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Labeditorial,+Transformacao, V.43,+n.1,+2020+ +00+ +completo Corrigido+1+Completo
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2020
TRANS/FORM/AÇÃO
Revista de Filosofia da UNESP
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
Reitor
Sandro Roberto Valentini
Vice-Reitora
Sergio Roberto Nobre
Pró-Reitora de Pesquisa
Carlos Frederico de Oliveira Graeff
Departamento de Filosofia
Chefe
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Vice-Chefe
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Apoio:
ISSN 0101-3173
TFACDH
TRANS/FORM/AÇÃO
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transformacao.marilia@unesp.br
Departamento de Filosofia/Programa de Pós-Graduação em Filosofia da FFC-Unesp
Av. Hygino Muzzi Filho, 737
17525-900 – Marília – SP
Editor Responsável
Marcos Antonio Alves; Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquista Filho; Marília/SP, Brasil.
Comissão Editorial
Andrey Ivanov; Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquista Filho; Marília/SP, Brasil.
Kleber Cecon; Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquista Filho; Marília/SP, Brasil.
Lúcio Lourenço Prado; Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquista Filho; Marília/SP, Brasil.
Márcio Benchimol Barros; Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquista Filho; Marília/SP, Brasil.
Reinaldo Sampaio Pereira; Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquista Filho; Marília/SP, Brasil.
Ubirajara Rancan de Azevedo Marques; Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquista Filho; Marília/SP, Brasil.
Conselho Consultivo
Alain Grosrichard; Université de Genèbra; Genebra, Suíça.
Antônio Carlos dos Santos; Universidade Federal de Sergipe; São Cristóvão/SE, Brasil.
Bertrand Binoche; Université de Sorbonne-Paris I; Paris, França.
Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento; Unicamp; Campinas/SP, Brasil.
Catherine Larrèce; Université de Sorbonne-Paris I; Paris, França.
Gregorio Piaia, Universitá di Padova, Pádua, Itália.
Hugh Lacey; Swarthmore College; Swathmore, EUA.
Itala M. Loffredo D’Ottaviano; Unicamp; Campinas/SP, Brasil.
Marco Aurélio Werle; USP; São Paulo/SP, Brasil.
Marcos Barbosa de Oliveira; USP; São Paulo/SP, Brasil.
Maria das Graças de Souza; USP; São Paulo/SP, Brasil.
Marilena de Souza Chauí; USP; São Paulo/SP, Brasil.
Michael Löwy; Centre National de Recherche Scientifique – CNRS; Paris, França.
Oswaldo Giacóia Junior; Unicamp; Campinas/SP, Brasil.
Paulo Eduardo Arantes; USP; São Paulo/SP, Brasil.
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Wolfgang Leo Maar; UFSCar; São Carlos/SP, Brasil.
Publicação trimestral/Quarterly publication
Solicita-se permuta/Exchange desired
Trans/form/ação : revista de filosofia / Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis. – no. 1 (1974)- .
– Assis : Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, 1974-
Trimestral, 2016-
Quadrimestral, 2011-2015; semestral, 2003-2010; anual, 1974-2002.
Publicação suspensa entre 1976 e 1979.
Publicado: Assis, no.1-2, 1974-1975 ; São Paulo: Universidade Estadual Paulista, v. 3-32, 1980-2009 ;
Marília : Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, v. 33- , 2010-
ISSN 0101-3173
1. Filosofia - Periódicos. I. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. II. Universidade Estadual Paulista
(Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências. III. Transformação.
CDD 105
Editorial / Editorial
Apresentação
Presentation........................................................................................................... 9
Artigos / Articles
A relação entre ciência natural e cosmologia em Tomás de Aquino
The relationship between natural and cosmology in Thomas Aquinas
Evaniel Brás dos Santos ........................................................................................ 17
Tecnología y Transparencia
Technology and Transparency
Iago Ramos; Elías Fuentes Guillén ........................................................................ 77
Tradução / Tanslation
A amplificação nos processos de informação
Pedro Peixoto Ferreira; Evandro Smarieri .............................................................. 283
Normas para apresentação dos originais ................................................................ 301
Apresentação
http://dx.doi.org/10.1590/0101-3173.2020.v43n1.01.p9
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Resumo: O presente estudo aborda a articulação entre ciência natural e cosmologia em Tomás de
Aquino. Para tanto, são investigadas as concepções da noção de cosmo, mediante a questão: o cosmo
(mundo ou universo) pode ser o assunto central da ciência natural em Tomás? No intuito de refletir
sobre essa questão, são apresentadas três concepções de cosmo. A primeira é a concepção da metafísica,
na qual o cosmo é uma hierarquia de entes. A segunda, por sua vez, é a concepção da cosmografia
segundo a qual o cosmo é a relação de esferas intercaladas. A terceira, por fim, é a concepção da
cosmologia que entende o cosmo como o conjunto dos corpos simples em perene locomoção natural.
Palavras-Chave: Ciência natural. Cosmo. Cosmologia. Cosmografia. Tomás de Aquino.
http://dx.doi.org/10.1590/0101-3173.2020v43n1.02.p17
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importante ainda registrar que o termo latino cosmo não aparece nas traduções
latinas da Physica e do De caelo editadas e publicadas pela Brepols. Isso se
aplica não só às traduções de Moerbeke, mas também às traduções de Tiago
de Veneza, a anônima, assim como a de Grosseteste. Nesse ínterim, é possível
constatar que na Physica e no De caelo, Aristóteles, ao se referir ao conjunto
formado pelos corpos celestes e pelos elementos, adota os termos τὸ ὅλον,
τὸ πᾶν, τὰ πάντα, τὰ ὄντα e φύσις. Ao traduzir tais termos, Moerbeke e
os demais tradutores citados, além do termo mundus, também empregam as
seguintes opções: omnia, totus, universus, quae sunt e natura.
Ao que parece, a ausência do termo latino cosmo pode remontar a Agos-
tinho ou às épocas anteriores. Numa passagem da De Civitate Dei, o bispo de
Hipona escreve o termo em grego e emprega mundus como seu corresponden-
te em latim: “Nas suas reflexões preliminares sobre a teologia natural, o citado
Varrão emite a sua opinião de que deus é a alma do mundo, que os gregos
designam de κόσμος, e de que este mesmo mundo é deus.”4 Talvez o emprego
do termo cosmo em contexto estranho à ciência natural (e à metafísica) seja a
razão central pela qual os tradutores citados, assim como Tomás e Agostinho,
não usam tal termo.5
Em todos os contextos da obra de Tomás, mundus e universus são
necessariamente sinônimos e possuem, num primeiro momento, a mesma
acepção do termo aristotélico κόσμος, incluído na ciência natural, a saber:
o conjunto formado pelos corpos celestes e pelos elementos. Tomás começa
a se diferenciar e a se distanciar do Estagirita quando, por um lado, aborda a
natureza mesma do cosmo (ou mundo) e, por outro lado, entende o conjunto
como corpo simples.
6 “Videtur quod universitas creaturarum, quae mundi nomine nuncupatur, non incoeperit, sed fuerit
ab aeterno.” (ST, Ia, q. 46, a. 1, Ad primum).
7 “Ad secundum dicendum quod Deus non est aliqua pars universi, sed est supra totum universum,
praehabens in se eminentiori modo totam universi perfectionem. Angelus autem est pars universi.”
(ST, Ia, q. 61, a. 3, ad2).
8 “Angeli enim sunt quaedam pars universi, non enim constituunt per se unum universum, sed tam
ipsi quam creatura corporea in constitutionem unius universi conveniunt. Quod apparet ex ordine
unius creaturae ad aliam, ordo enim rerum ad invicem est bonum universi. Nulla autem pars perfecta
est a suo toto separata.” (ST, Ia, q. 61, a. 3, resp.).
9 Cf. In Sent., II, d. 18, q. 1, a. 2, resp.
10
Cf. QDP, q. 5, a. 8, resp.
11
Cf. SCG II, 50-54.
12
“Est ergo distinctio earum ad inuicem secundum gradum potentie et actus, ita quod intelligentia
superior que magis propinqua est primo habet plus de actu et minus de potentia, et sic de allis. Et
hoc completur in anima humana, que tenet ultimum gradum in substantiis intellectualibus.” (DEE,
c. 4, 8-9§).
13
“quod in universo est duplicem naturam considerare: scilicet naturam sempiternae permanentiae,
quae est maxime in substantiis separatis; et naturam generabilem et corruptibilem, quae est in
inferioribus corporibus. Corpora autem caelestia, cum sint media, utraque aliqualiter participant,
secundum duos motus. Nam primus motus, qui est diurnus, est causa sempiternae durationis in rebus:
secundus autem motus, qui est in circulo obliquo ab occidente in orientem, est causa generationis
et corruptionis et aliarum transmutationum [...]. Primum igitur mobile, tanquam nobilissimum et
propinquissimum in ordine naturae substantiis separatis, habet solum primum motum, qui pertinet
ad naturam uniformitatis. Alia vero corpora caelestia, inquantum magis recedunt a substantiis
immobilibus, appropinquando substantiis generabilibus et corruptibilibus, aliquid participant de alio
motu, qui pertinet ad naturam difformitatis.” (In DCM II, 15, n. 8).
14
Sobre as noções de céu sidério, assim como de movimento diurno, oblíquo e próprio, ver a segunda
seção deste estudo.
15
Na sequência da passagem de In DCM II, 15, n. 8.
26
“Supponimus enim, tanquam sensu apparens, quod suprema caeli circulatio sit simplex, idest non
composita ex pluribus motibus, quia in ea nulla irregularitas apparet: et est velocissima, utpote quae
in brevissimo tempore, scilicet spatio unius diei, circuit maximum circulum continentem totum.” (In
DCM II, 15, n. 2).
27
“Excellentia considerari potest ex tribus: primo quidem quia immediatius ordinatur ad primum
motorem; secundo quia continet et revolvit omnes alias sphaeras; tertio autem quia habet motum
simplicissimum et velocissimum.” (In DCM II, 19, n. 2).
28
Na figura do mundo de Petrus Apianus, Deus (Dei) é representado como primeiro motor imóvel e
a décima esfera, por sua vez, como a primeira entidade a sofrer o movimento, isto é, o primeiro motor
móvel (primu mobile).
29
Cf. In DCM II, 15, n. 4.
30
“difforme in partibus” (In Sent., II, d. 14, q. 1, a. 4, resp.).
entendia que elas não possuíam movimento próprio (proprio motu), ou seja,
seriam imóveis per se e móveis pela esfera em rotação.31 O movimento próprio
das estrelas é uma descoberta que Tomás atribui a Ptolomeu: “Aristóteles, pois,
admite que somente a esfera é movida e não as estrelas por si mesmas, porém,
Ptolomeu admite que as estrelas possuem seu próprio movimento além do
movimento da esfera.” 32
A descoberta do movimento próprio das estrelas e sua admissão, como
ocorre com Tomás,33 implica em alargar o cosmo grego, pois a esfera das estrelas
fixas não pode ser a suprema esfera, que, para Aristóteles, era a última esfera
(ultima sphaera).34 Assim, a concepção de cosmo do mestre do Liceu, pelo
texto de Tomás, limita-se no céu sidério, abaixo do qual se encontra a região
sublunar. A posição dos astros na concepção de céu do Estagirita, segundo
Tomás, se dá do seguinte modo: (1º) estrelas fixas, (2º) Saturno, (3º) Júpiter,
(4º) Marte, (5º) Vênus, (6º) Mercúrio, (7º) Sol, (8º) Lua.35
Numa escala descendente, aliás, perfeitamente representável na figura
do cosmo de Petrus Apianus, Tomás assim entende a posição na região superior
(11º) céu empíreo, sem astro e imóvel; (10º) décima esfera, a esfera suprema,
sem astro, móvel e uniforme; (9º) céu aquoso ou nona esfera, sem astro,
móvel e uniforme; (8º) esfera das estrelas; (7º) esfera de Saturno, o planeta
31
Cf. In DCM II, 14, n. 10.
32
“Aristoteles enim vult tantum orbes moveri, et non stellas per se; sed Ptolomaeus vult stellas habere
proprium motum, praeter motum orbis.” (In Sent., II, d. 14, Expositio Textus).
33
“motus stellarum fixarum non erit omnino simplex, ut Aristoteles supponit, sed compositus ex
duobus motibus.” (In DCM II, 19, n. 3).
34
“Quod autem partes supremae sphaerae non moveantur irregulariter, ita scilicet quod una pars caeli
quandoque citius quandoque tardius moveatur, ostendit supponendo [i.e., Aristóteles] quod sphaera
stellarum fixarum sit suprema sphaera: nondum enim suo tempore deprehensum erat quod stellae
fixae haberent proprium motum praeter motum diurnum; et ideo attribuit primum motum, scilicet
diurnum, sphaerae stellarum fixarum, quasi proprium ei; cum tamen posteriores astrologi dicant quod
sphaera stellarum fixarum habeat quendam proprium motum, supra quem ponunt aliam sphaeram,
cui attribuunt primum motum.” (In DCM II, 9, n. 1). Sobre a identificação aristotélica entre “suprema
esfera” e “última esfera”, cf. In Physica IV, 7.
35
“Quorum primum est quod Aristoteles alium ordinem videtur assignare planetarum, quam astrologi
nostri temporis. Primi enim astrologi posuerunt supremum planetam esse Saturnum, post quem
posuerunt Iovem, tertio loco Martem, quarto solem, quinto Venerem, sexto Mercurium, septimo
lunam. Astrologi autem qui fuerunt tempore Platonis et Aristotelis, mutaverunt hunc ordinem
quantum ad solem, ponentes eum immediate supra lunam, sub Venere et Mercurio; quam positionem
hic Aristoteles sequitur. Sed Ptolomaeus postea hunc ordinem planetarum correxit, ostendens verius
esse quod antiqui dixerunt; quod etiam moderni astrologi sequuntur.” (In DCM II, 17, n. 2).
supremo; (6º) esfera de Júpiter; (5º) esfera de Marte; (4º) esfera do Sol; (3º)
esfera de Vênus; (2º) esfera de Mercúrio; (1º) esfera da Lua.36
43
“Hic autem est liber Physicorum, qui etiam dicitur de Physico sive Naturali Auditu, quia per modum
doctrinae ad audientes traditus fuit: cuius subiectum est ens mobile simpliciter. Non dico autem
corpus mobile, quia omne mobile esse corpus probatur in isto libro; nulla autem scientia probat suum
subiectum: et ideo statim in principio libri de Caelo, qui sequitur ad istum, incipitur a notificatione
corporis. Sequuntur autem ad hunc librum alii libri scientiae naturalis, in quibus tractatur de speciebus
mobilium: puta in libro de Caelo de mobili secundum motum localem, qui est prima species motus;
in libro autem de Generatione, de motu ad formam et primis mobilibus, scilicet elementis, quantum
ad transmutationes eorum in communi; quantum vero ad speciales eorum transmutationes, in libro
Meteororum; de mobilibus vero mixtis inanimatis, in libro de Mineralibus; de animatis vero, in libro de
Anima et consequentibus ad ipsum.” (In Physica I, 1, n. 4).
44
“Sicut tradit Philosophus in III de Anima, scientiae secantur quemadmodum et res: nam omnes
habitus distinguuntur per obiecta, ex quibus speciem habent. Res autem quas considerat Naturalis,
sunt motus et mobile: dicit enim Philosophus in II Physic. quod quaecumque mota movent, sunt
physicae speculationis. Et ideo oportet quod secundum differentiam motuum et mobilium,
distinguantur et ordinentur partes scientiae naturalis. Primus autem motuum est motus localis, qui est
perfectior ceteris, et communis omnibus corporibus naturalibus, ut probatur in VIII Physic. Et ideo
post considerationem motuum et mobilium in communi, quae fuit tradita in libro Physicorum, primo
oportuit quod tractaretur de corporibus secundum quod moventur motu locali, in libro de Caelo; quae
est secunda pars scientiae naturalis.” (In GC I, prooemium).
a quo alia dependent, ideo denominatur totus liber a caelo. Et, sicut dicit, non obstat quod in hoc
libro determinantur quaedam quae pertinent ad totum universum: quia huiusmodi conditiones
conveniunt universo inquantum conveniunt caelesti corpori, scilicet esse finitum et sempiternum, et
alia huiusmodi.” (In DCM, prooemium, n. 4, 3§).
49
Tomás possuía aparato textual para entender a inflação mencionada. Embora Simplício não nomeie
a discussão referente a Platão como “física”, “ciência natural” ou “filosofia natural”, é essa ciência que,
para ele, Platão estabelece no Timeu juntamente com uma metafísica. O próprio Simplício afirma,
no proémio do In De caelo, que Platão, no Timeu, trata sobre os principia naturalium (“os princípios
das coisas naturais”), os quais, para Simplício, são, dentre outros, a matéria, a forma, o tempo, o
movimento e os céus: “deide quod non videtur de mundo docere in hiis, sicut Plato in Timeo principia
naturalium, materiam, speciem et motum et tempus, et communem consistentiam mundi tradidit et
singillatim de celestibus et de hiis que sub luna docuit et horum metheora quidem multipliciter tractat
et que in terra metalla et plantas et animalia et usque ad consistentiam hominis et partium ipsius; hic
autem de mundo toto dicta sunt paucissima et hec quecumque erant communia ipsi et celo, quod
videlicet perpetuus et finitus magnitudine et unus et hec habens propter celum, quia hoc perpetuum
et finitum et unum.” (SIMPLÍCIO. In De caelo, prooemium, p. 3, l. 72-73, p. 4, l. 74-80.
50
“Si autem intentio principalis Philosophi esset determinare de universo, sive de mundo, oporteret
quod Aristoteles considerationem suam extenderet ad omnes partes mundi, etiam usque ad plantas
et animalia, sicut Plato in Timaeo. – Sed eadem ratione possumus arguere contra Simplicium: quia si
in hoc libro principaliter intenderet de corporibus simplicibus, oporteret quod omnia quae pertinent
ad corpora simplicia in hoc libro traderentur; nunc autem in hoc libro traduntur solum ea quae
pertinent ad levitatem et gravitatem ipsorum, alia vero traduntur in libro de Generatione.” (In DCM,
prooemium, n. 4, 3§).
51
“Alexander enim opinatus est quod subiectum de quo principaliter in hoc libro agitur, sit ipsum
universum. Unde, cum caelum tripliciter dicatur, quandoque ipsa ultima sphaera, quandoque totum
corpus quod circulariter movetur, quandoque autem ipsum universum, asserit hunc librum intitulari
de caelo, quasi de universo vel de mundo: in cuius assertionem assumit quod philosophus in hoc libro
determinat quaedam ad totum universum pertinentia, puta quod sit finitum, quod sit unum tantum,
et alia huiusmodi.” (In DCM, prooemium, n. 4, 1§).
52
“Sed quaedam conclusiones demonstrantur communiter a mathematico et naturali, ut utrum terra
sit rotunda, et utrum sit in medio caeli.” (In SBT III, 3, q. 5, a. 3, arg. 7.)
53
Cf. SIMPLÍCIO. In De caelo, prooemium, p. 6.
54
“rationabilior videtur sententia Alexandri, quod subiectum huius libri sit ipsum universum, quod
dicitur caelum vel mundus.” (In DCM, prooemium, n. 5).
Considerações Finais
Há uma noção, na abordagem aristotélica das teses mencionadas, a
qual torna a ciência natural e a cosmologia bastante complexas, sobretudo
quando o Estagirita vincula as teses, qual seja: a necessidade. Dito de
outro modo, para Aristóteles, conforme Tomás, só há locomoção natural
centrípeta e centrífuga dos elementos, na medida em que o conjunto
formado pelos corpos celestes, o céu, realiza constantemente sua locomoção
natural circular. A necessidade celeste, além disso, não diz respeito apenas
aos elementos, mas também se refere à própria natureza do cosmo, ou seja,
a unidade, a integridade, a perfeição e o ordenamento do cosmo reclamam
pelo corpo celeste.
Tomás, ao que parece, prossegue além de Aristóteles na busca pelas
razões da necessidade celeste, embora coloque as palavras na boca do Estagirita,
sobretudo quando postula o princípio escolástico segundo o qual “a obra
da natureza é a obra da inteligência (opus naturae est opus intelligentiae).”57
Ora, se o corpo celeste é natural e obra da natureza, então também ele está
submetido a uma causa superior inteligente. Isso significa que compete à causa
da necessidade estabelecer o modo da relação entre os constituintes do cosmo,
as inteligências, os elementos e os corpos celestes.
O que justifica a necessidade celeste é a causa superior cujo atributo,
Tomás aponta, é a incorporeidade (nec corporalis).58 É muito importante essa
constatação, pois Tomás afirma simultaneamente que a locomoção celeste é
necessária e que possui uma causa incorpórea de sua necessidade. Assim, o
corpo celeste é natural, assim como sua locomoção, embora o modo como
ocorre a relação com os demais constituintes do cosmo advenha diretamente
da causa transcendente, uma tese que torna a ciência natural e a cosmologia,
em Tomás, bem mais complexas do que em Aristóteles.
57
“Sed in quibusdam ista cognitio non est conjuncta tendenti in finem; unde oportet quod dirigatur
per aliquod prius agens, sicut sagitta tendit in determinatum locum per determinationem sagittantis;
et ita est in omnibus quae agunt per necessitatem naturae; quia horum operatio est determinata per
intellectum aliquem instituentem naturam; unde, philosophus dicit, quod opus naturae est opus
intelligentiae.” (In Sent., I, d. 35, q. 1, a. 1, resp.).
58
Cf. ST, II-II, q. 95, a. 5, resp.
Abstract: The present study aims to articulate natural science and cosmology in Thomas Aquinas.
Accordingly, I want to investigate the conceptions of cosmos by the following question: can the cosmos
(world or universe) be the central topic of natural science in Aquinas? I present three conceptions of
cosmos in order to reflect upon this question. The first is the metaphysical one in which the cosmos is a
hierarchy of entities. The second is related to cosmography according to which the cosmos is a relation
of intercalated spheres. The third, finally, is the cosmological conception that understands the cosmos
as the set of simple bodies in perennial natural locomotion.
Key-Words: Natural science. Cosmos. Cosmology. Cosmography. Thomas Aquinas.
Referências
AGOSTINHO. A cidade de Deus. Tradução de João Dias Pereira. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian. 1996-2000.
ARISTOTELES LATINUS VII 1. Physica (translatio Iacobus Veneticus). New York:
Brill, 1990.
ARISTOTELES LATINUS VII 2. Physica (translatio Vaticana). New York: Brill, 1990.
ARISTOTELES LATINUS (translatio Moerbeke). De caelo et mundo; Metaphysica. In:
BRAMS, J.; TOMBEUR, P. (coaut. de). Aristoteles Latinus database. Turnhout: Brepols, 2003.
ARISTOTELES LATINUS. De caelo et mundo: liber II (translatio Robertus
Grosseteste). In: BRAMS, J.; TOMBEUR, P. (coaut. de). Aristoteles Latinus database.
Turnhout: Brepols, 2003.
ARISTOTLE. Physics. W. D. Ross (ed.). Oxford: Clarendon Press, 1936a.
ARISTOTLE. De caelo. D. J. Allan (ed.). Oxford: Oxford University Press, 1936b.
ARISTOTLE. Metaphysics. W. D. Ross (ed.). Oxford: Clarendon Press, 1975.
ARISTOTELES. Physica (trad. Moerbeke). In: In octo libros physicorum Aristotelis
expositio. Commissio Leonina. Roma: Typographia Polyglotta, 1884. v. II
ARISTOTELES. Physica (trad. Miguel Escoto). In: Aristotelis opera cum Averrois
commentariis. Venetiis apud Junctas 1562-1574, repr. Frankfurt: Minerva, 1962. v. IV.
ARISTOTELES. Super libro de celo et mundo Aristotelis (trad. Miguel Escoto). In:
Commentaria Magna in Aristotelem De celo et mundo. Venetiis apud Junctas 1562-1574,
repr. Frankfurt: Minerva, 1962. v. V.
59
Recebido: 24/01/2017
Aceito: 30/06/2019
Comentário
http://dx.doi.org/10.1590/0101-3173.2020v43n1.03.p39
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contradiz o fato de que ele pensa sempre num sentido mais elevado, o melhor.
Mas a “vida maximamente boa e eterna” é sua própria vida. “A conclusão é
que a inteligência pensa a si mesma, se é isto o melhor – e o seu pensar é um
pensar do pensar (νόησις νοήσεως).” (Metaph. XII, 9. 1074 b 15-34). Aqui
se encontra a identidade do pensar e do pensado e, então, num sentido mais
alto, a autoidentidade e a autopresença do espírito. Uma teoria do intelecto
e seus vários usos linguísticos é necessária, pois os movimentos celestes são
relacionados, acerca dos princípios de seus movimentos, com os princípios
inteligíveis que se chamam intelligentias.
