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Artigo ABCiber - Algoritmização Do Cotidiano

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XV Simpósio Nacional da ABCiber

Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura


Curando Causas: Educação, trabalho e diversidade na era dos dados
Online – 7 a 9/12/2022

Algoritmização do cotidiano: impactos nos processos de criação e no


debate público1

Mirian Meliani2
PUC-SP/ECA-USP
Renê Eduardo Arruda3
PUC-SP
Roseni Moraes4
PUC-SP

Resumo
A partir de estudos dos processos de criação em ambiente digital, o artigo propõe uma
reflexão sobre o avanço da algoritmização na comunicação do cotidiano, influenciando
comportamentos, consumo e produção de sentidos. Parte-se do pressuposto de que no
ecossistema digital, cuja lógica central é recortada pelo uso mercadológico dos
algoritmos, as reapropriações comunicacionais se estabelecem a partir de relações
intercambiadas entre o humano e o maquínico, que por sua vez devem ser
compreendidas em suas potencialidades e limites. A reflexão parte da intersecção de
estudos desenvolvidos no âmbito do Grupo de Pesquisa InterLab CCM/CNPq, da PUC-
SP.

Palavras-chave: comunicação digital; algoritmos; processos de criação; política de


dados; plataformas digitais.

Construindo as bases de uma resistência político-afetiva

A partir de pesquisas desenvolvidas em diferentes campos de atuação, os autores deste


artigo, todos integrantes do Grupo de Pesquisa InterLab CCM/CNPq 5, cartografaram
inicialmente os nós de conexão em seus estudos capazes de trazer à tona possíveis
respostas a um desejo que movimenta suas reflexões em torno do estágio atual da
cibercultura. A pergunta que resume tal disposição é, resumidamente: como estabelecer
1
Trabalho apresentado em Mesa Coordenada do Eixo Temático 5: Algoritmização do consumo e dos
comportamentos em rede, no XV Simpósio Nacional da ABCiber. realizado online nos dias 07 a 09 de
dezembro de 2022.
2
. Mirian Meliani é Doutora e Mestre em Comunicação e Semiótica na PUC/SP, com bolsa Capes e
CNPq. É pesquisadora do Interlab CCM/CNPq-PUCSP e do Com+/ECAUSP. Iniciou recentemente os
estudos de pós-doutorado em projeto vinculado à ECA-USP/CNPq. E-mail: mimeliani@gmail.com
3
Renê Arruda é Mestre e Doutorando do Programa de Estudos Pós-graduados em Comunicação e
Semiótica da PUC-SP e membro do grupo de pesquisa Interlab CCM/CNPq-PUCSP. E-mail:
rene.arruda87@gmail.com
4
. Roseni Guimarães Corrêa de Moraes é Doutoranda em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e
membro do Grupo de Pesquisa Interlab CCM/CNPq-PUCSP. E-mail: rgmoraes@pucsp.br.
5
Página disponível em: http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/0123760573081386 . Acesso em 05 jan.
2023.

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parâmetros capazes de dar conta da produção criativa de resistência político-afetiva


