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Origem Do Epíteto "Cidade Maravilhosa" para Designar o Rio de Janeiro - Lenda e Verdade

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INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO

Ivo Korytowski

ORIGEM DO EPÍTETO “CIDADE


MARAVILHOSA” PARA DESIGNAR O
RIO DE JANEIRO: LENDA E VERDADE

KARYTOWSKI, Ivo
ORIGEM DO EPÍTETO “CIDADE MARAVILHOSA” PARA
DESIGNAR O RIO DE JANEIRO: LENDA E VERDADE
R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183(488): 265-294, jan./abr. 2022

Rio de Janeiro
jan./abr. 2022
Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade

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II – COMUNICAÇÕES
NOTIFICATIONS

ORIGEM DO EPÍTETO “CIDADE MARAVILHOSA” PARA


DESIGNAR O RIO DE JANEIRO: LENDA E VERDADE
ORIGIN OF THE EPITHET “MARVELOUS CITY” TO
DESIGNATE THE CITY OF RIO DE JANEIRO: LEGEND AND
TRUTH
Ivo Korytowski1

Resumo: Abstract:
Na primeira parte do artigo, desminto a len- In the first part of the article, I dispel the
da urbana difundida de que o epíteto “Cidade widespread myth that the writer Coelho Neto
Maravilhosa” para designar o Rio de Janeiro created the epithet “Cidade Maravilhosa”
foi uma criação do escritor Coelho Neto. Na (Marvellous City) to designate the city of Rio de
segunda parte, procuro desvendar a origem real Janeiro. In the second part, I try to unravel the
do epíteto. Mostro que foi usado para designar real origin of the epithet by showing that it was
a Exposição Nacional de 1908, depois o “novo first used to designate the National Exhibition
Rio” surgido das reformas urbanísticas de Perei- of 1908, and later the “New Rio” resulting from
ra Passos, até enfim se popularizar com a mar- the urban reforms carried out of Pereira Passos,
chinha “Cidade Maravilhosa”. until it finally became popular in the carnival
song Cidade Maravilhosa.
Palavras-chave: Cidade Maravilhosa, Rio de Keywords: Cidade Maravilhosa, Rio de Janeiro,
Janeiro, Coelho Neto. Coelho Neto.

PARTE I

Desbancando o mito de que o epíteto “Cidade Maravilhosa” foi


criado pelo escritor maranhense Coelho Neto
Pelo menos desde meados da década de 19302, circula a “lenda ur-
bana” de que o epíteto “Cidade Maravilhosa”, concedido à Mui Leal e
Heróica Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, teria sido criado na

1 – Escritor com duas obras premiadas pela UBE-RJ, tradutor consagrado, lexicógrafo,
filósofo graduado e licenciado pela UFRJ, pesquisador da história do Rio. Tem colabo-
rações publicadas na Revista Brasileira da ABL, revista Littera, revista Ficções, revista
Pilares da História e jornal O Trem Itabirano. E-mail: ivokory@gmail.com.
2 – Segundo as evidências que consegui levantar em antigos jornais.

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primeira década do século XX, pelo escritor maranhense Coelho Neto,


popularíssimo na época.
No Jornal do Brasil de 17 de maio de 1936, página 19, encontrei
a primeira alusão à crença na coluna intitulada “Entre os Caprichos da
Moda…(Crônica de Rosita)”, na qual consta: “Na verdade, os banhos de
mar encantam a fisionomia das urbes, o aspecto desse Rio de Janeiro a
que, há muitos anos, Coelho Neto chamou ‘cidade maravilhosa’ [grifo
nosso]...”. Com a morte de Coelho Neto em 1934, é possível que seu fi-
lho, Paulo Coelho Neto, passasse a disseminar tal crença. Assim é que, em
discurso por ocasião da inauguração da Escola Coelho Neto em Ricardo
de Albuquerque, em 1937, diz Paulo:
Bem expressivo foi o ato do governo da cidade, dando o nome de
Coelho Neto a essa escola. Na Escola Dramática ou no Conselho
Consultivo do Teatro Municipal, nas comemorações cívicas, como
orador oficial, ou nas jornadas da imprensa em que jamais submeteu
sua consciência às conveniências do momento, Coelho Neto serviu
e honrou a Municipalidade e a linda capital por ele sugestivamente
batizada Cidade Maravilhosa [grifo nosso]3.

Segundo essa crença, o epíteto teria sido empregado pela primeira


vez em crônica intitulada “Os Sertanejos”, publicada em 1908 no jor-
nal A Notícia (Anexo 1)4. A publicação, em 1928, do livro de contos A
Cidade Maravilhosa, por esse mesmo autor, corroboraria essa crença. A
atribuição da paternidade do epíteto a esse grande escritor foi mais uma
dessas “lendas urbanas” que as pessoas repetem ad nauseam, até se tor-
narem “verdades”. Vejamos três exemplos da disseminação dessa crença
infundada:

1) No resumo inicial do artigo “A Cidade Maravilhosa: Uma


Percepção de Coelho Neto sobre a Construção de um Ideal de Rio de
Janeiro”, os autores Eduardo da Cruz e Pedro Henrique Almeida Póvoa
escrevem: “Este artigo se propõe a analisar a criação do epíteto ‘cidade

3 – Jornal do Brasil, 1° de setembro de 1937, p. 10.


4 – Consultado por este autor na Biblioteca Nacional, já que não achou esta edição do
jornal na Hemeroteca Digital.

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maravilhosa’ atribuído ao Rio de Janeiro a partir da leitura de três obras


de Coelho Neto”5.

2) O Instituto de Geografia da UERJ organizou, de 24 a 29 de no-


vembro de 2008, o seminário científico cultural Centenária Cidade
Maravilhosa e o Nosso Rio Continua Lindo, celebrando “os cem anos
do título ‘Cidade Maravilhosa’ conferido pelo escritor Coelho Neto, no
jornal A Notícia, em 29 de novembro de 1908 [grifo nosso], à cidade de
São Sebastião do Rio de Janeiro”6.

3) Fernando Krieger, em artigo publicado no site do Instituto Moreira


Salles, sustenta:
Circulam duas versões para o nascimento da expressão ‘Cidade ma-
ravilhosa’. A primeira diz que ela foi criada pelo escritor maranhense
Coelho Neto, no artigo ‘Os sertanejos’, publicado no jornal A Notícia
de 29 de novembro de 1908. O mesmo autor lançou, em 1928, um li-
vro chamado exatamente Cidade maravilhosa, que continha uma série
de crônicas sobre o Rio de Janeiro [idem]7.

Observe-se que a crônica “Os Sertanejos” não foi publicada em 29


de novembro, como consta nos dois últimos exemplos acima, e sim na
edição de 29-30 de outubro. Ou seja, havia décadas, repetia-se a “lenda
urbana” sem que ninguém se desse ao trabalho de conferir a fonte.

5 – Nonada: Letras em Revista, vol. 1, n. 28, maio de, 2017, pp. 194-209.
6 – Convite enviado por e-mail a este autor.
7 – “Cidade maravilhosa” I: André Filho e a saga de uma marcha-hino. Artigo publicado
em 20 de janeiro de 2015 no site do IMS. Acessível em https://ims.com.br/por-dentro-
-acervos/cidade-maravilhosa-i-andre-filho-e-a-saga-de-uma-marcha-hino/

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Página 3 de A Notícia de 29-30 de outubro de 1908, contendo no folhetim superior a crônica “Os Sertanejos” de
Coelho Neto. As edições de 1908 desse jornal não constam da Hemeroteca Digital, só estando disponíveis em
microfichas na Biblioteca Nacional.

Além disso, Cidade maravilhosa não é um livro de “crônicas sobre o


Rio de Janeiro”, e a “cidade maravilhosa” a que alude o conto de mesmo
título não é o Rio, como mostrarei adiante. Ou seja, as pessoas citavam
o livro, em reforço à “lenda urbana”, sem se darem ao trabalho de lê-lo.