Quanto a uma teoria do intelecto, preciso acrescentar um segundo
ponto: um dos usos linguísticos do intelecto, do νοῦς, isto é, da οὐσία νόησις
surge de uma questão do Livro XII, cap. 8. 1073 a 15-1074 b 14 da Metafísica:
quantos “princípios motrizes imóveis” precisamos assumir fora do primeiro
motor imóvel, ou seja, do “primeiro amovido movendo” (τὸ πρώτον κινοῦν
ἀκίνητον 1074 a 37), para uma explicação satisfatória da geração do céu e da
natureza? Aristóteles deixa essa questão em aberto. Apenas Avicena preencherá
essa falta de explicação.
É bem claro que só há um único céu (οὐρανός, (1074 a 31)). No
entanto, com quantas substâncias inteligíveis, que a tradição aristotélica chama
também intelligentiae (os cristãos “anjos”), devemos contar, isso é um assunto
da astronomia, ou da “geometria celeste”. Na realidade, é um assunto da
metafísica. Trata-se do primeiro princípio do ser, de um intelecto puro estando
sempre em ato de pensar, quer dizer, da relação entre a eternidade divina e a
temporalidade do mundo, ou seja, da concepção filosófica da generatio do
mundo ou da concepção teológica da creatio ex nihilo do mundo. No XII.
Livro das Confessiones, Agostinho tenta dar uma resposta ao problema da
eternidade do mundo, segundo a qual temos a ver com uma separação estrita
entre eternidade divina e temporalidade do mundo. A esse respeito, e através
da distinção entre aeternitas (sem início no tempo e sem fim) e sempiternitas
(início no tempo e duração continua e infinita), Tomás se posiciona bem
claro, no seu De aeternitate mundi: as duas proposições, “o mundo é criado”,
a saber, tem um início no tempo, e “o mundo é eterno” são compatíveis e não
se contradizem. Nisso concorda a posição de Moises Maimônides e, como
mostrei (SCHNEIDER, 1999, p. 121-141), também a de Averróis.
Ademais, é bem claro, o primeiro motor imóvel é eterno. Logo, o
primeiro movimento gerado é também eterno. O assunto em questão é: como
a pluralidade dos “mundos” dentro desse único céu pode ser gerada, no caso
em que ex uno non fit nisi unum (a partir do Uno só se torna um Uno) é
um princípio válido. Como podemos explicar, então, o fato da pluralidade
das coisas, em face da unidade do primeiro princípio? Avicena oferece uma
resposta, mais influente na Idade Média, na sua Metaphysica sive scientia
divina. Ela é bem conhecida até pelo menos Girolamo Savonarola.62
Um terceiro ponto, por conseguinte: a Idade Média conhece outras
respostas à questão de como o mundo foi gerado, ou seja, foi criado: o Liber
de causis, surgido da escola de Al-Kindi, o manual da metafísica medieval, a
Theologia Aristotelis, também nascida na escola de Al-Kindi e, sobretudo, o
pequeno tratado De intellectu et intellecto, de Al-Kindi com o qual ele iniciou
um genre littéraire específico na Idade Média. Em seguida, aparecem o De
intellectu et intellecto, de Al-Farabi (cf. SCHNEIDER, 2015, p. 224-246), De
intelligentiis, de Avicena, e o comentário de Averróis ao De anima de Aristóteles.
A partir do tratado de Al-Kindi sobre o intelecto, surgem muitos tratados e
comentários na Idade Média latina: os anônimos De potentiae animae, Alberto
Magno, De intellectu et intelligibili, Sigero de Brabant, De anima, entre outros,
sempre com respeito ao capítulo 5 do III. De anima, de Aristóteles.
Os capítulos 4, 5 e 6 do III. Livro do De anima são de grande
importância para a filosofia medieval. Brás cita, com toda razão, esse III. Livro
do De anima. No capítulo 5 (430 a 10-19), Aristóteles repete, a propósito do
νοῦς ποιητικός, chamado pelos latinos intellectus agens, todas as caraterísticas
do XII. Livro da sua Metafísica capítulo 7. Ele é:63
χωριστός, separabilis; separado (da matéria);
ἀπαθής, non mistus passioneque vacat; impassível;
ἀμιγής; não misto (da forma e matéria);
τῇ οὐσία ὥν ἐνέργεια, substantia sua actu; estando sempre em ato por (sua)
natureza;
ἁθάνατον καὶ ἀΐδιον, immortale aeternumque; imortal e eterno;
Cf. SAVONAROLA (2012, p. 241): “quia ab uno non procedit nisi unum in quodam una, ut dicit
62
Avicenna, qui hanc opinionem sequitur, tum quia ab una causa perfectissima non potest procedere nisi
unus effectus perfectissimus […]”.
63
Por causa dos termos latinos, cf. ARISTOTELES, Opera Omnia, Graece et Latine, cum Indice
Nominum et Rerum. Paris: Ambrosio Firmin Didot, Instituti Imperialis Franciae Thypographo,
Via Jacob 56, 1848-1854, v. III, p. 468. Ver também: Aristoteles Latine. Interpretibus variis edidit
Academia Regia Borussica. Berlin, 1831, apud REIMERUM, Georgium. Nachdruck herausgegeben und
eingeleitet von Eckhard Kessler. Humanistische Bibliothek. Texte und Abhandlungen, begründet von
Ernesto Grassi, Reihe II, Texte Band 30. München. Wilhelm Fink, 1995; De anima, tradução de
Johannes Argyropulos (1415-1487), p. 223.
64
Cf. BAEUMKER, C. Witelo. Ein Philosoph und Naturforscher des XIII. Jahrhunderts (Beiträge zur
Geschichte der Philosophie und Theologie des Mittelalters, 3/2). Münster: Aschendorff, 1908, Repr.
1991. Witelonis Perspectivae liber primus: Book I of Witelo’s “Perspectiva”: An English Translation with
Introduction and Commentary and Latin Edition of the Mathematical Book of Witelo’s “Perspectiva”,
ed. and transl. S. Unguru, Studia Copernicana, Nr. 15, Wroclaw 1977; Witelonis Perspectivae liber
quintus: Book V of Witelo’s Perspectiva: An English Translation with Introduction and Commentary and
Latin Edition of the First Catoptrical Book of Witelo’s Perspectiva, ed. and transl. und A. Mark Smith,
Studia Copernicana, Nr. 23, Wroclaw 1983.
Bachmann, Alexander Fidora, Andreas Niederberger, Bd. 20. Freiburg, Basel, Wien: Herder, 2009, p.
56-64. Anônimo, Liber XXIV philosophorum. Das pseudohermenische Buch der vierundzwanzig Meister,
In: BAEUMKER, C. Studien und Charakteristiken zur Geschichte der Philosophie insbesondere des
Mittelalters. Gesammelte Vorträge und Aufsätze, ed. Martin Grabmann, Münster, Aschendorff, 1927,
p. 194-214 (= Beiträge zur Geschichte der Philosophie des Mittelalters, v. XXV/2); Le livre des XXIV
Philosophes, traduit du latin, édité et annoté par François Hudry, Grenoble, 1989.
67
Def. III: Materiæ vis insita est potentia resistendi, qua corpus unumquodq;, quantum in se est, perseverat
in statu suo vel quiescendi vel movendi uniformiter in directum. (NEWTON, 1686, p. 8).
68
BOS, Gerrit; BURNET, Charles (orgs.). Scientific Weather Forcasting in the Middle Ages: The
Writings of Al-Kindi, Studies, Editions, and Translations of the Arabic, Hebrew, and Latin Texts, New
York, Routledge, 2000, 2016.
69
Cf. por exemplo: STERN, Sacha; BURNETT, Charles (orgs.). Time, Astronomy, and Calendars in
the Jewish Tradition. Leiden ; Boston: E. J. Brill, 2014.
viagens nas ruas e, sobretudo, na navegação no alto mar, por exemplo na época
da descoberta da América no século XVI como a Cosmographiae Introductio de
Martin Waldseemüller no ano de 1507 mostra.70 Cosmografia então tem a ver
com uma construção de uma mappa mundi, daquela a Peutingeriana deve ser
a primeira, a mapa no Império Romano, depois a mapa da terra de Erbstorf
(1236) na Idade Média, a famosa Ymago mundi de Pierre d’Ailly, e depois
outras até os globos modernos da nossa terra.
Assim, o IV. Livro da Meteora de Aristóteles é intitulado De
impressionibus superioribus, por exemplo: Tractatus Petri de Eliaco71 Episcopi
Cameracensis, Super libros Metheororum: de impressionibus aeris. Ac de hiis quae
in prima, secunda, atque tertia regionibus aeris fiunt, sicut sunt Sydera cadentia,
Stellae Cometae, Pluuia, Ros, Pruina, Nix, Grando, Ventus, Terraemotus, deque
generatis infra terram. Conhecemos a influência da lua sobre a altura dos
mares.72 Gostaria de sublinhar a importância prática da cosmologia para a
nossa vida cotidiana. Então, temos a tomar em consideração vários termos para
o mesmo fenómeno: ‘astronomia’, ‘cosmologia’, ‘cosmografia’ e ‘astrologia’ que
têm vários sentidos em vários contextos.
Agradeço ao autor, E. Brás, por um artigo estimulante, que provocou
minhas observações e meu comentário.
Referências
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d’Histoire Doctrinale et Littéraire du Moyen Âge. Paris: J. Vrin, 1926. p. 5-127. t. I
GROSSETESTE, R. Tratado da luz e outros opúsculos sobre a cor e a luz. Latim –
Português. Porto: Afrontamento, 2012.
70
WALDSEEMÜLLER, Martin. Cosmographiae Introductio. New York: The United States Catholic
Historical Society, 1907.
Petrus de Alliaco, ou seja, Peter of Ailly ou Pierre d’Ailly (1350-1420): ymago mundi, e/ou a mappa
71
mundi.
72
Cf. por exemplo: MA’SAR, Abu. The Great Introduction to Astrology. Leiden; Boston, E. J. Brill,
2019, p. 262: “On the indication proper to the Moon for the ebb and flow”.
Resumo: O curso proferido por Heidegger, no semestre de verão de 1923, e publicado posteriormente,
sob o título de Ontologia: a hermenêutica da facticidade, é um dos importantes loci nos quais Heidegger
deixa entrever tanto a influência e importância de Kierkegaard quanto algumas de suas avaliações
acerca do pensamento do filósofo dinamarquês. Uma delas, em especial, não obstante formule um
interessante juízo sobre a relação entre Kierkegaard e Hegel – a partir da figura de F. A. Trendelenburg
–, um dos temas mais revisitados da literatura interpretativa sobre Kierkegaard, não tem sido objeto
frequente de avaliação por aqueles intérpretes. Assim, o objetivo deste artigo é expor, analisar e avaliar
as teses de Heidegger sobre a relação Kierkegaard-Hegel, a fim de sopesá-las em sua correção. Por fim,
o artigo apresenta algumas reflexões metafilosóficas, avaliando o juízo de Heidegger sobre Kierkegaard,
quanto a não ter se “desprendido de Hegel”.
Palavras-Chave: Kierkegaard. Heidegger. Hegel. Trendelenburg. Ontologia.
Introdução
No curso do semestre de verão de 1923, intitulado Ontologia: a
hermenêutica da facticidade, ao tratar de expor a visão geral da filosofia presente
em sua verve totalizante do ser (e em sua tendência mais atual, lotziana-platônica),
Heidegger chega à dialética. Segundo ele mesmo, a dialética pressupõe que o ser
possa ser apreendido em sua totalidade em um sistema ordenado.
Nesse ponto, Heidegger expõe explicitamente algumas ideias a respeito
do pensamento de Kierkegaard, articulando ao menos três teses dignas de
uma análise mais detida (OHF, § 8). Explicitar tais teses, bem como avaliá-
las a fim de sopesar a leitura heideggeriana sobre Kierkegaard, é o principal
1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(UNISINOS), RS – Brasil. https://orcid.org/0000-0003-2255-5173. E-mail: gabrielferreira@unisinos.br
http://dx.doi.org/10.1590/0101-3173.2020.v43n1.04.p51
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objetivo deste trabalho, que, por fim, nos conduzirá a algumas reflexões
metafilosóficas acerca do que significa aferir as relações de dependência ou
ruptura entre dois filósofos.
Comecemos pelo trecho em questão:
A pertinácia da dialética, que deriva sua motivação de uma
fonte muito definitiva, está documentada muito claramente
em Kierkegaard. No aspecto propriamente filosófico do seu
pensamento, ele não se liberta de Hegel. Sua virada posterior para
Trendelenburg é só documentação a mais de quão pouco radical
ele era em filosofia. Ele não se deu conta de que Trendelenburg
via Aristóteles pelas lentes de Hegel. Sua leitura do paradoxo para
dentro do Novo Testamento e das coisas cristãs eram simplesmente
hegelianismo negativo. (GA 63, §8, p. 41-42. OHF, §8, p. 33).2
2 “Die ganz bestimmt motivierte Hartnäckigkeit der Dialektik dokumentiert sich am schärfsten an
Kierkegaard. In der eigentlich philosophischen Hinsicht ist er von, Hegel nicht losgekommen. Sein späterer
Anschluss an Trendelenburg is nur das verschärfte Dokument dafür, wie wenig radikal er philosophisch
war. Er merkte nicht dass Trendelenburg Aristoeles durch die Brille Hegels sah. Das Hineinlegen des
Paradoxen in das Neue Testament und das Christiliche ist einfach negative Hegelianismus.” (GA, 63, p.
41-42). Salvo quando indicado, todas as traduções são de responsabilidade do autor.
3 A tese 3 também não parece ser defensável. Embora seja pouco claro o que aqui Heidegger entende
por “hegelianismo negativo” (negative Hegelianismus), ao menos do ponto de vista do que Kierkegaard
deriva de sua compreensão do “crístico” e do paradoxo, parece difícil sustentar que seja possível defini-
lo de maneira satisfatória apenas com referência (ainda que negativa) a Hegel.
11
O catálogo de obras, na biblioteca de Kierkegaard, quando de sua morte, registrava os seguintes
livros de Trendelenburg: Platonis de ideis et numeris doctrina ex Aristotele illustrata, 1826 (ASKB, 842),
Logische Untersuchungen, 1840 (ASKB, 843, comprada em 15 jan. 1844), Elementa logices Aristotelicae,
1842 (ASKB, 844, comprada em 13 fev. 1843), Erläuterungen zu den Elementen der aristotelischen
Logik, 1842 (ASKB, 845, comprada em 13 fev. 1843), Die logische Frage in Hegel’s System, 1843 (ASKB,
846, comprada em 7 maio 1843), Niobe, 1846 (ASKB, 847), Geschichte der Kategorienlehre, 1846
(ASKB, 848) e Aristoteles de anima libri tres, 1833 (ASKB, 1079, comprada em 18 dez. 1844).
13
Se é verdade que o mesmo Jon Stewart é autor de um artigo especificamente sobre o tema (STEWART,
2011), o foco do texto está na relação Kierkegaard-Schelling e não chega a expandir o tratamento do
tema em comparação direta com Hegel.
Por outro lado, é igualmente importante que a filosofia esteja bem consciente
de que seu conteúdo não é outro que o conteúdo originariamente produzido
– e produzindo-se – no âmbito do espírito vivo, e constituído em mundo,
exterior e interior da consciência; [e entenda] que o conteúdo da filosofia
é a atualidade [daβ ihr Inhalt die Wirklichkeit ist]. Chamamos experiência
a consciência mais próxima desse conteúdo. Uma consideração sensata do
mundo já distingue [unterscheidet] o que, no vasto reino do ser-aí exterior
e interior, é só fenômeno [Erscheinung], é transitório e insignificante – e o
que em si verdadeiramente merece o nome de atualidade [und was in sich
wahrhaft den Namen der Wirklichkeit]. (HEGEL, 1995, §6).
que não se trata apenas de exibir uma dedução mais sistemática das
categorias, senão de fazer com que elas emerjam necessariamente
do pensamento, não apenas como conceitos dos objetos em geral
(cf. KANT, 2001, B 128), mas como formas autogeradas pela razão
que, simultaneamente, se mostram como as estruturas (materiais)
últimas do real apresentadas como tais, na medida em que ser e
pensar avançam na tarefa de mútua determinação dialética. Para
Hegel, Kant estava certo em perceber o Eu como fonte e origem
das categorias. Estava errado, contudo, em ao menos dois outros
pontos. Primeiramente, assumir acriticamente as formas dos juízos
como caminho para a derivação das categorias fez com que Kant
não tenha se afastado da «lógica tradicional», porém, o manteve
numa compreensão meramente formal das categorias, na qual elas
são tão somente as formas possíveis dos objetos da experiência e
não guardam relação necessária para com seu conteúdo. Como
resultado último daquela supracitada falta de radicalidade, sob a
perspectiva de Hegel, Kant preocupou-se somente com o caráter
epistemológico-formal das categorias, não atentando para a
necessária dimensão ontológico-material. De fato, para Kant,
as categorias são derivadas das quatro «funções do pensamento»
que encontramos justamente «se abstrairmos de todo o conteúdo
de um juízo em geral e atendemos apenas à simples forma do
entendimento.» (KANT, 2001, B 95). Aqui, por conseguinte,
podemos ver a diferença que o próprio Kierkegaard via entre os
dois e, sobretudo, a diferença de graus no “erro” dos dois filósofos
alemães;
d. Para Kant, o conteúdo material das categorias não poderia vir de
outro lugar que não da sensibilidade. Assim, ainda que a existência
atual tivesse sido reduzida a uma categoria formal, ela ao menos
guardava uma relação com a sensibilidade e, como fica claro da
análise que Kant faz do argumento ontológico, a existência atual
de um dado conceito não pode jamais ser deduzida das notas
conceituais daquele mesmo conceito. Todavia, tanto quanto
fica evidente por sua crítica a Kant, como por sua concepção de
Wirklichkeit, a sensibilidade não é um requisito absolutamente
fundamental para o conhecimento do ser atual.
Ora, assim, fica claro que, para Kierkegaard, o ser qua atual é o aspecto-
chave de qualquer tratamento da Existência e, desse modo, ele concordaria
totalmente com Hegel quanto à premência e o lugar central da Virkelighed,
na filosofia. Entretanto, Kierkegaard não poderia de forma alguma concordar
que a Virkelighed possa ser reduzida a uma categoria passível de ser de algum
modo – ainda que dialeticamente – deduzida pela razão, uma vez que a marca
fundamental do ser qua atual é que ele é extramental e, como apontado na
citação anterior, é radicalmente heterogêneo em relação ao pensamento. Por
essa razão, diferentes expressões dessa posição podem ser encontradas, quer
no Pós-escrito, quer em notas nos Papirer. Nesses últimos, a série de entradas
14
Sobre as relações entre ser e pensar em Kierkegaard, veja Ferreira (2015).
ainda, que é pouco radical? Ora, haveria vários aspectos a serem analisados.
Não se desprender de um filósofo ou de uma filosofia é manter-se utilizando o
mesmo léxico ou, ainda, ter em conta os mesmos problemas? Ao que parece,
qualquer tipo de resposta nos levaria a nos comprometermos com o fato, o
qual pode até ser verdadeiro, mas é pouco ou quase nada informativo, de
que todo e qualquer filósofo, ao menos no Ocidente, não se desprendeu dos
pré-socráticos ou, ao menos, de Platão ou Aristóteles. Isso continua sendo o
caso inclusive de filósofos que são considerados como momentos de ruptura
ou inflexão na história da filosofia, como Descartes, Kant, Hegel, Nietzsche,
Wittgenstein e o próprio Heidegger, embora alguns deles, como é o caso de
Hegel e Heidegger, reinterpretem a história da filosofia, a fim de se mostrarem
ou como ponto final ou como ponto fora dela. Não estão todos eles na esteira
dos mesmos problemas, no interior do mesmo léxico e dialogando, em maior
ou menor grau, com o mesmo desenrolar histórico da filosofia? Dessa forma,
uma vez mais, a questão pelo famigerado “desprendimento”, entendido no
marco do que apontei acima, ajuda muito pouco a compreendermos as
diversas relações entre os filósofos, ao longo da história.
Contudo, há um sentido em que a questão pelo “desprendimento”
pode ser interessante, isto é, se com isso queremos desvelar ao menos uma das
seguintes possibilidades:
a. a fixação de um novo problema (ou conjunto de problemas);
b. a demonstração de que um problema (ou conjunto de problemas)
é um pseudoproblema;
c. a demonstração de que uma resposta ou perspectiva oferecida
a problemas fixados é uma resposta ou perspectiva falsa ou
insuficiente;
d. o oferecimento de novas respostas ou perspectivas a problemas
anteriormente fixados.
diz respeito ao tratamento do ser atual, Kierkegaard satisfaz as condições a., c.,
e d. Se somarmos a isso o não tão acurado tratamento de Trendelenburg e de
parte do contexto histórico da filosofia do XIX por Heidegger, a conclusão é de
que o juízo que aqui nos serve de mote é, simplesmente, falso ou insustentável.
Ademais, outros traços extremamente importantes podem, por fim, ser
retomados. O fato de que, como demonstra Thonhauser (2016), Heidegger
parece não ter tido um contato relevante com as Migalhas e o Pós-escrito, até
por volta de 1941, é um aspecto relevante para aferirmos a qualidade dos juízos
de Heidegger sobre aspectos mais propriamente filosóficos de Kierkegaard.
Se levarmos em conta as teses metafísicas com as quais Kierkegaard se
compromete, nas referidas obras, tais como seu entendimento das categorias
modais no “Interlúdio” das Migalhas ou mesmo o tratamento filosoficamente
mais detido sobre o conceito de existência no Pós-escrito, há um gap que afeta –
a meu ver, peremptoriamente – a avaliação que Heidegger faz da envergadura
filosófica e da especificidade do pensamento de Kierkegaard. Se tivesse
considerado mais detidamente as obras acima, bem como certas partes do
Nachlass kierkegaardiano, Heidegger veria até certas semelhanças em aspectos
centrais, como a concordância quanto à tese central de que “ser” não pode ser
absoluta e totalmente coextensivo com o pensamento e que, quanto àquele, há
sempre certo “resíduo” inapreensível que resiste a qualquer redução onto-teo-
lógica, o que é um dos marcos essenciais da ontologia kierkegaardiana, cuja
análise deve ficar para outro momento.
SILVA, G. F. “Kierkegaard did not break free from Hegel”: remarks on Heidegger’s
evaluation of Kierkegaard in the Hermeneutics of Facticity. Trans/form/ação, Marília, v. 43,
n. 1, p. 51-76, Jan./Mar., 2020.
Abstract: The course delivered by Heidegger during the Summer semester of 1923, and published
later under the title of Ontology – The hermeneutics of facticity, is one of the most important loci in
which we can have a glimpse of Kierkegaard’s influence on and importance to Heidegger, as well as of
some of his interpretations about the thought of the Dane philosopher. One of them, notwithstanding
puts forward a very interesting assessment of the relation between Kierkegaard and Hegel – through
F. A. Trendelenburg –, one of hottest topics in the Kierkegaardian scholarship, is not usually analyzed
by that scholarship. Hence, this paper aims to show and analyze Heidegger’s theses on the relation
between Kierkegaard-Hegel in that work in order to evaluate their correctness. As final remarks, this
paper presents some metaphilosophical reflections on the very notions of relation and dependence
between philosophers.
Referências
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Kierkegaardian appropriation of an argument by F. A. Trendelenburg. Cognitio, São
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PORTA, Mario A. G. Estudos neokantianos. São Paulo, Loyola, 2011.
16
Recebido: 13/01/2018
Aceito: 30/06/2019
Tecnología y Transparencia
Iago Ramos 1
Elías Fuentes Guillén 2
Resumen: La concepción del ser humano como animal tecnológico, junto con la idea del progreso como
sustento de la civilización, plantea varias cuestiones que precisan ser consideradas con detenimiento,
entre ellas qué se entiende por progreso y qué sentido y valor tiene la tecnología. El caso de la realidad
virtual (VR, acrónimo de virtual reality) patentiza de hecho la habitual asunción de la tecnología como
algo ajeno a la producción cultural, humana. Sin embargo, la tecnología comparte nuestros límites y
está sometida a nuestro designio, por más que se le quiera asumir independiente de nosotros y por
más que se intente reemplazar nuestra interacción con el espacio natural por una relación enteramente
controlada en un medio virtual.
