenta pular pela janela; esta, no mesmo instante, abre-se e Ciro
aparece de surpresa. Inicia-se uma atrapalhada perseguição em cena, com direito a
gritaria e atropelos. Primeiro, Ciro corre atrás do fantasma no quintal. Enquanto isso,
214
Eva fecha a janela e, em seguida, corre para o quintal também. A mãe, sempre rezando,
tenta seguir o mesmo caminho, mas acaba sendo atropelada pelo “fantasma” que entra
desabaladamente. No interior, “caem cadeiras, panelas, louças, etc.”. O “fantasma”
atravessa novamente a cena, perseguido por Ciro e Eva. Na seqüência, entra de novo o
“fantasma”, desta vez “debatendo-se nos braços fortes de Ciro”. Eva desmascara o
“fantasma” tirando-lhe repentinamente o lençol. O jovem anarquista exclama: “Com
estes hereges é que você não contava, reverendo! Heim?”.
Diante da desmoralização do padre, Rosa, “aterrada”, fica enfurecida. Ciro
afirma que, na verdade, quem comete o pecado de simonia é a Igreja. Indulgências,
exorcismos, relíquias e sortilégios são vendidos por ela. O jovem afirma
categoricamente ao padre: “a essência do teu estabelecimento é o pecado de simonia!”.
Diante de uma nova tentativa de fuga, Ciro obriga o padre João a ficar “com o traseiro
voltado para o público”. Rosa tira o chinelo do pé e bate “vigorosamente nos fundos
redondos do padre”. Eva ri e bate palmas. “Bravo mamã!”, exclama entusiasmada. Por
fim, Ciro declara irônico que ele é quem deseja sovar o padre. Porém, como Rosa já
realizou sua aspiração, deixaria assim o jesuíta partir. Agora, quem recomenda cautela é
nosso herói. Caso o padre não se emende, o jovem ameaça cuidar ele próprio de aplicar
a sova. Esta, anuncia o herói, irá muito além de simples chineladas. Já com a porta
aberta, Ciro diz para o padre ir embora, dando-lhe um “ponta-pé [?] no traseiro”.
Rosa, desiludida, diz que nunca imaginaria que o padre João faria algo parecido
com o que fez. Ciro diz que, no ofício de padre, coisas do gênero são comuns. “Quem
havia de dizer!”, exclama Rosa. Eva intervém lembrando à mãe de que ela própria já a
havia advertido.
Na seqüência, abre-se espaço para uma indisfarçável afirmação moral. Assim
que Ciro Leal (após o cumprimento de seu dever) pede licença para se retirar, Eva
intercede em seu favor perguntando à mãe se ela não agradeceria ao rapaz. Rosa, não
obstante uma alegre reprimenda contra a filha, oferece a Ciro o bilhete premiado.
“Receba o dinheiro... e arranje o casamento...”. Ciro agradece, mas recusa a oferta: ele
pode trabalhar e, com isso, ganhará o bastante. Eva insiste, convidando Ciro para vir
morar com as duas e sugerindo que o herói utilize o dinheiro para construir sua própria
oficina de gravador, livrando-se assim do patrão. Assim, “viveremos contentes no nosso
canto...”, afirma Eva. Descobrimos aqui que Ciro, além de anarquista, era tipógrafo.
215
uma espécie de lista tarifária especificando o preço a ser cobrado por cada serviço
religioso prestado aos fiéis. Voltando sua atenção para esse aspecto pitoresco do relato
de Roussel, Rodrigues cita literalmente alguns dos itens dessa circular. O primeiro item
mencionado (o de número 1 no original da Agência) tratava justamente da venda de
“indulgência plenária” por meio do “santo refrigério da missa”, para o qual devia ser
cobrada a quantia de 12 francos e 50 centavos. Na esteira de Roussel, Rodrigues
ironicamente afirma (caricaturando a lógica dos fiéis) que seria uma crueldade da parte
dos parentes e amigos “não aproveitar-se de tão boa ocasião e por tão baixo preço”.
Inevitável foi aqui lembrar do padre João. Afinal, o estratagema criado por ele
para ficar com o prêmio da crédula senhora foi justamente o de convencê-la da
necessidade de mandar rezar inúmeras missas a seu falecido esposo. Em sua edição de
18 de maio de 1912, o mesmo periódico anticlerical publicou uma charge cujo título é
“A carestia da vida”. Em sintonia com esse mesmo aspecto da exploração clerical, ela
apresenta um vigário sentado em uma mesa repleta de bebida e comida. Diante da
mesa, uma pobre mulher segura a mão de sua filha. Queixando-se ao clérigo, ela afirma
que seu marido está doente e que possui em casa apenas “4$”. “Tudo está tão caro...”,
arremata a pobre mulher em seu doloroso lamento. O vigário, diante disso, sugere que
ela lhe ofereça então “3$” para que ele reze uma missa em favor de seu enfermo marido.
A este seria então concedida a promessa de uma “bem-aventurança eterna”.
tentar melhorar sua própria condição, o ladino padre sugere que ela lhe conceda quase
tudo o que lhe restara. O objetivo seria garantir à alma de seu enfermo esposo uma
duvidosa salvação depois da morte. Outra coisa que devemos ressaltar é que esta
imagem, como várias outras veiculadas em A Lanterna, retrata o padre como um
homem gordo sentado em uma mesa repleta de comida. Como em outras charges do
tipo, aqui também ele é representado com os traços visivelmente grotescos. Precisamos
ressaltar que o estigma de glutão recai frequentemente sobre os clérigos nas
representações daquele periódico. Teremos a oportunidade de analisar outras imagens
semelhantes. Gostaríamos apenas de ressaltar que aqui também a referência à missa
paga sugere-nos não poucas associações com o conteúdo de O Pecado de Simonia. Sem
dúvida, trata-se de uma mesma tradição anticlerical que problematiza os mesmos temas.
Nesse sentido, nosso objetivo é identificar esses temas recorrentes e analisar como eles
são tratados nos diferentes meios utilizados pelos militantes anticlericais (artigos, teatro,
charges etc.).
Três meses depois, em 17 de agosto de 1912, o
mesmo periódico publicou uma outra charge que
modula mais ou menos na mesma freqüência. A nova
imagem retrata um padre bem rechonchudo sentado à
mesa, desta vez com um casal de distintos senhores
(pessoas ricas, com certeza, porque bem vestidas e
próximas ao elemento clerical). Entre eles, uma
garrafa, copos e pratos. Logo atrás, um serviçal prestes
a servir alguma coisa. O padre afirma aos senhores:
“Eles trabalham agora para nós, mas nós rezamos para
que eles possam ganhar na outra vida o reino do céu”.
Novamente, o retrato da cobiça clerical – associada
Imagem 9 – A Lanterna, 17 de agosto mais uma vez ao gozo dos prazeres da mesa – é
de 1912
patente. Como na charge anteriormente analisada,
devemos atentar para o simbolismo do prato farto. Ele aparece como sinal de uma vida
boa e confortável. Nesta charge, devemos ainda ressaltar a idéia de exploração; neste
caso, tanto da boa-fé quanto da mão-de-obra alheia. Afinal, enquanto os pobres
trabalham “para nós”, “nós rezamos” para que eles alcancem, só na outra vida, a “bem-
aventurança”. Assim como na peça e nos demais exemplos citados, a idéia de
218
manipulação da ingenuidade por meio da promessa de uma vida melhor após a morte é
o tema central.
No entanto, apesar da “exploração clerical” sobre a credulidade alheia ser a
questão central da peça de Neno Vasco, devemos lembrar que ela não é a única, nem
talvez a mais importante. Para além desse tema, percebemos que O Pecado de Simonia
trata de algumas outras questões fundamentais no discurso anticlerical de tendência
libertária. Uma dessas questões é a que se refere ao complexo assunto do amor livre.
Polêmico por excelência, ele ensejou debates acalorados durante a República Velha.
Como todo tema polêmico, este também se constitui de inúmeros elementos que são
recorrentes nas discussões em seu redor. O que faremos agora é analisar de perto alguns
desses elementos que a própria peça sugere.
Uma das coisas que depreendemos das últimas falas de Eva é a associação do
casamento religioso com o civil. No que tange ao reconhecimento da relação conjugal,
para a jovem florista, o juiz nada mais seria do que um “outro padre”. Na juízo de Eva,
as leis civis que regulamentam o matrimônio parecem possuir o mesmo valor das
normas eclesiásticas. Haveria ressonância dessa associação conceitual nos discursos
anarquistas em torno do amor livre? Até que ponto a intromissão religiosa era associada
à civil naqueles discursos? De que maneira se dava tal associação? Para responder a
estas perguntas, recorreremos, mais uma vez, à imprensa operária. Os artigos sobre
amor livre publicados naquela imprensa trazem alguns indícios a respeito.
Cinco anos antes de O Pecado de Simonia estrear nos palcos das festas
operárias, algumas questões sugeridas pela peça eram já discutidas em O Amigo do
Povo, periódico anarquista que surgiu em São Paulo em 1902 e que, sintomaticamente,
tinha como editor o próprio Neno Vasco. No dia 2 de agosto daquele ano, apareceu
naquele mesmo jornal um artigo intitulado O matrimônio e a mulher – Moral burguesa
e moral futura. Assinado por Tibi, o artigo condensa alguns dos principais elementos
que compõem a complexa concepção de amor livre no discurso libertário. Em seu
texto, o autor faz uma crítica feroz à instituição do matrimônio e às falsidades que a
moral burguesa engendraria. Logo no início, Tibi afirma que o “atual matrimônio” é
uma das instituições mais perversas que existem. Isso porque ele “decide do futuro de
dois seres”. Em seguida, Tibi coloca sob suspeita o juramento de amor que se faz diante
de um padre ou de um juiz. Vejamos de perto o argumento do autor:
219
“E aí temos o par!”. Eis uma frase enigmática que expressa uma dubiedade de
sentido provavelmente intencional. A qual “par” exatamente Tibi se refere: ao casal que
acaba de jurar amor eterno ou à dupla Estado/Igreja? Difícil uma resposta conclusiva.
De qualquer forma, depreendemos da fala do autor uma verdadeira aversão ao
reconhecimento das duas instituições que exerciam sua influência direta sobre o
matrimônio. No discurso de Tibi, assim como no de Eva, Estado e Igreja aparecem
submetidos ao mesmo juízo crítico. Ambos são igualmente deslegitimados. Para o
autor, o casamento é perverso não apenas por seu caráter indissolúvel, como também
porque depende da sanção daquelas duas odiosas instituições que oprimem e
embrutecem. No que tange ao casamento, não há, no juízo de Tibi, nenhuma
diferenciação específica entre Estado e Igreja. Ambos são igualmente questionados:
“bruxo religioso ou oficial”. Nem um nem outro possui o direito de legitimar ou não
uma união entre um homem e uma mulher que verdadeiramente se amam. A chancela
de ambos é sintomática do caráter hipócrita e/ou insuficiente daquela “afirmação
sentimental e ingênua” que constitui o juramento matrimonial.
Chegamos a uma conclusão semelhante ao analisar um outro texto publicado
dois anos depois no mesmo periódico O Amigo do Povo. Assinado por J. Lleros, o texto
não é propriamente um artigo 237. Na verdade, ele se estrutura como um diálogo fictício
“entre operários” que se encontram numa situação cotidiana qualquer. O tema sobre o
qual os dois conversam é justamente o do polêmico amor livre. Um dos personagens,
Joãozinho, encarna o tipo resignado; o outro, Luís, é um inconfundível militante
anarquista que escreve artigos em um periódico libertário não especificado. Após uma
didática preleção de Luís em favor do amor livre, Joãozinho, já devidamente
convencido dos argumentos do colega operário, pergunta a ele como evitar os
problemas todos associados ao matrimônio tradicional. Vejamos então o que responde o
anarquista Luís:
237
Ver O Amigo do Povo, edição de 13 de fevereiro de 1904.
220
Como evitá-las [as “coisas” perversas que o casamento engendra]? Com a união livre,
meu caro! Quando os homens tiverem compreendido que é uma infâmia sancionar com
indissolúvel nó um ato natural da vida [...], quando enfim dois jovens decidirem unir-se sem
esperar a licença dum padre ou dum magistrado qualquer, então a questão da família poderá
desenvolver-se num ambiente mais belo e moral; então cessarão as injustiças que resultam da
família atual.
A bênção sacerdotal foi necessária, em quanto [sic] se entendeu útil chamar sobre o lar
que se formava as bênçãos do Altíssimo. Reconhecido que a prole prospera bem sem essas
bênçãos, pode dispensar-se o padre; tanto mais que ele impunha condições pesadas.
221
o amor. Portanto, assim como em outros artigos sobre o amor livre que analisamos, a
crítica do articulista não recai sobre o casamento “em si”. O que está em questão são as
condições concretas em que ele se efetua na sociedade, conferindo à mulher uma
inequívoca posição subordinada.
Uma constatação semelhante fora feita oito anos antes, no artigo supracitado de
Tibi. Num ataque contundente às relações conjugais que a sociedade engendra, ele
afirma que o matrimônio “apenas serve para abreviar a duração do amor, tornar odiosa a
união. No lar, a mulher é a escrava, o homem o senhor; este tem o direito de mandar,
aquela... de obedecer. E ai dela se tenta levantar a cabeça”. Por de trás dessa opressão
masculina, Tibi desvela o consentimento da sociedade em geral. Segundo o autor,
inclusive a lei (“que consagra todas as iniqüidades”) respalda o marido em seus
inúmeros desvios de conduta. Em tais condições, seria mesmo impossível o
desenvolvimento de um verdadeiro amor entre os cônjuges (expressamente, “uma
escrava e um senhor”). A crítica ao matrimônio passa assim por uma avaliação da
condição feminina em relação ao marido. É uma crítica que recai sobre as injustiças de
gênero que se verificam nos relacionamentos conjugais. A “obrigação” imposta pelo
contrato conjugal é vista como razão de toda a infelicidade no interior da vida de um
casal. Para Tibi, “o casamento é a morte do amor...”.
Mais adiante, referindo-se novamente à mulher, o autor afirma que muitas vezes
ela escolhe um cônjuge por razões que raramente têm a ver com seu verdadeiro amor:
“para satisfazer o desejo dos pais”, “para salvar a honra da família” ou “por puro
interesse”. Ela despreza “as indicações do próprio coração” e “vende-se sem amor”,
“chegando a odiar o companheiro”. No quadro sombrio pintado por Tibi, parece
realmente impossível surgir qualquer espécie de amor sincero no interior das relações
conjugais. No casamento, a felicidade parece mesmo ser uma quimera.
