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NARRATIVAS (MITO)POIÉTICAS DE UMA PROFESSORA SOBRE A

EDUCAÇÃO, A CORPOREIDADE E O LAZER EM DIÁLOGOS COM


PAULO FREIRE

A TEACHER'S (MYTH)POETIC NARRATIVES ABOUT EDUCATION,


CORPOREALITY AND LEISURE IN DIALOGUES WITH PAULO FREIRE

Vânia Noronha – PUC MINAS

Resumo
Tendo como referência a minha história de vida no processo de me tornar professora
e a experiência docente ao longo dos quase quarenta anos no ensino básico e no
superior, apresento neste artigo narrativas (mito)poiéticas que permitiram analisar
a presença dos conceitos de corporeidade e lazer em diálogo com os escritos de Paulo
Freire. Desenvolvo o artigo apresentando a aproximação com o pensamento
freireano destacando a minha graduação em Educação Física realizada nos tempos
da ditadura e algumas experiências ao longo da prática pedagógica nas escolas. Em
seguida, extraio dos escritos de Freire elementos para a compreensão sobre o
conceito de corpo. Assumindo que o corpo consciente é aquele que vive plena e
ludicamente sua presença no mundo, ocupando espaços, experimentando sua
cultura, constituindo identidades e subjetividades diversas, relacionando-se consigo,
com o outro e com o planeta, discuto o lazer, fenômeno cultural em que essas
experiências se tornam possíveis. É nessa dimensão da vida humana que,
privilegiadamente, homens e mulheres vivem seus corpos, suas resistências e seus
sonhos. Concluo afirmando que o amor, como imaginava Freire, é a saída para
nossos sonhos utópicos de construir uma sociedade que proporcione dignidade
coletiva, esperança e justiça nesse mundo.
Palavras-chave: Docência, Corporeidade, Lazer, Paulo Freire, Narrativas
(mito)poiéticas

Abstract
Taking as a reference my life story in the process of becoming a teacher and, over the
nearly forty years of teaching in basic and higher education, I point out in this paper
(myth)poietic narratives that allowed us to analyse the presence of the concepts of
corporeality and playfulness in my education background and teaching performance
as well, in dialogue with Paulo Freire’s writings. I develop this article showing my
approach to Freire's thought, highlighting my graduation in Physical Education
carried out in the times of the dictatorship and some experiences during my
pedagogical practice in schools. Then, I bring out elements from Freire's writings for
understanding the concept of the body. Assuming that the conscious body is one that
fully and playfully lives its presence in the world, occupying spaces, experiencing its
culture, constituting different identities and subjectivities, relating to itself, to the
other and to the planet, I discuss leisure, a cultural phenomenon wherein these
experiences become possible. It is in this dimension of human life that men and
women preferentially live their bodies, resistances and dreams. I conclude by stating
that love, as Freire imagined, is the way out of our utopian dreams of a society that
provides collective dignity and hope for justice in this world.
Keywords: Teaching, Corporeality, Playfulness, Paulo Freire, Narratives
(myth)poietic.

1. Introdução

“Se muito vale o já feito, mais vale o que será.


E o que foi feito é preciso conhecer para melhor prosseguir”
(Fernando Brant e Milton Nascimento)

A experiência corporal é, segundo Keleman (2001), a chave para a busca do


sentido da vida, pois é sabido que nós, seres humanos, temos a consciência de que
somos finitos e, um dia, nossa carne perecerá. Por isso, vivemos a angústia do tempo
que passa e da morte que se aproxima (DURAND, 2002), ocupando nossos dias com
diferentes experiências familiares, amorosas, educativas, laborais, lúdicas,
espirituais, políticas, dentre tantas outras. Tudo isso se dá no e pelo corpo. Merleau-
Ponty (1999), diz que nossa existência só é possível porque somos e temos um corpo.
Antes de existir em pensamento somos um corpo. Muito antes de tomarmos
consciência de que éramos um corpo ele já existia no imaginário.
É essa compreensão que faz Keleman (2001) afirmar que também o corpo é
assunto da mitodologia, pois o que eles dizem e o funcionamento de seus órgãos e
sistemas são frutos da imaginação, estão enraizados em energias, em conflitos e em
sua harmonização. Para esse autor, o corpo é dado e o mito, tendo-o como referência,
também o é. Assim, a mitologia

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é a poética do corpo cantando a nossa verdade celular. O mito é um poema
sobre a experiência de ser corporificado e a nossa jornada somática. É a
canção, a criação, a experiência genética que organizou um jeito de cantar,
dançar, pintar, contar histórias, que transmitem esta experiência aos outros.
(KELEMAN, 2001, p. 17)

