Justice">
Trial by Media - Ana
Trial by Media - Ana
Trial by Media - Ana
RESUMO: Sabe-se que os meios de comunicação exercem grande papel como formadores de
opinião, porém nos moldes de seus próprios interesses, na cessante busca por audiência. Com
o aumento da criminalidade no Brasil, o meio penal passou a chamar atenção da mídia,
tornando-se um formato publicitário, baseado no espetáculo, capaz de afetar a opinião pública
e de autoridades competentes na condução do caso concreto. Ainda que não possua todos os
detalhes para analisar o caso, a imprensa apresenta como se os tivesse, causando,
propositalmente, a emissão de sentença condenatória sem direito à defesa. Nesse sentido,
inicia-se a interferência no processo penal causando lesões aos envolvidos, fazendo com que
os órgãos competentes se tornem reféns e optem pelo direito penal do inimigo. Pontua-se os
casos “Isabella Nardoni”, “Eloá Cristina”, “Daniella Perez” e “Escola Base” como exemplos
para o momento em que a mídia deixou de ser fonte de informação para assumir as funções de
investigador e julgador, enquanto as instituições ficaram inertes à novela induzida pela
imprensa.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Art. 5º
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte,
quando necessário ao exercício profissional. (BRASIL, 1988).
Ademais, a Declaração Universal dos Direitos Humanos define esse direito como a
liberdade de emitir opiniões, ter acesso e transmitir informações e ideias, por qualquer meio
de comunicação.
Art. 19º. Todo indivíduo tem o direito à liberdade de opinião e de expressão, o que
implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e
difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de
expressão. (ASSEMBLEIA GERAL DA ONU, 1948).
Neste mesmo sentido, a Convenção Americana de Direitos Humanos, popularmente
conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, tratado ao qual o Brasil é subscritor, versa
também sobre a liberdade de expressão.
3
Furo jornalístico é o jargão para a informação pública num veículo antes de todos os demais.
Contudo, atualmente o jornalismo criminal opta por um discurso tendencioso, onde o
crime necessita ser exposto e julgado pela população e terminar com uma solução justa. E,
por solução justa, entende-se o porquê da criação de narrativas.
A mídia colabora efetivamente para este processo de construção da imagem do
inimigo – em nosso país, quase sempre identificado com os setores subalternos –
mas auxilia na tarefa de eliminá-lo, silenciando considerações éticas e justificando o
que consideramos uma autêntica “opressão punitiva”. Para que tudo isso seja
possível, é necessário disseminar a insegurança, derivada de medos profundos da
maleficência “humana” e dos malfeitores “(des)humanos”, medos geralmente
capilarizados em prol da repressão e em detrimento dos direitos e garantias
individuais (CARVALHO, 2009, p. 83).
Em síntese, essa vertente do jornalismo é importante para que haja conhecimento dos
fatos jurídicos envolvendo crimes chocantes, entretanto, é necessário observar como a
informação é repassada por alguns meios de comunicação, pois geralmente utiliza-se do
sensacionalismo e do espetáculo para comover a sociedade instigando a justiça social.
Como observado neste capítulo, é notório que os meios de comunicação fazem sua
função social de informar, e isto é importante para a construção de uma sociedade
democrática e para que o acesso à informação seja garantido. Porém, também é visível que a
liberdade de imprensa irrestrita pode causar lesões a coletividade, sendo estendidas ao
processo penal e as garantias do acusado.
Inicialmente faz-se necessário citar Karl Marx que deu origem à tese de que a
comunicação é abstrata, que precisa ser compreendida no contexto da totalidade concreta.
Para Marx, a comunicação surge como meio de relação entre os indivíduos, visando a
produtividade. E, os meios de comunicação se desenvolvem com o avanço desta relação,
como forma de socialização. Assim, com a tecnologia a coletividade passa a dispor de mais
conhecimento sobre o mundo, veiculadas na forma de informação pelos jornais. No entanto, o
desenvolvimento dos meios de comunicação, ao invés de formar o pensamento social, acabou
padronizando a consciência.