No entanto, precisamos ressaltar que nem todos viam as relações matrimoniais
exatamente do mesmo jeito. Citaremos apenas um caso em que, não obstante as críticas
às desigualdades de gênero no interior do casamento, a possibilidade do
desenvolvimento do afeto (senão mesmo do amor sincero) não está descartada. Isso é o
que depreendemos de um artigo publicado no dia 1º. de fevereiro de 1915 no periódico
carioca A Voz do Trabalhador. Seu autor, Antonio C. Altavila, após uma preleção
didática sobre o tema, dirige-se diretamente às mulheres.
223
E ponham nisto os olhos as mulheres que aceitam o poder despótico dos pais que as
submetem pelo casamento a este ou àquele de seu agrado, ou as que se entregam ao poder de um
marido, que, conforme a lei o declara, será o seu dono e o seu tirano, embora seja muitas vezes
um amigo sincero e até dedicado.
Para além das desigualdades de gênero, a charge faz menção à polêmica questão
do divórcio. Esta fora tema de um artigo publicado um mês e meio antes no mesmo
periódico anticlerical. Na sessão “Hóstias amargas”, num artigo intitulado “Ainda o
divórcio”, o autor (Ignoto) tece uma crítica às objeções dos padres ao divórcio civil238.
Utilizando o raciocínio dos próprios clérigos de então, Ignoto tenta desautorizar os
questionamentos da Igreja no que se refere à questão do divórcio civil. Ele se indigna
com a objeção dos padres, pois estes não reconheciam o casamento civil, não conferiam
a ele nenhum valor. Sendo assim, por que haveriam eles de recusar o divórcio civil?
Dirigindo-se aos padres, Ignoto indaga: “que vos importa a vós que o poder legislativo
faculte às partes contratantes a dissolução, quando lhes aprouver de um vínculo que
considerais criminoso, condenável?”. Em suma, tentando corrigir as premissas do
silogismo clerical, Ignoto observa: se os padres condenavam tanto o casamento civil, o
divórcio civil, para eles, não deveria ser assim tão condenável.
É importante salientar que Ignoto não chega a defender a legislação
propriamente dita. Esta não é sua preocupação. Ele apenas tenta mostrar com seus
argumentos as contradições que a objeção da Igreja carrega consigo.Mas por que a
questão do divórcio era objeto de atenção do discurso libertário e/ou anticlerical? Tal
preocupação relaciona-se não com o divórcio “em si”, mas com um outro elemento
importante nas concepções de amor livre veiculadas na imprensa operária: a crítica à
indissolubilidade do casamento. Desnecessário dizer, se os adeptos do amor livre eram
contra as exigências dessa indissolubilidade, mesmo opondo-se às ingerências do
Legislativo nas relações conjugais, eles não poderiam ver com maus olhos a instituição
do divórcio civil. E Ignoto não perde a oportunidade de apontar as incongruências da
Igreja no que tange às suas posturas ante essa questão.
No discurso libertário e anticlerical, muitas vezes a questão da emancipação
feminina imbrica-se nas críticas à indissolubilidade do casamento. Desnecessário dizer,
tais críticas geraram na época inúmeros mal-entendidos. Em O Pecado de Simonia, é a
beata Rosa quem se encarrega de encarnar em cena essa confusão que deveria povoar o
imaginário popular da época. Vejamos de perto o trecho da peça em que a mãe de Eva
tenta convencer a garota do caráter supostamente oportunista de Ciro.
Rosa: [...] Escuta, Eva: como queres um homem como aquele, muito capaz de te deixar para aí
abandonada?... Tu bem sabes o que ele diz do casamento... E olha que o sr. Padre João também
238
Ver A Lanterna, edição de 24 de agosto de 1912.
225
sabe... Não o dizia o livro que esse diabo te deu, para te tentar?... O que ele quer... bem sei... É
divertir-se e depois...
Eva: Não, mamã. Eu conheço bem o Ciro... o sr. Leal. Tive ocasião e tempo para isso. É
absolutamente incapaz duma traição , duma infâmia... O seu nome não mente: é um rapaz “leal”,
que não foge às responsabilidades que toma...
239
Ver Valladares, Eduardo. Anarquismo e Anticlericalismo. São Paulo, Editora Imaginário, 2000; p.75.
240
Ibid.; p.75.
226
[Joãozinho] Não digo que na maioria tuas idéias não sejam aceitáveis... Mas há cá uma coisa
que não me entra na cabeça....
[Luís] Qual é?
[Joãozinho] Aquela história do amor livre. Não, aquilo é que eu não posso aprovar, e até estou
mais do que convencido que se os anarquistas se decidissem a pôr de parte essa questão, teriam
muito mais aderentes à sua idéia.
[Luís] Pode ser; mas, olha, a nós não nos importa o sermos muitos, quando não sejamos
verdadeiramente conscientes da idéia que abraçamos. Mais do que ao número dos aderentes
olhamos à formação das suas consciências[...].
diálogo com Joãozinho. Luís afirma que a união entre dois seres de sexos diferentes é
algo que não se discute. Mas, para ele, “esta união sexual torna-se imoral e detestável
quando não tenha por único motivo o amor, a afeição entre dois seres”. Se essa afeição
mútua vem a faltar, ambos “devem pôr ponto nas suas relações íntimas, que se tornaram
imorais, anti-naturais...”.
O argumento utilizado por Luís desenvolve-se então em torno da situação
feminina dentro do casamento. Para ele, não é justo que a mulher, só por causa de um
juramento feito ao juiz ou ao padre, “seja condenada a prostituir-se constantemente ao
homem que não ama” [o itálico é do texto original]. Esse relacionamento é que, para
Luís, é um “ato imoralíssimo”. Por fim, no momento em que Joãozinho já se mostra
convencido dos argumentos de Luís, este novamente questiona a indissolubilidade da
união matrimonial. Vejamos seu argumento.
Rosa: És uma tola! Quem é que se pode fiar num homem que nem tem o temor de Deus?...
Eva: Tinha-o o filho do capitão Fernandes... muito santinho... muito seriozinho... sempre com os
padres... e que se casou com uma rica, deixando aquela pobre com três filhos... Lembra-se
quando ela veio aqui contar a sua vida, chorando?... E o padre Lopes, não tinha o temor de
Deus?... E o sr. Roberto?... O Ciro é franco, não faz promessas enganadoras... diz que o
casamento não garante nada... que a única garantia é o amor e a lealdade de ambos... e a coragem
de cada um...Mas aqueles “bons moços” prometiam... prometiam... enganavam... deixavam as
pobres ingênuas na ignorância... na imprevidência....
Serviu de muito o casamento à d. Zulmira, abandonada pelo marido com dois filhos...
(Cariciosa) O papá não era muito religioso, e era bom... não era? (Rosa acena que sim). A
senhora pensa que ele, se não houvesse entre os dois os “laços do sagrado matrimônio”, como
diz o padre João, a abandonava ... com os filhos, como fez o marido de d. Zulmira?
Rosa, branda: Oh! Não! Teu pai não faria isso... Era tão bom!... tão honrado!...
convencer sua mãe do caráter honrado e sincero de Ciro. Este, o reverso daqueles, como
a própria Eva não deixa de lembrar, possui um nome que “não mente”: “sr. Leal”.
Mais uma vez, nossa peça não está pairando no ar. A afirmação moral do
militante anarquista não era exclusividade dela. Para além de O Pecado de Simonia,
devemos buscar ressonâncias dessa afirmação moral alhures.
Estamos vendo já de que forma tal afirmação repercutia na imprensa operária.
Ademais, outras peças do teatro anarquista apresentam personagens militantes de
conduta irrepreensível. Esse é o caso de A Bandeira Proletária, de Marino Spagnolo.
Algumas comparações pontuais entre esta peça e aquela (de Neno Vasco) ajudar-nos-ão
a compreender melhor o caráter respeitável e honrado que os militantes anarquistas
desejavam atribuir a si mesmos.
A primeira encenação de A Bandeira Proletária ocorreu no dia 28 de outubro de
1922 no requisitado salão Celso Garcia, situado na Rua do Carmo, nº. 23. Por meio do
anúncio divulgado insistentemente no periódico paulistano A Plebe, sabemos que a festa
fora organizada pelo Grupo Regeneração Social e seria em benefício da “Biblioteca
Social `A Inovadora´”. A parte cênica ficou ao encargo do Grupo Theatro Social de São
Paulo, do qual fazia parte o próprio Marino Spagnolo, autor de A Bandeira Proletária.
Desde então, a peça é freqüentemente representada na Paulicéia.
Mais adequada aos objetivos “doutrinários” das festas de propaganda, a peça de
Marino Spagnolo é, na verdade, um libelo contra os vícios da bebida e do jogo. No
enredo, o herói é Paulo, um militante anarquista que se apaixona por Rosa. Esta, por sua
vez, não obstante o bom coração, é retratada na peça como uma moça ingênua que se
deixa seduzir por Fernandes, um agiota mesquinho interessado por ela. Enquanto Paulo
esteve preso, Rosa casou-se com Fernandes, mas logo se decepcionou. E o auge de tal
decepção ocorre no dia em que Paulo é libertado – significativamente, um 1º. de Maio.
Nesse momento, Fernandes, que nunca demonstrara “amor sincero” pela garota, resolve
se livrar dela: “Ah! Ah! Ah! O Fernandes cede o lugar ao grande Paulo, ao célebre
Paulo... ao preso que hoje foi posto em liberdade!” – diz o agiota, no último ato,
anunciando sua separação.
No mesmo instante de completa desilusão, como que em contrapartida aos
dissabores amorosos, inicia-se a grande revolução social que irá redimir a humanidade.
Rosa, que no final da peça toma consciência do verdadeiro caráter de Fernandes, resolve
seguir Paulo na difícil luta pela emancipação social, tornando-se por fim sua fiel
230
São Paulo. Sabes o que deu? O burro com zero nove pelo Rio, e a vaca com noventa e nove por
São Paulo. Até parece mentira, Rosinha. (vendo que Rosinha está muda, continua) Imagina
que... mas não me respondes, rapariga?
Pecado de Simonia o produto do “vício” acaba sendo utilizado de forma positiva (com
ele Ciro pode construir sua própria oficina, libertando-se do patrão), em A Bandeira
Proletária tal saída parece mesmo impossível. A ênfase no caráter exemplar desta peça
não abre espaço para nenhum resultado positivo advindo de um ato tão “condenável”.
Um dinheiro “sujo” como aquele não poderia servir para a emancipação de ninguém.
Aliás, esse dinheiro nem sequer aparece. Dona Gertrudes está condenada a ser sempre
uma “infeliz”. Em A Bandeira Proletária, a única emancipação possível se dá por meio
da revolução social. Qualquer solução fora esta está cabalmente descartada.
Assim como em O Pecado de Simonia, em A Bandeira Proletária a questão do
matrimônio também está presente. A diferença aqui é que o casamento propriamente
dito não chega a ser descartado. Pelo contrário. Não obstante a ênfase na infelicidade
conjugal (Rosa casara-se com Fernandes e desiludira-se completamente), Paulo mostra-
se desde o início inclinado a se casar com Rosa. Numa conversa que, na cena 5 do
primeiro ato, o herói mantém com Chiquinho, este propõe àquele que se case com Rosa
“o mais breve possível”. O objetivo era impedir as artimanhas danosas arquitetadas por
dona Gertrudes e pelo Sr. Fernandes. Diante da sugestão, Paulo responde com
determinação: “Sim, é o que devo fazer e o farei”.
No entanto, não devemos exagerar a relativa complacência diante do
matrimônio. Em A Bandeira Proletária, o único caso conjugal encenado é marcado
pela desilusão da esposa. Desde o início, Rosa decepciona-se com seu casamento. É
claro que a imagem da infelicidade nas relações conjugais não era privilégio de A
Bandeira Proletária. Ela já se encontrava presente nos inúmeros relatos que a jovem
Eva fizera à sua mãe em O Pecado de Simonia, de Neno Vasco. Não era só o teatro que
retratava os dissabores amorosos no interior do casamento. Como vimos, inúmeros
artigos sobre amor livre veiculados na imprensa operária também trabalhavam com
imagens semelhantes. O que devemos ressaltar é que, no discurso anarquista, na maioria
das vezes era a mulher a principal vítima da infelicidade conjugal. Os exemplos
oferecidos pela jovem Eva à sua mãe são todos emblemáticos da situação desfavorável
da esposa em relação ao marido.
Em muitos momentos, no discurso anarquista, a mulher é representada como o
“alvo” preferido das inúmeras manipulações dos elementos masculinos que compunham
a sociedade de então. No que tange às relações conjugais, vimos já como a mulher é
retratada diante do poder exercido pelo pai e pelo marido. Também, não era para menos:
233
como muitos artigos da imprensa operária sugerem, o poder do marido sobre a esposa
contava inclusive com o respaldo da lei. No entanto, não era apenas no interior do
casamento que a mulher era vista como “alvo” privilegiado das manipulações alheias.
Como a peça de Neno Vasco aponta, as duas figuras femininas são sempre objetos das
inoportunas ingerências do padre João. Sempre insinuante, o jesuíta não perde a
oportunidade de se imiscuir na conduta da jovem Eva. Dona Rosa, por sua vez, ao longo
de quase toda a peça, encontra-se absolutamente sob o controle dele. Ambas são
atentamente vigiadas e tolhidas pelas irritantes intromissões do padre em suas
respectivas vidas particulares.
Outra antiga peça anticlerical representada no início do século XX foi Electra,
de Perez Galdós. De origem espanhola, a primeira notícia registrada da encenação dessa
obra em São Paulo aparece no jornal A Lanterna, em sua edição de 20 de janeiro de
1901241. Electra é, na história de Perez Galdós, uma jovem garota, faceira e muito viva,
que cedo se tornou órfã. Desde então, passou a viver com d. Urbano, “senhor de Garcia
Yuste”, e sua mulher, Evarista. Cortejada por Cuesta, corretor da Bolsa que trabalha
para d. Urbano, Electra gosta mesmo é de Maximo, sobrinho do “senhor de Yuste”.
Em meio à trama, o padre Pantoja (também um jesuíta), sempre maquinando
planos para manter o controle sobre as pessoas, desempenha um papel central em
Electra. Aqui, ele não só se relaciona muito bem com d. Urbano e sua mulher, como
também se arvora “protetor” da jovem Electra. Primeiro, o jesuíta consegue afastar
Maximo de Electra, inventando para ela uma história segundo a qual o sobrinho do
senhor de Yuste seria seu meio-irmão. Depois, convence a família da necessidade de
internar a garota em um convento.