Ao longo de nossas vidas experimentamos diferentes corporeidades e essas


nos constituem. São essas diferentes experiências corporais que nos permitem
escrever histórias e contá-las. Keleman (2001) destaca que o “contar histórias
sintetiza e organiza os elementos da experiência numa forma corporal, que nos dá
uma configuração pessoal, uma direção e, até mesmo, um senso de significado para
estas vivências” (KELEMAN, 2001, p. 99). Essa história que inventamos e contamos
a nós mesmos é a do nosso próprio processo de constituição da anima, para Hillman
(1984) e do self, para Jung (2002). É ainda uma expressão direta das experiências e
dos processos de corporificação (KELEMAN, 2001), estejamos conscientes disso ou
não, e, ao contarmos as nossas histórias, é o nosso próprio percurso que está em
evidência. A esse movimento, Paula Carvalho (1990), deu o nome de trajeto
antropológico que, segundo o autor, é o produto da articulação entre o bio-psíquico
e o sociocultural, o subjetivo e o objetivo, que permite aos humanos realizar a sutura
epistemológica entre a Natureza e a Cultura, mediada pelo símbolo e, ao mesmo
tempo, construir seus aparelhos simbólicos.
Apropriando-me dessas reflexões sobre meu processo de corporificação, de
constituição do ser, com destaque para a inserção na docência e atuação ao longo de
quase quatro décadas, opto neste artigo por apresentar algumas reflexões sobre o
legado de Paulo Freire para uma compreensão sobre a corporeidade e o lazer. Para
tanto, a referência será o trajeto antropológico por mim trilhado e as muitas
histórias, que eu e, certamente, tantos(as) outros(as) professores(as) da minha
geração, têm para contar. Com esse intuito, lançarei mão de narrativas, apoiada em
Chaves (2014), para quem esta tem como função “fazer nossas ações inteligíveis para
nós e para os outros” (CHAVES, 2014, p. 88). Ao desenvolver narrativas
auto(mito)poiéticas, exploro registros de minha vida e memória em consonância
com o que diz a autora:

Os professores podem usar histórias de suas experiências profissionais para


refletir sobre a sua própria prática, para articular valores e crenças, para dar
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forma à teoria de ensino e para melhor entendimento do processo decisório
– as histórias interagem com os leitores, com os ouvintes e com outros
contadores de histórias. Essas histórias são frequentemente base para
reflexão, discussão e debate. (CHAVES, 2014, p. 89)

2. Os encontros com Paulo Freire

Iniciei a graduação em Educação Física na Universidade Federal de Minas


Gerais (UFMG) em 1980, ainda na ditadura militar. O ensino tecnicista imperava em
nossa sociedade, fruto de uma legislação (LDB 5692/71) que previa a construção de
um projeto nacionalista de ordem e progresso em que a preparação dos(as) jovens
para o trabalho era uma premissa. Nesse contexto, se ampliava também a
preocupação com as atividades que o trabalhador realizaria no seu tempo livre.
Nosso curso, obviamente, coadunava com esse projeto e, por meio das disciplinas
ministradas, preparava o futuro licenciado para tratar o(s) corpo(s) de
educandos(as) com vistas a uma formação da técnica, do caráter, da disciplina e da
obediência. Para tanto, nessa referida legislação, apenas à disciplina Educação Física
eram dedicadas determinações por meio de um Decreto - o 69450/71.
Esse Decreto previa como finalidade da disciplina o desenvolvimento da
aptidão física, uma vez que ao sistema interessava os indivíduos saudáveis, aptos e
capazes para atenderam as demandas do trabalho e da técnica, visto que, por meio
dos esportes, era possível desenvolver as ideias de disciplina, automação, eficiência
e eficácia para a obtenção de resultados positivos na produção e a consequente
conquista da vitória. Nos dizeres de Vaz (2003), a técnica alcançada por meio do
esporte se alia a uma verdadeira “adaptação clandestina ao maquinário e à logica do
trabalho” (p.66).
Nossa formação inicial nesses tempos se dava de modo diferenciado em
relação aos sexos, existindo em vigor dois cursos: um para as mulheres, outro para
os homens, com disciplinas distintas em ambos. O currículo privilegiava as
disciplinas de cunho biológico e as práticas dos diversos conteúdos corporais (com
ênfase nas técnicas e táticas), desprovidas de uma reflexão crítica em ambos os casos.
Os conhecimentos relativos à formação docente ocorriam na Faculdade de
Educação, onde interagíamos com outras licenciaturas. Em várias disciplinas nos foi

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proporcionado o encontro com os escritos de Paulo Freire. Lembro-me da disciplina
“Prática de Ensino da Educação Física”, a única específica do nosso curso que
despertou nos futuros professores(as) o pensamento crítico e permitiu refletir sobre
a função social da disciplina na escola, instigando-nos a questionar: será que “a
Educação Física cuida do corpo e mente?”. (MEDINA, 1983)
Ainda que a formação universitária me direcionasse para uma leitura de
mundo alienada, vivíamos, naquele momento, uma sociedade que se conscientizava
dos efeitos nefastos da ditadura e uma efervescente luta pela redemocratização do
país estava em curso, com a criação de partidos de esquerda e vários movimentos
sociais organizados. Nessa esteira, logo no início da graduação estive com tantos(as)
outros(as) colegas na chapa que assumiu o Diretório Acadêmico do nosso curso, num
processo gradual de inserção nas questões políticas que permeavam o contexto da
época. Do mesmo modo, nos inserimos no movimento estudantil ampliado,
participando dos primeiros Encontros Nacionais de Estudantes de Educação Física
cuja edição de número trigésima nona ocorreu em 2019, na cidade de Goiânia (GO).
Outra formação paralela se deu num projeto de formação de professores(as) de
Educação Física1 coordenado pela UFMG e realizado nas escolas da periferia de Belo
Horizonte. Esse projeto contribuiu sobremaneira para que eu definisse minha opção
por ser professora. Relembro com carinho dos ricos momentos de trocas e reflexões
entre os coordenadores e estagiários, ao articular a teoria com a prática, ampliar o
olhar sobre a realidade educacional bem como sobre os sujeitos.
Mais ao final da graduação, iniciei minha carreira docente na rede estadual,
na condição de professora contratada, infelizmente, uma realidade que ainda se faz
presente até os dias de hoje, uma vez que os concursos são escassos. Nessa condição,
minha visão de mundo, da sociedade capitalista, da luta dos(as) trabalhadores(as),
principalmente em educação, do papel da docência, se ampliou. Pude participar dos
movimentos sindicais, de infinitas reivindicações por melhores condições de
trabalho, contra os arrochos salariais sofridos e pela valorização da profissão
docente. A luta pela redemocratização do país foi um momento fértil de reflexões e

