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Soldados Da Borracha

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“O negócio completo de borracha da

Amazônia estava em um sistema de escambo de


SOLDADOS DA BORRACHA: O EXÉRCITO débito-crédito e a estrutura era tal que o extrator,
ESQUECIDO QUE SALVOU A SEGUNDA ponto mais baixo da cadeia, nunca recebeu a dívida.
GUERRA MUNDIAL. Embora ninguém controlasse diretamente o
seringueiro em suas atividades diárias, ele era
O látex natural oriundo da Bacia Amazônica controlado pelo fato de que estava em dívida
foi estratégico para a campanha militar das forças perpétua.”
aliadas, pois em 1941 os japoneses já tinham tomado
o controle das plantações de borracha do sudeste
asiático. A escassez desse recurso indispensável
obrigou o governo dos Estados Unidos a buscar uma
parceria com o governo brasileiro, que recrutou 50
mil homens para servirem como “soldados da
borracha”. O livro resgata os bastidores dessa
história, realçando a participação do Brasil na Guerra
e a importância não reconhecida da Amazônia para o
sucesso dos aliados. Os documentos apresentados
são fruto de um trabalho de pesquisa inédito, liderado
pelos autores em arquivos do Departamento de
Estado e do Senado norte-americano. Esses
documentos provariam, segundo eles, que os Estados
Unidos pagaram integralmente pela borracha
exportada nesse período, algo que tinha sido motivo
de contestação entre os dois países.

Publicado em 2015 pela editora da PUC-RS, Além de ser um trabalho de quase servidão, a
o livro é de autoria de Gary e Rose Neeleman, um extração de látex era uma tarefa extremamente
casal de jornalistas norte-americanos que moraram solitária, perigosa e instável. Cada seringueiro era
no Brasil como correspondentes da United Press. responsável por uma área que continha de 100-200
Outros livros dos autores incluem: “Trilhos na Selva: árvores borracheiras. Ele precisava acessá-las, no
O Dia a Dia dos Trabalhadores da Ferrovia Madeira- meio da floresta, com uma espingarda e um facão. A
Mármore”, e “A Migração Confederada ao Brasil: extração de borracha durava até o anoitecer e era
Estrelas e Barras sob o Cruzeiro do Sul”. preciso defumar esse látex sob um fogo. A borracha
só era extraída durante o verão, obrigando os
O PRIMEIRO CICLO DA BORRACHA E A seringueiros a viver de agricultura de subsistência
BIOPIRATARIA DA HEVEA BRASILIS durante o resto do ano. Além do endividamento
perpétuo, precisavam conviver com a ameaça de
Neeleman começa o livro rememorando a animais selvagens, índios e doenças. Esses
importância da borracha no final do século XIX, trabalhadores voltaram pobres para o sertão
quando começa o Primeiro Ciclo da Borracha: “até nordestino, mas as elites de Manaus e Belém
1900, o Brasil produziu 95% de toda a borracha no enriqueceram como nunca.
mundo…, [em 1910] a borracha era responsável por
40% de todas as exportações do Brasil…, [e] até Diante da dominância brasileira da borracha,
1922 os Estados Unidos usaram 70-80% de toda a o Império Britânico começou a recrutar interessados
produção de borracha do mundo”. A melhor e mais na tarefa de contrabandear borracheiras brasileiras
cara borracha no mercado se chamava Pará Hard para a Inglaterra. Neeleman narra a saga do inglês
Fine, extraída da árvore borracheira Hevea Henry Wickham, um botânico amador que
Brasiliensis, nativa da Bacia Amazônica. Os conseguiu contrabandear 70 mil sementes da Hevea
seringueiros responsáveis pela extração de toda essa Brasilis, em 1876. Wickham pagou para que pessoas
borracha eram camponeses importados do Nordeste locais ajudassem na coleta das sementes, em seguida
especialmente do Ceará – que trabalhavam em escondidas no porão de um navio, que foi lacrado
regime de escravidão por dívida (peonagem): com pregos. O roubo contou com a participação do
cônsul honorário britânico, que atuou junto às
autoridades alfandegárias brasileiras para que o
navio fosse liberado sem que a carga fosse
inspecionada e as sementes descobertas. Ao chegar Amazonas e estabeleceu a ampla indústria de
em Londres, somente 20 mil das sementes plantação de borracha.”
sobreviveram. Foi o suficiente para que os britânicos
passassem a dominar o cultivo da Hevea Brasilis e A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL E OS
criassem plantações de borracha em suas colônias ACORDOS DE WASHINGTON
asiáticas (Índia, Malásia, Singapura, e Sri Lanka).
Quando os Estados Unidos foram instados a
Diferentemente dos experimentos em entrar na guerra, em 1941, Neeleman explica que
Fordlândia, onde o cultivo de borracha não resistiu “97% de toda a borracha natural do mundo estava na
às pragas locais, a tentativa de criar plantações mão dos japoneses”. Nessa época, os industriais
industriais de Hevea Brasilis na Ásia deu certo. Com norte-americanos já produziam borracha sintética,
isso, o Primeiro Ciclo da Borracha se encerrou em mas o custo ainda era excessivamente caro. Também
1912, quando as plantações de borracha do Sudeste existem produtos estratégicos para os quais o uso da
asiático substituíram os seringais brasileiros no borracha natural é necessário até hoje, como pneus
fornecimento mundial da borracha. Dez anos depois, de aviões. Neeleman ilustra a importância da
em 1922, o Brasil responderia por somente 6% da borracha na fabricação do material para o esforço de
produção mundial de látex natural. guerra:

“Tudo na Segunda Guerra Mundial dependia


da borracha. Os tanques Sherman têm 20 toneladas
de aço e meia tonelada de borracha. Em um
caminhão Dodge, há aproximadamente 225 kg
de borracha. Há quase uma tonelada de borracha em
um bombardeiro pesado. Cada couraçado afundado
em Pearl Harbor tinha mais de 20 mil peças de
borracha. Cada navio, cada válvula e vedação,
cada pneu em cada caminhão e avião tinham
borracha. Cada centímetro de fio em cada fábrica,
casa e escritório nos EUA está envolto em borracha.
Correias transportadoras, peças hidráulicas, botes
infláveis, máscaras de gás, guarda-chuvas -tudo é
feito de borracha.”

Com as plantações de borracha sob domínio


do inimigo, os Estados Unidos se viram obrigados a
virar os olhos para o seu antigo fornecedor ou
arriscariam perder a guerra. “Entre os produtos
fundamentais que os EUA e os Aliados precisavam,
Henry Wickham com uma das árvores Hevea estava a borracha, o minério de ferro, produtos
Brasilis plantadas a partir das sementes roubadas da químicos, diamantes industriais e cânhamo. A
Amazônia. borracha estava acima de todos os outros produtos, e
o Brasil era a resposta para a escassez.”
A Chinchona era produtora de quinina, única
substância disponível na época para o tratamento de Washington não demorou a agir. Dois dias
febres tropicais. As sementes roubadas por Clements
após o ataque a Pearl Harbor, articulou para que o
também foram plantadas na Índia e a Inglaterra
governo chileno enviasse um telegrama à União Pan-
dominou a comercialização de remédios à base de
Americana, pedindo a convocação imediata de uma
quinina. Markham e Wickham enriqueceram o reunião hemisférica de chanceleres. Como de praxe,
Império Britânico e suas colônias asiáticas, em a diplomacia norte-americana procurava escalar seus
detrimento do Brasil, e eram reconhecidos aliados para tomarem o protagonismo de suas
publicamente por isso. Neeleman resgata seu
próprias iniciativas, com o intuito de fazê-las parecer
obituário no jornal The London: “Sir Henry
um esforço multilateral. O encontro ficou conhecido
Wickham…foi aquele que, enfrentando como A Conferência do Rio de Janeiro e foi sediado
extraordinárias dificuldades, teve sucesso no no Palácio Tiradentes, nos dias 15-28 de janeiro de
contrabando de sementes da árvore Hevea do Alto 1942. O objetivo principal da conferência era
conseguir que os países da América Latina
rompessem relações diplomáticas com a Alemanha Getúlio Vargas foi o primeiro presidente brasileiro a
nazista. Posteriormente, os Estados Unidos também visitar a Amazônia, em outubro de 1940. O interesse
negociaram com o Brasil, em caráter bilateral, a dos americanos na borracha brasileira se encaixava
instalação de bases militares no Nordeste, o envio de perfeitamente com o interesse dos nacionalistas
25 mil soldados à Itália, e o financiamento da brasileiros em colonizar a região amazônica. Na sua
extração de uma série de recursos naturais, entre eles visita, Vargas deixou claro “nos últimos séculos, a
a borracha. Esses tratados foram assinados em 3 de tarefa do Brasil tinha sido de domar a natureza…e o
março de 1942 e ficaram conhecidos como os próximo objetivo era aumentar a sua população em
Acordos de Washington. No ano seguinte, Roosevelt um ambiente que tinha sido considerado inóspito
e Vargas se encontraram numa dessas bases para a civilização”. Para tal, era necessário promover
militares, no Rio Grande do Norte, para discutir o a migração de camponeses nordestinos para ocupar a
desenrolar desses acordos. fronteira amazônica. A campanha para recrutar os
Soldados da Borracha, oferecia uma oportunidade
COOPERAÇÃO BI-NACIONAL E O perfeita para esse propósito. Nos Acordos de
SEGUNDO CICLO DA BORRACHA Washington, o governo brasileiro se comprometeu a
criar uma divisão especial do Departamento
Segundo Neeleman, o acordo negociado em Nacional de Imigração (DNI) para esse fim. Com
torno do fornecimento de borracha era considerado o sede em Fortaleza, o Serviço Especial de
mais importante de todos, inclusive sendo chamado Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia
de “o acordo”. Após sua celebração, os Estados (SEMTA) recebeu financiamento do governo norte-
Unidos criaram a Companhia de Reserva da americano para comandar a campanha de
Borracha (Rubber Reserve Company), uma agência alistamento dos seringueiros e do cuidado de suas
americana, com escritórios em Washington e no Rio famílias, que geralmente permaneciam no Ceará.
de Janeiro. Essa estatal seria responsável pela
compra de toda a borracha brasileira que não fosse
necessária para uso doméstico. O governo brasileiro
se comprometeu a organizar a compra doméstica por
meio do Banco do Brasil, que também regularia o
preço. Com isso, estabeleceu-se um monopólio bi-
nacional do mercado da borracha no Brasil. O Banco
do Brasil teria precedência sob a RRC para garantir
a soberania brasileira e impedir qualquer aparência
de ingerência norte-americana. Washington também
providenciou linhas de financiamento para a
melhoria das condições de saneamento básico na
região amazônica. A imagem do seringueiro como
um nordestino maltrapilho e miserável, suscetível a
doenças, era motivo de preocupação para o
embaixador norte-americano. Diferentemente do
Primeiro Ciclo da Borracha – comandado pelos
empresários da “elite da borracha” sob os auspícios Em muitos aspectos, a campanha da borracha foi um
do livre mercado – o Segundo Ciclo da Borracha foi fracasso. O Brasil nunca conseguiu exportar as
coordenado por uma ação estatal, para atender a uma 25.000 toneladas de borracha almejadas pelos norte-
campanha de guerra. americanos. Paralelamente, avanços na produção da
borracha sintética pela própria RDC diminuíram a
dependência da borracha brasileira. O governo norte-
americano também organizou uma campanha
nacional de reciclagem de pneus e outros produtos
borracheiros para abastecer sua indústria bélica. A
borracha brasileira, importada a 39 centavos por
libra, era consideravelmente mais cara que a
borracha importada anteriormente da Ásia, que
custava 18,5 centavos por libra. Após o fim da
Segunda Guerra Mundial, a produção de borracha
natural na Bacia Amazônica entrou em declínio
novamente. Encerrou-se o Segundo Ciclo da Antônio Patriota, e ao presidente do Sindicato dos
Borracha. Seringueiros.

