Emoções e Ética
Emoções e Ética
Emoções e Ética
naÉticaenaMetaética
Flavio Williges
Marcelo Fischborn
David Copp
(Organizadores)
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
Série Dissertatio Filosofia
Flavio Williges
Marcelo Fischborn
David Copp
(Organizadores)
Pelotas, 2018
REITORIA
Reitor: Pedro Rodrigues Curi Hallal
Vice-Reitor: Luís Isaías Centeno do Amaral
Chefe de Gabinete: Taís Ullrich Fonseca
Pró-Reitor de Graduação: Maria de Fátima Cóssio
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Flávio Fernando Demarco
Pró-Reitor de Extensão e Cultura: Francisca Ferreira Michelon
Pró-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Otávio Martins Peres
Pró-Reitor Administrativo: Ricardo Hartlebem Peter
Pró-Reitor de Infraestrutura: Julio Carlos Balzano de Mattos
Pró-Reitor de Assuntos Estudantis: Mário Renato de Azevedo Jr.
Pró-Reitor de Gestão Pessoas: Sérgio Batista Christino
EDITORA DA UFPEL
Chefia: João Luis Pereira Ourique (Editor-chefe)
Seção de Pré-produção: Isabel Cochrane (Administrativo)
Seção de Produção: Gustavo Andrade (Administrativo)
Anelise Heidrich (Revisão)
Ingrid Fabiola Gonçalves (Diagramação)
Seção de Pós-produção: Madelon Schimmelpfennig Lopes (Administrativo)
Morgana Riva (Assessoria)
CONSELHO EDITORIAL
Prof. Dr. João Hobuss (Editor-Chefe)
Prof. Dr. Juliano Santos do Carmo (Editor-Chefe)
Prof. Dr. Alexandre Meyer Luz (UFSC)
Prof. Dr. Rogério Saucedo (UFSM)
Prof. Dr. Renato Duarte Fonseca (UFSM)
Prof. Dr. Arturo Fatturi (UFFS)
Prof. Dr. Jonadas Techio (UFRGS)
Profa. Dra. Sofia Albornoz Stein (UNISINOS)
Prof. Dr. Alfredo Santiago Culleton (UNISINOS)
Prof. Dr. Roberto Hofmeister Pich (PUCRS)
Prof. Dr. Manoel Vasconcellos (UFPEL)
Prof. Dr. Marco Antônio Caron Ruffino (UNICAMP)
Prof. Dr. Evandro Barbosa (UFPEL)
Prof. Dr. Ramón del Castillo (UNED/Espanha)
Prof. Dr. Ricardo Navia (UDELAR/Uruguai)
Profa. Dra. Mónica Herrera Noguera (UDELAR/Uruguai)
Profa. Dra. Mirian Donat (UEL)
Prof. Dr. Giuseppe Lorini (UNICA/Itália)
Prof. Dr. Massimo Dell'Utri (UNISA/Itália)
DIREÇÃO DO IFISP
Prof. Dr. João Hobuss
A Série Dissertatio Filosofia, uma iniciativa do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Filosofia (sob o
selo editorial NEPFIL online) em parceira com a Editora da Universidade Federal de Pelotas,
tem por objetivo precípuo a publicação de estudos filosóficos relevantes que possam contribuir
para o desenvolvimento da Filosofia no Brasil nas mais diversas áreas de investigação. Todo o
acervo é disponibilizado para download gratuitamente. Conheça alguns de nossos mais
recentes lançamentos.
A Companion to Naturalism
Juliano do Carmo (Organizador)
NEPFil online
Rua Alberto Rosa, 154 – CEP 96010-770 – Pelotas/RS
Os organizadores
NOTA SOBRE OS AUTORES
JOHN COTTINGHAM é professor emérito de Filosofia da University of Reading. Atualmente
possui uma Professorial Research Fellow no Heythrop College da University de Londres; é
professor de Filosofia da Religião na University of Roehampton, de Londres, e professor
visitante no King’s College, Londres. É autor de mais de trinta livros e cento e trinta artigos
em revistas e livros especializados. Website pessoal: http://www.johncottingham.co.uk/
ÉRICO ANDRADE é Doutor em filosofia pela Sorbonne (Paris IV). Atualmente é professor
associado da Universidade Federal de Pernambuco. Tem experiência na área de filosofia
moderna, com ênfase na epistemologia moderna. Há alguns anos tem se dedicado à ética
e à política com enfoque em abordagens contemporâneas, sobretudo ligadas aos conceitos
de empatia, jogos de linguagem moral, cuidado, identidade e vulnerabilidade.
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
MICHAEL SLOTE é professor de ética na University of Miami, EUA, e membro da Royal Irish
Academy. Autor de inúmeros livros, entre eles From Morality to Virtue (1992) e Morals From
Motives (2001). Seu interesse concentra-se em ética, psicologia moral e teoria racional da
escolha.
JÔNADAS TECHIO é Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Desenvolveu dois projetos de pesquisa pós-doutoral (UFRGS 2009-2011, bolsa
CAPES/PRODOC, e Universidade de Chicago 2013-14, bolsa CAPES/Fulbright).
Atualmente professor adjunto no Departamento de Filosofia da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS). Sua área de pesquisa atual é em temas de Metafísica,
Epistemologia, Filosofia da Mente e da Linguagem, Filosofia Moderna e Contemporânea e
Filosofia do Cinema.
VI
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
IDIA LAURA FERREIRA é Doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Atualmente é pesquisadora de pós-doutorado no Centro de Ética e Filosofia da
Mente/IFCS-UFRJ com o projeto Racionalidade Prática e Ação Moral com apoio FAPERJ
desde 2012. Sua área de pesquisa atual é em temas de moralidade, metaética, filosofia da
mente e filosofia moral prática.
CARLOS ADRIANO FERRAZ é Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul. Atualmente é professor do Departamento de Filosofia da Universidade
Federal de Pelotas, membro da American Philosophical Association (APA) e consultor ad
hoc das agências Fulbright e Alexander von Humboldt-Stiftung/Foundation. Autor de
VII
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
VIII
SUMÁRIO
Agradecimentos IV
Nota sobre os autores V
Apresentação XI
Ricardo Bins di Napoli
1. As razões, as emoções e o bem viver 16
John Cottingham
2. Emoções 39
Julien Deonna, Fabrice Teroni e Christine Tappolet
3. A soberania dos afetos: uma crítica ao utilitarismo a partir da empatia e da
psicanálise 84
Érico Andrade
4. A importância da fenomenologia: o que a amabilidade e a frieza humana podem
nos ensinar sobre ética? 103
Michael Slote
5. Em defesa da empatia: uma resposta a Prinz 137
Cláudia Passos-Ferreira
6. O papel da indignação de uma perspectiva perfeccionista 177
Jônadas Techio
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
X
APRESENTAÇÃO
1 HUME,D. Uma investigação sobre os princípios da Moral. Trad. José Oscar de A. Marques.
Campinas: EdUnicamp, 1995, p.175.
XII
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
XIII
RICARDO BINS DE NAPOLI
XIV
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
convicções morais e ações – não implica a tese sentimentalista mais robusta que
diz que sentimentos morais são constitutivos de valores ou juízos morais. A
conclusão proposta é que cada uma dessas teses precisa de apoio independente.
O capítulo 11, “Elementos da metaética: Cognitivismo internalista e a teoria
volitiva”, de Idia Laura Ferreira, explora o papel a ser desempenhado por teorias
volitivas da ação, que enfatizam noções como intenção e vontade, sem reduzi-las
a noções como a crença e o desejo, na compreensão da agência moral. E no
capítulo 12, “Memória, autocompreensão e agência”, Marina Oshana investiga o
papel da memória no autocontrole sobre as próprias ações. Particularmente, ela
argumenta, certo conjunto de memórias do agente sobre si mesmo, que permitem
que se reconheça ao longo do tempo e que embasam sua psicologia moral, são
cruciais para sua agência prática.
O capítulo 13, “Delicadeza e ternura: Hume e o feminino”, de Lívia
Guimarães, destaca emoções e outros elementos de caráter feminista na obra e
vida de David Hume, os quais se articulam especialmente em torno da noção de
‘ternura’ – uma excelência feminina, como propõe a autora. No capítulo 14, “Kant e
o sentimento moral”, Carlos Adriano Ferraz esclarece o papel do sentimento moral
na filosofia prática kantiana, o qual, segundo ele, cumpre o papel de mostrar como
a razão pode ser prática, isto é, conduzir efetivamente à ação. O capítulo 15, de
André Klaudat, intitula-se “Motivação e valor em Hume e Kant”. O autor analisa e
compara o papel da motivação na filosofia moral de Hume e Kant, sendo que para
ambos essa noção é central. Por fim, o capítulo 16, de Frank Thomas Sautter, “A
filosofia moral de Paul Grice”, encerra o livro analisando alguns elementos da
filosofia moral de Paul Grice, incluindo as condições para uma lógica do âmbito
prático, o tratamento da noção aristotélica de eudaimonia e a proposta de uma
metafísica do valor.
XV
1
AS RAZÕES, AS EMOÇÕES E O BEM VIVER*
JOHN COTTINGHAM
Introdução
A filosofia pretendeu, tradicionalmente, oferecer uma caracterização do que
é o bem viver para os seres humanos. Eustáquio, um escolástico contemporâneo
de Descartes, observou que “o objetivo de uma filosofia completa é a felicidade
humana”1. E o próprio Descartes, fiel a essa tradição, viu a ‘árvore’ da sua filosofia
dando como fruto para a humanidade o que ele chamou de um “sistema moral
mais perfeito”2; o qual foi concebido como um desenvolvimento orgânico de todo
seu projeto filosófico, que nasceu de suas descobertas científicas em fisiologia e
psicologia, embora estivesse também profundamente enraizado em uma
metafísica que via toda a realidade como o reflexo “da luz imensa” da verdade
objetiva e da bondade3. Em seu projeto, o sistema moral representava o “último
integral das outras ciências. Ora, como não é das raízes e nem do tronco das árvores que se colhe os
frutos, mas apenas das extremidades dos ramos, a principal utilidade da Filosofia depende daquelas
suas partes que são aprendidas em último lugar” René Descartes, Prefácio à tradução francesa de
1647 dos Principles of philosophy, AT IXB 14-15: CSM I 186. Nesse texto, ‘AT’ refere-se à edição
franco-latina padrão das obras de Descartes por C. Adam & P. Tannery, Œuvres de Descartes (12
vols, revisada e editada, Paris: Vrin/CNRS, 1964-76); ‘CSM’ refere-se à tradução inglesa por J.
Cottingham, R. Stoothoff and D. Murdoch, The Philosophical writings of Descartes, vols I and II
(Cambridge: Cambridge University Press, 1985), e ‘CSMK’ ao vol. III, The correspondence, pelos
mesmos tradutores e mais A. Kenny (Cambridge: Cambridge University Press, l991).
3 “Placet hic aliquamdiu in ipsius Dei contemplatione immorari […] et immensi hujus luminis
pulchritudinem […] intueri, admirari, adorare”. (“parece-me muito a propósito deter-me algum tempo
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
na contemplação deste Deus todo perfeito, ponderar totalmente à vontade seus maravilhosos
atributos, considerar, admirar e adorar a incomparável beleza dessa imensa luz”). Descartes, Terceira
Meditação, AT VII 52: CSM II 36. Cf. edição portuguesa: Descartes, R. Meditações. São Paulo: Abril
Cultural, p.112.
4 Por exemplo, a República [c. 375 BC]; ver, abaixo, a seção 6. Há, claro, outros direcionamentos na
abordagem ética de Platão que dão outros resultados: ver, por exemplo, o Fedro [c. 370 BC], e a
esclarecedora discussão dele por Martha Nussbaum, The fragility of goodness (Cambridge:
Cambridge University Press, 1986), Ch. 7.
17
JOHN COTTINGHAM
5 “Sed nil dulcius est, bene quam munita tenere/Edita doctrina sapientum templa serena”. Lucretius,
De rerum natura, [c. 40BC], II, 7-8. Embora a abordagem epicurista exposta por Lucrécio não seja
inteiramente típica do ‘raciocentrismo’ que tenho em mente, é interessante ver o poder exercido aqui
pelo ideal do distanciamento racional; em muitos aspectos a citação poderia igualmente ter vindo de
um escritor estóico. Cf. a tradução portuguesa de Lucrécio. Da natureza. São Paulo: Abril Cultural,
1980, p.47.
18
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
6 Ἐν βίῳ τελεἰῳ (en biô teleiô); Aristoteles, Nicomachean ethics [325 BC], Bk I, Ch. 7 (1098a18).
7 Ver Aristoteles,
Nicomachean ethics, Bk I, Ch. 10 (1101a8).
8 Ésquilo, Agamemnon [458 BC], 939.
9 Cf. Nicomachean Ethics, Bk I, Ch.7.
10 Salmos [c. 600 BC], 1:3.
11 O termo tem muitos sentidos na história da filosofia; alguns deles derivam de mal-entendidos ou
distorções do pensamento de Aristóteles. Eu uso o termo aqui no primeiro sentido identificado pelo
Oxford English dictionary (versão online) como sendo o uso primário de Aristóteles: “A realização ou
expressão completa de alguma função; a condição em que uma potencialidade tornou-se uma
realidade”.
19
JOHN COTTINGHAM
deixa claro que há mais coisas envolvidas numa vida feliz do que uma mera soma
de atividades valiosas separadas. É necessário que haja um padrão teleológico
geral12, o que significa que sua concepção da boa vida é inerentemente holista. A
vida de virtude não é propriamente um agregado de excelências, mas uma vida em
que todas as excelências ajustam-se harmoniosamente num todo: Aristóteles
insistiu famosamente que a posse de uma virtude implica a posse de todas13. Essa
alegação aparentemente paradoxal sobre as virtudes atuando conjuntamente tem
sido debatida e dissecada infindavelmente em análises críticas. Mas o ponto
subjacente é, creio, bem simples: o bem viver, para Aristóteles, tem uma unidade
orgânica. Há algo que o ser humano pretende ser – um organismo unificado, feliz,
que desenvolveu suas excelências características no curso da vida14.
Desta concepção evidentemente se segue que a boa vida tem que ser uma
vida integral. Em contraste com a concepção de Platão na República (que
posteriormente exerceu uma forte influência nos estóicos) – uma concepção em
que as emoções são controladas e subordinadas à razão – Aristóteles deixa claro
que para o ser humano virtuoso e feliz a razão e as emoções estão em harmonia.
O agente virtuoso não precisa exercitar um expediente de autocontrole de
“segunda mão”15, uma vez que, para ele, as emoções já estão desenvolvidas pela
boa educação e treinamento, de modo que elas concordam espontaneamente com
a percepção racional do bem. A exigência de integração conecta-se com a
concepção da felicidade na ‘vida-inteira’, pois a rede da razão e emoção não opera
apenas sincronicamente, em uma dada escolha num dado momento ou num
determinado dia, mas diacronicamente, ou seja, sobre a trajetória completa da vida
da pessoa virtuosa. Cada vez que uma ação virtuosa é realizada, a satisfação
12 Não planejar sua vida em direção a algum fim é, diz Aristóteles, “um sinal de grande tolice”;
Eudemian ethics [c. 325 BC], 1214b10-11.
13 Nicomachean ethics, Book VI, Ch. 13 (1145a1-2).
14 Para um tratamento mais abrangente dessa idéia e que ultrapassa a estrutura fornecida pelo
20
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
16 O prazer aperfeiçoa a atividade “como um tipo de perfeição subsequente, como a força que
embeleza as flores da juventude”; Nicomachean ethics, Bk X, Ch. 4, 1174b33.
17 Para formulações desse tipo, confira a investigação instrutiva de Justin OAKLEY “A virtue-ethics
approach”. In: H. Kuhse e P. Singer (eds), A companion to bioethics (Oxford: Blackwell, 1998), Cap.
10.
18 Salmo 86 [85]:11. Em hebraico o salmista pede a Deus yahed levavi, que significa, literalmente,
“une meu coração!” (o verbo imperativo yahed deriva da raíz ehad, que significa um).
21
JOHN COTTINGHAM
encontramos a parábola do filho pródigo, que sai em exílio para esbanjar sua
herança, mas um dia acorda e “volta a si mesmo” (eis heauton elthôn) (Lucas
15:17). Como o escritor dominicano Timothy Radcliffe colocou, a decisão do filho
pródigo de voltar para sua casa e família é realmente a mesma de redescobrir seu
eu verdadeiro, “uma vez que o exílio de sua família é um exílio de sua verdadeira
identidade como filho e irmão. Ele só pode encontrar-se a si mesmo novamente
através deles”19.
A ideia aqui é que eu tenho uma ‘identidade verdadeira’, um eu integrado,
unificado, o eu que pretendo ser, o eu que expressa tudo o que é melhor e mais
distintivo sobre mim mesmo; e ainda, que o objetivo de minha vida seria
desenvolver-me na direção desse eu unificado. Isso pode parecer para algumas
pessoas como uma concepção idealizada e exaltada do bem viver. Mas eu creio
que essa é a direção que nosso pensamento deve tomar se começarmos a refletir
seriamente sobre o que está envolvido no conceito de integridade20. Integridade,
como a etimologia sugere, tem relação com totalidade – envolve a integração
plena de todo o eu.
2. Integridade
Mas o que a integridade realmente implica em termos éticos e psicológicos,
e como podemos interpretá-la melhor hoje? Nossa paisagem cultural
contemporânea, como Alasdair MacIntyre argumentou, parece ter perdido de vista
esse valor inteiramente, substituindo-o por uma visão fragmentada da vida
humana, que:
[…] divide a vida humana numa série de segmentos, cada um com suas próprias
normas e modalidades de comportamento. Portanto, o trabalho é separado do lazer,
a vida privada da vida pública, o institucional do pessoal. Assim, a infância e a
velhice foram amputadas do resto da vida humana e transformadas em dois setores
distintos. E todas essas separações foram criadas de tal forma que é a
19 Timothy RADCLIFFE. Why go to church: The drama of the eucharist. London: Continuum, 2008,
p.20.
20 Os temas desenvolvidos nessa seção foram discutidos em J. COTTINGHAM. “Integrity and
22
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
21 Alasdair MACINTYRE, After virtue. London: Duckworth, 1985, cap.15, p.205; a pontuação foi
modificada. Cf. MACINTYRE, A. Depois da virtude. Tradução de Jussara Simões. Bauru: EDUSC,
2001, p.343.
22 Charles TAYLOR, Sources of the self: The making of modern identity. Cambridge: Cambridge
University Press, 1989, p.46-52. Ver TAYLOR, C. As fontes do self. São Paulo: Loyola, 1998.
23
JOHN COTTINGHAM
23 CarlG. JUNG, “Problems of modern psychotherapy” [“Die Probleme der modernen Pychotherapie”,
1929]. In: Modern man in search of a soul. Essays from the 1920s and 1930s. Tradução de C. F.
Baynes (London: Routledge, l933), p.40.
24
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
25
JOHN COTTINGHAM
26 David HUME, A Treatise of human nature [1739–40], Bk II, part iii, section 3. Ver HUME, D. Tratado
da natureza humana. Tradução de Déborah Danowski. São Paulo: Editora da UNESP, 2001, p.451.
27 David HUME. Enquiry concerning the principles of morals [1751], Section IX, part 1, §4.
28 Samuel BUTLER. Fifteen sermons [1726], Sermon II, §8.
26
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
29 Benedict SPINOZA. Ethics [Ethica ordine geometrico demonstrata, c.1665], Bk IV, Prop. 35. Na
tradução para o português: B. SPINOZA. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica,
2007. Parte IV, Prop. 35, p.301.
30 William SHAKESPEARE, Anthony and Cleopatra [c. 1606], Act IV, Scene 6.
27
JOHN COTTINGHAM
28
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
34 Para reconhecer algumas das implicações disso para a maneira como a filosofia analítica é
comumente praticada, ver J. COTTINGHAM, “What is humane philosophy and why is it at risk?”,
Philosophy, Supplement 65, p.1-23, 2009; e A. O’Hear (ed.), Conceptions of philosophy, Royal
Institute of Philosophy series. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.
35 Michael SLOTE, The ethics of care and empathy. London/New York: Routledge, 2007. Para
conhecer algumas reservas na abordagem de Slote, ver J. COTTINGHAM. “Empathy and ethics”. In:
Abstracta, Special Issue IV, p.13-19, 2010, e a réplica de Slote, p.44ff.
36 Michael STOCKER com Elizabeth HEGEMAN, Valuing emotions. Cambridge: Cambridge University
Press, 1996, p.94. Citado por Mark WYNN, “The relationship of religion and ethics: A comparison of
Newman and contemporary philosophy of religion”. In: Heythrop Journal, 2005.
37 Mark WYNN, “The relationship of religion and ethics”. Ver também Wynn, Emotional experience and
29
JOHN COTTINGHAM
38 Marcel PROUST, A la recherche du temps perdu [1913-27], transl. L. Scott Moncrieff. London:
Chatto & Windus, 1967, Vol. III, p.426. Citado por NUSSBAUM, ‘Love’s Knowledge’ [1988],
reimpresso em M. Nussbaum, Love’s Knowledge. Oxford: Oxford University Press, 1990, p.265.
39 NUSSBAUM, Love’s Knowledge, p.262.
40 NUSSBAUM, Love’s knowledge, p.268-9 (grifo do autor). Essa discussão de Nussbaum foi extraída
30
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
de J. COTTINGHAM, The spiritual dimension. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, Cap. 1.
Ver John COTTINGHAM. A dimensão espiritual: religião, filosofia e valor humano. Tradução de Edson
Bini. São Paulo: Loyola, 2008.
41 Carta de 1 de setembro de 1645 (AT IV 284-5: CSMK 264). Descartes começa dizendo que as
paixões frequentemente “nos fazem julgar certas coisas melhores e mais desejáveis do que o são e
nos fazem imaginar um prazer muito maior antes de tê-lo (o bem) do que aquele que a experiência
subsequente realmente revela”. A carta termina com a observação que “a verdadeira função da razão
na conduta da vida é examinar e considerar sem paixão o valor de todas as perfeições, tanto do
corpo quanto do espírito, que podem ser adquiridas por nossa conduta, a fim de que, de tal modo que
sendo comumente obrigados a nos privar de algumas, escolhamos sempre as melhores”.
DESCARTES, R. Cartas. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p.313-316.
42 Tais questões são reconhecidas e examinadas por Michael Slote em The ethics of care and
empathy.
31
JOHN COTTINGHAM
43Iain MCGILCHRIST, The master and his emissary: The divided brain and the making of the western
world. New Haven: Yale University Press, 2009. McGilchrist às vezes parece falar como se os
próprios hemisférios fossem sujeitos de consciência, embora muitos filósofos poderiam
(corretamente) se abster de atribuir estados psicológicos a cérebros ou partes de cérebros, em vez
de atribuir tais estados a seres humanos tomados por inteiro.
32
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
33
JOHN COTTINGHAM
34
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
46 Acerca do termo ‘evidência do espectador’, ver Paul MOSER, The elusive God. Cambridge:
Cambridge University Press, 2008, p.47.
47 MCGILCHRIST, Master and emissary, p.93.
35
JOHN COTTINGHAM
Eleanore STUMP, Wandering in Darkness Narrative and the Problem of Suffering. Clarendon Press,
48
36
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
o próprio tema do bem viver. Nossa natureza nos deu a habilidade única de nos
afastarmos do mundo e mesmo dos trabalhos de nossos próprios corpos, a
habilidade de analisar e, em alguma medida, controlar a realidade, nos oferecendo
o sonho de virmos a ser, na impressionante e, como tardamos a reconhecer,
sinistra expressão de Descartes “mestres e senhores da natureza”49. Mas há
também essa outra habilidade, tão apreciada, de ouvir o mundo e a voz de nossa
própria consciência interna e permitir a nós mesmos sermos abertos e
responsáveis pelo que ouvimos. Isso não é, em si mesmo, uma receita para o bem
viver, mas talvez seja o primeiro passo em direção a essa humildade que criaturas
como nós precisam, se pretendemos realmente sermos felizes.
Isso finalmente nos conduz de volta para aquele que talvez seja o elemento
mais importante do bem viver: a dimensão do sentido. Nós temos acesso ao
sentido, se o argumento que estou esboçando for persuasivo, não simplesmente
por flutuarmos nas partes constituintes das coisas, não somente via análise
distanciada e escrutínio, mas por sermos “abertos” e “porosos” às ressonâncias50
do todo, como uma pessoa inteira, numa vida completa, madura e que cresceu em
conhecimento e amor do bem. Formulações como essas podem soar mais
parecidas com um projeto espiritual do que filosófico, mas isso não deve nos
incomodar, particularmente à luz do trabalho de Pierre Hadot e outros que tem
mostrado como objetivos espirituais e filosóficos não estão, de nenhum modo, tão
separados como nossa cultura acadêmica contemporânea gostaria de torná-los51.
E se olharmos para a forma tradicional da disciplina espiritual, o que encontramos,
eu creio, é uma estratégia de perseguição do bem que reconhece a necessidade
de um engajamento corporalmente mediado, afetivamente sintonizado, de toda a
pessoa para uma visão ampla do bem. Nas práticas espirituais e litúrgicas típicas o
que está envolvido não é justamente reflexão e análise racional, mas a
publicado como Exercises spirituels et philosophie antique (Paris: Etudes Augustiniennes, 1987).
37
JOHN COTTINGHAM
52Para mais informações sobre esse ponto, ver J. COTTINGHAM, “Theism and spirituality”, no prelo
em V. Harrison, S. Goetz, e C. Taliaferro (eds), The Routledge companion to theism.
38
2
EMOÇÕES*
Introdução
Imagine que você escute, por acaso, um desconhecido fazer chacota de um
de seus melhores amigos. Naturalmente, você se sente ofendido. Uma raiva
enorme rapidamente toma conta de você. Seu sistema nervoso autônomo produz
uma série de alterações fisiológicas. À medida que o coração acelera, você prende
a respiração. Suas sobrancelhas se erguem e você fuzila com o olhar o autor da
chacota. Você cerra os punhos. Pensamentos atravessam sua mente sem parar.
Como se ousou insinuar alguma coisa tão sórdida a respeito de seu amigo? E,
então, você reflete sobre o comportamento que deveria adotar: afastar-se? Insultar
o maledicente? Ou, sem o devido respeito às almas sensíveis, partir para os
socos?
Diferente de outras emoções, a raiva levanta uma quantidade de questões
filosóficas fascinantes, das quais este capítulo não pode dar senão uma pequena
amostra. A primeira seção se propõe a comparar as emoções com outros
fenômenos afetivos, recorrendo a três distinções: a distinção entre disposições e
episódios psicológicos, a distinção entre experiências e outros estados
psicológicos e também a distinção entre estados psicológicos intencionais e não-
intencionais. A segunda seção põe a questão da natureza das emoções. Afirma-se
comumente que as emoções são avaliações, mas como compreender essa ideia?
É preciso considerar as emoções como juízos avaliativos, como percepções de
valores ou, ainda, como uma outra coisa? Para retomar nosso exemplo, a menos
que seja um tipo de percepção que não lhe permita ter consciência da ofensa ao
seu amigo, a sua raiva poderia consistir em julgar a chacota ofensiva. A terceira
seção se dedica ao papel epistêmico que as emoções desempenham na relação
com os juízos avaliativos. A raiva fornece alguma razão para julgar a chacota
ofensiva? Ela lhe dá condições de aceder ao fato correspondente? A quarta seção
considera diferentes aplicações do contraste inato/adquirido no tocante às
emoções. A cultura e a educação têm um papel na maneira como você fica com
raiva e na sua expressão dessa raiva? Se for esse o caso, qual é o papel dessa
emoção? A relação entre as emoções e a motivação é o objeto da quinta seção.
Qual é a relação entre a sua raiva e o seu desejo de não ser polido e dar um soco
no autor da ofensa? As emoções são suficientes para gerar ações ou somente
contribuem para os atos? Enfim, a sexta seção examina as funções que as
emoções podem desempenhar na ética. Mais especificamente, nela se discute a
hipótese de que se pode recorrer às emoções para compreender tanto a
motivação, quanto o juízo moral. Partindo desse pressuposto, a reação de raiva
diante da chacota revela uma significação moral.
1. As emoções e o domínio afetivo
Para quem se interessa pela natureza das emoções, uma das primeiras
questões concerne a sua similaridade com outros estados psicológicos, como os
humores, os sentimentos, as paixões e os desejos, estados que podemos nos
sentir tentados a agrupar no seio do domínio afetivo. Ora, os filósofos da mente
têm à sua disposição um conjunto de distinções que podem muito bem ajudar a
responder a essa questão. Pode-se assim distinguir os episódios psicológicos, que
são fenômenos relativamente pontuais, das disposições psicológicas, mais
estáveis; as experiências, que possuem um caráter fenomenal ou qualitativo, dos
estados mais “intelectuais” (juízos, suposições), que não possuem nada disso; e os
estados intencionais, que estão voltados a coisas outras que eles mesmos, dos
estados não-intencionais.
Com base na primeira distinção, é possível isolar duas categorias de
40
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
41
JULIEN DEONNA, FABRICE TERONI E CHRISTINE TAPPOLET
42
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
43
JULIEN DEONNA, FABRICE TERONI E CHRISTINE TAPPOLET
sentimento bom ou ruim, quer dizer, por uma tonalidade hedônica positiva ou
negativa? Esta última questão está intimamente ligada à noção de “valência” das
emoções (Charland 2005; Colombetti 2005; Teroni 2011) e encontra ecos
importantes no seio da literatura contemporânea sobre prazeres e desprazeres
(Aydede 2006).
A terceira distinção opõe os estados intencionais aos estados não-
intencionais. Ela também pode ser empregada para traçar as fronteiras no interior
do domínio afetivo. Existe notavelmente um forte contraste entre as sensações
corpóreas paradigmáticas e as experiências emocionais (Leighton 1985; Bedford
1957; Pitcher 1965). As cócegas ou uma sensação de frio nas costas, por exemplo,
não são voltadas ao que quer que seja, ou ao menos a algo que esteja fora do
corpo. Elas não têm intencionalidade, ao menos não o tipo de intencionalidade
característica das emoções. Com efeito, o medo, a cólera, a admiração e o prazer
estão voltados geralmente (senão sempre) a objetos, a acontecimentos e a
estados de coisas exterior: fica-se aborrecido com o pai; admira-se um pôr do sol;
tem-se prazer com uma piada; lamenta-se que Jeanne não pôde vir à festa.
Observe a passagem que as emoções podem fazer para objetos mais complexos:
certas emoções, como a vergonha e o orgulho, são reflexivas e desempenham por
isso um papel importante na nossa concepção da própria identidade (Taylor 1985;
Deonna, Rodogno & Teroni 2011), assim como as “metaemoções” que sentimos a
propósito de nossas próprias emoções, como quando lamentamos ter sentido raiva
(Jäger & Bartsch 2006). As emoções são estados intencionais. Uma vez admitido
isso, não deriva essa característica simplesmente dos pensamentos que a
acompanham? Poder-se-ia assim sustentar que o seu medo de um exame
consiste em um pensamento voltado para ele e acompanhado de um conjunto de
sensações típicas, as quais são elas mesmas despidas de intencionalidade
(Aristóteles 1994; Goldstein 2003; Whiting 2011). De maneira alternativa, poder-se-
ia concebê-lo como um sentimento não-intencional de insatisfação resultante da
tomada de consciência de que seu desejo de não se submeter ao exame será
frustrado (Reisenzein 2012). Qualquer que seja a resposta a essa questão,
veremos na seção seguinte que a intencionalidade das emoções tem um outro
44
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
aspecto, que poderia muito bem ser específico delas e que elas não parecem
possuir de maneira derivada.
Mas, antes, é preciso observar isto: é porque as emoções são tipicamente
dirigidas para fora do corpo que os filósofos têm, conjuntamente, sido reticentes
em lhes assimilar às sensações corpóreas – rejeitando por isso uma posição
correta ou incorretamente associada a William James (James 1884, 1890;
Ellsworth 1994; Ratcliffe 2005; Teroni 2017). Se essa propriedade diferencia as
emoções das sensações, ela as distingue igualmente dos humores. Estes últimos,
temos o costume de pensar, são episódicos e possuem um caráter fenomenal
(Pears 1975). Ademais, em que pese os humores serem em geral bastante
duradouros, seu perfil temporal não permite distingui-los das emoções de uma
maneira clara. Por exemplo, uma atenção sutil pode fazer com que cesse
imediatamente seu mau humor matinal. Contrariamente às emoções, os humores
não são todavia intencionalmente dirigidos para o que o quer que seja: há
certamente algo que faz com que estejamos de mau humor, mas dificilmente se
pode ser mal humorado a respeito de alguma coisa. Observe, aliás, que isso pode
consistir em uma razão para distinguir a causa de um estado afetivo de seu objeto.
De uma parte, os humores têm causas, mas não objetos. De outra, os objetos das
emoções não são necessariamente sua causa: a raiva de Paul pode ser causada
pelo testemunho de sua mãe e ter por objeto o seu pai (Kenny 1963).
A maneira como acabamos de traçar a distinção entre as emoções e os
humores está longe de constituir unanimidade, contudo. A diferença de
intencionalidade entre as emoções e os humores é categórica ou se trata apenas
de uma questão de grau (Crane 1998; Kind 2014; Mendelovici 2014)? Não teriam
os humores simplesmente objetos menos específicos que os das emoções, sendo
o mau humor um tipo de irritação dirigida contra o mundo em sua totalidade
(Goldie 2000)? Ou seria preciso entender a distinção entre os humores e as
emoções em termos do perfil modal específico do objeto dos humores, por
exemplo, admitindo que os humores representam a probabilidade de certas
possibilidades avaliativas se realizarem? (Price 2006; Tappolet 2016)?
Nós sugerimos que as emoções são estados psicológicos episódicos,
45
JULIEN DEONNA, FABRICE TERONI E CHRISTINE TAPPOLET
46
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
Você pode certamente acreditar que seu chefe lhe exige horas extras de trabalho,
mas pode também imaginar, crer, deplorar ou mesmo lembrar-se disso. Quer dizer
assim que a intencionalidade das emoções não difere daquela de outros tipos de
estados psicológicos? Certamente não. Afinal, as emoções não se contentam em
visar um objeto dado: elas lançam sobre ele um olhar positivo ou negativo. Mais
precisamente, elas avaliam seus objetos e distinguem-se umas das outras pela
maneira de fazê-lo (Platão 2016). Se você tem medo que seu chefe lhe exija horas
extras de trabalho, é porque você vê nisso, por exemplo, uma ameaça ao seu
bem-estar, ou então pensa que a resposta negativa que lhe daria prejudicaria a
sua carreira. De modo mais geral, o medo avalia o seu objeto como ameaçador ou
perigoso, a raiva como ofensivo, o prazer como engraçado e a vergonha como
degradante (Kenny 1963; Roberts 2003). Essa ideia é consistente com a maneira
com que nos acostumamos a conceber, ordinariamente, as emoções: com efeito,
se as emoções são avaliações, compreende-se que se as critique (“Tu não
deverias ter medo”) e se as desaprove (“Tu deverias ter mais compaixão”). Além
disso, observe que as diferentes ocorrências de um mesmo tipo de emoções
podem destinar-se a objetos variados, mas cuja avaliação em jogo é idêntica: quer
você tenha medo de insetos, de espaços confinados, de uma prova, do modo
como seu tio dirige ou da morte, você sempre avaliará o objeto de sua crença
como ameaçador. Parece que é sobre esse aspecto avaliativo que a
intencionalidade das emoções se distingue daquela de outros estados psicológicos
– a especificidade das emoções deveria ser situada não no nível de seus objetos
particulares, mas no nível do que o jargão filosófico descreve como seu objeto
“formal”, a saber, das propriedades avaliativas que, a um só tempo, apreendem os
objetos particulares a que visam (Teroni 2007).
Caso se aceite certas concepções clássicas das emoções, no entanto, essa
é uma conclusão à qual se deve resistir. Considere, por exemplo, a ideia muito
simples, a que subscrevem, aparentemente, os estóicos, segundo a qual as
emoções são juízos avaliativos. Segundo essa concepção, estar com raiva de um
vizinho consiste em julgar que ele cometeu uma ofensa, e ter vergonha equivale a
acreditar que se foi de alguma maneira aviltado (Nussbaum 2004; Solomon 1993).
47
JULIEN DEONNA, FABRICE TERONI E CHRISTINE TAPPOLET
Mas então, não haveria nada de muito original na intencionalidade das emoções: o
liame intencional entre esse episódio de raiva e o vizinho seria idêntico aquele
implicado no juízo segundo o qual ele cometeu uma ofensa, assim como com a
ligação intencional entre a vergonha de quem a sente seria idêntica àquela
implicada no juízo de que se foi aviltado.
Essa tentativa de reduzir a intencionalidade das emoções à do juízo
enfrenta, contudo, uma série de dificuldades. Para começar, não está claro que ter
a experiência de uma emoção requer a formação de um juízo avaliativo
correspondente. Às vezes, sentimos uma emoção a despeito de não aderirmos a
uma avaliação pertinente, como quando reagimos de uma maneira que sabemos
ser inapropriada. Uma pessoa que tem fobia de aracnídeos, por exemplo, terá
medo de uma aranha mesmo que a julgue inofensiva (Döring 2014; Tappolet 2012).
Se sentir uma emoção não implica manifestamente que se aceite a avaliação
correspondente, pode ser suficiente, para senti-la, pensar no objeto em termos
avaliativos pertinentes (Döring 2014; Greenspan 1988; Roberts 2003; Tappolet
2012; Teroni 2007). A cólera que você sente ao encontrar o seu vizinho resumir-se-
ia então ao pensamento segundo o qual ele cometeu uma ofensa. Não é afinal
inverossímil admitir que um tal pensamento precise ser aceito para que você esteja
com raiva de seu vizinho – pode ser até mesmo que a recorrência desses
pensamentos após ter sido convencido de que esse vizinho não queria lhe fazer
mal explique a persistência de sua raiva.
É preciso, no entanto, resistir a essa interpretação. Com efeito, conceber as
emoções em termos de juízo ou de simples pensamentos, consiste simplesmente
em deixar de lado o fato de que se trata de experiências específicas. Julgar que
alguém cometeu uma ofensa não implica sentir raiva. Essa constatação se impõe
de maneira talvez ainda mais evidente no caso dos pensamentos correspondentes:
pode-se pensar que alguém cometeu uma ofensa sem se deixar ofuscar por ela,
assim como se pode pensar que um labrador é perigoso, sem ter medo dele
(Leighton 1985; Maddell 1997). Por essas razões, a existência dos juízos e
pensamentos em questão não constitui uma condição suficiente para as emoções.