diante de dispositivos em plena dinâmica de reconstrução maquínica? Tal reflexão parte
da premissa de que os processos de decisão são cada vez mais automatizados, em
resposta a uma ampla estrutura de dados que traveste sua materialidade em “simulações
de interfaces transparentes” (SCOLARI, 2018a).
Fruto dessa inquietação, a organização de uma mesa coordenada capaz de dialogar com
o tema da cura e da curadoria, eixo central do XV Simpósio Nacional da ABCiber em
2022, foi um caminho profícuo para delinear a atual etapa desse debate, que não se
iniciou agora. A título de memória e registro da importância da ABCiber como
promotora de espaços comuns de encontro e reflexão, vale lembrar que os autores já
traçaram suas primeiras reflexões em mesa realizada no XIV Simpósio Nacional, em
2021, ainda nos tempos mais difíceis da pandemia de Covid-19 e que trouxeram à tona
com muita clareza os impasses gerados pela plataformização (SRNICEK, 2017;
ZUBOFF, 2019) e por uma vida vivida cada vez mais no interstício entre telas.
Interessa-nos compreender como as políticas algorítmicas implementadas pelas grandes
plataformas digitais invadem o cotidiano com sua lógica de mercado, recebendo, como
contraponto, possíveis respostas sensíveis permeadas pela diversidade dos atores
envolvidos.
É assim que percebemos como determinadas comunidades são capazes de ativar os
saberes criativos digitais de seus jovens membros (SCOLARI, 2018) para produzir
enunciados hipermidiáticos (LEÃO, 1999) que atravessam tais plataformas digitais, em
um processo que busca reconstruir ambiências capazes de promover algo próximo do
tema da curadoria e do cuidado, algo que se traduz na propagação da agenda de suas
próprias demandas educacionais, culturais, tecnológicas, políticas e sociais.
Da mesma forma, compreender o cotidiano enquanto partilha do comum e lócus de
(re)produção da cultura e da política, ao ser hipermidiatizado, pressupõe uma
infraestrutura técnica para a comunicação e a sociabilidade (CESARINO, 2022). Estas
tecnologias não são meros instrumentos condutores de trocas de mensagens, mas
transformam a própria dinâmica social de produção de sentidos e influenciam o debate
público. As consequências políticas de tal configuração, cada vez mais mediada por
grandes corporações transnacionais, em sua programação algorítmica pouco
transparente, podem ser percebidas tanto nos ecos aparentemente infinitos e invencíveis

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da desinformação quanto nas respostas que procuram configurar resistência e


reinvenção do cotidiano.
Por fim, o flagrante crescimento do uso de aparatos tecnológicos capazes de simular a
interação humana, destaca o caso dos Assistentes de Voz (AV) como objetos que
permitem observar a influência exercida de maneira significativa no comportamento em
rede. Tais aparatos estão presentes em inúmeras ações do cotidiano com o propósito de
facilitar as interações com sistemas computacionais, apoiados nas possibilidades criadas
pela popularização da sensorização que permite a comunicação com objetos do dia a
dia. O acesso a esses sistemas, intermediado por Assistentes de Voz, amplifica a relação
com as informações, pois sua forma de agência desencadeia um processo hipermidiático
que se prolonga por caminhos que podem ser explorados indefinidamente.
Na confluência dessas abordagens, procuramos respostas para compreender aspectos
decisivos da algoritmização do cotidiano que reverberam nos processos criativos
comunicacionais, apontando limites, mas também revelando suas potencialidades.

Algoritmização do cotidiano e os processos colaborativos nas comunidades

Sabemos que o campo da cultura digital é dinâmico, desafiador e que as reinvenções do


fazer comunicacional acontecem o tempo todo nas bordas das mídias
institucionalizadas. Para retratar o seu dia a dia, uma parcela significativa de indivíduos
e coletivos, em suas múltiplas particularidades, usa com destreza as redes digitais.
Como premissa fundamental, portanto, é importante reconhecer as habilidades e
competências desenvolvidas pelas novas gerações nas vivências diretas das culturas
colaborativas (SCOLARI, 2018b).
Em estudos anteriores, refletimos como, para Rancière (2009; 2018), o campo da
política é mediado por discursos que operam a meio caminho entre o “desentendimento”
e a “partilha do sensível”. Nesse sentido, nossa hipótese é que os processos criativos são
instrumentos potentes e capazes de acionar rearranjos de signos, unindo política e arte,
construindo tais “espaços de partilha” mesmo nos ambientes inóspitos das plataformas
digitais.
Em resposta aos arranjos algorítmicos sistematizados (SAAD, 2012), outras
recombinações emergem, expressando decisões criativas de resistência, em uma
dinâmica de esclarecimento. Pretendendo ou não, muitas vozes contribuem para a

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reinvenção do fazer informativo, atravessado pelos algoritmos, pelo mercado da


desinformação e pelos sistemas inteligentes controlados por grandes corporações
transnacionais.
É assim que refletimos sobre a maneira como as comunidades têm se organizado no
sentido de elaborar, compartilhar e documentar suas práticas cotidianas de produção de
conhecimento e lutas sociais por meio de enunciados informativos em formatos
hipermídia (LEÃO, 1999).
A proposta é avançar no sentido de compreender como o processo criativo se dá no
campo do jornalismo digital em territórios locais, desenvolvendo uma cartografia das
implicações políticas de escolhas éticas e estéticas. Partimos da constatação de que as
tendências de centralização dos processos de distribuição e compartilhamento de
enunciados, noticiosos ou não, nas Redes Sociais Digitais RSD) mantidas pelas
plataformas de Big Techs tornaram-se efetivas de uma forma contundente, gerando
protestos e inquietações, como aqueles manifestados por Tim Berners-Lee, já em 2018:

As ameaças à web hoje são reais – desde informações falsas e


propaganda política questionável até a perda de controle sobre
nossos dados pessoais. Mas continuo comprometido em
defender que a web seja um espaço livre, aberto e criativo para
todos [...] A concentração de poder cria um novo conjunto de
gatekeepers, permitindo que um punhado de plataformas
controle quais ideias e opiniões são vistas e compartilhadas.
(BERNERS-LEE, 2018, tradução nossa)6

Sob o recorte dos processos de propagação da informação jornalística, para se contrapor


ao gatekeeper algorítmico controlado pelas grandes corporações transnacionais, tal
como apontado por Berners-Lee, figura a possibilidade de uma curadoria algorítmica re-
mediada por ativistas, blogueiros, jornalistas ou comunicadores (SAAD; BERTOCHI,
2012). É dentro dessa lógica que abordamos a produção criativa desenvolvida por
comunidades e localidades que procuram fugir da imposição dos algoritmos controlados

6
Artigo completo na página do The Guardian. Disponível em:
<https://www.theguardian.com/commentisfree/2018/mar/12/tim-berners-lee-web-weapon-regulation-open-
letter>. Acesso em: jan. 2023.

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por empresas como Meta (Facebook/Instagram/Whatsapp), Alphabet (Google), Amazon


e outras.
As comunidades periféricas sofrem forte impacto dos conteúdos de desinformação e
possuem, em geral, menos recursos para a busca de processos de re-mediação
convencionais. Nas dinâmicas em que a exposição ao campo semântico dos discursos de
ódio se constitui como um abalo dos laços constituídos em redes, com conteúdos de
perseguição religiosa, ataques racistas, criminalização das regiões periféricas das
grandes cidades e xenofobia, entre outros, como se dá a recomposição de uma
resistência político-afetiva?
É possível antever que existe um devir criativo que vai além da zona do esgotamento
em relação às comunidades. São muitos os projetos em andamento, capazes de oferecer
conteúdos digitais baseados na multivocalidade, retratando sob perspectivas diversas as
realidades locais. Em levantamento prévio, realizado por meio de aplicação de
questionário estruturado digital distribuído a lideranças de projetos de jornalismo local,
pudemos observar alguns dados exploratórios iniciais que apontam que:
1. As ações desenvolvidas localmente exibem forte potencial criativo justamente pela
proximidade e diálogo com seu público final. Destacam-se simultaneamente em termos
de linguagem verbal, visual e sonora (SANTAELLA, 2005).
2. Há espaço para a construção de um campo comum em que a partilha do sensível se
torna não apenas viável, mas fluida. A mediação se dá não por processos impositivos,
mas no campo do espaço comum partilhado e negociado.
3. O repovoamento do imaginário baseado em uma comunicação horizontal, não-
hierárquica e praticante de uma escuta generativa é capaz de fazer frente à
desinformação, em contextos específicos.
4. O mapeamento e registro dos processos criativos aprofunda essas experiências,
ajudando a dar perenidade e capilaridade às ações. Os projetos mais estruturados já
fazem uso dessas estratégias, cada qual desenvolvendo seus próprios métodos, inclusive
fazendo uso das plataformas de redes digitais.
É assim que o mapeamento dessas ações sai em busca dessa “arte ou maneira de fazer”
(CERTEAU, 2012, p. 42), demonstrando as brechas em que as habilidades adquiridas
por jovens no uso das tecnologias digitais na comunicação (SCOLARI, 2018b) já estão

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sendo aplicadas para fazer frente aos processos de algoritmização impostos de forma
hierarquizante e vertical pelas grandes plataformas.
Se o alcance é sempre restrito e não substitui, de forma alguma, as medidas necessárias
para uma política macro, capaz de fazer frente ao poder desproporcional das
plataformas transnacionais, a ação localizada cumpre um papel imprescindível ao
apontar caminhos originais e criativos, baseados em espaços de afeto e reconstrução.