1
Projeto de Criação e Implantação de Laboratórios de Educação Física nas Quatro Primeiras Séries
do 1º grau e Pré-Escolar da Rede Estadual de Minas Gerais. Secretaria de Estado da Educação de
Minas Gerais. Belo Horizonte, 1984.
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de mudanças. Nos incontáveis movimentos de greve discutíamos o papel da
educação no contexto da ditadura, a função social da escola e o compromisso
docente.
Paulo Freire estava lá, despertando nossa consciência crítica, instigando a
reflexão sobre o poder, a resistência, dialogando com Bourdieu e Passeron (1992), e
discutindo a ideia da educação como reprodutora do sistema capitalista, e da escola
como aparelho ideológico do estado, com Althusser (1970) dentre tantos outros
autores. Paulo Freire estava lá, nos provocando a repensar a educação disciplinar,
propedêutica, eurocêntrica, elitista, opressora, bancária; nos convocando a assumir
o dever de lutar pela educação como direito de todos(as), em sua perspectiva
transformadora e libertária. Naquele momento Freire já nos chamava a atenção de
que “o que não é possível é simplesmente fazer o discurso democrático,
antidiscriminatório e ter uma prática colonial”. (FREIRE, 1993, p. 68)
Em 1992, já como professora efetiva, atuei na coordenação da Educação Física
na Delegacia de Ensino da Rede Estadual2 e, nessa condição, tive a oportunidade de
participar do “Seminário sobre o pensamento de Paulo Freire”, ocorrido na cidade
de Poços de Caldas. Foi emocionante ouvir o próprio Paulo Freire, Moacir Gadotti,
Ana Maria Saul e tantas outras referências.
Figura 1: Seminário sobre o Pensamento Paulo Freire, 1992

Fonte: autor desconhecido

2
Unidades administrativas atreladas às Secretarias de Educação do país, criadas na década de 1970,
momento em que se valorizavam as estruturas centralizadas e burocráticas. (MENEZES, 2001)
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Esse seminário foi um divisor de águas em minha vida. Voltei convicta que
gostaria de atuar no ensino superior. Iniciei, naquele momento, minha caminhada
realizando uma especialização em Educação Física Escolar (PUC Minas) e, ao mesmo
tempo, em Lazer (UFMG/SESI).
Nesses tempos, idos da década de 1990, fui professora da Escola Municipal
Tabajara Pedroso e estávamos no momento de implantação do Programa Escola
Plural. Essa era uma proposta inovadora que pretendia valorizar experiências
diferenciadas que já vinham ocorrendo na Rede Municipal de Belo Horizonte
(RMBH) em relação às práticas pedagógicas, introduzindo importantes reflexões em
todo o sistema educacional municipal. Desse modo, a RMBH, inserida num contexto
nacional mais amplo (Escola Candanga em Brasília, Escola Cidadã em Porto Alegre),
assumia o compromisso das instituições escolares com a educação pública, gratuita
e de qualidade (BAPTISTA, 1998), e Paulo Freire era a maior inspiração das
mudanças. O direito à educação foi o mote principal para implementação dessa
proposta. Para isso, segundo Baptista (1998), não bastava universalizar o acesso dos
sujeitos a escola, mas também adotar mecanismos de publicização das vagas com
vistas a garantir a inclusão de crianças e adolescentes em regime de proteção tutelar.
Em ação conjunta com os Conselhos Tutelares previa o atendimento às famílias
desses educandos, de modo que essas reconhecessem o valor social da escola numa
dimensão emancipatória.
Também na internalidade das escolas, o Programa propunha importantes
mudanças. A formulação da proposta pedagógica ficava a cargo da comunidade
escolar, que definia as ações referentes ao seu cotidiano; as necessidades dos
envolvidos no processo; a organização dos tempos e espaços; a construção do
conhecimento de modo interdisciplinar, alterando as matrizes curriculares; o
reconhecimento da expressão da cultura identitária dos grupos sociais; os métodos
avaliativos, dentre tantas outras. Para a implantação dos projetos político-
pedagógicos (PPPs) nas escolas, a gestão democrática, exercida pela direção e
coordenações de turno, era realizada pelos próprios professores(as) que constituíam
as chapas, sendo o pleito definido pelos votos de toda a comunidade escolar.