No fim da peça, em meio a cenas fantasmagóricas, a verdade se revela para
Electra. Sob uma possível influência de Shakespeare, Perez Galdós põe em cena o
próprio fantasma de sua mãe (Eleutéria). Ele aparece para dissipar os mal-entendidos e
reaproximar a garota de Maximo.
Notamos algumas semelhanças entre essa peça, de Perez Galdós, e O Pecado se
Simonia, de Neno Vasco. Além do conteúdo anticlerical, ambas possuem um enredo
parecido: um padre muito influente se intromete nas relações amorosas de uma jovem.
Em ambas vemos cenas fantasmagóricas no final – em O Pecado de Simonia muito
mais cômicas do que em Electra. Além disso, os padres enxeridos das duas peças são,
241
Não encontramos registro algum da encenação dessa peça no Rio de Janeiro.
234
não por acaso, jesuítas. Tendo em vista a enorme repercussão que, nos primeiros anos
do século XX, a obra de Perez Galdós obteve nos círculos ácratas e anticlericais de São
Paulo,242 parece-nos claro que há entre O Pecado de Simonia e Electra um nítido caso
de intertextualidade, sendo a primeira uma alusão cômica à segunda.
Devemos salientar que nas duas peças a ênfase recai sobre as tentativas dos
padres jesuítas de intervir na educação e nos destinos das respectivas jovens retratadas.
Padre João, em O Pecado de Simonia, deseja afastar a influência de Ciro sobre Eva.
Pantoja, na peça de Perez Galdós, faz de tudo para influenciar na educação da pequena
Electra, acabando por interná-la em um convento.
Mais uma vez, os conteúdos das peças que analisamos ecoam no imaginário
anticlerical e libertário da época que estudamos. Acompanhando as páginas dos
diferentes órgãos da imprensa operária, notamos inúmeras vezes que as mulheres e as
crianças são retratadas como “alvos” privilegiados de padres insinuantes e insidiosos.
A preocupação dos círculos anticlericais era, a esse respeito, bem grande. Para se
ter uma idéia, quando foi fundada a Liga Anticlerical Brasileira, em outubro de 1910, o
periódico A Lanterna divulgou suas “bases” (princípios gerais que norteariam as
atividades daquela entidade recém-criada em São Paulo). Voltaremos a discuti-las mais
adiante. Por enquanto, cabe apenas ressaltar que, nesse documento, a quinta “base”
tratava justamente da preocupação em afastar dos confessionários as crianças e
mulheres. No imaginário anticlerical, parece que, de fato, o confessionário representava
uma ameaça não desprezível. Afinal, embora não passivas em suas relações com a
religião, as mulheres (e também as crianças) eram provavelmente a maioria do público
nos cultos católicos. Daí a necessidade que os militantes anticlericais sentiam de desviá-
242
Em A Lanterna, edição de 20 de janeiro de 1901, uma reportagem intitulada “A Electra de Pérez
Galdós” faz referência a uma encenação dessa peça ocorrida no teatro Sant´anna. Após o espetáculo, o
“nosso diretor” (Benjamin Mota) foi impedido pelo Major José Bento de subir ao palco para falar ao
público. Já fora do teatro, depois de finalmente ouvir aquele diretor, o povo que enchia o salão percorreu
as ruas do centro de São Paulo “levantando vivas à liberdade e morras ao jesuitismo”. Confluindo para o
Largo de São Bento, aquela pequena multidão, “em sinal de protesto”, chegou a quebrar “algumas
vidraças do mosteiro de São Bento”. Por causa dessa agitação, “o chefe de polícia que proibiu a
representação do drama de P. G. [...] mandou convidar o nosso diretor a ir conferenciar com S. Excia”. O
Dr. Antônio de Godoy (“primeiro-delegado”) informou ao “nosso diretor” que “quaisquer manifestações
anticlericais seriam reprimidas com toda a energia, bem assim que estavam proibidas as representações de
`Electra´”. Inquietos com tal proibição, os militantes anticlericais provavelmente pressionaram para
liberar as encenações daquela peça. Isso porque, em 26 de junho de 1901, o mesmo periódico A Lanterna
publicou um anúncio informando que “a Companhia do ator Cristiano de Sousa” levaria o drama Electra
novamente ao palco do teatro Sant´anna. Precavendo-se diante de possíveis confusões, o autor do anúncio
pediu aos “nossos amigos” para que “se abstenham de quaisquer confusões, durante ou depois do
espetáculo, para não dar pretexto à polícia de fazer violências estúpidas, que depõe contra os nossos foros
de povo civilizado”.
235
las da influência clerical. O Pecado de Simonia - assim como a “base” supracitada – faz
parte desse esforço maior. Outros indícios dessa preocupação aparecem na imprensa
operária.
Acompanhando as notícias sobre as atividades da Liga Anticlerical do Rio de
Janeiro, notamos que os jovens e as mulheres adquiriam uma importância muito grande
para aquela entidade. Ficaremos em apenas dois exemplos. O primeiro provém de uma
notícia publicada em A Lanterna no dia 10 de fevereiro de 1912. Ela nos informa sobre
a realização de uma festa que o Philadelpho-Club oferecera àquela Liga. Segundo o
autor dessa notícia, o orador da noite, Ulysses Martins, estivera “verdadeiramente
inspirado”, realizando assim uma “bela conferência”. Nesta, o orador teria se dirigido às
senhoras, exortando-as a ficarem do lado daqueles que querem emancipá-las do jugo
clerical. Para Ulysses Martins, o clero considerava as mulheres como seres inferiores,
quando na verdade seriam iguais em direitos e deveres ao sexo oposto. Dois anos
depois, mais exatamente em 1º. de março de 1914, o periódico carioca A Voz do
Trabalhador veiculou uma notícia de uma outra festa organizada pela mesma Liga
Anticlerical do Rio de Janeiro. Nela, a “companheira Juana Buela” teria feito uma
“breve oração concitando os trabalhadores a se organizarem” afim de lutarem por seus
interesses.A tônica de sua fala acabou recaindo sobre as mulheres. Segundo Juana, elas
deveriam educar seus filhos “fora do estreito exclusivismo religioso, auxiliando seus
maridos na grandiosa obra de emancipação do operariado”.
No entanto, para além dos textos escritos, encontramos na imprensa operária
(sobretudo em A Lanterna) inúmeras representações gráficas que trabalham com a
noção segundo a qual mulheres e crianças seriam “alvos” privilegiados dos clérigos.
Não raramente, essas imagens imbricam-se naquelas que retratam os padres como
lúbricos e degenerados. Para lidar com tais representações, recorreremos aqui não aos
artigos, mas sim à linguagem gráfica. Esta parece ser, no caso, muito mais eloqüente do
que aqueles.
Nas edições de A Lanterna do ano de 1912, encontramos uma figura
insistentemente veiculada entre os artigos. Essa ilustração desempenha, na editoração do
periódico, uma dupla função: ilustrativa e delimitadora de textos. Ela retrata um padre
insidioso dirigindo-se a uma donzela. Enquanto esta é representada com um semblante
sereno e meigo, aquele aparece com os traços grotescos e o olhar desavergonhado.
Parece-nos evidente que essa ilustração transmitia não apenas a idéia de desfaçatez que
236
incidia sobre o padre, como também a noção de que a mulher seria sua mira preferida –
até por causa daquele caráter despudorado atribuído ao elemento clerical e da educação
religiosa que as mulheres concretas, na maioria das vezes, recebiam na família.
suposta lascívia e desfaçatez do clero. Ela retrata um padre em pé, vestido de negro
(como em muitos outros casos) e dirigindo-se a uma bonita mulher. Esta aparece usando
um longo vestido branco; com ar angelical, a linda dama encontra-se sentada em uma
poltrona no interior de seu lar. Logo abaixo, por meio do texto que apresenta a
conversação entabulada pelos dois, notamos que, na verdade, o padre está se insinuando
à mulher. Esta, diante da impertinência do clérigo, exclama: “Cale-se, que pode vir meu
marido!”. “Deitar-lhe-ei a bênção; deitar-lhe-ei a bênção e fa-lo-ei sair, porque a
confissão não permite a presença de um terceiro”, responde o insinuante padre.
Para além da preocupação com os abusos que porventura pudessem advir do
momento em que aquele sacramento era ministrado, devemos notar que, neste caso, o
padre não é retratado de forma grotesca. Pelo contrário, ele parece até “bem apessoado”.
Devemos atentar para esse contraste em relação às outras imagens. Analisando as
representações gráficas em torno dos elementos clericais, percebemos que a recorrência
de padres mais elegantes e vistosos é maior quando eles são retratados em situações de
galanteio. Nas demais imagens de padres, temos quase sempre a incidência de
representações grotescas. Esse seria mais um indício daquela inquietação que a presença
constante dos clérigos nas relações familiares representava no imaginário anticlerical
da época.
Sem dúvida, tal inquietação deve-se àquilo que Michelle Perrot chamou de
“superinvestimento do imaginário e do simbólico masculino nas representações
femininas”243. Como bem apontou a autora, os materiais utilizados pelos historiadores
em seus estudos “são produtos de homens que têm o monopólio do texto e da coisa
públicos”244 . O próprio movimento operário, do qual a imprensa que investigamos é
parte constituinte, “mesmo fazendo o elogio da dona-de-casa, prefere-a em casa e
desconfia de suas intervenções” 245. Também Hobsbawm apontara já para esse relativo
alijamento das mulheres no seio do movimento organizado da classe trabalhadora. Para
ele, “a política de todos os sindicatos capazes disso era excluir as mulheres de seu
trabalho”. No entanto, precisamos ressaltar que o discurso militante apresentava um
outro aspecto não menos importante. Como o próprio Hobsbawm reconhece,
243
Ver Perrot, Michelle. Os Excluídos da História – Operários, Mulheres, Prisioneiros. Rio de Janeiro.
Editora Paz e Terra, 1992; p. 180.
244
Ibid.; p. 186.
245
Ibid.; p.210.
238
246
Ver Hobsbawm, Eric J. Op. Cit; pp. 137-138.
239
pensamento francamente emancipado; este - conjugado ao amor sincero que ela dedica a
Ciro - serve de escudo contra as intromissões inoportunas do velhaco padre João.
Desnecessário dizer, assim como as mulheres religiosas, aquelas que eram vistas como
“emancipadas” também existiam na vida concreta. Muitas delas participavam das
reuniões anticlericais e escreviam textos nos periódicos da imprensa operária de São
Paulo e do Rio de Janeiro. Como vimos, tais mulheres atuavam inclusive no próprio
teatro anarquista.
Se no discurso em torno da mulher a existência desse duplo aspecto
(“emancipada”/“conservadora”) é muito mais evidente, o mesmo não podemos dizer a
respeito das representações que incidem sobre as crianças. “Alvos fáceis” por
excelência, elas são objeto de uma preocupação especial dos círculos anticlericais. A
ênfase no caráter “suscetível” da infância aumentava os temores contra a suposta
manipulação clerical. Essa inquietação frente às influências do clero na educação das
crianças já se manifestava em Electra, de Perez Galdós. Houve até quem sugerisse
vagamente uma concupiscência que Pantoja (o jesuíta da peça) não chega a manifestar
abertamente. Em nenhum momento temos indícios concretos de que o jesuíta possuísse
algum outro intuito além de encaminhar a menina travessa pelas sendas da vida
religiosa. No entanto, em edição de A Lanterna do dia 6 de abril de 1901, um autor
anônimo, tecendo comentários sobre a peça de Perez Galdós, afirmava que “o vigor da
verdade que encerra o drama” chegaria “até nós num grito violentíssimo contra os
jesuítas que seduzem donzelas”. Diante das recorrentes denúncias de
abusos sexuais cometidos por padres na época que estudamos, não
admira a associação que o autor anônimo provavelmente sugere em
seu artigo. Não totalmente por acaso, parece mesmo que, no
imaginário anticlerical, a fronteira entre as interferências
educacionais do clero e os possíveis abusos sexuais cometidos pelos
padres era bem tênue.
Um exemplo emblemático do que seria essa preocupação
com a infância aparece registrado em uma charge publicada em 27
de abril de 1912 no mesmo periódico anticlerical citado acima. Ela
representa um clérigo como uma víbora. Em sua frente, encontra-se
Imagem 13 – A
uma pequena menina retratada como estudante. Com os olhos Lanterna,
sintomaticamente fechados, na mão direita ela segura uma pasta e 27.04.1911
240
sob o braço esquerdo um caderno (ou uma prancheta?). O padre, por sua vez, veste o
hábito preto e aparece com a língua de fora (como se estivesse pronto para “dar o
bote”). O clérigo é representado de perfil e bem mais alto do que a criança. A diferença
descomunal de altura entre ambos não pode ser desprezada; ela muito nos diz sobre o
que o cartunista entendia como sendo as relações entre o padre educador e sua pobre
“vítima”. Logo abaixo da imagem, vêm os dizeres: “A víbora que empeçonha o cérebro
inocente da criança, preparando-a para a exploração e o sofrimento do futuro”. Para
além da noção da criança como “alvo fácil”, devemos aqui atentar para as “lições” que
caberia ao clero transmitir às crianças em seus ensinamentos. O objetivo dessa educação
clerical seria, de acordo com o cartunista, preparar os pupilos para a exploração e para o
sofrimento. Ou seja, tratar-se-ia de um ensino avesso à emancipação, voltado para a
resignação e a perpetuação das injustiças.
A inquietação diante da influência da Igreja
na educação das crianças articula-se com as
críticas anticlericais que recaíam preferencialmente
sobre os jesuítas. É impressionante a quantidade de
idéias-imagens construídas em torno da figura do
padre vinculado à Companhia de Jesus. A
utilização de metáforas terrificantes e de adjetivos
depreciativos confere às representações em torno
dos jesuítas um caráter visceralmente corrosivo.
Isso é o que depreendemos, por exemplo, de uma
charge publicada na primeira página de A Lanterna
do dia 25 de novembro de 1911. Ela representa o
jesuitismo como uma serpente devorando uma
Imagem 14- A Lanterna 25.11.1911
pessoa que encarna a Humanidade. A serpente,
toda enrolada ao redor da pessoa, abocanha sua cabeça. Abaixo vêm as palavras:
“Quando conseguirá a humanidade livrar-se da terrível serpente negra”. Nas idéias-
imagens veiculadas pela imprensa operária, o próprio negro (vinculado às noções de
“trevas” e “obscuridade”) é muitas vezes associado ao jesuitismo e, por extensão, ao
clero em geral. Não por acaso, a cor negra da batina é com freqüência enfatizada nas
referências ao jesuíta, em particular, e ao clero como um todo.