Aliás, ela não parece tampouco constituir uma condição necessária. De fato, um
48
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
49
JULIEN DEONNA, FABRICE TERONI E CHRISTINE TAPPOLET
convite que, às vezes, devemos recusar. Uma abordagem perceptual das emoções
resolve igualmente um outro problema: o das emoções dos animais. Com efeito, a
representação perceptual do perigo não parece repousar nas capacidades
cognitivas de que os animais são desprovidos: se os animais não são talvez
capazes de acreditar que o objeto é perigoso ou ofensivo, sua bagagem cognitiva
é verdadeiramente suficiente para percebê-lo como tal.
Apesar das vantagens que acabamos de enfatizar, as abordagens
perceptuais se deparam com importantes desafios, na medida em que as emoções
parecem, em muitas visões, distinguir-se das percepções (Deonna & Teroni 2012;
Dokic & Lemaire 2013; Salmela 2011). Primeiramente, em que pese a
fenomenologia das experiências emocionais ser tão proeminente como a da
percepção sensorial, ela não poderia lhe ser assimilada. Em numerosos casos, a
experiência de uma emoção tem algo de particular: ela implica a experiência de
uma preparação para agir de uma certa maneira sobre um objeto dado – não é
fácil, por exemplo, descrever a experiência do medo sem mencionar a experiência
de uma preparação para evitá-lo, ou a experiência da admiração, sem mencionar a
de uma preparação para manter a sua atenção sobre o que se admira. Não está
claro que o modelo perceptual seja capaz de fazer justiça a essa característica,
dado que a fenomenologia da percepção é em princípio estritamente receptiva.
Em segundo lugar, as propriedades representadas por experiências
perceptuais são geralmente tomadas como causalmente responsáveis: se você
percebe um tigre branco, seu estado mental é, evidentemente, causado pela
presença de um tigre branco. Ao contrário, não é certo que as propriedades que as
emoções pretendem representar possam desempenhar um papel causal
pertinente. Pois quais são suas propriedades? Se admitirmos que se trata de
propriedades avaliativas, como o fazem geralmente os amigos da teoria
perceptual, a ideia de um poder causal pressupõe uma forma controversa de
realismo a esse respeito: as propriedades avaliativas existiriam “no mundo”,
independentemente de nossa mente, e elas estariam aptas a causar em nós as
respostas psicológicas. Além disso, a teoria perceptual demanda uma concepção
muito liberal de percepção, pois não é certo que as propriedades avaliativas
50
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
51
JULIEN DEONNA, FABRICE TERONI E CHRISTINE TAPPOLET
52
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
3. Epistemologia e compreensão
Até aqui, nos concentramos em uma questão de ordem ontológica: qual é a
natureza das emoções? Mas as emoções também oferecem questões
epistemológicas. Pode-se por exemplo perguntar como elas contribuem para o
conhecimento. Como vimos na seção precedente, as emoções não são
manifestamente juízos avaliativos. No entanto, elas dão lugar, frequentemente, a
tais juízos: se você admirou um filme, ao assisti-lo, você provavelmente julgou que
ele é bom, e sentir raiva de seu vizinho em um dado instante poderia muito bem
levar você a julgá-lo ofensivo ou desrespeitoso. Tudo isso é bastante consensual.
O que provoca discussão é saber se as emoções apenas causam esses juízos, ou
se a relação que mantêm vai além disso. Duas questões se põem, a esse respeito.
Primeiro, as emoções desempenham algum papel relevante em nossa
compreensão do aspecto avaliativo desses juízos, quer dizer, em nosso domínio
dos conceitos avaliativos que contêm? Em segundo lugar, as emoções fornecem
um padrão de justificação para esses juízos? Se damos uma resposta positiva a
uma dessas questões, a conclusão que se impõe é que as emoções preenchem
uma função importante no conhecimento avaliativo. Para sabê-lo, convém revisitar,
sob um ângulo epistemológico, certas teorias das emoções apresentadas acima.
Observe, em primeiro lugar, que, se identificamos as emoções com juízos
avaliativos, essas duas questões não fazem sentido. Com efeito, ao supor que o
seu medo do cão seja idêntico ao seu juízo de que o cão é perigoso, não é claro
como ele poderia contribuir para a compreensão do conceito de perigo. Afinal,
emitir o juízo em questão parece pressupor essa compreensão, em vez de
contribuir com ela. O medo não poderia tampouco contribuir para a justificação
desse juízo: uma relação de justificação pressupõe dois termos, que são reduzidos
a um só pela teoria judicativa.
Por outro lado, aderir a uma teoria perceptual permite talvez responder
positivamente a essas duas questões, o que constituiria um argumento importante
em seu favor. No que concerne à compreensão dos conceitos avaliativos, o
modelo perceptual está em todo caso em posição de traçar um paralelo
53
JULIEN DEONNA, FABRICE TERONI E CHRISTINE TAPPOLET
esclarecedor. Assim como um cego não saberia o que significa para uma coisa ser
colorida, uma pessoa desprovida de emoções não saberia o que significa para
uma coisa ser portadora de valor. Com efeito, que conceito de prazeroso ou
admirável alguém incapaz de sentir o menor prazer e a menor admiração, poderia
ter (Deonna & Teroni 2012; Robert & Wood 2007)? Por essa razão, certos filósofos
(Goldie 2002) sentiram-se tentados a conceber a relação que uma pessoa incapaz
de ter emoções tem com valores aos moldes da relacão que a famosa Maria tinha
com as cores antes de sair do seu quarto incolor (Jackson 1986). Ambos podem,
sem dúvida, aprender a classificar os objetos ou as situações de uma maneira que
corresponda à nossa. No entanto, se essas classificações estiverem separadas de
seus fundamentos no acesso perceptivo ou afetivo às propriedades pertinentes,
isso terá por consequência que esses sujeitos não serão capazes de apreender
nossos conceitos de cores ou de valores.
A analogia perceptual é igualmente promissora no que concerne ao
eventual papel justificativo das emoções, vis-à-vis os juízos avaliativos (Baier 2004;
Döring 2007; Tappolet 2000). Nossas crenças são frequentemente justificadas por
nossos estados perceptivos. Assim, a experiência visual da vermelhidão de um
tomate bem brilhante e pouco distante de nós fornece uma razão para julgar que
este tomate é de fato vermelho. Na ausência de uma razão para pensar que
nossos sentidos nos enganam ou que a iluminação não é boa, estamos justificados
a formar esse juízo. É tentador dizer o mesmo a respeito das emoções. Quando o
medo nos apresenta o perigo de um dado cão, você dispõe de uma razão para
julgar que esse cão é efetivamente perigoso. E, na ausência de uma razão
contrária – você não está drogado, não é tendencioso nem afetivamente
desequilibrado – você está, parece, também justificado a formar esse juízo.
O modelo perceptual pode, portanto, orgulhar-se de identificar uma fonte
plausível, tanto para nossa compreensão dos conceitos avaliativos, quanto para
nosso conhecimento avaliativo. No entanto, a confiabilidade das emoções não
poderia ser dada como certa da mesma maneira que a da percepção. Afinal, é um
truísmo que as emoções possam nos induzir a erro, que os juízos que geram no
calor do momento são, via de regra, duvidosos (Brady 2013; Dokic & Lemaire
54
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
55
JULIEN DEONNA, FABRICE TERONI E CHRISTINE TAPPOLET
de uma ilusão perceptiva. Se dermos como favas contadas essa ideia, não é
plausível afirmar que certas críticas que se podem dirigir ao primeiro – “tu és
irracional!” – não se aplicam ao segundo (Helm 2015)? Os defensores de uma
teoria perceptiva ficarão tentados a sublinhar que essa diferença se deve
simplesmente ao fato de que as emoções são, ao contrário dos estados
perceptivos, plásticas: podemos exercer uma influência indireta no longo prazo
sobre as emoções que certos tipos de situações suscitam em nós (Tappolet 2012).
É por isso que se pode criticar um sujeito que nada fez para corrigir suas emoções
recalcitrantes. Certos filósofos expressam, no entanto, reservas quanto à
possibilidade de resolver essa dificuldade, apelando à plasticidade das emoções
(Price 2015).
Além disso, se as emoções respondem a razões, é porque de fato
dependem, fundamentalmente, de outros estados psicológicos. Nós o constatamos
anteriormente: sempre acessamos os objetos de nossas emoções através de
outros estados psicológicos – estados perceptivos, crenças ou lembranças, por
exemplo. Pode-se portanto pensar que as razões a que as emoções respondem
decorrem ao menos em parte do conteúdo dos estados mentais de que elas
dependem. Para responder à questão “por que você tem medo desse cachorro?”
você mencionará, por exemplo, o fato de que você viu os dentes e já escutou o seu
rosnado, ou sua crença que os pitbulls são perigosos. Parece que estados
psicológicos como as percepções, as crenças e as lembranças – estados que
frequentemente se afirma terem a direção de ajuste mente-mundo (Searle 1983)
são capazes de fornecer razões para as emoções.
Observe, porém, que as emoções e os juízos a que elas dão lugar também
são explicadas pelo que chamamos (na seção 1) de dispositivos emocionais – os
sentimentos e os traços de caráter, por exemplo – de que eles são manifestações,
assim como por estados conativos, tais como os desejos (Helm 2001). Só uma
pessoa caridosa sente compaixão em determinadas circunstâncias; do mesmo
modo, uma pessoa que não tivesse desejado acumular uma fortuna não ficaria
regozijada com a subida do preço das ações investidas. De modo mais geral,
nossas respostas emocionais tornam-se comumente inteligíveis pelos sentimentos,
56
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
57
JULIEN DEONNA, FABRICE TERONI E CHRISTINE TAPPOLET
58
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
avaliativos pertinentes, tornando por isso todo o retorno às emoções inútil? Duas
leituras se apresentam, espontaneamente, ao espírito (Deonna & Teroni 2012).
Segundo a primeira, as emoções são supérfluas do ponto de vista da justificação
dos juízos, podendo eles ser justificados diretamente pelas mesmas razões que
justificam as emoções. Quando você julga que a observação de seu chefe foi
ofensiva, seu juízo está justificado somente se você dispõe de uma razão para
fazê-lo. Mas se você dispõe com efeito de uma tal razão, esta justifica seu juízo, o
qual gera em outro uma reação emocional ou não (Brady 2013). De acordo com a
segunda interpretação, as emoções jogam um papel ineliminável na transmissão
das razões aos juízos avaliativos, o que elas podem fazer de duas maneiras. De
uma parte, pode-se pensar que as emoções nos situam em uma posição
epistêmica favorável, ao chamarem nossa atenção para características de nosso
ambiente que, sem elas, escapar-nos-iam (Robinson 2005; de Sousa 1987). De
outra parte, poderia ser o caso que as emoções contribuam essencialmente para a
nossa compreensão da dimensão avaliativa desses juízos, uma ideia que já
mencionamos, em conexão com a aquisição dos conceitos avaliativos. Tanto em
um caso, como em outro, as emoções poderiam muito bem se apresentarem como
indispensáveis ao conhecimento desses valores.
4. Inato x adquirido
Começamos este capítulo distinguindo as emoções de outros fenômenos
afetivos como os humores e os traços de caráter. Em seguida, constatamos que as
emoções diferem umas das outras em função dos valores que representam: o
medo representa o perigo, ao passo que a tristeza representa a perda, por
exemplo. Convém, no entanto, efetuar distinções estruturais maiores no seio do
domínio emocional. A questão central concerne então à existência de uma divisão
entre as emoções que são relativamente impermeáveis a pressões contextuais e
emoções que são mais permeáveis a essas influências.
Pode-se abordar essa questão sob o ângulo de uma distinção muito
intuitiva, aquela que opõe as emoções relativamente simples ou básicas, que são,
por exemplo, o medo, a raiva e a alegria, às emoções mais complexas, dentre as
59
JULIEN DEONNA, FABRICE TERONI E CHRISTINE TAPPOLET
60
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
61
JULIEN DEONNA, FABRICE TERONI E CHRISTINE TAPPOLET
qual emoção você sente não supõe tanto ser atento ao que se passa em você,
mas em interpretar o seu sentimento à luz das normas pessoais ou coletivas
pertinentes em seu contexto.
As variações culturais que fazem das emoções objetos – tanto no nível de
seus desdobramentos, como no de sua expressão – constrangem-nos a adotar um
construtivismo tão radical? Inversamente: são elas incompatíveis com um modelo
que reconhece o caráter universal e inato de ao menos algumas de nossas
emoções? Os debates recentes nesse domínio estão largamente estruturados em
torno desses dois pólos (Scarantino 2014).
5. Emoções e ação
Frequentemente se dá como certo que as emoções nos motivam a agir – o
termo “emoção” deriva, a propósito, do latim “ex” (de fora) e “movere” (mover).
Assim, a raiva é sempre acompanhada de comportamentos agressivos, e o medo
é comumente associado a respostas específicas, tais como a fuga ou o combate. A
relação entre emoções e motivação põe uma questão central na teoria das
emoções. O poder motivacional das emoções decorre de sua essência ou se trata
de um fenômeno contingente? Se a raiva e o medo necessariamente nos motivam,
não poderíamos sentir raiva sem sermos motivados a gritar e não poderíamos ter
medo sem sair correndo em disparada.
Para enfrentar essa questão, é preciso ainda saber o que é a motivação.
Concorda-se geralmente em dizer que as emoções facilitam a ação, na medida em
que as modificações corporais que implicam aumentam a probabilidade de certos
comportamentos – a vingança no caso da raiva e a fuga naquele que tem medo,
por exemplo. Considera-se igualmente que a tonalidade hedônica das emoções
influencia a motivação, o prazer sendo em geral alguma coisa que se procura,
contrariamente à dor. Mas a questão toda é saber se a motivação envolvida nas
emoções é constituída de disposições comportamentais específicas, que
alimentam diretamente o sistema motor, ou antes estados, tais como os desejos,
que, presumivelmente, não têm senão uma influência indireta sobre aquilo que
fazemos.
62
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
63
JULIEN DEONNA, FABRICE TERONI E CHRISTINE TAPPOLET
64
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
65
JULIEN DEONNA, FABRICE TERONI E CHRISTINE TAPPOLET
66
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
67
JULIEN DEONNA, FABRICE TERONI E CHRISTINE TAPPOLET
abordagem geral pode ser explicitada de várias maneiras, mas ela afirma sempre
que as seguintes equivalências se dão em virtude de conceitos que elas implicam:
x é apavorante se e somente se x é tal que é apropriado ao medo; x é admirável se
e somente se x é tal que é apropriado para a admiração e x cometeu uma ofensa
se e somente se x é tal que é apropriado a entrar em estado de raiva perto dele
(D’Arm & Jacobson 2000; McDowell 1985; Scanlon 1998). Os adeptos dessas
abordagens devem, é claro, explicar o que entendem por “apropriado”, uma tarefa
que se mostrou particularmente complicada. Com efeito, uma tal explicação deve
evitar uma objeção importante: certas emoções são apropriadas em relação a
certos objetos que não instanciam, no entanto, o valor pertinente. Por exemplo,
você poderia muito bem admirar o iate de seu vizinho rico, se sonhasse em ser
convidado para subir a bordo, mesmo que o iate em questão não tenha no fundo
nada de admirável em si (D’Arms & Jacobson 2000; Rabinovicz & Rønnow-
Rasmussen 2004). Alguns neo-sentimentalistas se contrapuseram a essa objeção,
ao definirem o caráter apropriado das emoções em termos de sua correção: só é
apropriado admirar o iate de seu vizinho se o barco for efetivamente admirável
(Danielsson & Olson 2007; Tappolet 2011).
A principal vantagem dessa abordagem é que permite dar conta de duas
características de juízos morais aparentemente em conflito, a saber, a
característica cognitiva e a força motivacional. Em mais de um aspecto os juízos
morais parecem-se com os juízos cognitivos mais paradigmáticos. Assim como
ocorre com os juízos acerca de cores e formas, eles são considerados verdadeiros
ou falsos e parecem representar os fatos. No entanto, eles aparentemente mantêm
uma relação especial com a motivação. Se alguém julga que deve ajudar seu
amigo, esperamos que ocorra uma ação em consequência. Se não ocorre, daí
concluímos que ele sofre de uma forma de irracionalidade prática como a fraqueza
da vontade (Smith 1994). Pode-se tentar explicar essa característica dos juízos
morais por sua conexão com as emoções, as quais normalmente implicam
motivação.
A análise dos juízos morais em termos de emoções apropriadas postula
uma conexão conceitual entre os conceitos morais e os conceitos de emoções. Aí
68
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
está uma concepção que se encaixa bem com a ideia segundo a qual a
compreensão dos conceitos avaliativos depende da possibilidade de sentir
emoções; um conceito como admirável ou repulsivo só pode ser plenamente
compreendido por aquele que tem a experiência desse gênero de reações (ver a
seção 3). Outras abordagens são mais empíricas, no sentido que não visam senão
relações de ordem causal entre as emoções e os juízos morais. Como notamos, as
emoções são às vezes vistas como permitindo, em certas circunstâncias, a
justificação de juízos avaliativos (seção 3). É admitido por todos, no entanto, que
existem relações estáveis de causalidade entre emoções e juízos normativos, quer
sejam avaliativos ou de ordem moral. Assim, experimentos em psicologia social
sugerem que as emoções têm um impacto considerável sobre nossos juízos
morais. Nossa condenação moral de uma prática é fortemente influenciada pelo
nojo que nos inspira (Haidt 2001; Nichols 2004). Observemos, todavia, que essa
relação não tem um sentido único: é provável que nossos juízos morais
influenciem, em troca, nossas reações emocionais. O que julgamos moralmente
ruim, por exemplo, tende a desenvolver em nós reações negativas.
De maneira geral, os debates recentes sugerem que nossas emoções e
nossas faculdades racionais contribuem para a formação de nossos juízos morais.
Resta estabelecer em quais proporções elas o fazem. Por se apoiar
fundamentalmente na noção de emoção apropriada, o neo-sentimentalista permite
uma avaliação das emoções em termos da sua racionalidade. Pode-se dizer o
mesmo de sugestões recentes a respeito dos processos causais responsáveis
pelos juízos morais. Segundo uma explicação muito popular, proposta por Shaun
Nichols (2004), o mecanismo ao qual devemos nossos “juízos morais
fundamentais” (relacionados à interdição de danos) depende ao mesmo tempo de
nossas emoções e de nossas capacidades racionais.
Os filósofos se dedicam, do mesmo modo, ao estudo da função de
emoções específicas, como a piedade, a compaixão e a simpatia (Blum 1980;
Nichols 2004; Nussbaum 2001), o amor (Aristóteles 2004; Frankfurt 2004; Jollimore
2011; Velleman 1999), o respeito (Blum 1988; Darwall 2004), a vergonha (Taylor
1985; Deonna et al. 2011), culpabilidade (Bruun & Teroni 2011; Deigh 1999), o nojo
69
JULIEN DEONNA, FABRICE TERONI E CHRISTINE TAPPOLET
(Clark & Fessler 2014), a inveja (D’Arms & Jacobson 2005), o ressentimento e a
indignação (Strawson 1962; Wallace 1994) ou mesmo a ansiedade (Kurth 2015).
Mesmo que a ênfase seja posta principalmente no impacto motivacional, essas
emoções levantam questões específicas quanto a sua importância moral.
Além disso, as emoções consideradas centrais variam segundo as teorias
morais (Bagnoli 2011). Os deontologistas – que concebem a justeza das ações em
termos de regras absolutas – atribuem um lugar central às emoções, e mais
especificamente ao respeito kantiano pela lei moral (Hill 1992). Em uma
perspectiva consequencialista – segundo a qual a ação justa é aquela que tem as
melhores consequências – leva-se em conta, primeiramente, os sentimentos
solidários como a piedade e a compaixão (Hume 1741) e as emoções que Mill
(1969) chamava de “punições internas”, como a vergonha e a culpabilidade. Enfim,
as éticas da virtude – que se interessam menos pelo valor das ações que pelo
valor dos agentes – sublinharam a importância de uma grande variedade de
emoções no exercício das virtudes e dos vícios (Hursthouse 2002). A coragem, por
exemplo, não implicaria tanto a ausência de medo, mas um grau apropriado de
medo. Os teóricos da virtude também foram os primeiros a negar que as emoções
sejam independentes de nossa vontade, para afirmar, ao contrário, que necessitam
de toda a nossa atenção e até de uma forma de educação – uma ideia que
remonta a Aristóteles, mas que cotinua atual (Aristóteles 1994; Kristjansson 2008;
Nussbaum 2001; Roberts 2013; Taylor 1985).
Conclusão
A despeito do caráter central das emoções nos trabalhos dos grandes
nomes da história da filosofia – Aristóteles, Descartes, Spinoza, Hobbes e Hume,
para citar apenas alguns – o interesse dos filósofos contemporâneos pelas
emoções é relativamente recente. No entanto, desde os trabalhos seminais de
David Lyons (1980), Robert Gordon (1987) e Ronald de Sousa (1987), a literatura
filosófica dedicada às emoções literalmente explodiu. De uma matéria considerada
desprovida de importância, extremamente desordenada e desencorajadora de
qualquer tentativa de teorização sistemática, as emoções se tornaram, em pouco
70
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
tempo, um dos terrenos favoritos dos filósofos, que reconhecem desde então a
necessidade de aprofundar a compreensão do tema. Isso transparece claramente
na variedade e riqueza dos questionamentos que estruturam as discussões
filosóficas contemporâneas. Como se deve compreender as relações entre as
emoções e os outros fenômenos afetivos? Qual a maneira característica das
emoções nos conectarem ao nosso entorno? Se aceitamos a ideia segundo a qual
as emoções mantêm uma relação estreita com as propriedades avaliativas, como
modelar melhor essa relação? As emoções são capazes de preencher uma função
epistemológica significativa perante juízos avaliativos? Como compreender as
influências sociais, às quais elas se prendem inegavelmente? As emoções nos
motivam essencialmente ou sua relação com a motivação é mais acidental? Qual a
ligação entre os juízos morais e a motivação e como a natureza dessa ligação
condiciona nossa concepção das relações entre as emoções e a moral? Nesse
capítulo, sublinhamos em mais de uma perspectiva a rede de relações complexas
em que se inscrevem essas questões. Sua pertinência para a atividade humana
justifica largamente a retomada do interesse dos filósofos.
Referências
ARISTOTE. Rhétorique (trad. F. Midal). Paris: Agora, 2004.
______.. Ethique à Nicomaque (trad. J. Tricot). Paris: Vrin, 1994.
ARMON-JONES, C. “The thesis of constructionism”. In: Harré, R. (éd.) The Social
Construction of the Emotions. Oxford: Oxford University Press; 1986, p.32–56.
AVERILL, J. “A constructivist view of emotion”. In: Plutchik, R. & Kellermann, H.
(éd.) Emotion: Theory, Research and Experience. Burlington: Academic Press;
p.305–339, 1980.
AYDEDE, M. Pain: New Essays on its Nature and the Methodology of its Study.
Cambridge, Mass.: MIT Press, 2006.
AYER, A. J. Langage, vérité et logique. Paris: Flammarion, 1936/1956.
71
JULIEN DEONNA, FABRICE TERONI E CHRISTINE TAPPOLET
BAGNOLI, C. (éd.). Morality and the Emotions. New York: Oxford University Press,
2011.
BAIER, A. “Feelings that matter”. In: Solomon, R. C. (éd.) Thinking about Feeling:
Contemporary Philosophers on Emotions. New York: Oxford University Press,
2004, p.200-213.
BARRETT, L. F. “Emotions as natural kinds?” In: Perspect Psychol Sci, 1: p.28-58,
2006.
BAYNE, T. & MONTAGUE, M. (éd.). Cognitive Phenomenology. New York: Oxford
University Press, 2011.
BEDFORD, E. “Emotions”. In: Proc Aristotelian Soc, 57: p.281-304, 1957.
BETZLER, M. “Expressive actions”. In: Inquiry, 52: p.272-292, 2004.
BLACKBURN, S. Spreading the Word: Groundings in the Philosophy of Language.
Oxford: Oxford University Press, 1984.
BLOCK, N. “On a confusion about a function of consciousness”. In: Behavior and
Brain Sciences, 18: p.227-287, 1995.
BLUM, A. “On respect”. In: Philos Inq, 10: p.58-63, 1988.
______. Friendship, Altruism and Morality. London: Routledge and Kegan Paul,
1980.
BRADY, M. Emotional Insight: The Epistemic Role of Emotional Experience.
Oxford: Oxford University Press, 2013.
BRENTANO, F. Les origines de la connaissance morale (trad. J.-C. Gens). Paris:
Gallimard, 1889/2003.
BROAD, C.D. “Emotion and sentimento”. In: Cheeney, D. (éd.) Broad’s Critical
Essays in Moral Philosophy. New York: George Allen & Unwin, 1954.
72
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
BRUUN, O. & TERONI, F. “Shame, guilt and morality”. In: J Moral Philos, 8: p.221-
243, 2011.
CANNON, W. B. “The James-Lange theory of emotions: A critical examination and
an alternative theory”. In: Am J Psychol, 39: p.106-124, 1927.
CHARLAND, L. “The natural kind status of emotion”. In: Br J Philos Sci, 53: p.511-
537, 2002.
______. “The heat of emotion: Valence and the demarcation problem”. In: J
Consciousness Stud, 12: p.82-102, 2005.
CLARK, J. & FESSLER, D. “The role of disgust in norms, and norms in disgust
research: Why liberals shouldn’t be disgusted by moral disgust”. In: Topoi, 34:
p.483-498, 2014.
CLORE, G. “Why emotions are felt”. In: Ekman, P. & Davidson, R. (éd.) The Nature
of Emotion. New York: Oxford University Press; p.103-111, 1994.
COLOMBETTI, G. “Appraising valence”. In: J Consciousness Stud, 12: p.103-126,
2005.
COSMIDES, L. & TOOBY, J. “Evolutionary psychology and the emotions”. In:
Lewis, M. & Haviland-Jones, J. (éd.). Handbook of Emotions. 2nd ed. New York:
Guilford, 2000.
CRANE, T. “Intentionality as the mark of the mental”. In: O’Hear, A. (éd.)
Contemporary Issues in the Philosophy of Mind. Cambridge: Cambridge University
Press, 1998, p.229-251.
D’ARMS, J. & JACOBSON, D. “The moralistic fallacy: On the ‘appropriateness’ of
emotions”. In: Philos Phenomenol Res, 61: p.65-90, 2000.
______; ______. “Anthropocentric constraints on human value”. In: Oxford Stud
Metaethics, 1: p.99-126, 2005.
73
JULIEN DEONNA, FABRICE TERONI E CHRISTINE TAPPOLET
74
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
75
JULIEN DEONNA, FABRICE TERONI E CHRISTINE TAPPOLET
76
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
77
JULIEN DEONNA, FABRICE TERONI E CHRISTINE TAPPOLET
______. “Quick and smart? Modularity and the pro-emotion consensus”. In: Can J
Philos, 36: p.3-27, 2007.
KANT, I. Fondements de la métaphysique des mœurs (trad. V. Delbos). Paris: Le
Livre de Poche, 1785/1993.
KENNY, A. Action, Emotion and Will. London: Routledge and Kegan Paul, 1963.
KIND, A. “The case against representationalism about moods”. In: Kriegel, U. (éd.)
Current Controversies in Philosophy of Mind. New York: Routledge, 2014.
KRIEGEL, U. “Towards a new feeling theory of emotion”. In: Eur J Philos, 22, p.420-
442, 2014.
KRISTJANSSON, K. The Self and its Emotions. New York: Cambridge University
Press, 2008.
KURTH, C. “Moral Anxiety and Moral Agency”. In: Timmons, M. (éd.) Oxford
Studies in Normative Ethics. Oxford: Oxford University Press, 2015, p.171-195.
LACEWING, M. “Do unconscious emotions involve unconscious feelings?” In:
Philos Psychol, 20, p.81-104, 2007.
LAMBIE, J.; MARCEL, A. “Consciousness and the variety of emotion experience: a
theoretical framework”. In: Psychol Rev, 109, p.219-259, 2002.
LEIGHTON, S. “A new view of emotion”. In: Am Philos Q, 22, p.133-141, 1985.
LYONS, W. Emotion. Cambridge: Cambridge University Press, 1980.
MADDELL, G. “Emotion and feeling”. In: Proc Aristotelian Soc, 71(suppl): p.147-
162, 1997.
MCDOWELL, J. “Values and secondary qualities”. In: Honderich, T. (éd.) Morality
and Objectivity. London: Routledge; p.110-129, 1985.
78
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
79
JULIEN DEONNA, FABRICE TERONI E CHRISTINE TAPPOLET
80
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
81
JULIEN DEONNA, FABRICE TERONI E CHRISTINE TAPPOLET
82
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
TAYLOR, G. Pride, Shame and Guilt. Oxford: Oxford University Press, 1985.
TERONI, F. “Emotions and formal objects”. In: Dialectica, 61, p.395-415, 2007.
______. “Plus ou moins: Emotions et valence”. In: Dans C. Tappolet, A.
Konzelmann et F. Teroni (éd.), Les ombres de l’âme: Penser les émotions
négatives. Genève: Markus Haller, 2011.
______. “Emotions et connaissance”. In: Dans J. -M. Chevalier & B. Gaultier (éd.),
Connaître: Questions d’epistémologie contemporaine. Paris: Ithaque, 2014, p.9-34.
______. “In pursuit of emotional modes: The philosophy of emotion after James”.
In: Dans A. Cohen & B. Stern (éd.), Thinking about the emotions: A philosophical
history. Oxford: Oxford University Press, 2017.
______; DEONNA, J. “Emotions as attitudes". In: Dialectica, 69, p.293-311, 2015.
TYE, M. “The experience of emotion: an intentionalist theory”. In: Rev Int Philos,
243, p.25-50, 2008.
VELLEMAN, J. D. “Love as a moral emotion”. In: Ethics, 109, p.338-374, 1999.
WALLACE, R. J. Responsibility and the Moral Sentiments. Cambridge: Harvard
University Press, 1994.
WALTON, K. “Fearing fiction”. In: J Philos, 75, p.5-27, 1978.
WHITING, D. “The feeling theory of emotions and object-directed emotions”. In: Eur
J Philos, 19, p.281-303, 2011.
WOLLHEIM, R. On the Emotions. New Haven: Yale University Press, 1999.
WRINGE, B. “The contents of perception and the contents of emotion”. In: Noûs,
49, p.275-297, 2014.
ZAGZEBSKI, L. “Emotion and moral judgment”. In: Philos Phenomenol Res, 66,
p.104-124, 2003.
83
3
A SOBERANIA DOS AFETOS: UMA CRÍTICA AO UTILITARISMO A
PARTIR DA EMPATIA E DA PSICANÁLISE
Érico Andrade*
Introdução
Considerando que para uma teoria utilitarista a felicidade consiste na
satisfação dos interesses dos agentes morais ou simplesmente na rejeição do
sofrimento por parte desses agentes, meu objetivo neste capítulo consiste em
mostrar que o utilitarismo precisa de uma compreensão do bem que seja mais
complexa e que não se encerre na procura pela felicidade. Defenderei que essa
compreensão mais complexa é fundamental para a adoção do cálculo de utilidade.
Entre os utilitaristas há uma tendência a considerar que a felicidade não contém
em sua extensão os afetos no que concerne, pelo menos, à predicação da
moralidade de uma ação. Acredito que essa tendência é a marca da falta de uma
compreensão mais ampla das diversas motivações para as ações humanas. Nesse
sentido, a minha crítica se concentra na visão austera do utilitarismo quanto ao que
pode ser tomado como critério para a avaliação de ações.
Minha hipótese é a de que o utilitarismo parte de uma tese razoável, a
saber, a de que os agentes morais têm em princípio o mesmo valor – nas palavras
de Bentham: “todos devem contar por um, ninguém por mais de um”1 – para
concluir, de forma equivocada, que essa igualdade de valor se mantém a posteriori
em qualquer contexto e assume a forma de uma constante para o cálculo racional.
*Uma versão ligeiramente modificada deste texto foi publicada na revista Trans/Form/Ação, 36.2
(2013): 105-122. Agradeço a gentileza da revista em permitir a publicação e divulgação do texto.
1 Bentham apud. MILL 1861.
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
85
ERICO ANDRADE
2 Tenho plena consciência de que Mill tece algumas críticas ao utilitarismo proposto por Bentham que
se remetem ao questionamento do aspecto austero da compreensão antropológica do ser humano
aventada por aquele autor. Ainda que Mill reconheça o papel das emoções, ele ainda se mantém no
registro de que o utilitarismo, em última análise, não introduz nos seus princípios básicos as emoções
como critério de avaliação da ação moral. M. C. M. Dias defende, em função de uma análise
estrutural e genética, que Mill assume um novo posicionamento quanto ao papel das emoções na
moralidade após seu problema mental. Ela se apoia, sobretudo, na Autobiografia de Mill, que
efetivamente confessa sua crítica ao utilitarismo que se coloca indiferente às emoções (DIAS, 2011,
p.72-73). O ponto central da autora consiste na defesa de que a antropologia de Mill é diferente
daquela sustentada por Bentham, o que desembocaria em visões, em certa medida, dissonantes do
utilitarismo. Alguns defendem que o utilitarismo de Mill é anômalo.
86
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
3 Mill é responsável por uma classificação dos prazeres, mas não deixa de assumir o binômio prazer
e sofrimento como o principal vetor do utilitarismo (MILL, Utilitarismo, Cap. II). Sobre a qualificação do
prazer em Mill, ver SIMÕES, 2009, p.48.
4 Essa definição é próxima da produzida por SINGER 2009, p.11.
5 1861, p.196.
6 Ver, por exemplo, SMART 1956, p.354.
87
ERICO ANDRADE
7 A ideia de que a ação do indivíduo deve ser compatível com os interesses dos demais torna
possível, segundo Hare, uma aproximação parcial com o imperativo categórico de Kant, mais
precisamente nas formulações que prescrevem deveres para com os outros (HARE, 1998 p.212).
Sobre a crítica da assimilação da filosofia kantiana como um utilitarismo bastante mitigado, por assim
dizer, ver Dall’Agnol (2001). Dall’Agnol insiste, entre outras coisas, que a filosofia kantiana tem um
princípio essencial que é incompatível com o utilitarismo, qual seja: o ser racional é um fim em si
mesmo. Um dos seus argumentos centrais é que a filosofia kantiana prioriza o respeito à pessoa, em
detrimento, eventualmente, de sua felicidade. Para o autor, nem Kant pode ser utilitarista, nem Hare
pode ser kantiano.
8 COSTA, 2002, p.169.
9 COSTA, 2002, p.164.
88
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
89
ERICO ANDRADE
10 2005, p.151-156.
90
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
não propriamente em função da atitude mais racional (no sentido utilitarista), mas
em função de um interesse difuso ou que não contribui necessariamente com a
maioria. Será que seria possível dizer que a priori esse indivíduo não procedeu
moralmente de forma correta?
Deixem-me oferecer um exemplo: numa casa que está sendo destruída
pelas chamas, um pai tem a opção de fugir quase ileso e garantir certamente o
bem estar de três dos seus quatro filhos, que não estão na casa, ou ficar na casa,
tentando resgatar o outro filho, mas com uma taxa pequena de chances de
sobreviver. Não é necessário traçar um grande levantamento empírico para
constatar que boa parte dos pais tomaria a decisão de tentar salvar o filho, ainda
que isso implicasse que os outros filhos ficariam, de algum modo, desassistidos. O
ponto é que a decisão do pai não é racional (no sentido do utilitarismo), mas é
bastante compreensível do ponto de vista do vínculo afetivo que ele guarda com o
seu filho. Não é a priori contraintuitivo tomar decisões que não se pautam num
cálculo racional que otimiza o bem-estar. Elas podem ser bem intuitivas, como
acredito que seja o hipotético caso mencionado, e podem eventualmente servir
para a avaliação da ação moral. Nesse sentido, não se trata aqui do que Smart
(1978) chama de “fraqueza de vontade”, pois não seria uma posição meramente
particular que mostraria, supostamente, mais uma ação sintonizada com uma
dificuldade de agir segundo o cálculo de utilidade do que uma ação recomendável
moralmente. O ponto é que a empatia é uma das variáveis para a motivação moral
à proporção que também serve como um dos critérios para avaliar a ação. A ação
de salvar o filho, conforme narrei aqui, é socialmente louvada e não se restringe a
uma “fraqueza de vontade” individual.
Não pretendo argumentar que a empatia é o único critério para a avaliação
moral, mas apenas que ela não pode ser completamente excluída como critério
moral. Não pretendo entrar na ceara das discussões de metaética sobre a força
moral da empatia ou sobre em que medida ela é um sentimento moral
imprescindível, mas acredito que é necessário que o utilitarismo justifique o critério
da escolha do cálculo racional sem desconsiderar as objeções apresentadas aqui
referentes à presença dos sentimentos morais na avaliação da ação. Meu ponto é
91
ERICO ANDRADE
92
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
cuja ação deve considerar que a sua vida tem o mesmo valor que a dos demais
agentes morais (Utilitarismo, cap. II). O utilitarismo elide um fato importante,
inscrito no reconhecimento de que os agentes morais podem ser valorados
diferentemente em contextos em que o componente da empatia ganha uma
particular relevância, como no exemplo que acabo de oferecer.
A confusão que o utilitarismo faz é entre a tese razoável de que nenhum
agente moral detém a priori o monopólio sobre a escolha do outro ou que um
agente não tem o direito de, por decisão do seu arbítrio, diferenciar-se moralmente
dos outros agentes, com a obrigação moral de tomar todos os agentes morais
como instâncias cujo valor moral é absolutamente igual em qualquer contexto. Ou
seja, o fato de que todos os agentes morais podem, em princípio, ter um valor
moral igual (ninguém tem o direito de aniquilar arbitrariamente ninguém) não
implica que, seja qual for o contexto ou a situação, os agentes morais sejam todos
iguais, pois é perfeitamente possível, e foi o que quis mostrar com o meu exemplo,
que um agente moral sacrifique a solução ótima proposta pelo cálculo racional em
nome de uma motivação afetiva que não pode ser reprovada moralmente de forma
tão fácil e está longe de ser um “desperdício”11.
Farei agora algumas considerações críticas ao utilitarismo por meio do
recurso à radicalização de algumas de suas premissas. Mostrarei que as
premissas do utilitarismo que se apoiam na experiência não são suficientes para a
adoção do cálculo de utilidade como critério moral. Alguns estudos empíricos
(como o que vou citar em seguida) mostram que a empatia desempenha um papel
central na rejeição da atitude utilitária em alguns dilemas morais. Eles mostram
uma grande dificuldade de pessoas sacrificarem alguém próximo a elas em nome
11 Um sacrifício que não beneficia a maioria é um desperdício, segundo Mill. Nesse sentido, ainda que
Mill reconheça que o sacrifício é uma atitude possível de ser empreendida pelos seres humanos, ele
ressalta que, se ela não estiver em sintonia com o critério da utilidade, é um desperdício. Ele escreve:
“A moralidade utilitarista reconhece nos seres humanos o poder de sacrificar o seu bem maior para o
próprio bem dos outros. Ele só se recusa a admitir que o sacrifício é em si uma boa. Um sacrifício que
não aumenta, ou tende a aumentar, a soma total de felicidade, que ela considera como
desperdiçado”(Utilitarismo, cap. II).