Palabras Clave: Sociedad. Tecnología. Transparencia. Usuario.
http://dx.doi.org/10.1590/0101-3173.2020.v43n1.05.p77
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La alta estima que se tiene del ser humano como animal tecnológico y
de la civilización como progreso lleva a autores como De Waal a etiquetarse
como proscritos y a que argumentos como los de Michael Tomasello en Por qué
cooperamos (2009) sean puestos en duda: la posibilidad de que haya elementos
fisiológicos en nosotros que nos llevan hacia la cooperación va contra la visión
totémica de la civilización como espacio de salvación. La posibilidad de que
pueda existir un altruismo individual (TOMASELLO, 2009, p. 51ss.) o, dicho
de otra manera, que un salvaje pueda sacrificarse por un bien común en un
estadio previo a la existencia de una espacio moral, producido por el progreso
de la especie, se considera como un planteamiento nostálgico e idílico porque
va en contra de nuestra visión de lo natural como un espacio incivilizado
dominado por la barbarie. Da igual que la idea se plantee desde una base
científica, esto es, que sea el producto más excelso de nuestra civilización el
que proponga una revisión de nuestros prejuicios sobre la conducta individual:
la idea choca con nuestras creencias básicas y necesitamos rechazarla.
Sin embargo, que el propio individuo pueda actuar de manera
altruista no es una idea chocante dentro de los planteamientos de Jean-
Jacques Rousseau, en los que el origen de la sociedad se articula a partir del
reconocimiento mutuo entre dos individuos. De este modo, en el Ensayo sobre
el origen de las lenguas (1995), Rousseau parte de la premisa de que la palabra
es lo que distingue al ser humano del animal y afirma que se trata de la primera
institución social tras el reconocimiento entre dos miembros de la misma
especie (ROUSSEAU, 1995, p. 375). En su disertación, Rousseau reconoce
que también los animales saben comunicarse entre sí, por lo que explicar la
diferencia que introduce la palabra entre el ser humano y el animal requiere
explicar cómo se produce la comunicación humana con las características que
le son propias; a saber, que ella no atiende solo a una interacción de nuestro
cuerpo con los eventos y objetos de la naturaleza, sino que crea un espacio
moral a partir de nuestra experiencia del mundo ajeno a la necesidad natural.
De este modo, frente al animal, nuestro lenguaje nos permite posicionarnos
respecto de las cosas y apropiarnos del mundo natural, dando lugar a lo que,
dentro del vocabulario rousseauista, se conoce como “segunda naturaleza”. Un
espacio en el que no surge la civilización como hito de excelencia cultural, sino
que es el espacio de comunicación y organización gobernado exclusivamente
por lo humano: “El lenguaje convencional no pertenece más que al hombre.
Es así por lo que el hombre hace progresos, sea para bien o para mal, y por lo
que el animal no hace ninguno.” (ROUSSEAU, 1995, p. 379).
1 El Homo Faber
Indudablemente, el pensamiento práctico dominante en nuestros días
está marcado por una visión conforme a la cual la tecnología se considera
parte de nuestra condición. Si preguntamos a cualquiera sobre cómo haría
para superar alguna inclemencia –el frío o el calor, por ejemplo–, podemos
asegurar que su respuesta implicará algún producto tecnológico –como la
Teniendo en cuenta que la técnica ha sido desde sus inicios una lucha
contra las limitaciones físicas para extender nuestra capacidad de acción hasta
los límites de nuestra imaginación, acaso sólo cabría considerar que una VR es
esencialmente técnica si cumple la tercera implicación que propone Giannetti
y logra transformar el espacio físico en imaginario.
Atendiendo a los otros requerimientos que Giannetti propone,
encontramos en ellos otras necesidades ontológicas para la formación de una
realidad esencialmente técnica. Por un lado, el resultado de tal construcción
debe responder en su carácter externo a un diseño y control humano, y por otro
lado, en su carácter interno dicho resultado tiene que ser capaz de responder a
todos los designios de la imaginación de su habitante. Este planteamiento nos
hace preguntarnos: si el sujeto que se mueve por aquella realidad esencialmente
tecnológica encontrase limitaciones a su imaginación, ¿no estaría aquella
tomando un cariz natural? En otras palabras, ¿no se estaría volviendo agresiva e
independiente como aquel reino que lo tecnológico pretende domar? Después
4 Esta visión de la VR se deriva del hecho que implica una reubicación de la consciencia. Esta condición
se articula en la primera conferencia del ciclo Consciousness Reframed (cf. JONES, 2000) y ha servido
para desarrollar una reflexión continuada que ya supera las 20 ediciones.
le damos a la tecnología son personales y hay quien no necesita que los libros
digan algo más que lo que pone en su lomo.
3 Tecnología y Fascinación
Desgraciadamente, los discursos sobre la técnica que suelen adquirir
mayor publicidad son los que alimentan el miedo y el desconocimiento de los
lectores. Son discursos y propuestas marcadas por la fascinación y la escisión,
en los cuales los argumentos, que parecen leyendas propias de una novela de
ciencia-ficción, promueven la visión de que la tecnología es algo especial que
va incluso más allá de nuestra realidad. Visiones en las que la VR se presenta
como un espacio trascendente o en las que la tecnología adquiere un factor
disruptivo que va a quebrar nuestra experiencia actual con el mundo, como si
el desarrollo de nuevas tecnologías no lo hubiese hecho ya desde los primeros
sílex. Un ejemplo de este tipo de mezclas sería la descripción que Giannetti
(2002, p. 197) realiza del concepto “tiempo real”:
Denominación para el tiempo de reacción muy breve del ordenador,
condicionado a una gran capacidad y velocidad de procesamiento de datos,
que es inferior a la capacidad de percepción humana del desfaz, es decir,
da la sensación de inmediatez entre acción y reacción. El computador es
generalmente capaz de presentar los resultados con la suficiente rapidez
como para controlar y permitir hacer cambios en el proceso. Como valoran
algunos científicos, el tiempo real efectivo todavía es una ilusión.
cuanto problema de percepción, aunque esta cuestión no tiene que ver con
computación en tiempo real para las ciencias computacionales.
Un ejemplo clásico del problema de computación en tiempo real es
una partida de ajedrez con un tiempo limitado para cada jugada. Para la
computadora el tiempo son ciclos, entendidos como la realización de una serie
de operaciones para obtener un resultado, y escoge tras completar la tarea
de simular las jugadas posibles según el estado del tablero. Al introducir una
limitación temporal, la decisión tendrá que tomarse según el estado en el que
se encuentran sus operaciones en un momento concreto, antes de completar la
tarea. Con este condicionamiento externo, para evitar su movimiento sea fruto
del azar, debe programarse una solución que prediga esta eventualidad, como,
por ejemplo, que el mejor movimiento hasta el momento prevalezca como
respuesta. Aumentar la velocidad del procesador para que la computadora
pueda completar la tarea en el tiempo que se le proporciona puede ser una
solución práctica, pero no perdamos de vista que el problema teórico prevalece.
Por tanto, el planteamiento de Giannetti sobre el tiempo real está
desubicado, dado que lo importante no es la impresión ni la percepción
del usuario, sino un problema de adecuación entre un sistema analítico y
la experiencia de continuidad en el mundo real. Giannetti parece caer en
una cierta fascinación por los conceptos, dándoles un carácter expositivo
de una cuestión práctica general más allá del problema teórico que refieren
y que es el que se concreta en escenarios prácticos particulares. Las ciencias
computacionales tienen una dimensión teórica que se expresa en su uso de la
matemática o en el diseño de sistemas intercambiables, como los protocolos
de red, pero siempre en diálogo con problemas y soluciones que tienen un
carácter práctico que, en sus diferentes casos, nos permiten entender mejor
el reto al que nos enfrentamos. Una situación muy acorde con la propuesta
de Mumford, en la medida en que, para entender lo que sucede en el ámbito
tecnológico, debemos adoptar una razón funcional tan mecánica como
ordenar engranajes o soldar condensadores, evitando las boutades en las que la
máquina parece existir para dar rienda suelta a nuestra fantasía.
Es cierto que hoy hemos disminuido la escisión que se había dado
desde los inicios de la Modernidad entre el ser humano y la tecnología
(MUMFORD, 1998, Capítulos 2 y 3), que ya no demonizamos los logros
técnicos por regla general y que el ingeniero ya no es un alquimista, pero
parece inevitable que la tecnología siga fascinándonos. Nos cuesta aceptar que
la magia no reside el filamento incandescente que ilumina desde una burbuja
de cristal, sino en poder utilizar todas las noches una bombilla para iluminar
nuestras casas; algo que nunca podría llevar a cabo un solo individuo. Todos
los artefactos que nos sorprenden requieren el sustento de un entramado social
que lo hace posible y que nos fascina, en tanto que lo que nos ofrece ese
artefacto es la transformación de nuestras interacciones con la realidad a través
de la perspectiva de otro. Parece que nos negamos a aceptar que las cosas
tecnológicas expresan una sociedad compleja y preferimos tratarlos como
una posesión completamente individual una vez que nos apropiamos de su
uso. ¿No vemos lo disparatado que resulta considerar como posesión privada
un equipo dependiente de una red eléctrica o de una red de abastecimiento
de carburantes? Convivimos con la tecnología sin entender que todos los
artefactos tienden a la transparencia.
Conclusiones: la transparencia
Cuando nos entregamos a la fascinación que nos producen los
relatos de otros, delegamos nuestra comprensión del mundo en otro, en un
intermediario. Podemos convertimos en víctimas del alcahuete que reina
en el “teatro de la envida” descrito por René Girard –autor que, desde su
cátedra en Stanford ha fascinado a Silicon Valley (GIRARD, 2014, capítulo
IX). Los estudios científicos requieren de un entramado social ordenado que
evite caer en la perplejidad de un solo científico. Se obliga a que todos los
estudios puedan ser verificados y esculcados por el mayor número de ojos
en busca de una posición lo más objetiva posible. Es por ese motivo por lo
que consideramos que los resultados que se publican dentro de un contexto
científico son valiosos, en términos de conocimiento, y no solo una boutade
de su autor. Sin aplicar el mismo rigor y exigir que la tecnología pueda ser
explicada correctamente por quien la presenta, estamos abocados a escuchar y
perdernos entre cantos de sirena. Parece propio del ser humano reaccionar ante
la novedad buscando una explicación esotérica que le permita despreocuparse.
Una actividad que, en el ámbito de lo tecnológico, se simplifica porque uno
de los objetivos que el propio desarrollo tecnológico persigue es que el usuario
no tenga que hacerse cargo de las incomodidades y que la experiencia de lo
tecnológico se mimetice con su identidad: que interactuemos con un amigo,
que confiemos en que nuestras experiencias no están siendo intervenidas y en
que nuestras emociones no se deben a la fuerza mimética que discute Girard.
máquina una victoria muy eficaz. Pero no, seguiremos imaginando una guerra
entre ser humano y máquina y, seguramente, acertemos porque, de momento,
somos nosotros los que programamos las computadoras y “sin su software, la
computadora es básicamente un montón de metal inútil. Con su software,
una computadora puede almacenar, procesar y recuperar información; exhibir
documentos multimedia; realizar búsquedas en internet y realizar muchas
otras actividades valiosas para justificar su existencia” (TANENBAUM;
WOODHULL, 1998, p. 1); ¿no podría ser el atemorizarnos con una guerra
una actividad que las hacen valiosas?
Durante la WWDC 2017, Apple ha introducido un framework para
el desarrollo de aplicaciones de Realidad Aumentada, ARKit (Augmented
Reality Kit), que confirma que la industria tecnológica ha abandonado la
realidad virtual en favor de la realidad aumentada. Este nuevo paradigma ha
ido creciendo poco a poco con la expectación que ha generado la start-up
Magic Leap o la aceptación por parte del público de los filtros que introdujo la
aplicación Snapchat y que Facebook ha añadido últimamente a las diferentes
redes sociales que gestiona; si bien, pocos saben identificar como una
aplicación de la realidad aumentada esta tecnología. Las empresas apuestan
por la AR frente a la VR por la transparencia con la que llega al usuario, que
solo ve un nueva feature en un artefacto que utiliza a diario. La posibilidad
de identificar un árbol solo con enfocarlo con la cámara de nuestro móvil, un
gesto que ya se popularizó en la ciencia ficción de los años 80 con películas
como Terminator (1984) o Robocop (1987), no es algo disruptivo. En cambio,
la VR, que películas como The Lawnmower Man (1992) presenta como una
experiencia de carácter místico capaz de desnaturalizarnos, sí lo son. A la VR
le ha faltado transparencia desde su concepción y esto la ha delegado a nichos
como el entretenimiento o la educación, mientras que la AR se consolida sin
que seamos conscientes de ello como una tecnología de consumo popular y
cotidiano que no nos fascina aunque nuestra interacción con las cosas y el
funcionamiento de nuestra sociedad cambie completamente. Dependeremos
cada vez más de la AR, como ocurre, por ejemplo, en las zonas urbanas de
China, donde los pagos se realizan a través de códigos QR. La AR pasará a
ser una de esas tecnologías que, como el lenguaje, nadie recuerda que lo son
y por eso nadie pone en duda hasta que se ponen de moda palabras como
post-verdad y volvemos a pensar en cómo usamos el lenguaje. Es decir, hasta
que surgen problemas concretos que intentamos solucionar con más o menos
tecnología para seguir progresando, pues, como señalaba Mumford, la historia
Abstract: The idea of the human being as a technological animal, coupled with the idea of progress as
the very foundation of civilization, raises several issues that need to be carefully considered, including
the meaning of progress and the meaning and value of technology. The case of virtual reality (VR)
indeed makes explicit the common assumption of technology as something alien to cultural, human
production. However, technology shares our limits and it is subject to our plans, regardless of whether
someone insists on assuming it independent of ourselves or insists on replacing our interaction with
natural space by an interaction in an entirely controlled virtual environment.
Keywords: Society. Technology. Transparency. User.
Referências
FANG, Hui; ZHANG, Meng. Creatism: A deep-learning photographer capable of
creating professional work. arXiv, Nova York, 2017. Disponivel em: https://arxiv.org/
pdf/1707.03491v1.pdf. Acesso em 20 de jan. 2019
GIANNETTI, Claudia. Estética digital. Sintopía del arte, la ciencia y la tecnología.
Barcelona: ACC L’Angelot, 2002.
GIRARD, René. Shakespeare, les feux de l’envie. Paris: Grasset, 2014.
JONES, Stephen. Towards a Philosophy of Virtual Reality: Issues Implicit in
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MORGAN, Lewis Henry. La sociedad primitiva. Madrid: Ayuso, 1975.
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ROUSSEAU, Jean-Jacques. Essai sur l’origine des langues. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques.
Œuvres Complètes. Paris: Éditions Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1995. t. V.
Recebido: 23/07/2017
Aceito: 30/06/2019
Comentário
Tecnología y Transparencia
http://dx.doi.org/10.1590/0101-3173.2019.v43n1.06.p99
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7 “Formado a partir de hylê (matéria) e de morphê (forma), este termo designa a teoria, originalmente
aristotélica, que explica a formação do indivíduo pela associação de uma forma e de uma matéria, a
forma, ideal (traduzimos igualmente por forma o termo grego eidos), se imprime na matéria concebida
como passiva.” (COMBES, 1999, p. 8, n.1, tradução livre).
8 A alienação técnica é a condição humana causada pela “ausência [da técnica] do mundo das
significações e por sua omissão no quadro dos valores e conceitos que participam da cultura”, escreve
Simondon (1989, p. 9-10).
Referências
COMBES, Muriel. Simondon individu et collectivité: pour une philosophie du
transindividuel. Paris: Presses Universitaires de France, 1999.
SIMONDON, Gilbert. L’individuation à lá lumière des notions de forme e et d’infomacion.
Grenoble, França: Millon, 2005.
SIMONDON, Gilbert. Du mode d’existence des objects techniques. Paris: Aubier, 1989.
SOUZA, E. A. On the philosophical relevance of the miracle argument. Trans/form/ação,
Marília, v. 42, n. 4, p. 47-80, Out./Dez., 2019.
Resumo: A partir de uma apresentação do contexto político e social no interior do qual a obra de
Guattari se insere, buscamos definir o debate político francês da década de 60, no campo do marxismo,
sobretudo do materialismo histórico em torno da questão do sujeito da história. O objetivo deste artigo
é explicitar as razões que levam Guattari a romper com o estruturalismo, representado na psicanálise
por Lacan e no marxismo por Althusser. A relevância deste texto está na apresentação do conceito de
máquina, que se define em oposição ao conceito de estrutura e que, unindo história e inconsciente, visa
a traçar o espaço de emergência de um sujeito da história, de um sujeito político.
Palavras-Chave: Materialismo histórico. Estruturalismo. Psicanálise e política. História.
Introdução
Acontece, raramente, de um psicanalista e um militante se encontrarem
na mesma pessoa, e ao invés de permanecerem fechados, de encontrar
justificativas para permanecerem fechados em si mesmos, eles não cessam
de se misturar, de interferir, de comunicar, de tomar-se um pelo outro. É
um acontecimento muito raro desde Reich. Pierre-Félix Guattari não se
deixa ocupar com o problema da unidade do Eu. O eu faz parte dessas
coisas que é preferível dissolver, sob o assalto conjugado de forças políticas
e analíticas. A palavra de Guattari “nós somos todos grupelhos”, marca
bem a busca por uma nova subjetividade, subjetividade de grupo que não
se deixa enclausurar em um todo pronto para reconstruir um eu, ou pior
ainda um super-eu, mas se estende por diversos grupos ao mesmo tempo,
divisíveis, multiplicáveis, comunicantes e sempre revogáveis. O critério de
um bom grupo é que ele não sonha ser único, imortal e significante, como
um sindicato de defesa ou segurança, como um ministério de antigos
combatentes, mas se liga a um fora que o confronta com possibilidades
de non-sens, de morte e de explosão, “dada a sua abertura para outros
grupos”. O indivíduo, por sua vez, é um tal grupo. (DELEUZE. In:
GUATTARI, 1974, p. I).
1 Pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de São Paulo (USP),
São Paulo, SP – Brasil (com estágio na Universidade de Paris I). https://orcid.org/0000-0003-
3409-487X E-mail: larissa_drigo@yahoo.com.br. Esta pesquisa é financiada pela FAPESP.
http://dx.doi.org/10.1590/0101-3173.2020.v43n1.07.p103
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Além disso, eu pensava que nós não podíamos avançar nessa nova
“disciplina” a não ser na medida em que ela se instituiria em conexão com
questões políticas mais largas como: aquelas, por exemplo, da oposição
comunista, da renovação das formas de luta revolucionária, etc. Essa
tentativa durará até maio de 68. Uma “grande ilusão” que não renego. Em
certa medida, foi um sucesso incontestável. (GUATTARI, 1974, p. 110).
corte, Logo, nesse contexto, a questão central para Guattari será pensar a história
com base em um conceito renovado de sujeito histórico e político – eis a razão
pela qual ele precisa atacar, ao mesmo tempo, Lacan e Althusser.
dominação, Guattari está preocupado não com as estruturas que saem às ruas
para afirmar seu saber e exigir reconhecimento ou reparação, todavia, com
o sujeito dos acontecimentos, aqueles capazes de romper com as máquinas
e com as estruturas de produção capitalista, um sujeito político, da história.
A estrutura posiciona seus elementos a partir da relação que estabelecem
uns com os outros, de tal maneira que a estrutura pode ser associada, como
elemento, a outra estrutura. Isso coloca um problema para o materialismo
histórico e dialético. Como compreender a história e sua natureza, quando
um modo de produção é tomado como uma estrutura? Ela se reproduz
devido à sua relação com outras estruturas? É assim que podemos pensar o
materialismo dialético, como história de suas estruturas, de suas relações e de
seus modos de produção e reprodução? Para Guattari, uma compreensão dessa
natureza, meramente formal, será sempre abstrata. Essa parece ser a posição do
estruturalismo de Lacan ou Althusser.
Uma posição formalista que parte das formas transcendentes, universais,
cortadas da história e que se incarnam em substâncias semiológicas, [por
isso, era preciso] partir das formações sociais e dos agenciamentos materiais
para extrair (abstrair) os componentes semióticos e as máquinas abstratas tais
quais a história humana e cósmica as propõem. (GUATTARI, 1979, p. 12).
1974, p. 243). A novidade é que não há, no interior desse processo, uma
causalidade como a que anima as estruturas lacanianas, onde a perda requer o
impossível e a falta tem no mito o seu outro. Não se trata de pensar a máquina
do ponto de vista simbólico-imaginário, por isso, ela não poderia mais ser
um produto derivado da ordem representativa, quer dizer, da linguagem. Para
pensar o sujeito além ou aquém da representação, Guattari (1974, p. 243).
introduz a noção deleuziana de diferença:
A essência da máquina é precisamente essa operação de desprendimento
de um significante como representante, como «diferenciador», como corte
causal, heterogêneo à ordem das coisas estruturalmente estabelecida.
Essa operação liga à máquina ao duplo registro do sujeito desejante e
de seu estatuto de raiz fundadora das diferentes ordens estruturais que
a ele correspondem. A máquina, como repetição do singular, constitui
um modo, e mesmo o único modo possível, de representação unívoca
das diferentes formas de subjetividade na ordem do geral sob o plano
individual ou coletivo.
ordem dada, como ruptura, revolução, apelo para uma reorientação radical.”
(GUATTARI, 1974, p. 176).
A ideia de corte significante agora se transforma na ruptura, na cisão
operada na máquina: “[...] mascarada por trás da estrutura, esperando, o corte
maquínico é o sujeito em conserva, o tempo em bateria. Enquanto a estrutura
não se move, o sujeito não se produz.” (GUATTARI, 1974, p. 181). Guattari
é muito claro, ao afirmar que só é possível “[...] sair do impasse estruturalista
considerando que um efeito do sentido só pode produzir consequências no
plano do significado quando potencialidades subjetivas são liberadas, quando
há uma ruptura no significante.” (GUATTARI, 1974, p. 180). O conceito
de máquina visa, por conseguinte, em função do estado atual do trabalho, a
pensar o lugar de emergência de um sujeito, entre a estrutura que mantém em
funcionamento um modo de produção e exploração e a máquina que altera a
história, produzindo espaços, no interior do quais sujeitos podem ao mesmo
tempo romper com a estrutura e com as máquinas.
O problema dos grupos sociais é que eles não possuem uma superfície
de projeção (como os indivíduos e seus corpos); na verdade, grupos sociais
“dispõem apenas de modos de decifrar e de se situar sucessivos e contraditórios,
aproximativos e metafóricos, a partir de diferentes ordens estruturais, por
exemplo, de trocas, de mitos, etc.” (GUATTARI, 1974, p. 243). É por essa
razão que o desejo pode ser “reprimido”, ou melhor diríamos, regulado e
gerenciado pela ordem social. A questão é, portanto, saber compreender, em
primeiro lugar, que movimento é esse, responsável por conter a potencialidade
das máquinas, produzindo sua estruturação. Essa é a função do conceito
de antiprodução: explicar de que forma as singularidades produzidas por
transformações históricas são contidas, desviadas ou minadas, de sorte que
toda sua potencialidade criativa é limitada ou destruída.
O primeiro movimento da antiprodução consiste em impedir todo
tipo de passagem de um sistema de produção para outro. Se a máquina
se define como o corte subjetivo que caracteriza toda forma de produção,
a antiprodução procura igualar e tornar equivalentes todas essas ordens,
impedindo a passagem de um modo para outro, impedindo as rupturas.
Quer dizer, a noção de estrutura teria um papel ideológico, porque, ao igualar
todas as esferas da vida social em função de uma forma única, impede a
manifestação da singularidade e da heterogeneidade. Ela não é capaz de tornar
visível o que, por natureza, é singular. Coloca-se sob o mesmo plano o que
ocorre na fábrica, na escola, no atelier, na produção literária, poética, onírica
etc. A antiprodução é tudo aquilo que é posto sob a forma das “relações de
produção” (GUATTARI, 1974, p. 244). O reequilíbrio imaginário que ela
opera é o da fantasia transicional. Não se trata de um aparato conservador
ou antirrevolucionário que objetiva conter o tempo e reverter a história; a
antiprodução organiza mudanças e transformações no seio de uma área
social determinada, promove a generalização de um novo modo de produção,
acumulação, circulação e distribuição. Ou seja, a antiprodução substitui a
ruptura, que é capaz de produzir novas potencialidades, por uma fantasia de
transição, por um processo de desenvolvimento, o qual nada mais é do que
a propagação ou a extensão de um único modo de produção para todas as
esferas da vida social.
A própria teoria lacaniana parece assombrada por esse tipo de fantasia
transicional. É isso o que sua teoria do significante parece indicar. Tomemos o
objeto a, causa do desejo: o tipo de relação estrutural que ele instaura perturba
o equilíbrio estrutural do indivíduo, afinal, o desejo é um corte metonímico,
Considerações Finais
Se um modo de produção é produtor de relações sociais, o conceito de
reprodução nos coloca diante da questão que o materialismo histórico deveria
ser capaz de responder: como são criadas as condições necessárias da produção?
