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Direito Económico - Constituição Económica-1

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A Constituição Económica Angolana

Dorivaldo Hermes Cardoso António1

CAPÍTULO I

1. Conceito
A Constituição Económica (CE) traduz-se no sistema de princípios e normas constitucionais
relativos à Economia. Corresponde à parte económica da Constituição e contém o essencial
ordenamento da actividade económica prosseguida pelos indivíduos, pelas pessoas colectivas
ou pelo Estado.
A Constituição Económica é composta por: a) direitos, b) deveres, c) liberdades e d) respon-
sabilidades destes agentes no exercício da actividade económica, pelas normas e princípios
relativos à organização económica e às competências económicas dos poderes públicos.
Estes elementos conformam o ordenamento jurídico-económico fundamental. Esta con-
formação procede-se através de a) normas estatutárias ou de garantia - que são aquelas
que garantem as características básicas de um sistema que se visa proteger (ex. normas que
protegem o sector privado) - e de b) normas directivas ou programáticas, que são as que
apontam as principais linhas de evolução do sistema económico (normas que incumbem o
Estado de promover o bem-estar económico e social)2. Ilustrando:
a) normas estatutárias ou de garantia

▪ Art. 14.º - Propriedade Privada e Livre Iniciativa Económica;


▪ Art. 37.º - Direito à Propriedade Privada;
▪ Art. 38.º - Direito à Livre Iniciativa Económica;
▪ Art. 89.º - Princípios Fundamentais da Organização Económica;
▪ Art. 92.º - Sectores Económicos;
▪ Art. 93.º - Reservas Públicas.

b) normas directivas ou programáticas

▪ Art. 21.º, al. c), d), m), p) - Tarefas Fundamentais do Estado;


▪ Art. 91.º - Planeamento

A ideia da CE surge com a Constituição Alemã de 1919, a Constituição de Weimar que, ao


lado da Constituição Social do México, de 1917 é uma das primeiras a se preocupar com

1
Estudante do 4.º ano da Faculdade de Direito da UAN, 2023.
2
Vide. António dos Santos, Maria E. Gonçalves e Maria M. L. Marques, Direito Económico, 7ª Ed., 2014,
pág. 37.
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as questões económicas. Ela foi a primeira constituição a introduzir uma secção especial-
mente dedicada ao enquadramento da vida económica. Esta constituição consagrou prin-
cípios de auto-regulação (típicos do liberalismo) mas não só, também consagrou princípios
de hétero-regulação visando o seu equilíbrio.
O seu surgimento é comumente confundido com o surgimento do Direito Económico. Para
nós, o que existe é uma mera relação de coincidência cronológica entre o surgimento das
duas realidades, sendo que a Constituição Económica representa, no máximo, um reforço
da afirmação do Direito Económico, que surge também no séc. XX, em 1919 (no pós-1ª
Guerra Mundial), como um ramo específico do Direito.
À propósito da Origem e Desenvolvimento do Direito Económico, dissemos que ele é, na
esteira da Professora Helena Prata, um direito de intervenção do Estado na Economia, sendo
que esta intervenção se realizou, historicamente, por via de certas medidas – v. g., o controle
de preços e de câmbios – medidas que sempre encontraram precedente ou referencial histó-
rico em medidas reiteradas ou usos da actividade económica praticados pelos agentes econó-
micos. A Constituição Económica constitui uma das vias pelas quais muitas destas medi-
das de cariz económico foram, pela primeira vez, compiladas ou formalizadas.3
A Constituição Económica é responsável pela escolha de um modelo de organização da
vida económica. É por via da Constituição Económica que se define o sistema económico
vigente em determinado país, aliás, a CE é um reflexo das ideologias político-económicas de
determinado Estado.