93
ERICO ANDRADE
94
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
95
ERICO ANDRADE
96
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
seriam hoje majoritariamente contra o circo romano, como sugere Cláudio Costa13,
se no lugar de gladiadores (escravos ou prisioneiros de guerra) tivéssemos
estupradores e matadores em série de crianças. Meu contraexemplo não é uma
forma velada de hierarquizar os agentes morais ou de julgar quem é mais ou
menos importante socialmente. Ele consiste numa tentativa de mostrar que, sem
uma análise sociológica mais acurada, o utilitarismo se afasta dos valores das
culturas vigentes à medida que se compromete com valores morais injustificados
socialmente ou para os quais ele não encontra uma justificativa assentida pelos
membros da sociedade. Para que o exemplo do circo tenha validade, se deve levar
em consideração quem é o “gladiador” submetido ao combate e qual é a sociedade
em que o circo está inserido. Não é apenas um compromisso com o não
sofrimento que garante que uma sociedade não adote estádios ou circos romanos
nos quais as pessoas são dilaceradas por leões.
O problema da argumentação utilitarista, especificamente a de Cláudio
Costa, é que ela tem dificuldade em relação às diferentes compreensões culturais
do que é moralmente bom. O ponto não repousa na prerrogativa de que as
pessoas têm mais ou menos prazer com o sofrimento alheio, mas consiste em
investigar a instituição dos valores morais nas diferentes culturas e pensar em que
medida é possível ter um corpo homogêneo de valores. Certamente, para se
eleger o não sofrimento como um valor moral partilhável interculturalmente, é
necessário uma justificativa mais clara, inclusive sobre o que significa sofrer.
Novamente, é preciso qualificar mais o agente moral para que os indivíduos de
diferentes culturas possam se reconhecer nesse agente.
O argumento naturalista, que é evocado por alguns utilitaristas para lastrear
uma posição transcultural, ainda não me parece suficiente para justificar, pelo
menos hoje, a adoção do cálculo de utilidade como critério de avaliação da
moralidade de uma ação. Mesmo que evitar o sofrimento e promover a otimização
do prazer possam ter sido uma boa estratégia evolutiva, isso não implica dizer que
esse par conceitual continue sendo um elemento decisivo para pensar a condição
13 2002, p.169.
97
ERICO ANDRADE
humana. Tudo indica que a conservação foi realizada por meio da planificação de
nossas necessidades básicas que passam por evitar privações que muitas vezes
geram sofrimento. Contudo, ainda que o utilitarismo possa ter a seu favor a tese de
que os homens, de um ponto de vista da sua história evolutiva, e em vários
momentos, agiram em sintonia com critérios que evitam o sofrimento e promovem
o bem-estar social ou a felicidade – a partir do mecanismo de recompensa para os
que agem em sintonia com a maioria e punição para aqueles que fazem o contrário
(ver Burnham e Johnson 2005; Fehr e Gächter 2002) – ele não pode estender esse
critério para toda a história e determinar de maneira fixa a própria noção de
felicidade ou bem-estar. A validade do utilitarismo na história evolutiva não pode
obliterar seu déficit sociológico face à cultura produzida pelos seres humanos nos
últimos milênios.
Por não ser um critério inscrito de maneira inequívoca na condição humana
enquanto uma variável fundamental para a sua adaptação ao mundo enquanto
espécie, o critério do não sofrimento não está isento de uma justificativa moral para
que seja adotado numa hierarquia de valores. Assim, se a história evolutiva pode
ratificar alguma perspectiva utilitarista em certos momentos de nossa história e se
a ação racional continua presente na estrutura do sistema capitalista, no qual os
agentes sociais podem tender a otimizarem os recursos escassos, na história da
humanidade é possível recuperar exemplos em que a lógica utilitária não se impõe
como a única forma possível de ação moral.
Meu argumento consiste na ideia de que é muito pouco prudente pressupor
uma evolução social uniforme que legitima a substituição das arenas dos circos
romanos pelos ringues de boxe sem antes discutir no interior de uma cultura, com
subculturas distintas, o que é moralmente bom. Claro que a diversidade de valores
não implica a impossibilidade de um código moral, por assim dizer, universal ou
mesmo que não sejam possíveis juízos objetivos em ética. Não se pode confundir
o diagnóstico da diversidade de valores com a legitimação dessa diversidade ou
mesmo com a inexorabilidade dessa diversidade. O ponto que tenciono sublinhar
consiste no reconhecimento de que a diversidade cultural aponta para o fato de
que a quantidade de beneficiados que podem, por assim dizer, evitar o sofrimento
98
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
99
ERICO ANDRADE
100
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
Referências
BENTHAM. J. An introduction to the principle of morals and legislation, 1823.
Disponível em: <http://www.econlib.org/library/Bentham/bnthPML0.html>.
COSTA, C. “Razões para o utilitarismo”. In: Ethic@ 1.2, p.155-174, 2002.
DALL’AGNOL, D. “Utilitarismo kantiano?”. In: UFSC (pré-publicações), Ano IV,
Número 49, 2001.
DIAS, M. C. M. A ampliação do espaço moral no utilitarismo de John Stuart Mill:
uma comparação com a moral do utilitarismo de Bentham. São Paulo: USP (tese),
2011.
KOENIGS, M.; YOUNG, L. et al. “Damage to the prefrontal cortex increases
utilitarian moral judgments”. In: Nature 446, p.908-911, 2011.
HARE, R. Ética: problemas e propostas. Trad. M. Mascherpe e C. A. Rapucci. São
Paulo: Unesp, 1998/1997.
MILL, S. J. Sobre a liberdade. Trad. Ari Brito. São Paulo: Hedra, 2008.
101
ERICO ANDRADE
102
4
A IMPORTÂNCIA DA FENOMENOLOGIA: O QUE A AMABILIDADE
E A FRIEZA HUMANA PODEM NOS ENSINAR SOBRE ÉTICA?*
Michael Slote
disciplinas filosóficas que lidam com tais temas. De modo geral, permita-me
acrescentar que não se deve inferir abruptamente do que digo aqui a respeito de
vários temas que o que alguém poderia pensar deveria ser orientado pelo tipo de
fenomenologia que estarei discutindo e descrevendo. No entanto, creio que o que
vou dizer tem relevância para o campo da estética, e o que devo dizer na parte
final deste capítulo irá ao menos esboçar algumas razões para se pensar assim. E
com isso entendido, ou talvez não entendido claramente, deixem-me ser um pouco
mais específico acerca do que eu estou falando.
Penso que a fenomenologia, a descrição da experiência, acaba sendo, em
aspectos que não foram ainda reconhecidos, essencial para o desenvolvimento da
ética, psicologia moral, epistemologia e filosofia da mente, e esta ideia é e será
controversa porque vai contra o senso comum de muito do que nós (no Ocidente
anglófono) aprendemos e lemos nessas áreas. Por exemplo, lembro-me sempre
que, quando estudante de graduação, fui alertado por Philippa Foot para não
colocar demasiada ênfase na fenomenologia na tentativa de explicar conceitos
fundamentais da ética e da psicologia moral, sendo o orgulho um de seus
exemplos favoritos. Os empiristas, dizia ela, muitas vezes identificaram o orgulho
com um sentimento (bom) no peito, mas isto, ela alegava, é claramente um
equívoco. Se um homem (ela sempre falava de “um homem”) anda com um ar
alegre e bem humorado ao longo da praia, isto não significa que esteja orgulhoso
de algo. Ele não pode orgulhar-se do mar, a menos que tenha certas crenças; por
exemplo, a crença de que ele ou alguém próximo a ele criou o mar ou é dono dele.
Claro, empiristas como Hume pensaram que até mesmo a crença era, em algum
sentido, uma questão de sentimento, e quase todo mundo na filosofia recente
concorda que isso representa uma incompreensão total do caráter intelectual ou
conceitual da crença. Mas eu vou tentar persuadi-los de que esta concepção
herdada e comum é falsa. Não há tal coisa como uma crença puramente
intelectual e vou argumentar que (de uma maneira própria e um pouco ingênua) os
empiristas farejaram alguma coisa quando eles passaram a enfatizar o caráter
sensível, a fenomenologia da crença (no nosso sentido).
Mas deixem-me mencionar também outra razão pela qual especialistas em
104
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
1
New York: Oxford University Press, 2010.
105
MICHAEL SLOTE
106
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
107
MICHAEL SLOTE
108
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
109
MICHAEL SLOTE
110
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
111
MICHAEL SLOTE
112
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
3 Como o próprio Hume aponta no Tratado, quando somos afagados pelas ações amáveis de alguém
para com um amigo, as lágrimas podem “brotar em nossos olhos”. Deste modo, ser empaticamente
acolhido (no domínio de segunda ordem) não precisa ser univocamente agradável e minha descrição
da aprovação em termos de amabilidade de segunda ordem, portanto, está em desacordo com a
ideia básica de Hume de que a aprovação é uma espécie de prazer de segunda ordem.
113
MICHAEL SLOTE
114
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
115
MICHAEL SLOTE
116
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
4 Em um artigo sobre o meu livro Moral Sentimentalism, que será publicado no Southern Journal of
Philosophy, Justin D’Arms argumenta a favor do tratamento da desaprovação como uma forma de
raiva e não como uma reação fria, de indiferença. As razões para discordar de D’Arms que
mencionarei, também foram mencionadas numa resposta ao artigo de D’Arms que será publicada
nessa mesma revista.
117
MICHAEL SLOTE
5 Jesse Prinz sugeriu-me que a gratidão pode ser o sentimento oposto apropriado. Mas há uma série
de razões para questionar essa sugestão: pelo menos o fato de que a gratidão é eu-outro assimétrica
(não somos gratos a nós mesmos) de uma maneira que a raiva não é. (Há também o fato de que nós,
por vezes, aprovamos afetuosamente as boas ações de pessoas que viveram há muito tempo e não
é de todo claro que, em tais casos, tendemos a nos sentir gratos a essas pessoas).
118
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
119
MICHAEL SLOTE
120
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
com uma certa fenomenologia e uma determinada origem causal, mas, seguindo
de certa forma o trabalho de Saul Kripke em Naming and Necessity, eu penso que
tais estados de sentimento podem ancorar nossos juízos morais, sem os juízos
serem sobre esses sentimentos. No meu livro eu argumentei que a cordialidade e
a indiferença empática de segunda ordem podem corrigir a referência,
respectivamente, de “moralmente bom ou certo” e “moralmente errado” a partir de
algo parecido com a maneira pela qual (de acordo com Kripke) a experiência de
vermelho pode fixar a referência da expressão “objetivamente vermelho”. De
acordo com Kripke, julgamentos acerca da vermelhidão objetiva são eles mesmos
plenamente objetivos, mesmo se eles estão baseados em uma experiência de
vermelhidão, a experiência fixa a referência de “objetivamente vermelho” sem que
ela própria seja parte da matéria dos juízos que atribuem vermelhidão objetiva. E
eu usei um argumento um pouco parecido (embora haja algumas diferenças
importantes) para argumentar que (por exemplo) a frieza empática fixa a referência
de “moralmente errado”, sem ser a matéria de juízos envolvendo esse conceito e,
contudo, permitindo que tais juízos tenham real objetividade ou validade. Eu não
vou entrar em detalhes aqui, mas se o método de explicitação de termos morais
que eu acabei de sugerir, e isso está descrito em detalhes no meu livro, está,
enfim, no caminho certo, então há uma defesa a mais para a fenomenologia no
contexto ético-teórico. A atenção fenomenológica às nossas reações empáticas de
primeira, segunda, e até mesmo de terceira ordem, pode muito bem permitir-nos
explicar termos morais com mais sucesso do que outras abordagens
(sentimentalistas) permitiram-nos fazer.
2
Mas agora é hora de mudar de direção. Estamos discutindo a
fenomenologia em relação à ética, mas, por razões que serão dadas no que
segue, eu também creio que a fenomenologia é importante para a nossa
compreensão da epistemologia e da filosofia da mente. Eu passarei a argumentar
que a fenomenologia é relevante para a nossa compreensão filosófica básica tanto
da crença epistemicamente racional ou justificada e da crença em si. E a
121
MICHAEL SLOTE
122
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
123
MICHAEL SLOTE
124
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
6Eu não vou considerar se os psicopatas, que são incapazes de ter simpatia pela dor das outras
pessoas e o seu sofrimento, também são incapazes de simpatia intelectual com os pontos de vista
das outras pessoas.
125
MICHAEL SLOTE
que desta vez voltado às coisas mais abstratas, como crenças e argumentos.
(Talvez seja uma marca de sermos seres superiores o fato de que podemos ter
sentimentos não apenas em relação às pessoas ou as suas ações, mas também
sobre seus pontos de vista e opiniões).
Na esfera moral, a empatia de tipo associativo (e do tipo projetivo também)
é considerada necessária à simpatia genuína e ao altruísmo, e talvez haja uma
relação semelhante entre a empatia e a simpatia na esfera epistêmica. Eu disse
anteriormente que podemos basear-nos nas opiniões dos outros através da
osmose empática e, assim, torná-las nossas, mas ninguém sustenta que alguém
tenha que concordar com as outras pessoas, a fim de ser considerado como
alguém que tem uma mente aberta sobre seus pontos de vista. Uma mãe pode
simpatizar com um filho que tenha medo de ir ao médico, pode sentir, em certa
medida, o seu terror, e pode sentir simpatia pelo que o filho sente, mesmo quando
ela insiste em levá-lo ao médico. E algo semelhante pode acontecer com as
crenças no contexto da mentalidade aberta. A pessoa de mente aberta não apenas
coloca-se no lugar de outra pessoa do mesmo jeito que faz um psicopata. Ela tem
empatia pelo ponto de vista do outro, vê as coisas, em certa medida, de uma
maneira tão favorável quanto aquela que a outra pessoa vê, e isto também envolve
ou evoca o que chamamos de (um certo grau de) simpatia intelectual com o ponto
de vista alheio. Mas, como acontece com o filho e o médico, isso não implica que
se acabará por acompanhar ou concordar com esse ponto de vista ou as crenças
que o compõem.
Em qualquer caso, parece plausível concluir que as virtudes epistêmicas de
ter a mente aberta, justeza intelectual, objetividade e imparcialidade (estes diferem
entre si de formas que não precisamos mais discutir) exigem certas tendências e a
presença de sentimentos favoráveis (e também desfavoráveis), e assim temos de
reconhecer que a racionalidade epistêmica completa contém elementos
sentimentais ou emocionais anteriormente insuspeitos7. Mas, para tornar o
7Em “Intellectual Desire, Emotion, and Action”. In: A. O. Rorty (ed.), Explaining Emotions, Berkeley:
University of California Press, 1980, p.323-338. Michael Stocker enfatiza os aspectos emocionais do
126
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
pensamento intelectual, mas não vai tão longe no sentido sentimental como tenho feito aqui – e como
fiz em Moral Sentimentalism.
127
MICHAEL SLOTE
transparente. Para que se possa ter uma opinião favorável, para que se possa
favorecer uma coisa em detrimento de outra, envolve-se o sentimento tanto quanto
quando se favorece um candidato político ou uma criança em relação a outra. Mas
quando imaginamos que as crenças podem ser puramente intelectuais ou não-
emocionais, nós esquecemos, nós ignoramos, os sentimentos positivos que
realmente temos com relação a todas essas coisas. Se olharmos para dentro, se
refletirmos um pouco acerca do caráter da nossa experiência comum, poderemos
ver, poderemos reconhecer, que isto envolve certos sentimentos. Os sentimentos
podem muitas vezes ser tênues o suficiente para que eles não chamem a nossa
atenção e, assim, escapem à atenção. Mas uma coisa que eu estou tentando fazer
aqui é chamar a atenção para estes aspectos muitas vezes ignorados (inclusive
por filósofos) da nossa experiência, para que possamos nos lembrar de uma
relação mais clara e atenta com a nossa própria experiência vivida. E eu faço isto,
pelo menos em parte, porque eu acho que isto vai ajudar-nos a ver não só a nossa
experiência, mas alguns dos nossos mais importantes conceitos filosóficos sob
uma nova luz filosoficamente útil. A fenomenologia é importante por que quando
prestamos mais atenção à nossa experiência, podemos reconhecer que há
elementos sentimentais lá que são inerentemente (mesmo a priori) parte da
compreensão básica de conceitos epistêmicos, doxásticos ou racionais e isso deve
ser dito se quisermos responder (algumas das) perguntas que a epistemologia
e/ou a filosofia da mente sempre fizeram e que ainda precisam ser respondidas.
Enfim, tendo chamado a atenção para a questão da (a relevância da)
fenomenologia, permita-me mencionar outra área ou aspecto em que a
fenomenologia pode esclarecer e iluminar o terreno da epistemologia tradicional.
Mencionei anteriormente que, às vezes, é apropriado descartar definitivamente
certos pontos de vista, e eu creio que precisamos dizer mais sobre como e quando
isto é possível e sobre como tais fatos se relacionam com a ideia de que a
receptividade mental é uma virtude epistêmica.
Para colocar as coisas de forma breve, penso que é apropriado rejeitar
inteiramente os pontos de vista de outras pessoas, quando essas outras têm uma
atitude de mente fechada em relação às opiniões dos outros. Alguém que acredita
128
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
que é Napoleão ou que acredita que a Terra é plana, presumivelmente, não vai
ouvir às opiniões e argumentos contrários de outras pessoas, e por isso estou
dizendo que a virtude de ter a mente aberta tipicamente não obriga-nos a ter a
mente aberta face às opiniões e os argumentos daqueles que não possuem uma
mente aberta. E há aqui um paralelo com o que se sabe sobre a empatia em
contextos morais. Como o psicólogo desenvolvimentista Martin Hoffman chamou a
atenção, a nossa preocupação moral empática em relação às outras pessoas
diminuirá se conseguirmos vê-las como terceiros, ou seja, de um modo não-
empático e despreocupado, machucando, digamos, seus sentimentos
gratuitamente8. E esta reação não nos ensina a ser pessoas não-empáticas ou
despreocupadas, mas é, em certa medida, um sinal de quão empáticos e
cuidadosos nós somos. Da mesma forma, o caráter genuíno da receptividade
mental empática em relação aos outros não é enfraquecida pelo fato de que
alguém é intolerante em relação àqueles mesmos que são intolerantes e carecem
de abertura mental. Hoffman diz que uma pessoa cuidadosa terá sua ira
despertada quando enxergar outra pessoa machucar um terceiro, mas algo
parecido com isto também ocorre em contextos epistêmicos. Nossa intolerância em
relação à mentalidade epistêmica fechada ou à intolerância dos outros é uma
espécie de raiva epistêmica, mas, novamente, este elemento fenomenológico
em/ou de nossas vidas epistêmicas nunca foi realmente descrito ou identificado
antes. A intolerância em relação às pessoas de cor de pele diferente é uma forma
de raiva, mas também e de uma forma parecida, é a intolerância em relação a
certas crenças das pessoas. Mas quando essa intolerância é de segunda ordem, é
a intolerância do intolerante, então ela pode ser apropriada e compatível com ter a
mente aberta – assim como a raiva em relação àquelas pessoas que, com raiva ou
de outra forma, machucam os outros, pode ser adequada e consistente com uma
atitude geral de preocupação empática em relação aos outros.
Além disso, o próprio fato de que existe tal coisa como uma raiva
8 Martin HOFFMAN, Empathy and Moral Development: Implications for Caring and Justice,
Cambridge: Cambridge University Press, 2000.
129
MICHAEL SLOTE
130
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
9 Thomas NAGEL, The Possibility of Altruism, Oxford: Oxford University Press, 1970. T. M.
SCANLON, What We Owe to Each Other, Cambridge: Harvard University Press, 1998.
131
MICHAEL SLOTE
querer fazer certas coisas, e por isto não são apenas desejos, mas também
sentimentos que mais comumente entendemos como imediatamente ou
diretamente relevantes e ativos em nossas motivações e ações. Deste modo, o
fato de que o sentimento está envolvido com a crença pode tornar mais fácil a
compreensão de como a crença pode motivar ações e fazer isto, em certa medida,
independentemente das considerações racionais que filósofos como Nagel ou
Scanlon invocam para conectar as nossas crenças (ou apreensões racionais) com
a motivação relevante e (às vezes, mas nem sempre) à ação.
Deste modo a estranheza do que J. L. Mackie chamou de “prescritividade
objetiva”, isto é, a estranheza aparente de assumir que a apreciação racional de
uma crença em certos fatos pode ipso facto constituir uma (mais ou menos eficaz)
motivação ou razão para a ação, pode parecer menos estranha se conseguirmos
mostrar – como temos procurado demonstrar aqui – que a crença em si tem o tipo
de carga emocional que consideramos mais fácil de conectar com a motivação e a
ação motivada. (Sou grato neste ponto a Elijah Chudnoff). Deste modo, a ênfase
na fenomenologia aqui pode realmente tornar mais fácil para o racionalista tornar o
processo de conectar a crença e a ação motivada, embora eu mesmo quereria
rejeitar o racionalismo e argumentar, em contrapartida, que a crença pode
relacionar-se ou ser relevante à motivação e ação simplesmente através da sua
conexão com a emoção e pelo fato de que podemos facilmente entender como os
estados emocionais podem motivar.
Muito mais precisaria ser dito acerca do que acabei de tratar, mas tenho
outro assunto para abordar antes de terminar o capítulo, e eu penso que é melhor
seguir em frente. O outro tópico refere-se ao lado aferente da crença, a crença,
como em tantos casos importantes, resultante da percepção ou da experiência
perceptiva. A fim de completar nosso panorama das muitas maneiras em que a
fenomenologia pode ser importante e útil para a filosofia, eu gostaria de
permanecer, tão brevemente quanto o assunto permite fazê-lo com propriedade,
na fenomenologia da percepção e como ela relaciona-se com a crença perceptiva.
Como sugeri, de um modo um tanto obscuro anteriormente, epistemólogos e
filósofos da mente têm (o que parecerá ser às pessoas comuns e ao seu senso
132
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
10D. M. ARMSTRONG, A Materialist Theory of the Mind, London: Routledge and Kegan Paul, 1968;
George PITCHER, A Theory of Perception, Princeton: Princeton University Press, 1971; e Sydney
SHOEMAKER, Physical Realization, Nova York: Oxford, 2007.
133
MICHAEL SLOTE
coisas ao nosso redor, uma imediaticidade ou vivacidade que ipso facto envolva a
consideração da sua realidade? A maioria das coisas que eu vejo (e vamos nos
concentrar na visão) parecem-me extrair sua realidade do modo como as percebo,
e isto significa, em particular, que a tendência a crer não é algo adicional ou
existente ao lado de certas experiências perceptivas ordinárias, mas está contido
nelas mesmas11.
Se isto é assim, então se a crença também implica uma certa quantidade de
emoção positiva, a relação entre a experiência perceptiva ou a percepção e a
crença será análoga à ligação que os racionalistas esboçaram entre a apreensão
racional de certos fatos e nossa motivação ou razões para agir (uma conexão que
parece mais provável de ser válida se alguém reconhece fenomenologicamente a
conexão entre a crença e a emoção, positiva e, às vezes, suave). E isso pode,
dessa forma, revelar, muito surpreendentemente, que a percepção envolve o afeto
positivo e a motivação de uma forma intrínseca.
No entanto (como Brian McLaughlin lembrou-me), nem toda percepção
vívida faz-nos acreditar de forma adequada. Há a ilusão de Mueller-Lyer, que
persiste mesmo quando estamos convencidos que as duas linhas representadas
são de igual comprimento, e há vários casos em que sabemos de antemão que
estamos sendo submetidos a algum tipo de alucinação (por exemplo, hologramas).
Mas mesmo nestes casos, a nossa experiência perceptiva, sua vivacidade, sua
11 Depois que escrevi o primeiro esboço deste capítulo, encontrei um artigo de A. D. SMITH
(“Perception and Belief”, Philosophy and Research 62, p.283-309, 2001), que converge com muitos
dos mesmos pontos que acabo de demonstrar acerca da relação entre a experiência perceptiva e a
crença perceptiva. No entanto, Smith incorpora suas ideias dentro da premissa husserliana segundo
a qual toda percepção de (a realidade de) objetos ocorre contra um pano de fundo da mundanidade
assumida, e não penso que alguém precisa de tais pressupostos amplos, a fim de estabelecer a
conexão entre a percepção e a crença. (Na verdade, penso que essas pressuposições nos distraem e
desviam dos pontos mais mundanos que tanto Smith, quanto eu gostaria de assumir). Smith também
não sugere a ligação entre a crença e sentimento positivo/emoção que nos permite fortalecer o caso
geral para (a não-estranheza da) prescritividade objetiva; e ele nem invoca o tipo de analogia entre a
percepção estética e a percepção sensível, que, conforme argumentarei, ajuda a tornar o processo
de uma conexão íntima entre a percepção e a crença perceptiva.
134
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
amplitude, nos desperta uma tendência a crer que só pode ser combatido ou
minado por nossas outras crenças. E se é preciso de tais outras crenças para
derrubar ou neutralizar o nosso sentido de ou nossa crença na realidade do que
percebemos, então, dada a fenomenologia da nossa percepção do mundo que nos
rodeia, podemos dizer que há uma ligação essencial entre tal experiência e a
tendência a crer na realidade do que ela é “de” (seu objeto) e entre a experiência e
as crenças reais relevantes para essa experiência (onde estas incluem algumas
crenças que não estão relacionadas diretamente à fenomenologia). Estas
conclusões parecem-me ser um pouco surpreendentes; mas, novamente, penso
que é a fenomenologia que nos levou a elas e fez com que parecessem plausíveis,
e, nessa medida, eu gostaria, muito brevemente, de tratar de um último ponto que
se refere a como as coisas que falei relacionam-se com a estética.
A fenomenologia tem sido mais relevante para a estética e para a
apreciação, digamos, de pinturas belas, excelentes ou boas. Mas (de certa forma
inspirado pelo que Platão diz acerca da experiência que uma pessoa racional pode
ter da Forma do Bem) eu penso que a fenomenologia da apreciação da arte é
também relevante para o que acabamos de dizer acerca da percepção e da
crença. Às vezes, é sustentado que para que possamos perceber (inteiramente),
reconhecer ou apreciar a beleza de uma obra de arte, por exemplo, uma pintura, é
necessário estarmos automaticamente atraídos a contemplar esteticamente ou
envolver-nos com ela e estarmos relutantes a abandonar essa experiência muito
rapidamente. No entanto, esta ligação parece mais um exemplo de prescritividade
objetiva, de como a dimensão cognitiva pode essencialmente (e talvez
inextricavelmente) misturar-se com e/ou envolver elementos motivacionais ou
emocionais. Eu penso que um exemplo tão aparentemente plausível ou intuitivo do
campo da estética ajuda no processo da prescritividade objetiva no domínio da
moralidade. (Se a prescritividade objetiva pode ocorrer em uma área do
pensamento ou da vida, então quão facilmente pode ocorrer uma objeção de
princípio à sua ocorrência em outra área do pensamento ou da vida?). Mas a
plausibilidade do processo estético também dá suporte ao que eu estava dizendo
anteriormente sobre a conexão entre a percepção e a crença. Afinal, se o caráter
135
MICHAEL SLOTE
136
5
EM DEFESA DA EMPATIA: UMA RESPOSTA A PRINZ*
Cláudia Passos-Ferreira
1. Empatia e moralidade
A visão dominante em psicologia moral sustenta que as habilidades
cognitivas da empatia e da tomada da perspectiva afetiva do outro [affective
perspective-taking] desempenham um papel crucial na moralidade e em
comportamentos pró-sociais e altruístas. De acordo com diversos psicólogos
(Eisenberg & Strayer, 1987; Batson et al., 1981; Batson & Shaw, 1991; Zhan-
Waxler & Radke-Yarrow, 1990; Hoffman, 2000; Vaish et al., 2009, 2011; Decety,
2011) e filósofos (Hume, 1739/1978; Smith, 1759/2009; Slote, 2010; Goldman,
2006; Darwall, 1998; de Vignemont & Frith, 2008), a empatia é fundamental à
moralidade.
Recentemente, Jesse Prinz (2005, 2011a, 2011b) desafiou essa tendência
em psicologia moral. Prinz defende duas teses centrais. Primeiro, ele argumenta
que a empatia não é uma precondição necessária para a aprovação ou
desaprovação moral. Segundo, argumenta que a empatia tende a levar a
distorções no juízo moral que a tornam potencialmente nociva, e, frequentemente,
produz resultados moralmente indesejáveis. As conclusões contraintuitivas de
Prinz são que a empatia não desempenha um papel essencial na moralidade, e
que ela interfere negativamente com os fins da moralidade, e que, portanto, não
deve ser cultivada.
Argumentarei contra ambas as teses. Primeiro, argumentarei que a empatia
desempenha um papel necessário no desenvolvimento moral humano. Defendo
* A versão em inglês deste artigo foi primeiro publicada na Revista Abstracta Vol. 8, n.2, p.31–51,
2015. Agradeço ao editor Alex Tillas a autorização para publicação da versão em português
CLÁUDIA PASSOS FERREIRA
138
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
1 McGeer (2008) também endossa uma concepção humeana da moralidade. Ela argumenta que os
juízos baseados na razão desempenham um papel instrumental na moralidade, e que apenas as
emoções têm a força motivacional necessária que acompanha as atitudes morais, e que,
consequentemente, todos os tipos de agência moral humana estão enraizados no afeto. No entanto,
ela nega que as habilidades de empatia e da tomada de perspectiva sejam a base da moralidade. Ela
sugere que as pessoas com autismo desafiam esta concepção. No autismo, o déficit de empatia e
das habilidades de tomada de perspectiva não levam a um déficit na moralidade. McGeer conclui que
a empatia não deve ser considerada a única emoção capaz de fornecer motivação moral; outros tipos
de disposições afetivas (que estão disponíveis para pessoas com autismo, como a preocupação
afetiva) também desempenham um papel na moralidade.
139
CLÁUDIA PASSOS FERREIRA
2 2011a, p.218.
140
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
3 O emocionismo – tal como definido por Prinz (2007) – consiste em qualquer teoria que afirme que
emoções são essenciais à moralidade. Prinz distingue o termo ‘emocionismo’ – que ele define como
um rótulo genérico para qualquer concepção que afirme que sentimentos são essenciais à
moralidade – do termo ‘emotivismo’, que é uma versão específica do emocionismo. Prinz argumenta
em favor de uma versão forte da concepção emocionista, defendendo o que chama de
‘sentimentalismo construtivo’, a concepção de que “sentimentos literalmente criam a moralidade, e os
sistemas morais podem ser criados de modos diferentes” (PRINZ, 2007, p.9).
141
CLÁUDIA PASSOS FERREIRA
142
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
143
CLÁUDIA PASSOS FERREIRA
144
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
educação moral; eles não possuem as respostas emocionais que são constitutivas
dos juízos morais.
Segundo Prinz (2005), os déficits morais dos psicopatas podem ser
explicados sem recorrer ao déficit de empatia. É a falta de emoções básicas, como
o medo e a tristeza, e não a falta de empatia que explica a deficiência no raciocínio
moral detectado em pessoas com psicopatia. A explicação que Prinz endossa se
baseia na hipótese do medo disfuncional4. Segundo essa hipótese, os psicopatas
apresentam deficiência nos sistemas que modulam o comportamento do medo
(Fowles, 1988). Os psicopatas apresentam uma diminuição do condicionamento
aversivo, e diminuição de respostas emocionais em antecipação do castigo e na
imaginação de eventos ameaçadores. O déficit de medo dos psicopatas os impede
de serem socializados e de desenvolverem competência moral. A socialização
moral é, em geral, obtida por meio do uso da punição. A punição agressiva instila o
medo, e o medo da punição é frequentemente usado no aprendizado moral. Uma
criança assustada pelo castigo associará esse medo à ação que resultou na
punição e desenvolverá respostas aversivas condicionadas a ameaças
antecipadas. Uma criança que não tem medo de punição não aprenderá boa
conduta se for ameaçada com punição.
Prinz argumenta que a deficiência moral dos psicopatas pode ser explicada
por um déficit no comportamento inibitório e emoções inibitórias. Ele afirma que o
mesmo sistema disfuncional que danifica o medo em psicopatas também pode
danificar a tristeza, outras emoções negativas, e outras reações negativas. O
4 Grosso modo, há dois modelos cognitivos na literatura empírica para explicar o déficit moral na
psicopatia. Um deles é o sistema comportamental inibitório proposto por Fowles (1988) e outros, que
afirma que os psicopatas têm um déficit básico em seu sistema de comportamento rudimentar que
está subjacente a muitos aspectos das emoções e provoca comprometimento no comportamento
aversivo e no medo. O outro é o modelo inibitório de violência precoce (VIM), e sua versão atualizada
para os sistemas de emoção integrados desenvolvidos por Blair (Blair et al., 2005), que explica a
natureza do comprometimento emocional em indivíduos com psicopatia como resultado de
deficiências em diferentes sistemas, como empatia disfuncional, o medo disfuncional, e o VIM
disfuncional.
145
CLÁUDIA PASSOS FERREIRA
5 2005, p.273.
146
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
6 Os sentimentos de tristeza não serão abordados, pois se sabe muito pouco sobre como a tristeza é
afetada na psicopatia.
147
CLÁUDIA PASSOS FERREIRA
148
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
7 2011b, p.222.
149
CLÁUDIA PASSOS FERREIRA
150
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
151
CLÁUDIA PASSOS FERREIRA
percebidas por eles como regras convencionais e que sua aparente capacidade de
julgamento moral seja o resultado da aplicação dessas regras convencionais.
Embora esta conclusão não seja suficiente para derrotar o argumento de
Prinz que as pessoas autistas são capazes de fazer julgamentos morais, ela pode
oferecer uma interpretação alternativa a este fenômeno. Primeiro, as habilidades
empáticas emocionais parecem estar preservadas em pessoas autistas de alto
funcionamento, e essa habilidade preservada pode explicar sua capacidade de
fazer julgamentos morais, apesar de suas limitações em experimentar e manifestar
preocupação empática, e oferecer conforto em situações de angústia dos outros.
Em segundo lugar, não há evidência forte de que sua aparente capacidade de
fazer juízos morais seja o resultado da aplicação de regras morais ou
demonstração de preocupação moral.
Teorias do Desenvolvimento Moral. O terceiro argumento de Prinz é contra
as teorias desenvolvimentistas que enfatizam o papel da empatia no
desenvolvimento moral. A psicologia moral do desenvolvimento descreve como
evoluímos para nos tornarmos agentes morais, como chegamos a distinguir entre o
certo e o errado, e como aprendemos a distinção entre regras convencionais e
regras morais. A história desenvolvimentista de Prinz (2005) enfatiza o papel
central da imitação no aprendizado de como responder emocionalmente aos juízos
morais. Ele sugere que a aprendizagem moral requer um tipo diferente de
imitação. As crianças podem “copiar os estados internos dos outros” e não apenas
“seus comportamentos dirigidos a metas [goal-directed behaviors]”. Seu principal
argumento é que a imitação nos ajuda a adquirir formas de compreensão moral.
Nosso entendimento moral envolve uma gama de capacidades emocionais que
dependem do aprendizado imitativo a ser adquirido. Prinz descreve cinco estágios
do desenvolvimento moral normal. Na primeira fase, os bebês experimentam as
emoções dos outros através da mímica facial; a responsividade moral começa com
contágio emocional em recém-nascidos. Esta etapa contribui para o surgimento da
preocupação e empatia. No segundo estágio, as crianças pequenas se envolvem
em comportamento pró-social e de consolação precoce. Na terceira etapa, as
crianças se tornam responsivas às regras morais. Na etapa seguinte, as crianças
152
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
153
CLÁUDIA PASSOS FERREIRA
154
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
9 2011, p.11.
155
CLÁUDIA PASSOS FERREIRA
angústia e preocupação.
Adotarei aqui a concepção amplamente aceita de empatia de Nancy
Eisenberg. De acordo com Eisenberg & Strayer (1987), a empatia envolve o
compartilhamento da emoção percebida de outro; é uma reação afetiva vicária que
“pode ocorrer como uma resposta a pistas abertamente perceptivas indicativas do
estado afetivo de outra pessoa (por exemplo, a expressão facial de uma pessoa)
ou como consequência de inferir o estado de outrem com base em pistas indiretas
(por exemplo, a natureza da situação do outro)”10.
Tradicionalmente, os psicólogos distinguem dois processos psicológicos
envolvidos na empatia: empatia emocional (compartilhamento vicário da emoção) e
empatia cognitiva (tomada da perspectiva mental do outro) (Smith, 2006; Davis,
1983; Hoffman, 1977). A empatia cognitiva envolve tomada da perspectiva
cognitiva dos pensamentos e crenças dos outros. A empatia emocional envolve o
compartilhamento de estados afetivos com outra pessoa. As diferentes maneiras
de conceituar a empatia enfatizam um ou outro desses dois componentes. Alguns
pesquisadores se concentram nos aspectos emocionais da empatia, enquanto
outros se concentram no processo cognitivo de inferir os estados mentais dos
outros. Psicólogos e filósofos distinguem esses processos usando definições
estreitas e amplas de empatia. A definição estreita tenta capturar a empatia em sua
forma mais básica, identificando-a com contágio emocional, como um processo
automático de ressonância afetiva. A definição ampla descreve a empatia como um
fenômeno multidimensional que combina os processos (afetivos e cognitivos)
envolvidos – ou um conjunto de processos como proposto por Davis (1983) – à
medida que aparecem no inicio do desenvolvimento11.
156
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
defendem a exclusão do componente automático como parte de sua definição. Elas definem a
empatia como um estado afetivo consciente, isomorfo ao estado de outra pessoa, que é suscitado
pela observação ou imaginação do estado afetivo da outra pessoa.
13 2011b, p.215.
14 PRINZ, 2011b, p.215.
15 2011a, p.212.
16 2011a, p.212.
157
CLÁUDIA PASSOS FERREIRA
158
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
emocionais dos outros. Mais tarde, desenvolve-se uma compreensão dos estados
emocionais e intenções dos outros, juntamente com a tomada da perspectiva
afetiva, através da atenção compartilhada [joint-attention], simulação e imaginação.
A habilidade de compreender e responder ao estado emocional de outra pessoa
aparece bem no início do desenvolvimento do bebê e aumenta para níveis
complexos de empatia ao longo do tempo.