O althusserianismo entende que um modo de produção é um processo
que cria relações sociais sem sujeito; nesse sentido, as condições necessárias
da produção também seriam um processo que ocorre sem precisar de um
sujeito? Se a resposta for positiva, o materialismo tem de enfrentar um grande
problema: como conceber que haja história, que possa existir transformação
no interior da vida social? Transformação que o próprio Marx concebe como
ação revolucionária, produzida por um novo sujeito, o proletariado.
Para Guattari, o formalismo althusseriano que toma o modo de
produção como estrutura que determina, por sua vez, modos de relação entre
sujeito e objetos e entre sujeitos faz economia da história real, contingente,
concreta e material.
A grande diferença entre a noção de estrutura e a noção de máquina é
que esta possui um elemento diferenciador. É porque concerne a singularidades
que ela diz respeito à história. Se a estrutura como generalização que permite
trocas e substituição de posições pode descrever a natureza de um modo de
produção fixo, ela não é capaz de explicar a natureza das transformações
históricas. Por isso, Guattari insiste que a máquina se refere a uma singularidade
intercambiável e incomunicável. No entanto, por mais que a máquina seja
um processo diferenciante, ainda é preciso uma ruptura para que um sujeito
possa emergir. Afinal, a máquina é também uma técnica de produção, a qual,
no interior do capitalismo, priva o trabalhador de um pertencimento a uma
ordem, a uma classe de trabalhadores. Daí a importância do conceito de
antiprodução.
Abstract: From a presentation of the political and social context within which Guattari’s work fits in,
we seek to define the French political debate of the 1960s in the field of Marxism – especially historical
materialism – on the question of the subject of history. The purpose of this article is to explain the
reasons that lead Guattari to break with structuralism, represented in psychoanalysis by Lacan and
Marxism by Althusser. The relevance of this article lies in the presentation of the concept of machine,
which is defined in opposition to the concept of structure and that, joining history and unconscious,
aims to trace the emergence space of a subject of history, of a political subject.
Keywords: Historical materialism. Structuralism. Psychoanalysis and politics. History.
Referências
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GUATTARI, F. Psychanalyse et transversalité. Paris: Maspero, 1974.
GUATTARI, F. L’inconscient machinique. Paris: Éditions Recherche, 1979.
SIBERTIN-BLANC, G. D’une conjoncture l’autre. Deleuze et Guattari après-coup.
Actuel Marx: Deleuze et Guattari, França, n. 53, pp. 28-47, 2012.
Recebido: 18/09/2017
Aceito: 30/06/2019
Lauro Ericksen 1
Resumo: O artigo aborda a conjunção temática entre estética e política. Discute o pensamento de dois
autores da filosofia contemporânea que fazem essa conexão: Kierkegaard e Rancière. Ele debate como
o critério do interesse no estádio estético kierkegaardiano pode ser comparativamente analisado, no
contexto estético-político de Rancière. O texto apresenta os regimes políticos de Rancière em alusão
aos estádios da vida humana em Kierkegaard, especificamente se relacionando ao estádio estético.
Objetiva oferecer um estudo atualizado da multiplicidade política contemporânea, através dos diversos
interesses estéticos que influenciam a formação social. O trabalho resulta em uma abordagem estético-
política despida de inclinações ideológicas por si mesmas, mas que possibilita a indicação de vanguardas
e retaguardas no pensamento político hodierno.
Palavras-Chave: Estética. Política. Metafísica. Kierkegaard. Rancière.
Introdução
O artigo trata detidamente sobre um possível entendimento político do
estádio estético kierkegaardiano. Busca-se analisar as premissas “pós-modernas”
do pensador francês Jacques Rancière, que trata da estética sob o viés político.
Essa análise comparativa entre Rancière e Kierkegaard é importante, para
que se possa fazer uma atualização do estádio estético kierkegaardiano em
contraponto com a noção política de Rancière, a qual também se fundamenta,
igualmente, numa determinação estética da realidade. Conjugando as ideias
desses dois pensadores, é possível ter uma noção mais contemporânea de como
a estética pode ser apropriada segundo termos políticos de sua descrição.
1 Doutor, mestre e bacharel em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Especialista em Direito e Processo do Trabalho (Universidade Cândido Mendes – UCAM/RJ).
Bacharel em Direito (UFRN). Oficial de Justiça Avaliador Federal no Tribunal Regional do Trabalho
do Rio Grande do Norte – 21ª Região, Macau, RN (TRT-21). Professor de Ética na Pós-Graduação do
Centro Universitário Facex (UniFacex), Natal, RN – Brasil. http://orcid.org/0000-0002-4195-
1799 E-mail: lauroericksen@yahoo.com.br.
http://dx.doi.org/10.1590/0101-3173.2020.v43n1.08.p127
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três regimes das artes: o regime ético, o regime poético (também grafado
como regime representativo das artes) e o regime estético das artes (que,
derradeiramente, pode ser compreendido como o regime político das artes).
Didaticamente, faz-se necessário trazer breves conceituações sobre cada um
desses regimes, para que o paralelo com os estádios kierkegaardianos pareça
ser mais factível e de mais fácil compreensão, embora o aprofundamento
no pensamento kierkegaardiano se dê de modo mais detido em seu estádio
estético, servindo os demais apenas como pano de fundo para a mencionada
correlação alusiva trinária entre o seu entendimento e o de Rancière (no qual
os três regimes se direcionam para o fundamento estético da realidade).
O regime ético das artes é aquele que se estrutura de acordo com
as imagens e a respectiva formação das artes a partir dela, em sua relação
delineadora do ethos (RANCIÈRE, 2004, p. 21). Esse regime está identificado,
prioritariamente, com a metafísica platônica, na qual o modo de ser e os
elementos definidores da vida em comunidade são dados por meio de imagens
arquetípicas e coletivizadas. Nesse regime, as imagens são tratadas de acordo
com a verdade contida em si mesmas e de acordo com os usos e os efeitos
que podem ser obtidos a partir da sua manipulação (SHAW, 2015, p. 134).
Em função dessas duas características básicas atribuídas ao mencionado
regime, há apenas um retorno coletivo das imagens para a comunidade
(elas retornam em bloco, como se fossem uma verdade unificada, sem que
a sociedade possa processá-las e decodificá-las separadamente), sem que haja
uma individualização de cada aspecto imagético envolvido no processo de
formação da arte na própria sociedade.
O enquadramento da repercussão das imagens no ethos é mais
importante que qualquer outra derivação social individualmente possível
das imagens, por isso, a colocação coletiva dos efeitos das imagens é mais
importante que qualquer desvio individual de sua apropriação pelos membros
da sociedade. Uma estruturação societária como a da República platônica
dispensa totalmente esse aspecto individualizável das artes, uma vez que o
mimetismo envolvido em sua reprodução deve ter um fim adequado à própria
comunidade, e não ao indivíduo. Esse é um aspecto atribuível até mesmo às
artes verdadeiras, não apenas aos simulacros desorganizadores da pólis, sendo
algo prevalente em sua estruturação social segundo o regime ético das artes.
Ainda que esse regime se relacione de maneira deveras próxima com
a arte, não é tido estritamente como um “regime das artes” por excelência
(DAVIS, 2013, p. 25). Esse apontamento se baseia no apego de tal regime ao
efeito que as imagens podem ter no ethos, ao invés de se focarem nas imagens
em seus contornos artísticos propriamente ditos. Assim, a imagem da lei ou
da divindade repercute de modo a ter uma tradição de usos e costumes muito
mais importante, nesse regime, do que se poderia ter, caso o mero efeito de
tais imagens não fosse o ponto fundamental de análise. A imagem é construída
eticamente e discutida eticamente: o âmbito de sua abordagem sempre está
cingido ao ético, não superando os limites de tal discussão.
Por causa da preocupação específica e centrada no efeito das imagens,
no ambiente ético da comunidade, não se chega a uma politização da arte.
Tampouco a arte é concebida como uma entidade discreta, apartada do
próprio manejo conformativo da sociedade (CHAMBERS, 2010). As
imagens possuem a tarefa de atrelar os indivíduos à comunidade segundo
sistemas e preceitos éticos, sem que seja dada nenhuma outra margem de
discussão, seja ela política ou não. Essa restrição na atuação do indivíduo para
com a sociedade, de maneira estrita e deterministicamente relacionada, é a
característica fundamental desse regime das artes, o qual descreve de forma
adequada as obras platônicas.
Sinteticamente, conclui-se que, no regime ético das artes, há uma
apropriação da comunidade das formas de arte, tomando as imagens como
seu modo de ser coletivizado (RANCIÈRE, 2004, p. 22). Na verdade, ao
se buscar apenas os efeitos garantidores da imanência imagética da arte, esse
regime não confere nenhuma autonomia à arte enquanto manifestação das
formas de ser individuais do homem. Seu espectro valorativo circunscreve-se
apenas àquilo que a comunidade toma por artístico, em sua redoma ética.
O segundo regime das artes a ser abordado é o denominado regime
poético (ou representativo) das artes. À primeira vista, com uma base
etimológica de sua apresentação, já é possível identificar que esse regime se
associa diretamente com as obras e o pensamento aristotélico, principalmente
com A Poética. Sem embargo, diferentemente do regime ético das artes,
em que a arte estava diluída no ambiente ético da comunidade, no regime
representativo, há uma especificação do campo de atuação das artes,
definindo-a como “belas artes”. O campo próprio designado de belas artes é
regido por um princípio capaz de acondicionar a definição apartada da ética
(diferenciação básica do regime anterior), dando-lhe autonomia (RANCIÈRE,
2004, p. 35). O princípio representativo das artes é a mimesis (do original
grego hμίμησις). Há um caráter pragmático na conformação da mimesis como
A arte está interconectada com todos esses aspectos do homem, em sua vida
cotidiana, tanto quanto a filosofia, em um aspecto mais amplo, se conecta com
as demais ciências (psicologia, sociologia, antropologia, física), sem lhes impor
suas condições ou premissas essenciais no mundo (pós) moderno.
Não obstante, há de se indicar que Rancière pontua que o regime
estético das artes ainda não faz uma correlação absolutamente acertada sobre
a estética e o político, ainda não há um plano de equivalência entre esses
dois ambientes. Por causa das lacunas apresentadas nos três regimes por ele
abordados, ele propõe uma nova partilha do sensível, que é o elemento central
na tomada estética do mundo (RANCIÈRE, 2004, p. 30). Todavia, deve-se
deixar notado que, mesmo sem se colocar claramente como um apresentador
de um regime pós-estético das artes (ele não nomeia um quarto regime para
nele se incluir), o pensamento de Rancière está mais próximo do continuísmo
desse regime que da rejeição absoluta.
Assim, pode-se considerar que Rancière deflagra uma remodelagem
no regime estético das artes, mas aceita a autonomia paradoxal nele inserida
para, a partir daí, tecer sua problematização e fazer uma pormenorização dos
tópicos mais relevantes. Seu equívoco é fazer o “pretensamente indispensável”
entrelaçamento entre a sua ideologia de esquerda e a abordagem culturalista2
estético-política.
Em conclusão aos regimes de arte apresentados, é de grande valia
assentar que a grande contribuição de Rancière para o presente estudo é a
possibilidade de uma interpretação pós-filosófica,3 em função do regime
estético das artes, a partir do qual a arte, como expressão autêntica do homem,
não se restringe a um círculo cultural restrito (ético ou representativo). Esse
2
Por “visão culturalista” ou “culturalismo”, desde os argumentos de Kierkegaard (2010, p. 55) postos
em oposição à filosofia hegeliana, deve-se entender a posição superior da cultura (aquilo que é criado
pelo homem) em detrimento daquilo que lhe é dado como natural. Dessa maneira, o culturalismo,
utilizado na extensão do texto em desenvolvimento como equivalente do “subjetivismo cultural”,
encontra-se em franca oposição ao naturalismo (por vezes, denominado também como biologismo),
ou seja, o elemento de base biológica que forma o homem e o circunda.
3
Por pós-filosofia deve ser entendido todo o tipo de pensamento que não se conforme à centralização
da filosofia como marco central do pensamento humano, de sorte que aglutine, em seu conteúdo,
elementos de outras ciências humanas e, tampouco, se conforme a buscar sistemas, conceitos, essências
e totalidades para a natureza humana. A antimetafísica ou a antifilosofia ainda buscam em última
instância sistemas, conceitos, totalidades e essências, todavia, de uma maneira totalmente diversa, sem
se prender de forma definitiva a esses elementos (CAPUTO, 1982, p. 113). Logo, ainda que se trabalhe
com conceitos definidos pelos próprios autores, em conjunções sistemáticas, as quais encontram algum
vislumbre de totalidade, a essência dessas considerações não se torna absoluta por uma definição dada
sobre si-mesma.
5
Rancière (2004, p. 45) salienta que a emancipação do homem passa pela sua politização e por uma
melhor partilha do sensível, mais adequada e equilibrada. No entanto, suas proposições são deveras
vagas e pouco elucidativas, de sorte que tais palavras se perdem em uma conceituação abstrata pouco
prática, na realidade.
6 A visão de Rancière era declaradamente maoísta, em seu início, principalmente após o seu rompimento
com Althusser (que era seu tutor intelectual e stanilista), e ainda não há relatos até o presente momento
de que ele tenha reformado tal posicionamento ideológico, apesar das atrocidades cometidas por
esse regime político. Seu entendimento maoísta se punha em oposição ao stalinismo dominante na
academia francesa e diz respeito à sua noção universalista de que a revolução (e a compreensão da
realidade) é não elitista, de modo que todos, principalmente os estudantes, são partes indispensáveis
no seu desenvolvimento “cultural” e político. O uso do maoísmo como um elemento caracterizador
de seu pensamento serve didaticamente para conformá-lo como sendo uma vanguarda, em oposição
dialética ao pensamento cristão de Kierkegaard, definido, precipuamente, como uma retaguarda nessa
empreitada conceitual.
7 O plano filosófico marxista põe em relevo períodos de continuidade e de ruptura, de sorte que a
história transcorre segundo esses dois momentos dialeticamente opostos.
8
Por perspectivismo ardente se compreende o entendimento de que não há posicionamentos que sejam
filosoficamente absolutos, em termos metafísicos, de acordo com sistemas e conceitos pré-definidos. O
termo possui uma correlação próxima do étimo “relativismo ardente”, o qual foi evitado, sob pena de
soar pejorativo ou muito disperso, em sua conceituação.
14
Assim sendo, por mais que o artigo tenha como enfoque primordial o estudo do estádio estético,
em toda a sua extensão ele deve ser compreendido como o estádio estético já coligado ou fundido com
outros elementos de uma expressão existencial mais completa do homem (por meio de sua conexão
com o estádio religioso ou ético, no que for cabível). Sem que se recaia na preconcepção crítica que o
artigo se foca em um elemento negativista do pensamento kierkegaardiano e o utiliza sem as devidas
atualizações ou considerações conceituais que sejam capazes de fornecer um entendimento mais
substancial de questões tão fundamentais e relevantes para tal estudo.
15
Rancière não se vale do termo “pós-moderno” ou “vanguarda”, para definir seu pensamento.
Contudo, esses termos indicam efetivamente aquilo que ele tenta descrever e, por causa disso, são
utilizados adequadamente no trabalho em desenvolvimento.
16
Ainda que o próprio Rancière não explique claramente ao que o termo “partilha do sensível” se
refere, pode-se fazer uma leitura “marxiana”, na qual o termo equivale à “divisão social do trabalho”
(HIRVONEN, 2014, p. 161). Ele diz respeito à distribuição de competência e de ordenações políticas e
sociais, às formas e lugares de participação política e econômica, à inclusão e à exclusão dos indivíduos,
em síntese, ao mostrar e ao esconder das formas e dos corpos sociais e políticos na sociedade como
um todo.
17
É importante destacar o sentido aristotélico que Rancière dá aos seus escritos políticos, pois ele é um
grande crítico do platonismo, aceitando a conjuntura aristotélica para descrever a realidade política
conjuntural.
18
Há quem aponte, no entanto, que negar um caráter natural e essencial à política é negar à política
qualquer poder de emancipação (COPJEC et al.; 2011, p. 94). Ou seja, dar qualquer contorno
apolítico ou pré-político ao entendimento do homem sobre si mesmo é condicioná-lo às situações
opressivas que pretensamente estão sendo reproduzidas culturalmente, segundo o pensamento de
Rancière e de alguns dos seus seguidores (conforme citado).
19
Por pré-política se indica um sentido de ser do homem comparável ao status pré-ontológico de
compreensão do homem sobre si mesmo (HEIDEGGER, 2008, p. 50), sob um viés heideggeriano.
Todavia, essa interpretação é muito além das possibilidades do homem, pois suplanta a própria
possibilidade pré-ontológica de compreensão de mundo, um mundo culturalmente aberto, e não
identificado com pressuposições objetivistas. Esse, aliás, é o entendimento tanto de Heidegger quanto
de Kierkegaard a respeito desse tema.
Considerações Finais
Derradeiramente, há de se explicar o motivo pelo qual a “comparação”
entre Kierkegaard e Rancière foi feita, neste breve artigo. O intuito de tal
análise comparativa consiste em afastar uma possível interpretação da estética
kierkegaardiana que venha a limitá-la a um único viés político. Em última
análise, Rancière até aceita a noção de interesse kierkegaardiano, como
elemento que reparte o sensível; ele apenas rejeita que haja outras derivações
do interesse, além de seu aspecto político. Por causa dessa rejeição, a presente
seção tratou de apontar os deslizes de Rancière em sua abordagem estético-
política, a fim de demonstrar que um retorno ao texto kierkegaardiano já
fornece uma interpretação satisfatória do estádio estético.
Assim, esse estádio deve ser compreendido em toda a sua multifacetada
existência, a qual possibilita ao homem várias escolhas e muitas oportunidades
de vivenciá-las, sem se preocupar, obrigatoriamente, com suas implicações
políticas. O esteta, no sentido proposto por Kierkegaard, importa-se mais com
seus próprios interesses que com as consequências desses interesses, coletiva ou
individualmente falando.
De modo conclusivo, há de se indicar que o principal elemento que
motiva a análise do pensamento de Rancière, através de uma retrospectiva
kierkegaardiana, é que sob essa égide metodológica se afigura possível purgar
grande parte da inclinação ideológica do pensador francês, mantendo-
se, de toda forma, o seu cerne interpretativo. Logo, é possível depreender,
Abstract: The paper concerns the relationship between politics and aesthetics In the philosophies of
Kierkegaard and Rancière. The paper debates how the interests are the key element in Kierkegaard’s
aesthetic stage in “comparison” to aesthetical-political context for Rancière. The paper presents the
political regimes of Rancière in allusive recollection of human life stages as showed by Kierkegaard. The
paper offers a study focused on the multiplicity of politics based on a vast of aesthetical interests and
possibilities. The paper results in an aesthetical-political perception free from ideological aspiration,
which is able to states avant-gardes and rearguards about nowadays political thinking.
Key-Words: Aesthetics. Politics. Metaphysics. Rancière. Kierkegaard.
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20
Recebido: 11/12/2016
Aceito: 11/04/2019
Resumo: Este artigo se inicia discutindo um tema relativamente clássico na epistemologia, qual seja,
analogia, conceito e teoria, explorando uma perspectiva contemporânea do fazer científico e, em alguma
medida, da filosofia. A partir daí, busca reacender o debate, sempre necessário, sobre teoria, analogia
e conceito, à luz da produção do conhecimento científico, destacando abordagens supradisciplinares e
transparadigmáticas. Para tanto, socorre-se de diferentes áreas do conhecimento científico, a sociologia
clássica e contemporânea, elementos da biologia, aspectos da cibernética, para demostrar que a ciência,
de modo geral, considerando suas múltiplas disciplinas, intercambia de forma cada vez mais dinâmica
raciocínios analógicos, com vistas a dar conta da crescente complexidade em que se encontra.
Palavras-Chave: Ciências sociais. Ciências naturais. Teoria e conceito. Analogia e complexidade.
http://dx.doi.org/10.1590/0101-3173.2020.v43n1.09.p151
This is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License.
Deleuze e Guattari (1992) nos fazem ver que os conceitos não são
e nem devem ser vistos como prisioneiros das teorias, das disciplinas ou de
qualquer área do conhecimento. São criações cognitivas que portam inúmeros
conteúdos (abstratos) que lhes foram derramados sobre, aqui e ali, e que
13
Anos em que suas obras teóricas, amparadas em analogias e modelos sistêmicos, foram desenvolvidas
e publicadas pela primeira vez. Rodrigues (2013) resgata e conta, de forma mais pormenorizada, essa
rica história sociológica e filosófica da ciência.
“A Logical Calculus of the Ideas Immanent in Nervous Activity”, publicado em 1943, por Warren
14
19
Para uma discussão da utilização dos termos estrutura e sistema, ao longo do desenvolvimento teórico
da sociologia, disputando espaço por “hegemonia conceitual” no campo da teoria, ver Rodrigues
(2006, 2010).
20
O termo deriva do verbo grego poiéo, que significa fabricar (obras manuais), compor (obras
intelectuais), construir (no trabalho agrícola). Aristóteles explicita o sentido principal da poiésis como
uma prática na qual o agente e o resultado da ação estão separados ou são de natureza diferente. A
poiésis liga-se à ideia de trabalho como fabricação, construção, e à ideia de téchne. Esse termo foi
proposto por Humberto Maturana e Francisco Varela. A história de sua concepção, como conceito e
como neologismo, encontra-se contada pelos próprios autores, em Maturana e Varela (1980, 1995a,
1995b, 1997). Os autores conservaram, em espanhol, os dois termos gregos: autopoiesis; em inglês,
também autopoiesis; em português, encontram-se grafadas de duas maneiras: autopoiese e autopoiésis;
optou-se pela segunda.
21
É importante salientar que citamos o trecho da introdução que Maturana fez, sem a participação de
Varela, em Maturana e Varela (1980, p. 12).
Considerações Finais
O presente artigo buscou problematizar e, talvez, contribuir,
considerando o atual desenvolvimento da ciência e o debate que se tem
travado, no âmbito do construtivismo científico, com a retomada reflexiva de
alguns conceitos, tais como teoria, analogia, modelos e metáforas.
Tendo em vista certa crise da epistemologia (e também filosófica) de
orientação analítica, para lidar com os próprios produtos que têm emergido da
ciência, nesta contemporaneidade, em diferentes disciplinas do conhecimento
científico, o artigo esforça-se por reanimar antigos debates, menos de caráter
filosófico stricto sensu, mas mais de caráter epistemológico, com a reflexão
teoria e o emprego de analogia em uma ciência que se mostra cada vez mais
supradisciplinar e transparadigmática.
Por certo, como pano de fundo do argumento que se desenvolveu, ao
longo do artigo, mas que não se tem condições de ser explicitado aqui, de
forma mais demorada, têm-se, por um lado, elementos de uma epistemologia
de orientação histórica, a partir da segunda metade do século XX, da filosofia
continental (BADIOU, 2013) e a sua influência na sociologia da ciência
contemporânea, e, por outro lado, a possível confluência, mais de fundo,
tanto no âmbito da filosofia como da ciência, das “crises” da filosofia analítica,
da metafísica tradicional e do determinismo científico. Essa confluência de
crises, que vem se apresentando como mais ou menos vigor aqui e ali, tem
Abstract: This paper begins by discussing a classical theme in epistemology, namely analogy, concept,
and theory using. It explores a contemporary perspective on scientific practies, Including some aspects
of philosophical thinking. So it seeks to rekindle the always necessary debate on theory, analogy and
concept about scientific production based on supradisciplinary and transparadigmatic approaches.
In order to do so, we draw from different areas of scientific knowledge, classical and contemporary
sociology, elements of biology, aspects of cybernetics, in order to demonstrate that science, considering
its multiple disciplines, increasingly exchanges analogical reasoning. This is done to account for the
growing complexity of current scientific knowledge.
Keywords: Social sciences. Natural sciences. Theory and concept. Analogy and complexity.
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22
Recebido: 28/03/2017
Aceito: 23/02/2020
Resumo: Arthur Schopenhauer possui uma concepção acerca da natureza do conceito que atravessa
o seu pensamento, desde o início de sua produção filosófica. Inicialmente abordado a partir de sua
acepção racional abstrata, em O mundo como vontade e como representação, o conceito adquire traços
mais profundos em função do sentimento (Gefühl). O conceito “não-conceito” sentimento determinará
os rumos da filosofia de Schopenhauer, ao evidenciar os limites da linguagem. A linguagem filosófica,
por consequência, exprime um paradoxo, pois pretende expressar em linguagem abstrata um conteúdo
concreto cuja natureza não pode ser por ela determinado. Por ser um construto conceitual abstrato, a
linguagem filosófica possui um estatuto ontológico secundário e, portanto, incompleto, em relação ao
conteúdo da realidade concreta. Este artigo pretende mostrar que os sentimentos são, nesse sentido, o
meio não conceitual que esclarece a própria natureza dos conceitos e, por consequência, a via não-filosófica
que paradoxalmente melhor expressa o conteúdo da filosofia. No registro do sentimento, Schopenhauer
reconhece na linguagem musical o âmbito de justificação adequado da linguagem filosófica.