Diante disso, surge a Escola de Frankfurt4 que se torna conhecida por desenvolver
uma teoria crítica, levantando o conceito de indústria cultural que é um conjunto de
reproduções que não estimulam o senso crítico.
4
Escola de Frankfurt é o nome dado ao grupo de pensadores alemães do I.P.S.
Os primeiros filósofos detectaram a dissolução das fronteiras entre informação,
consumo, entretenimento e política ocasionada pela mídia, bem como seu efeito nocivo na
formação de opinião de uma sociedade. Levantando-se o questionamento, qual a influência
dos meios de comunicação sobre uma sociedade? Como as pessoas são mobilizadas a
acompanharem um caso criminal, como ocorreu com Isabella Nardoni?
A mídia, que exerce poderosa influência em nosso meio, se encarrega de fazer o
trabalho de convencimento da sociedade, mostrando casos atrozes, terríveis sequer
de serem imaginados, e, como resposta a eles, pugna por um Direito Penal mais
severo, mais radical em suas punições. A disputa por pontos de audiência, por venda
de seus produtos, transformou nossa imprensa em um show de horrores que, por
mais que possamos repugná-lo, gostamos de assisti-lo diariamente. (GRECO, 2017,
p.2)
Ocorre que casos como Escola Base, Boate Kiss e Daniella Perez, por si, são capazes
de comover a sociedade, mas foram alvos de grande repercussão no Brasil, onde cada um
aguardava o próximo capítulo. Assim, é necessário citar que a mídia ‘elege’ casos para tal
repercussão, tendo em vista que milhares de crimes iguais acontecem, contudo só alguns
ganham esse espaço.
Corroborando com a ideia, tem-se o posicionamento de Luíz Flávio Gomes:
A maior crítica que cabe formular contra os meios de comunicação de massa
consiste no seguinte: eles não informam sobre as raízes da violência, não
discutem todos os riscos dela, muito menos o seu oposto, que é a cultura da não-
violência. Os meios de comunicação de massa configuram um grande obstáculo para
a democracia (Nilo Batista), na medida em que privam o público de debates sérios
sobre as causas da violência. Falam e mostram a própria violência. Com essa
técnica eles não criam uma opinião pública, sim, exploram (e incentivam) a
emoção pública. Essa exploração exacerbada da emoção pública, por si só, já
constitui uma forma de violência. Sob a perspectiva da cultura da não-violência
temos que combater (arduamente) a negativa exploração da emoção pública.
A mídia, como formadora de opinião, pode interferir no rito processual de crimes, pois
atua como órgão julgador e de maneira errônea acerca do acusado, prejudicando-o na medida
em que viola as prerrogativas deste.
A imprensa demoniza o acusado, de tal forma que este se torna um monstro, e um
monstro aos olhos da sociedade deixa de ser humano, logo deixa de ser sujeito de direitos.
Este fenômeno da condenação antecipada afasta do acusado a garantia da presunção de
inocência, sujeitando-o sem direito de resposta ou de recurso, a danos de imagem por vezes
equivalentes (se não mais gravosos) à eventual pena final, que sequer pode vir a receber
(SOUZA, 2010, p.2).
Em razão do exposto, é possível perceber que os meios de comunicação se aproveitam
do fenômeno violência para ganhar audiência, explorando a brutalidade como se buscassem
respostas severas e imediatas do Poder Judiciário para um fato. E, apesar do acesso à
informação ser importante, é necessário que haja um filtro acerca do que é consumido pela
sociedade.
O devido processo legal está regulamentado no artigo 5º, LIV da Constituição Federal,
dispondo que “ninguém será privado da sua liberdade ou dos seus bens sem o devido processo
legal”.