Elisabeth Pacherie (2004) sugere três níveis de empatia e de seus
respectivos mecanismos psicológicos, num contínuo que vai do contágio da
imitação e da emoção aos processos empáticos perceptivos e imaginativos,
cobrindo diferentes estágios do desenvolvimento infantil. Em cada estágio da
ontogênese, as crianças desenvolvem habilidades empáticas correspondentes à
compreensão de três aspectos dos estados mentais dos outros: 1) o tipo de
emoção experimentada pelos outros; 2) a situação que está causando a emoção
específica vivida pelos outros; e 3) os fatores motivacionais desencadeados pela
emoção. Os três níveis de empatia são a habilidade de identificar uma emoção, a
habilidade de compreender o objeto intencional da emoção, e a habilidade de
entender a conexão entre o tipo de emoção, seu objeto intencional e os fatores
motivacionais desencadeados pela emoção. Nesse sentido, minha proposta
desenvolvimentista pode ser vista como uma elaboração da abordagem de
Pacherie.
O primeiro nível é o do reconhecimento da emoção, que é a capacidade de
identificar o tipo de emoção experimentada pelos outros. Como surge nossa
capacidade de usar pistas perceptivas para entender a emoção experimentada
pelos outros? Este nível começa com a imitação precoce de expressões faciais e
vocais em recém-nascidos. De acordo com Andrew Meltzoff (1977), os recém-
nascidos são capazes de equiparar seus próprios comportamentos não vistos com
gestos e expressões faciais que eles vêem outros executarem. A imitação facial
sugere um mapeamento inato entre a observação da expressão do outro e a
execução de uma ação motora. Na imitação, há uma correspondência automática
entre a informação visual da expressão facial observada e a informação
proprioceptiva da representação motora. Quando um bebê imita uma expressão
159
CLÁUDIA PASSOS FERREIRA
facial, sua imitação é baseada em uma representação motora formada quando ele
está observando a expressão de outra pessoa. Na imitação precoce há uma
correspondência entre observar uma expressão facial, adotar a expressão facial ou
postura corporal observada, e sentir a emoção correspondente (Meltzoff, 1977). A
imitação facial dos recém-nascidos leva ao contágio emocional por meio do
feedback facial e vocal. Aos dois meses, os bebês se envolvem em proto-
conversações face-a-face, em interações reciprocidade [reciprocating] com os
outros, num processo de mútua regulação emocional e sintonia afetiva (Rochat &
Passos-Ferreira 2008). A imitação e o contágio emocional se baseiam em dois
processos distintos: uma conexão direta entre percepção e ação e uma conexão
direta entre percepção proprioceptiva e expressão facial (Pacherie 2004). A
imitação neonatal e o contágio emocional sempre envolvem propriocepção – uma
consciência dos movimentos e posições do nosso corpo – mas não envolvem uma
explícita distinção eu-outro.
Ao contrário da imitação e do contágio emocional, a empatia emerge
quando o bebê se torna consciente da distinção eu-outro. No desenvolvimento
precoce, surgem funções cognitivas específicas que permitem aos bebês distinguir
o contágio emocional – que não envolve a consciência da distinção eu-outro – e a
empatia – que envolve a consciência da distinção eu-outro. Como observa
Pacherie (2004), o primeiro nível de empatia envolve o surgimento de uma
conexão direta entre a representação motora evocada e a experiência emocional
sem ter que passar necessariamente pelo estágio proprioceptivo, isto é, sem a
correspondente imitação da expressão dos outros. Na forma inicial da empatia
perceptiva, os bebês têm acesso perceptivo ao estado emocional do outro através
de gestos faciais e expressões vocais sem necessariamente formar uma
representação motora através da propriocepção. Isso permite que os bebês
distingam entre sentir suas próprias emoções, observar as mesmas emoções nos
outros e compartilhar os estados afetivos dos outros.
O segundo nível de empatia é a capacidade de compreender o objeto da
emoção. Neste nível, o sujeito identifica a relação que liga a emoção do outro a
uma dada situação. Essa capacidade surge com o desenvolvimento de processos
160
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
161
CLÁUDIA PASSOS FERREIRA
162
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
163
CLÁUDIA PASSOS FERREIRA
164
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
17 N.T. O termo paroquialismo é aqui usado no sentido de uma visão circunscrita a um grupo local,
ignorando perspectivas, atividades ou interesses mais vastos e abrangentes.
18 O modelo de decisão baseado em regras proposto por Struchiner (2011) baseia-se na concepção
de regras de Frederick Schauer, que é em si uma resposta aos argumentos de Ronald Dworkin contra
165
CLÁUDIA PASSOS FERREIRA
Struchiner propõe que os sistemas legais devem ser guiados pelo raciocínio
baseado em uma perspectiva autista. Ele defende o que chama de “a moralidade
contingente da tomada de decisões autista baseada em regras”. A ideia essencial
aqui é que as pessoas com autismo possuem as virtudes certas para um bom
modelo jurídico – as virtudes das regras. Pessoas autistas adoram sistematizar;
seguem regras rígidas, e levam a sério a literalidade na qual as regras são
formuladas. Struchiner sugere que o sistema legal deve abraçar essas virtudes. O
pensamento autista, do qual a empatia está ausente, produziria menos viés nos
juízos morais e menos distorção nas decisões legais.
Claramente, há um problema com esta caracterização da mente autista.
Como discuti anteriormente, a capacidade de seguir regras e detectar
transgressões normativas que caracterizam o raciocínio autista não resulta em
uma capacidade de detectar transgressões morais. Consequentemente, a
presença dessas habilidades não resulta em competência moral em pessoas com
autismo. Além disso, mesmo admitindo que possamos encontrar mentes autistas
como Struchiner as descreve – nas quais a competência moral se baseia em
seguir regras normativas – isso não vindicará o sistema legal baseado em regras.
Mesmo que tal sistema funcione melhor em certas circunstâncias, ainda temos de
considerar situações nas quais os sistemas legais não podem tomar decisões
baseadas apenas em seguir regras. Existem situações que necessariamente
requerem o nosso poder imaginativo e nossa capacidade de nos colocarmos na
perspectiva afetiva daqueles afetados pela ação – por exemplo, as situações de
conflito moral são uma dessas circunstâncias. Nessas situações, os sistemas
jurídicos devem ser capazes de transcender as distorções das visões de uma
perspectiva egocêntrica. Os juízes devem raciocinar como participantes
desinteressados que podem tomar a perspectiva dos afetados e tomar decisões
com base na flexibilidade imaginativa.
Existem duas ideias implícitas na abordagem de Prinz. A primeira idéia é
que se a empatia não é necessária para todos os tipos de juízo moral, então a
166
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
19 Por exemplo, Prinz (2011a) afirma: “Nós devemos protestar contra o errado. [...] De uma
perspectiva prática, talvez seja melhor tentar cultivar um sentimento de indignação pela injustiça onde
quer que ela ocorra, e um sentimento de alegria em ajudar os necessitados onde quer que estejam. A
suposição de que a empatia é essencial para esses fins pode ser equivocada e os esforços para
expandir nossos horizontes morais por indução empática podem nos tornar mais vulneráveis aos
erros de alocação”. E em uma crítica à ética feminista (2011b), ele afirma “uma moralidade feminista
inclinada à libertação não deve ser uma moralidade baseada na empatia se esse rótulo é destinado a
descrever uma moralidade que faz da empatia o seu recurso emocional primário. Uma moralidade
baseada na indignação pode ser mais eficaz”.
167
CLÁUDIA PASSOS FERREIRA
168
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
20 2007, p.69.
169
CLÁUDIA PASSOS FERREIRA
Conclusão
Argumentamos que a empatia é um elemento crucial na moralidade e que
em algumas circunstâncias específicas é o nosso melhor guia para a moralidade.
Eu argumentei contra duas teses do sentimentalismo anti-empático de Prinz.
Argumentei contra sua tese desenvolvimental, que diz que a empatia não é
necessária para o desenvolvimento moral. Eu também argumentei contra a tese
normativa de Prinz, que diz que a empatia deve ser evitada como um guia para a
moralidade.
Para pensar moralmente, precisamos transcender nossa perspectiva afetiva
egocêntrica para corrigir as limitações e distorções desta perspectiva. Podemos
fazer isso compartilhando estados afetivos e imaginando as reações daqueles
afetados por nossas ações. Desta forma, a empatia serve como guia positivo para
o juízo moral.
Referências
BATSON, Daniel C.; et al. “Is empathic emotion a source of altruistic motivation?”
In: Journal of Personality and Social Psychology 40, p.290-302, 1981.
______., FULTZ, J., & Schoenrade, P.A. “Adults emotional reactions to the distress
of others”. In: N. Eisenberg & J. Strayer (Eds.), Empathy and its development.
Cambridge, England: Cambridge University Press, p.163-184, 1987.
______.; SHAW, Laura L. “Evidence for altruism: Toward a pluralism of prosocial
motives”. In: Psychological Inquiry 2, p.107-122, 1991.
______; SAGER, K., et al. “Is empathy-induced helping due to self-other merging?”
In: Journal of Personality and Social Psychology 73, p.495-509, 1997.
______. Altruism in humans. New York: Oxford University Press, 2011.
BLAIR, R. James R. “A cognitive developmental approach to morality: investigating
the psychopath”. In: Cognition 57, p.1-29, 1995.
170
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
______. “Brief report: Morality in the autistic child”. In: Journal of Autism and
Developmental Disorders 26.5, p.571-579, 1995.
______. “Responding to the emotions of others: dissociating forms of empathy
through the study of typical and psychiatric populations”. In: Consciousness and
Cognition 14, p.698-718, 2005.
______. et al. The psychopath: emotion and the brain, Blackwell Publishing,
Oxford, 2005.
COECKELBERGH, Mark. “Who needs empathy? A response to Goldie’s arguments
against empathy and suggestions for an account of mutual perspective-shifting in
contexts of help and care”. In: Ethics and Education 2.1, p.61-72, 2007.
COPP, David. “Jesse Prinz, The Emotional Construction of Morals (Oxford: Oxford
University Press, 2007): Prinz’s Subjectivist Moral Realism”. In: Noûs 45.3, p.577-
594, 2011.
DARWALL, Stephen. “Empathy, sympathy, care”. In: Philosophical Studies 89.2/3,
p.281-282, 1998.
DAVIS, Mark. “Measuring individual differences in empathy: evidence for a
multidimensional approach”. In: Journal of Personality and Social Psychology, 44.1,
p.113-126, 1983.
DECETY, Jean. “L’empathie est-elle une simulation mentale de la subjectivite
d’autrui?” In: A. Berthoz & G. Jorland (org.), L’Empathie. Paris: Odile Jacob, p.53-
88, 2004.
______; JACKSON, P. L. “A social-neuroscience perspective on empathy”. In:
Current Directions in Psychological Science 15.2, p.54-58, 2006.
DE VIGNEMONT, Frederique; SINGER, Tania. “The empathic brain: how, when and
why?”In: Trends in Cognitive Sciences 10.10, p.435-441, 2006.
171
CLÁUDIA PASSOS FERREIRA
172
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
173
CLÁUDIA PASSOS FERREIRA
174
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
175
CLÁUDIA PASSOS FERREIRA
176
6
O PAPEL DA INDIGNAÇÃO DE UMA PERSPECTIVA
PERFECCIONISTA*
Jônadas Techio
Introdução
A motivação inicial para a redação este capítulo foi o choque causado por
um comentário de Stanley Cavell a uma cena do filme Mr. Deeds Goes to Town1. O
protagonista desse filme é Longfellow Deeds (Gary Cooper), um sujeito simples do
interior que ganhava a vida escrevendo versos para cartões, até que
inesperadamente herdou uma fortuna de um tio milionário e mudou para sua
mansão em Nova York – uma história que causou bastante interesse na imprensa
local, que chegou a apelidá-lo de “Cinderella Man”. Na cena que me interessa
Deeds sai para jantar em um restaurante cuja propaganda afirma que lá você pode
“comer com os literatos”. Numa grande mesa encontram-se poetas e escritores
que, ao serem informados da presença de Deeds, convidam-no a juntar-se a eles.
Sabendo que Deeds escreve poemas, os intelectuais começam a fazer perguntas,
em tom condescendente e debochado, sobre seus métodos de escrita. Passado
algum tempo Deeds se dá conta de que está servindo apenas como objeto de
piada, e ao levantar para sair afirma: “Creio que nem todas as pessoas famosas
são grandes pessoas”. Dois dos escritores protestam desfaçadamente e tentam
impedir sua saída, ao que Deeds reage derrubando ambos a socos.
* Uma versão deste texto em língua inglesa foi publicada anteriormente na revista Ethic@ -
Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, v. 15, n. 2, p. 260-278. Nov. 2016. Agradeço a autorização dos
editores para a publicação da versão em português.
1 Frank Capra, USA/Columbia, 1936.
JÔNADAS TECHIO
2 Cities of Words: Pedagogical Letters on a Register of the Moral Life. Cambridge (MA) & London:
178
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
Doravante “CR”.
179
JÔNADAS TECHIO
competentes nas práticas de contagem e medição para que possamos dirimir esse
desacordo. Entretanto, pelo menos em grande parte dos casos, o desacordo
acerca do melhor curso de ação a ser tomado não parece tão simples de resolver.
Qual é a razão dessa dificuldade? Será que bastaria sermos ambos (eu e meu
interlocutor) moralmente competentes para que pudéssemos chegar a um tal
acordo? Mas que tipo de competência exatamente seria essa? Seria ela análoga à
competência de um matemático ou de um cientista – uma questão de
conhecimento acerca de princípios, regras ou fatos morais, ou ainda acerca do
significado de noções morais?
Essas questões tem dividido os filósofos ao longo da história. O próprio
Sócrates teria defendido que o conhecimento é a base da virtude: assim, em uma
situação ideal em que ambos os interlocutores estivessem num mesmo patamar
cognitivo no tocante às condições para bem agir, supostamente não seria possível
desacordo racional. Mais próximo de nossos dias, Moore pode ser citado como um
exemplo adicional de cognitivista moral: de acordo com sua posição “intuicionista”,
juízos morais acerca do “bem” (ou qualquer outro termo moral) deveriam concordar
tanto quanto juízos empíricos acerca do tamanho relativo de dois objetos4.
Do outro lado dessa disputa temos as posições não-cognitivistas, tais como
aquelas defendidas pelos principais expoentes do positivismo lógico no início do
séc. XX. A. J. Ayer pode ser tomado como um representante. Em Language, Truth
and Logic, ele defendeu que:
[…] a filosofia ética consiste simplesmente em dizer que os conceitos éticos
são pseudo-conceitos e, portanto, inanalisáveis. [...] Não pode haver tal
coisa como uma ciência ética, se por uma ciência ética queremos dar a
entender a elaboração de um sistema ‘verdadeiro’ de moral. Pois, como
vimos, dado que juízos éticos são meras expressões de sentimento, não
pode haver nenhuma forma de determinar a validade de qualquer sistema
ético. E, de fato, não faz sentido perguntar se qualquer sistema dessa
4 Ver MOORE, G.E. Principia Ethica. Cambridge: Cambridge University Press, 1960.
180
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
espécie é verdadeiro5.
A disputa entre cognitivismo e não-cognitivismo em ética e metaética leva
ao que Stanley Bates caracterizou como uma antinomia: o cognitivismo implica
uma exigência de acordo entre os agentes que parece absolutamente irrealista; já
o não-cognitivismo parece completamente inconsistente com nossas práticas
morais. Como resume Bates: “se a teoria emotiva estivesse correta, então o uso da
linguagem ética por parte de alguém seria ou bem um ato de má-fé ou bem de
alienação, conforme essa pessoa acreditasse ou não na teoria”6.
Ora, a “solução” padrão para antinomias consiste em mostrar que há um
pressuposto problemático compartilhado por ambos os lados da disputa, e essa
será justamente a estratégia adotada por Cavell. O pressuposto em questão, nem
sempre formulado explicitamente, é que “a lógica e, mais particularmente, a ciência
fornece os modelos para a racionalidade de um argumento” (CR 260-261); ou, em
outras palavras, que a argumentação moral só poderia ser considerada racional
caso tivesse uma estrutura similar ou análoga à do raciocínio dedutivo, levando “de
premissas que todos aceitam, por meio de passos que todos podem acompanhar,
até uma conclusão que todos devem aceitar” (CR 254). Cognitivistas como Moore
(e, antes dele, Platão, ou, pelo menos, o Sócrates de Platão) aceitam esse
pressuposto e procuram desesperadamente mostrar que o raciocínio moral pode
satisfazer essas exigências, ainda que o custo seja a postulação de uma faculdade
intuitiva especial; não-cognitivistas como Ayer também aceitam tacitamente esse
pressuposto, mas por perceberem que as discussões morais ficam aquém do
padrão de racionalidade empregado no âmbito das disputas científicas acabam
excluindo a moralidade da esfera da avaliação racional, relegando-a à “expressão
de sentimentos”.
Tal como Ayer e outros não-cognitivistas, Cavell considera irrealista esperar
que argumentos morais levem a conclusões que todos deveriam aceitar; contudo,
argumenta ele, assim como a falha em alegações epistêmicas cotidianas não
181
JÔNADAS TECHIO
182
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
7 Ver KANT, Critique of Judgement. Walker N. E Meredith, C. (Tr.). Oxford: Oxford University Press,
2007; especialmente §§7-8 e §19.
8 Must We Mean What We Say?. Cambridge: Cambridge University Press, 1976, p. 94. Doravante
“MWM”.
9 WITTGENSTEIN, L. Philosophical Investigations. 3rd Ed. G.E.M Anscombe (Ed. & Tr.). Oxford:
argumentativos da matemática e das demais ciências comporta igualmente esse traço. Não
precisamos estar dispostos a discutir indefinidamente com qualquer interlocutor.
183
JÔNADAS TECHIO
pela qual, justamente, elas poderão terminar abruptamente, sem que isso seja um
indício de irracionalidade. Mas antes disso quero enfatizar esta importante
diferença entre os tipos de acordo esperados nos campos respectivos da estética e
das ciências. Ecoando as palavras de Cavell citadas acima, pode-se dizer que no
caso das ciências o acordo é garantido justamente através da exclusão da
subjetividade; já no caso das discussões estéticas o acordo depende
essencialmente de um uso controlado ou exemplar da subjetividade. É justamente
por causa dessa característica que as discussões estéticas – do mesmo modo que
as discussões morais, mas diferentemente das discussões científicas – permitem
que os participantes desvelem, para si mesmos e para os demais, aspectos
íntimos de si mesmos, articulando e tornando inteligíveis as posições que estão
adotando, e pelas quais assumem responsabilidade. Nisto reside o interesse, mas
também o risco peculiar das discussões estéticas e morais: elas fornecerão aos
participantes uma oportunidade importante para desenvolverem suas
individualidades, potencializando um aumento no nível de autoconhecimento, bem
como a construção ou descoberta de uma comunidade; mas há sempre a
possibilidade de falha, a qual pode acarretar na descoberta, por parte do sujeito,
de sua própria confusão e opacidade, podendo levar à humilhação, à rejeição e
finalmente ao isolamento.
Deixando de lado o paralelo com a estética, cabe elucidar melhor que tipo
de razões podem ser moralmente relevantes, ou seja, que tipos de considerações
são legítimas do ponto de vista dos procedimentos de uma discussão moral. Cavell
dá uma pista para responder a essa pergunta em uma passagem na qual critica a
posição de Charles Stevenson, justamente por não fornecer um bom critério dessa
espécie, considerando legítimo o uso de qualquer enunciado que possa vir a
alterar as atitudes de um interlocutor numa discussão moral. O principal problema
dessa posição, de acordo com Cavell, é que sua adoção implica tratar o
interlocutor como um mero objeto a ser manipulado, ao invés de uma pessoa,
“uma criatura com compromissos e preocupações [commitments and cares]” (CR
283). Como elucida Mulhall:
para Cavell, os compromissos de uma pessoa não são mais ou menos
184
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
11 MULHALL, S. Stanley Cavell: Philosophy’s Recounting of the Ordinary. Oxford: Oxford University
Press, 1994, p.37.
12 Agradeço a Flávio Williges por sugerir esta formulação. Aproveito para registrar uma conexão entre
essa discussão e o tratamento do papel da estabilidade em nossas práticas morais fornecido por Peg
O’Connor no livro Morality and Our Complicated Form of Life: Feminist Wittgensteinian Metaethics
(Pennsylvania State University Press, 2008). O ponto que me interessa particularmente nessa obra é
a crítica de certa “imagem filosófica” segundo a qual apenas fundamentos poderiam fornecer
estabilidade às nossas práticas morais. A alternativa que ela apresenta é tão simples na sua
formulação quanto fecunda em consequências, a saber, tentar mudar a metáfora dominante para lidar
com a normatividade em metaética, abandonando a busca por fundamentos ou alicerces, em prol da
compreensão das condições que permitem a obtenção e manutenção de estabilidade entre os vários
185
JÔNADAS TECHIO
aspectos de nossas práticas. A estabilidade, como O’Connor a define, “é uma questão de relações
equilibradas entre um conjunto de fatores, e depende de um constante reconhecimento das
limitações e da localização” (ibid., p.14). Essa noção origina-se no contexto da arquitetura, onde um
dos objetivos centrais é combinar elementos heterogêneos, obtendo um equilíbrio entre a imobilidade
e a flexibilidade: “O concreto só pode curvar até certo ponto, o aço só pode sustentar um certo peso,
o vidro só pode aguentar uma certa pressão” (ibid.); ao combinar esses materiais e suas
propriedades, um arquiteto pode criar uma estrutura que se sustenta devido ao equilíbrio e à tensão:
“apenas considere a importância do movimento em um edifício alto ou em uma ponte” (ibid.). E, de
acordo com O’Connor, algo análogo vale para o caso da normatividade em geral, seja ela ética ou
linguística.
186
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
187
JÔNADAS TECHIO
188
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
14Um indício da centralidade dessa característica é o fato de que ela perpassa as mais diferentes
concepções tradicionais da moralidade – por exemplo, o “cálculo de consequências” dos utilitaristas
ou a “interpretação de motivos e princípios” do kantismo (ver CW p. 25).
189
JÔNADAS TECHIO
15Aqui cabe outra injunção apresentada por Wittgenstein para fins distintos: “não pense, mas olhe!”
(op. cit. §66).
190
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
16Registro, para possível tratamento futuro, que a dinâmica das tentativas de reconciliação e sua
importância da manutenção de uma comunidade moral são temas caros a Cavell. A noção-chave
empregada na análise dessa dinâmica, herdada de J. L. Austin, é a de “elaborativos” – “aquelas
desculpas, explicações, justificativas [...] que constituem o grosso da defesa moral [the bulk of moral
defense]” (CR 296; ver também MWM 26-30 e CR 324-5).
191
JÔNADAS TECHIO
Reading of Schopenhauer as Educator” (in Schacht, R. (ed.), Nietzsche’s Postmoralism, CUP, 2000,
p.181-257), e Cavell tem procurado fazer o mesmo tanto em relação a Nietzsche quanto a Emerson
em várias obras recentes, sendo a principal delas Conditions Handsome and Unhandsome: The
Constitution of Emersonian Perfectionism (Chicago: Univ. of Chicago Press, 1990).
192
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
20 Afrase encontra-se no ensaio “History” (Essays, First Series [1841]), disponível online aqui (acesso
em 10 de maio de 2012):
<http://www.vcu.edu/engweb/transcendentalism/authors/emerson/essays/history.html>.
193
JÔNADAS TECHIO
impessoais, mas sim a partir de uma posição que ele ocupa em relação àqueles
compromissos. Ora, se alguma disposição para compreender e ser compreendido
é necessária para a argumentação moral, então é fácil perceber como um contexto
de amizade e respeito mútuo torna-se particularmente adequado para esse fim. É
sobretudo nesse tipo de contexto que poderemos avançar em nossa educação
moral – uma educação que, de acordo com Cavell, não visa primeiramente
“proporcionar um aumento de aprendizagem, mas uma transformação da
existência” (CF 325)21.
Mas dizer que um contexto de amizade é particularmente adequado para o
avanço na educação moral não é o mesmo que dizer que só é possível avançar
em tais contextos. Como um amigo alertou, “inimigos e estranhos também podem
nos ensinar algo sobre a moralidade de nossa conduta. Aprendemos lições
definitivas ouvindo o que não queremos ouvir, daqueles que mal conhecemos”22.
Certamente; entretanto, parece-me que isso só será possível naqueles casos em
que mesmo nossos inimigos ou estranhos compartilharem de pelo menos alguns
dos nossos próprios compromissos e preocupações23. O único cenário que está
sendo excluído como propício à discussão moral é o de sujeitos que, nos termos
de Cavell, vivem em mundos morais completamente distintos. Pensemos uma
última vez no que aconteceu entre Deeds e os literatos: estes não demonstraram
nenhum interesse genuíno nas preocupações e compromissos de Deeds, tratando-
os desde o início como sem sentido ou risíveis (lembremos do quanto riem do fato
de ele ser um poeta de cartões24). Já Deeds partiu de uma perspectiva oposta, de
admiração, e por isso mesmo sua frustração foi tão grande. Ele foi humilhado e
21 Apassagem continua tratando da importância do “casamento”: “aqueles que não podem se inspirar
mutuamente a uma educação desse tipo não estão casados; eles não têm o tipo certo de interesse
um pelo outro”. Infelizmente esse é um tema que não pude tratar no espaço da presente
comunicação.
22 Devo essa consideração a Eduardo Vicentini de Medeiros, em uma troca de e-mails.
23 Lembremos do grande (embora limitado) respeito mútuo que arqui-inimigos invariavelmente
demonstram na ficção.
24 Agradeço a Nykolas Friedrich Correia Motta por chamar atenção a esse ponto.
194
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
falta por vezes drástica dessa relação no melodramas) é da maior importância específica para
estabelecê-los como narrativas perfeccionistas.” (id. ibid.)
195
JÔNADAS TECHIO
196
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
197
7
CETICISMO DARWINIANO SOBRE O REALISMO MORAL*
David Copp
Introdução
Parece haver explicações evolutivas darwinianas plausíveis para uma gama
de fenômenos psicológicos com importância moral, fenômenos que são tanto de
natureza conativa como cognitiva. Chamemo-los de fenômenos da psicologia
moral. Esses fenômenos incluem o fato de que os humanos têm uma tendência a
desenvolver e a tornarem-se dispostos a expressar uma variedade de estados
conativos, incluindo desejos, sentimentos e emoções moralmente significativos.
Há, por exemplo, uma tendência a desenvolver atitudes morais que favoreçam a
cooperação, uma tendência dos pais a desejar cuidar de sua prole e uma
tendência daqueles que receberam bens de outrem a desejar retribuir. Os
fenômenos que tenho em mente incluem capacidades cognitivas variadas,
incluindo aquelas que são necessárias para se formar crenças morais, e uma
tendência a formar essas crenças. E incluem também a capacidade para o que
Allan Gibbard chama de “governo normativo”1, e que possivelmente depende de
uma capacidade para sentir vergonha e culpa, entender normas sociais e
raciocínio prático complexo. Direi mais sobre esses fenômenos no que segue. Para
simplificar minha tarefa, suporei que a natureza desses fenômenos não está em
questão.
Com base no trabalho de biólogos evolutivos, vários filósofos defenderam
* Traduzido por Marcelo Fischborn, com autorização, a partir do original “Darwinian skepticism about
moral realism”, publicado em Philosophical Issues 18, p.186-206, 2008.
1 1990, p.61-80.
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
2 Ver, por exemplo, Blackburn (2000), Gibbard (1982 e 1990), Joyce (2006), Kitcher (1993 e 2006),
Ruse (1986), Sober e Wilson (1998), Street (2006).
3 O alvo de Street é o realismo valorativo, mas foco no realismo moral. Essa mudança não afeta a
199
DAVID COPP
4 STREET, 2006, p. 109, e em todo o artigo. Para as observações citadas, ver p.109.
5 STREET, 2006, p.127; JOYCE 2006, p.117; ver KITCHER 2006, p.175-181.
200
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
201
DAVID COPP
que afetaram o conteúdo dos juízos valorativos que passaram a estar dispostos a
fazer. Street afirma que a abordagem da ligação adaptativa pode explicar dessa
maneira por que os seres humanos evoluíram de modo a estarem dispostos a
fazer juízos favorecendo aqueles tipos de comportamento. Por exemplo, ela afirma
que pode explicar por que os seres humanos evoluíram de modo a tenderem a
julgar que o fato de uma pessoa ter ajudado alguém é uma razão para lhe retribuir
a ajuda11. Em terceiro lugar, como resultado de tudo isso, temos uma tendência
não-reflexiva a formar certas crenças morais básicas.
Kitcher acrescenta a essa imagem uma abordagem sobre a função
evolutiva de uma capacidade para governo normativo juntamente com uma
abordagem sobre o impacto da “evolução cultural”. Ele sugere que a função
evolutiva de uma capacidade para governo normativo foi “promover a coesão
social” por meio da oposição às pressões dos desejos egoístas e antissociais com
“pressões que reforçariam o tecido social”12. Ele defende que “os hominídios com a
tendência a agir com base em disposições altruístas [e que induzem a cooperação]
teriam se saído melhor que aqueles sem <essa tendência>”, uma vez que isso lhes
teria dado um acesso mais fácil a “alianças vantajosas”13. Ele sugere, além do
mais, que uma capacidade para governo normativo resultante da evolução teria
permitido aos nossos ancestrais desenvolver uma “proto-moralidade”, a qual
reforçaria essas disposições e seria transmitida ao longo das gerações. Um
processo de evolução cultural poderia então desenvolver-se, no qual certos
sistemas normativos seriam mais bem-sucedidos que outros para sobreviver nas
gerações seguintes. Esperar-se-ia que certos tipos de normas sobrevivessem e
tornassem-se mais amplamente aceitas. Estas incluiriam, por exemplo, normas
projetadas para promover a estabilidade social, a paz e a cooperação14. A
abordagem da ligação adaptativa, portanto, parece capaz de explicar por que os
seres humanos teriam desenvolvido uma capacidade para governo normativo,
202
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
203
DAVID COPP
17 Gibbard também pensa que as considerações evolutivas apoiam o não-cognitivismo (1982, p.43).
Para uma discussão, ver STURGEON, 1992.
18 2006, p.109; ver também p.113, p.121.
19 Para uma discussão útil, ver SOBER, 1994, p.95-99. Ver também JOYCE, 2006, p.33-40, p.140,
p.180-181.
204
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
morais sejam verdadeiras. O argumento alega, com base nisso, que considerações
sobre parcimônia ontológica nos dão razões para supor que não há verdades
morais20.
Esse argumento, no entanto, não é bem-sucedido em sua ameaça ao
realismo moral por pelo menos duas razões. Primeiro, as explicações darwinianas
mais plausíveis de nossas capacidades de ter crenças sobre o “big bang” e sobre a
teoria das cordas também não postulam a existência de verdades nessas áreas,
mas isso não nos dá razões para concluir que não há tais verdades. De fato, temos
razões independentes para supor que há tais verdades. Por tudo o que a história
darwiniana mostra, também poderíamos ter razões independentes para supor que
há fatos morais21. Em segundo lugar, como Joyce aponta22, se os fatos morais são
“redutíveis” a fatos não-morais do tipo que é mencionado na hipótese darwiniana,
não há perda de parcimônia em supor-se que há fatos morais. Nesse caso, a
Navalha de Occam não teria nada a fazer23.
A própria Street aceita uma versão do reducionismo naturalista, uma versão
que descreve como “construtivista” e “antirrealista”, para contrastá-la com as
posições “realistas” que seu argumento pretende atacar24. Poderíamos, em vez
disso, categorizar seu construtivismo como um tipo de realismo, mas nada
depende de nossa escolha terminológica. O fato importante é que Street não
pretende argumentar contra as teorias construtivistas, de acordo com as quais os
fatos morais são redutíveis a, ou são “uma função de”, fatos sobre nossas “atitudes
valorativas” – sendo que nossas “atitudes valorativas” incluem todos os fenômenos
da psicologia moral, tanto conativos quanto cognitivos, incluindo “juízos valorativos
moralidade tem uma “autoridade prática inescapável” que nenhuma versão do naturalismo moral
pode explicar (2006, p.199-209). Respondi a esse argumento em outro lugar (Copp 2007b).
24 Ver STREET, 2006, n.37; também STREET, 2008.
205
DAVID COPP
25 2006, p.111.
26 2006, p.110-111.
27 2006, p.111; SHAFER-LANDAU 2003, p.14.
28 2006, p.179-182.
206
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
de modo tal que nossas crenças morais tendem a acompanhar os fatos morais29.
Em uma das alternativas do dilema, a “alternativa que afirma o acompanhamento”,
os realistas afirmam a tese do acompanhamento. Mas, contesta Street, a tese do
acompanhamento é insustentável, porque afirmá-la compromete os realistas com
negar a abordagem da ligação adaptativa. Na outra alternativa do dilema, a
“alternativa que nega o acompanhamento”, os realistas negam a tese do
acompanhamento. Mas, contesta Street, dada a hipótese darwiniana, se os
realistas negam a tese do acompanhamento, estão comprometidos com um
resultado cético implausível. Se Street está correta, os realistas têm dificuldades
quer afirmem, quer rejeitem a tese do acompanhamento.
É interessante considerar por que o construtivismo poderia ser imune ao
argumento. O construtivismo sustenta que os fatos morais são redutíveis ao
fenômeno da psicologia moral, o qual, de acordo com a hipótese darwiniana, pode
ser explicado, em parte, como resultado das influências darwinianas. Precisamos
perguntar se o construtivismo pode lidar bem com a proposição de que é provável
que as forças darwinianas produziram crenças morais verdadeiras e se pode fazê-
lo sem adotar uma versão da hipótese darwiniana que conflitue com a abordagem
da ligação adaptativa. A resposta parece ser que pode. Os fatos morais são fatos
de um tipo que tornaria nossas crenças morais verdadeiras. De acordo com o
construtivismo, esses fatos são constituídos pelo fenômeno da psicologia moral.
29 Street diz que os realistas têm de escolher entre supor que não há nenhuma relação entre os fatos
valorativos e a seleção natural e supor que há tal relação (2006, p.125). Isso não é o que ela deveria
dizer. Ela defende que se, no primeiro lado do dilema, não há relação entre os fatos valorativos e a
seleção natural, então “a seleção natural tem de ser vista como uma influência puramente
distorcedora” sobre nossas crenças valorativas (2006, p.121). Mas, se a seleção natural teve uma
influência distorcedora sobre nossas crenças, ela mantém com os fatos morais a relação de fazer
nossas crenças valorativas representá-los mal. Por isso, se a seleção natural não está em nenhuma
relação com os fatos valorativos, então ela não distorce nossas crenças morais. Felizmente esse
problema é superficial. A questão central é se a seleção natural esteve em uma “relação de
acompanhamento” epistemologicamente significativa com os fatos morais (2006, p.125). Eu reformulo
o dilema, portanto, como oferecendo aos realistas uma escolha entre afirmar e negar a tese do
acompanhamento.
207
DAVID COPP
208
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
influência”. Mas, então, salvo “um acaso da sorte”, é muito provável “que muitas ou
a maioria dos nossos juízos valorativos estejam fora do trilho”. Por isso, um realista
que aceite a hipótese darwiniana e que adote a alternativa do dilema que nega o
acompanhamento compromete-se com “o resultado cético duvidoso” de que seria
“puramente uma questão de chance” se qualquer de nossas crenças morais fosse
verdadeira32. Para evitar esse resultado cético, defende Street, os realistas que
aceitam a hipótese darwiniana têm de aceitar também a tese do
acompanhamento33.
Joyce oferece um argumento similar, mas chega a uma conclusão diferente.
Street pensa que os realistas que aceitam a hipótese darwiniana, mas negam a
tese do acompanhamento, estão comprometidos com a posição de que é
improvável que nossas crenças morais sejam verdadeiras. Joyce defende que
esses realistas estão comprometidos com a posição de que nossas crenças morais
positivas podem ser injustificadas. Ele aponta que, se sabemos que nossas
crenças sobre um dado tópico foram influenciadas por fatores que não tendam a
acompanhar a verdade, então é um dever racional que sejamos menos confiantes
a respeito dessas crenças. Por exemplo, se sei que minhas crenças sobre as
qualificações profissionais de alguém foram influenciadas por minha raiva dessa
pessoa, então é um dever racional que eu seja menos confiante a esse respeito do
que seria de outro modo. Quanto mais fortes penso que essas influências foram,
menos confiante devo ser34. Por isso, os realistas que aceitam que as forças
darwinianas tiveram um efeito significativo sobre o conteúdo de nossas crenças
morais, e que negam a tese do acompanhamento, devem ter um nível de
confiança significativamente reduzido em suas crenças morais. Em sua posição,
há razões para pensar que nossas crenças morais positivas são injustificadas.
Alguém poderia objetar que a reflexão racional pode corrigir a influência
potencialmente distorcedora da seleção natural sobre nossas crenças morais.
32 2006, p.121-122.
33 2006, p.134-135.
34 2006, p.179-182; ver STREET 2006, p.155; SOBER 1993, p.107.
209
DAVID COPP
Street responde que, a menos que as forças evolutivas que afetaram o conteúdo
de nossas crenças morais acompanhassem de algum modo a verdade, as
concepções morais com que a reflexão começaria provavelmente apontariam na
direção errada. Por isso, se a reflexão racional sobre questões morais consiste em
buscar um “equilíbrio reflexivo” para nossas concepções morais, é improvável que
a reflexão racional aproxime-nos da verdade35. Muitos realistas objetariam que a
reflexão racional pode conduzir a uma mudança significativa em nossas
concepções morais, e levar-nos para além da mera busca de um equilíbrio
reflexivo para concepções previamente dadas. Não obstante, seria difícil negar que
os resultados da reflexão racional seriam fortemente influenciados por nossos
pontos de partida, bem como por nossas capacidades intelectuais e conceituais
evoluídas. Se rejeitamos a tese do acompanhamento, não é claro que razão temos
para pensar que o exercício dessas capacidades na reflexão sobre nossas crenças
morais iniciais permitiria aproximarmo-nos da verdade.
Poder-se-ia responder que, mesmo que as forças darwinianas tenham
influenciado o conteúdo de nossas crenças morais, houve várias outras influências
sobre seu conteúdo, incluindo influências culturais, e essas outras influências
poderiam ter tendido a impelir nossas crenças morais na direção da verdade36. Por
exemplo, mesmo que a seleção natural tivesse feito com que os homens
tendessem a pensar irrefletidamente que não há nada errado com o estupro, a
cultura poderia ter levado muitos deles a pensar diferente. A empatia pela vítima
também poderia tê-los levado a pensar diferente. O problema com essa resposta é
que, na abordagem da ligação adaptativa, a natureza de nossas emoções morais
também foi afetada pela seleção natural, e nossas culturas também foram afetadas
pelas forças darwinianas. Assim, se rejeitamos a tese do acompanhamento, não é
claro que razão temos para pensar que nossas emoções ou nossas culturas
tenderão a impelir nossas crenças morais na direção da verdade.
A objeção mais importante ao argumento de Street é que os realistas que
35 2006, p.124.
36 Ver SINNOTT-ARMSTRONG 2006, p.40-45.
210
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
211
DAVID COPP
38 2006, p.125-126.
39 2006, p.135.
40 2006, p.128-135.
