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Borges Da Silva Sujeitos 33 Tese Mesrado UFG 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS


FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
MESTRADO EM SOCIOLOGIA

Sujeitos do 33: um estudo sobre o mercado ilegal das drogas e


homicídios na Grande Goiânia

GUILHERME BORGES DA SILVA

GOIÂNIA
2014
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GUILHERME BORGES DA SILVA

Sujeitos do 33: um estudo sobre o mercado ilegal das drogas e


homicídios na Grande Goiânia

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Sociologia (PPGS/FCS)
da Universidade Federal de Goiás como um
dos requisitos para obtenção do título de
mestre em sociologia, sob orientação da
Profa. Dra Dalva Maria Borges de Lima Dias
de Souza.

GOIÂNIA
2014
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Dedicatória,
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Aos meus amados pais, Gelson e Fátima,


Com todo amor, admiração e carinho.

Agradecimentos
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Em primeiro lugar agradeço a Deus por ter me proporcionados lindos


momentos e grandes encontros durante toda a minha vida.

Deixo aqui meu carinho especial aos meus familiares. Agradeço aos
meus pais e meus irmãos por todo apoio, amor e compreensão nos momentos
carecidos.

À minha orientadora, professora Dalva Borges de Souza, por ter me


acolhido ainda na graduação em suas pesquisas. Obrigado por me fazer
apaixonar pelo fazer sociológico, carrego comigo muita admiração e respeito.

Agradeço igualmente aos professores e professoras da Faculdade de


Ciências Sociais que contribuíram para a minha formação acadêmica e no
desenvolvimento da pesquisa, mas fica aqui meu reconhecimento especial aos
professores Ricardo, Dijaci, Telma, Chico Rabelo e Eliane por todas as
contribuições, reflexões e provocações.

A todos os funcionários da Faculdade de Ciências Sociais pela


disposição e prestatividade, em particular ao Marcelo Rizzo e Daisy Caetano
que se tornaram grandes amigos.

Não há como deixar de falar um pouco dos amigos e das amigas que
construí na pós. O convívio com eles certamente tornou essa jornada ainda
mais grandiosa, obrigado Simone, Raclene, Samara, Jouber, Adriano, Rafael,
Marcello, Gabi’s e Dione.

Também não poderia deixar de agradecer a pessoa que foi a metade


dessa pesquisa. Se não fosse a garra de pesquisadora, a paixão pelo fazer
científico, a disposição para o bem e a coragem em enfrentar os medos, com
certeza essa experiência não teria sido tão rica e apaixonante. Não foram
poucas as aventuras e os momentos vivenciados, e certamente teremos muitas
histórias pra contar lá na frente. Obrigado de coração, Marcilaine.
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Quero agradecer também aos amigos Matheus França, Najla Frattari,


Sérgio Eugênio, Hytalo Canedo e Chico Vianna por fazerem breves leituras,
levantarem questões e por gastarem tempo com a minha pesquisa.

Aos amigos Fernando e Keilla pela disposição, contribuição e auxílio em


campo, vocês tiveram papel fundamental para se chegar a esse produto final.

Sou grato a todos os sujeitos que se prontificaram a participar da


pesquisa, obrigado por compartilhar comigo as suas histórias.

Aos amigos Victor, Fernando, Emmerson, Arciane, Thiago, Marcelo,


Hugo, Diego, Geraldo e João Antônio por serem os companheiros de refúgio
dos compromissos acadêmicos.

Agradeço muitíssimo ao Júnior que encontrei ao longo da pesquisa, e


que me fez engradecer como ser humano. Obrigado por aguentar a “barra”.

E, por fim, à Universidade Federal de Goiás, instituição que contribuiu de


forma especial para minha formação profissional e humana.

A todos e todas, muito obrigado.

Resumo
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A ideia de que a violência urbana se associa ao tráfico de drogas se


disseminou por quase toda população goiana. As próprias instituições
responsáveis pela segurança pública, por todas as dificuldades na elucidação
dos crimes, e a mídia televisiva, principalmente os programas policiais,
propagam o discurso de que o aumento das taxas de homicídios nos últimos
anos se deve à proliferação do tráfico de drogas na Grande Goiânia. Essas
afirmações, quando reproduzidas, alimentam a prática de políticas altamente
repressivas de enfrentamento ao tráfico de drogas e, com isso, constroem-se
no imaginário social discursos acusatórios que identificam alguns sujeitos como
mais predispostos à venda de drogas do que outros.
Além disso, os processos acusatórios obscurecem a multiplicidade de
arranjos e de indivíduos que estão por trás dessas práticas criminalizadas. E
em Goiás não há estudos científicos sobre o tema e, deste modo, a pesquisa
aqui apresentada é pioneira em busca de compreender esse fenômeno.
Para desenvolver este estudo, realizei uma viagem propositada por meio
do método etnográfico, entrevistas em profundidade e, também, analisei
prontuários e inquéritos policiais de presos com o objetivo de compreender as
dinâmicas de comercialização e os processos de territorialização do mercado
ilegal das drogas na Grande Goiânia. Ao mesmo tempo, me empenhei em
identificar quem são os sujeitos que estão inseridos nesse mercado e quais os
aspectos morais e os sentidos que atribuem a si mesmos e às atividades que
praticam. E, por fim, verificar quando a violência, mais especificamente o
homicídio, é uma ferramenta regulamentadora utilizada na resolução dos
conflitos e dos desacordos comerciais.

Palavras-chave: mercado ilegal das drogas, criminalidade, drogas, homicídios,


violência.

Abstract
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The idea that urban violence associated with drug trafficking spread for
almost the whole population of Goiás. The institutions responsible for public
security, for all the difficulties in the investigation of the crimes, and the
television media, mostly the police’s TV show, propagate the speech that
increased rates of homicides in recent years is due to the proliferation of drug
trafficking in the Metropolitan Region of Goiânia. These lines, when reproduced,
feed on the practice of punishment’s policies to counter drug trafficking and,
with it, build the social imaginary accusatory speeches that identifies some
subject as more predisposed to selling drugs than others.
In addition, the accusatory process obscures the multiplicity of
arrangements and of individuals who are behind these practices criminalized.
And in Goiás no scientific studies on the subject and, therefore, the research
presented here is a pioneer in the quest for understanding this phenomenon.
To develop this study , we conducted a purposeful journey through the
ethnographic method , in-depth interviews and analyzed records and police
inquests of prisoners in order to understand the dynamics of commercialization
and the processes of territorialization of the illegal drug market in the
Metropolitan Region of Goiânia. At the same time, committed itself to identify
who are the subjects that are entered into this market and what moral aspects
and the meanings they attach themselves and criminalized activities that
practice. And finally, check when violence, specifically murder, is used as a
regulatory tool in conflict resolution and trade disagreements.

Keywords: illegal market of drugs, crime , drugs , homicide, violence.

LISTA DE GRÁFICOS
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GRÁFICO 1: Sexo dos (as) condenados (as) pelo crime de tráfico de drogas do
Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia/GO ...................................................... 41
GRÁFICO 2: Estado civil dos (as) condenados (as) pelo crime de tráfico de drogas do
Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia/GO....................................................... 42
GRÁFICO 3: Grau de instrução dos (as) condenados (as) pelo crime de tráfico de
drogas do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia/GO ...................................... 43
GRÁFICO 4: Uso de arma pelos (as) condenados (as) pelo crime de tráfico de drogas
do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia/GO no momento de suas prisões ... 50
GRÁFICO 5: Equandramento tipologico dos (as) condenados (as) pelo crime de tráfico
de drogas do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia/GO ................................. 87

LISTA DE QUADROS
QUADRO 1: Aspectos demográficos dos municípios da Grande Goiânia e nível de
integração ao polo ...................................................................................................... 19
QUADRO 2: Estruturas de comercialização do mercado ilegal das drogas da Grande
Goiânia ....................................................................................................................... 72
QUADRO 3: Justificativas morais de adesão ao mercado ilegal das drogas da Grande
Goiânia ..................................................................................................................... 139

LISTA DE TABELAS
TABELA 1: Idade dos (as) condenados (as) pelo crime de tráfico de drogas do
Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia/GO....................................................... 38
TABELA 2: Circunstâncias dos homicídios e da tentativa de homicídios dos casos de
presos condenados por essas modalidades de crimes do Complexo Prisional de
Aparecida de Goiânia/GO ......................................................................................... 168

LISTA DE MAPAS
MAPA 1: Espacialidade do mercado ilegal das drogas a partir do Ato de Prisão em
Flagrante da Polícia Militar em Goiânia no ano de 2013 ........................................... 113
MAPA 2: Espacialidade do mercado ilegal das drogas e homicídios em Goiânia a partir
dos dados do Ato de Prisão em Flagrante da Polícia Militar e da Delegacia de
Homicídios referente ao ano de 2013 ....................................................................... 165
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LISTA DE FOTOS
FOTO 1: Presídio Odenir Guimarães (POG) do Complexo Prisional de Aparecida de
Goiânia/GO................................................................................................................. 35
FOTO 2: Unidade Prisional de Trindade/GO ............................................................... 35

LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1: Modelo de organização e sistematização dos dados – aspectos subjetivos
................................................................................................................................... 38
FIGURA 2: Modelo de organização e sistematização dos dados – dinamicas e
moralidades ................................................................................................................ 39
FIGURA 3: Modelo de organização e sistematização dos dados – conflitos e predídios
................................................................................................................................... 40
FIGURA 4: Estruturas de comercialização dos mercado ilegal das drogas da Grande
Goiânia ....................................................................................................................... 70
FIGURA 5: Rota do produtor-fornecedor do mercado ilegal das drogas da Grande
Goiânia ....................................................................................................................... 76
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 15

CAPÍTULO 1 .............................................................................................................. 24
1.1 O modelo artesanal de pesquisa ....................................................................................... 25
1.2 As viagens propositadas .................................................................................................... 29

CAPÍTULO 2 .............................................................................................................. 45
2.1 O traficante de drogas como uma categoria de acusação ................................................ 46
2.2 Os sujeitos do 33 e o problema da acusação .................................................................... 54
2.3 O mercado ilegal das drogas ............................................................................................. 64
2.3.1 O produtor-fornecedor ............................................................................................... 75
2.3.2 O tráfico organizado................................................................................................... 79
2.3.3 O tráfico associado ..................................................................................................... 86
2.3.4 O tráfico atomizado.................................................................................................. 108
2.4 A dimensão socioespacial ............................................................................................... 112
2.4.1 A territorialização ..................................................................................................... 112
2.4.2 As disputas de territórios ......................................................................................... 119
2.4.3 As mercadorias políticas........................................................................................... 124
2.4.4 A cadeia e a rua ........................................................................................................ 133
2.5 As justificativas morais de adesão .................................................................................. 138
2.6 Outros aspectos morais................................................................................................... 147
2.5.1 A família.................................................................................................................... 148
2.5.2 Os ganhos e os gastos .............................................................................................. 151
2.5.3 Respeitar a palavra ................................................................................................... 156

CAPÍTULO 3 ............................................................................................................ 159


3.1 Drogas e violência ........................................................................................................... 160
3.2 Homicídios: o emprego da tipologia tripartite ................................................................ 170
3.2.1 O modelo psicofarmacológico.................................................................................. 172
3.2.2 O modelo econômico compulsivo ............................................................................ 175
3.2.3 O modelo sistêmico .................................................................................................. 178

CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................... 194


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 204

GLOSSÁRIO ............................................................................................................ 211

ANEXOS .................................................................................................................. 215


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INTRODUÇÃO

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Introdução

Estudar o mercado ilegal das drogas no Brasil não é nenhuma novidade.


Desde os anos de 1970 começaram a surgir estudos e pesquisas em busca de
compreender esse fenômeno social que é apontado como o responsável pelo
crescimento e alastramento da criminalidade violenta nas cidades brasileiras.
Estes estudos se concentraram em regiões economicamente centrais e de
grande repercussão midiática, lugares onde foi possível identificar o domínio da
comercialização de drogas por parte de grupos criminosos muito bem
estruturados sobre parte de territórios dessas cidades, principalmente os
“territórios de pobreza” (MACHADO DA SILVA, 2008).
As representações construídas a respeito do tráfico de drogas nessas
cidades se disseminaram por todo tecido social brasileiro. Assim, a imagem do
tráfico de drogas, divulgada pela mídia e partilhada pelo senso comum,
concebeu este mercado como uma atividade criminosa bem organizada e de
estrutura hierárquica altamente rígida e definida, em que a criminalização da
mercadoria e os conflitos por territórios de venda e os acertos de dividas
suscitaram o surgimento de outros meios que não os legais para regulamentar
esse mercado, e o uso da violência seria o meio extremo, porém um dos mais
recorrentes entre os indivíduos do tráfico.
Em busca de entender os arranjos do mercado ilegal das drogas em
varejo, utilizo Michel Misse (1997) que descreve a preferencial criminalização
dessa modalidade de crime. Argumenta que há mercados informais para os
quais se reserva o peso preferencial da criminalização, os “ilegais”. Sua análise
sugere ainda que o comércio de drogas sofre a criminalização preferencial
dentro do quadro dos mercados “ilegais”. Além disso, esse mercado é visto
como duplamente informal por ser necessariamente um mercado informal de
trabalho, porque a criminalização das mercadorias que ele produz ou vende o
alivia da possibilidade de qualquer regulamentação formal das relações de
trabalho e das obrigações tributárias e sociais, além de ser um mercado de
circulação de mercadorias ilícitas, cuja atividade é, em si mesmo, criminalizada.
Apesar de outros crimes, como a falsificação de CDs e DVDs, serem até
mais vistos no cotidiano das cidades, percebe-se que a própria sociedade

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separa e distingue o que pode e o que não pode ser tolerado numa relação de
troca (MISSE, 1997). Ao mesmo tempo, as múltiplas e complexas redes sociais
que se formam pela teia dos ilegalismos se desenvolvem utilizando estratégias
legais e ilegais, estratégias essas que relacionam “’mundos’ que o imaginário
moral prefere considerar como inteiramente separados entre si” (MISSE, 1997,
p.02).
Dando ênfase nas fronteiras porosas entre o legal e ilegal, Ruggiero e
South escrevem em 1997 “The late city as bazar: drug markets, illegal
enterprise and barricades”, neste artigo os autores lançam a metáfora da
cidade contemporânea como um bazzar, em que os mercados formais e
informais, legais e ilegais se sobrepõem. O “bazzar metropolitano”, dizem os
autores, começou a ganhar forma em meados da década de 1980. No caso da
Inglaterra e dos Estados Unidos, o momento da virada conservadora de
governos que fizeram por desmanchar direitos e garantias sociais foi o ponto
de arranque da precarização do trabalho e a redefinição dos mercados urbanos
de trabalho.
Em termos gerais, anos de reestruturação produtiva e da chamada
flexibilização das relações de trabalho que terminou por esfumaçar as
diferenças entre trabalho, desemprego e expedientes sociais de sobrevivência,
dado principalmente pelas redes de subcontratação e formas diversas de
mobilização do trabalho precário (RUGGIERO; SOUTH, 1997).
Assim, descreve Nain (2006), que essas novas formas de trabalho que
são projetadas na ponta do capitalismo que reproduz como nunca o “trabalho
sem forma”, fazendo, ao mesmo tempo, generalizar os circuitos ilegais de uma
economia cada vez mais globalizada dentro do processo de liberalização
financeira, abertura dos mercados e a diminuição do poder e do controle
estatal, colocando em xeque a binaridade legal/ilegal ou lícito/ilícito, tornando
essas fronteiras tênues e frágeis.
Foi também a partir da década de 1980 que as atividades ilícitas
mudaram de escala, se internacionalizaram e se reorganizaram sob formas
polarizadas entre, de um lado, os empresários do ilícito, em particular do tráfico
de drogas e que, a cada local, irão se conectar com a criminalidade urbana
comum, e, de outro, os pequenos vendedores de rua, que operam nas
margens da economia das drogas e transitam o tempo todo entre a rua e a

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prisão. Nesse segundo que se encontram os “trabalhadores precários” da


droga, que se multiplicam na medida em que o varejo se expande e se enreda
nas dinâmicas urbanas (TELLES, 2009).
A perspectiva do Bazar Metropolitano ganha força no Brasil a partir dos
estudos de Vera Telles (2007). Vera Telles toma como ponto de partida as
redefinições nas relações entre o legal e ilegal, formal e informal. Assim, coloca
que essa transitividade sempre acompanhou a história de nossas cidades,
apresenta-se um desafio de construir um jogo de referências distintos do
espaço conceitual, principalmente devido as chamadas incompletudes da
modernidade brasileira. Telles coloca que o trabalho sem forma e essa trama
multifacetada de ilegalismos estão no coração do capitalismo contemporâneo,
então é caso de perguntar pelo modo como esses processos se redesenham
os mundos urbanos e redefinem os ordenamentos sociais a partir das relações
sociais, e relações de poder em situações variadas.
Telles coloca ainda que um ponto importante que não pode ser deixado
de lado é o fato de que a vida social hoje parece atravessada por um universo
crescente de ilegalismos que passam pelos circuitos da expansiva economia
informal, o comércio de bens ilegais e o tráfico de drogas, com suas sabidas
capilaridades nas redes sociais e nas práticas urbanas.
Partindo desses apontamentos, é necessário compreender que a própria
lógica que constitui a criminalidade urbana varia no tempo e no espaço. Em
outras palavras, é preciso levar em consideração que o processo social do qual
emergem os mercados ilícitos, no caso o tráfico de drogas, surge em
momentos históricos distintos e a partir de contextos sociais específicos e, por
conseguinte, ganham os seus contornos também particulares.
Apesar do tráfico de drogas não ser mais um fenômeno recente nas
investigações das Ciências Sociais brasileira, buscar compreendê-lo na Grande
Goiânia foi uma ação inédita, uma vez que era uma incógnita ainda a ser
elucidada.
Em busca dessa empreitada, o caminho percorrido pela pesquisa teve
por objetivo compreender a dinâmica de funcionamento do tráfico de drogas da
Grande Goiânia e a relação dele com o crime violento, especialmente o
homicídio. Dentro desse processo, procurei desmistificar construções

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hegemônicas realizadas pela mídia e que impera no imaginário social do que é


o tráfico de drogas na Grande Goiânia.
Diante disso, para o desenvolvimento dessa pesquisa, o recorte espacial
empregado se limitou ao espaço geográfico que é conhecido como a Grande
Goiânia, que é formada pela capital Goiânia mais as cidades que se
conurbaram a ela: Aparecida de Goiânia, Senador Canedo, Trindade e
Goianira. A opção pela escolha dessas 5 cidades, sendo que no total são 13
cidades que configuram a Região Metropolitana de Goiânia, ocorreu pelo fato
de que apenas elas são altamente integradas.
Ainda no processo de exploração de campo percebi também que a
dinâmica em que se configura o tráfico de drogas nessas cidades muito se
assemelha e, até mesmo, há momentos em que eles se vinculam.

Quadro 1 – Aspectos demográficos dos municípios da Grande Goiânia e


Nível de Integração ao Polo

Taxa média Taxa média Nível de


População População geométrica de geométrica de integração
crescimento crescimento ao Polo
Município 2000 2010 1991-2000 2000-2010 2000
Goiânia 1.009.007 1.302.001 1.91 1.77 _
Aparecida 336.392 455.658 7.30 3.08 Muito Alta
de Goiânia
Trindade 81.457 104.488 4.66 2.52 Média
Senador 53.105 84.443 9,27 4,75 Muito Alta
Canedo
Goianira 18.719 34.060 4.32 6.17 Alta
Fonte: dados de população: Secretaria do Planejamento do Estado de Goiás; níveis de integração: Observatório das
metrópoles.

Essas cidades, nas últimas duas décadas, tiveram grande crescimento


econômico e, por isso, tiveram um forte processo imigratório, deixando de
serem apenas cidades dormitórios.
E quando pensamos no processo de conurbação dessas cidades, ele se
torna importante no entendimento da espacialidade do tráfico de drogas por
aqui, uma vez que se tem em mente a ideia de que essas cidades fazem parte
do trajeto por onde circulam as mercadorias ilegais e os atores envolvidos
nesse mercado criminalizado.

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Depois de delimitado o espaço territorial da pesquisa, as perguntas que


eu me colocava no processo investigativo visaram compreender os arranjos
construídos por esses indivíduos no processo de comercialização das drogas
que vai da sua fonte até o consumidor final. E, dentro desse processo, procurei
elucidar quais as relações simbólicas construídas e compartilhadas entre os
sujeitos envolvidos, desde a percepção sobre si e suas práticas, os aspectos
morais em jogo, as regras normativas que estabelecem nas construções dos
acordos, como lidam com as desavenças e os não cumprimentos das
obrigações e, por fim, como a violência se associa a esse comércio ilícito.
Para dar conta dessa aventura, me utilizei da sociologia artesanal de
Becker (1999) por acreditar que esse método de investigação possibilita ao
sociólogo a liberdade de se relacionar mais profundamente com a pesquisa de
campo, permitindo que o cientista negocie e renegocie com ele mesmo a cada
nova imersão no objeto estudado. Mais ainda, o modelo artesanal coloca nas
mãos do pesquisador a possibilidade para que ele mesmo produza as próprias
teorias e os próprios métodos, pois é a relação de conhecimento dele com o
objeto investigado que irá definir, a cada etapa, pelas diversas questões que se
apresentam no desenvolvimento da pesquisa, que os resultados sejam os mais
confiáveis possíveis.
Para se atingir a maior confiabilidade dos dados foi preciso então que eu
levantasse o maior número de informações plausíveis. Em busca desse acervo
tive que percorrer o caminho daqueles sujeitos quem vendem drogas, ouvir
suas histórias, acompanhá-los em festas, bares, praças e, algumas vezes, fiz
visitas em suas bocas. Rodei por essas cidades para encontrar os sujeitos da
pesquisa, alguns em plena atividade nas ruas e outros encarcerados por conta
da venda de drogas, e, dentre os sujeitos presos, alguns com a atividade
interrompida e outros que, mesmo de dentro do presídio, continuavam
comandando os seus negócios ilegais lá fora. Coletei dados em prontuários de
presos e inquéritos policiais, escutei delegados e agentes da policia, realizei
leituras de jornais impressos e digitais, e busquei dados e informações na
Secretaria de Segurança Pública, delegacias e presídios.
Acredito que nesse modelo de investigação não devem ser apresentado
apenas os resultados alcançados, mas, também, todo processo de construção
por qual passou a pesquisa. E isso não inclui apenas as partes favoráveis, é

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preciso colocar em linhas as dificuldades e as adversidades encontradas em


todo processo produtivo. Afinal, parto do pensamento de que é necessário
situar o leitor sobre todos os procedimentos investigativos que vão da desde a
elaboração dos instrumentos de pesquisa à exploração e análise de dados.

***

Partindo dessa compreensão, a dissertação que aqui apresento foi


dividida em 3 capítulos mais as considerações finais. No primeiro capítulo,
separado em 2 partes, abordei especificamente as perspectivas teóricas e
metodológicas no qual este trabalho está embasado; na primeira parte exponho
as reflexões de Becker sobre o modelo artesanal de pesquisa, colocando nas
mãos do pesquisador a responsabilidade em deixar claro ao leitor o passo-a-
passo de construção da pesquisa e, ao mesmo tempo, me deu a liberdade
necessária para me guiar nesse processo construtivo. A segunda parte vai
tratar das minhas viagens propositadas de campo, procurando mostrar a
imersão no objeto estudado, as relações construídas, os caminhos percorridos,
identificar quem são os sujeitos da pesquisa e os entraves que encontrei ao
longo do percurso.
O segundo capítulo, dividido em 6 partes, trato dos resultados
encontrados na pesquisa. No primeiro subcapitulo transcorro acerca das
imagens atribuídas pelas mídias e pelos órgãos de Segurança Pública aos
sujeitos envolvidos no tráfico de drogas e, no segundo, por sua vez, procurei
compreender as percepções que os sujeitos de pesquisa têm sobre si e em
relação às atividades que praticam.
No terceiro subcapitulo apresento o que a dinâmica de funcionamento do
mercado ilegal das drogas, pelo fato de que as mercadorias ilícitas, ao sair da
sua fonte de produção até chegar ao consumidor final, percorrem um longo
caminho que, a cada etapa de distribuição e comercialização, ramifica as
relações sociais e novos atores sociais se integram. Nesse processo, foi
possível verificar quatro estruturas distintas de comercialização das drogas: o
produtor-fornecedor, o tráfico organizado, o tráfico associado e o tráfico
atomizado.

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Complementando esta parte, no quarto subcapítulo procurei tratar da


dimensão socioespacial em que esse mercado irá se territorializar. Verifiquei
que nos últimos anos o processo de territorialização do tráfico de drogas na
Grande Goiânia foi marcado por pequenas disputas comerciais em
determinadas regiões das cidades, e essas disputas não tinham por objetivo o
controle do território em si, apenas o domínio comercial.
As drogas não são as únicas mercadorias à venda no mercado ilegal, a
ilegalidade do empreendimento, seguindo os escritos de Misse (1999), cria
outro mercado ilegal por onde circulam as mercadorias políticas. E, além disso,
a relação entre a cadeia e a rua não se findam quando os sujeitos vão
encarcerados, na verdade muda-se a forma de se relacionar e, até mesmo, a
cadeia vira um espaço de comando do tráfico e o lugar em que as redes sociais
do crime podem se estreitar.
No quinto e no sexto subcapítulo da segunda parte busquei identificar a
dimensão moral dos indivíduos inseridos nesse mercado. Assim, no quinto
subcapítulo, por meio das entrevistas, almejei esclarecer as justificativas
morais construídas pelos sujeitos no processo de adesão ao tráfico de drogas
e, no sexto subcapítulo, por sua vez, desejei compreender as relações morais e
culturais que envolvem os sujeitos do tráfico.
Dentro deste sexto subcapitulo, discuti questões ligadas à família, os
aspectos econômicos, de poder, status e prestígio. E, por fim, quis
compreender os aspectos culturais e morais de uma honra masculina que foi
criada ainda no mundo rural e que, dentro da cidade, e, posteriormente, ao se
associar à criminalidade urbana, ganha novos arranjos e novos significados,
muitas vezes à base do uso da força física como forma de resolução de
contendas.
No terceiro e último capítulo procurei analisar a relação entre drogas e
violência, especialmente o homicídio. Assim, na primeira parte, parti do
entendimento de que não há um único elemento que seja capaz de explicar
essa associação, mas na verdade é resultado da soma de múltiplos fatores.
Nesse sentido, na segunda parte, utilizando a tipologia tripartite de Goldstein
(1985) é possível detectar os momentos que há a irrupção da violência
associada à droga. A partir do emprego dessa tipologia pude perceber que a
associação entre drogas e violência não deriva apenas da comercialização,

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quando na verdade ela resulta de três dimensões diferentes e que se


sobrepõem, Goldstein divide essa tipologia em três elementos: o
psicofarmacológico, o econômico compulsivo e o sistêmico.
Os objetivos que me guiaram na pesquisa em busca de entender a
dinâmica de funcionamento do tráfico de drogas na Grande Goiânia e a relação
dele com a criminalidade violenta ajuda não apenas na elucidação de um
objeto que ainda não havia sido explorado. Mais ainda, ele vem somar com
outros estudos desenvolvidos nos últimos anos pelo Núcleo de Estudos sobre
Criminalidade e Violência (NECRIVI) em busca de entender as mudanças nos
padrões de criminalidade que emergem com o crescimento urbano no Estado
de Goiás e, com isso, de forma mais ampla, contribuir na construção do
entendimento sobre o que é atual sociedade goiana e seus processos de
urbanização.

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CAPÍTULO 1

O MODELO ARTESANAL

DE PESQUISA E AS VIAGENS

PROPOSITADAS

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1.1 O modelo artesanal de pesquisa

Em seu conjunto de ensaios “Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais”


(1999), Becker afirma sua preferência por um “modelo artesanal de pesquisa,
no qual cada cientista produz as teorias e os métodos necessários para o
trabalho que está sendo feito” e, ainda mais, considera que “os sociólogos
deveriam se sentir livres para inventar os métodos capazes de resolver os
problemas das pesquisas que estão fazendo” (BECKER, 1999: 12). Além disso,
argumenta que:

Surgem outros problemas na implementação desses métodos,


problemas que não podem ser reduzidos desse modo, problemas que
envolvem a própria interação do pesquisador com aqueles que ele
estuda, ou do pesquisador com os seus colegas e assistentes, que
derivam do contexto social no qual qualquer operação de pesquisa tem
seu lugar. Estes problemas são igualmente permeáveis à análise, mas
a análise não deve confiar apenas na lógica da análise de variáveis ou
na teoria da probabilidade e abordagens similares. Deve, ao invés
disso, incorporar as descobertas da própria sociologia, tomando os
aspectos sociológicos e interacionais do método parte do material
submetido à revisão analítica e lógica. Podemos chamar tal enfoque
para a metodologia de sociológico. (BECKER, 1999; p. 28)

O enfoque dado por Becker propõe esse esquema de que o


conhecimento adquirido pelo sociólogo se dá nessa relação cotidiana com o
objeto em estudo. Deve-se, portanto, partir do ponto de vista dos atores
estudados para atentar sobre o sentido que eles atribuem às situações
vivenciadas e aos símbolos que os circundam e que dão forma àquilo que
constroem em seu mundo social. O método etnográfico é visto por Becker
como aquele que melhor permite analisar as práticas dos membros em suas
atividades concretas e revela regras e procedimentos pelos quais os atores
interpretam sua realidade social. Além disso, segundo Minayo e Sanches
(1993), ajuda na compreensão das “camadas mais profundas no que se refere
ao mundo dos símbolos, dos significados, da subjetividade e da
intencionalidade” (MINAYO; SANCHES, 1993; p. 245).

25
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Assim, a observação, as entrevistas e a descrição – que compõem a


perspectiva etnográfica – são as principais ferramentas desse modelo de
pesquisa. E cabe ao pesquisador tornar-se sensível às sutilezas que encontra
no campo de investigação, precisando estar suscetível para rever concepções
e conceitos que esse “mundo” a ser investigado tem a dizer. É a relação do
pesquisador com os sujeitos pesquisados que permite que as dúvidas se
esvaiam, que se descontruam certezas e que outras questões sejam
levantadas. A sensibilidade do pesquisador em campo tem que atentar para os
detalhes, as palavras não ditas, os olhares disfarçados e, até mesmo, para um
tom de voz mais brando etc.
Pais (2003) afirma que nesse modelo de pesquisa “o esforço de
teorização aparece indissociável da prática de pesquisa”, dado pela
“necessidade em dar resposta a dilemas e interrogações concretas que
desafiam a imaginação sociológica” (PAIS, 2003; p. 41).
Como esse modelo de pesquisa apresenta dificuldades e entraves para
o pesquisador, Becker (1999) reflete sobre a necessidade de deixar explícitos
os resultados negativos com os quais a pesquisa se depara, mostrar todas as
dificuldades e os (des)caminhos pelo qual o pesquisador percorreu. Alerta que
o pesquisador não deve encobrir as barreiras e as dificuldades encontradas em
campo e mostrar apenas o que deu certo. É função do sociólogo deixar claro
todo andamento da pesquisa para aqueles que não participaram dela, por meio
de uma descrição sistemática de todos os passos do processo.
Se o ponto de vista dos atores é fundamental nesse modelo de
pesquisa, como então aplicá-lo quando os sujeitos pesquisados praticam
atividades criminalizadas em um mercado também criminalizado? De que
forma o pesquisador acessa o universo e os códigos desses sujeitos e de suas
práticas?
Desde o início acreditei na impossibilidade de uma imersão pura como
propõem as etnografias clássicas, pelo fato dessas terem como um de seus
elementos centrais a participação do pesquisador no cotidiano dos nativos,
comportando-se e compartilhando das mesmas experiências, aproximando-se
da realidade a ser investigada.
Quando a ideia de imersão do pesquisador em objetos de práticas
criminosas foi utilizada em estudos nas Ciências Sociais, colocaram-se

26
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problemas éticos irreversíveis. Afinal, ao participarem de tais atividades


criminalizadas, os pesquisadores poderiam ser julgados e condenados pelas
mesmas práticas como qualquer um de seus informantes, mas, acreditava-se
que, assim, haveria maior aceitabilidade pelos sujeitos do grupo em questão.
Luic Wacquant, em seu livro Carnal Sociology (2004), ao pesquisar um
grupo de boxeadores negros habitantes de um gueto norte americano, afirma
que a melhor maneira de se chegar ao objeto é por meio de uma imersão
iniciatória e, logo depois, uma conversão do pesquisador ao contexto e ao
cotidiano dos sujeitos pesquisados para assim compreender as suas reais
práticas. Pois isto, “permite que o sociólogo se aproprie na e pela prática dos
esquemas cognitivos, estéticos e éticos que aqueles que habitam este cosmos
executam nas suas ações cotidianas” (WACQUANT, 2004; p.8)
Contrariando essa perspectiva da imersão, Alba Zaluar (2009) coloca
que as pesquisas que se enveredam em estudar comportamentos criminosos
por meio da realidade dos atores que a constroem não podem se dar
puramente pela observação participante, pois:

Além de todos os problemas práticos e éticos aos quais a inserção na


sociedade estudada pode levar, esta inclusão, em última análise,
significaria negar o lugar do observador e, portanto, qualquer
objetividade. Ficaria apenas a participação no binômio da observação
participante. (ZALUAR,2009; p. 563)

Assim, a saída mais pertinente foi utilizar uma estratégia onde eu


pudesse fazer o exercício de aproximar e distanciar do “mundo” dos sujeitos
atuantes no tráfico de drogas, até mesmo porque a passagem de um lado para
o outro não é tão rigorosa quanto se imagina, pois são fronteiras tênues que
separam a legalidade da ilegalidade como já foi apontado inicialmente. Assim,
seguindo os passos de Alba Zaluar (2009), optei por fazer uma “viagem
propositada”. Esse modelo propõe que o cientista social:

[...] como viajante procura conhecer previamente o seu campo e se


prepara como pode para ele. Não que surpresas estejam suprimidas,
mas "saber entrar" e "saber sair" são procedimentos fundamentais [...]
[...] permanecendo outro e conhecendo o nativo para conhecer-se

27
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melhor na diferença. Participar e observar, ser de lá e estar cá,


registrar lá e escrever cá [...] (ZALUAR, 2009; p. 566).

O texto escrito pelo cientista social seria a ponte entre os dois “mundos”.
Cabe a ele observar, interpretar e descrever para os que não pertencem àquele
“mundo” as situações vivenciadas nesse outro lado obscuro pelas conjunturas
da ilegalidade que emergem em suas práticas cotidianas. Ou seja, o objetivo
então nesse modelo de pesquisa é desfazer construções simbólicas,
principalmente aquelas enviesadas por padrões midiáticos, e iluminar as
relações vivenciadas por esses outros sujeitos a partir de suas próprias falas e
de suas rotinas.
Foram as “viagens propositadas” no cotidiano dos sujeitos estudados
que contribuíram para que eu pudesse criar estratégias e, até mesmo, me
possibilitou certa malicia investigativa para atingir os fins almejados. Afinal, são
diversos os problemas e as dificuldades encontradas em campo, pois só de
estudar grupos à margem da lei, que enfrentam perseguição policial e
problemas com a justiça, diversos riscos e problemas surgem e que não estão
dentro da previsão do pesquisador, porque a “arte de se relacionar e a
criatividade em fazer as perguntas certas a pessoas certas não se aprende em
textos acadêmicos, mas na experiência vivida” (ZALUAR, 2009; p. 568).

28
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1.2 As viagens propositadas

Sempre afirmo que a pesquisa não se iniciou quando entrei no


mestrado, na verdade o tema sempre me chamou muito a atenção justamente
pelo tráfico de drogas possuir certo protagonismo nas justificativas criadas
pelos órgãos de Segurança Pública e pela mídia como um problema social
extremamente grave que repercutia diretamente no aumento das taxas de
homicídios das cidades goianas.
Ao participar de pesquisas pelo Núcleo de Estudos sobre Criminalidade,
Violência e Justiça Criminal (NECRIVI) eu percebi que as representações
criadas a respeito do tráfico de drogas se alastraram por todo tecido social
como uma atividade altamente perigosa em que quase todos os problemas se
resolviam por meio da violência.
Por outro lado, na região que nasci e fui criado em Goiânia tive o
convívio com pessoas que eram envolvidas com o uso e/ou venda de drogas,
mas a imagem que eu tinha delas era totalmente diferente da imagem perversa
que estava sendo compartilhada no imaginário social.
As inquietações que me colocavam não eram em favor de exercer uma
defesa das pessoas que vendiam drogas, mas sim em tentar compreender o
outro lado da moeda. E o que esses sujeitos têm a dizer sobre si? O que os
leva a aderir a essas atividades juridicamente criminalizadas? São sujeitos
maus e que agem de forma truculenta visando apenas o enriquecimento?
Todos eles ganham dinheiro? Foram diversas perguntas que me guiaram a
essa pesquisa, e muitas outras acabaram se colocando ao final do estudo.
Um dos primeiros dilemas ocorreu ainda no processo de elaboração da
pesquisa, na definição do próprio objeto de estudo. Não é tarefa simples
explicar e convencer os familiares e amigos que seu objeto de estudos envolve
diretamente pessoas que vivem da comercialização de drogas ilícitas, ainda
mais pelo fato dessa figura ser diariamente demonizada nos noticiários como
sujeitos que agem a partir de comportamentos perversos e impiedosos, sem
nenhuma relação de alteridade, visando apenas o alcance de lucros
imensuráveis.
Entretanto, por saber que a violência nesse mercado é real, porém não
tão exacerbada como se coloca, foi preciso criar uma série de mecanismos

29
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para tentar amenizar e evitar qualquer risco que este tipo de pesquisa poderia
proporcionar, desde horários delimitados, lugares escolhidos para os
encontros, preservar o anonimato dos sujeitos da pesquisa nas mais diversas
situações, deixar avisado outras pessoas de confiança onde eu estava e que
horas voltaria, entre outros.
Por mais que estivesse próximo de indivíduos que participavam da
comercialização de drogas, nunca tive real conhecimento sobre as atividades
ilegais que eles praticavam. Apesar de esses indivíduos serem familiares ao
meu cotidiano, as atividades praticadas por eles me apresentavam como
desconhecidas. Gilberto Velho em 1987 já alertava sobre os panos que as
vezes encobre a nossa visão sobre o social, assim:

O que sempre vemos e encontramos pode ser familiar, mas não é


necessariamente conhecido e o que não vemos e encontramos pode
ser exótico, mas, até certo ponto, conhecido (VELHO, 1987; p.126).

A minha viagem propositada me gerou de início uma dupla sensação.


De um lado, alimentou a minha curiosidade investigativa em busca de
desvendar, esmiuçar e compreender os arranjos construídos pelos indivíduos
que fazem parte dessa lógica mercadológica dos psicoativos. Por outro lado,
gerou certo medo e receio de não conseguir acessar de forma profunda as
informações necessárias para a construção da pesquisa. Afinal, conviver com
esses sujeitos no cotidiano é uma coisa, outra era querer saber sobre as
atividades que realizam e que normalmente procuram encobrir.
Procurei construir um acervo de informações e dados oriundos de
diversas fontes, sobretudo do campo etnográfico, com entrevistas em
profundidade e anotações no caderno de campo, e a análise de prontuários e
inquéritos policiais de pessoas presas pelos crimes de tráfico de drogas,
tentativa de homicídio e homicídios. Como forma de incrementar e enriquecer
esses dados entrevistei informalmente alguns agentes policiais e delegados e
realizei leituras de jornais impressos e digitais sobre casos de apreensão de
pessoas envolvidas com o tráfico de drogas, homicídios e grupos de
extermínio.

30
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No desenvolvimento da pesquisa o emprego do método etnográfico


pode ser compreendido em dois momentos distintos. Primeiramente, ao iniciar
a pesquisa, ele foi utilizado com o objetivo de se chegar até os sujeitos com os
quais havia um contato anterior à própria pesquisa e que estavam envolvidos
com a venda de drogas. Acreditei que, ao utilizar a metodologia de bola de
neve1, a cada novo contato estabelecido no processo investigativo outras
pessoas seriam indicadas para a pesquisa. Entretanto, esse modelo se
mostrou inviável porque os entrevistados procuravam encobrir de outras
pessoas envolvidas no tráfico de drogas que estavam participando da
pesquisa, até mesmo para evitar qualquer tipo de problema de desconfiança
entre os demais, sobretudo por conta do receio que os indivíduos nos
mercados ilícitos têm em relação à prática de caguetagem.
Assim, outra dificuldade apresentada de inicio foi construir uma rede de
contatos que me pudesse dar uma direção em relação ao campo da pesquisa.
Na verdade, pessoas que eu acreditava que seriam abertas a participar da
pesquisa, por participarem da minha rede de conhecidos e amigos, se tornaram
totalmente desconfiadas e, por isso, preferiram não contribuir. Não sei se foi
falta de capacidade minha em convencê-los ou a própria tentativa de
distanciamento era justamente para que não eu não pudesse construir outro
tipo de percepção sobre eles, por isso era melhor não aprofundar mais do que
nas relações de amizades e querer compreender suas atividades ilegais.
Ironicamente, como diria aqueles que pactuam com acidentes no
percurso etnográfico, nos (des)caminhos da pesquisa foram justamente
aqueles indivíduos desconhecidos, que me foram indicados por pessoas de
minha rede de amizade que consomem algum tipo de substância ilícita, que me
salvaram no desespero da falta de participantes para iniciar a pesquisa. Mesmo
eu sendo estranho para tais pessoas naquele momento acabei obtendo algum
sucesso e consegui construir uma boa relação de confiança, e, somente assim,
que consegui, em um primeiro momento, percorrer as tramas ilegais e o
cotidiano daqueles indivíduos que viviam desse mercado criminalizado.

1
O modelo bola de neve funciona a partir da compreensão de que você inicia o campo por meio de um entrevistado
que tem o papel de indicar outros sujeitos que possam dar informações importantes para a pesquisa e, com isso,
constrói-se uma rede de contatos de indivíduos que formam o perfil necessário para formar o quadro de participantes
de uma determinada pesquisa.

31
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De inicio deixava claro que meu interesse não era saber nomes de
pessoas, mas sim entender a experiência de vida de cada um deles. Em alguns
momentos a confiança foi estabelecida imediatamente e em outras ocasiões
não consegui ter acesso a informações que me eram cessadas ou, até mesmo,
não tinha capacidade naquele momento de compreender o que se passava.
Como era um estranho ali, apesar das tênues fronteiras, era preciso mais
tempo para poder experimentar dos mesmos significados, gestos, códigos e
símbolos dos grupos que estava tentando me inserir.
Como não dava para participar ativamente do cotidiano dos meus
entrevistados, o processo de elucidação de campo requeria mais tempo do que
tinha para a produção final dessa dissertação. Então no processo de escrita
deste trabalho me inquieto porque tenho mais dúvidas do que esclarecimento
para apresentar, pois ainda existem pontos que devem ser ligados e nós que
devem ser desembaraçados que apenas o tempo permitirá e me dará tais
condições. Afinal, uma pesquisa de dissertação na acaba quando você passa
pela banca de defesa, ela precisa ser continuamente revisitada e, até mesmo,
para dialogar e ajudar a entender as transformações no mundo social.
Além disso, essa dinâmica comprovou que não existem roteiros lineares
no desenvolvimento da pesquisa. Houve momentos que precisei ficar calado,
para evitar qualquer tipo de confusão, sobretudo quando acompanhei algum
dos entrevistados em alguma entrega de drogas, pois acreditei ser melhor que
a informação de que eu era um pesquisador ali ficasse apenas entre eu e ele,
por isso, para ambas as partes, era melhor evitar colocar as cartas na mesa,
tanto para preservar o meu sujeito naquele momento quanto a mim e, também,
para poder ter certeza que não teria outros problemas naqueles momentos das
minhas viagens ao campo.
Sobre o campo, a primeira parte foi então realizada no período de março
de 2012 até junho de 2014 com indivíduos que atuam no mercado das drogas
e que, no momento da pesquisa, se encontravam em liberdade e em plena
atividade ilegal. Com esses sujeitos foi possível participar de festas, sentar em
mesas de bares, conversar em praças e, em algumas ocasiões, quando
possível, pude visitar e conhecer bocas.
Em diversos momentos tive certa preocupação com o que poderia
acontecer em campo, ainda mais depois de ouvir algumas questões de

32
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violência e perseguição sofridas pelos participantes da pesquisa. E o medo era


menos em relação a eles e mais por conta de outras pessoas envolvidas, afinal
o pesquisador era um estranho ali no meio. Para evitar qualquer risco, seja
com outras pessoas que vendiam drogas ou, até mesmo, com a policia,
procurei durante todo estudo manter sigilo das informações encontradas em
campo, tanto visando a segurança dos sujeitos participantes quanto a do
pesquisador2.
Nessa primeira fase entrevistei 7 pessoas, sendo 6 homens e 1 mulher.
Os sujeitos que participaram na primeira etapa atuam de diversas maneiras e
em várias regiões da Grande Goiânia. Pelo fato deles atuarem em práticas
juridicamente criminalizadas, as entrevistas aconteceram informalmente, sem
registros de gravação e sem a necessidade de assinatura da documentação
exigida pelo comitê de ética. Entretanto, os pesquisados estiveram cientes em
todo o momento sobre as pretensões da pesquisa. A pesquisa foi submetia à
avaliação do Comitê de Ética da Universidade Federal de Goiás e foi registrada
na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).
Uma das dificuldades encontradas no período de avaliação do comitê de
ética foi justamente deixar claro quais os motivos para pedir a ausência do
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Esse processo demorou
por volta de 5 meses, pois arquivos iam e voltavam, sempre pedindo uma nova
argumentação, e quase sempre ligado à segurança no campo. Essa demora
não me impediu de ir a campo, porém o cuidado era redobrado devido aos
dilemas éticos da pesquisa que condicionam a preservação dos participantes
acima de tudo. Além disso, não poderia esperar a aprovação de fato para fazer
uma breve exploração do campo até mesmo por conta da criminalização desse
mercado não saberia se até a saída das permissividades burocráticas meus
sujeitos estariam em liberdade, o que dificultaria mais ainda as minhas viagens
propositadas.
Antes mesmo ao desenvolvimento da pesquisa em si, no processo de
exploração do campo, após algumas conversas que tive com os prováveis
informantes da pesquisa, ficou claro que a ilegalidade do empreendimento
2
Apesar de surgir propostas para entrevistas, tanto na mídia televisiva como impressa, decidi no
momento da pesquisa ficar no anonimato de forma que preservasse todo andamento da pesquisa e,
sobretudo, não gerar nenhum tipo de desconfiança por parte dos sujeitos que toparam contribuir com
esse estudo.

