Alyne de Castro Costa - Cosmopolíticas Da Terra PDF
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Cosmopolíticas da Terra:
Modos de existência e resistência no Antropoceno
Tese de Doutorado
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2019
2
Cosmopolíticas da Terra:
Modos de existência e resistência no Antropoceno
Ficha catalográfica
CDD: 100
4
Agradecimentos
amigos com quem nunca é tarde demais para compartilhar ideias, piadas e
angústias, não necessariamente nesta ordem.
Resumo
Esta tese tem por objetivo investigar, sob um ponto de vista filosófico,
possíveis caminhos para pensar o que significa resistir diante da chamada crise
ecológica, isto é, o conjunto das graves alterações de origem antropogênica
observadas nos processos biogeoquímicos da Terra, a ponto de ter suscitado a
entrada do planeta numa nova época geológica, o Antropoceno. Esse
acontecimento coloca em xeque a própria validade universal das categorias que
sustentam a epistemologia dita ocidental – a qual, segundo Bruno Latour (1994),
se caracteriza pela admissão de apenas dois modos de existência para os seres, isto
é, como entes naturais ou culturais. De maneira que, para investigar as
possibilidades de resistência, sugerimos ser necessário considerar os modos
próprios de outras ontologias conceberem os entes que habitam o mundo, bem
como suas maneiras particulares de descrever os processos e interferências que
ameaçam destruí-lo. Tal consideração da pluralidade ontológica existente se faz
necessária também porque, como este trabalho pretende esclarecer, a Terra pode
ser compreendida como o solo comum que só existe a partir das versões
divergentes dela mesma. A unidade que constitui esse solo comum, no entanto,
não pode ser vislumbrada sem um cuidadoso trabalho de composição: foi uma
tentativa malsucedida de fabricar um mundo comum que deflagrou a atual guerra
de mundos (Latour, 2002) que a crise ecológica torna incontornável. Assim,
seguindo ainda a terminologia de Latour, de um lado da disputa estão os
Humanos, aqueles que, presumindo deter o conhecimento definitivo sobre a
realidade objetiva do mundo e se arrogando o direito de explorar impiedosamente
os seres “naturais” (além de outros humanos), conduziram-nos ao estado atual de
desordem ecológica; do outro, há os Terranos, indivíduos e povos que
reconhecem na Terra e em seus seres verdadeiros aliados na existência, e não
8
meros recursos a explorar. Esta tese, portanto, traça um panorama, ainda que não
exaustivo e em larga medida especulativo, dessas movimentações da Terra e de
seus povos no Antropoceno, bem como dos múltiplos modos terranos de existir –
os quais permitem entrever possibilidades de resistir, ressurgir, enfim, rexistir em
meio à barbárie eco-política que se anuncia.
Palavras-chave
Cosmopolítica; Antropoceno; crise ecológica, resistência; pluralismo
ontológico.
9
Abstract
Keywords
Cosmopolitics; Anthropocene; ecological crisis, resistance; ontological
pluralism.
11
Sumário
Introdução 14
Introdução
1
Sobre o acordo climático internacional e a ameaça, da parte de alguns países signatários, de
abandonar o pacto, cf. nota 34.
2
Isso sem mencionar os demais ataques a medidas sociais e a políticas voltadas a minorias, os
discursos de ódio e outras perversidades que caracterizam seus governos.
16
3
Conceito que iremos apresentar no capítulo 3.
4
Cf. sobretudo Costa, Alyne, 2017.
17
como eixo basilar. Nesse conflito de mundos que coexistem no Mundo,5 assim,
teríamos de um lado os Humanos, aqueles que acreditam encarnar as potências –
isto é, que se identificam com o Estado e com o capitalismo. Estes são os que
agem em nome do consenso, do razoável; que condicionam as ações diante da
desordem ecológica a imperativos de lucratividade, de viabilidade econômica, de
conciliação com a “necessidade inelutável” do crescimento econômico. Como diz
a filósofa Isabelle Stengers, a esta altura já sabemos bem o que esperar se
confiarmos nosso destino aos Humanos: “não escaparemos da barbárie, ou então
de uma tirania, uma tirania dos especialistas que irão gerir a penúria [...]” (2017,
p. 122).
Do outro lado da disputa estão os que se recusam a deixar tamanha
responsabilidade nas mãos daqueles que se consideram responsáveis por nós.
Estão os que sabem que, para estarmos à altura do acontecimento sinalizado pelo
Antropoceno, é preciso criar outros meios de pensar e agir, e que é justamente
essa criação que é interditada pelo apelo ao consenso que “nossos responsáveis”
nos dirigem. Desse lado estão também aqueles que, tendo aprendido a existir nas
margens, nos interstícios, nas ruínas dos mundos governados pelas potências,
tornaram-se ases da sobrevivência: inventaram para si outras formas de vida,
aprenderam a restaurar ambientes degradados, recuperaram conhecimentos
abandonados, experimentaram agenciamentos outros que os considerados viáveis
economicamente, outros que os razoáveis, outros que apenas humanos (ou
Humanos). Eles são, em suma, os inúmeros indivíduos e povos espalhados por
toda parte que escolheram se aliar à Terra, esta sim a verdadeira potência da vida.
Aqueles que, seguindo Latour, chamamos de Terranos são os que conseguem ir
além da oposição e verdadeiramente resistir, criando para si outras modalidades
de existência ao seguir as linhas de fuga traçadas por sua aliança com a Terra e
seus seres. São tais alianças que lhes permitem escapar das alternativas infernais –
“Se os agrotóxicos não forem liberados o povo vai passar fome”; “Melhor ter
subemprego do que desemprego”; “Querem preservar a Amazônia, mas floresta
não gera crescimento econômico” – e que constituem nossas únicas chances de
abreviar o Antropoceno e restaurar, mesmo que parcialmente, a diversidade eco-
ontológica que está em vias de se extinguir.
5
A diferenciação que propomos entre mundo e Mundo será explicada no capítulo 1.
18
6
Cf. nota 85 para uma contextualização do emprego, sempre problemático, deste pronome
possessivo.
19
à Terra, construir seu caminho em direção a ela. Organizamos tal análise em cinco
seções, cada uma delas abordando um par de conceitos inspirados nessas que
chamamos de rexistências terranas e no tipo de captura nefasta que tais conceitos
ajudam a conjurar. Por meio dessas especulações, traçamos um panorama – ainda
que não exaustivo e sem qualquer pretensão de validade etnográfica – das
possibilidades múltiplas de ocupar e reivindicar a Terra. Não temos a esperança
de que elas encarnem soluções capazes de nos livrar do Antropoceno, tampouco
que sirvam de modelos de uma maneira ideal de habitar o planeta: antes, tais
conceitos constituem uma tentativa de pensar, diante do problema, saídas para a
ameaça da paralisia política e imaginativa, meios de restituir à vida seu poder de
criação, mesmo em meio às maiores catástrofes e opressões.
Se a filosofia não pode tomar parte das grandes batalhas travadas pelas
potências, nem sequer tem algo a lhes dizer, esta tese pretende se integrar à guerra
dos mundos como um ato de guerrilha: junto aos Terranos, não medimos força
com os inimigos, não jogamos seu jogo, mas sim apostamos na versatilidade das
alianças, na inventividade das narrativas, na imprevisibilidade das estratégias, na
leveza do riso, no entusiasmo das reivindicações, na coragem das insubmissões,
no cuidado em relação às forças desconhecidas. Não sabemos, entretanto, o futuro
que tal guerra nos reserva: sabemos somente que lutaremos com as armas que
houver para que reste, ainda e por muito tempo, mundos e Terra para que a vida
floresça em sua diversidade constituinte.
21
1
Mil modos de existir (e deixar de existir)
1.1.
Os tempos e as catástrofes
7
Por “história recente” nos referimos à concepção ampliada que inclui a história do homem, da
vida e da própria Terra. Mas se considerarmos sua acepção corrente como “história do homem”,
então sem dúvida alguma a crise ecológica constitui a maior ameaça já enfrentada pela própria
História.
8
Para uma explicação dos sentidos que a palavra “mundo” adquire nesta tese, cf. subcapítulo
1.2.3.
9
As aspas se justificam porque, como veremos, não é essa a expressão que melhor representa, a
meu ver, os seres que fazem a Terra conosco, mas que vêm sendo explorados à exaustão, a ponto
de havermos chegado à situação atual de profunda desordem ecológica.
23
10
Para usar um termo essencial a esta pesquisa, a ser esclarecido no momento oportuno.
11
Em diversas ocasiões, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro usou a expressão “extra
humanos”, supomos que para manifestar sua discordância com a ontologia prevalente na tradição
ocidental, que estabelece o “humano” como seu termo definido e definidor e concebe todos os
outros seres apenas a partir dele, como seus negativos (“não humanos”). Por motivo semelhante, a
também antropóloga Marisol de la Cadena opta por empregar a expressão “outros-que-humanos”
(other-than-humans) (2010, p. 341; 2014, p. 254). Por concordar com esses autores que a forma
como nos referimos a esses outros seres também é uma atitude política, privilegiarei nesta tese o
emprego dessas duas expressões, de forma alternada e como sinônimos, como forma de indicar o
“excesso ontológico” desses entes em relação à passiva, restrita e um tanto equivocada
categorização dos mesmos entes como “não humanos” (ibidem, p. 256). Essa preocupação
(cosmo)política é um tema de absoluta relevância para a presente pesquisa, razão pela qual será
abordada por diversas frentes no decorrer deste trabalho.
12
O conceito de “saída” será examinado com mais detalhes no capítulo 2; por ora, podemos
indicar que ele diz respeito à possibilidade de abrir caminho no mundo para que outros mundos se
24
1.1.1.
“O tempo está sendo maluco!”
Severiá Maria Idioriê conta que, nos últimos tempos, o plantio das roças de
milho, abóbora e melancia na Terra Indígena Pimentel Barbosa, do povo Xavante,
vem sendo severamente afetado pelas secas e pelo aumento da temperatura na
região: “se perguntarmos aos mais velhos a época das chuvas e das secas, eles
com certeza dirão que houve mudanças nos últimos tempos” (Idioriê, 2015, p. 22-
23). Por sua vez, Marta Tipuici, da etnia Manoki, lembra que seu avô costumava
pescar trairão na ponte sobre o córrego que corta a aldeia Cravari: “[e]le contava
que tinham muitos peixes durante as chuvas porque o rio ficava cheio, os peixes
subiam do Rio Carvari para o córrego São Domingos. Hoje virou história”
(Tipuici, 2015, p. 33). Já Manoel Kanunxi relata que seus companheiros Manoki
não reconhecem mais os ciclos da natureza: as épocas de chuva e seca sempre
informaram o momento de plantar e colher, mas agora, certos cultivos não vingam
ou não crescem na hora certa, e a produção “não é mais rica como antes. A gente
não tem mais as épocas certas de nada. O tempo está sendo maluco!” (Kanunxi,
2015. p. 43).
Nessa mesma área abarcada pelo estado do Mato Grosso na qual se localiza
o Parque Indígena do Xingu (que reúne 16 grupos indígenas entre os quais se
encontram os mencionados acima), os indícios da “dessincronização dos ritmos
13
Suzane Vieira explica que “[o] ‘astro do tempo’ não se refere a corpos celestes, mas a um estado
do firmamento que define as condições atmosféricas de pressão e de temperatura” (Vieira, 2015b).
26
14
Como afirma Renzo Taddei, diferentemente da maneira como a vida nos centros urbanos é
estruturada, no meio rural os ciclos “naturais” são considerados os principais sincronizadores dos
tempos coletivos (Taddei, 2006, p. 163). Proponho que é possível afirmar o mesmo para outros
povos, como os indígenas e os quilombolas, mesmo que a noção de “natureza” sofra variações
equívocas entre eles, como veremos mais adiante. De todo modo, é importante destacar que tais
experiências vivenciais não se restringem à mera observação, dizendo respeito, mais precisamente,
a modalidades de experimentação conjuntas, no sentido de estabelecer alianças para acoplamento
de agências, como também tentarei demonstrar a seguir.
15
A Organização das Nações Unidas estima que haja no mundo mais de 370 milhões de
indivíduos considerados indígenas, espalhados em 90 países (Food and Agriculture Organization
of the United Nations, 2016). Trata-se de um número inegavelmente expressivo de pessoas
“praticando tradições únicas” e mantendo “características políticas, econômicas, sociais e culturais
distintas daquelas das sociedades dominantes nas quais vivem” (United Nations Permanent Forum
on Indigenous Issues, 2006). Contudo, nesta estimativa não estão computados os povos que a
Constituição brasileira denomina “tradicionais” (como ciganos, quilombolas, ribeirinhos,
seringueiros e castanheiros, para citar alguns), definidos como "grupos culturalmente
diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social,
que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural,
social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e
transmitidos por tradição"; só no Brasil, eles constituem cerca de 5 milhões de indivíduos, que
ocupam um quarto do território nacional (Seppir, s/d.). Some-se a isso os inúmeros outros grupos e
indivíduos que não param de inventar modalidades de “deserção” do dispositivo ocidental-
capitalista de organização social, o que permite suspeitar que são ainda muito mais numerosos os
outsiders do modo de vida estabelecido pela Constituição moderna, para falar como Bruno Latour
(1994).
16
Em depoimento registrado no filme Para onde foram as andorinhas?, um indígena Waurá
expressa sua preocupação a respeito da cerimônia de furação de orelhas das crianças, já que ela
está diretamente atrelada à colheita do pequi, e os pequizeiros não florescem mais na época certa –
quando não são atacados por percevejos, até pouco tempo atrás inexistentes na região, que ali
chegaram possivelmente atraídos pela plantação massiva de soja, como conta uma outra nativa não
identificada no filme (Para onde..., 2015).
27
evidências dessa “mudança dos tempos” (ou do clima)17, como sabemos, vêm se
acumulando também na sociedade dita ocidental ou moderna, tornando-se talvez
um dos fenômenos mais bem documentados da história da ciência (Latour, 2015b,
p. 3). Tendo sido popularizada na década de 1980 pela expressão “aquecimento
global” e sendo mais referida hoje como “mudanças climáticas”,18 ela diz respeito
às alterações em diversos processos ecológicos da Terra, ocasionadas pelo
aumento da concentração na atmosfera de dióxido de carbono e outros gases de
efeito estufa observado desde a Revolução Industrial, no século XIX, e mais
intensamente a partir da década de 1950, com a expansão econômica,
populacional e industrial do período pós-guerra. Não restam dúvidas, hoje, de sua
origem antropogênica: a saber, as altíssimas emissões de dióxido de carbono, um
dos principais gases de efeito estufa, oriundas da queima de combustíveis fósseis
que sustenta o modo de vida da grande maioria das populações atualmente. Nesse
sentido, as variações climáticas relatadas há pouco podem ser consideradas
consequências do incremento da quantidade desse gás na atmosfera – as
concentrações de CO2 alcançaram, em 2017, 405,5 partes por milhão (ppm),19 um
nível que só havia sido ultrapassado pela última vez entre 3 e 5 milhões de anos
atrás 20 (WMO, 2018b; Carrington, 2018d) – e do consequente aumento da
temperatura média global do planeta em aproximadamente 1.1ºC, em comparação
aos níveis pré-industriais (WMO, 2018a, p. 5). Desde 1977, as temperaturas nos
17
Cabe dizer que, apesar de a ciência diferenciar as noções de “tempo” e “clima” (cf. Gutro,
2005), para efeitos da comensurabilidade que pretendo estabelecer entre as percepções modernas e
extra-modernas, por assim dizer, da catástrofe ecológica, essa distinção não precisa ser levada em
conta neste momento: tempos e climas, aqui, dizem respeito aos processos pelos quais mundos
orgânico e inorgânico se influenciam mutuamente na composição da realidade que nos cerca, os
quais estão sendo severamente impactados especialmente nas últimas décadas.
18
A expressão “aquecimento global” (global warming) se popularizou no final da década de 1980,
com a grande repercussão da palestra proferida por James Hansen, então climatologista da NASA,
no Congresso norte-americano, tratando da relação direta entre o aumento da concentração de
gases de efeito estufa na atmosfera e o incremento da temperatura média do planeta. Contudo,
atualmente, a expressão é usada na literatura científica para se referir apenas à elevação da
temperatura da superfície da Terra motivada pela maior presença atmosférica de gases de efeito
estufa; para se referir às alterações de longo prazo no clima da Terra induzidas por esse incremento
de dióxido de carbono, emprega-se a expressão “mudanças climáticas” (climate change). Estas,
assim, incluem o aquecimento global, mas também outros fenômenos, como o aumento do nível
do mar e as alterações nos padrões de precipitação, e podem ser ainda mais severas do que o
aumento da temperatura sozinho. Como as pesquisas sobre o clima precisam abarcar também essas
outras transformações, “mudanças climáticas” se mostra, assim, um termo mais cientificamente
preciso (Conway, 2008).
19
Os dados de 2018 não haviam sido divulgados até a finalização desta tese.
20
Não apenas a concentração de CO2 atingiu um nível recorde, como também a dos outros
principais gases de efeito estufa (metano e óxido nitroso). Na última vez que esses níveis de CO2
foram alcançados, a temperatura global média do planeta era de 2º a 3º C acima da atual e o nível
do mar era de 10 a 20 metros mais elevado que nos dias de hoje (Carrington, 2018).
28
continentes e nos oceanos vêm sendo maiores que a média do século XX,21 e os 20
anos mais quentes desde 1850, quando as medições começaram, ocorreram todos
nos últimos 22 anos. 2015, 2016 e 2017 foram os anos mais quentes já registrados
–22 se não computarmos os anos com El Niño, 2017 pode ser considerado o ano
mais quente da série histórica –, e tudo indica que os próximos anos seguirão a
mesma tendência (NOAA, 2018; Carrington, 2018a).
O aquecimento da superfície terrestre (que abarca o aumento das
temperaturas atmosféricas, dos continentes e dos oceanos), por sua vez, acarreta
fenômenos que retroalimentam a retenção do calor e provavelmente causarão uma
desestabilização colossal (e, em muitos aspectos, inimaginável, por conta da
imprevisibilidade de seu real alcance) para os biomas da Terra e sua
biodiversidade. Entre esses fenômenos, destacam-se a diminuição da extensão da
cobertura de gelo continental (pelo derretimento das geleiras e calotas polares) e
marinha (com a redução do volume glacial nos mares do Ártico e da Antártida) e
a elevação do nível do mar que resulta desse degelo,23 o aumento da acidificação
dos oceanos – considerado pelos cientistas o “irmão gêmeo malévolo” do
aquecimento global, por sua capacidade de afetar profundamente toda a
biodiversidade marinha –,24 e o aumento da concentração de vapor d’água na
atmosfera25 (Wuebbles et. al., 2017).26 Donde se pode afirmar que, mesmo quando
21
A título de curiosidade, a temperatura media global do planeta entre 1901 e 2000 foi de 13,9º.
Hoje, está por volta dos 15º C. Cf. o site CO2.Earth: <https://www.co2.earth/global-warming-
update>.
22
E até o momento em que estas páginas foram escritas, 2018 era um forte candidato para ser o
quarto ano mais quente de que se tem registro (WMO, 2018c).
23
Um estudo publicado em junho de 2018 na revista Nature mostrou que 40% da elevação
observada desde 1992 aconteceu nos últimos cinco anos, em decorrência da perda sobretudo das
calotas polares antárticas, consideradas o maior reservatório de gelo do planeta (Shepherd; Fricker;
Farrell, 2018). As consequências são assustadoras, como explica o meteorologista Eric Holthaus
no site de notícias Grist: “Os glaciares da Antártida são gigantes o suficiente para inundar todas as
cidades costeiras da Terra. Assim, não seria exagerado dizer que o que acontecer na Antártica nas
próximas décadas determinará o destino não apenas de Miami ou Mumbai, mas também o curso
da história humana. Se tivermos sorte e começarmos a cortar emissões o quanto antes, os glaciares
da Antártica podem, em grande parte, permanecer como estão. A alternativa [a esse cenário] é
impensável” (Holthaus, 2018).
24
Isto porque, de todo dióxido de carbono emitido na atmosfera, cerca de 30% é absorvido pelos
oceanos; ali esse gás se dissolve e produz acidez – nos últimos 200 anos apenas, os oceanos se
tornaram 30% mais ácidos, a maior alteração na química marinha ocorrida nos últimos 50 milhões
de anos. O impacto nesses ecossistemas é avassalador, sobretudo para os organismos
calcificadores, como moluscos, algas e corais: a constituição de esqueletos e conchas se vê
seriamente afetada em um ambiente mais ácido, e as estruturas que chegam a se constituir
ameaçam se dissolver (Ocean Portal, 2018).
25
Segundo o site Skeptical Science, “[o] vapor d'água é o gás de efeito estufa mais predominante.
Ele também é o mais forte feedback positivo do nosso clima, amplificando qualquer aquecimento
29
29
Muitos recordes históricos também foram superados na temporada de furacões na região em
2017: as tempestades, deslizamentos de terra, inundações e rajadas de vento provocadas pelos
“três furacões monstruosos” (Harvey, Irma e Maria) causaram ao menos 464 mortes e cerca de
US$ 316 bilhões de prejuízos na costa norte-americana e em diversas ilhas do Caribe (Maines,
2018)
30
A projeção é a de que esse percentual aumente para 48% num cenário de drástica redução das
emissões de gases de efeito estufa e 74% em caso de as emissões aumentarem.
31
grau de certeza que varia entre 95 e 100%]31 que a influência humana seja a causa
dominante do aquecimento global observado desde meados do século XX” (IPCC,
2013, p. 17).32 Restam ainda várias incertezas por parte dos climatologistas quanto
à estimativa das consequências das mudanças climáticas nos diversos processos
ecológicos. Contudo, em todas as projeções elaboradas pelo IPCC, as
concentrações de dióxido de carbono na atmosfera crescem até 2100, ocasionando
um incremento na temperatura que varia entre 0,3ºC e 1,7ºC no cenário mais
otimista e entre 2,6ºC e 4,8ºC no pior cenário, em relação à média de temperatura
observada no período de 1850 a 1900.
A discrepância entre os piores e os melhores cenários, no entanto, não
permite qualquer tipo de aquietação. Pois, mesmo nas projeções de menor
aumento da temperatura, é impossível estabelecer com precisão os efeitos destas
variações, já que muitas delas podem desencadear alterações irreversíveis e não
lineares capazes de modificar completamente o estado de equilíbrio climático e
estabelecer um novo “normal” (isto é, um desconhecido novo estado de
equilíbrio) para o clima. Os gatilhos para esses chamados “pontos de inflexão”, ou
tipping points, são imprevisíveis. É por essa razão que o relatório estipulou que o
limite máximo de aumento da temperatura global considerado tolerável é de 2ºC,
o que demandaria ações imediatas e abrangentes para reduzir substancialmente o
volume da emissão de gases de efeito estufa na atmosfera (ibidem, p. 17-18).
Todavia, muitos cientistas consideram as projeções de aumento da
temperatura apontadas pelo IPCC conservadoras: a natureza intergovernamental
do painel, a quantidade de especialistas envolvidos na elaboração dos relatórios e
o processo de consenso por meio do qual os resultados são acordados favorecem a
cautela na elaboração dos cenários climáticos (Costa, Alyne, 2017; Hamilton,
2010, p. 3).33 Diante das inúmeras reivindicações afirmando a leniência de tal
meta – já que o aumento de temperatura experimentado até o momento vem
31
Os resultados das pesquisas científicas são comumente expressos por meio de graus de
probabilidade. No caso em questão, o relatório esclarece que o termo “extremamente provável” diz
respeito a uma probabilidade entre 95 e 100%. (IPCC, 2013, p. 4).
32
Segundo o documento, tal influência pode ser detectada “no aquecimento da atmosfera e do
oceano, nas mudanças no ciclo global da água, nas reduções de neve e gelo, no aumento global do
nível do mar e em mudanças climáticas extremas” e se dá principalmente por meio do “aumento
antrópico da concentração de gases de efeito estufa e de outras forçantes antrópicas juntas” (IPCC,
2013, p. 17).
33
De fato, diversos estudos apresentam projeções tanto de aumento de temperatura e quanto dos
impactos dele decorrentes bastante mais alarmantes, como é o caso de Sherwood; Bony; Dufresne,
2014; Betts et. al. 2011; e Hansen et al., 2016.
32
34
Tratado de cooperação internacional para a redução das emissões de gases de efeito estufa que
substituirá, a partir de 2020, o fracassado Protocolo de Kyoto. Até o momento, o Acordo de Paris
conta com 195 signatários (194 países mais a União Europeia) e foi ratificado por 184 partes –
entre elas o Brasil, que, apesar das ameaças de retirada feitas pelo presidente Jair Bolsonaro, ainda
permanece no pacto. Em 2017, Donald Trump anunciou sua intenção de retirar os Estados Unidos
do acordo, o que, pelas regras estabelecidas, só pode acontecer a partir do fim de 2020,
35
Não encontramos uma expressão equivalente em português empregada no meio científico;
propomos traduzi-la como “aquecimento empenhado”.