Examinemos, pois, a crônica “Os Sertanejos” onde supostamente


Coelho Neto teria atribuído o epíteto “Cidade Maravilhosa” ao Rio de
Janeiro. Ela narra a história de um grupo de artistas matutos “contrata-

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dos para cantar e dansar no recinto da Exposição” (a Exposição Nacional


Comemorativa do Centenário da Abertura dos Portos, de 1908), mas que,
assustados com a modernidade da metrópole, não conseguem repetir ali
os mesmos cantos e danças em que são exímios no seu ambiente natural,
o plácido sertão, e acabam por decepcionar o público. Afinal, conclui o
autor, “Almas não são batatas que se exhibam em exposições, a alma só
se expande livre e espontaneamente”8.

Após conhecerem a cidade em si –


a cidade formidavel, a cidade devoradora d’homens, com as avenidas
largas, margeadas de palacios colossaes, com o mover incessante de
uma multidão apressada, com o reboliço vertiginoso dos vehiculos,
com a zoeira dos automoveis, com o troar dos pregões, com todo esse
confuso movimento que é a vida, desde o passo subtil, despercebido
de um mendigo andrajoso que se esgueira ao longo dos muros, res-
mungando lamurias, até a estropeada heroica de um regimento com a
bandeira desfraldada ao vento, as armas lampejando ao sol e os clarins
resoando em notas marciaes.

– ao adentrarem a Exposição, “na avenida dos palacios brancos”, são


tomados pelo assombro:
– Assumpta, Clodina: não parece qu’a gente tá vendo uma cidade en-
cantada como aquellas das história [sic]?
[...]
Era ao cahir da tarde, uma tarde elegiaca, violacea, quieta, sem o silvo
de uma cigarra. Os penhascos pareciam de lapis lazuli e os palacios,
ainda mais brancos sobre o fundo escuro das rochas portentosas, alve-
javam marmoreos. Longe, nos estábulos, o gado tino mugia, nostal-
gico, pondo no silêncio enlevado a tristeza bucolica das varzeas, em
contraste com o requinte da cidade maravilhosa. A moça estremeceu
á voz dos animaes, e logo, relembrando histórias, cochichou á com-
panheira:
– Ocê ouvio, Clodina ? A mode qu’é boi berrando. Não vá sê gente
encantada !
[...]
8 – Coelho Neto, “Os sertanejos”, A Notícia, 29-30 de outubro de 1908. Nesta e em
outras citações neste artigo, mantenho a ortografia original.

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Subito uma deflagração ! Collares de lampadas em fogo e a linha dos


edificios debruada a luzes. Foi um medo panico indizivel: “Vote !
Misericordia ! T’esconjuro ! Nossa Senhora !”
– Clodina, ocê tá vendo ? Eu não dixe ? É o inferno ! Oia cumo tudo
se accendeu d’uma vez e sem phosque [fósforo].
Estacaram deslumbrados. A Cidade Maravilhosa resplandecia como
nas lendas. No fundo, na concha do palacio das Industrias, a agua
escachoava colorindo-se à refracção das luzes. Surgiram monstros
flammineos acaçapados, no relvedo, esguicharam repuchos polychro-
micos e a misera gente tremia e encommendava-se aos santos, fazen-
do promessas arduas, arrependida de haver seguido o diabo seductor
que a fôra buscar no repouso feliz da sua terra para arrojal-a naquelle
inferno.9

Vemos claramente que o termo “Cidade Maravilhosa” está sen-


do, nesta crônica de Coelho Neto, aplicado à Exposição Nacional
Comemorativa do Centenário da Abertura dos Portos, não à cidade como
um todo. De fato, a crônica, cuja íntegra pode ser lida no Anexo 1, con-
trapõe a cidade “formidável”, “devoradora d’homens”, ou seja, a cidade
“normal”, por um lado, à cidade deslumbrante, maravilhosa da Exposição
Nacional, por outro. Aliás, a imprensa da época valeu-se amiúde das de-
signações “Cidade Maravilha” e “Cidade Maravilhosa” em referência à
exposição que encantou os cariocas, como atestam as leituras dos jornais
de então. O epíteto não surgiu ex nihilo da cabeça de Coelho Neto em
“Os Sertanejos”, como reza a lenda urbana; já era corrente (junto com
“Cidade Maravilha”) para designar a Exposição, como veremos adiante
neste artigo.

Em 10 de novembro de 1927, o escritor maranhense publicou, na pá-


gina 8 do Jornal do Brasil, uma versão bastante modificada desta crônica,
agora denominada simplesmente “Sertanejos”, na qual a Exposição dá lu-
gar a um cinema e, agora sim, a “Cidade Maravilhosa” alude ao Rio como
um todo. Àquela altura o epíteto já havia se consagrado, nada ficando a
dever à crônica reformulada. O que não sabemos é se o autor modificou
a crônica com o propósito expresso de reforçar a lenda urbana, já que na
9 – Coelho Neto, “Os sertanejos”, A Notícia, 29-30 de outubro de 1908.

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época ninguém mais se lembrava do artigo original de 1908 (não havia


Internet para pesquisar!).

Em 1928, Coelho Neto publica seu livro de contos A Cidade


Maravilhosa, mas ao contrário do que se propala, não é uma coletânea de
textos de temática tipicamente carioca. São contos (alguns tão curtos que
beiram à crônica) de temas variados: por exemplo, “Aproximações” narra
as desventuras de um homem que, tendo nascido entre 31 de dezembro de
1899 e 1º de janeiro de 190010, não sabe exatamente a que século perten-
ce; já em “O Potro e o Sendeiro”, um velho e um jovem trocam de alma
– a alma do velho indo para o corpo do jovem e vice-versa11.

Ademais, a “cidade maravilhosa” que dá nome, não só à obra como


ao conto inicial, no qual um pintor carioca tenta seduzir uma professora
interiorana, não é o Rio de Janeiro, e sim uma “cidade de sonho”, imagi-
nária, evocada à noite por uma queimada passageira gerando “umas horas
breves de esplendor”:
Aqui a tem, a sua cidade maravilhosa. Viu-a de longe, era linda. Veja
agora. Illusões, fanciulla [criancice]... Illusões... Adriana olhava estar-
recida. Mas não era a destruição das arvores, não eram aquellas cin-
zas pardacentas, ainda mornas, não eram aquelles troncos denegridos,
aquelles ramos que rechinavam [=queimavam] amojados de seiva que
a commoviam, mas a lembrança da scena da estrada, a sedução do
homem sinistro a mostrar-lhe, ao longe, no fogareu rutilante, a cidade
maravilhosa, cidade do sonho, cidade do amor.
E, na imaginação, poz-se a comparar o seu destino ao daquellas arvo-
res, ao de toda aquella terra calcinada e em miseria depois de umas
horas breves de esplendor.

Mas se o epíteto pelo qual a cidade de São Sebastião tornou-se co-


nhecida não foi criação do autor de A Capital Federal, que tão bem soube
retratá-la, qual teria sido sua real origem?

10 – A rigor o século começou em 1901.


11 – Verbete A Cidade Maravilhosa (livro) da Wikipédia criado pelo autor deste artigo.