Palavras-Chave: Schopenhauer. Conceito. Sentimento. Filosofia. Música.
Introdução
O “conceito” é um produto da racionalidade, constructo racional
caracterizado pela abstração, fixação, de conteúdo antes instável e mutável
que agora se torna estável e perene. A natureza estática do conceito confere
a ele uma vantagem: torna possível a elaboração de enunciados permanentes
acerca da realidade, a despeito da impermanência das coisas concretas. Por
meio da linguagem, permite a comunicação, o desenvolvimento das culturas
e, principalmente, o desenvolvimento das ciências e da filosofia. Todavia,
conforme constata o filósofo Arthur Schopenhauer, a natureza cognitiva
http://dx.doi.org/10.1590/0101-3173.2020.v43n1.10.p173
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2
Em todas as referências, tomaremos a última publicação das obras trabalhadas, pois não é objetivo
deste artigo uma reconstrução histórica dos conceitos de Schopenhauer.
2015a, p. 484), constatação de que entre nós e as coisas está sempre o nosso
aparato cognitivo, pelo que elas não podem ser conhecidas em si mesmas.
Nisto consiste a chamada “revolução copernicana” da filosofia, a saber, não
somos nós que estamos no tempo e no espaço, mas o tempo e o espaço é que
estão em nós (BARBOZA, 2010, p. 77). Para Kant, o conhecimento pode
ser dividido em duas etapas: na primeira, os dados do mundo exterior são
recebidos pela sensibilidade, faculdade receptiva, quando são filtrados pelas
duas formas puras da sensibilidade, espaço e tempo. Em Kant, essa etapa
não tem sentido cognitivo para o indivíduo sem a segunda, a aplicação das
categorias ou conceitos puros do entendimento (classificados por qualidade,
quantidade, modalidade e relação). Aqui, a faculdade do entendimento, ativa
e espontânea, aplica aqueles conceitos aos dados da sensibilidade, resultando
no conhecimento em sentido próprio. Em suma, enquanto, para Kant,
a sensibilidade é a faculdade das intuições empíricas e o entendimento a
faculdade do juízo e dos conceitos, para Schopenhauer, o entendimento é a
faculdade intuitiva e a razão, a faculdade dos juízos e conceitos. Schopenhauer
resume a tábua kantiana de categorias em apenas uma, a causalidade, única
autêntica forma da intuição empírica da tábua, alegando serem as demais
categorias “janelas cegas” somente derivadas (SCHOPENHAUER, 2015a, p.
517-518).
Isso nos leva ao motivo de um afastamento ainda mais significativo
de Schopenhauer em relação ao pensamento kantiano: o estabelecimento da
intelectualidade da intuição. Ser representação, Vorstellung (Stellung, “algo
colocado” + Vor, “diante de”), corresponde a algo interpretado pelo intelecto
– ou, o que é equivalente, pelo cérebro.3 Essa posição pode ser resumida na
sentença Alle Anschauung ist eine intellektuale, “toda intuição é intelectual”,
quer dizer, já na mera apreensão sensível da realidade o entendimento aplica
suas formas ativamente, a exemplo da conclusão intelectual operada na visão
(SCHOPENHAUER, 2003, p. 32ss). Em uma acepção mais ampla, ainda,
toda intuição é visual, na medida em que o distanciamento e o alcance da mera
4 Ademais, faço aqui aludir à etimologia de Anschauung, em cujo radical encontramos o verbo schauen,
“ver”, e Schein, brilho, “aparência” ou “ilusão”.
5 Originalmente intitulada Ueber die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde, a tese doutoral
de Schopenhauer agora conta com uma tradução brasileira realizada por Oswaldo Giacoia Jr. e Gabriel
Valladão Silva, no prelo até o momento de escrita do presente artigo (SCHOPENHAUER, 2019).
6 No registro da realidade submetida ao princípio de razão, “realidade” diz-se “efetividade”
(Wirklichkeit), isto é, a realidade submetida ao espaço, ao tempo e à causalidade, expressão da necessidade
(Nothwendigkeit) empírica. Nesse registro, a regularidade da conexão causal expressa a realidade,
enquanto a sua irregularidade expressa ilusão – para esse tipo específico de ilusão, Schopenhauer utiliza
a expressão Schein. Todavia, a realidade efetiva é, de um ponto de vista metafísico mais amplo, também
ilusão – para esse sentido de ilusão, Schopenhauer reserva a expressão Erscheinung.
7 Fernando de Sá Moreira (2013, p. 281) elucida a verdade lógica com precisão: “Tudo se passa de
acordo com a distinção tradicional entre verdade e validade na lógica. A razão é capaz de montar um
sistema de juízos inverídicos, mas em que a forma lógica permita extrair conclusões válidas. Neste caso,
a verdade lógica se baseia justamente na forma do silogismo e não se preocupa com a veracidade de
cada um dos juízos.”
8 Na quarta verdade, o próprio princípio de razão do conhecer é um dos fundamentos metalógicos,
formulado nos seguintes termos: “a verdade é a relação de um juízo com algo fora dele, que é sua razão
suficiente.” (cf. SCHOPENHAUER 1911-1942b, p. 216).
11
Para uma abordagem da íntima relação entre teoria do conhecimento, estética e ética na filosofia de
Schopenhauer, cf. SILVA, 2018.
12
Paráfrase de Schopenhauer da afirmação de Leibniz da música como um exercitium arithmeticae
occultum nescientis se numerare animi, “exercício oculto de aritmética no qual a alma não sabe que
conta.” (SCHOPENHAUER, 2015a, § 52, p. 296).
soa como o seu comentário mais perfeito e na interação com as demais artes a
música seja sempre a companhia mais agradável.
Dito de outra forma, a música é uma linguagem que estabelece uma
comunicação direta da aparência com a essência, vontade em si, e o sentimento
possibilita o meio para a passagem (Übergang) de um âmbito ao outro. Ora,
não era essa a dificuldade intransponível de toda filosofia?
Consciente disso, Schopenhauer especula: se a música expressa
“com grande precisão e verdade” a essência do mundo, explicitada pela
filosofia sob o conceito “vontade” e, além disso, a filosofia é “a correta
e plena repetição e expressão da essência do mundo em conceitos os mais
universais”, então, supondo-se uma explicação detalhada da música, “uma
repetição exaustiva em conceitos daquilo que ela exprime em tons”, essa seria
uma explicação em conceitos do próprio mundo, ou seja, “seria a verdadeira
filosofia” (SCHOPENHAUER, 2015a, § 52, p. 306). O supremo grau de
compreensibilidade da música, compreensível mesmo entre os animais menos
complexos, confere-lhe uma importância superior a qualquer outra em O
mundo como vontade e como representação. Não à toa, a melhor analogia para
a unidade metafísica da natureza é um acorde musical, que faz corresponder
toda a multiplicidade de vozes ao mesmo tom fundamental. Com efeito, a
importância da música no pensamento metafísico de Schopenhauer resulta
no reconhecimento de um âmbito de justificação possível para o discurso
filosófico, a prova definitiva da verdade filosófica e, portanto, a solução possível
do paradoxo da filosofia.
Considerações Finais
A vontade em si possui uma natureza alheia às formas do conhecimento,
pois é originariamente anterior a elas e se apresenta na forma de um problema
irresoluto para a razão, já que não pode ser expressa pela via dos conceitos
abstratos, estofo da linguagem, das ciências e da filosofia. Por isso mesmo, a
vontade tem de ser expressa apenas negativamente, pelo conceito de sentimento,
este “não-conceito” que acolhe em seus exemplos a parte exterior à esfera do
conceito. Desse modo, a consciência de si nos leva imediatamente à raiz do
princípio de razão suficiente, a vontade, um fundamento sem fundamento
do agir. Essa verdade filosófica é radicalmente distinta das outras verdades e
não pode ser, assim, demonstrada; todavia, torna-se possível por meio dela a
Abstract: Arthur Schopenhauer has a notion about the nature of the concept that runs through
his thinking since the beginning of his philosophical production. Initially approached from its
abstract rational meaning, in The world as will and representation, the concept acquires deeper traces
from sentiment (Gefühl). The “non-concept” concept of sentiment will determine the direction of
Schopenhauer”s philosophy by highlighting the limits of language. The philosophical language,
therefore, expresses a paradox, since it intends to manifest, in abstract language, a concrete content,
whose nature cannot be determined by it. As an abstract conceptual construct, philosophical language
has a secondary and, thus, incomplete ontological status in relation to the content of concrete
reality. Sentiments are the non-conceptual medium that clarifies the nature of concepts itself, and,
consequently, the non-philosophical way that paradoxically best expresses the content of philosophy.
In the recording of sentiment, Schopenhauer recognizes in musical language the proper justification
scope of philosophical language.
Keywords: Schopenhauer. Concept. Sentiment. Philosophy. Music.
Referências
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mestre distanciando-se dele. In: PINZANI, Alessandro; ROHDEN, Valério (org.). Crítica
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representação” de Schopenhauer. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, v. 9, n. 2, p.
4-15, 2018.
13
Recebido: 29/09/2017
Aceito: 11/11/2019
Resumo: Martin Heidegger desenvolveu uma análise da metafísica e da tecnologia que questionava
radicalmente seus pressupostos ontológicos. Contudo, para Peter Sloterdijk, autor de uma revisão
do motivo da clareira (Lichtung) heideggeriana intitulada Domesticação do ser: clarificando a clareira,
Heidegger padece daquilo mesmo que ele critica: uma pendência para a ontologia clássica que, desde
pelo menos Platão e Aristóteles, separa o ser e o nada, basila o princípio de bivalência na lógica,
excluindo qualquer terceira possibilidade, e permite os dualismos constitutivos da metafísica. Seguindo
o antropólogo Bruno Latour, o qual evidenciara que “modernidade” não é senão uma crença na cisão
entre os polos de forma e matéria, sujeito e objeto, natureza e cultura, também Sloterdijk vai atribuir
a Heidegger a pendência à ontologia clássica, elevada ao nível da cisão entre o ôntico e o ontológico.
Diante disso, o que sugere Sloterdijk? Uma alternativa à ontologia clássica na cibernética de Wiener
e Günther, reatando os laços, desfeitos por Heidegger, entre ontologia e antropologia. Este trabalho
tem por intenção articular a crítica de Sloterdijk, a investigação de Latour e a revisão ontológico-
lógica de Günther, a fim de assentar bases para compreensão do projeto sloterdijkiano de se pensar a
antropologia a partir de pressupostos cibernéticos.
Palavras-Chave: Antropologia. Cibernética. Lógicas não-clássicas. Metafísica. Ontologia.
http://dx.doi.org/10.1590/0101-3173.2020.v43n1.11.p189
This is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License.
4 A princípio, pode parecer arbitrária a colocação, lado a lado, das discussões de Sloterdijk e de
Latour, preocupados com campos de problemas, de início, tão diversos. Porém, logo na leitura das
primeiras páginas de Domesticação do ser: clarificando a clareira (2001, p. 142-234) — onde o filósofo
alemão questiona a precedência do ontológico na diferença heideggeriana —, a passagem citada logo
mais, extraída do livro Jamais fomos modernos: ensaio de uma antropologia simétrica (2013), escrito
pelo pesquisador francês, em 1994, e que, nas palavras de Sloterdijk, “se afasta com necessária clareza
com relação ao pietismo não empírico do recordar-do-ser [Seins-Andenkens]” (2001, p. 160, tradução
nossa), aparece como indício de que suas empresas são afins. Dessa citação, seguiram-se, nos anos
seguintes, artigos de Latour (cf. 2009a; 2009b) os quais afirmavam haver, entre o conceito central da
antropologia latouriana, “redes”, e as “esferas” de Sloterdijk, uma forte confluência, a ponto de serem
conceitos, em certo sentido, transmutáveis. O diálogo entre os dois, situado, entre outros, sob o pano
de fundo da antropologia simétrica e das pesquisas em ontologia cibernética, e que, do ponto de vista
de Sloterdijk, demonstra a pertença de ambos, junto a pensadores como Gilles Deleuze e Michel
Serres, a uma espécie de “gigantomaquia [Gigantenkampf] do pensamento” (2001, p. 218, tradução
nossa), reaparecerá com frequência, doravante, neste artigo.
5 Ontologia monovalente (ou “clássica”, como a ela se refere Gotthard Günther [2004]), significa
simplesmente uma ontologia que tem por único valor o “ser” (em sentido heideggeriano: o ente)
como “realidade”, e opõe a isso o não-ser (isto é, o “não-ente”, o “nada”, que não é valor nenhum, mas
apenas o negativo). Lógica bivalente, por outro lado, é aquela lógica, comumente chamada de “lógica
clássica”, a qual opera por dois únicos valores-verdade, a saber, pela lei da não-contradição e pela recusa
de um terceiro valor. A lógica bivalente corresponde (mas não se confunde, por ser de outro domínio)
à ontologia monovalente, na medida em que seu valor de verdade serve para verificar a ocorrência do
ente no domínio do real, enquanto seu valor de falsidade atesta sua não ocorrência.
6
O intenso diálogo de Heidegger com Aristóteles não se restringe aos problemas da ontologia. Também
a filosofia prática aristotélica é decisiva para a elaboração de algumas noções heideggerianas, dentre as
quais se destaca a noção de facticidade, central em Ser e tempo. A esse respeito, cf. VOLPI, 2013.
provém, antes, da Teoria geral dos sistemas, publicada em 1945, por Ludwig
von Bertalanffy (1969), ramo da biologia moderna que teve influência sobre
a cibernética, a ecologia, a sociologia, o direito, a psicologia, a neurofisiologia
do conhecimento, a medicina, a psiquiatria, as teorias da administração, a
economia política, a química e a física (LIMA, 2005, p. 253).7 Além disso, a
cibernética de Wiener (1985) e Ashby (1956) constituiu-se em torno da busca
de “desenvolver uma linguagem e técnicas” que os capacitassem a lidar “com o
problema do controle e da comunicação em geral, e a descobrir o repertório de
técnicas e ideias adequadas para classificar-lhe as manifestações específicas sob
a rubrica de certos conceitos.” (WIENER, 1958, p. 17). Cabe, no entanto, o
questionamento sobre que tipo de controle e que tipo de comunicação são esses,
e se essa priorização do controle e da comunicação implica necessariamente o
“perigo” que o filósofo de Meßkirch atribui ao niilismo da Gestell.
Controlar significa, para a cibernética, desenvolver estratégias de
ordenação contra “a desorganização em trânsito” (WIENER, 1958, p. 17) a
que está sujeita a comunicação. Pressuposto, aí, está o conceito, emprestado
pela cibernética da termodinâmica8, de entropia, isto é, de desorganização ou
desinformação, ou, em outras palavras, “desordem crescente em um sistema
em virtude da perda de potencial energético (isto é, degradação).” (MORAN,
2010, p. 414). “A tendência característica da entropia”, em um sistema fechado
qualquer, “é a de aumentar” (WIENER, 1958, p. 14) até atingir um valor
máximo”. Por conseguinte, entropia vem ligada à probabilidade. “Conforme
aumenta a entropia,” segundo Wiener,
[...] o universo, e todos os sistemas fechados do universo, tendem
naturalmente a se deteriorar e a perder a nitidez, a passar de um estado de
mínima a outro de máxima probabilidade; de um estado de organização
e diferenciação, em que existem formas e distinções, a um estado de caos
e mesmice. No universo de Gibbs, a ordem é o menos provável e o caos o
mais provável. (WIENER, 1958, p. 14).
7
Sobre a influência do neoplatonismo no nascimento da teoria dos sistemas e da cibernética, cf.
LIMA, 2005, p. 253-286. A trilogia Esferas de Sloterdijk, sobretudo no final do primeiro volume
(SLOTERDIJK, 1998) e ao longo de seu segundo volume (id., 1999), está salpicada de referências
a Plotino, Agostinho, Nicolau de Cusa, Leibniz e outros, essenciais para a “história da esfera”
sloterdijkiana, os quais aparecem já na epígrafe do livro de von Bertalanffy (cf. 1969, p. v), levando,
segundo Lima, a “tocha olímpica” das heranças platônica, neoplatônica e mística até os tempos atuais
da teoria dos sistemas. Sloterdijk, por sua vez, parece reconhecer a mesma dívida.
8
Mais precisamente, pela leitura estatística, físicos como Willard Gibbs, James C. Maxwell e Ludwig
Boltzmann fizeram da termodinâmica (cf. WIENER, 1958, p. 10). Essa leitura, por si só, já constitui,
segundo Wiener, uma ruptura com a física newtoniana e, portanto, requer, como a física quântica,
uma outra relação com a referência ao mundo físico em geral.
classicamente exemplificada pelo motor térmico [heat engine], onde a energia disponível (i.e. entropia
negativa) é uma função de uma diferença entre duas temperaturas. Nesse exemplo clássico, ‘informação’
e ‘entropia negativa’ se sobrepõem.” (BATESON, 1999, p. 381, tradução nossa).
11
Em francês, no original. “Na falta de algo melhor”, em tradução livre.
12
Aqui, será necessário um brevíssimo excurso metodológico com o uso de notações simbólicas
da lógica matemática, para facilitar a explicitação dos argumentos de Günther. Assim, “p”, “q” etc.
indicarão proposições atômicas, “→” indicará implicação (“se p ocorre, então q ocorre”), “≡” indicará
implicação mútua (“p ocorre se e somente se q ocorrer”), “~” indicará negação (“p não ocorre”),
“v” indicará disjunção inclusiva (“p ocorre ou q ocorre ou ambos ocorrem”), “v” indicará disjunção
exclusiva (“ou p ocorre, ou q ocorre”), e “^” indicará conjunção (“p e q ocorrem”).
13
Essa lógica, a qual sustenta, conforme Günther, a própria tradição do pensamento ocidental, é
preciso retomar de maneira sumária e com linguagem formal, ampara-se na duplicidade de valores-
verdade, verdade e falsidade, e nos princípios de identidade, (p ≡ p), que reproduz logicamente, pela
complementaridade da lei da não contradição, ~(p ^ ~p) e do terceiro excluído ou tertium non datur,
(p v ~p), a monovalência ontológica e a bivalência de valor-verdade lógica. Sloterdijk faz referência, ao
citar Günther, à desobediência, sobretudo, à última (cf. SLOTERDIJK, 2001, p. 216-218).
15
Nas fórmulas De Morgan, o conectivo complementar ao da conjunção é o da disjunção inclusiva,
não exclusiva, pois a última é totalmente inversa à expressão conectiva: (p v q) diz simplesmente
que não há possibilidade de (p ^ q) — enquanto (p v q) admite ¼ de possibilidades de ocorrência
simultânea de (p ^ q).
16
“Monstro”, aqui, também é sinônimo de “híbrido”. O termo “monstruoso [Monströs]”
(SLOTERDIJK, 2001, p. 151, tradução nossa), expresso no alemão também pela palavra Ungeheuer, o
qual significa, além disso, “desmesurado”, será importante para Sloterdijk, sobretudo em Esferas III (cf.
id. 2004: “Aparece o monstruoso [Ungeheuer]” in “Prólogo: Nascimento da espuma”, p. 79), e coaduna
com a explicação de Latour (cf. 2013, p. 53) sobre a proliferação dos híbridos na contemporaneidade.
Para Sloterdijk, os termos são intercambiáveis, como quando, em Domesticação do ser, o autor se refere
à “trivialização do monstruoso [Ungeheuren]” (SLOTERDIJK, 2001, p. 152) e, em nota, cita uma
obra de Friedrich G. Jünger “sobre a crítica do monstruoso trivial [Trivialmonströsen] no século 20”
(ibid. nota 13). Uma tradução interessante a Ungeheuer, a que nos referiremos quando necessário, pode
ser dada pelo termo “descomunal”, pois ele parece implicar ambos os sentidos em uma confluência
“titânica”, diversa da ordem “olímpica” a que remete Heidegger com seus “deuses”; além disso, o
termo Geheuer pode ser traduzido aproximadamente como “certo”, “comum”, “normal”, como na
frase “das ist mir nicht ganz geheuer” (“isso não me é muito certo” ou, de modo menos literal, “isso me
parece muito suspeito”). Logo, des-comunal é o que foge ao comum, ao normal, confluindo com a
afirmação de que “o extraordinário [Äußerste] aparece, se aqui, no entanto, cabe falar em aparecer, na
cotidianização do monstruoso [Veralltäglichung des Monströsen].” (ibid. p. 151, tradução nossa) Logo,
o período de “situações complexas” ou “médias”, e não mais “extraordinárias”, chegaria no momento
em que o descomunal teria se tornado comum, cotidiano e, portanto, imperceptível, como nas décadas
que sucederam, segundo Sloterdijk, à Segunda Guerra Mundial, quando, não mais explicitando os
acontecimentos extremos em ocasiões pontuais, tornou-se algo que não mais espanta e assombra (cf.
ibid. p. 151-152).
17
Esse uso, por Latour, do conceito cibernético de “caixa-preta” (black box) exemplifica sua afinidade
com as discussões da cibernética — conceito que, a propósito, também aparece em Bateson (1999)
e que demonstra bem o que está em jogo: um sistema de tão alta complexidade e hibridismo que, na
cibernética, é simbolizado simplesmente por uma caixa preta. “A expressão caixa-preta é usada em
cibernética sempre que uma máquina ou um conjunto de comandos se revela complexo demais. Em
seu lugar, é desenhada uma caixinha preta, a respeito do qual não é preciso saber nada, senão o que
nela entra e o que dela sai.” (LATOUR, 2000, p. 14). Flusser, inclusive, em sua Filosofia da Caixa
Preta (2011), escrito pela primeira vez em português, pensa no aparato fotográfico (e, por extensão,
em toda tecnologia pós-histórica) como uma caixa-preta que ilude o fotógrafo: o fotógrafo, ao pensar
que controla o aparelho (isto é, que é um sujeito autônomo e inaugurador de uma cadeia causal de
acontecimentos), como um funcionário do aparelho, não percebe que ele está, contudo, restrito à
programação complexa já inscrita no aparelho — e, falando com Latour, a todo o coletivo que o
aparelho pressupõe e esconde. “Pelo domínio do input [entrada] e output [saída], o fotógrafo domina
o aparelho, mas pela ignorância dos processos no interior da caixa, é por ele dominado.” (ibid. p. 44).
Latour (2013) inclusive cita a câmera Kodak automática como exemplo de caixa-preta ecoando Flusser
— e o atualizando, já que Flusser tratava de câmeras analógicas dos primórdios da fotografia já como
caixas-pretas, enquanto Latour argumenta que a complexidade da câmera analógica automática (e,
poderíamos dizer, hoje, da câmera digital) enquadra o aparato mais rigorosamente no conceito strictu
de caixa-preta; “não é simplesmente uma questão de número de aliados, mas de sua atuação como um
todo unificado.” (ibid. p. 217) Se seguirmos a suspeita de que a concepção de técnica do antropólogo
francês em muito se aproxima à de Sloterdijk (como discorreremos mais abaixo), abrem-se mais pontes
interessantes entre as obras de Sloterdijk e Flusser, para além da “filosofia da migração” do pensador
tcheco-brasileiro, citada por Sloterdijk em Esferas III (cf. FLUSSER, 2003; SLOTERDIJK, 2004).
sua ausência, “nada”, sem considerar, ao menos, um segundo valor ontológico, associado a, ao menos, um
terceiro valor lógico. Com efeito, no lugar do “nada”, Heidegger teria introduzido o “ser” ou o Ereignis
como não-fundamento (Ab-grund) do ente na totalidade — mas o ente continuaria sob o primado da
monovalência: ou “ser” (ente), ou nada (Ereignis). Sloterdijk (o qual reconhece que a obra de Heidegger
abre essa possibilidade) e Latour parecem sugerir, com uma ontologia do híbrido, não a abolição de uma
diferença ontológica, mas sua imanência na própria hibridagem. Talvez se possa interpretar que um
segundo valor ontológico, nesse sentido, seria a inserção do ser no domínio não do mero ente, mas
da “realidade” como um todo — abdicando-se de se falar em “nada”. Ou melhor: “admitimos não
apenas ser mas também nada. Ser é e nada é. Além do sim e do não, em um nível teórico, uma terceira
opção sempre existe. Através disso, nós damos à realidade da diferença uma vantagem sobre o valor da
identidade e deixamos serem reais a diferença, o singular e o nada.” (SLOTERDIJK, 2016, p. 314-315,
tradução nossa) Assim, o “objeto” (ou melhor, a “coisa”, que congrega todo um coletivo) já traria consigo
ôntico e ontológico, bem como natural e cultural.