2. Constituição Económica confunde-se com Ordem Económica?


A Ordem Económica configura-se no complexo normativo de natureza jurídica composto
por todas as normas, princípios e instituições que têm por objecto as relações económicas.
Logo, conclui-se que esta é mais ampla do que a Constituição Económica, sendo esta última
correspondente apenas ao sistema de princípios e regras fundamentais ou constitucionais
da Ordem Económica4, sendo, portanto, a pedra angular daquela.
As primeiras CE marcam a passagem do Constitucionalismo Clássico (época do Libera-
lismo Político da Economia, em que as constituições ignoravam as questões de cariz econó-
mico-social) para o Constitucionalismo Moderno, e elas incorporavam a estrutura do Estado
Intervencionista, ao invés do Estado Liberal.5
Uma relativa ausência de normas económicas nas constituições liberais do séc. XIX não
significou a inexistência de uma constituição económica. Porque mesmo nestas

3
“Situações fácticas já ocorriam em que eram aplicadas, não sendo, no entanto, em sua grande parte, legisla-
das. As suas primeiras formalizações, de carácter mais amplo do que um mero acordo inter partis, foram as
Constituições Sociais do México (1917) e a Constituição Alemã também conhecida como Constituição de
Weimar (1919).”, Helena Prata, Direito Económico - Lições, 2020, pág. 17
4
A ordem económica chega mesmo a abranger certas normas e princípios de Direito Civil (propriedade, con-
tratos), de Direito Comercial e das Empresas, de Direito Penal, etc..
5
Vide Helena Prata, Lições de Direito Económico, 2010, ed. Casa das Ideias, pág. 47.
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constituições, encontramos normas com incidência directa ou indirecta na ordem eco-


nómica. Por outro lado, ignorar certos aspectos da vida económica tem relevância e sig-
nificado jus-económico: reflecte um Estado que se demite de exercer uma acção correctiva
na Economia, aceitando e garantindo como princípios da regulação económica quase exclu-
sivos a propriedade privada, a livre concorrência e a liberdade contratual.6
“Uma constituição dirigente diminui o papel autónomo do legislador vinculando-o a solu-
ções constitucionais pré-definidas. Uma constituição económica de enquadramento poten-
cia o papel do legislador, deixando um importante espaço para a conformação da ordem eco-
nómica em função dos resultados da luta política democrática.”7

3. “Os Sentidos” da Constituição Económica


Vale frisar que, aqui, “sentidos da CE” não se confunde com o Sentido da Constituição Eco-
nómica8: este último refere-se ao sistema económico efectivamente consagrado pela
Constituição Económica de um determinado Estado. Os sentidos da CE referem-se aos
pontos de vista a partir dos quais se pode abordar a Constituição Económica, e essa aborda-
gem é feita nos mesmos moldes do Direito Constitucional e Teoria da Constituição, só que
aplicados ao Direito Económico.
Assim, teremos dois sentidos da Constituição Económica:
a) Constituição Económica em sentido formal – conjunto de disposições constitu-
cionais de cariz jurídico-económico constantes do texto constitucional.

b) Constituição Económica em sentido material – baseia-se no critério da “funda-


mentalidade da norma”. São os dispositivos de cariz jurídico-económico que,
apesar de, muitas vezes, não constarem do texto constitucional, são revestidos de
dignidade constitucional. Em suma, são todos os dispositivos jurídico-económi-
cos materialmente constitucionais.

4. Relações entre a Constituição Económica e a Constituição Política


A Constituição Política deve aqui ser entendida como sendo a parte não-económica da Cons-
tituição. As relações que ela mantém coim a CE são frisadas nos pontos de vista de alguns
doutrinadores nos seguintes termos9:

a) Sousa Franco diz que a Constituição Económica (entendida como o regime nor-
mativo da ordem fundamental da economia) se emancipou do pensamento polí-
tico-constitucional, integrando materialmente o Direito Económico.

6
Vide António dos Santos, Maria Gonçalves e Maria Marques, Direito Económico, 7ª Ed., 2014, pág. 39
7
Idem, pág. 38.
8
Vide ponto 6 deste material.
9
Sobre isto, também Helena Prata, Lições de Direito Económico, 2010, ed. Casa das Ideias, pág. 49.

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b) Jorge Miranda diz que a Constituição Económica se integra perfeitamente na


Constituição Política e entre as duas não há nenhuma contraposição: ambas cor-
respondem a uma unidade jurídica.

c) Vital Moreira diz que a Constituição Económica e a Constituição Política são


colocadas no mesmo plano da estrutura política: têm a mesma natureza.

Entre estas posições doutrinais, perfilha-se à primeira: a Constituição Económica se afirmou


da realidade jurídico-económica, havendo áreas de interferência ou de cruzamento mate-
rial entre elas, isto é, áreas em que ambas se pronunciam, quais sejam:
a) Definição dos poderes e fins da actividade económica do Estado;
b) Atribuição de garantias económicas aos agentes económicos;
c) A definição dos fins supremos da comunidade.