Todavia, no âmbito das garantias do processo é que o devido processo legal assume
uma amplitude inigualável e um significado ímpar como postulado que traduz uma
série de garantias hoje devidamente especificadas e especializadas nas várias ordens
jurídicas. Assim, cogita-se de devido processo legal quando se fala de (1) direito ao
contraditório e à ampla defesa, de (2) direito ao juiz natural, de (3) direito a não ser
processado e condenado com base em prova ilícita, de (4) direito a não ser preso
senão por determinação da autoridade competente e na forma estabelecida pela
ordem jurídica. (MENDES E BRANCO, 2012, p. 750).
Nesse artigo é aludido que não é possível que alguém seja condenado se não houver
procedimento regular e que esteja disposto na Constituição Federal e no Código de Processo
Penal. O princípio do devido processo legal exige o fair trial não apenas dentre aqueles que
fazem parte da relação processual, ou que atuam diretamente no processo, mas de todo o
aparato jurisdicional, o que abrange todos os sujeitos, instituições e órgãos, públicos e
privados, que exercem, direta ou indiretamente, funções qualificadas, constitucionalmente,
como essenciais à justiça.
2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não
constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será
imposta pena mais forte de que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao
ato delituoso.
Vale destacar que se desdobra em duas vertentes: regra de tratamento em que o
acusado deverá ser tratado como inocente durante todo o decorrer do processo, e a regra
probatória, que é caracterizada pelo in dubio pro reo, ou seja, “na dúvida, adote-se a resolução
que for mais benéfica ao réu”. De acordo com a regra probatória, o ônus de provar o fato
criminoso é do Estado-acusação, e não da defesa.
Ademais, o princípio da não-culpabilidade assegura que privação de liberdade deve ser
o último recurso a ser utilizado no país, induz-se a prisão preventiva, outra garantia de grande
importância.
[...] essa modalidade de prisão deve ser vista como o ponto único e exclusivo de toda
e qualquer prisão cautelar de natureza processual, pois, se não houver necessidade
de se decretar a prisão preventiva, a prisão em flagrante não deve ser persistir (vide,
inclusive, a redação do art. 310, II, do CPP) e, se não existirem os motivos que
autorizam a prisão preventiva, a prisão temporária deve ser revogada ao final.
(RANGEL, 2012, p. 277).
Entretanto, existem casos em que a prisão preventiva é utilizada de maneira arbitrária.
E, o que influencia a decretação destas é o jornalismo criminal, que ao noticiar o fato
criminoso de maneira espetaculosa, buscando a dramatização do caso, acaba gerando
comoção na sociedade que almeja por uma solução justa. Em consequência disso, muitas
vezes o juízo decreta prisão em razão do clamor público, e não pelo disposto em lei.
No ano de 1992, na Rede Globo ia ao ar a telenovela ‘De Corpo e Alma’, escrita por
Glória Perez. Uma das atrizes do grande sucesso era Daniella Perez, à época chamada de
‘namoradinha do Brasil’, que interpretava Yasmin. Na trama, a atriz namorava o personagem
Bira, interpretado por Guilherme de Pádua. No decorrer da história, Yasmin e Bira
terminaram o namoro, o que deixou Guilherme nervoso e com medo de que seu personagem
saísse da novela. Infelizmente, na véspera do ano novo, o ator, junto de sua esposa Paula
Thomaz, perseguiram Daniella após as gravações e após conseguirem acesso ao carro da
vítima, a espancaram e assassinaram a jovem com dezoito perfurações no coração.
Nos dias que seguiram o fato, a investigação policial sobre o caso identificou
Guilherme como suspeito, visto que diversas provas de materialidade e autoria surgiram,
como o testemunho de camareiras da emissora de TV afirmando ter visto o ator com raiva
pelo seu sumiço nos capítulos seguintes, além de seu carro coincidir com o avistado na cena
do crime. Após ser confrontado com os indícios de sua participação no crime, Guilherme
confessou o assassinato
Assim, em 1994, Glória Perez, mãe de Daniella, passou a exigir, via mídia, que o
crime de homicídio qualificado fosse contemplado na Lei de Crimes Hediondos. Porém, a
princípio, o que seria o crime de homicídio qualificado? Em suma, seriam os homicídios que
pontuaram situações diferenciadas, como previsto atualmente no artigo 121 do Código Penal,
em seus parágrafos.
