Science">
ARTECOMPOSTAGEM'21
ARTECOMPOSTAGEM'21
ARTECOMPOSTAGEM'21
2
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
3
EXPEDIENTE
Editores Fotografias
Mariana Pougy
Mathias Reis
Rodrigo Reis
Wladimir Mattos
Apoio
SUMÁRIO
9. Notas introdutórias sobre uma ecologia de práticas
Isabelle Stengers
29. Azul profundo como escuta radical
Sebastian Wiedemann
43. Literatura e cosmopolítica
João Pentagna
55. Investigação Baseada nas Artes e Autoetnografia na pesquisa
ecosófica
Felipe Adam Kurschat
151. Intercessões sonoras/musicais: pílulas de (ex)cuta
Marta Catunda
165. Jogo de Arte-Ação como Proposta Pedagógica Ecosófica e de
Cuidado de Si
Carla Moreira Graça Mello; Adilson Pereira; Denise Celeste Godoy de
Andrade Rodrigues
197. Trajetória em vertigem: Metodologias da Não-Arte
Matheus Reis
213. A cidade-casa e suas multiplicidades
Tatiane Alves Ribeiro
225. Entre a cidade e as montanhas: os mamilos-da-terra
Mirian Steinberg
5
6
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
Wladimir Mattos
Rodrigo Reis
7
Notas introdutórias sobre uma ecologia de práticas
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
9
P reparadas para um Simpósio do Centro de Pesquisa em
Humanidades da Universidade Nacional da Austrália,
no início de agosto de 2003, estas notas podem ser
consideradas como um comentário sobre a proposição
de Brian Massumi de que “uma ecologia política seria
uma tecnologia social de pertencimento, assumindo a co-existência e o co-
devir como o habitat de práticas”.1
De fato, foi o que aconteceu, por exemplo, com Henri Poincaré, no final
do século XIX. No processo de descompactar a ideia de convenção, ouviu-
se que ele admitia que as leis físicas eram apenas receitas úteis. Aconteceu
novamente com as recentes “guerras da ciência”.2 Os físicos temiam que
seu ambiente social pudesse ser suscetível à descrição desconstrutivista
e, como eles têm o poder social para equiparar ataques contra a física
com ataques contra a própria racionalidade, mobilizaram esse poder e
retaliaram, produzindo a alternativa aterrorizante - ou você está conosco
e aceita a realidade física da maneira como a apresentamos, ou você está
contra nós e é um inimigo da razão.
Agora, minha própria reação foi - que terrível desperdício! As práticas
desses físicos, como aprendi trabalhando com Ilya Prigogine, podem ser
tão apaixonadas, exigentes e inventivas! Eles realmente não precisam
se apresentar como associados à autoridade da “realidade física”. Mas os
físicos precisam do apoio dessa autoridade, desde que tenham medo de seu
meio ambiente e tenham o poder social e histórico de afirmar que duvidar
da maneira como se apresentam é equivalente a ficar com o Talvez no lugar
da Razão. Mas, desde que afirmações como “a física é uma prática social
como qualquer outra” possam ser consideradas viáveis e plausíveis, os
físicos estariam certos em ter medo. Seu ambiente é realmente perigoso.
Foi assim que produzi o que eu chamaria de meu primeiro passo em
direção a uma ecologia de práticas, a exigência de que nenhuma prática
seja definida tal qual “como qualquer outra”, assim como nenhuma espécie
viva é como outra. Aproximar-se de uma prática significa, então, abordá-
la conforme ela diverge, ou seja, sentir suas fronteiras, experimentando
as questões que os praticantes podem aceitar como relevantes, mesmo
que não sejam as suas próprias questões, ao invés de colocar questões
insultuosas que os levariam a mobilizar e transformar a fronteira em uma
defesa contra o seu exterior.
Agora, há outro processo em andamento, que pode estar associado ao
que Marx chamou de “general intellect”, e que significa a destruição da física
como prática. É o que alguns cientistas já temiam no final do século XIX.
Como é bem-sabido, começando com Ronald Reagan nos EUA, os cientistas
locais se colocaram contra a posição de que deveriam trabalhar diretamente
2 O autor está se referindo ao longo escândalo associado à revista Social Text e à fraude
perpetrada nele pelo físico da Universidade de Nova York Alan Sokal em 1996 [editor].
11
para o desenvolvimento das chamadas forças produtivas, tornando-se
cada vez menos respeitados pelos próprios estados que deveriam apoiar
sua autonomia. Podendo significar que os cientistas se tornassem apenas
parte da chamada “intelectualidade de massa” que os teóricos do Império
veem como a força potencial antagônica contra o Capital.3 Do ponto de
vista desses teóricos, a destruição pode, portanto, ser identificada como um
movimento positivo, assim como a destruição das antigas corporações foi
para Marx. Práticas como tais seriam estratificações estáticas que devem
ser destruídas para que a multidão possa produzir o seu “comum”.
13
para que elas estejam presentes, ou em outras palavras, para que elas se
conectem. Assim sendo, não se abordam as práticas como elas são -físicas
como as conhecemos, por exemplo - mas como elas podem devir.
Talvez possamos então falar novamente sobre algum tipo de
progresso, mas, como diz Brian Massumi, seria um progresso trazido por
uma “tecnologia social de pertencimento”, dirigida às muitas práticas
divergentes e seus praticantes como tais, não um progresso ligado a
qualquer tipo de Verdade, a qualquer contraste entre o velho “homem de
pertencimento” e o “novo homem”, ou o homem moderno.
14
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
15
Isso é ética em uma chave maior, pois implica e significa promulgar a grande
convergência entre Verdade e Liberdade. Somente a Verdade te tornará
livre.
Para traçar uma rota de escape dessa chave maior, eu poderia contrastar
Benedito de Spinoza e Gottfried Leibniz. Tem sido dito que enquanto Spinoza
teve uma concepção otimista do poder da verdade, Leibniz era pessimista;
e eu acrescentaria que ele tinha muitas razões para ser pessimista, já que
seu tempo era o tempo das guerras religiosas, da matança em nome de
Deus e da Verdade. É bem possível que o chamado otimismo de Spinoza
seja muito complicado de entender como um exemplo de pensamento
em “chave maior”, mesmo que ele tenha vindo a ser uma inspiração para
alguns deles. Mas o próprio desconforto que envolve Leibniz, o pensador
da diplomacia sobre quem foi dito “Herr Leibniz glaubt nichts”, marca-o
como um pensador em “chave menor”. Eu acho que Leibniz teria entendido
o “eu prefiro não” de Bartleby - eu prefiro não apelar para a forte droga da
Verdade, ou ao poder de denunciar e julgar, de desconstruir e criticar. A
forte droga do esclarecimento contra a ilusão.
TECNOLOGIA LEIBNIZIANA
Tomemos a afirmação de Leibniz - vivemos no “melhor de todos
os mundos possíveis”. Já em seu tempo isso é algo que não poderia ser
compreendido por nenhum viciado em Verdade. E é como tal que realmente
desempenha o papel de um ponto crítico para Leibniz, não como uma
questão de crença, mas como uma experiência a ser testada. Uma crítica
“pelo meio”, por assim dizer, é uma crítica em nome de nada mais que o
testar que tal afirmação é fabricada para produzir. De fato, você não pode
afirmar que nosso mundo é o melhor sem ao mesmo tempo devir, sem ser
transformado pela obrigação de sentir e pensar tudo o que essa afirmação
implica. Eu diria que o melhor de todos os mundos possíveis é parte de uma
tecnologia leibniziana, como Brian Massumi usava o termo, para nos fazer
pensar pelo e a favor do mundo, e não contra ele.
O contraste entre uma tecnologia e o poder da Verdade é um contraste
ético. Com uma tecnologia vem um senso de responsabilidade que a
Verdade nos permite escapar. Leibniz escreveu que o único conselho moral
geral que ele poderia dar era “Dic cur hic” - diga por que você escolheu
dizer isto, ou fazer isso, nesta ocasião precisa. Tal conselho não implica que
16
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
17
fiel. De fato, ela recusaria a nostalgia de uma situação em que você poderia
tomar o lugar do outro, ou seja, onde as fronteiras podem ser explicadas e
despejadas, por exemplo, através do apelo a algo em comum, mais forte do
que a divergência que essas fronteiras sinalizam. Tal situação não faz parte
de uma ecologia de práticas.
Portanto, assim como Leibniz alegou que ninguém pode saber a
verdadeira razão pela qual eles agem como agem, o ethos dos pensadores
que praticam uma ecologia de práticas deve resistir ao teste de que eles
não podem justificar o que propõem nos termos das razões que devem ser
aceitas, apesar das fronteiras. No entanto, o que eles sabem é que suas
proposições farão parte do meio da prática que lhes diz respeito, e assim
intervirá no ethos dos praticantes. Esse é o ponto pragmático crucial, aquele
que exige que os pensadores neguem ativamente a proteção de qualquer
tipo de razão geral que lhes permita, ou os autorize, a assumir o risco que
estão tomando de qualquer forma.
TECNOLOGIA DE PERTENCIMENTO
Normalmente, a tecnologia está ligada ao poder, e a tecnologia social
significaria poder para manipular, para subjugar; isso é tudo contra o que
devemos lutar em nome da liberdade humana ou social. O problema é que
quando lidamos com a chamada “tecnologia material”, o contraste entre
submissão e liberdade não é muito interessante. Para fazer algo fazer o que
você quer, você certamente pode usar a força bruta, como usar dinamite
para que uma pedra irritante faça o que você quer, para se desintegrar. Mas
para que a dinamite fizesse o que você queria, uma longa linha de químicos
teve que aprender como lidar com os compostos químicos em termos do que
eles poderiam produzir, e esses químicos tiveram que resistir ativamente à
tentação de submeter esses compostos a suas próprias ideias.
A simbiose entre ciência e tecnologia, que caracteriza as ciências
experimentais, não está alicerçada em alguma definição metodológica
comum de seu objeto, como Martin Heidegger teria querido. É, como
toda simbiose, uma relação entre dois modos heterogêneos de ser, ambos
necessitando um do outro, porque sem o outro nenhum deles seria capaz
de atingir seus próprios caminhos e objetivos. Como disse Deleuze, apenas
o que diverge comunica, e a comunicação aqui se baseia no fato de que,
por razões divergentes, tanto a ciência experimental quanto a tecnologia
18
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
19
Quanto a pertencer, ligações/vínculos aqui não significam “fatos
sociais” que podem ser caracterizados como válidos independentemente
da maneira como as pessoas estão conscientes ou não do que os determina.
As ligações/vínculos são importantes e a maneira como elas importam
se torna aparente quando você não as leva em consideração ou age como
se as pessoas estivessem livres ou devessem ser libertadas delas. Como
Latour muito bem mostrou em “A Esperança de Pandora”, ligação/vínculo
e autonomia caminham juntos. As ligações/vínculos são o que faz com que
as pessoas, incluindo todos nós, sintam e pensem, sejam capazes ou se
tornem capazes. O problema não é com a ligação/vínculo; o problema pode
ser que alguns de nós, aqueles que se dizem “modernos”, confundam suas
ligações/vínculos com obrigações universais e, assim, se sintam livres para
se definirem como “nômades”, livres para ir a qualquer lugar, para entrar
em qualquer território prático, para julgar, desconstruir ou desqualificar o
que lhes parecem ilusões ou crenças e afirmações folclóricas.
Latour escreveu a famosa frase “nunca fomos modernos, somos apenas
modernizadores”, quebrando e destruindo ligações/vínculos sem pensar
duas vezes. Podemos muito bem nos apresentar como livres, desapegados
de crenças supersticiosas, capazes de entrar em longas redes, mas no
momento em que você tente dizer aos físicos que seus elétrons são apenas
uma construção social, você entrará em guerra. E você terá merecido,
porque você insultou não apenas suas crenças, mas o que os liga e vincula,
o que os faz pensar e criar de sua própria maneira exigente e inventiva.
CAUSAS
Para afirmar o valor positivo da ligação/vínculo, ou a “verdade do
relativo” deleuziana, em contraste com a relatividade da verdade, uma
tecnologia de pertencimento precisa de uma sintaxe particular. Estamos
acostumados com a oposição entre o reino das causas e o reino da razão e
da liberdade. A ideia usual, um tanto estranha, de que as verdadeiras razões
estariam em harmonia com a liberdade enquanto as causas definiriam
aquilo sobre o que agem como passivo. Em vez disso, aprendi a usar o
termo causa, como quando os advogados francófonos falam de uma causa,
que infelizmente se tornou, em inglês, em “um caso”. É o que os faz pensar
e imaginar.
Aqui novamente estou com Deleuze, desta vez afirmando que pensar
não é uma questão de boa vontade ou bom senso. Você pensa quando é
20
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
forçado ou obrigado a pensar. Você não pensa sem uma “causa”. Porém,
o mais importante é que uma tecnologia de pertencimento não é uma
tecnologia de causas. A questão é enfaticamente que as causas são causas
para aqueles que são obrigados a pensar por elas. Aqueles realmente
pertencem e a causa não pertence a eles. A manipulação de causas não é
impossível - Hitler provavelmente o fez, o marketing o faz todos os dias -
mas pode ser precisamente a isso que a tecnologia de pertencimento deve
resistir. Se a tecnologia de pertencimento pode estar relacionada à ecologia,
é porque a questão que ela aborda o faz positivamente, aceitando as causas
como os ecologistas aceitam que um lobo é um lobo e um cordeiro é um
cordeiro. Não sonham em manipulá-los para que tenham uma coabitação
pacífica; ou seja, eles não sonham em submetê-los às suas próprias ideias
humanas sobre o que seria um mundo melhor.
O ponto crucial, então, aquele que torna possível pensar para o
mundo, mas não o aceitar passivamente, é o fato de que não sabemos
como lobos e cordeiros podem tornar-se capazes, como lobos e cordeiros,
de se comportar em circunstâncias diferentes. Esse é o ponto em que as
causas não pertencem às pessoas. Elas obrigam, mas não há possibilidade
de produzir uma relação definidora entre a causa e a obrigação tal como é
formulada neste ou naquele habitat. Mas isso não significa que alguém seria
livre para definir como está/é obrigado. O “como” é uma questão que expõe,
que coloca em risco, aqueles que são obrigados. O que também significa
que somente essas pessoas podem correr o risco de colocar mudanças
experimentais na formulação de suas obrigações, porque somente elas são
expostas pela pergunta.
Aqui é importante lembrar a diferença entre uma “tecnologia” que
implica ferramentas e o tipo de poder cego de definição que implica
a noção de instrumento. Os instrumentos são concebidos de forma a
cumprir um objetivo geral pré-determinado, ou seja, um objetivo definido
tão independentemente quanto possível da situação. Uma tecnologia de
pertencimento, em contraste, não nutre nenhuma visão ou teoria geral,
tornando cada caso apenas mais um caso. É um caso em todo seu direito,
mas um caso é uma causa, e para cada caso, você não tem uma economia de
pensamento, apenas a experiência que alimenta sua imaginação. Em outras
palavras, nenhum “se ... então ...” deve ser permitido como uma questão de
generalidade, nada pode ser tomado como certo ou garantido.
É por isso que uma ecologia de práticas, como una ferramenta de
pensamento, necessita de termos “genéricos”, como o são causa, obrigação
21
ou risco, que visam conferir a uma situação o poder de importar em seu
modo particular, em contraste com termos gerais que procuram ilustrações,
para casos que não são causas, mas referem-se, em vez disso, à sua unidade
potencial. Unidade sempre significa mobilização, o que se pede aos exércitos
tendo que seguir ordens de forma fiel e imediata.
Para afirmar esse ponto, uma vez usei o termo “cosmopolítica”.4 Não
sei se irei manter essa palavra no futuro porque ela foi usada por Kant e os
kantianos contemporâneos passaram a se interessar por ela, dispondo-a
em uma chave maior. Alguns mal-entendidos são interessantes, mas não
este. De qualquer forma, pretendia afirmar que cada conquista numa
ecologia de práticas, ou seja, que cada relação (sempre parcial) entre as
práticas enquanto tais, à medida que divergem, deve ser celebrada como um
“acontecimento cósmico”, uma mutação que não só depende de humanos,
mas de humanos como pertencentes, o que significa que eles são obrigados
e expostos por suas obrigações. Tal acontecimento não é algo que pode ser
produzido à vontade.
É por isso que a tecnologia de pertencimento não é uma técnica de
produção, mas, como disse Brian Massumi, funciona tanto como um desafio
quanto como um incentivo. Seus dois principais assuntos de preocupação
são a questão do empoderamento, uma questão de acolhimento, e a questão
da diplomacia, uma questão de desafio. Inversamente, o desafio associado
à diplomacia e ao acolhimento associado ao empoderamento devem tornar
explícita a postura cosmopolítica de que “não estamos sozinhos no mundo”.
O que chamo de “causa”, seja qual for o nome que lhe seja dado, não pode
ser reduzido a alguma produção humana, não porque seja “sobrenatural”,
mas porque seria um erro sintático.
DIPLOMACIA E DESAFIO
Como disse Deleuze, uma ideia sempre existe como envolvida
em uma questão, isto é, como “algo que importa” (temos uma ideia em
música, ou pintura, ou cinema, ou filosofia, ou ...). Como resultado, um
problema é sempre um problema prático, nunca um problema universal
que é importante para todos. Os problemas de uma ecologia de práticas
também são problemas práticos nesse sentido forte, ou seja, problemas
4 Ver Cosmopolitiques II, La Découverte e Les Empêcheurs de penser em rond, Paris, 1996.
22
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
23
uma ligação/vínculo, não resulta em nenhuma convergência final sobre a
divergência anterior. A articulação é sempre local. Não há abertura geral da
fronteira; em vez disso, uma contradição (ou/ou) foi transformada em um
contraste (e, e).
Essa conquista é o que descrevo como um acontecimento
cosmopolítico, enfatizando que não pode ser produzido pela argumentação
discursiva. Na verdade, tal argumentação é regida pela ficção do “todos ou
qualquer um” – “todos devem concordar que ...”, “qualquer um deve aceitar
esta ou aquela consequência ...” - uma ficção que rebaixa a boa vontade e o
esclarecimento à criação da possibilidade de uma conjunção, “isto e aquilo”
onde a disjunção “isto ou aquilo”, que conduz à guerra, governava antes.
A diplomacia, portanto, afirma uma divergência entre os desafios e
o que nossa cultura muitas vezes se refere ao trauma da Verdade - alguém
seria desafiado a aceitar a dura Verdade, apesar da ruptura que ela produzirá.
Venha e você será livre, diz a figura de Cristo. A diplomacia é muito mais
antiga que o cristianismo e celebra outra concepção da verdade, bastante
artificial - o verdadeiro é o que consegue produzir uma comunicação
entre partes divergentes, sem que nada em comum seja descoberto ou
desenvolvido. Cada parte de fato manterá sua própria versão do acordo,
assim como no famoso exemplo dado por Deleuze de uma “noce contre
nature” (acoplamento não natural) da vespa e da orquídea, onde não
temos uma unidade vespa-orquídea. As vespas e as orquídeas atribuem
significados bastante distintos à relação que se produziu entre elas.
Chego agora a uma consequência da diplomacia. Não há diplomacia
possível se os diplomatas não podem voltar para as pessoas que representam
e pertencem, se a situação define essas pessoas por sua fraqueza. A
diplomacia nada é se o desafio do eventual acordo diplomático trazido
pelos diplomatas não for considerado como algo que pode ou não ser aceito.
Diplomatas devem ser “empoderados”, mas isso significa que as pessoas
que os empoderam têm o poder para fazê-lo, e também o poder necessário
para aceitar serem colocados em risco pelas proposições que os diplomatas
trazem de volta. É por isso que acolher é uma característica complementar
da diplomacia como tecnologia de pertencimento.
EMPODERAMENTO E ACOLHIMENTO
Usar a palavra empoderamento é um risco porque a palavra agora
está em toda parte, até mesmo nas deliberações do Banco Mundial sobre
24
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
25
escrever que um autor faz a linguagem gaguejar, contra a possibilidade de
identificar a linguagem como uma ferramenta de comunicação a ser usada
à vontade.
É importante contrastar o empoderamento, o poder transformador
produzido pelo que as bruxas chamam de rituais, com a unidade em nome
de uma causa, ou seja, a mobilização. A Deusa que os rituais das bruxas
tornam presente é de fato uma causa, mas uma causa sem um representante,
sem um porta-voz autorizado. É uma causa que não está em nenhum outro
lugar senão no efeito que Ela produz quando presente, isto é, quando
acolhida. E esse efeito não é o de “tomar consciência” de algo que outros
já sabiam, de compreender alguma verdade além das ilusões - seu efeito
é encenar a relação entre pertencer e devir, produzindo pertencimento
como experimentação enquanto está sempre em perigo de ser algum tipo
de hábito psicológico.