5. Âmbito da Constituição Económica


Com o âmbito da CE se quer saber o seguinte: Que matérias de cunho económico (princí-
pios e institutos jus-económicos, etc.) vão constar da Constituição Política? Esta questão é
relativa à localização da Constituição Económica (normas estatutárias e programáticas) den-
tro da Constituição Política.
Os doutrinadores também divergem sobre os critérios de determinação do âmbito da Consti-
tuição, nos seguintes termos:
a) Sousa Franco diz que o seu âmbito deverá ser determinado ou delimitado com
recurso à critérios exclusivamente económicos, em função do sistema económico
e centrados em factores económicos – factores exclusivamente económicos vão
determinar o seu âmbito.

b) Simões Patrício diz que o âmbito da CE deverá ser determinado por critérios
exclusivamente jurídicos. Ao Direito cabe qualificar como constitucional o que
para si for “fundamental” – factores exclusivamente jurídicos vão determinar o
seu âmbito.

c) Jorge Miranda infere uma abordagem sintética, dialética ou eclética (como pre-
ferirmos), o âmbito da CE surge do “namoro” entre a norma Constitucional e
a Realidade Económica - Os critérios para determinar o seu âmbito serão jurí-
dicos e económicos.

Aqui, conforme uma das aulas da professora Helena Prata, perfilha-se à última posição, aliás,
o estudo do Direito Económico envolve, inicialmente, a preocupação com a compreensão

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do que seja atividade económica, principalmente, o seu modo de acontecer, para que as
normas jurídicas não interfiram nas regras naturais da ciência económica.

6. O Sentido da Constituição Económica


Neste ponto, se quer saber o seguinte: Para que sentido aponta a Constituição Económica
em termos de sistema ou modelo de organização económica?
Lá atrás, dissemos que a Constituição Económica é responsável pela escolha de um modelo
de organização da vida económica. É por via da Constituição Económica que se define o
sistema económico vigente em determinado país, aliás, a CE é um reflexo das ideologias
político-económicas de determinado Estado – a isto se chama o sentido da Constituição
Económica.10
Aqui, vale realçar uma questão: O sistema económico efectivamente vigente em determinado
país depreende-se exclusivamente da Constituição Económica?
Na esteira de uma das lições da professora Helena Prata, aqui deve-se recordar o pensamento
do professor Jorge Miranda já atrás referido, segundo o qual o âmbito da CE surge do “na-
moro” entre a norma Constitucional e a Realidade Económica.11 Isto significa que, para
determinar o sistema económico vigente em determinado Estado, muito mais do que apenas
ler o sistema que a Constituição Económica consagra, deve-se fazer uma leitura minuciosa
e sistemática da própria CE e da Realidade Económica.
Quais são modelos de organização económica possíveis? Isto é, quais são os sistemas econó-
micos que a Constituição Económica pode consagrar?
Poderão ser os seguintes:
a) Sistema de Economia Centralmente Planificada
Este funciona com base em um Plano (Económico) Geral e Obrigatório que deverá ser se-
guido por todos os agentes económicos. A entidade central define as necessidades prioritá-
rias dos sujeitos, fixa níveis e limites de produção e opera a distribuição de bens produ-
zidos. Ele é norteado pelos seguintes princípios:
▪ Propriedade Pública Universal;
▪ Intervenção do Estado;
▪ Planificação.

b) Sistema de Economia de Mercado

10
Refere-se ao sistema económico efectivamente consagrado pela Constituição Económica de um determi-
nado Estado.
11
Vide o ponto 5 deste material.
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Neste não há uma entidade central com as funções do sistema anterior: o mercado dita as
suas próprias regras.12 O consumo é definido por cada sujeito, a produção é fixada pelos
produtores e os bens circulam livremente pelo mercado, em função do fluxo das activi-
dades económicas. Nela vigora a liberdade de apropriação dos bens e meios de produção.
Ele é norteado pelos seguintes princípios:
▪ Propriedade Privada;
▪ Livre Iniciativa Económica;
▪ Aqueles dois princípios combinados originam o princípio da Livre Concor-
rência.
Na prática, estes dois modelos de organização económica são modelos abstractos de refe-
rência teórica13, o que significa que, na prática, eles sofrem adaptações diversas por razões
histórico-sociais, a fim de melhor responderem às necessidades histórico-geográfico-políti-
cas de cada Estado, surgindo por isso sistemas concretos. O que quer dizer que, hoje em dia,
não existem sistemas puros.
Nas palavras da professora Helena Prata (2020):
Assim, é possível combinar elementos da direcção central e da economia livre, de modo a
obter elementos que conduzam a outros sistemas. Os sistemas concretos que assim se pode-
riam obter seriam inúmeros, correspondendo a múltiplas combinações e adaptações possí-
veis.14