212
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
213
DAVID COPP
214
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
215
DAVID COPP
44 2006, p.179-182.
45 STURGEON 1992.
216
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
46 Agradeço a Mark Schroeder e Jon Tresan pela ajuda na formulação dessa ideia.
217
DAVID COPP
47 COPP, 1995 e 2007a. Apresentei versões um tanto diferentes da teoria em lugares diferentes. Para
mais sobre isso, ver a introdução a Copp (2007a).
48 Para observações sugestivas, ver BOYD, 1988, p.208-209.
218
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
são necessários para seus membros. Diferentes códigos morais difeririam em quão
bem sua vigência em uma sociedade serviria a essa função. Dado isso, como
agora explicarei, a teoria diz que uma proposição moral básica, tal como a
proposição de que a tortura é errada, seria verdadeira somente se o código moral
que servisse melhor à função de permitir à sociedade satisfazer suas necessidade
incluísse ou implicasse uma norma correspondente em um sentido relevante, tal
como a proibição da tortura.
A teoria tem duas partes. A primeira é uma abordagem das condições de
verdade de proposições normativas, a qual chamo de abordagem “baseada em
padrões”. A segunda é a abordagem centrada na sociedade sobre o modo
‘embasador da verdade’ dos ‘padrões’ morais.
A abordagem baseada em padrões baseia-se em uma distinção entre
proposições morais, tal como a proposição segundo a qual a tortura é errada, e
padrões morais, tal como o padrão proibindo a tortura que poderia ser expresso
pelo imperativo “Não torture ninguém!”. A abordagem propõe um esquema que
pode ser usado para explicitar as condições de verdade de proposições morais em
termos do modo [status] dos padrões correspondentes relevantes. O esquema diz
que uma proposição moral (pura e básica) é verdadeira se, e somente se, um
padrão moral correspondente tem o modo embasador da verdade relevante49. Por
exemplo, é verdade que a tortura é errada se, e somente se, um padrão
correspondente – presumivelmente o padrão que proíbe a tortura – tem o modo
embasador da verdade relevante.
A ideia é que, se há quaisquer verdades morais, há algum modo que um
padrão pode ter, tal que, se um padrão desfruta desse modo, uma proposição
moral (pura e básica) correspondente é verdadeira. Tem de haver alguma
propriedade que distinga o padrão que proíbe a tortura de padrões que não
tenham qualquer caráter moral, tal como o padrão que proíbe homens de usar
49 Uma proposição moral ‘pura’ não tem nenhuma implicação ou pressuposição não-moral (outras que
aquelas dadas pela própria teoria baseada no padrão). Uma proposição moral ‘básica’ atribui uma
propriedade moral a algo.
219
DAVID COPP
220
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
50 Ver
COPP, 1996, p.252-253.
51 COPP, 1995, p.198-200; COPP, 1996, p.257-258. Ver também a introdução a COPP, 2007a.
52 COPP, 1995, p.201-209.
221
DAVID COPP
normatividade das proposições morais? Não posso tratar dessas questões aqui53.
A questão importante para os propósitos presentes é se a teoria pode
ilustrar uma estratégia que permitiria aos realistas morais escapar ao desafio
darwiniano. Como vimos, a chave para escapar o desafio é explicar por que,
concedendo a hipótese darwiniana e supondo a abordagem da ligação adaptativa,
nossas crenças morais poderiam tender a acompanhar parcialmente a verdade
moral. A questão é se a teoria centrada na sociedade pode explicar isso.
Argumentarei que, se uma população começa tendo crenças morais com
um conteúdo mais ou menos previsto pela abordagem da ligação adaptativa, suas
crenças iniciais aproximam-se suficientemente da verdade moral, sob a luz da
teoria centrada na sociedade, e que, dadas a deliberação e a reflexão adequadas,
sendo o restante igual, é provável que suas crenças aproximem-se da verdade.
Isto é, argumentarei que as proposições morais que a teoria centrada na
sociedade afirma serem verdadeiras “acabam por ser [de modo suficientemente
próximo] os mesmos juízos que forjam as ligações adaptativas entre as
circunstâncias e a resposta”54. Dado isso, a teoria centrada na sociedade pode
evitar a conclusão cética de Street.
7. A teoria centrada na sociedade e o desafio darwiniano
Para construir o argumento, preciso conectar a explicação do
desenvolvimento de nossa psicologia moral fornecida pela abordagem da ligação
adaptativa com a abordagem da verdade moral fornecida pela teoria centrada na
sociedade.
De acordo com a abordagem da ligação adaptativa, as forças darwinianas
afetaram o conteúdo de nossas crenças morais através de um processo de quatro
estágios do tipo que esbocei anteriormente. Em um estágio inicial, nossos
ancestrais remotos desenvolveram uma tendência a ter disposições altruístas e de
indução da cooperação, porque essas disposições foram adaptativas no ambiente
222
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
ancestral. Uma capacidade para governo normativo também teria sido adaptativa.
Em um estágio subsequente do processo, os ancestrais com essa capacidade
teriam passado a compartilhar um sistema de normas que reforçaria disposições
pró-sociais. Em um estágio posterior, como resultado de um processo de evolução
cultural, certos tipos de normas teriam se tornado mais amplamente aceitas,
incluindo, especialmente, as normas projetadas para promover a estabilidade
social, a paz e a cooperação55. Finalmente, como resultado de tudo isso, os
humanos desenvolveram uma tendência a formar crenças morais que favoreçam
tipos importantes de comportamento pró-social, incluindo comportamentos que
promovea a estabilidade social, a paz e a cooperação.
A abordagem não depende da verdade dos juízos morais que prevê que os
seres humanos estariam dispostos a aceitar por causa das forças darwinianas.
Todavia, é compatível com sua verdade ou verdade aproximada. E, como
explicarei, a teoria centrada na sociedade implica que é provável que esses juízos
seriam aproximadamente verdadeiros.
O aspecto importante é que, nessa concepção do processo de quatro
estágios, provavelmente o processo da evolução cultural teria levado à vigência de
códigos morais favorecendo o comportamento que aumentaria a capacidade das
sociedades de atenderem a suas necessidades. Sociedades precisam que haja
estabilidade social, cooperação entre seus membros e relações pacíficas com seus
vizinhos. A vigência de normas que promovam a estabilidade social, a paz e a
cooperação promoveria o comportamento que tende a atender a essas
necessidades. Ademais, em nossa imagem do processo de quatro estágios, a
evolução cultural tenderia a levar à vigência de códigos morais que incluam
normas desse tipo, normas que exijam tipos de comportamento que promovam a
estabilidade social, a paz e a cooperação. Uma pessoa que subscrevesse a tal
código tenderia a formar as crenças ‘correspondentes’56. Por exemplo, se o código
223
DAVID COPP
pede que seja cooperativa, tenderia a formar a crença de que esse comportamento
é certo ou bom. E tenderia a agir de acordo, dado que tem uma capacidade para
governo normativo. Seu comportamento tenderia, então, a aumentar a habilidade
da sociedade de satisfazer as necessidades que esbocei anteriormente. Então, na
abordagem da ligação adaptativa e na abordagem do processo de quatro estágios,
a evolução cultural plausivelmente favoreceria os códigos morais cuja vigência em
uma sociedade aumentaria a habilidade da sociedade de satisfazer às suas
necessidades57.
De acordo com a teoria centrada na sociedade, dada a abordagem da
ligação adaptativa, na medida em que o processo de evolução social prossegue,
outras coisas sendo iguais, as crenças morais das pessoas tenderiam mais e mais
a aproximarem-se da verdade moral. Isto é, as crenças que correspondem ao
código moral social que emergiu dessa maneira de um processo de evolução
cultural tenderia crescentemente a aproximar-se da verdade. Pois a teoria implica
que as crenças morais que correspondem a um código moral, cuja vigência em
uma sociedade tende a promover a habilidade da sociedade de satisfazer às suas
necessidades, são em geral aproximadamente verdadeiras. E é razoável pensar
que a deliberação e a reflexão adequadas poderiam aproximar ainda mais essas
crenças da verdade.
Nesse sentido, afirmo que a teoria centrada na sociedade pode explicar por
que, outras coisas sendo iguais, e dada a abordagem da ligação adaptativa e a
abordagem do processo de quatro estágios, é provável que nossas crenças morais
tendam a acompanhar parcialmente a verdade moral. A teoria pode explicar por
que uma tendência a formar crenças morais com um conteúdo que foi influenciado
pelo processo de quatro estágios seria uma tendência a formar crenças que seriam
suficientemente próximas da verdade moral e que, dadas a reflexão e deliberação
apropriadas, nossas crenças morais tenderiam a chegar ainda mais perto da
verdade.
A abordagem implica que se pode esperar, outras coisas sendo iguais, que
224
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
225
DAVID COPP
61 Presumivelmente, um construtivista também defrontaria esse dilema de segunda ordem. Mas veja
STREET, 2006, n.57.
62 Ver STREET, 1996, n. 57.
63 Jon Tresan pressionou-me sobre esse tópico.
226
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
forças evolutivas de uma maneira que torna meu argumento aberto a um novo
dilema darwiniano. Talvez eu me defronte com uma escolha entre um resultado
cético, se nego que as forças darwinianas fizeram com que minhas intuições de
segunda ordem acompanhem os fatos, tais como fatos sobre a função da
moralidade, e uma hipótese darwiniana implausível, se afirmo que as forças
darwinianas fizeram com que as intuições de segunda ordem acompanhassem
esses fatos.
É implausível, no entanto, que o conteúdo das intuições de segunda ordem
que invoquei tenha sido fortemente influenciado pelas forças evolutivas. É
plausível que o fenômeno da psicologia moral tenha sido influenciado por pressões
evolutivas, porque nossa psicologia moral incita comportamento que pode ser ou
adaptativo ou desadaptativo. Mas as concepções de segunda ordem sobre a
moralidade e sobre as condições de verdade dos juízos normativos não têm a
conexão direta com o comportamento que as crenças morais de primeira ordem
têm. Elas são concepções filosóficas, antes que concepções morais normativas
que dizem como comportar-se. Por isso, embora de fato tenhamos evoluído para
sermos capazes de ter pensamentos filosóficos, é implausível que o conteúdo
desses pensamentos tenha sido moldado pelas forças evolutivas. Não há,
portanto, nenhuma plausibilidade na ideia de que uma pessoa que pense que haja
fatos sobre questões filosóficas defronte-se com um dilema darwiniano.
Conclusão
Na hipótese darwiniana, os fenômenos da psicologia moral, incluindo o
conteúdo de nossas crenças morais, foram fortemente afetados pelas forças
darwinianas. Street argumenta que, nessa abordagem, os realistas morais
defrontam-se com um dilema. Na alternativa que aceita o acompanhamento, estão
comprometidos em negar a abordagem da ligação adaptativa, a abordagem mais
plausível da atuação das forças darwinianas sobre nossa psicologia moral. Na
alternativa que nega o acompanhamento, precisam conceder que é “pura chance”
se nossas crenças morais tendem a ser verdadeiras. Em resposta, argumentei que
os realistas podem adotar a alternativa do dilema que afirma o acompanhamento e
227
DAVID COPP
que podem usar a abordagem da ligação adaptativa para explicar por que a tese
do acompanhamento parcial se sustenta. Apresentei a teoria moral centrada na
sociedade, que é um tipo de naturalismo moral. Defendi que ela pode explicar por
que nossas crenças morais tenderiam a acompanhar parcialmente a verdade
moral, se seu conteúdo foi afetado pelas forças darwinianas, tal como sugere a
abordagem da ligação adaptativa. Na teoria centrada na sociedade, outras coisas
sendo iguais, uma tendência a formar crenças morais com um conteúdo que foi
influenciado da maneira sugerida pela abordagem da ligação adaptativa seria uma
tendência a formar crenças que se aproximam da verdade. A teoria centrada na
sociedade mostra, então, que o desafio darwiniano não representa nenhum risco
para o realismo moral. O argumento contra o realismo moral tem de valer-se de
objeções filosóficas mais familiares à teoria centrada na sociedade e a outras
formas de realismo e não no dilema darwiniano.
Referências
BLACKBURN, Simon. Ruling Passions. New York: Oxford University Press, 2000.
BOYD, Richard. “How to be a Moral Realist”. In: Geoffrey Sayre-McCord (ed.),
Essays on Moral Realism. Ithaca, New York: Cornell University Press, 1988, p.181-
228.
CAMPBELL, Richmond. “Can Biology Make Ethics Objective?”. In: Biology and
Philosophy 11, p.21-31, 1996.
COPP, David. Morality, Normativity, and Society. New York: Oxford University
Press, 1995.
______. “Moral Knowledge in Society-Centered Moral Theory”. In: Walter Sinnott-
Armstrong e Mark Timmons (eds.). Moral Knowledge? New Readings in Moral
Epistemology. New York: Oxford University Press, 1996 p.243-266.
______. Morality in a Natural World. Cambridge: Cambridge University Press,
2007a.
228
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
229
DAVID COPP
230
8
MORALIDADE, MOTIVAÇÃO E OBJETIVIDADE
Alcino Eduardo Bonella
Introdução
O expressivismo é criticado normalmente porque não descreveria
adequadamente a natureza dos juízos morais, e excluiria a possibilidade da
objetividade moral. Tentarei mostrar neste trabalho que a crítica está errada,
porque o expressivismo é totalmente compatível com as demandas da objetividade
moral, e mesmo com a aceitação, no devido sentido, da verdade moral
independente da opinião (individual ou coletiva): ele descreve adequadamente o
juízo moral, sendo mesmo uma teoria mais coerente com a fenomenologia comum
da moralidade (por exemplo, à luz da função principal do juízo moral e das
alternativas descritivistas corriqueiras – intuicionismo e naturalismo); e, bem
compreendido, não é relativista. Ele não é relativista porque não só admite, mas
impõe, aos juízos morais, a possibilidade lógica da autocontradição, que torna tais
juízos incompatíveis entre si, e, logo, também torna impossível que ambos sejam
verdadeiros. Estes pontos são a parte principal de um argumento em prol do
expressivismo em que, ao mesmo tempo, se tenta esclarecer que a objetividade
moral não se reduz à objetividade moral fatual (de tipo descritivista).
1. Moralidade e a crítica ao expressivismo
Segundo Shafer-Landau, o expressivismo: não descreveria bem a natureza
dos juízos morais, excluiria a possibilidade do argumento racional e da objetividade
moral, e seria refutado pelo fenômeno da akrasia (fraqueza da vontade)1. Como a
maioria dos escritores em metaética, Shafer-Landau define o expressivismo como
1 2012, p.312-319.
ALCINO EDUARDO BONELLA
232
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
3 2012, p.316.
4 2012, p. 313.
5 2012, p. 317.
233
ALCINO EDUARDO BONELLA
234
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
6 2000, p.136.
7 Tradução em HARE, 2003, p.185-186.
235
ALCINO EDUARDO BONELLA
236
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
237
ALCINO EDUARDO BONELLA
tornando-o uma caricatura fácil de rejeitar, ao negar que também haja significado
descritivo nos termos morais, e, também, pretensão de verdade nos argumentos
morais. Eles também confundem expressivismo com subjetivismo, que é a
interpretação de que, ao enunciarmos proposições morais, estamos relatando o
que ocorre em nossa mente; e, finalmente, confundem objetividade com
objetividade fatual (a correspondência do enunciado moral aos fatos, naturais ou
morais). Parece que essa concepção fatualista de verdade moral é parte da crítica.
Mas segundo Boisvert, já Stenvenson incluiu em sua descrição do emotivismo a
ideia de que atitudes e interesses, que se caracterizam como estados de ser a
favor ou de ser contra, podiam ser governados racionalmente, e que sentenças
morais tinham ambos, significado emotivo e descritivo. Eles podiam ser
racionalmente governados porque atitudes eram atos volitivos que afirmavam ou
negavam uma intenção de ação, e com isso tornavam logicamente incompatíveis
duas sentenças contraditórias entre si, e argumentos podem ser elaborados a
partir dessas afirmações/negações, conjugados com fatos acerca das ações. Ao
tomar partido, um arguidor não está somente expressando uma atitude particular,
sua ou de sua sociedade, mas também endossando a aplicação dos predicados
morais a certas ações de forma objetiva. Pois, dado que a atitude em favor de X
(“tortura é imoral”) elimina a possibilidade de não X (“tortura não é imoral”), a
atitude, na sua função prática, também é um endosso de que o significado
descritivo presente na sentença (o padrão para aplicação do predicado moral, no
caso, que todos os atos que tenham as características de tortura ou de
desumanização são errados) torna verdadeira tal predicação, torna-a “o caso”.
Mas aqui, expressar uma atitude não deve ser entendido como relatar ou
descrever o próprio estado psicológico, ou constatar o que se aprova ou reprova
de fato. E, principalmente, não pode ser confundido com a crença de que, ao
afirmar que a tortura é errada, dado que ‘errada’ é uma expressão de
desaprovação, a tortura se torna errada ou é tida como errada simplesmente
porque é desaprovada subjetivamente. A tortura é errada porque tem as
características que tem, e porque é realmente o caso (ou, é verdade) que não se
deve praticar atos que tenham tais características. Usamos a linguagem moral
238
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
239
ALCINO EDUARDO BONELLA
a premissa de que o expressivismo, por não interpretar o juízo moral como que se
referindo a fatos independentes, eliminaria a possibilidade de tais juízos serem
verdadeiros ou objetivos, com a premissa de que prescrições, imperativos ou
convites/pedidos de que se formem determinadas reações práticas perante os
fatos, são sempre subjetivos, concluem que o expressivismo tornaria qualquer
juízo moral, um juízo arbitrário. E, como tal, não seria somente incapaz de lidar
com a contradição entre juízos morais divergentes, mas seria a própria encarnação
deste tipo de arbítrio. O tipo de subjetivismo ou relativismo supostamente implicado
seria a negação da racionalidade, pois um juízo moral como a condenação da
tortura seria, para esta interpretação ruim do expressivismo, apenas o relato da
desaprovação subjetiva, feita por alguém, ou por uma cultura, da tortura (a tortura
ser errada seria algo como “eu não aprovo a tortura”; não ser errada seria algo
como “eles aprovam a tortura”), e seria algo eminentemente particular, no sentido
de que a condenação da tortura englobaria apenas o sujeito que realmente tem o
sentimento de desaprovação disto e apenas casos particulares da ação de torturar
(“a tortura é errada” equivaleria somente a “tortura: arrggghhh!”, que não poderia
ser premissa de um argumento). Mas ambas as premissas principais são
equivocadas.
A segunda, por exemplo, implica em entender o aspecto emotivo ou
prescritivo de maneira errada, de uma maneira que neutraliza o potencial prático
do que seja expressar uma posição pró ou contra uma ação, ou seja, tomar uma
posição, e não relatá-la, nem interpretá-la como necessariamente pessoal e
particular. E se isso procede, não se pode concluir que os juízos morais passariam
a ser arbitrários e meros meios de se expressar opiniões subjetivas, e, como tais,
não poderiam mais valer em sentido forte, valer objetivamente, mas apenas em
sentido fraco (seriam sempre subjetivos nos sentidos de que cada um tem o seu,
de que eles podem variar temporalmente apenas porque as pessoas podem ter
opiniões diversas, e de que a validade é dada pela concordância individual, pelo
endosso individual). Para o expressivista, juízos morais expressam o que deve ser
aprovado ou desaprovado, nos dispõem e dispõem o interlocutor a agir de um
determinado modo, e implicam logicamente a eliminação da proposta que
240
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
241
ALCINO EDUARDO BONELLA
principal seria o valorativo e ele dirige e controla o descritivo (por exemplo, ele
pode ser usado para modificar o significado descritivo das expressões). O
problema todo está em interpretar adequadamente esta tese, ou ao menos
problematizar o modo como os críticos como Shafer-Landau interpretam isso como
a negação da objetividade moral.
Referências
BLACKBURN, S. Essays in quasi-realism. Oxford: Oxford University Press, 1993.
______.Being good. Oxford: Oxford University Press, 2001a.
______. Pense. Lisboa: Gradiva, 2001b.
BONELLA, A. E. “Prescritivismo universal e utilitarismo”. In: M. C. Carvalho; D.
Dallagnol. Utilitarismo em Foco. Florianópolils: UFSC, 2007.
______. “Racionalidade prescritiva”. In: R. Bueno. Racionalidade, justiça, direito.
Uberlândia: Edufu, 2013.
COPP, D. “Realist expressivism – A neglected option for moral realism”. In:Social
Philosophy and Policy 18, p.1-43, 2001.
FRANKENA, W. Ética. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
GIBBARD, A. Wise Choices, Apt Feelings. Harvard University Press, 1992.
LYONS, D. As regras morais e a ética. Campinas: Papirus, 1992.
HABERMAS, J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1989.
______. Verdade e justificação. São Paulo: Loyola, 2006.
______. A ética da discussão e a questão da verdade. São Paulo: Martins Fontes,
2009.
HARE, R. M. The language of morals. Oxford: Clarendon Press, 1952.
242
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
243
9
ADEQUAÇÃO SENTIMENTAL, UNIVOCIDADE E
RECALCITRÂNCIA
Introdução
Na adequação ou inadequação, na proporção ou
desproporção que o afeto parece ter com a causa ou objeto
que o excita consiste a propriedade ou impropriedade, a
probidade ou improbidade da ação consequente.
Adam Smith 1790, I.I.iii.
1 Iremos usar ‘sentimentos’ e ‘emoções’ como sinônimos. Para uma distinção entre estes termos, ver
Broad (1954).
2 As teses judicativa e sentimentalista são comumente chamadas ‘cognitivismo’ e ‘afetivismo’ (ou
245
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
4Ver Griffiths (1997) para um panorama geral do desenvolvimento destas questões nas literaturas
psicológica e filosófica.
246
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
condicionais.
Em segundo lugar, nossa hipótese não depende de um argumento a favor
da tese de que todos os nossos juízos e conceitos valorativos são associados a
um sentimento. É suficiente para os nossos propósitos pressupor que ao menos
parte de nosso discurso valorativo pode ser entendido em tais termos: isto é,
envolvendo uma relação entre valor e sentimento.
Em terceiro lugar, uma vez que tentaremos esclarecer algo sobre o discurso
e o pensamento valorativo através de uma discussão sobre a natureza de
sentimentos e emoções, nosso debate não seguirá as tendências mais comuns
nas investigações meta-éticas e meta-valorativas. Estas envolvem normalmente
questões sobre a semântica, a ontologia e a epistemologia do discurso valorativo.
Nosso foco será, em vez disto, em algumas características comuns do fenômeno
do discurso valorativo como um todo, que contém certas características que não
estão em disputa e são endossadas por todas as partes do debate.
Perguntaremos, então, qual das três abordagens consideradas aqui (sobre a
relação entre sentimento e valor) sai-se melhor para acomodar tais características
comuns do fenômeno do discurso valorativo.
Tendo esclarecido este ponto, podemos agora fornecer os detalhes de
nossa principal tarefa. Qual é exatamente esta? Em termos muito gerais, o que
está em jogo no debate que nos interessa aqui (tanto em psicologia quanto em
filosofia) é como explicar a relação entre (a aplicação de) certo tipo de conceito
valorativo (ou a identificação da propriedade associada), a formulação do
respectivo juízo valorativo, e o sentimento associado. Por exemplo, a relação entre
o que é errado, perigoso, vergonhoso ou engraçado e os sentimentos de culpa,
medo, vergonha e de achar graça5. Existem basicamente três principais
abordagens neste tema, a saber: as teses judicativa, da “não-prioridade” e
sentimentalista. No que se segue, veremos cada uma delas separadamente.
A tese judicativa defende a prioridade de juízos valorativos (que possuem
5Usaremos aqui a expressão ‘achar graça’ para representar o sentimento associado a situações
engraçadas ou cômicas. Funcionará, assim, como o equivalente de ‘amusement’ em inglês.
247
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
dessas posições. Algumas versões, como uma defendida por alguns estóicos, tal como descrita por
Nussbaum, defendem que, para que um agente seja inteiramente racional, ele precisa promover uma
extirpação total das emoções. De acordo com Nussbaum, para Crisipo, as emoções são sempre
248
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
falsos juízos. Shaffer (1983) também defende a dispensabilidade das emoções. Para uma tese
contrária, sobre a utilidade das emoções, ver Nesse (1990).
9 Ver Solomon (2007) para uma tese similar, especialmente o seu ensaio ‘On Emotions as
Judgments’.
10 Isto parece ser confirmado pela defesa de Nussbaum (1994) da tese de Crisipo.
249
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
forma que pudesse acomodar a ideia de que podemos em princípio julgar algo
valoroso e não sentir a emoção ou sentimento correspondente (ou sentir algo
distinto em seu lugar), de modo que julgar X valoroso seria julgar que é adequado
ou apropriado ter um sentimento ou emoção correspondente como resposta a X,
embora possa não ter esta resposta (ou sentimento)11. Como veremos, é com base
em casos como este que outras versões da tese judicativa propõem uma
importante alteração em formulações mais radicais da tese, como a de Nussbaum.
Mas, seja como for, há claramente algo atraente na tese judicativa. Dado
que é muito plausível sustentar que exista uma relação estreita entre juízo
valorativo e emoção, este ponto é muito facilmente assimilável à tese judicativa. Se
nos concentrarmos na articulação de sentimentos ou emoções – isto é, no uso de
nossa capacidade linguística e conceitual para explicá-los e descrevê-los – como
poderíamos avaliar que estamos respondendo adequadamente a uma situação de
perigo se não a descrevermos, de algum modo, como envolvendo o juízo de que
isto é o caso? Parece que medo é o sentimento adequado a se possuir quando
quer que julgamos que algo é perigoso. E se medo é a resposta adequada, isto
deve ser assim porque a situação pode ser caracterizada (valorativamente) como
perigosa. Este é certamente um tipo de juízo que comumente fazemos.
Ademais, a tese judicativa também parece ganhar alguma plausibilidade de
um ponto de vista fenomenológico. Como alguns sugerem, possuir uma emoção
parece similar a ter uma experiência valorativa que pode ser interpretada (ao
menos de um ponto de vista fenomenológico) como envolvendo uma forma de
percepção (ou juízo perceptual). Soa defensável a ideia de que parecemos nos
deparar com o engraçado, o errado, o vergonhoso quando normalmente
experienciamos achar graça, culpa ou vergonha.
É neste sentido que Philippa Foot critica Hume (a quem ela atribui uma
forma de tese sentimentalista naïve sobre a relação entre sentimento e valor)
quando diz que:
11Os termos ‘adequado’ e ‘apropriado’ são extraídos de Broad (1954), Wiggins (2002), e do trabalho
conjunto de D’Arms & Jacobson.
250
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
Hume, penso, estava cometendo um erro quando ele tentou explicar o que
significava dizer que uma ação ou qualidade é virtuosa em termos de um
sentimento especial; pois a explicação do pensamento aparece na
descrição do sentimento, não ao contrário12.
Parece estranho dizer que ele não precisa trazer à tona nenhum fato
especial sobre a ação para embasar o que ele diz. Assim, obviamente, o
que se quer saber é […] o que o levou a dizer que a virtuosidade de uma
ação não podia ser uma simples questão de fato provável. Às vezes, de
fato, sugere que não se pode simplesmente encontrar tal fato. Mas, uma
vez que ele mesmo diz que todas as coisas chamadas virtudes são
qualidades agradáveis ou úteis à humanidade, por que não deveria dizer
que é nisto que consiste a sua virtuosidade? Por que tem que insistir em um
sentimento de aprovação e, ao tornar isto a parte essencial do juízo moral,
ancorar enunciados sobre virtude nos sentimentos do observador e não nos
fatos?13.
Foot está dizendo que simplesmente soa implausível tentar caracterizar
emoções meramente como algum tipo de estado fenomenológico que possui um
“sentir” peculiar. A maneira como individuamos uma emoção, como orgulho, por
exemplo, se dá, de acordo com ela, ao identificarmos certo tipo de conteúdo
cognitivo, nomeadamente, que o objeto ao qual a atitude é direcionada é julgado
bom e este pertence a mim (algo que deve talvez também ser julgado bom)14.
Dessa forma, emoções parecem não apenas intencionais e cognitivas
(diferentemente de meras sensações, como coceiras, dores, surpresa, assim como
estados apetitivos como fome e sede, que parecem não possuir “foco”)15, mas
também formas de valoração. Elas são direcionadas a objetos que são articulados
em termos valorativos.
emoções que não possuem “foco” e são similares a coceiras e dores, que a tradição judicativa tem
dificuldades para explicar.
251
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
16Estamos aqui deixando de lado também outras objeções tradicionais à tese judicativa, tais como
encontrar espaço para emoções em crianças e animais, já que estes (muito provavelmente) carecem
de capacidades conceituais para articular juízos sobre as suas situações. Veja Deigh (1994) para
uma discussão deste ponto e objeções à tradição judicativa sobre como esta tenta lidar com emoções
em crianças e animais.
252
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
situações. Mas isto, sustenta a proposta, não implica que precisemos abandonar a
relevância do conteúdo cognitivo e do juízo valorativo totalmente – ou, ao menos, é
o que a proposta tenta legitimar.
McDowell e Wiggins tentam fazer isto ao proporem compreender conceitos
valorativos em termos de qualidades secundárias. Julgar algo perigoso é pensar
que é apropriado temê-la. De acordo com aqueles filósofos, não podemos
compreender a periculosidade sem compreendermos nossos sentimentos de
medo, isto é, nossas respostas ao perigo. Algo é perigoso em função do
sentimento de medo que ele desperta em nós. Ainda assim, ao mesmo tempo não
há outra forma de caracterizar o medo, segundo aqueles autores, sem apelar à
periculosidade. Como diz Wiggins17, “este é um subjetivismo de sujeitos e
propriedades mutuamente ajustados”. Wiggins explica o ponto detalhadamente nos
seguintes termos:
Suponha que os objetos que regularmente nos agradam ou nos são úteis
ou nos divertem […] ou nos prejudicam ou nos desagradam ou nos
importunam […] de várias maneiras passem a ser agrupados por nós sob
várias categorias ou classificações às quais damos vários nomes
abertamente antropocêntricos; e suponha que passem a ser agrupados
assim precisamente porque eles são tais que nos agradam, nos são úteis,
nos divertem, […] ou nos prejudicam ou nos desagradam ou nos
importunam […] nas suas várias maneiras. Desse modo, frequentemente
não haverá como falar das propriedades que esses nomes representam
independentemente das reações que elas provocam. (O ponto de chamar
esta posição de subjetivismo é que as propriedades em questão são
explicadas por referência às reações dos sujeitos humanos.) Mas
igualmente – ao menos quando o sistema de propriedades e reações se
diversifica, se torna complexo e enriquece – não haverá como falar
exatamente sobre qual reação uma coisa com a propriedade associada
provocará sem direta ou indireta alusão à própria propriedade. Achar graça,
por exemplo, é uma reação que precisamos caracterizar por referência ao
17 2002, p.199.
253
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
seu próprio objeto, através de algo percebido como engraçado (ou incomum
ou cômico ou o que quer que seja)18.
McDowell e Wiggins tentam tornar a sua abordagem ainda mais clara
traçando uma analogia com cores. Da mesma forma que no caso, por exemplo, de
vermelho, que, segundo a teoria das qualidades secundárias, é aquela propriedade
responsável por nossas experiências (subjetivas) de vermelhidão, periculosidade
será a propriedade que é responsável por nossas experiências (subjetivas) de
medo. Assim, não há como compreender medo sem recorrer a periculosidade.
Mas, também, ex hypothesi, não há como compreender periculosidade sem
referência ao nosso aparato de respostas subjetivas. Como Wiggins diz:
Em questões desse tipo, uma analogia com cores é sugestiva. ‘x é
vermelho se e somente se x é tal que fornece, sob certas condições
especificáveis como normais, uma certa impressão visual’ naturalmente
suscita a questão ‘que impressão visual?’ E essa questão atrai a resposta
‘uma impressão de ver algo vermelho’, que reintroduz vermelho19.
E McDowell, ao explicar o mesmo ponto, afirma que
A ideia da experiência de valor envolve a atitude de admiração para
representar o seu objeto como possuindo uma propriedade que (embora
presente no objeto) é essencialmente subjetiva, de forma muito parecida
com a propriedade que um objeto é representado como possuindo por uma
experiência de vermelhidão – isto é, compreendida adequadamente apenas
em termos da modificação apropriada da sensibilidade humana (ou
similar)20.
Não obstante, McDowell e Wiggins argumentam, abandonando a analogia
com uma explicação puramente disposicional de qualidades secundárias como
cores (de acordo com a qual x é vermelho se e somente se x é causalmente
18 2002,
p.195.
19 2002,
p.189.
20 McDOWELL, 1998b, p.143.
254
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
255
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
Wiggins afirmam que, embora a explicação de valor seja circular, ela é informativa
por meio do pano de fundo sentimental que ela introduz.
Circularidade em si mesma não é uma objeção se a formulação incômoda
for também verdadeira. Mas (perguntarão) que uso tem uma tal formulação
circular? Minha resposta é que, ao traçar tal círculo, o subjetivista espera
elucidar o conceito de valor exibindo-o em seu real envolvimento com os
sentimentos. De acordo com ele [isto é, com o subjetivista], não se teria
suficientemente elucidado o que é valor sem aquele percurso indireto
[detour] 23.
Na verdade, eles chegam ao ponto de afirmar que a melhor maneira de
caracterizar as suas abordagens é compreendê-las como não pleiteando qualquer
prioridade de conceitos ou juízos valorativos sobre sentimentos, e vice-versa.
Como vimos, para McDowell e Wiggins, é impossível compreender conceitos (e
juízos) valorativos sem recorrer às respostas apropriadas que os caracterizam;
mas é igualmente impossível compreender um sentimento sem recorrer aos
conceitos e juízos valorativos; de tal forma que:
Ao negar que as características extras têm prioridade sobre os sentimentos
relevantes, essa abordagem se distancia da ideia de que elas [as
características] pertencem, misteriosamente, a uma realidade que é
totalmente independente e superior a nossa subjetividade. Não se segue
disto [porém] que os sentimentos tenham uma prioridade. Se não há como
compreender os sentimentos corretos independentemente dos conceitos
das características extras relevantes, uma tese de não-prioridade é
certamente indicada24.
Esta abordagem tenta tornar a explicação de valores dependente de
sentimentos humanos mas, ao mesmo tempo, tenta garantir racionalidade e
23 WIGGINS 2002, p.189. Esta é a razão por que McDowell e Wiggins explicitamente rejeitam chamar
a abordagem deles de uma análise de valor. Se não é possível ter uma análise que não seja circular,
eles se dão por satisfeitos em chamar a sua explicação de valor de um mero “comentário”.
24 MCDOWELL, 1998a, p.159-160.
256
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
inteiramente claro que eles seriam considerados sentimentalistas em nosso sentido aqui. Por vezes,
Shaftesbury e Hutcheson falam de emoções ou sentimentos como percepções de valor. Se
percepções envolvem uma forma de cognição, eles não seriam sentimentalistas em nosso sentido,
pois os sentimentos seriam veículos de informação valorativa sobre o mundo. Neste sentido, embora
sentimentos pudessem ser indispensáveis para se conhecer valor, eles não desfrutariam do tipo de
prioridade que a tese sentimentalista, em nosso sentido, atribui. Assim, isto tornaria Shaftesbury e
257
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
nas obras destes filósofos, a tese sentimentalista enfrenta muitos problemas. Estes
giram sobretudo em torno de questões relativas à verdade, objetividade e
racionalidade do discurso valorativo28. Mas não se restringem a estes. O tipo de
dificuldade com aquelas versões antigas de sentimentalismo que mais nos
interessa aqui diz respeito à análise de valor que elas fornecem. Aquelas versões
de sentimentalismo defendiam a ideia de que sentimentos ou emoções desfrutam
de uma prioridade sobre juízos valorativos, mas elas não eram claras sobre que
ocorrências de sentimentos ou emoções são realmente representativas de valor.
Afinal, não devemos supor que qualquer resposta ao mundo ou qualquer
ocorrência de sentimento ou emoção seja adequada ou apropriada. Portanto, a
tese sentimentalista precisa de um critério que confira sentido às respostas
adequadas sem, ao mesmo tempo, abandonar seu compromisso básico segundo o
qual compreendemos conceitos e juízos valorativos compreendendo, antes,
nossas respostas sentimentais ao mundo.
Todos esses problemas que pareciam afetar aquelas versões determinaram
a agenda de trabalho para novas e mais sofisticadas versões da tese
sentimentalista. Dessa forma, autores como Blackbrun e Gibbard têm tentado
fornecer respostas àquelas questões e problemas enquanto permanecem fiéis aos
compromissos de um projeto sentimentalista em termos gerais. O
Neossentimentalismo, como chamaremos esta tese, e no sentido que nos
interessa aqui, defende, da mesma forma que aquelas versões antigas, a
prioridade de sentimentos sobre conceitos e juízos valorativos. Porém,
contrariamente a versões antigas de sentimentalismo, a tese neossentimentalista
defende (de maneira similar aos defensores da tese da não-prioridade) que pensar
Hutcheson mais próximos da tese da não-prioridade, como vimos defendida por McDowell e Wiggins.
28 Por exemplo, como acomodar a gramática do discurso valorativo de senso comum que parece
258
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
que algo é, por exemplo, engraçado é pensar que é adequado ou apropriado achar
graça em relação a este mesmo algo. Antigas versões da tese sentimentalista
pareciam ser menos sofisticadas do que isto na medida em que não pareciam
conceder espaço para aquele tipo de atitude ou juízo de ordem superior (que deve,
por sua vez, ser também a expressão de um sentimento ou emoção para que a
tese neossentimentalista seja inteiramente coerente) que avalia uma reposta (de
primeira-ordem) como adequada ou apropriada. Antigas versões de
sentimentalismo pareciam entender o tipo de prioridade de sentimentos sobre
conceitos e juízos valorativos de uma forma mais direta.
Um ônus deste tipo de neossentimentalismo é que, como a tese da não-
prioridade, ele incorpora circularidade em sua caracterização de valor em um nível
superior de pensamento, no qual a avaliação de sentimentos e emoções ocorre.
Julgar uma resposta adequada é fazer uso de um conceito valorativo ou normativo.
Há, porém, uma diferença crucial para a tese da não-prioridade. É o fato de que a
tese neossentimentalista rejeita a ideia de que sentimentos ou emoções devem
apelar a conceitos ou juízos valorativos a fim de serem identificados ou
individuados. A tese neossentimentalista tenta fornecer uma caracterização
independente de sentimentos, de forma que puderíamos identificar um sentimento
de medo, por exemplo, sem precisar recorrer a um conceito valorativo, como
‘periculosidade’, ou ao juízo de que algo é perigoso. Se o neossentimentalista for
capaz de fazer isto, ele pode evitar o problema da circularidade que é uma ameaça
à tese da não-prioridade (que a contamina não apenas no nível superior de
pensamento, mas também no nível inferior), enquanto ao mesmo tempo evita as
implicações problemáticas da tese judicativa. Como o neossentimentalista pode
fazer isto?
