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LAPLANTINE, François. Marcos para Uma História Do Pensamento Antropológico
LAPLANTINE, François. Marcos para Uma História Do Pensamento Antropológico
LAPLANTINE, François. Marcos para Uma História Do Pensamento Antropológico
Capı́tulo 1
A Pré-História Da
Antropologia:
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26 CAPÍTULO 1. A PRÉ-HISTÓRIA DA ANTROPOLOGIA:
Ora, os próprios termos dessa dupla posição estão colocados desde a me-
tade do século XIV: no debate, que se torna uma controvérsia pública, que
durará vários meses (em 1550, na Espanha, em Valladolid), e que opõe o
dominicano Las Casas e o jurista Sepulvera.
Las Casas:
”Àqueles que pretendem que os ı́ndios são bárbaros, responderemos que essas
pessoas têm aldeias, vilas, cidades, reis, senhores e uma ordem polı́tica que,
em alguns reinos, é melhor que a nossa. (...) Esses povos igualavam ou
até superavam muitas nações e uma ordem polı́tica que, em alguns reinos, é
melhor que a nossa. (...) Esses povos igualavam ou até superavam muitas
nações do mundo conhecidas como policiadas e razoáveis, e não eram infe-
riores a nenhuma delas. Assim, igualavam-se aos gregos e os romanos, e
até, em alguns de seus costumes, os superavam. Eles superavam também a
Inglaterra, a França, e algumas de nossas regiões da Espanha. (...) Pois a
maioria dessas nações do mundo, senão todas, foram muito mais pervertidas,
irracionais e depravadas, e deram mostra de muito menos prudência e saga-
cidade em sua forma de se governarem e exercerem as virtudes morais. Nós
mesmos fomos piores, no tempo de nossos ancestrais e sobre toda a extensão
de nossa Espanha, pela barbárie de nosso modo de vida e pela depravação de
nossos costumes”.
Sepulvera:
”Aqueles que superam os outros em prudência e razão, mesmo que não se-
jam superiores em força fı́sica, aqueles são, por natureza, os senhores; ao
contrário, porém, os preguiçosos, os espı́ritos lentos, mesmo que tenham as
forças fı́sicas para cumprir todas as tarefas necessárias, são por natureza ser-
2
Sendo, as duas variantes dessa figura: 1) a condescendência e a proteção, paternalista
do outro: 2) sua exclusão
1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO 27
vos. E é justo e útil que sejam servos, e vemos isso sancionado pela própria
lei divina. Tais são as nações bárbaras e desumanas, estranhas à vida civil
e aos costumes pacı́ficos. E será sempre justo e conforme o direito natural
que essas pessoas estejam submetidas ao império de prı́ncipes e de nações
mais cultas e humanas, de modo que, graças à virtude destas e à prudência
de suas leis, eles abandonem a barbárie e se conformem a uma vida mais
humana e ao culto da virtude. E se eles recusarem esse império, pode-se
impô-lo pelo meio das armas e essa guerra será justa, bem como o declara
o direito natural que os homens honrados, inteligentes, virtuosos e humanos
dominem aqueles que não têm essas virtudes”.
Ora, as ideologias que estão por trás desse duplo discurso, mesmo que não se
expressem mais em termos religiosos, permanecem vivas hoje, quatro séculos
após a polêmicaque opunha Las Casas a Sepulvera.3 Como são estereótipos
que envenenam essa antropologia espontânea de que temos ainda hoje tanta
dificuldade para nos livrarmos, convém nos determos sobre eles.
Essa atitude, que consiste em expulsar da cultura, isto é, para a natureza to-
dos aqueles que não participam da faixa de humanidade à qual pertencemos
e com a qual nos identificamos, é, como lembra Lévi-Strauss, a mais comum
3
Essa oscilação entre dois pólos concorrentes, mas ligados entre si por um movimento
de pêndulo ininterrupto, pode ser encontrada não apenas em uma mesma época, mas em
um mesmo autor. Cf., por exemplo, Léry (1972) ou Buffon (1984).