Do acima aludido, resulta que a Constituição Económica poderá consagrar um destes siste-
mas:
a) Modelo de Mercado*15
b) Economia Centralizada*

c) Economia Mista
Enquadra uma Economia de Mercado e uma maior Intervenção do Estado num ambiente
harmónico e possível, isto é, efectivamente funcional. Aqui, a Economia Livre e a Direcção
Estadual surgem lado a lado, sem um anular o outro. Há uma coexistência pacífica entre
ambos.
d) Sistema de Superação da Economia Livre
Este sistema aponta para objectivos socialistas ou socializantes com uma planificação cen-
tral mais forte. Aqui, a coexistência pacífica entre os elementos dos dois sistemas (de

12
Recorde-se da mão invisível de Adam Smith.
13
Na expressão da professora Helena Prata, Lições de Direito Económico, 2010, ed. Casa das Ideias, pág. 51.
14
Helena Prata, Op. Cit., pág. 26.
15
* Devem estes sistemas ser entendidos “com um grão de sal” (de forma cuidadosa) no sentido de não se re-
ferirem aos sistemas puros (e por isso, abstractos) mas, sim, aos sistemas concretos, por razões de adaptação
aos cotextos em que são aplicados).
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mercado e centralizado) não é possível, sendo que ele tende a eliminar os elementos de
mercado que possui.
e) Neutralidade da Constituição
As questões de Direito Económico não têm assento constitucional - a constituição nada (ou
pouco) diria acerca da ordenação jurídico-económica (Constituição Aberta). Porém (como
frisamos atrás) a Constituição não poderá ser totalmente neutra, antes apontando para
certos modelos jurídico-económicos mais ou menos puros em termos valorativos. Vale
uma nota dada pela professora Prata em uma das lições:
Se uma certa constituição económica não consagra expressamente um sistema económico,
este pode ser depreendido (ou integrado com recurso) dos princípios constitucionais con-
sagrados.16
Discutidas as questões teóricas atinentes à Constituição Económica, faz-se mister o enqua-
dramento das Constituições Económicas que já vigoraram no ordenamento económico cons-
titucional angolano.

CAPÍTULO II

1. A Constituição Económica na história das Constituições Angolanas

Neste particular, iremos caracterizar os sistemas económicos consagrados pelas seguintes


constituições:

a) A Constituição de 197517
A melhor forma de analisarmos o sistema económico que certa constituição consagra é por
intermédio do estudo dos princípios que esta constituição consagra, que possuem impacto
directo na ordem económica. Assim, os princípios em que se sedimenta a Constituição An-
golana de 1975 são os seguintes:
▪ Princípio da Propriedade Pública (art.º 11.º);
▪ Princípio da Intervenção (art.º 2.º, 8.º e 9.º);
▪ Princípio da Planificação (art.º 2.º, 8.º);
▪ Princípio da Propriedade Privada (art.º 10.º);
▪ Princípio da Livre Iniciativa Privada (art.º 10.º)
▪ Princípio da Coexistência de Sectores (9.º, 10.º, 11.º).

16
Vide Helena Prata, Op. Cit., pág. 48.
17
Sobre este tema, vide Idem, pág. 55.
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Esta constituição caracterizou-se por conjugar os princípios do mercado, da planificação da


economia e o da coexistência de sectores de produção.
Porém, neste sistema constitucional, o Estado exercia uma intervenção directa na actividade
económica, como o principal actor na produção de bens e serviços, estando, por isso, o
Estado no centro da actividade económica. Por outro lado, neste sistema tende-se para uma
eliminação progressiva dos elementos de mercado ora vigentes. Como?
À medida em que o art. 10.º da constituição em apreço consagra e respeita a propriedade e
iniciativa privadas de forma condicionada e limitada: ambas recebiam protecção à medida
em que fossem úteis à economia do país e aos interesses do povo angolano.
Além destas transformações, a constituição tinha também um projecto de transição para o
socialismo, mediante a apropriação colectiva dos principais meios de produção.
Embora o sector privado estivesse constitucionalmente protegido, não desempenhava o papel
predominante na ordem económica constitucional, atribuindo-se particular importância
ao sector público e cooperativo.
Da análise destes factores conjugados, concluímos que o sistema económico ora consagrado
pela Constituição de 75 era um Sistema de Superação da Economia Livre.18