Se deve haver uma ecologia de práticas, as práticas não devem ser
defendidas como se fossem fracas. O problema de cada prática é como
acolher sua própria força, tornar presente o que faz com que os praticantes
pensem, sintam e ajam. Mas é um problema que também pode produzir
uma união experimental entre as práticas, uma dinâmica de aprendizagem
pragmática do que funciona e como funciona. Esse é o tipo de “meio” ativo
e acolhedor de que as práticas precisam para serem capazes de responder a
desafios e experimentar mudanças, isto é, para desdobrar sua própria força.
Essa é uma tecnologia social que qualquer prática diplomática exige e da
qual depende.
Comecei com o problema da ecologia de práticas como ferramenta de
pensamento, cuja necessidade sentia enquanto trabalhava com físicos. Os
físicos se sentem fracos e se protegem com as armas do poder, equiparando
sua prática a reivindicações de uma universalidade racional. Mas a
ferramenta, por não ser um instrumento a ser usado à vontade, coproduz
o pensador, como mostra o próprio fato de me ter conduzido da física à
arte das bruxas. Fazendo o que eu fiz, minha prática foi a de uma filósofa,
a de uma filha da filosofia, pensando com as ferramentas dessa tradição,
que excluía a magia desde o início e que, um tanto involuntariamente, deu
suas armas aos físicos e a tantos outros que se apresentam em nome da
universalidade. Talvez seja por isso que eu tive que voltar a esse começo,
já que como filha, não como filho, eu não poderia pertencer sem pensar na
presença de mulheres, não mulheres fracas ou injustamente excluídas, mas
mulheres cujo poder os filósofos podem ter temido.
26
NOTA DO TRADUTOR
Este texto foi traduzido para ser especialmente publicado no contexto
deste livro, e, portanto, de uma discussão em torno à tensão entre pes-
quisa e arte na cena acadêmica e universitária, visando abrir um campo
transversal e indisciplinar de pensamento para as possibilidades do que
a filosofa canadense Erin Manning chama de pesquisa-criação. Manning
dirá que as ecologias de práticas são aquilo que ativa o campo relacional
em seu ponto de inflexão, criando uma nova composição que é capaz
de manter viva a diferença. Em consequência e desde a perspectiva de
um pensamento mais do humano e, portanto, não antropocêntrico, as
ecologias de práticas tornariam possível pensar uma estética, ou nas
palavras de Guattari, um “novo paradigma ético-estético” para além de
falsos problemas e do que Whitehead chamou bifurcação da natureza.
Para aprofundar neste campo problemático ver o artigo de Melanie Seh-
gal “Aesthetic Concerns, Philosophical Fabulations: The Importance of
a ‘New Aesthetic Paradigm” (SubStance, Volume 47, Number 1, 2018 (Is-
sue 145, pp. 112-129).
AGRADECIMENTOS
Somos muito gratos a Isabelle Stengers por ter autorizado a publicação
da versão portuguesa de seu texto, que foi originalmente publicado na
revista Cultural Studies Review, Volume 11, Número 1, Março de 2005.
DOI: https://doi.org/10.5130/csr.v11i1.3459
SOBRE OS AUTORES
Isabelle Stengers é professora emérita de Filosofia das Ciências na Univer-
sidade Libre de Bruxelas (Bélgica). Ela já colaborou com o químico russo-
-belga Ilya Prigogine e com o filósofo francês Bruno Latour, entre outros, e
escreveu amplamente sobre as histórias das ciências, bem como sobre filó-
sofos como Gilles Deleuze, Alfred North Whitehead, William James e Don-
na Haraway. Em português têm sido editados seus livros “No Tempo das
Catástrofes” (Cosac & Naify, 2015) e “A Invenção das Ciências Modernas”
(Editora 34, 2002), assim como os artigos “A proposição cosmopolítica”
(Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 69, p. 442-464, abr.
2018.) e “Reativar o animismo” (Chão da Feira /Cadernos de Leitura, Brasil,
n.62, p. 1-15, maio 2017.). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7723-6140.
E-mail: stengers.Isabelle@ulb.be.
29
O impulso de pensamento que aqui é movimentando
de momento passa pela superfície do papel. No
entanto, já passou por outras arquiteturas do
pensamento, já passou por encontros alegres em
salas de aula físicas e virtuais, já passou por oficinas
em que corpos reinventavam a sala de aula e a atmosfera da aula reinventava
os corpos. Agenciamentos instigados pelo par desejo-acontecimento que
tem movimentado aquilo que venho ruminando como Azul profundo e que
tem intensificado sua dimensão de enzima metamórfica catalisante ou se
se quer de plano de cuidado dos possíveis na intersecção com o “N’Me -
Núcleo de Estudos sobre Novas Metodologias de Pesquisa em Artes” do
Instituto de Artes da Unesp,1 e em especial com as singularidades Wladimir
de Mattos e Rodrigo Reis, no que diz respeito do gesto de acolhimento e
hospitalidade e Nathalia Leter a partir de sua generosa disposição de junto
comigo se abismar em processos de escuta oceânica do ponto de vista da
criação. A eles dedico estas linhas como gesto de gratidão.
*
Vivemos num mundo devastado e em ruínas (TSING et al., 2017),
sendo uma delas a Universidade. E foi a pergunta por como viver e habitar
essas ruínas, sem a pretensão nem de salvar ou refundar, mas das próprias
ruínas extrair condições afirmativas para o pensamento, que meu encontro
com o Azul profundo se deu, como esse plano no qual a especulação como
cuidado dos possíveis podia ser instaurada. No entanto, o cuidado dos
possíveis não é uma questão individual ou de propriedade como quem quer
salvar a própria pele. Insisto, não se trata de salvar, mas de compor em todo
caso comunidades efêmeras nas quais os possíveis possam ser acolhidos,
cuidados e abraçados, mesmo que isso sempre aconteça sob condições
precárias e vulneráveis. Comunidades efêmeras como hospitalidade e
habitabilidade de corpos por parte de forças impensadas e indomáveis.
Fluxos selvagens de uma aventura do pensamento que pede ser canalizada
por corpos-multiplicidades como gesto de possessão. Corpos dispostos ao
30
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
trance. Trances que podem ganhar o nome de Azul profundo; foi assim que
aconteceu na perspectiva pela qual sou falado e que fala mim. Mas fazer
proliferar o plano (inominável) de cuidado dos possíveis é fazer variar as
perspectivas que o modulam e lhe dão consistência. A disposição de uma
ética do cuidado que daria lugar a tais modulações é o que chamaremos
aqui de escuta radical. Uma prática na qual ganhamos intimidade com este
plano, como essa zona crítica e metamórfica onde processos de criação
singulares instauram perspectivas outras como disparadoras da diferença,
da abertura e eclosão de mundos, que potencialmente se poderiam ver
instigadas e animadas pelo Azul profundo.
Em outras palavras, se por um lado o Azul profundo como singularização
do plano de cuidado dos possíveis é um atrator cosmogenético de um
pluriverso sempre cinematográfico - aquilo que temos chamado de
cinematografo cósmico. Por outro lado, ele não pertence a ninguém por mais
que possa ter sido intuído por alguém. Ele pede a hospitalidade, atentividade
e responsividade dos corpos e se manifesta como força conetiva singular
e impessoal em direção a um holobionte especulativo. Em seu dispor-se
rizomático, procura apagar os rostos e sujeições, importando-se só por
processos de individuação como superfícies mais do que humanas pelas
quais o vivente se afirma na passagem por materialidades diversas. Nesse
sentido, o ritornelo que a pergunta de Spinoza - O que pode um corpo?
(DELEUZE, 2002) – instaura aqui; desde a perspectiva de um pragmatismo
experimental, não só a cada vez se diz por outro meios como proliferação de
comunidades efêmeras de modos de existência, mas também como cultivo
de um fazer escuta radical de uma ética do cuidado onde aprendizagens
diagramáticas e gestos embriológicos estão em jogo.
O Azul profundo ressoa aqui com aquilo que Deleuze chamou de
precursor sombrio, o “em si mesmo” da diferença (DELEUZE, 2018) e
que inevitavelmente pede entrar em processos de dramatização. Isto é,
uma vez que o plano de cuidado dos possíveis ao qual o Azul profundo
dá um contorno metaestável demanda ser modulado; a instauração de
uma atmosfera de transauralidades, onde atos generativos de curandeiria
cuidem do valor (MASSUMI, 2018), se faz iminente.
*
Poderíamos falar aqui simplesmente em termos de acompanhar
processos de criação de outros corpos, onde criar é sempre escutar e onde
contingentemente eu entraria em relação com esses outros corpos desde
31
a posição situada e singular do Azul profundo como aquele processo de
criação com o qual tenho intimidade. Isso resolveria um problema ético, o
de só dizer daquilo que efetivamente temos incorporado e tornado hábito.
No entanto, essa disposição ainda diz de uma perspectiva orientada aos
indivíduos e não aos processos. A questão nunca para no corpo, num corpo.
A questão é a de fazer corpo com, a de ser corpo de corpos em devir, a
de se dizer comunidade efêmera de modos de existência. A de, em última
instancia, devir um holobionte, que por definição é sempre mais do que
humano. Nunca estamos sozinhos e a figura do sujeito criador pouco
importa, mas sim interessa a intensificação e variabilidade do ponto de
vista da criação que sempre pede para sair da escala meramente humana.
Só então poderíamos falar daquilo que Stengers define como ecologia de
práticas (STENGERS, 2005) e que cuida dos territórios existências, como
esses campos problemáticos que complicam a vida e o vivente ao se
perguntarem pelo gesto de instaurar e não pelo instaurador, que sempre é
um operador anônimo e impessoal.
Então, não se acompanham os corpos, mas sim os processos de criação
que avançam e atravessam os corpos. Nesse sentido, o acompanhar e o agir
dos corpos seria o gesto de escutar radicalmente, isto é, em intensidade, a
propensão das forças germinativas e generativas que fazem variar a vida
a partir de uma prática sempre singularizada em suas técnicas. O Azul
profundo, um exemplo, um treinamento para este acompanhar como
pedagogia radical em processos de pesquisa-criação (MANNING; MASSUMI,
2014) que travam uma relação inexorável com a escrita por ser esse lugar
no qual se aprende a fazer circular o vivente entre o concreto de uma
prática sensível e a abstração do conceito. Uma aliança, que acreditamos
nos cuida e, portanto, cuida à vida da vontade de clausura do sujeito. Isto é,
uma aliança com o conceito para intensificar a experiência que faz avançar
os processos de criação, dando como retorno o fato de só poder escrever do
conceito como incorporação material. Fazer das abstrações corpos e com elas
inventar novos corpos. É assim como poderíamos definir uma certa relação
entre arte e filosofia, contudo preferimos continuar falando em termos de
ecologia de práticas onde conceitualidades e multisensorialidades materiais
e consistentes se emaranham, coexistindo, coevoluindo e coaprendendo.
Em última instância, dando lugar a uma textura sensível-conceitual que
se diz porosa, pois elementos conceituais não param de perfurar, pular e
mergulhar na experiência material e vice-versa como vibração criadora do
plano de cuidado dos possíveis.
32
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
*
Mas não esqueçamos, estamos vivendo num mundo devastado e
em ruínas e em particular a ruína que é a Universidade, não para de criar
situações nas quais os corpos se sentem impotentes e adoecem e, portanto,
os processos de criação se veem truncados. Os corpos já não são capazes
de cuidar de um problema e, em consequência, de pesquisar como processo
generativo e potencializador, já não são capazes de escutar o chamado
de um plano de cuidado dos possíveis, se chame este Azul profundo, ou
como o idioma singular de cada corpo o consiga pronunciar e materializar,
enquanto plano de composição (DELEUZE; GUATTARI, 1992). Sendo que
aqui entendemos pesquisa como a insistência cuidadosa e rigorosa em dar
consistência, a partir de uma escuta radical e vitalista, a um problema. Isto é,
a um campo problemático que, por sua vez, o coabitamos e é experimentado,
explorado, modulado e posto em variação e proliferação por meio de
processos de criação sempre sensíveis, que podem se manifestar por meio
de práticas heterogêneas. Gestos de escrever, de traçar, de performar, de
compor com as mais diversas materialidades, de fazer corpo e de fazer
passar potenciais existenciais pelas mais variadas superfícies. Tela, papel,
pele, tecidos orgânicos e inorgânicos… Meios dando lugar a ecologias de
práticas sem hierarquias e de escutas que mutuamente se incluem entre
modos de fazer e, portanto, de existir. Ecologias de práticas, que assim
sendo, não julgam e fazem do valor (MASSUMI, 2018) uma carga energética
como potencial dinâmico e transitivo de composição e relação. Pesquisar
como pragmatismo experimental e ética do cuidado do que se dá a existir.
Re-ativar tal potência de pesquisar nos termos que aqui defendemos,
foi o intuito da oficina “Escutas Radicais: Ecologia de práticas e práticas em
ecologia” que levei adiante com o “N’Me - Núcleo de Estudos sobre Novas
Metodologias de Pesquisa em Artes”, assim como com estudantes de pós-
graduação da Faculdade de Educação da Universidade de San Buenaventura
(Colômbia).2
Essas oficinas de algum modo partiram da pergunta por como tornar
as ruínas uma ocasião afirmativa para o pensamento. Sendo que não se
trata aqui de uma questão de otimismo, mas de pragmatismo onde de fato
se entende a ruína e a vulnerabilidade e a precariedade que com ela vem,
2 Agradeço especialmente à professora Teresita Ospina por ter feito possível esta
ocasião.
33
como a condição de apertura de mundos, como a fratura necessária para
que o ideal de um mundo uno não se imponha. A Universidade enquanto
ruína é a rachadura necessária para que o valor deixe de estar sequestrado
pelo poder e possa devir práxis singular. Isto é, cada corpo a cada vez
teria que reconfigurar uma teoria singular do valor como vontade de
potência fragmentária e local que favoreça qualitativa e intensivamente a
consistência do plano de cuidado dos possíveis na sua particularidade ao
ser hospedado e cuidado ponto a ponto por um corpo igualmente singular
enquanto comunidade efêmera de modos de existência. Tal operação é um
ato de escuta radical. Escutar é abrir um espaço-tempo singular para um
existir como processo acumulativo e por saltos de memórias de futuro.
Escutar é instaurar uma atmosfera de transauralidades, que como temos
dito, se diz ato generativo de curandeiria que cuida do valor ao revalorizá-
lo (MASSUMI, 2018) a partir de aprendizagens mais do que humanas.
Trata-se então de não deixar o valor nas mãos do poder para de
alguma maneira permanecer numa instância sub-representativa, onde
o cuidado dos problemas e, portanto, dos possíveis, se torne rico. Nessa
instância sub-representativa dos processos de criação, o valor aparece
como a determinação da indeterminabilidade que não fixa a potência numa
direção única. Ou seja, o valor se manifesta como carga de virtualidades e
a escuta na sua radicalidade como potência conetiva e de relação. Mas o
que aqui estamos chamando de escuta radical não é algo dado. O dado, o
cliché, em todo caso, é uma mono-escuta, que por sua vez responde a uma
cultura de mono-técnicas (HUI, 2020) que priorizam formas específicas de
conhecimento vinculadas à vontade de medir, calcular e dominar como
colonização quantitativa do valor. Portanto, nos cabe instaurar atmosferas
de transauralidades, enquanto processos de individuação do vivente que
se dizem escutas transversais, transdutivas e transformacionais. Em outras
palavras, e pensando aqui em Stengers (2018) e Hui (2020), é nas atmosferas
de transauralidades que uma cosmoescuta como não subordinação a um
universal do valor e, portanto, como potência fragmentária e intervalar que
favorece o encontro de heterogêneos, acontece.
Neste sentido o Azul profundo poderia ser pensado como uma aura¸ como
um caso singular de um conglomerado de atmosferas de transauralidades
onde aprendizagens mais do que humanas acontecem. Assim, acompanhar
processos de criação é se dispor a continuar na coaprendizagem de escutas
(radicais) como diagramas que fazem variar as ecologias de práticas em
jogo. A cada escuta, é movimentada toda uma pedagogia radical, na qual
34
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
35
linhas que já esqueceu que esse impulso de pensamento em algum momento
passou pelo Azul profundo. Ou em todo caso fazer do Azul profundo uma
condição e propensão de escuta radical é des-fazê-lo, é torná-lo des-obra
como apertura de habitabilidades vacantes e compartilháveis para outras
modulações do pensamento. Modulações sempre somáticas em meio a
comunidades de confiança, pois se compartilham riscos com esses outros
humanos e mais do que humanos como matérias ativas que mantêm o
mundo em processo, em obras, aberto...
Os canais e gestos escriturais, cada um com seu caudal e tono singular,
pelos quais emergiram proposições para intensificar a nossa intimidade
como o mundo, foram: a) escuta radical como cristal vitalista criadouro
mais do que pessoal (a partir do dispositivo da entrevista); b) escuta radical
como encontro com materialidades mais do que humanas (a partir do
dispositivo da carta); c) escuta radical como encontro entre heterogêneos
(a partir do exercício de re-escrita como montagem); d) escuta radical
como processo de afetação e aprendizagem mais do que humana (a partir
do dispositivo do diálogo); e d) escuta radical como disposição receptiva
diante do impensado e do acontecimento (a partir do dispositivo do oráculo).
Todos esses canais e canoas que por sua vez colocam à prova a sua eficácia
na medida em que afirmam não só uma intimidade com o mundo e o devir
comunidades efêmeras de modos de existência dos corpos, mas também
ao exacerbar a nossa relação com as práticas e suas respetivas técnicas.
Pois entendemos que um corpo que não se faz a práticas e técnicas é um
corpo que nega a sua condição relacional com o mundo, que nega a sua
possibilidade de vínculo com este. Tratando-se aqui muito menos de uma
antropo-tecno-gênese e muito mais de entender as práticas e suas técnicas
como condições para fazer do humano humusidades (HARAWAY, 2016) de
holobiontes especulativos, que não por serem especulativos são menos
reais quando o que há de mais real é o cuidado dos possíveis que acontece na
especulação e que mantém a força genética de mundos por vir latente. Isto é,
do que se trata é de abrir condições para poder instaurar co-habitabilidades
imanentes nos e dos processos de pesquisa-criação. Abrir continuidades
nas descontinuidades, conectividades onde o corpo é pesquisa e a pesquisa
se faz corpo, pois as atmosferas de transauralidades não estão fora de nós,
mas nós estamos em meio a elas e elas em meio de nós. Portanto, as atmosferas
de transauralidades desde sua porosidade e penetrabilidade generativa já
incorporam a ruína (da Universidade) como mais um componente ativador
e afirmativo do holobionte em jogo.
36
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
*
Não caberia aqui abandonar o impulso de pensamento que o Azul
profundo tem feito fervilhar até se transmutar em potência proposicional
indeterminada, por querer dar conta das oficinas que têm acontecido. Não se
trata aqui de postular modelos ou manuais como quem informa e, portanto,
faz circular palavras de ordem, dizendo aquilo que se deve acreditar
(DELEUZE, 2012), mas de manter viva a vontade de experimentação, a
vontade de aprendizagem como experimentação e instância constituinte
de uma pedagogia radical dos processos de criação. Trata-se de manter vivo
um “lure for feeling” (WHITEHEAD, 1978), um atrator de afetação, que para
continuar ativo, longe de pedir que a experiência seja reposta, pede que a
experiência seja exposta enquanto acontece. Isto é, abraçando e ao mesmo
tempo me desgarrando e desmembrando do Azul profundo, até já quase
não conseguir pronunciá-lo, mas ainda suas intensidades falando em mim,
instaurar auras, atmosferas de transauralidades, vontades de cosmoescutas.
Um exemplo fecundo disto foi a cosmoescuta que das oficinas se
desdobrou com a Nathalia Leter. O encontro como compartilhamento
de riscos, como constituição de uma comunidade efêmera de modos de
existência se fez autônomo na sua vontade de pesquisar e, portanto, de
escutar, de experimentar, de criar e escrever dando lugar a um conceito
conjugado entre ela e eu: a imanência do braçal. Nessa ocasião improvável
a escuta radical se vez comum, se fez transaural, se fez e passou por toda
uma ecologia de práticas compartilhadas desde singularidades situadas
que de modo local sentiram o chamado a cultivar um espaço potencial a
ser coabitado como ato de criação que emerge de uma necessidade vital
(DELEUZE, 2012). A imanência do braçal, assim como a escuta radical,
enquanto proposição, dizem em última instância da iminência de se re-
conectar com o vital e o necessário, com as necessidades vitais, desde as
quais a própria existência se afirma como processo de pesquisa-criação,
sendo a Universidade tão só uma das arquiteturas possíveis para que a
aventura do pensamento possa proliferar. E se se faz uma aliada da ruína, e,
portanto, da Universidade, é porque em tempos de extinção não podemos
nos dar o luxo de negar nada por mais que seja impossível afirmá-lo tudo.