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PARTE II

Em busca da verdadeira origem do epíteto “Cidade Maravilhosa”


Em 1884, retornando de uma viagem à Argentina que resultou na
obra Sull’oceano, o escritor italiano Edmondo de Amicis, mais conhe-
cido por seu clássico Coração, fez uma breve escala no porto do Rio de
Janeiro. Apenas dezoito anos depois (1902) veio a escrever um artigo
sobre a cidade, publicado no suplemento La Lettura do jornal milanês
Corriere della Sera12. Possivelmente, foi a primeira vez em que se fez
alusão à cidade do Rio de Janeiro como “maravilhosa”.
– Por que o senhor nunca escreveu nada sobre o Rio de Janeiro?
Esta pergunta me foi feita uma centena de vezes durante os dezoito
anos que se passaram desde que fui ao Brasil, e cem vezes dei sempre
a mesma resposta pronta, tal como fazem os deputados quando con-
versam com os eleitores: – Porque fiquei apenas três dias, quando o
Sírio, o navio em que viajei de Buenos Aires para Gênova, fez uma
escala no porto da cidade. Amigos bondosos se desdobraram para me
mostrar tudo, levando-me para todos os lados de carruagem, de bonde
e em via férrea, desde cedo até a noite, como alguém que quisessem
salvar da caça de uma banda de credores; vi muito, mas vi tudo cor-
rendo, afobado e com os olhos ofuscados pelo cansaço, de forma que
me esqueci de muitas coisas, e de outras só tenho uma vaga lembran-
ça, e até das imagens que se mantiveram mais vivas tenho lacunas
obscuras, sobre as quais mesmo se reflito longamente nunca consegui
captar uma mínima recordação. O que poderia escrever? Seria como
descrever um sonho.
A esta resposta de sempre, poucos dias atrás, um intrépido italiano,
que recentemente voltou do Brasil para Itália, rebateu sagazmente: –
Mas o senhor não se sente tentado a fazer a descrição de uma cidade
maravilhosa (E non la tenta la descrizione d’uma città maravigliosa,
no original italiano)13, onde permaneceu somente poucas horas, e da
qual se lembra apenas como um sonho?

12 – O artigo foi incluído como bônus na edição brasileira do livro citado, intitulada Em
Alto-Mar, publicada em 2017 pela Nova Alexandria em coedição com o Istituto Italiano
di Cultura, com tradução, curadoria e notas de Adriana Marcolini.
13 – Edmondo De Amicis: scritti per "La lettura," 1902-1908, Fondazione Corriere della
Sera, 2008, acessado no Google Livros.

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– Eis aí uma ideia – pensei.


E aquela ideia colocou-me a pena na mão e pregou-me à escrivaninha.
[...]
Sim, Mantegazza tinha razão quando me escreveu: – Queira me des-
culpar, mas o Rio de Janeiro é mais bonito que Constantinopla. – Não
é que a cidade seja mais bonita, mas sim o lugar, as águas, toda a
natureza que a circunda. Oh, não há comparação!

O primeiro registro na imprensa carioca do epíteto “Cidade


Maravilhosa” aplicado ao Rio de Janeiro está na página 2 do jornal O
Paiz de terça-feira, 16 de fevereiro de 1904, pleno Carnaval. Em artigo
sobre os carros alegóricos que desfilavam pela cidade, lemos:
A carrocinha municipal era o carro de critica que se seguia, vendo-se
dentro das grades espirituosos mascaras protestando contra o acto mu-
nicipal que tolheu a canina estirpe de viver e gozar da plena liberdade
das ruas desta capital. E não contentes com os protestos feitos de viva
voz, ainda distribuiam estes versos em avulso:

MATRICULADOS E NÃO MATRICULADOS

Esta gaiola bonita


Que ahi vai sem embaraços
É a invenção mais catita
Do genial Dr. Passos

As ruas, de ponta a ponta,


Subindo e descendo morros,
Por onde passa da conta,
Dos vagabundos cachorros.

Agarra! Cerca! Segura!


– Grita a matilha dos guardas –
Correndo como em loucura
Com um rumor de cem bombardas.

Terra sempre em polvorosa,


Sem igual no mundo inteiro,

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Cidade maravilhosa!
Salve, Rio de Janeiro!14”

A partir daí, vemos, naquele início de século, referências esparsas


à cidade do Rio como “maravilhosa”. Por exemplo, na página 1 de O
Paiz de 04/05/1904, em matéria intitulada “Uma Obra Política”, sobre
as grandes reformas urbanas na então Capital Federal, capitaneadas pelo
presidente Rodrigues Alves, lemos:
As excellentes promessas feitas, aliás, sem o menor vislumbre de
ostentação pelo Sr. Dr. Rodrigues Alves, no manifesto inaugural do
seu governo, começaram a transformar-se, felizmente para o paiz,
em consoladoras realidades. [...] A população comprehendeu bem a
grandeza do serviço que o governo lhe vai prestar, negando-se a crear
embaraços á sua acção, como queriam agitadores profissionais, antes,
facilitando todos os accôrdos e sujeitando-se a todas as prescripções
legaes, no bom intento de ver transformada, embellezada e saneada
esta cidade maravilhosa, de cuja fama e de cuja força depende o
equilíbrio da seiva economica em todos os orgãos do paiz.

Na página 3 de A Notícia de 22-23/5/1907, em matéria intitulada


“No Palacio Monroe”, lemos:
Está ainda na lembrança de todos os habitantes desta cidade maravi-
lhosa a rapidez com que o general Dr. Francisco Marcelino de Souza
Aguiar concluio o Palacio Monroe, para o qual aproveitou o mesmo
plano e grande parte de elementos que serviram na architectura do
pavilhão brasileiro da Exposição Universal de S. Luiz.

A revista O Malho publica, na edição 219 de 1906, por ocasião da


abertura da Avenida Beira Mar, a seguinte caricatura com a legenda:
“Zé Povo : – Abençoado Passos, que me deste uma das primeiras ave-
nidas maritimas do mundo ! Avenida de onde se gosa o espectaculo
surprehendente da formosa Guanabara ! Cinta elegantissima desta ci-
dade maravilhosa ! Caminho amplo e limpo, onde se não encontra o
vulto revoltante de um kiosque ! Eu te saudo !...”

14 – Nessa mesma data, o Jornal do Brasil reproduz, na pág. 2, e o Jornal do Commer-


cio, na primeira página, estes mesmos versos.

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A Revista da Semana publica na edição de 3 de novembro de 1907,


na seção “Chroniqueta”, assinada por Raulino, a informação de que
“Paris, que se distrae e se diverte, espalha actualmente grandes annuncios
de espectaculos cinematographicos em que o numero sensacional do pro-
gramma é ‘Uma cidade maravilhosa, Rio de Janeiro, Brasil, a sua rapida
transformação em dois annos, vistas e aspectos pittorescos’. [...]”

Em 1908 montou-se na Urca a Exposição Nacional comemorati-


va do centenário da abertura dos portos, na época uma espécie de “ci-
dade artificial” asséptica & deslumbrante, como hoje, digamos, uma
Disneyworld. Nesse período torna-se comum na imprensa designar
essa exposição de “cidade maravilha” ou “cidade maravilhosa”. Por
exemplo, a seção THEATROS E MUSICA, no Jornal do Commercio
de 27 de setembro de 1908, informa, sob a rubrica CONCERTOS DA
EXPOSIÇÃO, que “realizou-se hontem o vigesimo concerto symphonico
da Exposição Nacional. / A tarde estava luminosa e fresca e um passeio á
praia Vermelha não deixava de seduzir, principalmente tendo-se em conta
que na cidade maravilhosa [a exposição] esperava o visitante uma audi-

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ção orchestral captivante, attrahente [...]”. Também a Gazeta de Notícias,


na edição de 16 de outubro, informa na sua primeira página que “A expo-
sição Nacional de 1908 está a encerrar-se. Mais um mez e aquella cidade
maravilhosa desapparecerá.”