28 CAPÍTULO 1. A PRÉ-HISTÓRIA DA ANTROPOLOGIA:
Entre os critérios utilizados a partir do século XIV pelos europeus para julgar
se convém conferir aos ı́ndios um estatuto humano, além do critério religioso
do qual já falamos, e que pede, na configuração na qual nos situamos, uma
resposta negativa (”sem religião nenhuma”, são ”mais diabos”), citaremos:
Assim, não acreditando em Deus, não tendo alma, não tendo acesso à
linguagem, sendo assustadoramente feio e alimentando-se como um animal,
o selvagem é apreendido nos modos de um bestiário. E esse discurso so-
bre a alteridade, que recorre constantemente à metáfora zoológica, abre o
grande leque das ausências: sem moral, sem religião, sem lei, sem escrita,
sem Estado, sem consciência, sem razão, sem objetivo, sem arte, sem pas-
sado, sem futuro.6 Cornelius de Pauw acrescentará até, no século XVIII:
”sem barba”, ”sem sobrancelhas”, ”sem pêlos”, ”sem espı́ritosem ardor para
com sua fêmea”.
”É a grande glória e a honra de nossos reis e dos espanhóis, escreve Go-
mara em sua História Geral dos ı́ndios, ter feito aceitar aos ı́ndios um único
Deus, uma única fé e um único batismo e ter tirado deles a idolatria, os sa-
crifı́cios humanos, o canibalismo, a sodomia; e ainda outras grandes e maus
pecados, que nosso bom Deus detesta e que pune. Da mesma forma, tiramos
deles a poligamia, velho costume e prazer de todos esses homens sensuais;
4
”Assim”, escreve Lévi-Strauss (1961), ”Ocorrem curiosas situações onde dois interlo-
cutores dão-sé cruelmente a réplica. Nas Grandes Antilhas, alguns anos após a descoberta
da América, enquanto os espanhóis enviavam comissões de inquérito para pesquisar se os
indı́genas possuı́am ou não uma alma, estes empenhavam-se em imergir brancos prisio-
neiros a fim de verificar, por uma observação demorada, se seus cadáveres eram ou não
sujeitos à putrefação”
5
Cf. especialmente Hans Staden, Véritable Histoire et Descriptiou d’un Pays Habité
par des Hommes Sauvages, Nus. Féroces et Anthropo phages, 1557, reed. Paris, A. M.
JVlétailié, 1979.
6
Essa falta pode ser apreendida através de duas variantes: I) não têm, irremediavel-
mente, futuro e não temos realmente nada a esperar dele (Hegel); 2) é possı́vel fazê-los
evoluir. Pela ação missionária (a partir século XVI). Assim como pela ação administrativa
1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO 29
”As pessoas desse paı́s, por sua natureza, são tão ociosas, viciosas, de pouco
trabalho, melancólicas, covardes, sujas, de má condição, mentirosas, de mole
constância e firmeza (...). Nosso Senhor permitiu, para os grandes, abo-
mináveis pecados dessas pessoas selvagens, rústicas e bestiais, que fossem
atirados e banidos da superfı́cie da Terra”. escreve na mesma época (1555)
Oviedo em sua História das ı́ndias.
Mais dois textos irão deter mais demoradamente nossa atenção, por nos pa-
recerem muito reveladores desse pensamento que faz do selvagem o inverso
do civilizado. São as Pesquisas sobre os Americanos ou Relatos Interessantes
para servir à História da Espécie Humana, de Cornelius de Pauw, publicado
em 1774, e a famosa Introdução à Filosofia da História, de Hegel.
”Deve existir, na organização dos americanos, uma causa qualquer que em-
brutece sua sensibilidade e seu espı́rito. A qualidade do clima, a grosseria
de seus humores, o vı́cio radical do sangue, a constituição de seu tempera-
mento excessivamente fleumático podem ter diminuı́do o tom e o saracoteio
dos nervos desses homens embrutecidos”.