Passa-se por superfícies do pensamento, agora o papel, em algum instante a
Universidade, em outro o cinema e o Azul profundo, para tornar mais rica a
textura do próprio pensamento. E é nas atmosferas de transauralidades que
a textura do pensamento como costura de cosmoescutas, na sua disposição
reticular, se faz abundante em poli e metamorfismos que fazem florescer o
plano de cuidado dos possíveis.
37
*
A imanência do braçal diz de uma magnitude intensiva do pensamento,
mas, sobretudo, de como os conceitos, ao serem produzidos, carregam forças
materiais e telúricas. Esse conceito como derivado de uma escuta radical,
e ao mesmo tempo como escuta radical em ato, diz de uma densidade
compostagênica do pensamento que não vem das alturas mas sim de pensar
ao nível do rés-do-chão, ali onde junto com as minhocas e a serapilheira
se engendram as humusidades. A imanência do braçal dá contorno a uma
energética e a um apetite do pensamento que inevitavelmente tem que
se verter na terra como o lugar no qual as ideias podem germinar e cuja
potência conetiva passa pela eficácia da enxada que prepara o terreno. Em
última instância, esse conceito diz de como o necessário e o vital modulam
e singularizam um pragmatismo experimental e especulativo.
O que se passou entre o Azul profundo e a imanência do braçal? A
musculatura do pensamento mudou, o necessário e o vital mudaram e com
eles o campo problemático e seus apetites. Abriu-se no meio uma zona
crítica de atmosferas de transauralidades como berço para coletividades
emergentes (MANNING, 2020) que tiveram a coragem e confiança de
compartilhar o risco de coabitar processos de criação. Isto é, de fazer
passar pelo corpo, de dar vida no corpo não só ao conceito, mas também
à experiência como práxis especulativa e de pensamento que por sua vez
faz dos corpos outros. O Azul profundo como escuta radical do seu “em
si” diferencial (autoescuta ou escuta intrínseca da diferença) se abre, se
dispõe a escutar suas vizinhanças em parentescos insólitos (o oceânico e o
telúrico se encontrando numa escuta do outro como escuta extrínseca da
diferença) para em todo caso ativar por sua vez mais uma camada de escuta
radical. Nesse caso, do “em si” diferencial do outro (escuta oblíqua ou do
outro do outro). Toda uma diagramática aural e fractal por camadas que
multiplica as direções e dimensões por onde o fazer escuta radical pode
ser declinado e conjugado, pois o valor tem deixado de estar sequestrado
e pode se manifestar de modo não quantificável e na plenitude de sua
incomensurabilidade como mais-valia de vida, enquanto um puramente
qualitativo que diz da intensidade dos potenciais vividos (MASSUMI, 2018).
*
Não posso deixar de pensar aqui no trabalho de Henrique Rocha de
Souza Lima (2018) quando nos apresenta o conceito de desenho de escuta
38
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
39
Não seria a pergunta pelo modo dos efeitos emergentes dos processos de
criação como realidade qualitativa, como magnitude intensiva, como qualidade
sensível da afirmação do “mais que o acontecimento” enquanto valor excedente
de vida (MASSUMI, 2018) aquilo que se procura cuidar, curar e instaurar com
a práxis de escuta radical?
O Azul profundo tão só uma isca, uma linha, uma pista...
AGRADECIMENTOS
A pesquisa-criação que deu lugar a este texto foi possível graças ao
financiamento do CNPq. Versões anteriores dele foram apresentadas em
modo de palestra nos eventos “III Colóquio Metodologias de Pesquisa em
Artes – Unesp” (2020) e “V Coloquio de la Red de Estudios Latinoamericanos
Deleuze y Guattari – UNAM” (México, 2020).
REFERÊNCIAS
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. São Paulo: Paz & Terra, 2018.
HARAWAY, Donna. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene.
Durham: Duke University Press Books, 2016.
WHITEHEAD, Alfred North. Process and Reality. New York: Free Press,
1978.
SOBRE O AUTOR
Sebastian Wiedemann é cineasta-pesquisador e filósofo, doutor em Ed-
ucação. Professor-pesquisador da Escola de Educação e Pedagogia da
UPB – Universidade Pontifícia Bolivariana (Colômbia). Recentemente
editou os livros Conexões: Deleuze e Cosmopolíticas e Ecologias Radic-
ais e Nova Terra e... (2019) e Pensamientos Migrantes: Intersecciones
cinematográficas (2020). Como autor publicou o livro Deep Blue: Future
Memories of A Livings Cinematic In-Between (2019). CV Lattes: http://
lattes.cnpq.br/1020819778569159. ORCID: https://orcid.org/0000-
0002-4984-7312. E-mail: wiedemann.sebastian@gmail.com.
41
Literatura e cosmopolítica
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
Literatura e cosmopolítica
João Pentagna
43
N os anos setenta e oitenta o escritor satírico Elias
Canetti, empreendendo um movimento mais
afirmativo e cartográfico — olhar, ouvir, sentir,
avaliar segundo critérios vitais, se posicionar no
nível de um dizer processual e integrador — do que
simplesmente escarnecedor e denunciatório, escreveu sua autobiografia em
três volumes com títulos muito belos e precisos: A língua absolvida; Uma luz
nos meus ouvidos e O jogo dos olhos; precisos especialmente se desejarmos
esclarecer quanto à literatura o que Deleuze chamava de pedagogia da
percepção, arte que envolve a espreita, a sensibilidade expandida e um
cuidado ecosófico, isto é, rizomático com o planeta.
Porque, se vivemos dentro desta atroz cegueira, imersos no delírio
paranóico do Homem, projetados sobre o cavalete de tortura e autotortura
no qual se estende a humanidade, tal equívoco neurótico dissimula
que há por outro lado uma responsabilidade absoluta para com a vida e
simultaneamente para com as palavras. A vida ela mesma é um dizer em
processo, o simbólico já é latente no mais elementar e há povos que ainda
acreditam que as pedras, os rios, as chuvas, os trovões, as montanhas, as
plantas e os animais também falam.
A palavra pode dilacerar como as correias de um chicote ou perfurar
e inocular-se num corpo qual aguilhão de morte; não comunica, mas
comanda, incita, influencia, convence, faz adoecer ou curar. Como escutá-
la e utilizá-la fora do sistema de interesse, de usura e do vampirismo
que a monopoliza? Essa era uma questão tão determinante para Canetti
enquanto escritor quanto foi para Freud como analista que descobriu a
micropolítica das forças ativas (Eros) e reativas (Tânatos) sob as formações
do inconsciente e fundou a psicanálise como pragmática da linguagem que
Lacan reformula nos termos do “bem dizer” (bien dire).
Era uma vez uma pobre criança e ela não tinha pai
nem mãe, estavam todos mortos e não lhe restava mais
ninguém no mundo, todos mortos, e ela chorava dia
e noite. E como não lhe restava ninguém na terra, ela
quis ir para o céu, e a lua a olhava com muito carinho; e
quando finalmente ela chegou na lua, esta não passava
de um toco de madeira podre, e então a criança foi para o
sol, e quando chegou ao sol, este era apenas um girassol
murcho, e quando chegou às estrelas, elas eram pequenos
mosquitos dourados, que estavam espetados como o
picanço espeta-os na ameixa brava, e quando ela quis
voltar para a terra, a terra era uma vasilha entornada,
e ela estava inteiramente só, e ela sentou-se e chorou,
e continua sentada ali e está muito só. (GUINSBURG;
KOUDELA, 2004, p. 259)
2 A primeira direção da pesquisa literária de Canetti vai no sentido da sátira. Ver Auto-
de-Fé, o primeiro e único romance de Canetti escrito em 1935 (o livro maior sobre os
delírios histórico-mundiais) e suas peças de teatro reunidas no livro O Teatro terrível:
O casamento (1932), Comédia da vaidade (1950), Os que têm a hora marcada (1964).
45
a tolice, o otimismo do progresso e do trabalho — a crítica aos homens
de lata e aos homens carboníferos em D.H. Lawrence — para escarnecer
e esmigalhar os ideais inadequados à vida; sabe o que é ser possuído —
“Porque é da lógica anatômica do homem moderno nunca ter podido nem
pensado viver senão possesso.” (ARTAUD, 2007, p. 41) — e decide encarnar
os fantasmas, confrontá-los, ainda que, no entanto, caso mantenha sua
tarefa irremissível voltada para a Terra e seu elemento telúrico — “Sou
ligado à Terra por laços mais que terrestres” (VAN GOGH, 2002, p. 343)
—, os aprofunda e os impele enquanto caricaturas precisas da demência
humana e vai além, ao ar, atravessa como uma flecha de luz para os
elementos eólicos, acessando o inumano não mais como o estranho funesto,
elemento aquático ou terrestre, mesmo que passando por aí também, mas,
de maneira estrangeira, leve, nômade, cede lugar ao que insiste e subsiste
na bruma, advoga e dá testemunho das existências animalistas convocando
e conflagrando uma voz singular que não cessa de cantar seu canto falado
(sprechgesang).
É que a comunicação, o conhecimento intelectual, a distração e o
entretenimento dissimulam o fato das principais funções da literatura —
de um ponto de vista da força e não da forma — serem: a denúncia das
próprias formas pelas quais a humanidade é hipnotizada, como também
uma espécie de pedagogia da percepção, caso se tome emprestada uma
expressão usada por Deleuze para se referir ao estiramento dos nossos
sentidos através do cinema.
Na denúncia há o rigor e a minúcia implicados no escárnio dos
automatismos que se insinuaram na vida humana3. Como a saga do Pai Ubu
em Jarry, na qual o personagem reúne em si toda a covardia, a maldade
e a imbecilidade do homem. Tendo traído e assassinado o rei, torna-
se soberano da Polônia e, no entanto, não há nesse feito absolutamente
nenhuma coragem. O que o move é seu estômago, ele expressa o pensamento
digestivo da besta, manifestação no homem — não do animal diferenciado
o qual o instinto dotou de comportamentos reconhecíveis e explicáveis
por sua natureza — mas de um fundo indeterminado, massa leguminosa e
indiferenciada, o buraco que jaz oculto em cada animal. Pai Ubu é o retrato
3 Tema do livro O Riso, de Henri Bergson, e matéria da literatura dos tipos. Para Bergson
o que o riso chicoteia são as paralisias, os automatismos, as hipnoses e as vaidades que
se instalam no fluxo da vida. BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da
comicidade. 2ª edição. Martins Fontes, 2007.
46
perfeito da bestialidade que também atinge hoje as manadas bolsonaristas
mobilizadas pelos seus interesses individuais e pelas palavras de ordem
provenientes do seu mestre. Como Macbeth, Pai Ubu também vai hesitar
diante o ato e precisa de uma esposa mais sorrateira, Mãe Ubu, que com
palavras insidiosas o incita:
Os únicos afetos que fazem Pai Ubu pensar são o medo, a gula e a
ganância, sendo esses os verdadeiros motores da sua crueldade, ali onde
nosso riso castiga sem dó. Giorgio Agamben, escrevendo a respeito de Jarry
nos fornece uma indicação preciosa sobre o abismo a que nos expõe o riso
e o modo como nessa “queda” se passa da fusão no indiferenciado para uma
individuação que é ateológica e vertiginosa:
48
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
49
aspiradas de um riso voluntarioso, que ao pobre Sali soava
como o canto do rouxinol. Oh, sua feiticeira! — exclamou.
Onde você aprendeu isso? Que artes do diabo são estas
que você está praticando? (KELLER, 2013, p. 61)
50
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
REFERÊNCIAS / REFERENCES
ARTAUD, Antonin. O suicida da sociedade. Rio de Janeiro: Editora José
Oympio, 2007.
CANETTI, Elias. O jogo dos olhos. São Paulo: Companhia de bolso, 2010.
CANETTI, Elias. Uma luz nos meus ouvidos. São Paulo: Companhia de
bolso, 2010.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. 2ª edição. São Paulo: Editora 34, 2011.
JARRY, Alfred. Ubu Rei. São Paulo: Editora Peixoto Neto, 2007.
KELLER, Gottfried. Romeu e Julieta na aldeia. São Paulo. Editora 34, 2013.
52
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
VAN GOGH, Vincent. Cartas a Théo. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2002.
SOBRE O AUTOR
João Pentagna é escritor, psicanalista, mestre em Psicologia Clínica pelo
Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUC-SP. Estrutura sua clínica a
partir do crivo teórico-pragmático da esquizoanálise deleuziana e pelos
critérios éticos das filosofias da imanência. Idealizador e professor do
ciclo de aulas Cartografias do Inconsciente e mediador dos grupos de
estudo Psicanálise para Além do Édipo. Pentagna atua hoje como ana-
lista, supervisor clínico e professor em São Paulo.
53
Investigação Baseada nas Artes e Autoetnografia na
pesquisa acadêmica: alguns apontamentos
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
55
C ontextualizando brevemente, o termo Investigação
Baseada nas Artes (IBA) tem sido paulatinamente
construído e incorporado ao vocabulário das
investigações acadêmicas desde os anos 70 e 80,
quando investigadores norte-americanos passaram a
questionar outras abordagens metodológicas que poderiam ser exploradas
nas áreas da psicologia, educação, antropologia e sociologia. Thomas
Barone e Elliot Eisner (2006) foram os primeiros autores a sistematizarem
este campo metodológico em ascensão, com o intuito de fomentar pesquisas
que poderiam ampliar ou transformar a compreensão sobre determinadas
ações humanas por meio da realização de processos artísticos (OLIVEIRA;
CHARREAU, 2016, p. 271).
Como alternativa para se construir investigações acadêmicas que
não pertençam e reproduzam modelos hegemônicos das investigações
científicas (HERNÁNDEZ, 2008, p. 86), a Investigação Baseada nas Artes
propõe inovações metodológicas de modo transdisciplinar em diferentes
áreas do conhecimento, trazendo para o protagonismo pesquisas práticas
artísticas e pedagógicas que priorizem processos relacionais intersubjetivos,
com o intuito de construir leituras da realidade social. Amparada nas
proposições do paradigma construcionista (campo da psicologia social que
elaborou a crítica ao cientificismo), a Investigação Baseada nas Artes reflete
sobre o modo como as pessoas percebem a realidade, problematizando
o contexto histórico-social e o local que ocupam no mundo, de modo a
construir interpretações que partam de suas subjetividades.
56
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
57
A construção de histórias supõe uma maneira de conhecer.
Significa dizer que dentro da Investigação Artística o
processo de escritura narrativa é parte do caminho que
se transita durante o qual o artista/investigador errante
segue indagando, interpretando e reinterpretando.
Através da criação do manuscrito, dá a conhecer seu
processo, mas não somente se limita a fazer um relato
descritivo de como os fatos aconteceram, como também
diante da construção de uma colagem narrativa em que o
tempo não é linear, se pode dar a conhecer as diferentes
experiências por diversas vias desde outros pontos de
vista.2 (ALVAREZ, 2013, p. 64)
2 Tradução própria, texto original: “La construcción de historias supone una manera de
conocer. Es decir, dentro de la Investigación Artística, el proceso de escritura narrativa
es parte del camino que se transita durante el cual el artista/investigador errante sigue
indagando, interpretando y reinterpretando. A través de la creación del manuscrito,
da a conocer su proceso, pero no solo se limita a hacer un relato descriptivo de cómo
han sucedido los hechos, si no que mediante la construcción de un collage narrativo en
el que el tiempo no es lineal, se pueden dar a conocer las diferentes experiencias por
diversas vías, desde otros puntos de vista. (ALVAREZ, 2013, p. 64)”
58
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
59
A autoetnografia é um método de investigação que ocorre entre os
campos autobiográficos e etnográficos, com a finalidade de descrever e
analisar sistematicamente a experiência pessoal para criar compreensões
da experiência cultural (ADAMS; BOCHNER; ELLIS, 2015, p. 250). Ou ainda,
segundo o sociólogo brasileiro Silvio Matheus Santos, por mais ampla e
controversa que seja a definição de autoetnografia, é possível resumi-la a
partir de três características:
3 Tradução própria, texto original: “La etnografía no es una práctica inocente. Nuestras
prácticas de investigación son performativas, pedagógicas y políticas. Através de
nuestra escritura y nuestra charla, promulgamos el mundo que estudiamos. Estas
actuaciones son desordenadas y pedagógicas. Ellas enseñan a nuestros lectores acerca
60
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
de este mundo y cómo nos ven. Lo pedagógico es siempre moral y político; promulgando
una forma de ver y de ser, cuestiona, concursa, o hace suyas las formas hegemónicas
oficiales de ver y representar el otro. (DENZIN, 2013, p.212)”
4 Tradução própria, texto original: “Se trata de una arqueología del desenterrar,
para usar la frase de Madison, que no es nunca ni impecable ni concluido. Se trata
de un proceso continuo de hacer visible, excavando, mirando, sintiendo, moviendo,
inspeccionando, siguiendo y re-localizando recuerdos antiguos y nuevos (MADISON,
2005). Como autoetnógrafo me embebo en la historia propia, mis memorias e historias
de mi pasado. (DENZIN, 2016, p. 68)”
61
Junto da escavação, se encontra a tarefa de construir poéticas próprias
por meio do gesto criativo que é entendido aqui como traduzir. Assim, a
pulsão de criar as materialidades cênicas reside no desafio de elaborar
traduções das experiências em campo. Como fazer teatro partindo da
intenção arqueológica de escavar a nós mesmas?
Portanto, o exercício intelectual e artístico de formular traduções
é proposto como um disparador que nos coloca em movimento criativo.
E para formular traduções, mais uma vez é preciso voltar o olhar sobre o
modo de pensar:
62
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
REFERÊNCIAS / REFERENCES
ADAMS, Tony E., BOCHNER, Arthur P., e ELLIS, Carolyn. Autoetnografía:
un panorama. Astrolabio Nueva Época: Revista digital del Centro de
Investigaciones y Estudios sobre Cultura y Sociedad. [s.i.] n. 14, p. 249-273,
2015. Disponível em <https://revistas.unc.edu.ar/index.php/astrolabio/
article/view/11626>. Acesso em: 02 mar. 2020.
63
nas artes” e da A/R/Tografia para as pesquisas em educação. Educ.
rev., Belo Horizonte, v. 32, n. 1, p. 365-382, Mar. 2016. Disponível
em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
46982016000100365&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 29 mar. 2021.
64
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
SOBRE AS AUTORAS
Marília Velardi é professora na Escola de Artes, Ciências e Humanida-
des da Universidade de São Paulo (EACH/USP) no Programa de Pós-Gra-
duação em Mudança Social e Participação Política. Como pesquisado-
ra volta as atenções para as investigações qualitativas e radicalmente
qualitativas, buscando construir conhecimento sobre possibilidades de
investigação acadêmica em Artes. É coordenadora do Grupo de Estudo e
Pesquisa ECOAR, que atualmente tem como focos: (a) construir conhe-
cimento com artistas sobre a Arte; (b) buscar epistemologias artísticas
como suporte para as investigações qualitativas e (c) criar estruturas
de performances dos dados ou dos conhecimentos produzidos nas in-
vestigações. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2230-9319. E-mail:
marilia.velardi@usp.br
65
A arte orientando a pesquisa: a Investigação Baseada
nas Artes como possibilidade metodológica
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
67
A tuamos com arte, nas artes e sobre artes.
Quando construímos uma cena, uma coreografia,
ou compomos uma música, desenvolvemos condutas
de pesquisa, que são direcionadas por nossas escolhas
estéticas. As tomadas de decisões, a escolha dos
processos e técnicas envolvidas, a construção e produção criativa se dão por
processos próprios das artes nas quais, como artistas, estamos mergulhadas,
e os processos incorporados (FERNANDEZ; MATSUO; VELARDI, 2017).
A arte é nosso ofício1. E como artistas, como nós pensamos?
E como esses modos de pensar podem alicerçar nossos fazeres
investigativos?
Renata é artista do corpo. Bailarina, performer, professora de dança
e investigadora da/na/sobre as artes na Universidade de São Paulo (USP).
Paulo é maestro, compositor, encenador, cenógrafo e figurinista. É
fundador e diretor do NUO-Ópera Laboratório, que desde 2004 investiga
novas possibilidades para a encenação e adaptação em ópera.
Marilia é professora e pesquisadora na Escola de ARTES, Ciências
e Humanidades da USP. Coordena o Grupo ECOAR2 e tem proposto
intervenções, performances, encenação e projetos de investigação junto
a artistas, estimulando e construindo práticas e estudos sobre preparação
corporal para a performance, encenação e criação.
Como pessoas investigadoras, inseridas no grupo de estudos ECOAR,
temos buscado coerência em construir a pesquisa a partir de como
pensamos. Acreditamos que na universidade, como pesquisadoras, devemos
construir a estruturação do nosso pensamento, o modo como pensamos,
relacionando a nossa biografia àquilo que investigamos.
1 Aqui a ideia de ofício parte de Charles Wright Mills (1972), entendendo que não há
separação entre vida e trabalho. O trabalho como ofício significa fazer uso da sua
experiência de vida no seu trabalho a todo instante.