Relações entre política e hipermidiatização do cotidiano: como a infraestrutura


técnica das plataformas influencia o debate público
A última década introduziu novos fenômenos no debate público, como fake news, pós-
verdade e negacionismos, frequentemente ligados a movimentos políticos populistas de
direita. Há abundância de exemplos de notícias fraudulentas (BUCCI, 2019) que foram
(e são) tema de debate nos EUA (RITCHIE, 2016), Índia (NEWSLAUNDRY, 2018) e
Brasil (MELLO, 2020). Estes fenômenos, em suas inúmeras instâncias, manifestaram-se
na forma específíca de cada um dos ambientes socioculturais onde ocorreram, porém
respeitadas as diferenças e particularidades entre países e regiões, há regularidades. Em
todos os casos, as tecnologias digitais, com sua capacidade de distribuição de
informação descentralizada e não linear, contribuíram para a desarticulação da
capacidade da mídia tradicional de moldar narrativas e mostraram-se um novo espaço
de produção de verdade (BUCCI, 2019; SANTAELLA, 2019). Não é coincidência que,
no mesmo período em que os fenômenos analisados neste artigo ocorreram, também
consolidou-se o atual modelo plataformizado de internet (SRNICEK, 2017; ZUBOFF,
2019), que corresponde à infraestrutura técnica de comunicação por todos partilhada. O
ambiente de sociabilidade propiciado pelas plataformas digitais de redes sociais,
permeados por algoritmos de curadoria de conteúdo, frequentemente circulam
representações “alternativas” da realidade, marcados por relativa indistinção de fato e
ficção, com prevalência de material chocante, sensacionalista e frequentemente falseado
intencionalmente por algum grupo privado.
Tais regularidades, encontradas em diversos contextos socioculturais, apontam para a
hipótese de que a própria infraestrutura comunicacional (no caso, redes sociais digitais),
tenha algum papel formativo nos fenômenos que permeiam o debate público atual, em

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especial fake news, negacionismos, conspiracionismos e a emergência de movimentos


políticos populistas de direita.
Podemos compreender estas tecnologias, em especial as redes sociais digitais, como
infraestruturas de mediação entre grupos de usuários (SRNICEK, 2017), que coletam
dados para identificar correlações entre comportamentos e desfechos, modulando a
oferta de informação para melhores resultados comerciais e comportamentais de
interesse das próprias plataformas e seus anunciantes (ZUBOFF, 2019). Quais seriam
estes interesses? Manter usuários engajados nas plataformas, para coletar mais dados,
para vender mais anúncios, para manter a rede da plataforma ativa e atrativa a novos
usuários. Uma das principais formas fazer isso é através da conivência com a circulação
de conteúdo extremo, que provoque fortes respostas emocionais, independentemente se
for verdadeiro ou não (LIPPELT, 2022; NETLAB, 2022).
A maioria das plataformas faz uso de algoritmos para administrar o conteúdo a ser
exibido a cada usuário7, e uma das características mais bem documentadas destes
sistemas é que colocam o usuário em contato com conteúdos adjacentes aos acessados
anteriormente, ou exibem conteúdos consumidos por categorias de usuários que a
plataforma entende como semelhantes. Além disso, estes sistemas foram projetados para
que o usuário encontre o que procura, seja lá o assunto, opinião ou perspectiva em
questão. Isso significa que, em tais algoritmos, está presente uma tendência a feedback
positivo - quando o usuário procura algo, ele encontra o que queria – mesmo que o
conteúdo desejado seja falso, como uma confirmação de que “o Holocausto não
aconteceu”, ou que “as vacinas de Covid-19 na verdade são um plano da esquerda
globalista para esterilizar a população mundial”.
Esta característica tem ao menos três efeitos relevantes para o debate público e
emergência de novos movimentos políticos: (1) favorece o viés de confirmação, com a
tendência a feedback positivo, tanto em termos de conteúdo quanto ao colocar um
usuário em contato com outros que pensam e sentem de forma semelhante; (2) ao
favorecer viés de confirmação em demasia, há uma tendência à polarização política e
segregação social; (3) há tendência ao desenvolvimento de cismas entre comunidades de
usuários, nas quais as comunicações de grupos dos quais as pessoas fazem parte têm
7
Uma exceção notável são os aplicativos de mensageria, como WhatsApp e Telegram. Nestes casos, a
curadoria é realizada pelos próprios usuários, que compartilham entre si conteúdos aceitos pelo grupo em
um procedimento de curadoria orientado por sociabilidade, partilha de sentido e hábitos, no sentido
peirceano (IBRI, 2015).