A inclusão deste tipo penal como crime hediondo foi muito discutido, principalmente
em relação a sua constitucionalidade e inconstitucionalidade, mas através da pressão da mídia,
a legislação acabou sendo adequada.
Os relatos veiculados pelos meios de massa para noticiar o caso Daniella Perez
ressaltaram, com grande vigor, o homicídio, a tal ponto do mesmo se tornar um
‘problema nacional” de grande repercussão. [...] Durante três meses subsequentes ao
crime, o Jornal Folha de São Paulo manteve notícias sobre o caso, ou seja, 29
páginas das 40 manchetes pesquisadas, das quais destacam-se: ‘Galã da novela das 8
mata com tesoura atriz Daniela Perez’; ‘18 golpes de tesoura matam ‘Yasmin’:
Daniela Perez estrelava ‘De Corpo e Alma’; Corpo foi encontrado em terreno
baldio; Polícia diz que ator confessou o crime; Pádua alega que estava sendo
ameaçado’; ‘A vítima: Dança levou à primeira participação na TV’, ‘O matador:
Pádua começou a carreira como ‘leopardo’, ‘Autora queria que a filha virasse estrela
de TV’; ‘Assassino de Daniela Perez é solto’ e ‘Guilherme assediava Daniela, diz
equipe’; ‘Daniela foi morta em ritual, diz advogado’; ‘Polícia acha tesoura na casa
de Pádua: Delegado diz ter encontrado também imagem de ‘preto velho’ no
apartamento do ator’ e ‘Artistas afirmam que Pádua é violento’; ‘Tchau Yasmin:
Yasmin rompe com Bira na novela e Daniela Perez enfrenta a fúria do ator
Guilherme de Pádua’; ‘Tatuagem no pênis é incomum’, ‘Pádua diz a revista que
misturava vida e novela’ ‘Daniela desmaiou antes dos golpes: Laudo mostra que a
atriz foi agredida a te ficar inconsciente, arrastada e perfurada no peito’; ‘Pádua diz
a revista que misturava vida e novela’; ‘Daniela desmaiou antes dos golpes: Laudo
mostra que a atriz foi agredida a te ficar inconsciente, arrastada e perfurada no
peito’; ‘Paula dominava marido submisso’. [...] Na revista VEJA, foram dedicadas
três capas, das edições de 08.01.1993, 13.01.1993 e 10.02.1993, com as seguintes
manchetes, respectivamente: ‘O PACTO DE SANGUE (Guilherme: peças gays,
histeria e sucesso a qualquer preço; Paula: ciúme doentio e contato com a noite barra
pesada)’, ‘O assassinato da atriz Daniela Perez’ e ‘A Dor e a Ira de uma Mãe’. Na
extinta Revista Manchete, encontra-se: ‘No matagal, já preparado para o ritual
macabro Guilherme e Paula golpearam Daniella com 16 tesouradas’. Na mídia
televisiva, onde foram dedicadas cerca de 2h30min em diversas emissoras,
especificamente na Rede Globo de Televisão, além dos plantões jornalísticos que
acompanharam o assassinato desde seu recente descobrimento. Realizou-se uma
edição especial do Globo Repórter em 05 de janeiro de 1993, uma edição do Jornal
Nacional (em 29 de dezembro de1992), do Fantástico e um bloco do programa
Retrospectiva 92. No cenário internacional, a revista americana People anunciou:
‘Kiss of Death: The Murder of a Soap Star—By Her TV Lover—Leaves Brazil in
Shock’. O crime é igualmente abordado pela CNN, fechando seu World News.