b) A Constituição de 1978
Quais os princípios consagrados por esta constituição?
▪ Princípio da Propriedade Pública Universal19 (art.º 9.º, 11.º, 2.º);
▪ Princípio da Intervenção do Estado (directa e indirecta – art.º 8.º, 2.º);
▪ Princípio do Dirigismo Económico (art.º 2.º, al. a) do 41);
▪ Princípio da Propriedade Privada e Livre Iniciativa Económica (art.º 10.º)
▪ Princípio da Planificação (al. g) do art.º 41.º)
A parte económica da constituição sofreu consideráveis alterações no período de 1978. Uma
destas alterações foi a recepção na lei da opção pela via socialista de desenvolvimento de-
cidida pelo 1.º Congresso do MPLA – Partido do Trabalho, além deste último se ter afirmado
nesta época como um partido marxista-leninista (vide art.º 2.º).
Aquele Princípio da Coexistência de Sectores, consagrado pela Constituição de 75, passou
a ter carácter residual e excepcional, adaptado ao regime então vigente.
Tendo se adoptado princípios como o da propriedade socialista e propriedade estatal, con-
jugado com os princípios acima aludidos, conclui-se que o sistema económico consagrado
pela CE de 78 é o da Economia Centralmente Planificada, que veio realizar efectivamente

18
Vide a alínea d) da pág. 6 deste material.
19
Refere-se a uma propriedade colectiva dos meios de produção. Basicamente, legitima o Estado a ter a totali-
dade dos meios de produção.
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a transição iniciada pela CE de 75, que estabelecia um programa de transição para o socia-
lismo ao consagrar um sistema de superação da economia livre.
A consagração do sistema centralmente planificado por esta constituição desembocou em
desastrosas consequências ao nível da vida económica nacional, que vão desde recessões
económicas até o pacote legislativo S.E.F, tema desenvolvido na questão 2 da pág. 13 deste
material.

c) A Constituição de 1992
A revisão operada em 1992 veio permitir alterações significantes na ordem económica.
1.º - Completou a descarga ideológica socializante iniciada pelo pacote legislativo S.E.F,
eliminou o princípio das nacionalizações como princípio ordenador da economia, diminuiu
o papel do planeamento e suprimiu o objectivo do desenvolvimento da propriedade social.
2.º - Foram retirados dos princípios fundamentais as referências à construção de uma
sociedade socialista, mantendo-se tão só a referência à democracia económica e a aprofun-
damento da democracia participativa, como objectivos da organização política e democrá-
tica.
3.º - A revisão operada em 1992 não só conferiu maior flexibilidade à constituição econó-
mica, ao alagar as possibilidades de combinação de formas de apropriação e de regulação,
como, sobretudo, reforçou a iniciativa privada, ao aumentar o seu espaço de actuação, pos-
sibilitando reprivatizações, aumentando o papel do mercado e reduzindo o papel do
plano.
4.º - Genericamente, pode dizer-se que a Constituição de 92 consagra um modelo de eco-
nomia mista, estabelecendo princípios básicos de uma economia de mercado, impondo ou
permitindo a regulação pública de alguns aspectos do seu funcionamento e salvaguardando
os direitos dos trabalhadores e dos consumidores, enquanto limites ao poder económico
público e privado.
Que princípios orientaram a rácio da CE de 1992?20
➢ P. da Propriedade Privada;
➢ P. da Livre Iniciativa Económica;
➢ P. da Livre Concorrência;
➢ P. da Propriedade Pública;
➢ P. da Planificação;
➢ P. da Intervenção;
➢ Reconhecimento dos Direitos do Trabalhador, do Consumidor e Defesa do
Ambiente.