68
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
69
têm acontecido em lugares e contextos diferentes, em países da Europa, da
Oceania e aqui, na América Latina. Esse modo de se fazer pesquisa detém
uma grande variedade de possibilidades, e cada grupo de pesquisadores,
levando em consideração as características e necessidades (políticas e
teóricas), têm nomeado e classificado à sua maneira: Pesquisa Artística,
A/r/tografia, Pesquisa baseada nas artes, Pesquisa baseada na prática,
Investigação performática.
Optamos por usar o termo investigação (Baseada nas Artes), pois
buscamos nos distanciar das visões mais tradicionais e padronizadas
do “fazer pesquisa” na universidade, retirando o status da pesquisa e
implantando a simplicidade do ato investigativo (sem hierarquização de
termos, mas diferenciação e distanciamento).
Além disso, acreditamos que a IBA seja por excelência uma forma de
se fazer pesquisa qualitativa e, mais precisamente, pesquisa “radicalmente”
qualitativa, isto pois entendemos que as investigações qualitativas
acontecem num espectro (figura 1), cujo vórtex é um continuum que
vai daquelas investigações qualitativas realizadas sob uma perspectiva
positiva de ciência, até os estudos que têm sido construídos na busca de
novas epistemologias, denominadas radicalmente qualitativas ou pós
qualitativas. A imagem do espectro se dá também pelo fato de acreditarmos
que o eixo representa as pesquisas que ocorrem dentro da universidade, mas
nas extremidades verticais, ao longo desse espectro e borrando as nossas
pesquisas, há a vida comum, em movimento, com diferentes cosmologias,
com conhecimentos comuns e ancestrais, e sem hierarquização, há as
teorias cunhadas nas universidades (VELARDI, 2018).
71
A partir deste ponto nos propomos a narrar nossas vivências pessoais
como artistas/pesquisadoras, mergulhadas na experiência da criação
artística. Optamos pela IBA como uma opção metodológica e, portanto,
narramos nossos processos de construção de conhecimento, que é artístico,
mas ao mesmo tempo acadêmico. Esse processo se deu em diferentes etapas
que ocorreram de maneira não linear, mas em espiral.
72
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
73
discursos dessas mulheres (disponíveis nos recursos produzidos) em movimento.
O que você acha de convidarmos o Paulo para participar dessa criação artística?
Renata: Acho ótimo! Já vou fazer o convite.
2.1. O processo
74
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
75
FIGURA 4 - Figurino da personagem Agatha. Fonte: acervo pessoal.
76
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
2.2 As personagens
Personagem Marcela: Acho que se eu fosse eu, não seria quem eu sou,
mas faltaria alguém me falar olha você é assim! (...) Eu sou uma pessoa cheia
de sonhos, mas eu tenho passado por um momento muito difícil, mas é um
sonho muito grande meu... eu sempre sonhei em ser médica... Onde está a
motivação inicial? (...) Se eu pudesse ser eu, agora, eu seria uma pessoa menos
insegura de mim, sabendo que eu consigo alcançar os meus objetivos e talvez
que não sentisse tanta pressão, que eu mesma coloco em cima de mim. Se eu
78
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
pudesse dizer algo para mim mesma, algo que realmente fosse efetivo que eu
conseguisse realmente aplicar é: TÁ TUDO BEM! Tá tudo bem não ser a melhor
sempre, tá tudo bem não conseguir muitas vezes...
Renata: Ao transcrever esse discurso, me emocionei muito. O ritmo
da fala dessa mulher era muito acelerado e, quando ela parava de falar,
chorava. As palavras pressão e insegurança me tocaram, então busquei uma
movimentação que fosse acelerada, mas que intercalasse com momentos de
pausa e imobilidade (“TÁ TUDO BEM”). A partitura foi realizada em diferentes
dinâmicas e tamanhos, mas sempre seguindo esse ritmo. Apesar de não ter
construído a coreografia fazendo uso da mesa, foi interessante e desafiador
adaptar a movimentação sobre a mesa.
Paulo: Para esta mulher, que justamente era a mais jovem, eu quis fazer
uso da mesa (uma vez que ela está estudando para medicina). E apesar da
Renata não ter pensado na coreografia em uma mesa, eu achei que deveria ter
essa superfície para que ela se deitasse. Minha ideia era também que viesse
uma luz natural, por isso o fundo com a luz natural da janela.
79
que fui? Podada? Sim eu fui! Se eu fosse eu, eu mesma... deixaria de trabalhar
cuidando de números e passaria a cuidar de gente... Se eu fosse eu, eu mesma...
ME DESPRENDERIA DE TODAS MINHAS AMARRAS...
Renata: Essa foi a interpretação mais difícil para mim. O discurso
dessa mulher era muito confuso. Ora ela estava feliz com sua vida, ora ela
mudaria tudo. O que me direcionou na criação foi a palavra podada e a
frase: “ME DESPRENDERIA DE TODAS AS MINHAS AMARRAS”. Busquei
uma movimentação forte contrapondo a suavidade. Essa alternância foi feita
também com a mudança de direção do corpo no espaço.
Paulo: Esse discurso me chamou muita atenção, então eu pensei nessas
amarras de tecido, como se fossem teias. Após ler o depoimento, sinceramente,
eu achei que essa mulher era a mais prisioneira de todas.
80
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
3 Espaço físico que abriga o NUO-Ópera Laboratório, uma companhia de ópera estável,
criada pelo maestro e compositor Paulo Maron no ano de 2003.
81
Marilia: Em nossas pesquisas buscamos formas de escuta, de ouvir em
plenitude. Acho que seria interessante convidarmos as mulheres atrizes do
Grupo Ecoar para ouvirem/lerem esses discursos e criarem uma “persona” (não
é uma personagem e nem serão elas). Elas, como artistas, podem representar
esses discursos com suas vozes, e poderíamos utilizá-los na construção do
vídeo.
Convidamos então: Anna Longano, Marina Corazza, Diane Boda,
Nathalia Bonilha. Elas entraram em contato com as materialidades
produzidas pelas mulheres e, representando uma persona, nos emprestaram
suas vozes.
Um pequeno trecho da filmagem dessa criação artística coletiva pode
ser visualizado no link através do QR code abaixo:
82
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
que deva ser uma coisa só, única, e não separado, porque elas têm pontos em
comum, por isso que eu pensei em usar o mesmo tema com variações. Todas
elas têm esses pontos em comum, e isso seria o tema, do ponto de vista musical.
Então teríamos quatro variações do mesmo tema. Também quero usar a edição
final do vídeo, para levar em conta a rítmica do movimento e de como as atrizes
falam os textos.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A arte compreende modos de pensar o mundo e para investigar
fazendo uso desses modos de pensar, se faz necessário narrar, descrever,
contar sobre como fizemos nossas pesquisas.
Quando pensamos em trazer a experiência como cerne da investigação,
a IBA pode ser um percurso investigativo fundamental, uma vez que o
processo artístico permite criar uma suspensão do tempo. O tempo para, e
o que existe no processo é a duração. Como pessoas artistas/pesquisadoras
precisamos estar presentes e atentas para perceber cada acontecimento
durante o processo, e narrar essas ocorrências. Nossas pesquisas são
artísticas, e não porque falam sobre arte, mas porque se inspiram nas artes
e no modo de pensar artístico.
Vivemos um momento de muitas incertezas e dúvidas, e não é diferente
na universidade. Construir investigações artísticas, comprometidas com
o mundo em que vivemos, advogando pela ética e estética é assumir um
posicionamento político dentro da universidade.
83
REFERÊNCIAS / REFERENCES
BOAL, Augusto. A estética do oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.
84
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
SOBRE OS AUTORES
Renata Frazão Matsuo: Artista, educadora e pesquisadora. Doutoranda
do Programa Mudança Social e Participação Política (PROMMUSP) da
Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo
(EACH-USP). Co-coordena o Grupo de Estudo e Pesquisa ECOAR - Es-
tudos em Corpo e Arte na EACH-USP. Como performer atua na Phalibis
Cia de Dança, dançando trabalhos de dança contemporânea desde 2000.
No NUO-Ópera Laboratório atua desde 2015 como convidada para per-
formar e coreografar. Compõe o quadro docente do Phalibis Studio de
Dança, da Universidade Paulista (UNIP) e da Faculdade Flamingo. OR-
CID: https://orcid.org/0000-0002-7115-6251. E-mail: renata.matsuo@
usp.br.
85
O corpo é um processo contínuo de produção de si e
de seus mundos
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
Resumo: Nos Seminários de Anatomia Emocional Abstract: Along the Emotional Anatomy and
e de Biodiversidade Subjetiva que aconteceram Subjective Biodiversity seminars that happened
ininterruptamente no Laboratório do Processo continuously, since to 2000 to 2017 in the Laboratório
Formativo entre 2000 e 2017, estudamos e do Processo Formativo (São Paulo), I developed a
pesquisamos como os corpos se produzem e no particular way of studying in act, the how bodies
mesmo ato produzem continuamente ambiente. produce, non-stop, simultaneously, both themselves
Esse conhecimento, simultaneamente conceitual e and their environment. This knowledge, at the same
experiencial, prepara os corpos não só para a clínica time, conceptual and experiential, is an education
do corpo subjetivo, e outras formas de trabalho of the subjective body designed not only for somatic
com a presença, mas para a própria vida de toda practicioners coming from the clinical or educational
e qualquer pessoa, artista ou não, que conceba areas but also constitutes itself as a training of the
a vida como obra de arte. A Instalação Didática, embodied presence for anyone, beeing an artist or
que criei ao longo desses processos de ensino not, who would consider living as a work of art. This
e produção de conhecimento sobre o corpo, na convivial study, merged in a technological environment,
própria experiência de convívio e estudo imersos where the overlaping actions of grouping, experiencing,
em um ambiente tecnológico de gravação, exibição, capturing, recording, exhibiting, contemplating,
contemplação e prática, visa evidenciar que somos conceptualizing and edditing occur all the time, is
corpos que se produzem autopoiéticamente em part and parcel of this methodology I call Didactic
ecologias. Na repetição através dos anos dessa Instalation. This formative strategy aims deeply
experiência com esse dispositivo autogravante making evident for participants that we are bodies
e generativo de material audiovisual e textual, and that we produce ourselves and our ecologies,
aprender a não temer a abundância foi o pulo do be they biological, behavioral, political, emotional,
gato: um modo vincular multimídia de captar e technological, historical, sociological, autopoietically
editar as dramaturgias do pensamento encarnado. and continuously. This over and over along the years
practicing of the attitude of not fearing abundance,
Palavras-chave: instalação didática, processo
material and experiential, inside this device that is both
formativo, biodiversidade subjetiva, anatomia
self-recording and generative of audiovisual and textual
emocional, esquizoanálise.
stuff, teaches people as we present it in this paper the
how of a bondingly way of dealing with the embodied
thought, this pratice is an epistemological statement.
87
M uitas ações se sucedem compondo as
estratégias através das quais mergulhamos
nessa experiência direta desse ambiente
vincular e tecnológico que denominamos
Instalação Didática1 .
Trata-se apenas de uma sala grande de grupo onde acontecem
uma infinidade de ações: minhas falas, conversas entre e com o grupo, o
desenrolar da teoria e dos exercícios extraídos do próprio acontecimento
individual e grupal, a contemplação das vídeo-gravações do acontecimento
grupal em um telão e um monitor de tv.
O simples dentro de um ambiente tecnológico e gravante é a estratégia
essencial para a produção dessa forma de conhecimento do corpo em seu
processo formativo.
Trata-se de assentar no estranhamento do simples. Complicamos o
simples para que ele emerja através da produção simultânea de fotos no
e pelo grupo, da produção dos ovos cartográficos, da solicitação de solos
de si dos participantes, das intervenções clínicas pontuais facilitadoras da
continuidade, da escuta de narrativas da ciência evolutiva como se fossem
mitos. Tudo acontece na simultaneidade e na abundância de imagens e
rebatimentos, como alças de feedback sobre o acontecimento, resultando
nessa produção de conhecimento vivo, de mais imagens, de acontecimentos,
de diferentes temporalidades, continuidades dos corpos, de presenças e de
narrativas.
Nos encontros acontecem mensalmente ao longo de quatro ou cinco
semestres, cada grupo estável apreende:
89
sustentam o descritivo e o cartográfico coerentes com esse modo de estudar
o acontecimento corporificado.
Os ovos apontam também com sua forma grávida para uma
possibilidade de sempre mais, para o que ainda não existe, sinalizando que
esse modo de notação do acontecimento articulado à teoria kelemaniana
da produção de corpo é uma força geradora de continuidade e pensamento.
Os ovos são a mente do grupo, o mapeamento do vivido ali.
À medida que as pessoas vão gradativamente assimilando esse saber
em seus corpos e seu manejo formativo, em sua linguagem e em seus
cadernos, vai se revelando, como uma realidade somática, que esses corpos
imersos nesse campo corpante (bodying field) de cada grupo em particular,
dentro dos ambientes maiores e menores, são bombas pulsáteis4 que
funcionam como processadores ambientais. Através desse dispositivo, os
grupos têm a oportunidade de viver em tempo real, o secretar e o modelar
corpo, o intervir em suas formas através de práticas específicas, o maturar,
no ato de co-corpar com as condições presentes, criando ligações que vão
ganhando em eficácia na produção de si e da cognição. Keleman criou a
expressão corpar, to body, para designar a produção contínua de corpo que
vivemos. Co-corpar ou to co-body diz respeito à evidência de que não se
produz corpo sozinho, mas sempre na interação com outros corpos, vivos
e não-vivos.
No final do programa, o design existencial de cada corpo em suas
ações e expressões preservadas muscularmente pela memória do seu uso
repetido amplia seus sentidos. Contemplamos, a essa altura do processo
grupal, através do acervo de fotos de cada um, os corpos em suas modelagens
vinculares e sociais, seus caminhos formativos, sua participação e modos
nos diferentes ambientes e a construção de sua trajetória até o presente.
Sempre iluminando a questão de como esse corpo e com que forças e
combinações musculares sustenta sua forma e seu modo de funcionamento
no presente5.
E, finalmente, descobrimos, dentro da lógica formativa de cada corpo,
como intervir sobre essa configuração, atualizando-a um pouco mais para
5 Ver em <https://laboratoriodoprocessoformativo.com/2013/03/cabendo-em-si/>.
Acesso em dez. 2021.
90
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
91
me alimenta na criação da linguagem e do conhecimento formativos6.
O acontecimento vivo, em sua metamorfose permanente, requer uma
“posturação” dos afetos, uma poética e uma oralidade específicas para que
se comunique.
Um site e um acervo digital de vídeo-gravações, fotos e transcrições
são um tesouro preservado a que podemos recorrer sempre, como vamos
fazer na sequência.
Acredito que essa forma de trabalho que funde arte, clínica, ética e
pesquisa seja um instrumento potente para as pessoas e os grupos que
produzem conhecimento a partir da realidade das vidas e dos corpos.
Acredito também que a Instalação Didática seja uma maquínica (GUATTARI,
1998) bastante funcional para que se opere na imanência. É essa invenção
que batizei com a expressão criada por Joseph Beuys que desejo oferecer
aos pesquisadores de métodos em arte, leitores e escritores deste livro: um
modo vincular multimídia de captar e editar as dramaturgias do pensamento
encarnado. Um pulo do gato.
Vamos, a seguir, acompanhar a protagonização de um aluno em certo
ponto de sua educação formativa.
Pensar é um ato corporal que requer o amadurecimento do sujeito
pensante que comporta uma certa lógica anatômica. A Instalação Didática
permite que degustemos finamente as dramaturgias de corpos no ato de
pensar. Como você faz o que faz? (KELEMAN, 1995)
6 Ver em <https://laboratoriodoprocessoformativo.com/2013/03/mar-de-
comportamentos-silenciar/>. Acesso em dez. 2021.
92
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
94
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
95
na conversa formativa que desenvolvemos todo tempo. É nesse ambiente
que se desenrola esta dramaturgia conceitual de que apresentamos um
fragmento aqui. Nessa estratégia de singularização de si, o fragmento e a
fragmentação desempenham um papel fundamental.
Aluno – Vejo no vídeo ali na TV uma rigidez na parte anterior, uma
dificuldade de me fechar, uma pressão muito grande que vem de dentro.
Regina – Faça em você agora o que você está vendo… vamos fazer um
recorte… imite como você faz lá, evidentemente de modo não intencional…
imitar a si mesmo é o primeiro passo para aprender sobre si… imite como
você está se vendo no vídeo agora. Em seguida, você pode se deitar no chão
e fazer aquela mesma organização de corpo e atitude que está vendo em
pé na tela. Olhar, imitar, fazer a mesma coisa em pé, deitado, de costas, de
bruços. Esse é o pulo do gato para o cérebro captar muitos modos da mesma
organização corporal-comportamental. Estamos ativando a relação de três
camadas: excitação, músculos e sistema nervoso, ativando a continuidade
do processo formativo de corpo em você.
Aluno – Parece uma procura o que vejo no vídeo… procurando alguma
coisa… uma busca de um lugar no espaço… tentando me localizar… vejo
uma rigidez grande… tenho bem a ideia do que se passava no momento.
Essa dificuldade de se soltar…
Regina – Faça um pouco aquele movimento de encurtamento de si…
no chão… fazendo e desfazendo essas ações… lentamente.
Aluno – Eu estava querendo soltar o corpo… soltar, abaixar, fazer um
abdome… para criar sensação de mais flexibilidade. Mas parece que tem
alguma coisa que impede aqui (aponta o diafragma torácico) …
Regina – Vá captando esse lugar que impede e veja que experiência é
essa desse lugar.
Aluno faz ajustes na própria estrutura muscular imitando a imagem da
Anatomia Emocional que está sendo projetada no telão da sala de grupo nesse
momento do Seminário. Ele está desejando experimentar como sua estrutura
faz aquela forma.
Aluno – Parece que se dou mais espaço na barriga não incomoda
tanto.
Regina – Como você usa as suas costas?
Aluno – Aqui (frente) fica colapsado… se eu me aperto embaixo parece
que volta.
Regina – Deite-se no chão… como um somagrama (KELEMAN, 1995)
96
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
97
Aluno – Aqui eu me afirmo… aqui eu me afirmo.
Regina – Sintonize com esse movimento de bacia… de recolher a
barriga. Faça esse movimento de captar o tecido conjuntivo dessa maneira.
Esse... essa... veja como é singular...
Aluno – Eu tenho feito muito isso, naturalmente.
Regina – Aqui eu me afirmo, aqui eu me afirmo. Aqui eu amanso. Duas
formatações de comportamento da bacia. Solta a bacia e fica manso. Um
homem que não ameaça. Um homem grande que não ameaça. Faz sentido
para você se perceber grande e suave? Vá se experimentando sair do
excesso de suavidade, fazer firmeza e voltar… Importante você saber que
quando solta a barriga, esvazia o peito… a presença8 perde a integridade...
a integridade da forma. Presença é forma, e não apenas pensamento. Uma
forma pensante. Agora você agora vai buscar a relação bacia e impulso dos
pés para se fazer crescer mais no seu tamanho… reconheça (em inglês, eu
diria para você be aware) como faz a conexão entre a bacia, peito, cabeça,
passando pela garganta, pelo diafragma torácico e períneo. É o conceito
visual do homem sanfona de Keleman na Anatomia Emocional (1992). Faça
um pouco mais e um pouco menos dessa forma, mais firme, menos firme,
que você acaba de organizar agora, para perceber como você regula a sua
intensidade… e praticar com o processo formativo como sustentar uma
intensidade maior com ações sobre si. Como pode compor um olhar? Você
tem um olhar muito expressivo, um olhar bastante integrado na sua forma.
Como você sente que fica seu olhar quando você cria mais afirmação, mais
assertividade? Pensar é uma forma de afirmar sua singularidade.
Aluno – Esse modo do olhar que acompanha essas alterações da forma
modifica bastante a visão… a visão periférica expande, dá uma sensação de
mais amplidão… estou enxergando mais.
98
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
99
Regina ajuda a torção.
Aluno – É bom… é como fugir.
Regina – Você pode talvez virar só o rosto, apenas mudar a direção do
olhar. Uma pequena diferenciação…veja se isso cria mais privacidade para
você.
Aluno – Melhora bastante.
Regina – Você pode não se exigir olhar de frente, colocar o rosto tão
de frente… você pode fazer apenas um pequeno movimento para o lado…
veja se isso te descomprime o peito. Não é necessário estar tão exposto.
Aluno – Melhor.
Regina – Isso. Veja agora o que aconteceu com os dois lados, com o
tônus dos dois lados.
Aluno – Equilibrou mais. Estou sentindo apoio na lombar, o quadril
está mais firme.
Regina – Perceba como esse movimento de firmar quadril te dá
um centro que é seu. Você pode experimentar trazer essa sensação de
privacidade também para o quadril. Pensar requer a capacidade e manter
um espaço interno de privacidade.