20
É necessário ressaltar que a “virada ontológica” da antropologia não necessariamente se dá do
mesmo modo em diferentes antropólogos, e que diversas vezes discordâncias absolutas com relação a
pressupostos fundamentais estão em jogo entre os nomes citados, como, por exemplo, a divergência
entre Viveiros de Castro e Descola, a respeito do animismo (cf. VIVEIROS DE CASTRO, 2015,
p. 77ss.), ou a divergência entre os pressupostos antropológicos de Sloterdijk e Viveiros de Castro, a
despeito da proximidade de ambos com a obra de Latour (cf. PITTA, 2019). Quanto à multiplicidade
de posições dentro disso que costumam chamar de “antropologia pós-estruturalista” ou “virada
ontológica”, cf. CHARBONNIER; SALMON; SKAFISH, 2017; HOLBRAAD; PETERSEN, 2017.
21
Vale citar aqui Flusser, para quem a entropia, isto é, a “segunda lei da termodinâmica, [...] diz que
toda matéria tende a perder a sua forma (sua informação).” (FLUSSER, 2017, p. 198). A informação
e a entropia estariam, assim, entre matéria e forma, na própria tensão entre “in-formação” e “de-
formação”.
22
Extrapolando, de acordo com Günther, para além dos valores “verdadeiro” (1) e “falso” (2), para
valores de tipo “3”, “4” etc. Se “1” e “2” se referem a objetos, passíveis de verificação, “3” pode aludir
ao ambiente desses objetos, por “exclusão” dos objetos, e “4”, ao sujeito, por “exclusão” do ambiente.
Chega-se a esses valores, grosso modo, admitindo o terceiro excluído e transformando o operador de
negação em um operador “transjuncional”: a negação de 1 (verdade) gera 2 (falsidade), contudo, a
negação de 2 gera 3, a de 3, 4, e assim sucessivamente (cf. GÜNTHER, 2004, p. 57-59).
23
Em francês, no original: “Nous sommes sur un plan où il y a principalement la technique.”
(SLOTERDIJK, 2001, p. 225)
intenção. A Gestell heideggeriana parece flertar com a primeira, não fosse pelo
fato de que ela não se reduz a um instrumento qualquer. Contudo, levando-se
em conta que a Gestell é o próprio modo de desencobrimento da clareira, destino
do ser, não é difícil associá-la a “um monstro nascido entre nós que já devorou
suas parteiras involuntárias”, como pensa Latour (2001, p. 203), diferentemente
do desencobrimento como ποίησις, no qual, em zelo à quadratura, vigora a
liberdade do humano enquanto pastor do ser.
Para o teórico francês, nenhuma das concepções dá conta da emergência
dos híbridos, como a situação do cidadão portando a arma (ou do fotógrafo
portando sua câmera, de Flusser), tornado “arma-cidadão” ou “cidadão-arma”
(LATOUR, 2001, p. 206), e escondem o próprio teor coletivista da técnica,
quer dizer, sua condição de congregadora ou agenciadora de um conjunto
de atuantes e aliados, “sujeitos” e “objetos”, humanos e não-humanos. Nesse
sentido, é necessário relevar que a técnica, vista para Latour do prisma de um
modus operandi (2001, p. 240), é nada mais do que uma mediação que permite
o coletivo e que depende de uma mútua interferência e modificação entre os
polos (2001, p. 205-208), de uma composição de diferentes agentes, humanos
e não-humanos, implicados todos na “caixa-preta” de dado sistema, no qual a
ação é resultado do próprio coletivo de atuantes (2001, p. 208-210), de um
entrelaçamento e condensação de espaço e tempo (2001, p. 210-213), no qual
as ações dos vários agentes “subsistem (no tempo) e se estendem (no espaço)”
(2001, p. 240), agregando várias etapas na concretização do aparato, e de uma
transposição contínua de fronteiras entre signos e coisas (2001, p. 213-219),
significados e significantes, que faz com que a relação entre os diferentes atores
seja de uma qualidade tanto simbólica quanto concreta, nas duas direções (dos
não-humanos para os humanos e no sentido inverso). Logo, nem a arma nem
o cidadão são, sozinhos, polos determinantes na construção do coletivo “arma-
cidadão”, mas participam mutuamente, em interferência recíproca, na relação.
Assim, a técnica, no sentido de mediação, não é o oposto da ποίησις
dos antigos artesãos, que se constituía do mesmo modo, seguindo as mesmas
etapas (LATOUR, 2001, p. 223-224), e a distinção quase de natureza entre
uma técnica originária enquanto uma produção que deixa vigorar o ente no
seu ser próprio e uma técnica moderna, tecnologia, enquanto provocação que
expõe o ente à luz, sob a faceta esvaziada de mero estoque, não faz mais sentido,
devendo ser subvertida (LATOUR, 2001, p. 223). “A diferença”, para Latour,
“consiste em que o último [a técnica moderna] translada, permuta, recruta
e mobiliza um número maior de elementos mais intimamente conectados,
26
Esse termo não possui nada de misterioso. Com ele (ou com seu relativo, “pré-sapiens”),
simplesmente, Sloterdijk aponta especulativamente para certa espécie de vivente que, participando
inconscientemente de determinadas etapas da antropogênese, transfigurou-se na espécie que
costumamos chamar de “humano” (ou homo sapiens). Ele cumpre uma função “fantasticamente
reconstruída” e “paleo-ontológica” do gênero “homo”, que os paleontólogos costumam utilizar para
definir a cisão entre o humano e o primata primitivo Australopithecus (cf. MCHENRY, 2009, p. 242)
— com a diferença de que, para Sloterdijk, pensar o pré-humano não implica em pensar em um gênero
ou espécie “a meio caminho da evolução”, como se visasse o humano, mas serve apenas como uma
das duas âncoras (o pré-humano e a clareira) para reconstruir especulativamente uma antropogênese
ôntico-ontológica. Aqui, fica claro que um dos pressupostos de Sloterdijk está na tese paleontológica
de evolução unirregional do homo sapiens, que postula que o humano surgiu primeiramente na África
e, só posteriormente, se difundiu pelos continentes, substituindo outras espécies como o homo erectus e,
posteriormente, o homo neanderthalis. Apesar de fortes evidências sustentarem a tese unirregional, não
há consenso absoluto entre os paleontólogos, atualmente, na disputa entre as teses do unirregionalismo
e do multirregionalismo (isto é, de que o homo sapiens possa ter surgido em outras regiões do planeta
quase que simultaneamente).
Abstract: Martin Heidegger developed an analysis of metaphysics and technology that questioned its
ontological presupositions. However, Peter Sloterdijk, author of a revision of the Heideggerian clearing
(Lichtung), under the title of Domestication of being: clarifying the clearing, argues that Heidegger suffers
from the same illness he criticizes: an abeyance relative to classical ontology, which, after Plato and
Aristotle, separated Being and Nothingness, grounded the logical bivalence, excluding any third
possibility, and allowing for the metaphysical dualisms. Following the anthropologist Bruno Latour,
who has showed that “Modernity” is a belief in the split between the poles of form and matter, of
subject and object, of nature and culture, Sloterdijk also assigns to Heidegger the dependence on
classical ontology on the level of the split between ontological and ontic. In this respect, what does
Sloterdijk suggest? An alternative to classical ontology in the cybernetics of Wiener and Günther,
in order to reattach the links broken by Heidegger between ontology and anthropology. This work
aims to articulate Sloterdijk’s critique, Latour’s enquiry and Günther’s ontological-logical revision, in
order to open field for an understanding on the Sloterdijkian project of thinking anthropology from
cybernetical hypotheses.
Keywords: Anthropology. Cybernetics. Non-classical Logics. Metaphysics. Ontology.
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Klostermann, 1985 (Col. “Gesamtausgabe”, v. 12).
Recebido: 20/07/2017
Aceito: 24/10/2019
Ulysses Pinheiro 1
Introdução
Segundo o diagnóstico que Carl Schmitt faz do liberalismo político, a
ausência de transcendência que caracteriza sua forma estrutural não permite
a instituição de um mecanismo de representação estatal forte o bastante para
servir como mediador das relações existentes no interior do corpo social. Neste
artigo, mostraremos que os modernos instrumentos militares de vigilância e
ataque, conhecidos popularmente como drones, realizam a última transformação
do liberalismo em direção à imanência total dos meios de controle político. De
fato, se, de acordo com Schmitt, o Estado moderno encontrou sua estabilidade
graças ao domínio dos mares, a partir do século XVI, de sorte que o poder
político passou a ser exercido não apenas no meio terrestre, mas também no
1 Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); bolsista de
Produtividade em Pesquisa do CNPq. https://orcid.org/0000-0002-7687-1465 - E-mail:
ulyssespinheiro@gmail.com
http://dx.doi.org/10.1590/0101-3173.2020.v43n1.12.p213
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esse último, por sua vez, imaginara sua obra (figura 2) em uma visão ocorrida
durante suas preces2.
Figura 2: Cristo de San Juan de la Cruz
4 “Alle prägnanten Begriffe der modernen Staatslehre sind säkularisierte theologische Begriffe.”
SCHMITT (2004, p. 43).
5 Cf. SCHMITT (1970, p. 58). Nesse trecho, Schmitt propõe uma reciprocidade total entre os
domínios teológico e político, o que pareceria contrariar a interpretação que ofereço a seguir para a
catamorfose, na qual haveria uma assimetria essencial entre os dois domínios. De fato, reproduzindo
nesse ponto parte do vocabulário de Ernest Topitsch, Schmitt refere-se a um jogo de espelhos [Spiegelung
und Rückspiegelungen] que oporia simetricamente o teológico e o político. Creio, no entanto, como
procuro mostrar na sequência do texto, que o isomorfismo aí tematizado é compatível com a tese de
uma assimetria essencial entre os dois âmbitos, com vantagem para a eminência da teologia.
6
Sigo aqui a interpretação de Franco de Sá (2009). Ainda assim, seria preciso introduzir algumas
nuances na interpretação adotada. De fato, embora a obra de Schmitt seja caracterizada por um
decisionismo marcante desde o período de Weimar, com Teologia política II, na década de 1970, fica
claro que tal decisionismo não se confunde com o domínio do puramente arbitrário, já que o critério
de escolha é a forma da ordem, contra a anomia liberal. Quer dizer, é a forma institucional da Igreja
que dá o modelo da forma estatal e do poder soberano. Sobre isso, deve-se consultar sua obra de 1923,
Römischer Katholizismus und politische Form.
7
Que essa decisão fundamental pela forma estatal seja a única modalidade de racionalidade possível
diante do imanentismo moderno não elimina inteiramente a circunstância de que, na base dessa
alternativa ao liberalismo político, encontramos uma espécie peculiar de pensamento mítico, baseado
na manifestação visível de Deus em sua Igreja – ou seja, de um pensamento que muitos liberais não
hesitariam em denominar “irracional”.
8
SCHMITT (2014, p. 46). Sobre a preferência de Schmitt pelo termo grego nomos ao termo “lei”
(Gesetz), cf. p. 65-71; segundo Schmitt, tal preferência se deve ao fato de a primeira conter em seu
significado a ideia de localização – “O nomos é, portanto, a forma imediata na qual a ordem política e
social de um povo se torna espacialmente visível.” (p. 69).
9 Cf. Drones Wars: The Full Data. The Bureau of Investigative Journalism. 2017. Disponível em: https://
www.thebureauinvestigates.com/stories/2017-01-01/drone-wars-the-full-data. Acesso em: 14 abr.
2017.
10
Pentagon Plans for Cuts to Drone Budgets. 2014. Disponível em: https://www.dodbuzz.
com/2014/01/02/pentagon-plans-for-cuts-to-drone-budgets/. Acesso em: 14 abr. 2017.
11
Israel já tenta controlar tecnologia militar brasileira. Outras Mídias. 29 ago. 2016. Disponível em:
http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/como-israel-quer-controlar-tecnologia-
militar-brasileira/. Acesso em: 24 abr. 2017. Para uma visão sinóptica sobre a posse e uso dos drones
militares, cf. How We Became a World of Drones. World of Drones. Disponível em: https://www.
newamerica.org/in-depth/world-of-drones/. Acesso em: 14 abr. 2017.
tal como uma prótese do poder soberano, os drones militares podem tocar e
destruir os inimigos do Estado.12
No entanto, até que ponto o projeto de visibilidade total efetivado
na tecnologia dos drones anuncia uma novidade, do ponto de vista político?
Muito se tem dito sobre a nova configuração que os drones trazem para a
definição mesma de guerra, na medida em que eles reduzem a zero o risco de
vida das pessoas engajadas nas forças de ataque – de fato, sendo controlados
a milhares de quilômetros de distância, os militares que operam os drones em
bases aéreas nos Estados Unidos, por exemplo, podem terminar seu dia de
combate, eventualmente coroado por dezenas de mortes, buscando seus filhos
no colégio ou fazendo compras no supermercado a caminho de casa.
Como não examinaremos aqui os aspectos éticos da assim chamada
“guerra limpa” (para uma tal abordagem, pode-se consultar o livro recente de
Grégoire Chamayou, intitulado A Theory of the Drone, especialmente o capítulo
“Necroética”13), a questão formulada acima deve ser entendida como tendo
sido motivada sobretudo pela já mencionada suspeita quanto à real novidade
dos drones, em sua dimensão geopolítica. Sob esse aspecto, não é inteiramente
óbvio que estejamos vivendo em um contexto qualitativamente diferente do
que já se desenhava (aceitando novamente a cronologia de Schmitt) desde a
Primeira Guerra Mundial, identificando nela o fim da concepção europeia
de soberania. Nesse sentido, deve-se notar que veículos aéreos não-tripulados
foram extensivamente usados já desde a guerra de 1914: estereoscópios em
aviões capturavam os movimentos dos inimigos em fotos, as quais eram
posteriormente coladas conjuntamente para formar grandes mapas-mosaicos
do teatro de guerra. Em uma só batalha em 1916, por exemplo, a Real Força
Aérea britânica imprimiu cerca de 430.000 fotografias desse tipo.14 Um
exemplo de mapa-mosaico pode ser visto abaixo (figura 4)15:
12
Sobre uma análise dos drones como “próteses” e como “objetos metafísicos”, cf. Benjamin Noys,
Drone Metaphysics (2015).
13
CHAMAYOU (2015, p. 127): “Se há alguma coisa nova nessa situação, ela poderia residir no fato de
que a invulnerabilidade quase perfeita, em termos práticos, do lado dominante era, no final do século
XX, estabelecida como a norma ética e política dominante.”
14
SHAW, Ian G. R. The Rise of the Predator Empire: Tracing the History of U.S. Drones. Understanding
Empire, 2014. Disponível em: https://understandingempire.wordpress.com/2-0-a-brief-history-of-u-
s-drones/. Acesso em: 14 abr. 2017.
15
(Air photograph No 5906. Sheet 51B N18 etc. Guemappe, Cherisy etc) © IWM (Q 17254).
do tempo; ora, sendo a velocidade aquilo que admite graus, toda a tecnologia
contemporânea de vigilância e de combate seria apenas uma forma cada vez
mais eficaz de administrar o intervalo entre observador e objeto, decisão e ação.
Portanto, de uma perspectiva que poderíamos chamar de “epistêmica”, seria
talvez mais prudente supor que a era do domínio do ar tenha permanecido
inalterada pelo menos desde o começo do século XX. Mas isso não nos impede
de tentar explorar algumas especificidades ligadas ao uso dos drones, as quais,
sem constituir uma ruptura com esse paradigma, lhe conferem uma particular
aceleração – e se, em alguns casos ao menos, diferenças quantitativas acabam
engendrando diferenças qualitativas, talvez, por outro lado, pudéssemos até
mesmo concluir que a era dos drones representa de fato uma nova realidade
política ou, pelo menos, realiza a completude da metamorfose em curso desde
o fim do nomos da Terra europeu. Para tanto, ao invés de centrar a análise sobre
a dimensão maquínica dos drones, manifesta em seu design específico, em sua
capacidade de voo ou em seu potencial balístico, todas elas características que
remetem mais facilmente a discussões éticas sobre a “guerra limpa”, façamos
um esforço prévio de tentar descobrir, nos próprios signos visuais produzidos
por eles, considerados em si mesmos, tais especificidades.
Antes de prosseguir nessa direção, no entanto, é preciso fazer uma última
ressalva, a saber: boa parte do que pode ser dito sobre as imagens capturadas
por drones aplica-se igualmente às imagens feitas por satélites, por oposição às
imagens obtidas a partir de aviões, helicópteros ou balões. Isso fica claro quando
consideramos o uso não-militar (o que não significa, obviamente, não-político)
dos satélites e drones empregados para delimitação de territórios ou para fins
comerciais, tal como para a agricultura, nos quais a questão sobre as vantagens
e desvantagens de cada uma das tecnologias ainda é muitas vezes debatida.19
A maior amplitude de visão e a maior facilidade logística para a obtenção de
imagens – independentemente de questões relativas, por exemplo, à invasão
do espaço aéreo de outras nações –, características dos satélites, são muitas
19
Ver, por exemplo, a página na Internet da firma Landpoint, dedicada à engenharia de óleo e gás,
na qual ela procura esclarecer seus clientes sobre os prós e contras das duas tecnologias: Satellite Versus
UAV Mapping: How Are They Different? Disponível em: http://www.landpoint.net/satellite-versus-uav-
mapping-how-are-they-different/. Acesso em: 22 abr. 2017.
Ver também o artigo Intercomparison of UAV, Aircraft and Satellite Remote Sensing Platforms for
Precision Viticulture, de Alessandro Matese et al. Remote Sensing, Suiça, v. 7, p. 2971-2990, 2015.
Também é significativo constatar que já se pensa em substituir os satélites por drones capazes de voar em
altitude elevada por longos períodos, alimentados por energia solar; sobre esse ponto, cf. Airbus Wants to
Replace Satellites With High-Flying Drones. Wired. Disponível em: https://www.wired.com/2016/06/
airbus-new-drones-actually-high-flying-pseudo-satellites/. Acesso em: 22 abr. 2017.
vezes compensadas pela maior qualidade das imagens feitas pelos drones, os
quais operam a uma distância muito menor do solo; a diferença entre ambos,
entretanto, não é inteiramente clara, pelo menos no que diz respeito apenas à
captura de imagens. Tanto os satélites quanto os drones permitem a vigilância
em tempo real; ambos também possibilitam que imagens em movimento sejam
focalizadas a distâncias variadas, a partir de um ponto de vista fixo.
Os drones são, certamente, mais úteis no nível da inteligência tática,
enquanto os satélites ensejam uma visão ampla do território e, por isso, facilitam
a percepção de mudanças estratégicas de larga escala ocorridas ao longo de um
maior período tempo. Se, ainda assim, for possível estabelecer uma distinção
significativa entre as imagens produzidas por drones e por satélites, será preciso
incorporar às imagens dos primeiros uma qualidade qualquer ausente das
imagens obtidas pelos últimos. Adiantemos desde já que procuraremos tal
diferença qualitativa em uma dimensão háptica característica das imagens
feitas pelos drones. Aqui é preciso atenção: não se trata apenas de acoplar, à
produção de imagens por drones, sua capacidade “tátil” de atingir os inimigos
através de seu poder de fogo, mas antes de encontrar, no interior mesmo das
imagens, uma dimensão tátil.20 Voltaremos a esse ponto mais adiante.
20
É possível adiantar desde já que será preciso levar em conta, para realizar essa assimilação do háptico
ao visual, recorrer às análises de Jacques Derrida, em seu livro Memórias de cego.
um todo ele mesmo movente – movente no tempo – pois, a cada novo elemento,
ele se reconfigura inteiramente (para usar um vocabulário clássico, não se trata
de um totum analítico, mas de um totum sintético). Podemos ver abaixo (figura
5) um fotograma do famoso filme O homem com uma câmera, de Vertov, de
1929, coordenando justamente a visão aérea do espaço à máquina-olho:
Figura 5: Chelovek s kino-apparatom, de Dziga Vertov
o que a torna, de direito, uma imagem-movimento é que ela pode ser reunida (‘montée’). Se Deleuze vê na
montagem (muito mais do que na câmera movente) a assinatura mesma do cinema, é porque a montagem
provoca uma mudança completa na perspectiva: a imagem não está mais apenas em sintonia com coisas
moventes, ela extrai e autonomiza o movimento dessas coisas, de modo a conectá-los a outros movimentos,
quer seja das mesmas coisas ou de coisas diferentes. Daí o caráter duplo da tomada: como uma imagem
enquadrada, ela contém os movimentos entre as diferentes partes de um conjunto; como uma imagem
reunida (‘montée’), ela se funde com esses movimentos, os quais se tornam válidos por si mesmos, separados
de seu suporte mundano (‘A tomada é movimento’).” (ZOURABICHVILI (2000), p. 143-144).
24
DELEUZE (1990b, p. 55): “Os falsos raccords são a própria relação não-localizável: as personagens
não os saltam mais, mas mergulham neles. Para onde foi Gertrude? Para os falsos raccords...”
25
Considerado isoladamente, esse fotograma poderia perfeitamente fazer parte de um filme que
pertencesse à era do cinema clássico; se, ainda assim, o reproduzimos aqui é apenas como um convite
ao leitor para rever essa tomada, no contexto da montagem que lhe dá sentido.
26
Seguindo de perto o Bergson de Matéria e memória, Deleuze assume como premissa que a
imagem-movimento está sempre conectada à “inteligência” psicomotora. Ainda que uma ação não
seja realizada atualmente em resposta a um estímulo externo provocado por imagens-movimento,
ele se esboça virtualmente como tendências imperceptíveis em direção a ações realizadas pelo corpo
de quem as percebe. Já a “intuição” nos permite uma representação adequada da duração, livre dos
constrangimentos da necessidade de agir no mundo material. Ver, sobre esses pontos, BERGSON
(1959, p. 171-179).
encontro, aliás, que explica a alegria incontida dos jovens soldados, quando
finalmente encontram uma situação de ataque. Nas páginas iniciais de seu livro
já mencionado acima, A Theory of the Drone, Chamayou reproduz uma série
de diálogos reais entre operadores de drones militares norte-americanos e seus
superiores27; o que é transcrito a seguir, ocorreu entre soldados observando, na
noite de 20 de fevereiro de 2010, imagens do Afeganistão feitas por drones e
retransmitidas em tempo real por satélites. Os soldados estão lotados na mais
importante base de drones dos Estados Unidos, a Creech Air Force Base, no
deserto do estado de Nevada. Como nota Chamayou (2015, p. 2),
[o] trabalho aqui é extremamente entediante. Os homens passam noites
inteiras olhando uma tela na qual, durante a maior parte do tempo,
aparecem imagens imutáveis de um outro deserto, no outro lado do
mundo. Comendo Doritos e M&Ms, eles esperam que algo aconteça.
Eis o diálogo:
01:05
SENSOR OPERATOR: That truck would make a beautiful target.
OK, that’s a Chevy Suburban.
PILOT: Yeah.
SENSOR OPERATOR: Yeah.
...
01:07
MISSION INTELLIGENCE COORDINATOR: Screener said at
least one child near SUV.
SENSOR OPERATOR: Bull [expletive] . . . where?
SENSOR OPERATOR: Send me a [expletive] still, I don’t
think they have kids out at this hour, I know they’re
shady but come on.
...
SENSOR OPERATOR: Well, maybe a teenager but I haven’t
seen anything that looked that short, granted they’re all
grouped up here, but . . .
27
Na nota 3 do “Prelúdio” a seu livro, Chamayou informa: “Todos os diálogos citados são retirados
de transcrições oficiais obtidas, graças ao Ato de Liberdade de Informação, por David S. Cloud, um
jornalista do Los Angeles Times. São citados aqui somente extratos. O documento original foi censurado
em várias passagens antes de ter sido tornado público.” Para se ter acesso à íntegra do documento, ver:
www.documents.latimes.com/transcript-of-drone-attack. Acesso em: 25 abr. 2011.
Para uma melhor compreensão do contexto em que esses documentos foram obtidos, Chamayou
remete o leitor para o artigo de Cloud, Anatomy of an Afghan War Tragedy. Los Angeles Times, 10 abr.
2011. Na nota 2 do mesmo “Prelúdio”, o autor remete também ao livro de Gerald Krueger e Peter
Hancock, Hours of Boredom, Moments of Terror: Temporal Desynchrony in Military and Security Force
Operations. Washington, DC: National Defense University, 2010. Cf. CHAMAYOU (2015, p. 229.)