Gibbard (1990) e o trabalho conjunto recente de D’Arms & Jacobson (1994,
2000a, 2000b, 2006a, 2006b) parecem fornecer a melhor caracterização disto29.
Recorrendo ao trabalho de psicólogos e à literatura evolucionista recente em
29Blackburn (1998) é menos claro acerca deste ponto, embora certamente esteja em larga escala em
acordo com aqueles autores (ver cap. 5, especialmente p.126-134).
259
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
uma pesquisa fundamental neste campo. Eles apresentaram evidências empíricas a favor de
aspectos comuns entre culturas nas manifestações faciais das seguintes emoções: felicidade,
tristeza, raiva, surpresa, nojo e medo.
34 A acalorada discussão sobre emoções básicas toca neste ponto. Esta é a lista de Ekman (1994;
1999) de emoções básicas: achar graça, raiva, desprezo, contentamento, nojo, embaraço, exaltação,
medo, culpa, orgulho em obter algo, alívio, tristeza/angústia, satisfação, prazer sensório e vergonha.
E as características seguintes, segundo Ekman, distinguem emoções básicas umas das outras: sinais
universais distintivos, fisiologia particular, apreciações (appraisal) automáticas associadas a:
universais típicos em eventos antecedentes e característico desenvolvimento, presença em outros
primatas, rápida irrupção, duração breve, ocorrência espontânea, pensamentos, memórias e imagens
característicos, experiência subjetiva peculiar. Para uma discussão e crítica das teses de Ekman, veja
os ensaios de Averill, Scherer, e Shweder em Ekman & Davidson (1994).
260
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
35 1994 p.15.
36 EKMAN 1999, p.46.
37 1990, p.407-408.
38 1990, p.264.
39 1990, p.268.
261
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
40 1999,p.46.
41 ZAJONC 1980, p.156
42 1980, p. 154. Ver também Kunst-Wilson & Zajonc (1980); Logue, Ophir & Strauss (1981); e Wilson
(1979).
262
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
43 1990, p.146.
44 Gibbard parece pensar que sentimentos (provavelmente) tipicamente humanos, como culpa, são o
resultado da vida social altamente complexa que seres humanos experienciaram ao longo do curso
de sua evolução, dando origem ao discurso moral. Mas Gibbard também aponta que é plausível
interpretar culpa como a contraparte de primeira pessoa de raiva (1990, p.146, p.272), e raiva é
possivelmente compartilhada com outros animais (sendo direcionada ao comportamento de outros
quando quer que alguém seja afetado de forma negativa). A hipótese de Gibbard é que nossas
capacidades sentimentais e cognitivas evoluíram – como resultado de (ou mutuamente reforçada por)
nossa necessidade de sistemas cooperativos altamente complexos – de tal forma que
desenvolvemos um senso de culpa, direcionado a nós mesmos, quando quer que raiva seja
adequada em outros. Nesse (1990, p.278) diz algo similar.
45 ZAJONC 1980, p.156.
263
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
46 Ver D’Arms & Jacobson (2003, 2006a, 2006b) e D’Arms (2005) para uma sugestão de endosso
dessa proposta.
47 1983, p.66. Considere também o exemplo em que Fodor nos convida a supor que “você sabe
perfeitamente bem que sob nenhuma condição eu enfiaria meu dedo em seu olho. Suponha que esta
crença sua é tanto explícita quanto profundamente arraigada. […] Ainda assim, se eu empurrar meu
dedo bastante próximo aos seus olhos, e rápido o bastante, você irá piscar. Dizer, como dissemos
acima, que o reflexo do piscar é inevitável é dizer, inter alia, que ele não tem acesso àquilo que você
264
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
O ponto agora é sugerir que, da mesma forma que Fodor propõe que parte
de nosso sistema visual é encapsulado, automatizado e opera independentemente
de atividades de ordem superior de nossa mente (como pensamento, reflexão e
uso de linguagem), poderíamos propor que sentimentos e emoções em suas
manifestações mais básicas poderiam ser caracterizados de forma apropriada em
termos similares. Assim, poderíamos dizer que respostas sentimentais ou
emocionais ao meio ambiente são operadas por um mecanismo específico
(adaptativo do ponto de vista evolutivo) que atuam independentemente de
atividades de ordem superior e são encapsuladas e automatizadas no sentido de
que suas respostas são rápidas e fazem uso de informação que não está
(necessariamente) disponível a outras atividades cognitivas e afetivas48.
Se esta proposta evolucionista e em psicologia especulativa funcionar para
sentimentos e emoções, então poderemos ser capazes de compreendê-los
independentemente de juízos valorativos de ordem superior (que pertenceriam
mais propriamente a nossas atividades mentais de ordem superior). Com isto em
mãos, o neossentimentalista aparentemente possui agora a teoria psicológica
necessária para dar sentido à nossa proposta de análise inicial. Ele pode afirmar
que juízos valorativos de ordem superior acerca da adequação de respostas
sentimentais ou emocionais são possíveis na medida em que podemos
caracterizar independentemente sentimentos e emoções.
Um último ponto deve ser mencionado sobre tais juízos de ordem superior
sabe sobre o meu caráter ou, no que toca a questão, a qualquer de suas crenças, utilidades e
expectativas. Por esta razão o reflexo do piscar é frequentemente produzido mesmo quando reflexão
sóbria o consideraria desnecessário…” (FODOR, 1983, p.71).
48 Se levarmos esta proposta ao extremo, poderíamos formular a hipótese, nos termos da psicologia
especulativa, de atribuir um módulo para respostas emocionais (ver FODOR, 1983, p.71). Mas, como
veremos posteriormente, temos razões para resistir a essa analogia se esta propuser traçar uma
estrita distinção entre emoções como respostas encapsuladas e atividades de ordem superior como
não-emocionais ou exclusivamente racionais. Como Blackburn sugere, não há necessidade de
compreender aquela distinção em termos de uma forma de dualismo. Podemos explicar as atividades
de ordem superior em questão como uma forma de “ascensão emocional” (ver BLACKBURN, 1998,
p.129). Retornaremos a este ponto na seção 5.
265
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
49 1751, Ap. I.
266
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
50Na verdade, uma tese relativista sobre juízos de valor não precisaria responder a (1). Porém,
estamos pressupondo aqui que todas as teses discutidas não são relativistas.
267
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
268
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
269
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
51 2005, p.14. Ver também D’Arms & Jacobson (2006b), onde consideram a possibilidade de o
defensor da tese da não-prioridade dizer “que o que torna possível que estejamos discordando um do
outro, e não falando sobre coisas distintas, é um sentimento compartilhado de desaprovação moral
cuja adequação está em questão. Ele exigiria, assim, uma explicação de desaprovação moral que
assegurasse que ambos disputantes tenham um sentimento específico em seu repertório emocional,
ou ao menos compreendam-no bastante bem para discutir sobre sua adequação. Porém, a sua
explicação de sentimentos parece tornar impossível a satisfação desta exigência. Se desaprovação
moral tem que ser individuada por referência ao conceito errado, então o sentimento irá herdar a
ambiguidade do conceito. Dessa forma, a alegação de que nossos antagonistas estão disputando
sobre a adequação do mesmo sentimento não pode ser mais confiável do que a alegação de que es-
tão aplicando o mesmo conceito” (p.207).
270
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
271
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
equivocados52. Assim, parece que, quando quer que alguém sinta medo genuíno,
deve necessariamente estar respondendo a periculosidade. Do contrário, não seria
medo, mas alguma outra atitude53. Parece que seríamos capazes de falar sobre
estar em erro em reação a periculosidade apenas se pudéssemos fixar
independentemente ou as condições para periculosidade ou para medo.
Lamentavelmente, isto é exatamente o que a tese da não-prioridade considera
impossível.
É verdade que o defensor da tese da não-prioridade poderia ser capaz de
dizer que alguém que não sente medo diante de uma situação perigosa está em
erro por sentir, por exemplo, coragem. Neste caso, o agente estaria respondendo
de modo totalmente inadequado: isto é, estaria respondendo inadequadamente
tanto da perspectiva afetiva quanto da perspectiva cognitiva. Mas, ainda que a tese
em questão possa ser capaz de acomodar este tipo de caso, ela não parece ser
capaz de ter uma resposta para aquele outro tipo que vimos, em que alguém sente
medo inadequadamente mesmo quando (sabe que) a situação não é perigosa. O
que quer que alguém inadequadamente sinta quando medo é a resposta adequada
não pode ser medo, dados os compromissos da tese da não-prioridade. Mas isto
soa agora bastante insatisfatório. Parece óbvio que queremos garantir a
possibilidade de dizer que, em certos casos, indivíduos sentem medo quando não
deveriam.
E o que dizer agora da tese judicativa? Sai-se melhor do que a tese da não-
prioridade? Ela parece, de fato, ser mais bem sucedida no que diz respeito ao
problema da univocidade. Mas parece fracassar de modo similar no problema da
recalcitrância. Vejamos por quê.
Uma vez que para a tese judicativa existem critérios objetivos,
52 O mesmo ponto poderia ser colocado da seguinte maneira: dado que a tese da não-prioridade
parece compreender sentimentos como atitudes que são ao mesmo tempo afetivas e cognitivas, um
erro de juízo pareceria implicar igualmente um erro de afeto.
53 Isto pode, na verdade, ser um ônus que McDowell esteja disposto a assumir. Afinal, a sua teoria
aristotélica da pessoa virtuosa parece endossar o ponto, já que a pessoa virtuosa é necessariamente
não-defeituosa (ou equivocada) em suas respostas ao mundo (ver 1998c).
272
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
54Uma questão distinta seria perguntar quem está representando corretamente o mundo. Mas que
esta é uma outra questão, independente de explicar discordância, fica claro com o fato de que pode
haver discordância entre duas partes que julgam, ambas, falsamente.
273
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
problema da univocidade55.
Mas o que dizer da tese judicativa acerca do problema da recalcitrância, isto
é, sobre explicar como sentimentos (especialmente recalcitrantes) podem estar em
erro diante de juízos contrários? À primeira vista, o judicativista poderia dizer que,
uma vez que emoções são estados do tipo de juízos valorativos, pode-se incorrer
em tal erro quando quer que se cometa um erro de juízo. Aqui, mais uma vez, os
melhores candidatos para explicar este fenômeno parecem ser respostas
inadequadas à evidência ou a intervenção de um sentimento irracional. Mas,
então, como o defensor da tese judicativa poderia dizer, sobre determinado caso,
que sentir medo é algo inadequado porque a situação não é perigosa?
Não é claro que o judicativista possa dizer isto. De forma similar ao
defensor da tese da não-prioridade, o judicativista não possui um critério para
caracterizar sentimentos independentemente de juízos valorativos. Se alguém
sente medo com relação a X, deve estar julgando que X é perigoso. Este juízo
poderia, claro, estar errado – no sentido de responder mal à evidência disponível.
Porém, o problema agora para o judicativista é explicar como alguém abandonaria
uma tal resposta quando reconhecesse que o juízo está errado ou equivocado.
Parece que o judicativista precisa dizer que nossa racionalidade imediata e
naturalmente corrigiria o juízo equivocado. Devemos aqui lembrar da passagem de
Nussbaum, citada anteriormente, na qual diz que, ao sentir raiva, “se eu descobrir
que a minha crença é falsa – que o aparente mal não ocorreu de fato – irei,
abandonando a minha crença falsa, deixar de ficar com raiva”56. Isto pode ser
verdadeiro até certo ponto. Mas devemos também notar que Nussbaum
imediatamente acrescenta àquela passagem que, em um tal caso, após o trabalho
intelectual ter sido feito por nossas capacidades cognitivas, “se algum resíduo de
55 Dessa forma, deixamos de lado a objeção inspirada em Hare, segundo a qual, se a tese judicativa
apela em última instância para a analiticidade a fim de explicar como empregar conceitos valorativos,
isto poderia significar que, afinal, ela não conseguiria explicar discordância (ver HARE, 1952). Uma
vez que a tese judicativa não depende do reducionismo analítico, concedemos que a tese pode
explicar discordância, pelas razões já fornecidas.
56 NUSSBAUM, 1990, p.292.
274
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
sentimento doloroso permanece, ele não será mais considerado raiva mas, em vez
disto, um resíduo de irritação ou excitação irracional”57. Mas é exatamente aqui que
está o problema. O que dizer sobre ocorrências recalcitrantes de sentimentos ou
emoções, apesar de juízos contrários?
A tese judicativa poderia sugerir que, nesses casos, nós simplesmente nos
deparamos com óbvia incoerência ou contradição entre crenças: algo como julgar
ao mesmo tempo que uma situação é perigosa e não é perigosa. Esta poderia
efetivamente ser a descrição correta de alguns casos. Mas não parece ser
aplicável a todos. Dizer que estamos respondendo contraditória ou
incoerentemente à evidência parece ser uma representação incorreta de vários
outros casos. Parece que precisamos também explicar aqueles casos triviais em
que temos uma resposta persistente ao mundo (na forma de um sentimento ou
emoção) ainda que estejamos convencidos de que é uma resposta inadequada.
Assim, mais precisamente, o problema para o judicativista em tais casos é
que teria aparentemente que dizer que julga (ou acredita) que a situação é
perigosa (com base em razões e evidência) e também julga que a situação não é
perigosa (com base em razões e evidência). O problema aqui não é exatamente
sobre justificação, mas sobre explicação. Todos estamos dispostos a reconhecer
que podemos formular um juízo equivocado e, tão logo tenhamos nos dado conta
disto, abandonarmos o juízo. (Assim, um dos dois juízos considerados no caso
acima deveria desaparecer.) Porém, ao menos a experiência de sentimentos ou
emoções é tipicamente um fenômeno que, às vezes, resiste à justificação racional.
Como já mencionamos, um dos melhores candidatos para explicar a irracio-
nalidade ou uma má resposta à evidência é exatamente a intervenção (indesejada)
de sentimentos ou emoções. Estes podem, por vezes, nos deixar, por assim dizer,
“cegos” com relação à evidência. Mas, lamentavelmente, esta é uma resposta que
não parece estar disponível para o defensor da tese judicativa, pois, para ele, a
ocorrência de um sentimento ou emoção já deve necessariamente envolver juízo.
Este não é, portanto, insensível à racionalidade e evidência. Como resultado, o
57 1990, p.292.
275
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
58 1988, p.3.
276
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
59 D’Arms & Jacobson (2003) chamam esta versão modificada da tese judicativa de
‘quasijudicativismo’.
60 2003, p.149, ênfase adicionada.
277
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
612003, p.141-142.
62Ao levantar uma objeção similar à tese judicativa, Deigh (1994, p.851-852) diz que “algumas
emoções podem nunca se tornar completamente sensíveis à razão, pois as susceptibilidades a elas
em certas circunstâncias podem ser tão fixas que elas não se alteram mesmo à medida que se
aprende a falar e se desenvolve um sistema de crenças. Estas emoções são, nesse sentido, não-
educáveis”.
278
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
63 1998b, p.132.
279
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
280
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
281
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
um Boeing 747. Marcus tem medo de voar de avião. Mas ele também conhece as
estatísticas relacionadas a voar de avião em geral (e, em particular, naquele
modelo de avião) e confia nelas. Ele sabe que é muito mais seguro do que dirigir
um carro, por exemplo. Poderíamos, então, dizer que, embora Marcus tema voar
no Boeing 747 em que está agora, ele considera este medo uma resposta
inadequada a voar em um Boeing 747.
Considere também a distinção de Gibbard entre dizer que faz sentido (ou é
adequado, em nossa terminologia) a um indivíduo sentir medo de uma certa
maneira e dizer que faz sentido que um indivíduo sinta medo de uma certa
maneira:
Se tive um dia ruim e agora enfrento um novo desapontamento, “faz sentido
que eu esteja com raiva” – podemos esperar que eu esteja com raiva em
tais circunstâncias, por razões que compreendemos – mesmo que não
“faça sentido eu estar com raiva” porque o novo desapontamento não é
culpa de ninguém. Da mesma forma, faz sentido que Cleopatra estivesse
com raiva do mensageiro [que a trouxe más notícias], mas não faz sentido
ela estar com raiva dele. Raiva direcionada incorretamente nas
circunstâncias em questão era esperada, mas as más notícias não foram
culpa do mensageiro65.
Que interpretação podemos fornecer a essas histórias? Em primeiro lugar,
podemos dizer que podem existir excelentes razões evolucionistas para que seres
humanos reajam a voar de avião (ou mesmo ao ato de imaginar isto) com medo.
Esta pode ser uma boa explicação de por que Marcus tem medo de voar
(recalcitrantemente), embora não veja qualquer razão para realmente se sentir
desta forma em tal circunstância. Mas, então, se podemos explicar o medo de voar
independentemente do emprego de conceitos e da formulação de juízos
valorativos sobre voar, poderíamos identificar a ocorrência de um sentimento (e a
sua recalcitrância) sem precisar recorrer a algo além de um critério não-valorativo
para individuação de sentimentos, ao contrário do que afirmam as teses da não-
282
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
prioridade e judicativa. Como vimos, a teoria evolucionista pode nos ajudar nisto66.
De modo similar, no caso de Cleopatra, descrito por Gibbard, poderíamos
facilmente identificar a raiva de Cleopatra, ainda que ela mesma possa pensar que
a raiva não é adequada. Como sugere Gibbard, podemos compreender
perfeitamente bem, de um ponto de vista explicativo, por que Cleopatra reagiu
daquela maneira, ainda que não fosse a maneira adequada.
Porém, apesar de tudo o que dissemos, nada implica que a tese
neossentimentalista negue uma relação estreita entre juízos valorativos e
sentimentos ou emoções. O neossentimentalista pretende evitar a “tentação” das
teses da não-prioridade e judicativa de assimilar, parcial ou inteiramente,
sentimento a juízos. A tese neossentimentalista promete explicar o papel de
conceitos e juízos valorativos nos sentimentos como uma tarefa regulativa, sem
assimilar os últimos aos primeiros. Como diz Gibbard:
De onde vem, então, essa tentação de compreender emoções como juízos
genuínos, ou como incluindo estes juízos? Quando alguém está com raiva
de mim por algo que lhe fiz, sua raiva parece incluir um juízo de que eu
deveria ser censurado por isso. [Mas] isto é um equívoco, pois ele pode
estar com raiva de mim por algo que fiz e, apesar disso, pensar que eu
estava certo. Pode estar com raiva, mas pensar que que não faz sentido
estar com raiva. […]67.
A tentação surge em parte do fato de a raiva ter causas e focos típicos. As
causas são tipicamente insultos, danos e outros ultrajes morais, e é nestas
coisas que a raiva tende a se focar. […] [Podemos explicar por que isto é
assim dizendo que] as normas que aceitamos para culpa e raiva se
misturam [a outras causas], e elas ordinariamente endossam nossas
66 Mas, obviamente, não precisa ser a única possibilidade. Como Ekman (1999, p.45-46) sugere,
excluindo uma tese construtivista social (que tenderia a rejeitar o apelo a universais para explicar a
recorrência de determinado padrão de respostas emocionais), uma tese que seja capaz de explicar
constâncias em uma espécie de tal forma que universais possam ser identificados para explicá-las,
de modo parcialmente independente da cultura, pode ser bem sucedida na tarefa em questão.
67 GIBBARD 1990, p.147.
283
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
68 1990, p.147.
284
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
285
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
286
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
73 1998a, p.163.
287
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
288
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
76Recorremos aqui amplamente a uma série de pontos que aparecem na discussão de Blackburn
sobre as nossas sensibilidades (ver 1984; e 1998, capítulos 5 e 8). Ele diz que “nosso apego aos
nossos objetivos de longo termo são eles mesmos estados emocionais” (1998, p.129).
289
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
um ponto de vista naturalista, “devemos supor que nossas manifestações [emocionais] viscerais não
são meramente ‘percebidas’, mas cumprem um papel na determinação daquilo que nos atrai e repele
ou naquilo que nos tornamos inclinados a fazer” (p.130).
290
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
Na verdade, este parece ser um ponto endossado por Wiggins e (ao menos
parcialmente) por McDowell. Devemos lembrar de uma passagem de Wiggins
citada anteriormente:
[…] frequentemente não haverá como falar das propriedades que esses
nomes representam independentemente das reações que provocam. […]
Mas igualmente – ao menos quando o sistema de propriedades e reações
se diversifica, se torna complexo e enriquece – não haverá como falar
exatamente sobre qual reação uma coisa com a propriedade associada
provocará sem direta ou indireta alusão à própria propriedade80.
E McDowell explicitamente reconhece que o neossentimentalista nos
fornece uma representação complexa de várias atitudes agrupadas como
respostas a situações no mundo:
Não há duvida de que uma explicação completa dos fenômenos
psicológicos agruparia os itens em termos de suas tendências a produzir
tais respostas, mas tais tendências não são propriedades que precisam ser
explicadas como projeções das respostas81.
Assim, McDowell e Wiggins parecem admitir que, na medida em que
tornamos nosso sistema mais complexo e rico, passaremos a direcionar nossa
atenção a exemplares particulares das respostas ao mundo de uma tal perspectiva
complexa e enriquecida que “agrupa os itens em termos de suas tendências a
produzir tais respostas”. Para Wiggins, uma vez que possuímos tal perspectiva
complexa e rica impregnada em nossas práticas, poderíamos muito naturalmente
passar a olhar para as instâncias particulares de respostas ao mundo aludindo
primariamente aos conceitos, juízos e supostas propriedades valorativas
relevantes. McDowell, por outro lado, como indica a passagem, não concede isto
tão facilmente ao neossentimentalista. Porém, por razões aduzidas em nome do
neossentimentalista nos parágrafos anteriores, não é claro por que o
291
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
82 Ver Miller (2003, capítulos 4 e 10) para uma discussão similar sobre este ponto.
292
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
83 1998a, p.158.
84 1998a, p.158.
293
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
294
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
85 Agradeço a Cinara Nahra por comentários em uma versão anterior deste artigo.
295
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
296
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
297
LEONARDO DE MELLO RIBEIRO
______. The therapy of desire: Theory and practice in hellenistic ethics. Princeton:
Princeton University Press, 1994.
RABINOWICZ, W.; RONNOW-RASMUSSEN, T. “The strike of the demon: On fitting
pro-attitudes and value”. In: Ethics 114.3, p.391-423, 2004.
ROBERTS, R. C. Emotions: An essay in aid of moral psychology. Cambridge:
Cambridge University Press, 2003.
SAUER, H. “The appropriateness of emotions: Moral judgement, moral emotions,
and the conflation problem”. In: Ethical Perspectives 18.1, p.107-140, 2011.
SOLOMON, R. Not passion’s slave: Emotions and choice. Oxford: Oxford
University Press, 2007.
SHAFFER, J. “An assessment of emotion”. In: American Philosophical Quarterly
20.2, p.161-173, 1983.
SMITH, Adam. The theory of moral sentiments. New York: Dover, 1790/2006.
TOOBY, J.; COSMIDES, L. “The past explains the present: Emotional adaptations
and the structure of ancestral environments”. In: Ethology and Sociobiology 11,
p.375-424, 1990.
WIGGINS, D. “A sensible subjectivism?”. In: Needs, values, truth: Essays in the
philosophy of value. Third edition, amended. Oxford: Oxford University Press, 2002.
WILSON, W. R. “Feeling more than we can know: Exposure effects without
learning”. In: Journal of Personality and Social Psychology 37.6, p.811-821, 1979.
ZAJONC, R. B. “Feeling and thinking: Preferences need no inferences”. In:
American Psychologist 35.2: p.151-175, 1980.
298
10
SENTIMENTOS MORAIS, INTERNALISMO MOTIVACIONAL,
SENTIMENTALISMO
Wilson Mendonça
não deixa dúvidas que “o respeito é um sentimento.” Ele pode ser diferente de
todos os outros sentimentos “que se podem reportar à inclinação ou ao medo.”
Apesar disso, como deve ser visto como “o efeito da lei sobre o sujeito e não a sua
causa”3, o respeito kantiano é uma resposta subjetiva, afetiva à realidade moral,
isto é, um sentimento em um ou outro dos sentidos distinguidos acima. Na medida
em que explica como o sujeito pode estar disposto a agir de acordo com os fatos
morais apreendidos pela razão, o sentimento do respeito desempenha na teoria de
Kant um papel motivacional. Visto de perspectiva mais geral, esse é somente um
dos papéis que os sentimentos podem desempenhar em explicações metaéticas.
De fato, é possível distinguir pelo menos três teses sobre sentimentos, que
correspondem a três diferentes papéis que as teorias filosóficas estão dispostas a
atribuir a sentimentos.
1. A Tese Motivacional: É bastante natural conceber os sentimentos morais
como links entre nossas convicções morais, por um lado, e as ações
correspondentes, por outro: eles têm a direção de ajuste “certa,” isto é, a direção
de ajuste oposta à das meras crenças. A natureza da conexão entre os juízos
morais e os sentimentos motivadores é objeto de disputa entre os defensores da
tese motivacional. De acordo com uma versão forte desta tese, a conexão é
interna ou necessária, no sentido da necessidade conceitual ou a priori. Uma
versão mais fraca reconhece somente um link externo (contingente) dos juízos
morais aos sentimentos.
2. A Tese Epistemológica: Sentimentos morais são indicadores mais ou
menos confiáveis da presença de valor moral. Alternativamente, especialmente os
sentimentos negativos (culpa e indignação) são tratados por psicólogos morais
como sinalizando o fato de que uma norma moral foi violada. O valor moral per se
ou o conteúdo da norma moral pode não ter coisa alguma a ver com os
sentimentos. Nesse caso, os sentimentos morais que desempenham um papel
epistemológico não indicariam nem sentimentos, nem entidades constituídas por
300
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
301
WILSON MENDONÇA
302
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
303
WILSON MENDONÇA
5 1977, p.38-42.
6 1994, p.4-13. Cf. também McNAUGHTON, 1988, p.23.
304
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
305
WILSON MENDONÇA
dos fatos morais) não pode deixar de ser motivadora. Contudo, se a necessidade
em questão fosse de dicto, a crença moral poderia não motivar, como qualquer pai
atual poderia não ter filhos. Em um mundo possível onde um pai atual não tem
filhos, ele não seria pai, mas ainda a mesma pessoa com todas as suas
características essenciais. Da mesma forma a representação dos fatos morais sem
a propriedade de motivar ou desacompanhada de motivação não seria uma crença
moral, mas ainda assim a mesma crença com todas as suas propriedades
essenciais. O que subjaz a este raciocínio é a ideia independentemente plausível
de que a propriedade de motivar para a ação é uma propriedade não-essencial das
crenças morais, assim como ser pai não é uma propriedade essencial dos que são
pais. O resultado é que somente a interpretação de re da conexão necessária
entre juízos morais, por um lado, e estados de direção de ajuste mundo-mente, por
outro, tornaria válidos os argumentos acima. Mas talvez devamos ser internalistas
motivacionais de re.
A ambiguidade notada por Tresan se manifesta na discussão sobre o
internalismo motivacional—não na formulação das consequências do internalismo
motivacional. Nesse contexto a interpretação relevante é a de dicto. É a verdade
do internalismo motivacional de dicto que está em jogo na discussão metaética.
Argumentos pró e contra o internalismo motivacional giram em torno da figura do
amoralista e apelam às nossas intuições. Defensores do externalismo afirmam ser
natural e intuitiva a interpretação dos proferimentos do amoralista como
genuinamente morais, apesar da ausência de toda e qualquer motivação. Os
internalistas, ao contrário, consideram que, na pior das hipóteses, os proferimentos
do amoralista não são atos de fala significativos, não expressam mais juízos—o
amoralista deixou de falar. Na melhor das hipóteses, os internalistas consideram
que os proferimentos do amoralista devem ser interpretados como expressando
juízos não-morais, por exemplo, sobre o que seus ouvintes (mas não ele próprio)
julgam ser certo ou errado. O sentido do proferimento do amoralista “φ é errado,
mas eu não estou motivado a fazer φ” é o da sentença “φ é o que vocês chamam
de errado, mas eu não estou motivado a fazer φ.” De acordo com esta
interpretação do proferimento do amoralista, este não é verdadeiramente um
306
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
307
WILSON MENDONÇA
8O Satã de Milton diz: “So farewel Hope, and with Hope farewel Fear,//Farewel Remorse: all Good to
me is lost;//Evil be thou my Good [...]” (MILTON 1667, (IV, 109-111).
9 JACKSON 1998, p.161.
308
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
309
WILSON MENDONÇA
310
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
311
11
ELEMENTOS DA METAÉTICA: COGNITIVISMO INTERNALISTA E
A TEORIA VOLITIVA
Introdução
Ao fazer o retrospecto da discussão sobre motivação moral a partir dos
problemas apontados pelas abordagens dominantes, é possível determinar por
que teorias volitivas têm sido trazidas novamente ao debate e, a partir de novos
conceitos sobre intenção e vontade, buscar novos rumos para uma teoria unificada
que acomode de maneira plausível toda a complexidade envolvida na agência
moral humana. Em consequência da centralização do debate nas teorias
cognitivistas, de um lado, e não-cognitivistas, de outro, por razões que podem ser
rastreadas nas discussões das últimas décadas, foi paulatinamente deixado de
lado o enfoque na colaboração das noções de intenção e vontade, em detrimento
das noções básicas de crenças e desejos. Quando reabriu o debate das teorias
internalistas da agência, Gary Watson argumentou (i) que a reformulação da
decisão (making up one’s mind) é o locus primário da agência humana e (ii) que a
vontade é uma instância genuína dos juízos práticos. Watson considera se
deveríamos dizer que a vontade, e, portanto, a agência, tem uma existência além
do domínio prático, uma existência também na esfera cognitiva. Afinal, argumenta
que, juntamente ao fenômeno de “decidir-se a”, o fenômeno “decidir que” também
deveria ser classificado como um fenômeno ativo e, daí, como um modo de
agência. Tendo como ponto de partida a articulação da distinção entre cognitivismo
e não-cognitivismo moral e a questão psicológica sobre a natureza dos estados
mentais expressos por enunciados morais, o trabalho busca, em primeiro lugar,
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
313
IDIA LAURA FERREIRA
314
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
315
IDIA LAURA FERREIRA
316
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
317
IDIA LAURA FERREIRA
318
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
319
IDIA LAURA FERREIRA
320
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
321
IDIA LAURA FERREIRA
322
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
valorar e estados conativos, tais como planejar, são modalmente separados e não
podem ser identificados, como os expressivistas afirmam. Desta forma, este é mais
um indício de que a conexão interna entre juízo moral e motivação deve ser
explicada em termos de crenças firmadas racionalmente, como pregam os
internalistas cognitivistas.
Referências
BRINK, D. Moral realism and the foundations of ethics. Cambridge: Cambridge
University Press, 1989.
GIBBARD, A. Thinking how to live. Cambridge, Mass.: Harvard University Press,
2003.
HOLTON, R. Willing, wanting, waiting. Oxford: Clarendon Press, 2009.
______. “Intention and weakness of will”. In: Journal of Philosophy 96, p.241-262,
1999.
KAUPPINEN, A. “Moral Judgment and Volitional Incapacity” In: O’Rourke, M. (org.)
(2010). Topics in Contemporary Philosophy vol.7. Massachusetts: MIT Press, 2006.
MELE, A. Springs of action. New York: Oxford University Press, 1992.
______. Motivation and agency. New York: Oxford University Press, 2003.
SADLER, B. J. “The possibility of amoralism: A defense against internalism”. In:
Philosophy 78, p.63-78, 2003.
SMITH, M. The moral problem. Oxford: Blackwell, 1994.
______.(Org.). Meta-ethics. Aldershot: Dartmouth Publishing Group, 1995.
______.“Moral realism”. In: H. LaFollette (Org.), The Blackwell guide to ethical
theory. Oxford: Blackwell, 2000, p.15-37.
323
IDIA LAURA FERREIRA
324
12
MEMÓRIA, AUTOCOMPREENSÃO E AGÊNCIA*
Marina Oshana
326
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
327
MARINA OSHANA
4 Thomas NAGEL, The view from nowhere. Oxford University Press, 1986.
328
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
vez que sei muito sobre ela […]. Mas sua situação, no âmbito da
representação impessoal, está no mesmo nível que minhas representações
de quem quer que seja. Normalmente tenho outra representação bastante
intrusiva de mim mesma, uma representação que eu poderia manter
mesmo se esquecesse quem fui, que se baseia em informações atuais
sobre mim mesma que posso adquirir através de sentimentos e
percepções, e que está ligada à palavra “eu” . Mas nesse ânimo filosófico
[de Nagel], essa representação fica atenuada; eu isolo a maior parte dessas
informações e foco na concepção impessoal. Mas não posso romper
totalmente a conexão, pois enquanto o que se concebe pode ser objetivo e
impessoal, a concepção mental propriamente dita pertence a apenas uma
das pessoas nela representadas. Essa pessoa tem um modo especial de
lidar com ela, o qual lhe permite pensar nela como isto5.
Perry oferece uma história bem complicada sobre como ocorre o
autorreconhecimento quando “informações representadas objetivamente sobre
pessoas em várias posições em relação a mim” são anexadas aos “papéis
relativos ao agente que ocupam”6. Grosso modo, a concepção de Perry é que,
quando as informações são reunidas no “arquivo temporário [buffer] da concepção
de si” do indivíduo, e postas em uso de um modo particular, as informações
passam a ser reconhecidas pelo indivíduo como autorrepresentativas. O conteúdo
do arquivo passa a expressar não apenas uma relação de identidade, mas uma
concepção de si próprio. A abordagem de Perry da gênese da autocompreensão
fornece um ponto de partida útil para uma apreciação da agência. Mas ela não
será suficiente para este projeto. Para começar, muita coisa está incluída num
arquivo de autoconhecimento que é de pouca importância para a agência. Minha
concepção de mim mesma inclui os fatos de que nasci em um determinado ano,
morei em certa residência durante a minha infância, e de que não gosto mais de
sundaes de caramelo, nenhum dos quais me parece ser um fato do qual a agência
5 John PERRY, “The Sense of Identity”. In: Perry, Identity, personal identity, and the self. Indianapolis:
Hackett Publishing, 2002, p.217-218.
6 2002, p.228.
329
MARINA OSHANA
7 John PERRY, “The problem of the essential indexical”. Noûs 13.1, p.3-21, 1979.
330
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
331
MARINA OSHANA
8O estudo seminal de H.M. foi conduzido por Brenda Milner da McGill University. O estudo de Milner
envolvia uma tarefa de coordenação motora em que H.M. aprendia a traçar uma linha entre dois
contornos de uma estrela de cinco pontas refletida num espelho. Em cada ocasião dos três dias do
estudo, a tarefa impressionou H.M. como uma experiência inteiramente nova. E ainda assim ele se
tornou habilidoso com a prática. “As descobertas levaram Milner a especular que certas habilidades
332
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
outro lugar, que a amnésia de Molaison deixou-o com um eu tão efêmero a ponto
de ser inadequado para agência robusta9. Ainda tenho essa concepção, mas creio
que ela precisa de algum esclarecimento. Deixe-me esmiuçar a natureza da
amnésia de Molaison. Para começar, Molaison não se esqueceu de si mesmo, no
sentido rudimentar de erros no reconhecimento físico, pois era capaz de
reconhecer que a imagem da pessoa refletida no espelho era dele mesmo. Ele era
capaz de diferenciar entre si mesmo e os outros, e compreendia conceitos
reflexivos e de primeira pessoa. Apesar de sua incapacidade de reter informações
novas adquiridas, Molaison preservou algumas memórias autobiográficas
episódicas e semânticas prévias, bem como um corpo de valores, preferências e
idiossincrasias persistentes.
Algumas dessas memórias exibiam um alto grau de saliência em suas
relações interpessoais. Um observador poderia citá-las como indício de que
Molaison continuava a ter propósitos gerais e mesmo planos que estruturassem
suas ações10. Por exemplo, Molaison permaneceu genial e articulado, e
interessado na vida daqueles que conheceu. Era dedicado às palavras cruzadas e
foi um leitor ávido de jornais. Era capaz de orientar seus dias em torno de rotinas,
como preparar almoço, cortar a grama e assistir televisão. E, estranhamente, era
Construction and accuracy in the self-narrative. Ed. Ulric Neisser e Robyn Fivush, Cambridge, U.K:
Cambridge University Press, 1994, p.252-277.
333
MARINA OSHANA
11 Corkin relata que “O que [Molaison] não podia fazer era dizer o que ocorreu em um tempo e lugar
particular. Não conseguia dizer: ‘Lembro que no meu aniversário de 10 anos derramei chocolate em
minhas calças brancas e minha mãe ficou furiosa comigo’. Nós tentamos, tentamos e tentamos obter
dele essas memórias episódicas específicas e detalhadas – algo que ocorreu nas férias, aniversário
ou o onde quer que fosse. Ele não podia oferecer uma única memória episódica, com uma exceção:
em um de seus aniversários, [ele lembrava] ter embarcado em um pequeno avião e voado ao redor
de Hartford. Obviamente isso tinha um enorme impacto emocional sobre ele”. CORKIN, “The man
who couldn’t remember”. Disponível em: <http://www.pbs.org/wgbh/nova/body/corkin-hm-
memory.html>.
12 De fato, Molaison era impaciente com que seu cérebro fosse preservado depois de morte para
334
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
13 Ver Christine KORSGAARD, “Personal identity and the unity of agency: A Kantian response to
Parfit”. Philosophy and Public Affairs 18.2 (1989). Reimpresso em D. Kolak e R. Martin (eds.), Self &
identity, New York: Macmillan, 1991, p.326.
335
MARINA OSHANA
certas memórias de identidade salientes. Ele sabe seu nome, tem familiaridade
com os nomes e usos da maioria dos objetos, e tem impressões intensas, embora
limitadas, de sua esposa falecida e de capítulos de sua vida. Ele não perdeu de
vista o fim primordial que deseja realizar (a saber, descobrir quem assassinou sua
esposa). Além disso, a memória procedimental de Shelby não foi danificada. Ele
ainda pode dirigir um carro, por exemplo, e adquiriu a habilidade de se tatuar. Ele
parece estar consciente do eu que era antes do início de sua amnésia e é capaz
de representar a si mesmo em primeira pessoa, embora a lucidez de sua
concepção de si e a exatidão dos pensamentos que pode ter sobre si mesmo
sejam duvidosas, assim como eram para Molaison.
No entanto, a memória semântica de Leonard Shelby foi prejudicada, com o
resultado de que não é capaz de detectar e, assim, de relatar de modo confiável
alterações em sua personalidade. Também não é capaz de decifrar as motivações
dos outros para períodos extensos de tempo, embora, estranhamente, possa
recordar, em certa medida, a identidade das outras pessoas. “Teddy” e “Natalie” lhe
são familiares, mas nunca está completamente certo do que estão fazendo em sua
vida.