33
36
Um estudo publicado em 2007 na revista Nature estimou que, mesmo interrompendo de
imediato as emissões, há 13% de risco de excedermos o limite de 1,5ºC até o fim do século;
contudo, se o ritmo atual de emissões for mantido pelos próximos 30 anos, a chance de
permanecermos dentro da meta estabelecida no Acordo de Paris despenca para 50% (Mauritsen;
Pincus, 2017). Uma outra pesquisa, conduzida pelo serviço meteorológico britânico, afirma haver
10% de chance de a fronteira do aquecimento de 1,5º C ser ultrapassada já nos próximos cinco
anos (de 2018 a 2022). É a primeira vez que uma temperatura tão alta é considerada plausível nas
previsões climáticas (Met Office, 2018).
37
Os limites estabelecidos foram: mudança climática, acidificação dos oceanos, depleção do
ozônio estratosférico, uso de água doce, perda de biodiversidade, interferência nos ciclos globais
de nitrogênio e fósforo, mudança no uso do solo, poluição química e taxa de aerossóis
atmosféricos (Rockström et al., 2009). Após a revisão sofrida em 2015, a perda de diversidade se
tornou “mudanças na integridade da biosfera”, e a poluição química passou a ser categorizada
como “introdução de novas entidades”, de modo a incluir “novas substâncias, novas formas de
substâncias existentes e formas de vida modificadas que podem causar efeitos biológicos e
geofísicos indesejados” (Steffen et al., 2015, p. 7) – como, por exemplo, poluentes orgânicos,
materiais radioativos, nano-materiais e micro-plásticos (Stockholm Resilience Centre). Além dos
limites agregados globais, foram desenvolvidas fronteiras em escala regional para alguns dos nove
processos, e outras mudanças nas formas de análise e quantificação foram realizadas – por
exemplo, os ciclos de nitrogênio e fósforo foram ampliados para “fluxos biogeoquímicos”, de
modo a tornar possível, num futuro próximo, incluir cálculos sobre outros elementos importantes
para o funcionamento dos sistemas da Terra, como o silício (ibidem, p. 6). Cf. também Villalba,
2015.
34
1.1.2.
“Insignificante e, ao mesmo tempo, absolutamente dominante”
38
As fronteiras dos outros dois processos indicados, “novas entidades” e “taxa de aerossóis
atmosféricos”, ainda não puderam ser quantificadas.
39
O problema que o desaparecimento dos animais implica para a relação dos Manoki com a caça e
a pesca, mencionado de passagem no relato de Kanunki, é apenas uma entre as distintas (e
terríveis) reverberações sociais, culturais, políticas e epistemológicas do expressivo declínio
populacional de inúmeras espécies verificado em escala global nas últimas décadas, como veremos
logo adiante.
40
Holliver ressalta que, devido à ausência de indivíduos dessas espécies, não foi possível definir
precisamente sua classificação taxonômica. Dessa forma, o autor optou por classificar os animais
citados segundo sua possível identificação às espécies endêmicas da região.
35
41
Ainda não há um consenso científico sobre se as espantosas perdas biológicas em curso
configuram uma Sexta Grande extinção – apesar de reconhecidamente “dramática e séria”, alguns
autores afirmam que ela ainda não possui as características que a paleontologia convencionou
chamar de “extinção em massa”, como foi o caso dos eventos conhecidos como as “Cinco
Grandes” (Fausto, 2017, p. 237). De todo modo, os cientistas fazem questão de destacar que “há
claras indicações de que as perdas de espécies hoje classificadas como ‘criticamente ameaçadas’
levaria rapidamente o mundo a sua sexta extinção em massa” (Barnosky et al., 2011, p. 56). Para
mais sobre a sexta grande extinção, cf. Kolbert, 2014.
42
Enquanto estudos considerados conservadores estimam uma taxa de extinção cem vezes maior
que o ritmo que poderia se considerar “natural”, outros indicam que ela seria mil vezes maior,
podendo chegar a aproximadamente dez mil (Ceballos et al., 2011).
36
45
Cf. também WATTS, 2017.
38
46
Ainda sobre o tema, cf. também a matéria especial no jornal Folha de São Paulo (Leite;
Almeida, 2018).
39
1.2.
Quem a Terra pensa que é?
meio de suas próprias filosofias, dizem sobre o mundo, atitude que caracterizaria
um relativismo condescendente segundo o qual “tudo valeria”. Tampouco se
trataria de inverter o sentido da “seta epistemológica” e considerá-los detentores
de um saber exclusivo ou superior (porque sagrado ou oculto a nós de alguma
forma): essa inversão expressaria uma visão grosseiramente exotizante, a qual é,
no mínimo, inócua e, nos piores (e não raros) cenários, resvala no racismo, pois
reduz esses povos a meras caricaturas de si mesmos. Com efeito, o que importa
nesta outra prática antropológica é interpretar, segundo os termos do outro (isto é,
conforme as condições próprias de produção desta prática), “a lógica que o outro
pensamento põe em funcionamento” (Calheiros, 2017), de modo a torná-la capaz
de modificar nosso próprio pensamento.48 Como afirma o antropólogo Eduardo
Viveiros de Castro, contra o exotismo barato da tolerância cultural, o “exotismo
estratégico” da “alteridade cultural radical”, como forma de transfundir “as
possibilidades realizadas pelos mundos indígenas para dentro da circulação
cosmopolítica global, que se acha em evidente estado de intoxicação aguda”
(2012a, p. 152). Pois
[...] não se trata de supor que, uma vez superada a fase em que a antropologia era
um discurso sobre o pensamento (e a ação etc.) dos povos que estudava, possamos
passar, ou devamos passar, a pensar como esses povos, invertendo a pulsão
missionária irrefreável que nos faz pensar que, se não se trata mais de fazer os
outros pensarem como nós, então devemos, nós, pensar como eles. O que podemos,
e devemos, no mínimo e no máximo, é pensar com eles, levar, em suma, seu
pensamento a sério – a diferença de seu pensamento a sério. É apenas pela acolhida
integral dessa diferença e dessas singularidades que se poderá imaginar – construir
– o comum (ibidem, p. 164).49
Aqui se faz necessária uma explicação, mesmo que breve (já que trataremos
disso com mais detalhes no capítulo 3), da ideia de “cosmopolítica”, de grande
importância para nós. Da maneira como Isabelle Stengers o entende, o conceito
48
Isto porque, como explica Viveiros de Castro a respeito do pensamento ameríndio – mas que,
acredito, pode ser elevado a uma espécie de regra geral da antropologia –, a metafísica do outro
povo funciona ao mesmo tempo como um “interlocutor dialógico e um contrário antilógico” para
aquela disciplina. A alteridade desse pensamento instaura “uma relação de tensão constitutiva com
sua descrição antropológica”, na medida em que sua descrição/tradução necessariamente vindica
conceitos muito distintos daqueles em que ela própria se inscreve enquanto “herdeira legítima,
ainda que possa sê-lo a contragosto, da ‘grande tradição’ filosófica da modernidade” (Viveiros de
Castro, 2012a, p. 157). Nesse sentido, o autor se pergunta em outro artigo: “como podemos
restituir as analogias estabelecidas por, digamos, os povos indígenas amazônicos nos termos de
nossas próprias analogias? O que acontece com nossas comparações quando as comparamos com
as comparações indígenas?” (idem, 2004, p. 4).
49
A esse respeito, cf. também os fundamentais artigos do mesmo autor, “O nativo relativo”
(2002), e “Perspectival Anthropology and the Method of Controlled Equivocation" (2004).
41
51
Seguindo Bruno Latour (2004a), emprego o termo “coletivo” para salientar que o conjunto dos
seres que se integram no interior de um grupo social excede o conjunto dos indivíduos da espécie
humana, os quais são os viventes que a tradição do pensamento dito Ocidental mais imediatamente
associa ao conceito de “povo” ou “sociedade”. Contudo, apesar de “coletivo” me parecer o
conceito mais adequado para se referir à variedade ontológica dos seres que estão em relação num
grupo social, empregarei ao longo da tese os termos “coletivo”, “povo”, “sociedade” e “grupo
social” como sinônimos, sempre me referindo a esse sentido “alargado” da composição social.
52
O termo pluriverso é empregado por Latour para se referir aos seres que incessantemente
postulam sua participação numa sociedade (Latour, 2004a, p. 246). Espécie de variação do
conceito de “multiverso” cunhado pelo filósofo americano William James e em ressonância com a
função do prefixo “cosmos” na noção stengeriana de “cosmopolítica”, o conceito de pluriverso
visa a chamar a atenção para as possibilidades sempre renováveis de composição do mundo, o que
convida a uma postura de permanente “disposição para o recrutamento”. Nas palavras de Latour:
“Mas se cosmos significa alguma coisa, ele precisa abranger, literalmente, tudo – incluindo todo o
vasto número de entidades não humanas que permitem aos humanos agir. O sinônimo de William
James para cosmos era pluriverso, construção conceitual que deixa essa multiplicidade fabulosa
em evidência” (idem, 2004b, p. 454).
53
Prova disso são as elaborações teóricas de fundo anti e pós-colonial que se propagaram
especialmente a partir da década de 1980.
54
Retomaremos o tema da falência da Constituição moderna no capítulo 2.
43
1.2.1.
Tradução e traição
55
A afirmação diz respeito tanto ao desequilíbrio entre a voracidade do consumo dos “recursos
naturais” frente à capacidade do planeta de se recompor quanto às evidências científicas de que
nenhum outro planeta reúne condições tão favoráveis à vida como a conhecemos. Trataremos da
condição de excepcionalidade da Terra para a prosperidade da vida algumas páginas adiante e no
capítulo 3, que abordará a teoria de Gaia.
56
No original em inglês: “The oneness of the Earth is not separable from the diverging ways this
oneness is made on each locality of the Earth (and a locality will have to be defined as such a
diverging construction of the globality itself)”. É interessante destacar a equivocidade da tradução
da palavra oneness, que pode tanto se referir a “unicidade”, aquilo que se diz do que é singular,
quanto a “unidade”, remetendo à integração de diversas partes num todo. Tal equivocidade
expressa convenientemente a dupla condição da Terra: ela é um planeta único tanto no primeiro
sentido – pois as relações históricas e contingentes entre os diversos entes que a constituem
estabeleceram condições singulares que favoreceram o desenvolvimento de uma grande
diversidade de formas de vida, incluindo a humana – quanto no segundo (são as muitas formas de
existir na Terra que fazem dela o que ela é).
57
Embora ciente das objeções que tal decisão pode suscitar, emprego nesta tese os termos
“ontologia”, “cosmologia”, “metafísica”, “filosofia” e, mais adiante, “cosmopolítica” como
sinônimos, todos se referindo ao reconhecimento da legitimidade das formas próprias aos distintos
povos de conceber o mundo, os seres que o habitam e as relações que os conformam.
44
58
Sobre o perspectivismo ameríndio, cf. sobretudo Viveiros de Castro, 1996; 2004; 2015.
59
Nas palavras do autor, “o perspectivismo supõe uma epistemologia constante e ontologias
variáveis, as mesmas representações e outros objetos, um único sentido e múltiplos referentes”
(Viveiros de Castro, 2004, p. 6). Isto porque, segundo essa teoria, também chamada de
multinaturalismo, o universo expresso pelas cosmologias ameríndias é povoado por diferentes
espécies de sujeitos (humanos e não humanos) que veem a si mesmos e a outros de sua espécie do
mesmo modo como humanos veem a si mesmos; o que varia de uma espécie à outra é seu
correlato objetivo: “o que as onças veem como ‘cauim’ [...], os humanos veem como ‘sangue’.
Onde vemos um barreiro salgado, queixadas veem sua grande casa cerimonial, e assim por diante”
(Viveiros de Castro, 2004, p. 6). O autor prossegue: “tal diferença de perspectiva – não uma
pluralidade de visões sobre um mesmo mundo, mas uma única visão sobre mundos diferentes [...]
se inscreve nas diferenças corpóreas entre espécies, pois o corpo e suas afecções (no sentido
spinozista, as capacidades do corpo de afetar e ser afetado por outros corpos) são o local e
instrumento da diferenciação ontológica e da disjunção referencial. [...] O fato de que diferentes
tipos de seres vejam as mesmas coisas diferentemente é apenas uma consequência do fato de que
diferentes tipos de seres veem coisas diferentes da mesma maneira (ibidem, pp. 6-7). Na
explicação que fornece à noção leibniziana de ponto de vista, Deleuze parece expressar o princípio
metodológico da investigação antropológica de mesmo nome: “isso de que lhe falo, e no que você
também pensa, está você de acordo em dizê-lo dele, com a condição de que se saiba a que se ater
sobre ela e que se esteja também de acordo sobre quem é ele e quem é ela? Só o ponto de vista nos
dá as respostas e os casos, como em uma anamorfose barroca” (Deleuze, 1991, p. 43). Tratar-se-ia,
portanto, da “determinação do indeterminado pelos signos ambíguos” (ibidem,p. 43).
45
ou, melhor ainda, nos termos que emergem da relação (uma relação social,
naturalmente) entre o ‘antropólogo’ e o ‘nativo’” (ibidem, p. 4).
A equivocação, enquanto imagem da tradução, não seria, portanto, o
equivalente de uma imprecisão ou de um engano, mas aquilo mesmo que habilita
a comparação entre culturas: “a incomensurabilidade entre ‘noções’ conflitantes,
longe de impedir a comparação, é exatamente o que a permite e justifica” (ibidem,
p. 10-11). Isto posto, pode-se endossar o provérbio italiano que diz que traduzir é
trair, mas acrescentando que a língua tradutora – a do antropólogo – que é a
traída, como o é também a expectativa de univocidade nutrida por aquele que
traduz. Além de ser a “arte da antropologia” (Viveiros de Castro, 2004, p.5), a
equivocação controlada é também seu compromisso político: o de admitir o outro
como um agente teórico, enunciador de sua própria filosofia, a qual, em contato
com a filosofia do antropólogo, pode curto-circuitar os fundamentos deste último,
devolvendo dele – e, consequentemente, de seu mundo – uma imagem
irreconhecível (Maniglier, 2005).
As implicações dessa simetria no tratamento de ontologias distintas para a
epistemologia de aspirações colonialistas que ainda vigora na tradição ocidental
são inúmeras, e se mostram bastante oportunas no que diz respeito à
reconsideração do que é (ou do que pode ser) o mundo, sobretudo neste momento
em que suas estruturas materiais parecem desmoronar. A partir do conceito de
equivocação e das possibilidades de tradução que ele evoca e usando como
referência sobretudo as proposições apresentadas por Maniglier no texto intitulado
“How many Earths? The geological turn in anthropology” (2014), 60 procuraremos
esboçar uma outra imagem da Terra, na qual seja possível conciliar a coexistência
entre as diferentes perspectivas que a povoam com a necessidade premente de
reconhecer em que medida, apesar de suas variações (e a partir delas), sua unidade
pode ser construída.
60
O texto foi apresentado no painel “Geontology, planetarity and altermetaphysics” do Encontro
Annual da American Anthropological Association de 2014, realizado na cidade de Washington
D.C. (EUA). Maniglier gentilmente me enviou o manuscrito, mas ele não chegou a ser publicado.
46
1.2.2.
Um globo não provinciano
61
Sobretudo, Latour 2011b, 2012, 2013a, 2015a; Stengers, 2009, 2017; Chakrabarty, 2009, 2013.
62
O antropomorfismo ou mesmo animismo, esperamos, será justificado sobretudo quando
tratarmos do conceito de Gaia, na seção 2.1.2.3 desta tese.
63
Para ser mais precisa, ainda conforme Latour, o que a crise ecológica coloca em xeque, para
além das condições mesma de existência do mundo e de seus existentes (e isso não é pouco), é a
própria epistemologia orientada pela bipartição natureza e cultura e pelas dicotomias a ela
correlatas, como objeto e sujeito, ou mundo e linguagem. Se os “seres da natureza”, outrora
pensados como matéria inerte desprovida de agência e receptores passivo das intervenções
47
lógica de uma ontologia plana: este primeiro passo permite apenas articular os
polos que, isolados, nos fizeram negligenciar a Terra enquanto ator político. Para
compreender as interações entre os seres cuja complexidade permite que
chamemos a crise ecológica de “global”, é preciso ainda um segundo movimento
de pensamento, inspirado no conceito de “pluralismo ontológico”.
É importante precisar o que Maniglier chama de “global”. Ele sustenta que a
excepcionalidade da disrupção ambiental reside na impossibilidade de
circunscrever os fenômenos a um mesmo local, como se fossem uma reação a
perturbações produzidas sobre um único ecossistema; desse tipo de distúrbio, a
história da civilização está repleta de casos. O que testemunhamos agora, ao
contrário, são profundas alterações nas regulações dos ciclos e processos que
permitem a constituição mesma dos ecossistemas (os ciclos do carbono, do
fósforo, do nitrogênio, da água etc.), mudanças abruptas nas condições que
garantem sua relativa “independência” recíproca enquanto sistemas ecológicos
localizados. Essas mudanças inesperadamente colocam os seres em conexões
estranhas à lógica dos ecossistemas: as emissões de gases de efeito estufa dos
automóveis da cidade de São Paulo, por exemplo, alcançam a atmosfera e
impactam seres e regiões tão distintos e longínquos como as geleiras do Ártico ou
as ilhas do Pacífico.
É por essa razão que não tem sentido pensar a Terra como um grande
ecossistema que abrange ecossistemas localizados, como se a diferença entre
global e local fosse meramente quantitativa ou de nível: o que a catástrofe
ecológica instaura definitivamente é uma diferença de natureza, ou antes, uma
diferença na forma mesma como concebemos a “natureza”. Se a ideia de
ecossistema fornecia uma das imagens do pensamento (Deleuze, 1987) possíveis
sobre o funcionamento do “mundo natural” – os seres todos conectados entre si,
relações de causa e efeito relativamente previsíveis e circunscritas ao local em que
foram provocadas –, a novidade que alguns autores caracterizam como a “intrusão
humanas, passam para o plano da ação e se tornam atores políticos, então os fundamentos mesmos
da Constituição moderna começam a vacilar. Não é demais lembrar que tantas outras cosmologias
não concebem os seres segundo essas bipartições restritas, e mesmo diversos campos da ciência
contemporânea vêm provando a insuficiência da metafísica moderna para compreender as relações
complexas entretidas entre humanos e extra-humanos.
48
64
Em referência à teoria científica de James Lovelock e Lynn Margulis, na qual Bruno Latour e
Isabelle Stengers inspiraram seus conceitos filosóficos. Retornarei à noção de Gaia na seção
2.1.2.3.
65
No original em inglês: “That Global Warming is global means that what happens in New
Orleans and in Alaska, in Southern France or in Venezuelian tepuis (some of which as is well
known have never been visited by any human being), is not necessarily exactly ‘the same thing’,
but it is nonetheless part of something that must be construed as one in some sense, although its
manifestations and mechanisms are very diverse”.
66
No original, em inglês: “We don't dwell on the Earth itself; the Earth is that which makes it
possible to transform parts of it into habitats.”
67
Poderia se objetar, diante da preocupação mencionada de não construir um global de feições
ocidentais, que o esquema que serve de modelo para pensar os movimentos de variação da Terra é
oferecido por “minha” própria antropologia (como as expressões “processos biogeoquímicos” e
termos como “orgânico”, “inorgânico” e “ecossistemas”). Contudo, ao fazer uso dele, não
pressuponho uma espécie de suficiência universal destes conceitos, como se tudo pudessem
explicar; ao contrário, reconheço a impossibilidade de ocupar um lugar “neutro” em que os
49
sentido geográfico do termo) partilhados por mais de uma cosmologia, eles integram mundos
distintos, mundos estes que são expressões, cada um a seu modo, da Terra mesma.
70
Maniglier faz menção ao conceito cunhado por Elizabeth Povinelli, que é também o título do
último livro da antropóloga, Geontologies: A Requiem to Late Liberalism (2016). Em linhas
gerais, a noção de “geontologia” se refere às ontologias (como a dos aborígenes Larrakia e
Karrabing, estudados pela autora) que não se organizam a partir da dualidade entre vida e não vida
estabelecida por aquilo que Povinelli chama de “imaginário do carbono”. Segundo esse
imaginário, a vida estaria associada exclusivamente a seres que sofrem processos metabólicos,
desconsiderando como meras matérias inertes todos os demais entes. Diversamente, as
geontologias expressam concepções outras de vida, nas quais a capacidade de agência,
intencionalidade e senciência se estende não apenas a outros seres que a epistemologia ocidental
considera como vivos, mas também aos entes inorgânicos (montanhas e depressões de relevo,
lagos, riachos...) e mesmo a fenômenos climáticos (chuva, vento etc.). A geontologia, portanto, é
ao mesmo tempo um conceito descritivo dessas outras ontologias e uma proposição filosófico-
política de reconsiderar o fundamento biológico pressuposto pela tradição do pensamento sobre o
“ser”: já que a Ontologia, na verdade, sempre consistiu numa “biontologia” (Povinelli, 2014b).
Trataremos mais detalhadamente deste conceito na seção 2.1.2.2; por ora, basta destacar que as
variações metafísicas que compõem a face da Terra o fazem mobilizando também os “meios
físicos” nos quais se inscrevem.
71
No original em inglês: “The Earth is our real equivocation; it is this ‘common’ ground that only
exists through the diverging ways by which the very unification is made. The Earth is not a
transcendent identity; it is the dynamic of the diverging versions of itself. The Earth therefore only
exists because it makes sense to say that the entity uncovered by the IPCC reports and the ‘great
earth-forest’ presented by Amazonian shaman Davi Kopenawa are indeed continuous with one
51
1.2.3.
Geofilosofia
another, which means that we have to understand how one becomes the other, without anyone
being a metaphor or just a representation of the other one. It is not therefore so much in the
marvellous achievements of the IPCC that we should find the Earth only; it is in all the "contested
ecologies" (to use the title of a book edited by anthropologist Lesley Green), in all the
controversies about that which precisely we are forced to accept that we have in common, in short
in the equivocations by which the Earth, the true Earth, the Earth itself, transits”.
72
Tal experimento especulativo, embora não seja o objetivo principal desta tese, se mostrou
importante para amparar a afirmação, esta sim central para nós, de que a unidade da Terra só pode
se dar em meio às suas variações. Porque a necessidade desse esclarecimento se nos apresentou
quando estávamos em estado já avançado de escrita, não dispusemos de tempo e de referências
bibliográficas para apresentar uma abordagem mais completa e consistente – o que pretendemos
desenvolver numa oportunidade futura. De todo modo, esperamos que a teoria aqui esboçada
permita uma razoável compreensão das premissas que fundamentam as tentativas de sintonização
dos “diagnósticos da desordem ecológica” que empreendemos no subcapítulo 1.2.4.
52
73
Como Deleuze diria sobre Leibniz, podemos acrescentar. Como sabemos, foi Leibniz quem
trouxe pela primeira vez para a filosofia a noção de perspectiva. No parágrafo 14 de seu Discurso
de Metafísica, ele explica que Deus, após girar o mundo de todas as maneiras para observá-lo de
todos os lugares possíveis, cria as substâncias para ocupar os pontos de vista que vão formar o
melhor dos mundos (1988, p. 49).
53
sofrem, ao longo de sua existência, incontáveis mutações, por meio das quais se
mantêm existindo. Em outras palavras, entendemos como “ser” um ente cujas
aparição e permanência na existência exigem que ele se submeta a sucessivas
transformações, até sua extinção. A definição de ser apresentada aqui é muito
próxima da noção de “indivíduo” para Gilbert Simondon, pensado como uma
“fase” da operação de individuação (ou processo transdutivo) que não se resume,
ou se esgota, na aparição do indivíduo na existência.
O indivíduo será, então, tomado como uma realidade relativa, uma certa fase do ser
que supõe antes dela uma realidade pré-individual, e que, mesmo depois da
individuação, não existe sozinha, pois a individuação não consome de uma vez os
potenciais da realidade pré-individual e, por outro lado, o que a individuação faz
aparecer não é somente o indivíduo, mas sim o par indivíduo-meio. O indivíduo é,
assim, relativo em dois sentidos: porque não é todo o ser, e porque resulta de um
estado do ser no qual ele não existia nem como indivíduo nem como princípio de
individuação (Simondon, 2013, p. 25).
74
Com um sentido análogo, o filósofo François Zourabichvili poderia afirmar, a partir da obra de
Deleuze: “Quem sou eu? Um hábito contemplativo, adquirido pela contração dos elementos
materiais ou sensoriais que compõem um meio no qual posso viver e agir” (1994, p. 73). Ou, como
explica David Lapoujade também partindo de Deleuze, todo fenômeno, toda existência exprime
uma pretensão: esta é “a natureza de todo fenômeno” (Deleuze apud Lapoujade, 2015, p. 25).
Nesse sentido, “as pretensões não passam de composições de espaços-tempos […] isto é, […] de
territórios” (ibidem, p. 40). Podemos pensar as perspectivas de que tratamos neste trabalho como
pretensões que configuram espaços-tempos, isto é, o meio ou os territórios. Essa concepção da
simultaneidade da constituição dos seres e seus meios é comprovada, por exemplo, por diversos
estudos contemporâneos no âmbito das ciências biológicas e das dinâmicas da Terra. Cf. por
exemplo Gilbert; Sapp; Tauber, 2012.