QUAL É O LEGADO DOS SOLDADOS DA


BORRACHA?

Entre 1942 e 1947, 50 mil homens foram


alistados para servir nos seringais da Amazônia e 26
O governo Vargas é criticado por ter abandonado os mil morreram no ofício. O número é muito maior que
seringueiros na miséria logo após o fim da os 457 soldados mortos na Força Expedicionária
campanha. Neeleman viajou a Rondônia para Brasileira (FEB). Neeleman chega a afirmar que a
entrevistar os soldados da borracha ainda vivos e contribuição dos Soldados da Borracha “pode ter
encontrou vários deles morando em favelas na sido o maior sacrifício de qualquer país que não
periferia de Porto Velho. Ademais, descobriu que Estados Unidos, Grã-Bretanha e França para a vitória
esses trabalhadores, por meio do Sindicato dos dos Aliados na Segunda Guerra Mundial”. Essa
Seringueiros, recebiam uma pensão do governo afirmação pode parecer exagerada, mas a taxa de
brasileiro, mas reivindicavam um aumento. Eles mortalidade nos seringais, de aproximadamente
alegavam que nunca foram devidamente 50%, era altíssima até mesmo para os padrões da
compensados pelo seu trabalho. Os seringueiros e o Segunda Guerra Mundial. A probabilidade de morrer
então Presidente Lula acreditavam que o governo como um Soldado da Borracha era muito maior do
norte-americano nunca tinha pago por toda a que num exército regular e compatível com a
borracha comprada. Neeleman argumenta que os mortalidade de vários campos de trabalho forçado,
documentos compilados por ele no livro provam que onde pereceram milhões de civis e prisioneiros de
o governo dos Estados Unidos não deve dinheiro ao guerra na Europa e na Ásia. Na maior parte dos
governo brasileiro, pois estaria estipulado nos países envolvidos, a Guerra contou com o sacrifício
Acordos de Washington que “a borracha comprada de militares e civis. Os Soldados da Borracha
pelos Estados Unidos seria ‘somente em dinheiro no representam a maioria das baixas civis do Brasil
ponto de envio”. Essa descoberta é tida por durante o conflito. A Amazônia foi um campo de
Neeleman como uma das contribuições mais batalha não convencional e os seringueiros que ali
importantes do seu livro: pereceram contribuíram para a vitória dos aliados,
assim como os soldados brasileiros que tombaram na
“Parte do objetivo deste livro não é apenas registrar Itália.
a história da contribuição dos seringueiros à II
Guerra Mundial, mas também traçar, por meio dos
documentos recentemente revelados dos arquivos do
Senado Norte-Americano o caminho do dinheiro
desde o Governo dos EUA até o Governo
Brasileiro e os bancos”.

Em 2010, Neeleman teria revelado sua descoberta ao


então embaixador Thomas Shannon, ao ministro

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