O crime que vitimizou Daniella foi protagonista de um grande apelo midiático para
que uma lei mais eficaz fosse estabelecida, porém também foi palco político para muitos. Os
legisladores tornaram-se reféns da mídia e da pressão pública pugnando por justiça. De
maneira que, novamente, um caso criminal ganhou aspectos de comoção e, ainda que
parecesse necessário, mesmo violando princípios constitucionais e penais, o importante era a
punição dos culpados.
Os meios de comunicação se aproveitaram da situação para instigar a população a
mudar a legislação, Leite e Magalhães explicam o assunto:
Itamar se diz contra a pena de morte mas quer debate a prisão perpétua. O presidente
Itamar Franco e o ministro da Justiça, Maurício Corrêa, se manifestaram ontem
contrários à pena de morte [...]. Para o Presidente temas como pena de morte e
prisão perpétua não podem ser tratados como ‘tabu’ na sociedade brasileira. Corrêa
admitiu que as mortes da atriz Daniella Perez e da menina Míriam Brandão criaram
no país uma verdadeira ‘epidemia de insegurança’. [...] Marinho apoia a pena de
morte O jornalista e empresário Roberto Marinho, 88, presidente das Organizações
Globo, disse ontem à Folha que o editorial de ‘O Globo’ defendendo a pena de
morte, publicado no sábado, ‘refletiu a indignação popular’ com o assassinato da
menina Míriam Brandão, de cinco anos, por seus sequestradores. Para Roberto
Marinho, a aplicação da pena de morte ‘teve um efeito formidável’ nos Estados
Unidos a partir do sequestro e morte do filho do aviador Charles Lindbergh, na
década de 30. Ele disse não temer um conflito com a Igreja por causa da posição do
seu jornal. ‘Sou católico, mas tenho a minha opinião’. [...] Igreja condena adoção da
pena de morte D. Luciano critica a apologia da violência na TV e teme que a pena se
transforme na justificativa para linchamentos. O presidente da CNBB (Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil), d. Luciano Mendes de Almeida, condenou ontem a
adoção da pena de morte no Brasil. Ele acredita que a pena de morte incutirá na
mentalidade das pessoas a ideia de que elas próprias podem matar. ‘Seria uma
justificativa para os linchamentos e facilitaria a violência policial’. Ele acha que a
Rede Globo de Televisão está fazendo a apologia da violência, para justificar uma
campanha nacional pela adoção da pena de morte no Brasil. [...] Na sua opinião as
cenas de violência das novelas e filmes na televisão têm incitado a onda de
criminalidade. [...] O presidente da CNBB criticou ainda a novelista Glória Perez,
mãe da atriz Daniella Perez,[...]. ‘Quem escreveu o papel para a filha morrer foi a
própria mãe’, disse.[...]. Amaral Netto consegue adesão para a pena de morte. Um
discurso do deputado Amaral Netto (PDS-RJ) em defesa da pena de morte provocou
polêmica ontem no plenário da Câmara. [...] Até o início da tarde Amaral havia
conseguido 40 assinaturas em um manifesto que defendo um plebiscito para que a
população decida sobre a pena de morte. [...] Globo brinca com a morte a pena de
morte. A Rede Globo caiu de cabeça na campanha do jornal ‘O Globo’. Deu
manchete no ‘Jornal Nacional’ e armou toda uma cobertura para envolver o
noticiário. Quem assistia o maior telejornal do país, ontem à noite, quer mais é a
morte. A cobertura foi cuidadosa. Começou com o caso Daniella Perez [...]. Seguiu
com o caso Míriam Brandão [...]. Terminou com a gangue da moto: os bandidos
fugiram da prisão. [...] No meio, a pena de morte. Só ela vai evitar que os bárbaros
assassinos de Daniella e Míriam continuem com a vida mansa. Só ela vai evitar que
os bárbaros assassinos fujam com facilidade da prisão [...]. A banalização da
tragédia – ‘a vida como ela é’ – fez sua estreia no ‘Aqui e Agora’ [...].