54
75
A esse respeito, o exemplo do homem cortando uma árvore com o machado fornecido por
Gregory Bateson no artigo “The Cybernetics of ‘Self’: A Theory of Alcooholism” é bastante
elucidativo. Em vez de reconhecer na atividade de cortar a árvore o “sistema total” por meio do
qual informações (diferenças) circulam e são processadas (transformadas) – “árvore-olhos-
cérebro-músculos-machado-golpe-árvore” produzindo o corte do tronco e a queda da árvore –, o
“Ocidental médio diz ‘eu corto a árvore’ e até mesmo acredita que há um agente delimitado, o ‘eu’
[the ‘self’], que executou uma ação proposital delimitada sobre um objeto delimitado” (Bateson,
1987, pp. 323-324). Esse parece ser também o pleito de Simondon quando afirma, em oposição ao
hábito ocidental de pensar o ser sob o aspecto do indivíduo já constituído, ser necessário “tomar a
ontogênese em todo o desenrolar de sua realidade, e conhecer o indivíduo através da individuação,
e não a individuação a partir do indivíduo” (Simondon, 2013, p. 24). Ou ainda, conforme assevera
Zourabichvili a partir da filosofia de Deleuze: “Um corpo não é uma coisa, uma substância, ele
não possui contornos reais, só existindo porquanto afeta e é afetado, é sentido e sente” (1994, p.
101).
76
Cf. Latour: “Deixemos o fantasma da imanência para aqueles que acreditam no ser enquanto
ser. Pois, quanto à identidade de algo consigo mesmo, nem mesmo uma rocha a possui. Whitehead
já não ensinou que há também uma transcendência das rochas, na medida em que elas formam
sociedades que persistem? O que é impossível é persistência sem mudança, e isso se aplica tanto a
rochas quanto a Deus. Mas se tudo está mudando, porém, nem tudo muda da mesma maneira,
extraindo as mesmas diferenças do outros, o mesmo tom de alteridade” (2011a, p. 327). A posição
de Simondon é bastante semelhante: “pode-se dizer que, em um certo sentido, o único princípio
sobre o qual podemos nos guiar [para compreender o que é a individuação] é o da conservação do
ser através do devir” (Simondon, 2013, p. 25).
55
77
Ou forças, enteléquias ou mônadas, termos que Latour alterna no texto para se referir às
entidades participantes do mundo em que vivemos (idem, 1988).
78
Reconheço que o uso do termo “Ocidentais” é um recurso arriscado, visto que muito já se falou
sobre sua insuficiência para dar conta das inúmeras diferenças que embaraçam a tentativa de
delimitar precisamente quem integra esse “povo” e quais são suas características constitutivas. No
entanto, no contexto desta tese, emprego o termo para designar os indivíduos cuja ontologia tem
como informação primordial a bipartição dos seres entre os domínios da natureza e da cultura (cf.
sobretudo Latour, 1994), e que veem na Ciência a única (ou ao menos, a mais importante) fonte de
conhecimento legítima sobre a composição “real” do mundo. O critério de delimitação desse
“povo”, entretanto, inclui também aqueles que, mesmo dispostos a problematizar essa bipartição,
que julgam equivocada, se reconhecem como herdeiros de práticas associadas aos processos
epistemológicos, políticos e sociais que culminaram no que chamamos (mais uma vez de forma
um tanto imprecisa) de “modernidade”.
56
79
De acordo com Deleuze: “Para Whitehead (e para muitos filósofos contemporâneos), ao
contrário, as bifurcações, as divergências, as incompossibilidades e os desacordos pertencem ao
mesmo mundo variegado, que já não pode estar incluído em unidades expressivas, mas que é
somente feito ou desfeito segundo unidades preensivas e conforme configurações variáveis ou
cambiantes capturas. Num mesmo mundo caótico, as séries divergentes traçam as veredas sempre
bifurcantes; é um ‘caosmos’ [...]. O jogo do mundo mudou singularmente, pois tornou-se o jogo
que diverge. Os seres estão esquartejados, mantidos abertos pelas séries divergentes e pelos
conjuntos de incompossíveis que os arrastam para fora, em vez de se fecharem sobre o mundo
compossível e convergente que expressam dentro” (1991, p. 143).
57
80
Apesar de Kopenawa se referir com mais frequência, e de modo mais genérico, à “terra-floresta
dos seres humanos [isto é, dos Yanomami]” (urihi a), em uma passagem de A queda do céu ele
afirma: “Por isso decidi falar para defender toda a floresta, inclusive a que os humanos não
habitam e até a terra dos brancos, muito longe de nós. Tudo isso, em nossa língua, é urihi a pree –
a grande terra-floresta. Acho que é o que os brancos chamam de mundo inteiro” (Kopenawa;
Albert, 2015, p. 482). Albert explica que o termo, juntamente com urihi pata, designa “a totalidade
que forma [o] nível terrestre”, do qual a urihi a constitui o centro e cujas margens são chamadas de
napëpë urihipë , “terra dos estrangeiros-inimigos”. Do centro para a borda, os habitantes mais
próximos dessas terras periféricas são outros grupos ameríndios (nape pë yai, “verdadeiros
forasteiros/inimigos”),; os mais distantes são os brancos, napë kraiwa pë (Albert, 2008, p. 40-41) –
os quais, com o progressivo desaparecimento das etnias que circundavam os Yanomami, se
tornaram os “forasteiros/inimigos” por excelência (Kopenawa; Albert, 2015, p. 634, nota 13). Por
considerar a ideia de “mundo inteiro” mais próxima à noção ocidental de “planeta”, optamos por
empregar na passagem acima a tradução ao português de urihi a pree ou urihi pata.
81
É importante ressaltar, contudo, que não estou restringindo as possibilidades de arranjos dos
seres na existência a uma prerrogativa das “culturas humanas”: nada impede que seres não
humanos constituam outras séries divergentes com valor de mundo, e julgo mesmo que as tenham.
Entretanto, ainda que seja um tema interessante, tal investigação não atenderia aos objetivos
pretendidos nesta pesquisa.
58
os pontos de vista que os constituem. É por essa razão que não nos parece
exagerado afirmar que a desordem ecológica atual, cujas mutações devastadoras
vêm causando a aniquilação em larga escala de tantos existentes, pode ser
concebida como um acontecimento deflagrador de uma perda generalizada de
mundo. Nas palavras da filósofa Vinciane Despret, para quem as perspectivas
assumem o valor de “sensações” do mundo:
O mundo morre com cada ausência; o mundo se rompe de ausência. A respeito do
universo, como os grandes e bons filósofos disseram, o universo inteiro pensa e
sente por si próprio, e cada ser importa na trama de suas sensações. Todas as
sensações de todo ser do mundo são modos pelos quais o mundo mesmo vive e
sente, e por meio dos quais ele existe. E todas as sensações de todo ser do mundo
fazem com que todos os seres do mundo sintam e pensem diferentemente [uns dos
outros]. Quando um ser não existe mais, o mundo se apequena de repente, e uma
parte da realidade colapsa. A cada vez que uma existência desaparece, é um pedaço
do universo de sensações que desvanece (Despret, 2017).82
Do mesmo modo que não há seres fora das perspectivas que os constituem,
tampouco há Mundo para além dos mundos, isto é, dos arranjos cosmológicos
distintos que dispõem os existentes em relações uns com os outros. Não há
Mundo para além das variações; 83 o modo de existência do Mundo é a
multiplicidade. Ou a equivocação: “A existência da Terra coincide com as
variedades das divergências por meio das quais ela se expressa” (Maniglier, 2014,
ligeiramente modificado). Nesse sentido, a diferenciação que propusemos aqui
entre mundos e Mundo visa a demonstrar o caráter ambíguo da Terra: ela é ao
mesmo tempo aquilo que cada arranjo cosmológico expressa – nenhuma
cosmologia precisa das outras para constituir mundo, isto é, o mundo que cada
82
Na versão do texto em inglês a que tive acesso: “The world dies from each absence; the world
bursts from absence. For the universe, as the great and good philosophers have said, the entire
universe thinks and feels itself, and each being matters in the fabric of its sensations. Every
sensation of every being of the world is a mode through which the world lives and feels itself, and
through which it exists. And every sensation of every being of the world causes all the beings of
the world to feel and think themselves differently. When a being is no more, the world narrows all
of a sudden, and a part of reality collapses. Each time as existence disappears, it is a piece of the
universe of sensations that fades away”.
83
Essa ideia parece corresponder à primeira regra do método comparativo descrito por Maniglier
no artigo “Anthropological meditations: Discourse on comparative method”: “nunca aceitar como
existente qualquer coisa que não possa ser redefinida como uma variante das outras possibilidades
de si mesma” (2017, p. 118). Esse método foi apresentado inicialmente em uma conferência
intitulada “The Others’ Truths: Logic of Comparative Knowledge”, proferida pelo autor na
Universidade de Essex em 2009, a cujo manuscrito tive acesso. Por considerar o manuscrito uma
versão mais completa do artigo publicado em 2017, citarei o primeiro sempre que os argumentos a
que precisar recorrer não constarem do último. Na seção a seguir, apresentaremos uma variação do
método de Maniglier que visa a permitir sua aplicação na comparação dos “diagnósticos”
cosmologicamente diversos sobre as mudanças na Terra.
59
uma delas produz não deve nada ao mundo das outras cosmologias, nem a eles
precisa fazer referência para existir – e o conjunto total das séries divergentes por
meio das quais, nessas variações, o Mundo enquanto unidade se forma. O
primeiro modo de existência citado – o das relativas autonomias existenciais das
variações divergentes, a Terra enquanto mundos – assegura a legitimidade própria
das distintas séries estabelecidas pelas cosmologias existentes. Já o segundo modo
de existência proposto – o Mundo que, mesmo sem corresponder à imagem da
Terra como planeta, pode ser corretamente definido como um “objeto constituído
por séries interconectadas de sistemas dinâmicos” (Maniglier, 2014) – permite
que continuidades sejam traçadas de maneira a construir, em meio às variações,
uma unidade (mas uma unidade não unívoca). Isto porque, como afirma
Maniglier, “a ideia não é a de que a verdade é relativa porque depende de alguma
outra coisa que poderíamos chamar ‘cultura’, ‘prática’ etc., a qual seria, ela
mesma, invariante; mais propriamente, significa que essa ‘alguma outra coisa’ é
definida pela relação diferencial que possui com outras formas de si mesma”
(Maniglier, 2017, p. 117).
1.2.4.
Sintonização das divergências
a séries divergentes.
Enquanto a equivocação é o modo próprio de existência da Terra mesma e
dos seres que a formam, o global, ou o comum, é o tipo de unidade que se pode
construir a partir dessas divergências. É na esteira desse entendimento que
interpretamos a afirmação de Maniglier que as ontologias equivalem a “regiões”
da Terra, na medida em que podem ser pensadas como conjuntos de existentes (ou
perspectivas) constituindo variações compositivas do mundo, as quais, traduzidas
umas nas outras, constroem a unidade que chamamos de Mundo. Nessa
concepção, cada cosmologia constitui uma espécie de “mundo próprio” aos seres
nela circunscritos; ou mais propriamente, os seres formam os mundos próprios a
partir das redes por meio das quais se vinculam uns aos outros. A Terra só é nossa
equivocação real, como propôs Maniglier, porque seu modo de existência, assim
como o dos seres que dela fazem parte enquanto perspectivas situadas a partir das
cosmologias, é a variação; isso significa recusar sua existência para além das
séries divergentes em que se inserem. Ou, nos termos que Deleuze articula essa
ideia, a partir da filosofia de Leibniz,
[e]ntre a variação e o ponto de vista há uma relação necessária: não simplesmente
em razão da variedade dos pontos de vista (embora haja tal variação, como
veremos), mas, em primeiro lugar, porque todo ponto de vista é ponto de vista
sobre uma variação. Não é o ponto de vista que varia com o sujeito, pelo menos em
primeiro lugar; ao contrário, o ponto de vista é a condição sob a qual um eventual
sujeito apreende uma variação (metamorfose) ou algo = x (anamorfose) (Deleuze,
1991, p. 40).
Desse modo, por exemplo, o ente “céu” não possui uma identidade fixa, só
podendo ser concebido por meio das traduções dos contextos em que existe: isto
é, o céu ocidental traduzido no céu yanomami, por sua vez traduzido no céu dos
quilombolas do Caetité, que pode ser traduzido nas demais possibilidades de sua
existência no contexto de determinada série divergente (mesmo que, nessas outras
séries, a “função céu” seja desempenhada por outros seres, ou que determinado
céu ou seu equivalente seja capaz de agências outras além das que motivaram sua
tradução nos demais céus). Como sustenta Maniglier, “nada é uma ‘verdade
global’ a menos que conheçamos as regras de passagem ou transformação entre os
contextos: o ‘contexto global’ é apenas o conjunto dessas regras de conversão de
um contexto no outro” (2009).
A justificativa e as condições para tal conversão são apresentadas pelo autor
61
por meio de uma anedota. A situação sobre a qual ela versa inicialmente leva a
crer que se trata de uma correspondência unívoca entre elementos de duas
cosmologias, mas ao fim percebemos as equivocidades presentes: diante do
desprezo demonstrado por um professor à sua declaração de que água fervida
causa diarreia infantil, uma indígena concluiu que ferver a água pode até ser bom
para o povo ao qual o professor pertence, mas não para o dela; “nossos corpos são
diferentes dos seus” (Gow apud Maniglier, 2009). Ao comentar esse episódio,
mais do que se contentar com a constatação da divergência de mundos, Maniglier
se interessa em determinar onde eles se cruzam: pois ambos falam, ele aponta, “de
água, criança, diarreia, etc., e eles se entendem até certo ponto, [...] através de um
certo número de coisas, e podem interagir de forma relativamente fácil em muitas
ocasiões” (Maniglier, 2009). Isso não significa que ambos estejam falando da
mesma coisa, como se houvesse uma realidade unívoca por debaixo das
equivocações. Com efeito, em ambas perspectivas a disposição dos elementos na
série parece ser a mesma, até que em determinado momento a equivocação do ato
de beber água se evidencia: esse é o motivo pelo qual eles discordam. Desse
modo, afirmar apenas que se tratam de atos diferentes seria desconhecer o aspecto
mais interessante da situação, que consiste em reconhecer que aquilo que cada
coisa representa em suas respectivas cosmologias só pode ser compreendido pela
tradução de uma equivocidade na outra. A possibilidade de tradução dessas
diferenças se faz pela produção precária e instável de continuidades entre os
mundos – ou, como poderíamos afirmar partindo de Zourabichvili, a unidade
possível “se encontra posteriormente, como efeito positivo da diferença em vez do
termo comum pressuposto por diferenças apenas relativas [entre si]” (p. 85).
O que propomos aqui é que essa tradução, passagem ou transformação entre
contextos se dá nos moldes da sintonização de uma frequência de onda num
aparelho de rádio. Do mesmo modo em que a sintonização (a sintonia fina) de
uma estação AM ou FM demanda que outras ondas captadas simultaneamente
pela antena do aparelho receptor sejam neutralizadas com vistas a fazer ressoar
uma determinada frequência ou faixa de frequência particular (a da estação
desejada), a conversão entre perspectivas de ontologias distintas demanda sermos
capazes de sintonizar, em meio às equivocações pelas quais elas se expressam,
uma frequência particular em que a ressonância pode ser produzida. Essa imagem
da sintonização interessa sobretudo para ressaltar as frágeis condições da
62
tradução: uma vez obtida a sintonia, outras equivocações podem interferir em sua
estabilidade, e mesmo a ressonância produzida pode perder a força diante de
transformações nos contextos dos elementos sintonizados. A passagem de uma
cosmologia a outra, assim, se dá por um procedimento precário de estabilização
provisória de equivocações que fazem as vezes de variantes uma da outra.
Maniglier chama de “variante”
uma entidade cuja identidade é inteiramente definida pelo modo como ela poderia
ser diferente, o que significa que sua identidade é redutível à sua posição em uma
cadeia [group] de transformações, isto é, em um campo com objetos que se
relacionam uns com os outros apenas por suas características diferenciais, de onde
se poderia afirmar que são possibilidades alternativas uns dos outros” (ibidem).
84
Maniglier chamou seu método de “relativismo ativo”, afirmando se tratar de nada além de um
método comparativo de inspiração estruturalista (2009). Em poucas palavras, a antropologia
estrutural concebe a possibilidade de reconhecer, na comparação de modelos representativos das
diferentes estruturas sociais que caracterizam as diversas “culturas”, a “lei de suas variações
concomitantes”, em vez de se contentar com “simples correlações indutivas” (Lévi-Strauss, 1952,
p. 342). Isto porque essa corrente da antropologia não pensa a cultura como apenas “formas de
comunicação que lhe pertencem de modo específico (como a linguagem), mas também – e talvez
sobretudo – em regras aplicáveis a todas as espécies de ‘jogos de comunicação’” (ibidem, p. 336),
sendo o “objetivo último” dessa disciplina estabelecer “as constantes ligadas a tais afastamentos”
(ibidem, p. 335).
63
1.2.5.
Uma única, mas não mesma, catástrofe
Para abordar essa que vem se afigurando como a pior ameaça já enfrentada
pela civilização, e talvez pela espécie, recorremos tanto ao modo de produção de
conhecimento laureado no Ocidente – os diagnósticos e projeções científicos –
quanto aos modos próprios a ontologias ditas não ocidentais de dar sentido àquilo
que existe. É importante, entretanto, esclarecer os limites desta empreitada, e os
riscos nela envolvidos. A começar pela consideração de que ao falar em colapso
ecológico, não se deve presumir que todas as cosmologias, a “nossa”85 e as outras,
85
A decisão sobre empregar o pronome possessivo “nosso(a)” para reivindicar uma prática ou
tradição de pensamento como sendo própria a um grupo social é sempre difícil, e o é
particularmente no contexto de sociedades fortemente constituídas pela dominação colonial ou
imperial de outros povos, como é o caso da brasileira. Quando, por exemplo, fazemos da ciência o
modo áureo de produção de conhecimento, ou compartilhamos de determinada tradição teórica de
origem europeia, estamos nos posicionando ao lado dos “modernos”? E mesmo quando creditamos
à ciência e à teoria este lugar privilegiado, a forma como procedemos é necessariamente a mesma
daqueles que as inventaram e propagaram? Se não, essa diferença na forma de proceder faz
64
diferença, e quando, e para quem? Ainda, como Latour esclareceu em inúmeras oportunidades,
nem os próprios modernos realizam suas práticas (sejam científicas, políticas, religiosas etc.) como
imaginam fazê-lo, mobilizando mais híbridos entre humanos e não humanos do que querem
admitir (cf. por ex. Latour, 1994; 2004a; 2012a). Assim, novamente, a questão é de perspectiva: a
depender da forma escolhida para definir um coletivo – seja o que efetivamente empreendem em
suas práticas, seja o que eles próprios pensam e dizem sobre elas –, a identificação ou a percepção
do pertencimento a determinado grupo pode variar. Para efeitos do que proponho por meio desta
tese, mesmo reconhecendo e julgando politicamente importante afirmar que a episteme praticada
no hemisfério sul guarda inúmeras diferenças, estabelecidas pelas maneiras singulares de
apropriação da metafísica imposta pelo colonizador, em relação ao hemisfério norte, adoto o
possessivo “nosso(a)” para me situar, a mim e ao problema da desordem ecológica que mobiliza
este trabalho, como herdeira dos “brancos” – o povo cuja ontologia bipartida entre natureza e
cultura é incapaz, do ponto de vista dos índios, de reconhecer o mundo como um “plenum
anímico” que demanda “uma relação atenta e cuidadosa” para com as entidades que fazem dele o
que é (Viveiros de Castro apud Kopenawa; Albert, p. 14). Como afirma Viveiros de Castro no
prefácio de A queda do céu: “[d]o ponto de vista, então, dos povos autóctones cujas terras o Brasil
‘incorporou’, os brasileiros não índios – tão vaidosos como nos sintamos de nossa singularidade
cultural perante a Europa ou os Estados Unidos, isso quando não nos envaidecemos justo do
contrário – são apenas ‘Brancos/inimigos’ como os demais napë, sejam estes portugueses, norte-
americanos, franceses. Somos representantes quaisquer desse povo bárbaro e exótico [...] que
espanta por sua absurda incapacidade de compreender a floresta [....]. A ‘alma’ e seus avatares
leigos modernos, a ‘cultura’, a ‘ciência’ e a ‘tecnologia’ não nos isentam nem nos ausentam desse
comprometimento não desacoplável com o mundo [...].” (ibidem, pp. 13-14).
86
Isso quando chega a ser colocada: há ainda aqueles que negam terminantemente a existência de
uma catástrofe ambiental em curso, como veremos a seguir.
87
“Problema” tanto no sentido deleuziano, de um acontecimento que força a pensar, quanto no
sentido corrente de um transtorno que demanda esforços para ser solucionado.
65
como transformar esse problema – que enunciamos à nossa maneira, mas que
concerne de modos distintos a todos os existentes – num chamado a pensar junto
com outros?88 Ou ainda, modificando um pouco o que propõe Maniglier: como
pensar o caráter global da questão sem que apenas uma região [...] do globo (ou
melhor, uma cosmologia entre tantas as que compõem a Terra) dite as regras?
Essa parece ser a preocupação expressa também por Latour em um trecho de seu
livro Où aterrir:
Passar de um ponto de vista local a um global ou mundial deveria significar a
multiplicação dos pontos de vista, o registro de um número maior de variedades, a
consideração de um número maior de seres, de culturas, de fenômenos, de
organismos e de pessoas. Todavia, parece que o que se entende hoje por
“globalizar” é o exato contrário dessa ampliação [accroissement], [na medida em
que] significa que uma única visão, absolutamente provinciana, proposta por
apenas algumas pessoas, representando um número reduzido de interesses, limitada
a alguns instrumentos de medição, a alguns padrões e formulários, se impôs a todos
e se disseminou por toda parte. [...] Se o objetivo é multiplicar os pontos de vista
para complicar as visões “provincianas” ou “fechadas” ao introduzir novas
variantes, trata-se de um combate que vale a pena levar a cabo (2017, p. 23).
88
Agradecemos ao amigo Orlando Calheiros, com quem muito conversamos sobre o receio de, ao
abordar as diferentes perspectivas sobre a desordem ecológica, recair no “automatismo conceitual
unilateralista” (Viveiros de Castro, 2012, p. 165) característico do universalismo moderno,
tratando a questão de forma unívoca mesmo sem desejar fazê-lo – isto é, com minha própria
escrita traindo minhas intenções. Nossas conversas foram essenciais para que eu pudesse formular
os esclarecimentos que faço a respeito desse procedimento tão arriscado.
66
1.3.
Ecologias do equívoco
89
A ideia de “resistência mimética” me parece próxima à interpretação alternativa que Viveiros de
Castro oferece para o conceito de “transformação da transformação”, fundamental na obra de
autores como Roy Wagner e Marilyn Strathern. Para o autor, esse conceito diz respeito também à
“incorporação pelas etnoantropologias indígenas de conceitos emblemáticos da etnoantropologia
dominante (a nossa), com significados e objetivos próprios. O exemplo mais conhecido desse
fenômeno é o que Manuela Carneiro da Cunha vem chamando de ‘cultura entre aspas’: a
apropriação pelas culturas nativas do conceito antropológico de cultura. Teríamos neste caso uma
complexa transimetrização, ou transfusão recíproca de equivocidades homonímicas, entre os dois
lados da interface antropológica” (Viveiros de Castro, 2012a, p. 163; 169).
90
A entrevista não está mais disponível no site mencionado, mas pode ser encontrada na íntegra
no endereço <https://acervo.racismoambiental.net.br/2015/04/20/mundo-esta-de-olho-na-floresta-
amazonica-alerta-davi-kopenawa/>. Último acesso em 23 jun. 2018.
67
registro de demarcação da terra Yanomami não está comigo, está nas mãos do
governo. Mesmo diante das dificuldades, o tamanho da nossa terra é suficiente para
nós, desde que seja mesmo somente para nós e não precisamos dividir com os
garimpeiros e ruralistas (Pontes apud Kopenawa; Albert, 2015, p. 36).
91
O que Bruce Albert chama de indigenismo ambientalista, “ideologicamente simpático, embora
culturalmente equivocado” (ibidem, p. 257).
92
Emprego essa expressão retirando-a de seu contexto original, já que Viveiros de Castro a
utilizou originalmente para descrever a metafísica dos povos ameríndios: “esta é a tese do
perspectivismo ameríndio, ou ‘perspectivismo multinatural’, e que pode ser descrita como uma
teoria imanente ameríndia que põe a equivocação comunicacional como fundamento da relação
(isto é, da comparação) entre as espécies — uma ecologia do equívoco ou da homonímia (por
oposição às doutrinas da sinonímia que subjazem à imagem corrente da comparação
antropológica), derivada de uma economia ontológica sui generis dos componentes somático e
semiótico (o corpo e a alma) dos existentes” (2012a, p. 156).
68
mas que, apesar de sua unicidade, se atualiza segundo composições variadas nas
diferentes cosmontologias. Como concluem Danowski e Viveiros de Castro,
Essas flutuações ou equivocações não tiram a saliência e a pregnância da ideia de
“fim do mundo”; ao contrário, as difratam e multiplicam em uma variedade de fins
e de mundos que parecem entretanto exprimir todos uma mesma intuição histórica
fundamental: foi-nos revelado que as coisas estão mudando, mudando rapidamente,
e não para o bem da vida humana “tal como a conhecemos” (2017, p. 39).
1.3.1.