33
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investigado e a forma como os sujeitos procuram encobrir essas práticas


criariam dificuldades e, até mesmo, poderia impossibilitar a investigação caso
as entrevistas ocorressem por meios formais e/ou por aplicação de
questionário, visto que seriam mal vistas e provavelmente recusadas. Mais
ainda, ao invés de me permitir acesso mais adequado às informações sobre
eles, a formalidade dos recursos investigativos poderia comprometer no
afastamento dos participantes e, também, na própria espontaneidade dos
depoimentos a serem colhidos.
Outro motivo igualmente importante para o anonimato dos entrevistados
foi a minha própria segurança devido à delicadeza do objeto em questão.
Assim, preservar o anonimato dos sujeitos investigados, além de garantir maior
segurança às duas partes, possibilitou uma maior confiança na relação entre os
entrevistados e eu.
Diante dos resultados alcançados na primeira fase e as dificuldades de
se chegar a novos informantes me conduziram até a segunda etapa de
desenvolvimento da etnografia, o presídio. É preciso confessar que existia um
temor em pesquisar dentro do presídio, não apenas pelas questões
burocráticas e as dificuldades para desenvolver pesquisa nesse espaço, tinha o
receio de que haveria dificuldade em conseguir informações por parte dos
entrevistados, principalmente se eu fosse visto como um agente do Estado.
Assim, selecionais 2 presídios para desenvolver a segunda parte
etnográfica, o Presídio Odenir Guimarães (POG) do complexo Prisional de
Aparecida de Goiânia e a Unidade Prisional de Trindade.

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Foto 1: Presídio Odenir Guimarães (POG) do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia/GO

Fonte: Randes Nunes/ A Redação

Foto 2: Unidade Prisional de Trindade/GO

Fonte: Alaor Félix/ TJGO

Nessa etapa realizei mais 11 entrevistas, sendo 8 homens e 3 mulheres.


Nessa fase gastei mais 3 meses do processo burocrático de organização de
papeis até a permissão para desenvolvimento da pesquisa dentro do presídio

35
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O campo, por sua vez, só consegui começar em janeiro de 2014 e foi até o final
do mês de maio do mesmo ano, com visitas de 2 a 3 vezes por semana, e com
revezamento entre os dois presídios.
Diferentemente do que ocorreu com os sujeitos em liberdade, as
entrevistas com os indivíduos encarcerados tiveram registro de gravação,
porém, da mesma forma que antes, não foi necessária a assinatura do termo
de consentimento, pelo mesmo fato de preservar os participantes da pesquisa.
A aproximação com os sujeitos pesquisados no ambiente prisional só foi
possível porque em ambos os lugares havia conhecidos que trabalhavam
diretamente com os detentos, a intermediação dessas pessoas foi
imprescindível para o desenvolvimento da pesquisa. Afinal, elas tiveram o
papel de explicar e convencer tais sujeitos para que eles participassem da
pesquisa. A relação de confiança e a clareza de que as informações passadas
ficariam em total sigilo contribui muito para o sucesso das entrevistas que, com
o desenvolvimento da pesquisa, quebrou todos os receios anteriores.
Em ambos os presídios, para se evitar qualquer constrangimento, as
entrevistas foram realizadas em salas isoladas e somente com a minha
presença e do participante da pesquisa. No começo, por mais receoso que o
participante estivesse, procurei construir uma relação amistosa entre as partes
até deixar claro que o objetivo maior era ouvir a experiência deles sobre as
atividades criminalizadas que os levaram ao encarceramento. Para não ir
diretamente ao assunto, busquei construir uma relação mais amigável por meio
de questões que envolvia seu histórico familiar, a infância e a adolescência, até
eles mesmos, sozinhos, chegarem ao assunto do tráfico de drogas.
Acredito que ter dado voz aos atores que atuam nesse mercado ajudou
no entendimento dos sentidos que eles atribuem às situações vivenciadas e
aos símbolos que os circundam e que dão forma àquilo que constroem seu
mundo social, colaborando na compreensão das camadas mais profundas do
mundo dos símbolos, dos significados, da subjetividade e da intencionalidade
e, ao mesmo tempo, questões mais amplas que envolvem economia, política,
justiça e segurança pública.
Além da etnografia, o segundo recurso metodológico que utilizei foi a
coleta de informações em prontuários de presos e presas pelos crimes de
tráfico de drogas, tentativa de homicídio, homicídio e latrocínio da POG e do

36
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Presídio Feminino Consuelo Nasser, ambos pertencentes ao Complexo


Prisional de Aparecida de Goiânia. A opção pela coleta de dados nesses
prontuários ocorreu a partir da ideia de que as informações contidas eram mais
precisas, principalmente pelo fato de que os sujeitos já tinham sido condenados
por seus crimes e, portanto, acreditava, apesar de toda problemática dos
processos acusatórios e da produção de inquéritos, que houve um mínimo de
investigação realizada.
A coleta dos dados ocorreu em dois momentos. A primeira etapa ocorreu
antes mesmo do desenvolvimento desse estudo, foi no ano de 2008 na
pesquisa “Violência Urbana no Estado de Goiás” sob coordenação da
professora Dalva Borges de Souza e do professor Francisco Chagas
Evangelista Rabelo. A segunda etapa de coleta de dados nos prontuários dos
presos aconteceu de janeiro a junho de 2014.
Ainda utilizei informações coletadas a partir da leitura de narrativas das
peças finais dos inquéritos policiais da Delegacia Estadual de Repressão a
Narcóticos (DENARC) e da Delegacia de Homicídios (DH) de Goiânia e
Aparecida de Goiânia. Tanto os dados coletados nos prontuários dos presos
como as narrativas dos inquéritos me ajudaram na compreensão sobre a
atuação de parte dos sujeitos envolvidos no tráfico de drogas e a relação da
violência com esse mercado criminalizado.
Outras informações eu consegui na Secretaria de Segurança Pública do
Estado de Goiás e na própria Delegacia Estadual de Repressão a Narcóticos
(DENARC). Em ambos os lugares a maior parte dos dados adquiridos não
tinha passado por nenhum processo de sistematização, eram informações
brutas e desencontradas, desorganizadas e com a falta de muitos elementos3.
Essas informações, após um logo processo de sistematização, possibilitaram a

3
Na tese “Os dados sobre homicídio doloso em Goiás como um problema sociológico” Michele Cunha
Franco (2015) descreve bem o problema de produção de dados sobre crimes em Goiás, no caso da tese
o homicídio. Contudo, podemos levar essa produção de dados da Secretaria de Segurança Pública de
Goiás para a relação de produção de dados de outros crimes, como o tráfico de drogas por exemplo.
Assim, entre os seus achados, pela falta e os problemas de produção de dados destaco: a) não havia
uma articulação institucional no âmbito da Secretaria de Segurança Pública, quer quanto à produção ou
quanto à utilização e intercâmbio dos dados gerados pelas polícias Civil e Militar; b) o acesso e até
mesmo a produção dos dados pareciam dependentes mais de características idiossincráticas daqueles
incumbidos da produção ou que poderiam possibilitar esse acesso do que a regras claramente definidas.
Ou seja: c) . praticamente inexiste uma articulação interna na Secretaria de Segurança Pública, quer
entre Policia Militar Polícia Civil , quer entre delegacias da Polícia Civil, e que essa articulação inexiste
entre a Secretaria de Segurança Pública e o Ministério Público, e entre este e o Poder Judiciário.

37
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criação de mapas que ajudassem no entendimento da espacialidade por onde


irá se territorializar o tráfico de drogas na Grande Goiânia.
Como forma de organizar e sistematizar os dados, construí um esquema
que pudesse me situar e ajudar no processo de análise de todos os dados
produzidos ao longo da pesquisa. Essa divisão pode ser percebida nas figuras
1, 2 e 3 por meio dos blocos de temas e subtemas. O primeiro trata de
aspectos subjetivos (perfil, adesão e percepção sobre o trabalho no mercado
ilegal das drogas).

Figura 1 . Modelo de organização e sistematização dos dados – aspectos subjetivos

Mercado das drogas


(Aspectos subjetivos)

Adesão O
trabalho
Perfil
Motivo De que
forma Como
trabalh
a?

Quando Sozinho
Em equipe
Idade - começou
Escolaridade - Financeir
Estado civil - o -Status Como
e poder - começou Motivo -
Infância e Varejo ou
adolescência - Uso de Quem Em Boca De outra
drogas atacado - forma
Religião - colocou Quais drogas
Trabalho - Quantidade
Dificuldade
s iniciais e valor - Em
qual lugar

Estrutura - Estrutura - Território


Território - - Funções - Formas
Funções - Formas de pagamento das
de pagamento das pessoas que trabalha
pessoas que - Com quem
trabalha - Com trabalha (parentes -
quem trabalha conhecidos- amigos)
(parentes -
conhecidos-
amigos)

Fonte: Pesquisa Sujeitos do 33: um estudo sobre o mercado ilegal das drogas e homicídios na Grande Goiânia, 2014

38
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Na segunda estrutura procurei sistematizar as dinâmicas e as


moralidades compartilhadas entre os indivíduos que atuam nesse mercado.
Assim, busquei entender como se estruturam e como se percebem enquanto
sujeitos que comercializam substancias ilegais e criminalizadas.

Figura 2. Modelo de organização e sistematização dos dados – dinâmicas e moralidades

Mercado das drogas


(Dinamicas e moralidades)

O comércio
Ganhos e gastos As moralidades

O cliente O fornecedor O A
As drogas traficante alteridade
Como
gastava
Com o que
gastava
As farras
Para quem O que é ser
vendem Como As mulheres traficante?
adquiere as
Quem são drogas - Se considera
os clientes? Quantidade traficante? Famílai e
Quais drogas? Estrategias que compra - drogas
Tráfico é
Qual preço? de venda e Onde compra trabalho? A violência
Como vendem entrega (Ex: - O preço - e o tráfico
moto-táxi) Bom ou mau?
Roubo de A
carro e legalização
drogas

Fonte: Pesquisa Sujeitos do 33: um estudo sobre o mercado ilegal das drogas e homicídios na Grande Goiânia, 2014

No terceiro bloco a separação dos temas e subtemas se deram a partir


das relações conflituosas que pude encontrar nesse mercado ilegal e, também,
a relação entre a rua e o presídio, e, com isso, busquei entender as dinâmicas
mais violentas do tráfico de drogas.

39
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Figura 3. Modelo de organização e sistematização dos dados – conflitos e presídios

Mercado das
drogas
(conflitos e
presídios)

Os conflitos Armas
Presídio

Outros A Com o Quais


Clientes Os próprio armas?
traficantes fornecedores policia
grupo Como foi preso?
Como
adquire? A vida no
presídio?
Dívidas Arrego Armas e
Briga de Drogas e
Roubo de território Drogas de Execuçã drogas? presídio?
drogas má o Derramar a
Vingança droga Facções?
Cagueta qualidade
Conflito
direto Passar
perna
Cagueta

Fonte: Pesquisa Sujeitos do 33: um estudo sobre o mercado ilegal das drogas e homicídios na Grande Goiânia, 2014

Quando se trata do tráfico de drogas não é nenhuma novidade afirmar


que os sujeitos envolvidos em sua maioria são homens e menores de 24 anos,
e cada vez mais essa idade tem se reduzido. Entretanto, não há como ter uma
ideia real da quantidade desses sujeitos e nem o quanto movimentam em
drogas e em dinheiro, uma vez que se tem ideia apenas a partir daquelas
pessoas que foram presas e das mercadorias apreendidas.
Os números que se tem apenas ajudam na elucidação, como será
demonstrado no decorrer da dissertação, de quais sujeitos envolvidos na
comercialização de drogas são mais investigados e sofrem maior repressão
pelo Estado e, consequentemente, passam pelo processo social de construção
do que é considerado um traficante de drogas na Grande Goiânia.

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Tabela 1 – Idade dos condenados pelo crime de tráfico de drogas no Complexo Prisional
de Aparecida de Goiânia

Frequência Percentagem
18 - 24 nos 175 43,4
25 - 31 anos 115 28,5
32 - 38 anos 71 17,6
39 ou mais 42 10,4
Total 403 100,0
Fonte: Pesquisa Sujeitos do 33: um estudo sobre o mercado ilegal das drogas e homicídios na Grande Goiânia, 2014

Os dados coletados a partir da leitura dos prontuários de presos do


Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia apontam que grande a maioria
dos sujeitos condenados pelo crime de tráfico de drogas, 43,4%, possuem
menos de 24 anos. Cabe lembrar ainda que os dados falam apenas de
indivíduos maiores de 18 anos e, portanto, aqueles sujeitos menores de idade
que são apreendidos comercializando drogas não estão nesse montante. Ainda
mais, pelas entrevistas é perceptível que a idade de adesão ao mercado das
drogas acontece cada vez mais cedo entre os garotos, hoje ocorrendo a partir
dos 12 e 13 anos de idade.

Fonte: Pesquisa Sujeitos do 33: um estudo sobre o mercado ilegal das drogas e homicídios na Grande Goiânia, 2014

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E como já foi mencionada, a maior parte das pessoas envolvidas no


tráfico de drogas são do sexo masculino, esses números podem ser
observados quando comparado com a quantidade de mulheres condenadas
pela prática do mesmo crime. Do total de pessoas condenadas pelo crime de
tráfico, 82,9% são homens e apenas 17,1% são mulheres. Além disso, 55,1%,
dessas pessoas são solteiras, seguidas pelas casadas ou amasiadas, 26,1%, e
17,1% não possuem informações sobre os estados civis em suas fichas.

Fonte: Pesquisa Sujeitos do 33: um estudo sobre o mercado ilegal das drogas e homicídios na Grande Goiânia, 2014

Constatei também que a maior parte dos sujeitos condenados por tráfico
de drogas tem pouco grau de instrução educacional. Os dados apontam que
35,2% deles possuem apenas o ensino fundamental incompleto e 22,5% o
ensino médio completo. Esses números se confirmam mais ainda ao verificar
que as ocupações deles fora do tráfico demandam pouco conhecimento técnico
e são consideradas profissões marginalizadas e mal remuneradas, como
servente de pedreiro, costureiro, serralheiro, serviços gerais etc.

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Fonte: Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia.

Um dos problemas encontrados nos prontuários dos presos é a falta de


informações sobre o perfil do encarcerado, dado pela falta de preenchimento
dos formulários que, nas maiorias das vezes, se encontram em branco.
Entretanto, sem quantificar, pude constatar por meio das fotos que a maioria
dos encarcerados pelo crime de tráfico de drogas são pessoas negras e
jovens, confirmando as pesquisas nacionais sobre população carcerária no
Brasil.

Além disso, igualmente sem possibilidade de quantificar, a maior parte


desses sujeitos foi presa portando pouca quantidade de drogas, abrindo leque
para discussão sobre o emblemático problema de uso e tráfico. Tal discussão,
como veremos ao longo da dissertação está associada aos mecanismos de
controle repressivo e as construções sociais que selecionam e tipificam

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pessoas, a partir de características físicas e aspectos socioespaciais, que


devem ou não ser enquadradas como sujeitos do 33.

Os números apresentados até o momento não conseguem revelar a


realidade que há por trás do tráfico de drogas na Grande Goiânia, porém eles
ajudam na explicação de que o combate que é realizado para conter essa
modalidade criminosa não atinge toda a sua dimensão, na verdade, como será
analisado na primeira parte deste trabalho, existe uma parte dela que é mais
investigada e os indivíduos que estão inseridos nesse contexto se tornam os
alvos preferenciais do policia e do sistema de justiça criminal.

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CAPÍTULO 2

O MERCADO ILEGAL

DAS DROGAS E OS

SUJEITOS DO 33

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2.1 O traficante de drogas como uma categoria de acusação

P – O que significa ser traficante pra você?


R – Ah, pra mim hoje é umas piores pessoas na vida, é um cara que
contribui e muito para o fracasso, porque o tráfico ele detona, um dos
piores crimes, só perdi pro estupro. (Mulher, 35 anos)

Tornou-se cada vez mais frequente ler ou assistir nos noticiários


operações policiais em que ocorrem apreensões de pessoas ou o
desmantelamento de grupos que se associaram para a prática de atividades
ligadas à comercialização de drogas ilícitas. Essas políticas repressivas
derivam de representações sociais que estão intimamente associadas com
narrativas difundidas pelas mídias, sobretudo aqueles programas de caráter
policialesco, e por instituições responsáveis pela Segurança Pública que
propagam a existência de uma “epidemia” do tráfico de drogas. Esses
discursos afirmam que o mercado ilícito das drogas é o grande responsável
pelo aumento das taxas de criminalidade nos últimos anos na Grande Goiânia
e que os indivíduos que se associam a ele são “bandidos” que precisam ser
caçados e colocados atrás das grades.
As explicações que se lançam sobre esse mercado criminalizado
acabam focando o olhar mais sobre os sujeitos que a ele aderem do que às
próprias práticas criminosas. Não importa saber como o sujeito se envolveu
com a criminalidade, nem como ela ocorre e muito menos o que eles têm a
dizer sobre suas práticas. Argumentam-se apenas da necessidade de que
esses “bandidos” estejam presos e longe das “pessoas de bem”.
As falas punitivistas ganham corpo nas mídias e na sociedade, mas
também nas próprias práticas policiais que, apesar de estarem em um contexto
de Estado democrático de direito, ainda estão sujeitas a um modelo inquisitorial
e continuam a agir a partir de valores autoritários e seletivistas (KANT DE
LIMA, 1989). Essa caçada tem seus alvos preferenciais a partir da criação de
um estereótipo que idealiza um perfil específico que é tido previamente como
criminoso e, somado a isso, a localidade onde ocorrem as batidas é outro
componente importante para essas ações repressivas diferenciadas e mais

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enfáticas. Essa seletividade perversa gera estigma social, marginaliza


determinados grupos e legitima ações que descriminam as populações das
áreas mais pobres (MACHADO DA SILVA, 2008).
A partir da compreensão de que as camadas menos abastadas são mais
vigiadas do que as classes economicamente dominantes o resultado então é a
existência de maior apreensão de drogas e de pessoas que moram nas regiões
mais carentes. As imagens dessas apreensões e os discursos em relação a
esses sujeitos envolvidos com esse comércio ilegal são absorvidos pela
população e pelas instituições de modo geral que começa a tipificar certos
indivíduos que seriam mais predispostos ao cometimento de crime do que
outros, ao ponto de se criar no imaginário social uma ideia espúria e enviesada
de que pessoas de classe média que se envolvem com drogas são usuárias
enquanto os indivíduos pobres são rotulados como traficantes. Afinal, é preciso
levar em consideração o fato de que até mesmo a pobreza também é uma
representação que pode ganhar vários contornos. Deve-se, portanto,
compreender quem e onde constrói essas representações.
A própria lei de drogas 11.343, em seu artigo 28, acaba reiterando esse
comportamento seletivista ao colocar nas mãos do policial a decisão e o poder
sobre o destino do sujeito que é pego em flagrante portando drogas, visto que
não existe nenhum critério que distingue o usuário do traficante. Qualquer
quantidade de drogas achada com o indivíduo pode ser utilizada para
enquadrá-lo como traficante e, mais ainda, não se exigem provas de que ele
realmente as comercialize e, justamente por isso, muitos usuários são presos e
condenados como traficantes. Além do próprio estigma social sobre
determinados grupos sociais, abre-se espaço, como veremos mais à frente,
para a constituição de outro mercado ilegal que transita negociações de caráter
político.
A construção da imagem do traficante de drogas passa principalmente
pelo protagonismo midiático que define padrões de concentração de poder
penal. O que hoje aparece nas manchetes, amanhã se torna ação de todo
aparato jurídico e criminal do Estado.
Nesse sentido, Aknaton Souza (2015) apresenta que uma das formas
mais excludentes do controle social é justamente o aprisionamento de
indivíduos que cometem comportamentos desviantes e essa é a principal via

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para se tratar as drogas no Brasil. Assim, ele analisou que os operadores do


Sistema de Justiça Criminal participam ativamente e diretamente no processo
de acusação de quem é ou não traficante, assim ele diz que:

A representação dos operadores, sobre os sujeitos envolvidos


com as drogas permite que o SJC funcione de forma dinâmica,
auxiliando no processo de acusação, uma vez que eles são tidos
como: a) usuários, doentes, sujeitos que possuem problemas morais,
ausência de controle, irresponsáveis que procuram fugir dos problemas
através das drogas, hedonistas. Que se não cometeram crime hão de
cometer, exceto se tiverem uma estrutura familiar. b) traficantes,
criminosos que espalham o mal e a imoralidade pela sociedade,
acabando com a juventude, fazendo com que os jovens se
tornem zumbis, prostitutas, assaltantes, que devem ser contidos,
para proteger a sociedade. Todavia como apresentado, embora a
separação entre traficantes e usuários exista na representação dos
operadores, na prática, ela é muito tênue, sendo difícil imaginar um
usuário de drogas que não realize nenhum momento atos que podem
ser tidos como de traficância. Assim, os sujeitos acusados como
usuários geralmente possuem alguma “estrutura familiar” que
transforme sua condição de perigo iminente para perigo eventual.
Normalmente os usuários são sujeitos envolvidos com maconha ou
cocaína – drogas sintéticas são raras tanto no uso como no tráfico –
com trabalho formal ou estudantes. Os traficantes por sua vez, eram
sujeitos pobres, sem escolaridade, moradores de periferia, boa parte
usuários de crack. (SOUZA, 2015, p. 125)

Esses discursos não apenas reproduzem estigmas como também


alimenta uma política repressiva sobre as drogas que já se mostrou inviável e
desqualificada. Nesse sentido, a política de guerra às drogas funciona como
mecanismo que vitimiza milhares de pessoas todos os anos, sobretudo
policiais, traficantes e moradores das áreas de pobreza.
Ainda na mesma linha de raciocínio, Rosa (2012) vai argumentar, por
meio da analise das escritas de Foucault, que os efeitos da política repressiva
deriva de dispositivos que constroem e legitimam discursos que são
engendradas no meio social e são reproduzidos, por pessoas e instituições,
verdades sobre determinados temas, objetos etc.

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Nesse sentido, Rosa alerta que o proibicionismo das drogas resulta da


força do poder e saber medicinal ainda nos anos de 1890 por meio de decretos
que determinou o controle de vendas de alguns produtos de caráter venenoso
e, assim, foi posto como crime contra a saúde pública. Assim o autor descreve
que:

Portanto, o surgimento das primeiras políticas proibicionistas ocorreu


de forma mais intensa no momento em que o consumo de drogas
passou a ser reconhecido pela comunidade médica como algo perigoso
à saúde humana. Através da cruzada puritana que anunciava o
aumento do uso maléfico de determinadas substâncias em detrimento
do importante lugar de deus, resultando na intensificação da repressão
e do controle sobre as drogas pro meio de políticas que restringiam o
consumo das drogas que modificavam os estados de consciência.
(ROSAS, 2012, p.34)

Rosa (2012) alerta ainda que o proibicionismo tem seu fruto em


aspectos religiosos e morais que se casaram perfeitamente com o discurso
sanitarista como argumento de proibição e repressão. Como efeito desses
dispositivos de controle, constrói-se no imaginário social uma necessidade
latente de combater esse mal que se aponta e que no imaginário social vem
crescendo. Assim, os discursos de empreendedores morais ganham destaque
e fazem verdadeiras cruzadas a fim de combater esse mau que aparece
cotidianamente nas manchetes dos jornais.
Nesse processo, começa a construir políticas sobre drogas no Brasil,
quase sempre importada do modelo norte-americano, e cada vez mais sob
aspectos repressivos. Entre os efeitos mais perversos está a construção social
da figura do traficante nos aparatos de controle social do Estado, na mídia e
espalhado por todo tecido social.

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Fonte: Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia

Mesmo que os dados apontem que 87,3% dos indivíduos condenados


pelo crime de tráfico de drogas não portavam armas nos momento de suas
prisões e, mais ainda, 97,5% deles não se utilizaram de comportamentos
violentos, mesmo assim justificam-se as ações de guerra ao tráfico de drogas
através da necessidade de resolver o problema da violência de nossas
cidades.
Dessa forma, as representações sociais construídas sobre a
criminalidade, principalmente em relação ao traficante de drogas, são tidas
como verdades absolutas, eles são considerados o tipo ideal do bandido na
atualidade. Seguindo ainda essa ideia, a visão atribuída ao traficante de
drogas, em especial os das áreas periféricas, segue padrões e roteiros
semelhantes e que se vinculam, por sua vez, à estrutura social como um todo.
É nesse contexto que Misse (2006) chama a atenção para a necessidade de
pensar acerca da “criminalidade pobre”, que tem ampla visibilidade dada pelo

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grande interesse da mídia e, com isso, acaba causando maior reação moral e
social.
Ao escrever sobre o conceito de sujeição criminal, Misse procura
elucidar que as representações feitas aos pobres acabam os colocando como
culpados pela criminalidade urbana. Em outras palavras, o bandido é sempre o
pobre, mesmo que a maioria dos pobres não cometem crimes. Ao mesmo
tempo, alerta o autor que por mais que indivíduos que não são pobres
cometam crimes jamais serão representados como bandidos.
Assim, procurando mostrar que o crime é uma construção social, Misse
argumenta que o crime não deriva de fatos objetivos, e sim fruto de
interpretação que nasce a partir de um determinado acontecimento social.
Portanto, o crime deve ser visto como um complexo e específico processo de
construção social.

Para tal, proponho que se compreenda a construção social do crime


em quatro níveis analítico interconectados: 1) a criminalização de um
curso de ação típico-idealmente definido como ‘crime’(através da
reação moral à generalidade que define tal curso de ação e o põe nos
códigos, institucionalizando sua sanção); 2) a criminação de um
evento, pelas sucessivas interpretações que encaixam um curso de
ação local e singular na classificação criminalizadora; 3) a incriminação
do suposto sujeito autor do evento, em virtude de testemunhos ou
evidencias intersubjetivamente partilhadas; 4) a sujeição criminal,
através da qual são selecionados preventivamente os supostos sujeitos
que irão compor um tipo social cujo caráter é socialmente considerado
“propenso a cometer um crime”. Atravessando todos esses níveis, a
construção social do crime começa e termina com base em algum tipo
de acusação social (MISSE, 2003; pp.120-121).

Portanto, torna-se necessário compreender o processo de construção


social do crime para entender o próprio protagonismo dado hoje em dia aos
traficantes de drogas na criminalidade urbana da grande Goiânia. Michel Misse
(2003) distingue a criminalidade real da demanda de incriminação. A princípio a
criminalidade real não existe, pois ela só vai se tornar factual quando houver a
conclusão de um processo jurídico que irá definir tal ação como crime. Por

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outro lado, a demanda de incriminação ocorre quando atores sociais


selecionam e nomeiam eventos como crime, mesmo que eles não passem pelo
processo formal de criminação.
E um dos principais problemas da criminologia positiva é o de considerar
a transgressão como uma característica de quem transgrediu e não como um
processo acusatório que passou pelo processo legal de criminação. Assim, a
partir do momento que se retira a análise sobre a ação praticada para o sujeito
que transgrediu, esse modelo acaba reproduzindo o processo de sujeição
criminal. A produção da sujeição criminal é quando se produzem classificações
“estáveis”, “recorrentes” e “legítimas” que associam práticas sociais
criminalizadas a determinados sujeitos, que na maioria das vezes estão
relacionadas com a situação socioespacial, socioeconômica, cor, gênero e
faixa-etária.

[...] a sujeição criminal é o processo social pelo qual identidades são


construídas e atribuídas para habitar adequadamente o que é
representado como ‘um mundo à parte’, o ‘crime’. Há sujeição criminal
quando há reprodução social de ‘tipos sociais’ representados como
criminais ou potencialmente criminais: bandidos” (Misse, 1999; p. 66)

Aproximado dessa análise Athayde, Soares e Bill vão argumentar no


livro “cabeça de porco” (2005) que:

tudo aquilo que distingue a pessoa, tornando-a um indivíduo; tudo o


que nela é singular desaparece. O estigma dissolve a identidade do
outro e a substitui pelo retrato estereotipado e a classificação que lhe
impomos [...] [...] muitos jovens pobres, especialmente os negros,
transitam invisíveis pelas grandes cidades brasileiras, deixando de ser
percebidos como são para serem notados como bandidos. (ATHAYDE;
SOARES; BILL. 2005, p. 175)

Foi nesse contexto que se forjou a imagem que se atribui aos traficantes.
Eles são considerados sujeitos “sem nenhum limite moral, que ganha a vida a
partir dos lucros imensuráveis à custa da desgraça alheia, que age de forma
violenta e bárbara” (D’ELIA FILHO, 2007, p.118). São indivíduos que não
possuem história, são bandidos por excelência, estão concentrados em nossas
periferias e devem ser combatidos a qualquer preço. As suas mortes são

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comemoradas nos noticiários, não causam comoção e não tem porque serem
investigadas. O traficante virou uma categoria única e universal, atua nas
periferias das cidades e se comportam de forma homogênea.

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2.2 Os sujeitos do 33 e o problema da acusação

Pra vocês isso não é serviço, mas pra nós é. A gente fica de noite, a
gente fica de madrugada na rua, a gente chega em casa cansado,
você pensa que não cansa? Cansa, a gente cansa. A gente paga
aluguel, água, energia, farmácia, tem despesas. Às vezes isso pra
você não é trabalho, mas pra mim é. Não é tão fácil. A gente rala de
madrugada, a gente leva tapa na cara, a gente leva tiro, a gente sai
pra rua arriscando de perder a nossa vida. Pra quem tá do lado de
fora acha fácil, mas não é. (Homem, 30 anos)

Dar voz aos sujeitos envolvidos na comercialização das drogas permitiu


desmistificar construções que são tidas como verdades absolutas, foi uma
maneira de compreender esse mercado criminalizado e seus arranjos pelos
próprios sujeitos que nele atuam e, com isso, entender esse fenômeno social
por meio de seus atores. Ouvir sobre a dinâmica de venda das drogas pelos
próprios indivíduos que as comercializam permitiu compreender o outro lado da
moeda, o jogo da alteridade, se colocar do lado de lá e trazer para o lado de cá
a visão de mundo desses sujeitos, quem são? Como agem? E o que tem a
dizer sobre suas práticas? Fazer esse exercício foi olhar para além das
estruturas, dos rótulos e do estigma, foi tentar entender aquilo que não quer se
entendido, apenas combatido.
Não é possível afirmar se suas falas estão baseadas em fatos
verdadeiros ou falsos, até mesmo porque não era fundamental para o
desenvolvimento da pesquisa, o que torna relevante é que as experiências por
eles contadas permitiram compreender não apenas as subjetividades por eles
construídas, mas também questões mais amplas que envolvem economia,
política, justiça e segurança pública e o Estado.
Uma análise compreensiva sobre o mercado das drogas se faz
necessária num cenário ainda não explorado como é o caso da Grande
Goiânia, é preciso esclarecer essas relações para desmistificar a acusação
social hegemônica que se tem em relação a esse tipo de crime e aos sujeitos
que nele se envolvem. Portanto, partir da percepção dos próprios indivíduos

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que fazem parte desse mercado ajudou na compreensão do processo de


construção do tráfico pelo lado de dentro, como negociam suas identidades,
como interagem nas relações de compra e venda das drogas, quais estratégias
adotam para atingirem o sucesso e como lidam com os fracassos, isto é, que
sentido atribui a si mesmos e a esse mercado.
Para não reproduzir a negatividade que a categoria traficante carrega, a
opção da pesquisa foi chamar os indivíduos que estão inseridos no mercado
das drogas de sujeitos do 33. No Código Penal Brasileiro o artigo 33 descreve
como prática criminosa quem importar, exportar, remeter, preparar, produzir,
fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar,
trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer
drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar.
A opção pelo uso da categoria sujeitos do 33, além de quebrar todo
estigma criado em relação à categoria traficante, permite dar um sentido mais
abrangente, pluralizando as formas que esses indivíduos pensam e agem no
mercado das drogas. Desfaz esse olhar de categoria única e homogênea, e
permite entender que esse modelo de crime é bem mais complexo do que
parece e que seus atores são múltiplos. Ao utilizar os sujeitos do 33 como
categoria de análise para falar sobre os indivíduos que estão envolvidos no
tráfico de drogas ajuda também metodologicamente por ela possibilitar que
abarque tanto os sujeitos que aceitam o processo acusatório que culminam nas
identidades de traficantes ou bandidos quanto aqueles que recusam
severamente essas categorias de acusações.
Essa saída metodológica se mostrou necessária porque apenas uma
pequena parcela dos entrevistados defendeu a identidade de traficante para si
e parte desse lugar para se colocar estrategicamente no mundo. Essa
identidade forjada a partir do processo de incriminação que começa com uma
acusação social não acaba quando o sujeito é condenado, mas ela avança
quando os próprios indivíduos assumem essa identidade e começam a se
perceber a partir do processo de incriminação pelo qual passaram.

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Eu levei a vida de traficante como uma vida de bandido profissional.


Pra mim tudo tinha que tá certo, se não tá certo a gente tem que
resolver. (Homem, 43 anos)

A sujeição criminal então é mais do que o estigma ou os rótulos postos a


determinados indivíduos, é “a fusão plena do evento com o seu autor” e, ainda
mais, “é todo um processo que segue seu curso nessa internalização do crime
no sujeito que o suporta e que o carregará como a um ‘espírito’ que lhe tomou
o corpo e a alma” (MISSE, 2008, p.381).

Me tornei bandido no tráfico, e cabeça de bandido frita, muita coisa


pra se pensar e, como tem que fazer as coisas escondidas, é muito
segredo pra se carregar sozinho, ai é de pirar. (Homem, 22 anos)

Ser traficante ou ser bandido é inseparável do sujeito que carrega essa


identidade e, como consequência dessa relação, constrói-se, segundo alguns
entrevistados, um mundo à parte, o crime, e nele separam-se os “bandidos”
dos “não bandidos”. Ainda mais, participar desse mercado é caminhar em meio
a segredos, não apenas pelo fato dos comportamentos serem juridicamente
criminalizados, mas, principalmente, por ser um tipo de atividade em que a
confiança é uma relação de difícil construção e constantemente quebrada de
acordo com a própria dinâmica desse mercado.
Não é porque alguns dos entrevistados aceitam para si o processo de
acusação que acreditam que as atividades que praticam são consideradas
moralmente corretas, na verdade existe uma consciência moral de caráter
hegemônico sobre as suas práticas e de que elas são criminosas e
condenáveis. E justamente por isso acreditam que devem se comportar de
maneira que a vida no crime exige deles.

P – A TV fica falando que traficante tem que ser preso e que são todos
pessoas más. Você acha que esse aumento da violência que eles
colocam é responsabilidade do tráfico?

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R – Olha um pouco eles têm razão porque assim traficante já não é


profissão é errado fazer isso, vender droga já é errado só que tem as
diferenças de traficantes. Tem aquele traficante bonzinho que faz tudo
que você quer tudo o que você gosta. Já o traficante malvado. Então
tem varias diferenças
P – Você é o bonzinho ou o malvado?
R – Eu era a malvada. (Mulher, 20 anos)

Ser traficante malvado não é apenas um comportamento praticado para


se obter o sucesso no crime, mas é, antes de tudo, uma posição estratégica
para se garantir no mercado ilegal. No crime é preciso ser respeitado e, na
maioria das vezes, ele só é obtido por meio de condutas mais intensas e que
implica até mesmo no uso da violência quando necessário.
O processo de sujeição criminal acaba construindo e reproduzindo tipos
de comportamentos que devem ser praticados por aqueles que estão
envolvidos no crime, caso contrário tem-se a ideia de que dificilmente se
consegue atingir o sucesso. Em outros termos, não é só a acusação de quem
está do lado de fora do universo do bandido, mas entre os próprios sujeitos do
33 existe uma compreensão de que é necessário certos tipos de condutas para
se dar bem no mercado das drogas.
Entretanto, é importante colocar em evidência que a maioria dos sujeitos
da pesquisa, mesmo que boa parte deles tenha passado por todo processo
legal de incriminação, não aceita o processo de acusação que os define como
traficantes ou bandidos e, por isso, negocia uma identidade diferente daquela
que se construiu no imaginário social em relação a quem comercializa drogas.
Dessa forma, eles desenvolvem um esforço de “limpeza moral”
(MACHADO DA SILVA) criando argumentos que procuram destacar algumas
características positivas que acreditam possuírem e que não seriam
encontradas em um traficante ou procuram realçar alguma característica
negativa que é atribuída aos traficantes e que defendem não carregar.

P - Você se considera traficante?


R - Não.
P - Por quê?

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R - Aviãozinho, traficante não, traficante tem as cobiças do poder.


(Homem, 18 anos)

O traficante então é visto como um indivíduo ambicioso que não mede


esforços em busca do dinheiro e do poder, enquanto eles, mesmo não
negando a participação na dinâmica desse mercado, apresentam-se como
sujeitos humildes e portadores de um tipo moralidade que pode ser encontrado
também na representação que eles constroem do que seja um cidadão de
bem. Não é que queiram justificar as suas práticas criminais, mas sim uma
tentativa de mostrar que a imagem dessa moral maligna presente no traficante
de drogas não pode e nem serve para eles.

P – Me diz uma coisa, você se considera um traficante?


R – Não.
P – Por quê?
P – Porque tem muito mais traficante, porque as pessoas faz muita
coisa errada, rouba e mata, eu sempre fiz as coisas certinho e não dou
prejuízo. Eu pego e pago, tem outros que pega e não paga ou mata o
outro por causa daquilo. (Homem, 34 anos)

Os traficantes então não são percebidos pelos entrevistados apenas


pelo ato de comercializarem drogas, mas, sobretudo, a partir da concepção de
que são indivíduos que não possuem princípios morais e, por isso, agem sem
qualquer relação de respeito e alteridade e, se for necessário, utilizam de
comportamentos violentos para atingir o sucesso no crime. Para contrapor a
sua imagem àquela que é atribuída aos traficantes, alguns entrevistados
argumentam que possuem princípios morais que de certa forma são
compartilhados pelos indivíduos que não fazem parte do crime, e,
reiteradamente, se esquivam por meio de falas como: “nunca fiz mal a
ninguém”, “pago o que devo”, “não dou prejuízo a ninguém”.

Eu nunca fui traficante, eu traficava, mas não era traficante. Eu era


uma formiguinha de um general que tem vários soldados. (Homem, 40
anos)

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A identidade de traficante também não lhes cabe por acharem que ela
não serve para explicar o seu lugar no tráfico, pois o traficante sempre é
alguém que está acima deles na cadeia de distribuição das drogas. A relação
entre identidades e posições no mercado das drogas se dá por meio de
negociações estratégicas que dinamiza o próprio funcionamento desse
mercado e que serão analisadas cuidadosamente à frente e à parte.

P – Então o que é um traficante para você?


R – Pra mim é aquele que vive disso mesmo, que sai daqui, pula pro
exterior, pula pro interior, enche o carro ai, esse é o traficante mesmo.
P – Porque você acha que você não é?
R – Eu sou um começo, é, eu sou um pequeno traficante. Porque você
vender uma pedra já é um traficante. (Homem, 34 anos)

Além dessa imagem negativa que compartilham sobre o traficante,


outros entrevistados vão dizer que traficantes não são os que estão na ponta
de baixo do mercado, mas sim “os homens de terno e gravata” que conseguem
lucros imensuráveis e que normalmente não vão presos. Em outros termos,
seriam aqueles que estão na raiz do fornecimento das drogas e que nem
sempre estão envolvidos diretamente na comercialização, mas possuem
estruturas e pessoas que atuam dentro do mercado e que estão subordinados
aos patrões das drogas.
Por outro lado, eles vão dizer que o traficante, aos olhos do Estado, é
sempre aquele sujeito pobre e que está na ponta do varejo desse comércio.

Então, no tráfico quem vem preso é pobre. Quem é traficante? É pobre.


Leonardo Mendonça? É alguma coisa [...] [...] por isso que falo pra
você, droga é um lazer, se for prender todo mundo, entendeu? Só que
quando eles começou a prender filho de juiz, pegava eles com droga,
passava a mão, e só pobre vindo preso, só pobre vindo preso por uso
de droga, ai eles resolveram modificar. Hoje pegar alguém usando
droga vai pra delegacia, quem vai pra delegacia? Vai pra delegacia
quem é pobre, quem não tem dinheiro. (Homem, 35 anos)

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Mesmo que volta e meia neguem a identidade de traficante para si, eles
compreendem que praticam a mesma atividade ilegal daqueles que eles
denominam como traficantes, e, por isso, acabam aceitando a ideia de que de
uma forma ou de outra também são traficantes. Quando isso acontece, eles
procuram argumentar que existem traficantes e traficantes e que, portanto, é
preciso se distinguir do estigma que eles próprios compartilham do que seria
um traficante de drogas.

Olha, eu não me considero uma pessoa má não. Eu sou assim, tenho o


coração até bom demais. Às vezes até discuto com uma pessoa e até
brigo, mas tenho coragem de chegar na pessoa e pedir perdão e até se
o erro for da pessoa eu trago o erro pra mim. Só que tem pessoas
também que não são assim. Seres humanos são diferentes. A gente
não pode fazer acepção de pessoas. Algumas fazem, mas eu acho que
é fraquejado. Mas tem outras pessoas que matam por causa de 5
reais, entendeu? Tem pessoas que merece ser presas, tem pessoas
que merece sei lá, não matar, mas tem que pagar por aquilo. Tem
traficante ai que manda matar 30 e até 40 pessoas por nada e até
quem não tem nada a ver. Aquele que não faz nada paga o preço por
aquele que faz muita coisa. (Homem, 34 anos)

Mesmo tendo a compreensão de que são sujeitos envolvidos no crime,


um dos entrevistados diz que o comportamento violento não pode ser
generalizado. Esses comportamentos, portanto, estariam eram intrínsecos ao
biológico de algumas pessoas que ele considerava perigosas, mesmo que o
mercado de drogas, a seu ver, exigiria esse tipo de conduta mais agressiva.

Na realidade é o seguinte, o tráfico em si ele carrega com ele, isso


porque depende de pessoa por pessoa, às vezes eu não tenho a
maldade e nem a intenção, mas outra pessoa já tem e vai usar. E é
assim, se você deixar cair no seu lado, quem vai tomar as
consequências é você, então você tem que ter uma certa energia ou
ser mais duro com quem é enérgico, se não for, ficaria ruim pro seu
lado e como eu nunca fui uma pessoa enérgica, então eu sempre tive
problema e continuo tendo, porque eu não sou perigoso e nem vivo do
crime, mas eu tô no crime. (Homem, 52 anos)

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Além da própria limpeza moral que muitos dos entrevistados buscam


fazer para não serem identificados como traficantes, eles argumentam ainda
que as práticas mais condenáveis realizadas apenas por alguns traficantes
acabam generalizadas para todos os indivíduos que comercializam drogas,
seria um tipo de informação depreciativa que a mídia constrói em que muitos
responderiam pelo comportamento de poucos e, por isso, querem se
diferenciar desse tipo de acusação.
Mais ainda, alguns entrevistados apontam que esse tipo de acusação
realizada pela mídia e pelo Estado se deve também às condições
socioeconômicas de quem a recebe. Portanto, segundo alguns dos sujeitos
pesquisados, ser considerado traficante passa também por um processo de
pertencimento social a determinados segmentos sociais, haja vista que, para
eles, aqueles sujeitos que se envolvem com drogas pertencentes às classes
mais abastadas não são investigados e nem mesmo a mídia procurar apurar os
fatos. Por outro lado, a criminalidade praticada por sujeitos pobres vira assunto
recorrente dos telejornais e é severamente combatida pelos agentes da
segurança pública.

P – Então você não se vê como traficante?


R - Como um trouxa, um esperto que queria viver no meio de tudo isso.
Porque os traficantes mesmos não estão presos e nem associados
eles estão. Recentemente teve uma apreensão de um helicóptero ai,
do deputado, aquele tanto de pasta-base, aquilo que é a pedra, pelo
cálculo que nós fizemos ali, pra ele iria render mais ou menos uns 500
a 600 milhões de reais livre. E o que aconteceu? Até o avião dele foi
recolhido, porque ninguém sabia, só conversa fiada. Então a mídia
ajuda nisso também, a mídia se fosse um pobre traficante igual são
presos hoje a justiça permite e a televisão faz isso. A televisão,
principalmente a televisão vive de misérias. Esses programas
sensacionalistas que existem ai pra mim é a maior tristeza do mundo,
expõe o cara lá e começa a arrebentar o cara, mas o intuito do
apresentador não é fazer um trabalho pra sociedade não, ele tá
visando a audiência e o dinheiro só. Só isso e mais nada, porque
quando desliga ali, vira tudo mocinho. (Homem, 40 anos)

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A mídia não apenas generaliza os traficantes numa categoria única, mas


também, juntamente com o sistema de justiça criminal, define quem deve ser
considerado ou não traficante. E nesse processo ela assinala que esse
mercado se projeta como uma prática realizada, principalmente, por sujeitos
moradores da periferia e, apenas uma vez ou outra, ela exibe casos de tráfico
de drogas que ocorrem nas classes economicamente dominantes, e nem
sempre os colocam como traficantes e, muitas vezes, nem mesmo encontram
os sujeitos que devem ser apreendidos.
A apuração sobre os casos de tráfico de drogas se aplicam, sobretudo,
na sua última ponta de distribuição, isto é, na sua forma varejo, pois nela onde
se concentra maior presença de violência e que, por isso, acaba causando
maior repercussão social e clamor por punição. Assim sendo, as narrativas
construídas sobre o tráfico de drogas quase sempre reduzem o complexo de
relações e arranjos a um processo simples de comercialização que ocorre
apenas na última ponta do varejo entre quem vende e quem usa.
A redução do mercado das drogas a alguns atores e a poucas formas de
relação empobrece toda uma dinâmica complexa de interações, identidades e
arranjos por onde circulam as mercadorias e os sujeitos do 33. Ao mesmo
tempo, esconde que existem outros tipos de relações e atores durante o
processo de distribuição das drogas que são menos vistos que na ponta do
varejo, e nem por isso menos importantes para a compreensão do que seja
tráfico de drogas na Grande Goiânia.
É necessário, portanto, até mesmo para melhor compreensão da ponta
do varejo, analisar esse mercado a partir de um processo de relações de
comercialização e distribuição das drogas que a cada etapa mantém relações
específicas e arranjos diferenciados de acordo com a necessidade que esse
mercado lhes impõe. É um mercado ilegal que nasce numa fonte de
distribuição das drogas que vai se ramificando e delineando novos arranjos a
partir de novas comercializações que, por sua vez, ganham novos personagens
que vão traçando novos percursos e expandindo o tráfico de drogas.
As interações entre vendedores e compradores não apenas expandem
esse mercado, mas ramificam também as relações entre outros vendedores e
compradores que vão se desencadeando em outras interações de venda e
compra, e é nesse processo que o atacado e o varejo se tornam parte de um

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mesmo todo, construindo uma dinâmica especifica de comercialização e


distribuição das drogas na Grande Goiânia.