Essa separação entre um estado de natureza concebido por Pauw como ir-
remediavelmente imutável, e o estado de civilização, pode ser visualizado
num mapa múndi. No século XVIII, a enciclopédia efetua dois traçados: um
longitudinal, que passa por Londres e Paris, situando de um lado a Europa,
a África e a Ásia, de outro a América, e um latitudinal dividindo o que se
encontra ao norte e ao sul do equador. Mas, enquanto para Buffon, a proxi-
midade ou o afastamento da linha equatorial são explicativos não apenas da
constituição fı́sica mas do moral dos povos, o autor das Pesquisas Filosóficas
sobre os Americanos escolhe claramente o critério latitudinal, fundamento
aos seus olhos da distribuição da população mundial, distribuição essa não
cultural e sim natural da civilização e da barbárie: ”A natureza tirou tudo
de um hemisfério deste globo para dá-lo ao outro”. ”A diferença entre um
hemisfério e o outro (o Antigo e o Novo Mundo) é total, tão grande quanto
poderia ser e quanto podemos imaginá-la”: de um lado, a humanidade, e de
outro, a ”estupidez na qual vegetam”esses seres indiferenciados:
7
Sobre C. de Pauw, cf. os trabalhos de M. Duchet (1971, 1985).
1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO 31
”É o paı́s do ouro, fechado sobre si mesmo, o paı́s da infância, que, além
do dia e da história consciente, está envolto na cor negra da noite”.
8
”O fato de devorar homens corresponde ao princı́pio africano.”Ou ainda: ”São os
seres mais atrozes que tenha no mundo, seu semelhante é para eles apenas uma carne
como qualquer outra, suas guerras são feroze: e sua religião pura superstição”.
32 CAPÍTULO 1. A PRÉ-HISTÓRIA DA ANTROPOLOGIA:
”As pessoas estão nuas, são bonitas, de pele escura, de corpo elegante. .
. Nenhum possui qualquer coisa que seja, pois tudo é colocado em comum.
E os homens tomam por mulheres aquelas que lhes agradam, sejam elas sua
mãe, sua irmã, ou sua amiga, entre as quais eles não fazem diferença. . .
Eles vivem cinqüenta anos. E não têm governo”.
”Eles são muito mansos e ignorantes do que é o mal, eles não sabem se
matar uns aos outros (...) Eu não penso que haja no mundo homens melho-
res, como também não há terra melhor”.
”Ah! Viva os Hurons que sem lei, sem prisões e sem torturas passam a
vida na doçura, na tranqüilidade, e gozam de uma felicidade desconhecida
dos franceses”.
9
Um dos primeiros textos sobre os Hurons é publicado em 1632: Le Grand Vayage
au Pays des Hurons, de Gabriel Sagard. A seguir temos: em 1703, Le Supplement aux
Voyages du Baron de La Hontan oü ion Trouve des Dialogues Curieux entre 1’Auteur et
un Sauvage; em 1744, Moeurs des Sauvages Américains, de Lafitau; em 1767, Vlngénu, de
Vol-taire..
Notemos que de cada população encontrada nasce um estereótipo. Se o discurso euro-
peu sobre os Astecas e os Zulus faz, na maior parte das vezes, referência à crueldade, o
discurso sobre os Esquimós a sua hospitalidade, estes últimos não hesitando em oferecer
suas mulheres como presente, a imagem da bondade inocente é sem dúvida predominante
em grande parte na literatura sobre os ı́ndios.
10
No século XVIII, um marinheiro francês escreve em seu diário de viagem: ”A inocência
e a tranqüilidade está entre eles, desconhecem o orgulho e a avareza e não trocariam essa
vida e seu paı́s por qualquer coisa no mundo”(comentários relatados por ). P. Duviols,
1978).
34 CAPÍTULO 1. A PRÉ-HISTÓRIA DA ANTROPOLOGIA:
das Lumièresu 11 – , mas também nos salões literários e nos teatros parisien-
ses. Em 1721, é montado um espetáculo intitulado O Arlequim Selvagem. 0
personagem de um Huron trazido para Paris declama no palco:
”Vocês são loucos, pois procuram com muito empenho uma infinidade de
coisas inúteis; vocês são pobres, pois limitam seus bens ao dinheiro, em vez
de simplesmente gozar da criação, como nós, que não queremos nada a fim
de desfrutar mais livremente de tudo”.