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maior probabilidade de serem percebidas como críveis (PAUL, MATTHEWS, 2016),


fazendo crescer a homofilia, ou seja, a criação de laços afetivos e de significado
compartilhado em um mesmo grupo, fortalecendo aquela “bolha” particular. Mais do
que isso, se fortalece, na partilha, os modos de pensar e sentir daquele grupo, hábitos, no
sentido peirceano de representações que propiciam mediação com o real (IBRI, 2015).
O poder de crença das fake news, negacionismos e conspiracionismos, para além do que
propiciam as plataformas digitais, tem relação com sociabilidade, com a conformação,
em nossa sociedade, de “bolhas”. Segundo Santaella (2020):
As bolhas, que abrigam nossas convicções, não são apenas nossas,
mas são alimentadas por todos aqueles que nos são semelhantes por
possuírem a mesma visão de mundo, valores similares e padrões
interpretativos em idêntica sincronia.
Então, retomando a hipótese cuja discussão é objeto deste texto, as plataformas de rede
social são infraestruturas de mediação entre usuários, cujo interesse está em mantê-los
engajados para satisfação de interesses comerciais próprios. Para isso, implementam
técnicas de distribuição de conteúdo que favorecem feedback positivo, viés de
confirmação, segmentação social e homofilia, aprofundando divisões sociais já
existentes (“bolhas”) e, quiçá, criando outras.
No limite, este cenário pode caminhar para cismas entre comunidades de usuários, em
um processo iterativo e cíclico (feedback loops), como sugerido por Cesarino (2022),
resultando em uma mentalidade amigo-inimigo – se é do meu grupo, é confiável e
verdadeiro, e se não é do meu grupo, é hostil e falso. O exercício e constante atualização
deste modo de pensar (hábito, no sentido peirceano, ou feedback loop, como descrito
por Cesarino) favoreceria populismos políticos não inclusivos.

Pequenos vestígios: os Assistentes de Voz e a hipermidiatização do cotidiano

Os Assistentes de Voz (AV) estão cada vez mais presentes nas ações do cotidiano
atuando como facilitadores nas interações com sistemas computacionais, através das
possibilidades criadas pela popularização da sensorização de objetos que são usados no
dia a dia. Segundo pesquisa realizada, em 2021, pela Juniper Research 8, de maneira
geral o uso de comandos de voz aumentou desde a pandemia da COVID-19, uma vez
que 52% dos usuários de assistentes de voz disseram usar essa tecnologia várias vezes