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2.3 O mercado ilegal das drogas

O negócio é o seguinte, eu pegava as drogas com um cara e


repassava pra outros caras que saiam vendendo. Esse cara que eu
pegava a droga pegava de outro cara que ia lá embaixo buscar essas
drogas, meio que vai passando de mão em mão, ai só no final que
chega no cara que vai usar. (Homem, 22 anos)

O mercado ilegal das drogas se aproxima de um modelo de comércio


comum que se estrutura em um formato de rede que se inicia pelos grandes
fornecedores e, a cada distribuição das drogas, ele se ramifica e enlarguece as
relações comerciais e a dinâmica espacial, chegando até o mercado
consumidor. Essa forma de distribuição ramificada das drogas amplia não
apenas o próprio mercado, criando novos ganchos por onde as drogas irão
percorrer, mas, também, multiplicam-se os atores e os tipos de interações para
que essa droga saía da sua fonte e chegue até ao consumidor final. As etapas
de distribuição podem ser diversas, como aponta uma das entrevistadas:

Toda vida eu mexi com grande quantidade. Eu nunca tinha tido


envolvimento com noiado. Porque eu fazia só entregar e tudo e
recebia. Não tinha envolvimento. A pessoa também que comprava de
mim também não. Até chegar lá na biqueira passa por várias mãos.
(Mulher, 33 anos)

A dinâmica ramificada do mercado das drogas agencia várias etapas de


distribuição que não segue uma ordem padronizada, vai depender da posição
dos atores dentro desse mercado e as estratégias que utilizam visando o lucro
a ser obtido. Por exemplo, podem existir dois sujeitos distintos que
comercializam os mesmos tipos e as mesmas quantidades de drogas, mas o
primeiro deles busca a droga diretamente com o fornecedor fora do Brasil
enquanto o segundo é o quarto na rede de distribuição e as drogas lhes são
entregues em mãos. Essa dinâmica de abastecimento das drogas não se deve
apenas à posição na rede de distribuição, na verdade há todo um processo de
riscos e escolhas que estão em jogo. Por mais que buscar as drogas
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diretamente com o fornecedor aumente o lucro, a partir da compreensão de


que não existiria o lucro obtido a cada novo repasse, o risco de ser pego e as
drogas apreendidas é grande e, portanto, o prejuízo seria bem maior.

Pra pegar lá embaixo tem que ser no dinheiro. Agora aqui, se eu não
quero descer, pra ficar uns 30 dia, 40 dia, não, eu não vou descer, vou
ligar pra ter a droga aqui na minha mão, dando exemplo, ai ligo pro
senhor e falo “e ai, bem? Como tá a família? Como tá o senhor?”
“Bem” “Bem, então, tô precisando de umas” ele falava “quantas
peças tá querendo?” ai eu “não tenho dinheiro, quero pegar fiado,
você vai fazer a quanto?” “ah, eu vou fazer a 8, vou fazer a 7, quanto
que você quer?” “desce 5 peças de roupa”, ai ele desce e a gente vai e
revende pra poder pagar ele, ai já é fiado. Mas já quando a gente
desce lá embaixo ai já é dinheiro. Uma porque o preço é barato e outra
é que a gente é do Estado do Goiás e os caras da Bolívia, Paraguai, os
caras tão lá. E maconha lá com 50 reais você pega 5 quilos, aqui da
um pedaço pequeno, lá da uma bolsa [...] [...] Vou lá no Paraguai e
pego, é melhor do que pegar na sua mão, se você pegar de 1 mil e
passa a valer 7 mil e vou passar por 10, sendo que posso pegar lá de 1
mil sem precisar de você, posso descer e pegar de 1 mil, e vender por
10 e ganhar 9 mil. (Homem, 21 anos)

Os arranjos construídos nesse mercado vão depender também das


estratégias adotas pelos sujeitos do 33 no processo de compra e venda das
mercadorias. O lucro é colocado em questão quando existe maior ou menor
risco de ser pego, assim, criam-se outras estratégias de forma que a casa não
caia.

Teve uma época, foi 1 ano que eu fui direto, depois eu parei porque
pagava quase o mesmo preço aqui, porque a gente vai conhecendo o
esquema, é melhor pegar aqui na porta. (Homem, 17 anos)

E não é apenas a inserção dos sujeitos do 33 que definirá os caminhos


de aquisição de drogas, as próprias redes construídas dentro desse mercado
contribuem nas estratégias de compra e venda. O contexto de oferta e

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demanda de um tipo especifico de droga, além da dimensão socioespacial


onde ocorre a comercialização das drogas, articulam outros componentes que
dão formas específicas de organização das atividades de venda das drogas.
Essas mudanças, por sua vez, modificam as próprias relações sociais entre os
indivíduos e reestruturam a própria dinâmica e os arranjos construídos para o
sucesso do empreendimento.

Você fica sabendo que em tal lugar tem várias bocas, entendeu? Então
cê vai naquele lugar e fica sabendo qual a melhor droga, cê começa a
pegar com um e já conhece o outro ao redor e assim vai entrando.
Geralmente é assim, geralmente assim, que através de um cê conhece
outro que vende mais, uma droga mais barata, uma qualidade melhor,
mas às vezes. (Homem, 34 anos)

A partir do momento que os sujeitos do 33 se inserem nas redes de


comercialização das drogas abre-se possibilidades de arranjos que vão se
articular com os objetivos empregados para se alcançar o sucesso no
empreendimento ilegal. E como discutiremos mais à frente sobre as
justificativas morais de adesão dos sujeitos ao 33 não se deve apenas ao
sucesso financeiro, mas, também, a outros fatores associados ao status, ao
poder, ao uso de drogas etc.

P – Mas e ai, como é que você buscava essas drogas?


R – Quando você está no crime, você conhece ladrão, você conhece
receptador, você conhece estelionatário, você conhece o traficante,
então você tudo é quanto é modalidade do crime, ai você passa a viver
no subcrime. Então no subcrime tudo que você quiser, você tem em
sua mão, basta ter o dinheiro. Você chegar basta ter o dinheiro, tudo,
né? Hoje se eu quiser nascer de novo, eu consigo. Eu consigo uma
certidão de nascimento, eu consigo uma identidade, eu consigo um
CPF, eu consigo um título de eleitor, eu consigo uma legalização legal
batido pelos carimbos judicial e oficial. (Homem, 40 anos)

Está associado a esse mercado, mesmo com a recusa da acusação da


categoria de traficante ou bandido, implica desenvolver certos tipos de relações

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que são compartilhadas apenas por quem eles acham que estão envolvidos
totalmente no crime, como um dos entrevistados explica. As relações
construídas no tráfico de drogas, entendendo ele como parte de quem vive do
crime, se dão principalmente pelos interesses financeiros e menos por relações
afetivas.

P – Você disse que no tráfico tem sempre que estar atento e disse que
utilizou armas, como que é isso?
R – Então, o tráfico movimenta tudo, ele vende droga, ele vende arma,
ele vende carro.
P – Mas como você conseguiu adquirir a arma?
R – Por meio das drogas, você vende e compra.
P – Mas é fácil comprar?
R – É ué, você tem uma relação com o crime. É tipo você estar dentro
de um hospital, você está na sua área, então tudo ali é mais fácil, se
você pegar um leigo, ele não vai saber pegar esses medicamentos e
distribuir esses medicamentos pras pessoas certas. O tráfico é isso, é
doutorado no sistema. (Homem, 30 anos)

O mercado ilegal das drogas, como veremos mais adiante, movimenta


relações com outros tipos de criminalidades e mercadorias. Se por um lado
existe a própria movimentação das substâncias ilícitas, associa-se a elas
também o tráfico de armas, os roubos de carros – principalmente para troca de
drogas no Paraguai e Bolívia –, pequenos furtos e assaltos realizados por
usuários, especialmente os usuários de crack, com o objetivo de trocar por
drogas. Na outra ponta, movimenta-se também um mercado político onde está
em negociação a proteção de pessoas associadas ao tráfico de drogas, seja
por eles próprios se armando ou comprando a proteção ou a permissão de
agentes estatais que vendem a sua força de trabalho de forma ilegal, ou,
também, os próprios arregos, extorsões e roubos praticados por policiais contra
os sujeitos do 33.
O varejo desse mercado é a parte mais evidente desse tipo de
empreendimento. Nela é onde se encontra a maior parte dos sujeitos do 33 e,
igualmente, o momento em que há maior visibilidade na sociedade ao ganhar
certa notoriedade no dia-a-dia das pessoas. Afinal, o varejo é a parte desse

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mercado criminalizado que é visto pelos bairros, praças, bares, nos noticiários
e nas políticas ostensivas da polícia, e que, por isso, a parte que há a maior
apreensão de sujeitos envolvidos nessa atividade.
Por outro lado, o atacado é mais complicado, pois segue roteiros mais
silenciosos e que poucas vezes se escuta falar, uma parte mais complexa de
ser entendida e enfrentada. Os casos de apreensão de grupos que atuam no
atacado quase sempre só ocorrem após meses e, até mesmo, anos de
investigação, visto que são estruturas que agem de forma estratégica e com
menos relações de comercialização, porém movimentam maior quantidade de
mercadorias e dinheiros em suas transações.
Até mesmo para o desenvolvimento da pesquisa houve dificuldades
maiores para se atingir os dados sobre o atacado das drogas. Primeiro pelo
fato de existir menor número de casos apreendidos e as informações mais
difíceis de serem acessadas e, com isso, de encontrar os sujeitos do 33 que
estejam inseridos nesse contexto do tráfico de drogas. Em segundo, pelo fato
desses sujeitos, quando encontrados, se silenciarem por estarem ainda
vinculados a esquemas de comercialização de drogas que exige um tipo de
fidelidade em que a caguetagem tem um alto custo, mesmo sabendo que as
informações passadas seriam confidenciais.
Enfim, é importante salientar que os arranjos construídos nesse mercado
ganham contornos diferenciados a partir das próprias características
socioeconômicas e socioespacial por onde ocorrem as comercializações dos
entorpecentes e, ao mesmo tempo, as características de cada tipo de droga e
do mercado consumidor envolvido contribuem no processo de territorialização
das drogas que vai além da perspectiva física.
Nesses itinerários de drogas e dos sujeitos do 33 que é possível
perceber semelhanças e diferenças nas dinâmicas de comercialização nas
áreas mais e menos abastadas. Na ponta inicial de distribuição das drogas, o
atacado, o percurso das distintas drogas acaba se assemelhando, as
diferenças começam a serem evidenciadas com a distribuição das drogas que
vai passando por uma diversidade de relações de compra e venda até chegar
ao seu consumidor final.
A comercialização das drogas constrói quatro tipos de estruturas
diferentes e que se articula com a própria dinâmica do mercado ilegal das

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drogas. De um lado, na ponta de distribuição das drogas, o atacado, existe


uma estrutura que denomino de produtor-fornecedor das drogas por onde
começa esse mercado ilegal e que, na maioria das vezes, repassa as drogas
para grupos que chamo de tráfico organizado e, com o processo de
distribuição, que ramifica e dinamiza esse mercado, chegando ao varejo das
drogas, ele ganha dois tipos de características que chamo de tráfico
associado – dividindo em boca e aviãozinho – e o tráfico atomizado, e, como
veremos mais adiante e separadamente, essas 3 últimas estruturas se referem
a modelos de trabalhos criminosos e de organização em que compõem o
mercado ilegal das drogas na Grande Goiânia.
Essa cadeia de comercialização das drogas não segue padrões
específicos, podendo existir arranjos diversos e que podem ser feitos e refeitos
de acordo com históricos de sucesso e fracasso. Por exemplo, um sujeito que
comanda uma boca ao invés de pegar as drogas de outros que estão acima
dele na cadeia de comercialização decidiu buscar diretamente no produtor-
fornecedor das drogas e, com isso, conseguiria a droga mais barata e,
consequentemente, obteria maiores lucros. Ou também, pode ocorrer que o
seu fornecedor tenha caído nas mãos da polícia e, por isso, teve que buscar
outro grupo para lhe fornecer as mercadorias. Na figura 1, pra modelo de
explicação, é possível perceber como os arranjos podem ser múltiplos e não
seguem modelos prontos, afinal depende dos interesses dos sujeitos do 33 e
dos acontecimentos dentro desse mercado.

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Figura 4 – Estruturas de comercialização do mercado ilegal das drogas da Grande Goiânia

Fonte: Pesquisa Sujeitos do 33: um estudo sobre o mercado ilegal das drogas e homicídios na Grande Goiânia, 2014

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O produtor-fornecedor é a parte mais obscura na dinâmica de


comercialização das drogas do mercado ilegal, como ele ocorre para além do
território nacional – Paraguai, Bolívia, Peru e Colômbia – acaba que o
repressão fica a cargo da Polícia Federal nas fronteiras que, dificilmente,
desbarata grupos inteiros. Por outro lado, sabe-se que funcionam como
organizações bem estruturadas e que comandam grandes carteis do
narcotráfico na América Latina.
Pensando nas estruturas presente do mercado ilegal das drogas da
Grande Goiânia, o primeiro deles, o tráfico organizado, vai se articular,
principalmente, por meio de relações verticais de caráter empregatício e que
segue uma dinâmica hierárquica de modelo industrial que distribui funções
específicas que estão de acordo com a venda da força de trabalho e que segue
padrões corporativos de relações comerciais. Nesse núcleo fornecedor das
drogas as funções são diversas e dependentes do tamanho das articulações
por onde irão percorrer as comercializações dos entorpecentes.
Do outro lado, na sua forma varejo, o mercado ilegal das drogas vai se
estruturar por meio de duas dinâmicas distintas. Primeiramente, o tráfico
associado que se atribui a grupos, principalmente nas periferias, que atuam em
bocas e que, por sua vez, constrói verdadeiros exércitos formados por
aviãozinhos por meio de relações verticais que, apesar de existir certo grau de
mando e submissão nas relações com o patrão da boca, não possuem caráter
empregatício e, por isso, são relações mais autônomas e pouco obrigatórias
que estão conexas principalmente por acordos comerciais estabelecidos em
torno da fidelidade na compra e venda das drogas. Essas relações de mando e
submissão, como serão analisadas mais adiante, mesmo que o pagamento
quase sempre seja feito com drogas, se dão muito mais pelo fornecimento das
substâncias ilícitas do que o respeito a uma hierárquica de subordinação que
pouco existe. Como a relação comercial ocorre quase sempre de maneira fiada
cria-se um vinculo entre as parte que se dá pelo fornecimento das mercadorias
e das obrigações que esse tipo de relação comercial impõe às partes
A outra estrutura do varejo das drogas, o tráfico atomizado, ocorre por
toda região da Grande da Goiânia, mas, principalmente, no tráfico realizado por
indivíduos pertencentes à classe média, por meio de relações horizontais, e na
maioria das vezes os sujeitos do 33 irão agir isoladamente e de forma

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freelance, dependendo apenas de suas redes de contatos tanto para


conseguirem as drogas quanto para revendê-las, não existindo nenhum tipo de
obrigação ou submissão com o fornecedor.

Quadro 2 – Estruturas de comercialização do mercado ilegal das drogas da


Grande Goiânia

Produtor Tráfico Tráfico Tráfico


Fornecedor Organizado Associado atomizado

Tipos de
Atacado Atacado/Varejo Varejo/Atacado Varejo
atuação

Fora do Brasil - Dentro do Brasil - Na Grande Goiânia,


Principalmente Principalmente Mato nos setores, bairros, Por toda cidade,
Onde atuam
Colômbia, Peru, Bolívia Grosso, Mato Grosso do quadras, pontos fixos não se territorializa.
e Paraguai. Sul e Goiás. e ruas.

Relações
Relações hierárquicas horizontais e
Tipos de Relações hierárquicas Relações hierárquicas
sem caráter momentâneas com
relações de caráter empregatício de caráter empregatício
empregatício a própria rede
social.

Patrões e aviãozinhos,
São múltiplos atores que São múltiplos atores que as funções são O indivíduo atua
Tipos de
vão desempenhar vão desempenhar distribuídas a partir do sozinho e
atores e
funções a partir das funções a partir das fornecimento das desempenham
funções
habilidades técnicas habilidades técnicas drogas e das relações todas as funções.
de confiança.

Podem vender para:


Podem vender para:
o tráfico associado
o tráfico organizado Podem vender para:
o tráfico atomizado Podem vender para:
o tráfico associado o tráfico atomizado
para outros grupos do outras pessoas do
Consumidor o tráfico atomizado para outros grupos do
tráfico organizado e tráfico atomizado
e normalmente não tráfico associado
normalmente não e usuários
vendem para os e usuários
vendem para os
usuários
usuários
Fonte: Pesquisa Sujeitos do 33: um estudo sobre o mercado ilegal das drogas e homicídios na Grande Goiânia, 2014

Apesar de existirem esses quatro tipos de estruturas de atuação dentro


do mercado ilegal das drogas, é preciso compreender que fazem parte de um
mesmo processo e que não é bom de serem analisados separadamente, mas
em um conjunto que se faz e se desfaz de acordo com os sucessos e os
fracassos dos sujeitos do 33. E é importante salientar que esses arranjos só
são possíveis por conta das redes de fornecimento das drogas que vão
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sustentar as relações comerciais que, por sua vez, criam relações morais de
respeito e confiança dentro desse mercado. As relações de confiança entre os
sujeitos do 33, como trataremos no decorrer do texto, ocorrem por meio de
apelos morais de honra e de respeito aos acordos, pois elas são as formas de
se garantir que os comportamentos dos envolvidos não extrapolem para
condutas mais agressivas.
A flexibilidade desse mercado não apenas dinamiza as relações, mas
também as próprias estruturas em que os sujeitos do 33 estão inseridos. Esses
arranjos estão diretamente relacionados com os tipos de drogas e o contexto
social onde elas são comercializadas. Da mesma forma, a própria separação
dessas quatro estruturas do mercado ilegal das drogas é mais uma ferramenta
didática e elucidativa para apresentar as dinâmicas construídas pelos sujeitos
do 33, pois essas estruturas também estão em jogo dependendo dos objetivos
empreendidos e, também, a partir do histórico de sucesso e de fracasso. Dito
de outra forma e exemplificando, é comum que os indivíduos que agem
isoladamente no tráfico atomizado comecem a construir uma estrutura mais
complexa na medida em que o sucesso vai sendo alcançado, podendo ou não,
dependendo dos interesses e das estratégias adotadas, chegar a outros
modelos de tráfico, como o associado ou organizado.
Da mesma forma, existem casos de pessoas que atuam no tráfico por
associação ou no tráfico por organização que, por levar um grande prejuízo ou
com a desestruturação de um grupo ou de uma boca, precisam se reerguer e,
por isso, podem ou não recomeçar no empreendimento de forma
individualizada até conseguir atingir os seus objetivos. Mais ainda, é comum
que outros tipos de atividades criminosas sejam utilizados para reverter essas
situações e, até mesmo, pra sanar dívidas que ficaram pendentes, assim, os
roubos e assaltos são as medidas criminosas mais recorrentes. Isto é, os
próprios arranjos estão de acordo com os históricos de sucessos ou fracassos
desses sujeitos e os interesses que os guiam dentro do tráfico.
As histórias de sucesso e fracasso não apenas ajudam compreender os
arranjos construídos para empreenderem as comercializações, mas também a
própria territorialização desse mercado. A territorialização não pode ser
entendida apenas como espaço físico por onde circulam as drogas, mas,
também, como espaço simbólico por onde percorrem os sujeitos do 33.

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Para compreender melhor a dinâmica espacial do mercado ilegal das


drogas é necessário entender as negociações de identidades entre os sujeitos
do 33 a partir de cada uma das estruturas de comercialização que formam o
tráfico de drogas da Grande Goiânia – o produtor-fornecedor, o tráfico
organizado, o tráfico associado e o tráfico atomizado – e como elas estão
diretamente relacionadas com o próprio espaço físico por onde essas drogas
circulam e com o processo de territorialização desse mercado. Os arranjos
construídos irão depender não apenas dos percursos das drogas, mas,
também, das negociações de identidades de acordo com o sucesso e o
fracasso nesse comércio, e são elas quem irá definir quem é quem na hora de
fazer o 33.
E é nessa oscilação de identidades e das regras morais que os corres
surgem como movimento de comercialização das drogas e que vão traçando
caminhos e, ao mesmo tempo, vão definindo e redefinindo identidades. Os
corres é a ação desse comércio por onde circulam pessoas, identidades,
mercadorias que, por sua vez, vão configurando estruturas igualmente
maleáveis que são feitas e desfeitas a partir da própria dinamicidade que esse
mercado exige. Os corres não é apenas uma categoria e nem simplesmente o
ato de vender drogas, é um elemento central por qual percorrem os sujeitos do
33.

Porque o cara pega a droga e já sai correndo, tá ligado? Ele já toma


um rumo. Ele tem que fazer os corres porque não pode segurar a
droga por muito tempo, o troço é rápido e a gente tem que fazer os
corres. (Homem, 14 anos)

Fazer os corres não é simplesmente o ato de venda e entrega de


drogas, essa categoria representa também a própria dinamicidade que os
sujeitos do 33 empreendem em suas ações e na configuração que
estabelecem em suas relações. Fazer os corres imprime movimento ao próprio
mercado, de que os indivíduos estão em constante mobilidade e interação,
agindo e delineando estruturas com pouco grau de durabilidade e que se
reorganizam de acordo as necessidades que lhes apresentam.

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Os corres não pode ser confundido apenas como a prática do tráfico de


drogas em si, na verdade os corres são as ações dos sujeitos do 33 que vão
além da própria comercialização dos ilícitos, significa, também, o respeito aos
compromissos e a obrigação de resolver os conflitos que esse mercado lhes
apresenta. Isto é, os corres não é apenas a ação física do comércio, mas,
também, um dever moral que lhes é imposto a partir do momento em que
aderem ao tráfico. A dinâmica resultante dos corres flexibiliza não apenas o
modus operandi da atividade no tráfico, mas as próprias estruturas de
comercialização do mercado ilegal das drogas como um todo.

2.3.1 O produtor-fornecedor

A fonte de comercialização das drogas, o produtor-fornecedor, é a parte


mais complicada de se chegar, não somente pela organização em si, que é
muito bem estruturada e possui uma dinâmica empresarial pouco explorada.
Além disso, essa estrutura de produtor-fornecedor não foi possível de ser
encontrada no mercado ilegal das drogas da Grande Goiânia, ela se localiza
numa dinâmica mais complexa do narcotráfico internacional que ajuda a
entender a rota do tráfico até chegar às cidades pesquisadas.
Essa face do mercado ilegal das drogas movimenta centenas de milhões
e milhares de toneladas todos os anos, e seus chefes, conhecidos como os
“barões” das drogas, quase sempre comandam os negócios sem ao menos
estar diretamente envolvido. Eles coordenam grupos muito bem organizados
com estruturas empresariais que tem grande renda no mercado ilegal, e, ao
mesmo tempo, possuem empresas legais de fachada para lavarem o dinheiro
do tráfico e, assim, constroem verdadeiros impérios financeiros à base da
produção e comercialização de drogas.

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Figura 5 – Rota do produtor-fornecedor do mercado ilegal das drogas da Grande Goiânia.

Fonte: Pesquisa Sujeitos do 33: um estudo sobre o mercado ilegal das drogas e homicídios na Grande Goiânia, 2014

Na figura 2 é possível perceber que cada uma das drogas possui uma
rota de comercialização até chegar ao varejo do tráfico na Grande Goiânia. A
principal produtora de pasta base é a Colômbia e a Bolívia que revendem para
o Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás, mas elas também podem ser
adquiridas nesses outros dois Estados, justamente por ser fronteiriços, e

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também do Paraguai que, por sua vez, recebe a pasta-base da Colômbia e da


Bolívia. Em relação à rota da pasta base um dos entrevistados diz:

É o seguinte: eu pagava pra trazer. Pagava 300,00 da Bolívia para o


Brasil. Do Mato Grosso até aqui pagava mais 1.000,00. Saia 1.300,00
de cada quilo. Mas, vinha tudo mexida a droga, chegava faltando.
Nesse meio não tem confiança em lugar nenhum. Meio assim que é
perigoso. Eu já escapei da morte várias vezes. Igual eu ia lá na
fronteira e tudo os Bolivianos eles não são confiáveis. Se você vai com
dinheiro eles te tomam o dinheiro, se você vem com a droga eles te
tomam a droga. Eu fazia o seguinte: eu ia lá sem nada, sem dinheiro e
negociava com boliviano e vinha embora. Lá é perigoso mesmo. Pra ir
com dinheiro e vim com drogas é do mesmo jeito. (Mulher, 33 anos)

O mais comum é que a pasta base seja refinada após ser vendida para
pessoas do tráfico organizado ou do tráfico associado, ganhando assim dois
mercados distintos, o do crack e o da cocaína. Outro fator problemático
encontrado nessa relação de compra do produtor-fornecedor é a falta de
segurança em adquirir a droga, apesar da certeza dos bons lucros ao comprar
diretamente da fonte, corre-se o risco de ter o dinheiro ou a droga roubada,
além da própria possibilidade de ser pego pela polícia no carregamento das
substâncias ilícitas.

P – Vocês tinha contato com o cara do Paraguai lá né?! Mas vocês iam
buscar ou ele trazia. Ah não você falou que tinha um aviãozinho
R – É. Eles que traziam, era muito arriscado né, ai deixava mais pra
eles. (Mulher, 20 anos)

Além disso, outra estratégia adotada é utilizar mulas que são


contratados para irem a esses locais somente para fazer o transporte das
drogas depois do negócio fechado.

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Eu tava vendendo droga e comecei a ver que tava dando lucro. Ai eu


descobri que maconha os cara tava buscando no Paraguai. Ai um cara
falou assim “você vai lá buscar pra mim e tal”, ai eu fui e busquei. Ai eu
comecei a buscar droga lá, Paraguai não, Campo Grande. Eu buscava
a droga lá e eu vendia aqui em Goiânia. Buscava lá e revendia aqui em
Goiânia. (Homem, 33 anos)

Da mesma forma, existem casos em que os próprios sujeitos do 33


negociam e compram as drogas e, no local em que as adquirem, contrata-se
alguma pessoa, principalmente motoristas de ônibus ou caminhão, para fazer o
translado das substâncias para o Brasil e, quando se chega a um local seguro,
elas são entregues e o pagamento pelo serviço realizado.
Em relação à maconha, hoje o principal produtor-fornecedor do mercado
goiano é o Paraguai que, além de produzir, também as adquirem, sobretudo,
da Bolívia e do Peru. Paraguai também é o principal fornecedor de drogas
sintéticas que normalmente tem as suas rotas de produção e distribuição
vindas de países europeus.

P – E onde vocês buscavam a droga? O fornecedor?


R – É, só que o nosso fornecedor ele era do Paraguai, a gente não
conhece ele não, era sempre por telefone, ai veio os aviãozinho que
trazia a droga pra gente, a gente ia no lugar, buscava e ia pra casa
P – E era o mesmo fornecedor de maconha e cocaína?
R – É o mesmo
P – E quantos que vocês compravam mais ou menos a quantidade?
R – Era 50, 150 quilos, nós trazia muito porque a gente distribuía pros
meninos tudinho daqui de Trindade. (Mulher, 20 anos)

Na tentativa de evitar os riscos de sofrer qualquer tipo de roubo ou


apreensão das drogas, alguns entrevistados que as adquirem diretamente da
fonte preferem que elas sejam entregues em mãos, diminuindo os riscos de
prejuízo e de serem pegos, mas, por outro lado, aumentam-se os preços das
mercadorias pelo fato do risco passar a ser do produtor-fornecedor.
Os sujeitos do 33 que atuam no tráfico organizado são os principais
clientes do produtor-fornecedor, mas, também, como veremos, os indivíduos do

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tráfico associado e do tráfico atomizado realizam esse tipo de transação


juntamente com a fonte de comercialização das drogas antecipando as
relações de distribuição e, com isso, aumenta-se o lucros. Apesar da existência
desses casos, eles são mais raros de serem encontrados.

2.3.2 O tráfico organizado

Segundo a peça em audiência, a DENARC, há muito


investigava as condutas perpetradas pelos denunciados, contando para
tanto com a autorização judicial para a quebra de sigilo telefônico para
todos os envolvidos para a elucidação do caso, cujo objetivo final era
desbaratar a organização criminosa que se associava para fins de
tráfico de drogas.
Costa dos autos que João era o chefe da organização e
articulava todos os negócios do grupo. Ele mesmo se encarregava da
tarefa de buscar grandes quantidades de drogas no Estado do Mato
Grosso do Sul, o que ocorria aproximadamente duas vezes por mês.
Apurou-se ainda que, em determinadas ocasiões, João era
auxiliado por Maria, sua companheira, e também, Joana, a qual
mantinha contato com outros traficantes no Mato Grosso do Sul (na
divisa com o Paraguai), os quais não foram identificados.
Conforme apurado, a droga era adquirida por “atacado” e,
chegando a esta cidade, era estocada no endereço supramencionado e
posteriormente comercializada a grupos menores da cidade de
Goiânia, Distrito Federal e algumas cidades de Minas Gerais.
Por sua vez, Maria, além de auxiliar seu amásio em algumas
viagens, era a pessoa que cuidava das finanças da organização (era a
“tesoureira” dos negócios), sendo que os pagamentos provenientes das
transações ilícitas eram realizados em conta corrente de sua
titularidade.
Restou também apurado que o papel de Pedro na organização
era fundamental, sendo que ele, com uso de documentos pessoais
falsos, alugava a casa onde foi localizada e apreendida. Além disso,
Pedro, de forma esporádica, realizava o transporte das drogas do
Estado do Mato Grosso do Sul para esta cidade e, chegando aqui,
negociava o repasse de alguns “produtos” e a forma de pagamento
destes com terceiros interessados.

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É dos autos que Pedro era considerado o braço direito de João


e, na ausência de Maria (quando esta acompanhava seu amásio até o
Mato Grosso do Sul), era o principal responsável pelas movimentações
financeiras do grupo, bem como aquele que, por vezes, delegava aos
outros integrantes da organização a tarefa de vigília e manutenção do
local do deposito das drogas. Outra função levada a efeito por Pedro
era o de realizar um verdadeiro “controle de qualidade” da mercadoria,
momento em que separava as unidades “boas” das “ruins”, chegando
até reclamar junto aos fornecedores.
Contam os autos que José também possuía importante posição
na organização criminosa, sendo que, além de outros serviços
pessoais realizados para João, cabia-lhe o recebimento de algumas
“mercadorias” e ainda a demonstração de amostra do “produto” a
possíveis compradores nesta cidade (Aparecida de Goiânia) e também
em Goiânia. José ainda recebia alguns pagamentos e, em algumas
ocasiões, dirigia-se até a “casa do depósito” para verificar o local e
também proceder a vigília das drogas.
Apurou-se também que Paulo era irmão adotivo de Maria e
também integrava o grupo criminoso, contudo, valia-se de realizar
serviços suplementares e de importância reduzida para João e sua
companheira. E, por fim, Francisco que tinha apenas a tarefa de vigiar
o “estoque” das drogas. (Prontuário número 14)

A principal característica do tráfico organizado é que seus arranjos de


comercialização se aproximam de um modelo empresarial com divisões de
trabalhos bem definidas e estão submetidas a uma organização hierarquizadas
de caráter centralizado que apresentam modelos mais ou menos rígidos em
que a autonomia dos envolvidos quase não existe e, ao mesmo tempo, há
certa vigilância nas realizações de cada atividade e as relações entre patrão e
empregado se dão por meio de acordos assalariais ou pela participação nos
lucros obtidos pelo grupo criminoso.
As funções ocupadas pelos sujeitos no tráfico organizado variam de
acordo com o tamanho do grupo. Como no caso exemplificado, é possível
perceber que a organização é centralizada em torno de um indivíduo que
desempenha o papel de coordenação do grupo e deliberando aos demais
outras funções de acordo com as relações de confiança. Portanto, as funções
não ocorrem pela habilidade técnica para desempenhar determinado posto,

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mas sim pelas relações de confiabilidade para exercer atividades que não
podem ser delegadas a qualquer um, como, por exemplo, a função de
tesouraria.
Da mesma forma que o produtor-fornecedor das drogas, existe certa
dificuldade em encontrar sujeitos do 33 que estejam envolvidas no tráfico
organizado e, com isso, conseguir informações mais precisas sobre as
dinâmicas de funcionamento desse tipo de estrutura. Ainda mais, muitos
patrões envolvidos nessa estrutura de tráfico possuem vida social de classe
média e classe média alta, tendo influência até mesmo nos meios políticos.
Além disso, muitos desses chefes também não se envolvem diretamente nos
esquemas, ficando a cargo de pessoas de sua confiança coordenar os
esquemas de comercialização desse mercado.
Outro fator que dificulta é que, mesmo com a possibilidade de entrevistar
alguns sujeitos que estejam presos e que fazem parte dessa estrutura de
tráfico, eles possuem uma conduta de silenciarem, pois existe muito medo de
serem considerados delatores e, ainda, pelo fato de que o grupo do qual
participam continua a atuar na comercialização das drogas e a pagar suas
despesas dentro do presídio e com advogados.
Uma coisa que é passível de ser identificada é que a estrutura do tráfico
organizado se torna cada vez mais evidente no mercado ilegal das drogas.
Como veremos no processo de territorialização dele na Grande Goiânia, exerce
papel importante de controle comercial sobre determinados espaços das
cidades. Em um dos casos recentes, a operação “O poderoso chefão”, teve a
apreensão de um grupo composto por cinco pessoas coordenadas por um
indivíduo que já se encontrava preso no Complexo Prisional de Aparecida de
Goiânia e que ordenava todas as atividades da organização de dentro do
presídio.
O grupo era investigado a mais de um ano pela polícia civil goiana, além
do líder do grupo, as demais pessoas ocupavam funções que iam desde os
cuidados financeiros do grupo, gerência do tráfico, repasse das drogas até
chegar aos “químicos” que, por sua vez, as refinavam e, posteriormente, eram
repassadas às bocas. No total foram apreendidas 14 armas de alto calibre, 451
quilos de pasta base que, segundo os dados da polícia, iriam gerar

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aproximadamente 1,3 milhões de pedras e movimentar por volta de R$ 13


milhões de reais.

Mas, se tratando de grandes traficantes, que trazem


toneladas de drogas de outros Estados e países, o esquema funciona
diferente. Eles não costumam ter local determinado de ação porque
fornecem para vários outros traficantes de médio e pequeno porte.
No caso da prisão de André Luiz, a Polícia Civil conseguiu identificar
onde era o laboratório e o dono. André foi preso em casa. “Mas isso
foi possível porque tínhamos prova de que a droga era
dele. Normalmente ele não está na rua, mas em casa de luxo,
andando em carros caros, longe de suspeitas”. O grupo dele
comercializa cerca de 200 quilos de pasta-base da droga por mês. Isso
corresponde à média mensal de R$ 2 milhões mensais. Ele e o grupo
distribuíam a pasta-base para 42 pontos em Goiânia e Aparecida.
André era investigado desde o ano passado, quando estava
preso. E, mesmo de dentro do presídio, ele coordenava as ações. Com
o grupo dele, foram encontradas diversas armas de uso restrito. Em um
apartamento na Vila Rosa, encontraram fuzis
israelenses, metralhadores e pistolas de uso da Força
Nacional. Também foram encontradas munições e as drogas em outro
apartamento do grupo, no Parque Amazônia. Ele e mais quatro
pessoas foram presas na operação denominada Poderoso Chefão.
Após o refino da droga, entregavam nas bocas.
Cada quilo de pasta-base pode produzir dez quilos de crack,
que pode corresponder a uma média de três mil pedras. O
carregamento trazido pela dupla poderia produzir mais de 1,3 milhão
de pedras. Como o preço médio das pedras gira de 10 reais, eles
arrecadariam média de R$ 13 milhões. (Notícia 6: LIMA, Cristiana. O
Hoje, 02 de mar. de 2014).

Para o funcionamento da estrutura do tráfico organizado, além das


distribuições de funções e tarefas, é necessário que ele articule um tipo de
proteção que garanta o domínio de comercialização das drogas sobre os
territórios onde se localizam os seus clientes. Então, se torna normal, não
apenas na estrutura do tráfico associado, como veremos na questão da
territorialização do mercado ilegal das drogas, que os grupos do tráfico
organizado se armem com o objetivo de garantir a prevalência nos negócios e,

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ao mesmo tempo, para evitar o roubo de mercadorias por outros grupos de


traficantes.
Enquanto o produtor-fornecedor trabalha normalmente com apenas um
tipo de mercadoria, ou no máximo dois, no tráfico organizado ele não é
limitado, uma vez que essa estrutura funciona como armazenagem de
distribuição de substâncias ilícitas que irá depender das demandas que o
mercado consumidor lhe coloca. Aqui pode existir ou não uma escala de
repasse entre estruturas maiores para estruturas menores do tráfico
organizado, podendo ser desfiado por vários grupos até chegar ao varejo do
tráfico. Essa dinâmica de repasse aumentaria o preço das mercadorias pela
necessidade de se ter o lucro em cada etapa.

P – Mas nisso você vendia direto pra outra traficante? Não era no
varejo não né, pouquinha quantidade pra um e pra outro?
R – Não, não, eu só entregava acima de 10 quilos. Então eu já sabia
pra quem eu ia entregar.
P – Então você vendia pras bocas né?
R – Exatamente. Eu vendia pra uma boca X e ai se ramificava,
entendeu? (Homem, 43 anos)

Até chegar ao tráfico associado ou ao tráfico atomizado pode passar por


uma longa distribuição entre grupos de tráfico organizado, como é possível
perceber na figura 1, ou, algumas vezes, pode ser que essa relação seja direta,
principalmente quando grupos começam a crescer e a dominar certos
territórios nas cidades. O processo de crescimento dentro do tráfico será
tratado quando for analisada a estrutura do tráfico associado na Grande
Goiânia.
Outra característica que define o tráfico organizado é que ele distribui as
drogas por todas as regiões da Grande Goiânia, em alguns casos, como
analisaremos mais à frente, ele mantém certo domínio sobre determinados
territórios da cidade a partir das relações comerciais que estabelecem com as
bocas no tráfico associado e, ao mesmo tempo, ele também fornece para
outros indivíduos que trabalham sozinhos por meio do tráfico atomizado. Por
isso, entende-se que o tráfico organizado age tanto como fornecedora de

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drogas nas áreas mais nobres quanto nas periferias da Grande Goiânia, o que
varia são os tipos e as qualidades de substâncias comercializadas.
É preciso entender que os grupos do tráfico organizado geralmente
surgem a partir de uma tendência que se deve ao crescimento de grupos do
tráfico associado em que os chefes ou donos de bocas deixam de trabalhar no
varejo do tráfico e começam a atuar no atacado, e as suas antigas bocas e as
novas que se abrem passam a ser controladas por seus antigos aviãozinhos,
que viram os novos donos das bocas, e aquela relação anterior passa ocorrer
principalmente pelo fornecimento das drogas, em que se exige uma relação de
fidelidade entre o tráfico organizado e o tráfico associado, caso contrário pode
existir uma relação conflituosa em que o primeiro, se achar necessário, toma a
boca para si e coloca outra pessoa pra comandar.
Uma das entrevistadas, que comandava um grupo com estrutura de
tráfico organizado, diz ter começado os corres como aviãozinho para uma
boca, com os constantes lucros e o crescimento das vendas decidiu montar
sua própria boca, e assim, seu antigo fornecedor, além de sustentar as drogas
da própria boca, começou a fornecer a ela quantidades maiores e, dessa
forma, ela já foi colocando outras meninas e meninos para trabalhar como seus
aviãozinhos. Durante esse período ela conheceu outro traficante com quem
manteve um relacionamento amoroso e, depois de algum tempo, decidiram
expandir os negócios. Eles deixaram de atuar na boca e seus aviãozinhos
começaram a montar pequenas bocas e, assim, ela e o marido, por sua vez, se
tornaram os fornecedores das drogas dessas pequenas bocas, deixando o
varejo e passando a atuar no atacado. Mesmo assim, nessa transição, eles
decidiram continuar utilizando estrategicamente alguns aviãozinhos para fazer
esse tráfico direto no varejo e, em algumas festas particulares, eles mesmos
vendiam as mercadorias.

P – Porque vocês só traficavam em rua?


R – É. A gente ficava na cidade em geral
P – Essa pessoa que estavam com vocês ficavam onde?
R – Eram espalhados, cada setor tinha dois, três, quatro, porque não
podia ficar todo mundo numa só região senão não bastava.
P – E vocês forneciam em outras bocas?

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R – Fornecia
P – A quantas bocas que vocês forneciam?
R – Quatro. Que a gente buscava, fornecia pras quatros, e os quatros
liberavam para os outros meninos. (Mulher, 20 anos)

Essas pequenas bocas não surgem do nada, na verdade existe uma


demanda de consumidores e uma análise das possibilidades de sucesso do
empreendimento no território onde ela será instalada. E cada vez que o sujeito
cresce nos corres, montando novas bocas ele vai deixando gradualmente o
varejo do tráfico e começa a atuar em um pequeno atacado. Ele sai de uma
estrutura de tráfico associado e se torna chefe no tráfico organizado, e os
aviãozinhos, que ficavam na ponta da distribuição, dependendo do grau de
relação de confiabilidade, podem ou não trabalhar com ele nessa nova
estrutura ou estarão no comando dessas novas bocas.

P – Você chegou a montar uma boca?


R – Montei 3 boca tudo aqui em Trindade, tudo em pontos diferentes.
Era tudo meu, a casa, os barracos.
P – Tudo funcionava ao mesmo tempo?
R – Tudo funcionava ao mesmo tempo, só que eles pegava a um preço
e eu vendia a eles a um preço, e eles vendia a outro. (Homem, 21
anos)

Esse modelo de crescimento, como veremos, expande o mercado ilegal


das drogas e, ao mesmo tempo, acirra as disputas pelo controle de territórios.
E esse processo de abrir bocas e colocar aviãozinhos no comando dos novos
empreendimentos muda toda configuração do próprio mercado. Se antes os
aviãozinhos agiam em relação ao comando da boca, alguns deles vão passar a
comandar pequenas bocas e o antigo dono da boca, por sua vez, passa a lhes
fornecer as drogas, deixa de agir no tráfico associado e passa a atuar no tráfico
organizado. Para compreender melhor essa relação de crescimento dentro do
mercado ilegal das drogas é necessário mostrar a dinâmica de funcionamento
e quem são os sujeitos do 33 que atuam na estrutura do tráfico associado.

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2.3.3 O tráfico associado

2.3.3.1 Patrões e aviãozinhos

Consta dos autos que policiais civis lotados na DENARC, cerca


de 20 dias antes dos fatos ora narrados receberam denúncia anônima
de tráfico de drogas que estaria ocorrendo numa certa pizzaria em
Goiânia.
Visando apurar a veracidade dos fatos noticiados, dirigiram-se
os agentes para o citado endereço, onde, por volta das 21h30min,
viram quando a pessoa de João chegou, conversou com o indiciado
Pedro, sócio proprietário da pizzaria e, após receber algo deste, saiu
rapidamente do lugar. Resolveram os agentes abordar João, sendo
encontrada com o mesmo uma porção de cocaína. Indagado a respeito
da droga, informou João tê-la adquirido pelo preço de R$ 10,00 do
indiciado Pedro. Diante de tal informação, retornaram os agentes para
a pizzaria, onde abordaram o indicado Pedro, que confirmou a entrega
de droga a João, sendo com ele encontradas dentro de sua carteira
mais duas porções de cocaína. O indiciado Pedro, ainda, mostrou aos
policiais mais sete porções da droga, que estavam escondidas no
banheiro da pizzaria.
Questionado sobre a origem da droga encontrada informou o
indiciado Pedro tê-la adquirido do indiciado Paulo que mantinha uma
boca e que sempre lhe repassava as drogas.
Incontinente, para a residência do indiciado Paulo, se
deslocaram os agentes, onde ficaram de campana. Por volta das
22h30min, viram o indiciado Paulo, em companhia de sua namorada, a
adolescente Maria. Resolveram abordar os dois, apreendendo, dentro
do bolso da blusa que Maria usava, duas porções de crack que,
segundo ela, pertencia ao indiciado Paulo. Prosseguindo com as
diligências, entraram os agentes na casa do indiciado, onde foram
encontradas, escondidas debaixo de uma pia, mais quatro porções de
cocaína, quatro porções de maconha e uma porção de haxixe.
Diante dos fatos, foi dada voz de prisão aos indiciados Pedro e
Paulo. (Prontuário número 78)

O tráfico associado é a estrutura de comercialização do mercado ilegal


das drogas mais evidenciada pela sociedade e a mídia e, ao mesmo tempo, a
mais combatida por agentes da segurança pública. Essa dinâmica, por ganhar

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maior notoriedade nas representações cotidianas, acaba influenciando a


percepção social como um todo do que seria o tráfico de drogas na Grande
Goiânia e, assim, como se discutiu anteriormente sobre o processo acusatório
da categoria traficante, criaram-se rótulos sobre determinados grupos que os
definiriam como predispostos ao cometimento desse tipo específico de crime.

Fonte: Pesquisa Sujeitos do 33: um estudo sobre o mercado ilegal das drogas e homicídios na Grande Goiânia, 2014

A partir da coleta de dados no Complexo Prisional de Aparecida de


Goiânia constatou-se que a maior parte dos condenados por tráfico de drogas,
74,8%, atuam na estrutura do tráfico associado, seguido de 15%, do tráfico
atomizado, e, apenas, 10,3%, do tráfico organizado. Mesmo com a
compreensão de que a maior parte dos sujeitos envolvidos no mercado ilegal
das drogas pertence a essa estrutura, também é de conhecimento que essa é
a faceta mais enfrenta pela força do Estado.
Essa percepção social fica evidente porque a estrutura do tráfico
associado ocorre, sobretudo, nas periferias das cidades por meio dos patrões
das bocas que constroem verdadeiros exércitos de jovens e adolescentes que

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trabalham para eles como aviãozinhos. Portanto, aviãozinhos e patrão são os


sujeitos que protagonizam essa trama. São categorias nativas e, também, não
fixas, que vão variar dependendo das justificativas criadas para as suas ações.
Ser aviãozinho ou ser patrão, da mesma forma que esse mercado, é um
próprio movimento dessas categorias que não vai depender apenas da posição
que se ocupa nesse jogo, mas, sobretudo, uma forma de se identificar a partir
das relações de mando e submissão que se estabelecem em relação ao outro.
Apesar de existir certo grau de mando e submissão nessas relações,
elas não possuem caráter empregatício e, portanto, são relações mais
autônomas e pouco obrigatórias que estão conexas principalmente por acordos
comerciais estabelecidos em torno da fidelidade de compra e venda da droga.
Essas relações de mando e submissão se dão muito mais pelo fornecimento
das drogas do que o respeito a uma hierárquica de subordinação que pouco
existe. São esses acordos em torno do fornecimento das drogas que sustentam
as relações de mando e submissão que, por sua vez, criam relações morais de
respeito e confiança dentro desse mercado, desde que os esses sujeitos
aprendam a respeitar a palavra e os compromissos estabelecidos no tráfico.
A boca é chefiada por esse patrão que, além de ser responsável pela
aquisição das drogas, é quem coordena e distribui as funções dos aviãozinhos
que vão atuar, principalmente, nas ruas e, outras vezes, na própria boca,
dependendo da relação de confiança construída com o chefe. A dinâmica de
funcionamento de uma boca pode variar de acordo com o seu tamanho, e as
funções internas são diversas, mas quase sempre passa pela gerência,
organização do estoque e a distribuição das drogas entre os aviãozinhos.