241
Aliás, além dos ataques feitos contra os jesuítas, devemos salientar que, na
imprensa operária, muitas vezes os jesuítas são confundidos com o próprio clero.
Notamos freqüentemente o uso generalizante da palavra “jesuíta”; esta, nos discursos
dos articulistas, aparece às vezes como sendo sinônimo de “clero”.
Tendo em vista a importância central que padre João (um jesuíta) desempenha
na peça O Pecado de Simonia – assim como, antes dele, Pantoja (também jesuíta), em
Electra -, devemos nos perguntar: de onde vem essa atenção especial que os militantes
anticlericais dedicavam ao jesuitismo? Por que os membros da Companhia fundada por
Loyola eram colocados em destaque no discurso anticlerical libertário?
Parece-nos claro que, em grande parte, a ênfase no jesuíta deve-se ao seu papel
na educação – sobretudo em um país no qual as “origens” do ensino provêem
justamente das atividades desempenhadas por ele. Segundo a historiadora Heloísa de
Faria Cruz,
Diante de uma influência assim tão arraigada, não surpreende a preocupação que
os militantes anticlericais manifestavam diante das atividades dos membros da
Companhia de Jesus. No dia 6 de novembro de 1909, em edição especial dedicada à
execução de Francisco Ferrer, o periódico A Lanterna, em uma extensa matéria, atribuiu
aos jesuítas a responsabilidade pela condenação final daquele educador espanhol.
Tendo em vista a grande influência das concepções pedagógicas de Francisco
Ferrer junto ao movimento libertário, consideramos indispensável tecer alguns
comentários breves sobre sua biografia. Francisco Ferrer y Guardia (10 de janeiro de
1849 - 13 de outubro de 1909), originário da Catalunha, foi o criador da Escola
Moderna (1901), um projeto prático de pedagogia libertária. Em 1906, já bastante
influenciado pelo pensamento anarquista, Ferrer foi preso sob suspeita de envolvimento
no atentado frustrado que Mateo Morral perpetrara contra o rei Alfonso XIII. Absolvido
247
Ver Cruz, Heloísa de Faria. São Paulo em Papel e Tinta: periodismo e vida urbana – 1890-1915. São
Paulo, EDUC, 2000; p. 39.
242
um ano depois, Ferrer viajou para a França e a Bélgica, sempre divulgando seu método
libertário de ensino. Em 13 de outubro de 1909, acusado de ter sido o instigador da
revolta conhecida como a Semana Trágica de Barcelona, Ferrer foi executado na prisão
de Montjuich, durante o período em que a Espanha vivia sob uma rígida lei marcial. Seu
projeto pedagógico inspirou a fundação de inúmeras Escolas Modernas em diferentes
partes do mundo, inclusive no Brasil.
“O crime horrendo dos jesuítas patenteado ao mundo”, acusava logo de cara o
título estampado na parte superior da primeira página da edição de A Lanterna que
acabamos de mencionar. Logo em seguida, servindo como subtítulo, novos ataques ao
jesuitismo: “As infâmias dos jesuítas do Brasil desmascaradas pelas notícias vindas da
Europa – Ferrer lançado à história como vítima do maior crime do século XX – À luta
contra os seus assassinos!”.
Logo no início de seu texto, José S. Salles atribui o “nefando atentado” contra
Francisco Ferrer ao “governo reacionário, déspota e jesuíta da Espanha”. A associação
direta com o governo espanhol expressa bem o sentido que o autor imprime ao
jesuitismo. Mancomunados com os poderosos, o jesuítas são retratados como “sicários”
empedernidos e manipuladores. Para além das imagens que o imaginário anticlerical e
libertário criava em torno dos jesuítas, devemos ressaltar o quanto as influências desses
padres na educação contribuíam para suscitar a fúria anticlerical. Eram essas mesmas
influências jesuíticas que conferiam ao projeto pedagógico de Ferrer seu caráter
alternativo. Com ele, tornava-se viável apresentar uma contraproposta educacional que
estivesse à altura de rivalizar com o programa dos jesuítas (e, por extensão, do clero em
geral). No texto de Salles, a oposição real ao projeto de dominação jesuítica era
assumido justamente por Francisco Ferrer. Com sua nova concepção pedagógica, Ferrer
é descrito como aquele que “mais funda brecha vinha de há muito abrindo [...] nas
torpezas execrandas desses negros abutres de Loyola”. Ou seja, no campo de disputas
em que se constituíam os projetos educacionais, os oponentes privilegiados dos
militantes anticlericais pareciam mesmo ser os jesuítas. O trabalho pedagógico
desenvolvido por Ferrer era visto como uma arma de luta contra a influência “maléfica”
dos “abutres de Loyola”.
Um outro indício desse embate com os jesuítas e suas obras educacionais
aparece em um artigo publicado em A Lanterna no dia 3 de fevereiro de 1912. Intitulado
“Jesuítas – A atividade jesuítica no Brasil”, o artigo, assinado por Mucio da Paixão,
243
parece que foi, de fato, o jesuíta. Sobre sua figura recaíam os ataques contra a Igreja (de
modo geral) e seus projetos específicos de ensino. Ou seja, a concentração dos ataques
na figura do jesuíta cumpria com uma dupla função: combater os projetos pedagógicos
clericais e, ao mesmo tempo, a Igreja como um todo (uma vez que o jesuíta
transformava-se em elemento emblemático, símbolo essencial do clero).
Enfim, o direcionamento das invectivas na figura do jesuíta parecia ter o
condão de galvanizar as energias esparsas que o inconformismo anticlerical gerava,
canalizando-as para aquele elemento particular e ao mesmo tempo central. A escolha do
jesuíta, portanto, não era casual. Ela fazia parte de todo um complexo simbólico em
torno do qual orbitavam as práticas discursivas (ou não) dos militantes com os quais
lidamos nesta pesquisa. Dirigir os ataques aos jesuítas parecia ser uma necessidade
premente na luta contra a influência clerical na sociedade (de uma forma geral) e na
educação (de uma forma específica).
A “ameaça” clerical parecia ser efetiva. Opor-se a ela era visto como necessário.
A própria fundação da Liga Anticlerical Brasileira denotava um nítido anseio por uma
maior organização da luta contra o poder da Igreja. Era preciso congregar as forças
então dispersas e coordenar as atividades de combate ao elemento clerical. Em sua
edição de 29 de outubro de 1910, o periódico A Lanterna noticiou a recente fundação da
Liga. Por meio dessa destacada matéria de primeira página, conhecemos também quais
as bases fundamentais que serviriam de orientação para os trabalhos dessa associação.
Logo no início da notícia, o autor anônimo deixava claro o porquê daquela necessidade
245
de união dos anticlericais em todo o País. Vejamos de perto o excerto inicial desse
texto e algumas das bases que norteariam as atividades da Liga.
1º. Agremiar todas as forças e todas as boas vontades decididas a combater pela
liberdade de consciência.
2º. Promover por todos os meios a resistência à invasão e assalto das congregações
religiosas e do clero em geral.
[...]
[...]
11. Batalhar incessantemente para obter que as escandalosas subvenções dadas pelos
governos municipais, estaduais e federais, aos bispados e congregações sejam suprimidas a bem
do povo.
248
Ver Valladares, Eduardo. Op. Cit.; p.11.
247
além da encenação do drama Galileu Galilei, que preencheu a primeira parte daquele
evento, destacaram-se as inúmeras conferências anticlericais. Dentre elas, o autor da
notícia destacou a que foi realizada pelo “operário Julio Sorelli”. Sem dúvida, o autor da
notícia refere-se aqui ao ativo militante anarquista (ou sindicalista revolucionário)
Giulio Sorelli, autor da peça Il Giustiziere, citada já em outros momentos de nossa
pesquisa. Nessa festa promovida em São Paulo pela Liga Anticlerical Brasileira, Sorelli
proferiu uma conferência intitulada, não por acaso, “O movimento anticlerical”.
Precisamos salientar que a notícia acima mencionada foi o último indício que
encontramos sobre as atividades desenvolvidas pela Liga Anticlerical Brasileira, sediada
em São Paulo. No entanto, três semanas depois, o mesmo periódico A Lanterna
informa-nos sobre a recente criação da Liga Anticlerical de São Paulo 249. A partir desse
momento, haveria então duas Ligas atuando nesta cidade, a Brasileira e a de São Paulo?
Ou a segunda substituiu a primeira? Neste caso, o que teria ocorrido com a Liga
Anticlerical Brasileira? Analisando de perto a trajetória evasiva da nova Liga de São
Paulo, podemos apenas formular algumas hipóteses para responder a tais questões.
Investiguemos então os poucos vestígios que nos restaram sobre as atividades dessa
entidade anticlerical paulistana.
Nesse anúncio sobre a criação da Liga paulistana, por exemplo, de novo salta
aos olhos a influência ativa dos círculos ácratas sobre o movimento anticlerical. O texto,
intitulado “Liga Anticlerical de São Paulo – AO POVO!”, é assinado por Edgard
Leuenroth, Oreste Ristori, Gustavo Fischer, Tobia Boni e Benjamin Mota – todos
pertencentes à Comissão de Propaganda dessa nova entidade. Para os que já estão
familiarizados com a história do movimento operário, desnecessário seria enfatizar a
postura ideológica francamente libertária assumida por praticamente todos os que
fizeram parte daquela comissão. Vejamos então qual o teor do anúncio por eles
assinado.
Já em seu primeiro parágrafo, o anúncio afirma:
Diante do perigo negro que sufoca o Brasil, e da urgente necessidade de reunir num
formidável grupo de luta todas as forças vivas dos elementos liberais, até agora desunidos e
inertes, em defesa das mais elementares liberdades dos cidadãos ameaçados pela soberba
opressora e reacionária de uma seita sacerdotal, que numa obra surda e tenebrosa de
embrutecimento moral, conspira nas sacristias e nos conventos contra a civilização e o progresso
249
Ver A Lanterna, edição de 6 de maio de 1911.
248
– os partidos adiantados de São Paulo, pela oportunidade de uma ação conjunta contra o comum
inimigo, puseram de lado as divergências doutrinárias dos seus respectivos programas e
fundaram uma LIGA ANTICLERICAL destinada a incorporar e lançar em fecunda campanha
todos os grupos de combatentes – livres-pensadores, ateus, materialistas etc. que, isoladamente
seriam impotentes para fazer frente ao grosso das forças adversárias.
esperanças” para que fundem também (regionalmente) suas próprias ligas; estas, no
futuro, reunir-se-iam numa hipotética “Federação Anticlerical do Estado de São Paulo”.
Desnecessário dizer, o próprio ideal federativo não esconde os pendores libertários
daqueles que assinam o documento.
Portanto, voltamos a insistir que o movimento anticlerical era sim bastante
heterogêneo. No entanto, a influência de seus membros anarquistas era dentro dele
muito forte, pelo menos no interior de cada liga que estudamos. Diante dos vários
outros “partidos” que se congraçavam naquele movimento, os que abraçavam a causa
libertária não perdiam a oportunidade de demarcar seu próprio território, conferindo à
luta anticlerical um caráter próprio. Assim como nas comemorações em torno do 1º. de
Maio, aqui também os anarquistas e sindicalistas revolucionários preocupavam-se em
imprimir seus próprios estilos e suas próprias visões de mundo. Não obstante a
aceitação dos posicionamentos alheios, os libertários com os quais lidamos conferiam
ao movimento anticlerical concepções e sentidos particulares. São esses sentidos que
tentamos compreender melhor na presente análise. Sigamos adiante.
Relacionando as bases da Liga Anticlerical Brasileira, publicadas em 29 de
outubro de 1910, com a declaração de propósitos de sua congênere paulistana, notamos
entre essas duas entidades não poucas afinidades. Se aquela agremiação nacional
preocupava-se já com a influência do clero sobre as crianças e as mulheres, a Liga
Anticlerical de São Paulo não deixava de manifestar uma inquietação semelhante. Num
parágrafo totalmente dedicado a acusar a “influência imbecilizadora da educação
clerical”, os autores apontavam para a necessidade de libertar “o espírito vacilante de
nossas mulheres, dos pueris temores do inferno cristão”. Além disso, notamos na
transcrição das bases da Liga Anticlerical Brasileira uma preocupação com os gastos
públicos destinados a sustentar os elementos clericais. A décima primeira base daquele
documento fundador (assim como a sétima, não transcrita) manifestava uma inequívoca
indignação diante das “escandalosas subvenções dadas pelos governos municipais,
estaduais e federais, aos bispados e congregações” religiosas. Uma preocupação
semelhante também emerge do anúncio assinado pela Comissão de Propaganda da nova
Liga Anticlerical de São Paulo. Articulando seu discurso com as eloqüentes imagens de
“ganância” e “ambição” acima analisadas, os membros daquela comissão afirmavam
que era preciso “aplicar um golpe mortal à potência econômica do clero”, obrigando o
Estado e os municípios a não mais subvencionarem os seus cultos. Em sintonia com
250
aquela acusação sobre a suposta “influência imbecilizadora” dos padres, o texto que ora
analisamos aponta ainda para a necessidade de afastar o povo dos ritos religiosos e dos
sacramentos administrados pela Igreja, obrigando assim os clérigos “a ganhar o pão
com o suor da própria fronte” .
As afinidades de propósitos entre as duas Ligas por certo não eram mera
coincidência. Para além de expressar inquietações em comum, tais afinidades
provavelmente indicam uma provável solução de continuidade entre as duas entidades.
Entre a última notícia que encontramos sobre as atividades da Liga Anticlerical
Brasileira (14 de abril de 1911) e a primeira de sua congênere paulistana (6 de maio de
1911), existe um curto espaço de tempo de menos de um mês. Se a partir de maio de
1911 nada mais aparece a respeito da entidade brasileira, por outro lado, indícios sobre a
Liga Anticlerical de São Paulo começam a despontar.
A hipótese segundo a qual a Liga paulistana era sucedânea da Liga brasileira
provém dos vestígios que apontam para suas respectivas composições internas. Ao que
tudo indica, ambas possuíam como núcleo central uma parte da equipe de redatores,
editores e articulistas de A Lanterna. Vimos já que as correspondências dirigidas à Liga
Anticlerical Brasileira deviam ser enviadas para o mesmo endereço no qual ficava a
redação de A Lanterna (Largo da Sé, nº. 5). Vimos também que a Comissão de
Propaganda da Liga paulistana era composta, dentre outros, por Edgard Leuenroth
(editor de A Lanterna) e por Benjamim Motta, militante que, em 1901, segundo Maria
Nazareth Ferreira, ajudara Leuenroth a fundar o mesmo periódico 250. Se as
correspondências destinadas à primeira entidade deviam ser enviadas ao endereço da
redação de A Lanterna, sabemos que pelo menos uma reunião da Liga Anticlerical de
São Paulo (posterior) foi programada para ocorrer também naquele mesmo endereço 251.