É a época em que todos querem ver os Indes Galantes que Rameau aca-
bou de escrever, a época em que se exibem nas feiras verdadeiros selvagens.
Manifestações essas que constituem uma verdadeira acusação contra a civi-
lização. Depois, o fascı́nio pelos ı́ndios será substituı́do progressivamente, a
partir do fim do século XVIII, pelo charme e prazer idı́lico que provoca o
encanto das paisagens e dos habitantes dos mares do sul, dos arquipélagos
polinésios, em especial Samoa, as ilhas Marquises, a ilha de Páscoa, e so-
bretudo o Taiti. Aqui está, por exemplo, o que escreve Bougainville em sua
Viagem ao Redor do Mundo (reed. 1980):
O tema desses povos que podem eventualmente nos ensinar a viver e dar
11
Condillac escreve: ”Nós que nos consideramos instruı́dos, precisarı́amos ir entre os
povos mais ignorantes, para aprender destes o começo de nossas descobertas: pois é so-
bretudo desse começo que precisarı́amos: ignoramo-lo porque deixamos há tempo de ser
os discı́pulos da natureza”
1.2. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO 35
Mas convém, a meu ver, ir mais longe. O etnólogo, como o militar, é recru-
tado no civil. Ele compartilha com os que pertencem a mesma cultura que a
sua, as mesmas insatisfações,-angústias, desejos. Se essa busca do Último dos
Moicanos, essa etnologia do selvagem do tipo ”vento dos coqueiros”(que é na
realidade uma etnologia selvagem) contribui para a popularidade de nossa
disciplina, ela está presente nas motivações dos próprios etnólogos. Mali-
nowski terá a franqueza de escrever e será muito criticado por isso:
”Um dos refúgios fora dessa prisão mecânica da cultura é o estudo das for-
mas primitivas da vida humana, tais como existem ainda nas sociedades
longı́nquas do globo. A antropologia, para mim, pelo menos, era uma fuga
romântica para longe de nossa cultura uniformizada”.
Ora, essa ”nostalgia do neolı́tico”, de que fala Alfred Métraux e que es-
teve na origem de sua própria vocação de Ctnólogo, é encontrada em muitos
autores, especialmente nas descrições de populações preservadas do contato
corruptor com o mundo moderno, vivendo na harmonia e na transparência.
O qualificativo que fez sucesso para designar o estado dessas sociedades, que
são caracterizadas pela riqueza das trocas simbólicas, foi certamente o de
”autêntico”(oposto à alienação das sociedades industriais adiantadas), termo
proposto por Sapir em 1925, e que é erroneamente atribuı́do a Lévi-Strauss.
***
A imagem que o ocidental se fez da alteridade (e correlativamente de si
mesmo) não parou, portanto, de oscilar entre os pólos de um verdadeiro
movimento pendular. Pensou-se alternadamente que o selvagem:
• era um monstro, um ”animal com figura humana”(Léry), a meio cami-
nho entre a animalidade e a humanidade mas também que os monstros
36 CAPÍTULO 1. A PRÉ-HISTÓRIA DA ANTROPOLOGIA:
éramos nós, sendo que ele tinha lições de humanidade a nos dar;
• levava uma existência infeliz e miserável, ou, pelo contrário, vivia num
estado de beatitude, adquirindo sem esforços os produtos maravilhosos
da natureza, enquanto que o Ocidente era, por sua vez, obrigado a
assumir as duras tarefas da indústria;
• era trabalhador e corajoso, ou essencialmente pre guiçoso;
• não tinha alma e não acreditava em nenhum deus, ou era profunda-
mente religioso;
• vivia num eterno pavor do sobrenatural, ou, ao inverso, na paz e na
harmonia
• era um anarquista sempre pronto a massacrar seus semelhantes, ou um
comunista decidido a tudo compartilhar, até e inclusive suas próprias
mulheres;
• era admiravelmente bonito, ou feio;
• era movido por uma impulsividade criminalmente congênita quando era
legı́timo temer, ou devia ser considerado como uma criança precisando
de proteção;
• era um embrutecido sexual levando uma vida de orgia e devassidão
permanente, ou, pelo contrário, um ser preso, obedecendo estritamente
aos tabus e às proibições de seu grupo;
• era atrasado, estúpido e de uma simplicidade brutal, ou profundamente
virtuoso e eminentemente complexo;
• era um animal, um ”vegetal”(de Pauw), uma ”coisa”, um ”objeto sem
valor”(Hegel), ou participava, pelo contrário, de uma humanidade da
qual tinha tudo como aprender.