P – Como que é?
R – Quando você entra numa boca você já vê, o que sempre te recebe
é o soldado, o que está sentado é o gerente e o que recebe o dinheiro
é o traficante. Então eu chego na boca aqui, então eu vou compro essa
pedra aqui, antes de eu pegar ela eu pago, pago pra você ai já pego e
saio. (Homem, 18 anos)

Os aviãozinhos, além de desempenhar os serviços dentro da boca, vão


agir, principalmente, fazendo os corres dos entorpecentes nas ruas, em pontos

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estratégicos, que vai desde cruzamentos entre avenidas, boates, bares e até
pontos comerciais. Enquanto a boca normalmente é uma casa alugada e,
portanto, fixa a um determinado espaço, os aviãozinhos são as peças móveis
que dinamizam o tráfico associado, e ambos vão se territorializar de acordo
com os interesses do patrão e o crescimento da boca.

P – Agora sobre os clientes, os cara que compravam de vocês. Como


que vocês faziam essas entregas? Eram vocês mesmo que faziam ou
os aviãozinho que trabalhavam pra vocês?
R – Assim o mais vips que eram os mais ricos ai a gente que atendia
P – Era quantidade maior?
R – É ai a gente mesmo levava. Agora pequenas quantidades os
meninos mesmo que levavam, os aviãozinho que a gente tinha, a gente
entregava pra eles e eles levavam. Cada um tinha um radio e se não
desse fazer um corre ali passava pro outro. (Mulher, 20 anos)

As funções desempenhadas dentro da estrutura do tráfico associado vão


depender também, além das relações de confiança, do grau de importância dos
acordos comerciais. Enquanto as comercializações menores ficam a cargo dos
aviãozinhos, as maiores transações geralmente são realizadas pelos próprios
patrões. Além disso, o tráfico feito pelos aviãozinhos não se restringe a pontos
fixos, mas, também, a certos eventos e festas em que há demanda de drogas
ilícitas.

P – Você falou que vocês faziam muito em festa. Que tipo de festa?
R – Essas festas que rolam som automotivo, sertaneja, essas festas,
todas essas que a gente ia a gente levava cocaína. (Homem, 16 anos)

Além dos próprios aviãozinhos, é bastante comum na estrutura do tráfico


associado o uso de moto-taxistas e de taxistas que fazem as entregas de
drogas para patrões de bocas, seria uma parte importante do delivery da
comercialização das drogas.

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Eu tenho os meus motoboys de confiança, eles faz as entregas quando


preciso, eu pago uns 80 reais por viagem quando a quantidade é
grande, a polícia não para eles. Os motoboys não recusam esses
servicinhos, pois eles demoraria 5 viagens para ganhar o que ele
ganha em apenas 1. O que eles ganham não conseguem sobreviver
apenas com essas viagens com passageiros. Com os motoboys o risco
de perder a droga é menor e também ser pego no flagra diminui muito,
uma forma de fazer o corre mais de boa e mais seguro. (Homem, 26
anos)

O aviãozinho é quem dinamiza a estrutura do tráfico associado,


percorrendo ruas, praças, bares, boates, festas e, por isso, são os que mantêm
relação direta com o consumidor. Como já foi dito, grande parte dos sujeitos do
33 que atuam no tráfico organizado e no tráfico associado começaram no
mercado ilegal das drogas como aviãozinhos e, com a obtenção de sucesso
nos corres, cresceram e se tornaram patrões de bocas ou chefes de grupos
organizados do tráfico.
A adesão dos sujeitos na estrutura do tráfico associado vai variar de
acordo com os interesses que os guiaram para começar os corres. E essas
adesões passam por um processo de alegação em que procuram justificar os
motivos de suas entradas no mercado ilegal das drogas.

2.3.3.2 Por onde que se começa

É possível dizer que a maior parte dos sujeitos que fazem os corres no
mercado ilegal das drogas se encontram na estrutura do tráfico associado, até
porque ela é a parte que tem maior facilidade de adesão e que, normalmente,
começa ainda na fase de criança para a adolescência e por meio dos serviços
de aviãozinho.

Tudo começou quando tava com 10 anos de idade. Meu pai era um
verdadeiro pé-de-cana, a gente tinha muita dificuldade financeira
dentro de casa, faltava alimentação e roupa. Sempre desejei ter as
coisas, mas era impossível. A grana dos meus pais era muito curta e

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não dava para as despesas da casa. Sempre tive vontade de ter as


coisas, queria muito um bom chinelo e umas roupas maneiras. Ai um
traficante da região me pediu para eu fazer algumas entregas para ele.
Ele me passava uma caixa de sapatos e me falava onde tinha que
entregar, mas que eu tava proibido de olhar o que tinha dentro da
caixa. Não olhar fez com que a minha curiosidade só ficasse grande ai
decidi abrir. Ai na hora vi que era drogas. Ai cheguei nele depois e bati
a real, que era tenso. Ai me disse que tinha que ficar calado e que seria
beneficiado caso fizesse esses “corres” pra ele, ai seria o bebê dele,
seria protegido por ele e ele me daria o que eu tava precisando.
(Homem, 22 anos)

A adesão ao tráfico associado pode ocorrer de duas formas, a primeira


delas é quando patrões pedem para que garotos e garotas da região onde
esteja instalada a boca comecem a fazer pequenos serviços de entrega e, em
troca, gratificam-nos com presentes que vão desde roupas, brinquedos e
bicicletas. A troca do serviço prestado por gratificações constrói um tipo de
vínculo social que aproxima grupos até então distantes à base da proteção e
da assistência mútua.

P – Como você chegou a trabalhar com droga?


R – Ah, isso foi antes dos 10 mesmo. Com uns 10 anos o rapaz chegou
em mim, cara doido que morava no setor.
P – Ele tinha boca?
R – Tinha boca, só que ele tinha mais esses menininhos fazendo
aviãozinho mesmo. Ai ele falou que tava precisando de uns moleques,
ai falei “depende, pra que que você quer?” “pra vender droga” “uai, que
que é?”. Ai ele começou a mostrar pra mim, quantas pedras que eu
ganhar em cima de 10. Ai ele foi conversando comigo. (Homem, 30
anos)

Em outros casos, a relação entre o patrão e o aviãozinho já é puramente


econômica, mas sem vinculo empregatício, cujos ganhos ocorrem por meio dos
serviços prestados e o pagamento, na maioria das vezes, é realizado por
porções de drogas encima daquelas quantidades que o aviãozinho irá entregar.
A adesão nem sempre parte do patrão aliciando os aviãozinhos, existem
casos em que esses meninos e meninas oferecem suas forças de trabalho de

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acordo com os seus interesses em jogo, que estão de acordo com os motivos e
as justificativas que os levam a aderirem ao 33.

P – Tinha mais pessoas que trabalhavam pra vocês ou era só vocês


dois?
R – Tinha, nós fornecia pra eles. Era os meninos, os aviãozinho que
fica na rua
P – Ele tem o vinculo, mas não é empregado?
R – É, não é empregado isso. Era seis, sete, nos pegava era mais
esses meninos mais novinho. Sempre são menores de idade, menina
também. Eu mesmo nunca ofereci, eles vinham me procurar. Ouviam
pelas boca de outras pessoas sei lá o que passa na mente dessas
pessoas chegava na gente ou chegava no menino “Ow eu tô
sem dinheiro e tô afim de vender uma droga, me ajuda ai”, ai a
gente dava um prazo e um pedaço, ai a gente esperava o dinheiro.
(Mulher, 20 anos)

Além disso, é muito comum, pelas redes de amizade dos aviãozinhos,


que os novos meninos e meninas que entram para a dinâmica do tráfico
associado sejam indicados pelos próprios amigos que trabalham para o patrão
da boca. Um dos patrões entrevistado vai dizer que muitos dos garotos que
começaram na boca para ele foi a partir das relações de amizades de seus
aviãozinhos com os amigos de infância.
Outras vezes garotos das redes de amizade dos aviãozinhos chegam
diretamente no patrão da boca e se oferecem para fazer alguns corres.

Mas chegava os meninos te indicando?


Muitos, muitos, muitos. Te muitas pessoas falava assim “nossa, tem um
ponto ali assim e assim, eu queria vender uma droga lá”, ai eu
falava “como que é? Quem que administra o lugar lá?”. Tanto é que
eu não me jogava patrão, eu nunca me joguei como patrão, sempre
como aviãozinho, eu falava “o cara tá me fortalecendo assim, eu posso
ver se ele pode fortalecer você do mesmo tanto”, mas nunca, eu que
tava pegando a droga e pondo no cara. Tudo é na lábia, pra você se
mostrar mais baixo e não superior. Quanto mais alto, maior o tombo.
(Homem, 21 anos)

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Há também, como afirmou um dos patrões entrevistados, uma


observação em relação ao comportamento dos meninos e das meninas, seja
nas ruas ou em festa, em busca de encontrar novas pessoas pra trabalhar
como aviãozinhos, principalmente aqueles que se destacam pela atitude.
Portanto, a atitude, se torna um elemento importante na hora de selecionar
quem vai trabalhar pro patrão, pois é preciso, segundo o entrevistado, um
comportamento de esperteza e saber lidar com as piores adversidades.

P – Eu fiquei imaginando aqui, como é que você escolhia os meninos


pra trabalhar pra você?
R – Não, isso é os frevos, as festas que você faz. Você vê a atitude da
pessoa, você sai assim, você pode tá com mil reais no bolso e falar
assim, chegar no cara, “tô precisando de um dinheiro, eu tenho um
ponto ali fácil” “demorou”, muitos você acha desse jeito. (Homem, 26
anos)

A maior parte dos sujeitos que se envolvem nessa ponta do varejo do


mercado das drogas entra ainda adolescente e, em sua maioria, são garotos4 a
partir dos 10 anos de idade que, devido a pouca idade, são os mais vulneráveis
aos aliciamentos e por estarem numa fase importante de construção de
identidade em que o consumo é fator determinante de pertencimento e
prestígio entre os próprios meninos e as garotas. Além disso, a menoridade se
torna estratégica pelo fato de chamarem menos atenção da polícia.
As relações que os aviãozinhos estabelecem com o patrão da boca,
como já foi dita, apesar de ser uma relação vertical e hierárquica, não são de
caráter empregatício. O fornecimento das drogas é o elemento de ligação entre
as duas partes que se firmará por meio da confiabilidade que vão construindo a
cada nova entrega das substâncias ilícitas.

4
Ao mesmo tempo em que esse estudo foi realizado, a minha colega Marcilaine Martins da Silva
Oliveira está desenvolvendo o trabalho intitulado de “‘Donas da boca?’ Um olhar sobre a presença das
mulheres no tráfico de drogas”, cujos resultados mostram que a adesão de mulheres no mercado ilegal
das drogas tem se tornado muito frequente. Se antes a adesão delas ocorria a partir de relações afetivas
com pessoas que eram envolvidas no tráfico, hoje o número de mulheres que se envolvem por decisões
próprias se tornou mais frequente, um processo que tem acompanhado o surgimento de certo
protagonismo feminino na criminalidade urbana.

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Ai teve até um certo ponto que parei de pegar a pedra com ele picado e
comecei a pegar no pedaço, já pegava pra mim mesmo. (Homem, 34
anos)

A adesão pelo fornecimento das drogas pode ocorrer de duas formas,


primeiro, como já colocado, por meio de serviços de entrega em que os
aviãozinhos irão ganhar a partir da quantidade vendida, nesse caso, quase
sempre, eles ficam com uma parte do total das drogas a ser entregue, cabendo
a eles a decisão de consumirem ou revenderem a parte que ganham.
A outra forma é o patrão repassar uma pequena quantidade de drogas
ao aviãozinho e, caso a devolução do dinheiro seja correta, nos novos
repasses aumenta-se a quantidade de drogas e o nível de confiança nessa
relação.

P – Como foi que começou a vender?


R – Ai eu comecei a usar merla e fazia tipo, a gente explicito, talvez
vocês teja fazendo isso, vocês deve conhecer um pouco, vocês deve
ter ido na DENARC né? Então, eu era tipo um aviãozinho. Eu ficava o
dia inteiro, o traficante gostava de me passar a droga na casa dele,
tinha uns aviãozinho, uns moleques do setor, os moleque mais
conhecido, que era envolvido no crime, igual eu, eu ficava naquela,
ficava beirando um bar, beirando alguma coisa, onde não tinha
traficante e nem droga.
R – Você disse que ficava ali perto de um bar como aviãozinho, mas
como foi que começou? Um cara te chamou pra trabalhar com ele?
P – Não, eu fazia porque queria usar droga. Tipo assim, ele não pedia,
traficante nenhum pede pra alguém ajudar ele. Ele só quer vender a
droga. E ficar com medo de que? Da polícia. Porque a polícia vai ali
pra que? Pra pegar o dinheiro, se ele não der o dinheiro vai prender
ele [...] [...] Mas eu ficava ali, pelo meu vício, pela minha droga, por
vontade de usar minha droga, de conseguir a minha droga, ficava ali
esperando um chegar ali e pedir tanto. Eu ia lá e pegava metade do
tanto, pegava um pouco, tirava o dele e pegava o meu. E nessa eu ia
juntando o meu. Eu ia fumando ou se eu passo pra fumar eu ia parar
no tempo, ou senão eu ia tirando o dinheiro. Chegava a noite eu ia lá e
pegava o meu, o cara via que toda hora eu ia lá, ele via “não, esse
moleque ai tá me ajudando”, “eu não tô precisando sair daqui”, “ele

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não trás ninguém aqui”, “eu posso confiar nele”, “se a polícia
pegar ele, ele vai apanhar na rua e inventar qualquer outra
história ou falar alguma coisa”, “a polícia tortura ele, bate nele, mata
ele, mas não dá nada pra mim”. (Homem, 33 anos)

A partir do momento que se constrói essa relação de confiança os


aviãozinhos são vistos pelos patrões das bocas como os seus “bebês”.

P – Você faz entrega de drogas como?


R – Eu não faço entrega de droga, eu só olho ela. Eu só faço o contato,
eu ligo, chegou pra mim, quem faz as entrega são os meus bebês
P – Porque Bebê?
R – Bebê é modo de falar, de tratar os funcionário assim, de bebê, é o
carinho que a gente pede “mata fulano”, ai a gente chama de bebê.
(Homem, 22 anos)

O bebê precisa ser alimentado no tráfico e a relação de confiança é a


base de crescimento. A cada repasse da grana correta, se não dedurar, se
não derramar a droga, tudo isso conta no crescimento no tráfico associado, e,
portanto, maior vai ser a moral do bebê com o patrão e, consequentemente, a
posição dele dentro do grupo. Em contrapartida, alguns aviãozinhos vão dizer
da admiração que construiu em relação aos seus patrões.

P – Vocês meio que idealizavam o cara, mas também eles davam


atenção pra vocês né?
R – Pelo menos era gente boa o cara. Se a gente tivesse precisando
de alguma coisa ele tava do nosso lado. Se alguém te batesse, como
eu não tinha muito ninguém, não tinha pai, minha mãe vivia
trabalhando, ele me ajudava. Se mexesse com um muleque ai e tal,
ele colocava uma arma em minha mão, ai fala “mete a Bala desse
cara” ou “vamo lá e tal” e assim vai. (Homem, 26 anos)

O patrão não exerce apenas uma relação comercial, mas, também, um


tipo de vinculo afetivo, de cuidado e proteção, que muitas vezes o aviãozinho
não vivenciou no âmbito doméstico. Essas redes de sociabilidade são
importantes para situar o seu lugar no tráfico de drogas e os tipos de relações
que irão estabelecer. E os símbolos e as interações que compartilham que

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determinam o sentido atribuído às suas próprias ações que, por sua vez,
estarão relacionadas com os “vínculos de acordo com o grau de importância
em sua vida, seja por proporcionar ajuda financeira, sobrevivência,
suporte material ou de serviço, solidariedade, apoio social, afetivo,
emocional e econômico” (MEDEIROS, Regina, 2008, p. 02). Contudo, para que
esse tipo de relação tenha durabilidade é necessário que se respeite os
compromissos e, sobretudo, a palavra no “mundo bandido”, porquanto ela
quem separaria os homens dos meninos no tráfico.
Além disso, a forma de repasse das drogas do patrão para os
aviãozinhos fideliza a relação entre as partes, uma vez em que se compreende
que essas transações quase sempre ocorrem de maneira fiada e com prazos
determinados a serem cumpridos. Dito em outras palavras e exemplificando, o
patrão coloca nas mãos de um de seus aviãozinhos certa quantidade de
drogas e o pagamento delas deve ser realizado no prazo de uma semana, caso
contrário, se não existir uma argumentação contundente que justifique o atraso
da dívida, as relações entre eles se desgastam e, dependendo do grau e dos
acúmulos de problemas, medidas mais rigorosas podem ser tomadas por parte
do patrão. As relações conflituosas no mercado ilegal das drogas serão
tratadas especificamente no terceiro capítulo.

2.3.3.3 As dinâmicas de comercialização

A boca, como já foi dita, é o espaço fixo onde ocorrem as


comercializações do tráfico associado. As bocas se localizam, sobretudo, nas
periferias da Grande Goiânia, e suas transações seguem roteiros de acordo
com o tamanho de sua estrutura. As funções dentro dela podem ser múltiplas,
mas sempre realizadas por aviãozinhos.
Uma das estratégias adota pelo patrão da boca é mocozar a droga.
Mocozar significa criar um esconderijo, normalmente buracos nos quintais,
onde a droga vai ser enterrada e, apenas uma pequena parte, ficaria então
disponível visualmente para a comercialização.

Fui pego dentro da boca da minha irmã pitando crack, eu tava fumando
janjão, ai de repente bateu uma lombra, tinha um quilo de maconha em

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cima da mesa e 1 quilo de crack que tinha acabado de receber do


patrão que tinha apresentado pra ela daqui de Goiânia. Eu não brinco
com a droga, eu fui lá peguei a droga, cavei um buraco e mocozei,
entendeu? (Homem, 43 anos)

Mocozar a droga também é uma estratégia, caso exista alguma batida


policial, para que a mercadoria não seja encontrada e, com isso, não teria
prejuízo com a perda das drogas e, principalmente, não seria enquadrado
como traficante. Da mesma forma, alguns traficantes vão utilizar a boca como
local de uso de drogas, e não apenas espaço de comercialização. Essa
estratégia, juntamente com o mocozar das drogas, também seria usada como
forma de despistar a policia de que ali exista um comércio ilícito, mas apenas
um lugar de onde usuários se encontram para consumir os entorpecentes.
Ainda dentro dessa estratégia, um patrão de uma boca diz que sempre
deixava em cima da mesa um cachimbo com pedacinhos de pedra de crack,
caso a polícia aparecesse ele justificaria que era usuário e que, portanto, não
lhe caberia ser enquadrado como traficante.
Outra estratégia recorrentemente utilizada para que não seja pego pela
polícia é utilizar moto-taxistas e taxistas na entrega das drogas. Segundo um
dos entrevistados, a polícia, até mesmo em blitz, não para essas pessoas e,
portanto, esse tipo de entrega delivery realizada por eles, mesmo que mais
cara, beneficiariam pelo fato de fugir da apreensão policial.

P – E essa coisa de usar moto-táxi pra fazer entrega.


R – É o que mais tem. Eu uso sim, eu uso táxi e moto-táxi, tem taxista
que trabalha e que liga pra mim aqui hoje, tanto taxista como moto-
taxista, que me liga e fala “você não tem nenhuma entrega pra mim ai
não?”, porque eles sabe do lucro e que a policia não vai parar ele, ai eu
falo assim “tem, eu tenho 2 peça pra você entregar em tal lugar,
você vai cobrar quanto o corre?” “não, eu não quero o corre não”
“você vai me pagar quanto a entrega?” “eu falo, te dou 10, 5 reais
em cada grama”, ai é 1 quilo, e 10 reais a grama. Ai ele vai entregar 2
peças pra mim, tá bom demais, eu vou ganhar 9 mil reais, dou 1 mil
reais pra ele e ele entrega as 2 peças pra mim. É uma forma de não
correr risco e eu tô preso também. O menino que trabalha lá fora pra
mim, eu pego X e passo pra ele maior, pra mim ganhar, mas ai eles

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têm um risco lá fora, de perder a liberdade, tem o risco de trocar tiro


com a policia. (Homem, 30 anos)

Além disso, outra estratégia adotada por quase todos os sujeitos do 33 é


vender apenas para pessoas conhecidas.

P – Vocês vendiam pra qualquer um ou não?


R – Não, se a gente não conhecesse se a gente não tivesse um cara
referente “não eu conheço o cara ai, pode vender que o cara é de boa”,
ai a gente vende. Se um estranho chegar a gente acha que é polícia, a
polícia armando um castelo né? (Homem, 30 anos)

Saber para quem está vendendo é fundamental para não cair em


emboscadas, porque é bastante comum que policiais armem casinhas ou
castelos para pegar os sujeitos do 33 em flagrante. Uma das principais formas
que esse esquema acontece é quando a polícia pega algum usuário com
alguma porção de droga e o faz ligar para seu fornecedor para entregar mais,
quando esse chega a polícia já armou todo um plano para dar o flagrante e
prendê-lo.
Quando uma pessoa quer comprar drogas e o aviãozinho ou o patrão
não a conhece, e nem possui referências sobre ela, eles dão um jeito de
esquivar argumentando que desconhecem e não mexem com drogas, como é
o caso de um dos sujeitos que tem uma boca e montou um bar de faixada para
não levantar suspeita sobre o empreendimento ilícito.

P – E vendia era só pra conhecido?


R – Era só pra conhecido, quando eu não conhecia e que morava em
outra cidade eu já chegava e já tirava logo dava que não sabia de
nada, montei um bar pra disfarce de faixada pra mim traficar. (Homem,
26 anos)

Montar algum empreendimento de faixada ou utilizar de algum


conhecido, principalmente bar, é bastante comum no tráfico associado. Muitas
vezes esses locais se tornam as bocas em que o patrão fica e onde distribui as
mercadorias entre seus aviãozinhos.

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A boca, quando em casas, quase nunca é onde mora o patrão, o mais


comum é que elas sejam alugadas e utilizadas especificamente para o
funcionamento do comércio. A moradia do patrão, pelo contrário, é o local de
descanso e repouso.

A casa da gente é o lugar de descanso, é o lugar de você chegar e por


a cabeça no travesseiro e poder dormir, sem ter policia batendo, sem
ter noiado te chamando. A casa da gente é lugar de descanso, a
família da gente é importante, eu não quero que meu filho fica vendo
aquele tanto de noiado na porta de casa chamando, eu não quero
esses trem, eu não quero perturbação na minha casa. Até mesmo
quando eu vou embora pra minha casa, eu desligo o celular e falo que
hoje eu não trabalho, eu quero chegar em casa e descansar, não
policial chegar em casa chutando a minha porta. (Homem, 34 anos)

A casa seria não seria a boca, a moradia é onde o patrão descansa e


não se envolve com o trabalho. Ainda mais, a boca é um lugar que deve ser
separado e afastado do convívio familiar, em que os exemplos e os
comportamentos desviantes não podem ser vistos pelos filhos. Os aspectos
morais em relação ao mercado ilegal serão tratados mais adiante ainda nesse
capítulo.

P – Mas eles sabiam onde você morava?


R – Não, por exemplo, o cachorro onde ele dorme ele limpa. Então
onde eu moro de jeito nenhum. Nem em casa eu fico. Eu vivo no
mundo, nem na minha casa eu passo. (Homem, 40 anos)

Portanto a casa é um local em que não há a presença de drogas, pelo


contrário, evita-se qualquer tipo de relação que ocorre na boca com as relações
do âmbito doméstico, isto é, a separação entre lar e trabalho ou a casa e a
boca.

Não da pra você montar de vender drogas num lugar, ter um comércio
ali, e ficar ali pro resto da vida. (Homem, 26 anos)

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Para assegurar o sucesso do empreendimento ilegal, dependendo da


situação, a boca pode mudar constantemente de lugar, principalmente quando
se torna alvo da polícia, seja para desbaratar o comércio ou para fazer o
arrego.

P – E com a polícia você já teve muito problema?


R – Você fala de pagar propina?
P – É também, de fazer arrego.
R – Isso, eles passava todo mês pra ganhar uma coca, um extra. À
noite eu saía de um barraco pra outro pra eles não me achar. (Homem,
22 anos)

Na outra ponta de comercialização do tráfico associado estão os


aviãozinhos que, por sua vez, vão ganhar os territórios para além das bocas,
eles comercializam drogas em outras localidades fixas como cruzamentos de
avenidas, em bares, praças, rua, etc. Os aviãozinhos, portanto, seria a
extensão da boca, até mesmo pelo fato de que nem todos os usuários vão até
esses locais para adquirirem as drogas.
Um dia conversando com um patrão de uma boca o telefone dele não
parava de tocar, foram mais de 20 chamadas num prazo de 1 hora. A todo o
momento ele passava informações para algum de seus aviãozinhos, ou era
ligação de alguma encomenda, outras vezes precisava ligar para algum de
seus bebês fazer os corres. Em seguida a uma dessas ligações ele me disse “a
vida no tráfico é assim mesmo, uma correria que só”.
Essas correrias implicam em toda uma dinâmica de controle que se
espacializa pelo mercado ilegal das drogas. Algumas vezes, durante a
pesquisa de campo, pude acompanhar como alguns aviãozinhos e patrões
percorriam em determinados pontos da cidade, principalmente nas regiões
onde a boca tem algum tipo de controle do comércio, para fazer entregas e
comercializarem as suas mercadorias.
Acompanhando pessoas ligadas ao tráfico associado houve dois
momentos distintos onde pude presenciar de forma mais precisa como
funciona a dinâmica de venda e entrega das drogas. O primeiro momento foi
quando um dos informantes, patrão de uma boca, me convidou para uma festa
que ele estava organizando numa boate e casa de prostituição em Goiânia.

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Essa festa resultou de um desacordo comercial ocorrido entre o patrão


da boca e o dono da boate. Afinal, a boca era quem fornecia as drogas para a
casa de prostituição, e, quase sempre, de forma fiada, pois ela era paga no
prazo de duas semanas depois de entregue. Entretanto, como o pagamento
não havia sido realizado dentro do prazo, o patrão da boca acabou fechando
com o dono da boate a organização de uma festa reservada em que o primeiro
comemoraria o seu aniversário, e convidaria os amigos mais próximos e os
aviãozinhos que trabalhavam para ele.
Quando os clientes envolvidos são considerados Vips, como o dono da
boate, que compra grande quantidade de drogas, os próprios patrões que ficam
encarregados de negociar toda a venda das drogas e, até mesmo, em muitos
casos, entregá-las. Essas drogas já são entregues em dolinhas prontas para
serem comercializadas. Quando os clientes são considerados de menor
importância, toda dinâmica da venda fica por conta dos aviãozinhos, que
posteriormente irão repassar o dinheiro da venda para o patrão.
Esse tipo de festa ou as farras é bastante comum pelas pessoas que se
envolvem no tráfico associado, os ganhos que consideram ligeiros vão embora
ainda mais rápidos com as ostentações, como veremos mais adiante em
relação aos ganhos e gastos entre os sujeitos desse mercado.
Além dos aviãozinhos, é muito comum que as bocas forneçam drogas
pra indivíduos que atuam isoladamente no tráfico atomizado, o que vai diferir
do aviãozinho é que não existe um tipo de obrigação e nem relação hierárquica
entre as partes, apenas acordos comerciais que devem ser cumpridos, porém
quase sempre as drogas são vendidas à vista.
O que é relevante aqui é entender que os patrões das bocas associam
aviãozinhos que irão comercializar as drogas em locais em que há demandas
de consumo, como casas de shows, boates, bares, escolas, faculdades, praças
etc. Nesse contexto que houve a outra experiência de campo acompanhando
mais um sujeito do 33, um aviãozinho, que comercializava maconha na Praça
Universitária em Goiânia nas sextas-feiras à noite, dia e horário onde havia o
encontro de muitos jovens, tanto das periferias, que começaram a frequentar a
partir de eventos culturais de rap, quanto jovens de classe média, que
normalmente são estudantes das universidades em volta.

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Esse aviãozinho trabalha com um patrão que mantém uma boca numa
área pobre da região leste de Goiânia. Nas noites de sexta-feira ele começou a
frequentar a Praça Universitária, que fica numa região nobre de Goiânia, para
ver os amigos se apresentar em batalhas de raps. Toda vez ele levava consigo
uma pequena porção de maconha para usar com os amigos. Devido o
crescimento do movimento cultural começou a ter uma demanda de outros
conhecidos pela maconha. Com isso, aos poucos ele começou a levar maiores
quantidade e revendê-las, até que houve um momento que chamou mais dois
amigos pra ajudá-lo a agir mais fortemente na comercialização da maconha na
praça.

Começou devagar o lance do rap e foi juntando uma galera e o pessoal


começou a pedir pra vender pra eles um lodim e ai fui vendendo,
vendia tanto pra galera das quebradas como pra galera da faculdade,
ai fui organizando mais pra vender certo, ai os corres foi só crescendo.
(Homem, 18 anos)

Como a comercialização das drogas teve um crescimento relevante num


prazo de poucos meses, foi necessário tomar maior cuidado para que não
fossem pegos. Assim, ele e os outros dois rapazes levavam uma quantidade
maior de drogas e as mocozavam em algum buraco que faziam na própria
praça. Enquanto ele ficava vigiando as drogas com certa distância, os outros
dois tinham o papel de chegar até as pessoas pra saber se queriam comprar
maconha, caso a resposta fosse afirmativa, eles conversavam com o
aviãozinho e iam até o buraco e retirava a quantidade de drogas negociadas na
venda.
Pelo fato de quem compra já saber quais são as pessoas que fazem os
corres, elas é quem normalmente chegam até um dos garotos ou até o
aviãozinho para poder adquirir a droga. Em outras palavras, naquele espaço,
mesmo não sendo um espaço próximo e nem controlado pela boca, acaba que
existe um processo de territorialização por saber que tem pessoas que
comandam a comercialização das drogas naquele lugar.
Os dois garotos que se associaram tinha como único objetivo ganhar
uma quantidade boa de maconha para poder usar por ali mesmo. E ao final da

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noite, o aviãozinho que acompanhei falou que ao chegar à sua casa olharia a
quantidade que tinha vendido para fazer o acerto no outro dia com o patrão.
Ele ainda contou que pegava a mercadoria num valor menor e revendia sempre
mais cara, mas no começo o patrão passava certa quantidade de drogas e,
encima daquela quantidade, que ele tirava a sua droga.

No começo ele separava a droga e me mostrava o que eu tinha que


vender e entregar a grana pra ele e a quantidade da droga que era
minha, eu podia vender ou usar, como queria ganhar grana pra
comprar umas coisas eu então vendia. (Homem, 18 anos)

A questão do uso de drogas pelos aviãozinhos, dependendo do tipo de


substância, pode ser fator determinante para o sucesso ou o fracasso deles no
tráfico. A dependência química não apenas atrapalharia o crescimento dele no
mercado ilegal das drogas, mas poderia causar danos maiores de acordo com
as consequências que o seu vício pode lhe proporcionar, chegando até mesmo
a sua morte caso se torne problema para o patrão.

2.3.3.4 As relações de confiança: sucessos e fracassos.

P – E como foi esse lance de vender, você foi subindo aos poucos?
R – Eu comecei vender dolinha, eu pegava de traficante e vendia
dolinha. Larguei da dolinha e comecei a vender pedaço. Larguei do
pedaço e comecei a vender na grama. Larguei a grama e fui vender a
quilo. (Homem, 21 anos)

O crescimento de um indivíduo na estrutura do tráfico associado está


diretamente relacionado com outros fatores que são decisivos para o sucesso
ou o fracasso no empreendimento ilegal. O primeiro deles, como já começou a
falar, se deve aos problemas de dependência química que podem afetar o
crescimento dele nesse mercado.
A dependência química, especialmente a dependência do crack, é
atribuída pelos aviãozinhos como o principal fator para o fracasso no tráfico.
Afirmam que muitos começam a vender apenas para sustentar o próprio vício,
no começo tudo vai correndo bem, pega uma quantidade menor e vai pagando

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certinho o patrão que, por sua vez, vai liberando cada vez mais drogas na mão
desse aviãozinho. Nesse processo, muitos aviãozinhos derramam a droga, isto
é, eles as usam e, com isso, não quitam a dívida com o patrão.
O problema da dívida, além de invalidar a relação de confiança com o
patrão, pode causar danos maiores ao aviãozinho. Não é a divida em si que
motivaria uma atitude mais violenta, como veremos sobre as regras morais,
mais sim a quebra da palavra que assegura as relações comerciais no
mercado ilegal das drogas.
A questão da confiança é fundamental nas relações comerciais no tráfico
de modo geral, mas no tráfico associado ela é imprescindível para que os
aviãozinhos e os patrões obtenham o sucesso no empreendimento ilegal. Além
da necessidade do dinheiro das vendas das drogas serem repassados de
forma correta para o patrão, que a cada nova comercialização aumenta a
relação de confiança, outros fatores se tornam importantes para que o vínculo
de confiabilidade desenvolva.
Um dos garotos que trabalha de aviãozinho diz que começou aos
poucos a ajudar o patrão de uma boca de forma indireta, sem nem um vínculo
concreto. Quando chegava algum usuário perto de onde ele morava querendo
comprar drogas, ele mesmo dava um jeito de ir até a boca e, com o dinheiro do
cliente, comprava e tirava uma parte da droga ou do dinheiro para si.

Eu ia lá e pegava metade do tanto, pegava um pouco, tirava o dele e


pegava o meu. E nessa eu ia juntando o meu. Eu ia fumando ou se eu
passo pra fumar eu ia parar no tempo, ou senão eu ia tirando o
dinheiro. Chegava a noite eu ia lá e pegava o meu, o cara via que
toda hora eu ia lá, ele via “não, esse moleque ai tá me ajudando”,
“eu não tô precisando sair daqui”, “ele não trás ninguém aqui”, “eu
posso confiar nele”, “se a polícia pegar ele, ele vai apanhar na
rua e inventar qualquer outra história ou falar alguma coisa”, “a
polícia tortura ele, bate nele, mata ele, mas não dá nada pra mim”.
(Homem, 33 anos)

Ao fazer esses serviços, além de garantir a sua própria droga ou o


dinheiro, ele foi criando um vinculo de confiança com o patrão da boca que,

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dias depois, o chamou pra ser bebê dele e fazer pequenos corres pela região
onde a boca estava instalada.
Outro elemento igualmente importante, e que faz parte das regras
morais do mercado ilegal das drogas, é de não entregar o patrão. Dito de outra
forma, como os aviãozinhos é quem faz esses corres nas ruas se torna mais
comum deles serem pegos pela polícia. Quando isso acontece, a polícia vai
apertá-los para que entreguem o patrão. Se eles não caguetar quem é o chefe
e assumir a responsabilidade para si, certamente o nível de confiança vai
aumentar e, mesmo caindo na mão da polícia e ficando preso, ele vai ter um
bom retorno por parte do patrão.

Quando um dos meninos é pego pelos vermes e não dão pra trás, não
cagueta, eu vou ajudar ele, vou fortalecer ele, se for preso vou ver que
posso fazer, se sair eu vou dar um agrado maior quando ele for pegar
droga, pô, o muleque não entregou, sinal que tem palavra, e isso tem
que acontecer pra ficar grande e não cair. (Homem, 21 anos)

Alguns patrões de boca montam esquemas para auxiliar os aviãozinhos


quando pegos pela polícia, que vai desde contratar advogados e, quando
menores, contratam-se até mesmo pessoas para se passar por parentes
desses garotos Um dos patrões participante da pesquisa, menor de idade, que
mantinha aviãozinhos, igualmente menores de 18 anos, dizia que mantinha
todo um plano caso algum dos meninos rodasse nas mãos da polícia.

P – E esses meninos que trabalhava pra você, tinha algum esquema


de um deles cair e não falar nada?
R – Tinha o que caia assim, separava, tinha até mulher, tinha a tia
nossa, que era uma mulher que a gente pagava pra ser tia, e os pais
também. No crime você tem dinheiro pra tudo, ai caia ia lá e tirava nós.
(Homem, 21 anos)

Caso o aviãozinho caia nas mãos da polícia, principalmente quando ele


for dependente químico, existem grandes chances de entregar quem é seu
patrão. Ao entregar o chefe, além dos riscos de morte que pode sofrer, por ter
quebrado as regras morais de não caguetar, pode provocar modificações em
toda estrutura daquela boca.

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Ai como você já é conhecido porque já faz o aviãozinho, o noiado, a


pessoa que usa droga, quer saber de ninguém não, quer saber de
nada não, ele quer saber que vai ali pra buscar a droga, ele sabe que o
trem é de risco. Ele sabe que se parar na mão da polícia ele vai se
fuder. E pra ele não se fuder, ele vai dar quem? Ele tem que fazer
alguma coisa, ele tem que ajudar a polícia. E a polícia quer quem? A
polícia quer o traficante. Ele vai dar o cara que ele pegou a droga, que
nessa era eu, e eu tive que dar o outro. Nessas questões assim o
tráfico é desse jeito. (Homem, 33 anos)

Com a prisão do patrão da boca pode ocorrer duas coisas. A primeira


delas é que algum aviãozinho de sua confiança tome a frente e cuide do
empreendimento enquanto o patrão responde na justiça pelo crime de tráfico.
Ou, o mais comum, é que mude toda estrutura, como explica um antigo
aviãozinho que se tornou patrão de boca.

Fui juntando mais dinheiro e começando a vender. Tudo passa a partir


do momento que você, por exemplo, você entra numa empresa pra
trabalhar de office-boy, lá você vai aprendendo tudo dentro duma
empresa. Seu negócio é só fazer o que eles mandam, fazer uma
faxina. Só que você vai aprendendo, como mexe aqui, como mexe ali,
como mexe num banco, como você tem que fazer aquilo. Chega uma
certa hora duma vida, assim, da empresa, o tráfico também é
uma empresa. Não é que subir de cargo, é que numa empresa sempre
acontece demissão, alguém sai, entendeu? Então, como o mundo do
tráfico não tem demissão, não tem isso, ou o cara vai preso ou o cara
vai morto. Então como é desse jeito vai surgindo vagas e outros vai
subindo. (Homem, 33 anos)

Então, no tráfico associado, as ocupações e o crescimento podem


ocorrer pela queda de alguém, seja pela morte ou pela prisão, que, dito de
outra forma, o fracasso ou o sucesso estão de acordo com o fracasso e o
sucesso de outros. No caso acima mencionado, o sucesso do aviãozinho para
se tornar patrão da boca ocorreu pela queda do chefe, ou seja, pelo fracasso
de quem o comandava.

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Caso o patrão não tenha uma equipe que o respeite ou pessoas de


confiança, família ou algum aviãozinho mais próximo, para dar continuidade no
empreendimento, a chance de perder a boca para os aviãozinhos é grande.

P – Quem ficou com a sua boca depois que você foi preso? Eles
tomaram conta?
R – Foi por isso mesmo. Não ganhei nada e eles tão ai só engordando.
(Homem, 21 anos)

Por outro lado, e mais comum, é que o aviãozinho cresça junto com o
patrão. Afinal, o crescimento no tráfico associado pode ocorrer de forma mútua,
enquanto o aviãozinho aumenta o faturamento na venda das drogas, o patrão
começa a fornecer mais mercadorias e, ao mesmo tempo, cresce a relação de
confiança.

P – Você lembra no começo quanto que você ganhava?


R – Cara, de 10 pedra eu tirava 2, ai ficava 8. Ai dava 80 pro cara e
ficava 20 pra mim.
P – Isso era por semana ou por dia?
R – Isso era por dia. 10 pedras pequena assim vende por dia. Ai
comecei pegar por semana com ele, em torno de 10 grama, 15 grama,
pegando já no dinheiro e ai ganhando mais dinheiro. Eu ia passando o
dinheiro pra ele e ia juntando o meu, entendeu?
P – E assim foi quanto tempo?
R – Vendendo pra ele desse jeito foi uns 5, 6 meses vendendo picado.
Ai depois eu fiquei pegando uns pedaços assim, ai fiquei uns bons
anos trabalhando com ele.
(Homem, 26 anos)

Como houve aumento na venda das drogas e na relação de confiança


entre o patrão e aviãozinho, como no caso mencionado, é comum que o patrão
o ajude na construção de uma nova boca e, com isso, enquanto o aviãozinho
se torna patrão de uma boca, o antigo patrão sai do varejo do tráfico e começa
a atuar no atacado, fornecendo drogas para as bocas que vão sendo
comandadas por seus antigos bebês. Em outras palavras, há um processo de

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passagem entre o tráfico associado para o tráfico organizado e, com isso, toda
dinâmica passa a operar a partir de uma nova estrutura.

P – Ai teve um momento que você decidiu montar pra você mesmo?


De comprar com um fornecedor?
R – Não, eu não quis mexer com outro fornecedor porque o rapaz já
tinha me filiado àquele cara, ele me dava alguns aviãozinhos, alguns
pontos de venda. Ai fui crescendo mais, ai foi onde fui pegando mais
pedaços. Ai fui crescendo e colocando outras pessoas dentro.
(Homem, 26 anos)

A abertura de novas bocas e o fornecimento das drogas vai ampliar o


mercado, enlarguecer as relações comerciais e criar novos atores dentro do
mercado ilegal. Ao mesmo tempo, as antigas dinâmicas, em que os sujeitos do
33 atuavam, irão passar por novos arranjos que não modificará apenas a
estrutura de comercialização, mas, também, as próprias identidades de quem
atua no tráfico associado e no tráfico organizado.

2.3.4 O tráfico atomizado

Consta dos autos que, no dia do evento ora narrado, policiais


civis lotados na DENARC, estavam de serviço na “Festa Playground”,
que se realizava no “Clube de Pesca Lago Verde”, no Jardim
Primavera, nesta Capital, quando avistaram o indiciado João, que se
portava de maneira suspeita e segurava, em uma das mãos, alguns
comprimidos. Viram, outrossim, que, ao lado do indiciado, havia um
rapaz fumando maconha.
Diante disso, fizeram a abordagem dos dois, sendo
encontrados, em poder do indiciado, 45 comprimidos. O outro
abordado foi identificado como Pedro. Em seguida, os policiais
conduziram o indicado até a base da DENARC na festa, onde foi ele
submetido à revista, sendo encontrados, dentro de seu tênis, a porção
de maconha, considerado grande pelos agentes policiais. Questionado
sobre o entorpecente apreendido, informou o indiciado ter adquirido
cada comprimido, que supunha ser de ecstasy, por R$10,00 e iria
vendê-los por R$25,00.
Em face de tais fatos, foi dada voz de prisão ao indiciado que,
conduzido à DENARC, afirmou que iria vender os comprimidos que

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haviam sido encontrados em seu poder e que a maconha seria para


seu próprio consumo. (Prontuário número 27)

O tráfico atomizado apresenta uma dinâmica descentralizada de


comercialização de drogas em que os indivíduos agem sozinhos e
autonomamente, e nem estão fixados a um lugar específico e as transações
ocorrem quase sempre entre as redes de amizades e de conhecidos. A
dinâmica do tráfico atomizado é praticada, principalmente, por pessoas que
moram em bairros de classe média, mas, também, em menor número, por
indivíduos que moram nas periferias, nesses casos o que vai variar são os
tipos de drogas comercializadas.
Em suma, a rede, seguindo as argumentações de Capra (2011), se
constrói a partir de seus significados. Assim, uma rede de comercialização das
drogas poderia ser entendida como fruto de uma estrutura definida por uma
diversidade de formas de interação, através do compartilhamento de interesses
e trocas de informações, no caso a vontade de consumir drogas. E essas
redes, por sua vez, irão dar forma e organização a uma atividade (SENA,
2011).

P – E quando você tá vendendo, como é que você trabalha? Como é


que você vende as drogas?
R – Pra conhecidos, pessoal que convive comigo.
P – Você tem boca?
R – Não, eu pegava na boca e vendia mesmo. Eu compro a vista e
revendo em parcelas.
P – Então você compra à vista?
R – Sim, compro sempre a vista. (Homem, 20 anos)

Diferentemente do aviãozinho, os sujeitos do 33 que atuam no tráfico


atomizado não têm nenhuma relação de submissão com o patrão da boca. Eles
podem adquirir as drogas tanto de grupos do tráfico organizado quanto por
pessoas ligadas ao tráfico associado. Da mesma forma, essas drogas não
precisam ser compradas necessariamente à vista, dependendo da relação que
mantenha com o fornecedor, elas podem ser adquiridas fiadas e com prazos
estabelecidos de acerto.

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Compreender as redes de relacionamento dos indivíduos que atuam na


estrutura do tráfico atomizado é fundamental no entendimento da própria
dinâmica de comercialização das drogas, uma vez que eles dependerão
dessas redes tanto para comprar suas mercadorias quanto para revendê-las.
Portanto, até mesmo o tipo de droga vai seguir a demanda de suas redes de
relacionamento.

P – Ai você começou a vender quanto? De quanta quantidade? Em


proporção?
R – Não, não, isso depende. Era o produto que o pessoal queria
comprar. Ai vai depender da necessidade do que eles quer e do que eu
também quero.(Homem, 26 anos)

Como o indivíduo trabalha sozinho nessa estrutura de tráfico fica a seu


próprio cargo a responsabilidade sobre todo processo de transição das drogas,
desde a aquisição com o fornecedor até a entrega para os clientes.

P – E como você fazia essas entregas? Ia você pessoalmente?


R – Sim, ia pessoalmente. A pessoa me ligava e eu falava “me procure
em tal lugar que eu tô passando lá”. Então a pessoa ia para tal lugar e
eu entregava lá. Era um trabalho de formiguinha. (Homem, 20 anos)

Os sujeitos do 33 que atuam no tráfico atomizado trabalham de acordo


com a necessidade de consumo dos clientes e, as entregas, ocorrem a partir
de combinações por telefone ou por alguma rede social. Para despistar de
qualquer suspeita, eles utilizam códigos que procuram camuflar as transações
das mercadorias ilícitas, troncando o nome das drogas por outros objetos,
como camisa, calça etc.
Além dessas entregas, é muito comum que eles vendam as drogas em
festas particulares e boates. Enquanto no primeiro caso o dono ou organizador
da festa os colocam justamente para vender as substâncias e, portanto, não
precisam de nenhuma dissimulação na comercialização, até porque as
pessoas que participam da festa fazem parte de redes em que é comum o uso
de substâncias ilícitas. Já na boate, os cuidados devem ser maiores, além da
fiscalização de seguranças, não se vende pra qualquer um, é necessário que

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alguém de sua rede conheça esse possível cliente para que a negociação seja
realizada.

Então você vende em festas? Como era?


Ixi, vendo demais, normalmente o dono me chama, o cara é conhecido
e diz que vai fazer uma festa e pede pra eu fornece os Bagulho pro
pessoal, ai eu vou e levo, ai levo bala, papel e pó. Tem festa que é
assim, que não dá problema que é de boa, tem essas after, ai é povo
conhecido vou e levo, fico de boa lá curtindo. Ai também tem essas
festa de som automotivo, ai tem mais gente que não conheço, mas ai
só vendo pro pessoal que conheço. (Homem, 20 anos)

Muitos que estão nessa dinâmica de tráfico se iniciam a partir da própria


rede de sociabilidade que normalmente passa pelo consumo de droga. Como
ele é o indivíduo que sempre busca as drogas com o fornecedor, nessas
viagens, ele começa a não pagar mais a sua droga, mas o dinheiro da galera
pra quem ele compra quita a sua parte. Nesse processo, nas redes de contato,
ele começa a pegar pra outros amigos e, com isso, vai conseguindo pequenos
lucros. A partir disso, muitos passam a de fato comercializar as drogas por si
só, porém agindo por essas redes de contatos e amigos.
O tráfico atomizado é a parte mais dinâmica do mercado ilegal das
drogas. Como o território dessa estrutura é a rede de contato de quem vende
então a espacialidade percorre todo tecido social, desde as periferias até os
bairros mais nobres. Para compreender melhor a dimensão espacial do tráfico
mercado ilegal das drogas é preciso analisar o seu processo de territorialização
na Grande Goiânia.