4. Agência
O que danos à memória e, mais amplamente, à cognição, tais como a
demência, interrompem? O que Molaison e Shelby (bem como minha sogra senil)
não têm e que é necessário para a agência plena? As pessoas com amnésia
anterógrada (e outras formas de danos cognitivos) são menos capazes de adquirir
conhecimento de suas próprias ações? O que é preciso experienciar e de que é
preciso estar consciente para se ter a experiência da própria agência? Que forma
essa experiência precisa ter?
Num nível bem básico, Molaison e Shelby são agentes. Eles têm estados
qualitativos do tipo que é “parte de uma unidade coerente que é constitutiva de
mim mesmo e experienciado como eu mesmo”14. Nenhum deles (incluindo minha
14 John SEARLE, “Review of Self comes to mind: Constructing the conscious brain by Antonio
336
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
awareness: Issues in philosophy and psychology, Oxford: Clarendon Press, 2003, p.15.
16 Anne NEWSTEAD, “Knowledge by intention? On the possibility of agent’s knowledge”. Capítulo 12
337
MARINA OSHANA
17 Eilan e Roessler ressaltam a tese de Marc Jeannerod de que “mesmo sob circunstâncias
perfeitamente normais, muitos aspectos das ações intencionais são controlados com base em
informações inconscientes, ‘processadas implicitamente’”. Eilan and Roessler, p.24.
338
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
defesa apropriada de que pessoas que apresentam danos cognitivos do tipo que a
amnésia anterógrada produz estarão mal equipadas para assumir tal função.
Essas pessoas farão tremendo esforço para responder transtemporalmente a
questões sobre seus planos futuros, apelando ao que haviam se determinado a
fazer como uma predição. Por exemplo, embora Molaison estivesse ciente de si
mesmo como tendo tido um passado e se confrontando com um futuro, não havia
um ponto de vista futuro a partir do qual poderia testemunhar que “as intenções
que [formei] hoje virão a ser executadas”18. Se a ação intencional do tipo do qual a
autogovernança depende é mais do que simplesmente um modo de antecipação
em que uma pessoa projeta-se a si mesma numa perspectiva futura, de modo a
tornar suas ações atuais inteligíveis para si mesma – se exige predizer o
comportamento futuro com base na decisão do que fazer – amnésicos
anterógrados são desafiados nesse quesito. Eles não terão uma perspectiva
transtemporal de um tipo que sustente a continuidade do comportamento e permita
a persistência de projetos transtemporais. A memória faz precisamente isso. Ela
organiza os perfis autobiográficos ao apresentar o presente em termos que lhe dão
sentido como a extensão de uma vida. Mas a memória não assiste aos amnésicos
anterógrados (e pessoas como a minha pobre sogra) a esse respeito. Suas
capacidades de deliberação prática também estão enfraquecidas.
Amnésicos anterógrados ficam aquém de controlar suas ações por meio do
comportamento de automonitoramento em outros aspectos óbvios. Nossa agência
depende da contribuição que damos para levar nossas vidas. Por carecerem de
um mecanismo interno para manterem a si mesmos – seus caráteres,
compromissos, planos e valores – presentes aos olhos da mente, anterógrados
como Leonard Shelby não podem dar testemunho de si mesmos confiavelmente19.
A determinação de Shelby de manter um diário com dados importantes tatuando a
18 J. David VELLEMAN, “Self to self”. In: Self to self. Selected essays, New York: Cambridge
University Press, 2006, p.172.
19 Não tenho a menor ideia do que dizer sobre a compreensão interna de si mesmo como um ser
temporalmente estendido que poderia estar disponível para alguém com amnésia. Pergunto-me como
é sentido “de dentro” ser o mesmo ego ao longo do tempo.
339
MARINA OSHANA
si mesmo não é confiável, pois ele precisa lembrar por que uma tatuagem
particular é importante. O fato de que precisa readquirir, às vezes repetidamente,
informações significativas sobre sua vida dificulta sua capacidade de ação, assim
como o fato de que é dependente em muitas dessas informações da confiabilidade
dos outros. A capacidade de Shelby de conquistar o objetivo que busca por sua
própria vontade, através do comportamento de automonitoramento está
operacionalmente danificada. E embora não tenha perdido a ação intencional
inteiramente, dado que consegue tomar algumas decisões sobre o que fazer e,
para algumas ações, consegue manter a decisão em mente por tempo suficiente
para finalizar sua ação – ele consegue, por exemplo, vasculhar um carro em busca
de um vestígio – não é capaz de planejar ações futuras transtemporalmente
estendidas. Sua aflição rompe com sua proficiência como um agente – como uma
entidade capaz de decidir-se por um curso de ação, inventar um estratagema que
faça sentido, dados esses objetivos, e capaz de oferecer razões para seu
comportamento à luz desses mesmos objetivos.
Afirmei acima que a tarefa da memória é organizar autobiografias de modo
a dar sentido ao presente como uma continuação do passado. Alguma quantia de
continuidade autobiográfica pode ser preservada por meio de lembranças
compartilhadas, com as quais memórias de eventos importantes na vida de alguém
são oferecidas por terceiros e por documentação material. Que Molaison e Shelby
não possam ressuscitar memórias prévias por si mesmos não significa que o
acesso à informação que a memória proposicional proporciona não possa ser
fornecido por outras fontes. Os outros podem lhes construir uma narrativa verídica
de memórias episódicas e, talvez, até de memórias semânticas. Eu questiono se
testemunhar a si mesmo dessa maneira indireta, em terceira pessoa, permitirá a
uma pessoa reviver uma concepção de si em primeira pessoa. Mas mesmo se o
fizer – mesmo se, digamos, Shelby acreditar na narrativa que construímos e vier a
se reconhecer entre as informações, possuir essa concepção de si mesmo em
primeira pessoa é insuficiente para a agência.
Uma vez que compreendamos o que Molaison e Shelby perderam,
estaremos em condições de identificar uma característica fundamental da agência.
340
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
No fim das contas, realmente não importa quanto material em primeira pessoa está
no arquivo de si mesmo. Tanto Molaison, quanto Shelby mantiveram um corpo
razoavelmente extenso de conhecimento em primeira pessoa. O que importa é se
o material que está no arquivo de si permite a alguém tornar as suas ações
inteligíveis para si mesmo. É sob a aparência do eu enquanto agente que
adquirimos um interesse imediato em componentes particulares do arquivo da
concepção de si. O que é crucial para a agência é que se retenha a capacidade de
reconhecer a si mesmo em primeira pessoa – não meramente como “Marina
Oshana”, mas como “eu” – e que se retenha a memória em primeira pessoa de
coisas que fornecem a si um sentido de direção na vida e um sentido de identidade
transtemporal. Essas duas coisas são necessárias para possibilitar a alguém dar
sentido a suas ações como próprias (suas) e como constitutivas da própria vida. As
experiências de Henry Molaison e Leonard Shelby expõem a importância do
autorreconhecimento e a importância de reconhecer a si mesmo nas próprias
ações.
O fato de que elementos seletos do arquivo identidade ancoram o
autorreconhecimento e são vitais para a agência não-corrompida é evidente em
vários aspectos. Primeiro, quando eles se tornam acessíveis para a pessoa
através da reflexão ou através da atenção lançada a eles por perspectivas
externas, uma pessoa registrará essas características do arquivo de identidade
como salientes para sua concepção de si. Por exemplo, algumas memórias são
mais centrais para o arquivo de identidade do que outras, à medida que formam
um componente fundacional da concepção de si da pessoa. Frequentemente se
encontra uma indicação do grau de saliência [das memórias] no fato de que a
pessoa estará disposta a responder pela saliência que elas têm para ela20.
341
MARINA OSHANA
irredutivelmente dialógica”. Ver WESTLUND. “Rethinking relational autonomy”. In: Hypatia 24.4, p.26-
49, 2009.
342
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
21 JanBRANSEN, “Alternatives to oneself: Recasting some of our practical problems”, Philosophy and
Phenomenological Research 60.2, p.381-400, 2002.
22 Jan BRANSEN. “Personal identity management”. In: Practical identity and narrative agency, New
343
MARINA OSHANA
p. 202.
25 Strawson diz que isso é o que Shaftesbury quer dizer por “opinião”.
26 STRAWSON. “Against narrativity”, Ratio 17.4, p.428-452, 2004. Essa citação aparece na p.430.
Strawson também rejeita a alegação normativa de que “uma perspectiva abundantemente Narrativa é
essencial para uma vida bem vivida, para uma personalidade verdadeira ou plena”.
27 STRAWSON, “Against narrativity”, p.438.
28 “Muitos egos mentais existem, um por vez, e um depois do outro, como pérolas em uma corrente,
no caso de algo como um ser humano. De acordo com a concepção de pérolas, cada um tem uma
existência distinta, uma coisa física ou objeto individual, embora possam existir por extensões de
tempo consideravelmente diferentes”. STRAWSON. “The self and the SESMET”, Journal of
Consciousness Studies 6.4, p.99–135, 1999.
344
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
345
MARINA OSHANA
30 Pode ser que as memórias com que mais me importo sejam desse tipo necessário para que a
minha agência prospere. Eu estimo memórias “essenciais” – das expressões faciais do meu pai, do
brilho do seu trompete, do cheiro do calor do verão em nosso minúsculo apartamento, dos ricos
aromas inebriantes da paleta de tintas da minha mãe. Uma incapacidade de lembrar dessas e outras
memórias semânticas similares poderia ser tão devastadora para o sentido de “ser eu mesma” quanto
a demência.
346
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
31 Como nota Bratman, “Esse papel característico de tais políticas lhes dá uma solicitação para falar
pelo agente, para ajudar a estabelecer onde o agente está com respeito a uma forma particular de
motivação”. Ver o seu “Hierarchy, circularity and double reduction”. In: Contours of agency: Essays on
themes from Harry Frankfurt, ed. Sarah Buss e Lee Overton, Cambridge, Mass: MIT Press, 2002, p.
76.
347
MARINA OSHANA
para dar sentido ao que faz como seus próprios feitos. Para que o reconhecimento
de si nesse nível aconteça, as manobras normais de monitoramento e
representação de si devem estar operativas. Essas manobras envolvem
fortemente a memória.
Sugeri que a ideia de um registro informacional da concepção de si serve
como um ponto de partida útil – mesmo que meramente heurístico – para explorar
questões acerca da natureza da agência prática. Três questões, em particular,
motivam essa exploração. Primeiramente, que elementos do registro da concepção
de si tornam possível o autorreconhecimento? Em segundo lugar, que elementos
do registro nos são mais importantes e por quê? E, em terceiro lugar, que
elementos são cruciais para a agência e para quais tipos de agência? Minha
proposta é que nos três casos olhamos para um material do registro que a pessoa
pode acessar, pode sujeitar à orientação reflexiva e pelo qual está disposta a se
responsabilizar. O material é indexical e consiste num conjunto de crenças,
valores, idiossincrasias, memórias e habilidades que embasam a psicologia
motivacional da pessoa. O material nos importa porque, em circunstâncias
normais, fornece à pessoa uma conexão psíquica com sua atividade passada,
permitindo à pessoa pensar de si mesma, tratar-se e ser tratada como um agente
cuja vida se estende para o futuro, mesmo que seja para um futuro a quinze
minutos dali.
348
13
DELICADEZA E TERNURA: HUME E O FEMININO
Lívia Guimarães
Introdução
Neste capítulo, apresento a maneira como Hume estabelece diferenças de
gênero, como ele as transgride e, por fim, como as abandona. Em minha visão, por
pensar tanto dentro, quanto fora dos limites de gênero, e por exaltar o feminino,
Hume pode-se dizer autor não apenas de uma filosofia, mas também de uma
utopia feminista. ‘Ternura’ (tenderness) é um foco principal de sua filosofia. Esta é
uma excelência feminina. Quando supera restrições de gênero, a “ternura
ampliada” é benéfica para toda vida pessoal, social e política. E, se prevalecesse,
sem oposição, na natureza humana, a ternura sedimentaria o mundo utópico
imaginário de Hume.
Após examinar Hume, o homem, passo ao pensador, abordando quatro
tópicos, que considero fundamentais em sua filosofia e aos quais teorias feministas
são sensíveis. São eles: circunstância, corporeidade, atenção e inatenção ao
conceito de gênero. Minhas anotações inspiram-se nas intuições originais de
Annette Baier e se propõem como um ponto de partida para futuros diálogos.
Consciente das várias importantes contribuições teóricas do pensamento
feminista moderno, parece-me que o texto de Hume propõe um desafio peculiar.
Ao contemplarmos a tradição filosófica, não raro, inclinamo-nos à crítica, até
mesmo à rejeição de autores cujos pensamentos, de algum modo, possuem
preconceitos de gênero, seja nas pressuposições, seja nos conteúdos de suas
teorias; se nos dispomos ao diálogo com autores do passado, este vem, muitas
vezes, tingido de prudente cautela.
Hume parece ser uma rara exceção – ele jamais considera a razão, senso,
LÍVIA GUIMARÃES
1 A bibliografiainclui: David Hume, Tratado da natureza humana, tradução de Déborah Danowski (São
Paulo: Unesp, 2001), em referências futuras, THN. Investigações sobre o entendimento humano e
sobre os princípios da moral, tradução de José Oscar de Almeida Marques (São Paulo: Unesp, 2003),
em referências futuras, EPM. Essays, Moral, Political, and Literary, ed. Eugene F. Miller (Indianapolis:
Liberty Fund, 1987), em referências futuras, E. The Letters of David Hume, 2 Vols., ed. J. Y. T. Greig
(Oxford: Oxford University Press, 1932), em referências futuras, LDH. The History of England, 6 Vols.
(Indianapolis: Liberty Classics, 1983), em referências futuras, HofE.
2 Cf. Annette BAIER. Moral Prejudices. Cambridge: Harvard University Press, 1994; e A Progress of
350
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
351
LÍVIA GUIMARÃES
352
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
Good god, how much am I fallen from the airs which I at first gave myself!
[…] now, I throw myself at your feet, and give you nothing, but marks of
patience and long suffering and submission (LDH 1.459).
Have you ever had any experience of the situation of your mind, when we
are very angry with the person whom we passionately love? You have,
surely; can anything be more tormenting and more absurd […] but I then
reflected, is this the person for whose welfare I would sacrifice my existence,
and can I now think of taking pleasure in her pain and uneasiness? […] the
very sight of your handwriting, I own began the cure (LDH 1.462).
Softness, I beseech you, dear madam, continue to like me a little, for
otherwise I shall not be able in a little time to endure myself (LDH 1.463).
É o amante pronto a se entregar, inteiro, à amada:
I shall never, I hope, be obliged to leave the place where you dwell […] This
long absence convinces me more fully than ever before, that no society can
make me compensation for the loss of yours, and that my attachment to you
is not of a little or common nature (LDH 1.475).
E é o amante sonhador, que fantasia a amada, ausente, a distrair-se, assim
como ele, em diversões pastorais:
If you have been so happy, as to execute your purpose, you are almost in
the same state as myself, and are at present wandering along the banks of
the same beautiful river, perhaps with the same books in your hand, a Ra-
cine, I suppose, or a Virgil, and despise all other pleasure and amusement.
Alas. Why am I not so near you, that I could see you for half an hour a day,
and confer with you on such subjects? (LDH 1.449)
Por fim, sua descrição da condessa dota-a de excelências que incluem,
como era de se esperar, graças e encantos, mas também caráter e entendimento –
seu perfeito ideal:
Should I meet with one in the future, in any time future, for, to be sure, I
know of none such at present, who was endowed with graces and charms
beyond all expression, whose character and understanding were equally an
353
LÍVIA GUIMARÃES
354
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
355
LÍVIA GUIMARÃES
356
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
357
LÍVIA GUIMARÃES
358
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
359
LÍVIA GUIMARÃES
qualidades que devem ser parte da sociedade polida e iluminada de seus sonhos.
5. Conceitos
Hume, provavelmente muito mais do que a maioria dos filósofos, recorre a
metáforas femininas para designar conceitos centrais de seu pensamento. A
virtude, para ele, é uma mulher – delicada, caridosa, afável e, mesmo, alegre:
Mas quais verdades filosóficas poderiam ser mais vantajosas à sociedade
do que as que aqui apresentamos, que representam a virtude com todos os
seus mais genuínos e atraentes encantos e fazem-nos aproximar dela com
desembaraço, familiaridade e afeto? Caem por terra as lúgubres roupagens
com as quais muitos teólogos e alguns filósofos a cobriam, e o que surge à
vista é apenas gentileza, humanidade, bondade, e até mesmo, a intervalos
apropriados, divertimento, júbilo e alegria. Ela não fala de inúteis rigores e
austeridades, sofrimentos e abnegações. Ela declara que seu único
propósito é fazer que seus adeptos e toda a humanidade se tornem alegres
e felizes em todos os momentos de sua existência; e não descarta
voluntariamente nenhum prazer a não ser com a perspectiva de uma ampla
compensação em algum outro período de sua vida. O único esforço que ela
demanda é o de um cálculo correto e uma firme preferência por um máximo
de felicidade. E se dela se aproximam austeros pretendentes, inimigos da
alegria e do prazer, ela ou os rejeita como hipócritas e impostores ou, se
chega a admiti-los em seu séquito, atribui-lhes um lugar entre os menos
favorecidos de seus devotos (EPM 9.15).
Para além da metáfora, os conceitos mais fundamentais da filosofia de
Hume assimilam as características relativas ao gênero feminino, fundindo-as na,
ou as elevando a princípios gerais da natureza humana. Razão, simpatia e
sentimento são exemplares. Conceitos acessórios também se espelham, com
frequência, em qualidades femininas. Como exemplos, temos a modéstia,
complacência, delicadeza, e ternura. Similarmente à ‘confiança’ como
compreendida por Baier, todos compartilham desta origem terrena e mundana – a
excelência da mulher, ou feminina.
Assim, no que concerne ao conteúdo conceitual, uma primeira lição da
360
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
361
LÍVIA GUIMARÃES
362
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
363
LÍVIA GUIMARÃES
364
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
365
LÍVIA GUIMARÃES
3 Cf. Sarah FIELDING. The Governess; or, Little Female Academy. U.S.A.: Hard Press; The
Adventures of David Simple and Volume the Last, ed. Peter Sabor.Lexington: The University Press of
Kentucky, 1998.
4 Cf. Margaret CAVENDISH, The Blazing World & Other Writings, ed. Kate Lilley (London: Penguin
366
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
primeira iria lembrá-lo das mulheres não tão modestas, mas intrigantes, que
conhecia (Alison Cockburn!). O mundo imaginário da última é similar ao seu próprio
mundo real, como deve lhe ter aparecido, ao oscilar entre disposições otimistas e
céticas.
Hume não fala do homem como o ser humano universal. Não escolhe a
faculdade da razão como a qualidade humana essencial e específica. Não atribui
um papel subordinado às mulheres. Põe-se acima dos humilhantes estereótipos
que tanto indignaram as feministas do século XX. Abraça a diversidade e rejeita o
dualismo. Quando se mantém dentro dos confins da diferença de gênero, favorece
o gênero feminino, por suas qualidades mais ‘humanas’ (humane). Quando
transgride estes limites, considerando ser uma impressão da reflexão, ou
sentimento, a causa determinante do conhecimento, moral e estética e, portanto,
tornando a razão, por assim dizer, “escrava das paixões”, exalta, mais uma vez, o
que se costumava predicar do gênero feminino. E quando elimina gênero por
completo, falando da e para toda a humanidade, descobrindo traços comuns a
todos, podemos dizer que põe o acento nas afeições femininas, mais suaves e
mais ternas. A aprovação moral é uma terna simpatia com os outros, um generoso
cuidado com os de nosso tipo e espécie. É uma espécie de amor e de estima. A
primeira das virtudes sociais, a benevolência, Hume descreve como terna e
humana. As virtudes sociais, na Investigação, trazem ordem à sociedade,
felicidade à família e à humanidade, apoio mútuo entre amigos, e um delicado
domínio sobre os corações dos homens.
Por tudo isso, eu gostaria, neste parágrafo de conclusão, de nomear um
outro membro à lista de utopistas feministas – o de Hume. Sua utopia, como já
insinuada: ternura; sua fonte principal? Passagens sobre a justiça, onde contempla
cenários que tornariam a prática desnecessária. Se a natureza fosse abundante e
providente, não haveria nenhuma necessidade de se distinguir entre “o meu e o
seu”. Ou, então, se a natureza humana acabasse em ternura e cuidado pelos
outros, tampouco haveria necessidade da distinção. Fora da utopia, como mostra o
exemplo da benevolência, a ternura encontra-se em tudo que importa para Hume.
Encontra-se implícita até mesmo nos princípios fundadores de sua filosofia, pois
367
LÍVIA GUIMARÃES
bem podemos perguntar: como pode alguém ser receptivo a impressões e ideias, e
responsivo a elas, se não for terno ou tenro?
368
14
KANT SOBRE O SENTIMENTO MORAL
1 Tal “problema” diz respeito à questão da dedução, a qual se manifesta também em outros âmbitos
da filosofia kantiana: em sua epistemologia e em sua estética, por exemplo. Nesse sentido, tal ponto
pode ser plenamente compreendido a partir dos valiosos estudos editados por Eckart Förster (1989).
Tais estudos abordam o problema da dedução nas três Críticas e no Opus Potumum.
2 Apodítica, portanto.
3 In: Kant (1998). Doravante ‘GMS’.
CARLOS ADRIANO FERRAZ
4 Tal método parte de verdades incontestáveis para, então, encontrar o seu fundamento. Ele é
utilizado, sobretudo, na ‘descoberta’ da verdade. Trata-se de um método de ‘invenção’ por excelência.
Ele procede regressivamente do condicionado à condição, propiciando a descoberta. Kant também o
utiliza no âmbito teórico em seus Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik, die als
Wissenschaft wird auftreten können, de 1783. Nos Prolegomena Kant parte da certeza acerca da
matemática e da ciência natural e ascende até os princípios dos quais tanto a matemática quanto a
ciência natural pode ser deduzida.
5 Ou, ainda, de um “conhecimento moral comum pela razão” (Gemeine sittliche Vernunft erkenntnis).
6 Diferentemente do método analítico, o método sintético procede progressivamente da condição ao
condicionado. É um método propício à ‘exposição’ da verdade descoberta. Por essa razão Kant o
370
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
utiliza na terceira seção da GMS: ele intenta justificar perante os demais a validade objetiva da lei
moral. Tal método é utilizado, também, na Kritik der reinen Vernunft (1781) e na KpV, sendo que
nesta, apesar do uso do método sintético, Kant também mantém um elemento analítico: ele tem como
pano de fundo a ideia segundo a qual o juízo moral de todos os homens reconhece a validade do
imperativo categórico.
7 Na segunda seção da GMS Kant reconhece três formulações do Imperativo categórico: 1- Age
apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal
(GMS. 421). Este é o único imperativo categórico. Mas dele podemos derivar todos os imperativos do
dever. O primeiro imperativo que dele deriva é o da “lei da natureza”: Age como se a máxima da tua
ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza (GMS. 421). 2- Age de tal
maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e
simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio (GMS. 429). Trata-se, nessa segunda
formulação, da “fórmula da humanidade com fim em si”. 3- Nunca praticar uma ação senão em
acordo com a máxima que se saiba poder ser uma lei universal, quer dizer, só de maneira que a
vontade pela sua máxima se possa considerar a si mesma ao mesmo tempo como legisladora
371
CARLOS ADRIANO FERRAZ
372
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
pode ser prática, ou, ainda, que a razão pode ser um móbil (Triebfeder) para o agir.
Dito de outra forma, pode a vontade (Wille), que é a razão prática, determinar o
arbítrio (Willkür)? Afinal, não somos sujeitos racionais. Somos sujeitos capazes de
racionalidade9. Se fôssemos algo tal como um animal rationale agiríamos
espontaneamente por dever (aus Pflicht), o que, obviamente, não é o caso. Se o
fosse, seria desnecessária uma fundamentação da moral e, consequentemente,
uma dedução do princípio da moralidade.
Entrementes, a distinção entre phaenomenon e noumenon também está
aqui. Enquanto se vê como agente racional, capaz de agir segundo determinações
da razão (autonomamente, como pertencente ao mundo inteligível) o homem
reconhece o princípio da autonomia da vontade (Autonomie des Willens). Quando,
por outro lado, ele se considera como pertencente tanto ao mundo inteligível
quanto ao mundo sensível, ele reconhece o princípio da autonomia10 como
imperativo categórico, ou, ainda, como princípio do querer (Prinzip des Wollens). A
proposição “eu devo” (ich muss) é uma proposição prática sintética a priori. O
terceiro termo que, por assim dizer, ‘liga’ o “devo” à vontade de um ser
imperfeitamente racional é a ideia dessa vontade como pertencente ao reino do
mundo inteligível. Tal ideia é a liberdade da vontade (Freiheit des Willens). Sua
função assemelha-se àquela das categorias na Kritik der reinen Vernunft (Kant
2006, doravante ‘KrV’), a saber, permitir a formulação de juízos sintéticos a priori11.
Dessa forma, liberdade (Freiheit) é a ideia da razão (Idee der Vernunft), sem a qual
não haveria juízo moral algum12. Nesse sentido, a liberdade é uma “possibilidade
lógica”. Todavia, ser uma mera possibilidade lógica não é suficiente. Faz-se mister
9 Como nos diz Kant em sua Anthropologie (Kant 1998, p.278, Ak.322): “Conseqüentemente, o
homem como um animal dotado com capacidade de razão (animal rationabile) pode fazer de si um
animal racional (animal rationale)”.
10 Deve reconhecê-lo: é precisamente esta a questão da dedução/justificação.
11 Os quais, no plano teórico, nos permitem ampliar nosso conhecimento da natureza.
12 Assim como, por exemplo, o conceito puro de causalidade (reine Verstandesbegriff der Kausalitätt)
é um dos conceitos puro do entendimento (Verstand) sem o qual não haveria um conhecimento
teórico da natureza.
373
CARLOS ADRIANO FERRAZ
que ela tenha, também, uma “realidade objetiva” (ainda que prática). O problema,
aqui, é o mesmo enfrentado na KrV: garantir a realidade objetiva do conhecimento.
Neste caso, do “conhecimento prático” (praktischen Erkenntnisse). Aliás, já no
prefácio da GMS Kant usa a expressão praktischen Erkenntnisse:
Assim, pois, as leis morais, com seus princípios, em todo o conhecimento
prático diferenciam-se de tudo o mais que contenha algo de empírico; e
essa diferença não só é essencial, mas também toda a filosofia moral
encontra-se inteiramente assentada sobre a sua parte pura, e, quando
aplicada ao homem, não recebe um mínimo que seja do conhecimento do
homem (antropologia), mas fornece-lhe, na qualidade de ser racional, leis a
priori13.
Isso demanda, pois, uma justificativa, algo que, pelo menos nesse contexto,
Kant não oferece. Ele rejeita a ideia de que a mera consistência lógica seja
condição suficiente para a aceitabilidade de proposições teóricas e práticas14.
Colocado em outros termos, a mera possibilidade lógica não garantiria a
possibilidade real15. Por essa razão não basta podermos pensar a liberdade: ela
especialmente na KrV, no momento em que Kant está tratando justamente da dedução das
categorias (§15 – Transzendentale Deduktion der reinen Verstandesbegriffe, B130). Com efeito, ao
apontar para o resultado dessa dedução (§27 – Resultat dieser Deduktion der Verstandesbegriffe) ele
conclui: “Wir können uns keinen Gegenstand denken, ohne durch Kategorien; wir können keinen
gedachten Gegenstand erkennen, ohne durch Anschauungen, die jenen Begriffen entsprechen”. Para
que algo seja logicamente possível basta que ele não viole o princípio de não-contradição.
374
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
deve ser real (sem envolver intuições possíveis). E, talvez exatamente do fato de
ela ter que ser real sem recorrer a uma intuição – a um fato (Tatsache) em sentido
concreto –, Kant nos conduz à sua ideia enquanto factum der Vernunft.
De qualquer forma, há um importante ponto em comum entre a GMS e a
Kritik der praktischen Vernunft16 (1788): liberdade e lei moral são ideias que
envolvem reciprocidade17. Tal reciprocidade se mostra explicitamente no início da
terceira seção. Após definir a vontade (Wille) como uma espécie de causalidade
(pertencente aos seres vivos enquanto racionais), bem como definir a liberdade em
seu sentido negativo (independência de causas estranhas ao sujeito), ele aponta
para o sentido positivo da liberdade, a saber, liberdade como autonomia.
Embora o esboço de uma dedução, na GMS, não tenha sido bem sucedido,
ele foi um passo na direção certa. A teoria do Factum servirá como uma forma de
“provar” (beweisen) a realidade objetiva (prática) da liberdade transcendental.
Sendo assim, a GMS concluirá, enigmaticamente, sobre esse ponto, que
devemos compreender a incompreensibilidade (Unbegreiflichkeit) da lei moral18. É
dessa forma que a KpV nos levará em outra direção, apresentando-nos a polêmica
expressão Factum der Vernunft19.
Apesar de sua importância, todavia, o termo factum20 aparece apenas nos
Imperativs, wir begreifen aber doch seine Unbegreiflichkeit, welches alles ist, was billigermaßen von
einer Philosophie, die bis zur Grenze der menschlichen Vernunft in Prinzipien strebt, gefodert werden
kann” (GMS. Ak. 463).
19 De qualquer forma, embora Kant tenha falado em “dedução” na terceira seção da GMS, na
segunda Kritik ele se afasta desse termo por razões óbvias: não há dedução da lei moral/liberdade.
Daí ele recorrer à figura do Factum. Mas o Factum, embora seja apenas um Factum der Vernunft,
“prova” por si mesmo a liberdade (afinal, a lei é a ratio cognoscendi da liberdade). Além disso, a
doutrina do factum não aparece na GMS.
20 Kant utiliza a forma latina factum (a grafia germanizada Faktum aparecerá apenas em edições
póstumas da KpV). Com isso ele pretende evitar que surja alguma confusão com o termo Tatsache, o
qual significa fato (por exemplo, na acepção que esse termo tem na Crítica da Razão Pura – Kritik der
reinen Vernunft, 1781), mas não fato no sentido em que a liberdade é um “fato”.
375
CARLOS ADRIANO FERRAZ
seguintes momentos:
[1] A razão prática obtém agora por si mesma, e sem ter acertado um
compromisso com a razão especulativa, realidade para um objeto supra-
sensível da categoria de causalidade, a saber, da liberdade (embora, como
conceito prático, também só para o uso prático), portanto confirma mediante
um factum o que lá meramente podia ser pensado. (KpV. A 9, p.15).
[2] Pode-se denominar a consciência desta lei fundamental um factum da
razão, porque não se pode sutilmente inferi-lo de dados antecedentes da
razão, por exemplo, da consciência da liberdade (pois esta consciência não
nos é dada previamente), mas porque ela se impõe por si mesma a nós
como uma proposição sintética a priori, que não é fundada sobre nenhuma
intuição, seja pura ou empírica [...]. Contudo, para considerar esta lei como
inequivocamente dada, precisa-se observar que ela não é nenhum fato
empírico, mas o único factum da razão pura, que deste modo se proclama
como originariamente legislativa (sic volo, sic jubeo21). (KpV. A 56, p. 107)
[3] Esta Analítica demonstra que a razão pura pode ser prática – isto é,
pode determinar-se por si a vontade independentemente de um todo
empírico – e isto na verdade mediante um factum, no qual a razão pura
deveras se prova em nós praticamente, a saber, a autonomia na proposição
fundamental da moralidade, pela qual ela determina a vontade ao ato. Ela
mostra ao mesmo tempo que este factum vincula-se indissoluvelmente à
consciência da liberdade da vontade, antes, é idêntico a ela; e mediante a
qual a vontade de um ente racional, que como pertencente ao mundo
sensorial se reconhece, do mesmo modo que outras causas eficientes,
como necessariamente submetido às leis da causalidade, contudo no
domínio prático, por outro lado, a saber, enquanto ente em si mesmo é ao
mesmo tempo consciente de sua existência determinável em uma ordem
inteligível das coisas.(KpV. A 72, p. 139)
21 Kant, leitor e admirador de diversos autores latinos, cita o poeta romano Juvenal (60-127 d.C): Hoc
volo, sic iubeo, sit pro ratione voluntas – “É isto que eu quero, é assim que ordeno: por razão baste a
minha vontade”.
376
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
377
CARLOS ADRIANO FERRAZ
22 Na Kritik der Urteilskraft (§ 91, Ak. 468) ele aparece com “liberdade”; Na Die Metaphysik der Sitten
(Erster Teil: Metaphysische Anfangsgründe der Rechtslehre, Ak. 252) ele aparece como “lei da
liberdade” e (Zweiter Teil: Metaphysische Anfangsgründe der Tugendlehre, Ak. 378) como “lei em
nós”; no Opus Postumum (Ak. 21) ele aparece como “imperativo categórico”.
23 Ou seja: pode a razão determinar a vontade?
24 Na “Analítica” a liberdade é demonstrada, ao passo que na “Dialética” ela é postulada. Na primeira
378
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
parte ela aparece como “autonomia” (Autonomie), na segunda parte ela é apresentada como
autocracia (Autokratie), isto é, como condição de possibilidade da virtude e, consequentemente, do
summum bonum, sendo este artigo de fé (ainda que prática). Por essa razão nos interessa, aqui,
especificamente a “Analítica”.
25 “So ist die Vorstellung derselben als Bestimmungsgrund des Willens von allen
Bestimmungsgründen der Begebenheiten in der Natur nach dem Gesetze der Kausalität
unterschieden, weil bei diesen die bestimmenden Gründe selbst Erscheinungen sein müssen. Wenn
aber auch kein anderer Bestimmungsgrund des Willens für diesen zum Gesetz dienen kann, als bloß
jene allgemeine gesetzgebende Form: so muß ein solcher Wille als gänzlich unabhängig von dem
Naturgesetz der Erscheinungen, nämlich dem Gesetze der Kausalität, beziehungsweise auf einander,
gedacht warden” (KpV. Ak. 51).
379
CARLOS ADRIANO FERRAZ
380
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
uma natureza supra-sensível, sem com isso romper seu mecanismo. Ora, a
natureza é, no sentido mais universal, a existência das coisas sob leis. A
natureza sensível de entes racionais em geral é a existência das mesmas
sob leis empiricamente condicionadas, por conseguinte é heteronomia para
a razão. A natureza supra-sensível dos mesmos entes é, ao contrário, a sua
existência segundo leis que são independentes de toda a condição
empírica, que, por conseguinte, pertencem à autonomia da razão pura27.
Com efeito, Kant recorre à lei moral mesma como forma de obter sua, por
assim dizer, condição de possibilidade. Em seus termos:
Mas algo diverso e inteiramente paradoxal substitui esta inutilmente
procurada dedução do princípio moral, a saber, que ele mesmo serve,
inversamente, como princípio da dedução de uma imperscrutável faculdade
que nenhuma experiência tinha de provar, mas que a razão especulativa
(para encontrar entre as suas ideias cosmológicas, segundo sua
causalidade, o incondicionado e assim não se contradizer a si mesma) tinha
de admitir pelo menos como possível, ou seja, a da liberdade, da qual a lei
moral, que não necessita ela mesma nenhum fundamento que a justifique,
prova não apenas a possibilidade mas a efetividade em entes que
reconhecem essa lei como obrigatória para eles28.
Assim, ao invés de chegar à lei moral mediante uma dedução, a lei moral
mesma serve como princípio para que possamos “provar” a liberdade enquanto
uma causalidade da razão prática pura. Tal relação (entre lei moral e liberdade)
Kant a expressa de várias formas. Aquela que talvez possa ser reconhecida como
a mais explícita ocorre quando ele afirma, em uma célebre nota29:
Quero apenas lembrar que a liberdade é sem dúvida a ratio essendi da lei
moral, mas que a lei moral é a ratio cognoscendi da liberdade. Pois se a lei
moral não fosse pensada antes claramente em nossa razão, jamais nos
27 Ibidem, p.143.
28 Ibidem, p.159.
29 Ibidem, p.7.
381
CARLOS ADRIANO FERRAZ
30 KpV, Ak.5.
31 “Ora o conceito de liberdade, na medida em que sua realidade é provada por uma lei apodíctica da
razão prática, constitui o fecho de abóbada de todo o edifício de um sistema da razão pura, mesmo
da razão especulativa, e todos os demais conceitos (os de Deus e de imortalidade), que permanecem
sem sustentação nesta <última> como simples ideias, seguem-se agora a ele e obtêm com ele e
através dele consistência e realidade objetiva, isto é, a possibilidade dos mesmos é provada pelo fato
que a liberdade efetivamente existe; pois esta ideia manifesta-se pela lei moral” (KANT, 2003, p.5).
32 “Uma doutrina sistemática contendo nosso conhecimento do homem (antropologia) pode ser dada
382
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
e nos fala do primado da razão prática sobre a teórica33, o que significa afirmar que
tal unidade é garantida pela razão prática pura. Dito de outra forma, o cético moral
será, também, um cético no âmbito epistemológico. Contudo, diferentemente do
que ocorre no plano teórico, no qual se faz uso de uma dedução para justificar,
diante do cético, a realidade objetiva das categorias, as quais estariam justificadas,
portanto, para um sujeito “esclarecido” (pelo menos do ponto de vista teórico, isto
é, conhecedor da mecânica newtoniana, da lógica aristotélica, da geometria
euclidiana, etc.), na KpV a capacidade de agir consoante a lei moral jaz mesmo no
mais comum dos sujeitos. Afinal, o que Kant intenta é demonstrar que a lei moral
se mostra como factum mesmo ao sujeito ordinário e não cultivado. A base da
moral kantiana permanece, na KpV, a populären sittlichen Weltweisheit. Ele não
tem por escopo “criar” uma nova moral34.
Voltando ao factum, este possui uma “facticidade” sui generis. Em primeiro
lugar, ele não é um fato empírico. Uma esclarecedora definição para fato empírico
(Tatsache – res facti) nós a encontramos na Crítica da faculdade do juízo (Kritik der
Urteilskraft, 1790, § 91; doravante ‘KdU’):
Os objetos para os conceitos, cuja realidade objetiva pode ser demonstrada
(quer seja através da razão pura, quer da experiência, e no primeiro caso a
partir de dados teóricos ou práticos daquela, mas em qualquer dos casos
mediante uma intuição que lhes corresponda) são fatos – Tatsachen – (res
facti)35.
Dessa forma, fatos (Tatsachen) empíricos há inúmeros. Factum36 há apenas
33 Cf. “Von dem Primat der reinen praktischen Vernunft in ihrer Verbindung mit der spekulativen” (Ak.
215).
34 Veja-se, por exemplo, a reação de Kant diante de um Rezensent (Gottlob August Tittel) que
escreveu desabonando a KpV por esta não trazer um novo princípio. Ora, não era o intento de Kant
apresentar um “princípio novo da moralidade”, mas apenas uma “nova fórmula”. Afinal: “Mas quem é
que queria introduzir também uma nova proposição fundamental de toda a moralidade e como que
inventá-la pela primeira vez?”.