Aluno – Aqui tenho uma sensação mais de enfrentamento, aqui
embaixo. Parece que dá força. Dá força.
Regina – Isso é bom para você?
Aluno – Ótimo.
Regina – Praticar essa forma…repetir… primeiro com você… depois
ver os efeitos que isso tem. Mas praticar. Esse é um ponto do método
formativo: alimentar as conexões córtex- músculos. Aqui há também um
outro ponto que se pode observar: todas as ações dos animais, desde os
mais primitivos, são genéricas – virar, contrair, afirmar, levantar, descer,
fechar, torcer…, mas nós, humanos, constituímos um quem que é o agente
das ações… o sujeito dos verbos… no presente… com uma história… que
acontece no mundo… isso muda tudo.
Esse aluno acabou de fazer uma performance de si no presente, produzir
experiência, no caso, de se organizar de um modo mais funcional, portanto
mais apropriado de si, para sustentar o próprio pensar. Ao utilizarmos a
linguagem formativa, descobrimos que existe uma continuidade entre o
dizer e o agir, entre o corpar e a linguagem, como essas atividades não são
separadas e estão completamente ao acesso das pessoas. Essa é uma língua
100
do homem comum. A filosofia americana nasceu para o homem comum e
é para ser usada, usada para viver. Viver é estar em conexão pensando, se
dizendo e se fazendo ao mesmo tempo. Isso vai ficando muito evidente no
praticar-se… é disso que estamos falando.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O como fazemos o que fazemos em todas a situações da vida é nossa
experiência imediata, apresentando-se para quem se dispõe a viver e ver
essa realidade como o modo particular de cada corpo em funcionamento.
Em outras palavras, o padrão é a própria estrutura constituída por um certo
jogo de pressões profundas preservado na forma particular tomada por
bolsas, tubos, diafragmas, envolta por um certo tipo de musculatura, por
um certo tônus local e geral, essas formas anatômicas particulares mostram
a história da relação dos corpos com os ambientes, grande e pequenos, de
que foi parte em seu crescimento. Essas formas, enquanto se mantiverem
agregadas desse modo, sustentarão um padrão de bombeamento e de
funcionamento emocional e mental de conexão com o mundo e consigo,
gerando, configurando um quem que age assim, que fantasia assim, que
se narra assim e que produz seja o que for assim. O quem é o agente desse
conjunto de ações que mantém um lugar em que a vivência e a produção de
vida se dão. Ao agirmos sobre essa configuração, atualizando-a um pouco
mais, estamos abrindo passagem para as forças do presente, para que
possam a nutrir sua continuidade. Isso é o que podemos chamar aumento
de potência. A Instalação Didática com suas práticas se constitui em uma
epistemologia viva das nossas ações.
O pensamento, a linguagem, os modos de ver, compreender, agir e
ensinar na cena dos Seminários de Anatomia Emocional e Biodiversidade
Subjetiva9 são uma resultante de uma livre assimilação e uso do pensamento
formativo de Stanley Keleman bem como de uma ação viva e crítica sobre
este, dentro de um campo em que se compreende a vida das pessoas como
parte de um processo histórico-mundial, de poderes e valores, local e geral,
abrangente, em continua produção.
A produção e a captação do acontecimento-seminário, a experiência
9 Ver em <https://laboratoriodoprocessoformativo.com/2013/10/seminario-de-
biodiversidade-subjetiva-uma-dramaturgia-dos-conceitos-formativos/>. Acesso em
dez. 2021.
de registrar, cartografar e editar o drama que se desenrola, ali, na produção
dos corpos, dos ambientes e do conhecimento é a tarefa que mobiliza a
invenção contínua de tecnologias, ações e práticas dentro do dispositivo do
Laboratório que acabamos de assistir com a imaginação.
Essa é uma estratégia útil para qualquer atividade em que se deseje
considerar os corpos existindo em sua realidade de formar a si mesmos
continuamente, não importa onde. E exercer o supremo privilégio de
interferir no destino, ajudando-se ou ajudando alguém a escapar da sua
roda de repetições e produzir diferença.
REFERÊNCIAS
DELEUZE, Gilles.; GUATTARI, Felix. Kafka, por uma literatura menor.
Imago Editora. São Paulo: 1977.
102
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
SOBRE A AUTORA
Regina Favre – Primeira geração no campo das psicoterapias corporais
no Brasil, filósofa (PUC-SP), psicoterapeuta, professora e pesquisadora
do corpo por meios audiovisuais no Laboratório do Processo Formati-
vo. Cuidou de todas as traduções e apresentações dos livros de Stanley
Keleman (Summus Editorial) com quem se relacionou profissionalmen-
te por quinze anos, cujo pensamento introduziu no Brasil tendo criado
uma interface do Formativo com a Esquizoanálise desde os anos 1990.
Produz continuamente vídeos e textos sobre o corpo como um processo
biológico, histórico e social num viés de arte, clínica, filosofia e polí-
tica. Tem inúmeros artigos e capítulos publicados. Dirigiu e editou o
longa-metragem Memória do Ácido. Em 2021, publicou Do Corpo ao Li-
vro pela Summus Editorial. Segue pesquisando com grupos, linguagem,
presença e imagem no campo virtual que se abriu com a pandemia.
103
Vozes da Sombra - entoar o corpo voz do mito
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
Resumo: Este relato tece reflexões sobre Abstract: This report reflects on
o processo criativo de dois experimentos the creative process of two scenic
cênicos, “Vozes da Sombra – Entoando experiments, “Vozes da Sombra -
Cassandra” e “Selva Ecoa Medeia”. Entoando Cassandra” and “Selva Ecoa
Ambos integram a pesquisa de mestrado Medeia”. Both are part of the master’s
“Vocalidade em Performance – entre research “Vocality in Performance -
textualidade e musicalidade: traçados between textuality and musicality:
de uma possível pedagogia das vozes”. outlines of a possible pedagogy of
A pesquisa é sobre a performatividade voices”. The research is about vocal
vocal como gesto estimulante na performance as a stimulating gesture
criação da cena, na composição da in the creation of the scene, in the
personagem e na lida com o texto para composition of the character and in
além das palavras. Partindo da minha dealing with the text beyond the words.
jornada como atriz em tragédias gregas Starting from my journey as an actress
encenadas e ensaiadas pelo diretor in Greek tragedies staged and rehearsed
Antunes Filho, da experimentação by the director Antunes Filho, from the
sonoro-vocal e do jogo com a sombra sound-vocal experimentation and the
do próprio corpo, os experimentos play with the shadow of the body itself,
buscaram investigar possibilidades de the experiments sought to investigate
contato com o texto não somente pelas possibilities of contact with the text
palavras, a semântica, mas também not only by words, semantics, but also
através de uma experiência sensorial em through a sensory experience in which
que a voz/palavra falada intenta alçar the spoken voice / word tries to take
vôos para a musicalidade, com enfoque flights for musicality, with a focus on
na performatividade vocal. vocal performance.
105
O que é voz? “Corpo transbordado” (STOROLLI,
2018), músculo da alma, sopro? Uma indagação
simples, repleta de complexidade e com uma
infinidade de respostas possíveis. O pesquisador
medievalista Paul Zumthor, por exemplo, nos
presenteia com uma poética definição:
106
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
107
elementos constitutivos da cena são hierarquizadas e há primazia do texto
dramatúrgico sobre os demais elementos cênicos. É curioso pensar que,
embora o teatro textocêntrico tenha sido questionado e desconstruído
pelas investigações de vanguarda com o advento da performance/art e
os desdobramentos desta na linguagem do teatro, a voz falada no palco
ainda hoje sofre dos aprisionamentos do logocentrismo, e, portanto, deste
chamado textocentrismo.
Ao longo de sua história, o teatro vem se distanciando e se aproximando
de outras linguagens artísticas. No século XX, é profundamente influenciado
pelas artes visuais, pela arte da performance e também pela música, que
rompe com seus próprios paradigmas, passando a explorar a potência do
ruído e do improviso, como as desconstruções de John Cage1, as paisagens
sonoras de Murray2, entre outros. Todos estes gestos revolucionários
contribuíram e fomentaram novas teatralidades. Nesse sentido também a
poética de atrizes e atores ganha novas perspectivas, deixa de ser gesto
reprodutivo para ser ato criativo.
Cavarero (2011) parece dialogar com Artaud quando invoca o elemento
acústico da vocalidade - perceptivo, sensorial, intuitivo, sombrio, misterioso,
único - e que foi relegado, expulso do mundo grego racional, logocêntrico
e patriarcal. Temas como a loucura, a sombra, o inconsciente, as “vozes
inauditas”3, a ruidagem, são elementos que habitam um solo fértil de
investigação, para encontrar/vivenciar novas formas de composição cênica
a partir do ser/estar voz. A voz para além da palavra, ou a desintegração da
linguagem como propunha Artaud (2006), pois, segundo ele, a linguagem
não dá conta de expressar tudo. Porém, estamos de acordo quando Cavarero
alerta que
1 John Cage (1912 - 1992) foi um compositor, teórico musical, escritor e artista
estadunidense. Foi pioneiro da música aleatória, da música eletroacústica, sendo
considerado uma das figuras chave nas vanguardas artísticas do pós-guerra.
108
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
110
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
112
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
113
dentro das ações do grupo de pesquisa Vozes Performáticas, coordenado
pela Prof.ª Dr.ª Wânia Storolli, PPGA/UNESP.
No período de “Fragmentos Troianos” (1999), nutria verdadeira
fascinação por Cassandra; cheguei a ensaiar a possibilidade de interpretá-la
na versão de Antunes, mas o diretor me incumbiu outro desafio, interpretar
a matriarca Hécuba.
Cassandra, essa jovem sacerdotisa de Apolo condenada a visões e à
incompreensão, nos ajuda a tecer reflexões sobre a condição da mulher
em nossa sociedade patriarcal e sobre como lidamos com aquilo que não
compreendemos, como os limites entre o que chamamos loucura e o que
chamamos de sanidade. Em nossa sociedade, a loucura é algo que deve ser
contido, silenciado. Porém, como nos lembra o neurocientista Sidarta,
114
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
117
Chamar a voz
Voz chama
Chama voz
Xama clama
Xamã voz
Preciso dizer
Preciso dizer Preciso
Preciso te dizer
Isso é uma confissão
Uma confissão Uma canção Uma oração
Eu sempre volto à esse episódio
Sempre volto
No oráculo da noite a memória
Topografia são Vales vales são Montanhas Sulcos Buracos
Rios de correntes elétricas
Eu sempre volto à esse episódio sempre volto
Sempre volto à esse episódio
Sempre viva
A vida vai indo a vida vai indo vai indo a vida vai indo
Preciso dizer.
Você me escuta? Escuta? Está me ouvindo? Você me escuta?
Eu perdi a voz.
Preciso dizer.
Você me escuta? Escuta? Está me ouvindo? Você me escuta?
Eu perdi a voz.
O glissando é cura? Em boca chiusa a ossatura da face vibra.
118
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
FIGURA 1 – Foto do experimento 1: “Vozes da Sombra – entoando Cassandra” (experimento 1). Junho de 2019.
Imagem de Antônio Gama.
FIGURA 2 – Foto do experimento 2: “Vozes da Sombra -Selva Ecoa Medeia”. Novembro de 2020. Imagem de
Marina Flores.
119
4. TOMANDO AR NOVAMENTE – ESCUTAR VOLTAR AO SILÊNCIO –
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Encontro no poema a forma mais propícia aos voos livres da
imaginação e da emoção pela voz. Há possibilidade de transpor todo um
sem fim de sonoridades que surgem da exploração vocal para a experiência
posterior com a palavra? Há textualidade mais favorável aos voos da
vocalidade do que o poema? Pode a dramaturgia contemporânea absorver
essa potência da exploração vocal? Nessa busca por uma vocalidade em
performance acreditamos haver importantes contribuições aos artistas da
cena e à pedagogia vocal, entendendo pedagogia como campo expandido e
transdisciplinar.
Durante minha passagem pelo CPT, ao mesmo tempo em que
participava dos ensaios com Antunes, também dava aulas. Os registros
constantes que fazia durante os ensaios foi um ato importante tanto para
o exercício de dar aulas, como para o exercício da atuação. Matteo Bonfitto
(2013) menciona a “teoria da prática”, uma abordagem que se aplica a esta
experiência e o que se pretende na presente pesquisa em andamento. E esse
é um dos aspectos relevantes nas práticas artísticas contemporâneas, seu
caráter teórico/prático. Estamos, pois, num campo trans de investigação,
um “espaço entre”. Para a performer Eleonora Fabião “o entre não é lá,
nem cá; não é antes, nem depois; não é isto ou aquilo; não é eu, você, nem
outro (...) acontece como espaço-tempo de indeterminação, como campo
de relação, como corpo em transição”.
120
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
AGRADECIMENTOS / ACKNOWLEDGMENT
Um evoé, um salve às mestras e aos mestres que nos inspiram, nos
provocam e incitam nossa caminhada: Myriam Muniz, Madalena Bernardes,
Wânia Storolli, Paula Molinari, Lucila Tragtenberg, Antunes Filho, Alexandre
Mate e Kazuo Ohno. À minha filha Marina que foi essencial na produção e
edição de “Selva Ecoa Medeia”. À minha mãe Nélia pela revisão do texto.
Aos colegas, amigas e amigos do Grupo de Pesquisa Vozes Performáticas
(coordenado pela Prof.ª Dr.ª Wânia Storolli) pelas trocas altamente
nutritivas: Érico Cruz, Frederico Santiago, Gisele Lavalle, Luciana Marcon
e Paola Ribeiro. E à Wladimir Mattos e Rodrigo Reis pela iniciativa do III
Colóquio “Metodologias de Pesquisa em Artes” que impulsionou a escrita
deste texto. Evoé.
121
REFERÊNCIAS / REFERENCES
ALMEIDA, Gil de. diferença voz glossolalia artaud performance. Dissertação
(Mestrado) – Universidade de Brasília, Instituto de Artes. Brasília, 2015.
122
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
SOBRE A AUTORA
Gabriela Flores é atriz, pesquisadora e arte educadora há mais de vinte
anos. Mestranda em Artes (Bolsa CAPES/ PPGA UNESP). Formada em
Licenciatura em Arte-Teatro no Instituto de Artes da UNESP. Traba-
lhou durante seis anos com o diretor teatral Antunes Filho, em diver-
sos espetáculos. Integrante da Companhia da Mentira, dirigiu e atuou
em diversos espetáculos. Integrou também a Cia Arnesto nos Convidou
ao lado de Samir Yazbek e Hélio Cícero. Atua como arte educadora em
programas de iniciação artística. Integrante do Grupo de Pesquisa Vozes
Performáticas desde 2020, com coordenação da Prof.ª Dª. Wânia Storol-
li, vem estudando o tema da vocalidade nos processos criativos contem-
porâneos. Como parte da pesquisa de mestrado vem ministrando, desde
2018, o curso “Vocalidade em Performance”.
123
A ecologia sonora como processo cartográfico: uma
prática ecosófica
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
125
A criação do processo a ser descrito no presente trabalho
se dá a partir dos desdobramentos da leitura do
ensaio As Três Ecologias de Félix Guattari (2008), o
que me levou a outras reflexões e estudos, como o da
esquizoanálise e, ao mesmo tempo, se deu em parceria
com Rodrigo Reis, com quem pude compor ações a partir das perspectivas
estudadas. A primeira ação se tratou do laboratório Ecologia Sonora, parte
integrante do projeto Viagens Ecosóficas, iniciado em 2003. As Viagens
Ecosóficas se tratavam de uma residência com grupos heterogêneos em
reservas ecológicas, tendo a própria viagem agido como um dispositivo
de desterritorialização dos comportamentos e ambientes cotidianos, pois
como problematiza Guattari, “as viagens são em resumo quase sempre uma
viagem sem sair do lugar, no seio das mesmas redundâncias de imagens
e de comportamentos” (GUATTARI, 2008, p. 8). Os primeiros laboratórios
aconteceram, portanto, dentro das Viagens Ecosóficas que, por sua vez,
ocorriam em APAs (Área de Preservação Ambiental) com um roteiro
ecoterapêutico que dispunha do meio ambiente para experienciar os
conceitos da Ecosofia.
Uma equipe de profissionais, em sua maioria da área da saúde e em
conexão com as artes, facilitava processos de maneira transdisciplinar,
atuando sempre em conjunto para além das suas especialidades
e abordagens. Deslocados de seus espaços habituais de trabalho,
experimentaram e criaram novos modos de atuação. Atravessados por
múltiplas práticas psicoterapêuticas, educacionais, ambientais e artísticas,
iam propondo processos que subvertiam a tradição e o foco no terapêutico,
ampliando-os para a dimensão ético-estética. Processos coerentes com a
Ecosofia que, de acordo com Guattari (2008), em relação ao conjunto dos
campos ‘psi’ se instauram no prolongamento e em interface aos campos
estéticos se diferenciam das tradições clínicas ao apontar para uma tensão
existencial que operar-se-á por intermédio de temporalidades humanas
e não-humanas, estas últimas entendidas como o delineamento e o
desdobramento de devires animais, vegetais e cósmicos.
Com o passar dos anos, as Viagens Ecosóficas com a tônica artístico-
terapêutica deram lugar para encontros híbridos entre cursos-laboratórios
e grupos de estudo em contextos urbanos, nos quais, além da Ecosofia,
nos aprofundamos em conceitos da filosofia da diferença articulados a
conceitos de outros pensadores, especialmente Nietzsche e Foucault.
126
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
Foram quatro grupos em São Paulo, dois deles realizados no espaço cultural
Mundo Pensante1 e dois outros em sede própria. Ao final de cada curso, a
proposta era uma ação micropolítica na cidade articulada ao fazer artístico
e aos conceitos estudados. Em algumas dessas ocasiões as ações se deram
em forma de intervenção urbana, como foi o plantio de orquídeas em uma
praça da Vila Madalena e a feitura de um canteiro em uma praça no bairro de
Santa Cecília. Ambas as intervenções em conexão com o projeto Orquídeas
na Vila2, coordenado pelo educador Diego Ramos Lahóz. Outros processos
importantes aconteceram no Jardim Botânico de Brasília, com apoio do
Governo do Distrito Federal e Livraria Cultura; durante uma residência
artística no sítio sede da Taanteatro Cia3 em São Lourenço da Serra-SP e
no Viveiro de Projetos4 em Araçoiabinha-SP, junto à musicista e educadora
ambiental Marta Catunda.
O laboratório de Ecologias Sonoras se dá em três etapas: escuta,
construção de instrumentos e expressão sonora musical em grupo. Etapas
que, em cada ocasião, são dispostas de modos diversos, dependendo do
encadeamento do processo que varia de acordo com tempo e os recursos
disponíveis, os espaços onde são realizadas e a configuração dos grupos,
bem como dos conjuntos de afectos5 e conceitos que se pretenda mobilizar.
Etapas que são blocos de espaço-tempo móveis, a permitirem o acréscimo
de novos elementos, que podem ser extraídos e/ou modificados. Escolhas
que se imbricam às composições entre parcerias, fazendo do processo um
território que acolhe e estimula as práticas e pesquisas uns dos outros,
tanto quanto acrescentam e diversificam as formas de pensar o dispor do
2 Projeto de Diego Lahóz que organiza grupos para fazer plantios na cidade de São Paulo.
Ver em <https://www.facebook.com/orquideasnavila>. Acesso em dez. 2021.
5 Afecto ou afecção, grafado deste modo, está em consonância com o termo do filósofo
Barush Spinoza. O termo se difere do termo afeto. Afecto ou afecção refere-se ao
registro mental dos efeitos das intensidades sobre o corpo. “Afecção é a modificação de
um corpo causada pelo encontro com outro corpo” (SPINOZA, 2008, p. 111).
127
próprio processo. Desta maneira, articula-se a proposta de Guattari (2008),
que ao referir-se à ecologia social, coloca:
128
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
129
1. A CARTOGRAFIA COMO MÉTODO
O método utilizado nesta pesquisa é o cartográfico, método de caráter
qualitativo, alinhado ao pensamento pós-estruturalista e intimamente
ligado ao conceito de Ecosofia de Guattari. Para melhor entender como o
laboratório de Ecologia Sonoras funciona como um processo cartográfico
torna-se necessário explicitar sua trajetória conceitual, que se constitui
através da noção de plano e na qual está implicada uma perspectiva sobre
o corpo, sobre grupo e por um modo de entender poiésis6. O plano e os
seus elementos estão contidos um no outro e mantêm-se em constante
composição.
O pesquisador deve se debruçar nas relações entre os objetos que
compõem esse plano e apreender o que dinamizam, ou seja, deve apreender
as relações de forças que se dão entre os objetos e, mais ainda: esses objetos
não devem ser observados como preexistentes às relações, mas como
efeitos dos encontros de forças.