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2.4 A dimensão socioespacial

2.4.1 A territorialização

Alguns apontamentos foram lançados sobre o processo de


territorialização do mercado ilegal das drogas da Grande Goiânia. Neste
subcapítulo será tratado mais especificamente como essas estruturas se
espacializam nesse cenário e, com isso, conseguem construir certo tipo de
domínio territorial por onde ocorrem os seus negócios ilegais.
A partir da compreensão de que o produtor-fornecedor não se
territorializa dentro do mercado ilegal das drogas da Grande Goiânia, mesmo
sendo essa estrutura que provê a ponta inicial de distribuição, a sua
espacialidade e seu funcionamento, como já foi analisado, ocorre fora do
território nacional, em países fronteiriços ao Brasil. Portanto, a primeira
dimensão a ser apreendida é em relação ao tráfico organizado e o tráfico
associado.
Essas duas estruturas de tráfico são as mais evidenciadas no processo
de territorialização quando se refere ao controle espacial na Grande Goiânia.
Como o tráfico organizado opera como uma central de distribuição das drogas
e, muitas vezes, é liderada por alguém que cresceu a partir da ramificação das
bocas, ela pode desenvolver um tipo de controle que não é diretamente
territorial, mas comercial, sobre regiões, setores e bairros das cidades
pesquisadas.
No mapa 1, a partir da obtenção das informações dos Atos de Prisão em
Flagrante (ATF) do ano 2013 detectados como tráfico de drogas em Goiânia,
pois nas demais cidades os registros não foram repassados à DENARC, pode-
se observar que existem regiões na capital em que maior apreensão de
pessoas e drogas.
No mapa confirma a prerrogativa que o mercado ilegal das drogas ganha
espacialidade por todo território da cidade, mesmo que alguns setores tenham
mais ou menos presença de apreensão de drogas e pessoas.

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Mapa 1 – Espacialidade do tráfico de drogas a partir dos Atos de Prisão em Flagrante em


Goiânia em relação ao ano de 2013.

Fonte: Pesquisa Sujeitos do 33: um estudo sobre o mercado ilegal das drogas e homicídios na Grande Goiânia, 2014

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Na região 1 circulada no mapa percebe-se que há um fluxo de


comercialização das drogas em torno da Avenida Anhanguera, principalmente
da região que vai do Setor Universitário, passando pelo centro da capital até
chegar ao setor Campinas. Nesse fluxo pode-se observar que há uma
variedade de mercadorias ilícitas que foram apreendidas. Entretanto, vale
sublinhar que nas áreas 2, região da rodoviária de Goiânia, e 3, região do
terminal de ônibus coletivo do DERGO e da rodoviária de Campinas, possuem
forte presença do tráfico de crack, pois nesses lugares se concentram as
principais cracolândias de Goiânia.
As áreas 4 e 5 chamam a atenção pelo fato da quantidade de
apreensões em um mesmo espaço. O primeiro deles, na área 4, é onde se
localiza a praça Universitária, nela e onde se situa grande parte da
Universidade Federal de Goiás e da Pontífice Universidade Católica de Goiás
e, também, espaço em que ocorre diversos eventos culturais e encontro de
pessoas. Até mesmo por ser um espaço de convívio de jovens, das mais
diversas identidades de grupos, a maior quantidade de drogas apreendidas foi
maconha.
Na área 5, por sua vez, a principal droga apreendida foi o ecstasy. Tal
fato, mesmo sendo uma região mais ruralizada e na extremidade da capital,
justifica-se por ser um espaço de realização de festas eletrônicas, e o uso de
drogas sintéticas, especialmente o ecstasy, é comum.
A outra área circulada, a de número 6, também é interessante devido a
pouca quantidade de casos de apreensão de drogas. Essa área é considerada
a região mais nobre da capital, formada pelos setores Marista, Bueno e Oeste.
A ausência dos números comprova a afirmativa de que essas regiões, por
serem as mais ricas, os moradores não sofrem com as batidas policiais, como
ocorrem nas periferias. E isso, consequentemente, reduz as chances de que
sujeitos envolvidos na comercialização de drogas nessas áreas recebam o
flagrante da polícia. Além disso, como já foi mencionado no andamento do
texto, a própria forma de atuação dos sujeitos de classe média na venda de
drogas procuram encobrir as suas comercializações, principalmente por que
ela ocorre a partir das próprias redes de sociabilidade.

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Como foi analisado sobre o processo de crescimento no tráfico


associado, compreende-se que muitas bocas são controladas hoje por patrões
que, antes, eram aviãozinhos de seus atuais fornecedores que, por sua vez,
passaram a coordenar grupos de tráfico organizado. Antes de passar a atuar
no atacado e de se tornar fornecedor, esse ex-patrão ajudou os seus antigos
aviãozinhos, principalmente os de confiança, a montar pequenas bocas em
regiões próximas onde a sua estava instalada e, com isso, aos poucos, ele vai
deixando o varejo para atuar no atacado.
Como existe uma relação de lealdade entre o patrão e seus aviãozinhos,
essa fidelidade continua depois dessas mudanças após o crescimento no
tráfico e, portanto, o chefe do grupo do tráfico organizado fornece as drogas
para essas bocas que estão normalmente localizadas em regiões próximas.
Dessa forma, pode-se dizer que essa dinâmica possibilita o comando de
fornecimento das drogas em algumas regiões, setores e bairros da Grande
Goiânia.

Antes eu tinha boca, mas hoje ele lance de boca pra mim acabou. Hoje
você eu pego é setor, hoje tem um monte de setor que eu entrego.
(Homem, 30 anos)

A outra área circulada, a de número 6, também é interessante devido a


pouca quantidade de casos de apreensão de drogas. Essa área é considerada
a região mais nobre da capital, formada pelos setores Marista, Bueno e Oeste.
A ausência dos números comprova a afirmativa de que essas regiões, por
serem as mais ricas, os moradores não sofrem com as batidas policiais, como
ocorrem nas periferias. E isso, consequentemente, reduz as chances de que
sujeitos envolvidos na comercialização de drogas nessas áreas recebam o
flagrante da polícia. Além disso, como já foi mencionado no andamento do
texto, a própria forma de atuação dos sujeitos de classe média na venda de
drogas procuram encobrir as suas comercializações, principalmente por que
ela ocorre a partir das próprias redes de sociabilidade.
O tráfico associado, por sua vez, por meio das bocas terá um domínio
territorial sobre quadras e ruas de bairros e os aviãozinhos irão dinamizar a

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territorialidade controlando pontos específicos da região onde suas bocas estão


localizadas, como cruzamentos de avenidas, bares, praças etc.
A dinâmica que irá diferenciar é em relação ao tráfico atomizado. Por
essa estrutura não se territorializar fisicamente, a espacialidade então são as
redes de relacionamentos dos sujeitos que trabalham nessa dinâmica de
comércio, por isso, pode-se dizer que é uma territorialização simbólica em que
os espaços seguem as redes de relacionamento construídas ao longo do
tempo e que pode ganhar, até mesmo, espaços físicos em festas, boates etc.
Além das estruturas construírem dinâmicas diferenciadas de
comercialização das drogas, os tipos de substâncias ilícitas também irão
caracterizar tipos de espacialidades diferentes, principalmente quando se trata
da estrutura do tráfico associado. As diferenças ficam evidenciadas quando
algumas bocas trabalham ou não com a venda do crack.

P – Então, você disse que começou vendendo maconha, e existe


diferença em vender maconha pro crack?
R – Muita. Hoje a maconha, quem compra a maconha compra e leva
direto pra casa. Agora a droga não, a pedra já é mais escancarada.
Hoje o cara pega a pedra aqui e ele não consegue chegar no seu
destino, se ele não parar e dar uma tragada, ele não consegue. Se ele
pegar a pedra aqui ô, se ele virar a esquina aqui ele já para e coloca no
cachimbinho. (Homem, 26 nos)

Um garoto que é aviãozinho disse que o que vai modificar a própria


espacialidade da boca não é a droga em si, mas o próprio usuário. Enquanto
um indivíduo que compra maconha ou cocaína possui um perfil de cliente que
compra e somente depois de alguns dias retorna para novas aquisições, os
usuários de crack as adquirem e já ficam próximos da boca esperando comprar
uma nova porção.

P – O que era mais notável de diferença?


R – A maconha é o seguinte, você pega uma bucha e ai para, você não
vai voltar pra pegar outra, vai ficar uns dias. Agora a mesma
quantidade de pedra é no prazo de meia hora eu vendo ela, ai a

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rotatividade é maior. A lombra da pedra é uma coisa e a lombra da


maconha é outra, a pedra te cria um alvoroço e a maconha te deixa
calmo, sussa. Você não vai roubar pra fumar maconha de novo. A
pedra não, você vai roubar.
P – Então são diferentes?
R – Totalmente diferentes. (Homem, 34 anos)

Além disso, a pessoa que consome crack, segundo o sujeito da


pesquisa, para manter o vício vai fazer pequenos roubos e furtos na região
próxima à boca. A prática dessas outras atividades criminosas pode trazer
problemas para esse usuário, principalmente quando a pessoa roubada ou
furtada for cliente da boca.

O perfil da cocaína é de pessoas mais granfina. O perfil da maconha é


o perfil de pessoas mais revoltadas e o perfil da droga (crack) é a
miséria. Porque o miserável não consegue mexer com pó, não satisfaz
ele. As drogas tem classe social. (Homem, 33 anos)

A droga não define apenas a percepção da boca, mas a própria classe


social de quem usa. Hoje todos os tipos de drogas estão acessíveis no
mercado ilegal das drogas, o que vária é a qualidade da mercadoria. Assim,
como diz um dos entrevistados:

Hoje você compra cocaína de 10 a 50 reais, ai dependendo do que


você quer. Você compra maconha de 3 a 50 reais, varia muito. A
melhor cocaína é a escama, você paga caro pra pegar ela. Maconha
tem mais de 10 tipos, ai depende de conseguir o que a pessoa quer,
porque nem sempre você tem a melhor, mas nem sempre a pessoa
tem dinheiro pra melhor também. (Homem, 18 anos)

Mesmo que saibam da existência de pessoas de classe média que vão


até as bocas comprar crack, tem-se a ideia, principalmente pelas
consequências marginalizantes que o efeito que essas drogas causam, uma
percepção de pobreza em relação a quem usa.

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P – E seus clientes quem que eram? O perfil é como?


R – De tudo. Pobre, rico
P – Você mexia com crack e a cocaína, são pessoas diferentes?
R – Assim, os mais de classes baixas era mais pedra. Agora cocaína já
era pra quem tinha mais dinheiro, era dono de loja, dono de
supermercado essas pessoas assim. (Mulher, 20 anos)

O crack, apesar de ser a droga de melhor retorno financeiro, é vista


pelos próprios sujeitos do 33 como uma substância extremamente danosa. O
crack passa a ser percebido por eles como uma droga que desequilibrou a
própria realidade do tráfico, que saiu do controle e, por isso, causa muitos
problemas até mesmo pra eles.

P – Você disse que começou a mexer com as drogas há muito tempo


atrás, pra você houve uma mudança nesse mercado? Da galera que
compra? O que você acha que mudou nesse tempo?
R – Olha, o crack é antissocial né? É uma droga antissocial né?
Geralmente, tipo assim, vamos começar. A maconha se você fuma ela
você senta no meio de qualquer um, troca ideia com qualquer um, a
polícia pode passar que você continua fumando, disfarça e tal. A
cocaína já é mais social, você cheira ela, você toma, você vai pra
festar, troca ideia com um ou com outro. A merla também é um pouco
antissocial. Agora o crack deus me livre, é uma droga que sei lá, as
pessoas vê coisas que não existe. Eu acredito assim pelo que conheço
que com o crack você entra no mundo espiritual. Você da um pega nela
você se esconde. Não é que tem alguém aqui, você acha que tem,
você vê uma sombra ali e ai você vai achar que é uma pessoa que
quer te pegar. Tem pessoas que fumam que dão o primeiro pega vão
pra debaixo da cama, esconde em outro lugar, “que que foi moço? Mas
não tem ninguém”. (Homem, 33 anos)

A problemática do crack ganhou corpo nos últimos anos na Grande


Goiânia com a constituição de algumas cracolândias que estão espalhadas por
várias regiões. As cracolândias se formaram em regiões centralizadas perto de
terminais de transporte coletivo e de rodoviárias, o que facilita principalmente o
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roubo e furto de pequenos objetos. Portanto, a espacialidade nesse caso


ocorreu não pelo tráfico, mas pela própria dinâmica dos usuários.
Nas cracolândias a comercialização das drogas acontece normalmente
por meio de aviãozinhos que são também usuários e vendem as pedras para
retirar a sua parte a ser consumida. O tráfico de crack também alterou as
próprias relações comerciais de modo geral. Primeiramente, como já foi dito, a
fissura e a necessidade de consumir transformou a temporalidade de compra
das drogas, isto é, alterou o fluxo de venda.
Além disso, como segundo ponto, as cracolândias tornaram mais frágeis
as relações de confiança entre patrões e aviãozinhos. Esse tipo de
desconfiança se deve principalmente ao fato de que a dependência química de
um aviãozinho pode bagunçar o dinheiro da droga caso ele a derrame e, isso,
poderia provocar quebrar o vínculo entre as partes e, como foi dito, trazer
consequências danosas para o aviãozinho, até mesmo a sua morte.
Portanto, o derrame da droga, como será analisado no terceiro capítulo,
se torna um fator importante dentro da compreensão da dinâmica espacial das
drogas, sobretudo nas áreas onde funcionam as cracolândias. Da mesma
forma, a disputa por territórios no tráfico organizado e tráfico associado pode
trazer mudanças na territorialização do mercado ilegal das drogas.

2.4.2 As disputas de territórios

P – Como é que vai crescendo?


R – Ai você vai conhecendo outras pessoas, ai o tráfico, entendeu?
Tem que ter muito cuidado, que é uma faca de dois gumes. Quando
você começa a crescer o outro traficante já não quer, o concorrente já
não quer.
P – Como que elimina uma concorrência?
R – Matando. (Homem, 30 anos)

Quando existe o processo de territorialização no mercado ilegal das


drogas a concorrência e a busca pelo domínio de áreas de comércio se tornam

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cada vez mais frequentes, tanto em relação ao tráfico organizado quanto ao


tráfico associado.
Um entrevistado, chefe de um grupo do tráfico organizado, disse que
uma vez teve que dar fim a uma concorrência, mas a decisão nem partiu dele,
na verdade disse que foi do próprio concorrente que o procurou para tirar
satisfação, pois afirmou que o entrevistado estava roubando pontos de tráfico
que pertencia a ele. Assim, segundo o entrevistado, seria desaforo ser
chamado de ladrão sem ter roubado, e, portanto, esse tipo de acusação não
poderia ficar barato.

P – Tem esses conflitos aqui assim de pontos, porque acaba sendo de


região?
R – Sempre tem. Então tipo assim a gente ganhava dinheiro demais e
eles cresciam o olho, ai eles falava que a gente estava roubando os
pontos deles ai foi onde aconteceu o fato. (Mulher, 20 anos)

Nos casos onde não ocorre o acordo acontece realmente uma disputa
sangrenta pelo território, principalmente quando tem questões de honra
envolvidas, como no caso acima mencionado. A honra ela é um importante
componente para se entender a violência no mercado ilegal das drogas, tanto
pelo ethos da masculinidade que se vincula aos homens do tráfico quanto ao
aspecto cultural do mundo rural que se renova e ganha novos sentidos nas
cidades goianas.
Outro caso de disputa de território foi exemplificado por outro chefe de
um grupo do tráfico organizado que tinha por objetivo dominar toda uma região
de Goiânia e, com isso, se tornar o principal fornecedor de pasta-base.

P – Ai no caso tem que derrubar os outros?


R – Não precisa derrubar os outros se não tem boca. Agora se você
falar que precisa derrubar o cara que comanda é diferente. Porque
boca a gente não precisa destruir não, a gente invade e mata o cara
que tiver lá.
P – Você já tomou boca assim?
R – Já, muitas vezes. O cara fala “não vou sair, eu vou dar um jeito”, ai
eu “não vei, você não tá tendo condição. Nós vai por nossa droga

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ai e se você quiser trabalhar com a gente, tudo bem. Se você tá


com problema de abastecer, então você trabalha com nós”. A
gente chama o cara pra trabalhar, a gente chama a mulher pra
trabalhar, mas se ela for ignorante, topetuda, a gente deita. Antes de
deitar, porque matar não é solução, a gente não resolve os problema
matando, a gente conversa dialogando, a gente resolve os problema
dialogando, mas se a pessoa desacreditar, ai a gente tem que conferir.
Mas a gente, eu mesmo não vou chegar e tomar aquela boca lá, por
semana ela rende 30 mil, “poxa aquela boca tá rendendo 30 mil, quem
tá comandando?” “é fulano” “poxa, lá tá rendendo 30 mil por semana,
vou cair pra dentro dessa boca”, ai a gente cai pra dentro, ai se o cara
retrucar, mas antes de acontecer isso a gente conversa “ou, sua boca
tá rendendo 30 mil, você sabe disso, você não tá dando conta de
abastecer, então trabalha com nós, pega nossa droga” ai o cara “não,
vou pegar porra nenhuma não, se eu quiser pegar eu pego a minha lá
embaixo” “mas tem mais de mês que sua boca tá parada, o que que tá
acontecendo? Vamos trabalhar com a gente? A gente não precisa de
invadir assim, vamos conversar? Vamos ajeitar, se você der conta você
continua”, ai o cara paga com ignorância, uns não, uns fala “demoro,
quero mesmo, não quero morrer, tenho amor pela minha família,
melhor vocês pegar essa boca”, ai a gente pega. Outros fala “não,
só vou sair daqui só se for com a morte” “ah, só se for com ela? Então
a gente vai ai levar pra você”. (Homem, 30 anos)

Para controlar uma região ou setor não é necessário destruir as bocas,


até mesmo porque elas são imprescindíveis para o bom funcionamento da
comercialização das drogas. O ideal, na perspectiva desse chefe do grupo de
tráfico organizado, que os donos das bocas daquela região se tornem seus
parceiros, isto é, que o grupo do tráfico organizado em questão seja o
fornecedor das bocas invadidas. Para isso, segundo ele, procura fazer um
acordo comercial pacífico de fornecimento de drogas para as bocas
pretendidas.
Caso o patrão da boca não aceite o acordo comercial, medidas mais
ofensivas serão utilizadas pelo grupo do tráfico organizado para que essas
bocas se tornem suas. As disputas dos territórios ocorrem também quando se
invade o território de venda do outro, pode ser entre grupos de tráfico
organizado, bocas e, até mesmo, aviãozinhos.

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P – E porque eles queriam te matar, você sabe?


R – Por motivos de ponto, disputa de território.
P – E aqui em Trindade tem muito isso?
R – Tem. Aqui em Trindade é o que mais tem, te falo isso, é briga de
território. Se o cara tiver vendendo demais ele vai lá na porta da sua
casa vender a droga dele, não interessa se você vende ou não,
ele tá vendendo a droga dele, ai onde um cismava “não, você tá
vendendo droga na porta da minha casa”, onde arma uma contenda ali
e morte. (Homem, 21 anos)

As disputas pelos territórios de comercialização não apenas constroem


novos arranjos e novos donos sobre os espaços de venda, mas também
alavanca e aproxima o mercado das armas do mercado das drogas.

P – E porque você andava armado?


R – Eu comecei a andar armado mais por causa desse motivo de
droga, os caras começou dar pressão, esse rapaz que morreu tava
mandando matar muita gente. Ai foi onde que teve essas contendas, os
próprios amigos meus que era amigos mandou me matar, e ai comecei
a andar armado. Deixei até o tráfico por um tempo de lado e comecei a
roubar.
P – E porque eles queriam te matar, você sabe?
R – Por motivos de ponto, disputa de território. (Homem, 21 anos)

É muito comum se criar no mercado das drogas inimizades,


principalmente no tráfico organizado e tráfico associado. Na estrutura do tráfico
atomizado esse as contendas são mais raras, primeiramente, pelo fato das
drogas comercializadas serem menos danosas – maconha, cocaína e
sintéticas – e, também, pelo fato das vendas ocorrerem em seus círculos de
amizade, não havendo disputa de território, e, em sua maioria, à vista, existindo
pouca relação de dívida.

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P – Você falou que foi pega duas vezes com arma né. E é difícil
conseguir arma?
R – Não, hoje em dia nada é difícil, qualquer lugar, qualquer esquina
que você chegar ai com dinheiro “eu quero comprar um revolver, quero
comprar drogas” “é em tal lugar, vamos ali que eu vou te levar”.
(Mulher, 35 anos)

O mercado das armas não é o mesmo que o do tráfico de drogas, mas


andam associados. Na verdade, como afirmam dois entrevistados, a arma é
um elemento comum no crime, quem está associado à criminalidade não tem
dificuldade de conseguir nada que faça parte de seu universo.

P – Mas como você conseguiu adquirir a arma?


R – Por meio das drogas, você vende e compra.
P – Mas é fácil comprar?
R – É ué, você tem uma relação com o crime. É tipo você estar dentro
de um hospital, você está na sua área, então tudo ali é mais fácil, se
você pegar um leigo, ele não vai saber pegar esses medicamentos e
distribuir esses medicamentos pras pessoas certas. O tráfico é isso, é
doutorado no sistema. (Homem, 30 anos)

Como o tráfico que se territorializa cria uma dinâmica em que o uso da


violência se torna frequente, é necessário o uso de armas. O primeiro motivo
para que os sujeitos do se armem é visando a própria segurança.

P – Você andava armada?


R – Eu tinha arma, no trafico você tem que ter arma, a sua defesa você
é o crime, e o crime te oferece muita coisa ele te oferece dinheiro,
dinheiro fácil os luxos tudo o que você quer. (Homem, 34 anos)

O segundo motivo que justifique o uso de arma é a segurança do


empreendimento ilegal e das mercadorias.

P – Você teve que usar arma por causa de alguma coisa assim?

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R – Não, eu comprei um 22 só pra passar susto nos outros, porque


eles passaram na porta de casa pra dar tiro, esses trem. Ai comprei 22
pros moleques também pra qualquer coisa alguém dar tiro eles dar tiro
também, porque tinha a consciência do pessoal “vamos cair lá
porque tão todos desarmado”. Eu mesmo comprei revólver não foi
pra correr atrás das pessoas, mas pra mostrar que eu também tenho,
pra fazer barulho, pra eles passar lá de novo pra eu dar tiro. (Homem,
21 anos)

O terceiro motivo que argumentam pra utilizarem armas é para fazer


cobranças de dívidas. Essa relação violenta de cobranças não é meramente
econômica, mas faz parte de um universo simbólico em que a quebra de uma
regra moral, como no caso ter dado a palavra e não honrado o compromisso de
pagamento, pode ter consequências extremas. Essas situações serão
detalhadas no próximo subcapítulo.
Quando se fala de cobrança de dívidas e da dinâmica de funcionamento
do mercado ilegal das drogas a polícia desempenha um papel fundamental,
não apenas no combate, mas também na forma como eles se beneficiam
dessas estruturas por meio de novas relações ilegais que são construídas. Na
verdade, cria-se outro mercado em que circulam as mercadorias políticas.

2.4.3 As mercadorias políticas

No mercado ilegal das drogas não se encontra apenas drogas e armas,


mas também abre-se um espaço para a produção de outro tipo de mercadoria
que está relacionado diretamente com o emprego da violência, seja legitima ou
não. Michel Misse (2002) afirma que é justamente nesse momento que
ocorrem os agenciamentos políticos (corrupção, extorsão, repressão, proteção
e violência, entre outros). Essa face política dentro do quadro de ilegalismos
pode ser compreendida na produção daquilo que ele denominou de
“mercadoria política”, caracterizada pela existência de:

[...] um mercado informal cujas trocas combinam especificamente dimensões


políticas e dimensões econômicas, de tal modo que um recurso político seja
metamorfoseado em valor econômico ou cálculo monetário. O preço das

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mercadorias (bens ou serviços) desse mercado, por ganhar a autonomia de


uma negociação política, passa a depender não apenas das leis de mercado,
mas de avaliações estratégicas de poder, de recurso potencial à violência e de
equilíbrio de forças, isto é, de avaliações estritamente politicas. (MISSE, 2002,
p.07)

Para Misse é preciso distinguir, dentre essas mercadorias políticas, as


que se desenvolvem por mediações da expropriação de recursos do Estado
por alguns de seus agentes (corrupção) daquelas que se desenvolvem sem
mediação (máfia, crime organizado, etc).

Se em ambos os casos, a força física (e suas extensões técnicas) é usada para


fins econômicos privados, seja ela “roubada” do monopólio do Estado pelo
funcionário, seja produzida por conta própria contra esse monopólio, ela
igualmente se constitui numa “mercadoria política (MISSE, 2002, p.17)

E como as drogas é uma das mercadorias criminalizadas que pode


proporcionar enormes ganhos esse mercado acaba agenciando maior número
de pessoas para atuar nele. Se de um lado há os sujeitos do 33 que irão
trabalhar nas dinâmicas de comercialização do tráfico, do outro existem outras
pessoas que irão vender algum tipo de mercadoria política a partir da
expropriação de uma função pública que lhe foi investida.

Além dos grupos do tráfico organizado e do tráfico associado


desenvolverem recursos políticos para resolução das adversidades no
processo de territorialização e comercialização do mercado das drogas,
encontrou-se também quando esses recursos são vendidos e comprados dos
próprios agentes estatais.

Eu pagava um policia para fazer cobranças em meu lugar, o retorno


era quase sempre certo. Dava tão certo que teve um tempo que
“adotei” um policial pra dar proteção pra mim e pro meu esquema e
também fazia as cobranças. Eu pagava uns 4 mil todo mês,

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compensava, até porque o cara era farda preta (ROTAM), isso impõe
respeito e o retorno é garantido. (Homem, 22 anos)

A primeira situação encontrada de expropriação da função de agente


estatal foi por meio da prática de extorsão. A extorsão se apresentou de duas
maneiras, a primeira quando um patrão de boca disse que contratou um policial
da Ronda Ostensiva de Táticas Metropolitanas (ROTAM) para fazer serviços
de cobranças. As práticas de cobranças tinham por função obrigar os
endividados quitar as dívidas, e o uso da violência por parte do agente estatal,
segundo o patrão, quase sempre resolvia os débitos. Quando essa prática não
resolvia os problemas, outros recursos mais extremos eram utilizados.

A segunda prática de extorsão era realizada pelo agente estatal contra


os sujeitos do 33. A maioria dos entrevistados disse que quando são pegos em
fragrante é bastante comum a prática de extorsão por parte dos agentes
policiais.

P – Você disse que teve muito conflito com a polícia, mas arrego já
houve?
R – Pagar pra eles?
P – É.
R – Demais da conta. É o que mais tem, a noite é o que mais tem.
Durante o dia 40 viaturas no bairro, durante a noite, que paga propina,
é 5 viatura no total. Então, ou seja, a noite eles quer o que? Dinheiro.
Eles nem desce do carro e te pega você e já fala “tá armado?”, ai falo
“tô”, ai “tem quanto pra passar pra nós?”, já fala desse jeito.
Antigamente eles pegava, prendia, dava aquela pressãozinha em você
pra você falar, e ai depois rolava algo. Hoje não, hoje ele chega em
você e fala “você tem quanto?” “tá armado?” “Tá com droga?”, se
você falar que não tem, ele vai falar “eu vou revistar, se eu
achar vai ter arrego não, vai ter dinheiro não”, ai já falo logo “tenho”, ai
ele “quanto você tem pra passar pra nós?” “aqui no bolso o que tenho é
mil”.
P – Mas tinha valor por semana, um contrato, coisa assim?
R – Não, esse trem eu não faço não, na minha biqueira não faço
contrato com policial assim não. Esse lance de pagar pau pra policial,
não, porque policia não tem segurança nenhuma. Polícia é uma ilusão,

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eles são mais corruptos que nós. Então esse negócio de pagar por
semana, por mês, tem não. No dia que me pegar em flagrante eu pago.
(Homem, 30 anos)

O mercado da corrupção é a outra face da mercadoria política que pode


ocorrer pela extorsão, por meio do uso de ameaça ou violência, ou por meio de
arrego, quando se compra o silêncio ou a permissão dos agentes policiais para
não atrapalhar os esquemas de comercialização das drogas.

P – E em relação a policia, em tentar fazer arrego ou te extorquir já


teve?
R – Você já conhece os plantão.
P – O que é os plantão?
P – Plantão é o seguinte, hoje é o soldado, amanhã é outro e depois é
outro. Então tem certos plantões que não tem arrego, e outros tem. Ai
no plantão daquele é o dia que você faz uma venda maior. Ai quando é
o plantão dos que não aceita, ai é avisado que fecha o cinto ou hoje o
cinto é mais frouxo. E tinha dia que o comandante falava “hoje deixa”.
Então tudo começa lá do quartel, lá de cima mesmo. Hoje vamos
diminuir o tráfico, não, hoje nós vamos deixar quietinho.
P – Você já pagou algum, já desembolsou?
R – Já.
P – Mas chegou a desembolsar quanto?
R – Ah, 5 mil, 10 mil, 15 mil, 20 mil. (Homem, 34 anos)

Esses esquemas de arrego não acontece apenas na ponta ostensiva de


combate nas ruas, mas há também o acerto de permissividade para que essas
drogas entrem no mercado goiano. Uma líder de um grupo do tráfico
organizado disse que era comum molhar as mãos de policiais do alto escalão
para deixar as drogas passar livremente nas barreiras estaduais e federais.

P – Mas já trabalhou com policial, fazendo serviço pra você?


R – Não, não trabalho com polícia. Isso porque tô falando é no tráfico
mais pequeno. Mas vamos falar do tráfico maior, quando tenho uma
mercadoria lá em Anápolis, difícil de trazer, porque tem blitz, policia e
tal, ai eu vou, não falo com soldado, eu chego num tenente, num

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capitão, maior do que ele e falo “o tô com uma mercadoria, eu tenho


que buscar”, a gente conversa, a gente dialoga “quanto que você vai
cobrar? Não precisa ir lá pegar, é só abrir as estradas pra mim”, dessa
forma que trabalhava. Ai eu desembolsava 12 mil, 15 mil, mas falava
“quero essa droga em tal lugar, se não chegar o culpado vai ser você, e
eu vou cobrar de você”. Ai sim é o tenente, o capitão que libera e abre
a passagem pra nós. Quando eu trabalho com polícia é isso dai,
quando peço pra abrir caminho pra mim. (Homem, 30 anos)

Quando as práticas de arrego e extorsão não ocorrem, mesmo que a


pessoa acusada não esteja realmente portando drogas, além do abuso da
violência, pode acontecer o implante de drogas no local da batida para dar o
flagrante com o objetivo de se conseguir algum tipo de acerto, ou caso
contrário, os agentes policiais detém o acusado.

Eu vi ele tirando do bolso e enfiando dentro do armário do quarto do


meu filho e fala “aqui a droga aqui”, quatro grama de maconha, ai eles
colocaram 600 miligramas de cocaína e acharam o crack lá no
esgoto do vizinho lá embaixo 16 gramas e 600 miligramas ai eu fui
presa, ai eu fui condenada com 30 dias peguei 6 anos e 8 meses pelo
trafico ai estou aqui ate hoje. (Mulher, 35 anos)

Além das práticas de extorsão e arrego, segundo um patrão de boca,


alguns agentes policias roubam as mercadorias ilícitas e as comercializam no
mercado das drogas. Com isso, além de vender as mercadorias políticas, eles
mesmo acabam se tornando também sujeitos do 33.

P – Quando você comprava dos caras lá, como que era? Comprava a
vista ou já ficou devendo?
R – Já fiquei devendo. Assim, porque eu ficava devendo essas
pessoas porque eu comprava pouco. A maior parte que eu vendi na
minha vida, que eu peguei de droga pesada, mas eu comprava era da
policia mesmo, tá ligado? Então eu comprava deles, comprava de
preço barato e eu tinha o tempo de vender. Uma vez eu ganhei um
calote muito grande na droga, ai falei pros caras que eu tinha que
receber, “deixa isso pra lá que isso vai dar BO”, as vezes pra ele
mesmo.
P – Quem falou isso?

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R – A polícia.
P – Ele também tem essa coisa de vender, né? Sai bem mais barato
que outros fornecedores?
R – Ah sim.
P – E quanto sai mais barato?
R – Ah, isso depende né? Sabe como é?
P – Eles apreendem uma droga e tiram uma quantidade pra eles?
R – Não, na maioria das vezes teve isso ai, eles apreende ela, recebe
um acerto, solta os caras e ficam com as drogas, fica com tudo.
(Homem, 34 anos)

Além dessas práticas, os agentes policiais são fundamentais no


entendimento sobre a própria criminalidade violenta no mercado ilegal das
drogas da Grande Goiânia. Diversas denúncias já foram feitas ao Ministério
Público de Goiás afirmando a existência de grupos de extermínios que agem
na capital e no interior com o objetivo de dar fim à vida de pessoas envolvidas
com a criminalidade. Alguns casos apurados e reconhecidos como grupo de
extermínio detectaram a presença, quase sempre, de agentes estatais na
participação de homicídios. Um dos casos investigado pelo Ministério Público
de Goiás e de grande repercussão culminou na Operação Sexto mandamento.

A Polícia Federal desencadeou, na manhã desta terça-feira


(15/2), uma operação para prender 19 policiais militares de Goiás
acusados de integrar um grupo de extermínio. Parte deles é suspeito
de matar mais de 20 pessoas em municípios da região do Entorno do
Distrito Federal. A ação do bando foi denunciada em série de
reportagens do Correio Braziliense publicada desde 2009.
Entre as vítimas da quadrilha formada por policiais militares de
diversas patentes e alvo da operação realizada neste momento, de
acordo com a PF, estariam crianças, adolescentes e mulheres sem
qualquer envolvimento com a prática de crimes. O grupo de extermínio
é investigado por federais baseados em Goiás há cerca de um ano.
Entre os investigados, estão o atual sub-comandante geral da
Polícia Militar de Goiás, o ex-secretário de Segurança Pública e o ex-
secretário da Fazenda de Goiás. Os dois últimos na condição de
suspeitos pela prática de tráfico de influência que resultaram nas
promoções de patentes de integrantes da organização criminosa.

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Segundo as investigações, a organização criminosa tinha como


principal atividade a prática habitual de homicídios com a simulação de
que os crimes haviam sido praticados em confrontos com as vítimas.
Alguns dos crimes foram praticados durante o horário de serviço e com
uso de carros da Polícia Militar, de maneira clandestina e sem qualquer
motivação, segundo a Polícia Federal.
Em nota, a PF afirma que “restou evidenciado na investigação
que, nos últimos 10 anos, os integrantes da organização criminosa
começaram a fortalecer a sua atuação nos municípios de Formosa, Rio
Verde, Acreúna, Alvorada do Norte, bem como Goiânia. Assim, onde
se instalavam em decorrência de remoções às diferentes unidades da
PM/GO, o número de vítimas de homicídios em supostos confrontos
com aquela Corporação aumentavam consideravelmente”.
Os presos devem responder pelos crimes de homicídio
qualificado em atividades típicas de grupo de extermínio, formação de
quadrilha, tortura qualificada, tráfico de influência, falso testemunho e
ocultação de cadáver (Notícia 1: ALVES. Correio Braziliense, 15 de fev.
de 2011)

As práticas violentas praticadas por grupos policiais seguiram


igualmente os padrões da modernização da sociedade goiana. Se por um lado
rompe-se com os aspectos simbólicos da sociedade tradicional, a nova
estrutura que nasce em seu lugar tem por base a desigualdade. E as novas
modalidades de violência, como aponta Dalva Borges Souza (2006), que tem
caracterizado a vida nas cidades brasileiras, decorrente do agravamento dos
problemas sociais e da injustiça social, tem se manifestado crescentemente em
Goiás, como é o próprio tráfico e a sua territorialização.

Ainda seguindo os escritos de Souza (2006), apesar da diminuição da


violência impulsiva com a modernização da sociedade goiana, houve a
permanência de um tipo específico de violência, denominada de expressiva. A
violência expressiva seria o resultado de um tipo característico de sociabilidade
em que há a valorização pessoal assentada sobre a força física, retomando a
ideia da honra e do ethos da masculinidade.

E esse tipo de comportamento, como foi mencionado, pode ser


percebido na própria estruturação de grupos de extermínios na Grande

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Goiânia, que, assim como na criminalidade comum, passa por mudanças ao


longo do tempo. Dessa forma, esses grupos que surgiram a partir de “ações de
vingança pessoal, de afirmação diante de outras pessoas ou grupos, mas com
o tempo passam a alugar os seus serviços a comerciantes ou a traficantes”
(SOUZA, 2006, p.171).

Outro caso mais recente em que houve a apreensão de agentes estatais


suspeitos de envolvimento em grupos de extermínio é possível verificar
claramente essas mudanças, em que deixam de praticar esse tipo de
comportamento violento por questões de honra à farda e começam a agir a
partir da associação com o mundo criminal, como no caso da Operação
Resgate deflagrada pela polícia civil na cidade de Goianira.

Dezessete policiais militares e mais oito pessoas foram


indiciados após três meses e 24 dias de investigações sobre a
ocorrência de um suposto grupo de extermínio que atuava na cidade
de Goianira, a 33 km de Goiânia. A Operação Resgate, deflagrada no
último dia 9 de maio pelo Grupo Especial de Repressão ao Crime
Organizado (Gerco), da Polícia Civil, apurou que entre os crimes
praticados estão o de homicídio, ocultação de cadáver, tortura,
receptação, tráfico de drogas, associação para o tráfico e formação de
quadrilha. Os dados do inquérito foram divulgados na manhã desta
segunda-feira (8/7) pelo delegado titular Alexandre Lourenço. A
organização criminosa tinha como foco o controle do tráfico de
entorpecentes do município.
As investigações apontam que os delitos foram cometidos em
um período de 13 anos em Goianira por cinco sargentos, seis cabos e
cinco soldados da Polícia Militar, além de um policial reformado. Foram
cumpridos 64 mandados de prisão, colhidos mais de 80 depoimentos e
apreendidos um “arsenal” de armas utilizadas nos crimes. Uma dezena
de inquéritos sobre os crimes havia sido instaurada, mas nenhum deles
foi concluído, juntamente com 13 boletins de ocorrências que não
foram investigados. O titular da delegacia afirmou que o vazamento de
informações sobre a operação atrapalhou as investigações. O prazo de
prisão provisória para os envolvidos no caso venceu às 00h do último
sábado (6) e, de acordo com delegado, o Ministério Público do Estado
(MPGO) já pediu a manutenção da prisão dos envolvidos.

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O delegado Alexandre Lourenço – que preferiu não utilizar


termos como “grupo de extermínio” e “cemitério clandestino” – acredita
que possam ser contabilizados mais crimes, já que o período de tempo
considerado nas apurações foi de 13 anos. Os históricos criminais das
vítimas estão ligados ao tráfico de drogas e, sobre a possibilidade de
atuação do suposto grupo de extermínio em outras cidades, Alexandre
Lourenço disse que um crime de pistolagem foi registrado na cidade de
Nova Glória, a 207 km de Goiânia.
De acordo com o delegado Alexandre Lourenço, ocorreram 18
homicídios no período de 13 anos. Destes, 15 corpos foram
identificados nas ruas de Goianira, mas os crimes não foram
registrados na delegacia da cidade. Dos três corpos desaparecidos,
apenas os restos mortais de um foram encontrados até o momento.
Eles estavam dentro de uma cisterna, no Setor Nova Goianira, e foi
retirado no último dia 29 de maio.
Ele informou também que há indícios de que corpos de vítimas
foram descartados no Ribeirão Meia-Ponte. Vestimentas que
possivelmente seriam dos mortos estão sendo periciados pelo Instituo
de Criminalística. A suspeita é que tenha sido utilizado cal para que os
corpos entrassem em decomposição mais rapidamente.
Dentre os oito civis indiciados está uma de um sargento. Em
nome dela está registrada a empresa DSM Vigilância, administrada
pelomarido sargento. A Polícia Federal foi informada sobre o caso da
empresa, que atuava ilegalmente. Armas e veículos utilizados pelos
acusados estavam sob a guarda da empresa, que fazia segurança para
empresas da região. (Notícia 2: DANTAS. Jornal Opção, 08 de jul. de
2013)

Os casos de grupos de extermínio ou a venda de mercadorias políticas


pelos agentes estatais, seja a serviço de traficantes ou criando empresas de
segurança privada, mostram bem como o Estado desempenha uma posição
central para o funcionamento do mercado ilegal das drogas. As informações
apuradas pela Operação Resgate mostram que no caso investigado os agentes
estatais participavam de três formas, a primeira delas é o desempenho da
função que lhes são incumbidos por meio da segurança pública e do monopólio
da violência física.

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O problema que se deriva a partir da ocupação estatal e do uso legítimo


da força é quando ela é negociada, isto é, se torna mercadoria política e é
vendida de forma ilegal nesse novo mercado que se abre e, ao mesmo tempo,
se associa a outros mercados. No caso em questão, a segunda função que
esses agentes estatais desempenham, e de forma ilegal, é quando montam
uma empresa de vigilância privada, e ainda por cima utilizam os equipamentos
públicos para exercerem essas atividades no âmbito privado.

O terceiro papel desempenhado pelos agentes estatais é quando


associam o mercado onde circulam as mercadorias políticas a outros mercados
ilegais por meio da segurança de grupos de tráficos, arregos, extorsão e, até
mesmo, o controle de atividades criminosas, como o próprio tráfico e roubos de
carros.

É nesse contexto social que o mercado ilegal das drogas se enreda pela
Grande Goiânia em que fluxos de dinheiro, de mercadorias, de produtos ilegais
e ilícitos se entrelaçam nas dinâmicas cotidianas, sobretudo nas periferias. No
caso do tráfico organizado e, principalmente, do tráfico associado as práticas
podem apresentar contornos mais violentos, chegando até mesmo a
execuções e extermínios de pessoas envolvidas.

As relações que ocorrem no mercado ilegal das drogas não ganham


apenas a dimensão espacial pelos territórios livres da Grande Goiânia. Quando
os sujeitos do 33 estão presos e encarcerados as relações comerciais não se
restringem. Ao contrário, no contexto espacial do presídio as redes de contanto
com o mundo criminal ampliam e estabelece um tipo de vínculo entre a cadeia
e a rua.

2.4.4 A cadeia e a rua

Cara, a cadeia não segura a pessoa não. Porque na cadeia tem gente
que tem o poder, e se ela tem o poder pode mandar fazer o regaço lá
fora, mandar matar família, mandar matar quem ele quiser. (Homem,
33 anos)

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A cadeia não é o local onde se dará o fim à carreira criminal de quem


trafica e nem tão pouco como lugar de resolução dos problemas da
criminalidade urbana. Na verdade, ela deve ser considerada como extensão
espacial por onde o tráfico de drogas acontece. Além do próprio entendimento
que na cadeia é onde essas atividades ilícitas são intensificadas e o uso de
drogas faz parte da normalidade do cotidiano dos presos, ela articula uma
relação intima como o mundo de fora, a rua.

Já viu cadeia sem maconha? Já vi diretor deixando entrar pra o


pessoal fumar pra deixar a cadeia calma. (Homem, 33 anos)

Quando um sujeito do 33 é encarcerado, principalmente aqueles que


fazem parte de grupos do tráfico organizado, não há o fim relações comerciais,
muitos deles continuam com as atividades comerciais na rua, e as funções que
antes ocupava é repassada a outras pessoas de confiança.

P – Você fazia entrega de drogas como?


R – Eu não faço entrega de droga, eu só olho ela. Eu só faço o contato,
eu ligo, chegou pra mim, quem faz as entrega são os meus bebês.
Eu não faço entrega, chegar eu olho ela, tiro a foto. Agora que tô preso
eles tira a foto e manda pra mim. (Homem, 22 anos)

Mais ainda, se o indivíduo apreendido for líder de algum grupo é bem


possível que de dentro da cadeia ele possa coordenar todo o restante do grupo
lá na rua. Portanto, a cadeia e a rua se relacionam e se integram. Para que
essa relação seja constituída é necessário articular outros tipos de práticas
criminais – levar celular, dinheiro, drogas e armas pra dentro da cadeia – que
pode ser realizada por pessoas pertencentes ao grupo criminoso ou por meio
da aquisição de outras mercadorias políticas através de agentes penitenciários
que praticariam o serviço de entregar ou facilitar a entrada dos objetos e
produtos.
Somente no ano de 2014 a polícia civil e o ministério público realizaram
duas grandes operações – a operação poderoso chefão e a operação
avalanche – em que desbarataram dois grandes grupos de tráfico organizado

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que operavam na Grande Goiânia a partir das ordens de seus líderes que se
encontravam aprisionados no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia.

Duas pessoas que cumprem pena na Penitenciária Odenir Guimarães


(POG), no Complexo Prisional, em Aparecida de Goiânia, comandavam
uma quadrilha envolvida com o tráfico de drogas e o comércio ilegal de
armas de fogo. O bando, composto por pelo menos 14 pessoas, agia
em Goiânia, Formosa, no Entorno do Distrito Federal, e em Campos
Belos de Goiás, na Região Noroeste do Estado. O grupo foi
desarticulado ontem com a deflagração da Operação Avalanche,
coordenada pelo Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO) e
realizada em parceria com as Polícias Civil e Militar e com a Secretaria
de Administração Penitenciária e Justiça (Sapejus) (Notícia 5: SILVA. O
Popular, 19 de fev. de 2014)

A cadeia também é o espaço onde se estreita as relações no mundo


criminal, muitos entram condenados por outros crimes e, dentro da cadeia, ao
se articularem com outras pessoas, começam a praticar outras modalidades
criminosas. Para exemplificar esse tipo de relação criminal dentro da cadeia, o
primeiro caso narrado é de uma mulher que foi presa e condenada por estar
junto ao seu namorado quando ele praticou o crime de latrocínio e, dentro da
cadeia, ela teve que praticar pequenos delitos para conseguir dinheiro e, até
mesmo, para sobreviver no sistema prisional. Nesse processo ela foi se
articulando com outras pessoas que haviam sido presas pelo crime de tráfico
drogas e, a partir disso, quando saiu da cadeia, ela já tinha todos os contatos
necessários para começar a atuar no mercado das drogas.

P – E foi dentro da cadeia que você teve os contatos?


R – É, dentro da cadeia mesmo, ai você vai conhecendo pessoas do
crime, você vai só se aprofundando, porque o sistema já oprime a
gente, ai vez as pessoas e oprime a gente também, você já sai é
revoltado você quer é virar bandido mesmo ai eu comecei a vender
muita droga (Mulher, 35 anos)

Além das articulações com a rua e com as redes de crimes, a cadeia é


também o local de opressão, e não de recuperação como deveria ser. A cadeia

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é apontada como a faculdade do crime, se antes a pessoa tinha cometido um


pequeno delito, dentro da cadeia ela tende a praticar crimes maiores.