“Chamam isso de poluição”93
93
O contexto da expressão pode ser apreendido neste trecho: “Mas não somos só nós que sofremos
dessa doença do minério. Os brancos também são contaminados e no fim ela os come tanto quanto
a nós, pois a epidemia xawara, em sua hostilidade, não tem nenhuma preferência! Embora pensem
morrer de uma doença comum, não é o caso. São atingidos, como nós, pela fumaça dos minérios e
do petróleo escondidos por Omama debaixo da terra e das águas. Fazem-na jorrar por toda parte,
ao extrair e manipular essas coisas ruins. Chamam isso de poluição. Mas para nós é sempre a
fumaça de epidemia xawara” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 365).
94
Cf. Maniglier: “Em seu livro com Bruce Albert, A queda do céu, [Davi Kopenawa] claramente
se refere à mesma coisa que o IPCC. Todavia, ele a explica como contínua à “fumaça de epidemia
xawara” que dizimou seu povo e cuja etiologia deve ser buscada no [que ele chama de] metal”
(2014). Viveiros de Castro, por sua vez, considera o livro uma tentativa de “‘antropologia
simétrica’, ou ‘contra-antropologia’ do Antropoceno” (Viveiros de Castro apud Kopenawa; Albert,
2015, p. 24), pois oferece uma caracterização dos Brancos e de sua “economia política da
natureza” (para usar a expressão de Albert, 2002) que coincide fortemente com o diagnóstico da
degradação ecológica que é a marca da nova época geológica. Já para Albert, além de fornecer
uma reflexão ímpar “a respeito do fetichismo da mercadoria, da destruição da floresta amazônica e
das mudanças climáticas” (Albert apud Kopenawa; Albert, 2015, p. 46) – constituindo-se, desse
modo, numa “crítica cosmológica de sua [dos brancos] atividade econômica” –, a teoria
cosmológica elaborada por Kopenawa consiste “[n]uma tradução xamânica do efeito estufa”
(idem, 2002, p. 252).
70
95
Alguns povos indígenas, como os Kawaiweté, expressam sua preocupação com a degradação
eco-ontológica tomando emprestado dos brancos a expressão “mudanças climáticas”. No entanto,
enquanto na epistemologia ocidental ela diz respeito principalmente às variações meteorológicas
causadas por mudanças na composição da atmosfera, os Kawaiweté usam esse conceito para
designar um conjunto de mudanças mais amplo, abarcando interações que excedem não só o
âmbito meteorológico, mas até mesmo o âmbito científico. Prova disso é a explicação a seguir,
oferecida por Kayabi, indígena dessa etnia, que indica os agentes envolvidos no fenômeno que ele
concebe como “mudança climáticas”: “Os conhecedores de espíritos, que são os pajés do povo
Kawaiwete, explicam que tudo que está acontecendo hoje em dia com a mudança climática é por
conta de desmatamento de cabeceira de rios, córregos e olhos d’água, e que tudo isso está
causando a morte da Terra. Vendo tudo o que os homens da Terra estão causando para a natureza,
o próprio Tuiararé reuniu os seus aliados para aumentar o calor, para ver como os homens da
Terra iam se comportar com essa temperatura muito quente, e que está ficando cada vez mais
quente. [...] Os cientistas, para os Kawaiwete, são nossos próprios pajés, pois eles têm
conhecimento de como é o mundo e respeitam muito os fenômenos da natureza. Eles são
orientados pelos espíritos e respeitam conforme as orientações, para que Tuiararé não se revolte
contra nós, seres vivos, que existem na Terra. Assim vive o Kawaiwete” (Kayabi, 2015, p. 55).
96
Albert explica que o sentido da expressão “epidemia-fumaça”, originalmente associado à
feitiçaria guerreira, foi sofrendo diversas transformações desde o contato com os brancos: tornou-
se o cheiro patológico exalado pelas ferramentas adquiridas dos brancos (associação atribuível à
eclosão de epidemias de infecção respiratória à época), em seguida foi pensada como fumaça dos
objetos manufaturados em geral, depois se converteu em “fumaça do ouro”, devido à atividade de
garimpagem na região. Na sequência, incorporou a ideia de “fumaça do minério”, “fumaça das
fábricas” e, por fim, abarcou também o conceito de “poluição” (Albert, 2002, p. 252).
71
nunca nos contaminar. [...] Todavia, os brancos, tomados por seu desconhecimento,
puseram-se a arrancar os minérios do solo com avidez, para cozê-los em suas
fábricas. Não sabem que, fazendo isso, liberam o vapor maléfico de seu sopro. Este
sobe então para todas as direções do céu, até chocar-se com seu peito. Depois volta
a cair sobre os humanos, e é assim que acaba nos deixando doentes. [...] Apesar de
toda essa fumaça de epidemia não estar ainda tão alta acima de nossa terra,
espalha-se e acumula-se sem parar. Já se alastra por toda parte nas cidades em que
se encontram as fábricas dos brancos. Agora, os garimpeiros estão empesteando a
floresta com os gases de seus motores e os vapores do ouro e do mercúrio que eles
queimam juntos. [...] Então, todas essas fumaças, levadas pelo vento, caem sobre a
floresta e sobre nós. Tudo isso se mistura, para se tornar uma única epidemia
xawara, que dissemina por toda parte febre, tosse e outras doenças desconhecidas e
ferozes que devoram nossas carnes (Kopenawa; Albert, 2015, p. 363).
98
Até mesmo porque, além de dados etnográficos mais robustos, não dispomos da competência
que poderia dotar esse experimento de um maior valor antropológico.
99
Segundo Kopenawa e Albert, “[t]odos os seres da floresta possuem uma imagem utupë. São
essas imagens que os xamãs chamam e fazem descer. […] São elas o verdadeiro centro, o
verdadeiro interior dos animais que caçamos” (2015, p. 116). Cf. também nota 103.
73
100
Empregamos essa expressão para reforçar a sintonização com a filosofia yanomami, na qual o
termo yai thë (pl. pë) designa “as entidades invisíveis (pelo menos aos olhos da ‘gente comum’),
estranhas e ameaçadoras”, bem como seres/objetos visíveis porém desconhecidos, não nomeados,
ou incomes-tíveis. O conjunto dos yai thë (pl. pë) inclui, entre outros, os fantasmas (pore pë), os
seres maléficos da floresta (në wari pë) e os espíritos xamânicos (xapiri pë). Opõem-se a yanomae
thë pë, os humanos, e a yaro pë, os ‘animais (comestíveis), caça’ (os animais domésticos são
chamados hiima pë)” (Kopenawa; Albert, p. 616)
101
A depender do material particulado, ele pode contribuir para o aumento da temperatura, como é
o caso da fuligem, ou para sua diminuição, como é o caso de sulfatos particulados. No entanto,
ainda não se pode prever com precisão os efeitos das interações entre aerossóis naturais e
antrópicos na atmosfera, muito menos que contornos essas interações adquirem em meio à
mudança climática (EPA).
74
102
Por sua vez, a abóbada atual se sustenta por estacas de metal fincadas sobre o nível terrestre.
103
Em nota, Albert explica que “os xamãs ‘chamam’, ‘fazem descer’ e ‘fazem dançar’ como
espíritos auxiliaries xapiri as ‘imagens (utupë) dos seres, entidades e objetos os mais diversos (o
universo de tais imagens é, por definição, infinito). Além dos espíritos/ancestrais animais (yarori),
que dominam largamente (mamíferos, pássaros, peixes, insetos, batráquios, répteis, quelônios e
crustáceos), e dos demais espíritos da floresta (árvores, folhas, cipós, méis selvagens, cupinzeiros,
pedras, terra, água, corredeiras), incluem-se entre os xapiri todos os personagens/entidades
(maléficos ou não) da mitologia e da cosmologia yanomami. Somam-se à lista espíritos de todos
os tipos, dos mais domésticos (cão, fogo, cerâmica) aos mais exóticos (ancestrais dos
estrangeiros/brancos, dos bois, cavalos, carneiros)” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 622).
104
Por seu turno, quando esses fantasmas morrem, se tornam moscas e urubus no novo céu.
105
“A cura xamânica é […] concebida na forma de uma ação vingativa contra os agentes
patogênicos predadores da imagem corpórea/essência vital (utupë) do doente” (Kopenawa; Albert,
2015, p. 615).
75
atividades poluentes.
A filosofia yanomami aborda também um outro perigo fatal inerente à
extração dos minérios: caso se cave muito fundo e se atinja o “pai do metal” (ou
“pai do ouro”) – espécie de minério primordial temível escondido nas profundezas
por Omama (o demiurgo) –, a terra “se rasgará e todos os seus habitantes cairão
no mundo de baixo”, na medida em que “a poderosa fumaça amarelada de seu
sopro se espalharia por toda parte, como um veneno tão mortal quanto o que eles
chamam de bomba atômica” (ibidem, p. 359). De modo que tanto a queda do céu,
provocada pela queima do seu peito, como o desabamento da terra, causado pela
extração desse metal primevo soterrado, podem ser pensados como equivocações
em relação à noção de tipping points da climatologia. Malgrado as notórias
diferenças a respeito da formação do mundo que alicerçam cada uma das
cosmologias (por exemplo, para os Yanomami a terra atual está escorada no pai
do metal, daí o risco de seu desabamento caso tal apoio seja arrancado pelos
Brancos), trata-se em ambas cosmologias de eventos deflagradores de alterações
irreversíveis na dinâmica atual da Terra e impulsionados por fatores
antropogênicos, causando impactos provavelmente muito desfavoráveis a seus
viventes e pondo fim ao mundo como o conhecemos.
Diante do exposto, já dispomos de elementos para realizar a terceira etapa,
que é a de formular a hipótese comparativa (ou, como dissemos antes, de realizar
a sintonização) entre as teorias da queda do céu e dos gases de efeito estufa nas
cosmologias Yanomami e Ocidental. Ela pode ser expressa na tabela abaixo.
Grade de
Yanomami Brancos
sintonização
Agentes Espíritos xawarari Poluentes (elementos químicos)
Veículo de Poluição (sobretudo
Fumaça xawara
propagação gases de efeito estufa)
Fonte de Extração, transformação e Extração, transformação e queima de
emissão queima de minérios e petróleo minérios e combustíveis fósseis
Ambiente de
Céu Atmosfera
circulação
Fragilização do sopro vital Aumento do calor, doenças,
Consequências
dos seres degradação ecológica
Desabamento do céu e/ou da Mudanças irreversíveis (tipping
Situação-limite
terra points)
Invocação dos xapiri para
Interrupção das emissões, ações de
Como impedir repelir os espíritos maléficos
mitigação dos efeitos
mobilizados pelos brancos
77
A partir dela, podemos avançar para a quarta etapa do método, que consiste
em estabelecer o sistema de variantes, isto é, a regra de passagem ou
transformação entre contextos distintos: como se pode notar, ela se dá pela
diferença de estatuto e de possibilidade de agência atribuídos aos seres envolvidos
na questão: enquanto do mundo (e da política) yanomami participam também
seres com poderes sobrenaturais, dotados de intencionalidade e capazes de
entreter violentas batalhas motivados por desejos de aniquilação e vingança, os
Brancos restringem as ações e reações às categorias da humanidade e da natureza,
descartando qualquer possibilidade de existência fora delas.
Em suma, o argumento por trás desse experimento de sintonização é o de
que, para saber o que a questão climática efetivamente envolve, temos de
considerar os modos e meios distintos empregados pelos diferentes povos da
Terra para compreender os fenômenos (físicos e metafísicos) que têm lugar em
seu mundo. Quer dizer, é preciso reconhecer os componentes epistemontológicos
colocados em funcionamento por cada cosmologia: como concebem a si mesmos,
os demais seres e a realidade em que se inserem; a que dinâmicas de forças, ou
agenciamento de seres, atribuem os processos de fabricação e destruição das
coisas que existem; por meio de quais procedimentos, dispositivos e alianças as
criaturas de seu pluriverso são capazes de agir, reagir, pensar, conhecer, sentir,
viver e morrer. Para tanto, faz-se crucial identificar os seres que participam desses
diversos mundos, compreender seu estatuto ontológico, perceber o papel que
desempenham na (cosmo)política de seu coletivo e como se encontram implicados
na questão – isto é, se podem ou não nela interferir positiva ou negativamente, se
por meio delas se fortalecem ou se debilitam, o que pode acontecer se determi-
nadas dinâmicas relacionais forem desfeitas etc.
Não que se possa chegar a um veredicto definitivo: a sintonização que
permite a tradução das divergências é sempre precária, contingente; as regras de
passagem podem variar, na medida em que os próprios entes envolvidos estão em
variação constante, em sua relação com os demais existentes de seu mundo e na
comparação com os de outra série ontológica. A confiabilidade do resultado da
sintonização depende profundamente da quantidade e qualidade dos elementos
disponíveis para análise e do recorte do problema que carece de tradução, ao
78
mesmo tempo em que são também esses elementos que definem a complexidade
envolvida na conversão.
1.3.2.
Clima, tempo e era
109
Sobre a diferença que a meteorologia estabelece entre “tempo” e “clima”, cf. Gutro, 2005.
79
110
A saber, a instalação da estatal Indústrias Nucleares do Brasil (INB), chamada pela população
quilombola de “Urana”, no arredores da comunidade em 2000, com vistas a operar a única mina
ativa de urânio radioativo do Brasil; o fornecimento de luz elétrica na região a partir de 2008; e a
instalação de um parque eólico próximo ao quilombo em 2012, cujo consórcio operador foi
apelidado pela comunidade de “Eólica”. Por meio da palavra “energia”, os quilombolas articulam
a entrada de novas forças na circulação cosmopolítica local, o fornecimento de energia elétrica, a
atividade de exploração de urânio e a apropriação territorial pretendida pela companhia de energia
eólica.
111
A comparação poderia ser estabelecida também com a ideia de “mudança climática” – a
depender de se estabilizamos o foco no termo “mudança” ou “era”. Optei pelo Antropoceno
porque o termo denota o reconhecimento, por parte dos pesquisadores da geologia e de outras
80
ciências naturais, de uma verdadeira mudança de estado (e não mais variações que poderiam ser
consideradas pontuais ou sazonais) das dinâmicas ecológicas planetárias.
112
Isso é o que os cientistas acham que fazem; mas, na prática, seu modo de proceder não se
distingue tanto assim da cautela na observação e dos cuidados para não perder de vista os agentes
envolvidos nos fenômenos pesquisados empregados pelos quilombolas do Caetité, como podemos
afirmar com base nos argumentos de Latour (2004). O que parece variar, entre uma prática de
conhecimento e outra, é o papel reivindicado na política: enquanto a Ciência estabiliza seus
resultados como fatos científicos, arrogando para si o poder de falar a verdade objetiva sobre o
mundo, a prática epistemológica dos quilombolas visa a preservar a instabilidade, adiar qualquer
conclusão definitiva, expressando a recusa a uma pretensão de se posicionar acima da política.
81
identificar os atores que nele tomam parte. Sua postura é orientada pela premissa
do “assuntar”, prática por meio da qual as questões são complexificadas sem,
contudo, pretender a uma explicação unívoca ou totalizante; daí sua rejeição a
enunciados que expressam uma “mera relação causal descontextualizada entre
desmatamento e seca” ou a atribuição de um “fenômeno climático de influências
cósmicas e divinas à ação de algumas pessoas” (ibidem). A estabilização de uma
enunciação como verdade incontestável, assim, parece constituir uma ameaça tão
nociva para o fluxo de criação quanto a presença de energias estranhas nos
arredores do quilombo: o frágil equilíbrio dinâmico que favorece a vida demanda
uma conduta zelosa, uma grande atenção para com os perigos que ameaçam barrar
as forças em circulação, uma prudência para não deixar que presenças “pesadas e
fortes” – sejam as atividades industriais, sejam os discursos totalizantes –
bloqueiem a renovação da capacidade produtiva dos seres.
Na sequência, notamos também que o astro do tempo não diz respeito
propriamente aos corpos celestes, nem corresponde exatamente à atmosfera, como
num primeiro momento poderíamos supor, mas organiza num mesmo registro os
movimentos dos astros e os fenômenos meteorológicos, cujas variações
influenciam e são influenciadas pelos outros componentes do “ecossistema
criativo” da Malhada. Por sua capacidade performativa (isto é, sua condição de
regulador das transformações na potência criativa dos seres), ele pode ser
comparado aos ciclos biogeoquímicos que possibilitam as trocas entre os meios
biótico e abiótico que constituem a Terra e geram sua biodiversidade, e que, sob o
risco de colapso, podem acarretar alterações ecológicas altamente disruptivas. A
diferença, porém, é que, como no caso dos Yanomami, admite-se como agentes
influenciando o “funcionamento” do astro do tempo entes que são de uma ordem
extranatural que excede o registro físico e químico no qual as entidades do plano
epistemontológico ocidental circulam.
Num sentido análogo, há de se destacar ainda a relação estabelecida entre a
presença da atividade industrial na região e as profundas transformações sofridas
pelo astro do tempo, percepção que em larga medida coincide com a perspectiva
ocidental da origem antropogênica dos distúrbios que constituem a crise ecológica
planetária. Exceto que, nesta cosmologia, a perturbação é pensada exclusivamente
em termos de impactos antrópicos visíveis e mensuráveis, enquanto que, para a
comunidade da Malhada, a simples presença das empresas implica a entrada na
82
Grade de
Quilombolas da Malhada Brancos
sintonização
Agentes
Astro do tempo Ciclos biogeoquímicos
mantenedores
Regulação dos processos que
Atividade Regulação das transformações
permitem a vida e a organização dos
realizada na potência criativa dos seres
ecossistemas
Energias nocivas decorrentes
da presença industrial na
região, entre outras Impactos das atividades econômicas,
Agentes
influências possíveis: sobretudo as industriais: cruzamento
disruptivos
cruzamento dos planos dos planos humano e natural
humano, natural e
sobrenatural
Mudança de época (Antropoceno):
Mudança de era: diminuição
Consequências desregulação dos processos
do “fluxo ecológico da
temidas ecológicos que sustentam a vida e a
criação”
variação ecossistêmica
Assuntar: conhecimento é
Teorias científicas: conhecimento é
uma “tentativa provisória e
produzido pelo uso de artifícios e
Modo de mediada por artifícios de
mediações técnicas que são
abordagem do imaginar o acontecimento a
mascarados “para que o enunciado
problema partir de suas formas
circule como um fato” (Vieira,
residuais” (Vieira, 2015a, p.
2015a, p. 394)
385)
2
Mundos dentro do mundo
2.1.
O Antropoceno e outras histórias
– Marilyn Strathern
2.1.1.
Um planeta sob pressão115
115
“A planet under pressure”, no original em inglês, subtítulo do livro publicado pelo International
Geosphere-Biosphere Programme (IGBP) mencionado nesta seção.
116
Para uma breve apresentação dos antecedentes da noção de “Antropoceno”, cf. Steffen et. al.,
2011, p. 843-845 e Crutzen; Stoermer, 2000, p. 17.
87
117
No artigo em que propuseram oficialmente a nova época geológica, mesmo afirmando estarem
cientes da dificuldade de estabelecer uma data precisa para o início do Antropoceno, Crutzen e
Stoermer sugeriram como marco a segunda metade do século XVIII, alegando que os testemunhos
de gelo desta época foram o primeiro registro do aumento das concentrações atmosféricas dos
gases de efeitos estufa, coincidindo com a criação da máquina a vapor. Contudo, o “candidato”
mais cotado pelo Grupo de Trabalho designado pela Comissão Internacional de Estratigrafia (ICS,
na sigla em inglês) para analisar o pedido de formalização da nova subdivisão da escala de tempo
geológico é o período do pós-guerra, já que uma das evidências consideradas pelos membros do
grupo é a presença de material radioativo, oriundo dos testes com armas atômicas iniciados na
década de 1940, nas camadas geológicas (Zalasiewicz et. al., 2017). Apesar de uma proposta
preliminar de formalização do Antropoceno ter sido apresentada em agosto de 2016, sua
ratificação pelo ICS pode levar ainda alguns anos, mas isso não impede que o termo venha sendo
empregado com relativa frequência em artigos científicos, produções acadêmicas, matérias
jornalísticas e até mesmo em projetos de outras disciplinas, como arte e arquitetura. Para uma
explicação mais detalhada da Grande Aceleração, cf. Steffen et. al., 2011.
118
Não obstante a depleção na camada de ozônio ter retrocedido substancialmente desde a
assinatura do Protocolo de Montreal, em vigor desde 1989, que retirou os clorofluorcarbonetos de
circulação – a camada de ozônio chegou mesmo a dar sinais surpreendentes de recuperação
(Freeman, 2018) –, um estudo recente reportou a inesperada presença de CFC-11, uma substância
88
das mais destrutivas, na atmosfera A fonte mais provável das emissões misteriosas desse gás é o
sudeste asiático, afirma a pesquisa. Se confirmadas, tais emissões caracterizam a quebra do
Protocolo de Montreal e indicam que algum país está “jogando sujo” (a expressão empregada em
inglês é foul play) (Gabbatiss, 2018).
119
Isto é, a ocorrência com amplitude global que marca a mudança de período geológico.
89
120
Há discordâncias quanto à afirmação da não-intencionalidade das ações humanas que nos
conduziram ao Antropoceno, ao menos no que se refere aos representantes modernos da espécie.
Trataremos delas a seguir, mas por ora, sustentamos tal afirmação para ressaltar que, por diversos
fatores, a degradação ecológica planetária e a premente necessidade de reduzir o impacto humano
sobre a Terra não estava decididamente nos planos daqueles que se empenham em fazer do mundo
o império do anthropos...
90
2.1.2.
O que há num simples nome?
Desde sua proposição como nova época geológica nos idos de 2000, e
mesmo que sua ratificação esteja ainda sob a avaliação dos geólogos, a discussão
sobre o Antropoceno – sobre suas origens, causas, implicações e consequências,
até mesmo sobre a designação proposta para essa época, que remete à palavra
grega anthropos – se propagou junto às mais diversas áreas do conhecimento
(notadamente nas artes, na filosofia e nas ciências humanas e sociais), tornando-se
um importante vetor de pensamento e experimentação sobre as relações entre
humanos e extra-humanos. Do que se pode observar das discussões e produções
teóricas a respeito do tema, é evidente que o termo Antropoceno dá margem a
divergências. Uma delas, talvez a mais conspícua, é sobre quem são os
responsáveis (ou, ao menos, os principais responsáveis) pelo drástico distúrbio
das relações orgânicas e inorgânicas que suportam a existência no planeta: serão
todos os humanos ou somente alguns deles? Seria a humanidade, enquanto
entidade universal ou espécie biológica, a culpada ou seria o capitalismo – e, neste
caso, não seria “Capitaloceno” um nome mais adequado, como propõe Jason
Moore (2013)? Ou a responsabilidade deveria cair, de uma forma mais ampla,
sobre qualquer sociedade tecno-industrial e desenvolvimentista, seja ela
capitalista ou socialista, como argumentam Dipesh Chakrabarty (2009) e Clive
Hamilton (2014)? Quem integra o “nós” implicado no Antropoceno, e de quem ou
de que exatamente estamos tratando ao dizer anthropos?, perguntam Déborah
Danowski e Eduardo Viveiros de Castro (2017), salientando, como o fazem
também outros autores aqui citados, a importância política de considerar, na
designação desse acontecimento que chamamos Antropoceno, outros discursos,
não ocidentais e não hegemônicos, que definem o "nós", ou mesmo o "humano",
de maneira bem diferente da nossa.
Diante de tamanha polêmica, contudo, é importante notar, como lembra o
ativista Ian Angus no artigo “Anthropocene: What’s in a name?”, que, do ponto
de vista da geologia física e histórica, “Antropoceno” significa a época em que
“estratos geológicos são dominados por remanescentes de origem humana
recente”; dessa forma, “o nome é apropriado” e “não implica um julgamento
sobre todos os humanos ou sobre a natureza humana” (Angus, 2015). De todo
91
121
Da história antropocêntrica do Antropoceno, bem sabemos o que esperar. Isso tanto em função
das maneiras de colocar o problema – por meio de enunciados que, via de regra, naturalizam uma
suposta propensão predatória humana, podendo expressar culpa ou regozijo por tal comportamento
– como em função das soluções mais comumente aventadas, que vão do derrotismo e do
sentimento de impotência (“estamos condenados, não há o que fazer”) à confiança na
engenhosidade humana, expressa por experimentos tecnológicos mirabolantes e economicamente
lucrativos, para nos tirar dessa situação (“a tecnologia está aí para isso”). De um lado, assim, a
desolação por um mundo condenado de uma vez por todas; do outro, a euforia com o vislumbre de
um “bom Antropoceno”.
92
2.1.2.1.
Histórias de mundos situados
122
A confiança da chamada civilização moderna nas supostas unidade e exclusividade da agência
humana, da qual determinados povos se investiram para explorar inclementemente os seres outros-
que-humanos tomados como recursos para manutenção de seu modo de vida, parece sobreviver
nas narrativas sobre a catástrofe ecológica que seguem mantendo o homem como ator principal da
questão. Por isso, acreditamos que não é possível compreender ou resistir à catástrofe ecológica de
nosso tempo sem destituir a centralidade ocupada pelo anthropos nas histórias que contamos sobre
o problema.
123
É de se notar, aqui, como bem lembra Donna Haraway (2014), que a etimologia da palavra
grega anthropos – que significa “aquele que tem a face de um homem” – não inclui crianças,
mulheres ou escravos.