A noção de campo refere-se a conhecimentos fechados em
especificidades, com fronteiras que separam os saberes entre si,
determinando identidades e saberes especializados. O conceito de campo
possui lógica binária que afirma algo a partir da negação de outros
elementos de uma relação. Em tal perspectiva, o conceito de plano revela-
se como potência de se atualizar ações produzindo uma ruptura na tradição
do pensamento filosófico e científico ocidental que separa mente e corpo,
sujeito e objeto, conceito e prática. Nesse sentido,
130
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
131
Os grupos são, dessa maneira, entendidos como territórios onde
se propõem dispositivos que efetuam desvios dos agenciamentos de
subjetividade, levando os sujeitos a se engajarem em processos de
singularização. Portanto, a atividade klínica consiste em detectar as
resistências e bloqueios que os sujeitos no coletivo podem apresentar para
fomentar processos de intensificação dos fluxos desejantes com o intuito
de levar à afirmação do desejo e à autopoiésis10.
Vai-se ao encontro do conceito de corpo sem órgãos, desenvolvido por
Deleuze e Guattari (1996), que nos fazem entender o corpo como devir, um
corpo plástico ausente de fundamentos universais e que é vivido através
da perda da sensação da organização corporal. Os autores nos ajudam a
entender que corpo é moldado pela cultura e em seu tempo histórico, ou
seja, através do qual se institui socialmente, tanto quanto uma ferramenta
política com o poder de ser usada contra processos sociais que padronizam,
estacam e acabam por despotencializar a vida. A partir do corpo sem órgãos,
os autores desestabilizam a noção de organismo, a organização dos órgãos.
“O organismo humano é de uma ineficácia gritante” (DELEUZE; GUATTARI,
1996, p.10). “O corpo sem órgãos é a luta pela perda da identidade do eu, é o
lugar onde descolamos a sensação de natural e buscamos puras intensidades
criadoras” (ALMEIDA, 2006, p.35).
Portanto, entendemos o corpo como um composto biopsicossocial de
qualidades e intensidades que o constituem e o atravessam no coletivo.
A grupalidade e sujeitos produzem um ao outro por meio dos processos
de subjetivação que consequentemente produzem os sujeitos e os grupos-
sujeito. Para entender melhor como se dá a produção de corpos em coletivo,
podemos emprestar o termo corpar de Stanley Keleman pela maneira que
Regina Favre o articula:
132
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
2. ESTRUTURA DO LABORATÓRIO
O laboratório se dá em três etapas, nos três verbos: escutar, artesanar
e expressar. Escutar é a etapa de apreensão do meio, o artesanar de se agir
sobre si, fase na qual se estabelece uma relação com a incorporação análoga
ao metabolismo fisiológico, e a terceira etapa é expressar, em que há afecção
dos corpos no ambiente, alterando-os, produzindo a diferenciação e, assim,
recomeçando constantemente essa processualidade fisiológica e subjetiva
de absorção, metabolização e expressão.
Na primeira etapa, a de caminhada e de escuta ativa somática, se
experimenta o espaço e se coletam materiais quando o grupo interage com
o ecossistema em suas diversas formas, texturas e sons. A segunda etapa é o
ateliê-luthieria de instrumentos musicais feitos dos materiais coletados na
caminhada, trabalho que se dá em relação com a materialidade dos objetos
133
do meio ambiente explorado por todo corpo em escuta. Os participantes
estabelecem relação com as fontes sonoras, ou seja, com os objetos e suas
características físicas que produzem as características dos sons vivenciados
no meio ambiente. Tanto nessa etapa quanto na próxima, os conceitos
de poiésis se aplicam, e no caso da luthieria, se apresentam intimamente
ligados à prática do artesanato e na invenção de um instrumento musical
que possui uma singularidade.
A terceira etapa, de improvisação musical em grupo, se dá com a
utilização do instrumento construído. A importância do grupo é ampliada
e a improvisação musical torna-se um dispositivo para se fazer em grupo e
fazer o próprio grupo. O conceito de Ritornelo de Deleuze e Guattari (1997)
é o conceito chave de todo o processo, pois através do pensamento musical
e a descrição dos seus movimentos (territorialização, desterritorialização
e reterritorialização), torna-se possível pensar a música, o fato de se ser
em grupo e a própria existência. Assim se dá a pesquisa cartográfica nesse
processo: perpassa a escuta e a relação com as fontes sonoras, desdobrando-
se na prática de improvisação livre em grupo que abarca a interação humana
com o meio ambiente. Dessa maneira, entende-se o laboratório como uma
prática transversal às três estâncias ecológicas da ecosofia.
134
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
135
Intervenção exige ao cartógrafo um mergulho no plano da
experiência, onde fazer e conhecer se tornam inseparáveis
impedindo qualquer pretensão à neutralidade ou mesmo
à suposição de um sujeito e de um objeto cognoscentes
prévios à relação que os liga. Conhecer é, portanto, fazer,
criar uma realidade de si e do mundo (BARROS; PASSOS,
2009, p.30).
136
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
137
os animais. Vêm às pessoas as imagens de animais que participam desse
processo, como por exemplo, os pássaros que as semeiam e se alimentam
delas, mas também a relação que os seres humanos têm com sementes,
as plantando para se alimentar de seus frutos. Além de usá-las para
preencher as estruturas ocas, também é possível amarrá-las na parte de
fora do instrumento para que batam umas nas outras ou ainda prendê-las
ao próprio corpo. Pedras, terras e areia também são usadas com a função
de preenchimento. Essas sementes, linhas e papéis podem revestir os
materiais mudando suas acústicas como também compor a estética visual
do instrumento.
O lixo encontrado na caminhada também pode ser incorporado aos
instrumentos e, nesse aspecto, o reciclado torna-se potencial sonoro e
de sentido. O lixo é bem vindo ao processo, é admitido pelas pessoas de
maneira espontânea e materiais como plástico, acrílico e metais fazem
parte da vida cotidiana: por meio deles se estabelece uma relação sensível
corporal, trazendo afecções e memórias enriquecendo o entendimento do
processo da construção dos instrumentos.
Guattari (2008), ao falar de ecologia ambiental, nos ajuda a entender
como ela tem uma relação íntima com os modos que temos de nos relacionar
uns com os outros e as coisas que estão no espaço, em interação (ecologia
social), produzindo processos de subjetivação. O lixo está no centro
da discussão sobre nosso jeito de viver, solicitando emergencialmente
soluções a fim de ampliar as possibilidades de produção de economia
mais éticas, evitando o exagero na utilização de serviços maquínicos e
nos obrigando a repensar os excessos culturais alimentares e de consumo.
Ao nos relacionarmos com materiais como matéria orgânica e lixo, nos
deparamos com o processo macroeconômico e percebemos como a vida
cotidiana está inserida em uma dinâmica determinada por um sistema
capitalista globalizado. Diante disso, cabe pensar: com qual consciência ou
perda dela, com quais sensibilidades ou perda delas, se vive?
No processo de construção de instrumentos, valores afetivos e históricos
são atribuídos a cada peça que compõe o corpo do instrumento. Em todo o
tempo ocorre a participação do grupo na construção do instrumento de cada
participante. Escutam-se uns aos outros, suas histórias, sua subjetividade.
Acalentam, riem, discutem sobre suas vidas. O grupo opina e sugere formas
de resolver problemas da construção dos instrumentos uns dos outros, assim
como comentam passagem e situações da vida. As infâncias, juventudes e
138
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
139
A construção do instrumento produz uma dupla função: uma maneira
de se colocar no mundo e perceber a maneira que faz a si próprio, assim
como também é uma forma de abrir novas possibilidades de estar na vida.
As pessoas descobrem que têm a possibilidade de produzir a vida como obra
de arte (estética) e produzir a existência como criação (ética). Para construir
é preciso abandonar coisas, somar, lidar com o erro e o imprevisto; com a
possibilidade de não ser exequível o plano inicial; de redirecionar e lidar com
o planejado, seja por mudanças acústicas ou limites do material (fragilidade,
dureza, durabilidade) ou, ainda, por questões pessoais (dificuldade manual,
ansiedade, desistência). Êxito e fracasso têm o mesmo valor, portanto, não
devem ser manipulados: “o processo, o aprofundamento e a intensidade
são mais importantes que qualquer objetivo ou produto” (CRAVEIRO DE
SÁ, 1995, p.46).
140
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
141
modos: percutindo em partes diferentes, com diferentes materiais ou
ele próprio como baquetas; usando os dedos com mais delicadeza nas
cordas estendidas ou em coisas que estão grudadas nos instrumentos; os
chacoalhando para ver como soam os materiais colocados em seu interior
ou fazendo se chocar na parte de fora ao movimentá-los etc.
Uma consigna é dada: em roda, um de cada vez deve apresentar um solo
tocando seu instrumento. Cada integrante do grupo apresenta um motivo
musical e, então, o grupo interage com ele criando uma breve composição.
O rodízio entre os integrantes cria breves climas sonoros de fragmentos
musicais com ritmos e timbres singulares, uma efêmera ecologia sonora de
cada interação do grupo. Essa dinâmica, consequentemente, faz com que
cada membro do grupo tenha uma música criada coletivamente.
Toda a dinâmica sonora se dá através da improvisação. O improviso
é uma técnica importante feita de muitas maneiras por artistas e usada
por psicoterapias expressivas que usam música (musicoterapia) ou nas
artes plásticas (arteterapia), por exemplo. As técnicas de improvisação
são importadas às psicoterapias para que as pessoas se deparem com a sua
própria subjetividade refletida no suporte expressivo.
O musicoterapeuta Beneth Bruscia coloca que a improvisação é “uma
etapa de qualquer procedimento que o terapeuta utiliza para dar forma à
experiência imediata do cliente” (BRUSCIA, 2000, p.123). O autor em seu
trabalho intitulado “Definindo Musicoterapia” reúne os principais conjuntos
de técnicas, que podem ser usadas separadamente ou se desencadeiam
umas nas outras espontaneamente e/ou como parte de um programa. A
improvisação acontece como um jogo e para existir um jogo é preciso ao
menos dispor-se de duas forças: uma de apoio e outra de passagem. As
forças de apoio sustentam, controlam, seguram e asseguram o território
e as outras forças passeiam, flanam e aventuram-se nele, deparando-se
com os elementos de sua interioridade, com sua superfície e limite com
o fora. A improvisação, na música popular, no jazz, por exemplo, é parte
constitutiva de sua estética. Os solos desse gênero musical são, em sua
grande maioria, improvisos. Os temas musicais e a harmonia em que esses
temas se desenvolvem são as forças territorializadas e os improvisos são os
elementos de passagem. O músico que sola explora simultaneamente sua
memória musical e desafia suas habilidades, por vezes levando a música
a modular de tal forma que parece outra. Os músicos solistas e os que
oferecem a base se provocam simultaneamente para que algo novo possa
surgir.
142
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
143
Improvisação neste contexto é entendida como um
modo de expor-se a um dispositivo a tomar forma como
um empreendimento relacionado a um fazer e, por isso,
à prática, à técnica. Nos interessa perspectivá-la — a
improvisação enquanto uma prática — nos termos de
uma ciência nômade (DELEUZE; GUATTARI, 1997 apud
ESTEVES; ADÓ, 2019, p.437).
146
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
REFERÊNCIAS / REFERENCES
ALMEIDA, Marcus Vinicius de. Corpo e Arte em Terapia Ocupacional. Rio
de Janeiro: Enelivros, 2004.
147
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs vol. 4. Capitalismo e Esquizofrenia.
Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997.
148
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
SOBRE O AUTOR
Musicoterapeuta formado pela Faculdade Paulista de Artes, pós-gra-
duado em Prática Docente do Professor Universitário pela Faculdade
Oswaldo Cruz e mestre em Comunicação Contemporânea pela Univer-
sidade Anhembi Morumbi. Atua na perspectiva esquizoanalista na ar-
ticulação com artes na clínica individual e em grupos. Desde 2003 de-
dica-se a pesquisar e praticar experiências acerca da Ecosofia. E-mail:
felipe.musicoterapia@gmail.com
149
Intercessões sonoras/musicais: pílulas de (ex)cuta
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
Resumo: Esse texto foi escrito em Abstract: This text was written in a
um momento/pausa obrigatória. Na moment/pause. In the pandemic a
pandemia há um estado de permanente state of permanent tension is present.
tensão presente. Em contraponto, outra In counterpoint, another atmosphere
atmosfera transformou o trabalho, a transformed the work, the research
produção de pesquisa, a criação da arte e production the creation of art and its
seu fazer/pensar. A partir do processo de doing/thinking. From the research
pesquisa das pílulas de escuta, o tempo process of the listening pills, the
de comunicação foi diminuído em ciclos. communication time was shortened
Uma provocação por uma (ex)cuta. in cycles. A provocation for an (ex)
Explico, ex de antes de se tornar escuta, listening. I explain, ex from before
ou escrita e também ex de extrospectiva, becoming listening, or writing and also
tornar evidente a escuta de dentro para ex from extrospective, making listening
fora e vice-versa como faz o próprio evident from inside out and vice versa as
fluxo da nossa respiração. Com Davi the very flow of our breathing does. With
Kopenawa (2016, p.332) aprendemos Davi Kopenawa (2016, p.332) we learn
a tornar extrospectivo tudo aquilo que to make extrospective all that we hear
escutamos nos sonhos. Assim, uma (ex) in dreams. Thus, listen before (excuta),
cuta tem a intenção de lidar com uma is intended to deal with a creative and
atmosfera criativa e performática, para performative atmosphere, for other
outras durações como mudança de clima, durations as a change of climate,
arejamento e pausa para a observação aeration and pause for observation
enfim, como transpiração vital para a finally, as vital transpiration for the art
arte que desejamos. we desire.
151
H á alguns anos, o processo de escuta da pesquisa
cartográfica com os pássaros desembocou
(Cartografia ecologista dos Pássaros: por uma
ecoestética da educação, 2019)1 fruto da pesquisa
de Pós-doutorado em Educação (linha cotidiano
escolar) dentro de uma perspectiva ecologista (REIGOTA, 2018). O esforço
dessa pesquisa iniciada em 1989, com a escuta dos pássaros na Amazônia
e no Pantanal, foi de trançar os fios ou linhas dos estudos culturais, da
música2, das audições de campo3 e perceber os emaranhamentos de borda,
que acabam por se desdobrar em dispositivos para práticas educativas
sensíveis com diversos fins educativos e artísticos.
O livro contém o jogo/oráculo dos pássaros. Foram cinco anos
(2014/2019) com a bolsa PNPD Capes que possibilitaram andarilhanças,
no ambiente escolar e universitário, em Sorocaba, São Paulo e em lugares
muito especiais: Sítio da Maura Baiocchi em São Lourenço, SP, Pocinhos do
Rio Verde (Rosa dos Ventos) e Pantanal de Mato Grosso. Esses movimentos
sempre articulados com Coletivos de Arte, Núcleos e Grupos de Estudo da
Uniso, Unicamp e Unesp e no Pantanal com um grupo de artistas, parte
do movimento de artes plásticas e cinema em Mato Grosso (MT), em
especial Maria da Glória Albuez, cineasta/videomaker. Ao lado de Rodrigo
Reis Rodrigues, nesse período como intercessor, em oficinas e atividades
concebidas por uma ecologia da escuta, que hoje é possível tratar aqui
como uma proposta em muitos veios da pesquisa, graças à potência
dessas oportunidades. Felizmente, os encontros anuais do Colóquio de
Metodologias da Pesquisa em Artes da UNESP, já em sua terceira edição, nos
2 Ouvir Birds. LP de Tetê Espindola e Arnaldo Black, lançado em 1992, nesta pesquisa foi
realizada uma experiência de canto de pássaro como instrumento musical.
152
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
4 Ver Marcos Reigota, Rodrigo Barchi; André Yang. Ecosofia Tropical, Educação Ambiental
Canibal e a Aventura de Desnudar-se. Revista Linha Mestra, n.35, pp.265-277, maio-
agos, 2018, p.268.
153
interlocutores, grupo de estudos, em uma caudalosa e generosa vertente de
produções acadêmicas com a literatura e imagens que vem produzindo com
versatilidade na educação em Grupos de Estudo por todo o país. O pássaro
escolhido por Leandro da Cartografia Ecologista dos Pássaros foi a gaivota.
Assim, trechos do verbete da gaivota da cartografia, apresentam o texto de
Leandro em cada pílula, com o tema de Manoel de Barros. Setembro foi o
auge dos incêndios no Pantanal e a presença do Manoel de Barros no texto
do Leandro gerou também este efeito aleatório, já que a gaivota talha mar
migra da beira mar até o Pantanal, indicando mais uma dobra/ciclo.
Em setembro de 2020, as pílulas de escuta foram produzidas como
proposta criativa realizada em coletivo Arvorecerdecasaemcasa6 reunindo
diversos momentos e experiências de várias etapas/anos da pesquisa com a
cartografia dos pássaros e a pesquisa de sensibilização para as sonoridades
ambientais. Neste texto, destaco alguns momentos e processos que
desembocaram nas pílulas.
6
Ver site do Coletivo. Disponível em: <https://arvorecercasa.wixsite.com/
arvoreceremcasa>. Acesso em: 23 de mar. 2021.
7 Os registros foram realizados com gravador cassete TCM 5000, (utilizado no período
por ornitólogos) e dois microfones Senheiser um omini direcional e outro direcional
mais longo, para sons além do colchão acústico.
154
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
155
pensar/sonhar: “seus professores não o haviam ensinado a sonhar, como
nós fazemos” afirmou o xamã. O que transbordou daí não é mais só o que é
pensado sobre isso, mas também o que se tem sonhado sobre isso? O sonho
em si, para as culturas autóctones daqui, é um vernáculo de possíveis.
Habita o âmago de uma vida sem fim, já na dimensão do sonhado há uma
espécie de sobre/real (sobrenatureza)8 em fluxo como camadas que não se
diferenciam, mas completam-se. As culturas orais do ouvido são também
as do tato e do fluxo permanente entre o real, o sonho, o transe. Trata-se
do trans/possível, que delimita esse fluxo não em estágios ou ordens, mas
em um permanente fluir/fruir. Foi então que essas observações induziram
uma organização da experiência do sonho com o objetivo de integrá-las
na pesquisa para produção das pílulas. Reunir momentos diferentes de
observação, atividades criativas da pesquisa adquiridos ao longo de tantos
anos, compondo-as como pílulas, teve como motivação principal criar
outros processos de escuta para serem vivenciados durante a pandemia.
2.AUDIO(AÇÃO) EM PÍLULAS
As primeiras experiências com áudios curtos antes das pílulas foram
realizadas em 2015, para o TCC de Laura de Aro, realizado no curso de
Psicologia da Uniso, para seu texto literário, e foram utilizados para compor
esta pesquisa com sons e músicas e um modo de falar quase teatralizado.
Com um parecer em áudio em 2019, foi possível participar de uma banca de
mestrado de Marina Gomes e Lima, aluna de Leandro Belinaso, professor
da Pós Graduação UFSC na formação docente, nesse momento, o sonho
ainda não tinha sido proposto como possibilidade de composição.
Já em 2019 e 2020, nas primeiras pílulas de escuta o foco foram outras
experiências com releituras de textos de Rudolf Steiner (suas meditações
diárias) e Krishamurti (pensamentos esparsos de várias obras), com fundo
musical diverso, para sonhar os textos desses autores (em janeiro/fevereiro
e abril/maio/ repetindo antes de dormir seus pensamentos em voz alta).
A ideia era criar uma espécie de atrator estranho, a partir da vibração
dessas palavras e como elas reverberavam nos sonhos. Primeiro lendo os
pensamentos antes de dormir e depois de sonhar com algo significativo
(leva uns dias ou semanas) reescrever o texto para gravar. O ritmo do fluxo
8 Ver Marta Catunda. Canto de céu aberto e de mata fechada. Cuiabá: Edufmt, 1994, p.65.
156
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
9 Em 2007, Danielle Naves publicou sua tese intitulada Poros ou passagens na comunicação.
Naves trouxe o conceito de poro segundo Sarah Kofman (1983), que propõe, ao
invés de um caminho determinado para chegar num fim, ou seja, de um met(odo),
a possibilidade de seguir um movimento que se deixa penetrar pelo que se percebe,
enquanto se vivencia; então um meta(poro) deixando-se atravessar e dar espaço para a
experiência ocorrer, expandir. Ciro Marcondes Filho, coordenador do Grupo de Estudo
NTC e, posteriormente, Filocom da ECA/USP, estudou, discutiu e ampliou o metaporo,
durante mais de uma década, de 2006 em diante, até seu falecimento neste fatídico ano
de 2020.