20
Cfr. o art.º 7.º ao 13º da referida Constituição.
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Vale dizer que os princípios da planificação e da intervenção, nesta seara, não aparecem
com o mesmo sentido que nas CEs de 75 e 78, sendo que a planificação aqui terá um carácter
democrático: é muitas vezes executado pela via contratual. É obrigatório para os entes públi-
cos e facultativo para os particulares, e ainda, aprovado pelo Parlamento. E a intervenção
era essencialmente uma intervenção indirecta (reguladora) e concertada.
A mesma consagra formas mais discricionárias de intervenção pública na esfera privada (ex.,
expropriação por utilidade pública, nacionalizações e confiscos – art.º 12 e 13.º).

d) A Constituição de 2010
Não difere muito do modelo constitucional adoptado em 1992, apresentando algumas parti-
cularidades:
1.º - Consagra o direito à propriedade privada e iniciativa privada como um dos Princípios
Fundamentais da República de Angola (art. 14.º). O que possui importantes consequências
práticas.
2.º - Atribui importantes responsabilidades ao Estado (art. 21.º, al.), d), e), i), e m) - possíveis
de concretizar por via de uma intervenção indirecta.
3.º - Consagra os princípios de intervenção e de mercado (89.º, al. a), b), c) e d)), princípio
do planeamento (91.º) e as áreas de reserva económica do Estado (93.º).
4.º - Consagra um leque de direitos potencialmente conflituantes com as actuações económi-
cas pública e privada, mas que são importantes para a determinação do sistema económico
adaptado (76.º, direito dos trabalhadores, 78.º, direito dos consumidores, 39.º, protecção
ao ambiente).
A CE de 2010 traz o desenvolvimento de um estado intervencionista voltado para o bem-
estar social, na medida em que reforça a ideia de que a participação estatal é imprescindível
sob muitos aspectos, em especial no campo social. O Estado tem um importante papel,
indispensável no alcance de certos objectivos previstos no art.º 1.º da CE de 2010. A CE de
2010 sofreu forte influência socialista, e isto é visível na posição do estado como figura cen-
tral no alcance dos principais objectivos macroeconómicos.
Ela procura ainda combinar a actuação do estado, seja como agente regulador, seja
como agente económico que desenvolve actividades estratégicas para a defesa nacional
ou ao desenvolvimento do país.
Ao declarar os princípios gerais da actividade económica, a CE de 2010 estrutura um sistema
económico descentralizado ao declarar que a ordem económica se funda na valorização do
trabalho e na livre iniciativa, consagrando princípios da propriedade privada (ainda que do
ponto de vista da sua função social) e da livre concorrência (89.º).
O Estado tem o poder de planificar a actividade económica global, sendo a planificação me-
ramente indicativa para o sector privado, porém determinante para o sector público (91.º).
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Ao abrigo da sua actividade regulatória, o estado tem competência para reprimir o abuso do
poder económico que vise a dominação do mercado e a eliminação da concorrência ou au-
mento arbitrário dos lucros – Direito Antitrust ou Concorrencial.
O Estado como distribuidor de prestações sociais surge para suprir as incapacidades do
mercado de por si só conduzir a uma redistribuição justa dos bens. Passa-se hoje até
mesmo a exigir a intervenção do estado como agente necessário ao funcionamento e equilí-
brio do sistema Economico, chegando-se a um modelo económico misto passou a ser adop-
tado para “superar os problemas gerados pelos extremos do liberalismo sem planificação
e os inconvenientes de uma planificação sem liberdade.”
Garante-se a coexistência de 3 tipos de propriedade e 3 sectores de organização económica
– sector privado, público e cooperativo. A CE visa gerar uma espécie de policentrismo eco-
nómico (divisão de poderes ao nível da CE) – Tratando-se de uma garantia institucional de
cada um dos 3 sectores, impedindo a eliminação de qualquer um deles pelo outro.
Nenhuma das 3 formas de iniciativa preclude ou prejudica as outras. São concorrenciais nas
áreas em que coabitam, não podendo o Estado servir-se das suas prerrogativas públicas
parar criar vantagens para suas empresas.