93
consistem nos inúmeros pontos de inflexão por meio dos quais as alterações de
grau provocadas pelas intervenções antrópicas se tornaram mudanças de natureza.
A autora nomeia esses pontos de inflexão: mudanças climáticas, toxicidade
química, mineração, poluição nuclear, esgotamento hídrico, simplificação de
ecossistemas, vastos genocídios humanos e não humanos, todos eles
retroalimentando uns aos outros e ensejando colapsos sistêmicos um após o outro
(idem, 2016, p. 100). O Antropoceno, mais que uma nova época, diz Haraway,
seria melhor designado como uma fronteira que instaura severas descontinuidades
ocasionadas pelos efeitos dos atos de determinadas pessoas combinados aos
efeitos das ações de “outros conjuntos de espécies e outras forças bióticas e
abióticas” (ibidem, p. 99). Tais descontinuidades separam um mundo no qual a
escala, velocidade, sincronia e complexidade das transformações de suas
dinâmicas davam espaço à regeneração e ao florescimento da diversidade
ontológica de um outro mundo, em que é cada vez mais difícil para os seres se
reconstituir após grandes eventos de desarticulação.
Ainda assim, Haraway reconhece que o Antropoceno, assim como o
Capitaloceno e os outros muitos nomes e histórias propostos a partir do
primeiro,124 tem sua importância na tarefa de descrever a situação e os agentes
nela envolvidos. Contudo, prefere pensar a questão pelo prisma das inúmeras
temporalidades e processos de vida e morte que se imbricam na composição do
mundo, perspectiva que melhor nos equiparia para cultivar novas imaginações e
alianças para lidar com “as urgências dos múltiplos fins de mundo e das coisas
que persistirão apesar dos fins” (idem, 2014). Ela chama de “Chthuluceno”125 a
124
Além do Capitaloceno, que atribui ao capitalismo a responsabilidade pela mudança de época
geológica (cf. sobretudo Moore, 2013), alguns dos conceitos propostos para substituir ou
complementar o Antropoceno são o de Angloceno, que atribui a responsabilidade do problema
sobretudo à Inglaterra e Estados Unidos, maiores emissores de gases de efeito estufa nos séculos
XIX e XX, respectivamente (Bonneuil; Fressoz, 2013); o de Homogenoceno, que foca na enorme
perda da biodiversidade e a homogeneização da biogeografia e dos ecossistemas ao redor do
globo, devido à ação das espécies invasoras introduzidas seja propositalmente, para a
agropecuária, seja inadvertidamente (Samways, 1999); e o de Monoculturoceno (Plantationocene),
que responsabiliza as monoculturas e os pastos pela progressiva homogeneização dos ecossistemas
e o transporte de genomas não apenas de plantas e animais, mas também de micróbios e escravos,
todos eles empregados como “unidades geradoras” desse modelo de produção (Haraway et al.,
2016, p. 557). Analisaremos em instantes outros nomes, como anthropo-not-seen, Chthuluceno e
Gaia. Há, decerto, outras propostas, muitas delas elencadas neste post:
<https://arcade.stanford.edu/blogs/neologismcene>. De todo modo, não é nosso objetivo
apresentar uma lista exaustiva.
125
Haraway esclarece que, ao contrário do que às vezes se pensa, o nome Chthuluceno, que
pretende designar os “diversos poderes e forças tentaculares espalhados pela terra”, não foi
inspirado no conhecido personagem de H.P. Lovecraft, o “monstro misógino e pesadelo racial
94
pluralidade temporal e narrativa que articula as várias relações por meio das quais
o mundo se torna mundo; citando o antropólogo Tim Ingold, Haraway concebe
seus habitantes, “criaturas de todos os tipos, humanas e não humanas”, como
andarilhos (wayfarers), sendo as gerações que se sucedem “uma série de trilhas
entrelaçadas” (Ingold apud Haraway, 2016, p. 32). Dito de outro modo, o
Chthuluceno consiste nos emaranhados de histórias que conectam seres, espaços e
tempos nos processos que fazem da terra o que ela é.
São as histórias que dão notícias dessas outras temporalidades, desses
entrelaçamentos entre criaturas humanas e não humanas que subjazem às grandes
histórias do Capital ou da Humanidade, que Haraway nos convoca a contar. Em
lugar de narrativas épicas que poderiam nutrir sonhos de grandes guerras de
salvação, dos anseios de tomar as rédeas da História e dirigir a regeneração do
mundo (como fazem os que acreditam numa saída do problema pelo capitalismo e
pelas soluções tecnológicas da geoengenharia,126 de um lado, ou numa revolução
socioeconômica que instauraria outro modo de vida e produção, do outro), a
autora vê nas histórias que podem ser contadas sobre colaboração e
comprometimento multiespecíficos meios de nos tornarmos capazes de “cultivar
uns com os outros, de todas as formas possíveis, épocas vindouras que possam
restituir refúgios” (ibidem, 100) – isto é, que possam refazer a diversidade
biológica e cultural do mundo, mesmo que em escalas menores, em condições
precárias, em espaços circunscritos e junto a criaturas situadas.127
Todas as histórias são grandes demais e pequenas demais. [...] Precisamos de
histórias (e teorias) que sejam grandes o suficiente para reunir as complexidades,
Cthulhu” (atentar à diferença na grafia), mas na espécie de aranha Pimoa cthulhu (Haraway, 2016,
p. 101). Descoberta em 1994 no deserto californiano, ela foi assim nomeada por seu taxonomista a
partir da descrição do personagem lovecraftiano como “aparentado aos poderes do caos” – e essa é
a única característica que Haraway preserva do “horrível deus patriarcal” (idem, 2014) criado pelo
escritor inglês.
126
Também conhecida como “engenharia climática” ou “intervenção climática”, a geoengenharia
é o nome dado às variadas tecnologias de intervenção em larga escala com vistas a reduzir os
efeitos danosos do aumento da temperatura global do planeta. Entre os projetos mais conhecidos,
estão o “gerenciamento de radiação solar” (ou SRM, do inglês solar radiation management), que
consiste em bombear aerossóis de enxofre nas camadas mais elevadas da atmosfera para refletir os
raios solares para fora da Terra, impedindo que alcance a superfície do planeta; a proposta de
fertilizar os oceanos com ferro para estimular o crescimento de plâncton e algas para que estes
consumam o dióxido de carbono ali presente; e a ideia de plantar árvores em vastas faixas de áreas
desertificadas também para absorção desse gás na atmosfera, entre outras (Hogenboom, 2013). É
de se destacar, nesse sentido, o alto risco que a maior parte dessas intervenções acarretam (o
reflorestamento parece ser uma das poucas exceções), tanto por não se poder precisar seus reais
benefícios e os possíveis efeitos colaterais quanto por concederem tamanho poder de manipulação
ambiental a algumas poucas corporações (Costa, A. A., 2018).
127
Trataremos do conceito de “refúgio” no capítulo 3.
95
2.1.2.2.
Reconectando distinções abissais128
Se, como diz Haraway, “importam que histórias fazem mundos, e que
mundos fazem histórias” (2016, p. 12), é importante investigar sobre quais
pressupostos se erige o Antropoceno e o mundo no qual ele se fez possível; isto é,
examinar sob quais circunstâncias "a existência humana pôde se tornar a forma
determinante 129 da existência planetária", com diz a antropóloga Elizabeth
Povinelli (2016, p. 9). Contudo, embora a escolha dos protagonistas do drama do
Antropoceno implique um “conjunto determinado de problemas e antagonismos
conceituais, políticos e éticos” (idem, 2017), nenhum deles, sustenta a
antropóloga Elizabeth Povinelli, se mostra imune à influência daquilo que ela
chama de “geontopoder”. Espécie de conglomerado conceitual, o termo visa
demonstrar o quanto as categorias que fundam a noção de geologia – a saber, a
diferença entre não vida e vida, segundo a qual se distinguem os seres que são
mera matéria inerte daqueles que realizam o metabolismo do elemento carbono –
130
são também dicotomias fundamentais para a organização da ontologia
ocidental. Mais que isso, tal oposição é vastamente mobilizada para o
funcionamento do “liberalismo tardio colonizador”, isto é, o processo de expansão
do modo de vida, produção e reprodução da civilização industrial, às custas
sobretudo das formas de existência alocadas no polo da não vida. A elas –
montanhas, rochas, rios, mares, entre outros –, a civilização industrial
costumeiramente reserva o destino da exploração até o limite do exaurimento.
128
Alguns trechos desta seção foram adaptados de meu artigo “Virada geo(nto)lógica: reflexões
sobre vida e não vida no Antropoceno” (Costa, A. C., 2016).
129
No original em inglês: “That is, the Anthropocene marks the moment when human existence
became the determinate form of planetary existence”. Optei por traduzir “determinate” por
“determinante”, que julguei mais adequado ao contexto que “determinada”, “fixa”.
130
A autora chama de “imaginário do carbono” o conjunto de processos metabólicos –
nascimento, crescimento/ reprodução e morte – que a epistemologia ocidental atribui à vida
biológica e que serve como marcador da diferença entre vida e não vida.
96
Pois bem, se não mais por meio da distinção entre vida e não vida que
fundamentava a “governança das diferenças e dos mercados”, quais são os
contornos que o geontopoder adquire para operar no Antropoceno?
Já mencionamos de passagem o conceito de “geontologia” proposto por
Povinelli, mas aqui vale desenvolvê-lo um pouco mais. Segundo a autora, as
distinções entre vida e morte e entre vida e não vida são primordiais para
compreender a constituição ontológica moderna. Se é verdade que a questão sobre
o “ser” é uma das mais determinantes no pensamento moderno, também é
possível afirmar que essas especulações, historicamente, tomaram como modelo
as características de entes bem específicos; a saber, aqueles associados à vida
biológica, capazes de entreter processos de metabolização do carbono para
prosperar, cuja existência é marcada por “eventos” tais como nascimento,
crescimento, reprodução e morte. E como a configuração-padrão da ideia de “ser”
coincide com a noção de vida, instaura-se uma separação abissal entre o orgânico
e o inorgânico, desconsiderando-se como mera matéria inerte desprovida de
agência e intencionalidade os modos de existência que não passam por aquelas
séries metabólicas. Por essa razão, Povinelli postula que aquilo que a tradição do
pensamento no Ocidente convencionou chamar de “ontologia” não passa de uma
“biontologia”, uma forma de dispor os seres em categorias duais com vistas a
conceder “privilégio ontológico” apenas a um dos lados.131 Em suas palavras,
desde sua inauguração como um campo de reflexão filosófica, a ontologia tem sido
definida por meio de problemas de ser e não ser, finitude e infinitude, o zero e o
(múltiplo) um, muitos dos quais criam e pressupõem um tipo específico de
entidade-estado, a saber, a vida. Nas ciências naturais, sociais e filosóficas, a
“vida” age como uma divisão fundacional entre entidades que têm a capacidade de
nascer, crescer, se reproduzir e morrer, e aquelas que não têm: biologia e geologia,
bioquímica e geoquímica, vida e não vida. A ontologia é, então, estritamente
falando, uma “biontologia”. Seu poder é a habilidade de transformar um plano de
existência regional – basicamente, os entendimentos ocidentais sobre quais
entidades têm essas capacidades – em um arranjo global” (idem, 2014b).
131
Veremos mais sobre a bipartição ontológica que caracteriza a modernidade no subcapitulo
2.2.1.
97
132
Consequentemente, o biopoder de que falava Michel Foucault (1988), autor que é das
referências mais importantes de Povinelli, sempre foi uma manifestação particular do geontopoder.
133
Isso não quer dizer que a geontologia seja um plano fechado para a entrada e saída de novos
existentes, mas sim que a inclusão e exclusão dos seres se dá a partir das maneiras próprias a cada
geontologia de admitir ou rejeitar participantes. Assim, a penetração em uma geontologia de
elementos oriundos de outro(s) plano(s) de existência se dá pela absorção desses elementos
“exógenos” à organização própria a essa geontologia, o que imediatamente estabelece um outro
modo de existência para esses elementos recém-incorporados e altera também o plano de
existência que os absorveu. A relação entre geontologias distintas se faz, então, por meio da
comparação entre as equivocações que evidenciam a pluralidade dos modos de existir segundo as
variadas cosmologias.
134
Sugestão de tradução proposta por Eduardo Viveiros de Castro, Déborah Danowski e Juliana
Fausto a propósito da entrevista realizada por Fausto com Elizabeth Povinelli (2014c), por ocasião
98
de alteração dos arranjos de existência, imanente a eles. Por essa razão, o plano de
existência nunca é apenas um: sempre há muitas geontologias em relação umas
com as outras e mesmo, potencialmente, dentro de uma própria geontologia.135
No entanto, embora os Estados e o capital liberais tenham operado, durante
os últimos séculos, orientando-se pela biontologia, as transmutações entre
biologia e geologia que marcam o Antropoceno produziram um abalo na até então
auto-evidente distinção entre vida e não vida. À semelhança dos dispositivos de
saber e poder propostos por Foucault para pensar o biopoder, 136 Povinelli
identifica três figuras conceituais que refletem a mutação no imaginário social
provocada pela crise ecológica: 137 o deserto, entendido como aquilo que foi
esvaziado de vida e que, com uma intervenção tecnológica apropriada, pode voltar
a ter vida (trata-se da figura que abarca o medo a respeito dos fenômenos de
desertificação e extinção em massa, que comumente permeiam a imaginação de
mundos pós-apocalípticos); o animista, figura na qual se depositam os desejos e a
esperança de que a vida nunca dará lugar à não vida, pois tudo é vida (essa figura
se faz presente nos vitalismos e multinaturalismos que vêm aparecendo nos
últimos tempos, além de algumas representações indígenas); e o vírus, cuja
existência passa incólume à divisão vida/não vida (idem, 2016). Assim, ainda que
se trate de imaginários erigidos em torno dessa distinção, as fronteiras entre os
polos se mostram atualmente muito mais fluidas, pois é o modelo de governança
baseado nos pares de opostos (vida e morte, vida e não vida) que está vacilando
em meio às complexas imbricações entre biologia e geologia que o Antropoceno
tornou evidentes.
Em outras palavras, está cada vez mais claro que o anthropos permanece um
elemento no conjunto da vida apenas sob a condição de que a Vida possa manter
sua distinção em relação à Morte/Extinção e à Não vida. É também muito claro que
as estratégias do liberalismo tardio [...] também só funcionam sob a condição de
que essas distinções sejam mantidas. E é exatamente porque podemos ouvir esse
“sob a condição de” que sabemos que esses parênteses estão agora visíveis,
discutíveis, em estado de tensão e ansiedade. Decerto afirmações como
“evidentemente, x humanos são mais importantes que y rochas” continuam a ser
feitas, persuadindo e interrompendo o discurso político. Mas o que me interessa
[...] é a breve hesitação, a pausa, o influxo de ar que agora pode interromper a
aceitação imediata [daquela dicotomia]” (Povinelli, 2016, p. 8-9).
138
De la Cadena cita o conceito de “práticas-da-terra” (earth-practices) cunhado por Penelope
Harvey, para explicar como se dá a conformação simultânea entre o espaço e os seres que o
habitam: “práticas da terra são relações para as quais a distinção ontológica entre humanos e
natureza não funciona. As ‘práticas-da-terra’ trazem o respeito e o afeto necessários para manter a
condição relacional entre seres humanos e outros-que-humanos que constitui a vida em muitas
partes dos Andes” (2010, p. 341).
100
sem sua contraparte ontológica: os runakuna, palavra que pode ser traduzida
como “gente” – desde que não se entenda “gente” exclusivamente como
“humano”. Porém, essa separação entre um polo e outro não preexiste à
composição do mundo do qual emergem, chamado ayllu:139 eles existem juntos,
um não podendo prescindir do outro sob pena de se tornarem, cada um deles, uma
outra coisa.
[O]s tirakuna são seres – mas não são entidades vivas no sentido biológico da
palavra. [...Q]uando se opõem às empresas mineradoras, os seres-da-terra não são
apenas geologia abrigando riqueza mineral. Tampouco são espíritos. Na Cusco
contemporânea, tirakuna são seres que, juntamente com runakuna, formam o ayllu,
a relação na qual se encontram inerentemente conectados e por meio da qual
conformam o espaço que eles também são. No ayllu, os seres-da-terra existem com
os runa; remover o primeiro (seja por extirpação de idolatrias, seja por mineração a
céu aberto) modificaria tanto o último que nem um batismo cristão, nem os salários
do desenvolvimento poderiam fornecer qualquer compensação. Diferentemente da
biologia e da geologia, runakuna e tirakuna não podem ser desemaranhados um do
outro – a não ser que ambos se tornem uma outra coisa (talvez apenas humanos e
pedras). Montanhas (ou pedras) preexistem à relação com humanos; o contrário
também acontece. Diversamente, nem tirakuna nem runakuna preexistem uns aos
outros, eles são simultaneamente no/como ayllu (ibidem, p. 255).
Nesse sentido, nem os tirakuna são apenas não humanos, nem os runakuna
são somente humanos: geos e bios não são suficientes para determinar seu
estatuto ontológico. Para que venham à existência no ayllu, “eles ativam uns aos
outros como pessoas – não há uma não pessoa nesse surgimento” (ibidem, p.
257). Dito de outro modo, a cosmopolítica indígena dos Andes de que fala De la
Cadena torna inoperante a dicotomia entre humanos e não humanos, visto que esta
não dá conta da complexidade da operação por meio da qual, engajando em
“permutas perspectivas” (De la Cadena, loc. cit.), os seres que compõem o ayllu
nele emergem como pessoas, sem que sobre para algum deles a contraparte
binária de não pessoa. Para ressaltar o “excesso ontológico” das criaturas do ayllu
em relação à bicameral partição moderna, a antropóloga borra as fronteiras
supostamente bem demarcadas entre aquele par de opostos: mais que não
humanos, ela defende que os tirakuna são outros-que-humanos (other-than-
139
Segundo a explicação de Justo Oxa citada pela autora, “[a] comunidade, o ayllu, não é apenas
um território onde um grupo de pessoas vive; é mais que isso. É um espaço dinâmico onde vive
toda a comunidade de seres que existem no mundo; isso inclui humanos, plantas, animais, as
montanhas, os rios, a chuva etc. Todos estão em relação como em uma família. É importante
lembrar que esse lugar não é de onde nós somos, mas quem nós somos. Por exemplo, eu não sou
de Huantura [cidade da província de Cusco, no Peru], eu sou Huantura” (OXA apud DE LA
CADENA, 2010, p. 354).
101
humans) 140 , enquanto os runakuna são aqueles que são “humanos, mas não
apenas”, expressão mencionada no título de um artigo seu (2014).
Num jogo de palavras com a nova época geológica proposta, De la Cadena
chama de anthropo-not-seen 141 o processo por meio do qual os “mundos
heterogêneos que não se organizavam segundo a divisão entre humanos e não
humanos” foram coagidos a viver sob essa distinção – mas, ao mesmo tempo,
souberam excedê-la. A expressão designa a ilusão de que poderia haver o humano
destacado dos processos terrâneos de onde ele emerge – esse anthropos nunca
existiu, apesar de tantos extermínios terem sido empreendidos (e o sejam até hoje)
em nome desse engodo. Nesse sentido, o Humano-nunca-visto-mas-intensamente-
aclamado nas narrativas modernistas, essas épicas ou trágicas histórias “com
apenas um ator real, um único fazedor de mundo, o herói” (Haraway, 2016, p. 39),
foi uma das condições de possibilidade do Antropoceno (De la Cadena parece
concordar com aqueles que situam o início do anthropos-not-seen na época da
invasão das Américas). Ao mesmo tempo, a pobreza ontológica expressa no
conceito de anthropos, a incompatibilidade entre sua presumida autonomia e sua
dependência material em relação aos seres-da-terra apontam para a possibilidade
de que a aniquilação historicamente propagada em seu nome não determine de
uma vez por todas o destino de nossa época. Se, como sustenta De la Cadena, o
anthropos-not-seen consistiu no “processo de destruição [daqueles] mundos e [n]a
impossibilidade de tal destruição (ibidem, p. 253)”, há razões para confiar que há
sempre algo que escapa, que excede o que se pensou estar estabelecido de uma
vez por todas. Talvez esses outros mundos tenham, então, muito a nos ensinar
diante da ameaça de devastação eco-ontológica generalizada prefigurada pelo
Antropoceno.
É verdade que tal aposta não encontra garantias: a magnitude das
intervenções engendradas pelo “casamento neoliberal entre capital e Estado” na
contempora-neidade demostra a mobilização de potências destrutivas
inimagináveis à época da invasão da América.142 Contudo, a conexão intempestiva
140
Cf. também nota 11.
141
Mantenho o termo em inglês, pois, traduzido ao português, perderíamos o jogo de palavras
original.
142
Nas palavras de De la Cadena: “Quinhentos anos depois, os seres-da-terra apresentam a mesma
queixa a novos exterminadores: empresas de mineração, agentes do chamado antropoceno (sic),
que as traduzem como montanhas, como fontes de minérios e, consequentemente, riqueza.
102
2.1.2.3.
Da História às geo-histórias
Com base no que expusemos até agora a partir tanto dos relatos científicos
quanto das elaborações filosóficas e etnográficas sobre a questão, acreditamos ser
possível afirmar que nossa passagem ao Antropoceno demonstra, de forma
incontornável, que não podemos mais pensar a chamada “Natureza” apenas como
um pano de fundo para o desenrolar das ações humanas. A época atual
testemunha, no que concerne à metafísica hegemônica desde a modernidade, uma
inversão de agências: é ao mesmo tempo que os humanos se tornam uma força
geológica que os seres-da-terra, até então tratados como mera matéria inerte,
adquirem agências inesperadas. Por esse motivo, Bruno Latour (sobretudo em
2011b, 2012a, 2013a, 2015a) e Isabelle Stengers (2009, 2017) invocam a teoria
143
Apesar de ter sido apresentada como hipótese no início dos anos 1970, foi só na década de
1980 que ela se tornou o que hoje é a teoria de Gaia (Lovelock, 2010, p. 243). Lovelock
primeiramente formulou a hipótese sozinho, mas Margulis logo se juntou a ele aportando sua
experiência como microbiologista, colaboração que se mostrou essencial para a consolidação da
hipótese em teoria.
144
Apesar de as interpretações de Latour e Stengers sobre o conceito de Gaia em muito serem
complementares, há de se notar algumas diferenças, como apontaremos a seguir.
145
Mas veremos adiante que não se trata exatamente de uma regulação, na medida em que não há
uma instância coordenadora das interações que constituem Gaia.
104
Mas se não são desprovidos de agência, tampouco os seres de Gaia têm sua
agência condicionada por uma ordem pré-estabelecida. Um dos aspectos mais
importantes dessa teoria, segundo Latour, é sua contribuição para que a concepção
de “organismo” prevalente nas ciências naturais (mas também na sociologia) seja
problematizada. Isso porque, apesar de seu funcionamento ser comparado ao de
um sistema autorregulado (isto é, com suas “partes” agindo em prol dessa
regulação homeostática), Gaia não pressupõe nenhuma intencionalidade
unificada, nenhum plano predeterminado que pudesse orientar e coordenar a ação
dessas partes. Não seria, assim, como se “a Vida” – entidade abstrata a quem se
atribuiria, na biologia, o papel de um agenciador supremo, um “superorganismo”
– sincronizasse a agência de todos os elementos do sistema, expressando “seu”
interesse pelo “grande bem de todos” (Latour, 2015a, p. 128-129); mas tampouco
105
se trata, como a essa altura já deve estar claro, de considerar os seres de Gaia
como meros elementos passivamente submetidos às leis da natureza. As conexões
que, ao longo da “geo-história”, foram se constituindo como condições para a
existência das criaturas que povoam a Terra se explicam por contingência,
resultando das sucessivas ações e retroações (no sentido dos feedback loops) não
intencionais dos seres, que “modificam seus vizinhos [...] para tornar sua própria
sobrevivência ligeiramente menos improvável” (ibidem, p. 132).
Se vivemos agora numa atmosfera dominada pelo oxigênio, isso não se deve a um
circuito de retroalimentação preordenado, mas sim ao fato de que os organismos
que transformaram esse veneno mortal em um formidável acelerador de seu
metabolismo se multiplicaram. O oxigênio não existe simplesmente como um
componente do ambiente, mas como a consequência prolongada de um
acontecimento (événement) prolongado até os dias de hoje pela proliferação dos
organismos. Do mesmo modo, foi somente após a invenção da fotossíntese que o
sol passou a desempenhar um papel no desenvolvimento da vida. Ambos [oxigênio
e sol] são as consequências de acontecimentos históricos que não durarão muito
mais que as criaturas que lhes dão suporte. E [...] cada acontecimento abre, para
outras criaturas, novas perspectivas (ibidem, p. 140-141, acréscimo meu).146
Para Latour, a ampla difusão nos domínios das ciências naturais e humanas
da ideia de “organismo” – “estranho amálgama de teoria social, de concepção de
Estado e de maquinismo” (ibidem, p. 129) – se explica pela penetração na
biologia (enquanto disciplina do saber) de determinados pressupostos da teoria
econômica. O autor se refere sobretudo à teoria do gene egoísta, elaborada por
Richard Dawkins e endossada por darwinistas e neodarwinistas, que considera os
organismos como meras “máquinas de sobrevivência” constituídas pelos genes
para aumentar suas chances de se perpetuarem na existência. Assim, nessa
concepção, as dinâmicas complexas, desordenadas e contingentes por meio das
quais entes orgânicos e inorgânicos emaranham-se uns aos outros, favorecendo a
diversificação das formas de vida no planeta são reduzidas a um dilema entre
indivíduo e sistema; tal dilema, por sua vez, tem como pressuposto a delimitação
precisa das fronteiras entre um ente e seu meio, entre o interior e o exterior de um
agente. Por essa razão, muitos críticos reconheceram nessa teoria evolucionista
uma clara influência do liberalismo econômico – já que essa corrente de
pensamento presume como viável a clara distinção entre uma atividade econômica
146
Tal ilustração é expressa conceitualmente na formulação de Viveiros de Castro: “Um
organismo é uma biobricolagem que adapta e adota [adapt and adopt] reciprocamente outros
organismos para formar simbiontes que adaptam-se (isto é, expressam empatia ontológica) a um
meio meta-simbiogênico” (2019, ligeiramente modificado).