8
Disponível em: https://www.juniperresearch.com/whitepapers/ok-google-show-me-the-money. Acesso
em 11/01/2023.

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ao dia ou quase todos os dias, em comparação com 46% antes da disseminação global
do novo coronavírus.
O aumento da utilização da inteligência artificial na vida cotidiana ajuda a incrementar a
criação de aplicativos de voz, pois o uso de objetos sensorizados, em constante
expansão, oferece aos assistentes de voz uma importância significativa na vida de um
usuário conectado. Os microfones estão se espalhando por toda parte e o acesso a
assistentes torna-se onipresente, com empresas B2C e B2B ansiosas para monetizar essa
tendência.
O desenvolvimento da tecnologia de voz como resultado da pandemia da COVID-19,
também resultou em mais participantes nesse segmento, pois à medida que a pandemia
criou uma necessidade de menos toque e mais aplicativos de voz, mais organizações
surgiram para oferecer esses serviços. Dessa forma, o cenário de fornecedores de
sistemas interativos de voz torna-se mais fragmentado, com um número crescente de
assistentes específicos. Neste momento, de um modo geral, o cenário brasileiro dos AV
pode ser dividido em duas categorias: a) assistentes internos de marca, tais como a Aura
(VIVO), a K (SKY), a NAT (NATURA), a BIA (BRADESCO) etc., que fornecem
recursos limitados às empresas que representam; b) plataformas de uso mais amplo, que
incluem as gigantes da tecnologia Amazon, Google e Apple, que oferecem desde
funcionalidades de assistentes pessoais até o controle de casas inteligentes.
Diante desse panorama, podemos dizer que o crescimento da popularidade dos AV é
impulsionado por sua capacidade de facilitar as interações humano-computador sem
toque, de maneira “natural” e intuitiva, numa tentativa de simular as conversas entre
seres humanos. Destacamos que o acesso aos sistemas sensorizados por meio dos
Assistentes de Voz possibilita a amplificação da nossa relação com as informações,
pois sua agência tende a desencadear um processo complexo e hipermidiático que pode
se desdobrar, ir, vir e ser retomado indefinidamente.
Em função desse panorama, entendemos ser necessária uma reflexão sobre a relação da
hipermídia e o uso dos AV no cotidiano, tendo como referentes a Alexa (Amazon), a Siri
(Apple) e o Google Assistente. Nossa escolha tem como critério principal a
popularidade desses AV no Brasil, além do fato de estarem disponíveis em smartphones,
assim como em vários outros objetos do dia a dia, tais como caixas de som, televisores,
aparelhos de ar-condicionado, geladeiras, máquinas de lavar e até em carros.

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Ao refletir sobre como a linguagem da hipermídia se presentifica nas ações mediadas


pelos AV, partimos do conceito de Leão (1999) de que a hipermídia é formada por
“blocos de informações” (lexias) e “vínculos eletrônicos” (links). As lexias podem
conter texto, imagem, vídeos, ícones etc., e se referem ao ponto onde nos encontramos
antes de optarmos por seguir um link. As características das lexias podem variar
bastante, sendo que três tipos de variação são elencados pela autora: a) quanto aos seus
limites; b) presença ou não de hierarquia na organização e concepção das lexias; c) tipos
de relacionamentos que podem ocorrer entre elas.
As informações disponibilizadas na web são compostas de diversos hiperlinks. Leão
(1999, p. 28-29) afirma que quando há muitos links ou menus, pode ocorrer uma
“sensação de vazio” ou a “desmaterialização da lexia”. Para a autora, esse momento
pode ser relacionado à “experiência do nó”, pois pode nos levar, metaforicamente, à
imagem da “paralisia ou do enredamento”.
O contexto apresentado por Lucia Leão demonstra que as decisões de navegação estão
nas mãos do usuário. É ele que investiga, descobre novos links, amplia sua busca,
redireciona seu caminho etc. Em contrapartida, quando pedimos a um AV para procurar
algo na web, teremos dois cenários possíveis: a) o AV traz uma resposta pronta que
servirá ao nosso propósito e encerramos o processo; b) o AV traz uma resposta pronta
que não nos satisfaz e continuamos a busca. Nesse caso, o processo precisa, na maioria
das vezes, ser reiniciado, seja fazendo uma nova pergunta ou reformulando a primeira
questão.
Sabemos que há constantes ajustes sendo feitos no processo de interação homem-
máquina que é recorrente e ágil, porém não é incomum que as respostas ainda sejam
insatisfatórias e precisem de mais buscas. A dinâmica da interação não é contínua, tem
que ser recomeçada e as fontes de pesquisa continuam sendo decididas pelo AV. Em um
exercício realizado com os três AV objetos deste estudo, fizemos a seguinte pergunta:
como se escreve um artigo?
Resposta da Alexa: Artigo se soletra A R T I G O
Resposta do Google Assistente: Soletrando um artigo U M A R T I G O
Resposta da Siri: sem resposta por voz, enviou um arquivo de texto.