QUESTÕES AD-HOC

1. Quais foram os principais inconvenientes dos processos de nacionalização em An-


gola?21
Tudo começou um ano após a independência: Lei 3/76 (Lei das Nacionalizações e
Confiscos), e consequente abertura aos processos de nacionalização em razão dos princípios
ideológicos em que a Constituição da época (CE de 75) se baseava (tendo consagrado o sis-
tema económico de superação da economia livre).
O Estado foi alargando o seu sector empresarial à custa dos privados pelas mais di-
versas razões: necessidade de controlo das empresas de interesse social decisivo; corre-
ção dos monopólios por parte dos privados e uma submissão do poder econômico ao
poder político; sanções políticas aplicadas à donos de empresas, etc. O Estado nacionalizava,
muito por razões ideológicas, até porque se estava a caminhar para uma futura económica
centralizada, a qual veio a se concretizar com a Constituição de 1978.
As nacionalizações tiveram como objectivo por um lado, garantir o funcionamento
das inúmeras unidades industriais «abandonadas» por outro, alcançar com sucesso os
objectivos de uma economia socialista, possível de construir mediante a apropriação colec-
tiva dos meios de produção com vista a constituir um sector económico estatal forte.

21
Helena Prata, Lições de Direito Económico – Lições, 2020, pp. 28-29.
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As nacionalizações foram assim o instrumento apropriado ao desenvolvimento


planificado da economia, que segundo a ideologia da época, seria o meio adequado na mo-
bilização dos meios financeiros para a industrialização socialista de Angola, efectuada atra-
vés da canalização “dos recursos anteriormente apropriados pelos exploradores ou aplicados
em consumos parasitários e agora postos ao serviço da revolução através das nacionaliza-
ções das grandes empresas”.
Inserido na ideologia «marxista» da época, o movimento de nacionalização denota
uma evidente aversão ao sistema de mercado e ao sector privado, arraigado à filosofia de
que só o Estado e a estatização permitiriam o desenvolvimento do país. Por outro lado,
desde cedo, o Estado angolano manifestou inúmeras reservas à existência de um sector pri-
vado dentro de um sistema económico e político de pendor socialista no qual os meios de
produção são propriedade do Estado e a actividade económica é controlada por uma autori-
dade central que estabelece metas de produção e procede à distribuição de matérias-pri-
mas para as unidades de produção.
Por outro lado, a revisão constitucional de 1978, que se caracterizou por represen-
tar a recepção da opção pela via socialista de desenvolvimento, consagrou de forma ex-
pressa o princípio das nacionalizações tendo ficado, a partir daí, claro que os eixos estrutu-
rantes passariam a ser: (a) o desenvolvimento económico e social assente na propriedade
socialista; (b) um sistema de direcção planificada da economia; e (c) a construção de
uma sociedade socialista.
Se pensarmos num sistema económico cujas operações comerciais, são fortemente ou
totalmente controladas pelo governo, ao ponto de a máquina pública ser o único emprega-
dor e fornecedor de bens e serviços; a inexistência de propriedade privada, da lei da
oferta e procura, e ausência total de concorrência; se acrescentarmos a isso o facto de o
modelo económico proposto ter exposto os seus princípios de uma sociedade ideal, sem, no
entanto, indicar os meios de alcançá-la, fácil será concluir que o mesmo estava condenado
ao fracasso. Isto porque o desaparecimento do mercado teria como consequência imedi-
ata o desaparecimento do investimento e da actividade económica privada, que por seu
turno equivaleria a uma não arrecadação de receitas pelo Estado por meio de cobrança
de impostos aos particulares. Por outro lado, a este conjunto de situações, somou-se o facto
de as empresas surgidas do processo de nacionalização se terem tornado na sua maioria
deficitárias o que levou ao aumento do endividamento externo e a um descontrole infla-
cionário.
Os desequilíbrios das contas externas atingiram níveis insustentáveis, levando à
necessidade de acordos de estabilização com o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Ora, esse conjunto de factores: a inadequação da política económica ao contexto eco-
nómico, o total desprezo pelo mercado e pelo seu normal funcionamento, deram origem à
graves desequilíbrios e distorções económicas, que constituíram no fundo a causa fun-
damental da deterioração da economia do país. Além da recessão, da inflação e da crise
da dívida externa, os anos 80 foram marcados, também, pela crise fiscal do Estado. Desde
a implementação do processo de nacionalizações em fins da década de 70, a dívida do
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sector público passou a crescer em um ritmo bastante acelerado, tendo esse endivida-
mento público comprometido a capacidade do Estado em investir. A qualidade dos ser-
viços públicos deteriorava-se e o Estado não tinha recursos para realizar novos investi-
mentos. Era necessário procurar um outro modelo de desenvolvimento.