Finda a exposição, encontramos o epíteto “Cidade Maravilhosa”


aplicado ao “novo Rio”, resultante das reformas do prefeito Pereira
Passos. Assim é que o jornal A Imprensa, cujo redator-chefe era Alcindo
Guanabara, em matéria de primeira página sobre o “regresso” de Pereira
Passos de uma viagem, em 8 de agosto de 1909, informa:
Deve hoje, chegar a esta capital o sr. dr. Francisco Pereira Passos,
nosso ex-prefeito, que será alvo de uma imponente manifestação que
lhe preparam aquelles a quem elle dotou com uma cidade maravilho-
sa, feita em bem curto espaço de tempo. / A manifestação que hoje, a
população carioca vai prestar ao eminente dr. Pereira Passos, é justo
e significativo tributo aos seus altos meritos e, sobretudo, a mais ex-
pressiva prova de gratidão áquelle que envidou os melhores de seus
esforços para transformar a Capital do Brasil, de um centro colonial,
em uma cidade digna de um povo culto.

Dentro desse mesmo espírito, na página 2 de A Notícia de 6-7/07/1909,


em matéria intitulada “Dez Annos Atrás”, lemos:
Que era a cidade do Rio de Janeiro ha dez annos? Que é a cidade
hoje? Houve uma transformação completa, um passe de magica, uma
maravilha. O Dr. Passos, com o seu grande poder magico municipal,
com o talismã da sua grande energia administrativo, pôz o dedo num
botão electrico, afundou no porão a velha Sebastianopolis e fez surgir
no scenario carioca, diante dos olhos do espectador attonito, outra ci-
dade–nova, arejada, arborisada, asphaltada, moderna, para que toda a
gente pasmo [sic]. [...] e hoje, dez annos depois, passeando esta cidade
de tão lindas ruas novas, percorrendo as avenidas, respirando um ar
que não é o das antigas vielas infectas, habitando uma nova cidade
maravilhosa e salubre, ouvindo o applauso do estrangeiro e não lendo
no obituário um único caso de febre amarella [etc.].

O jornal A Notícia, de 21-22 de setembro de 1909, declara em ma-


téria de primeira página intitulada PEQUENOS ECHOS: “O Rio tem já
sido de tal modo decantado por estrangeiros illustres, que deve ser hoje

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Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
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considerado pelos que ainda o não conhecem como uma cidade maravi-
lhosa”. Este mesmo jornal, na edição de 15-16 de agosto de 1910, escre-
ve, em matéria de primeira página intitulada A CIDADE:
Dias como o de hontem, pela sua doçura, a sua luz, a sua alegria são
verdadeiras dadivas do céo. [...] É por um dia assim que a nossa cidade
melhor brilha nas suas pompas e galas, ostentando os esplendores de
uma cidade maravilhosa [...].

De setembro a dezembro de 1911, a poetisa francesa Jane Catulle


Mendès, viúva do escritor e poeta Catulle Mendès, visitou o Rio de
Janeiro, encontrando uma urbe recém-emergida de um “banho de loja”
que foi a reforma urbanística de Pereira Passos. Encantada com a cidade,
sobretudo pela flora e belezas naturais, escreveu uma série de poemas de
“amor ao Rio”, publicados em Paris em 1913, com volume intitulado La
Ville Merveilleuse (A Cidade Maravilhosa).

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Ivo Korytowski

Já no primeiro poema, descrevendo a chegada (de navio, na épo-


ca) na Baía da Guanabara, escreve a poetisa: “Jamais tant de splendeurs
n’ont ébloui les yeux! C’est ici le pays de toute la lumière” (Jamais tantos
esplendores deslumbraram os olhos! Aqui é a terra de todas as luzes);
no poema final, “Adieu” (“Adeus”), escreve: “Rio douce et fougueuse
au visage doré” (Rio doce e briosa de semblante dourado”). E no poema
“Dans Longtemps” (Daqui a muito tempo), a autora não poupa declara-
ções de amor à cidade: “Cité voluptueuse et tendre” (Cidade voluptuosa
e meiga) “Cité d’or” (Cidade de ouro) “Rio radieuse, ô Ville des étoi-
les” (Rio radiante, ó Cidade das estrelas) “Merveilleuse Rio, Ville de la
Beauté” (Rio Maravilhoso, Cidade da Beleza)15.

Na obra Rio Belle Époque: Álbum de imagens, escreve Alexei


Bueno: “Parece-nos, portanto, que a hoje totalmente esquecida Jane
Catulle Mendès foi, senão a criadora, a oficializadora do epíteto do Rio
de Janeiro16”. Mas Catulle Mendès não estava sozinha. No mesmo ano da
publicação do livro da poetisa francesa, o jornal A Notícia publica uma
crônica, na coluna “Contos de Hoje” de Eugenio de Lemos, sobre quão
bonita ficou a cidade após as reformas urbanísticas. Título da crônica: A
CIDADE MARAVILHOSA (Anexo 3)17.

15 – Artigo sobre a obra de Catulle Mendès intitulado LA VILLE MERVEILLEUSE (A


CIDADE MARAVILHOSA) de JANE CATULLE MENDÈS encontra-se no blog Litera-
tura, Rio de Janeiro & São Paulo, em http://literaturaeriodejaneiro.blogspot.com/2015/03/
la-ville-merveilleuse-cidade.html
16 – Alexei Bueno, Rio Belle Époque: Álbum de Imagens, Bem-Te-Vi Produções Lite-
rárias, 2015.
17 – Jornal A Notícia, edição de 20-21/3/1913, pág. 3, acessado por este autor na Heme-
roteca Digital.

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Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade

Pela primeira vez o epíteto dá título a um texto jornalístico so-


bre a cidade, que contrasta a velha cidade colonial – “um amontoado
immenso de construcções de uma architectonica rotineira e uma serie de
vielas sem ar e sem luz” – com a “Cidade Maravilhosa”, surgida pela
“vontade de um punhado de homens, que felizmente a Republica soube
chamar á direcção dos seus destinos”, de modo que “as maravilhas huma-
nas começaram a surgir”. “A velha cidade ruiu sob o alvião demolidor,
e as avenidas abriram espaço á luz e ao ar.” “Cidade Maravilhosa! É a

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):265-294, jan./abr. 2022. 279


Ivo Korytowski

exclamação de todos que nos visitam.” Mais adiante deparamos com este
trecho profético:
A cidade progride e avança; toma o mar e toma as montanhas, e esten-
de-se para as costas, varando as rochas. Ainda não temos os caminhos
subterraneos, mas para lá caminhamos acceleradamente. E quando a
cidade tiver tudo isso, quando ella não construir os seus palacios ape-
nas na planicie, mas os levar para as montanhas, quando ella habitar
tambem os [sic] ilhas encantadoras de sua refulgente bahia e o mar se
encher de elegantes yachts, como hoje as avenidas se enchem de auto-
moveis, então ella poderá desafiar as que mais bellas o forem. Ella já
é a cidade maravilhosa.18

A Revista da Semana, em 23 de maio de 1914 publica uma


CHRONICA de louvação ao Rio de Janeiro que diz (entre outras coisas):
Se ha uma cidade que pelos maravilhosos adornos da natureza, pela
disposição esplendida das suas avenidas e dos seus parques, se presta
á pratica das festas ao ar livre, essa cidade é o Rio de Janeiro. [...]
Tudo, no Rio, convida ao convivio intimo com a natureza, tal é o es-
plendor de que ella se reveste, taes são as magnificencias de que ella
se adorna. A luz intensa que envolve a cidade maravilhosa, o clima
que a affaga desde maio a setembro, o embalsamado e gigantesco par-
que que a envolve, destinam-a a sêr um dos paraisos da terra.

Em 1922, Olegário Mariano publica pela editora Pimenta de Mello,


com uma segunda edição em 1930 da Companhia Editora Nacional, um
livro de poesias intitulado Cidade Maravilhosa. O poema inicial que tam-
bém dá nome ao livro, é uma louvação ao Rio de Janeiro, a “Cidade
do Amor e da Loucura”, “Cidade do Êxtase e da Melancolia”, “Flor das
Cidades”, em suma, “Cidade Maravilhosa!” (Anexo 4).