35 KdU. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 308.
36 Mesmo o uso que Kant faz do termo factum em vez de Tatsache indica, segundo vemos, a
383
CARLOS ADRIANO FERRAZ
um. Ele é, como assevera Kant, o único fato da razão (factum der Vernunft):
Contudo, para considerar esta lei como inequivocamente dada, precisa-se
observar que ela não é nenhum fato empírico, mas o único factum da razão
pura, que deste modo se proclama como originariamente legislativa (sic
volo, sic jubeo).
Ele é um fato sui generis no sentido de que ele deve ser concebido
unicamente no âmbito da razão prática pura. Apesar de sua Unbegreiflichkeit, ele
possui realidade, uma realidade que é assegurada no plano prático apenas.
Poderíamos chamá-lo, portanto, de fato imanente: ele é oriundo da razão (eu seu
uso prático) mesma. Daí a impossibilidade de demonstrá-lo a partir de dados
externos à razão mesma. Mas a “voz da razão” (Stimme der Vernunft), não
obstante, é evidente mesmo para o entendimento mais comum37. Ele se mostra
como um imperativo inegável38. Para ilustrarmos esse ponto usemos um exemplo
utilizado pelo próprio Kant:
Perguntai-lhe, porém, se, no caso em que seu governante sob ameaça da
mesma inadiada pena de morte lhe exigisse prestar um falso testemunho
contra um homem honrado, que ele sob pretextos especiosos gostaria de
arruinar, se ele então, por maior que possa ser seu amor à vida, considera
possível vencê-lo. Se ele o faria ou não, talvez ele não se atreva a
assegurá-lo; mas que isso lhe seja possível, tem que admiti-lo sem
hesitação. Portanto ele julga que pode algo pelo fato de ter a consciência
de que o deve, e reconhece em si a liberdade, que do contrário, sem a lei
moral ter-lhe-ia permanecido desconhecida (KpV. Ak. 54, p.103).
Ora, sem a consciência da lei moral o homem não poderia reconhecer a
liberdade, isto é, sua autonomia. E a autonomia evoca outro conceito basilar à
perceptível mesmo ao homem mais comum, ele arruinaria completamente a moralidade” (KpV. Ak.
62. p. 119).
38 Ainda que decidamos não agir segundo sua ordem.
384
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
385
CARLOS ADRIANO FERRAZ
natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo
a representação das leis, isto é, segundo princípios” (GSM, Ak, 412). Assim, a
determinação imediata da vontade pela lei, bem como a consciência dessa
determinação, é chamada, por Kant, de respeito. Este constitui, pois, um efeito da
lei (sua consciência) sobre o sujeito. Na GMS respeito (Achtung) tem apenas
algumas linhas em uma nota de rodapé. Na KpV, entretanto, ele tem lugar de
destaque, muito provavelmente em virtude de ele dar suporte ao conceito de
factum e, dessa forma, sedimentar a metafísica da moral almejada por Kant.
Portanto, se na terceira seção da GMS Kant intentou deduzir a lei moral a
partir da ideia de liberdade, na KpV ele nega uma tal dedução39. Temos, aqui, a
intervenção do conceito de respeito, este sentimento (Gefühl) peculiar despertado
em nós pela “consciência da lei moral” (uma das ‘definições’ de factum). Este
conceito é plenamente desenvolvido na KpV em virtude de ele estar ligado à ideia
de factum e de justificação da lei moral. Assim, a relação entre factum e Achtung é
essencial à KpV. Tal união nos permite fundamentar que a razão pode ser prática.
Assim, se a lei moral é auto legisladora (não se fundamentando sobre
elementos sensíveis40), todos aqueles que estiverem cônscios de que estão
sujeitos a ela terão um móbil (Triebfeder) para obedecê-la: o respeito, o qual é
“despertado” em nós pela consciência da lei. Uma consciência presente nos
sujeitos e que deve ser “evocada” socraticamente. Nesse sentido, a tarefa do
moralische Lehrer é fundamentalmente socrática41. A questão é “trazer à lume” a lei
moral ínsita em nossos juízos cotidianos.
39 Lembremos: na KpV Kant é enfático ao afirmar que a lei moral é ratio cognoscendi da liberdade,
enquanto esta é a ratio essendi daquela. Portanto, não há “círculo” algum na KpV. Aqui a lei moral
não é estabelecida a partir da liberdade: a liberdade é “conhecida” pela consciência que temos da lei
moral (esta é a ratio cognoscendi daquela).
40 Daí Kant rejeitar duramente a Populärphilosophie, isto é, a ideia de que devemos recorrer à
experiência para dela tomar exemplos úteis à moral (uma ideia presente em autores tais quais Garve
e Mendelssohn).
41 Como, aliás, o próprio Kant indica em sua Die Metaphysik der Sitten (Zweiter Teil: Metaphysische
386
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
387
CARLOS ADRIANO FERRAZ
máxima de suas ações com uma lei natural universal não é tampouco o
fundamento determinante de sua vontade. Mas esta lei é, contudo, um tipo
do ajuizamento daquela máxima segundo princípios morais. Se a máxima
da ação não é constituída de modo tal que resista à prova na forma de uma
lei natural em geral, ela é moralmente impossível. Mesmo o entendimento
mais comum julga desse modo; pois a lei da natureza é encontrada sempre
como fundamento de todos os seus juízos mais comuns, até dos juízos de
experiência. Portanto ele a tem sempre à mão […]42.
Tal passagem encontra-se precisamente na seção intitulada “Da típica da
faculdade de julgar prática pura”, a qual seria o análogo, em filosofia prática, da
“Doutrina do esquematismo dos conceitos puros do entendimento”, dado que nela
Kant trata de uma espécie de “esquematismo” da Razão Prática pura (de sua
‘faculdade de julgar’). Dito em outros termos, na Typik Kant trata daquilo que
muitas vezes chama-se, inapropriadamente, de “dedução”, a qual recai, como
momento derradeiro, na doutrina do factum. Aliás, pouco antes, ao apresentar a
“Tábua das categorias da liberdade relativamente aos conceitos de bom e mau”,
sobre sua justificação (das “categorias da liberdade”), Kant é de uma tranquila (e
inquietante) brevidade: “Não acrescento aqui mais nada para a elucidação da
presente tábua, porque ela é por si suficientemente compreensível”43.
Dessa forma, é impossível, bem como desnecessária, uma dedução da lei
moral. Ela já está dada. Tal “dadidade” da lei moral é manifesta, como factum,
sobretudo, no sentimento do respeito à lei. Dessa forma, de uma mera notá de
rodapé na GMS, a ideia de respeito passa a ter um papel deveras importante na
KpV: aqui ele implica a consciência, a priori, do imperativo moral (de sua validade
objetiva). Ele possui um fundamento racional por ser “produzido” pela razão
mesma. E a partir desse momento ele se faz “sentir”. O respeito é um motivo
racional que produz duas sensações sobre nossa sensibilidade, a saber, a
humilhação ou dor e a elevação. Assim, se num primeiro momento nossa
388
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
44Tal tese é desenvolvida de modo seminal por Allison (1990). Muitos comentadores consagrados
acolheram, com entusiasmo, a tese de Allison, como Christine Korsgaard, Allen Wood e Paul Guyer.
389
CARLOS ADRIANO FERRAZ
390
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
391
CARLOS ADRIANO FERRAZ
52 Tal prazer (Lust) Rudolf Eisler o identifica, em seu Kant-Lexikon, com ‘sentimento’, ‘sentimento
moral’ e ‘respeito’. Em seu verbete, lemos: “Praktische Lust s. Gefühl, Moralisches Gefühl, Achtung”
(Eisler 1994).
392
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
53 Sobre esse tema, ver estudo seminal do Professor Valério Rohden (1981).
393
CARLOS ADRIANO FERRAZ
394
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
395
CARLOS ADRIANO FERRAZ
KANT, I. Werke in sechs Bänden. Band IV: Schriften zur Ethik und
Religionsphilosophie. Darmstadt: Insel Verlag, 1998.
______. Anthropologie in pragmatischer Hinsicht. Stuttgart: Reclam, 1998b.
______.Crítica da razão prática. Edição bilíngue. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
______. Crítica da faculdade do juízo. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, 1992.
______. A religião nos limites da simples razão. Lisboa: Edições 70, 1992.
______. Fundamentação da metafísica dos costumes. Porto: Porto Editora, 1995.
______. A metafísica dos costumes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.
MUNZEL, G. F. Kant’s conception of moral character. Chicago: The University of
Chicago Press, 1999.
PHILONENKO, A. Études kantiennes. Paris: Vrin, 1982.
PATON, H. J. The categorical imperative. New York: Harper, 1967.
ROHDEN, V. Interesse da razão e liberdade. São Paulo: Ática, 1981.
396
15
MOTIVAÇÃO E VALOR EM HUME E KANT
André Klaudat
Introdução
Em suas filosofias morais, em particular na parte ou aspecto fundacional,
David Hume e Immanuel Kant dão lugar especial à motivação moral. Hume registra
o fato de que a moral é prática, e afirma que sem essa “vantagem” ele nunca teria
se voltado ao tratamento filosófico do assunto. Kant, por sua vez, faz o motivo do
dever ser a porta de entrada de sua filosofia moral. Ambos têm boas razões para
tal opção. Em primeiro lugar, historicamente, racionalistas como Samuel Clarke
procuravam esclarecer a natureza e o conteúdo das leis morais sem preocupação
com o porquê de o homem dever se orientar por elas. A agenda filosófica passava
a conter um tópico incontornável.
Em segundo lugar, para além da preocupação com o ceticismo moral, se
nos centrarmos, de um ponto de vista sistemático, em formas de obrigação moral,
a pergunta sobre por que estamos moralmente constrangidos, sobre qual é o
rationale para essas formas de obrigação, parece ser, definitivamente, uma boa
pergunta. Tanto Hume quanto Kant têm olhos para essa pergunta.
Em terceiro lugar – e aqui parece haver uma diferença importante nas
posições dos dois filósofos – enquanto que Kant sustenta que atentar para o
motivo do dever é o caminho para a absolutamente necessária e inédita explicação
da natureza e justificação da obrigação moral (a obrigação incondicional), o que
permitirá o esclarecimento dos fundamentos da moral; Hume, por seu turno, faz da
“praticalidade” da moral uma espécie de condição de adequação material para a
explicação do fenômeno moral, se não estivermos explicando o que de fato nos
move, não estaremos explicando a moralidade. Mas quanto a essas razões para
ANDRÉ KLAUDAT
1Cf. David Wiggins: “We feel bound. But why reason-bound? Why not say we feel bound by our moral
nature, i.e. bound by those moral sentiments without which (we have concluded, if we feel bound by
obligation) we should not recognize ourselves? (Bound then by reason of those sentiments, one may
want to say)” (“Categorical requirements: Kant and Hume on the idea of duty”. In: Hursthouse,
Lawrence e Quinn (eds.), Virtues and reasons, Philippa Foot and moral theory, Clarendon Press,
1995, p.310. Cf. também p. 323-325, n.19).
398
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
averiguar, tentando me colocar nos ombros deles, quais são as nossas opções.
1. Motivação e obrigação moral
A referência de Hume ao que veio a ser chamado de “praticalidade” da
moral é inequivocamente ao seu aspecto motivacional enquanto moralidade. A dita
“vantagem” diz respeito ao que nos afeta sobremaneira (cf. T 455-62), que, por
isso, concluímos não pode ser uma “quimera”. O ponto de partida de Hume é que
a moralidade nos move como moralidade:
Se a moralidade não tivesse naturalmente qualquer influência sobre as
paixões e ações humanas, seria em vão fazer tanto esforço por inculcá-la; e
nada seria mais infrutífero que a multidão de regras e preceitos com os
quais todos os moralistas abundam. [...] E isso é confirmado pela
experiência comum, que nos informa que os homens são muitas vezes
governados pelos seus deveres e são desestimulados [deter’d] para certas
ações pela opinião de injustiça, e impelidos a outras por aquela de
obrigação (T 457).
Que Hume, nesse contexto, insista que a moralidade tem influência
naturalmente não parece querer dizer mais que é isso que constatamos na
experiência comum. Mas o que é dito ser assim influente são nossos deveres e
obrigações morais. A moralidade, consequentemente, é um “princípio ativo” (T 457)
em relação a nós seres humanos.
Mas se nos perguntarmos, seguindo Hume (T 473), se os “princípios” dos
quais a moralidade é “derivada” (quanto ao seu conteúdo) são naturais, uma
pergunta sobre origens, a resposta dele é que nossas noções das virtudes podem
se subdividir em dois grupos: temos o sentido de que algumas virtudes são
artificiais, enquanto que outras são naturais (T 475). O que Hume nos diz sobre
essa distinção – entre natureza e artifício – pode ser uma clara indicação quanto à
2A treatise of human nature, p.455-456 (Oxford University Press, Selby-Bigge/Nidditch, 1978): assim
as referências no texto.
399
ANDRÉ KLAUDAT
3 “…Essa afecção de humanidade pode não ser estimada em geral como tão forte como a vaidade ou
ambição, mas sendo comum a todos os homens, ela sozinha pode ser a fundação da moralidade, ou
de qualquer sistema de censura ou elogio” (Enquiry concerning the principles of morals, Oxford
University Press, Selby-Bigge/Nidditch, 1975, p.222 = EPM 222).
4 “O interesse no qual a justiça está fundada é o maior imaginável e se estende para todos os tempos
e lugares. Ele não pode concebivelmente [possibly] ser servido por nenhuma outra invenção. Ela é
óbvia e se revela na primeira formação da sociedade. Todas essas causas tornam as regras da
justiça firmes e imutáveis; ao menos, tão imutáveis quanto a natureza humana. E se estivessem
fundadas em instintos originais, poderiam elas ter uma estabilidade maior?” (T 620).
400
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
Nós censuramos um pai por negligenciar seu filho. Por quê? Porque mostra
uma falta de afeição natural, que é o dever de todo pai. Não fosse a afeição
natural um dever, o cuidado com os filhos não poderia ser um dever; e seria
impossível que nós tivéssemos o dever em vista na atenção que damos à
nossa prole. Nesse caso, todos os homens supõem um motivo para a ação
distinto do senso de dever (T 478).
Com isso temos (1) que o senso de dever, de obrigação, é consequente a
uma motivação natural:
Um pai sabe que é seu dever cuidar do seu filho: mas ele também tem uma
inclinação natural a isso. E se nenhuma criatura humana tivesse essa
inclinação, ninguém poderia encontrar-se sob tal obrigação (T 519).
Com isso, por sua vez, temos (2) que a motivação natural nesse caso é
uma inclinação natural.
E quanto à natureza da obrigação, ou dever, em geral, temos:
Toda moralidade depende de nossos sentimentos: e quando qualquer ação,
ou qualidade da mente, nos agrada segundo uma certa maneira, dizemos
que ela é virtuosa; e quando o descuido ou a não realização dela nos
desagrada segundo uma mesma maneira, nós dizemos que estamos sob a
obrigação de realizá-la (T 517).
O quadro, então, parece dever ser o seguinte: (1) homens, comumente, têm
afeição por seus filhos, têm uma inclinação natural por eles; (2) em função desse
fato, o indivíduo que não tem essa afeição – que garantiria o cuidado – estará
obrigado ao cuidado de seu filho por causa de uma avaliação negativa dessa
carência: todos, inclusive o indivíduo em questão, se desagradam moralmente com
essa situação.
O que é fundamental compreender aqui é que a obrigação moral da virtude
natural do cuidado com os filhos não se assenta na ocorrência efetiva de um
desprazer consigo mesmo (individual) ante a comparação com a situação de
outros, como se Hume estivesse sustentando que só há obrigação para o sujeito
401
ANDRÉ KLAUDAT
402
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
firmes e gerais” (T 581-2). É frente a esse pano de fundo que a obrigação moral, o
dever moral, pode se apresentar, também em Hume – e é isto que é importante
que se note – como uma exigência categórica, ou seja, independente das
inclinações atuais do sujeito (Cf. Wiggins op. cit. Passim.). Nesse sentido, haverá
“beleza moral” no comportamento naturalmente afetuoso e cuidadoso de um pai
em relação ao seu filho, mas também haverá tal beleza no comportamento de
cuidado por dever de um pai em relação ao seu filho, e não precisamos nos ocupar
agora com a questão de Bernard Williams sobre qual tem mais.
O ponto lógico em questão é que o fato da fundação/origem de um dever
ser empírica, de ele ter uma fundação natural vista como a posteriori (no sentido
de se assentar em nossa natureza humana), não impede que a exigência moral
em questão em seu conteúdo seja apresentada como categórica, sem assento nas
inclinações atuais do sujeito. Hume afirma que “nosso senso de dever sempre
segue o curso comum e natural de nossas paixões” (T 484), mas não obstante
trata-se de um senso de dever. Se não fosse assim, empiristas em geral sobre os
fundamentos da moral (como Harry Frankfurt) estariam logicamente
impossibilitados de explicar/justificar as exigências morais categóricas.
O que esse ponto mostra, e isso é crucial, é que o motivo do dever na
análise de Hume tem a característica exigida por kantianos: rastrear a moralidade,
ter a “intencionalidade certa”. Podemos ver isso na seguinte altercação.
O kantiano concede que o problema com o altruísta natural do exemplo de
Kant não é que a sua ação careça de conteúdo moral por não ser regular, confiável
ou até mesmo imparcial. Ela é: a ação beneficente é confiavelmente realizada
quando da necessidade dos outros6. Segundo kantianos, o problema está na
simpatia do altruísta natural não municiar o agente com um interesse na correção
ou exigência da ação. A ilustração é a seguinte:
Suponha-se que eu vejo alguém com dificuldades, tarde da noite, com uma
carga pesada junto à porta dos fundos do Museum of Fine Arts. Por causa
6 Cf. B. HERMAN. “On the value of acting on the motive of duty”, p.4. In: The Practice of moral
judgement, Harvard University Press, 1993.
403
ANDRÉ KLAUDAT
p.27, 2006.
404
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
2. Motivação e valor
Mas e quanto à motivação independente das inclinações simpliciter? A
análise de Kant da obrigação moral apresenta o seguinte ponto como a objeção
principal a uma concepção como a humena dos fundamentos da moral:
O que […] é derivado da particular predisposição natural da humanidade, o
que é derivado de certos sentimentos e pendor e até mesmo,
eventualmente, de uma direção particular que seria própria da razão
humana e não teria de valer necessariamente para a vontade de todo ser
racional – [tudo isso] pode, é verdade, vir a dar uma máxima para nós, mas
não uma lei; um princípio subjetivo segundo o qual temos o pendor e
inclinação a poder agir, mas não um princípio objetivo, segundo o qual
estaríamos orientados a agir ainda que a isso se opusesse todo o nosso
pendor, inclinação e constituição natural10.
O que Kant parece ter em mente aqui não é a determinação da vontade, a
motivação, sem qualquer, digamos, desejar [Begehren] da faculdade de desejar
[Begehrensvermögen], mas sua determinação por desejos empíricos [Begierde] ou
em sentido limitado (pré-determinados pelo prazer/desprazer). Qualquer princípio
moral que se assentasse sobre essa base de desejos seria impróprio para a
moralidade a la Kant (um princípio material, de acordo também com a segunda
Crítica). Hume não parece poder concordar com isso. Para Hume, a moralidade
está naturalizada no seguinte sentido. Vejamos.
Quando Hume nos revela do que depende o mérito das ações em geral, ele
advoga um naturalismo cum realismo quanto aos primeiros motivos das mesmas:
[…] Todas as ações virtuosas derivam seu mérito somente de motivos
virtuosos e são consideradas meramente como signos desses motivos.
Desse princípio eu concluo que o primeiro motivo virtuoso, que confere
mérito a qualquer ação, não pode nunca ser uma consideração pela virtude
daquela ação, mas precisa ser algum outro motivo ou princípio natural.
10G 4:425. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (AA 04), p. 425 do volume da Akademie-Ausgabe.
A tradução que utilizo é a de Guido de Almeida para a Barcarolla/Discurso, 2009.
405
ANDRÉ KLAUDAT
Supor que a mera consideração pela virtude de uma ação possa ser o
primeiro motivo que produz a ação e a torna virtuosa é raciocinar em
círculo. Antes que possamos ter tal consideração, a ação precisa ser
realmente virtuosa: e essa virtude precisa ser derivada de algum motivo
virtuoso e consequentemente o motivo virtuoso precisa ser diferente da
consideração pela virtude da ação. Um motivo virtuoso é exigido para tornar
a ação virtuosa. Uma ação precisa ser virtuosa antes que nós possamos ter
uma consideração pela sua virtude. Algum motivo virtuoso, portanto, precisa
ser antecedente àquela consideração (T 478).
O comprometimento de Hume com primeiros motivos naturais – isto que
não podem ser senão desejos empíricos – está claro na seguinte passagem:
Nenhuma ação pode ser exigida de nós como nosso dever, a menos que
haja implantado na natureza humana alguma paixão ou motivo movente
[actuating] capaz de produzir a ação. Esse motivo não pode ser o senso de
dever. Um senso de dever supõe uma obrigação antecedente: e onde uma
ação não é exigida por qualquer paixão natural, ela não pode ser exigida
por qualquer obrigação natural… (T 518).
Aí está a máxima ciceroniana indubitável: “Que nenhuma ação pode ser
virtuosa, ou moralmente boa, a menos que exista na natureza humana algum
motivo para produzi-la distinto do senso de sua moralidade” (T 479).
Humeanos insistem que o propósito dessa máxima não é impedir que a
moralidade se erga para além do seu ponto de partida, é antes registrar que, como
fenômeno natural, a moralidade precisa de um ponto de partida natural11. O que,
de qualquer modo, seria justamente indicado pelo uso da máxima no contexto da
análise das virtudes artificiais. Tome-se como exemplo a 3ª Lei da Natureza quanto
à justiça: a obrigatoriedade da promessa. Não obstante aparências em contrário –
“[…] é evidente que nós não temos um motivo que nos conduz ao cumprimento
das promessas distinto do sendo de dever” (T 518) –, a sofisticada posição de
Hume sobre esse tema não pretende implicar a suspensão da máxima.
406
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
Cf. “Nature and artifice, equity and justice”, p.72. In: The cautious jealous virtue, Hume on justice,
12
407
ANDRÉ KLAUDAT
408
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
409
ANDRÉ KLAUDAT
também vale para mim” (G 4: 429). Isso que aqui vale deve, portanto, ser “ao
mesmo tempo um princípio objetivo, do qual, enquanto fundamento prático
supremo, todas as leis da vontade têm de poder ser derivadas” (idem).
O ponto fundamental é o seguinte: na filosofia kantiana, a litania do valor e
dignidade humanos é de proveito duvidoso, pois as noções kantianas de valor, de
dignidade e de respeito entram em cena “como resultado, e não no lugar, do
trabalho do formalismo”13. É crucial compreender que em Kant “dizer que uma
coisa ou pessoa tem valor é considerar algo sobre o que ela é como uma fonte de
orientação para como nós devemos agir em relação a ela” (Idem). Desse ponto de
vista, a deliberação moral é antes pautada axiologicamente (do que teoricamente
nas características distintivas da espécie humana) numa concepção do valor do
querer bem como raciocinar bem, a partir de um princípio formal e de premissas
que encontramos quando somos guiados pelos dois fins obrigatórios da filosofia
moral kantiana14. Assim, devemos procurar sempre verificar quais são os modos
concretos de interação entre nós que minimizam “nossas vulnerabilidades como
raciocinadores [reasoners] práticos”15.
O apoio teórico dessa concepção da deliberação pautada axiologicamente
(ao invés de teoricamente) está justamente na concepção de valor e na sua
defesa. Um elemento dessa defesa me interessa ressaltar aqui, pois a pretensão
kantiana é que ele é exclusividade da posição de Kant: a acessibilidade relevante à
deliberação moral (o rationale moral acessível também à avaliação moral). O curso
da argumentação segue as seguintes etapas, o elemento em questão aparecerá
na última.
1. Os princípios racionais da agência apresentados no procedimento do
Imperativo Categórico constituem-se num padrão de justificação completa quanto à
avaliação de nossas escolhas de fins e de ações para tais fins. Isso pode ser
verificado na apresentação da razão moral para a interdição da falsa promessa, o
13 HERMAN. “Embracing Kant’s formalism”. In: Kantian Review 16.1, p.57, 2011.
14 Cf. HERMAN. “Reasoning to obligation”. In: Inquiry 49.1, p.45, 2006.
15 HERMAN, “Embracing Kant’s formalism”, p. 53.
410
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
16 Cf. HERMAN, “Making room for character”, In: Moral literacy, Harvard University Press, 2007 p.4-5.
17 Op. Cit., p. 5.
411
ANDRÉ KLAUDAT
18 “…The derivation of action from the constitutive principle of volition provides a noncontingent
connection between value and reasons. Failures to be moved by a reason is a sign of a deliberative
error, not a lack of subjective connection to the reason’s value” (Herman, “Bootstraping”, p.172. In:
Moral literacy, Harvard University Press, 2007).
19 Herman, “Bootstraping”, p.163.
412
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
20 Cf. A. BAIER, “Moral sentiments, and the difference they make”, Aristotelian Society,
Supplementary Volume (1995), p.17.
21 Cf. Op. Cit. p.18-21.
22 Cf. Geoffrey Sayre-McCord, “On why Hume’s ‘general goint of view’ isn’t ideal – and shouldn’t be”,
413
ANDRÉ KLAUDAT
414
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
quais o rationale é articulado, parece ser distinto. Em Hume, o prazer com o que é
humano e o melhor em nós; em Kant, a natureza racional como fonte de interações
que nos tornam merecedores de nossa dignidade.
felicidade e dignidade da virtude. Ele afirma que isso é uma vantagem da sua visão sobre aquelas de
Clarke e Hutcheson, pois em suas doutrinas as adequações [fitnenesses] das coisas, ou o senso
moral, permanecem opacos e não tem qualquer conexão inteligível com o que é de importância
central na vida humana” (John Rawls: Lectures on the history of moral philosophy, Ed. Barbara
Herman, Harvard University Press, 2000).
415
16
A FILOSOFIA MORAL DE PAUL GRICE
Introdução
Duas obras póstumas de Paul Grice – The Conception of Value (Grice 1991)
e Aspects of Reason (Grice 2001) – contêm uma parcela substantiva da sua
filosofia moral. Três temas se destacam:
1- Comparação entre razões teóricas (Grice as denomina “razões aléticas”)
e razões práticas, um tema dominante nos primórdios da filosofia moral de
tradição analítica, e que recebe de Grice um toque kantiano. Esse tema
ocupa parte da obra Aspects of Reason.
2- Defesa severa de uma abordagem teleológica aos problemas da filosofia
moral e a centralidade da noção de eudaimonia para a mesma. Esse tema
complementa a obra Aspects of Reason.
3- Esboço de um programa original construtivista, pace Carnap, de uma
metafísica do valor. Esse tema ocupa inteiramente a obra The Conception
of Value.
Tratarei, aqui, do primeiro tema – a análise proposicional pari passu de
sentenças teóricas e sentenças práticas, na 6a seção, mas antes disso farei uma
crítica a certas formas que esse tipo de análise pode assumir, na 4a seção, e uma
breve exposição de análises similares por parte de precursores, na 5a seção.
Também examinarei brevemente os dois temas anteriormente mencionados: na 2a
seção a abordagem teleológica orientada para a consumação da felicidade, e na 3a
seção a original metafísica do valor proposta por Grice.
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
1 2001, p.43.
2 2001, p.131.
3 GRICE 2001, p.119ss.
4 GRICE 2001, p.128.
5 2001, p.132-133.
417
FRANK THOMAS SAUTTER
desses fins.
4. Abrangência, ou seja, a capacidade dos fins para guiar a deliberação
sobre toda e qualquer questão prática.
5. Suporte mútuo dos fins do sistema.
6. Simplicidade do sistema de fins.
7. Aprazibilidade dos fins do sistema, para que se possa lidar
adequadamente com o problema da incontinência (akrasia).
8. Possibilidade de desenvolvimento maximal dos talentos naturais.
A ideia mais interessante de Grice a respeito da noção de felicidade é a
aplicação a ela da noção econômica de utilidade marginal. Define-se a utilidade
marginal de um bem ou serviço como a utilidade ganha (ou perdida) por um
aumento (ou diminuição) no consumo do bem ou serviço. À noção de utilidade
marginal está associada a seguinte “Lei da Diminuição de Utilidade Marginal”: o
primeiro consumo do bem ou serviço tem mais utilidade que os consumos
subsequentes e assim por diante. Grice aplica uma lei análoga à interpretação
inclusiva da felicidade: possivelmente há um núcleo duro de fins que todo e
qualquer sistema pessoal de fins deveria comportar, mas novos fins – mudança de
qualidade – ou um grau maior de realização de fins – mudança de quantidade –
tendem a ser evanescentes6.
2. A transubstanciação do homem em pessoa
Na obra The Conception of Value, Grice desenvolve uma concepção de
valor, entendido em sentido amplo, e não apenas valor moral7, segundo a qual
valores são realidades construídas pelos humanos e, portanto, não têm realidade
própria8. Essa defesa – uma investigação metafísica – diz muito acerca da
6 2001, p.117.
7 GRICE 1991, p.25.
8 1991, p.37.
418
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
9 1991, p.71.
10 1991, p.70.
11 GRICE, 1991, p.79.
12 1991, p.80.
419
FRANK THOMAS SAUTTER
contexto.
Também é central para a proposta de Grice que a essência de criaturas
vivas inclua finalidades13.
O sucesso da proposta de Grice depende, ainda, da possibilidade de
diferentes particionamentos de uma mesma coleção de propriedades em
propriedades essenciais e propriedades acidentais14. Sem essa possibilidade, a
operação central da proposta dele, a saber, a transubstanciação do tipo de
substância homem no tipo de substância pessoa também não é possível15.
A motivação teórica fornecida por Grice tem um caráter evolucionista: a
transformação do tipo de substância homem no tipo de substância pessoa consiste
na “essencialização” da racionalidade, ou seja, suas aceitabilidades, em particular,
e suas atitudes, em geral, passam a ser assentadas em razões, em sentido amplo,
vinculadas a valores de tipo apropriado16; a “essencialização” da racionalidade é
ditada pela necessidade de sobrevivência, ou seja, a necessidade de adaptação a
um ambiente complexo e sujeito a variações, onde os instintos já não são
suficientes17. O resultado é uma pessoa, um tipo não biológico18.
O processo todo envolve uma “Projeção Humeana”, ou seja, uma operação
mediante a qual um modo de pensamento de uma criatura viva deixa de ser um
atributo do pensamento e passa a ser um atributo da própria coisa pensada19.
Assim, para utilizar o próprio exemplo de Grice, o modo de pensar “pensar-como-
valoroso” a respeito de algo passa a ser, ao fim e ao cabo da operação, um
atributo da própria coisa: ela é valorosa20.
13 1991, p.81.
14 1991, p.81.
15 1991, p.82.
16 1991, p.82.
17 GRICE, 1991, p.83.
18 GRICE, 1991, p.84.
19 GRICE, 1991, p.88.
20 GRICE, 1991, p.88.
420
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
3. Contra o sintaticismo
É preciso mostrar que a lógica é aplicável ao âmbito normativo antes de
começar a explicar como ela é aplicável ao âmbito normativo. O método
moderno consiste em supor, sem discussão, que ela é aplicável ao âmbito
normativo e, então, distrair sua atenção disso (a única questão real) ao
diligentemente explicar como essa aplicação se dá21.
Entendo por “sintaticismo” o modus operandi segundo o qual se assume
que a semelhança sintática ou estrutural de operações sob exame com as
operações lógicas é condição suficiente para garantir a logicidade dessas
operações sub judice. Sustento que esse erro é frequente, inclusive na filosofia
moral. Em rigor, a lógica deôntica encontra-se viciada na origem pelo erro. O
trabalho inaugural “Deontic Logic” de G. H. von Wright (1951), é marcado por
sintaticismo. Nele, von Wright afirma o seguinte:
À execução ou não execução de uma determinada ação (por um agente)
denominaremos valores de execução (para aquele agente). Uma ação será
denominada função de execução de determinadas outras ações, se o seu
valor de execução para qualquer dado agente depende exclusivamente dos
valores de execução daquelas outras ações para o mesmo agente. […] O
conceito de função de execução é estritamente análogo ao conceito de uma
função de verdade na lógica proposicional. […] Funções de execução
específicas podem ser definidas em estrita correspondência com funções
de verdade específicas22.
A proposta de Von Wright soa inocente: ele assume uma semelhança entre
21 Adaptação de uma passagem de Clive Staples Lewis (1970, p.273), na qual ele descreve o vício do
bulverismo, ou seja, a atitude conforme a qual se assume que o oponente está errado, e, então,
explica-se o erro dele: “…você precisa mostrar que um homem está errado antes de começar a
explicar por que ele está errado. O método moderno consiste em supor, sem discussão, que ele está
errado e, então, distrair sua atenção disso (a única questão real) ao diligentemente explicar como ele
se tornou tão tolo”.
22 VON WRIGHT, 1951, p.2.
421
FRANK THOMAS SAUTTER
422
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
essa metáfora25.
A ampla maioria dos filósofos e lógicos, no mínimo, é suspeita do mesmo
tipo de prática.
4. Os primórdios da filosofia analítica da moral
A história da análise filosófica de sentenças é longa e intrincada, por isso
limitar-me-ei a contá-la nos seus episódios relevantes para a presente discussão.
O locus classicus dela, na tradição analítica, é a obra A linguagem da moral
do filósofo inglês Richard Mervyn Hare (1952). Nela, Hare distingue dois
componentes: a frástica e a nêustica. A diferença entre eles pode ser melhor
apreciada ao examinarmos um exemplo utilizado pelo próprio Hare. Considere as
seguintes sentenças:
• Você vai fechar a porta.
• Feche a porta.
A primeira é uma sentença indicativa, a segunda é uma sentença
imperativa. Ambas tratam do mesmo assunto, e isso é a frástica, mas tratam dele
de modo distinto, e isso é a nêustica.
À luz dessa análise, as sentenças podem ser reescritas do seguinte modo:
• Você fechar a porta no tempo t, sim: “Você fechar a porta no tempo t” é a
frástica comum às duas sentenças e “sim” é a nêustica comum a todas as
sentenças indicativas.
• Você fechar a porta no tempo t, por favor: “Você fechar a porta no tempo t”
é a frástica comum às duas sentenças e “por favor” é a nêustica comum a todas as
sentenças imperativas.
A análise de Hare em A linguagem da moral é a mais conhecida, mas não a
primeira e nem mesmo a melhor.
423
FRANK THOMAS SAUTTER
424
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
425
FRANK THOMAS SAUTTER
decidir por uma ordem unívoca dos elementos da análise. Aparentemente, alguns
exemplos sugerem uma ordem, e outros exemplos sugerem outra ordem.
Grice chama a atenção para a seguinte questão, que ele considera não
decidida: há alguma sentença em alguma linguagem natural tal que uma parte dela
é uma contraparte superficial de um radical? Frege, antes dele, já havia sugerido
uma resposta negativa à questão, mas Grice menciona apenas Wittgenstein ao
tratar do assunto29. Para além da questão fatual, uma questão mais interessante,
pelo menos da perspectiva filosófica, é a determinação do impacto que uma
resposta afirmativa ou negativa tem sobre a legitimidade da análise empreendida,
se é que tem algum impacto. Para Frege, a resposta negativa implica,
simplesmente, o uso necessário de uma linguagem artificial para os propósitos da
análise filosófica; essa situação, Frege a descreveu esplendidamente ao compará-
la a um barco que utiliza o vento para navegar contra o próprio vento.
Grice admite duas espécies básicas de aceitação30: a aceitação judicativa,
abreviadamente J-aceitação, e a aceitação volitiva, abreviadamente V-aceitação. A
V-aceitação, por sua vez, subdivide-se em um modo (inferior) intencional e um
modo (inferior) imperativo31. O modo (superior) de J-aceitação, por analogia,
subdivide-se também em dois modos inferiores. A Tabela 1 abaixo fornece o
esquema para cada um desses quatro modos (inferiores):
“Seja mais gentil com ele” é um exemplo dele para o segundo modo.
426
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
32 A tabela foi simplificada em relação à tabela apresentada pelo próprio Grice para esses quatro
modos (inferiores), sem prejuízo ao seu conteúdo.
33 Sentenças interrogativas são interrogações cuja resposta é um sim ou um não; por exemplo,
427
FRANK THOMAS SAUTTER
absolutas: uma teoria ou sistema precede suas operações36; nesse sentido, toda
operação, inclusive as modalidades, é relativa à teoria ou sistema do qual
participa. As extensões de teorias ou sistemas são as produtoras das
especializações de operadores, e não o inverso37. Grice menciona especificamente
a seguinte sequência exótica de extensões de teorias: a teoria lógica é
pressuposta pela teoria metafísica, essa é pressuposta pela teoria física, e essa é
pressuposta pela teoria ictiológica38. Grice não o diz em Aspects of reason, mas,
tendo em conta o que ele diz e faz em The conception of value, essas extensões
de teorias (camadas) não são arbitrárias39, mas respondem por uma demanda;
esse procedimento é concorde com a sua concepção de um caráter construtivista
da teorização filosófica.
A concepção de Grice culmina com uma caracterização bastante geral de
raciocínio:
Raciocínio =def. faculdade da ampliação de nossas admissões pela
aplicação de formas de transição, de um conjunto de admissões a uma
admissão ulterior, de tal modo a assegurar a transmissão de valor das
premissas à conclusão, desde que tal valor recaia sobre as premissas40.
“Verdade” e “bondade” são, ambos, assumidos como valores que
constituem casos especiais de “satisfatoriedade”41.
Para concluir essa exposição, apenas introdutória, da proposta de Grice,
indicarei os pontos principais de seu tratamento do difícil problema das
condicionais mistas, ou seja, aquelas em que há um modo judicativo e também um
modo volitivo na mesma sentença, e o problema relacionado de inferência de
aceitabilidades volitivas a partir de aceitabilidades judicativas. Soluções a ambos
428
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
429
FRANK THOMAS SAUTTER
42 Por outro lado, levar a analogia muito a sério pode ser desastroso. Kelsen, na “Teoria Geral das
Normas”, acusa Kant de não prestar a devida atenção às diferenças entre a causalidade e a
imputabilidade, embora, em teoria, Kant reconhecesse que elas são diferentes. Por exemplo, uma
sequência causal não tem início e não tem fim, mas uma sequência de imputação tem tanto início
como fim.
43 Nêustica e trópico, respectivamente, na terminologia do último Hare.
44 GRICE, 2001, p.91.
45 GRICE, 2001, p.91.
430
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
46 2001, p.93-94.
47 2001, p.94.
48 GRICE, 2001, p.4.
431
FRANK THOMAS SAUTTER
432
O LUGAR DAS EMOÇÕES NA ÉTICA E NA METAÉTICA
433