No caso Daniella Perez, não se faz referência a uma avaliação positiva ou negativa da
influência da mídia no caso, mas como a exposição midiática que os autores do fato (vítima,
sua mãe e autores) detinham, trouxe visibilidade ao acontecimento e possibilitou a mudança
do ordenamento jurídico correlacionado ao tema, impactando não só o crime em questão, mas
diversos outros posteriores, graças a inclusão do homicídio qualificado como crime hediondo
previsto em lei. Recentemente, o canal de streaming HBO, realizou uma minissérie acerca do
assassinato de Daniella, chamada ‘Pacto Brutal’, o que fez com que o caso ganhasse mais
notoriedade na sociedade.
3.2.2 Caso Escola Base
O caso Escola Base é um dos mais notórios da história do jornalismo brasileiro. Uma
série de erros cometidos pela polícia e pela imprensa levou uma escola infantil a se tornar
exemplo de como é possível acabar com vidas a partir da espetacularização de casos
criminais.
Duas mães, Lúcia Eiko Tanoue e Cléa Parente de Carvalho, se dirigiram à 6ª
Delegacia de Polícia, na zona sul de São Paulo e ‘prestaram queixa’ contra três
casais que trabalhavam na Escola de Educação Infantil Base, localizada no bairro da
Aclimação, em São Paulo. Tudo começou quando Fábio, um dos alunos, com quatro
anos de idade na época, ao brincar na cama com sua mãe, Lúcia Eiko Tanouse,
sentou em cima de sua barriga, começou a se movimentar e disse ‘o homem faz
assim com a mulher’. A mãe, surpresa com o comportamento do menino, lhe
questionou onde aprendera aquilo. Inicialmente, o infante não quis responder, disse
que era coisa do videogame. Lúcia começou a pressionar o marido para ver se ele
havia levado o garoto a algum local inapropriado, mas a resposta foi negativa. A
genitora continuou insistindo com a criança. Lúcia voltou ao quarto. Ninguém
presenciou a inquirição, mas o fato é que ela saiu de lá dizendo que o menino
revelara barbaridades. A fita pornográfica, ele a teria visto na casa de Rodrigo,
um coleguinha da Escola Base. Um lugar com porão verde, jardim na lateral,
muitos quartos, cama redonda e aparelho de televisão no alto. Seria levado a
essa casa por uma perua Kombi, dirigida por Shimada – o Ayres, marido da
proprietária da escolinha. [...] O delegado responsável pelo caso, Edélcio Lemos,
encaminhou as crianças ao IML (pois apresentavam assaduras causadas pela forma
de se sentar e pelo tempo de trocar a fralda) e obteve um mandado de busca e
apreensão para o apartamento de Saulo e Mara.
Como se pode deduzir da leitura, é um caso que parecia simples de resolver, bastando
a juntada de depoimentos, transformou-se em um caso de repercussão nacional, tornando-se
uma “caça às bruxas” promovida pela imprensa e corroborada pelo poder público.
Alex Ribeiro, ao investigar o caso, diz que o delegado que comandava a investigação
aproveitou aquele momento para criar um fato que o tomasse centro da atenção da mídia.
O delegado Edélson Lemos teria discutido com o jornal Diário Popular, devido a um
filme fotográfico arbitrariamente apreendido pela autoridade policial. Entretanto, no
momento em que chegou à delegacia o caso da Escola Base, Lemos teria telefonado
para o editor do Diário, Paulo Breitenvieser, passando as informações com
exclusividade, como forma de se redimir pela tal arbitrariedade da apreensão. Lemos
‘disse que tinha um caso bom, de violência sexual envolvendo crianças de quatro
anos’.