157
3. ECOESTÉTICA EM FLUXO
No espaçotempo10 cotidiano (em especial o escolar), as práticas
educativas ecoestéticas de modo geral ampliam a duração para o livre pensar/
criar em dois tipos diferentes de relação temporal. Kairós anunciando ciclos,
temporadas ou momentos críticos que resultam em ações específicas. E
ou um tempo Aion, distendido em ritos de passagem, práticas intensivas
de acolhimento, envolvimento e mergulho, portanto, menos pontuais.
Porque é preciso desdobrar o tempo nessas práticas para desprender de um
cronos rígido e veloz, repleto de tarefas imediatas cerradas e minado para o
intenso do convivial. Uma tentativa de promover outros modos de convívio
e conexão durante a pandemia.
10 Ver conceito de espaçotempo no cotidiano escolar segundo, Nilda Alves & Inês
Barbosa de Oliveira. Imagens de escolas: espaçostempos de diferenças no cotidiano.
Educ. Soc., Campinas, v. 25, n. 86, p. 17-36, abr. 2004.
158
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
AGRADECIMENTOS / ACKNOWLEDGMENT
Agradeço a oportunidade de participação no III Colóquio de
Metodologias da Pesquisa em Artes da UNESP, a criatividade de seus
organizadores e a sintonia de estudos, pesquisas, entre outros dispositivos
com Ms. Rodrigo Reis Rodrigues, enfim, aos encontros potentes desses três
anos. Deixo ainda aqui minha sincera homenagem e agradecimento ao Dr.
Ciro Marcondes Filho (FILOCOM/USP), falecido em 2020, sua eterna força
instigante nos modos de produzir pesquisa em comunicação.
160
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
REFERÊNCIAS
ALVES, Nilda; OLIVEIRA, Inês Barbosa. Imagens de escolas:
espaçostempos de diferenças no cotidiano. Educação e sociedade,
Campinas, v. 25, n. 86, p. 17-36, abr. 2004.
GLEICK, James. Caos. A criação de uma nova ciência. 3. ed. Rio de Janeiro:
Campus, 1990.
161
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã
Yanomami. São Paulo: Companhia da Letras, 2015.
162
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
SOBRE A AUTORA
Marta Catunda; doutora em educação e cotidiano escolar, com o tema
das sonoridades ambientais e perspectiva ecologista – Universidade
de Sorocaba/UNISO 2013, mestre em Ciências da Comunicação – ECA/
USP,1993. Atuou como pedagoga artista no Museu de Arte e de Cultura
Popular, da Universidade Federal de Mato Grosso de 1978/2009 em pro-
jetos artísticos e ambientais com ribeirinhos e artistas mato-grossenses.
Musicista e compositora, desde 1989 desenvolve pesquisa de audição/
escuta do canto dos pássaros da região Neotropical, experimentações,
práticas educativas e artísticas de sensibilização e escuta.
163
Jogo de Arte-Ação como Proposta Pedagógica
Ecosófica e de Cuidado de Si
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
165
A pesar da Educação Ambiental constar nas diretrizes
educacionais dos documentos normativos de ensino
PCN e DCN, bem como na BNCC como tema transversal
e interdisciplinar, na prática, ainda encontra
dificuldades de ser implementada da forma como foi
proposta, representando um desafio para a educação (TALINA, 2015).
Segundo Loureiro (2006), um outro aspecto relevante é que as
correntes ambientalistas predominantes na BNCC não propiciam a visão
crítica e emancipadora acerca das interações do homem com ele mesmo,
com outros homens e com a natureza necessárias à articulação da dimensão
ética e reflexiva no agir à serviço da transformação do mundo.
Indignado com o cenário de crise ambiental que assola o planeta,
deteriorando as singularidades, as relações afetivas e o meio ambiente,
Guattari (1990) relata que é preciso pensar transversalmente, que não pode
existir uma dicotomia entre a natureza e a cultura e que o pensamento deve
integrar as interações entre ecossistemas, universos sociais e individuais.
Como resposta à crise ecológica, Guattari (1990) defende que é preciso
uma concepção de educação ambiental sistêmica que propicie uma nova
forma de relacionamento com a psique, com a sociedade e com o meio
ambiente. O autor propõe então a ecosofia, uma articulação ética, estética
e política, composta de três ecologias: pessoal, social e ambiental.
Foucault (1997), em consonância com Guattari, ressalta a importância
de ser constituída a ética do si, como uma tarefa urgente e politicamente
indispensável. Ele afirma que a maior resistência contra o poder dominante
e as camisas de força paralisantes e padronizadoras do sistema é a busca
pelo governo de si, numa ética de si mesmo, por intermédio das práticas de
si do Cuidado de Si.
Segundo Guattari (1990) um antídoto contra a formatização e a
padronização da subjetividade seriam pequenas práticas e experiências de
vida nas relações que envolvam criatividade e que estas sejam significativas,
caminhos de ressingularização, onde as diferenças se tornem cada vez mais
evidentes e as relações, cada vez mais humanas e solidárias. Sugere que os
professores levem mais sensibilidade e menos cientifismo.
De acordo com a pesquisa prévia realizada (MELLO; RODRIGUES,
2018) existem poucas propostas lúdicas de práxis de educação ambiental
com base na ecosofia de Felix Guattari e no Cuidado de Si de Foucault.
166
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
1. REFERENCIAL TEÓRICO
1.1 Ecosofia
167
Guattari propõe a Ecosofia, baseando sua perspectiva em três ecologias
(pessoal, social e ambiental) como via de articulação ético-político-estética
na busca da recomposição das práticas individuais, sociais e ambientais.
No domínio da psique, Guattari (1990) acena para a reinvenção
das relações intrapessoais com o inconsciente como antídotos para a
manipulação midiática, para a influência dos dispositivos de produção de
subjetividade e para o empobrecimento das singularidades, criando novos
modos de se relacionar e de viver, como estratégia de ressingularização.
Segundo Carvalho, Camargo (2015), a ecologia pessoal está
relacionada com a relação do indivíduo com a vida, consigo próprio e
com a subjetividade na busca por decifrar-se. Guattari (1990) alerta para
a deterioração das subjetividades em função da cultura padronizadora que
modela as subjetividades, enfatizando que precisa emergir um novo ser
humano mais livre e menos condicionado ao sistema.
No domínio do socius, Guattari afirma que será preciso reconstruir, em
todos os seus níveis, os relacionamentos humanos, reinventando maneiras
de ser em grupo e de conviver em família, no trabalho, no casamento etc.
Essas mutações do socius dizem respeito principalmente à subjetividade,
além de serem comunicacionais.
168
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
ser humano com a natureza (cosmos), com outros seres humanos (tribo
humana) e com o macrocosmo (sagrado).
2. METODOLOGIA
Este estudo foi aprovado durante o mestrado pelo Comitê de Ética
em Pesquisa em Seres Humanos (COEPs) do Centro Universitário de Volta
Redonda (UniFOA), sob parecer nº 3.322.506, atendendo aos aspectos
170
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
171
No quadro 1 são mostrados os componentes do jogo, suas medidas,
materiais e funções.
Compo-
Item Quant. Medidas Material Função Imagem
nente
3,67 x 2,24
1 1 Tabuleiro Lona Tapete 2
m
Zelo -
2 1 boneco 1m Tecido Prêmio 3
grande
Zelo -
4 3 boneco 30 cm Tecido Marcação
pequeno
6 x 10 x 20 Análise e
5 1 Baú MDF
cm reflexão
18 cm de Brim e
6 1 Dado Avaliação
aresta feltro
Práticas
7 1 Diário Folha A4 Papel
de si
Instruções
8 1 Manual Folha A4 Papel
do jogo
Sensibili-
9 1 História Folha A4 Papel
zação
FIGURA 2 - Tabuleiro do Jogo e foto dos jogadores em torno do tabuleiro durante sua aplicação. Fonte: Autores,
2019.
173
FIGURA 3 - Ilustração do Zelo e foto do boneco na aula de campo da escola Caminho do Saber. Fonte: Autores,
2019.
Durante o jogo, cada etapa é registrada no placar (figura 4), onde são
utilizados os bonecos pequenos do Zelo para marcar a evolução das equipes.
FIGURA 4 -Placar do jogo Zelo para marcação do progresso de cada equipe. Fonte: Autores, 2019.
174
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
FIGURA 5 - Fotos da vestimenta e de um dos alunos com a vestimenta do personagem Zelo. Fonte: Autores,
2019.
175
Objetivo Zelo consigo Zelo com os ou- Zelo com o plane-
mesmo tros ta
Missão Ecologia pessoal Ecologia social Ecologia ambien-
tal
Verme- Redução do tem- Gentileza e zelo no Praticar os 5R’
lha po de uso de ele- lar
trônicos
Laranja Praticar a auto Apreciação e Reco- Alimentação sau-
apreciação nhecimento dável
Amarela Criar um plano de Propor jogos coo- Cooperação no Lar
higiene pessoal perativos na escola
Verde Fazer práticas de Aprendizagem coo- Pesquisar sobre a
relaxamento dia- perativa toxidade dos cos-
riamente méticos
Azul Alimentação sau- Alimentação sau- Economizar água
dável dável
Azul Praticar ref letir Cultivo de virtudes Realizar boas ações
diariamente inte-
grando descober-
tas filosóficas
Vinho Vivenciar as vir- Vivenciar as virtu- Vivenciar as virtu-
tudes através do des através do Jogo des através do Jogo
Jogo cooperativo o cooperativo o Bolo cooperativo o Bolo
Bolo do Zelo do Zelo do Zelo
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Esta sessão foi estruturada da seguinte forma: inicialmente será
176
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
FIGURA 6 - Imagem do Diário do Zelo (escrita, escuta e memorização). Fonte: ARTIGO LUDUS.
Nessa página do diário do Zelo de uma aluna do quarto ano (figura 6),
ela representa, através de ilustrações, o exercício da missão de sua classe:
o de cultivar a auto apreciação. A pesquisadora tece um breve comentário
como forma de incentivo, representando o Zelo. Em seguida, a aluna
compartilha que está cooperando com a família, ou seja, está realizando
177
a missão atribuída ao segundo ano. No final da página, dialoga consigo
mesma, refletindo sobre a fala consciente como reação adequada na
resolução de problemas.
Segundo Arent (2004), em diversas línguas, a palavra “consciência”
refere-se ao autoconhecimento e que pensar é dialogar consigo mesmo.
Esse autor alerta para o fato de que já não se acredita que pensar deveria
ser um hábito comum.
Neves (2016), em consonância com Foucault, diante dos
questionamentos levantados por Arent sobre o conhecimento de si, conclui
que o caminho para o desenvolvimento da autonomia é o autoconhecimento
e que, por meio dessa via, o homem escapa da automatização humana, se
tornando mais livre.
Partichelli (2017) enfatiza o potencial do diário de bordo como
instrumento de autoconhecimento, através da autoanálise, por contribuir
para a síntese de experiências pessoais e para a confissão de ações. Eckert-
Hoff (2008) corrobora com Particheli e vai além ao relatar que o diário de
bordo é uma via para desvendar rastros do inconsciente, como se estivesse
desvendando um jogo escondido do próprio sujeito.
Além das anotações sobre si, em várias etapas da pesquisa ocorreu a
correspondência por meio da interlocução com a pesquisadora que lia os
diários e tecia comentários, dando sugestões, primando por uma relação de
reciprocidade e alteridade.
Encontra-se publicada a primeira fase de aplicação do Jogo, sua
primeira versão e imagens do diário do Zelo na edição de abril 2020 da Revista
Eletrônica Ludus Scientiae, disponível no link https://bit.ly/3pUHYk2.
178
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
179
Segundo Santiago e Fonseca (2016), o que predomina nas brincadeiras
infantis é a abordagem competitiva. Bay-Hinitz, Peterson e Quilitch (1994)
pesquisaram o impacto dos jogos e das brincadeiras no comportamento
infantil. Demonstraram que brincadeiras e jogos competitivos contribuem
para o aumento da agressividade e aumentam o comportamento competitivo,
ao contrário dos jogos e brincadeiras cooperativos, que reduzem o nível de
agressividade, aumentando o comportamento cooperativo.
O exercício da convivência na realização das missões do jogo
contribuiu para ressignificar o socius e reinventar modos de conviver e de
se relacionar, como sugere Guattari na Ecologia Social. Na figura 7, a seguir,
as crianças estão exercitando a cooperação.
FIGURA 7 - Jogo Cooperativo do Paraquedas bola dentro de Sensibilização. Fonte: Autores, 2019.
180
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
181
do personagem idealizado. O boneco foi confeccionado com o material
disponível e suas feições não respeitaram as proporções da ilustração. A
história do jogo não foi ilustrada.
Além dos fatores supracitados, o jogo não tinha música e nem um
canal no Youtube. As missões do jogo foram simplificadas e adequadas aos
recursos e demandas da agenda da escola e tempo limitado.
Mesmo com as limitações mencionadas, os resultados da pesquisa
revelaram o grande potencial da proposta pedagógica fundamentada sob a
forma de jogo cooperativo. Diante do exposto foram realizadas mudanças
significativas na proposta pedagógica que serão mencionados nas próximas
páginas.
FIGURA 8 - Nova ilustração e boneco do personagem Zelo. Fonte: Mello, Pereira, Rodrigues (2020).
182
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
184
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
FIGURA 9 - Nova ilustração, Zelo na Caverna do Esquecimento. Fonte: Mello, Pereira, Rodrigues (2020).
185
FIGURA 10: o planeta Terra gargalhando por estar cheio de Zelos. Fonte: Mello, Pereira, Rodrigues (2020)
186
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
188
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
Eco-arte; artes
O mago do sa-
e ecologia; a
bor; cuidando
A árvore da vida; voz da natureza
de receitas culi-
apreciação e através da arte;
nárias; saudável
reconhecimento; escultura criati-
Laranja e sustentável;
árvore da ances- va; música das
experimentando
tralidade; artes esferas; o som
sabores e sabe-
plásticas. na cultura Tupi
res; degustação
Guanari; dança
sensorial.
circular.
189
Ações eco/so-
ciais; fábrica
de brinquedos
Cooperação na produzidos com
Amarela Cuidado pessoal. escola; o jogo do materiais reu-
anjo. tilizados para
doação; feira de
economia solidá-
ria.
Autoconhecimen-
Alquimistas; fá-
to; biografia; Cooperação no
Verde brica de cosméti-
artesanato com lar.
cos ecológicos.
argila.
Cultivo de plan-
Cultivo de virtu-
Azul claro Planejamento. tas medicinais;
des.
farmácia viva.
Cultivo da singu-
laridade; experi- Comunicação
Direitos huma-
mentando outros pessoal, intra-
Azul escuro nos e exercício
modos de vida; pessoal e trans-
de cidadania.
diferentes cultu- pessoal.
ras.
Abrindo janelas
interiores por
Criação de livro
intermédio da
Vinho de reflexões diá- Dançafluxo.
imaginação ati-
rias.
va, técnica jun-
guiana.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Beys acena para a arte ação como potência da mudança de atitude
diante do mundo. A trajetória do personagem Zelo, do Jogo, de suas
canções e de suas histórias está apenas se iniciando. Na nova versão, o jogo
foi lapidado e esculpido para tornar-se uma escultura social, pedagógica e
política que movimentará o pensamento, a criatividade e a ação.
Os resultados revelaram que a proposta pedagógica fundamentada sob
a forma de Jogo de Arte Ação intitulada como Zelo é uma terna, sensível
e artística fórmula ilimitada de manifestação da Ecosofia de Guattari e do
Cuidado de Si de Foucault. Com passos pacientes e amorosos, Zelo gerará
191
pegadas cada vez mais conscientes que se aproximarão das pistas deixadas
por Guattari e Foucault das travessias necessárias para que a existência se
torne uma obra de arte, uma arte de vida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004.
192
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
Vozes, 2013.
mai 2020.
SOBRE OS AUTORES
Carla Graça Mello é graduada em Educação Física pelo Centro Universitário de
Volta Redonda, pós-graduada em Jogos Cooperativos pelo Centro Universitário
Monte Serrat de Santos, Pós-graduada em Psicologia Transpessoal pela Alubrat
de São Paulo. Mestre em Ensino em Ciências da Saúde e do Meio Ambiente pelo
Centro Universitário de Volta Redonda. Atua desde 2014 na Associação Almater-
Jundiaí/SP criando e aplicando Jogos cooperativos inspirados na obra de Gran-
des Pessoas da Humanidade. Tem experiência como capacitadora de educadores
do Ensino Fundamental I em Jogos Cooperativos. Publicou um livro infantil e
criou jogos relacionados ao livro. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6055-
9218 E-mail: carlagracamello@yahoo.com.br
195
Trajetória em vertigem: Metodologias da Não-Arte
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
197
A pandemia que se instaurou no mundo devido ao
covid-19, alterou a dinâmica de vida das pessoas. Tem
sido um acontecimento (ZIZEK, 2017), no sentido de
romper com o comum e com o sedentarismo, pois todos
somos obrigados a inventar novas formas de estar no
mundo. Como professor universitário, as aulas a distância propuseram
desafios importantes e de grande valor ao tratar da subjetividade
utilizando-se de novas tecnologias, bem como retomando alguns autores
aqui mencionados na disciplina de metodologia de pesquisa. Já o trabalho
artístico, que já era voltado a uma experiência estética dependente da
presença corporal, perdeu os seus sentidos com as exposições virtuais. Todas
as exposições enquanto artista, curador, crítico e parcerias de trabalho que
me mantinham constantemente ocupado, cessaram em questão de um mês.
O que a princípio pareceu devastador teve um sentido positivo e criador.
Segundo Rubem Alves (2011), para haver conhecimento há que se ter
curiosidade, enquanto para haver curiosidade, é necessário prazer. Por sua
vez, para que exista prazer envolvido, é necessitário ter tempo. O tempo
que antes era dedicado a esses projetos acabou por ser uma linha de fuga a
um cuidado de si, no sentido de me ocupar descobrindo coisas novas fora
do campo da arte sem que houvesse interesse ou propósito. Nesse sentido,
Allan Kaprow (2003), um dos precursores do happening na década de 1960,
fez uma distinção relevante entre a arte institucionalizada, a anti-arte
como tentativa de romper com o status-quo do mercado e a não-arte, que
seria o olhar poético de um artista sobre coisas e acontecimentos de sua
vida e do social. É sob essa perspectiva que o autor afirma:
198
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
FIGURA 1: Trabalhos artísticos envolvendo diversas espécies, ‘Refloresta’ (2019), ‘Resíduos’ (2018) e ‘Liana #2’
(2019). Fonte: Fotografia do autor.
200
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
201
GEOFÍSICA | VERTIGEM & CORPOS & COISAS
Segundo Claudio Ulpiano (1990), Espinosa faz uma separação entre a
natureza e os demais seres vivos. A diferença é que, enquanto a natureza é
livre em suas manifestações no mundo, os demais seres são constantemente
constrangidos pelas forças desta. Sendo assim, enquanto seres humanos,
nossas intenções são suprimidas por forças externas a nós, de modo que,
a princípio, somos corpos apaixonados condicionados por essas, como
um barco à deriva sendo carregado pelos fluxos das correntes marítimas.
Esse seria, então, o primeiro nível de conhecimento possível. O segundo,
entendido como a razão, seria uma compreensão maior dessas forças
externas que nos constrangem e uma melhor possibilidade de lidar com
elas. É nesse momento em que a possibilidade da ciência se faz presente;
podemos enfim construir uma vela para nosso barco. O terceiro, entendido
enquanto ciência intuitiva, seria um modo de lidar com essas forças externas
sem ser constrangido, mas potencializados por elas: a criação. Quando
criamos, estamos, tal qual nos provoca Suely Rolnik (2019), produzindo
gérmens de novos mundos, semeando possibilidades e nos compreendendo
tal qual natureza em fluxo contínuo com o mundo.
Levar essa reflexão para explorar a gravidade enquanto elemento de um
processo de criação artístico-conceitual, a princípio, parece adequado. As
forças geofísicas, nas quais a gravidade está compreendida, se manifestam
livremente. Não é possível desafiar a gravidade pois somos constrangidos
por ela; através da razão, podemos desenvolver dispositivos para utilizar
forças outras que nos permitam lançar foguetes ao espaço. No entanto, isso
não significa que ela deixou de existir e de se manifestar. A provocação,
enfim, não reside em sua superação, mas numa criação conjunta com a
gravidade: compreendê-la como sujeito coautor do processo, tornar nítida
sua participação enquanto devir de um trabalho artístico.
O desdobramento dessas reflexões partiu de um âmbito corporal.
A percepção sensorial, por si, já se constitui no cotidiano comum, como
quando algum evento de contraste se anuncia, tal como um frio repentino
notado por nossa pele. As forças geofísicas, como a gravidade, acabam por
serem ainda mais habituais, o que faz uma percepção mais nítida sobre elas
um esforço de concentração. Sem o desejo de tirá-las do espectro ordinário
de nossa vivência cotidiana ou explorá-las de modo transcendente,
desenvolvi alguns processos iniciais para que fossem anunciadas enquanto
coautoras de ações ou necessárias a constituição de objetos.