Sendo assim, não seria descabido afirmar que a Liga brasileira foi desativada e
boa parte daqueles que a compunham ingressaram quase que automaticamente na Liga
de São Paulo. Caso essa hipótese seja correta, é possível sugerir que, dentre os possíveis
motivos que levaram à desarticulação da entidade brasileira, estejam as enormes
dificuldades em se organizar, na época, uma associação anticlerical de caráter assim tão
amplo. Sem dúvida, esse parecia ser um propósito bastante ousado para as condições
250
Ver Ferreira, Maria Nazareth. A Imprensa Operária no Brasil – 1880-1920. Petrópolis, Editora Vozes,
1978; p. 94.
251
Ver, na página seguinte, nota publicada em A Lanterna no dia 9 de setembro de 1911.
251
nota, apontava para problemas na escolha e locação da sede definitiva daquela entidade
paulistana. Por meio das informações oferecidas por ele, sabemos que “os trabalhos da
comissão provisória da Liga” já estavam “em bom caminho”. Dentre os expedientes já
adotados, constava a aquisição dos “livros em branco para a sua [da Liga] instalação e
funcionamento”. Segundo Lucas, o “mais difícil era encontrar o salão onde a Liga
pudesse funcionar”. Mais adiante, Lucas afirma que os membros da Liga estavam já
tratando de “instalá-la no belo salão da Associação do Livre Pensamento”. Lucas afirma
ainda que a Liga tratava de adquirir “uma centena de cadeiras e outros móveis
necessários, pois a sede da nossa Liga irá servir para as pessoas que quiserem estudar”.
O autor aponta ainda os expedientes adotados na ocasião para a aquisição de uma
biblioteca – além do intuito de organizar na sede da Liga “conferências de propaganda e
instrução”. Lucas anuncia também (para um futuro indeterminado) a realização de uma
“grande reunião de anticlericais, dando-se completa liberdade de palavra a todos os
amigos da propaganda, para tratarmos da instalação definitiva da Liga”. O autor termina
fazendo votos de que os “valentes anticlericais de São Paulo” consigam em breve se
tornar o “espantalho de toda essa corja de farsantes de batina e de casaca”, iluminando
os “cérebros ofuscados pelas trevas que as igrejas e os interesses inconfessáveis de
classes que vivem do crime, produzem em volta de si”.
Precisamos ressaltar algumas questões intrigantes expressas pelo texto de Lucas.
Primeiro, a menção ao caráter “provisório” conferido à comissão que cuidava da
organização da Liga. Dois meses foram transcorridos desde a fundação daquela entidade
e nenhuma comissão “permanente” fora ainda escolhida. Tal interinidade manifesta não
só o caráter incipiente da Liga de São Paulo, como (talvez) algumas dificuldades não
desprezíveis na organização de reuniões que cuidassem das deliberações
organizacionais daquela entidade. Afinal, como o próprio Lucas revela, o “mais difícil
era encontrar o salão onde a Liga pudesse funcionar”. Sendo assim, tomar decisões e
eleger seus representantes eram tarefas inviáveis naquelas circunstâncias. Outra questão
que salta aos olhos na nota supracitada tem a ver com os propósitos culturais e
instrutivos encampados pela entidade anticlerical. Segundo Lucas, “uma centena de
cadeiras e outros móveis” eram adquiridos na ocasião no intuito de disponibilizar a
futura sede da Liga “para as pessoas que quiserem estudar”. Além disso, alguns
expedientes eram tomados então para a aquisição de uma biblioteca. Ou seja, para além
das reuniões e conferências de propaganda, a Liga Anticlerical manifestava um claro
253
Levo ao vosso conhecimento que ficou fundada hoje, domingo, 28 do corrente, a Liga
Anticlerical do Rio de Janeiro, cuja assembléia geral teve lugar nos vastos salões do Grêmio
Republicano Português, gentilmente cedidos pela sua ilustre diretoria.
Às 2 ½ da tarde, achando-se repleto o salão de associados, foi aberta a sessão pelo sócio
Ulysses Martins, ocupando os lugares de secretários o dr. Coelho Lisboa e Carlos Augusto de
Lacerda.
[...] Iniciou-se em seguida a discussão dos estatutos da Liga, deliberando a assembléia
que se tomasse por norma os da Liga de São Paulo, com pequenas alterações apenas, devido ao
meio em que temos de agir.
254
252
Sabemos dessas conferências no Grêmio Republicano Português por meio de duas notas publicadas
em A Lanterna: uma no dia 13 de julho de 1912 e outra no dia 27 daquele mesmo mês.
255
prédio situado então na Rua General Câmara, nº. 335253. No entanto, os membros da
Liga carioca não estavam satisfeitos com o lugar em que se situava a sede de sua
organização. Já no dia 7 de março de 1912, numa quinta-feira (dia da semana em que a
Liga carioca organizava suas reuniões e boa parte de suas atividades culturais), ocorreu,
às 20h30, uma reunião de associados para discutir várias questões que pareciam
urgentes. Dentre outras coisas, ficou decidido naquele encontro que a mensalidade que
os associados deveriam pagar seria de 1$000. A nota sobre a reunião, publicada
posteriormente em A Lanterna, expressa ainda a “urgente necessidade de dar à Liga um
local mais apropriado e vasto onde possam ser realizadas conferências e festas de
propaganda”. Para tanto, foi aberta naquele encontro uma outra lista “onde se
inscreverão todos aqueles que queiram contribuir com 5$000, além da mensalidade”. A
idéia, segundo a nota, teria sido bem acolhida. Muitos associados já teriam assinado a
outra lista.
De fato, parece que não poucos estavam dispostos a contribuir para a
transferência da Liga. No dia 10 de agosto de 1912 – portanto, cinco meses após o
início das contribuições financeiras solicitadas aos associados -, uma nota bem
entusiástica, publicada também em A Lanterna, convidava “todos os amantes da
liberdade a assistir amanhã, às 8 horas da noite à inauguração da nova sede desta Liga, à
Rua Marechal Floriano Peixoto, 118”. Uma semana depois, o mesmo periódico trouxe
informações sobre os festejos de inauguração da nova sede. Segundo o autor anônimo
dessa notícia, haveria na reunião um “elevadíssimo número de associados”. A
propósito, o autor fez questão de ressaltar “que mais da metade das cadeiras estavam
ocupadas por senhoras e senhoritas”. Aliás, nos vários comentários sobre as reuniões e
festas organizadas pela Liga carioca a ênfase na presença feminina é uma constante.
Sem risco de exagero, podemos afirmar que a atenção dada à presença das mulheres nas
reuniões anticlericais denota aquela já mencionada preocupação em desviar o elemento
feminino da esfera de influência da Igreja. Conseguir um grande número de mulheres
nas reuniões e festas organizadas pela Liga parecia ser um tento ganho pelas obras
daquela entidade, em contraposição ao proselitismo do clero. Cada mulher presente na
reunião da Liga era uma a menos nas fileiras da “beatice”.
Por meio dessa notícia, sabemos ainda que quem abriu a sessão naquela noite foi
Carlos Augusto de Lacerda, então 1º. secretário da Liga. Foi ele também quem, mais
253
Ver em A Lanterna, edição de 20 de abril de 1912, nota da Liga Anticlerical do Rio de Janeiro.
256
centena de cadeiras e outros móveis”. Por fim, a notícia sobre a fundação da nova sede
da Liga Anticlerical do Rio de Janeiro aponta para uma nítida valorização dos métodos
racionalistas de ensino encarnados na figura de Franscisco Ferrer, um dos principais
expoentes da educação libertária e “racional”. O fato de a Liga carioca possuir em seu
salão principal um quadro em tamanho natural do “mártir” do ensino racionalista é um
sinal eloqüente dessa valorização específica.
Desnecessário dizer, diante da forte influência do “jesuitismo”, parece que a luta
anticlerical nos campos do ensino e da instrução era uma necessidade urgente. Uma
Liga Anticlerical que se prestasse ao combate da “influência embrutecedora” da Igreja
deveria encampar projetos educacionais pautados numa metodologia avessa àquela
levada adiante pelas instituições religiosas de ensino. A própria instrução “racional”
parecia ter o condão de iluminar as mentes dos indivíduos, despertando neles a
consciência tida como necessária para o enfrentamento efetivo das forças da
“ignorância” e das “trevas” (encarnadas na Igreja). Fizeram parte desse esforço coletivo
os inúmeros projetos educacionais em torno das chamadas “Escolas Modernas” criadas
pelos círculos libertários, sobretudo em São Paulo. Analisar o funcionamento e a
organização dessas escolas foge muito aos objetivos desta pesquisa. Aqui, devemos
apenas ressaltar que os inúmeros cursos e palestras que as diferentes Ligas Anticlericais
promoveram (ou tentaram promover) denotam uma inequívoca necessidade de combater
o clero num de seus campos de atuação mais influentes: a educação. Incentivar a
instrução adotando os métodos do “ensino racionalista” era visto como uma maneira
efetiva de combate contra a influência clerical na sociedade da época. Desprezar as
atividades de instrução seria ceder espaço para o avanço das forças “imbecilizadoras”
do clero.E isto, é claro, os militantes anticlericais que estudamos não poderiam permitir.
Intimamente relacionada com a valorização dos métodos “racionais” de ensino
está a ênfase dada pelos militantes anticlericais à questão da liberdade de consciência
e/ou expressão. Analisar todos os documentos que se referem a ela não seria necessário.
No entanto, podemos mencionar expressamente determinados exemplos que
denotam uma clara preocupação com essa questão. Debruçamo-nos já sobre algumas
das bases que constituíam os estatutos da Liga Anticlerical Brasileira. Uma delas (a
terceira) orientava: “Combater todos os elementos reacionários que, direta ou
indiretamente, procurem cercear e limitar a liberdade”. Encontramos também um
pequeno indício dessa preocupação no texto assinado por Lucas (aquele que trata das
259
dificuldades da Liga de São Paulo em encontrar uma sede própria). Segundo esse autor,
para discutir as questões sobre a futura instalação da sede da Liga, seria realizada uma
reunião na qual todos teriam “completa liberdade de palavra”. A ênfase na liberdade de
expressão também se manifestou por ocasião de um apelo em solidariedade aos livres-
pensadores austríacos. Em uma nota publicada em A Lanterna no dia 3 de janeiro de
1914, a Liga Anticlerical do Rio de Janeiro denunciou aquilo que era visto como um
avanço da “reação clerical” na Áustria. De acordo com o autor da denúncia, a dita
“reação” pretendia então apoderar-se da “soma de 100 mil coroas legada por um livre
pensador de Viena”. O “governo clerical” austríaco, segundo o autor anônimo da
denúncia, teria já suprimido todos os jornais livres- pensadores e fechado as sedes das
associações de Livre Pensamento – além de apoderar-se de seus respectivos “haveres”.
O autor vê na ofensiva uma ameaça ao “movimento racionalista”. Após essa denúncia, a
Liga Anticlerical do Rio de Janeiro faz “um apelo às consciências emancipadas” para
que participem de uma “reunião de solidariedade e protesto internacional” contra a
“opressão exercida em pessoas dos camaradas austríacos”. A reunião estava marcada
para o dia 4 de janeiro de 1914. O apelo terminava com as palavras: “ABAIXO A
REAÇÃO CLERICAL! VIVA A LIBERDADE DE PENSAMENTO!”.
Uma semana após a veiculação desse apelo, no dia 10 de janeiro de 1914, o
mesmo periódico citado publicou uma notícia de uma reunião organizada pela Liga
Anticlerical do Rio no dia 1º. de janeiro de 1914. Segundo o autor anônimo dessa
notícia, Carlos A. de Lacerda teria se referido, nessa reunião, a um interessante
incidente ocorrido em uma reunião anteriormente organizada em Petrópolis (no dia 28
de dezembro de 1913). Nessa reunião de Petrópolis, alguns elementos “clericais [...],
por meio de apartes contínuos”, não estariam deixando o orador (“dr. José Oiticica”)
expor suas idéias. Segundo o autor do texto, Oiticica manteve a calma, pedindo “ao
auditório que não obstasse a que os nossos adversários se manifestassem com toda a
liberdade”. De forma exemplar, o “dr. José Oiticica” teria inclusive ameaçado deixar o
recinto caso seus oponentes não pudessem manifestar-se livremente. Para o autor da
notícia (que ainda se reportava aos comentários de Carlos A. de Lacerda), devido ao
esforço do “bom e erudito companheiro” (Oiticica), a causa anticlerical teria alcançado,
naquela reunião de Petrópolis, uma “grande vitória”. Isso porque, não obstante as
inoportunas intervenções, o orador conseguira convencer que a Igreja sempre esteve “ao
lado dos poderosos contra os oprimidos”.
260
254
Devemos lembrar que esse periódico carioca, vinculado à Confederação Operária Brasileira, deixou de
ser publicado no final de 1909 e voltou no início de 1913. A partir de então, ele divide com A Lanterna o
papel de divulgar as atividades da Liga, sobretudo as festas nas quais o Grupo Dramático Anticlerical
entrava em cena.
262
das páginas dos periódicos operários. O que aconteceu com a Liga e seu grupo
dramático? Impossível saber. Tendo em vista a grande repercussão que as atividades da
Liga obtinham naquela imprensa, a única hipótese que podemos formular é a de que
aquela associação anticlerical deixou de atuar. Caso contrário, encontraríamos indícios
de suas atividades nas páginas daqueles periódicos – senão em A Lanterna, ao menos
em A Voz do Trabalhador (jornal publicado até junho de 1915).
Foi ainda nesse mesmo mês de abril de 1914 que o periódico A Lanterna lançou
uma fotografia (ver Imagem 17) que possui um valor excepcional em nossa pesquisa.
Ela mostra os membros do Grupo Dramático Anticlerical retratados provavelmente
sobre um palco. Chegamos a essa conclusão analisando o fundo da imagem. Ao que
tudo indica, ele mostra um pano usado como cenário nas encenações do grupo.
Na análise desta imagem, devemos atentar para a disposição dos atores. Os que
estão em primeiro plano aparecem sentados; os de trás, em pé. As únicas duas mulheres
do grupo estão sentadas no centro. Contrastando com os demais elementos masculinos
(todos com roupas escuras), elas estão vestidas com roupas claras. Quem são elas?