Apesar de a publicidade de atos estar prevista no artigo 5º, LX da Constituição
Federal, ao incentivar a mídia a levar a público um caso de abuso sexual em uma escola
contra menores, o delegado agiu de maneira absurda e fora dos padrões previstos no Direito
Processual Penal, apresentando possíveis suspeitos como acusados e condenados.
[...] Os quatro suspeitos referem que sofreram uma espécie de sessão de pressão
psicológica. Paula afirma, ainda, que a pressão não foi apenas psicológica, pois
alega ter sido agredida por policiais, conforme revela Ribeiro (2000). Todos
negaram envolvimento no suposto crime e só foram liberados pelo repórter às 23
horas. O inquérito passou a tramitar sob a responsabilidade do delegado Edélson
Lemos. A surpresa do dia foi o recebimento de um telex do IML, adiantando os
resultados do exame de corpo de delito realizado nas crianças: ‘referente ao laudo
nº. 6.254/94 do menor F.J.T Chang, BO 1827/94, informamos que é positivo para a
prática de atos libidinosos. Dra. Eliete Pacheco, setor de sexologia, IML’. Bastou
aquela informação para que todos os jornais já tomassem conhecimento sobre o
caso. Tamanha foi a repercussão que ‘nesse mesmo dia, o Jornal Nacional, da Rede
Globo, soltou a notícia, sem a versão dos acusados’, mas ‘o repórter da Globo não
assumia as denúncias como verdadeiras e apenas narrava o fato de um inquérito
policial ter sido aberto para apurar possível abuso sexual’. E várias foram as
manchetes do dia 30 de março informando sobre o caso, mas todos os jornais
mantiveram parcialidade naquele momento, agindo tecnicamente de forma correta,
já que apenas expuseram a informação sobre as acusações. A partir daí, o delegado
deu início a uma série de declarações à mídia, o que levou a opinião pública a
classificar essas seis pessoas – Maria Aparecida, Ayres, Paula, Maurício, Saulo
e Mara –como culpados por pedofilia. O Jornal Nacional chegou a sugerir o
‘consumo de drogas’ e a ‘contaminação pelo vírus da AIDS’, enquanto a Folha da
Tarde noticiava: ‘Perua carregava crianças para orgia’… o ‘Notícias Populares’
estampou em sua capa o título: ‘kombi era motel na escolinha do sexo’.
É fato compartilhado que a junção entre os meios de comunicação e os órgãos
julgadores tende a facilitar que a imprensa seja atualizada do que já foi apurado, contudo em
alguns casos em que ainda é necessário que sejam feitas as devidas apurações, é importante
manter a cautela, para que evite-se o julgamento antecipado da população.
Nos casos “Daniella Perez” e “Escola Base”, a mídia e o Estado agiram juntos, o
primeiro, como já relatado, por uma força de “vender” a notícia; o segundo, pela busca de
seus representantes em “adquirir status de paladinos”. Tudo isto fez dos episódios citados a
ruptura de tudo que se pode entender como devido processo legal.
O processo “Escola Base” perfez rupturas constitucionais que permeiam a utilização
de práticas policiais já combatidas desde o período denominado de “governo militar
brasileiro”. O inquérito e o processo estavam viciados, já apresentando, desde o seu começo,
culpados e antecipando julgamentos.