Em 1o de setembro de 1933, o locutor César Ladeira estreou na


Rádio Mayrink Veiga, lendo as “Crônicas da cidade gozada”, de Genolino
Amado, mas depois de receber cartas e telefonemas criticando o título,
mudou-o para “Crônicas da Cidade Maravilhosa”, conforme lemos em

18 – Jornal A Notícia, edição de 20-21/3/1913, pág. 3, acessado por este autor na Heme-
roteca Digital.

280 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):265-294, jan./abr. 2022.


Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade

Henrique Foréis Domingues, No Tempo de Noel Rosa: O Nascimento do


Samba e a Era de Ouro da Música19.

Em 1935, o mesmo César Ladeira escreve uma revista, que inclui


três canções de Ary Barroso (“Garota colossal”, parceria com Nássara,
“Grau dez”, parceria com Lamartine Babo e o samba “Foi ela”), intitula-
da “Cidade Maravilhosa”, apresentada no Teatro Recreio20.

No Carnaval de 1935, a marcha “Cidade Maravilhosa” de André


Filho, gravada por Aurora Miranda, enfim, consagra o termo pelo
qual hoje todos conhecemos o Rio de Janeiro, Patrimônio Cultural da
Humanidade, com muito orgulho, com muito amor…

Mostramos assim que, desde o início do século XX, o epíteto “Cidade


Maravilhosa” foi usado esporadicamente para designar o Rio de Janeiro,
ou mesmo outras cidades, em especial Paris. Com seu uso, juntamente com
“Cidade Maravilha”, para designar a deslumbrante Exposição Nacional
comemorativa do Centenário da Abertura dos Portos, em 1908 (contexto
em que surge a aludida crônica de Coelho Neto), aí sim, o epíteto se po-
pularizou e, finda a exposição, começou a ser usado com mais frequência
para designar o Rio de Janeiro, em especial o “novo Rio”, resultante das
reformas de Pereira Passos. Em 1913, dois fatos contribuem para a fixa-
ção do epíteto: a publicação do livro de poemas La Ville Merveilleuse de
Jane Catulle Mendès; e a crônica “A Cidade Maravilhosa” de Eugenio de
Lemos. E em 1935 o epíteto se consagrou definitivamente com o lança-
mento da marchinha que viria a se tornar o hino da cidade.

19 – Henrique Foréis Domingues, No Tempo de Noel Rosa: O Nascimento do Samba e a


Era de Ouro da Música, Editora Indigo Brasil, 2013.
20 – Idem.

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Ivo Korytowski

ANEXO 1: Crônica “Os Sertanejos” de Coelho Neto.


Versão original de 1908, na qual o epíteto se aplica à Exposição
Nacional.

Chegaram em turma, contractados para cantar e dansar no recinto da


Exposição [Nacional Comemorativa do Centenário da Abertura dos
Portos]. Gente escolhida! Os homens, guapos, destorcidos, como por
lá dizem ; as raparigas, lindas, de voz suave e d’uma graça muito
languida no boleiar do corpo, mas, depois de um ensaio canhestro,
o emprezario, esticando desanimadamente o beiço, antevendo, sem
duvida, o fiasco, devolveu-os ao sertão com os seus trajos pittorescos
e todo o instrumental languoroso com que se alegram as noites lindas
das suaves campinas sertanejas.
Foi um desapontamento, disseram me.
Os pobresinhos, tão airosos nos seus pagos, perderam de todo o garbo,
desaprumaram-se logo ao deixarem a estação de desembarque e os
primeiros passos com que pisaram o asphalto não seriam mais medro-
sos e incertos se fossem dados em desfiladeiro de má fama, por entre
cruzes, em noite negra e aziaga de agosto.
Lividos, d’olhos esgazeados, achegavam-se uns aos outros, com o
terror presago com que se apinham as ovelhas em marcha para o ma-
tadouro.
“Ó famanaz [que tem muita fama] da serra, que é da tua arrogancia!
Trazes a viola á bandoleira e caminhas d’olhos baixos, tu, o mais atre-
vido cantador da serra, dono de tantos corações, vencedor em tantos
desafios... Eh ! valentaço, que é da tua grimpa [orgulho] ?
E tu, moça do collo timido [“tumido” na versão de 1927], musa more-
na das floralias serranas, tu, que tem [corrigido para “tens” na versão
de 1927] sido a deusa da discordia, accendendo rancores com a luz
dos olhos negros e despertando a sêde do sangue com a cor da bocca
mais cheirosa do que uma baunilha; moça da serra, porque vais tão
triste e com os quadris tão quietos, tu que tão bem os cirandas quando,
na ponta do pésinho arisco, saltas, ao som da viola, requebrada e riso-
nha, desfiando a fieira.
Moça cheia de graça, que é da côr das tuas faces, que é do teu dengue,
que é da tua alma, feita de volupia ?
Estas vozes interrogativas soavam á passagem melancolica da tribu.
Pobre gente ! O mar largo, sereno e azul, dobando as suas ondas cai-

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Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade

reladas [=debruadas] de espumas, conteve a pequena grey. Quedaram


os homens estarrecidos, as moças persignaram-se procurando, com
dedos tremulos, no papo da camisa, as contas do rosario bento.
Diz a história de Xenophonte que os gregos, livres de Tissaphernes
e da gente perfida e bravia das rechans asiaticas, ao avistarem o mar
lustroso, lançaram por terra escudos e sarissas e, prostrando-se de joe-
lhos, com lagrimas pela face, saudaram movidamente o mar, a estrada
verde que os devia levar, em rumo facil, aos suaves vergeis da Patria
desejada.
Sim, mas os gregos eram de origem pelasgica, filhos do mar, e os
sertanejos... vinham das campinas ramilhetadas de montas [na versão
de 1927 corrigido para “moutas”, ou seja, “moitas”]; vinham das flo-
restas floridas, vinham dos valles avelludados, longe dos littoraes are-
nosos onde o mar se espreguiça. Acompanhando, com desconfiança,
o movimento das ondas, carregavam o cenho, communicando-se sus-
peitas, e as moças, em voz sumida, juntando as cabeças em colloquio,
diziam pasmadas: “Que mundo d’água, Virgem do Ceu!”
Depois do mar, a cidade formidavel, a cidade devoradora d’homens,
com as avenidas largas, margeadas de palacios colossaes, com o mo-
ver incessante de uma multidão apressada, com o reboliço vertiginoso
dos vehiculos, com a zoeira dos automoveis, com o troar dos pregões,
com todo esse confuso movimento que é a vida, desde o passo subtil,
despercebido de um mendigo andrajoso que se esgueira, ao longo dos
muros, resmungando lamurias, até a estropeada heroica de um regi-
mento com a bandeira desfraldada ao vento, as armas lampejando ao
sol e os clarins resoando em notas marciaes.
Pobre gente da tranquillidade ! E a tribu lá foi airadamente a seu des-
tino.
Ao entrar na Exposição, na avenida dos palacios brancos, o pasmo
subio de ponto.
Uma das moças, aduncando os dedos, puxou a companheira pelo cha-
le e segredou-lhe:
– Assumpta, Clodina: não parece qu’a gente tá vendo uma cidade en-
cantada como aquellas das história?
– É mêmo.
– Oia bem.
– É tal e qual. Parece qu’eu tou uvindo nhá Nica.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):265-294, jan./abr. 2022. 283


Ivo Korytowski

– Quem sabe, Clodina !...