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No “Tabajara” vivemos experiências singulares. Destaco aqui uma delas,
marcante pelo seu caráter democrático, emancipatório, ousado e coletivo. Para a
definição de todas as conduções do processo educativo realizávamos um Congresso
Político-Pedagógico (CPP’s) no qual toda a comunidade acadêmica tinha voz e poder
de decisão. Sua periodicidade era bianual, sendo realizado entre os anos de 1991 e
2008.
Figura 2: Capas de algumas pastas com materiais disponibilizados aos
participantes dos CPP’s da Escola Municipal Tabajara Pedroso

Fonte: Acervo pessoal da Professora Maria Ângela Antônio

Nesses CPP’s eram definidas demandas do corpo discente, como o uso


obrigatório (ou não) do uniforme escolar ou se o portão da escola permaneceria
aberto ao longo de todo o período do turno, do corpo docente, como avaliações, e de
cunho mais administrativo-pedagógico, como a organização das disciplinas, a gestão
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da merenda, entre outras. Participavam do Congresso toda a comunidade escolar:
pais/mães e responsáveis de alunos(as); estudantes de todas as séries e turnos,
funcionários(as), professores(as), direção e, ainda, representantes dos movimentos
sociais organizados da região. Adotando os modelos sindicais da época, uma tese-
guia era escrita para análise, inclusão e exclusão de propostas por todos os
representantes.
As discussões eram realizadas em pequenos grupos e no último dia fazíamos
uma plenária geral com defesas favoráveis e contrárias às propostas e, em seguida, a
definição pelo voto da maioria. Recordo-me de assembleias lotadas, da energia
efervescente no plenário, dos nervos alterados para aprovação das propostas, das
articulações entre os pares. Mas o que mais me chamava a atenção era o
desenvolvimento da criticidade nos alunos que, mesmo com pouca idade, já
entendiam o que era viver um processo democrático e dialógico, onde o interesse da
maioria prevalecia. Num desses Congressos o patrono foi o próprio Paulo Freire.
Nesse tempo, a Prefeitura de Belo Horizonte, por meio da Secretaria
Municipal de Educação (SMED), garantia o pagamento de horas/aulas para a
implementação dos PPPs das escolas e, desse modo, era possível implementar as
propostas aprovados nos CPPs. Além do pagamento de horas, a Prefeitura também
passou a realizar a formação em serviço dos professores(as), criando para isso
setores como a Coordenação Político Pedagógica (CPP) e o Centro de
Aperfeiçoamento do Professor (CAPE).
Nos últimos anos de minha experiência no “Tabajara” trabalhávamos
inspirados pela “pedagogia de projetos” (HERNANDEZ; VENTURA, 1998; dentre
outros) e algumas experiências interdisciplinares foram possíveis. Lembro-me da
aprovação, no último congresso que participei, da equidade no número de aulas das
disciplinas que compunham a matriz curricular. Essa ação revolucionou a escola.
Trabalhar a Educação Física em três aulas semanais por turma foi um rompimento
com a hierarquia dos saberes escolares. Pela primeira vez, o corpo foi considerado
com o mesmo status do intelecto, ao mesmo tempo em que teve reconhecida a sua
dimensão cognitiva, presente nas práticas propostas. Vale destacar que, nessa época,
a Educação Física passou a ser considerada área do conhecimento que, por meio da

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linguagem corporal, desenvolvia os conhecimentos pertinentes à cultura corporal de
movimentos (esportes, ginásticas, danças, lutas, jogos e brincadeiras) como
proposto pelo Coletivo de Autores (1992) e assumido na LDBEN de 1996.
O foco no debate sobre a cultura, a diferença, o respeito ao outro, aos corpos
me levou ao mestrado desenvolvendo junto a uma comunidade indígena de Minas
Gerais, os Maxakali, uma pesquisa sobre os seus jogos e brincadeiras (ALVES, 1998),
e, mais à frente, ao doutorado, estudando a festa dos negros de nosso Estado, em
homenagem à Nossa Senhora do Rosário (ALVES, 2008). Paulo Freire esteve o
tempo todo instigando e desenvolvendo minha “curiosidade epistemológica”. Dizia
ele:
volto a insistir na necessidade imperiosa que tem o educador e a educadora
progressista de se familiarizar com a sintaxe, com a semântica dos grupos
populares, de entender como fazem eles sua leitura do mundo, de perceber
suas manhas indispensáveis à cultura de resistência que se vai constituindo
e sem a qual não podem defender-se da violência a que estão submetidos.
(FREIRE, 1992, p. 107).

Especificamente em relação ao congado, me propus a “entender o sentido de


suas festas no corpo da cultura de resistência, sentir sua religiosidade de forma
respeitosa, numa perspectiva dialética e não apenas como se fosse expressão pura de
alienação”. (FREIRE, 1992, p. 107)
Em minha prática pedagógica no ensino superior por mais de vinte anos,
atuando na formação de turismólogos, professores e professoras, tanto na Educação
Física quanto na Pedagogia, e, atualmente, na Pós-Graduação em Educação, me
coloco ao lado das pessoas oprimidas, dos(as) trabalhadores(as) e da luta por uma
sociedade menos desigual. A educação das sensibilidades tem sido o foco do meu
trabalho e o destaque para a reflexão sobre a corporeidade, na busca pelo
reconhecimento da sua dimensão amorosa, afetiva, lúdica, imaginante e ética.