2. Discorra sobre o pacote Legislativo S.E.F. (1988).


A questão começa com a CE de 78, que representou a consagração da opção pelo socialismo
como o sistema de desenvolvimento, definido pelo MPLA – PT.
Consagram-se princípios de cunho socialista (princípios e normas preceptivas e programáti-
cas):
➢ Princípio da Reserva Pública Universal;
➢ Princípio do Dirigismo Económico;
➢ Princípio da Intervenção do Estado;
➢ Princípio das Nacionalizações e Confiscos.
Aquele Princípio da Coexistência de Sectores, consagrado pela Constituição de 75, passou
a ter carácter residual e excepcional, adaptado ao regime então vigente e desaparecem os
bancos de segundo nível.
Os inconvenientes da inadequação da política económica – no âmbito de um sistema econó-
mico com pendor administrativo, de direcção central e planificada – num total desprezo
pelos princípios de mercado, geraram fortes desequilíbrios económicos, de formas que foram
a razão da queda da economia nacional.
A ineficiência ou improdutividade do sector público da economia causaram graves distorções
no sistema socialista, o que gerou o aparecimento de um mercado paralelo.
Diante do "congestionamento" económico e financeiro que se havia criado, surge então o
pacote legislativo S.E.F. em 1988, que tinha o essencial afã de descongestionar a actividade
económica obstruída pela má actuação pública, o dito “redimensionamento do sector em-
presarial do Estado”. Consagrava um conjunto de leis que possibilitaram uma maior abertura
da económica a práticas outrora não cogitadas (como as privatizações), fruto também do in-
tercâmbio de Angola com a comunidade internacional – o então Saneamento Económico
Financeiro, integrado pelas seguintes leis:
➢ Lei Sobre os Títulos do Tesouro (Lei 8/88)
➢ Lei Cambial (Lei 9/88)
➢ Lei das Privatizações (Lei 10/88)
➢ Lei das Empresas Públicas (Lei 11/88)
➢ Lei da Planificação (Lei 12/88)
➢ Lei do Investimento Estrangeiro (Lei 13/88)

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O sistema económico reclamava por uma substituição: a prática económica passou a ser de-
senvolvida à margem do sistema constitucionalmente consagrado (o tal mercado paralelo) e
não só a prática económica, mas também a prática legislativa.
Este conjunto de leis contrariava grosseiramente o espírito e letra da CE de 78 e o sis-
tema económico vigente: Levantava-se o problema da inconstitucionalidade do S.E.F.
Duas posições ressaltam:
a) A dos que criam no argumento da flexibilidade da CE de 73: esta última integraria a
categoria doutrinal das constituições flexíveis, sendo por isso, caracterizada por uma
maior abertura material, e nestes termos, o S.E.F estaria alinhado com o pensamento
sistemático-teleológico.

b) Outra franja pensa o contrário: o S.E.F. neutralizou ideologicamente muitos preceitos


constitucionais, tendo chocado com normas programáticas de matriz socialista. Fle-
xibilizou o sistema, atenuando o intervencionismo do estado, em benefício do sector
privado. Desconsidera-se a nacionalização, dando abertura às privatizações, dessa
forma consagrando à título definitivo um sistema de economia mista.
E em acréscimo, nos dizeres da professora Prata (2020)
Note-se que a Constituição flexível, antes de ser flexível, é Constituição: nisso se iguala às
Constituições rígidas. Sempre haverá valores essenciais à sociedade politicamente organizada
e condutas contrárias a eles. Por esse modo de ver, não há como negar a existência de incons-
titucionalidade face a Constituições flexíveis.

Após a sua publicação, começam de forma gradual a se desenvolver as fases das privatiza-
ções:

1) Década de 1980, com as reprivatizações de empresas outrora nacionalizadas ao


abrigo da Lei 3/76;
2) Aprovação da Revisão Constitucional de 1992, que permitiu um maior movimento
de desintervenção do estado na economia, este último que foi reduzindo a sua pre-
sença em diversos sectores de actividade;
3) 1994, com a Lei 10/94, Lei das Nacionalizações e a Lei da Delimitação dos Secto-
res de Actividade Económica, que representou o grande impulso das privatizações,
aliás, é a partir daqui que se estabelecem de forma mais concreta os modos de
procedência das privatizações, etc.
Basicamente, em meu pensar, o pacote legislativo S.E.F. veio corrigir os inconvenientes do
sistema económico consagrado pelas Leis Constitucionais de 1975 e 1978, e consequente-
mente, os inconvenientes das nacionalizações.

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