28
A obra por ele mencionada (p. 40, nota 16) é Zeit-Verhältnisse: Zur Kulturphilosophie des Fortschritts
(Graz, Wien: Styria, 1983).
como um avião ou ficar imóvel como um helicóptero, pode subir ou descer, virar
à esquerda ou à direita, voar mais ou menos rapidamente. Por ser um veículo
não-tripulado, unmaned, como dizem os americanos (a expressão alternativa
para designar os drones na língua inglesa é UAV, Unmaned Aerial Vehicle), todos
esses movimentos dão às imagens um caráter tátil e encarnam a presença virtual da
mão dos operadores no interior do que é retratado. Frisemos, a propósito, que, ao
descrever as propriedades das imagens-tempo, Deleuze acrescenta, aos opsignos
e sonsignos, os tatissignos, os quais, na verdade, seriam mais primitivos do que
os dois primeiros: seriam os tatissignos que constituiriam os “espaços quaisquer”
figurados pelo cinema moderno (por exemplo, o cinema de Werner Herzog),
havendo, assim, “um tocar característico do olhar.”, conforme palavras de
Deleuze (1990b, p. 23). Ainda nas palavras de Deleuze (1990b, p. 22): “[...] é o
tátil que é o mais apto a constituir uma imagem sensorial pura, com a condição
de que a mão renuncie a suas funções preensíveis e motoras, contentando-se
com um puro tocar.”
Poder-se-ia objetar que os movimentos executados pelas mãos dos
operadores dos drones, imediatamente visíveis no deslocamento das imagens,
produziriam uma instância da imagem-movimento, mais do que da imagem-
tempo, pois a primeira, como vimos acima, seria aquela que se prolonga em
esquemas sensório-motores, o que parece ser justamente o caso, quando se
percebe a “presença” da mão do operador na variação dos movimentos e na
velocidade de deslocamento das imagens obtidas por drones. A reação imediata
mão-olho, tão típica dos jogos eletrônicos desde o Arcade da Atari, na década de
1970, e emulada cotidianamente pelos operadores dos drones, seria o exemplo
mais acabado de tal conexão sensório-motora, na medida em que tal reação
corporal, ao contrário da que ocorre no cinema, não permaneceria no nível
virtual, mas se manifestaria atualmente em movimentos concretamente exercidos.
Como os “espectadores” das imagens produzidas pelos drones são, no mais das
vezes, apenas os próprios operadores dos aparelhos e seus supervisores (porque
as imagens que chegam às televisões e à Internet são somente suas poucas ações
“espetaculares”), tal identidade entre o produtor dos movimentos e o espectador
das imagens garantiria que estamos, de fato, lidando com representações do tipo
classificado por Deleuze como imagem-movimento.
Contra tal objeção, deve-se notar que a caracterização da imagem-drone
como uma instância da espécie imagem-tempo se torna claramente defensável,
desde que se tome a imagem-drone em si mesma, independentemente de quem
atualmente, empiricamente, a vê. Todavia, o que significa “tomar a imagem-
drone em si mesma”? Toda imagem não é, sempre, uma imagem para alguém,
para um olho ou consciência que observa (isto é, que está diante (ob) de algo
de que guarda ou cuida (servare))? E, para que uma imagem exista, ela não
deve, além disso, ser atualmente observada por alguém? Uma imagem apenas
potencialmente observável é ainda uma imagem?29
A resposta para tais questões pode ser procurada na obra de Bergson30,
que é uma premissa central da teoria deleuziana do cinema, mas se encontra
também em uma consideração sobre o estatuto dos signos na cultura
contemporânea: há neles um excesso do que é representado que, paradoxalmente,
barra a representação – pensemos no filme Empire, de Andy Warhol, ou nas
36 línguas do Finnegans Wake, de James Joyce. Nos dois casos – e em tantos
outros, não só no domínio da arte, mas também nas câmeras de vigilância, nos
satélites espiões etc. –, é impossível que tais obras tenham um espectador ou
um leitor, não porque a imagem ou o texto sejam de alguma forma deficientes,
nem porque lhes faltem, empiricamente, receptores, mas, ao contrário, devido
a seu caráter absoluto: as imagens de Warhol, na sua máxima fidelidade ao
“modelo”, em seu excesso representativo, rompem com as ideias mesmas
de representação e de visibilidade – ninguém, nem mesmo ele, nunca “viu”
Empire. A imagem toma conta de todo o espaço da representação, expulsando
de sua vigência tanto o produtor (Warhol limitou-se a ligar a câmera e a deixá-
la operando sozinha) quanto o (inexistente) espectador. Da mesma maneira, os
fluxos das imagens-drone que formam o interminável arquivo de imagens do
presente são analisados aqui do ponto de vista desse “espectador inexistente”,
da imagem em si mesma, a qual, como em um filme de Ozu, resiste à visão do
espectador. É do ponto de vista desse espectador virtual, portanto – mesmo
que se trate, no caso, de um espectador (quase) inexistente – que a maior
proximidade da imagem-drone com a imagem-tempo se manifesta.
Seria preciso desenvolver mais detalhadamente a questão da sinestesia
presente na ideia de imagem-tátil. Como os limites deste texto não permitem
fazê-lo, remeto os leitores ao estudo seminal de Jacques Derrida, intitulado
Memórias de cego. O autorretrato e outras ruínas, escrito originalmente
29
Mesmo problema para George Berkeley, que deve dar conta da redução das “coisas” a “ideias” e,
ao mesmo tempo, explicar como coisas nunca “observadas” por ninguém – uma pedra enterrada nas
profundezas da Terra, por exemplo – podem, no entanto, ser ditas “existentes”. Sua solução, como se
sabe, é introduzir na teoria o conceito de mente de Deus, entendido como “observador universal”.
30
Bergson radicalizará a tese de Berkeley mencionada na nota anterior, ao propor, no início de Matéria
e memória, que o próprio universo é constituído, em si mesmo, por imagens. Cf. BERGSON (1959,
p. 170).
como o texto da curadoria feita por Derrida para uma exposição realizada
no Museu do Louvre, em Paris, em exibição nos anos de 1990 e 1991. Na
impossibilidade de avançar mais na especificação do conceito de imagem
tátil, limito-me a reproduzir uma das primeiras obras abordadas por Derrida,
em seu livro, intitulada Cristo curando um cego, obra do gravador e pintor
renascentista Lucas van Leyden (figura 8), na qual o caráter tátil da visualidade
é evidenciado através da análise da representação das mãos das diversas
personagens aí retratadas:31
Figura 8: Jésus guérissant un aveugle, de Lucas van Leyden
32
No original, “une machine qui met les choses en relief loin d’elles-mêmes” (AT I, 281).
Essa “máquina tátil” pode nos guiar, sugere Diderot, embora através de
caminhos obscuros, para fora do labirinto de espelhos onde se espera encontrar,
em cada imagem, o mesmo, sempre reduplicado: se o espelho fosse tal como
o cego o concebia, então, quando ele tocasse seu próprio rosto fora de si, seus
dedos sentiriam a si mesmo como um outro. De maneira apenas aparentemente
paradoxal, essa alteridade é obtida justamente pela imanência do objeto tátil
e das mãos que o tocam: os objetos, para o cego, inclusive se esse “objeto” for
ele mesmo, não se distanciam de seu corpo como um fantasma duplicado e
transcendente na imagem refletida em uma superfície lisa e distante de si: sujeito
e objeto confundem-se indissociavelmente no tato, pois ambos se conjugam
no espaço sem intervalo que une a pele ao que a afeta. É claro que nem tudo
no cego de Diderot pode ser aplicado à imagem-tempo de Deleuze, a começar
pela concepção sensório-motora que o primeiro traz à tona: o modelo tátil
do conhecimento proposto por Diderot, por oposição ao modelo visual (que
poderíamos chamar de platônico/cartesiano), caracteriza o sujeito cognoscente
como alguém que, para tomar contato com os objetos, tem de agir no mundo,
progredindo através de parcialidades nunca sintetizadas completamente pelo
presente de uma imagem visual dada de forma contemplativa, mas apenas pela
memória incessantemente reatualizada de toques passados.33
33
A não ser, é claro, quando o objeto tátil for suficientemente pequeno para ser abarcado de uma só vez –
o que, de qualquer modo, não ocorre com a imagem – visual ou tátil – que uma pessoa tem de si mesma.
Considerações Finais
O diagnóstico oferecido por Schmitt sobre a situação política
contemporânea afirma, como vimos, que o progressivo desaparecimento do
poder soberano tradicional transforma a natureza mesma do Estado, que
passa a se identificar imanentemente com o conjunto das leis e com o corpo
social – o que constitui, segundo ele, a própria definição de totalitarismo. Se
aceitarmos esse diagnóstico, seria preciso redefinir a generalização crescente
do “estado de exceção” nas sociedades políticas contemporâneas, identificada,
entre outros, por Giorgio Agamben, pois a exceção não poderia mais ser
entendida pelo exercício do poder soberano, mas, antes, a partir de seu fim.
No entanto, a natureza do estado de exceção permanente em que vivemos,
e no qual provavelmente passaremos cada dia mais a viver, talvez seja mais
bem explicada pela convivência estratificada e simultânea de várias formações
políticas do que pela ideia schmittiana de sucessão – mais pela geologia do que
pela história, em suma.
Para ilustrar essa possibilidade e, com ela, concluir, seria preciso ir ao
Anti-Édipo, que Deleuze escreveu conjuntamente com Félix Guattari, pois aí
encontraremos justamente essa concepção mais geográfica e geológica do que
34
Para uma discussão metodológica sobre a substituição do modelo histórico pelo modelo geológico,
cf. o começo do capítulo III de O anti-Édipo, intitulado O socius inscritor (DELEUZE; GUATTARI,
1973, p. 163-170). Além disso, é importante consultar também outra obra escrita em conjunto
pelos dois autores, Mil platôs, especialmente o capítulo intitulado “Geologia da moral” (DELEUZE;
GUATTARI (1980, p. 53-94).
Para uma análise da articulação dessas três formações políticas, cf. PATTON (2000), especialmente seu
35
Capítulo 5, intitulado “Social Machines and the State. The history and politics of deterritorialisation”.
Abstract: This paper deals with the specificity that characterizes one of the most important
technological aerial products dedicated to surveillance and attack being in use nowadays, the
drones, showing in which sense this new technology is a decisive turning point in the evolution
of the domination of the skies and therefore, as suggested by Carl Schmitt, in the transformation
of the political-theological field in contemporary societies. The radical immanence of the political
field proposed by liberalism, such as Schmitt described it, finds in drones one of its most typical
instruments. To characterize the specificity of drones regarding other visual and aerial war machines, it
will be proposed an approximation with the Deleuzian concept of image-time, in order to determine
its singularity through the intrinsic properties of the images so produced. The main characteristic of
the Deleuzian time-image to be integrated in the analysis of drones will be its haptic aspect. At this
point, the relation between Deleuze’s cinema books and his work in collaboration with Félix Guattari
will be essential to characterize the political dimension of the drone-image.
Keywords: Drones. Cinema. War. Sovereignty.
Referências
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obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 85-92.
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Presses Universitaires de France, 1959. p. 161-382.
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DELEUZE, Gilles. L’image-mouvement. Paris: Les Éditions de Minuit, 1984.
DELEUZE, Gilles. L’image-temps. Paris: Les Éditions de Minuit, 1985.
37
Recebido: 14/06/2017
Aceito: 29/11/2018
Comentário
http://dx.doi.org/10.1590/0101-3173.2020.v43n1.13.p245
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39
Mesmo na teologia política schmittiana, transcendência não se refere a um deslocamento a-histórico
em busca de uma fundamentação universalista. Ferreira (2004, p. 36), mais uma vez, é lúcido quando
afirma que “[...] a presentificação política, até certo ponto, remete a si mesma e não a um referente
externo. Ainda que implique uma dimensão transcendente, esta não está dada fora da representação,
Referências
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mas é pressuposta e, em última análise, ‘posta’ por ela, distinguindo-se, assim, da natureza substancial
da transcendência divina.”
Comentários
http://dx.doi.org/10.1590/0101-3173.2020.v43n1.14.p251
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sempre uma constante, isso não é novo, mas também não é novo – e o autor
precisamente assinala essa hipótese – que o desenvolvimento do capitalismo
ocorre em meio à sua progressiva desterritorialização.
É por meio de uma análise dessa nova tecnologia que o autor associa
a desterritorialização econômica do capitalismo com uma soberania política
que, aos poucos, tende a se desarticular da sua fixação espacial. Nesse processo,
a imanência política que fora apontada por Schmitt adquire um novo sentido,
inclusive bélico e estratégico, instaurando, também, uma modificação na
maneira de situar a soberania e a temporalidade. Uma guerra de drones é uma
guerra travada sobre uma concepção de temporalidade que, ao menos até a
Guerra do Golfo, fora estranha, mas que daquele conflito se torna cada vez
mais presente, com a consequente espetacularização apontada por Virilio, em
obras como Desert Screen e na citada War and Cinema.
Se, em Desert Screen, uma obra que vê na Guerra do Golfo um divisor de
águas, Virilio já havia alertado para a forma como as novas tecnologias podem
minar as atividades diplomáticas e os esforços envolvidos nas negociações, os
drones consolidam de vez essa hipótese. Diante de uma vigilância constante
e de um olhar onipresente, a diplomacia se converte em uma atividade de
dissimulação e narrativa que, em sua teatralidade, remete a uma lógica e
discurso político extemporâneo. Existe pouca relevância para o diálogo,
quando uma tecnologia permite concretizar objetivos de vigilância e destruição
à distância, possibilitando, inclusive, o anonimato dos autores das ordens. É
claro que esse contínuo deslocamento provocado por esse olhar distinto, que
fora trazido pelos drones, não elimina as noções conceituais que servem para
representar, e daí também intervir, nos diversos panoramas políticos, como a
ideia de soberania política e, mais recentemente no campo da teoria política,
o Estado de Exceção.
Ulysses Pinheiro dedica algumas páginas a discutir também o terceiro
aspecto do ritornelo estabelecido por Deleuze e Guattari, em Mil Platôs, a
saber, a reterritorialização. Os drones não eliminam essas noções, antes as
inserem em um conjunto diverso de relações conceituais que, por sua vez,
transformam a composição e a consistência interna dos seus elementos usuais.
Dito de outro modo, se permanece sendo pertinente falar em estado de exceção
na geopolítica contemporânea, considerando já de início o presente aparato
tecnológico, assim ocorre porque a reinserção desse conceito é realizada a
partir da colocação de problemas novos e questões distintas que emergem
nesse panorama político.
Resumo: Arthur Schopenhauer ficou conhecido como o pensador do “pessimismo filosófico”. Trata-
se de uma doutrina que, em linhas gerais, apresenta uma determinada interpretação acerca do valor
do mundo, mas que, em seu sentido ainda mais básico, questiona a possibilidade de atribuição de
valor ao todo da existência: há “justificação” (Rechtfertigung) para a existência? A partir da resposta a
essa pergunta, o filósofo alemão desenvolve sua “metafísica da vontade” e, como seu desdobramento,
sua teoria da “redenção” (Erlösung), ou soteriologia. Entretanto, o “filósofo do pessimismo” também
afirma, em sua obra, que há uma “ordenação moral de mundo” (moralische Weltordnung) e um
“significado moral da existência” (moralische Bedeutung des Daseyns), o que parece ir na direção oposta
ao “pessimismo”. O presente artigo analisa o significado das noções de ordenação moral de mundo
e justificação da existência no pensamento de Schopenhauer, a fim de demonstrar em que medida
significado moral da existência e pessimismo filosófico se relacionam no pensamento do autor.
Palavras-Chave: Arthur Schopenhauer. Metafísica. Pessimismo Filosófico. Ordenação moral de
mundo. Justificação da existência.
1 Algumas das ideias centrais do presente texto foram desenvolvidas ainda como parte do meu Pós-
Doutorado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com financiamento da FAPESP
(processo nº 2013/09544-3, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo [FAPESP]).
2
Professor Adjunto de Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória, ES – Brasil. https://orcid.org/0000-
0002-7552-9844
http://dx.doi.org/10.1590/0101-3173.2020.v43n1.15.p255
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Introdução
O “pessimismo filosófico” parece ser, não sem boas razões, a principal
alcunha pela qual o pensamento de Schopenhauer é tradicionalmente
identificado. Nem tanto por considerar este o “pior dos mundos possíveis”,
e bem mais por afirmar que o “não ser é preferível ao ser”, isto é, que não há
justificação (Rechtfertigung) para a existência (cf. esp. GERHARDT, 1989;
e DAHLKVIST, 2007, p. 14), o pessimismo schopenhaueriano se torna
uma referência de como parte considerável do século XIX alemão concebia
a própria tarefa filosófica: como uma tentativa de dar resposta ao “problema”
da “vida”, o que pressupõe, antes de qualquer coisa, que a própria vida é
tornada um problema pela filosofia (cf., p. ex., PFLUG, 1989, col. 139-140, e
SCHNÄDELBACH, 1984, p. 139-145).
Há, contudo, no interior da própria filosofia de Schopenhauer, uma
questão que vem demandando cada vez mais atenção dos intérpretes: a das
razões de sua concepção de metafísica “imanente” possuir uma “significação
moral” ou, dito de outro modo, que razões levam o autor a defender uma
“ordenação moral de mundo”, na sua interpretação “pessimista” da existência
(cf. esp. KOSSLER, 2014). O objetivo do presente texto é oferecer uma
resposta a esse problema: qual a relação entre o “pessimismo filosófico”, ou
seja, a interpretação segundo a qual não há uma justificação para a existência,
e a “ordenação moral de mundo”, isto é, a concepção de que a metafísica
possui originariamente uma significação moral? Para tanto, far-se-á necessária
(1 e 2) uma breve incursão no conceito de metafísica de Schopenhauer, tanto
do ponto de vista de sua origem quanto do significado de sua “imanência”,
passando por (3) uma discussão de alguns aspectos centrais – e caudatários da
discussão anterior – da doutrina da virtude e soteriologia schopenhauerianas;
com o que, então, estaremos aptos a compreender (4) a relação entre metafísica
e ordenação moral de mundo, e (5) responder se a tal ordenação moral de
mundo corresponde uma justificação da existência no pensamento do autor.
o autor, quando ele se defronta com a morte. A ela, além disso, o homem é
impingido constantemente pela finitude da existência e pela esterilidade de
todo esforço. Em virtude desse espanto com o existir, de seu agravamento pelo
conhecimento antecipado da morte, bem como daquilo que o acompanha,
Schopenhauer define o homem como animal metaphysicum, como o único
animal que possui necessidade de uma metafísica.
Tal espanto ou perplexidade, que constitui o fundamento das disposições
religiosa e filosófica, transforma em problema o universal do fenômeno – de
modo diverso, por exemplo, dos cientistas, os quais se ocupam apenas com
fenômenos selecionados e raros. A filosofia compromete-se com a compreensão
do mundo de maneira puramente objetiva, isto é, em sua totalidade:
[...] a perplexidade filosófica que surge disso é condicionada no
indivíduo por um desenvolvimento superior da inteligência,
embora geralmente não apenas por ela; mas indubitavelmente é o
conhecimento da morte, e ao seu lado a consideração do sofrimento
e miséria da vida, aquilo que fornece o mais forte impulso para a
reflexão filosófica e para as explicações metafísicas do mundo. Se
a nossa vida fosse sem fim e sem dor, possivelmente não ocorreria
a ninguém se questionar por que o mundo existe, e porque
tem precisamente essa constituição, mas tudo seria entendido
puramente como matéria de seu próprio curso. (MVR/WWV II
17, 176-177).3
3
MVR/WWV é a abreviatura de O mundo como vontade e como representação, Die Welt als Wille und
Vorstellung, obra máxima de Schopenhauer, e o número em romano que se segue faz referência a qual
volume (I ou II) da obra está sendo levado em conta. O número arábico indica o capítulo da obra em
questão, seguido pelo número da página da edição canônica alemã, mencionada na bibliografia. Foram
utilizadas, no decorrer do presente texto, as traduções brasileiras dessas obras, conforme indicadas
também na bibliografia. Em muitas ocasiões, contudo, especialmente em relação ao segundo volume
de O mundo como vontade e representação, as traduções são de minha autoria.
4
Não se trata aqui, como se sabe, de um empirismo ao modo de Hume, mas do desenvolvimento
da filosofia crítica kantiana, de acordo com a qual o conhecimento se inicia, mas não deriva da
experiência. Para Schopenhauer, assim como para Kant, só se pode conhecer as manifestações (ou
o fenômeno) da coisa em si, que se dá na experiência. É a partir dela que o conhecimento se torna
possível, quando é permitido ao filósofo proceder às generalizações que caracterizam a sua forma de
conhecimento. Embora não faça parte das pretensões do presente texto tratar minuciosamente da
teoria do conhecimento schopenhaueriana, tema assaz complexo e que excede os seus objetivos iniciais,
voltarei ao tema, adiante.
5
Vale destacar que a diferenciação entre as religiões se dá fundamentalmente, para Schopenhauer, em
função do quanto de verdade elas contêm em suas alegorias. As religiões otimistas, como o islamismo,
contêm muito pouca verdade. Já as pessimistas, como o cristianismo, o hinduísmo e o budismo,
contêm uma quantidade maior de verdade, de tal sorte que elas se aproximam mais da verdade
filosófica (cf. MVR/WWV II 17 p. 183-188).
A filosofia não poderia ser, com base nesse ponto de vista, qualquer
forma de otimismo, ao modo de Leibniz. Ela surge precisamente de um
olhar na desgraça e maldade do mundo: o argumento de Schopenhauer está
fundamentalmente comprometido com a ideia de que a mera existência do
mal, no mundo, implica a preferência pela sua não existência, pois, mesmo que
houvesse uma parcela de felicidade igualmente grande no mundo, ou até mesmo
que a parcela de mal fosse por ela superada, o mal do mundo não poderia ser
“compensado”: isto é, o mundo seria, ainda assim, algo que deveria não ser.
Todavia, prossegue o autor, visto que o mundo veio a ser, não pode ter surgido
do nada, “pois nada não pode surgir de nada”. E aqui estamos diante do ponto
central da metafísica “imanente” de Schopenhauer: o germe e o núcleo do
mundo, do qual ele vem a ser, é a vontade (Wille), por ele caracterizada como
essencialmente sofrimento. Pode-se ter, nesse ponto, uma visão mais clara da
posição de Schopenhauer sobre o impulso original que leva à filosofia: trata-se
não apenas do espanto e da perplexidade pelos quais o homem é tomado, ao se
perguntar pela origem da existência, mas sobretudo pela constatação de que ela
é em si mesma sofrimento (cf. MVR/WWV II 17, 190).
Schopenhauer está, assim, atribuindo uma dimensão existencial à
pergunta da metafísica, tal como formulada por Leibniz: “o mundo é enigmático
porque o modo como ele nos é dado suscita a pergunta ‘porquê (sic) alguma
coisa em vez de nada?’. ” Essa é a posição de Constâncio (2013, p. 57):
Schopenhauer pergunta “por que razão não existe absolutamente nada em
vez de existir este mundo?” [...], e esta reformulação do enigma do mundo
tem como implicação tratar-se nele não apenas de saber o que as coisas
são, mas também de saber que valor lhes devemos atribuir. O mundo é
enigmático porque o modo como ele nos é dado suscita a questão de saber
se há uma razão para ele existir – se ele é algo que deve existir ou algo que
não devia existir. E esta pergunta é feita do ponto de vista do humano, da
perspectiva da nossa existência. O mundo é algo que merece ou algo que
não merece a nossa aprovação? Devemos negá-lo ou afirmá-lo? A nossa
existência individual e, em geral, a vida humana neste mundo faz sentido
ou é vã? Devemos negar ou devemos afirmar a existência – seja a nossa
existência em particular, seja a existência em geral, a existência do todo de
que fazemos parte? É este o enigma.
[...] a impressão não passa de uma mera SENSAÇÃO no órgão dos sentidos,
e só pela aplicação do ENTENDIMENTO (isto é, da lei da causalidade)
e das formas da intuição do espaço e do tempo é que nosso INTELECTO
converte essa mera SENSAÇÃO em uma REPRESENTAÇÃO, que,
doravante, existe como OBJETO no espaço e no tempo e não pode ser
distinguida deste último (o objeto), exceto se perguntarmos pela coisa-
em-si; do contrário, é idêntica ao objeto [...]. Com isso está cumprida a
tarefa do entendimento e do conhecimento intuitivo e, para tal, não foi
preciso conceito algum nem pensamento; eis por que também o animal
possui essas representações. Se conceitos, o pensamento é acrescentado,
ao qual, decerto, espontaneidade pode ser atribuída, o conhecimento
INTUITIVO é totalmente abandonado e uma classe por inteiro diferente
de representações, a saber, não intuitivas, conceitos abstratos, entra na
consciência. Eis aí a atividade da RAZÃO que, no entanto, tem todo
o conteúdo de seu pensamento unicamente a partir da intuição que o
precede e da comparação dele com outras intuições e conceitos. Porém
Kant traz o pensamento já para a intuição e, assim, assenta a fundação
para a mistura nociva entre conhecimento intuitivo e abstrato [...] (MVR/
WWV I, p. 520).