3. Paulo Freire e a corporeidade

Acredito que tenha sido possível perceber como Paulo Freire e a discussão
sobre a corporeidade esteve (e está) presente ao longo do meu processo formativo.
Lembro-me muito bem de uma conversa com a Professora Leila Pinto, naquele

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seminário em 1992, quando ela disse que Freire não assumia ter feito um estudo
aprofundado sobre o corpo, mas, certamente, esse é um conceito que permeia toda
a obra desse autor.
Freire pensa o corpo em sua concretude. Ele questiona a noção de ser humano
fragmentada em corpo e mente, reforçada pela educação bancária, reprodutivista,
que privilegia o intelecto e desconsidera as emoções e a sensibilidade. Para Freire é
inconcebível a separação entre o trabalho intelectual e manual.
Paulo Freire foi um homem do diálogo e da amorosidade. Assim, ao propor
uma educação libertadora ele afirmava que essa passa pela tomada de consciência
do que é o CORPO. Um corpo que se constitui socialmente por meio das práticas
sociais. Corpos mediados pela história, carregados de valores da realidade cultural
em que estão inseridos. Corpos que não são da Educação Física e sim, de todos os
envolvidos com o processo formador de sujeitos. Corpos que em sua
multidisciplinaridade se tornam Corpos Conscientes3 e se expressam por meio de
gestos, palavras e outras diferentes linguagens.
Linguagem que, para o autor, é a expressão do conhecimento produzido pelo
ser humano na relação sujeito/objeto e que, como forma de comunicação, é
carregada de relações de poder. Diz ele em “Por uma pedagogia da Pergunta” que a
linguagem não é só a falada, uma vez que a
de natureza gestual, corporal, é uma linguagem de movimento de olhos, de
movimento do coração. A primeira linguagem é a linguagem do corpo e, na
medida em que essa linguagem é uma linguagem de perguntas e na medida
em que limitamos essas perguntas e não ouvimos ou valorizamos senão o que
é oral ou escrito, estamos eliminando grande parte da linguagem humana.
Creio ser fundamental que o professor valorize em toda sua dimensão o que
constitui a linguagem, ou as linguagens, que são linguagens de perguntas
antes de serem linguagens de respostas. (FREIRE; FAUNDEZ, 1985, p. 49)

Corpos conscientes que, por meio das linguagens, expressam, não uma
consciência ingênua, mas sim, uma consciência crítica, capaz de fazer leituras
ampliadas do mundo e de nele intervir. Conceber os corpos conscientes implica em
reconhecer os seres humanos enquanto expressões plurais da vida, reconhecer a

3
Gonçalves (2012) faz uma interessante pesquisa sobre como o conceito surgiu e se faz presente em
diferentes obras de Paulo Freire. Ver “A noção de corpo(s) consciente(s) na obra de Paulo Freire”,
disponível em http://www.arquivo.cppnac.org.br/wp-content/uploads/2012/09/Corpo-
Consciente.pdf
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diversidade dos corpos de homens, mulheres, cisgêneros, transgêneros, transversos,
queer, crianças, jovens, idosos, indígenas, negros, brancos, ribeirinhos, portadores
de deficiências, gordos, magros, dentre tantos outros.
Na obra citada, os autores nos relatam sobre a diversidade dos corpos e
situações vividas no exílio:
O corpo humano, velho ou moço, gordo ou magro, não importa de que cor, o
corpo consciente, que olha as estrelas, é o corpo que escreve, é o corpo que
fala, é o corpo que luta, é o corpo que ama, que odeia, é o corpo que sofre, é o
corpo que morre, é o corpo que vive! Não foi rara a vez em que pondo minha
mão afetivamente no ombro de alguém, tive-a, de repente, no ar, enquanto
curvando-se, o corpo tocado recusava o meu. (FREIRE; FAUNDEZ, 1985, p.
28)

Com esse relato, Freire em diálogo estabelecido com Faundez, dizia de sua
experiência em outras culturas. Ao exercitar a alteridade ele viu a diferença,
reconheceu a tolerância enquanto uma ação política, destacando a sabedoria e a
virtude da convivência com o diferente como revolucionária, pois é ela (a diferença)
que nos coloca diante do diálogo e da possibilidade de nos enriquecermos enquanto
sujeitos.
Assim, Freire nos chama a atenção para o conceito plural de cultura ao afirmar
que “as culturas não são melhores nem piores, as expressões culturais não são
melhores, nem piores, são diferentes entre elas. (...) A cultura não é, está sendo, e
não podemos esquecer o seu caráter de classes”. (FREIRE; FAUNDEZ, 1985, p. 25)
E, para ficar só em mais um conceito que me é caro em Freire, trago a
liberdade, conceito central em sua obra. No “Dicionário Paulo Freire”, Jung Mo Sung
(2010), teólogo coreano radicado no Brasil, destaca a afirmação de Freire sobre o ser
humano se diferenciar dos outros animais pela integração ao contexto, situado
cultural e historicamente, com capacidade criativa e crítica, enquanto os outros são
seres da acomodação. O ser humano não é algo pronto e luta constantemente contra
as forças da dominação e opressão.
Para Freire, a liberdade não é a possibilidade de realizar todos os desejos, no
sentido de almejá-la sem qualquer limite. Essa seria uma liberdade despótica,
negadora de outras vontades. A liberdade daqueles que se consideram os(as)
donos(as) do mundo e, de modo egoísta, só veem a si mesmos. Assim, para Freire, a
liberdade não “termina onde começa a liberdade do outro, ela se realiza quando se
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encontra com outras pessoas na luta pela sua liberdade e pela das outras” (apud
SUNG, 2010, p. 242). Outro ponto que Freire destaca diz respeito aos nossos desejos,
sobre o qual o autor revela que o sonho do oprimido é o de se tornar um opressor,
pois esse último considera que a realização desse desejo o conduziria a liberdade.
Entendia Freire que, ao contrário, isso o levaria a alienação, aos desejos alheios e
opressivos.
A liberdade é, portanto, “uma conquista que se alcança na medida em que se
luta pela libertação de si, do outro e do mundo” (SUNG, 2010, p. 243). Liberdade
implica em exercitar a nossa autonomia para fazer escolhas e isso exige
responsabilidade por aquilo que escolhemos. Não podemos esquecer que em toda
escolha existe uma renúncia e esse ato exige responsabilidade conosco, com os(as)
outros(as) pessoas, com o planeta. Isso é revolucionário!