Difícil dizer com exatidão. No entanto, em uma notícia anterior, publicada no mesmo
periódico em 28 de fevereiro, o autor (A. B.) comenta a atuação dos atores do Grupo
Anticlerical na encenação de uma peça intitulada Deus e a Natureza. Citando os nomes
dos amadores que atuaram na peça, A. B. refere-se a duas mulheres: dona Maria da
Piedade e Antonieta Pires. Tendo em vista que a foto foi veiculada mais ou menos
naquela mesma época da encenação de Deus e a Natureza, não seria temerário associar
esses dois nomes às amadoras retratadas na foto.
Esta fotografia é um dos poucos documentos que nos oferecem alguns indícios
sobre recursos cênicos. Vimos já que as lacunas a esse respeito são enormes em nossa
pesquisa. Na foto, no entanto, temos vestígios esparsos sobre palco e cenário. O
primeiro, como podemos notar, caracteriza-se pela exigüidade de espaço. O segundo,
bastante modesto, denota uma simplicidade e um despojamento que, sem dúvida, era
comum nas encenações dos amadores com os quais lidamos. Enfrentando os apertos
orçamentários aos quais já nos referimos no capítulo 1, os grupos amadores anarquistas
contentavam-se em utilizar cenários bem humildes. Sem risco de exagero, podemos
dizer que os panos de fundo utilizados nas encenações de uma peça eram provavelmente
reutilizados em outras atuações.
263
Imagem 17 – Grupo Dramático Anticlerical em foto publicada em A Lanterna no dia 11 de abril de 1914
255
O periódico A Terra Livre foi fundado originalmente em São Paulo por Neno Vasco, Manuel Moscoso e Edgar
Leuenroth. Até 10 de maio de 1907 esse periódico foi publicado ainda nesta cidade. A partir de 25 de maio de 1907 o
jornal A Terra Livre passa a ser lançado no Rio de Janeiro, onde fica até 20 de agosto de 1908. Desde então o
periódico volta a ser publicado em São Paulo - até o ano de 1910, quando desaparece. Todos os artigos que
analisamos neste tópico são da época em que A Terra Livre esteve no Rio de Janeiro.
265
256
alternativos de ação direta . De forma nítida, tais preleções muito nos revelam sobre
as práticas sociais de luta incentivadas pelo movimento anarquista da época. Já no
primeiro artigo da série (de 28 de setembro de 1907) o autor defende, de maneira
entusiástica, a mobilização encetada pelos inquilinos de Buenos Aires. Estes, além de
levarem adiante uma bem-sucedida greve contra os senhorios, iniciavam também “uma
ativa propaganda para que o exemplo” se tornasse conhecido e fosse posto em prática
por todos os que se vissem “roubados pelos senhorios de casas”. Depreendemos do
artigo citado que as táticas utilizadas pelos inquilinos portenhos apresentavam já
resultados alentadores. Citando informações veiculadas pelo periódico La Protesta,
naquele final de setembro o número de grevistas em Buenos Aires ultrapassava já os
cinco mil. Lembremos: iniciaram o movimento, semanas antes, apenas cento e trinta
denodados inquilinos ativistas!
A influência do movimento portenho não tardou a repercutir na cidade do Rio de
Janeiro. Já no segundo artigo da série, a partir de então intitulada “agitação de
inquilinos”, o autor anônimo anunciou a criação recente de uma Liga de Inquilinos para
cuidar da mobilização na cidade carioca. Naquele mesmo dia em que o citado artigo era
publicado (3 de outubro de 1907) seria realizada a segunda reunião da Liga. Nela seriam
apresentadas as “bases” por meio das quais podemos perceber as intenções daquele
órgão de agitação. Felizmente o autor desse artigo reproduziu as tais “bases” a serem
expostas naquele segundo encontro. Em primeiro lugar, elas manifestavam o objetivo
declarado de obter “uma razoável redução no preço dos aluguéis das casas”, a exemplo
do que pleiteavam os inquilinos de Buenos Aires.
No que tange aos “meios” de atuação propriamente ditos, a utilização da
propaganda (por intermédio de “publicações e conferências”) aparece em primeiríssimo
lugar nas “bases” daquela segunda reunião. Desnecessário dizer, a defesa da propaganda
como meio eficaz de conscientização era incansavelmente veiculada pela imprensa
operária do período. Ainda no mesmo artigo (de 3 de outubro), veiculava-se a notícia de
que a Liga dos Inquilinos distribuiria “manifestos e boletins agitando a questão”. Em
edição posterior (publicada em 27 de outubro de 1907), o articulista propõe “que em
256
Sobre a influência das idéias de ação direta no interior dos grupos anarquistas da época, ver Rago, Luzia
Margareth, Do Cabaré ao Lar – A Utopia da Cidade Disciplinar (Brasil 1890-1930). Rio de Janeiro, Editora Paz e
Terra, 1987; pp. 27 e 28. “As formas originais de resistência criadas no cotidiano pelos próprios operários [...] são
amplamente apoiadas pelos grupos anarquistas e anarco-sindicalistas [sic], que vêem na ação direta o caminho para
sua conscientização. Estas `manifestações da ação direta´ [....] permitiriam associar o conjunto dos trabalhadores [...]
sem ter que passar pela mediação de um organismo burocrático constituído por um reduzido número de pessoas.”
267
257
A construção da imagem feminina relacionada diretamente ao lar foi já bastante discutida em Rago,
Luzia Margareth; Op. Cit., capítulo II (A Colonização da Mulher). Até que ponto o movimento operário
da época reproduzia ou não o discurso dominante da “esposa-dona-de-casa-mãe-de-família”? Entrar nessa
discussão não faz parte dos objetivos desta pesquisa. No entanto, é preciso salientar que, na imprensa
operária, a representação da figura feminina é mais complexa do que se imagina. Como a própria autora
reconhece, nos jornais operários, sem dúvida, identificamos “duas imagens femininas que contrastam
frontalmente. Uma mulher submissa, que não sabe como lutar e, ao mesmo tempo, uma figura combativa
que sai às ruas e enfrenta sem reservas as autoridades públicas e policiais”(p. 73). Pensamos que o trecho
acima citado, de certa forma, trabalha ao mesmo tempo com as duas representações.Ambas, na
perspectiva que adotadmos em nossa pesquisa, não estão pairando em alguma esfera descolada da
realidade concreta. Pelo contrário, dialogam intimamente com as diferentes situações vivenciadas por
mulheres de carne e osso. Mulheres que, não obstante, a preponderância masculina, buscavam criar seus
espaços de sociabilidade e seus próprios campos de luta. Se o articulista, por um lado, associa diretamente
a esfera privada à figura feminina, por outro lado, ele atribui à mulher um papel central na luta contra a
exploração dos senhorios. Seria ela o principal alvo do movimento que se pretendia levar adiante. Seria
ela, portanto, a verdadeira protagonista dessa luta coletiva - e não privada (uma vez que a questão dos
aluguéis afetava o interesse da classe trabalhadora como um todo).
268
258
Ver A Terra Livre, edição de 28 de setembro de 1907.
269
Em Buenos Aires a agitação continua sem desânimos [...]. Em outras cidades, teve repercussão
este movimento. Na Itália a agitação é séria. E mesmo no Brasil, em São Paulo, a idéia e a
propaganda da resistência à avidez dos proprietários ganham raízes.
Será possível que no Rio a indiferença venha mais uma vez sufocar tudo? [grifos nossos]
O que falta é iniciativa: todos esperam dos outros [ grifos nossos]. Muitos esperam da “Liga” e
na “Liga” há quem espere que todos os inquilinos se associem para iniciar a greve ou qualquer
modo de resistência! Ora é evidente que a Liga não pode fazer a greve; o seu fim é a propaganda,
e quando muito o exemplo, que pode também vir de fora.
do ponto de vista adotado no artigo, a emancipação dos inquilinos seria obra dos
próprios inquilinos.
Por fim, o leitor mais atento pode ter dissecado o trecho acima e notado nele
certo tom de desesperança. Quando o autor do artigo afirma que “o que falta é
iniciativa”, poderíamos novamente indagar sobre os resultados a que chegavam, naquele
momento, os esforços de mobilização dos inquilinos no Rio de Janeiro. No entanto,
responder a tal indagação seria temerário. Primeiro, porque medir o grau de satisfação
geral diante dos resultados obtidos por qualquer movimento é algo que beira o
imponderável. A variação de expectativas dos envolvidos leva quase sempre a um grau
de divergência tão grande que torna arriscada qualquer generalização. Segundo, porque,
no caso específico que ora analisamos, não possuímos elementos concretos para
mensurar quais seriam esses tais resultados. Como já dissemos, A Terra Livre deixa de
acompanhar aquela agitação e, meses depois, pára de ser publicada no Rio, voltando
para São Paulo. Nada mais sobre a “agitação de inquilinos” foi por nós encontrado nos
outros periódicos operários do Rio naqueles anos de 1907 e 1908. Portanto, qualquer
conclusão a respeito do sucesso ou não daquela mobilização seria mera dedução sem
respaldo empírico algum.
No entanto, mais importante do que julgar o movimento pelos resultados
palpáveis que ele trouxe (ou não) é, para os propósitos desta pesquisa, perceber que nem
todos estavam plenamente de acordo no interior daquele movimento. Quando o autor do
artigo afirma, de forma eloqüente, que “todos esperam dos outros”, ele evidencia as
dificuldades e tensões no âmbito daquela luta. A própria ênfase que o(s) articulista(s) da
série dá (ão) à importância da propaganda denota a necessidade de se envidar esforços
enormes para mobilizar os inquilinos de toda a cidade.
259
A primeira encenação desta peça fora prevista para acontecer em uma festa organizada pela Liga dos
Marceneiros de São Paulo no dia 15 de fevereiro de 1908. Acompanhando as edições de A Lucta
Proletaria, identificamos três anúncios publicados seguidamente nos dias 17 de janeiro, 1º. e 8 de
fevereiro de 1908.Todos eles apresentavam a peça como “uma belíssima farsa de atualidade, a propósito
da recente agitação dos inquilinos, escrita por NENO VASCO”. No entanto, no dia programado para a
festa dos marceneiros, a peça não foi levada ao palco. Segundo o mesmo periódico (na edição de
29.02.1908), a encenação foi suspensa - “por falta de amadores em português teve a Liga que pedir a
cooperação de outros que à última hora não a representaram por ter caído doente um deles”. Portanto,
Greve de Inquilinos foi mesmo encenada pela primeira vez no dia 28 de março de 1908, como previsto no
anúncio publicado em A Terra Livre no dia 14 de março daquele mesmo ano. Maria Thereza Vargas e
Mariângela Alves de Lima, em obra dedicada ao teatro operário em São Paulo, afirmaram que a primeira
encenação dessa peça teria já ocorrido, em São Paulo, no ano de 1907. Como não encontramos registro
algum nesse sentido, prefirimos seguir as indicações dos anúncios supracitados.
272
aparecer para cobrar o aluguel do mês. Anastácio, o parvo senhorio, facilmente cai na
conversa do argentino, acreditando, de fato, que aquela “donzela” estrangeira estava
interessada nele. Quando Ramon (que se apresenta como Carmen) diz que seu pai era
um homem muito bravo, Anastácio começa a se amedrontar. Nesse mesmo momento,
inesperadamente, surge Fernando – um dos seis inquilinos. Fernando, na farsa, assume
o papel de “pai” de Carmen. Ele entra impetuosamente no quarto, acompanhado dos
outros companheiros que servirão como “testemunhas” naquela representação. Ao
encontrar o senhorio e sua “filha” supostamente desmaiada, Fernando finge estar furioso
e ameaça de morte aquele homem que ousara “desonrar” a sua suposta família.
Anastácio, no auge de seu desespero, aceita um acordo para salvar sua vida.
Após algumas propostas encenadas, fica por fim decidido que o senhorio deverá aceitar
as regras de uma tabela elaborada pela Liga dos Inquilinos. De acordo com tal tabela, os
preços dos aluguéis seriam reduzidos em 40%. Luís, inquilino autor da proposta, exige
também do senhorio o perdão da dívida daquele mês. Sem outra saída, Anastácio (o
senhorio tolo e ambicioso) aceita integralmente a proposta e a farsa termina com uma
solução que pareceu à maioria “muito razoável”.
Desnecessário dizer, o conteúdo dessa peça reporta-se (quase que integralmente)
ao caso que acompanhamos naqueles seis artigos analisados acima. Em primeiro lugar,
é preciso lembrar que a peça de Neno Vasco é ambientada no Rio - e foi justamente
naquela cidade que os seis artigos foram publicados. Vimos também que o primeiro
artigo da série sobre os inquilinos anunciava, como “um exemplo a seguir”, o
desenvolvimento de uma greve de inquilinos em Buenos Aires. A informação sobre
aquele movimento portenho vinha originalmente do periódico La Protesta. Já na peça,
Ramon é justamente um argentino que deixara seu país por ter participado de uma
agitação de inquilinos e, no momento, estava sendo perseguido. Aliás, ele vem ao Brasil
trazendo consigo uma carta-recomendação escrita pelos redatores de La Protesta. Não
por acaso, os seis “operários de idéias avançadas” que o recebem no Rio são, nas
palavras de Ramon, “los compañeros del periódico Tierra Libre”. Temos ainda um
personagem (Luís) que se intitula “membro ativo da Liga” – referência direta à Liga dos
Inquilinos que, como vimos nos artigos, organizava reuniões no Rio de Janeiro para
mobilizar os inquilinos daquela cidade. Além disso, no final da peça, a solução que os
companheiros encontram está de acordo com a proposta pela Liga em outubro de 1907.
Numa das reuniões daquela entidade ficara decidido que os inquilinos obrigariam os
273
Coro
São tão puxados
os aluguéis,
oh! Inquilinos!
Não os pagueis!
Oh! que ladroeira
a do senhorio!
fazei inquilinos
greve em todo o Rio!
Notemos a ênfase dada nos preços dos aluguéis. Para além da incitação à greve,
percebemos também que o hino se reporta à situação específica do Rio. Impossível não
imaginar o efeito que este hino, entoado por um coro no início da peça, podia causar nos
espectadores (quase todos, com certeza, também inquilinos). Sem dúvida, os hinos
estavam bem de acordo com os propósitos das veladas anarquistas. Por isso, são
275
recorrentes - não apenas no interior das peças, como também nos anúncios de festas
publicados na imprensa operária. Aparecem nas programações como abertura daqueles
eventos ou entremeando as diferentes atrações. Algumas vezes, inclusive, são entoados
por crianças (o que devia chamar bastante atenção!). No entanto, em razão do caráter
lacônico das fontes, o efeito causado pelo hino beira o imponderável. Voltemo-nos,
pois, ao seu conteúdo. Por que, no Rio de Janeiro, “São tão puxados os aluguéis”? Seria
este um indício isolado na peça?