É muito fácil quando você não tem um parente dentro da cadeia, é


muito fácil você criticar, condenar previamente. Ai quando você passa a
ter um parente dentro da cadeia, começa a conhecer o sistema
prisional, ai vocês vai ver que o a tendência não é melhorar, é sempre
piorar. (Homem, 40 anos)

Ainda mais, a cadeia é um espaço importante de construção da sujeição


criminal, quando se está encarcerado aumentam-se as possibilidades de que
os sujeitos do 33 se percebam e se identifiquem com traficantes e bandidos.

P – Mas foi alguém, por exemplo, algum dos seus ex-maridos que te
influenciou?
R – Não, senão eu já tinha virado bandida. Depois disso, na cadeia,
você vira bandido. (Mulher, 35 anos)

O segundo caso de envolvimento no mercado ilegal das drogas a partir


das relações criminais na cadeia aconteceu com um rapaz que disse que a sua
primeira prisão ocorreu por participar de esquemas de roubo de carro. Dentro
da cadeia ele manteve relações com pessoas que praticaram diversos tipos de
crimes e, nesse contexto, foi quando um homem que comandava um grupo de
tráfico organizado o convidou, assim que saísse, para fazer parte do grupo, em
que a função a ser desempenhada seria roubar carros e trocar por drogas no
Mato Grosso.
Hoje, no mercado ilegal das drogas, se tornou muito comum a
associação entre o tráfico e o roubo de carros, visando a troca dos automóveis
por drogas na Bolívia, Paraguai e Colômbia. Um dos entrevistados diz que um
carro que vale de 25 a 30 mil no mercado goiano pode gerar em drogas um
lucro aproximado de 200 mil reais.

P – Você foi enquadrado no artigo 33?


R – Eu já fui o 12 no passado e agora no 33, já é a terceira vez, é o
terceiro tráfico que está comigo.

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P – Nas outras vezes que você foi preso foi fazendo essas trocas de
carro por drogas também?
R – Não, não, dai pra frente, como tava te falando, quando fui preso em
São Paulo ai eu fui transferido pra cá, ai sai da cadeia e já conheci uma
cara aqui de Ribeirão Preto, aqui, aqui dentro, e sai daqui e já fui
traficar com ele em São Paulo. (Homem, 52 anos)

A cadeia, portanto, deve ser vista não isolada do tráfico que ocorre nas
ruas, mas como sua extensão. Na cadeia há o estreitamento das relações
criminais que agencia novos atores para o tráfico e, ao mesmo tempo, espaço
de desenvolvimento de outras atividades criminais. O que acontece dentro da
cadeia tem seu resultado na rua e, consequentemente, na própria dinâmica do
mercado ilegal das drogas.
Agora que se tem uma melhor entendimento acerca da dimensão
socioespacial do mercado ilegal das drogas é importante compreender também
as justificativas construídas pelos sujeitos do 33 no processo de adesão ao
tráfico e os aspectos e as regras morais que compartilham entre si.

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2.5 As justificativas morais de adesão

Além da própria dinâmica que os corres configura, ele também faz parte
do processo de adesão pelo qual os sujeitos do 33 precisam passar para entrar
efetivamente nesse mercado. O processo de adesão não imprime apenas uma
nova moralidade com a entrada no crime, mas há também uma negociação
racional com a moralidade dominante para justificar a adesão deles no tráfico
de drogas. Embora a maioria deles argumente que acham errada a
comercialização de entorpecentes, seguindo os valores legais e dominantes,
criam justificativas para amenizar a culpa e, com isso, a sua adesão se tornar
relevada.
A entrada dos aviãozinhos no tráfico associado não deve ser vista
apenas sob a ótica de início deles no crime, mas como o resultado de um
processo que culminou com essa adesão. Procurar compreender essas
justificativas como processo e não como ponto de partida ajuda na percepção
mais ampla sobre o próprio crime, os criminosos e a visão que eles atribuem ao
mundo que vivem.

Eu vejo isso como errado, sinceramente eu vejo isso como errado.


Mas se for pro errado, tem muitos mais errados ai fora do que
muitos que tá aqui preso. (Homem, 40 anos)

As justificativas criadas pelos sujeitos que começaram como aviãozinhos


servem como argumentação que explique o porquê deles terem aderido a
essas atividades criminalizadas em algum momento de suas vidas. Procuram
dar sentido racional para explicar os comportamentos considerados desviantes
e, com isso, elencam narrativas que servem como fonte que valoriza o mundo
legal e, por outro lado, afirmam que as suas práticas, mesmo que moralmente
e legalmente criminalizadas, tem uma razão que deve ser levada em
consideração.

Dessa forma, seguindo os passos de Sykes e Matza (2003), buscaram-


se os argumentos favoráveis que justifiquem a adesão dos sujeitos do 33 ao

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mercado ilegal das drogas. De forma geral, acredita-se que a maiorias dos
sujeitos que cometem crimes não aprovam as suas práticas e, portanto,
acabam compartilhando dos mesmos valores das classes dominantes. Dessa
forma, criam-se mecanismos psicológicos de justificação sobre os
comportamentos criminalizados e que, de certa forma, os tornam validos para
eles, mas não para o restante da sociedade. Os mecanismos de justificativas
foram denominados pelos autores como “técnicas de neutralização”, em que
sujeitos que praticam comportamentos criminalizados procuram dar um sentido
racional que amenize a culpa deles nessas práticas.

Quadro 3. Justificativas morais de adesão ao mercado ilegal das drogas da


Grande Goiânia

Técnicas de neutralização Justificações

 Problemas familiares;

Exclusão da própria  Más companhias;


responsabilidade  Dependência química;
 A necessidade de consumo;

 O comércio de drogas é igual a qualquer outro;


Negação da ilicitude
 O problema é o abuso das substâncias ilícitas;

 A prática da atividade criminosa é considera menor


do que o objetivo final a ser atingido:

Valores morais superiores  Uma vida melhor para a família;


 Pagar a faculdade;
 Comprar uma casa;

 O Estado não garante o direito de todos;


Condenação dos que
condenam  O Estado punitivista;
 O Estado oportunista;
Fonte: Pesquisa Sujeitos do 33: um estudo sobre o mercado ilegal das drogas e homicídios na Grande Goiânia, 2014

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De tal modo, encontraram-se, entre os sujeitos pesquisados, quatro


conjuntos de justificativas que utilizam como forma de neutralizar as suas
práticas criminalizadas. No primeiro conjunto de argumentações é possível
perceber que muitos deles procuram excluir a própria responsabilidade sobre
os comportamentos que praticam.

Tudo começou quando tava com 10 anos de idade. Meu pai era um
verdadeiro “pé de cana”, a gente tinha muita dificuldade financeira
dentro de casa, faltava alimentação e roupa. Sempre desejei ter as
coisas, mas era impossível. A grana dos meus pais era muito curta e
não dava para as despesas da casa. (Homem, 22 anos)

A exclusão da própria responsabilidade vai ocorrer a partir de fatores


que eles definem como externos às suas vontades e que não poderiam
controlar, isto é, eles criam argumentações que passa por uma intencional
alienação do self em que os motivos estariam de acordo com os contextos
reais em que vivem. A desestruturação familiar e a ausência da figura paterna
foram recorrentemente citadas pelos entrevistados.

A minha vida foi diferente. A minha mãe, mãe solteira, tava com 2
filhos e pra cuidar dos 2 tinha que trabalhar. Era pobre e a gente não
via ela. Ela veio de Anápolis pra Goiânia porque tinha uns parentes e ai
podia dar mais força, não tive na escola porque meu irmão tinha
problema mental e ele era mais velho. (Homem, 33 anos)

Os problemas familiares que vão desde brigas no âmbito familiar até a


ausência no cuidado ainda na infância seriam responsáveis para que esses
adolescentes encontrem na rua, especialmente no tráfico, algum tipo de saída
financeira ou algum tipo de vínculo afetivo que constroem com outros
adolescentes do tráfico ou com os patrões das bocas que lhes oferecem
oportunidades no mundo criminal e, em troca, constroem um tipo de relação
que suprima a falta de afeto ou de bens financeiros no âmbito doméstico.

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Se todo mundo tivesse peito pra ser criminoso, seria criminoso. Mas
nem todo mundo tem peito pra ser criminoso. Eu mesmo não gostei,
não queria entrar no crime, por quê? Porque eu queria ter um pai, um
pai que me ensinasse, que meu pai desse conselho, que meu pai
batesse quando eu tivesse errado, que meu pai colocasse eu na escola
certa, entendeu? Eu queria viver, eu queria ser livre, sei lá, eu queria
ver o mundo, eu queria aprender, entendeu? (Homem, 33 anos)

A ausência da figura paterna não apenas dificulta as condições


financeiras da família, mas, também, segundo um dos garotos, vai dizer que a
falta do pai na infância se tornou fator determinante em sua adesão no
mercado das drogas devido à falta de conselhos que acreditava que deveria
receber quando começou a mexer com coisas erradas. O crime, então, seria
resultado de problemas familiares que, segundo eles, caso não existissem, os
ajudariam e os guiariam a fazer escolhas que passariam longe da
criminalidade. Ao mesmo tempo, vão justificar que o período da adolescência,
quando normalmente aderem ao 33, é um momento de rebeldia e de
rompimento com os laços familiares.

P – Como você começou nessa vida?


R – Eu entrei nessa vida do crime quando eu e a minha mãe começou
a brigar demais e eu já estava com 15 anos. Ela queria mandar muito
em mim. Ai gente “aborrecente”, saí de casa.
P – Foi morar onde?
R – Fui morar com as minhas amigas. Eu sou usuária também, eu
fumo maconha. Então pelo o fato de ser usuária eu comecei a usar
quando morava com a minha avó ainda. As más influências, as
amizades, eu saia muito. (Mulher, 20 anos)

Além dos problemas familiares, alguns entrevistados vão dizer que as


más companhias foram outro fator externo e determinante que os levaram à
adesão ao tráfico de drogas. Justificam que estavam ainda numa período de
formação de identidade e, na maioria das vezes, para se integrar ao grupo
começaram a usar e a comercializar drogas.

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Nesse sentido, o comportamento criminoso é visto por meio do processo


de aprendizagem. Da mesma forma que aprendemos a praticar os
comportamentos lícitos, os ilícitos ocorreriam de acordo com os vínculos
sociais do qual eles fazem parte, aproximando da teoria da associação
diferencial de Sutherland (2003). Segundo esse autor, o comportamento
criminoso, até onde se tem entendimento, não se dava por fatores fisiológicos,
mas sim por processos de aprendizagem. E o comportamento criminoso,
portanto, seria um tipo de conduta aprendido entre as pessoas, principalmente
no ambiente familiar e com os amigos.
Os processos de interação que vivenciam com essas pessoas os
ensinariam sobre as técnicas de como se comportar no mundo criminoso e, a
todo instante, segundo Sutherland, existiria um esforço que tende a reproduzir
os argumentos que os motivem a agirem de acordo com as práticas criminais
que são realizadas pelas pessoas com quem eles convivem e isso, por sua
vez, criaria uma tendência para que eles também pratiquem as atividades
criminosas.

P – Mas porque você acha que foi se envolvendo? Pelo financeiro?


R – Eu acho que nem tanto pelo financeiro, mas o vício, né? Uma coisa
envolve a outra, você tem família e o dinheiro do seu trabalho vai pra
família e o dinheiro de droga, o tanto que você tem ele, você dobra ele
e a outra metade, você não tira da boca dos filhos, eu pensava assim.
(Homem, 34 anos)

Além de justificarem a adesão pelos problemas familiares e as más


companhias, outros vão dizer que a entrada deles na comercialização de
substancias ilícitas está associada ao fato de serem, antes de tudo, usuários de
drogas. Alguns vão afirmar que a dependência química seria a razão que os
levaram a vender drogas, com o único objetivo de garantir a própria droga a ser
consumida.
Se antes era apenas usuário, posteriormente o sujeito começa a fazer
pequenos corres para garantir a sua própria droga.

P – E como foi dai até vender?

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R – Então, ai justamente, ai você começa a fumar essa droga, às vezes


você tá com uma grana, compra 10 reais e daqueles 10 reais você tá
andando e encontra um brother seu, você vende 5 pra ele e você tipo
pô eu tinha 10 e já tô com 20, ai começa dobrar o dinheiro, você entra
sem saber. (Homem, 34 anos)

Esse tipo de argumentação é utilizado tanto por aviãozinhos no tráfico


associado que são dependentes químicos, sobretudo, do crack, que começam
a fazer pequenos corres e, em troca, recebem dos patrões das bocas
pequenos pedaços de pedras pelos serviços prestados e, também, pelos
indivíduos que atuam sozinhos no tráfico atomizado, que normalmente
compram as drogas para seu uso e, devido a sua rede de amizade, começam a
fornecer para o restante da galera e, com isso, vai se tornando a peça chave
do tráfico atomizado.

Sempre tive vontade de ter as coisas, queria muito um bom chinelo e


umas roupas “maneiras”. (Homem, 22 anos)

Ainda como justificativa de exclusão da própria responsabilidade, alguns


dos entrevistados vão dizer que a necessidade de consumo que o mundo
moderno lhes apresenta provoca um tipo de reação em que é preciso obter o
sucesso econômico, mas como as oportunidades são restritivas, torna-se
necessário buscar outros caminhos em que a possibilidade do sucesso seja
alcançável.

[...] O consumismo da modernidade metropolitana agrava as


frustações, estimulando aspirações e desejos que concorrem, por sua
vez, para piorar ainda mais o sentimento e percepção da desigualdade.
Há inúmeros relatos de assaltos a residências das camadas medias e
elites em que fica evidente o fascínio e desejo de jovens criminosos,
pobres, por bens de consumo como roupas, adereços e aparelhos,
além da busca mais rotineira por dinheiro, joias, relógios e armas. Há
para eles, todo um conjunto de itens que compõe um quadro desejável
de consumo, em principio, inviável de obter por meios legais e pelo
trabalho (VELHO, 2004, p.7).

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Além disso, Alba Zaluar (2004) aponta para o fato de certa privação
relativa que leva os indivíduos a aderirem ao mercado das drogas, pois o
ganho é fácil e consegue saciar os desejos de consumo e propiciar aos jovens
do sexo masculino certa “fama” e “prestígio”, especialmente entre as mulheres.
O segundo conjunto de argumentações utilizado pelos sujeitos do 33
para justificarem e neutralizarem a sua adesão ao mercado ilegal das drogas
passa pela negação da ilicitude.

P – Você considera errado vender drogas?


R – Eu considero como vender balinha. Quisesse e tivesse dinheiro era
na hora. (Mulher, 20 anos)

A negação da ilicitude é utilizada quando os sujeitos que praticam


alguma atividade criminosa não a consideram imoral, mas sim um tipo de
comportamento proibitivo imposto pelo direito positivo. Na verdade, alguns
entrevistados vão afirmar que o comércio de drogas é igual a qualquer outro, o
que seria necessário um processo regulatório.

P – Você acha certo ou errado vender droga?


R – Uai, eu acho certo, mais do que certo. A pessoa devia vender
droga. As pessoas que devia se controlar. (Homem, 33 anos)

Argumentam ainda que o problema não seria dos sujeitos que


comercializam as drogas, mas sim daqueles que abusam das substâncias
ilícitas. Este tipo de justificativa se aproxima de um tipo de moralidade que
propaga o discurso antiproibicionista em relação às drogas, especialmente a
maconha, por acreditar que a liberação delas seria menos danosa para a
sociedade do que a proibição, uma vez que o mercado ilegal onde elas são
vendidas seria o maior problema a ser enfrentado.
O terceiro conjunto de argumentações que os sujeitos entrevistados
utilizam para amenizar as suas adesões ao mercado ilegal das drogas se dá
pelo apelo a valores morais superiores, em que a prática da atividade
criminalizada deve ser considerada menor do que o objetivo final a ser atingido.

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Muita gente é trabalhador, que é pai de família, que vive passando


fome, sente necessidade e entrou. Muitos traficantes não usam droga,
são traficantes, mas que eles tão pro tráfico pelo dinheiro, pra querer
melhorar a vida dele, pra colocar o filho dele na faculdade, pra por o
filho dele numa escola boa, poder dar do bom e do melhor por filho
dele e não deixar o filho dele envolver no crime. (Homem, 33 anos)

O apelo a valores sociais superiores então seria uma forma de


justificação em que os sujeitos elencariam os motivos que consideram maiores
do que a prática criminosa em si. Nesse contexto vão dizer que a adesão não é
o princípio, mas um meio para se atingir esses objetivos que devem ser
considerados relevantes, como uma vida melhor para a família, para pagar a
faculdade, comprar uma casa, ficar rico etc.
Por fim, o quarto conjunto de argumentos criados pelos sujeitos do 33 é
quando dizem que suas ações nascem a partir da condenação dos que
condenam, seria uma forma de ataque às instâncias de controle por meio
justificativas que consideram importantes na hora de comparar com os
comportamentos criminalizados que praticam.

Hoje em dia a criminalidade está tão grande, o tráfico está tão grande
porque o governo, o governo e a sociedade e as iniciativas viraram as
costas pra um problema que tá cada dia mais crescente. (Homem, 40
anos)

A condenação dos que condenam, segundo um dos entrevistados, pode


começar a partir da reflexão de que o Estado não garante o direito para todos
e, por isso, vira as costas para os problemas sociais e, consequentemente, o
tráfico de drogas, principalmente para os meninos das regiões mais carentes
da Grande Goiânia, seria um dos poucos espaços em que eles poderiam
conseguir atingir o sucesso financeiro.

O estado só vem quando não tem mais nada pra fazer por nós, na
realidade a tendência é ser criminoso. (Homem, 33 anos)

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A adesão deles ao mercado ilegal das drogas então é justificada pela


falta de oportunidade que lhes são negadas pelo Estado. Mais ainda, afirmam
que o Estado aparece apenas quando já estão envolvidos com a criminalidade,
agindo menos com políticas assistencialistas e mais como um Estado
punitivista.

O negócio aqui tá se organizando e o governo não tá nem ai não. O


crime, o governo, o crime abastece, dá renda para o governo. Se cria
mais empregos, se consome mais, por exemplo, na sua casa você vai
comprar mais cadeado, você vai comprar mais circuitos de segurança,
você vai viver preso. O crime gera emprego, o crime gera impacto, o
crime gera isso. O governo vê mais chance de ganhar dinheiro nisso do
que roubar, quantas pessoas aqui não precisam de apoio e estão aqui
sofrendo? (Homem, 40 anos)

E ainda afirmam que a falta de políticas voltadas aos jovens,


principalmente aquelas que coíbem com a entrada deles no crime, se deve ao
fato do próprio governo e do mercado de segurança privada lucrar com o
crescimento da criminalidade. O governo, portanto, usaria de comportamentos
igualmente condenáveis como os daqueles sujeitos que estão inseridos no
tráfico de drogas, o que justificaria, também, a ideia de que se o governo
pratica tais comportamentos por meio de um Estado oportunista visando
apenas os ganhos e não se preocupa com as áreas sociais, as condutas
criminais realizadas pelos sujeitos do 33 seguiriam a mesma tendência.

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2.6 Outros aspectos morais

Compreender os aspectos morais que estão por trás do mercado ilegal


das drogas ajuda no entendimento dos sentidos que os sujeitos do 33 atribuem
aos seus comportamentos e, também, acerca do mundo simbólico em que
sustentam suas relações sociais e comerciais.
No mundo criminoso, mas especificamente no tráfico de drogas, da
mesma forma que na ordem legal, criam-se regras de conduta que devem ser
seguidas que, por sua vez, fazem parte de um tipo específico de moralidade
que é compartilhada pelos sujeitos do 33. Essa moralidade segue padrões
particulares que tem por base, primeiramente, uma dinâmica que é comum a
qualquer mercado criminalizado. Pelo fato de não possuir meios legais de
regulamentação e resolução de conflitos, criam-se outras ferramentas visando
resolver esses problemas e, nos casos mais extremos, o uso da violência física
e simbólica seriam um dos recursos mais recorrentes.
O segundo fator em que se constrói essa moralidade, associada à
primeira dinâmica, tem por base elementos culturais em nossa sociedade rural
e patriarcal, em que a honra é o principal elemento em que se selam os
acordos e se firmam os compromissos. No universo masculino o homem
honrado não exerce apenas o papel de provedor e de cumpridor das
obrigações, mas percebe, também, na masculinidade como o lugar da
agressividade e da violência, isto é, o local em que os instintos são
incontroláveis.
A honra masculina do mundo rural é transposta para a vida urbana e
ganha novas ressignificações. A atualização da honra pode ser compreendida
a partir do que Alba Zaluar denominou de ethos da masculinidade, que se
apresenta muito forte na cultura da rua e se constrói sem o contraponto do
feminino, impondo aos garotos a necessidade de responder as provocações e
humilhações de modo violento, tudo por questão de poder e honra.

Aqui instaura-se outro círculo vicioso: de uma definição masculina de “honra”


que obriga a resposta a qualquer desafio ou qualquer ação facilmente
considerada ofensiva devido à suscetibilidade à flor da pele dos adolescentes,
desliza-se para uma escalada de violência que transforma as armas em

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símbolos da masculinidade e em garantias únicas contra a derrota vergonhosa


ou a morte, e instrumentos da submissão ou da morte do rival (ZALUAR, 2009;
p.104)

Portanto, na criminalidade a honra se instala a partir das relações de


poder e da imposição da vontade em relação ao outro, inferindo diretamente
nos planos da sociabilidade e da sexualidade por meio de comportamentos de
provação da virilidade. Essa virilidade ligada à honra, como já foi descrita,
também justifica o cuidado em relação à família, através dos papéis
desempenhados – pai, marido, provedor, protetor – e, portanto, mesmo
inserido na criminalidade, apresentam o cuidado de afastar os filhos dos maus
exemplos das atividades criminosas que praticam.

2.5.1 A família

A casa da gente é lugar de descanso, a família da gente é importante,


eu não quero que meu filho fica vendo aquele tanto de noiado na porta
de casa chamando, eu não quero esses trem, eu não quero
perturbação na minha casa. (Homem, 34 anos)

Apesar de estar envolvido com o tráfico de drogas, um dos participantes


da pesquisa disse que nunca construiu uma boca dentro da própria casa, o
argumentado utilizado para justificar essa ação é de que o mundo criminoso
ocorre à base de condutas negativas que ele mesmo reprovava e, por isso,
deveria manter longe dos olhos dos filhos.
Afastar a família das práticas criminosas também foi argumentado por
outro entrevistado. Segundo ele, acredita que algumas pessoas nascem para o
crime e outras não, porém o contato com as práticas criminalizadas motivaria a
participação e, por isso mesmo, tinha a decisão de não colocar a família em
seus esquemas ilegais.

P – Mas pessoal da sua família não trabalhou com você?


R – De maneira alguma, o pessoal da minha família quis afastar
mesmo. (Homem, 34 anos)

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O crime é visto por alguns sujeitos do 33 como algo extremamente


danoso e, por isso, desejam que não seja praticado também por seus
familiares. Apesar das situações em que se encontram, alguns entrevistados
procuram ainda dar exemplos do que consideram fazer parte de uma moral
aceitável, como é o caso abaixo narrado por um dos homens entrevistados que
se encontrava preso pelo crime de tráfico.

Uma vez uma filha minha lá no CEPAIGO me disse “pai me dá um


presente, eu quero um notebook”. Ai disse a ela que papai iria ver e
amanhã te liga. Ai eu liguei pra ela e disse “minha filha, papai não vai te
dar o dinheiro pra você comprar o notebook, porque o dinheiro que eu
tenho é ilícito. O que você vai fazer minha filha, com o seu pai te
dando essa resposta?” “Ah pai, eu não sei, eu não associei bem o
que você está me dizendo não”. “Então pare e pense, porque se você
continuar me pedindo as coisas o papai nunca vai conseguir sair disso,
ai sou obrigado a errar. Mas tem uma saída minha filha, seu pai recebe
por mês, se você esperar papai paga em 60 dias pra você com dinheiro
lícito, com o meu pagamento.” Passou dois meses, peguei os dois
contracheques, peguei o dinheiro e coloquei numa carta e escrevi “vai
você mesmo no shopping e escolhe o que você quer, e papai tá
provando que esse dinheiro é totalmente lícito por meio do
contracheque”. Ai, a partir disso, elas nunca mais me pediram nada.
(Homem, 40 anos)

Como no caso narrado, a obrigação de dar bons exemplos muitas vezes


só ocorre após a prisão, quando a liberdade é interrompida e o convívio familiar
cessado. Ainda como forma protetiva alguns presos preferem que os familiares,
principalmente os filhos, não os visitem na cadeia, além do sentimento de
humilhação, afirmam que aquele local deve ser evitado por obrigar pessoas
moralmente e juridicamente condenadas.

P – E como é a relação com os seus filhos, eles vem te visitar?


R – Não, não, não, nunca permiti.
P – Não, por quê?
R – Não, é porque eu não quero que eles vivem nesse meio, não
quero que tenham contato. É porque não é só o que você vê aqui, é o
que você pode aprender nas filas, favores e às vezes tem uma certa

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inocência, não tem certa malícia. Pra eu não ter esse tipo de
preocupação eu prefiro dessa forma. (Homem, 34 anos)

Quando ocorre a participação de pessoas da família no tráfico os


indivíduos que os colocaram carregam o peso da responsabilidade. O papel de
cuidado e proteção que deveriam desempenhar é colocado em cheque, e no
seu lugar o sentimento de fracasso e culpa pelas suas adesões ao tráfico.

Eu me senti um lixo né, eu me senti um nada porque eu não fui um


bom exemplo pro meus filhos, o mais velho se envolveu e começou a
vender, e depois começou a usar. Ai foi quando ele deu esse problema
por causa da droga, o meu filho começou a traficar, até fazer tráfico
internacional, com 16 anos ele cometeu um homicídio. (Mulher, 35
anos)

A responsabilidade aumenta mais ainda quando existe na adesão dos


familiares históricos de sofrimento e violência, como no caso abaixo.

Todo mundo da minha família se envolveu com trafico, tenho um irmão


que está preso em São Luiz por tráfico, ele se envolveu através de
mim, foi eu que levei eles todos, então hoje eu me sinto culpada por
isso, ate pela morte da minha cunhada. (Mulher, 35 anos)

Nesses casos o sentimento de culpa se agrava e, consequentemente, a


autopercepção e olhar em relação a quem trafica e sobre o mercado das
drogas se invertem.

Hoje eu concordo, porque eu via a destruição na minha própria família


então eu contribuía pra muitas destruições de muitas pessoas ate de
pessoas que eu amava que eu amo, eu tenho uma amiga hoje que esta
internada no hospital de queimaduras aqui em Goiânia porque ela
jogou gasolina no corpo todinho por causa do vicio da fissura deu
vontade de fumar droga e ela não tinha dinheiro agora ela esta lá daqui
pra baixo tudo queimada, não vai conversar mais, linda a menina e vai
ficar vegetando o resto da vida e deixou dois filhos então assim eu
penso eu contribuo porque quantas droga eu vendi pra ela? Quantas

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drogas eu já não dei pra ela? Eu acho que hoje assim no crime eu acho
que assim o assassino maior é o traficante, não por ele pegar e matar,
pegar uma arma e matar, mas por ele contribuir pela morte das
pessoas. A maioria hoje que você vê na televisão fulano morreu
estava envolvido com droga ou morreu por divida de droga ou fumou
droga de mais e deu overdose, a minha cunhada eu perdi uma
cunhada três semanas atrás policia entrou dentro da casa dela a policia
enfiou a droga nela no estomago dela e com a mangueira do chuveiro
e deu overdose e morreu. (Mulher, 35 anos)

Além da honra ligada às questões familiares, cria-se no processo de


construção da moralidade no mercado ilegal das drogas elementos em que há
uma interiorização de uma ideologia individualista moderna em que a ilusão
quanto à liberdade que, retomando o pensamento em relação à honra, está
atrelada a uma ideia autoritária de poder e do ethos da masculinidade, que
pode ser vista nas relações de ganhos e gastos entre os sujeitos do 33.

2.5.2 Os ganhos e os gastos

P – E esse dinheiro que você ganhou não daria pra tirar num emprego
comum?
R – Falar pra você, se eu trabalhasse uns 30-40 anos não daria não.
(Homem, 43 anos)

A partir do entendimento que a honra masculina do mundo rural ganhou


nova roupagem dentro das cidades, e que essas mudanças ocorreram também
por meio do crescimento de uma cultura individualista e consumista em que as
disputas de poder no tráfico estão fortemente entrelaçadas com os bens
materiais e simbólicos que são ofertados no mercado ilegal das drogas.

Ai então eu comecei a esquecer do lado meu trabalhador e comecei a


focar em outras coisas mais fáceis, ter um bom tênis, ter uma boa
roupa, a televisão incentiva muito isso, te empurra muitas coisas.
Porque todo jovem hoje não quer trabalhar muito, seja um médico ou
uma linda mulher. (Homem, 40 anos)

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A primeira ideia que se coloca é a recusa ao trabalho comum e


assalariado em prol de uma atividade em que o alcance do sucesso financeiro
ocorra de forma rápida, mesmo que muitas vezes ela seja apontada como
arriscada e nem sempre fácil.

P – Você acha que é um dinheiro fácil ou não?


R – Não é tão fácil. A gente rala de madrugada, a gente leva tapa na
cara, a gente leva tiro, a gente sai pra rua arriscando de perder a nossa
vida. Pra quem tá do lado de fora acha fácil, mas não. (Homem, 30
anos)

A moralidade construída no mercado ilegal das drogas coloca aos


sujeitos do 33 uma experiência em que se comprime a noção de tempo-espaço
pela valorização do tempo curto e rápido. Ao mesmo tempo, cria-se uma
necessidade ao imediatismo em busca do prazer e do sucesso.
O prazer e o sucesso para o sujeitos do 33 se divide nos altos ganhos e
na ostentação que, por sua vez, em suas concepções, geraria poder, prestígio
e status entre os outros indivíduos e, especialmente, com as mulheres.

P – Você se achava poderoso?


R – Tudo vem fácil. Mulher vem fácil, você escolhe “eu quero aquela
ali” no Real Privê. No Real Privê a puta mais barata é 2 mil, eu ia no
Real Privê constatemente, deixava a minha mulher em casa e ia gastar
com meus amigos, outros traficante igual eu, do meu calibre, ai
gastava 20, 30 mil numa noite juntando nós 3. Eu gastava do meu
bolso era 11, 12 mil, não passava disso, porque lá, falar procê, as puta
lá é gostosa, a única que eu não consegui comer foi a Helen
Ganzarolli, mas na época eu fui lá e ela tava dançando no pole dance
lá, o cachê dela é de 15 mil, só não consegui comer ela. (Homem, 30
anos)

P – E esse lance de vender droga, trás benefício mesmo com a


mulherada?
R – Trás, porque eu acho que 90% da população hoje usa droga. Hoje
as pessoas se envolvem com outras pessoas assim, umas querem
dinheiro, carro e outras coisas, mas o incentivo de todo homem sempre
é a mulher, então cai nisso.

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P – Então era fácil conseguir as meninas?


R – Com certeza. (Homem, 26 anos)

P – Você tinha uma sensação de poder quando você tava vendendo?


R – É uma questão de poder porque você tem tudo que você quer,
você tem sua pedra, você tem sua maconha. Tem dinheiro, vontade,
entrar numa festa com mil conto e com 300 de droga, você saía com os
seus mil ou até mais ou saía sem nada dependendo da festa. Já
aconteceu de festar eu gasta mil reais e pegar 500 reais com truta meu
pra pagar na outra hora. (Homem, 21 anos)

O sucesso financeiro é imprescindível na construção do status no tráfico,


além da necessidade dos gastos com as demandas que o próprio tráfico exige,
como armas e mercadorias políticas, ela define a sua posição no jogo de
poder. Ter dinheiro no tráfico é sinônimo do sucesso, e o sucesso só é visto por
meio da ostentação.

P – Mas com o que você gastava?


R – Mulher, carro, roupa, viagem, restaurante e mais um bocado de
coisas. (Homem, 21 anos)

P – E como é com o que mais você gastava?


R – É roupa, é tênis, é calçado. Porque eu sou fanático em calçado,
não posso ver um.
P – Você queria comprar coisas de marca?
R – Eu só tinha coisas de marca, eu só comprava coisas de marca.
Oakley, Bilaboney, Moreno, Ana Rosa, Mouse, Eckizen, tem várias.
(Mulher, 20 anos)

A ostentação passa diretamente pelo status, que, em outros termos,


representaria o prestígio entre as pessoas. O status é o reconhecimento do
sucesso, quando o indivíduo se destaca dos demais, é se tornar o cara que os
outros “pagam pau”.

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P – Então é status?
R – Porque se você tiver no meio de 6 ou 7 que usa e você for o que
vende, você é o cara, não adianta. Tem gente que até carrega a
gente nas costas se for preciso. (Homem, 34 anos)

P – Você normalmente bancava a galera, tipo fazer um churrasco e tal?


R – Não, não. Às vezes você tá numa mesa e bancar tudo, ai chamava
uns 2 ou 3 e falava que eu ia pagar tudo. Às vezes eu pegava um
amigo meu e chamava umas meninas e ia pra uma casa e bancava
tudo. (Homem, 21 anos)

As questões de bens, status e poder estão relacionados com a estrutura


da qual o sujeito do 33 está envolvido. Esse tipo de ostentação desenfreada
normalmente ocorre com os indivíduos pertencentes à estrutura do tráfico
associado, que, como foi mostrado, da mesma brevidade que se consegue os
altos ganhos, igualmente se gastam com coisas supérfluas.

P – E o retorno financeiro vinha e acabava como você disse?


R – Sim, porque você vive num mundo de ilusão. As pessoas acham
que você está por cima, e na verdade você não é nada. É um falso
status. Um verdadeiro castelo de areia. (Homem, 40 anos)

Os sujeitos da estrutura do tráfico associado percebem, especialmente


depois de presos, que os ganhos conquistados ligeiramente vão embora de
forma igualmente rápida, argumentam que o mercado das drogas gera um
falso poder e prestígio. Tal diagnóstico acontece, sobretudo, quando aquelas
pessoas que eles consideravam amigas e parceiras lhes viram as costas. Ao
mesmo tempo, aqueles faturamentos que lhes pareciam enormes e que, muitas
vezes, foram liquefeitos na ostentação, e os poucos bens adquiridos e a
pequena reserva de dinheiro guardada mal consegue cobrir os gastos com
advogados para retirá-los da cadeia.

P – Nesse período qual a parte boa de vender drogas?


R – A parte do dinheiro né, sempre é bom.
P – Nunca falta?

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R – Não, agora falta né eu tô aqui preso, mas quando tava lá fora não
faltava não. A gente viajava, passeava, fazia excursões, enchia os
carros de moleque e de muié. (Mulher, 20 anos)

A ideia de ilusão não ocorre em todo mercado ilegal das drogas, mas
especialmente entre os sujeitos do 33 que ocupam uma posição inferior no
tráfico e quando são pegos pela polícia e, caso não consigam negociar a suas
liberdades, passam por todo processo acusatório até culminar em seus
julgamentos.
Quando os indivíduos atuam em posições mais relevantes no mercado
das drogas, sobretudo na estrutura do tráfico organizado, as diferenças se
apresentam já no próprio consumo.

P – E com o dinheiro da droga vocês conseguiam juntar coisas?


Comprar?
R – A gente comprou uma casa, dois carros, duas motos e a gente
ainda guardou um dinheiro no banco, eu dei um dinheiro pra minha
mãe. (Mulher, 20 anos)

Além desse fator, como já foram mencionados ao analisar o tráfico


organizado, quando alguém dessa estrutura vai preso é muito comum que o
grupo continue operando as atividades ilegais e, com isso, os gastos com a
justiça saem do bolso da própria organização. Para que o grupo faça alguma
coisa pelo companheiro preso é necessário que ele siga alguns procedimentos
e não quebre as regras morais de respeitar a palavra dada e,
consequentemente, não alcaguetar ninguém.
Respeitar a palavra é parte crucial no entendimento sobre o uso da
violência no mercado ilegal das drogas. Dito de forma mais clara, respeitar a
palavra é compreender o aspecto moral da honra que regulamenta os
compromissos e os acordos firmados entre os sujeitos do 33 e, quando essa
palavra é quebrada, rompem-se os laços pacíficos e toda convenção é desfeita
e, assim, abre-se o leque para o uso da violência como forma de selar as
obrigações em aberto.

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2.5.3 Respeitar a palavra

Porque, tipo assim, o crime o pessoal tenta ajeitar ele, é tipo a


sociedade mesmo, tudo tem as suas regras, só que as regras nossa é
diferente, da cadeia, na rua, a regra nossa é diferente. Você tem que
agir certo, por exemplo, eu tô falando com vocês aqui é uma coisa, não
vou te falar nome e nem nada, nem falar como foi e quem foi,
entendeu? Mas vou te falar uma coisa, a gente que começa a viver
isso, ou você vai ou cê para. Se todo mundo tivesse peito pra ser
criminoso, seria criminoso. Mas nem todo mundo tem peito pra ser
criminoso. (Homem, 30 anos)

Alguns apontamentos já foram mencionados em relação à moralidade


construída no mercado ilegal das drogas, e como ela está associada aos
mercados criminalizados e a uma cultura machista em que a honra masculina
conserva os compromissos e os acordos.
Segundo Goldstein (1985) a violência é um comportamento intrínseco ao
envolvimento com qualquer substância ilícita, pois o próprio sistema de
comercialização ilegal das drogas cria padrões letais de sociabilidade
envolvendo: as disputas de territórios entre traficantes concorrentes; assaltos e
homicídios cometidos dentro da hierarquia do tráfico como meio de obrigar a
obediência a códigos normativos; roubos a traficantes e a consequente
retaliação; eliminação de informantes; punição pela venda de drogas
adulteradas ou falsas; punição por não pagamento de débitos; disputas em
torno das drogas. Todas essas resoluções violentas e letais serão analisadas
detalhadamente no próximo capítulo.
Para Goldstein quanto maior o número de usuários de drogas que se
enredam no sistema de distribuição, e quanto maior é o seu envolvimento, mais
aumenta o risco de eles se tornarem vítimas ou agentes da violência.
Seguindo a mesma lógica argumentativa, Alba Zaluar (2004) diz que o
mercado ilegal gerou o acúmulo de riquezas e de instrumentos da violência que
capacitou as pessoas na resolução de conflitos, pois o empreendimento que se
encontra na ilegalidade precisa de outras fontes - que não a Justiça - para

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socorrê-los e, assim, as armas de fogos são eficazes para a solução destes


conflitos e, também, para dominar as vítimas e garantir o respeito e a honra.
Como os contratos comerciais entre os sujeitos do 33 não são passíveis
de registros legais os acordos acontecem a partir da palavra dada. Logo, os
compromissos selados resultam de acordos firmados com base na honra de
que a palavra emprestada no fechamento do negócio irá se cumprir. E no
“crime”, como argumentou um dos entrevistados, o respeito à palavra é que
definirá as condutas a serem tomadas. Se a palavra for cumprida, as relações
serão pacíficas, caso contrário, se existir a quebra dela, atitudes mais
agressivas deverão ser tomadas, até porque não está em jogo apenas os
acordos financeiros, mas, sobretudo, a honra desafiada e colocada em cheque.

No crime a gente não vale nada, mas a palavra tem que valer. Porque
a gente não vale nada pra sociedade, e se a gente também não vale no
crime, então pode morrer. A palavra do homem no crime tem que valer,
se presta ou não presta. “Tal dia vou te pagar”, então tem que ser tal
dia. “Vou te pagar amanhã”, então amanhã você tem que tá com o
dinheiro. Não vem falar que vai pagar amanhã se vai pagar depois de
amanhã, então fala “eu vou pagar depois de amanhã”. No crime a
palavra tem que valer, então não faz curva comigo. (Homem, 30 anos)

Honrar a palavra é honrar a masculinidade e as regras do mundo


criminoso. E quando aqueles que não honram o que foi firmado o uso da
violência pode ser empregado, a própria masculinidade é colocada em
confronto. Não ser considerado homem é porque o sujeito não teve peito
suficiente pra segurar as responsabilidades que lhes foram designadas e, por
isso, é tido como moleque. E no crime os moleques são passíveis de
execução.

P – A gente vê a mídia e policiais falando que esse aumento de


violência é por conta do tráfico, você acredita nisso?
R – Falar pra você cara, em tese, vamos dizer assim, mortes, coloca
culpa no tráfico de drogas, mas não, não é sempre que é o tráfico de
drogas. O moleque morre é por desacreditar numa palavra, não é
dever e eu vou matar, não é isso não. Morreu não é por causa do
tráfico não, morreu por causa da droga não. O moleque morreu porque

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não foi homem de arcar com a sua responsabilidade. Não foi por causa
de dívida de droga não. (Homem, 30 anos)

O moleque então é o sujeito que não cumpre os acordos, isto é, aqueles


que não respeitam as palavras empregadas nos compromissos. E quando a
quebra da palavra acontece o comportamento disciplinador é necessário, se
não foi homem o suficiente para solucionar as obrigações morais que tinha,
tem que ao menos tentar ser homem para enfrentar as consequências.

P – Mas nesse esperar um prazo, já teve algum problema com divida?


R – Já
P – E como que vocês resolviam? Porque acaba ficando devendo,
porque um usuário usa a droga toda e “derrama” como que eles falam.
R – Eles vendem e fumam
P – Vocês já ameaçaram com tiro?
R – Morre, infelizmente a verdade é essa
P – Mas na primeira já fazia isso ou dava uma chance?
R – A gente dava duas ou três chances, mas quando via que o cara era
sem-vergonha demais ai a gente não tinha outra opção, a gente falava
com os meninos e os meninos iam lá e matavam, ai ficava por isso
mesmo, ai divida estava paga, mas foi só uns três quatro que
aconteceu isso, mas o resto sempre andou de boa
P – Ai os próprios meninos da rede que faziam?
R – É. A gente marcava os encontros, eles iam e os meninos ia lá
matava. (Mulher, 20 anos)

O respeito à palavra faz parte das regras morais que os sujeitos do 33


se utilizam e compartilham dentro do mercado ilegal das drogas. Essas regras,
assim como na fala do entrevistado acima, devem ser cumpridas e respeitadas.
Caso contrário, medidas, até mesmo fatais, podem ser utilizadas como forma
de resolução dessas pendências. A dívida no tráfico, a alcaguetagem, as
trapaças, os derrames de drogas, as disputas de territórios, as drogas
adulteradas, os assaltos e roubos fazem parte da face mais violenta do tráfico
de drogas que muitas vezes, como veremos no capítulo a seguir, são
respondidas com o assassinato de pessoas que nele se envolvem.

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CAPÍTULO 3

DROGAS E HOMICÍDIOS:

UMA ANÁLISE A PARTIR DA

TIPOLOGIA TRIPARTITE

DE GOLSTEIN

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3.1 Drogas e violência

Conceituar violência é uma tarefa cara às Ciências Sociais, devido às


diversas formas que ela pode se expressar empiricamente. Assim, dificilmente
consegue delimitar num plano objetivamente cientifico um conceito que consiga
lidar com a dimensão universalizante e que permita comparações com esses
fenômenos aparentemente tão diversos. Yves Michaud (1989) defende essa
impossibilidade pensando a partir da questão cultural, uma vez que cada
sociedade constrói aquilo é visto como violência de acordo com os seus
critérios e suas lógicas.
Dessa forma, delimitar a violência num modo mais operante auxiliaria
metodologicamente na prática de pesquisa (SOUZA, 2006). Portanto, o
conceito de violência aqui empregado, sem a intenção de dar conta de toda
sua dimensão, vem da proposta do próprio Yves Michaud a partir da
consideração de que a violência está inscrita quando ela é destinada a limitar,
ferir e destruir as pessoas ou os bens, assim:

Há violência quando, numa situação de interação, um ou vários autores


agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando
danos a uma ou várias pessoas em graus variáveis, seja em sua
integridade moral, em suas posses, ou em suas participações
simbólicas e culturais (MICHAUD, 1989, p.10-11).