Vinícius Buono, quando apresenta o artigo “Caso Escola Base: a mentira que abalou
1994”, afirma que, naquele momento, a mídia teria assumido o triplo papel de juiz-júri-
carrasco, proporcionando, para uma sociedade desinformada e com sede de vingança, pessoas
inocentes que foram de todas as formas suprimidas de seus direitos e escrachadas
socialmente:
O delegado incumbido da investigação, Edélcio Lemos, enviou os filhos de Lúcia e
Cléa ao Instituto Médico Legal e conseguiu um mandado de busca e apreensão ao
apartamento onde, supostamente, as crianças eram abusadas. Quando nada foi
encontrado, as mães, indignadas, foram à Rede Globo. Foi a partir daí que o caso da
Escola Base explodiu e virou referência. No mesmo dia, o laudo do IML foi
analisado pelo delegado. Era inconclusivo, mas dizia que as crianças apresentavam
lesões que podiam ser de atos sexuais. Foi o suficiente para o delegado, que deu
declarações dúbias à imprensa. Os acusados já eram, aos olhos do povo, culpados
antes de qualquer julgamento. [...] Em junho, três meses depois, os suspeitos foram
inocentados pelo delegado Gérson de Carvalho, um dos que assumiram a
investigação. No entanto, o estrago já estava feito. Os danos psicológicos e morais
aos acusados eram enormes, além, é claro, dos materiais. Os inúmeros gastos com o
processo deixaram as finanças de todos completamente arruinadas. Os meios de
comunicação foram acusados de não retratar a verdade de fato, declarando, apenas,
que as investigações foram encerradas por falta de provas, sem necessariamente
dizer que os acusados eram inocentes. Diversos processos foram movidos contra o
Estado e a mídia. Maria e Icushiro faleceram sem receber todo o dinheiro que lhes
era devido, ela de câncer em 2007 e ele de infarto em 2014.
O caso da Escola Base é apenas mais uma amostra de como a mídia, ao exercer o
papel social, tem a soberania de arquitetar um teatro com os fatos ao repassá-los a sociedade e
essa manipulação, suprimindo garantias constitucionais, como, por exemplo, transformar a
presunção de inocência em presunção de culpa, é algo intolerável no ordenamento jurídico e
no estado democrático de direito vivido pelo País.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BALEM, Isadora Forgiarini. O Impacto das fake news e o fomento dos discursos de ódio
na sociedade em rede: a contribuição da liberdade de expressão na consolidação da
democrática. Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade, Santa Maria, p. 8,
nov. 2017.
Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros – FENAJ. Disponível em: *Código de Ética
dos Jornalistas Brasileiros (fenaj.org.br). Acesso em: 18 out. 2022.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Disponível em: A Sociedade do Espetáculo -
Guy Debord (marxists.org). Acesso em: 20 out. 2022.
Espetacularização do processo penal não pode continuar, diz Gilmar Mendes. Consultor
Jurídico. Disponível em: ConJur - Espetacularização do processo penal não pode continuar,
diz Gilmar. Acesso em: 18 nov. 2022.
LEITE, Corália Thalita Viana Almeida; MAGALHÃES, Lívia Diana Rocha. Mídia e
memória: do caso Daniella Perez à previsão do homicídio qualificado na Lei de Crimes
Hediondos. Revista Eletrônica Direito e Política, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu
em Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí, v.8, n.3, 3º quadrimestre de 2013. p. 12, Disponível
em: siaiap32.univali.br - ISSN 1980-7791. Acesso em 10 nov. 2022.
LOPES, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. Disponível
em: Direito processual penal (ufms.br). Acesso em: 18 out. 2022.
MENDES, Gilmar. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São
Paulo: Editora Saraiva, 2012. Disponível em: *Capa (wordpress.com). Acesso em: 17 out.
2022.
MOTTA, Ana Paula Pinheiro. AQUINO, Rodolfo Anderson Bueno. A Escola de Frankfurt:
Fundação da teoria crítica à indústria cultural. Disponível em:
www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=5e04a15b7c5a842c. Acesso em: 14 out. 2022.
NASCIMENTO, Elson Ramos. A influência da mídia no processo penal: Os casos
Daniella Perez e Escola Base de São Paulo. Disponível em: exemplar_2197.pdf (uportu.pt).
Acesso em: 10 nov. 2022.
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base: os abusos da imprensa, São Paulo: Àtica, 2000, p. 25,
ISBN 8508055080.
SILVERSTONE, Roger. Por que estudar a mídia?. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
Disponível em: Silverstone Roger Por que estudar a midia | Alison Lucas De Souza -
Academia.edu. Acesso em: 14 out. 2022.