– U quê ?
– Quem sabe se aquelle home que foi buscá a gente lá em riba não é
mandado...
– Cruz! Crédo! Mecê não trouxe reza ?
– Eu trouxe os meus breves e uma reliquia da Santa Cruz. Mas ago-
ra, Clodina, agora eu acho que elles não servem de nada, porque a
gente já sta no poder do diabo, e ocê bem sabe que alma que cahe nu
inferno não sahe mais, nem á mão de Deus Padre. E a outra, d’olhos
lacrimosos:
– Eu bem não quiria vi. Tanto dinhêro mode cantá e sambá era mêmo
p’ra gente discunfiá. E os homens, mudos, arrastando as alpercatas,
lá iam cabisbaixos, mazorros, refugindo, com timidez, á curiosidade
publica.
Era ao cahir da tarde, uma tarde elegiaca, violacea, quieta, sem o silvo
de uma cigarra. Os penhascos pareciam de lapis lazuli e os palacios,
ainda mais brancos sobre o fundo escuro das rochas portentosas, alve-
javam marmoreos.
Longe, nos estábulos, o gado tino mugia, nostalgico, pondo no silen-
cio enlevado a tristeza bucolica das varzeas, em contraste com o re-
quinte da cidade maravilhosa. A moça estremeceu á voz dos anima-
es, e logo, relembrando histórias, cochichou á companheira:
– Ocê ouvio, Clodina ? A mode qu’é boi berrando. Não vá sê gente
encantada! E os homens, alguns vaqueiros, á plangencia dos touros,
reviam as terras de longe e os marroás robustos sahindo dos banhados
com um filete de baba a escorrer ao focinho, parando, firmes nos jar-
retes e mugindo para o céo sereno, como num adeus aos sol.
Era a hora angelical e a tribu poz-se a rezar baixinho, á medida que a
noite, lá ao alto, começava a desfiar o seu rosario de estrellas.
Subito uma deflagração ! Collares de lampadas em fogo e a linha dos
edificios debruada a luzes. Foi um medo panico indizivel: “Vote !
Misericordia ! T’esconjuro ! Nossa Senhora !”
– Clodina, ocê tá vendo ? Eu não dixe ? É o inferno ! Oia cumo tudo
se accendeu d’uma vez e sem phosque [fósforo].
Estacaram deslumbrados. A Cidade Maravilhosa resplandecia como
nas lendas. No fundo, na concha do palacio das Industrias, a agua
escachoava colorindo-se à refracção das luzes. Surgiram monstros

284 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 183 (488):265-294, jan./abr. 2022.


Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade

flammineos acaçapados, no relvedo, esguicharam repuchos polychro-


micos e a misera gente tremia e encommendava-se aos santos, fazen-
do promessas arduas, arrependida de haver seguido o diabo seductor
que a fôra buscar no repouso feliz da sua terra para arrojal-a naquelle
inferno.
E, quando appareceu um automovel urrando, com os dois immensos
olhos accesos em clarões, a debandada foi tumultuosa e os gritos e os
esconjuros atroaram.
Foi em tal estado d’alma que os sertanejos ensaiaram no theatro os
cantos e as danças em que são exímios. Mas que podiam os miseros
cantar se lhes faltava a voz ? como dançariam elles se as pernas eram
como flexiveis juncos ? O fiasco foi absoluto e o emprezario, corrido,
recambiou-os na manhã seguinte, desfazendo no espirito do povo uma
formosa illusão poetica. E toda a gente está hoje convencida de que
cantos e danças de sertanejos são estopadas ridiculas.
Na Exposição seriam, mas lá no verde sertão, com a lua a luzir no
céo e as fogueiras flammejando, emquanto o rio murmura o seu can-
to dormente e a morena, arrepanhando a saia, labios entreabertos no
fervor do samba, sacode, boleia os quadris redondos, e as violas e os
machetes fremem e os violões soluçam e os adufes rebatem o rythmo
do sapateio, lá é que é ver como os corações se agitam, lá é que é sentir
o prestigio do canto, lá é que é comprehender como póde o almiscar
estonteante de um corpo de mulher faceira fazer de um caboclo paci-
fico um assassino cruel e desprestigiar um santo tirando-o da ascese
para o frenesi na eira.
Sertanejos é no sertão que são grandes. Pasmados e combalidos, que
haviam de fazer os pobresinhos ?
Veja-se o peixe espadanando nagua, siga-se o passaro no vôo.
Sertanejos, só vistos no sertão, na moldura agreste do seu rancho,
cantando e dansando, não como saltimbancos, para serem vistos, mas
para gozarem e amarem na liberdade da vida ingenua que lhes propor-
ciona a natureza simples. Demais a mais... com medo...
Almas não são batatas que se exhibam em exposições, a alma só se
expande livre e expontaneamente.

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Ivo Korytowski

ANEXO 2: Crônica “Os Sertanejos” de Coelho Neto.


Versão de 1927, em que o epíteto se aplica ao Rio de Janeiro, mas
àquela altura já havia se popularizado.

Chegaram em turma, contratados para cantar e dançar em um cinema.


Gente escolhida a dedo. Os homens, guapos, destorcidos, como por
lá dizem; as raparigas, lindas, de voz suave e d’uma graça languida
no bolear do corpo, no peneirar dos quadris, mas depois de um ensaio
canhestro o emprezario, esticando desanimadamente o beiço, a ante-
ver, sem duvida, o fiasco, devolveu-os ao sertão com os seus trajos
pittorescos e todo o instrumental languoroso com que se alegram, as
noites de luar.
Foi um desapontamento. Os pobresinhos, tão airosos, tão senhores de
si nos seus pagos, perderam de todo o garbo, desaprumaram-se logo
ao deixarem a estação de desembarque e os primeiros passos com que
pisaram o asphalto não seriam mais medrosos e incertos se fossem
dados em desfiladeiro de má fama, por entre cruzes, em noite negra
e aziaga de Agosto. Lividos, de olhos esgazeados, achegavam-se uns
aos outros com o terror presago com que se acarram as ovelhas em
marcha para o matadouro.
“Ó famanaz da serra, que é da tua arrogancia!? Trazes a viola á bando-
leira e caminhas de olhos baixos, tu, o mais atrevido cantador da serra,
dono de tantos corações, vencedor em tantos desafios. Eh! valentaço,
que é da tua empáfia ?
E tu, moça de collo tumido, musa morena das floralias campesinas; tu,
que tens sido a deusa da discordia, accendendo rancores com a luz dos
olhos negros e despertando sede de sangue com a cor da boca, mais
cheirosa do que uma fava de baunilha; moça faceira, porque vais tão
triste e com os quadris tão quietos, tu que tão bem os cirandas quando,
na ponta do pésinho arisco, saltas, ao som da viola, requebrada e riso-
nha no sapateado ou puxando fieira.
Moça cheia de graça, que é da cor das tuas faces ? que é do teu dengue
? que é da tua alma, toda volupia ?
O mar largo, sereno e azul, dobando as suas pequeninas ondas caireta-
das de espumas, conteve o bando. Os homens quedaram estarrecidos,
as moças persignaram-se procurando, com dedos tremulos, no papo
da camisa as contas do rosario bento.