Essas práticas que ferem principalmente a integridade moral e de bens


têm sido reconhecidas na noção de violência urbana (MACHADO DA SILVA,
2008) para a qual confluem práticas - o crime violento - e representações, às
quais está associado um forte sentimento de insegurança, o medo de viver na
cidade.
Essa relação entre a produção simbólica e certas práticas sociais é
considerada fundamental para Machado da Silva (2004) argumentar sobre sua
tese de que o crime comum violento não é o “momento” de um processo, mas
sim um objeto “construído”, parcial, autônomo e, portanto, auto contido. Além
disso, articula que as diversas expressões que a sociedade utiliza para
compreender o crime violento recaem sobre a idéia de “violência urbana”,

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permitindo tomá-la como uma representação coletiva, categoria de senso


comum constituída de uma “forma de vida”, nas palavras do autor. Em outros
termos, a representação da violência é uma construção simbólica que destaca
e recorta aspectos das relações sociais que os agentes consideram relevantes,
em função das quais constroem e orientam suas ações. Machado da Silva
descreve que “violência urbana está no centro de uma formação discursiva que
expressa uma forma de vida constituída pelo uso da força como princípio
organizador das relações sociais” (MACHADO DA SILVA, 2004, p.58-59).
Embora a violência urbana seja uma característica geral da configuração
social das cidades brasileiras que abrange, portanto, todo o seu território, é
mais ou menos consensual que ela afeta mais direta e profundamente as áreas
mais pobres da cidade e com estruturas precárias que facilitariam algum tipo
de controle territorial por parte de traficantes. (MACHADO DA SILVA, 2004)
Para Wiekiorka (1997) as mudanças na sociedade atual, principalmente
pela ideia da perda da centralidade do emprego e do trabalho e pela
exacerbação do individualismo e a exclusão social, não permitiriam pensar
mais em crise ou conflito, mas sim em caos, já que há o cancelamento da
relação entre os atores sociais, fazendo com que a violência se autonomize.
Aproveitando-se dessa visão, Michel Misse (1997) diz que a antiga
ênfase nas lutas de classe perde importância sob a multiplicidade de
fenômenos de violência, muitas das quais se desenvolvendo sem qualquer
referência seja a conflitos sociais estruturados, seja em demanda de
identidades coletivas, com algum nível de unidade simbólico e ideológico, ou
objetivando um projeto coletivo de mudança social.
A relação entre o tráfico de drogas e a violência propriamente dita vem
instigando cientistas sociais no Brasil desde a década de 1970. As explicações
são múltiplas que vão desde os aspectos de controle dos espaços de
comercialização, apostando na maior visibilidade para facilitar a identificação
de pontos de venda pelos consumidores, o que acaba por resultar na disputa
de territórios entre os traficantes que ainda precisariam defendê-los da polícia,
aumentando, com isso, o uso da violência.
A própria organização de parte do tráfico de drogas se apresenta em
uma estrutura hierárquica em que os indivíduos ocupam distintas funções,
desde bélica à própria comercialização das mercadorias, que precisam estar

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coordenada sob algum tipo de dominação. A dinâmica resultante da


organização distribuída em distintas funções serviria essencialmente para a
eficácia do comércio e a conservação do poder sobre o território (Misse, 2007;
Grillo, 2008).
Por outro lado, como argumento de explicação, como já foi analisado no
capítulo anterior, o uso da violência se deve também à própria demanda dos
mercados criminalizados (ZALUAR, 2004; GOLDSTEIN, 1985) que, por não
possuírem meios legais de resolução de conflitos, se utilizam de recursos mais
radicais para solucionar as desavenças, e o assassinato de pessoas é o mais
extremo deles.
Somado ainda a esses elementos, a cultura criminal machista em que a
honra e a virilidade são postas em desafio quando os acordos são rescindidos
alavancam e disseminam a necessidade de que esses conflitos devem ser
solucionados a qualquer preço. Não são apenas drogas, dinheiro e as pessoas
que circulam no tráfico, mas também a própria identidade sexual masculina que
é colocada em evidência. Quando não se paga uma dívida de droga, ou
quando outro indivíduo quer tomar a boca, não é o valor monetário em si,
mesmo que exista e fica evidente, mas há o aspecto moral da honra desafiada,
nesse momento o recurso violento se faz necessário.
Quando se reflete sobre o mercado ilegal das drogas da Grande
Goiânia a presença da violência é percebida, sobretudo, nas estruturas do
tráfico associado e do tráfico organizado. Esses dois modelos apresentam as
características acima mencionada que passam pela territorialização e controle
da comercialização das drogas sobre alguns pontos das cidades pesquisadas,
apresentando-se a partir de estruturas hierárquicas com relação de
subordinação, mesmo que nem sempre empregatícia, e com divisões de
tarefas de acordo com a necessidade do grupo ao qual se pertence. Por se
territorializar também fica mais evidenciado pela polícia que tanto combate o
tráfico quanto se aproveita dele, e nos dois aspectos a violência também se faz
presente.
A questão da honra fica mais perceptível também nessas duas
estruturas de comercialização, tanto pelo fato de o indivíduo estar respaldado
em grupos quanto pela obrigação moral de ser visto pelos outros como um
sujeito que não aceita que sua honra seja desafiada e para isso é necessário

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dar exemplo aos demais. Além disso, as principais substâncias


comercializadas, sobretudo o crack, pelo alto poder de dependência química,
geram relações conflitivas mais alarmantes entre quem vende e quem compra.
Do outro lado, no tráfico atomizado, o crack é uma mercadoria quase
inexistente. Além disso, as relações comerciais acontecem à vista, e os
indivíduos que atuam nesse modelo não precisam estabelecer pontos
comerciais reconhecíveis que produzem a necessidade imediata de defesa
armada, já que inexistiria a disputa do território. O caráter individual dos
empreendimentos dificultaria o uso da violência pela ausência do respaldo de
um grupo de pertencimento e as relações comerciais ocorrerem entre as redes
de conhecidos e amigos.
O processo de territorialização do tráfico de drogas na Grande Goiânia
não é tão marcado quando comparado com o domínio que existe nas favelas
cariocas. Aqui ainda está em processo de territorialização com áreas mais ou
menos controladas, mas começa a desenvolver certo tipo de dominação sobre
os territórios de comercialização. E esse tipo de domínio pode ser percebido
nas áreas mais pobres, quanto à formação de bocas, ou a venda de drogas por
aviãozinhos em áreas degradadas da cidade e com a circulação de muitas
pessoas onde se formam cracolândias.
A comercialização das drogas em pontos fixos se tornou cada vez mais
frequente e, com isso, ganhou visibilidade que ultrapassa os próprios espaços
onde ocorre a venda das mercadorias ilícitas. Ao mesmo tempo, esse controle
é mais sobre o comércio no território do que o domínio sobre próprio território
em si, não existe ainda um poder subjugador em relação aos moradores onde
as bocas estão instaladas. Pelo contrário, procura-se desviar a atenção da
policia e dos demais moradores sobre o comércio ilegal, para evitar qualquer
tipo de conflito.
As bocas e os pontos de venda refletem o poder territorial que grupos do
tráfico exercem sobre esses espaços de comercialização e, esse tipo de
domínio, se dá por meio de relações de força que, por sua vez, seguem os
padrões de virilidade masculina de resolução de conflitos.
As argumentações acabam refletindo e dando brecha até mesmo para a
os próprios responsáveis pela segurança pública que utilizam um discurso
próximo para culpabilizar o tráfico e uso de drogas pelos aumentos nas taxas

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de crime nas últimas décadas, principalmente o homicídio, por ser justamente a


tipificação criminal que provoca maior repercussão social e clamor por punição.
Esse discurso funciona como autodefesa que tende mascarar as dificuldades
encontradas pela polícia em investigar e dar respostas aos crimes. Segundo o
Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) afirma que todos os
inquéritos de homicídios que estavam em aberto no Estado de Goiás até o ano
de 2007 apenas 11,6% deles tiveram elucidação, a maioria dos inquéritos ou
foram arquivados ou estão em aberto, e somente uma pequena parcela virou
denúncia e chegou até seu fim.
As deficiências investigativas e a necessidade de dar resposta à
população são percebidas quando algum membro da Secretaria de Segurança
Pública vez ou outra aparece na mídia com afirmativas embasadas apenas nos
primeiros registros policiais que não passaram por nenhum critério investigativo
chegando a afirmar, como mostra uma reportagem do jornal O hoje, que no
Estado de Goiás no ano de 2013 “o uso e tráfico são responsáveis por 87%
dos 2,3 mil assassinatos” (Notícia 3: PINHEIRO; ALVES. O Hoje, 05 de jul. de
2014). Esses discursos sustentam e legitimam uma política ostensiva de
combate ao tráfico de drogas que atinge não apenas quem as comercializa,
mas também quem as usa.
E quando as informações equivocadas são repassadas à mídia cria-se
um sensacionalismo que associa de forma espúria e enviesada os casos de
homicídios com o tráfico de drogas antes mesmo de qualquer investigação.
Mais ainda, constrói por todo tecido social a ideia de que o tráfico e o homicídio
são parte de uma mesma moeda, e os sujeitos envolvidos nesse mercado
estão sempre em vigilância prontos para matar ou para morrer.
Como não houve o acesso às informações de apreensão de drogas de
todas as cidades pesquisadas, decidiu-se fazer um recorte a partir de Goiânia
com os dados do ano de 2013. Apesar de reduzir a análise apenas para a
capital, esse recorte ajuda na compreensão da relação entre o tráfico de
drogas e homicídios por toda Grande Goiânia.
No total foram contabilizados 505 casos de Atos de Prisão em Flagrante
(APF) enquadrados como tráfico de drogas e 595 episódios de homicídios,
todos decorrentes do ano de 2013. Na figura 3 percebe-se que tanto a

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espacialidade do tráfico de drogas quanto dos homicídios é dispersos por todo


território de Goiânia. Entretanto, os homicídios são mais dispersos ainda.

Mapa 2 – Espacialidade do tráfico de drogas e homicídios em Goiânia no ano de 2013.

Fonte: Pesquisa Sujeitos do 33: um estudo sobre o mercado ilegal das drogas e homicídios na Grande Goiânia, 2014

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Além disso, ficou evidente, pela distribuição dos casos no mapa, a


impossibilidade de perceber tal correlação. Primeiramente se deve ao fato da
existência de espaços em que as duas modalidades criminosas se
encontraram e, por outro lado, houve áreas em que elas se afastaram e se
distinguiram. Cabe lembrar ainda que no mapa a distribuição dos homicídios é
geral, isto é, estão todos os casos independentes da motivação que se levou
ao crime.
É necessário lembrar que apenas uma pequena parcela dos casos de
homicídios chega-se até a sua conclusão, e que, portanto, nesse quadro de
distribuição que contém apenas as informações primárias, é impossível
identificar se eles tiveram alguma relação ou motivação com o tráfico de
drogas.
Diante desse fato, buscou-se identificar as motivações dos crimes de
homicídio e tentativa de homicídio a partir das leituras das narrativas dos
prontuários de presos da Penitenciária Odenir Guimarães (POG) do Complexo
Prisional de Aparecida de Goiânia com o objetivo de entender até que ponto
esses crimes se relacionam com o mercado ilegal das drogas e, também,
quando e de que forma o homicídio é um recurso utilizado na resolução de
conflitos.
A opção pela coleta de dados a partir dos prontuários de detentos da
POG se originou pela confiabilidade na geração de dados, mesmo com os
problemas no processo de construção de inquéritos policiais no Brasil, pois se
partiu do entendimento de que as informações contidas nos prontuários tinham
maior garantia pelo fato dos crimes praticados terem passado por um mínimo
de investigação que levaram os acusados à condenação. É necessário lembrar
que se tratam de processos concluídos, com sentença proferida, fazem parte
portanto da pequeníssima parcela de crimes solucionados.
A partir das leituras das narrativas dos prontuários foi possível verificar
com maiores detalhes as motivações que levaram os indivíduos ao
cometimento dos homicídios e tentativas de homicídios. Para isso, utilizou-se, a
partir dos escritos de Souza e Frattari (2013), a classificação da motivação dos
homicídios da seguinte forma:

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 Conflito interpessoal – quando o crime resulta de brigas, altercações


anteriores ou na hora do evento.
 Drogas – quando há disputa por ponto de venda de drogas, cobrança
de dívidas por drogas, retaliação a pequenos vendedores que mudam
de patrão.
 Extermínio – quando o crime teve mais de uma vítima e se caracterizou
por ação premeditada e de surpresa.
 Patrimonial – quando o crime é cometido visando algum bem. Além dos
latrocínios, extorsão, ou mesmo disputas em torno de dinheiro ou de
outro bem material.
 Institucional – quando o autor do homicídio está a serviço do aparelho
repressivo do Estado. Em Goiás recebe nos inquéritos a denominação
de “confronto policial”.
 Não Interpretado – quando não se pode, pela narrativa do crime,
identificar as circunstâncias.

Nos prontuários examinados ficou constatado que a maior incidência de


homicídios e de tentativas de homicídios, no total de 61%, recai sobre os
conflitos interpessoais, que vão desde as brigas no âmbito doméstico,
passando por conflitos gerados por discussões em bares, como esbarrão, dar
em cima da mulher do outro, e, também, casos de desavenças no transito que
resultou no conflito interpessoal. Esses casos são mais recorrentes porque faz
parte do cotidiano das pessoas e que, na maioria das vezes, decorrem de
ações impulsivas que podem culminar na violência letal de pessoas.
A segunda maior motivação dos crimes contra a vida, representando
26,9%, é de cunho patrimonial, que derivam, principalmente, das práticas de
latrocínio e, outras vezes, por conflitos em torno de dinheiro, herança e outros
bens materiais. Em terceiro aparecem as drogas com apenas 9% do total, que
derivam de fatores que serão tratados adiante, passando por questões de
dívidas, disputas de territórios, derrame de drogas, alcaguetagem etc.

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Tabela 2 – Circunstâncias do homicídio e da tentativa de homicídio

Circunstâncias do homicídio e Absoluto Percentagem


da tentativa de homicídio

Conflito interpessoal 197 61,0


Patrimonial 87 26,9
Drogas 29 9,0
Extermínio 4 1,2
Institucional 2 0,6
Não interpretada 4 1,2
Total 323 100,0
Fonte: Pesquisa Sujeitos do 33: um estudo sobre o mercado ilegal das drogas e homicídios na Grande Goiânia, 2014

Posteriormente tem-se o extermínio de pessoas, com 1,2%, e a violência


de caráter institucional, com 0,6 %. Cabe relembrar que os dados trabalhados
foram coletados na POG e, portanto, quando se pensa a questão dos
homicídios derivado de conflitos policiais ou praticados por grupos de
extermínio, sobretudo aqueles formados por agentes estatais, como foi
apontado na morte de 41 moradores de ruas no prazo de apenas 1 ano, a partir
de agosto de 2012, na Grande Goiânia, dificilmente vão a júri 5 e, por isso,
esses números se encontram reduzidos dentro do presídio. Portanto, na
verdade é bem possível que esse cenário indique que existam mais homicídios
e tentativas de homicídios que estejam relacionados com a droga do que
realmente foi encontrado.
Contudo, mesmo com a entrada desses novos números, fica evidente
que a violência no mercado ilegal das drogas não seja tão frequente ou a
principal responsável pelas altas taxas dos crimes contra a vida na Grande
Goiânia como argumentam pessoas ligadas aos órgãos responsáveis pela
segurança pública e a mídia. Vale ressaltar novamente que dentre os casos
daqueles que foram pegos e condenados pelo crime de tráfico de drogas
87,3% não portavam nenhum tipo de armamento no momento de suas prisões

5
A Ex-Ministra Maria do Rosário, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
(SDH/PR), entrou, no dia 17/04/2013, com o pedido de federalização dos crimes praticados contra a
população em situação de rua de Goiânia devido a deficiência dos inquéritos da polícia e de
circunstâncias relevantes não denunciadas ao Ministério Público, principalmente pelo fato de ter
agentes policiais como suspeitos dos crimes.

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e, mais ainda, 97,5% não se utilizaram de comportamentos violentos no


momento que foram pegos pela polícia.
Por fim, a categoria não interpretada diz dos casos que as narrativas não
foram satisfatórias ou evidentes para tipificar em alguma categoria anterior e,
por isso, foi criada para incluí-las.
Em um sentindo mais amplo, percebe-se que a construção
argumentativa criada pelos órgãos de segurança pública não apenas
(re)produz uma política de encarceramento como alimenta cotidianamente os
noticiários e o pensamento comum de que a repressão é necessária e que os
indivíduos envolvidos nesse mercado, seja usuário ou traficante, precisam ser
combatidos e, para isso, não há esforços a serem medidos.
Mesmo com o entendimento de que o mercado ilegal das drogas é
menos violento do que é descrito pelos órgãos de segurança pública e pela
mídia, é importante compreender que essa violência é real e praticada. Por
isso, visando justamente compreender o uso da violência no mercado ilegal
das drogas procurou-se por meio das leituras das narrativas dos prontuários de
presos por homicídios e tentativas de homicídios da POG e, também, das
análises das entrevistas com os sujeitos do 33 entender essas práticas a partir
da tipologia tripartite criada por Goldstein com o objetivo de compreender a
relação entre as drogas e a violência.

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3.2 Homicídios: o emprego da tipologia tripartite

Alguns elementos para compreender a violência no mercado ilegal das


drogas já foram debatidos ao longo da dissertação. O primeiro deles foi o
aspecto cultural embasado em uma moral rural de caráter machista que se
renovou na cidade pela sociabilidade na rua entre os jovens garotos, sem o
contraponto do feminino, em que os desaforos e as desavenças criadas devem
ser resolvidos por meio do uso da força física, como sinal de prestígio e
sucesso entre o grupo e, especialmente, entre as mulheres. Essa honra
machista ao se associar com a criminalidade urbana, em especial com o tráfico
de drogas, criou a obrigação moral de respeitar a palavra, isto é, os acordos
firmados nas negociações ilegais devem ser cumpridos em sua totalidade.
Quando a palavra é quebrada ou não respeitada abre-se então o leque para o
emprego da violência como forma de resolução dos acordos não
concretizados.
A territorialização do tráfico e o pertencimento a grupos criminosos
seriam dois outros elementos explicativos que corroboram no emprego da
violência, dada pelas disputas de territórios e do comando da própria
organização, pelo respaldo do grupo de pertencimento ou pela necessidade de
ser visto pelos demais como um sujeito que não aceita que sua masculinidade
seja desafiada.
Associado ainda a esses fatores, outro aspecto levantado é que os
mercados criminalizados, por não possuírem meios legais de resolução dos
conflitos, criam outros meios com o objetivo de solucionar os problemas de
negociação, e o emprego da arma e o uso da violência seriam um dos meios
mais eficazes e recorrentes.
Contudo, como argumenta Misse (2003), a violência não é intrínseca ao
tráfico de drogas, uma vez que se percebe que o mesmo não se verifica da
mesma forma em todas as cidades brasileira e nem mesmo dentro de uma
única cidade e, por isso, a partir da ideia de que a criminalidade varia no
tempo-espaço, é necessário atentar para as particularidades em que esse
mercado criminalizado irá se contextualizar.

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Ao fazer esse exercício em relação ao mercado ilegal das drogas na


Grande Goiânia percebe-se que nem todas as estruturas do tráfico de drogas
encontradas demandam de recursos violentos na resolução dos conflitos, como
foi elucidado em relação ao tráfico atomizado.
Caminhando nessa mesma lógica argumentativa P. J. Goldstein (1985)
procurou estabelecer a relação entre o homicídio e as drogas nos Estados
Unidos, assim ele criou uma tipologia explicativa a partir de três nexos distintos:
o psicofarmacológico, o economicamente compulsivo e o sistêmico. Enquanto
os dois primeiros estariam relacionados com o uso das drogas em si, o terceiro
nexo ele afirma derivar das comercializações de substâncias ilícitas.
Em busca de empregar essa tipologia explicativa, contextualizando a
partir do cenário pesquisado, procurou-se por meios das narrativas de
prontuários de presos por homicídios e tentativas de homicídios da POG e das
entrevistas com os sujeitos do 33 identificar os momentos em que a violência é
utilizada como um recurso regulamentador no mercado ilegal das drogas da
Grande Goiânia.
Para Goldstein (1985) o uso e a venda de drogas, tanto as legais
quantos as ilegais, bem como o contexto social onde essas atividades ocorrem,
são fatores influenciadores de outros fenômenos sociais. Ele aponta que a
droga é relacionada a várias perspectivas de cunho etiológico, como problemas
de saúde física e mental, desempenho escolar, problemas familiares, crimes,
pobreza, entre outros.
E essas perspectivas, segundo o autor, se tornaram hegemônicas até
mesmo nos estudos das ciências sociais. Visando separar a generalização
quando se relaciona a questão das drogas com a violência, Goldstein elencou
três tipos distintos em que essa relação pode ser encontrada. Assim, esses
modelos devem ser encarados, num sentido teórico, como tipos ideais, isto é,
hipoteticamente concretos, em que pode haver a sobreposição entre os três
modelos, mas não interfere no valor heurístico do quadro conceitual da
tipologia tripartite.

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3.2.1 O modelo psicofarmacológico

O modelo psicofarmacológico pode ser compreendido a partir da


mudança de comportamento praticado por algum indivíduo após o consumo de
alguma substância, podendo agir de forma impulsiva e violenta em relação às
outras pessoas. As substancias que têm maior poder de alteração são,
sobretudo, o álcool e, posteriormente, crack e cocaína.
Para que a mudança de comportamento tenha alguma alteração de
caráter violento não é necessário nenhum motivo relevante, apenas o uso da
substância e uma justificativa torpe para que se exploda uma reação, como no
exemplo abaixo.

Por volta de 1 hora da madrugada os três envolvidos saíram do


bar, ficando nas proximidades do mesmo conversando. Quando o
acusado pediu a vítima um cigarro, tendo seu pedido recusado. Por
causa da recusa, iniciou-se uma discussão entre os três, contando com
o outro acusado que participou do assassinato.
Em determinado momento a vítima foi derrubada, caindo no
chão, momento em que o primeiro acusado começou a golpear a
cabeça da vítima com pedaços de concreto, enquanto o segundo
acusado a chutava, até que a mesma veio a desfalecer.
Com a vítima desacordada, os denunciados a carregaram para
um matagal nas proximidades, localizado atrás de um campo de
futebol, onde o primeiro acusado, utilizando-se de uma pedra, terminou
de executar a conduta criminosa, golpeando a cabeça da vítima de
forma extremamente cruel. (prontuário 37)

O uso dessas substâncias provocaria em alguns agentes um tipo de


comportamento em que a realidade seria distorcida e, por isso, haveria uma
incapacidade de sentirem medo. E esse tipo de comportamento é visto,
principalmente, em bares ou festas e, quase sempre, após o consumo de muita
bebida alcoólica.

A vítima encontrava-se em um bar, juntamente com os irmãos


e amigos, momento em que chegou ao local o acusado. Este juntou-se
aos que ali estavam e passou a beber com os mesmos.

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No momento em que todos passaram a efetivar o pagamento


da conta, o acusado mostrou sua carteira vazia, dizendo que não
possuía dinheiro para pagar a referida despesa, sendo que foi
chamado a atenção pela vítima. O acusado, então, se propôs ir até a
sua residência para pegar o dinheiro e fazer o tal pagamento.
Assim, o acusado retornou ao bar após ir à sua casa,
chamando a vítima para continuarem tomando cerveja. Ocorre que
antes de todos saírem, o acusado retirou uma faca que portava em sua
cintura e desferiu um golpe que atingiu o peito da vítima. Ainda ferida, a
vítima pegou a garrafa de cerveja para se defender, porém já era tarde,
e faleceu no local. (Prontuário 173)

O uso de álcool e o vexame em público foram os elementos para que a


conduta agressiva do agente que praticou o crime viesse à tona. A questão da
moral machista novamente é retomada nesse modelo de relação entre drogas
e violência. Como o uso da substância impede a sensação de medo e, isso, é
justamente a base para ser considerado um “verdadeiro” homem, o
comportamento violento então se torna comum e necessário.

A vítima era policial militar e não estava trabalhando no dia em


que foi morta. Por volta de 21 horas do dia referido se dirigiu a um bar
com um amigo e um sobrinho onde beberam cerveja. Por volta das 23
horas se dirigiram a outro bar e continuaram a beber.
Em seguida, segundo algumas testemunhas, o policial
assediou uma mulher que estava no recinto e logo em seguida seu
amigo lhe deu um beijo na mesma mulher. Como a mulher estava
acompanhada, iniciou-se neste momento uma briga entre os citados
anteriormente.
O policial (vítima) havia emprestado sua arma para um amigo
presente no bar e este havia atirado para cima, segundo o próprio. Em
seguida, o acompanhante da mulher atirou contra a vítima que morreu
logo em seguida. O atirador confirmou a autoria e alegou que foi por
legítima defesa. (Prontuário 234)

A violência psicofarmacológica não se limita apenas a determinados


espaços. Esses tipos de comportamentos são vistos nas mais variadas
situações, desde assaltantes que se utilizam de alguma substância para
ganhar coragem na prática delituosa, passando pelas brigas de trânsito em que

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pessoas estejam alteradas pelo uso de drogas, ou no próprio ambiente familiar


onde os sentimentos são mais aflorados e com o uso de drogas, sobretudo o
álcool, eles se tornam mais expressivos.
Uma das práticas mais comuns associada ao modelo
psicofarmacológico é a violência doméstica ou a violência contra a mulher.
Aqui o uso da droga por certas pessoas atreladas ao comportamento machista
se torna uma pólvora para condutas cruéis e violentas. Nesse tipo de violência
cria-se toda uma justificativa que envolve traição, desprezo, posse etc.

Denunciado e vítima conviviam em união estável a


aproximadamente 2 anos, desenvolvendo um relacionamento marcado
por brigas e desentendimentos, já que ambos era usuários de crack e
de bebidas alcoólicas.
A relação do casal era bastante conturbada, sendo que o
denunciado agredia a vítima fisicamente com frequência, tendo
inclusive ateado nela fogo em uma briga anterior.
No dia do fato a vítima saiu da residência do casal dizendo que
iria passar a noite na casa de sua genitora. O denunciado passou a
noite inteira ingerindo bebidas alcoólicas e pela manhã, após o retorno
da vítima, iniciou uma discussão questionando onde ela teria
pernoitado, insinuando uma suposta traição.
Durante o entrevero, o denunciado agrediu a vítima apertando
seu pescoço com um golpe “gravata”, causando-lhe asfixia que
resultou em sua morte. (Prontuário 74)

Na violência psicofarmacológica pode envolver o uso das drogas por


tanto pela vítima como pelo autor, ou apenas uma das partes. Outros casos
que diferenciam vêm dessa alternância, quando a pessoa que faz o uso da
droga se torna a vítima de violência. Nesses casos, em sua maioria, deriva-se
da irritabilidade ou conflito que ela gera no autor da violência.

Segundo consta nos auto que a causa do crime foi o fato do


autor, dono do bar, ter perdido uma partida de sinuca para a vítima, um
cliente que estava a algum tempo ingerindo bebida alcoólica. A vítima
então brincou com o acusado perguntando se ele era “delício” ou
“delícia”, empregando seu apelido de forma pejorativa e, ao mesmo
tempo, brincando com a masculinidade do autor.

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As filhas do acusado afirmaram que ouviram tiros e ao sair da


casa depararam com a vítima caída na área de sua casa. Alegaram
que o acusado não retornou ao local após praticar o crime.
A esposa do acusado conta que após a brincadeira no jogo de
sinuca o acusado abaixou as portas do bar para impedir que a vítima
fugisse e, por esse motivo, ela teria corrido em direção aos fundos do
lote, onde se situa a residência do indiciado, momento em que o
acusado disparou o tiro que tirou a vida da vítima. (Prontuário 214)

Nesse tipo de violência qualquer pessoa pode então se tornar vítima ou


autor e ela pode ocorrer em vários lugares e de diversas formas. Além disso, é
um número complicado de ser contabilizado, pois a quantidade de crimes e
delitos oriundos não é relatada à polícia, principalmente quando não há vítima
fatal, e, por isso, não recebem notificação e nem possuem registros oficiais.

3.2.2 O modelo econômico compulsivo

O modelo economicamente compulsivo se refere aos crimes praticados


por usuários de drogas com o objetivo econômico, como, por exemplo, a
prática de roubo, assalto, latrocínio com o objetivo de conseguir dinheiro ou
algum bem para comprar drogas.

O denunciado era sobrinho da vítima. O denunciado, usuário


de crack, foi à casa de seu tio na intenção de roubar um fogão para
comprar drogas, quando foi impedido pelo seu tio. Momento em que o
acusado foi na cozinha e pegou uma faca desferindo várias facadas na
vítima, que veio a falecer no local.
Depois o acusado pegou diversos móveis e objetos da casa e
os levou para um lote baldio próximo da casa de seu tio. Nos dias
seguintes ele começou a revender os objetos e os móveis roubados
por toda região para comprar droga. (Prontuário 305)

As pessoas vítimas desse modelo de violência podem ser qualquer uma,


desde parentes, amigos, desconhecidos, outros usuários de drogas,
traficantes. E a principal substância envolvida é o crack. Os casos de furtos e
roubos acontecem em regiões em que há grande concentração de

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dependentes químicos, como áreas onde formam cracolândias, em que há


muita circulação de pessoas que facilitam as atividades criminosas, como
locais próximos às rodoviárias, terminais, os centros das cidades.

Extrai-se dos autos que, no dia do fato, as vítimas foram até


uma apresentação de música na Avenida Goiás, em frente ao Grande
Hotel, juntamente com outros 2 amigos. Os denunciados, usuários de
crack, também estavam presentes na referida apresentação.
Por volta das 23 horas as vítimas saíram do local e resolveram
ir, a pé, até uma apresentação de dança que estava ocorrendo na
Galeria Cine Ouro. Os denunciados também saíram da apresentação e
foram para o Edifício Dona Chafia, onde reside a namorada de um dos
denunciados.
Os denunciados ficaram em frente ao edifício esperando
alguma vítima passar para subtrair bens para trocar por drogas. Nesse
momento, passaram em frente aos acusados a vítima fatal e seus
amigos.
Os denunciados abordaram o amigo da vítima e utilizando de
força lhe subtraiu o seu celular. Ao ver a cena, a vítima tentou socorrer
o amigo e, por isso, recebeu uma facada causando-lhe a morte ali
mesmo no local. (Prontuário 242)

Os indivíduos que cometem o crime dentro do modelo economicamente


compulsivo não são motivados pelo impulso, mas pela vontade de obtenção de
dinheiro ou de bens para comprar drogas. E o uso da violência não é racional,
normalmente ela deriva de fatores que estão de acordo com o contexto social
em que o crime aconteceu, como nervosismo do autor, a reação da vítima, ou a
chegada de outras pessoas que atrapalharia o roubo ou assalto.

A denunciada praticava tráfico de merla nas proximidades do


Dergo, ao lado da rodoviária do setor Campinas. A vítima, que também
frequentava o local, em determinado momento começou a discutir com
a denunciada. Até o momento em que a denunciada sacou uma faca
de cozinha que estava em sua cintura e desferiu um golpe certeiro
contra a vítima. Esta, desarmada, não esboçou qualquer reação de
defesa. Conforme seu interrogatório, a acusada afirma que a vítima

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quis roubar sua droga e seu dinheiro, que a vítima era viciada em
drogas, e que por mais de 3 vezes a vítima já tinha lhe roubado e a
jogado no chão. (Prontuário 91)

Este tipo de crime também pode ocorrer diretamente entre o dependente


químico e o traficante. Nesses casos, pode ocorrer o roubo das drogasse
dinheiro, chegando, até mesmo, a morte de pessoas. Um dos entrevistados
disse que houve esse tipo de ocorrência com uma irmã que também
comercializava drogas.

P – E a sua irmã, como foi a morte dela?


R – Minha irmã foi a cumade e o cumpade da minha mãe.
P – Você sabe o motivo?
R – Ela tinha pegado uma remessa de droga boa e tinha um dinheiro
também que tinha levantado sobre o lucro. Ela vendeu 1 quilo de base
e ganhou lucro, e ai ela pegou mais 1 quilo e ainda ficava mais uma
pontinha, ai ela por confiar nesse povo, esse povo matou ela na
facada. Eles tão preso lá em Luziânia por latrocínio.
P – Foi pra roubar ela?
R – Foi. A minha outra irmã falou assim “fulano e fulana”, ai eu falei
assim “não é possível”, e ela “pois é possível, porque quando a polícia
invadiu a quebrada deles lá, eles ainda tava com a droga, uma parte do
dinheiro e algumas coisas da Luciana”. Então eles estão até seguro lá
em Luziânia.
P – Eles também tinham boca?
R – São viciados. Ela confiou neles, mas não era de confiar, confiou
neles porque era cumpade da minha mãe, só que eles já tava viciados.
(Homem, 43 anos)

Quando ocorrem essas situações normalmente o autor do crime terá que


arcar com as consequências. Assim, abre-se o leque para a prática de novos
crimes a partir do sentimento de vingança e pela honra familiar. E esse tipo de
violência, segundo Goldstein (1985), nos levaria ao terceiro modelo em que a
droga se relaciona com a violência, o modelo sistêmico.

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3.2.3 O modelo sistêmico

O modelo sistêmico é apontado por Goldstein (1985) como o que tem o


maior poder explicativo na relação entre violência e drogas. O autor vai dizer
que a violência empregada nesse modelo é intrínseca ao envolvimento com
qualquer mercado ilícito, porém dependente do contexto social em que ele se
formará. Por isso, essa violência se refere aos padrões específicos de
agressividade que são gerados das interações que ocorrem dentro do sistema
de comercialização das drogas.
Os exemplos de violências derivadas do modelo sistêmico encontrada
no mercado ilegal das drogas na Grande Goiânia foram as seguintes:

 As Dívidas de drogas;
 O Derrame das drogas;
 Disputas internas dentro grupo de tráfico;
 Disputas pelos territórios de comercialização;
 Alcaguetagem;
 Vingança;
 Grupos de extorsão e extermínio
 Queima de arquivo;

A primeira delas, as dívidas de drogas, é a mais utilizada como


argumento pelos órgãos de Segurança Pública e pela mídia para explicar a
violência envolvida no tráfico de drogas. De certa forma, a violência resultante
da dívida, dentro do modelo sistêmico, é a mais recorrente. Tais motivos já
foram explicitados no decorrer do texto, ao afirmar que não é apenas o valor
monetário em si, mas, sobretudo, a quebra dos acordos firmados e não
cumpridos.

Apurou-se que os 2 denunciados vivem em regime de união


estável e são fortes traficantes de drogas da região. Ao passo que os
outros 3 denunciados são seus parceiros nas ações criminosas
perpetradas, quer seja na venda de drogas, intimidando pessoas ou
eliminando-as.

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A vítima, por sua vez, era usuária de droga e devia certa


importância de dinheiro para os denunciados, cujo débito era originário
da compra de entorpecentes. A vítima residia com suas irmãs e seus
sobrinhos na casa onde foi assassinada.
Os denunciados foram à casa da vítima. Para garantir o
sucesso da empreitada criminosa, a denunciada chegou sozinha no
portão e chamou a vítima, passando a conversar com ela
amistosamente. Logo chegou o amasiado dela, o outro denunciado, e
de imediato desceu do veículo e efetuou um tiro na vítima.
Após ser feriada com o primeiro disparo a vítima correu para
dentro de casa e tentou se esconder no banheiro. Suas irmãs foram
rendidas pelo outro denunciado, enquanto o primeiro denunciado foi
em busca da vítima pela casa e a encontrando dentro do banheiro,
local onde ele efetuou vários tipos na vítima, que veio a óbito no local.

As principais vítimas decorrentes das dívidas de drogas são usuários


que normalmente as compram fiado e não pagam no prazo estimulado. Mas há
relatos também de que outros traficantes que pegam as drogas fiadas e não
cumprem com as obrigações dentro do tempo devido também sofrem
retaliações que podem culminar com as suas mortes e, até mesmo, a morte de
pessoas da família.

A vítima era usuária e também traficava drogas. Os depoentes


contam que a vítima no dia do crime estava na companhia de sua
namorada a caminho da casa da mesma, onde guardava as drogas
que vendia. No caminho apareceu 2 rapazes numa motocicleta, o que
estava na garupa desceu e sacou uma arma e disse para a vítima “hoje
você vai morrer”. Em ato contínuo desferiu vários tiros na vitima.
A mãe da vítima suspeita que o motivo do assassinato seja
uma dívida de droga, uma vez que seu filho disse que pegou uma
droga pra vender e ainda não havia pagado. Conta ainda que dias
antes um rapaz apareceu em sua casa ameaçando o seu filho dizendo
que iria matar a sua família. A mãe relatou ainda que o filho dias antes
da morte foi espancado e ameaçado por um PM e que ele acreditava
que o mesmo estava a serviço do denunciado. (Prontuário 14)

Essas retaliações podem ser realizadas tanto por traficantes,


aviãozinhos, usuários em troca de drogas e, até mesmo, por agentes estatais
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contratados para desempenhar essa função de cobrança. As vítimas podem


ser tanto homens quanto mulheres, bastam que elas não cumpram com a
palavra. Um dos entrevistados diz o seguinte quando mulheres ficavam lhe
devendo

Tem muita mulher gostosa que trabalha ai, eu já matei 3 que se achava
gostosinha, porque tinha silicone e tal, e pensava que a droga é de
graça e ia ficar com o dinheiro, elas pensava “sou bonitinha, sou
gostosa, e ele vai me comer”; (Homem, 30 anos)

Esse tipo de atitude mostra mais claramente ainda que o universo do


mercado ilegal das drogas, por mais que existam mulheres atuando, é
extremamente machista. E os compromissos, independente do gênero, devem
ser respeitados.

Verifica-se que, na tarde de 03 de maio de 2009, como de


costume, por ser dia de domingo, as vítimas foram ao parque Vaca
Brava se reunirem com companheiros do grupo GLS, dentre eles 2
menores, sendo um deles irmão da primeira vítima.
O acusado foi também ao parque por volta das 22h30 minutos,
encontrou as vítimas e seus amigos. Denunciado, vítimas e amigos
ficaram conversando por algum tempo e, por volta das 23h30 minutos,
quando o irmão da primeira vítima já havia ido embora, chegaram ao
referido parque outros dois amigos que se juntaram a aqueles.
Após no início da madrugada, o denunciado, vítimas e
testemunhas decidiram ir até uma casa abandonada próximo ao
parque Vaca Brava, na qual o fato em tela ocorreu, sendo que, antes
de irem até a casa, foram a uma distribuidora de bebidas e adquiriram
uma garrafa de vodka, refrigerante e uma carteira de cigarros.
Por volta das 4h30 minutos, o denunciado e uma das vítimas
subiram para o andar de cima da mencionada casa em um quarto e
trancou a porta, local em que mantiveram relações sexuais e passaram
o restante da noite, sendo que as demais pessoas ficaram na parte
inferior da casa.
Por volta das 6h15 minutos da manhã o casal desceu para a
parte inferior da casa, onde estava a segunda vítima, ocasião em que o
denunciado disse às vítimas que estas teriam que pagar certa dívida
referente à droga, mas uma das vítimas gesticulando disse “aqui que
vou te pagar”.

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O denunciado vendo que a vítima não pagaria desferiu um


murro contra a garota, o qual atingiu e a derrubou, ficando a vítima
desacordada no chão. Em seguida, a outra vítima, tentou correr, mas
foi alcançada pelo autor do crime, o qual a estrangulou com as mãos
até a morte. Ato contínuo, o denunciado foi até a outra vítima, que
ainda se encontrava desacordada, e também a estrangulou até a
morte.
Após esse fato, o denunciado levou os corpos das vítimas até o
banheiro na parte superior da casa e as cobriram com papel higiênico e
colocou fogo nelas, causando combustão parcial dos corpos.
(Prontuário 309)

Nos casos de dívidas de drogas, nem sempre apenas o devedor é quem


sofre com a violência. A ameaça praticada contra quem deve e, às vezes
realizada de forma humilhante, seja motivo para que alguma atitude seja
tomada antes que a advertência se cumpra. Nesses casos, antes do
ameaçador agir empiricamente no ato delituoso, o devedor acaba operando
antes.

No dia anterior ao crime, a vítima, denunciado e mais duas


testemunhas estavam fazendo uso de drogas. Sendo que em
determinado momento, a vítima cobrou do acusado uma dívida de
certa quantidade de crack. Ao que enfurecido com tal situação, o
denunciado respondeu “eu não tenho, sai de perto de mim, senão vou
acabar te matando”.
Com se não bastasse, mesmo depois de ter ido embora, o
acusado retornou, já na parte da manhã, proferindo novas ameaças de
morte à vítima. Sendo que minutos depois, procurando efetuar suas
ameaças, o denunciado, efetuou disparos de arma de fogo na cabeça
da vítima, de modo a impossibilitar-lhe a defesa, levando-a a morte.
(Prontuário 304)

Os desacordos financeiros somados ao não cumprimento da palavra, ou


as ameaças vexatórias realizadas se tornam elementares na hora de fazer
valer o respeito e a honra, que muitas vezes ocorrem por meio da força física.
E há outro momento da dívida de drogas que não é apenas pelo lado financeiro
em si, é quando ocorre o derrame das drogas.

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O derrame das drogas é quando um indivíduo repassa a droga para


outra pessoa com o objetivo que ela venda, mas ela, por ser usuária, ao invés
de vender acaba usando e, com isso, cria-se um débito com o indivíduo que a
lhe repassou. A dívida criada não impõe de imediato o uso da violência,
procura-se outros meios pacíficos para a resolução do problema, até mesmo
repassar outra quantidade de drogas para quitar a nova dívida e a anterior.

P – Você dava chance pra eles?


R – Eu gosto de conversar, pra eu chegar e matar você é preciso você
ter feito comigo uma coisa muito errada, ou você bateu na minha cara,
ou você estuprou a minha filha. Geralmente quando é questão de
trabalho a gente tem que dialogar. Não é chegar porque deve e matar,
não. O cara deve 10 mil, a gente chega e conversa com o cara “que
que tá acontecendo?” “vai trabalhando ai, vai me dando nem que
seja 500 por mês”, eu sou muito de dialogar. Mas quem trabalha
comigo fala “cara, vamos dialogar não, vamos chegar e sentar o dedo”,
ai eu “não, quem da as cartas sou eu, você vai matar não, a gente vai
dialogar, a gente vai matar dependendo da conversa que tiver com ele,
independente se for mulher”. (Homem, 30 anos)

Esse tipo de endividamento por conta do derrame das drogas acontece


normalmente entre o patrão da boca e seus aviãozinhos. Ele difere da forma de
endividamento que ocorre entre vendedor e cliente, pois é uma relação que se
estabelece dentro do próprio grupo de tráfico. O patrão não quer perder um de
seus bebês, e por isso não usa de imediato a violência como forma de
resolução do problema, primeiro cria-se um diálogo e novas chances são
dadas, caso ele continue pisando na bola outras atitudes mais extremadas
deverão ser tomadas.

P – Mas na primeira já fazia isso ou dava uma chance?


R – A gente dava duas ou três chances, mas quando via que o cara era
sem-vergonha demais ai a gente não tinha outra opção, a gente falava
com os meninos e os meninos iam lá e matavam, ai ficava por isso
mesmo, ai divida estava paga, mas foi só uns três quatro que
aconteceu isso, mas o resto sempre andou de boa
P – Ai os próprios meninos da rede que faziam?

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R – É. A gente marcava os encontros, eles iam e os meninos ia lá


matava. (Mulher, 20 anos)

O derrame das drogas envolve, sobretudo, aqueles indivíduos que são


viciados em crack, pela fissura causada pela abstinência da droga e por ter
elas em mãos, não há uma racionalidade sobre o risco e a consequência em
usá-la. Diante desses fatos, muitos conflitos internos podem ocorrer e, mais
ainda, por conta da contração da dívida, esses sujeitos acabam cometendo
outros delitos, furtos e assaltos, na intenção de levantar o dinheiro para quitar o
débito em aberto.

Segundo consta, a vítima era usuária de droga, principalmente


crack, e o primeiro denunciado a conhecia há cerca de 8 meses, sendo
que este, dois meses antes abandonara o serviço para dedicar-se
exclusivamente ao tráfico de merla, e, para tanto, procurou a vítima
para ajudá-lo a revender a droga, entregando-lhe inicialmente, uma
semana antes dos fatos, 3 porções do entorpecente para que fossem
revendidos ao preço de R$150,00.
De posse da referência substância, a vítima, que era usuária de
crack, ao invés de revender, fez uso da droga recebida, contraindo,
assim, débito pecuniário para o primeiro denunciado no valor
supracitado.
Cerca de 3 ou 4 dias antes do crime, o primeiro denunciado
começou a procurar insistentemente a vítima para receber o valor da
droga e o ameaçou de morte caso não pagasse. Consta nos autos que
a vítima amedrontada tentou levantar o valor de débito com outras
pessoas, inclusive com sua genitora, todavia, não logrando êxito.
No dia do fato, por volta das 19 horas, o segundo denunciado
esteve na casa da vítima e a convidou para ir encontrar algumas
garotas. Nesse instante, a vítima, sem desconfiar do verdadeiro
proposito do segundo denunciado, e após convidar outro amigo que
estava em sua companhia, o qual recusou o convite, em seguida
montou na traseira da mobilete do segundo denunciado e partiu para
seu trágico destino.
O segundo denunciado, que havia acordado previamente com
o primeiro denunciado a execução da vítima, a conduziu até o local
combinado, ou seja, o local do fato. Ali chegando, o segundo acusado
parou a mobilete, e tão logo a vítima desceu, o primeiro denunciado

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que já a esperava sacou sua arma e efetuou 3 disparos na mesma, que


caiu ao solo no mesmo local onde foi alvejada. (Prontuário 311)

O endividamento advindo pelo derrame da droga é outra forma


explicativa para o emprego da força dentro do grupo do tráfico, que é
ocasionado pelo uso da droga e, consequentemente, o não repasse do dinheiro
para o patrão. Outra forma de violência sistêmica no mercado ilegal das drogas
é quando indivíduos travam disputas internas dentro do grupo de tráfico em
busca do comando da boca.
Esse tipo de disputa interna dentro do grupo ocorre, quase sempre, no
modelo de tráfico associado com o objetivo de conseguir o comando da boca
por meio da força. Nesses casos, algum aviãozinho, cobiçando o lugar do seu
patrão, age por meio da violência com o objetivo de roubar a boca para si e se
tornar o novo patrão da boca.

Noticiam nos autos inquisitoriais que vítima e acusado


moravam no mesmo imóvel, sendo que a vítima era traficante de
drogas e o acusado trabalhava para ela. Ainda diz que a tempos o
acusado desejava se torna o traficante do local, motivo pelo qual pegou
a arma da vítima que se encontrava debaixo da cama e ficou
aguardando a mesma chegar em casa.
A vítima retornou e perguntou onde estava a sua arma de fogo,
instante em que o acusado retirou a mesma da cintura. Em seguida,
sem qualquer discussão antecedente, o acusado apontou o revólver
em direção à vítima e desferiu 2 tiros contra a sua cabeça, tendo a
mesma caída desfalecida e vindo a óbito no local. (Prontuário 300)

As disputas internas dentro do grupo de tráfico são menos frequentes


pelo fato da facilidade que se tem em construir novas bocas. E a construção de
novas bocas pode demandar o uso de comportamentos violentos por conta das
disputas pelos territórios de comercialização aonde os empreendimentos
ilegais irão se instalar.
A disputa por território é apontada pela polícia e pela mídia como outro
aspecto importante para a presença da violência no mercado ilegal das drogas
da Grande Goiânia. Entretanto, poucas vezes se deparou com esse tipo de
comportamento nas cidades pesquisadas. Ele existe e pode ocorrer tanto entre

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aviãozinhos na disputa por pontos de venda ou por patrões de bocas ou chefes


de grupos organizados querendo tomar alguma boca ou o comando da venda
de drogas sobre alguma determinada região.