Tais são as diferentes construções em presença (nas quais a repulsão se trans-
forma rapidamente em fascı́nio) dessa alteridade fantasmática que não tem
muita relação com a realidade. O outro – o ı́ndio, o taitiano, mas recente-
mente o basco ou o bretão– é simplesmente utilizado como suporte de um
imaginário cujo lugar de referência nunca é a América, Taiti, o Paı́s Basco
ou a Bretanha. São objetos-pretextos que podem ser mobilizados tanto com
vistas à exploração econômica, quanto ao militarismo polı́tico, à conversão
religiosa ou à emoção estética. Mas, em todos os casos, o outro não é consi-
derado para si mesmo. Mal se olha para ele. Olha-se a si mesmo nele.
1.2. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO 37
O Século XVIII:
Será preciso esperar o século XVIII para que se constitua o projeto de fun-
dar uma ciência do homem, isto é, de um saber não mais exclusivamente
especulaivo, e sim positivo sobre o homem. Enquanto encontramos no século
XVI elementos que permitem compreender a pré-história da antropologia, en-
quanto o século XVII (cujos discursos não nos são mais diretamente acessı́veis
hoje) interrompe nitidamente essa evolução, apenas no século XVIII é que
entramos verdadeiramente, como mostrou Michel Foucault (1966), na mo-
dernidade. Apenas nessa época, e não antes, é que se pode apreender as
condições históricas, culturais e epistemológicas de possibilidade daquilo que
vai se tornar a antropologia.
39
40 CAPÍTULO 2. O SÉCULO XVIII:
fundar uma ”ciência dos costumes e hábitos”, que, além da contingência dos
fatos particulares, poderá servir de comparação entre várias formas de hu-
manidade. Em 1801, Jean Itard escreve Da Educação do Jovem Selvagem
do Aveyron. Ele se interroga sobre a comum humanidade à qual pertencem
o homem da civilização em que nos transportamos e o homem da natureza,
a criança-lobo.1 Mas foi Rousseau quem traçou, em seu Discurso sobre a
Origem e os Fundamentos da Desigualdade, o programa que se tornará o da
etnologia clássica, no seu campo temático2 tanto quanto na sua abordagem:
a indução de que falaremos agora;
***
***
Finalmente, é no século XVIII que se forma o par do viajante e do filósofo:
o viajante: Bougainville, Maupertuis, La Condamine, Cook, La Pérouse. .
realizando o que é chamado na época de ”viagens filosóficas”, precursoras das
4
Cf. em especial UHistoire Naturetle et Morale des Indes, de Acosta (1591), ou o
questionário que Beauvilliers envia aos intendentes em 1697 para obter informações sobre
o estado das mentalidades populares no reino.
5
Cf sobre isso G. Leclerc. 1979
43
Mas esse par não tem realmente nada de idı́lico. Que pena, pensa Rous-
seau, que os viajantes não sejam filósofos! Bougainville retruca (em 1771
em sua Viagem ao Redor do Mundo): que pena que os filósofos não sejam
viajantes!6 Para o primeiro, bem como para todos os filósofos naturalistas do
século das luzes, se é essencial observar, é preciso ainda que a observação seja
esclarecida. Uma prioridade é portanto conferida ao observador, sujeito que,
para apreender corretamente seu objeto, deve possuir um certo número de
qualidades. E é assim que se constitui, na passagem do século XVIII para o
século XIX, a Sociedade dos Observadores do Homem (1799-1805), formada
pelos então chamados ”ideólogos”, que são moralistas, filósofos, naturalistas,
médicos que definem muito claramente o que deve ser o campo da nova área
de saber (o homem nos seus aspectos fı́sicos, psı́quicos, sociais, culturais) e
quais devem ser suas exigências epistemológicas.