202
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
203
Nesse ponto da investigação percebi a importância do corpo, bem
como da performance para criar esse movimento. No entanto, apesar de
ser possível explorar a gravidade isoladamente, ela é mais evidenciada
quando em relação com um segundo objeto. Com essa percepção, voltei-me
novamente a relação que desenvolvi com o skate. A princípio, trata-se de
não-arte, mas, mesmo que não veja ainda um modo de anunciar essa ação
como artística, esta trouxe uma reflexão importante para a investigação.
Quando se anda de skate, a gravidade é fundamental. Ela pode ajudá-lo a
executar as manobras através da aceleração e impulso em rampas/desníveis,
como também pode, na maioria das vezes, inviabilizar qualquer tentativa
(Figura 5). É necessária uma percepção muito nítida da relação entre os
movimentos do corpo em relação a esta. Por um lado, há uma margem de
controle intencional do que se faz, mas por outro, a angulação e o meio
são variáveis que causam um descontrole, de modo que é necessário se
antecipar a manobra e prever o movimento necessário na circunstância
específica para se ter sucesso.
Por mais que o skate tenha auxiliado na investigação entre corpo-
gravidade-ambiente, sua colaboração excedeu ao previsto, visto que o skate
não é apenas um objeto, mas um sujeito dessa ação. Tim Ingold (2000)
faz uma distinção de termos entre objetos e coisas que nos é cara a esse
pensamento. Para o autor, nenhum objeto material, assim como o corpo,
existe sem estar em relação a outros no ambiente. Os objetos materiais
possuem sua própria trajetória no mundo e seus sentidos vão se alterando.
A prancha de madeira do skate já foi uma árvore, que por sua vez já esteve
em simbiose com inúmeras espécies antes de encontrar um humano que a
moldou enquanto um objeto a ele funcional. Por sua vez, esse objeto será
funcional ao ser humano apenas por um tempo. Mesmo que seja reutilizado
em algum momento, vai se decompor e ser funcional a outras espécies de
novas maneiras. Sendo assim, a prancha de skate enquanto coisa possui o
sentido que a ela atribuo momentaneamente. Esse movimento de atribuir
sentido a uma matéria, ainda que habitual, é um gesto de intimidade que,
além de nos aproximar, nos condiciona, pois não possibilita novos sentidos
apenas à coisa, mas também a nós. Sendo assim, uma manobra exige uma
grande intimidade com o skate para que o movimento através da gravidade
seja simultâneo, funcionando como apenas um corpo.
204
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
206
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
FIGURA 7: Still do vídeo performance ‘Constante G #2’ (2020). Disponível em: https://youtu.be/VhYw7XRaiqA
207
CONTÁGIO EM MARTE | UMA PARTILHA SOCIAL
As reflexões sobre Marte desdobraram-se num convite para uma
investigação conjunta entre vários espaços artísticos do interior de
São Paulo, tratando da emergência de uma possível ocupação humana.
Criar juízos de valor a respeito ou construir sentidos únicos ao que nos
aguarda seria redutor à possibilidade de sentidos a serem atribuídos à
circunstância. Inicialmente propõe-se que seja desenvolvido um processo
partilhado ao longo de dois anos, qual pode ser estendido/adiado conforme
o distanciamento social na pandemia se faça necessário. Esse convite foi
enviado aos participantes das edições anteriores do Atelier Contágio que,
desde 2016, manifesta-se em acontecimentos de processo e exposições,
reunindo artistas/espaços autônomos para criar, refletir e partilhar ideias
sobre o ambiente, tendo já realizado três edições. Desse modo, a investigação
foi levada ao âmbito social por meio da troca. Todos os indícios são de que,
em poucos anos, a possibilidade de ir a Marte será́ viável. Afinal, o que nos
cabe enquanto artistas nesse contexto? Presenciamos uma corrida espacial
entre chegarmos como espécie em Marte e as condições planetárias de
Marte chegarem à Terra. Nosso primeiro desafio está em ultrapassar o lixo
espacial que em grandes quantidades orbita o planeta; os recentes apuros
que a estação internacional espacial tem passado são um exemplo disso.
De certo modo, o campo magnético da Terra e a gravidade que se impõe
a nós, apesar de conservarem este raro e gentil planeta que nos proporciona
sensações prazerosas infindáveis, sempre nos condicionou a sermos
uma espécie uniplanetária. As condições não são ideais, mas, gostemos
ou não, tornar-se uma espécie multiplanetária é o que temos à frente. Tal
mudança é tão significativa quanto foi o domínio da navegação oceânica.
Por um lado, conhecemos a barbárie que acompanhou esse movimento,
por outro, também sabemos como a cultura e a arte foram completamente
modificadas e deram vida a mundo moderno que não demorou a se tornar
globalizado. Desta vez, além de estarmos prestes a testemunhar uma
mudança radical semelhante, também estamos a dispor o corpo humano
fora de suas condições biofísicas originais, o que nos impele a uma situação
sem precedentes. A ocupação de Marte em algumas gerações pode mudar
nossa fisionomia, nossos sentidos e nossa subjetividade.
Antes que tal acontecimento quase imediato nos encontre de surpresa,
esse questionamento já́ é por si surpreendente, provocador de possíveis as
criações estéticas, conceituais e relacionais. Não é apenas a ida para Marte
208
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
209
REFERÊNCIAS
ALVES, Rubem; ABUJAMRA, Antônio. Provocações. São Paulo, TV Cultura,
ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada.
n-1 edições, 2019.
210
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
SOBRE O AUTOR
Mathias Reis é artista, diretor audiovisual e professor da FAAL nas gra-
duações em Artes/Design e da pós em Marketing Digital. É formado em
artes visuais com mestrado em Linguagens, Mídia e Arte pela PUC-Cam-
pinas Participou de diversas exposições coletivas, ocupações artísticas e
duas individuais: Exsicata na Galeria Sede (2015) e Variações do pé ver-
melho (2018) no AT AL | 609. Foi crítico da residência artística ArtFarm
Project, trabalhou como curador do Museu Universitário, da Galeria de
Artes Visuais do espaço Goma, dentre outros. Desde 2016, coordena o
Atelier Contágio, projeto itinerante que relaciona ações artísticas a prá-
ticas eco-lógicas. Atualmente reside e possui ateliê em frente a Mata
Santa Genebra, onde investiga poéticas interespécie, metodologias car-
tográficas voltadas ao ambiente e desenvolve projetos com a Simbiosis
produtora audiovisual.
211
A cidade-casa e suas multiplicidades
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
213
O entardecer é sempre um convite, não o tipo
escrito em papel branco acetinado onde palavras
se encaixam formando ruas retas e paralelas.
O entardecer é um convite em papel de noite
negra com luzes desorganizadas em movimentos
que escapam a linearidade da escrita. Um convite de esquinas vazias e
quinas arredondadas onde cada parágrafo se faz verso, onde cada verso se
desmancha em cores, onde cada espaçamento se preenche de sentidos, mas
não aqueles pintados em placas refletivas e porque não também reflexivas,
indicando uma direção a seguir: vire à direita, esquerda, curva sinuosa a 1
km, PARE!
Refiro-me aqui a outros sentidos, nada de significações ou
interpretações. Sentidos que nos escapam, desorientando-nos em meio a
luzes e sons, perdemo-nos em memórias afetivas e então traçamos novas
trilhas nesse novo espaço habitado por experiências. Bem-vindo à cidade-
casa, uma cidade virtualizada onde a realidade interconectada permite a
criação em um plano de experimentação, onde corpos híbridos/sem órgãos/
virtualizados se permitem ir e vir, viajantes imóveis por um espaço onde as
fronteiras se transpõem.
214
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
215
1. O CONVITE
O convite me leva a percorrer os espaços de uma cidade-casa,
neste momento começo a perambular tateante pelas imagens-frames
armazenadas em minha memória, a aglomeração parece dar lugar a uma
cidade que nunca vi, cidade inédita ainda que repleta de lembranças,
cidade mutante, multiplicada em sensações e re(a)presentações. Cidade
des-enquadrada, des-narrada. Aqui na cidade-casa faltam os tombos
dos encontros de corpos na multidão, faltam os panfletos entregues nas
sinaleiras, mas sobram gestos, sons, texturas, sobram representações e
verdades.
216
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
FIGURA 1 – Fotografia da Avenida Getúlio Vargas na cidade de Feira de Santana, Bahia. Fonte: Arquivo pessoal
(2018).
1 O monumento conhecido pelo nome do artista Juracy Dórea está localizado em uma
das avenidas de Feira de Santana e apresenta estrutura em metal com cor amarela.
217
por delivery, até o mingau da praça de alimentação ganhou um novo sabor,
ele traz consigo aromas de todas as ruas que cruzaram o caminho do
entregador.
O corpo não engendrado quebrou as fronteiras rígidas e atribuiu
outras funções aos seus membros e a mão que girava o volante agora digita
apressadamente em conversa na pausa do almoço de uma quarta-feira que
mais parece de domingo.
Todo o movimento na cidade-casa é experiência do corpo que se
confina entre paredes e se expande em viagens reflexivas, uma espécie de
tele presença, hologramas de uma cidade qualquer em uma cidade-casa,
bairros virtualizados em uma chamada de vídeo e me conecto, reconecto
e a conexão instável me permite tantas conexões, corpo que fala, olho que
toca, abraços pixelados. Isolamento? De quem? De que?
A casa nunca esteve tão cheia, reuniões por videoconferência
amontoam o sofá de três lugares, aulas remotas e o som do vizinho invade
o áudio transmitido em tempo real, impossível utilizar a tecla CRTL+Z para
eliminar o latido do cão ao lado ou o barulho da descarga acionada por
outro morador que às vezes se esquece de que o lugar privado se tornou
empresa, escritório, estúdio, escola.
O corpo híbrido conectado às tantas outras cidades, cidade-casa da
mãe que aprendeu a enviar memes em conversas do WhatsApp, cidade-casa
do professor que no modo on aprendeu a usar brush no lugar do piloto,
cidade-casa do artista que aprendeu a lidar com tantas outras telas, cidade-
casa do pequeno empreendedor que aprendeu a utilizar as ferramentas de
marketing digital e trocou o grito pela imagem, pelo feed, stories e lives.
Apagam-se as lâmpadas incandescentes e logo uma avenida se desenha
no espaço reservado ao home office, o post-it amarelo com algum recado
importante colado na parede produz com o vermelho do led no mouse uma
composição que se projeta na superfície prateada do monitor, ativando
uma memória luminosa onde detalhes novos se incorporam à paisagem já
vista. Vejo-me em meio a postes, concreto pintado na cor preta e amarela
com propósito de mensagem e na ausência de luz ambiente, o viaduto da
Maria-Quitéria (Figura 2) ilumina a noite de sexta-feira da cidade-casa.
218
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
FIGURA 2 – Fotografia Viaduto da Avenida Maria Quitéria na cidade de Feira de Santana, Bahia. Fonte: Arquivo
pessoal (2018).
FIGURA 3 – Fotografia da Lagoa Grande 2016 na cidade de Feira de Santana, Bahia Fonte: Arquivo pessoal
(2018).
220
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
221
REFERÊNCIAS / REFERENCES
ALMEIDA, Aline Amsberg. O Corpo Virtualizado como Corpo Híbrido em
The Accord. In: Interfaces. Guarapuava, Vol. 3 n. 2, 2012. PDF disponível
em <https://revistas.unicentro.br/index.php/revista_interfaces/article/
viewFile/2026/2074>. Acesso em Ag. 2020
222
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
SOBRE A AUTORA
Mestre em Desenho, Cultura e Interatividade - UEFS (2015 / 2017). Es-
pecialista em Marketing Estratégico - FTC (2011 / 2012). Bacharel em
Desenho Industrial - UNEB (2004 / 2008). Participa do grupo de pesqui-
sa com imagens TRACE: Departamento de Educação-UEFS (2015/2021).
Professora de Fotografia, Audiovisual, Comunicação Visual, Imagem
Gráfica Digital e Desenho. Fotógrafa integrante do Clube de Fotografia
de Feira de Santana. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6821-596X.
E-mail: portfolio.tatianealves@gmail.com
223
Entre a cidade e as montanhas: os mamilos-da-terra
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
225
E ntre dois territórios: na cidade, um lugar de origem, na
qual foi produzida uma pesquisa acadêmica e artística
sobre performance no cotidiano1 com escutas na rua –
a experiência corpo-cidade na potência dos modos de
viver de um catador de resíduos sólidos com sua carroça
multimídia. E, no outro lado, um lugar de destino, as sinuosas montanhas
da Serra da Mantiqueira com atravessamentos das múltiplas nuances da
natureza, uma superfície de contágios do corpo afetado com a exuberância
da natureza.
Em ambos os lugares, cidade e montanhas, o que permanece é a
corporeidade2 de sentidos e subjetividades, escutas das paisagens sonoras
e das narrativas, das diversidades de vozes de tudo aquilo que transborda
substâncias vivas, quer seja suas manifestações nas pessoas da cidade ou
na natureza das montanhas.
A paisagem se faz íntima nas curvas das estradas e peço licença para
chacoalhar, deslizar, trepidar nesse deslocamento, imaginar e desenraizar
da cidade. Nesse ensaio de escrita a partir da experiência do corpo entre a
cidade para as montanhas. Me pego considerando que poderia simplesmente
fazer uma viagem turística numa atitude de descanso, mas fiz outra
escolha, o propósito de fazer desse período uma residência artística por
tempo indeterminado, um mergulho mais profundo na experiência de estar
e ficar nas montanhas, considerando o isolamento social durante o início
da pandemia do Covid19.
Nesse ensaio sigo pelo interior da cidade e do corpo, no útero, órgão
feminino gerador de outros corpos e ideias como uma âncora imaginária
que experimenta no corpo a fixação de um acontecimento. “Um corpo
cuja potência de gerar vida não se efetua nos órgãos, mas nos encontros
agenciados com o mundo” (FONSECA et al., 2004, p. 92). O útero, um
órgão do corpo que gesta e que aqui, faz ancorar uma experiência, acolhe
os sentidos que se produzem nos encontros e nos afetos. Dentro de corpo
poroso que se permite contagiar pela exterioridade e recebe as misturas
226
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
Talvez o que me interessa aqui é o “nós” e tudo que nele está contido,
inclusive a cidade e as montanhas que carrego no entre uma e outra. O
“nós” enquanto seres coletivos e parte do todo. Nossa parte humana que
se assemelha às águas, pedras, árvores. O “nós” que nos habita e se fabrica
como um coletivo de experimentadores, que mergulha em novos hábitos
a adotar. Um desejo de habitar e ser habitada pelo nós. Poderia dizer que
habito novos hábitos ou me habitam os caminhos entre as montanhas,
cidades e estradas! O “nós” na perspectiva dos seres humanos e de todos os
227
seres animados pelo princípio vital, a vida.
Nesse coletivo de forças, o que faz pulsar em meu corpo é engendrar
outros modos de viver no planeta. Engendrar no sentido de dar uma
forma aos acontecimentos, dar existência e gerar pensamentos, não só
compreender ou questionar racionalmente o enunciado das montanhas
no meu corpo individual e coletivo. O que pode ser capturado na natureza
que diz respeito ao corpo coletivo? Engendrar uma gramática da natureza e
me deixar capturar pelas experiências dos fenômenos do vento, do cheiro,
da folha caindo, das nuvens suspensas, do som dos passos da formiga e
traduzir numa linguagem que me permita acessar uma outra gramática.
Uma linguagem da substância que vibra, pulsa e não hesita é evidente sua
ação em meu corpo, uma identidade advinda da natureza originária de
onde tudo nasce e desenvolve.
228
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
3 Um pequeno pensamento pode manter uma coisa em existência e criar outras ligações
chamadas de “coisidades” e quando essa coisidades se liga a uma unidade sistemática,
se compõe com uma história ligada em um cosmo definido se torna “cosmicidade”
(LAPOUJADE, 2017, p. 32).
229
a terra e cosmos. Poderia dizer uma experiência mágica, transcendental,
mas prefiro detalhar essa experiência.
230
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
FIGURA 2: Registro de Performance no Cotidiano: Empilhar Pedras. Fonte: Mirian Steinberg, 2020.
FIGURA 3: Registro de Performance no Cotidiano: Empilhar Pedras Imagem. Fonte: Mirian Steinberg, 2020.
231
2. MAMILOS-DA-TERRA, QUEIJO, MEL E ARTE
Mamilos, palavra substantiva e plural refere-se a uma anatomia do
corpo, uma saliência arredondada, o bico de um seio, uma corporeidade de
uma máquina de produção de prazeres, de líquidos nutritivos, estimulam
o desejo de apetite, refere-se às oralidades, aos mamíferos e aos humanos.
Realizo ensaios e experimentos de um corpo-barro (figura 4) com referências
às esculturas de seios como em Louise Bourgeois.
232
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
FIGURA 5: Pintura em Pastel Oleoso sobre papel. Fonte: Mirian Steinberg, 2020.
FIGURA 7: Pote de Mel de Candeia da Apicultora Celia – Registro em fotografia e vídeos. Fonte: Mirian
Steinberg, 2020.
FIGURA 8: Ateliê Nakawê Estampas em Tecidos da artista Claudia Mattos- Registro em fotografia e vídeo.
Fonte: Mirian Steinberg, 2020.
234
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
235
3. ESCUTA DAS NARRATIVAS DO FEMININO
A escuta das narrativas5 das mulheres, moradoras dessas montanhas
é como “uma pele de escuta, fazendo ressoar seu próprio ritmo e timbre.”
(STEINBERG, 2019, p. 69 apud NANCY, 2014). Encontro de vozes do
feminino numa abertura para compor imagens e sonoridades de um corpo
coletivo. Voz que fala dos modos de vida dessas mulheres, no campo do
comum, dos gestos cotidianos, mulheres que nos fazeres são as geradoras
da renda familiar e mesmo assim consideradas menores e desvalorizadas
na sociedade patriarcal. A voz do coletivo de mulheres na dimensão da
micropolítica, o “nós” que foi calada em seus saberes e fazeres, no campo
do sensível e do artístico do cotidiano. A escuta dessas mulheres com o
propósito de trazer o seu protagonismo e viver a dimensão do feminino no
corpo da mulher em conexão com seus ciclos, seu útero, com o tempo e o
espaço da natureza dentro e fora de si.
Do ponto de vista econômico elas buscam novos modos de economia
solidária e de subsistência rural, para a superação da dominação patriarcal
na relação entre os gêneros (SILIPRANDI, 2000)6. Na linha de fuga do
colonial, na transgressão da ordem, dos poderes castradores, numa ecologia
do feminino. Parece possível seguir no desenvolvimento desse ensaio-
pesquisa, me compondo com movimentos ecofeministas que utilizam
outros modelos de economia solidária.
Nesse contexto, os movimentos de engajamento social com mulheres,
apostam na corporeidade e no espaço, com os agenciamentos coletivos de
enunciação. Uma aposta nas vias de singularidade e subjetividade social,
“multiplicidade humanas, com devires animais, vegetais, maquínicos,
incorporais infra pessoais” (GUATTARI, 1992, p. 144). Deslocando os
antigos territórios de referência da cidade megalópoles para novos espaços
na natureza.
236
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
AGRADECIMENTOS / ACKNOWLEDGMENT
Agradeço ao N’ME pelo convite e incentivo na publicação dessa
edição e a todas as mulheres da Serra da Mantiqueira que fizeram parte do
processo e do projeto Mamilos da Terra.
237
REFERÊNCIAS / REFERENCES
ACOSTA, Alberto. O bem viver, uma oportunidade para imaginar outros
mundos. São Paulo: Autonomia Literária e Editora Elefante, 2016.
238
A R T E C O M P O S TA G E M ’ 2 1
MIRIAN STEINBERG
Mestra em Artes Visuais pelo departamento de Processos e Procedi-
mentos Artísticos do INSTITUTO de ARTES da UNESP. Graduação em
Musicoterapia e Pós-Graduação em História das Artes pela Faculdade
Paulista de Artes/SP. Licenciatura em Música pela Faculdade São José/
SP. Pesquisadora CAPES 2017 a 2018. Membro do Grupo de Pesquisa
CAT/IA/UNESP. Criação e organização do Núcleo de Novas Metodolo-
gias em Artes no IA/UNESP. Docente em Artes no Instituto Federal de
São Paulo/ Campus Campos do Jordão. Artista-educadora-clínica, mu-
sicoterapeuta e terapeuta corporal atua com acompanhamento clínico e
artístico com Cartografia do Desejo Criativo. Pesquisa Esquizoanalise e
como Artista desenvolve trabalhos em diferentes linguagens artísticas.
239
ARTECOMPOSTAGEM’21
NÚCLEO DE ESTUDOS SOBRE METODOLOGIAS DE PESQUISA EM ARTES
AV:A | INSTITUTO DE ARTES DA UNESP | SÃO PAULO - SP