Definitivamente, não. Um pouco mais adiante, ainda no começo da cena I,
Manuel afirma: “Tudo quanto se ganha é para comida, quarto e roupa”. Os seis
companheiros contam o dinheiro que possuem para ver se conseguem pagar ao
senhorio. Depreendemos da conversa que o preço do aluguel dos dois quartos onde eles
moram é de 120 mil-réis. Percebe-se que, diante de seus minguados salários, a soma não
é pequena. O peso dos aluguéis no orçamento é exagerado: Manuel ou paga o
restaurante ou o senhorio; Salvador afirma que se pagar a este último fica “sem um
níquel”. Já na cena IV, a questão do elevado peso dos aluguéis nas despesas cotidianas
do trabalhador emerge novamente. Para Fernando, “pagar ao senhorio [...] é ficar sem o
dinheiro para as despesas urgentes”.
É claro que a peça não está pairando no ar. Em A Terra Livre, na edição de 26 de
novembro de 1907, o último artigo da série “agitação de inquilinos” (aquele que
julgamos ser o mais desalentado de todos) é dedicado, em grande parte, a demonstrar o
quanto os preços dos aluguéis pesavam no bolso do trabalhador. Segundo o autor
daquele artigo, “em nenhuma parte, como no Rio, seria tão justificada e necessária a
luta contra [...] as extorsões dos senhorios”. O articulista passa então a defender a
mobilização naquela cidade argumentando que lá “metade ou mais (em regra, mais) do
salário é para a casa”. Já numa edição anterior (de 13 de outubro de 1907), fora feita
uma comparação entre o custo dos aluguéis no Rio e “noutras cidades brasileiras”. Em
outros importantes centros urbanos do País, segundo o autor do texto, os aluguéis
consumiam aproximadamente 1/3 dos salários da classe trabalhadora.
O custo de vida e as condições de moradia do operariado já foram temas
amplamente debatidos em outros importantes trabalhos. O que importa aqui é enfocar
que a questão não passou despercebida na peça – nem poderia ser de outra forma. Ora, é
evidente que o problema da moradia existia e a classe trabalhadora sofria um bocado
para enfrentá-lo. No entanto, pensamos que o mais importante aqui é entender como a
276
262
Ver Perrot, Michelle. Os Excluídos da Historia – operários, mulheres, prisioneiros. Rio de Janeiro,
1992, Paz e Terra; p. 102. “Por um longo período, a reivindicação operária se refere ao aluguel, não à
moradia. Desta, fala-se em termos de custo, de peso no orçamento, não de conforto ou espaço. Não
surpreende que as greves nada digam a respeito: não é esse seu objeto.”
277
263
A este respeito, ver Rago, Luzia Margareth. Op. Cit.; p.170.
264
Para um maior contato com tal discussão, ver as quatro obras seguintes. Rago, Luzia Margareth, Op.
Cit.; cap. IV (A desodorização do espaço urbano). Chalhoub, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o
Cotidiano dos Trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque, São Paulo, 1986, Brasiliense. Decca,
Maria Auxiliadora Guzzo. A Vida Fora das Fábricas – Cotidiano Operário em São Paulo (1920/1934).
Rio de Janeiro, 1987, Paz e Terra; capítulos I e II. Sevcenko, Nicolau. Introdução. O prelúdio
republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso. In: Sevcenko, Nicolau (org.), História da Vida
278
Privada no Brasil – República: da Belle Époque à Era do Rádio, São Paulo, 1998, Companhia das
Letras.
279
265
Ver Rago, Luzia Margareth, Op. Cit.; p.200.
266
Para saber mais sobre os “personagens recitantes”, ver Golluscio de Montoya, Eva; El monólogo: una
convención de la escena libertaria (Rio de la Plata, 1900); Buenos Aires, 1990. Para nossa autora
argentina, “la dramaturgia libertaria favorece en el actor la actitud escénica de `recitante´ -ligada al estilo
monológico y al objetivo proselitista- en el cual se privilegian la declamación y la consecuente postura
corporal del intérprete. En el momento en el cual el actor se desprendía de los otros actores presentes en
el tablado y avanzaba cara al público para decir su mensaje fue siempre un instante de emoción en las
veladas teatrales anarquistas.” Sendo assim, o “personagem recitante” é aquele que cumpre o papel de
transmitir em cena a mensagem ideológica defendida pelos círculos ácratas. Nossa autora associa as
características desse personagem ao estilo “monológico” das peças anarquistas. Sobre a questão, ver
também, da mesma autora, Elementos para uma “teoria”teatral libertaria (Argentina 1900); artigo de
1987.
280
pagar o aluguel ao senhorio, Fernando, num ímpeto, “sobe a cima [sic] da mesa e com
grandes gestos, voz enfática”, começa sua arenga. Vale a pena acompanhar de perto.
Fernando - Companheiros! Soou a hora trágica e decisiva da luta a todo o transe! O nosso grito
de guerra ao abutre voraz que se chama senhorio deve ser: Não paguemos! Não paguemos! As
casas para quem nelas mora! Não mais parasitas! Não mais proprietários! [...] (Todos aplaudem
de vez em quando, menos Salvador que enfim, pode interromper)
Salvador - Tudo serve ao Fernando de pretexto para fazer discurso! Que mania!
Fernando - É brincadeira, homem! (desce)
Salvador - Sim, mas brincar ou a sério, por qualquer insignificância lá vai discurso! Discutamos
o nosso caso a valer.
Fernando - Em suma: vocês querem mesmo pagar àquele ladrão? Apraz-lhes o papel de
vítimas? (Exaltando-se) Não vêem vocês que lhes fica a negra miséria em casa, que em breve se
esgotarão os últimos míseros vinténs e que teremos de arrostar a vergonha e a tortura de...
Salvador - (Assustado) Basta, basta! É discurso?
Na cena IV, mais uma vez o eloqüente inquilino discursa para os companheiros
– e, por extensão, para o público em geral.
Fernando – (Com ênfase) Companheiros, tal como os sitiados que, resolvendo uma sortida
desesperada, queimam as portas das fortalezas para não terem para onde recuar e fugir, para
terem de vencer ou morrer, assim nós devemos entregar os cento e vinte mil réis ao companheiro
Ramon, que o desespero da situação nos fará achar expedientes salvadores e decisivos.
(Salvador tenta acalmar com o gesto, mas todos aplaudem, batem palmas e Luís vai logo
entregar o dinheiro a Ramon que se aproxima de Mercedes).
267
A Terra Livre, 28 de setembro de 1907.
282
268
Ver A Terra Livre, edição de 26 de novembro de 1907.
283
aliás, em nossa peça, ele cumpre um papel secundário (de coadjuvante). Para tornar a
situação ainda mais complexa, é importante lembrar que alguns personagens transitam
de um campo para o outro conforme os debates desenrolam-se em cena.
Na tentativa de superar aquele impasse, Fernando sugere uma fuga sorrateira e
rápida para o quarto de um outro companheiro, o Pereira. Tal expediente sugere-nos a
persistência de uma antiga tradição européia que, pelo jeito, continuava tendo
ressonância no imaginário anarquista do contexto que estudamos. Como bem assinalou
Michelle Perrot, em Os Excluídos da História, na França – sobretudo em Paris –, desde
o fim do século XVIII, eram inúmeras as “mudanças na surdina” empreendidas por
inquilinos que se viam em dificuldades com o pagamento dos aluguéis 269. Em julho de
1882, por exemplo, teriam ocorrido “3.695 mudanças em nove bairros do centro e leste
da capital”. Inclusive, segundo a autora, os anarquistas (chamados aqui de
compagnons), esforçavam-se “em transformar essa escapada num ato de protesto”. Em
época de pagamento de aluguéis, esses robustos “cavaleiros da surdina” apareciam para
“prestar auxílio às famílias populares”. Apresentavam-se prontamente para esvaziar os
apartamentos, “com a cumplicidade do bairro e, às vezes, os ouvidos moucos do
porteiro”270.
Esqueçamos, por enquanto, esta antiga tradição européia e voltemos à peça.
Como dissemos, o autor da idéia de fuga fora o eloqüente Fernando. Ora, seu principal
antagonista (Salvador), não perderia aqui a oportunidade de questionar a brilhante
sugestão. Vejamos de perto o seu argumento.
Salvador - [...] O que vocês querem fazer, e que não pode ser um sistema, fazendo-se uma vez
ou outra, não dá remédio a nada; é um simples calote.
Fernando - Que nas nossas circunstâncias vale tanto como a greve, que é tão justa como ela...
Salvador opõe-se à fuga porque, no caso, seria “um simples calote” – não
resolveria de fato o problema. Para Fernando, no entanto, diante das circunstâncias, a
“mudança na surdina” teria então o valor correspondente ao de uma greve. É importante
frisar que, nesse pequeno diálogo (assim como nos outros ao longo da peça), ninguém,
nem mesmo Salvador, discute a validade da greve propriamente dita. Todos parecem
aprovar o recurso. A única coisa que se questiona é se o momento é oportuno ou não.
269
Sobre as fugas sorrateiras organizadas pelos compagnons (anarquistas) franceses desde o final do século XIX, ver
Perrot, Michelle. Op. Cit.; pp.105, 106.
270
Ibid.; p. 105.
284
No caso de Salvador, o que ele defende é que a ação não pode ser isolada, ela depende
de uma articulação mais ampla para que seu resultado seja satisfatório. Sendo assim, de
acordo com seu raciocínio, enquanto os outros não se mobilizam, torna-se inviável
qualquer iniciativa mais arrojada. Será que aqui também (assim como depreendemos do
último artigo) “o que falta é iniciativa: todos esperam dos outros”? Vejamos.
Depois de expor claramente suas táticas de evasão, Fernando consegue o apoio
dos companheiros para iniciar a fuga. No momento em que o senhorio bate na porta,
inicia-se uma confusa agitação que bem nos faz imaginar como seria uma daquelas
“mudanças na surdina” mencionadas por Perrot.
Fernando - Pronto, está desimpedida a passagem. A caminho! (Toma também alguns objetos.
José leva a cabaça, a mesa. Batem à porta. Pânico e confusão).
Todos - (Ao mesmo tempo) Ele!
Fernando - (Saindo a correr pela E.) Salve-se quem puder. (Todos se precipitam com os
objetos. José faz várias tentativas para passar com a mesa; recua, avança, atrapalha-se, anda
em roda. Por fim, sentindo abrir-se a porta, põe a mesa no seu lugar e esconde-se sob ela).
proposta; quando batem novamente na porta, animados com a idéia, os seis inquilinos
preparam-se para o embuste. Fernando arranja “um trapo vermelho. José empunha uma
trombeta de papel; Luís prepara-se para abrir a porta”. Quanta criatividade demonstram
os seis companheiros! Veremos mais adiante qual o sentido desse transbordamento
imaginativo na peça. Voltemos a ela.
Quando abrem a porta, em vez do senhorio, aparecem os três argentinos
recomendados por La Protesta: Ramon, sua esposa Mercedes e o filho Manolito.
Ramon é toureado por Fernando que, só depois de algum tempo, se dá conta de que
aquele não era o senhorio. “Yo soy casado, pero que yo sepa, no soy toro!”, afirma o
argentino quando entra (todos dão risadas). Logo de cara Ramon apresenta-se como
alguém que vem há tempos “toureando senhorios”.
Com a chegada dos argentinos, a situação tornava-se ainda pior. Isso porque,
além de estarem sem dinheiro para o aluguel, os intrépidos inquilinos tinham de ajudar
os companheiros argentinos (Mercedes, inclusive, de acordo com a missiva de La
Protesta, estava grávida) 271. Iniciam-se novas discussões sobre o que fazer diante da
iminente cobrança. Fernando, como não deixaria de ser, sugere não pagar ao senhorio
para dividir o dinheiro com os outros companheiros. Diante do apoio geral, Salvador
novamente recusa a idéia afirmando que, justamente naquele difícil momento, eles
deveriam preservar os quartos para hospedar os companheiros argentinos.
Segue-se uma sucessão de episódios que já foram narrados em nosso resumo.
Ramon, que participara ativamente na greve de inquilinos em Buenos Aires, ajuda os
companheiros a ludibriar o senhorio. É ele que se fantasia de mulher para seduzir
Anastácio. Este, como vimos, cai no logro e amedronta-se quando surge
inesperadamente o suposto pai furioso daquela “donzela”: Fernando. O resto, o leitor
deve se lembrar: Anastácio é obrigado a aceitar o perdão da dívida naquele mês e uma
redução de 40% nos próximos aluguéis. Lembremos ainda: quem teve a idéia de colocar
em prática este último expediente foi Salvador, o ponderado inquilino que fizera parte
de um grupo de amadores teatrais.
271
Poderíamos aqui encetar uma discussão em torno da solidariedade cultivada pelos militantes
anarquistas da época. No entanto, o espaço é curto e não podemos abrir novos campos de análise.
Devemos ressaltar que essa questão é recorrente em outras peças do teatro anarquista – assim como entre
as páginas da imprensa operária do período.
286
4.9. Concluindo
272
Ver Martin-Barbero, Jesús. Op. Cit.; p. 45.
273
Ibid., p.43.
288
popular para driblar as situações adversas e conseguir o pleiteado pela Liga. E isto
constitui uma clara intervenção política, como tantas outras peças do teatro anarquista
também procuravam fazer.
289
CONSIDERAÇÕES FINAIS
FONTES
O Trabalhador
O Vehiculo
Renovação
Spartacus
BIBLIOGRAFIA
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas – magia e técnica, arte e política. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1996.
CORBIN, Alan. O segredo do indivíduo. In: ARIÈS, Philippe; DUBY, George. História
da Vida Privada – Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia
das Letras, 1991.
__________. São Paulo em papel e tinta: periodismo e vida urbana – 1890-1915. São
Paulo: EDUC, 2000.
DECCA, Maria Auxiliadora Guzzo. A vida fora das fábricas – Cotidiano Operário em
São Paulo (1920/1934). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social. São Paulo: Difel, 1986.
HARDMAN, Francisco Foot. Nem pátria, nem patrão. São Paulo: Editora Unesp, 2002.