6
Rousseau: ”Suponhamos um Montesquieu, um Buffon, um Diderot, um d’Alembert,
um Condillac, ou homens de igual capacidade, viajando para instruir seus compatriotas,
observando como sabem fazê-lo a Turquia, o Egito, a Barbaria. . . Suponhamos que
esses novos Hércules, de volta de suas andanças memoráveis, fizessem a seguir a história
natural, moral e polı́tica do que teriam visto, verı́amos nascer de seus escritos um mundo
novo, e aprenderı́amos assim a conhecer o nosso.
Bougainville: ”Sou viajante e marinheiro, isto é, um mentiroso e um imbecil aos olhos
dessa classe de escritores preguiçosos e soberbos que, na sombra de seu gabinete, filosofam
sem fim sobre o mundo e seus habitantes, e submetem imperiosamente a natureza a suas
imaginações. Modos bastante singulares e inconcebı́veis da parte de pessoas que, não
tendo observado nada por si próprias, só escrevem e dogmatizam a partir de observações
tomadas desses mesmos viajantes aos quais recusam a faculdade de ver e pensar”.
7
Estamos longe de Montaigne, que se contenta em acreditar nas palavras de ”um homem
simples e rude”, um huguenote que esteve no Brasil, a respeito dos ı́ndios entre os quais
esteve.
44 CAPÍTULO 2. O SÉCULO XVIII:
Porém, o projeto de De Gerando não foi aplicado por aqueles a que se des-
tinava diretamente, e não será, por muito tempo ainda, levado em conta.8
Se esse programa que consiste em ligar uma reflexão organizada a uma ob-
servação sistemática, não apenas do homem fı́sico, mas também do homem
social e cultural, não pôde ser realizado, é porque a época ainda não o per-
mitia. O final do século XVIII teve um papel essencial na elaboração dos
fundamentos de uma ”ciência humana”. Não podia ir mais longe, e não po-
derı́amos creditá-lo aquilo que só será possı́vel um século depois.
8
Os cientistas da expedição conduzida por Bodin não eram de forma alguma etnógrafos,
e sim médicos, zoólogos, minerálogos, e os objetos etnográficos que recolheram não foram
sequer depositados no Museu de História Natural de Paris, e sim dispersados em coleções
particulares. O próprio Gerando, ”observador dos povos selvagens”em 1800, torna-se
”visitante dos pobres”em 1824. O que mostra a prontidão de uma passagem possı́vel entre
o estudo dos indı́genas e a ajuda aos indigentes, mas sobretudo, nessa época, uma certa
ausência de distinção entre a antropologia principiante e a ”filantropia”.
Notemos finalmente que, publicado em 1800, o mémoire de Gerando só foi reeditado- na
França em 1883. E o primeiro museu etnográfico da Krança foi fundado apenas cinco anos
antes (em Paris, no Trocadero). sendo depois substituı́do pelo atual Museu do Homem.
9
A antropologia contemporânea me parece, pessoalmente, dividida entre uma homena-
gem a esses pais fundadores que são os filósofos do século XVIII (Lévi-Strauss, por exemplo,
considera que o Discours sur l’Origine de l’Inégalité de Rousseau é ”o primeiro tratado de
etnologia geral”) e um assassı́nio ritual consistindo na reatualização de uma ruptura com
um projeto que permanece filosófico, enquanto que a ciência exige a constituição de um
saber positivo e especializado. Mas neste segundo caso, a positividade, não mais do saber,
e sim dc saberes que, muito rapidamente (a partir do século XIX), se rompem se parce-
lam, formando o que Foucault chama de ”ontologias regionais”constituindo-se em torno
dos territórios da vida (biologia), do trabalho (economia), da linguagem (lingüı́stica), é
45