106
e suas “externalidades”.
O equívoco dessa infiltração liberal no âmbito da biologia, como esclarece
Latour, não está na consideração de que os seres agem perseguindo uma
finalidade (a saber, se manter na existência), mas sim na suposição de que, nos
processos que constituem Gaia, agentes e pacientes podem ser claramente
identificados: “a vida é muito mais caótica do que os economistas e darwinistas
haviam imaginado, já que cada gene egoísta é subjugado pelas metas egoístas de
todos os outros” (ibidem, p.138).147 Se, como diz o título do primeiro livro de
Lovelock sobre o tema, a teoria de Gaia oferece “um novo olhar sobre a Terra”
(1979), é porque ela torna inoperantes as oposições clássicas entre indivíduo e
totalidade, entre agente e sistema, distribuindo as agências e intencionalidades
mais equitativamente e advertindo-nos quanto à fragilidade das dinâmicas
ecológicas que sustentam a vida no planeta: por serem um produto da
contingência, elas não estão garantidas de uma vez por todas – muito pelo
contrário. É um erro, assim, fazer da economia um modelo para a ecologia: “a
economia da natureza não é a dos humanos” (Latour, 2015a, p. 139).
Recorremos às concepções que Latour e Stengers fazem da noção de Gaia
para analisar os desdobramentos dessa teoria científica no campo da filosofia
porque, de uma forma geral, a maneira como os autores pensam tal conceito é
complementar uma à outra. Mas isso não significa que diferenças sutis de
interpretação não possam ser apontadas. Embora ambos se valham do conceito
para pensar a complexidade das dinâmicas biogeoquímicas que condicionam a
vida no planeta, para destacar o consequente (e iminente) risco representado pelas
alterações significativas nessas dinâmicas e para reivindicar outras formas de
existir na e com a Terra, ao menos duas considerações podem ser feitas quanto às
suas divergências nas maneiras de conceber a intrusão de Gaia148 e a composição
147
A esse respeito, Deleuze talvez pudesse dizer, a partir de sua leitura de Nietzsche: “Quer dizer
que a própria natureza possui uma história. A história de uma coisa, em geral, é a sucessão das
forças que dela se apoderam, e a coexistência das forças que lutam para dela se apoderar. Um
mesmo objeto, um mesmo fenômeno muda de sentido consoante a força que dele se apropria. A
história é a variação dos sentidos, quer dizer, ‘a sucessão dos fenômenos de sujeição mais ou
menos violentos, mais ou menos independentes uns dos outros’” (2001, p. 9). Acreditamos que
essa descrição serve, também, à breve ontologia que esboçamos na seção 1.2.3, tratando do modo
de existência diferencial e relacional dos seres da Terra pensados como perspectivas; a conexão
entre os argumentos defendidos naquela seção e a maneira como aqui apresentamos Gaia não é,
portanto, sem propósito.
148
Em textos e palestras que antecederam a publicação de Face à Gaïa – incluindo as Gifford
Lectures, proferidas em 2013, que consistiram na primeira versão das ideias apresentadas nesse
107
Mesmo que essa diferença de foco não seja significativa para o sentido geral
que o conceito de Gaia possui na obra dos autores, ela parece determinar uma
dissemelhança de posturas diante da questão. Latour demonstra um evidente
entusiasmo pela possibilidade de seguir o encadeamento das agências e traçar os
caminhos por onde se constrói a geo-história; às vezes parece mesmo que ele se
imagina embarcando nas “aventuras de detetive” a que compara a prosa de
Lovelock (Latour, 2015a, p. 123), a julgar pelo modo apaixonado com que nos
exorta a seguir em frente em direção a novas terras a serem descobertas dentro de
Gaia (ibidem, p. 372-373). Stengers, por sua vez, apresenta uma atitude mais
contida, cautelosa: sendo Gaia essa transcendência absoluta que de nós nada exige
livro –, Latour empregava com frequência a expressão “irrupção de Gaia”. Contudo, nessa obra de
2015 ele recorreu com mais frequência à ideia de “intrusão” proposta por Stengers, agradecendo
inclusive à autora por ter-lhe chamado a atenção sobre o problema que se tornou, para ele também,
a questão mais importante de ser pensada na atualidade (Latour, 2015a, p. 14).
108
e com quem, por isso mesmo, não podemos negociar, o “acontecimento de uma
intrusão unilateral, que pergunta sem interesse pela resposta” (Stengers, 2015, p.
40), não temos outra escolha senão melhor nos equipar para pensar diante dela,
para prestar atenção aos processos que a formam, de modo a não suscitar reações
que concorram para ainda maiores devastações e existências cada vez mais
precárias.149
A segunda consideração que ilustra a diferença de acepção do conceito entre
os dois autores reside na maneira como esperam compor alianças com/em Gaia.
Tanto Stengers quanto Latour expressam uma confiança na capacidade de
estabelecermos outros modos de agenciamento com a Terra e seus seres, sem
deixarmos essa tarefa nas mãos dos que se pretendem responsáveis por nosso
destino (governantes, especialistas, grandes empresários etc.). Contudo, Latour
parece exortar a composição do mundo comum se inspirando sobremaneira no
modo ocidental de fazer política: ao longo de sua obra, termos e expressões como
Parlamento (das coisas), civilização por vir, República (ou res publica),
democracia, Constituição abundam... isso sem falar que, cada vez de forma mais
explícita, Latour vem declarando seu interesse em atuar como o diplomata dos
modernos (Costa, Alyne, 2017), ou o representante da Europa, na negociação com
Gaia que se faz necessária.150 Com efeito, o autor parece apostar na possibilidade
de “salvar os modernos de si mesmos” (Latour, 2002, p. 4), numa espécie de
reformismo orientado pela ecologia política, interessado que está em manter o
máximo possível do modo de existência que tanto estima. A diferença em relação
à postura assumida por Stengers nesse quesito é apontada pela própria autora: para
ela, o “nós” a ser constituído diante de Gaia não poderia ser conhecido
149
Percebemos nessa predileção de Stengers por pensar Gaia como uma transcendência um
posicionamento análogo ao que a faz conceber a política como cosmopolítica: a abertura a
possibilidades desconhecidas e imprevisíveis, na medida em que Gaia é capaz de atos inauditos,
mesmo incompreensíveis – essa abertura ao desconhecido é a função mesma do prefixo cosmos
naquele conceito.
150
Na dissertação de mestrado (Costa, Alyne, 2017), afirmávamos que, apesar de a posição de
Latour na guerra dos mundos (cf. seção 2.2.1) ser um tanto ambígua, acreditávamos que ele agia
como um Terrano infiltrado entre os Humanos (ou modernos), tentando converter os últimos nos
primeiros. Parecia-nos também que seu interesse nessa conversão residia sobretudo em fazer da
Europa um modelo da civilização por vir, uma mais condizente com os desafios impostos por
Gaia. Em Où aterrir, o autor confirmou nossas suspeitas: não apenas declarou que é como europeu
que pretende se situar – “Aterrissar é necessariamente aterrissar em alguma parte. [...] Bem,
quanto a mim, é na Europa que desejo pousar”, e também “É em direção a isto que hesito nomear
como a pátria europeia que gostaria de me voltar” (Latour, 2017, p. 126) – como também disse
acreditar que cabe à Europa a tarefa de “desglobalizar o projeto [moderno] para restituí-lo de sua
virtude” (ibidem, p. 128), como forma de “passar do moderno ao contemporâneo” (ibidem, p. 126)
– este último significando a aterrissagem em Gaia.
109
151
A obra referenciada aqui, Cosmopolitiques, é composta de sete volumes que foram
primeiramente publicados pela Éditions La Découverte (Paris, 1997) e republicados pela mesma
editora em dois volumes no ano de 2003. A referência usada nesta tese é a tradução da obra para o
inglês, publicada em 2011 pela University of Minnesota Press.
110
Tais são, de forma muitíssimo sucinta, algumas das questões que orbitam o
conceito de “Antropoceno”. A seu respeito, um problema para o qual todos esses
autores, cada um à sua maneira, exploram saídas parece ser uma certa concepção
do que vem a ser o “humano”, que supostamente legitimaria a preponderância de
determinadas relações ou interesses às custas de outras relações e dos interesses
de outros seres – concepção essa oportunamente referendada pela distinção,
marcante para a modernidade europeia e a que nos referimos já algumas vezes,
entre “Natureza” e “Cultura” – e o mundo que essa concepção e essa prevalência
de relações e interesses bem marcados parece erigir. Como dizem Heather Anne
Swanson, Nils Bubandt e Anna Tsing, a desordem ecológica da qual o
Antropoceno é um dos nomes demanda a reflexão sobre que tipos de humanos e
perspectivas foram excluídos dessa concepção. Isto porque, apesar de evidenciar a
inoperância da divisão natureza-cultura, o termo reflete “ainda a expressão de uma
cosmologia científica ocidental”, na qual “há apenas um tipo de humanidade e um
tipo de natureza, formadas na diferença entre uma e outra” (Swanson; Bubandt;
Tsing, 2015, p. 156). Nesse sentido, a seguinte resposta de Tsing numa conversa
com Haraway e outros antropólogos resume bem nossa posição a respeito do
152
Referência ao Colóquio Internacional Os Mil Nomes de Gaia – Do Antropoceno à Idade da
Terra, evento acadêmico realizado no Rio de Janeiro em 2014 do qual fui uma das organizadoras,
juntamente com Déborah Danowski, Eduardo Viveiros de Castro, Felipe Süssekind, Juliana Fausto
e Cecília Cavalieri. Dele participaram muitos dos autores que servem de referência para minha
pesquisa. Cf.: <https://osmilnomesdegaia.eco.br/>.
111
Antropoceno:
Eu compartilho suas preocupações sobre o Antropoceno enquanto conceito, Donna,
[por se tratar de] um conceito que sugere que o mundo atual é o produto do ato de
uma única espécie. Ao mesmo tempo, o Antropoceno contém também uma
contradição interessante que talvez possamos explorar. É precisamente porque o
Antropoceno é ainda [um conceito] tão múltiplo e incipiente que mantém seu
potencial (Haraway et. al, 2016, p. 541, ligeiramente modificado).
2.2.
“Parece quase uma guerra de verdade”153
– H. G. Wells
153
Em inglês, “It looks almost like a real war”. Trecho do roteiro da adaptação de War of the
Worlds, de H. G. Wells (1898), para o radioteatro, dirigida por Orson Welles e transmitida pela
emissora norte-americana CBS em 30 de outubro de 1938. Disponível em: <http://www.sacred-
texts.com/ufo/mars/wo
w.htm>.
112
154
A esse respeito, Viveiros de Castro (2019) aponta que é possível haver – e houve durante
milênios – império sem capitalismo, mas está ainda por se descobrir se pode haver capitalismo
sem império, já que em seu “disfarce econômico-capitalista”, o império significa aquilo que Marx
chamou de acumulação primitiva do capital: o dispositivo de (re)produção da concentração de
recursos (e de poder) que fornece as condições de exploração essenciais para a manutenção desse
sistema econômico.
155
Temos aqui em mente os mercados de commodities estabelecidos com a invasão europeia no
Novo Mundo, o estabelecimento do sistema das monoculturas e o impulso que tais eventos deram
ao comércio internacional a partir do século XVI (Haraway, 2016; Haraway et. al., 2016). Não nos
parece exagerado afirmar que a estrutura de funcionamento desse mercado global, ao menos no
que se refere aos processos de alienação dos seres (Tsing, 2015a) e empobrecimento dos
ecossistemas, segue praticamente inalterada. O mesmo não se pode afirmar, contudo, de seu
impacto: os novos equipamentos tecnológicos utilizados sobretudo em projetos de petróleo e
mineração têm permitido alterar profundamente, em escala sem precedentes, as dinâmicas entre
mundos orgânico e inorgânico em diversas localidades do planeta.
156
Pensamos principalmente nos animais de produção confinados em fazendas industriais, criados
e abatidos em condições terríveis, com suas vidas submetidas desde seu nascimento aos
imperativos de mercado. Mas também nos cada vez maiores contingentes de indivíduos vivendo
em circunstâncias extremamente precárias – migrantes, refugiados, com baixa escolaridade,
expropriados de suas terras e de seus meios de subsistir, discriminados social e culturalmente –
que não encontram alternativa que não se submeter a subempregos, trabalhos exaustivos e até
forçados em locais e circunstâncias insalubres (fábricas, frigoríficos, oficinas têxteis...), recebendo
113
passou. É uma situação atordoante, já que a Terra é tanto cenário como agente
dessa contenda; não há solo firme sobre o qual se encorar, já que se trata de
batalhas para definir que solo é esse, que mundo(s) é(são) esse(s), e que povos
humanos e outros-que-humanos podem ocupá-lo.
Veremos na seção a seguir quem são os atores envolvidos nessa guerra,
quais são os mundos a que eles pertencem e mesmo que mundos sua existência
demanda destruir. Seguiremos nessa apresentação a diferenciação de coletivos
proposta por Latour, embora nos detendo mais minuciosamente apenas sobre um
dos povos beligerantes, os Humanos: o outro lado da disputa, chamados de
Terranos, serão objeto de análise mais detalhada no capítulo 3. O que distingue
uns dos outros, em linhas gerais, é sua disposição ou indisposição a prestar
atenção nos seres e dinâmicas que conformam a Terra, zelar ou não pela
manutenção de sua capacidade de renovação, inventar novas maneiras de conviver
com as criaturas que fazem mundo conosco ou tratá-los como mero plano de
fundo de um suposto espetáculo antropocênico. A guerra de mundos é travada
tanto nas arenas políticas usuais quanto em nosso imaginário, e o que está em jogo
nela é a possibilidade de coexistência entre modos distintos de habitar a Terra.
Restará a nós escolher de que lado da disputa estaremos, mesmo que os critérios
para tal alistamento sejam, por muitas razões, difíceis de precisar. Vejamos,
assim, que feições esse conflito geo-cosmopolítico adquire na contemporaneidade.
2.2.1.
Além da Grande Divisão, a guerra
158
Cf. sobretudo Latour 1994, 2002, 2013a, 2015a.
115
159
Em um projeto inaugurado com a publicação do livro Enquête sur les modes d’existence, em
2012, e desenvolvido até 2015, Latour reuniu colaboradores oriundos de diversas partes do mundo
para contribuir com a investigação de outros possíveis modos de existência para os seres que
povoam o mundo dos modernos, para além da restrita organização bicameral presumida por esse
coletivo. O autor chegou a identificar 15 modos de existência, que, como informa a plataforma
virtual do projeto, seriam provisórios e contingentes. Cf.: <http://modesofexistence.org/>.
116
âmbito em que as equivocações quanto à existência dos seres são admitidas, e até
mesmo exaltadas, desde que constituam apenas o signo da inventividade poética e
da tolerância religiosa, étnica e social dos que se supõem modernos. É assim que
admitem, portanto, os seres da literatura, da política, do direito, da religião, entre
outros cuja existência empírica é considerada inexistente, no máximo relativa. Já
o outro modo consentido aos entes, por sua vez, é o que concentra em si toda a
realidade objetiva: trata-se do domínio da constituição material das coisas, o reino
bruto da matéria que subjaz às limitações fenomenológicas e à imaginação
fecunda dos humanos. Ali se encontram aglomerados os elementos químicos, os
fenômenos físicos, os corpos hídricos, as formações rochosas, as paisagens
naturais, os gases atmosféricos, as espécies vegetais, os animais não humanos...
em suma, toda a gama de existentes dos quais se supõe se não uma completa
incapacidade de agência, ao menos a impossibilidade de agir com
intencionalidade e inventividade, ao mesmo tempo que se lhes atribui o poder de
carregar em si, porém sem ter disso conhecimento ou consciência, a verdade
inconteste sobre o funcionamento do mundo, posto que não passariam, no fim das
contas, de meros aglomerados de matéria.
Nada mais em desacordo com a pluralidade metafísica que se expressa por
meio da capacidade, demonstrada por tantas cosmologias não ocidentais, de
considerar o estatuto ontológico dos seres com base em suas agências em
contextos específicos, isto é, pelas funções que estabelecem nas diversas relações
que podem entreter. Em todas as elaborações cosmológicas alternativas à
bipartição natureza-cultura apresentadas até aqui (e nas que serão analisadas no
capítulo 3), são patentes as equivocações, os modos de existência fluidos, através
dos quais os seres transitam. Reconhecemos essa multiplicidade irredutível nos
seres da terra-floresta Yanomami, nas criaturas das histórias que tecem o
Chthuluceno, nos diferintes que povoam as geontologias, na inseparabilidade
entre tirakuna e runakuna no ayllu andino, nas dinâmicas de ação e retroação dos
actantes de Gaia, para citar algumas das variações ontológicas da Terra já
mencionadas. Mesmo na “revisão” empreendida por Latour da metafísica
moderna,160 essa multiplicidade constituinte dos seres, isto é, sua possibilidade de
variação existencial conforme o contexto em que se inserem é admitida: para citar
160
Cf. nota 159.
117
161
No original, em inglês: “What is sure is that glaciers appear to slide quicker, ice to melt faster,
species to disappear at a greater speed, than the slow, gigantic, majestic, inertial pace of politics,
consciousness and sensibilities” (idem, 2013b, sexta palestra).
119
suas obras dos sentimentos que essa constatação potencialmente suscita. Latour,
por exemplo, falou da sensação de desconexão da qual somos acometidos quando
nos damos conta de que nossas ações coletivas não refletem o conhecimento que
possuímos (Latour, 2011b). O filósofo Clive Hamilton, por sua vez, propôs que
esse hiato entre saber e agir pode ser compreendido por meio do conceito de
“dissonância cognitiva”, cunhado pelo psicólogo Leon Festinger:162 quando algo
que julgamos verdadeiro é contradito por evidências, tendemos a ignorar as
informações destoantes para evitar o desconforto – isso explicaria a dificuldade de
admitir o problema e agir para ao menos reduzir seus impactos (Hamilton, 2010,
p. 96).
Já Stengers propõe que vivemos hoje como se estivéssemos suspensos entre
duas histórias. A primeira nos exorta a seguir produzindo e consumindo como se
não houvesse limites planetários, exigindo que “aguentemos firme e continuemos
a ter confiança no crescimento [econômico]”, mesmo que isso nos leve
inexoravelmente a “dar de cara na parede” (Stengers, 2015, p. 9), ou melhor, dar
de cara com a resposta implacável de Gaia. A outra história, por seu turno, nos
encoraja paradoxalmente a mudar nosso modo de vida, a reduzir nossa pegada
ecológica – o que, diante da impossibilidade de recusar o crescimento econômico
que anima a produção capitalista, se traduz nas quase irrisórias atitudes
individualistas que mais aplacam nossa culpa que fazem frente à magnitude do
problema. No fim das contas, vemo-nos espremidos entre ordens em tudo
contraditórias: “isolar nossas casas, trocar as lâmpadas, mas também continuar
comprando carros, pois é preciso sustentar o crescimento” (ibidem, p. 22). Tal
contradição revela a distância colossal entre aquilo que sabemos – a incontestável
intrusão de Gaia – e aquilo que realmente nos mobiliza (ibidem, p. 12) – já que
insistimos num modelo de organização socioeconômico altamente devastador, por
comodismo ou, adaptando a célebre frase de Frederic Jameson (1994),163 por falta
de uma imaginação que nos capacitasse a impedir que o mundo acabasse antes do
capitalismo.
Onde Stengers vê suspensão, Chakrabarty (2013) vê colisão; e não apenas
162
Cf. Festinger L. (1975 [1956]). Teoria da dissonância cognitiva. Rio de Janeiro: Zahar
Editores.
163
A frase original em inglês é “It seems to be easier for us today to imagine the thoroughgoing
deterioration of the earth and of nature than the breakdown of late capitalism; perhaps that is due
to some weakness in our imaginations”. In: Jameson, F. (1994). Seeds of time. New York:
Columbia Univerity Press, p. xii.
120
entre duas, mas entre três histórias que, antes do Antropoceno, pareciam seguir
caminhos próprios: a dos sistemas planetários, a da vida na Terra (incluindo a
humana) e a do modo de vida industrial ou, se preferirmos, a história do
capitalismo.164 Nesse sentido, o autor elenca ao menos três fendas [rifts] no nosso
modo de pensar que precisam ser transpostas para que possamos nos orientar entre
as diversas escalas de tempo que a nova época geológica colocou em tensão: o
dilema entre os vários regimes de probabilidade que governam as economias
atuais e a radical incerteza sobre o comportamento do clima, entre nossas vidas
individuais e nossa existência coletiva enquanto espécie e entre o
antropocentrismo com que nos habituamos a pensar e a necessidade de constituir
outras dinâmicas relacionais nas quais os humanos não ocupem mais o centro
(Chakrabarty, 2014).
Diante do impasse, resta aos modernos escolher: ou bem seguem com a
guerra que vem aniquilando a Terra e suas variações geontológicas ou bem
aceitam rever sua ordem metafísica e seus procedimentos diplomáticos – ou, em
outras palavras, recompõem sua cosmopolítica e seu modo de proceder no mundo
–, de modo a entreter relações mais “amistosas” ou simétricas com os demais
seres e povos que coabitam o planeta. Pois, como bem lembra Latour, não há
razão para supor que a mera constatação do desmonte ecológico poderia,
finalmente, unir toda a “humanidade” em prol de um objetivo comum: a
constituição de um coletivo não obedece a critérios estabelecidos apenas por um
dos lados da questão, tampouco o “comum” pode ser construído tendo por base
pretensões de uníssono. Ao contrário, o que os modernos vêm provocando com
seu sonho de unificação constitui aquilo que Chakrabarty denomina de universal
negativo: sendo o traço mais proeminente de nossa universalidade enquanto
espécie humana parece ser nossa transformação em força geológica, o universal
mais contundente que produzimos foi o risco do desaparecimento não apenas da
nossa espécie, mas de tantas outras (e de outras classes de seres também). É por
essa razão que, malgrado os delírios de união, as divergências nas formas de
integrar o(s) mundo(s) seguirão prevalecendo, já que o atendimento das condições
164
Lembremos, de todo modo, que não são só as concepções modernas de “história” e “mundo”
que colapsam junto com os parâmetros ambientais da Terra: no trecho do filme Para onde foram
as andorinhas? que escolhi como uma das epígrafes para o capítulo 1, um indígena entrevistado
lamenta: “Por causa do calor, as árvores não se sentem bem, e por isso não estão florindo. Como
vamos saber o tempo da nossa história acontecer? Se já perdemos os sinais que marcam o tempo?
Está mudando o tempo da nossa história” (Para onde, 2015).
121
165
Em lugar do “anthropos prematuramente unificado”, prosseguem os autores, seria preciso
considerar “a pluralidade contraditória e heterogênea de condições e interesses dos coletivos que
se veem diante da terrível teofania de Gaia” (Danowski; Viveiros de Castro, 2017, p. 122).
166
Sobre o conceito de guerra dos mundos em Latour, cf. Latour, 2002. Para sua atualização no
âmbito da crise ecológica, cf. sobretudo Latour 2013; 2015a, e também minha dissertação de
mestrado dedicada ao tema, publicada em livro (Costa, A. C., 2017).
167
Na reformulação das Conferências Gifford de 2013 que deu origem ao livro Face à Gaïa
(2015a), Latour renomeou esse coletivo: de Terranos (Terriens em francês, Earthbound em
inglês), passaram a se chamar Terrestres (mesma grafia no original em francês). Por considerar
que o primeiro termo já desfruta de um certo reconhecimento (e, ao menos de minha parte, até
afeição) por aqueles que acompanham o conceito desde sua aparição na obra de Latour, seguirei
nesta tese chamando o povo de Gaia de Terranos. Nas conferências em que o apresenta pela
primeira vez, o autor justifica assim a escolha do nome desse povo: “Escolhi Earthbound –
‘bound’ como encantados por um feitiço, assim como se dirigindo a algum lugar, designando
assim o esforço conjugado de alcançar a Terra ao mesmo tempo sendo incapaz de dela escapar,
num testemunho comovente da imobilidade frenética daqueles que vivem em Gaia” (2013a). Cf. a
122
seção 3.3.3 desta tese para um breve comentário a respeito dessa imobilidade frenética
característica dos Terranos.