4. Corpos conscientes e o lazer

Viver o corpo consciente é gozar da liberdade de ser o que se é, no seu tempo


histórico, em inteireza consigo mesmo, nas interações com os objetos, com outros
seres vivos e humanos. Diz Freire num diálogo estabelecido com Nogueira (1996):

A corporalidade é um tipo de consciência que se baseia numa inteireza


consigo mesma. E isso se expressa, ao desenvolver-se, nas interações com os
objetos e com outros Seres Humanos. Não apenas consciência de mim
mesmo que me sugere a consciência do entorno, mas penso eu, a consciência
de inteirar-se do Mundo e com o Mundo que me permite criar noções do “eu
consciente”. (NOGUEIRA, 1996, p. 19)

A corporalidade é viver nossos corpos plurais com respeito à diversidade e às


diferenças, lutando contra qualquer ato de discriminação, como o racismo, o
machismo, o fascismo, e tantos determinismos coloniais e estruturais em nossa
sociedade. É viver as manhas do corpo que resiste nas múltiplas linguagens da arte,
da literatura, da música, da dança, da festa, ou melhor, do lazer. É o corpo que
reconhece o seu lugar nesse mundo de opressão, mas não desiste e luta para
transformá-lo.

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Nesse contexto, não basta entender o lugar que ocupa o trabalho em nossas
vidas, mas, sem dúvida, considerar também o do lazer. Numa sociedade moderna e
capitalista como a nossa, o lazer tem sido compreendido como um binômio na
relação com o trabalho (GOMES, 2019). Nessa perspectiva, o “tempo livre” para o
descanso, na verdade, não é livre, e sim, uma extensão do trabalho. O lazer se torna
uma face privilegiada da indústria cultural, que por meio de diferentes veículos
oferecem práticas lúdicas que atrofiam a imaginação do trabalhador, promovem a
distração e o divertimento fora do trabalho, para que se possa suportá-lo (VAZ,
2006). Desse modo, o sistema, por meio de seus processos educativos, que por vezes
envolvem também a escola, reforçam, nesses sujeitos, conceitos presentes nos
escritos de Paulo Freire, como o da consciência ingênua, da alienação, da
domesticação, da desumanização e da perda da condição do sujeito na sociedade.
Entretanto, o campo do lazer (no sentido bourdiesiano) vem se ampliando em
nosso país. Apoiado em teorias críticas, entre elas os estudos culturais, os decoloniais
e as teorias da complexidade, vem-se contribuindo para que novas reflexões e
construções epistemológicas sejam possíveis e despertem cada vez mais a
consciência crítica da sociedade brasileira, em especial dos trabalhadores, em busca
de seus “corpos conscientes”.
Destaco aqui os estudos de Fernando Mascarenhas (2003), que publicou a
obra “O lazer como prática de liberdade, uma proposta educativa para a juventude”,
inspirado em “A educação como prática de liberdade” (FREIRE, 1967). No estudo de
Mascarenhas, o autor considera o lazer como um fenômeno tipicamente moderno,
resultante das tensões entre o capital e o trabalho, materializado como um tempo e
espaço de vivências lúdicas, de organização da cultura, perpassado por relações de
hegemonia (MASCARENHAS, 2003).
Com base nesse entendimento, o autor elabora uma proposta de intervenção
de ação comunitária, privilegiando a experiência lúdica e educativa, destinada aos
trabalhadores e aos grupos sociais menos favorecidos, como possibilidade desses
sujeitos refletirem sobre a própria realidade e transformá-la. O método de
intervenção prevê uma ação diagnóstica, a definição de temas geradores, a criação
de redes temáticas e os ciclos temáticos, como sugeridos por Freire para a educação,