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Figura 1 - Resposta da SIRI


Fonte: Aplicativo pessoal de Roseni Moraes. Acesso em 21/01/2023

Para obtermos a resposta desejada, a pergunta deveria ter sido feita de outra forma, ou
seja, “Como se desenvolve um artigo?”. Porém, ainda assim, a fonte da busca seria
decidida pelo AV sem que saibamos qual é o critério de escolha, a não ser que seja feito
um pedido específico pelo usuário. Vale relembrar que o objetivo do AV é facilitar a
busca sem toque. Contudo, os AV ainda não estão aptos a entender perguntas longas ou
complexas.
O que devemos pensar com mais relevância, diz respeito ao fato de que é preciso dar
mais atenção aos pequenos vestígios de que estamos sendo vigiados, seguidos,
controlados e por vezes conduzidos pela algoritmização do nosso cotidiano. Entregamos
dados, aceitamos respostas prontas, seduzidos pelos apelos mercadológicos que podem
nos convencer que um AV pode ser nosso amigo, acender ou apagar as luzes para ajudar
ou pode cuidar da nossa agenda.
Lembremos que para Santaella (2022), o “neo-humano” pode ser resultado de um
processo evolutivo “das formas comunicacionais e cognitivas” criadas por ele e apoiado

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pelos constantes avanços nos meios de “produção, registro, armazenamento, memória e


transmissão” das linguagens criadas ao longo da jornada do sapiens na Terra.
As ponderações que aqui empreendemos procuram fazer parte de um projeto maior que
visa ao aprofundamento das reflexões sobre nossas atitudes diante da algoritmização e
hipermidiatização cotidiana, que procura questionar em que medida somos responsáveis
pelas experiências que emergem da interação homem-máquina. Resta saber o quanto as
relações com novos ambientes hipermidiáticos são capazes de desenvolver a
pluralidade, sem apenas se ajustar aos padrões hegemônicos e/ou unilaterais.

Considerações finais
Procuramos compreender, ao longo deste artigo, os movimentos das políticas
algorítmicas implementadas pelas grandes plataformas digitais que se impõem no
cotidiano com sua lógica de mercado: nos discursos de ódio e desinformação que
ganham destaque e atingem o dia a dia de populações periféricas e comunidades
fragilizadas; repercutem nas instituições, no debate público e político, constituindo-se
muitas vezes em fenômenos contemporâneos de negacionismos e conspiracionismos; e
tornam-se presentes de forma quase invisível, em “interfaces transparentes” como
aquelas representadas pelos Assistentes Virtuais dentro do avanço das tecnologias de
IoT.
A infraestrutura comunicacional não é neutra, e propõe diagramas de ação e de interação
intencionais e não intencionais cujos resultados políticos podem ser desastrosos para os
sistemas políticos democráticos representativos atuais. A compreensão destes
fenômenos é crucial para que seja possível construir democraticamente um futuro
inclusivo e próspero.
No balanço entre potencialidades e limites, percebemos como o uso das redes e
plataformas digitais, em diferentes dimensões, desenham um panorama de inquietação
política, de avanço dos discursos patrocinados por grupos que impõem seus interesses
econômicos e propagam teorias de deslegitimação da ciência e do jornalismo, causando
instabilidades aos regimes democráticos.
Em contrapartida, dentro de um jogo de reapropriações socioculturais, percebemos que
não apenas é possível, como de fato urgente e necessário, privilegiar processos criativos
capazes de enviar suas próprias respostas sensíveis, permeadas pela diversidade dos

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atores envolvidos, fazendo uso dos mais diversos aparatos tecnológicos em suas
dimensões comunicacionais e educacionais.

Referências Bibliográficas
BERNERS-LEE, Tim. The web can be weaponised – and we can't count on big tech to
stop it. The Guardian, 12 mar. 2018. Disponível em
<https://www.theguardian.com/commentisfree/2018/mar/12/tim-berners-lee-web-
weapon-regulation-open-letter>. Acesso em: jan. 2023.

BUCCI, Eugenio. News não são fake -- e fake news não são news. Em: Pós-verdade e
fake News. Reflexões sobre a guerra das narrativas. Rio de Janeiro: Cobogó Ed., p. 37-
48. 2019.

CESARINO, Letícia. O mundo do avesso: Verdade e política na era digital. 1ª


edição. São Paulo, Ubu Editora, 2022.

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