123
168
Entendemos neste trecho que qualquer acordo de paz só pode ser estabelecido se deixarem de
haver Humanos e Terranos, isto é, quando se tratarem apenas de Terranos negociando seus
territórios, isto é, os seres e modos de existência de que dependem para melhor viver com/em
Gaia.
124
Trata-se, ele prossegue, de “uma guerra real, que rouba vidas, viola e assassina os
corpos” (ibidem, p. 32). Por essa razão, o filósofo assevera que um livro como A
queda do céu não se destina, como é o caso da diplomacia latouriana, a apenas
exortar a declaração da peleja há séculos dissimulada em modernização: ele é já
um ato de guerra, um movimento cosmopolítico investido de intenção,
alegadamente interessado em impedir o desabamento do céu e a devastação de seu
mundo, a terra-floresta (urihi a). Goddard lembra, nesse sentido, que “Kopenawa”
é um nome de guerra – Kopena designa os “espíritos agressivos dos marimbondos
alimentados do sangue de um grande guerreiro nos primeiros tempos” – que lhe
fora concedido pelos espíritos xapiri para nutri-lo da raiva necessária para
enfrentar os brancos (ibidem, p. 32-33). A “guerra pela ocupação, definição e
composição do mundo” (Latour, 2013a), assim, está em curso.
Os Terranos, como já anunciamos, serão objeto de uma análise mais
aprofundada no terceiro capítulo desta tese. Antes disso, porém, tracemos, a
125
2.2.2.
Humanos e seu mundo
2.2.2.1.
Povo da mercadoria
Como dissemos antes, importam as histórias por meio das quais contamos a
história do mundo; por isso, é importante saber de que mundo, e mundo de que
gente, a história do Antropoceno dá notícia. O Antropoceno conta de um povo
cujas atividades industriais intensivas impactaram de tal modo a superfície da
Terra a ponto de desestabilizar os processos biogeoquímicos dos quais depende a
existência de seus habitantes – mas que, apesar disso, segue agindo como se essa
dependência pudesse ser revertida em lucro, superada, ou mesmo negada. Tal
postura expressa diversos níveis de irresponsabilidade no enfrentamento do
problema: reconhecemos aí tanto os dirigentes dos governos, empresas e
indústrias mancomunados em projetos ambientalmente indecorosos e
economicamente lucrativos,169 quanto os entusiastas da suposta efetividade das
soluções tecnológicas mas também, sem dúvida, os negacionistas do clima.170
169
Para citar apenas alguns: a exploração de petróleo e gás, onshore e offshore, com destaque para
uma das técnicas mais “aclamadas” do momento, a fratura hidráulica (fracking); exploração de
minérios, industrial ou por garimpagem; as monoculturas agrícolas e a pecuária industrial,
comumente chamadas de “agronegócio”, cuja produção envolve mecanização excessiva, uso
indiscriminado de pesticidas e fertilizantes que degradam o solo e a diversidade biológica local (no
caso dos animais de criação, há ainda a questão das condições deploráveis em que vivem e com
que são abatidos); construção e operação de megaprojetos geradores de energia em biomas de
grande biodiversidade; as indústrias madeireira, da pesca, de bens de produção, de bens de
consumo e de base etc.
170
Originalmente empregada para se referir àqueles que negam que o extermínio perpetrado pela
Alemanha nazista tenha de fato ocorrido, a expressão “negacionismo” diz respeito, no contexto
científico, à rejeição do consenso em torno das mudanças climáticas antropogênicas e ao esforço
deliberado para convencer a opinião pública de que o assunto é ainda permeado de controvérsias
quanto à sua real existência. Os negacionistas, encontrados aos borbotões nas indústrias
extrativistas e nos partidos políticos do mundo todo (mas sobretudo nos de direita, como é o caso
dos republicanos norteamericanos), não raro se autodenominam “céticos do clima”, numa tentativa
de evocar a suposta nobreza de sua atitude por uma aproximação ao ceticismo filosófico ou
mesmo à “incredulidade saudável” que faz os cientistas submeterem suas hipóteses aos mais
variados testes e verificações (Danowski, 2019). No entanto, o que o negacionismo efetivamente
expressa é o mais absoluto descaso para com o modo de proceder da ciência e a produção dos
126
Incluem-se ainda, de certa forma, todos os que, diante das evidências da situação,
se apegam à confiança cega de que ela não é tão grave assim ou de que tudo vai,
de uma forma ou de outra, se resolver. De todo modo, seja por incapacidade de
considerar a gravidade da questão, seja por intenção deliberada de explorar tudo o
que estiver ao alcance agora às expensas de restar um mundo criticamente
empobrecido, os Humanos constituem, definitivamente, um povo em guerra com
a Terra e seus seres, já que seu modo de existir torna progressivamente mais
escassas as possibilidades de reorganização dinâmica dos processos de
mundificação.
O conceito de Antropoceno, nesse sentido, mais que dizer respeito à suposta
“consumação inevitável de um destino que, desde a fantasmática aurora do Homo
sapiens, abarca todas as realizações humanas, independentemente de quaisquer
diferenças de natureza e escala”, exprime sobretudo a “potência cósmica
excepcionalmente entrópica” do modo de existir ocidental (Valentim, 2018a, p.
268-269). Como diz Marco Antônio Valentim, é a antropia,171 enquanto propulsor
dessa civilização, que coloniza a termodinâmica, fazendo da degradação o futuro
mais provável do planeta. Dessa forma, o que Valentim postula, a partir da
antropologia lévi-strausseana, para diferenciar os muitos modos de ocupar a Terra
pode ser assim glosado: enquanto sociedades “quentes” – que fazem das
“diferenciações entre castas e classes” o motor “para gerar devir e energia”, como
é o caso da civilização industrial – acionam uma filosofia “fria”, segundo a qual
os seres que povoam o cosmos são espremidos nas categorias demasiado
estanques de natureza ou cultura, as sociedades “frias” – cujo “meio interno está
próximo do zero de temperatura histórica”, como é o caso dos coletivos
172
Eis o trecho completo destacado por Valentim, em que Lévi-Strauss descreve as sociedades
frias: “Uma vida política fundada no consenso, e que só admite decisões tomadas em
unanimidade, parece ter sido concebida para excluir o emprego do motor da vida coletiva que
utiliza afastamentos diferenciais entre poder e oposição, maioria e minoria, exploradores e
explorados [...] essas sociedades que poderíamos chamar de “frias”, porque seu meio interno está
próximo do zero de temperatura histórica, se distinguem, por suas populações reduzidas e seu
modo mecânico de funcionamento, das sociedades “quentes”, surgidas em diversos pontos do
globo após a revolução neolítica, onde diferenciações entre castas e classes são constantemente
solicitadas para gerar devir e energia”. Também nas sociedades ocidentais, as ordens social e
natural sempre estiveram imbricadas, ao contrário do que supõem aqueles que, ainda hoje, se
acreditam modernos, sem contudo jamais tê-los sido...
128
entre pensamento e mundo, aventada pelos demais autores de que tratamos nas
seções anteriores, Valentim defende que “[t]odo e qualquer comportamento
subjetivo – ‘cada palavra trocada, cada linha impressa...’ – conspira, em maior ou
menor grau de intensidade, para a sustentação ou a queda do céu” (ibidem, p.
192).173 Nesse sentido, a catástrofe ambiental em curso é melhor compreendida
como um “conflito termodinâmico de mundos" (ibidem, p. 191), na medida em
que as diferentes maneiras de articular ontologia e ecologia determinam as
possibilidades de efetuação termodinâmica da realidade atual e futura. Ai
daqueles que só puderem contar com as alternativas infernais (Pignarre; Stengers,
2005; Stengers, 2009) facultadas pelo Antropoceno como únicas saídas à crise: o
recrudescimento da tecnocracia, a extravagância de projetos escusos de
geoengenharia climática, a “gestão da penúria” e a determinação descendente
daqueles a que, considerados “bocas inúteis”, não se deixará a opção de viver
(idem, 2017, p. 124-125), e assim por diante...
Qual seria, nesse sentido, a imagem do pensamento que caracteriza esse
modo de existência que globalizou a catástrofe ambiental enquanto acreditava
fazer do mundo sua própria extensão? Talvez Goddard tenha razão ao propor que
ela é profundamente devedora de uma obsessão por acumulação – a concepção de
“história” enquanto um colecionismo de fatos vividos e o desejo desenfreado pelo
entesouramento econômico sendo variações dessa mesma obstinação em acumular
tempos, espaços e seres – e do interesse excessivo por “si mesmo” que os faz
examinar apenas o próprio pensamento e ser o único objeto de seus sonhos,
espécie de xenofobia basilar dessa “ordem epistêmica monotípica perfeitamente
auto-referencial” (2017, p. 31) que é sua ontologia.174
Não seria, assim, por outra razão que esse “povo da mercadoria”
(Kopenawa; Albert, 2015, p. 407) não demonstra qualquer pudor em submeter
173
Ainda cf. Valentim: “Todo pensamento, inclusive o que se pretende mais ‘purificado’,
constitui, graças ao seu inalienável potencial termodinâmico, um determinado ambiente, isto é,
uma situação eco-cosmo-lógica, seja esta a ‘floresta de cristal’ ou um deserto vermelho” (2018, p.
192-193).
174
Tal afirmação de Goddard se faz baseada em diversas passagens de A queda do céu. Entre elas
estão: “[Os brancos d]ormem muito, mas só sonham com eles mesmos” (Kopenawa; Albert, 2015,
p. 390) e “[Os brancos...] ignoram tudo das coisas da floresta, pois não são capazes de realmente
vê-las” (ibidem, p. 455), “Os brancos [...] não param de fixar seu olhar sobre o desenho de suas
falas em peles de papel e de fazê-los circular entre eles. Desse modo, estudam apenas seu próprio
pensamento e, assim, só conhecem o que está dentro deles mesmos. [...] Por manterem a mente
cravada em seus próprios rastros, os brancos ignoram os dizeres distantes de outras gentes e
lugares” (Kopenawa; Albert, loc. cit.).
129
tudo aquilo que muito simplesmente caracteriza como “recursos” à rigidez de sua
ideia de humano (do qual o europeu seria o protótipo mais bem acabado) e o
mundo no qual ele pode prosperar: uma existência alicerçada em fósseis, sejam
aqueles que ele queima para sustentar e expandir suas liberdades (Chakrabarty,
2009, p. 208), sejam aqueles incessantemente produzidos por meio das “extrações
progressivas de corpos minerais, vegetais e animais, territórios humanos e assim
por diante” (Haraway, 2016, p. 46).175 O anthropos seria, assim, esse fazedor (ou
colecionador) de fósseis, que tem na exploração de incontáveis seres e na
aniquilação de outros mundos a expressão de sua ontologia na economia política,
a qual é muitas vezes referida por meio do termo “capitalismo”.
A crítica ao capitalismo que empreendemos nesta tese diz respeito
sobretudo ao modo de produção e reprodução que retira sua mais-valia da
incessante exploração de humanos e outros-que-humanos. O procedimento é
essencialmente o mesmo desde os primórdios da formação desse sistema de
organização social: separam-se os seres dos meios sociais, políticos, ecológicos e
cosmológicos em que se inseriam, destroem-se seus modos próprios de existir e se
relacionar com outros seres, desarticulam-se suas alianças constitutivas para
aprisioná-los à força em registros ontológicos demasiadamente restritos – os seres
cativos se tornam, com isso, meras crenças ou representações, meros sujeitos
primitivos ou meros recursos econômicos. É por meio dessa aniquilação física e
metafísica da diversidade ontológica que as elites políticas e econômicas
consolidam seu poder: acreditamos que tal procedimento é o que está por trás de
práticas como o racismo, o colonialismo, o imperialismo, o sexismo, o especismo,
o fundamentalismo religioso, o desenvolvimentismo, o industrialismo, o
neoliberalismo... Seguramente, esse tipo de exploração ganhou novo impulso com
a consolidação da atividade industrial movida a combustíveis fósseis, o que
evidencia que nossa crítica ao capitalismo não visa a simplesmente opor, como se
poderia concluir apressadamente, capitalismo a socialismo: como afirma Dipesh
Chakrabarty, mesmo uma sociedade mais justa, se fosse baseada no
industrialismo movido a combustíveis fósseis, nos conduziria a uma crise
ecológica (Chakrabarty, 2013; 2014); trata-se, mais propriamente, de
problematizar o que seria uma sociedade mais justa, se a noção de “justiça” se
175
No original, em inglês: “accelerating extractions of minerals, plant and animal flesh, human
homelands, and so on”.
130
176
Os cercamentos (enclosures, em inglês) tiveram início na Inglaterra no século XVI, quando a
nobreza passou a editar leis tornando possível a privatização das terras outrora de uso comum dos
camponeses para transformá-las em pastagem para as ovelhas que forneceriam algodão para a
indústria têxtil em expansão. Intensificaram-se no século XVIII e são apontados como um dos
fatores mais determinantes para a eclosão da Revolução Industrial.
177
Esses eventos, segundo Marx, teriam sido preponderantes para a liberação dos fluxos de
trabalho abstrato (camponeses sem terra) e de dinheiro (tornado um equivalente geral abstrato), de
cuja combinação o capitalismo surgiu (Marx, 2013). A esse respeito, cf. também Deleuze;
Guattari, 2011, p. 297-298.
178
Haraway defende que as origens da desordem ecológica atual remontam ao advento da
“agricultura escrava” (slave agriculture), com a “simplificação de longa distância das paisagens”
(long-distance simplification of landscapes) e o transporte de genomas de plantas e animais
reprodutores (incluindo pessoas) que ele determinou, e não apenas à exploração de combustíveis
fósseis. (Haraway et. al, 2016, p. 555-556).
131
179
Caso semelhante ao do trabalho reprodutivo e da atividade doméstica, que permitem a
produção e renovação da força de trabalho capitalista, mas que historicamente são considerados
um “não-trabalho”, algo feito por amor – situação denunciada por Silvia Federici no livro Caliban
and the Witch: Women, the Body and Primitive Accumulation (2004, New York: Autonomedia) e
outras autoras marxistas feministas desde a década de 1970.
180
Especificamente no Brasil, vide, por exemplo, o retrocesso em termos de preservação ambiental
que significou a revisão do Código Florestal, a velocidade com que os processos produtivos das
potências agroindustriais vêm destruindo os biomas continentais e marinhos, o aumento das
emissões de gases de efeito estufa derivadas do aumento no desmatamento, a flexibilização do
licenciamento ambiental para novas instalações e empreendimentos industriais, a aprovação da Lei
132
Para tratar desse problema antropológico, pode ser útil, uma vez mais,
recorrer a contra-antropologias. De fato, em A queda do céu, como vimos,
185
Calheiros esclarece que a cidade é concebida como o modo de vida primordial em relação ao
qual os Aikewara foram o primeiro povo a romper: ao assim procederem, instauraram uma
diferença que pôs o mundo em funcionamento e desencadeou outras possibilidades de existência,
assentadas “sobre a caça e o ritual” em lugar de sobre “a guerra e o canibalismo”. (Calheiros,
2014, p. 136-137). Mas o perigo não está conjurado definitivamente: toda sua organização
cosmopolítica se dá em torno da noção da fuga, o que decorre da percepção de que o maior risco é
se tornarem kamará – “essa gente cujo desejo mais íntimo era corromper/destruir não apenas o seu
próprio modo de vida [...], como qualquer espaço onde eles (ou outros semelhantes, outros
aikewara) possam atualizá-lo” e viverem “no desvio que o Inimigo traçou para os awa”, a cidade
(ibidem, p. 135-136). Falaremos mais da importância conceitual da ideia de fuga para os Aikewara
no capítulo 3.
186
É interessante destacar, aqui, a ressonância entre as formulações ameríndias do capitalismo
como feitiço e o título do livro escrito por Isabelle Stengers e Philippe Pignard, La sorcellerie
capitaliste (2005). Trataremos dessa possível aproximação na seção 3.2.2.
135
voz baixa e o mínimo possível; tudo isso porque sabem que o dinheiro “apodrece
seus corpos e torce seus pensamentos” (ibidem, p. 193). Por essa razão, os awa
precisam ser “como o vento que passa”, cujos vestígios no mundo se resumem a
“um ruído, um nome e nada mais” (ibidem, p. 156). Com sua morte, deve
desaparecer também tudo o que fora associado a seu “trabalho” e pelo qual ele
nutria erekó (ciúmes/querer-estar-junto), ideias que constituem uma cosmologia
voltada contra a acumulação e a herança.
2.2.2.2.
Política da barbárie
187
No original, em francês: “Si l’hypothèse est juste, tout cela participe au même phénomène : les
élites ont été si bien éclairées qu’elles ont décidé qu’il n’y aurait pas de vie future pour tout le
monde, qu’il fallait donc se débarrasser au plus vite de tous les fardeaux de la solidarité – c’est la
dérégulation ; qu’il fallait construire une sorte de forteresse dorée pour les quelques pour cent qui
allaient pouvoir s’en tirer – c’est l’explosion des inégalités ; et que pour dissimuler l’égoïsme
crasse d’une telle fuite hors du monde commun, il fallait absolument nier l’existence même de la
menace à l’origine de cette fuite éperdue – c’est la dénégation de la mutation climatique ».
137
Orleans em escala planetária –188 energia eólica e solar para os ricos, que talvez
possam até mesmo continuar utilizando seus carros graças aos biocombustíveis;
quanto aos outros...” (Stengers, 2015, p. 13). Nesse sentido, embora a autora fale
de uma “globalização das ameaças que se aproximam” (ibidem, p. 11) – já que,
em última instância, seremos todos afetados, de uma forma ou outra –, é evidente
que, ao menos num primeiro momento, a catástrofe não se fará sentir do mesmo
jeito entre pobres e ricos, com os primeiros possivelmente sendo abandonados à
própria míngua, enquanto os últimos se reconfortam em abrigos.
É por essa razão que, no tempo das catástrofes, as lutas sociais e políticas
“de antes”, contra as desigualdades provocadas pelo capitalismo, não devem ser
colocadas em segundo plano, como se não mais importassem; ao contrário, elas
precisam ser acrescidas deste novo componente de disputa, na medida em que os
confrontos a partir de agora se dão em meio a injustiças e opressões que se
consolidam progressivamente como o novo “normal”. Dito de outro modo,
embora os movimentos de resistência anticapitalista se voltem (muito
propriamente) contra “a perspectiva de crescimento, identificada com o progresso,
que se impõe como único horizonte concebível” (ibidem, p. 11) – perspectiva essa
que já caracterizaria uma situação de barbárie mesmo se não tivesse tido entre
suas consequências a entrada do planeta no Antropoceno –, a expressão “que se
aproxima”, que consta no título da obra de Stengers, 189 diz respeito à
“normalização” já em processo daquilo que, antes, tentava-se tratar como um
efeito colateral, mas ainda contornável, do regime capitalista; agora, contudo,
“aquilo que até então era definido como intolerável, quase impensável, está se
instalando em nossos hábitos. E ainda não vimos nada” (ibidem, p. 13). A
exemplo de Latour e de outros autores que se debruçam sobre o tema, Stengers
politiza a ecologia, reforçando a necessidade de desmascarar a pretensa
neutralidade com que a problemática da catástrofe ambiental é muitas vezes
188
Stengers se refere à catástrofe que acometeu a cidade de Nova Orleans em 2005, quando da
passagem do furacão Katrina. Dos mais de um milhão de pessoas evacuadas, “mais de 60% dos
desabrigados e alojados nos ginásios e outros espaços públicos em condições precárias eram
afrodescendentes de baixa renda. Estudos posteriores confirmam que as pessoas das classes mais
abastadas nesse mesmo momento já estavam fora do perímetro do local atingido, abrigadas em
residências secundárias fora da área de risco ou em hotéis” (cf. Pires, 2012).
189
“Resistir à barbárie que se aproxima” foi a tradução escolhida por Eloisa Araújo Ribeiro para
“Resister à barbarie qui vient”, subtítulo da obra de Stengers publicada em 2009 na França pela
editora La Découverte e em 2015 no Brasil pela Cosac Naify. É a versão ao português dessa obra
que se encontra referenciada nesta tese.
138
tratada e convocando à ação política para além das medidas propostas como
plausíveis pelos “nossos responsáveis” – expressão irônica por meio da qual a
autora chama os políticos e empresários que pretendem governar (gerir?) as
formas de existência no planeta. Tal necessidade se justifica porque, “[q]uanto aos
Estados, sabe-se que, num grande impulso de resignação entusiasta, renunciaram
aos meios que lhes teriam permitido assumir suas responsabilidades e deixaram o
futuro do planeta a cargo do livre mercado globalizado”. (ibidem, p. 19).
Diante da magnitude da ameaça à nossa frente, Stengers prefere falar em
“catástrofe” em lugar de “crise”: o fazer-se notar da Terra não é algo que vá
passar. Nesse sentido, pode ser oportuno mencionar um outro sentido da noção de
“crise”, tratado pelo Comitê Invisível no livro À nos amis – a saber, como sendo
um método político de gestão das populações. “Não estamos vivendo uma crise
do capitalismo, mas, ao contrário, o triunfo do capitalismo de crise. ‘A crise’
significa: o governo cresce” (2014, p. 25). Para esse coletivo, assim, a estratégia
capitalista parece se organizar em torno da necessidade de impedir, por meio da
manutenção de um estado de crise permanente que reforça a insegurança e o
individualismo e justifica uma série de intervenções supostamente estabilizantes,
a instauração de uma outra crise, a qual efetivamente poderia abalar a ordem
neoliberal. “Prática contra-insurrecional bem conhecida de ‘desestabilizar para
estabilizar’, que consiste em as autoridades suscitarem voluntariamente o caos a
fim de tornar a ordem mais desejável que a revolução” (ibidem, p. 24). Esse é
também o argumento de Naomi Klein no livro The Shock Doctrine: The Rise of
Disaster Capitalism (2007). Para a jornalista, os detentores do poder e seus
estrategistas se valem das catástrofes – sejam elas de ordem econômica,
ecológica, política ou social – para, aproveitando-se da fragilidade e do medo
desencadeados na população, impor medidas que visam sobretudo a gerar lucro
para os investidores. Isso é o que ela chama de “capitalismo de desastre”.
A barbárie que se aproxima, assim, parece conjugar três aspectos. O
primeiro seria uma modalidade de governo e controle social baseada no que a
autora chama de “gestão do pânico frio” – isto é, a tentativa de conciliar
mensagens contraditórias de exortação ao crescimento econômico e de
consciência ecológica, incitando ao mesmo tempo o desejo e a culpa pelo
consumo, única postura considerada factível pelos governantes no trato da questão
ecológica. O segundo aspecto é o das consequências desastrosas dessa forma de
139
190
A concepção de “barbárie” apresentada por Stengers, em certo sentido, faz ecoar a de Walter
Benjamin: a exploração e dominação de determinados seres vêm sendo legitimadas pelo Ocidente
como necessárias para o progresso humano, pensado como uma consequência histórica inevitável
do desenvolvimento técnico e científico. A diferença parece ser que, hoje, o discurso do
“progresso” que embalava esse positivismo se materializa sob a forma da chantagem econômica.
191
A respeito da tentativa da Exxon de forjar uma controvérsia a respeito da mudança climática,cf.
Agence France-Presse, 2017.
140
Está muito claro, assim, o que nos aguarda se nos ativermos a contar com os
dirigentes, empresários, especialistas tecnológicos e suas soluções pautadas
prioritariamente pela “razoabilidade econômica” e pelo “realismo político” para
fazer frente ao problema: a impossibilidade de resistir às consequências dessa
nefasta “ressonância de temporalidades das crises” econômica e ecológica, essa
“interação física entre sistemas (do capital e da Terra)” (Danowski; Viveiros de
Castro, 2017, p. 80). Mas se não faz sentido compor forças com o capitalismo
para encarar Gaia, como, então, podemos resistir?
2.3.
Acreditar no mundo
2.3.1.
O acontecimento da Terra
podemos subestimar. 192 Dos artigos científicos aos informes midiáticos, dos
conceitos filosóficos aos registros etnográficos, das manifestações artísticas às
inovações tecnológicas, virtualmente todos os discursos enfatizam o caráter de
novidade do qual a Terra parece ter se investido: o Antropoceno como nova época
geológica, a intrusão ou irrupção de Gaia (nos conceitos de Stengers e Latour,
respectivamente), a súbita aparição da Terra no palco da história, como diz
Maniglier, a nova era de que falam os quilombolas do Caetité...
Nesse sentido, consideramos que a Terra é um verdadeiro acontecimento, no
sentido deleuziano deste termo. Acontecimento é um conceito basilar na obra do
autor e do qual não pretendemos nos ocupar aqui com todas as suas possíveis
acepções e implicações, pelo bem da concisão. Mas podemos esclarecer que, de
um ponto de vista político, ele diz respeito à inesperada incidência, no horizonte
de nosso pensamento e ação, de novas perspectivas alumbrando faces do mundo
(outros seres, outras possibilidades de ser, ou mesmo de deixar de ser) que até
então julgávamos inexistentes, inexpressivas, irreais, desimportantes, e que
doravante se fazem presentes sob o modo de uma problemática, na medida em que
o aparato conceitual, simbólico e prático de que dispúnhamos antes de sua
aparição se mostra inoperante diante da súbita reconfiguração da ordem do mundo
por elas provocada. O acontecimento é aquilo que produz uma diferença de
intensidade que, ao incidir sobre os corpos, provoca uma alteração no estado de
coisas que também faz vacilar “a coerência ou o horizonte relativo de pensamento
no qual até então nos movíamos” (Zourabichvili, 2016, p. 51). O acontecimento
propicia, assim, o afloramento de um novo presente, a superveniência de um novo
problema, que nos força a pensar outramente:
O presente não dá conta de sua própria passagem; é preciso, portanto, que haja um
aspecto temporal mais profundo, um mecanismo que explique que o tempo passa.