P – Tem esses conflitos aqui assim de pontos, porque acaba sendo de


região?
R – Sempre tem. Então tipo assim a gente ganhava dinheiro demais e
eles cresciam o olho, ai eles falava que a gente estava roubando os
pontos deles ai foi onde aconteceu o fato. (Mulher, 20 anos)

A violência então se torna presente nesse tipo de disputa, porém não é


sempre que ela acontece. Dependendo da situação pode existir uma
negociação, mesmo que ela seja impositiva a quem recebe. Um dos
entrevistados, chefe de um grupo de tráfico organizado, que vende para
diversas bocas de uma região de Goiânia diz que quer se tornar o fornecedor
de todas as bocas de tal região, assim, criou uma estratégia para atingir o seu
objetivo, ele nos conta o seguinte:

P – Tem essa disputa de território em Goiânia? Porque a gente escuta


isso sobre o Rio.
R – Em Goiânia não tem não cara. Aqui tem essa disputa, tem e ao
mesmo tempo não tem, porque geralmente eu vou e entro lá na sua
favela, eu não vou pedir licença igual a gente faz aqui, eu
simplesmente vou chegar aqui e “quem é o cara que comanda aqui?”
“ah, é fulano”, ai vou chegar no fulano “e ai fulano, você tá
comandando, você tá vendendo droga lá? Tá faltando droga, você tá
comandando e tá deixando os cara faltando droga” ai o cara “não, é o
que eu tenho” “se você não tá tendo, então você sai fora”, ai nós
entra. Ai se o cara desacreditar e vir, ai tem conflito.
P – Você já teve esse tipo de conflito?
R – Já, muitas vezes. O cara fala “não vou sair, eu vou dar um jeito”, ai
eu “não vei, você não tá tendo condição. Nós vai por nossa droga
ai e se você quiser trabalhar com a gente, tudo bem. Se você tá
com problema de abastecer, então você trabalha com nós”. A
gente chama o cara pra trabalhar, a gente chama a mulher pra
trabalhar, mas se ela for ignorante, topetuda, a gente deita. Antes de
deitar, porque matar não é solução, a gente não resolve os
problema matando, a gente conversa dialogando, a gente resolve os

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problema dialogando, mas se a pessoa desacreditar, ai a gente tem


que conferir. Mas a gente, eu mesmo não vou chegar e tomar aquela
boca lá, por semana ela rende 30 mil, “poxa aquela boca tá
rendendo 30 mil, quem tá comandando?” “é fulano” “poxa, lá tá
rendendo 30 mil por semana, vou cair pra dentro dessa boca”, ai a
gente cai pra dentro, ai se o cara retrucar, mas antes de acontecer isso
a gente conversa “ou, sua boca tá rendendo 30 mil, você sabe disso,
você não tá dando conta de abastecer, então trabalha com nós, pega
nossa droga” ai o cara “não, vou pegar porra nenhuma não, se eu
quiser pegar eu pego a minha lá embaixo” “mas tem mais de mês que
sua boca tá parada, o que que tá acontecendo? Vamos trabalhar com
a gente? A gente não precisa de invadir assim, vamos conversar?
Vamos ajeitar, se você der conta você continua”, ai o cara paga com
ignorância, uns não, uns fala “demoro, quero mesmo, não quero
morrer, tenho amor pela minha família, melhor vocês pegar essa
boca”, ai a gente pega. Outros fala “não, só vou sair daqui só se for
com a morte” “ah, só se for com ela? Então a gente vai ai levar pra
você”. (Homem, 30 anos)

Do mesmo modo que nas outras formas de violência sistêmica é


possível perceber nas disputas pelos territórios de comercialização elementos
culturais de honra e machismo. A própria disputa é característica cultural do
comportamento masculino, e agrava no mercado capitalista e, ainda mais,
quando esse mercado é ilícito e criminalizado. Entretanto, no sentido de
preservar a honra, já que não houve desavença ou a quebra do acordo,
procura-se estabelecer um tipo de relação comercial amistosa por meio de
propor um tipo determinado de parceria, mesmo que impositiva. Contudo,
quando tal ação não tem seus resultados positivos, derivam-se atitudes mais
extremas e violentas na busca de tomar bocas ou o comando de drogas sobre
determinados espaços das cidades.
Além desse tipo de violência sistêmica, existem outras duas formas em
que a honra se faz presente. A primeira delas é a violência derivada da
vingança. Nesses casos, o motivo da vingança pode ser múltiplo, como a
perda de uma boca, a morte de um aviãozinho ou amigo, a retaliação a um
policial pela prisão, entre outros.

P – Você considera algum risco de morrer?

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R – Eu sou uma lenda viva, já levei vários tiros, já levei 22 tiros.


P – De uma vez só?
R – Não, de várias sequências. Levei tiros que pessoas “ah meu pai
eterno, você tá vivo?”. Eu já tomei até arma de PM da ROTAM, eles
passando armado aqui, o cara queria me matar, eu não tinha uma
arma comigo, bati o olho na arma do PM e pensei “aquela arma que vai
comigo”. Eles ficaram doidinho correndo atrás de mim pra pegar, mas
não conseguiram pegar. O cara matou o meu cumpade, que também
era um traficante, entendeu? E ficou jogando conversa. Eu falei pra
viúva, se você tiver precisando de alguma coisa me ligar que eu venho
cá e te ajudo. Eles era padrinho da minha filha, ela falou “eu tô sendo
oprimida, eu tô sendo oprimida, a ponto de mudar”, ai eu falei “eu vou
pegar esse cara”. Ai a ROTAM atrás de mim, e tudo na sequência, tudo
naquele dia, eu tomei a arma 10 horas da manhã, e eles fazendo cerco
no bairro e eu lá. Ai de tarde eu encontrei o cara com baseado,
encostado na moto, que tinha matado o cumpade, encostado na moto
com os amigos, entendeu? Eu cheguei “e ai bichão? Cê é o cara, em?”
ele “sou cara não, eu sou O cara”, falei “Pois é, quem de vocês tá
pronto pra pilantragem, vocês mataram um traficante ai, vocês tudo ai é
ladrão?”, todo mundo parou assim no tempo, entendeu? Falei “e ai
bichão, você é o cara” “vamos no braço comigo?” eu falei assim
“no braço eu não consigo ir com você nunca na vida, eu sei que você
é capoeirista jhow, mas no ferro vai”, ai ele “isso dai eu pago pra ver”.
Nesse dia não recebi nenhum tiro, apesar de 8 tiros disparados. Eu dei
só 1 tiro nele, mas ele não foi a óbito de imediato, ai ele saiu correndo
ainda e parou na quadra a certa distância assim e falou “ai cara, eu
vou te matar”, entendeu? Ai eu voltei na quadra e falei “você já é um
homem morto”, ai ele caiu olhando pra mim no meio de uma
multidão.
P – Onde o tiro pegou nele?
R – Atravessou o coração. Eu sabia que ela era letal. 38 com repicado
e que dá um impacto. Ai atirei e ele caiu, ai um outro cara falou assim
“e ae cara, você é louco diabo?”, ai falei “o cara matou meu
cumpade, você vai cobrar fino do cara?” “não é cobrar fino do cara,
mas não é pra fazer o serviço do cara que nós não vai deixar não”, ai o
pessoal que tinha assistido da 1 tiro, ai acabei e dei mais 3, uns
correu pra cá, outros correu pra lá, ai só vi pipoco comendo, pá pá pá
pá pá pá pá. (Homem, 43 anos)

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A vingança derivada do mercado ilegal das drogas é algo comum ao


universo bandido. Aqui o crime procede pela honra ferida, seja um bem
material, um comando ou a morte de alguém próximo, nesses casos, como
dificilmente podem apelar para a justiça legal e, também, quando ela pode
interferir, como no homicídio acima relatado, ela demora dar algum resultado,
e, por isso, o sujeito que sofreu com o ocorrido toma a iniciativa de fazer a sua
própria justiça valer.
A lei da força também vale outra forma encontrada de violência
sistêmica no mercado ilegal das drogas da Grande Goiânia. A prática violenta
vai derivar do rompimento de condutas normativas de pessoas que estão
envolvidas no tráfico de drogas, mas também pode acontecer de pessoas
externas ao mundo criminoso, para isso basta a prática da acaguetagem.
A caguetagem é vista pelos criminosos como uma das piores condutas
praticadas e, por isso, não pode ficar sem resposta. A prática da caguetagem
pode ser cometida de diversas formas, pelas mais variadas pessoas e pode
atingir diversos tipos de indivíduos. O primeiro caso encontrado é quando um
indivíduo externo ao círculo do crime delata o traficante para a polícia e, em
consequência, sofre algum tipo de retaliação.

Infere-se no bojo do fascículo policial que a vítima teria


delatado à polícia o acusado pelo crime de tráfico de drogas, tendo
este, inclusive, sido preso por tal fato.
No dia do crime, o denunciado encontrava-se na porta de sua
casa em companhia dos amigos, entre eles um menor, ingerindo
bebidas alcoólicas, quando avistaram a vítima passando pela rua em
companhia de dois rapazes.
O denunciado, revoltado com a alcaguetagem da vítima, gritou
para que a mesma vazasse do setor. Diante da recusa, iniciaram uma
breve discussão.
O denunciado portando uma faca escondida entre a mão e o
antebraço se dirigiu até a vítima cravando a arma em seu peito. A
vítima caiu, oportunidade que o menor arremessou um pedaço de
concreto, por duas vezes, contra a cabeça da vítima. Em seguida, o
denunciado e o seu comparsa menor de idade fugiram do local.
(Prontuário 318)

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A caguetagem atinge a honra de pessoas associadas ao tráfico, mas


não somente elas. A prática de delatar também está agregada à questão da
moral masculina, pois a pessoa que entrega alguém não é considerada de
respeito e, por isso, precisa receber algum retorno disciplinar como exemplo. E
a resposta pode vir tanto de criminosos quanto de outras pessoas que circulam
pelo crime.

A vítima foi morta por 2 homens. Ela era usuária de drogas e


possível traficante. Consta nos autos que 2 meses antes a vítima foi
pega pela polícia e foi vítima de agressão pelos agentes policiais e,
por isso, realizou uma denúncia oficial. Segundo testemunhas os
autores são policiais que o mataram com a seguinte alegação “isso é
pra você aprender a não mais falar o que não devia”. (Prontuário 70)

Os agentes estatais além de agir nessa prática violenta em relação aos


sujeitos que alcaguetam as suas condutas, eles também agem dentro do
modelo de violência sistêmica das mais variadas formas, seja pela venda da
sua força física a grupos de traficantes ou agindo entre seus pares formando
grupos de extorsão e extermínio.
Nesses casos, esses grupos vão agir de duas formas, a primeira delas é
praticando a extorsão em cima de traficantes, exigindo deles dinheiro, caso
contrário pode ser que drogas sejam apreendidas e os criminosos detidos.
Quando os acordos não são respeitados ou quando a polícia na verdade quer
fazer uma casinha para extorquir o indivíduo que trafica ou pra prendê-lo, a
violência pode ser desencadeada de ambas as partes.

P – Ia perguntar se você já teve esses confrontos?


R – Já, eu tenho 7 Bala s, pode contar
P – Foi com a polícia?
R – Foi, não foi com a polícia geral, foi com 2 policial civil. O cara que
trabalhava pra mim queria a droga, ai fui levar a droga pra ele, cheguei
lá e eles tinha armado uma casinha. Os policial civil queria dinheiro, ai
na hora que eu passei por ele, ai que vi que era ele, que tava esse que
eu matei, ai que eu vi que era casinha armada, ai os 2 policial saiu de
trás da árvore assim e falou “para ai”, ai eu não parei, eu acelerei a
moto e eles me deram tiro, e eu tava com a minha 9 milímetro e cai, ai

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do chão mesmo eu dei, tava assim deitado, tava com medo de morrer,
na angustia, tava com medo mesmo de morrer esse dia. A minha sorte
que eu dei uns 14 tiro, o primeiro tiro que dei pegou na cabeça de um
dos policial civil, que ele capotou. Ai eu vi que tinha derrubado, vi
que tinha matado ele, ai o outro veio correndo atrás de mim dando tiro
e eu dando tiro também. O outro policial, depois que eu saí do hospital,
porque eu fiquei 45 dias em coma, depois que eu sai da UTI ai eu fui
na casa dele e matei ele na casa dele.
P – A Civil não quis te pegar não por conta dessa coisa de honra
deles? Crime de honra?
R – Cara, falar uma coisa pra você, eu fui preso, tanto que quando a
ambulância me pegou eu fui preso, algemado, eu fiquei assim na
maca, na UTI, eu fui preso, puxei 8 anos, mas não foi por causa desse
policia, eu fui absolvido. O policial era mais bandido do que eu, ele já
tinha sido expulso da corporação, já tinha vendido a arma dele pra
traficante, não prestava. (Homem, 30 anos)

Além disso, esses grupos formados por agentes policiais podem agir
com o objetivo de matar traficantes, seja com o intuito de fazer a limpeza na
cidade, ou em busca de tomar a droga e o dinheiro deles e, até mesmo, a
mando de algum outro traficante que queira comandar o comércio de drogas
em determinada região, e esse casos são vistos na formação de grupos de
extermínio.
Os grupos de extermínio ou de traficantes podem provocar a morte de
outras pessoas que não estão envolvidas no tráfico e nem mesmo praticou a
caguetagem, o único problema era estar no lugar errado e na hora errada, são
as vítimas de queima de arquivo.
A queima de arquivo no mercado ilegal das drogas está relacionada às
pessoas que são assassinadas por presenciarem a ação ilegal, violenta ou
não, de traficantes ou grupos de extermínio ou por estar junto a alguma pessoa
que está na mira delas e, antes dessas pessoas terem a possibilidade de
denunciar o crime, são executadas. Um dos casos mais emblemáticos e até
hoje não solucionado é o caso Murilo.

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Informações desencontradas, expectativas frustradas, ameaças


de morte, o contato com a burocracia e a “falta de sensibilidade” do
Estado levaram a dona de casa Maria das Graças Soares a acreditar
que ninguém será punido pelo desaparecimento do filho, Murilo
Soares. Hoje (22), dia em que o desaparecimento do adolescente
completa oito anos, Graça declarou à Agência Brasil que o que a
sustenta é o desejo de localizar o corpo do filho e enterrá-lo
dignamente. “Acabaram com a minha vida”, disse Graça.
Murilo é uma das 39 pessoas que desapareceram na região
metropolitana de Goiânia, nos últimos anos, após serem abordadas por
policiais. O adolescente tinha 12 anos quando, no dia 22 de abril de
2005, policiais do grupo Rondas Ostensivas Táticas Metropolitanas
(Rotam) pararam o carro dirigido pelo servente Paulo Sérgio Pereira
Rodrigues, 21 anos, um conhecido da família do garoto.
A pedido do próprio pai, que tinha que trabalhar e - na época, já
estava separado de Graça - Murilo pegou uma carona com Paulo para
voltar para a casa da mãe, com quem o garoto vivia. No caminho, o
carro foi parado por policiais da Rotam. Várias pessoas testemunharam
o momento em que os policiais revistaram o motorista enquanto o
garoto permanecia em pé, ao lado do veículo, e depois levados pelos
policiais. Foi a última vez que Murilo e Paulo foram vistos. O carro foi
encontrado no dia seguinte, carbonizado e sem a aparelhagem de som
e as rodas. Os corpos dos dois ocupantes, no entanto, jamais foram
localizados. Segundo Graça, Paulo tinha antecedentes criminais.
Oito policiais foram acusados de assassinato e ocultação de
cadáver. Seis deles chegaram a ser temporariamente detidos. A
Justiça de Goiás absolveu Allan Pereira Cardoso, Neill Gomes da
Rocha, Anderson Amador de Jesus, Wellington da Costa Cunha,
Cleiton Rodrigues da Silva, Fernando Gabriel Pinto, Thiago Prudente
Escrivani e Marcello Alessandro Capinam Macedo por falta de provas
materiais, já que os corpos nunca foram encontrados. Citado em outros
crimes, o cabo Capinam Macedo foi morto a tiros em março do ano
passado. O crime ocorreu em plena luz do dia, em uma avenida
movimentada do Setor Cidade Jardim, em Goiânia. Os criminosos
dispararam ao menos 12 vezes contra a caminhonete em que o militar
estava e fugiram, de moto.
“Falta vontade das autoridades. Tem imagens do carro da
polícia; uma conversa gravada de dois policiais dizendo que 'dois
passarinhos estavam presos na gaiola'; manchas de sangue na viatura;
várias pessoas disseram que viram meu filho com os policiais [...]

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Mesmo assim, o processo foi arquivado [por falta de provas]. Eu sou


pobre, não é? Por isso não acredito mais na revisão da absolvição
desses policiais. Porque eles nunca vão confessar e vai continuar tudo
do jeito que está: eu com a minha dor”, desabafa Graça, revelando que
desde que o filho foi visto pela última vez, ela teve um quadro de
depressão profunda, faz tratamento psiquiátrico e se mantém a base
de remédios.
“A única coisa que fizeram por mim nesse tempo foi me
ameaçar. A cada vez que eu dou uma entrevista sobre esse assunto,
no dia seguinte eu recebo uma ameaça por telefone”, disse Graça, que
não teme divulgar o número de seu celular nos folhetos em que pede a
ajuda de quem tiver qualquer informação sobre o caso. “A última
notícia que eu tenho é que os policiais continuam todos nas ruas,
trabalhando. Menos o que foi morto”, acrescentou Graça.
“Minha vida virou uma tristeza, um inferno, e minha única
esperança é encontrar meu filho. Batalho, continuo correndo atrás para
um dia encontrá-lo, mas o pouco que eu posso fazer é dar entrevistas
para que o caso não seja esquecido e participar de reuniões de grupos
de direitos humanos”, comentou Graça, citando, como exemplo, a
reunião extraordinária do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa
Humana (CDDPH), da qual a ministra dos Direitos Humanos, Maria do
Rosário, participou, em setembro do ano passado.
“Infelizmente, de lá para cá, nada aconteceu”, lamentou Graça.
Há pouco mais de dois anos, o Instituto Médico-Legal (IML) de Goiânia
fez exames para verificar se uma ossada, supostamente de um
adolescente, era de Murilo. “Disseram que o resultado ia demorar uns
seis meses, mas, até hoje, eu nunca tive uma resposta se o exame deu
positivo ou negativo. Já fui lá e não me deram resposta”. O advogado
Alan Hahnemann Ferreira, que hoje representa Graça, disse estar
tentando obter uma resposta oficial do IML. Mas, segundo ele,
extraoficialmente a informação é que a ossada não seria de Murilo.
(Notícia 5: PIMENTEL. 22 de abr. de 2013)

Os grupos de extermínio é uma das facetas mais cruéis do mercado


ilegal das drogas, que agem no desaparecimento e na morte de diversas
pessoas envolvidas ou não na criminalidade. E mais ainda, as condutas ilegais
praticadas pelos agentes estatais quase nunca são investigadas e os seus
autores raramente são punidos.

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Quando retiramos o álcool, pela sua legalidade, o modelo sistêmico, nas


suas mais variadas formas de ação, torna-se então o que tem o maior poder
explicativo sobre a relação entre drogas e violência. Até mesmo porque quando
se trata especificamente de mercados ilícitos é justamente esse modelo que dá
conta de elucidar as relações normativas que guiam o tráfico de drogas.
Entretanto, cabe lembrar que essa tipologia analítica se dá a partir da criação
de tipos ideais que se sobrepõem e, portanto, não se encontram de forma pura
na realidade.
Ao observar as narrativas ao longo do capítulo percebe-se que um
indivíduo pode estar envolvido em dois ou nos três modelos explicativos,
mesmo que um deles se sobreponha aos outros. Dessa forma, é preciso
compreender que a tipologia empregada serve para ilustrar que as violências
relacionadas às drogas podem se apresentar com base em três modelos
diferentes e, dentro deles, podem existir uma diversidade de exemplos em que
o comportamento violento pode se tornar real, que vai depender, por sua vez,
do contexto social e das particularidades aonde o tráfico de drogas irá se
instalar.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Considerações finais

A realização dessa pesquisa foi uma grande aventura sociológica e


pessoal. Primeiramente por ser um estudo pioneiro sobre o tráfico de drogas
em Goiás, um contexto novo e que ainda não havia sido explorado. Por mais
provocante e interessante que seja desbravar um novo campo, tive certo receio
de não se conseguir atingir os objetivos que havia proposto ainda antes de
entrar no mestrado. Afinal, eu me senti, enquanto pesquisador, como um
pescador navegando por um mar totalmente desconhecido, e a cada onda que
conseguia ultrapassar tantas outras novas ondas me surgia.
Nesses momentos me lembrava do primeiro texto de sociologia que
havia lido ainda no primeiro semestre da graduação em Ciências Sociais, em
que o brilhante Norbert Elias (1998) descreve sobre as dificuldades que
encontramos em campo de pesquisa e que, por isso, precisamos criar certos
hábitos de vigilância epistemológica para que possamos analisar, enquanto
cientistas, de forma mais cuidadosa possível o que o campo tem a nos dizer,
procurando desconstruir aquilo que parece dado enquanto na verdade é
resultado de construções sociais.
Nesse sentido que me coloquei enquanto um pescador no
desenvolvimento da pesquisa e o meu campo era um turbilhão querendo me
absorver. Norbert Elias (1998) narra a história de dois irmãos que estavam em
um barco sendo arrastados para dentro de um perigoso turbilhão. Ambos
estavam na mesma condição, porém a capacidade de leitura deles sobre
aquela mesma situação os levou a caminhos diferentes, assim Elias (1998) nos
conta:

Pode-se lembrar que os pescadores, enquanto estavam sendo


vagarosamente arrastados para o abismo do rodamoinho, por um
momento ainda flutuavam colados às paredes do funil, junto com os
restos do naufrágio. Logo no início, os dois irmãos – o mais moço já
fora arrancado pelo temporal – estavam muito tomados pelo medo para
pensar claramente e observar atentamente o que ocorria em torno
deles. Depois de algum tempo, entretanto, um dos irmãos foi capaz de
vencer seus temores. Enquanto o irmão mais velho se encolhia
desamparadamente no bote, paralisado pela vizinhança do desastre, o
mais jovem acalmou-se e começou a observar tudo a sua volta, com

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certa curiosidade. Foi então enquanto tudo considerava, quase que


como se não estivesse envolvido, que notou certa regularidade de
movimentos nas peças que estavam sendo arrastadas em círculos,
juntamente com o bote. Enquanto observava e refletia, ele teve uma
“idéia”; uma visão reveladora do processo que estava envolvido; e uma
teoria começou a se formar em sua mente. Olhando a sua volta e
raciocinando, chegou à conclusão de que os objetos cilíndricos
desciam mais lentamente do que os objetos de quaisquer outros
formatos e que os menores afundavam mais devagar do que os
grandes. Baseado nesse quadro sinótico das uniformidades do
processo no qual estava envolvido e reconhecendo a importância
dessas uniformidades para sua própria situação, tomou a iniciativa
correta. Enquanto o irmão continuava imobilizado pelo medo, ele se
amarrou a um barril. Encorajando em vão o mais velho a fazer o
mesmo, pulou no mar. O bote com o irmão desapareceu mais
rapidamente, sendo, afinal, engolido pelo abismo enquanto o barril a
que ele se amarrara afundava muito lenta e tão gradualmente, que à
medida que inclinação do funil se tornou menos íngreme, e a rotação
da água menos violenta, ele surgiu novamente na superfície do
oceano, retornando, afinal, à vida (ELIAS, 1998, pp. 165 – 166)

Ao final dessa pesquisa me sinto como esse pescador que volta à


superfície e consegue novamente respirar. Não somente pelo cansaço físico e
mental em si, mas, sobretudo, por ter alcançado êxito na produção de dados
sobre a realidade social que busquei estudar e, com a ajuda das teorias
sociais, fazer leituras que de alguma maneira me ajudaram a elucidar um
fenômeno social que era descrito apenas a partir da perspectiva estigmatizante
e repressiva.
Pude entender que mesmo que se criem planos e roteiros, é a própria
pesquisa quem nos guia em seu desenrolar, porém é preciso ficar atento, como
o pescador em meio ao turbilhão, para escolher os melhores caminhos que
cada situação nos coloca. Ainda que se adquira com a experiência a malícia de
fazer as perguntas certas para as pessoas certas, não há um modelo que
ensine à risca como pesquisar. Na verdade, a cada viagem a campo me
parecia uma nova investigação, pois eram novos acontecimentos, outros
sujeitos e histórias e, da mesma forma, novos problemas e dificuldades.

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Apesar dos (des)caminhos no decorrer da investigação posso dizer que


obtive mais êxito do que frustração. E a contribuição da cada participante ao
longo da pesquisa foi fundamental na produção desse trabalho e, mais ainda,
possibilitou que outro olhar fosse lançado sobre uma modalidade criminosa que
até então só se apresentava sobre o prisma de argumentos sensacionalistas e
punitivistas.
Por isso, acredito que a importância de apresentar um fragmento que
seja da imensidão que é esse mercado na Grande Goiânia nos ajuda no
processo de desconstrução de falas acusatórias e estigmatizantes que se
estabeleceram em relação aos sujeitos que nele se inserem. Mais ainda, soma-
se àqueles trabalhos que procuraram compreender a criminalidade no Estado
de Goiás e, com isso, contribuir na construção do entendimento sobre o que é
a atual sociedade goiana.
Resultados da pesquisa forneceram elementos para a explicação de que
os processos acusatórios que se tem em relação ao tráfico de drogas na
Grande Goiânia obscurece a multiplicidade de arranjos e de sujeitos que estão
por trás dessas atividades. Mais ainda, esses processos acusatórios,
concebidos pelo sistema de justiça e pela mídia, e incorporado por todo tecido
social, atribuem a identidade de traficantes e/ou bandidos a determinados tipos
sociais que estejam portando drogas, sobretudo se forem negros e moradores
das periferias das cidades pesquisadas.
Em outras palavras, a guerra às drogas esconde uma política perversa e
seletivista que vitimiza milhares de pessoas todos os anos e tem abarrotado os
presídios, entretanto nem o comércio de drogas e nem os homicídios
diminuíram, o que nos permite dizer do seu total fracasso enquanto política de
segurança pública.
Ao procurar entender o mercado ilegal das drogas por dentro, a partir
das falas, das experiências e das vivências dos sujeitos, pude apreender que a
maior parte deles não se percebe enquanto traficante de drogas ou bandido.
Ao contrário, mesmo tendo a compreensão de que estão envolvidos em um
mercado ilegal, eles constroem argumentos que procuram separar a sua
imagem da imagem que o senso comum tem do traficante de drogas. Assim,
nesse esforço de limpeza moral, dizem que: a) o traficante é ambicioso e não
mede esforços em busca de dinheiro e do poder; b) o traficante não possui

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princípios morais e age sem qualquer relação de respeito e alteridade e; c) o


traficante é alguém que ocupa a ponta de cima da distribuição das drogas e
dificilmente será pego pela polícia.
Do outro lado, para separar a sua imagem daquela que o senso comum
tem dos traficantes eles irão argumentar sobre si que: a) são sujeitos humildes
e que apresentam comportamentos que se assemelham aquilo que eles
acreditam ser de um cidadão de bem; b) respeitam as pessoas e não se
utilizam de comportamentos violentos e; c) se consideram usados por aqueles
que estão acima deles na cadeia de distribuição das drogas.
Apesar dessa tentativa de distinção, não negam que de uma maneira ou
de outra acabam desempenhando o papel de traficante e, assim, procuram
argumentar que existem traficantes e traficantes, voltando a apresentar as
características que os distinguiriam. Entretanto, segundo os apontamentos das
entrevistas, eles afirmam que tanto para o sistema de justiça criminal quanto
para a mídia o traficante de drogas é apenas as pessoas pobres moradores
das periferias e, ainda mais, dizem que aqueles que estão na parte de cima
desse mercado ilegal recebe algum tipo de proteção, por isso não são
investigados e nem midiatizados.
Constatei também que a comercialização das drogas na Grande Goiânia
constrói quatro tipos de estruturas diferentes e que se articula com a própria
dinâmica do mercado das drogas. De um lado, na ponta de distribuição das
drogas, o atacado, existe uma estrutura que denomino de produtor-fornecedor
das drogas por onde começa esse mercado e que, na maioria das vezes,
repassa as drogas para grupos que chamo de tráfico organizado e, com o
processo de distribuição, que ramifica e dinamiza esse mercado, chegando ao
varejo das drogas, ele ganha dois tipos de dinâmicas que chamo de tráfico
associado – por meio da relação entre dono-da-boca e os aviãozinhos – e o
tráfico atomizado.
O produtor-fornecedor é a parte mais obscura na dinâmica de
comercialização das drogas desse mercado, como ele ocorre para além do
território nacional – Paraguai, Bolívia, Peru e Colômbia – acaba que a
repressão fica a cargo da Polícia Federal nas fronteiras que, dificilmente,
desbarata grupos inteiros. Por outro lado, descobri que funcionam como

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organizações bem estruturadas e que comandam grandes carteis do


narcotráfico na América Latina.
Pensando nas estruturas presente diretamente do mercado das drogas
da Grande Goiânia, o primeiro deles, o tráfico organizado, vai se articular,
principalmente, por meio de relações verticais de caráter empregatício e que
segue uma dinâmica hierárquica de modelo industrial que distribui funções
específicas que estão de acordo com a venda da força de trabalho e que segue
padrões corporativos de relações comerciais. Nesse núcleo fornecedor das
drogas as funções são diversas e dependentes do tamanho das articulações
por onde irão percorrer as comercializações dos entorpecentes.
Do outro lado, na sua forma varejo, o mercado das drogas vai se
estruturar por meio de duas dinâmicas distintas. Primeiramente, o tráfico
associado que se atribui a grupos, sobretudo nas periferias, mas não
exclusivamente, que atuam em bocas e que, por sua vez, constrói verdadeiros
exércitos formados por aviãozinhos por meio de relações verticais que, apesar
de existir certo grau de mando e submissão nessas relações, não possuem
caráter empregatício e, por isso, são relações mais autônomas e pouco
obrigatórias que estão conexas principalmente por acordos comerciais
estabelecidos em torno da fidelidade na compra e venda das drogas. Essas
relações de mando e submissão, mesmo que o pagamento quase sempre seja
feito com drogas, se dão muito mais pelo fornecimento das substâncias ilícitas
do que o respeito a uma hierárquica de subordinação que pouco existe. Como
a relação comercial ocorre quase sempre de maneira fiada percebi que se cria
um vinculo entre as parte que se dá pelo fornecimento das mercadorias e das
obrigações que esse tipo de relação comercial impõe às partes
A outra estrutura do varejo das drogas, o tráfico atomizado, ocorre por
toda região da Grande da Goiânia, porém mais vistas entre jovens de classe
média, e se estabelece por meio de relações horizontais, e na maioria das
vezes os indivíduos irão agir isoladamente e de forma freelance, dependendo
apenas de suas redes de contatos tanto para conseguirem as drogas quanto
para revendê-las, não existindo nenhum tipo de obrigação ou submissão com o
fornecedor.
A partir da compreensão de que o produtor-fornecedor não se
territorializa dentro do mercado ilegal das drogas da Grande Goiânia, mesmo

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sendo essa estrutura que provê a ponta inicial de distribuição, a sua


espacialidade e seu funcionamento ocorre fora do território nacional. Portanto,
a dimensão que elucidei neste estudo se deu é em relação ao tráfico
organizado e o tráfico associado.
Como o tráfico organizado opera como uma central de distribuição das
drogas e, muitas vezes, é liderada por alguém que cresceu a partir da
ramificação das bocas, ela pode desenvolver um tipo de controle que não é
diretamente territorial, mas comercial, sobre regiões, setores e bairros das
cidades pesquisadas.
No processo do tráfico associado, descobri que muitos patrões de bocas
eram antes aviãozinhos de seus atuais fornecedores que, por sua vez,
passaram a coordenar grupos de tráfico organizado. Antes de passar a atuar
no atacado e de se tornar fornecedor, esse ex-patrão ajudou os seus antigos
aviãozinhos, principalmente os de confiança, a montar pequenas bocas em
regiões próximas onde a sua estava instalada e, com isso, aos poucos, ele vai
deixando o varejo para atuar no atacado.
Como existe uma relação de lealdade entre o patrão e seus aviãozinhos,
pude perceber que essa fidelidade continua depois dessas mudanças após o
crescimento no tráfico e, portanto, o chefe do grupo do tráfico organizado
fornece as drogas para essas bocas que estão normalmente localizadas em
regiões próximas. Dessa forma, posso dizer que essa dinâmica possibilita que
o mercado das drogas seja mais distributivo por todo território goiano, até
porque em mesmas regiões das cidades existem outros fornecedores
abastecendo outras bocas e essas, por sua vez, coexistem e não precisam
disputar o controle territorial.
A dinâmica que se mostrou diferente foi em relação ao tráfico atomizado.
Por essa estrutura não se territorializar fisicamente, a espacialidade então são
as redes de relacionamentos dos sujeitos que trabalham nessa dinâmica de
comércio, por isso, pode-se dizer que é uma territorialização simbólica em que
os espaços seguem as redes de relacionamento construídas ao longo do
tempo e que pode ganhar, até mesmo, espaços físicos em festas, boates etc.
No mercado ilegal das drogas na Grande Goiânia pude perceber os
momentos em que se abriu espaço para a produção de mercadorias políticas
que estão relacionadas diretamente com o emprego da violência, seja por meio

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da expropriação de recursos do Estado por alguns de seus agentes ou sem a


sua mediação, como o uso de armas por grupos de tráfico.
Assim, percebi que no tráfico organizado e no tráfico associado, por
ganhar territorialidade, cria uma dinâmica em que o uso da violência se torna
frequente e, por isso, a necessidade do uso de armas. As armas, segundo os
resultados de campo, são utilizadas para: a) resguardar a própria segurança
dos indivíduos; b) resguardar o empreendimento ilegal e as mercadorias
ilícitas; c) fazer cobranças de dívidas.
Além das armas, pude perceber momentos em que a mercadoria política
se dava pelas mãos de agentes do Estado: a) práticas de extorsão por meio de
chantagens a traficantes; b) práticas de cobranças de dívidas drogas para
algum traficante; c) práticas de corrupção ao receber arrego de algum
traficante; d) roubo de drogas e sua respectiva venda e; e) formação de grupos
de extermínios.
Entre outros achados importantes da pesquisa, descobri que a cadeia
não é o local onde se dá o fim à carreira criminal de quem trafica e nem tão
pouco um lugar de resolução dos problemas da criminalidade urbana. Na
verdade, ela deve ser considerada como extensão espacial por onde o tráfico
de drogas acontece. Além do próprio entendimento que na cadeia é onde
essas atividades ilícitas são intensificadas e o uso de drogas faz parte da
normalidade do cotidiano dos presos, ela articula uma relação intima como o
mundo de fora, a rua.
Além disso, constatei que o processo de adesão não imprime apenas
uma nova moralidade com a entrada no crime, mas há também uma
negociação racional com a moralidade dominante para justificar a adesão deles
no tráfico de drogas. Embora a maioria deles argumente que acham errada a
comercialização de entorpecentes, seguindo os valores legais e dominantes,
eles criam justificativas para amenizar a culpa e, com isso, a sua adesão se
tornar relevada. Dessa forma as técnicas de neutralização apontam que as
justificativas utilizadas pelos sujeitos passam pela: a) exclusão da própria
responsabilidade – problemas familiares, más companhias, dependência
química e a necessidade de consumo; b) negação de ilicitude – o comércio de
drogas é igual a qualquer outro e o problema não é a venda, mas o abuso das
substâncias ilícitas; c) valores morais superiores – prática da atividade

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criminosa é considerada menor do que o objetivo final, como uma vida melhor
para a família, pagar a faculdade e comprar uma casa; d) condenação dos que
condenam – por considerarem que o Estado não garante o direito a todos.
Por fim, a dissertação procurou compreender a relação entre o tráfico de
drogas e homicídios. Parti da compreensão que a violência é um mecanismo
comum dos mercados criminalizados, que, por não possuírem meios legais de
resolução de conflitos, se utilizam de recursos mais radicais para solucionar
desavenças e desacordos comerciais, e o assassinato de pessoas é o mais
extremos deles.
Soma-se ainda, segundo o que se constatou na pesquisa, a presença de
uma cultura criminal machista em que a honra e a virilidade são postas em
desafio quando os acordos são rescindidos alavancam e disseminam a
necessidade de que esses conflitos devem ser solucionados a qualquer preço.
Não são apenas drogas, dinheiro e as pessoas que circulam no tráfico, mas
também a própria identidade sexual masculina que é colocada em evidência.
Quando não se paga uma dívida de droga, ou quando outro indivíduo quer
tomar a boca, não é o valor monetário em si, mesmo que exista e fica evidente,
mas há o aspecto moral da honra desafiada, nesse momento o recurso violento
se faz necessário.
Para entender a relação entre homicídios e drogas utilizei a tipologia
tripartite de Goldstein. Os resultados encontrados mostram que em cada
tipologia tem as suas especificidades, assim: a) o modelo psicofarmacológico:
foi compreendido a partir da mudança de comportamento praticado por algum
indivíduo após o consumo de alguma substância, podendo agir de forma
impulsiva e violenta em relação às outras pessoas. As substancias que se
mostraram com maior poder de alteração para o comportamento violento
foram, sobretudo, o álcool e, posteriormente, o crack e a cocaína; b) o modelo
econômico compulsivo: foi evidenciado nos crimes praticados por usuários de
drogas com o objetivo econômico, como, por exemplo, a prática de roubo,
assalto, latrocínio com o objetivo de conseguir dinheiro ou algum bem para
comprar drogas e; c) o modelo sistêmico: é a violência que se refere aos
padrões específicos de agressividade que são gerados das interações que
ocorrem dentro do sistema de comercialização das drogas, assim constatei que
ela ocorre por diversos meios (dívidas de drogas, derrame de drogas, disputa

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internas de grupos de tráfico, disputas de territórios de comercialização,


caguetagem, vingaça, grupos de extermínio e, por fim, queima de arquivo).
A violência, mais especificamente o homicídio, é uma das principais
prerrogativas utilizada pelo sistema de justiça criminal e por parte da mídia na
propagação do discurso de guerra às drogas e, por isso, demandam que se
assevere mais ainda o combate ao tráfico de drogas, pois ambos partem do
princípio que esse mercado é o grande responsável pelo crescimento das taxas
de homicídios nos últimos anos na Grande Goiânia. Entretanto, constatei na
pesquisa, ao analisar 323 casos de assassinatos que foram solucionados e
seus autores presos e condenados, que apenas 9% dos homicídios tinham
relação direta ou indiretamente com o tráfico de drogas, contrariando
diretamente alguns discursos de representantes da Secretaria de Segurança
Pública que afirmaram em entrevistas que mais de 70% dos homicídios tinham
relação direta com o tráfico de drogas.
As notícias sem embasamentos e o discurso de guerra às drogas
sustentam e legitimam cada vez mais uma política de segurança pública
extremamente repressiva e que vê no encarceramento sua política máxima de
controle social que não abrange somente àqueles que comercializam as
substâncias ilícitas, mas também quem as usa. E essa política perversa de
controle social atinge, sobretudo, a população negra e pobre, como evidenciam
os estudos sobre o perfil da população carcerária no Brasil.
E quando as informações equivocadas são repassadas e propagadas
pela mídia, cria-se em alguns veículos certo sensacionalismo que associa de
forma espúria e enviesada os casos de homicídios com o tráfico de drogas
antes mesmo de qualquer investigação. Mais ainda, espalha-se por todo tecido
social a ideia de que o tráfico e o homicídio são parte de uma mesma moeda, e
os sujeitos envolvidos nesse mercado estão sempre em vigilância prontos para
matar ou para morrer. Quando na verdade este discurso de guerra às drogas
serve, para além de alimentar o mercado privado de segurança e de armas,
como uma desculpa esdruxula e sangrenta que o Estado se utiliza para
encobrir a sua incapacidade investigativa ou para esconder o seu desinteresse
em não querer esclarecer alguns crimes.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Notícia 2

209
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DANTAS, Marcello. Militares atuaram durante 13 anos em suposto grupo de


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durante-13-anos-em-suposto-grupo-de-exterminio-de-goianira> Acessado em:
15 de julho de 2014.

Notícia 3
PINHEIRO, Eduardo; AlVES, Myla. Drogas protagonizam violência. O Hoje, 05
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<http://www.portalohoje.com.br/homologacao_20052013/cidades/drogas-
protagonizam-violencia/> Acessado em: 15 de julho de 2014.

Notícia 4
PIMENTEL, Carolina. Caso de garoto desaparecido após abordagem policial
faz 8 anos. Portal EBC, 22 abr. de 2013. Disponível em:
<http://www.ebc.com.br/noticias/brasil/2013/04/caso-de-garoto-desaparecido-
apos-abordagem-de-policiais-em-goiania-faz-oito> Acessado em: 15 de julho
de 2014.

Notícia 5
SILVA, Maria José. Desarticulada quadrilha que era comandada do presídio. O
Popular, 19 fev. de 2014. Disponível em:
<http://www.opopular.com.br/editorias/cidades/desarticulada-quadrilha-que-era-
comandada-do-pres%C3%ADdio-1.477511> Acessado em: 15 de julho de
2014.

Notícia6
LIMA, Cristina. Barões que dominam o tráfico. O Hoje, 02 mar. de 2014.
Disponível em:
<http://www.portalohoje.com.br/homologacao_20052013/cidades/baroes-que-
dominam-o-trafico/> Acessado em: 15 de julho de 2014.

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GLOSSÁRIO

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GLOSSÁRIO

After – festa particular de madrugada realizada em uma casa ou no motel


após outra festa.

Armar casinha – ato de arquitetar um plano para que alguma pessoa vá pega
polícia ou por algum inimigo.

Armar castelo – ver “armar casinha”

Bagulho – pode significar alguma droga drogas ou arma.

Bala – ecstasy.

Bebê – aviãozinho.

Biqueira – boca de fumo.

Bucha – quantidade razoável de droga.

Cair – morrer ou ser pego pela polícia.

Cair pra dentro – invadir a área de comercialização de outro.

Cair pro seu lado – arranjar problemas.

Corres – Vender drogas e resolver problemas.

Deduragem – alcaguetagem.

Derrubar – matar ou acabar com os negócios comerciais de outro.

Dolinha – pequena quantidade de droga.

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Engordar – ganhar dinheiro.

Farda preta – Policial da ROTAM.

Fazer curva – errar.

Formiguinha – aviãozinho ou vendedor de drogas que atua sozinho.

Fortalecer – ajudar, colaborar.

Gambé – polícia.

Ganhar uma coca – arrego.

General – patrão da boca.

Janjão – cigarro de maconha com crack.

Lá embaixo – Paraguai ou Bolívia.

Lábia – capacidade de se comunicar bem.

Lodim – maconha.

Lombra – efeito do uso da droga.

Meter Bala – matar.

Mocozar – esconder, enterrar as drogas.

Noiado – viciado em crack.

Papel – LSD.

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Paga pau – pessoa que admira a outra.

Pagar pau – o ato de admirar alguém.

Pé-de-cana – consome muita bebida alcoólica.

Peça de roupa – drogas.

Pedra – crack.

Picado – pequena quantidade de drogas.

Pitar – fumar.

Pó – cocaína.

Sistema – o tráfico de drogas ou a cadeia.

Soldados – aviãozinhos.

Sussa – tranquilo ou sossegado.

Vermes – polícia.

Vips – pessoas que compram muita quantidade de drogas.

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ANEXOS

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ANEXOS

Anexo 1 – Roteiro de entrevista semiestruturado

Roteiro de entrevista
1 – PERFIL

 Qual é o seu nome?


 Qual Idade?
 Até que série você estudou?
 Em que bairro você morava antes?
 Qual seu Estado Civil?
 Tem filhos? Quantos?
 Qual idade de seus filhos?
 Quem toma conta de seus filhos?
 Qual a profissão de seus pais?
 Qual a escolaridade de seus pais?
 Você tem religião? Qual? A partir de quando ingressou nessa religião?
Qual igreja?
 Faça uma narrativa de onde você nasceu, onde você cresceu e de onde
sua família é?
 Você tem irmãos?
 Qual a idade de seus irmãos?
 Qual a profissão de seus irmãos?
 Como é sua relação com pai, mãe, irmãos, filhos, maridos?
 Alguma vez você já presenciou algum tipo de violência dentro da sua
casa?
 Quando você pensa em sua família o que lhe vem à cabeça?
 Qual idade começou a trabalhar?
 Qual era a sua atividade de trabalho antes de ser presa? Você gostava
de seu trabalho?

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2 – A ADESÃO AO TRÁFICO

 Conte-me como você começou a trabalhar com drogas?


 O que motivou
o Financeiro
o Status
o Poder
 Era usuário antes de trabalhar com drogas?
 Tornou-se usuário depois de trabalhar com drogas?
 Como entrou?
 Quem o colocou?
 Foi complicada a entrada?
 Qual a idade que possuía quando entrou?

3 – O COMÉRCIO DAS DROGAS

3.1 A forma de trabalho

 De que forma você trabalha?


 Em casa ou na rua?
 Na rua, em que lugares e de que forma (praça, bares, festas)?
 Trabalha sozinho ou tem pessoas que trabalham contigo?
 Se sozinho, por quê?
 Se com mais pessoas, por quê?
 Se há mais pessoas, como se organizam?
o Como se estrutura a boca?
o Quais as funções?
o Como pagava cada um dos membros? Dinheiro ou droga?
 Existem funções específicas de cada um na venda das drogas?
 Como essas pessoas começaram a trabalhar para você?
 São amigos/parentes/família?

3.2 A forma de venda

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 De que forma você vende?


 As estratégias de venda?
 Para quem vende?
 Que são seus clientes?
 Vende apenas no bairro ou fora do bairro?
 Como essas drogas chegam até você?
o De onde é seu fornecedor?
o Qual é quantidade que você compra?
o Quais drogas compram?
o Qual é normalmente o preço delas?
 Vende para conhecidos e desconhecidos?
 Os clientes buscam na sua casa ou você entrega?
 Como você faz as entregas?
 Quem normalmente entrega as drogas? Você ou pessoas que trabalham
para você?
 Usa moto taxi para fazer entregas?

3.3 – As drogas que vende

 Quais as drogas que trabalha?


 Quanto é mais ou menos o valor de cada uma delas?
 Dessas drogas, qual traz maior retorno financeiro?
 Os clientes de cada tipo de droga tem comportamento diferente (Ex:
clientes de maconha e crack?)
 Com a entrada de crack, houve mudanças na venda das drogas? (Ex:
pessoas querendo trocar objetos por drogas?)

3.4 – Os gastos dos ganhos

 Como você gastava o dinheiro que ganhava?


 Você era daqueles que gastava com farras ou conseguia guardar uma
grana?
 A sua relação com mulheres quando vendia como era?

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 Quais os benefícios de vender drogas?


 Qual a parte ruim de vender drogas?
 Você acredita que a grana que ganha/ganhava com drogas não
conseguia tirar num emprego comum?
 Conte-me como se deu a sua prisão?

4 – RELAÇÕES MORAIS

 O que significar ser traficante de drogas para você?


 Você se considera um traficante de drogas?
 Você acha certo ou errado trabalhar com venda de drogas?
 As pessoas que vendem CDs ou DVDs falsificados nas ruas, você acha
certo ou errado?
 Como você se sentiria caso alguém oferecesse drogas ao seu filho ou
filha?
 Como é a sua relação com os vizinhos? Eles sabem sobre você? Teve
algum problema com eles?
 A TV coloca a todo o momento que traficante é uma pessoa má que
deve ou morrer ou ser preso, o que você pensa sobre isso que a TV fala
sobre quem vende drogas?
 Para você o trafico de drogas na Região Metropolitana de Goiânia é tão
violento quanto os jornais e a policia dizem?
 Você acha que deve ser legalizado a venda de drogas? Se sim ou não,
por quê?

5 – RELAÇÕES CONFLITUOSAS

 A gente vê diversos conflitos que a mídia coloca em relação às drogas,


você já teve algum?

o Com os clientes (Ex: Problemas de dívidas)


 Como resolve esse problema?

o Com fornecedores (Ex: Drogas de má qualidade)

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 Como resolver esses problemas

o Com outros traficantes (Ex: Disputa de território)


 Como resolver esse problema?

o Com pessoas que trabalham para você (Ex: Bagunçar o dinheiro


das drogas ou não repassar o valor correto)
 Como resolver esse problema?

o Com a polícia (Ex: Na tentativa de fazer arrego, extorsão, permitir


que a boca funcione)
 Como resolver esse problema?

 A gente escuta na pesquisa que existe uma grande presença de


violência para resolver problemas que ocorrem no tráfico. Assim, muitos
utilizam a arma para resolver esses problemas, você também utiliza ou
já utilizou armas?
o Se sim, como consegue adquiri-las?
o Existem trocas de armas por drogas?

 Além disso, a gente escuta que existe muita relação da polícia querendo
tirar vantagem sobre quem vende drogas.
o Já aconteceu isso contigo?
o A polícia já fez alguma chantagem?
o Já utilizou da polícia pra fazer cobranças de dividas?
o Se sim, tem alguma vantagem?

 A gente escuta muito que existe uma relação da venda de drogas por
toda cidade relacionado ou comandado por alguém dentro do presídio,
você acredita que isso é verdade?
o Já ouviu ou conhece alguma história assim?

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