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Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade

Diz a história de Xenophonte que os gregos, livres de Tissaphernes


e da gente perfida e bravia das rechans asiaticas, ao avistarem o mar
lustroso, lançaram por terra escudos e sarissas, e, prostrando-se de
joelhos, com lagrimas pelas faces, saudaram commovidamente o mar,
a estrada verde que os devia levar em rumo facil aos amenos vergéis
da Patria.
Sim, mas os gregos eram de origem pelasgica, filhos do mar, e os
sertanejos vinham das campinas ramilhetadas de moutas; vinham das
florestas floridas, dos valles avelludados, longe dos littoraes arenosos,
onde o mar se espreguiça. Acompanhando, com desconfiança, o movi-
mento das ondas, tornavam-se sombrios communicando-se suspeitas,
e as moças, em voz sumida, juntando as cabeças em colloquio, mur-
muravam pasmadas: “Que mundo d’água, Mãi do Ceu!”
Depois do mar a cidade formidavel, a cidade devoradora de homens,
com as avenidas largas, margeadas de palacios colossaes, com o mo-
ver incessante de uma multidão apressada, com a barafunda vertigi-
nosa dos automoveis, com o troar dos pregões, com todo esse confuso
movimento, que é a vida, desde o passo subtil, despercebido, de um
mendigo andrajoso, que se esgueira ao longo das paredes resmungan-
do lamurias, até a estropeada heroica de um regimento, com a ban-
deira desfraldada ao vento, as armas lampejando ao sol e os clarins
resoando clangores marciaes. Na Avenida o pasmo da pobre gente
subiu de ponto.
– Assumpta, Clódina... Não parece uma cidade encantada como as das
historias ?
– É mêmo.
– Oia bem.
– E tal e qual. Até parece qui tô uvindo Nhá Nica.
– Quem sabe, Clódina...!
– U quê ?
– Quem sabi s’aquelle home qui fui buscá a genti lá in riba não foi
mandado ?
– Cruz! Crédo! E mecê não trouxi reza ?
– Truxe, cumu não havéra di trazê ? Truxe meus breves e o meu Santo
Lenho. Mas agora, Clódina... agora eu acho qu’isso não serve di nada,
porque a gente já tá nu podê du diabo ! ocê sabe qui alma qui cahi nu

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Ivo Korytowski

inferno não sahi mais, nem á mão di Deus Padre. E a outra, de olhos
lacrimosos:
– Eu bem não quiria vim. Tanto dinhêro modi cantá i sambá era mêmo
p’ra genti discunfiá. E os homens mudos, arrastando as alpercatas,
lá iam cabisbaixos, mazorros, refugindo, com timidez, á curiosidade
publica. Um outro buzinou soturno.
– Ocê uviu, Clódina ? A modi qu’é boi berrando. Não vá sê genti
incantada! Era a hora angelical e o bando poz-se a rezar baixinho,
á medida que a noite começa a desengranzar o seu rosario de es-
trellas. Subito, uma deflagração. Collares de lampadas de fogo e a
linha dos edificios debruada a luzes. Foi um medo panico indizivel:
“Misericordia! Credo! Abrenuntio! P’ras areias gordas!”
– Sê tá vendo, Clódina ? Eu não dixe qu´é u inferno ? Oia cumu tudo
s’accendeu d’uma vez ! sem phosque. Estacaram deslumbrados.
A Cidade maravilhosa resplandecia como nas lendas. E a misera gen-
te tremia e encommendava-se a Deus, a Nossa Senhora e aos santos,
fazendo promessa, arrependida de haver seguido o demonio tentador
que a fôra buscar no repouso feliz da sua terra. E quando appareceu
um automovel urrando, com os dois immensos olhos accesos em cla-
rões, a debandada foi tumultuosa e gritos e esconjuros atroaram.
Foi em tal estado d’alma que os sertanejos ensaiaram no cinema os
cantos e as danças em que são exímios.
Mas que podiam os miseros cantar se lhes faltava a voz ? Como dan-
çariam elles se as pernas lhes tremiam como varas verdes? O fiasco foi
absoluto e o emprezario, corrido, recambiou-os na manhan seguinte,
desfazendo no espirito do povo uma illusão poetica. E toda a gente
está hoje convencida de que danças e cantos sertanejos são estopadas
ridiculas.
Serão no palco do cinema, mas lá no verde sertão, com a lúa grande
no ceu e as fogueiras flammejando, emquanto o rio murmúra o seu
canto dormente e a morena, arrepanhando a saia, labios entreabertos
no fervor do samba, sacode, boleia os quadris redondos, as violas e os
machetes repinicam, os violões plangem e os adufes rebatem o rythmo
do sapateio, lá é que é ver como os corações se agitam, lá é que é sentir
o prestigio do canto, lá é que é comprehender como póde o almiscar
estoteante de um corpo de mulher faceira fazer de um caboclo paci-
fico um assassino e desprestigiar um santo tirando-o da ascese para o
frenesi na eira.

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Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade

Sertanejos, só no sertão são grandes. Pasmados e combalidos que ha-


viam de fazer os pobresinhos ?
Sertanejos, só no sertão, na moldura silvestre do seu rancho, cantando
e dançando, não como saltimbancos para serem vistos de plateias, mas
para gosarem e amarem, na liberdade da vida ingenua que lhes propor-
ciona a natureza simples.
O peixe, quer-se espadanando n’água, o passaro no ar, em vôo, o ser-
tanejo no sertão.

ANEXO 3: Crônica “A CIDADE MARAVILHOSA”.


Publicada em A Notícia de 20-21/03/1913.

Por aquella magnificencia de tarde de domingo toda luminosa, vi-


nha bem a proposito um encontro com um poeta como Humberto de
Campos, nesse encantado passeio que é a Avenida Beiramar, diante
do oceano que rugia e convulsivamente jogava as suas ondas sobre
o cáes.
Certo, a pobre alma de um chronista não póde conservar-se insensivel
a um espectaculo como o que se desenrolava. A minha, que nunca vira
o mar assim, tinha como um fremito de apprehensão, vendo que as
ondas assaltavam o caes, brutalmente arrancavam as grandes pedras
da sua amurada e entravam pela cidade, numa invasão temerosa e es-
pumante, que fazia fugirem os seus habitantes. Mas o poeta sentia isso
de outro modo, não já com apprenhensão, mas com a emoção dos que
são capazes de escrever a epopéa dos elementos desencadeados. E foi
partilhando dessa emoção que o segui praia adiante, contemplando as
ondas que formavam pyramides d’agua, colossaes columnas que logo
se desfaziam, alagando e enlameando a Avenida e destruindo o seu
formosíssimo jardim.
Já um longo trecho do caes estava em terra, com as suas enormes pe-
dras dispersas pelo asphalto que uma agua barrenta cobria, como si o
mar tivesse tragado o lindo passeio. Do lado das artísticas edificações,
o aspecto era de desolação : os moradores, ameaçados de ficar isola-
dos do resto da cidade, haviam emigrado para outros postos. Muitos
ainda fugiam em qualquer vehiculo que apparecia, e todo aquelle tra-
balho de salvação inspirava respeito, suggeria a idéa da destruição de
uma cidade, do final de uma civilização, desta cidade que é nossa,
desta civilização para a qual tão carinhosamente trabalhamos.

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Ivo Korytowski

Era terrível, mas era bello, e então, como si realmente estivessemos a


assistir a uma derrocada verdadeira e final, entrámos a recordar as bel-
lezas desta cidade que bem se póde considerar uma rainha, na America
democratica e republicana. O passeio já nos levára até Botafogo, onde
o mar era menos terrível, mas onde tambem a sua furia deixára ruinas.
Ahi, na enseada revolta, o horizonte é mais restricto, mas nem por
isso é menos admiravel o panorama. A larga garganta entre São João
e o morro da Viuva abre-se ordinariamente para o remanso das aguas;
ha toda uma tranquillidade doce e feliz nas ondas que apenas formam
ligeiras crispações e se vêm quebrar, em ligeiro sussurro, na muralha
dos cáes. E o azul dos céos, como as scintillações das estrellas, se re-
flecte nellas com a mesma doçura, a mesma tranquillidade. Em frente,
o Pão de Assucar e a Urca são como dois immensos contrafortes, duas
gigantescas defesas ás iras do Atlantico, que lá fóra alteia impotente-
mente as suas serras de agua.
Por sobre essas duas montanhas, o arrojo do homem, arrojo de brazi-
leiro, construiu agora um caminho, uma estrada como ellas se devem
comprehender no seculo da aviação, um passeio aereo feito por dous
cabos, em duas secções, como a graduar as impressões da viagem,
parando por “étapes” no ar!
O bondinho subia, descia, num suave vaivem, pequenino de longe,
parecendo apenas uma leve ave sem azas, que, entretanto, habituada
ao espaço, ainda voava. E o poeta emocionante do livro de versos a
que denominou Poeira, a poeira luminosa das suas rimas scintillantes,
disse extasiado :
– O Rio é uma cidade maravilhosa!...
Cidade maravilhosa ! É a exclamação de todos que nos visitam. Foi
sempre a de quantos, nos tempos em que a cidade era archaica e apa-
thica, lhe admiravam as bellezas naturaes. Humberto de Campos, vin-
do do Norte sem nunca ter visto o Rio, já o encontrou transformado
e justamente era uma de suas mais ousadas innovações que lhe fazia
vibrar a alma do enthusiasmo e de ardente admiração.
Com effeito, o homem, nesta terra que hoje tem uma actividade febril,
viveu sempre desamando a sua cidade. Para o seu orgulho bastava
que o estrangeiro tivesse uma palavra de pasmo pela sua maravilhosa
natureza, bellezas da vegetação tropical, ou caprichosos accidentes
do solo. Os proprios poetas, incontaveis, melífluos e contemplativos,
contentavam-se com esse pantheismo indolente, de cantilenas, que ia