LIMA, Mariângela Alves de; VARGAS, Maria Thereza. Teatro operário na cidade de
São Paulo. São Paulo: Laboratório do Idart, 1980.
MAGALDI, Sábato; VARGAS, Maria Thereza. Cem anos de teatro em São Paulo
(1875-1974). São Paulo: Editora SENAC, 2001.
295
PRADO, Antonio Arnoni. Trincheira, palco e letras. São Paulo: Cosacnayf, 2004.
RANCIÈRE, Jacques. A noite dos proletários – arquivos do sonho operário. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988.
SÁDER, Eder; PAOLI, Maria e TELLES, Vera da Silva. Pensando a classe operária: os
trabalhadores sujeitos ao imaginário acadêmico. Revista Brasileira de História, vol. 3
(no. 6).
SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano – São Paulo e pobreza. São
Paulo: Annablume, Fapesp, 2003.
ANEXO
AO RELENTO, DE AFONSO SCHMIDT – POSSÍVEIS COMPARAÇÕES
COM O PRIMEIRO DE MAIO, DE PIETRO GORI
274
Ver A Plebe, edições de19 e 30 de dezembro de 1922..
299
Imagem 19– primeira parte da obra de Afonso Schmidt publicada em A Vanguarda como folhetim
(30.03.1921)
A veiculação da peça por meio de um folhetim muito nos diz sobre aquela
incorporação dos elementos da cultura popular a que nos referimos em nossa
Introdução. A própria publicação da obra de Afonso Schmidt em um jornal como A
Vanguarda - que circulava entre os trabalhadores e pretendia imprimir um caráter
combativo a suas ações – revela-nos a dimensão política que a obra pretendia alcançar.
Trata-se de uma estratégia ativa de inserção social junto à classe trabalhadora, não de
um mero discurso a ser veiculado por um órgão da imprensa. O objetivo claro desse
folhetim parece ser não só o de ampliar o campo de divulgação da mensagem, mas
também (e principalmente) o de intervir nas práticas sociais do movimento operário,
conferindo a elas um sentido próprio. Enfim, assim como a posterior encenação, o texto
veiculado antes em folhetim buscava atingir um alcance político mais abrangente. Texto
e encenação constituem, assim, diferentes dimensões políticas da divulgação daquela
obra de Afonso Schmidt. Para entender o sentido dessa intervenção, devemos analisar
de perto a obra.
Maria Thereza Vargas e Mariângela Alves de Lima fazem menção à peça do
escritor paulista. Ao discutirem a força que as peças de origem européia exerciam sobre
a produção do teatro anarquista no Brasil, as duas apontam para as semelhanças entre
Ao Relento (produzida aqui) e Primeiro de Maio (oriunda da Itália). As pioneiras
autoras afirmam que, quando “o autor é nascido no Brasil, como Afonso Schmidt, a
influência do texto europeu é ainda assim predominante (`Ao Relento´, de Afonso
301
Schmidt não pretenderia ser o nosso `Primeiro de Maio´ ?)” 277. Difícil saber se a obra
do escritor paulista tinha de fato esta pretensão. No entanto, parece mesmo que existem
algumas aproximações (assim como não poucas diferenças) entre o bozzetto
drammatico de Pietro Gori e a “fantasia em verso” de Afonso Schmidt. Urge então
relacionar as duas peças, identificando suas semelhanças e diferenças.
Primeiramente, conheceremos melhor a “fantasia em verso” do escritor paulista.
Depois, tentaremos estabelecer algumas comparações pontuais com o bozzetto de Pietro
Gori.
Comecemos pela descrição do cenário em que se desenrola a representação de
Ao Relento. Tal descrição encontra-se logo no frontispício 278 da versão com a qual
trabalhamos.
Praça pública. Horas mortas. Plenilúnio. Ao fundo, numa vidraça iluminada, vê-se,
através da cortina branca, a silhueta de uma mulher vergada sobre a costura. Num banco
praticável, Antonio, João e Pedro, três maltrapilhos, velam. Homens e mulheres elegantes
passam de quando em quando, ao fundo, na vida noturna.
277
Ver Alves de Lima, Mariângela e Thereza Vargas, Maria; Op. Cit.; p.72.
278
É importante ressaltar que a cópia com a qual lidamos apresenta dois frontispícios. O primeiro, de
1923, foi produzido para a encenação do Grupo Theatro Social, que estreara a peça. O segundo, ao que
tudo indica produzido em 1946, foi feito para um grupo pertencente à terceira geração do teatro
anarquista.
302
Eis que se manifestam os três maltrapilhos. João e Antonio logo nos revelam
aspectos importantes de suas respectivas histórias. O primeiro, também admirando a
vida do Varredor, afirma que já foi feliz. Sabemos, por meio de seus versos, que ele
possuíra uma profissão (fora ourives). Além disso, João vivera um amor correspondido
com uma “mulher gentil, com tranças de ouro novo!”. Antonio, por sua vez, também se
dá a conhecer logo na primeira fala. Em sua conversa com João, ele afirma que fora
padeiro e usara o “fato de algodão todo alvo de farinha”. Naqueles distantes e felizes
anos, possuíra sempre uma “canção na boca” e um “sorriso no olhar”. Logo em seguida,
o próprio Antonio manifesta certo desconforto diante da possibilidade de estar
delirando: “Será simples visão? Que formosa mentira...”. Ou seja, é o próprio ex-
padeiro que coloca sob suspeição a ventura de sua vida pregressa. Logo em seguida,
dirigindo-se a Pedro, é João quem diagnostica o estado de Antonio: “É a febre... Ele
delira”, assevera João.
Inicia-se a cena 3. Entram os dois Elegantes e atravessam o palco conversando
sobre a noitada em que houvera “dinheiro à farta” e muita jogatina. “Quatro contos de
réis em cima de uma carta!”, exclama o 1º. Elegante. Os dois passam e deixam em cena
os demais. Logo em seguida, o Varredor despede-se do Soldado e sai varrendo o chão e
cantando algo referente a seu ofício :
Laranjeira sorridente
[...]
Inda guardas na semente
As flores do meu noivado.
João, Pedro e Antonio conversam sobre a costureira e seu hábito de cantar. Para
Antonio, a “cantiga é o milhão dos desgraçados”. João pergunta a Antonio se existem
pessoas felizes no mundo. “Certamente que sim. Alguma criatura...”, responde Antonio.
Pedro, irritado, lança uma ofensa e propõe uma indagação. “Pedaço d´animal! Que vem
a ser a ventura?”. O ex-padeiro diz que pode ser qualquer coisa (“dez milhões”, “uma
mulher”, “um brinco”, “uma canção que passa”...) e que uma pessoa feliz pode se
encontrar em qualquer lugar (“Num castelo real, numa prisão escura / Ou sob uma
cabana, uma telha de zinco”). Após esses devaneios, Antonio queixa-se da cabeça “em
brasa” e do frio que sente nas mãos. Sempre solidário, João oferece suas próprias mãos
para esquentar as do enfermo companheiro de rua. Pedro, sempre irrequieto, refere-se a
uma idéia que vez ou outra lhe vem à cabeça. “Vê como a noite é má, como o lugar é
escuro / Aproveita o silêncio e a paz da hora morta / E faze um ato vil: arromba aquela
porta”, revela Pedro sua indisfarçável intenção. Antonio, por sua vez, continua
delirando.
Eis que intervém o Soldado. Em um contrariado apelo, ele pede mais uma vez
para que os três maltrapilhos abandonem a praça.
O Soldado insiste para que os dois maltrapilhos saiam. João incentiva Antonio a
se levantar. O estímulo não funciona: Antonio, alquebrado, continua padecendo em
plena praça. João sai de cena, deixando nela apenas o Soldado e o enfermo Antonio.
Corta. Justamente neste trecho do documento que utilizamos há uma
interrupção abrupta. A folha 8 literalmente não existe, foi suprimida. O que ocorreu com
ela? A resposta encontra-se logo no segundo frontispício da cópia que nos serve de
base. Ele foi feito provavelmente em 1946. Destinado a um grupo da terceira geração
do teatro anarquista de São Paulo (vinculado provavelmente ao Centro de Cultura
Social), esse segundo frontispício apresenta uma série de informações gerais sobre a
peça (incluindo sua encenação). Em seu canto superior, aparece o nome do autor
(“AFONSO SCHMIDT”). Logo abaixo vêm o título (“AO RELENTO – FANTASIA
SOCIAL EM UM ATO, EM VERSO”) e os nomes dos personagens, com seus
respectivos atores (dentre eles, Cecílio Dias e Maria Valverde aparecem assinalados 279).
Na seqüência, no canto inferior, aparece a descrição do cenário que transcrevemos
acima, no início deste resumo. Mas é para o canto direito desse frontispício que
devemos voltar o olhar. Nele - em cima, no meio e embaixo – aparecem os sinais de que
a obra foi então censurada. Três carimbos de diferentes órgãos públicos atestam as
etapas do processo de censura. O primeiro (o de cima) apresenta a data de 15 de outubro
de 1946. O do meio, da Interventoria Federal - datado do final de 1946 e assinado pelo
censor (Luiz Veigas, provavelmente) - indica expressamente a supressão da folha 8. O
terceiro carimbo (do canto inferior direito), é da Secretaria da Segurança Pública. Ele
reitera a supressão da folha 8 e registra a data de 28 de março de 1947. Finalmente, após
279
A pesquisa realizada por Maria Thereza Vargas e Mariângela Alves de Lima no fim dos anos 1970
inclui depoimentos dos ex-integrantes do grupo amador vinculado ao CCS. Em entrevista gravada em fita
cassete pelas duas pesquisadoras, Cecílio Dias e Maria Valverde aparecem como depoentes. Ver, no
Arquivo Multimeios do CCSP, o documento P318/AC – TR 1067 (entrevista com artistas do Centro de
Cultura Social).
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mais de cinco meses de processo, a peça parece que foi liberada para a encenação, desde
que não subisse ao palco com o conteúdo expresso naquela malfadada folha .
Mas, afinal, o que essa oitava folha trazia de tão inquietante para uma
autoridade censora? Em busca do conteúdo suprimido, recorremos à versão
originalmente publicada, como folhetim, em A Vanguarda. Entre março e abril de 1921,
o periódico citado veiculou, diariamente, cada um dos seis episódios em que a obra de
Afonso Schmidt ficou dividida. Graças a essa versão anterior, pudemos resgatar
integralmente a peça Ao Relento. Constatamos que o trecho cortado abarca toda a cena 7
e o começo da cena 8.
Após driblar o censor, voltemos ao enredo. João acabara de sair, deixando em
cena Antonio e o Soldado. Este insiste mais uma vez para que o enfermo maltrapilho
deixe a praça. Antonio mostra-se incapaz de sair. “Eu tenho os joelhos bambos / Os
meus pés são de neve. Adormeceram. De ambos / A vida se me foge”, justifica-se o
enfermo Antonio. Em tom ameaçador, o Soldado arremata: “Esta prosa é demais. /
Ponho-te no xadrez se acaso não te vais”. Antonio, no auge de seu delírio, diz algumas
palavras desconexas que, não obstante a desarticulação, sugerem sua possível morte.
Vejamo-nas de perto.
Antonio cai tossindo sobre o banco, deixando nele uma mancha de sangue,
sintoma de sua doença. Termina a cena 7. Até aqui, não há nenhum motivo aparente
para censura. No entanto, logo em seguida, quando começa a cena 8, surge uma nova
situação. Bem no início, aparece um novo personagem. Trata-se do Padeiro, cuja voz se
ouve antes mesmo dele entrar em cena: “Pega! Pega ladrão!”, exclama o Padeiro ainda
fora do palco. Desenrola-se uma confusão na qual Pedro entra correndo, o Soldado
prende-o e o Padeiro aparece a gritar, acusando Pedro de ter lhe roubado um pão. A
justificativa que Pedro oferece para o ato ilegal é o que provavelmente motivou a
censura. Vejamos as escusas de Pedro.
perpassa toda a peça de Pietro Gori. Mas lá seu caráter é metafórico. Em Primeiro de
Maio, as imagens relacionadas à idéia de luta revestem-se de um conteúdo bem mais
simbólico (mas, nem por isso, menos efetivo). Aqui, em Ao Relento, não há espaço para
dúvida: a mensagem de luta é direta e categórica, o que por certo deve também ter
ajudado a atiçar a sanha persecutória do censor em 1946. A peça de Gori, por sua vez,
com a sua mensagem revolucionária mais sutil, por certo tinha mais chance de passar
incólume pelos crivos dos censores, nem sempre atentos às mensagens subliminares.
Até onde sabemos, a peça de Pietro Gori (a mais encenada do teatro anarquista) nunca
foi censurada. Suas idéias metafóricas e o conteúdo simbólico de suas imagens
provavelmente fizeram com que a peça conseguisse escorregar por entre os dedos dos
censores. É possível que tais recursos de linguagem tenham se constituído como
verdadeiro antídoto contra a censura. Ao Relento, por sua vez, com uma mensagem tão
direta quanto enérgica, não logrou a mesma sorte.
Com seus versos rimados e sua atmosfera melancólica, Ao Relento é, por certo,
uma das mais belas e bem elaboradas peças do teatro anarquista. Não conhecê-la
integralmente seria, de fato, um grande prejuízo. Graças à versão original de A
Vanguarda, disponível no Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp, foi possível restituir
o trecho suprimido pelo censor e devolver à obra sua integralidade.
Por certo, a “fantasia em verso” de Afonso Schmidt apresenta muitas identidades
com Primeiro de Maio, cuja influência não deve ser menosprezada. No entanto, Ao
Relento é uma peça ímpar, com inúmeras características próprias, muitas das quais não
se submetem ao paradigma em que a peça de Gori provavelmente havia se tornado. Na
apreciação de suas relações com as obras estrangeiras, incluindo Primeiro de Maio,
precisamos levar em consideração as especificidades da peça de Afonso Schmidt. As
interlocuções entre a “fantasia em verso” e o bozzetto drammatico abrem espaço para a
compreensão dos complexos mecanismos de apropriação de padrões estilísticos
oriundos da Europa. Até que ponto a produção nacional do teatro anarquista era
influenciada pelos dramas sociais estrangeiros? Como se dava esse diálogo com a
produção de fora? Como os padrões externos eram reconfigurados aqui? Impossível
responder a tais questões nesta pesquisa – até porque, nosso propósito é outro.
Queremos apenas ressaltar que a comparação entre Ao Relento e Primeiro de Maio pode
indicar alguns caminhos de pesquisa para outros estudos, sobretudo no campo da
Literatura.