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para pensar a estrutura das ações comunitárias e o desenvolvimento do lazer em
articulação com os interesses do grupo praticante. Assim, pensa o autor, o lazer-
educação assume sua posição política e pedagógica de compromisso com os grupos
sociais oprimidos, mediante a resistência e luta pela sobrevivência cotidiana.
O lazer, ainda que numa perspectiva moderna, vem sendo analisado também
em sua dimensão subjetiva e na perspectiva da cultura (GOMES, 2019). Nessas
abordagens teóricas, a criticidade, o diálogo, o respeito ao outro, aos corpos
diferentes, diversos e suas culturas, a transformação social, a ampliação da leitura
de mundo dos trabalhadores, a autonomia e liberdade para fazer as escolhas das
experiências lúdicas, ganham destaque.
De minha parte, tenho pensado no lazer como um fenômeno cultural da
contemporaneidade presente nas sociedades complexas. Em tempos de
ambiguidades e incertezas, o lazer tem sido uma das dimensões da vida humana que
vem permitindo aos sujeitos viverem o tempo presente e o que esse nos oferece. A
angústia do tempo que passa e da morte que se aproxima (DURAND, 2002),
comentada no início desse texto, poucas vezes se fez tão real. A pandemia do Covid
19 nos colocou em suspensão com a vida ao longo desses quase dois anos. Projetos
de lazer foram adiados: viagens, idas à shows, cinemas, teatros, bares e até mesmo
os encontros com amigos e familiares foram interrompidos. A experiência de
muitos(as) se resumiu ao interior de suas próprias casas.
Nesse sentido, a desigualdade social se tornou escancarada para toda a
sociedade, afinal o número dos que não têm casa nem o que comer aumentou
assustadoramente nesses últimos anos, com a presença de um (des)governo fascista
que nega a ciência, desconsidera a educação e a cultura, governa apenas em prol de
seus interesses e de uma determinada classe social. Definitivamente não estamos no
mesmo barco, e sim, na mesma tempestade. A doença não é democrática, uma vez
que classes sociais diferentes convivem com realidades também diferentes para o
tratamento e a (possível) cura.
É inegável que, nesse contexto, para aqueles que privilegiadamente podem
usufruir de diferentes lazeres, esse tem se tornado uma possibilidade de manter a
saúde mental e a vida, e, ao mesmo tempo, um instrumento de alienação, se não

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conseguimos analisar criticamente nossas ações e nos deixamos ser seduzidos pelos
apelos da indústria cultural, principalmente das tecnologias e redes sociais.
Cada vez mais percebemos que trabalho e lazer não são duas categorias
distintas, pelo contrário, elas são antagônicas, dialógicas e complementares
(MORIN, 2002). Pensar no fenômeno lazer implica entender as mudanças ocorridas
no trabalho, com a diminuição de oferta de vagas, arrochos salariais, aumento do
informal, da uberização de algumas profissões e, também, no desemprego. Os
desafios, portanto, são muitos.
Paulo Freire nos inspira a pensar que somos sujeitos da nossa história e
compreendê-la já é um primeiro passo para nossa ação de resistência libertadora. O
segundo passo, certamente, passa pela compreensão de que os processos educativos
que não se dão apenas na escola, mas em todo tempo e espaço nos quais se
desenvolvem práticas sociais por meio de relações humanas e seus corpos, entre elas,
aquelas construídas no lazer.
Para Paula Carvalho (1990), as práticas sociais são sempre simbólicas e se
constituem como manifestações de um universo imaginário intermediado por um
sistema sociocultural e suas instituições. A função das práticas simbólicas é
organizar a socialidade dos grupos, promovendo vínculos afetivos, de contatos e de
solidariedades entre si e com outros. Por esse motivo o autor considera que toda
prática social e simbólica é necessariamente educativa (PAULA CARVALHO, 1990,
p.27).
Dialogando com esse autor, considero que o lazer, em suas concepções
subjetivas e como dimensão da cultura, se torna tempo e espaço privilegiado para a
vivência dessas práticas educativas, permeadas pelo simbólico. De leste a oeste, de
norte a sul do nosso país, encontraremos práticas simbólicas e educativas no lazer
como um campo aberto às novas pesquisas que possam contribuir no entendimento
de quem somos nós, sujeitos individuais e coletivos.
Entretanto, para analisar essas práticas uma outra proposição metodológica
será necessária. A lógica moderna precisará ser repensada e a conciliação da imagem
e do símbolo com a razão, imprescindível. Nesse sentido, a relação da educação com
o lazer é potente. A educação escolar cartesiana necessita ampliar o diálogo com as

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experiências humanas sensíveis, muitas delas vividas no tempo do lazer, com vistas
a construir novos paradigmas. A razão precisa dar lugar à emoção, a mente ao corpo.
É mister romper com os dualismos.
Concordo com Morin (2019), quando esse afirma que o papel da educação é o
de contribuir para que os(as) alunos(as) possam enfrentar os problemas da vida.
Para ele, a escola ensina certezas e não incertezas e, ainda, propõe um ensino que
atende a realidade do capital e não a uma cultura humanista. Segundo esse autor, a
sociedade é um misto de ordem e desordem no qual a ilusão é a perfeição e o mundo
que vivemos é imperfeito, mas pode ser melhorado.
Assim, defendo em minhas aulas a necessidade urgente de nos (re)educarmos
para vivermos experiências corporais (trans)formadoras de educação e de lazer.
Reconheço o potencial desse último fenômeno para a nossa formação autopoiética
(no sentido de auto produção criativa) e da nossa coletividade, por meio das práticas
simbólicas e educativas. Considero que:
o lazer se torna uma possibilidade para o sujeito vivenciar uma educação que
objetive a apropriação de ferramentas potencializadoras para a realização de
leituras críticas em relação às estratégias reprodutivistas e alienantes
presentes em nossa sociedade. Uma educação das sensibilidades, com vista à
sua formação integrada, que alcance a saúde, a qualidade de vida (individual)
e da vida (coletiva), a felicidade, em harmonia para viver consigo mesmo,
com o outro, a sociedade e o meio ambiente, de modo pleno e lúdico.
(NORONHA et al, 2010, p. 36)