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Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade

do “Minha terra tem palmeiras” até á apotheose da “Velha mangueira”


e das frondes eternamente verdejantes, em que as cigarras annunciam
a gloria das alvoradas e os dias de offuscante luz. Ao olhar do estran-
geiro, á sua esthesia, a cidade offerecia apenas um amontoado im-
menso de construcções de uma architectonica rotineira e uma serie de
vielas sem ar e sem luz. A natureza, só ella enaltecia a terra, fazendo
que o estrangeiro levasse a memoria de um recanto da America em
que ella mais se esmerou em prodigios.
Mas a civilização não podia ser mais detida pela nossa inercia. Ela se
nos impoz pela vontade de um punhado de homens, que felizmente a
Republica soube chamar á direcção dos seus destinos. E as maravilhas
humanas começaram a surgir. A velha cidade ruiu sob o alvião demo-
lidor, e as avenidas abriram espaço á luz e ao ar, o ar que nos faltava,
a luz que pairava sobre nós num céo soberbo, mas apenas aquecia os
velhos telhados, sem penetrar nas habitações, angustiadas na estreite-
za das ruas e das proprias praças. Surgira o genio das iniciativas, e a
velha rotina fugiu espavorida, talvez para suicidar-se nalgum desses
recantos tão da sua feição e que ainda existem.
A cidade avançou sobre o mar, fez recuar as ondas e, sobre as areias
que ellas beijavam, estendeu o caes e construiu uma avenida, que é
toda ella um immenso vergel cheio de luz e de frescura. Das velhas
praias, dos velhos areaes sobre os quaes deitavam os fundos de tanta
residencia senhorial, não resta hoje sinão a lembrança dos que ainda
as conheceram. A linha das construcções é toda nova e os palacios, as
habitações mais pequeninas, têm todas uns toques de arte e bom gos-
to, ha nellas como que um pouco da faceirice brazileira, talvez a sua
própria vaidade alegre e triumphal.
Para além do centro commercial era necessario que se désse na nossa
transformação um amplo logar ao trabalho, uma avenida ao commer-
cio. Elles a têm, grandiosa e monumental nesse cáes do porto, que
é uma obra digna da audacia dos povos mais audases. Mas não é só
isso : a cidade realmente encheu-se de jardins. A natureza agora não
está fóra das suas portas, mas nas suas mesmas praças. Ha avenidas
que são verdadeiros jardins, e o negociante a perlustra, cogitando nas
suas transacções, e o poeta a percorre, pensando em compor hymnos á
sua belleza. O homem, antes dessa transformação, como se havia es-
quecido de si, deixando-se morrer de epidemias numa cidade infecta.
Reagindo contra a antiga apathia, “lembrando-se finalmente de si”,

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Ivo Korytowski

elle não esqueceu a natureza, e trouxe-a para as suas praças, para as


suas avenidas, para a sua propria casa.
Mas não sejamos injustos com as gerações que nos precederam. A uma
dellas pertenceu o maior transformador da cidade, o prefeito Passos. A
elle se deu um dos mais bellos passeios que a cidade desfructa ha mais
de trinta annos – essa arrojada escalada ao Corcovado. O Corcovado
é uma maravilha natural que reclamava essa maravilha da nossa enge-
nharia... Depois o passeio ao Sylvestre, por sobre a montanha, sobre
despenhadeiros, ao pé dos quaes a cidade se estende a perder de vista.
A Tijuca foi varada e escalada por uma linha electrica de bondes, e
dentro de muito pouco tempo pelas suas furnas, pelos seus grotões e
pelos seus comoros, sob os bosques que saneam o homem e o limpam
do pó da cidade, as ferrovias communicarão o immenso bairro flores-
tal com o Jardim Botanico e a Gavea, transformando tudo ao mesmo
tempo numa cidade e num jardim. E quem sabe si, como me lembrava
Humberto de Campos, esta communicação por um requinte de arrojo
e de orgulho industrial, não se fará por cabos aereos como esse que
hoje liga a Praia Vermelha á Urca e ao Pão de Assucar ? O Corcovado
já tem hoje o electrico que crava as suas garras de aço no dorso arque-
ado e sinuoso do gigante. A sentinella da barra tem tambem esse liame
em que se baloiça o homem como num gigantesco balanço.
A cidade progride e avança ; toma o mar e toma as montanhas, e esten-
de-se para as costas, varando as rochas. Ainda não temos os caminhos
suberraneos, mas para lá caminhamos acceleradamente. E quando a
cidade tiver tudo isso, quando ella não construir os seus palacios ape-
nas na planicie, mas os levar para as montanhas, quando ella habitar
tambem os [sic] ilhas encantadoras de sua refulgente bahia e o mar se
encher de elegantes yachts, como hoje as avenidas se enchem de auto-
moveis, então ella poderá desafiar as que mais bellas o forem. Ella já é
a cidade maravilhosa. Mais enthusiasmo, mais ardente culto pela sua
propria formosura, e será a cidade incomparavel, com os requintes que
a civilização ascendente há de trazer-lhe e com os primores da vida
deliciosa, vivida entre os encantos da sua natureza, a magnificencia
das suas artes e a opulencia de sua riqueza material.
Mas que pena que tudo isso não fosse dito por um poeta como
Humberto Campos !... A prosa de um chronista certamente fica distan-
ciada do hymno que a cidade merece de um poeta, como o de Poeira.

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Origem do epíteto “cidade maravilhosa”
para designar o Rio de Janeiro: lenda e verdade

ANEXO 4: Poema “Cidade Maravilhosa” de Olegário Mariano.

Cidade maravilhosa!
Na luz do luar, fluídica e fina,
Lembra excêntrica bailarina,
Corpo de náiade ou sereia,
Desfolhando-se em pétalas de rosa,
Com os pés nus sobre a areia.

Cidade do gozo e do vício!


Flor de vinte anos, rosa do desejo!
Corpo vibrando para o sacrifício,
Seios à espera do primeiro beijo.

Cidade do Amor e da Loucura,


Das estrelas errantes... Para vê-las,
Vibra no olhar de cada criatura
Uma ânsia indefinida
Pelo brilho longínquo das estrelas
Que é, como tudo, efêmero na vida.

Cidade do Êxtase e da Melancolia,


De dias tristes e de noites quietas;
Sombra desencantada da alegria
Dos que vivem de lágrimas, os poetas.

Cidade de árvores e sinos.


De crianças e jardins. Flor das Cidades;
Berço de ouro de todos os Destinos,
Fonte eterna de todas as Saudades.

Texto apresentado em janeiro de 2022. Aprovado para publicação


em junho de 2022.

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