Essa parte geral compreende, ou melhor, substitui ao mesmo tempo aquilo que outrora se chamava
Ontologia, que compunha a teoria das propriedades mais universais e essenciais das coisas em geral
enquanto tais. Pois se considera como propriedades das coisas em si mesmas o que somente pertence
a elas em consequência da forma e da natureza de nossas faculdades representativas, já que todos
os seres que essas apreendem devem se exibir de acordo com a forma e natureza da nossa faculdade
representativa e, por isso, deve trazer em si certas propriedades comuns a todas elas. Isso se compara
ao ato de atribuir uma cor aos objetos a partir da lente pela qual vemos.” (PP II, p. 23). Essa discussão
será fundamental na concepção da ética no sistema schopenhaueriano, na medida em que apenas por
uma determinada forma de conhecimento da dor do outro é que se pode alcançar a virtude e, em um
grau mais avançado, a liberdade. Esse ponto será trabalhado na sequência do texto.
o cruel – é aquele que não se vale do sofrimento alheio somente como meio
para atingir os fins da própria vontade, como ocorre no caráter egoísta, mas
toma o sofrimento alheio como fim em si mesmo. A maldade e a crueldade
constituem, desse modo, o segundo móbile das ações humanas, momento em
que o sofrimento já passa a figurar explicitamente como o principal tema da
ética schopenhaueriana (cf. SFM/BM 14).8
O “simples moralizar”, aos moldes de Kant, não faz qualquer efeito
sobre o caráter dos homens, pois ele não “motiva”. Uma moral que motiva
só pode fazê-lo, segundo Schopenhauer, atuando sobre o amor próprio. O
que dele nasce, contudo, não tem valor moral algum, porque se trata apenas
da mudança de direção da vontade, que em nada afeta o sofrimento causado
pela manifestação da essência do universo. A concepção de uma “virtude
autêntica” surge, assim, do conhecimento intuitivo da vontade, “o qual
reconhece no outro indivíduo a mesma essência que a própria.” (cf. MVR/
WWV I 66, p. 435-437).
Schopenhauer busca, a partir desse ponto de vista, fundamentar
(begründen) a moral. Esse é, em sua visão, o grande problema da filosofia
moral, e é precisamente nessa empreitada que reside a falha do projeto
racionalista kantiano, pois o pensador não teria reconhecido no sofrimento o
principal problema da ética, tampouco teria atribuído a devida importância ao
conhecimento intuitivo no processo de fundamentação da moral.
O critério das ações dotadas de valor moral é determinado pelo
autor em sua análise de alguns seres de exceção, nos quais ocorre a “exclusão
daquela espécie de motivos, por meio dos quais [...] procedem todas as ações
humanas, a saber, o interesse próprio.” (SFM/BM 15).9 A ausência de toda
motivação egoísta é, desse modo, o critério buscado por Schopenhauer para a
sua fundamentação da moral. De onde brotam, contudo, as ações dotadas de
valor moral, tais como as de “justiça espontânea” e “caridade desinteressada”?
8 SFM/BM abrevia Sobre o fundamento da moral, Über das Fundament der Moral, texto publicado em
1840 por Schopenhauer. Os números arábicos indicam o número do capítulo da obra, seguidos pelo
número da página da edição alemã.
9
Diante da possível objeção de que as ações maldosas não são interessadas e que, portanto, se
enquadrariam no critério acima estabelecido como o único dotado de valor moral, Schopenhauer
acrescenta ainda mais dois critérios, os quais lhe servem de suporte, ao expressarem a repulsa do
homem moral também às ações maldosas: o “aplauso de consciência”, o fato de que as ações dotadas
de valor moral “deixam ficar um certo contentamento com nós mesmos”; e, como “marca externa
e acidental”, “o aplauso e o respeito das testemunhas que não participam delas.” No caso de ações
maldosas, tais apreciações ocorrem de modo precisamente oposto (cf. SFM/BM 15, p. 674).
11
O escrito de 1840 foi redigido, como se sabe, em resposta à pergunta colocada pela Sociedade Real
Dinamarquesa de Ciências de Copenhague sobre a necessidade com a qual surge a “ideia originária
da moralidade ou do conceito principal de lei moral suprema” e sobre onde eles se apresentam, “em
parte no juízo da consciência sobre nossas próprias ações, em parte em nossos juízos morais sobre o
comportamento dos outros”: “a fonte e o fundamento da filosofia moral devem ser buscados numa ideia
de moralidade contida na consciência imediata e em outras noções fundamentais que dela derivam ou
em outro princípio do conhecimento?” (SFM/BM, p. 575-576). Daí a frase de Sobre a vontade na
natureza (Ueber den Willen in der Natur), apresentada como mote por Schopenhauer no início do
texto, em clara oposição a Kant e à moral deontológica, em geral: “pregar a moral é fácil, fundamentar
a moral é difícil”. O objetivo do filósofo no escrito em questão é, por conseguinte, fundamentar aquilo
que conduz, no plano empírico, à justiça e à caridade. Tal fundamento, defende o autor, não pode ser
obtido por “combinações artificiais de conceitos de qualquer espécie”, mas, pelo contrário, tem de ser
algo “que fale a todo homem, mesmo o mais tosco, repousando meramente na apreensão intuitiva e
impondo-se imediatamente a partir da realidade das coisas.” (SFM/BM 12, p. 656). É precisamente
em suas análises daquilo em que consiste a apreensão intuitiva e a realidade das coisas que, conforme
veremos, reside o vínculo entre sua fundamentação “empírica” e “metafísica” da moral.
14
O leitor é aqui remetido, mais uma vez, portanto, ao conceito schopenhaueriano de justiça
(Gerechtigkeit). Um primeiro sentido do termo já foi discutido no contexto de sua doutrina da virtude,
a saber, nas ações de “justiça espontânea”. O filósofo trata, ainda, de outros dois sentidos do mesmo: a
justiça temporal e a justiça eterna, esta o motivo da incursão do presente texto na concepção de justiça
do filósofo de Danzig. A justiça temporal (zeitliche Gerechtigkeit) é concebida como o conceito negativo
de injustiça (Unrecht), esta consistindo na “invasão dos limites da afirmação alheia da vontade.”
(MVR/WWV I 62, p. 394). Justo (Recht) significa a possibilidade de negar, “com justiça”, a negação da
vontade alheia, com a força necessária para a sua supressão (cf. idem, p. 401). Uma doutrina do Direito
(Rechtslehre) se restringe exclusivamente à prática da justiça ou injustiça, uma vez que ela se refere
apenas ao fazer, e não ao sofrer. O Direito Penal tem em vista, nesse contexto, evitar a ocorrência de
ações injustas em um tempo futuro. O Estado, por fim, que tem por função a punição da invasão da
afirmação da vontade alheia, é a sede da justiça temporal e visa a garantir a execução do Direito Penal
(cf. idem, p. 410-411).
15
O filósofo apresenta duas características da natureza humana que comprovam que o homem está
consciente, embora de modo não claro, da “essência íntima da justiça eterna e da unidade e identidade
da Vontade em todos os seus fenômenos, na qual se assenta essa justiça.” A primeira pode ser percebida
nas situações em que tanto o espectador quanto a parte injuriada são tomados pelo desejo de vingança,
diante de uma situação de injustiça. Nessa ocasião, a consciência da justiça eterna é falseada, quando
se exige do fenômeno aquilo que concerne apenas à coisa em si. A segunda característica se mostra na
situações nas quais um homem se indigna a tal ponto, diante de uma iniquidade sofrida por outrem,
que, mesmo apenas como testemunha, se coloca deliberadamente a tarefa de exercer a vingança em
nome do outro (cf. MVR/WWV I 64, p. 423-424).
17
Já as primeiras interpretações do pessimismo em Schopenhauer indicavam como o tema estava
intimamente relacionado à pergunta pelo sentido da vida, principalmente em função de alguns de seus
seguidores e críticos, tais como Eduard von Hartmann e Eugen Dühring, os quais questionam se seria
possível atribuir um sentido, um valor, ao “todo” da existência. De acordo com Volker Gerhardt (1995,
col. 817), o pessimismo schopenhaueriano é o responsável pela popularização do tema do “sentido da
vida” na filosofia. Cf. esp. Hauff (1904), Stäglich (1951/2), Gerhardt (1989), Pauen (1997), Dahlkvist
(2007) e De Paula (2013). Espero poder tratar em outro artigo do tema do sentido da vida na filosofia
alemã do século XIX, indicando alguns de seus desdobramentos mais relevantes para o pensamento
contemporâneo.
18
Atribuir um sentido à existência é o mesmo que perguntar pela sua justificação (Rechtfertigung). Este
é precisamente o significado, estabelecido na tradição filosófica, a partir da filosofia de Schopenhauer,
do termo pessimismo: “o pessimismo é a noção de que a vida não pode ser justificada, o que significa o
mesmo que a não-existência é preferível à existência.” (DAHLKVIST 2007, p. 14). Dentre os sentidos
que o termo comporta ao longo da história da filosofia, um parece ser bastante relevante no contexto
das discussões sobre o pessimismo – sentido este que, especialmente no caso de Schopenhauer, nos
remete ao problema da justiça eterna. Trata-se da leitura que o apóstolo Paulo (e, mais tarde, Lutero)
faz da narrativa segundo a qual Deus absolve o homem de seus pecados, por meio da entrega de seu
filho aos plenos poderes do Espírito Santo, de tal modo que o homem se reconcilia (versöhnt) com
Deus (cf. PETERS 1989, col. 251-256; 259). Paulo associa o conceito de justificação ao conceito
de fé, no sentido de que a “justiça de Deus” se revela ao homem apenas pela fé. À justiça divina se
contrapõe a injustiça dos homens, que são os culpados pela sua existência. Justificar pela fé significa
aqui se salvar, se redimir, se reconciliar com Deus, com a justiça divina (cf. Epístola aos romanos 1,
16-17; 3, 27-31; 3, 4-6; 3, 9-18; 5, 1-11; 5, 18-21). Tal tema, típico da tradição teológico-cristã, nos
fornece claros indícios, por um lado, dos interlocutores de Schopenhauer, ao tratar da justiça eterna,
bem como, por outro, daquilo que o autor pretende se afastar e se opor, ao conceber uma metafísica
imanente e “ateísta”.
(Ueber die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde), de 1813,
demarca claramente o propósito de Schopenhauer de inserir a ação humana
no âmbito princípio de razão – com o que o autor cairia necessariamente no
campo da metafísica: trata-se aqui do “sujeito do querer como um todo”, do
sujeito atemporal, e não do sujeito no âmbito do empírico. Nesse texto, afirma
o intérprete,
[...] a metafísica será, através da doutrina do caráter, não somente
completamente preparada, mas já introduzida na forma especial de
uma “metafísica imanente” [...]. Essa metafísica não reivindica dispor
de conhecimentos que ultrapassam a experiência; mas ela parte de
considerações retornam indiretamente à empiria e que devem ser
pressupostos nesta, para que a “Experiência como um todo” possa se tornar
compreensível. Na tese, isto significa assumir um idêntico sujeito do querer
em suas ações. Esse [...] caráter inteligível acrescentado pelo pensamento
[...] coloca as ações individuais da vontade em conexão, a qual revela as
respectivas ações como pertencentes e imputáveis a este. Desse modo, só
serão julgadas moralmente ocorrências relacionadas às ações de uma pessoa,
se determinadas pela maneira da pessoa reagir a certas situações e pelas
quais a pessoa é moralmente responsável. Assim, o pressuposto metafísico
não resulta imperativamente do fato empírico [...], mas necessariamente
da condição de que as ações humanas têm um significado moral. Se quanto
mais eu considero o humano como um ser moral, lhe imputo suas ações e
o faço responsável por elas, mais eu preciso do pressuposto de um caráter
inteligível [...]. Com a metafísica da Vontade amadurecida, esse modelo
humano será transferido para o mundo. (KOSSLER, 2014, p. 19-20).
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PFLUG, G. Lebensphilosophie. In: RITTER, Joachim; GRÜNDER, Karlfried (org.).
Historisches Wörterbuch der Philosophie. LMn. Basel und Darmstadt, 1989. Col. 135-140.
v. 5.
19
Recebido: 18/09/2017
Aceito: 29/06/2019
Tradução
Gilbert Simondon
Tradução de Pedro Peixoto Ferreira2 e Evandro Smarieri3
Resumo: Esta é a tradução do texto “L’amplification dans les processus d’information”, conferência
ministrada por Gilbert Simondon em 1962, no Colloque de Royaumont sobre “o conceito de
informação na ciência contemporânea (Le concept d’information dans la science contemporaine). Aqui
Simondon apresenta, e correlaciona, três “níveis do processo informacional de amplificação”: a
amplificação transdutiva “por recrutamento positivo”; a amplificação moduladora “por limitação”; e a
amplificação organizadora “por descoberta de um sistema de compatibilidade”. Para cada um dos três
níveis, Simondon apresenta exemplos dos mundos físico, vivo, técnico e psicossocial.
Palavras-Chave: Gilbert Simondon, informação, amplificação, transdução, modulação, organização.
http://dx.doi.org/10.1590/0101-3173.2020.v43n1.16.p283
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informação não pode ser definida fora desse ato de incidência transformadora
e da operação de recepção. Não é o emissor que faz de uma estrutura uma
informação, pois uma estrutura pode se comportar como informação
com relação a um receptor dado, sem ter sido composta por um emissor
individualizado e organizado; impulsões provenientes de fenômenos aleatórios
podem disparar um dado receptor, da mesma forma como as provenientes
de um emissor (cf. o sinal interferente, o ruído, a interferência e o QRM).4
Em contraposição, os sinais emitidos por um emissor resultam apenas na
degradação de sua energia portadora, se eles não encontrarem um ou mais
receptores nos quais eles desempenhem um papel eficaz, determinando as
mudanças de estado que não poderiam ocorrer sem a incidência dos sinais: a
realidade local, o receptor, é modificado em seu devir pela realidade incidente,
e é essa modificação da realidade local pela realidade incidente que é a função
da informação. É virtualmente receptora toda realidade que não possui
inteiramente nela mesma a determinação do curso de seu devir. Essa condição
é realizada se o receptor não é completamente um sistema, isto é, se, de um
lado, ele possui um nível de organização elevado (com isolamentos internos e
uma distribuição não-aleatória de seus elementos, permitindo-lhe reter uma
energia potencial capaz de operar transformações futuras), e se, de outro lado,
a mudança de estado possível pelo jogo da energia potencial não depende de
fatores internos, locais.
O receptor é uma realidade autônoma, do ponto de vista energético,
pois ele possui a energia potencial (energia de estado) capaz de garantir
transformações, de as alimentar; mas o receptor não é efetivamente um
receptor, se não for heterônomo do ponto de vista da causa que dispara as
transformações – essa causa disparadora sendo um aporte de energia incidente,
eventualmente tão fraco quanto se queira. Por isso (autonomia energética e
heteronomia da disparação das transformações por mudança de estado), um
receptor é um quase-sistema, um sistema de entrada. Com efeito, o conceito
físico de sistemas acoplados – aplicado a um receptor e a um emissor – não
permite dar conta, com precisão, da função de informação: a energia fraca
incidente do sinal não entra diretamente em relação com a energia potencial
do receptor; aquela não se acrescenta a esta, nem a subtrai, não se encontra
no trabalho produzido na saída do receptor terminando em um efetor; ela
age como “causa ocasional” e pode iniciar a mudança de estado do receptor
por uma modificação da estrutura de isolamentos internos do receptor, sem
4
Código de rádio que significa: “Está com interferência?”
1 A amplificação transdutiva
O modo mais elementar da operação de informação que coloca em
funcionamento a metaestabilidade do receptor é a amplificação transdutiva. Ela
pode ser encontrada particularmente nas soluções supersaturadas ou nos líquidos
em estado de sobrefusão. Quando se introduz um germe cristalino microscópico
numa tal solução, a cristalização se produz por amplificação, a partir do ponto
onde o germe foi introduzido. De maneira controlada, pode-se obter assim um
monocristal de tamanho considerável, pesando talvez muitos quilos, a partir
o que muda a polarização com relação ao meio sobre toda a extensão, desde
o momento em que o ataque do metal começa em um ponto). Há, assim,
amplificação da operação inicial de incidência despolarizante pela iteração
indefinida ao longo de todo o receptor.
Os modelos tecnológicos que empregam um processo transdutivo
supõem a possibilidade de uma reação em cadeia a qual se propaga gradualmente;
segundo a estrutura inicial mais ou menos limitante, a propagação ganha um
aspecto de transferência aditiva ou multiplicativa, segundo o modelo da linha,
da superfície e do volume, sendo a entrada somente um ponto. A propagação
transdutiva da combustão em um pavio Bickford é uma transferência aditiva,
assim como a propagação da onda explosiva em um cilindro contendo um
mistura detonante; ao contrário, a propagação de um incêndio de floresta, a
partir de um foco, é uma transferência multiplicativa segundo o modelo da
superfície; enfim, a propagação da reação química em um volume de explosivo,
a partir de um ponto central de ignição, é uma transferência multiplicativa
segundo o modelo do volume. O fenômeno permanece informacional, mesmo
se a ligação entre os elementos se faz por intermédio de uma transmissão,
desde que essa transmissão seja apenas a expressão da mudança de estado do
elemento anterior. Assim, um fogo na floresta se propaga transdutivamente,
mesmo se cada árvore queimada emita ao seu redor pinhas e faíscas que vão
comunicar o fogo às árvores vizinhas: é preciso que a árvore em chamas tenha
mudado de estado, tenha entrado em combustão com o ar ambiente, para
emitir assim os elementos que transportam o fogo adiante; e é preciso que
esses elementos transmitidos sejam recebidos pelas outras árvores em estado
metaestável (secas, arejadas), para que a operação transdutiva continue; as
transmissões intermediárias entre os elementos transdutivos, mudando de
estado, autorizam, apenas, uma maior distância entre elementos; eles podem
também, se acumularem energia, causar um atraso na propagação, conservando
mesmo assim o esquema fundamental da amplificação transdutiva.
Esse modelo se aplica aos processos psicossociais; em certo sentido, ele
permite defini-los, pois os fenômenos psicossociais são psíquicos, por terem
como entrada uma incidência de tipo psíquica, individual; mas eles são sociais,
pois se propagam por amplificação transdutiva, o que os faz passar da dimensão
individual de entrada à dimensão coletiva de saída. Com efeito, os fenômenos
puramente psíquicos são aqueles que se produzem no indivíduo sem modificar
seu estado de equilíbrio, sem desencadear nele uma transformação que se
traduza por uma atitude percebida como nova e significativa para um outro
2 A amplificação moduladora
O esquema da amplificação moduladora é obtido domesticando-se
a propagação transdutiva; isto é, dominando-a e a alimentado localmente,
para fazê-la produzir e trabalhar em condições regulares. Na transdução, o
fenômeno de basculamento, de passagem da metaestabilidade à estabilidade,
muda constantemente de suporte, ao avançar; na modulação, o local de
passagem do estado energético metaestável ao estável é fixo: uma fonte de
energia potencial (power supply) está aguardando e pode agir por meio de
um efetor sobre uma carga; a energia não é mais contida em estado difuso
na metaestabilidade do estado inicial do receptor, ela é contida por um
dispositivo de alimentação que forma um quase-sistema com o efetor, agindo
sobre a carga; enfim, a entrada intervém como incidência no hiato desse
quase-sistema (preferimos esse termo àquele de Bertalanffy: sistema aberto);
entre alimentação e saída do efetor sobre a carga, existe a entrada. A entrada
age como um isolamento variável que se interpõe entre a fonte de energia e
a carga; esse isolamento não acrescenta energia ao quase-sistema, tampouco
a suprime; ele governa, controla o regime de mudança de estado de energia
potencial, a cada instante, seja por escolha entre dois valores (tudo ou nada,
regime pleno ou nulo, abertura ou fechamento do circuito reunindo a fonte
de energia e a carga), seja por escolha entre uma infinidade de valores entre
um máximo e um mínimo, entre a saturação e a interrupção. Nesse caso –
desde que não se evoque, como no tiratron, um processo transdutivo auxiliar
(a ionização em cascata) -, a irreversibilidade do vetor causal, orientada da
normas de ação; ora, as normas não são, na grande generalidade dos casos,
sinais ou conteúdos que desencadeiam por si próprios uma ação determinada,
em um momento determinado, como um programa; antes, as normas são
uma escala de valores a qual constitui a polarização prévia de cada membro
do grupo, tornando-o capaz de apreciar uma informação determinada, um
esquema de conduta, como uma grandeza positiva ou negativa com relação a
essa polarização inicial. Nesse sentido, uma moral se distingue de uma religião,
por esta comportar um código, um conteúdo de sinais de ação, um programa
de ação ritualizado, ao passo que uma moral é uma polarização sem programa,
fornecendo uma escala de valores em cada circunstância, mas sem sequência
programada, sem ritualização. Por sua própria natureza, sendo um programa,
a escala de valores religiosa é rígida, fixa, enquanto aquela das morais é variável,
podendo se modificar em função do regime médio dos acontecimentos.
Toda polarização, como todo sinal de informação recebido por um
amplificador-modulador, resulta de um acontecimento ou de uma série de
acontecimentos passados, parcialmente arcaicos no momento em que o
modulador opera. Essa estrutura é um controle do regime atual da ação da
energia potencial sobre uma carga em função de seu passado; e esse controle é
tornado possível por uma diminuição da ação da energia potencial, por uma
divisão da potência utilizável, graças à polarização que age como inibidor
prévio; a incidência de um elemento do passado (informação) na ação presente
do quase-sistema necessita, para ser eficaz, de uma diminuição da utilização
da energia e do nível de atividade total. O ponto ótimo de estabilidade
homeostática é distante do máximo das possibilidades de funcionamento do
modulador e do pleno emprego do rendimento da energia potencial da fonte,
devido às condições de polarização. No domínio social, religiões e morais
operam um regime permanente de limitação da atividade.
3 A amplificação organizadora
Um regime comum de transdução e de modulação pode se estabelecer,
quando as decisões sucessivas da transdução, em lugar de somente se
desencadearem umas às outras, numa perpétua instantaneidade, se ordenam
em série por meio de uma autorregulação: o recrutamento é, assim, orientado
para um fim, em lugar de ser indefinido; cada decisão sucessiva leva em conta o
efeito de decisões precedentes: o domínio da transdução intervém como carga
sobre a qual se opera um trabalho na sequência de decisões sucessivas: há como
Considerações Finais
Se os três modos possíveis de amplificação são característicos de três
tipos de relações em relação dialética, podemos perguntar, de início, se a
relação dialética não é sempre o progresso, em três etapas, de um processo
de amplificação inicialmente transdutivo, depois modulador e, enfim,
organizador, devendo-se essa sucessão à mudança do domínio que realiza o
exercício de um determinado tipo de amplificação.
Com efeito, a amplificação transdutiva é essencialmente positiva; ela
não supõe nem isolamento, nem limite; ela é o modelo da operação positiva,
que se alimenta dela mesma e se propaga pelo resultado instantâneo de seu
próprio exercício: ela se afirma, porque causa perpetuamente sua própria
capacidade de avançar; ela é autoposição, e não é autolimitada. Ao contrário, a
modulação supõe isolamento entre seus órgãos fundamentais: fonte de energia,
entrada e saída do modulador; ela não é uma propagação autocondicionada,
mas uma operação localizada [à poste fixe], que só é possível por uma inibição
da atividade espontânea possível: ela se inscreve negativamente na atualização
de uma energia potencial, e diminui o rendimento da transformação possível.
Em lugar de ser, como a transdução, movimento rumo à zona rica em energia
potencial, a partir do domínio já estruturado, a modulação realiza uma
submissão de uma série nascente do devir ao ato final de uma série anterior; ela
determina o novo segundo a estrutura do antigo (ação de relé), o condiciona.
Enquanto a transdução é orientada para o futuro, a modulação é uma vitória
do antigo sobre o novo, uma reciclagem da estrutura antiga. A modulação
é o ato crítico, redutor, no sentido próprio do termo; ela é o modelo do
controle, da autoridade, no domínio social, assim como da operação destinada
a evitar a variação fortuita, a detectar o erro. A organização corresponde à
estabilidade do presente completo, dilatado em momento, etapa que condensa
e mantém uma certa dimensão do passado e uma certa duração do futuro:
Abstract: This is a Portuguese translation of the paper “L’amplification dans les processus d’information”,
presented by Gilbert Simondon in 1962, at the Colloque de Royaumont about “the concept of
information in contemporary science” (Le concept d’information dans la science contemporaine). In this
paper, Simondon presents, and correlates, three “levels of the informational process of amplification”:
transductive amplification “by positive recruiting”; modulative amplification “by limitation”; and
organizing amplification “by discovery of a system of compatibility”. For each one of the three levels,
Simondon presents examples of the physical, living, technical and psycho-social worlds.
Keywords: Gilbert Simondon, information, amplification, transduction, modulation, organization.
Recebido: 29/08/2018
Aceito: 29/06/2019
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