Por isso, defendo uma educação das sensibilidades que considere outros
conhecimentos e saberes, pouco afeitos nas escolas propedêuticas de nosso país.
Uma educação embevecida de alma, de sentido, do olhar, da escuta de si e do outro,
em diálogo com as diferenças e respeito à alteridade. Uma educação em que a poesia,
a música, a literatura, a arte, a festa, a brincadeira, o lazer, seja provedor de anima,
de sonhos, de ludicidades e de imaginários. Uma educação que reconheça nessas
diferentes práticas educativas, símbolos e arquétipos que possam constituir nos
sujeitos, o corpo mitológico de que nos fala Keleman (2001), aberto aos sonhos,
devaneios e fantasias. Estaremos contribuindo, assim, para que as futuras gerações
possam enfrentar os antigos problemas que não demos conta de resolver,
construindo soluções outras. Aqui, mais uma vez a esperança de que tanto nos fala
Freire se torna imprescindível.

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5. Considerações finais

Finalizo dizendo que Freire permitiu que eu construísse uma concepção de


sociedade, de educação, de homens e mulheres; uma visão de mundo, ao lado dos
trabalhadores, dos oprimidos, daqueles e daquelas que lutam por justiça social e por
um planeta mais humanizado para todos, todas e todes. Sobre esse aspecto vale
lembrar que em “Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do
Oprimido”, Paulo Freire nos conta como fez uma autocrítica na escrita de “Pedagogia
do Oprimido” e também em “Educação como prática de liberdade”, ao concordar
com críticas feitas por mulheres, que, por meio de cartas, questionavam sua
linguagem machista ao considerar apenas os homens. Segundo ele, este não é um
problema menor em sua obra, pois
a discriminação da mulher, expressada e feita pelo discurso machista e
encarnada em práticas concretas é uma forma colonial de tratá-la,
incompatível, portanto, com qualquer posição progressista, de mulher ou de
homem, pouco importa. A recusa a ideologia machista implica
necessariamente a recriação da linguagem, faz parte do sonho possível em
favor da mudança do mundo. (FREIRE, 1992, p. 68)

Desejo que Paulo Freire permaneça vivo em nossos corações, em nossas


práticas sociais e educativas. Ele que tanto denunciou a realidade mundial também
nos trouxe muitos anúncios e nos chamou a atenção para os sonhos. Freire nos
convida a entender que o sonho também é político e que “o(a) intelectual” tem um
papel preponderante em relação ao que se sonha. Diz ele que devemos sonhar o que
é possível de ser realizado e que este persiga as condições concretas,

afinal, não se realiza o sonho a partir dele, em si, mas do concreto em que se
está. Para isso, é preciso compreender o presente não apenas como presente
de limitações, mas também de possibilidade. É preciso, pois, compreender o
sonho como possível e como precisando de ser viabilizado e não como algo
pré-dado. (FREIRE, 1985, p. 67)

Estamos vivendo tempos de retrocessos, de perda de direitos, perda da


dignidade, da volta da fome e da miséria em nosso país. Paulo Freire nunca esteve
tão atual, apesar dos esforços de uma parcela retrógada querer apagá-lo de nossas
memórias. Mas as sementes da justiça social foram há muito lançadas por nosso
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“Patrono da Educação” e, ao viver nossos CORPOS CONSCIENTES e LÚDICOS
renovamos as esperanças no sonho por um mundo melhor e a certeza que tudo isso
vai passar. Esperancemos!
Renovemos nossos sonhos possíveis!!!!! Sejamos mais do que homo sapiens,
faber, simbolicus, ludicus, demens, assumindo nosso homo amans (MATURANA,
2009), e exercitando o melhor de nossa humanidade: o AMOR. Lembremos que,
para Freire, a amorosidade “se materializa no afeto como compromisso com o outro,
que se faz engravidado da solidariedade e da humildade”. (FERNANDES, 2010, p.
27)

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Acesso em: 20 set. 2021

Sobre a autora

Vania de Fatima Noronha Alves: Graduada em Educação Física. Especialista


em Lazer e em Educação Física Escolar. Mestre e Doutora em Educação. Professora
do Programa de Pós-Graduação em Educação e das graduações em Pedagogia e
Educação Física da PUC Minas. Autora dos livros "Rastros de África no Brasil:
práticas educativas no Reinado de Nossa Senhora do Rosário" e "O corpo lúdico
Maxakali: segredos de um programa de índio" E-mail: vaninhanoronha@gmail.com
ORCID: orcid.org/0000-0003-3075-4906

Tramitação:
Recebido em:29/09/2021
Aprovado em:04/11/2021

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