Dizer que vivemos no presente não é suficiente. Sem dúvida, temos necessidade de
um presente para a ação, mas quando passa o presente que nos constitui, eis-nos
despojados do nosso poder de agir, aptos tão somente a uma pergunta
contemplativa: “O que se passou?”. A situação mudou, e bastaria, sem dúvida,
contrair um novo hábito para poder reagir novamente; mas, no intervalo, surgiu
algo mais profundo do que qualquer situação, pura cesura insistente, diferença
192
Como nota Latour: “Dessa vez, nós, os humanos, não estamos chocados por saber que a Terra
não ocupa mais o centro [do universo] e que ela gira sem objetivo ao redor do Sol; se estamos tão
profundamente chocados é porque, ao contrário, nos encontramos no centro de seu pequeno
universo, e porque estamos aprisionados em sua minúscula atmosfera local” (2015a, p. 108).
142
entre duas dimensões inconciliáveis do tempo que nos torna idiotas. 193 É o
acontecimento (ibidem, p. 102).
Assim, pensar a Terra, ou antes, pensar seus modos de existência sob a crise
ecológica como um acontecimento enseja ao menos dois grupos de considerações
complementares sobre as distintas dimensões do tempo mobilizadas por essa
crise, e que dizem respeito a diferentes maneiras, embora complementares, de
compreender a questão. A primeira dimensão é a do caráter irrevogável do novo
presente que ela instaura: como admite Latour, “a revolução já aconteceu... os
eventos com que temos que lidar não estão no futuro, mas em grande parte no
passado [...] o que quer que façamos, a ameaça permanecerá conosco por séculos,
ou milênios” (2013a). Tampouco se trata, como disse Stengers, de uma crise que
vai passar (2017, p. 120), já que, “[e]mbora tenha começado conosco, muito
provavelmente terminará sem nós: o Antropoceno só deverá dar lugar a uma outra
época geológica muito depois de termos desaparecido da face da Terra”
(Danowski; Viveiros de Castro, op. cit., p. 20).
Ainda dentro dessa mesma dimensão do presente, um outro paralelo pode
ser estabelecido. O acontecimento em Deleuze pode também ser descrito, como
propôs David Lapoujade (2014), como uma operação de “redistribuição das
potências” – já que se trata de um movimento que manifesta a pura mudança,
constituindo a condição de possibilidade para a aparição de novidades no mundo.
Nesse sentido, a intrusão de Gaia parece ser a expressão incontornável de que uma
redistribuição radical, e em escala planetária, está em curso: justamente porque
tantos de nós aderimos à “distribuição estranha” (Latour, 2015a, p. 114-115) das
potências de agir operada pelo esquema Natureza/cultura desde a modernidade,
recentemente incontáveis seres adquiriram, como resposta à colossal interferência
humana, potências inesperadas capazes de desestabilizar o equilíbrio de que
vínhamos desfrutando há milhares de anos no planeta.194
[C]ada elemento que nós pensávamos [...] fazer parte de um plano de fundo dos
ciclos majestosos da natureza, diante dos quais a história humana se encontrava
sempre desconectada, torna-se ativo e móvel graças à introdução de novos
personagens invisíveis capazes de inverter a ordem e a hierarquia dos agentes
193
“Idiotia” é outro conceito deleuziano – ou melhor, o “idiota” é um personagem conceitual – de
grande importância para o que proponho nesta tese. Trataremos dele na seção 3.1.1, no contexto da
análise da noção de “cosmopolítica”.
194
Talvez esse seja um dos sentidos mais prementes da ideia de Grande Aceleração: a “aceleração
descontrolada do tempo” (Danowski; Viveiros de Castro, op. cit., 23) ocasionada pelo imenso
impacto das atividades humanas nos processos ecológicos.
143
(ibidem, p. 125).
195
Cf. define Stengers, “Gaia é o nome de uma forma inédita, ou então esquecida, de
transcendência” (2015, p. 41).
196
Trataremos adiante da temporalidade própria do acontecimento, na qual ele pode ser contra-
efetuado.
197
Nas palavras de Deleuze: “Daí ‘ser digno daquilo que nos acontece’. O que quer que seja, seja
uma merda, seja uma catástrofe, seja uma grande felicidade, há pessoas que [...] são perpetuamente
indignas daquilo que lhes acontece. [...] Ser digno do que nos acontece é [...] não mediocrizar
nada, [...] é liberar no evento que se efetua em mim, ou que eu efetuo, [...] sua parte inefetuável”
(1980).
144
É diante desse grande fora que irrompe em nossas vidas – Gaia, a intrusa –
que precisamos aprender a responder, isto é, a pensar, ou ainda, a criar. O
acontecimento da Terra, assim, confere uma materialidade impressionante à
conclusão de Lapoujade sobre a filosofia de Deleuze (mesmo antes de sua
parceria com Guattari): ela seria uma filosofia da terra, que demanda
pensar tudo a partir dela [da terra], sobre ela, reconduzir tudo a uma relação com a
terra, desde que a terra, porém, se desterritorialize pelo pensamento tanto quanto o
pensamento pela terra. A terra se torna uma terra de e para o pensamento, o que
talvez se torne uma chance para a vida (Lapoujade, 2015, p. 46).
198
Na obra de Deleuze, mesmo antes de seu encontro com Guattari, o devir aparece como “uma
relação real, molecular e intensiva” (Viveiros de Castro, 2015, p. 184) por meio da qual seus
termos são arrancados das relações a que originalmente se identificavam e implicados num
movimento que os arrasta para uma zona de indeterminação ou indiscernibilidade na qual “não se
é mais um ser definido distinto dos outros seres” (Deleuze; Guattari, 2012, p. 21). Isto acontece
porque ali experimentam afetos que, passando ao largo da “ordem natural das espécies e suas
sínteses limitativas” (Viveiros de Castro, 2015, p. 187), tornam-nos, ao menos na duração do
instante desse movimento, outra coisa. O devir, assim, é da ordem da aliança, mas uma aliança
145
considerando também esse outro povo menor, o “povo de Gaia”. Pois, como lembra Viveiros de
Castro, “um povo é uma multiplicidade singular, que supõe outros povos, que habita uma terra
pluralmente povoada de povos” (2017, p. 4).
147
se torne ele mesmo outra coisa e possa escapar a sua agonia”, para os animais,
“para que o animal também se torne outra coisa” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 141-
142) – isto é, para que seus pleitos, seus modos próprios de existir sejam
vislumbrados, imaginados, considerados na composição do mundo comum. Por
fim, é o que faz também o filósofo: invocar um povo por vir e a terra que ele
ocupa, pois o pensamento corresponde à criação dos mundos em que as
multiplicidades exprimem suas pretensões, possuem um território, enfim, em que
sua existência é reconhecida. Existir como povo e descrever seu território, lembra
Latour, são uma única e mesma coisa (2017, p. 123). Esclarece-se, então, o
propósito que motiva a criação de conceitos como as Gaias de Latour e de
Stengers, o Chthuluceno de Haraway, a geontologia de Povinelli, ou a Terra-
equivocação de Maniglier, entre outros: são experimentos de invocação de uma
nova terra e um novo povo, ou de composições outras de mundo, que resistem aos
perigos que a desordem ecológica e as soluções tecno-mercadológicas para seu
enfrentamento encerram. “[Esses povos] têm em comum resistir, resistir à morte,
à servidão, ao intolerável, à vergonha, ao presente” (Deleuze; Guattari, 1992, p.
142).
Reconhecer os distintos mundos que existem ou podem existir; admitir os
mundos e seres que subsistem, insistem, resistem no mundo, equivale, assim, a
acreditar no mundo e em seu modo próprio divergente de existir. Evidencia-se,
assim, a relação direta entre a crença no mundo e o acontecimento, e entre mundo
e pensamento enquanto criação:
Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo
pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo
se de superfície ou volume reduzidos. [...] Necessita-se ao mesmo tempo de criação
e povo (Deleuze, 2013, p. 222).
200
Segundo nossa glosa da concepção benjaminiana de “tempo histórico”, “é na rememoração das
lutas e fracassos dos vencidos – empreendida no presente pelo materialista histórico – que o
contínuo de dominação pode ser interrompido e o passado pode ser redimido, abrindo as
possibilidades para a concretização, no presente, das reivindicações que não foram atendidas no
passado. A interrupção do tempo linear é, assim, comparada à chegada do Messias – não de um
Messias enviado dos céus, mas sim da “fraca força messiânica” de que cada geração dispõe para
redimir as gerações passadas e impedir que o inimigo vença mais uma vez” (Costa, A. C., 2014,
p. 7). As semelhanças entre os conceitos de tempo histórico em Benjamin e acontecimento em
Deleuze são notórias. No artigo citado apresentamos um esboço sobre a contribuição do
pensamento do primeiro para a questão da crise ecológica à luz da obra de Bruno Latour, embora
não tenhamos nele explicitado os paralelos que também podem ser feitos em relação à filosofia
deleuziana.
201
E ele não estava blefando. Em seu primeiro dia como presidente, Bolsonaro transferiu para o
Ministério da Agricultura, liderado por uma ruralista, a função de identificar, delimitar e demarcar
terras indígenas e quilombolas, tarefa que ficava a cargo da Funai e do Incra, respectivamente.
Passou também para esse mesmo ministério o Serviço Florestal Brasileiro, órgão responsável pela
recuperação e proteção florestal (G1, 2019a). Já no dia seguinte a essa mudança, antes mesmo dos
esperados ataques oficialmente sancionados aos direitos desses povos, a Terra Indígena Arara,
localizada no Pará, foi invadida por madeireiros. A tensão instalada no local sinaliza um conflito
iminente (Valente, 2019). Como previu Ruben Siqueira, da Comissão Pastoral da Terra, a respeito
150
Brasil como no mundo, e não apenas no que se refere à questão ambiental – vêm
se reduzindo drasticamente a alternativas altamente infernais, ditadas pelos
processos de aniquilação do mundo e de sua diversidade que Deleuze e Guattari
(sobretudo este último) chamam de capitalismo mundial integrado. Diante das
inúmeras e gigantescas ameaças que se amontoam no horizonte da provável
barbárie por vir, é preciso, portanto, confiar no povo por vir: isto é, na capacidade
de reconstrução do liame entre existência(s) e mundo, de maneira a fazer irromper
os possíveis, instaurar saídas que permitam escapar às alternativas infernais – ou
melhor, que as tornem inoperantes, na medida em que se “altera o mundo sem sair
dele, escavando, infiltrando-se nele de modo a que surjam novas ranhuras pelas
quais se mover” (Fausto, 2017, p. 156). Nesse sentido, talvez já possamos
“pressentir o advento” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 142) desse povo convocado
pelo acontecimento da Terra: são os Terranos de Latour, e seu grito já se faz ouvir
nos movimentos e experimentações variadas de novas modalidades de relação
com a Terra que vemos eclodir por toda parte. Podemos vislumbrá-lo nas
manifestações populares por compromissos ambientais efetivos, como a Marcha
do Clima (People’s Climate March, a qual deu origem ao Peoples Climate
Moviment), que ocorre em todo o mundo e cujo número de participantes alcança
os centenas de milhares e aumenta a cada ano. Também nas ações de
desobediência civil, ocupações territoriais e outras demonstrações de oposição a
megaprojetos econômicos e industriais, sobretudo no setor de óleo, gás e
mineração, mas também a megacentrais hidrelétricas – dentre os quais podemos
destacar as mobilizações contra a construção da usina de Belo Monte, os protestos
que uniram ativistas e indígenas contra a expansão do oleoduto Keystone que
atravessará o Canadá e os Estados Unidos, a instauração da zone à deffendre
(ZAD) na cidade de Notre-Dame-des-Landes com vistas a obstar a construção de
um aeroporto. Encontramos os Terranos, ainda, nos fenômenos recentes de
neocampesinato, com um sem-número de pessoas abandonando as cidades para se
instalar nos campos e experimentando modalidades de cultivo e ocupação da terra
que fomentam maiores complexidade das interações e diversidade multiespecífica
(agroecologia, agricultura orgânica, permacultura, criação de sistemas
das mudanças empreendidas por Bolsonaro: “Agora, ruralistas e mineradoras podem se sentir
legitimados para avançar sobre essas terras, mas os povos que as habitam não vão ceder” (Siqueira
apud G1, 2019b).
151
202
Seu lema é “We are not drowning. We are fighting”. Cf.: <https://350pacific.org/pacific-
climate-warriors/>.
152
zapatista.
A lista não se esgota aqui: há também, claro, os climatologistas e cientistas
do Sistema Terra, os acadêmicos, pesquisadores, filósofos, teóricos; mas também
os poetas, escritores, jornalistas, arquitetos, juristas, economistas, enfim, todos
que se veem afetados pelo acontecimento da intrusão de Gaia e cuja produção a
ela responde. Há também as ecofeministas e os que militam contra o racismo
ambiental, que demonstram a conexão possível entre as lutas pela diversidade dos
modos de existir com e na Terra. Há, em suma, tantos de nós em franco processo
de devir-Terrano. Contra o estado de exceção ontológico que caracteriza o modo
de vida dominante da civilização industrial, os Terranos resistimos e insistimos
em inventar novas maneiras de ocupar o mundo, encontrar novas Terras que
constituam saídas dentro da Terra, integrar novos povos para compor “os mundos
sob os fins que vêm, que resistem e resistirão a cada catástrofe” (Danowski,
2019). Tal tarefa se mostra absolutamente relevante para assegurar as perspectivas
divergentes por meio das quais a Terra mesma se expressa; pois, como vimos, são
os pontos de vista diversos que conformam mundos, são os próprios seres os
pontos de vista do mundo. Admitir o pluriverso é a condição inegociável para a
composição do “mundo comum”.
Em suma, diante do esgotamento político-epistemológico do qual a tímida
reação da sociedade no trato da catástrofe ecológica parece ser uma evidência, e
reconhecendo a degradação física e metafísica generalizada provocada pela
ofensiva modernizadora ocidental há uns bons séculos (da qual o neoliberalismo
de nossos tempos parece ser mais uma atualização), fazem-se necessárias novas
articulações entre cosmos e política, de modo a fabricar um comum que não seja
ele mesmo a continuação da barbárie, para falar como Isabelle Stengers (2009) –
ou a expressão de uma barbárie ainda maior que se aproxima. É preciso, assim,
acreditar no mundo; confiar que, mesmo diante dos maiores perigos (ou sobretudo
diante deles), nada pode impedir que reste um mundo. Pois, como lembra
Danowski,
[é] certo que tudo pode sempre piorar, ao infinito (como dizia o filósofo do
otimismo, Leibniz). Mas Leibniz também sabia que há fins dentro de fins, porque
há mundos dentro de mundos. No fundo, para nós, isso significa que nenhum
mundo é um Reino, e que nenhum Apocalipse é um fim absoluto. Não é isso que
significa também a frase que podia ser vista em um muro da universidade de
Nanterre, em Paris, durante as manifestações de 2016 contra a lei do Trabalho: “um
outro fim de mundo é possível”? (2019).
153
2.3.2.
Resistir, ato de criação
203
Ou, para falar como Michel Foucault, uma concepção das resistências como subprodutos das
relações de poder, “sua marca em negativo, formando, por oposição à dominação essencial, um
reverso inteiramente passivo” (1979, p. 91).
204
Ainda segundo Foucault, este é um outro aspecto da concepção corrente de “resistência”, em
que ela é pensada como “um lugar da grande Recusa – alma da revolta, foco de todas as rebeliões,
lei pura do revolucionário” (ibidem, p. 91). Veremos mais a esse respeito logo adiante.
154
205
Evidentemente, se o Estado “começa” como uma unidade abstrata, ele adquire concretude ao
coordenar fluxos e se tornar o modo de expressão das relações sociais em termos de dominação/
subordinação: “ele não deixa de ser artificial, mas devém concreto, ‘tende à concretização’, ao
mesmo tempo em que se subordina às forças dominantes” (Deleuze; Guattari, 2010, p. 293).
155
[O] Estado é desejo que passa da cabeça do déspota ao coração dos súditos, da lei
intelectual a todo o sistema físico que dela se desprende ou liberta. Desejo do
Estado, a mais fantástica máquina de repressão é ainda desejo, sujeito que deseja e
objeto de desejo. Desejo – é esta a operação que consiste sempre em reinsuflar o
Urstaat original no novo estado de coisas, em torná-lo tanto quanto possível
imanente ao novo sistema, interior a este (ibidem, p. 294).
2.3.2.1.
Multiplicidade e diferença
206
A preposição aqui tem simultaneamente os sentidos de “por meio de” e “por causa de”: é
através das diferenças nas relações sociais e também devido a elas que o poder vem se exercer.
157
para identificar, por exemplo, quais forças estão sendo alistadas sob determinado
discurso ou narrativa para reforçar e servir de suporte a determinada dominação;
dito de outro modo, tal perspectiva permite localizar os pontos de instabilidade
que jazem por trás do efeito de dispositivo de conjunto que faz crer na unidade,
imutabilidade e invencibilidade do poder, abrindo caminhos para novas
configurações possíveis de resistência.
Assim como Foucault, Chakrabarty vê na impossibilidade de subsunção
absoluta do conjunto das relações sociais às grandes narrativas universalistas a
fonte mesma da inesgotabilidade das possibilidades de resistência e recriação
destas mesmas relações. No artigo intitulado “Universalism and Belonging in the
Logic of Capital” (2000), o autor examina alguns textos de Marx para demonstrar
que a tensão entre universalismo e o que ele chama de “diferença histórica” nas
formas de pertencimento ao mundo está presente na própria ideia de capital, o que
confirma que o pretenso universalismo inerente a esse conceito não chega a
cumprir totalmente a promessa de subsumir todas as diferenças a ela mesma.
O historiador começa sua exposição afirmando que é por meio da noção de
trabalho abstrato – que consiste, muito simplificadamente, numa “indiferença em
relação a qualquer tipo específico de trabalho” (Marx apud Chakrabarty, 2000, p.
657) – que Marx pensa o modo capitalista de produção como capaz de “extrair de
povos e histórias tão diferentes [entre si] uma unidade comum e homogênea para
medir a atividade humana” (ibidem, p. 655, ligeiramente modificados). Tal
abstração, por sua vez, é produzida através dos processos disciplinares
capitalistas: “a divisão do trabalho nas fábricas, os códigos de conduta, a relação
entre homens e máquinas, a legislação estatal para guiar e orientar a vida nas
fábricas, o trabalho do supervisor [foreman]” (Chakrabarty, 2000, p. 660). Ao
reforçar os ideais de uniformidade, regularidade, ordem e economia, tais
processos sustentam a pretensão de que a atividade humana pode ser efetivamente
medida segundo um parâmetro homogêneo. Porém, se tanto esforço é envidado
nisso que Marx chama de despotismo do capital – essa maneira de organizar a
produção de modo a subjugar a liberdade e a vontade dos indivíduos –, é porque o
capitalista precisa o tempo todo lidar com a iminente insubordinação dos
trabalhadores, e isso não especificamente nos momentos históricos marcados
pelas grandes revoltas: donde se conclui que a possibilidade de resistência reside
na própria lógica do capital, justamente porque o trabalho que o capitalismo
159
207
Note-se aqui que Marx está empregando o termo “vida” para se referir à “vida humana”,
adotando uma perspectiva biologista um tanto imprecisa para realçar essa espécie de força que
articularia, no homem, “músculos, nervos e consciência/vontade”.
208
Cf. Marx: “O que o trabalhador troca com o capital é seu próprio trabalho (na troca, a
disponibilidade sobre ele); ele o aliena. O que ele recebe como preço é o valor dessa alienação.
[…] Ora, como é determinado o seu valor? Pelo trabalho objetivado que está contido em sua
mercadoria. Essa mercadoria existe em sua vitalidade. Para conservá-la de hoje para amanhã, […]
o trabalhador tem de consumir uma massa determinada de meios de subsistência, repor o sangue
consumido etc. […] O quantum de trabalho objetivado que está contido em sua vitalidade lhe foi
pago pelo capital. (2011 [1857-1858], p. 400:402).
209
O paradoxo do modo de produção capitalista, portanto, consistiria na impossibilidade de o
capital substituir o emprego de trabalho vivo no momento inicial do seu ciclo de auto-reprodução,
ao mesmo tempo em que deseja reduzir ao mínimo sua dependência desse trabalho (daí decorrem
os grandes e contínuos investimentos em ciência e inovação tecnológica). É este paradoxo mesmo
que, segundo Marx, criaria as condições necessárias para a eliminação do trabalho e dissolução do
sistema capitalista como forma dominante de produção (Marx, [1857-1858] 2011).
210
Ao citar a leitura que Chakrabarty faz de Marx, não fazemos apologia a uma suposta primazia
da vida no sentido biológico do termo, muito menos da consciência e da vontade, entendidas como
uma faculdade humana, como a menção às obras de Povinelli e De la Cadena na seção 2.1.2.2
pôde deixar claro. Entendemos “vida”, aqui, como seres e modos de existências variados, seguindo
a acepção ampla que os conceitos de geontologia e cosmopolítica permitem conceber.
160
211
Chamado também por vezes de “capital real”, “capital enquanto tal” ou “ser-para-si-mesmo do
capital”, termos tomados emprestados do vocabulário hegeliano.
161
Por essa razão, o universal constituído pela História 1, antes que expressar
uma totalidade unívoca, constitui uma categoria provisória [placeholder] que, por
mais que exerça um efeito de “universal”, é composta por diversas
particularidades históricas divergentes e não subsumidas nele. Ou seja, as
Histórias 2 “têm mais o que fazer”, dão conta de outros processos de
mundificação, para falar como Tsing, que excedem o narrado pela História 1.
Assim, o que a História 1 faz, na prática, é traduzir (e, por conseguinte, modificar)
determinadas práticas e relações humanas, integrando-as na lógica de um processo
específico – ou, novamente segundo Tsing, “o capitalismo é uma máquina de
tradução que produz capital a partir de todos os tipos de modos de vida, humanos
e não humanos” (2015a, p. 111). A título de ilustração, Chakrabarty menciona a
possibilidade de contar a história da Índia usando categorias marxistas (o que os
historiadores irão chamar de história da “transição ao capitalismo” deste país):
trata-se de traduzir naquelas categorias o acervo de pensamentos e práticas
existentes sobre como as relações se estabelecem na Índia, mas também de
modificar, por meio das categorias marxistas, a forma como esses mesmos
pensamentos e práticas são pensados. É a tradução, portanto, que cria o efeito de
universal; mas se nos ativermos às particularidades (ou equivocações, ou
divergências) que permeiam o processo, o que se evidencia é o caráter instável
desse universal.212 Não que a narrativa produzida por esse universal não tenha
valor; o problema é pensar os universais sem considerar as particularidades que os
estão constituindo o tempo todo. Como conclui o autor, “[…o] Outro do Capital
está constantemente vindo a ser – e constantemente se dissolvendo – no espaço
instável da tensão insolúvel que é criada enquanto a História 1 negocia
212
Essa conclusão é muito próxima da que chegamos quando tratamos da unicidade sem unidade
da Terra no capítulo 1.
162
2.3.2.2.
“Pois sem saída não podia viver”
213
Nunca é demais ressaltar que “vida”, ao menos nesta tese e na obra dos autores que lhe servem
de referência, não deve ser entendida em sua acepção biologista – a qual em si mesma já constitui
um cerceamento das possibilidades muitas de considerar quem vive e como vive –, mas sim como
o conjunto de forças que se combinam e divergem ao constituir os modos distintos de as coisas e
os seres existirem, de se expressarem, de permanecerem na existência e se extinguir – o que se
aplica tanto a seres considerados vivos segundo convenções biológicas como a seres tidos como
vivos segundo critérios outros. Essa não-filiação à bipartição entre orgânico e inorgânico poderia
ser ilustrada partindo do pensamento de diversos dos autores aqui mencionados; porém, para
permanecer no registro deleuziano e já introduzindo sua aliança com o pensamento de Nietzsche,
cito um trecho do livro Vontade de Potência, citado por Deleuze: “Admitir que existem
percepções no mundo inorgânico, e percepções de uma exatidão absoluta: é aí que reina a verdade!
Com o mundo orgânico começa a imprecisão e a aparência” (Nietzsche apud Deleuze, 2001, p.
68). Deleuze comenta esse trecho afirmando: há “um princípio nietzschiano segundo o qual existe
uma subjetividade do universo que, precisamente, já não é antropomórfica, mas cósmica” (ibidem,
p. 69).
163
Guattari fazem da obra de Franz Kafka, sobretudo a partir das palavras do ex-
macaco Pedro Vermelho, personagem do conto “Um relatório para uma
Academia”, que se torna humano para escapar do destino que o aguardava
enquanto símio capturado. “Eu não tinha saída, mas precisava arranjar uma, pois
sem ela não podia viver. [...N]a firma Hagenbeck o lugar dos macacos é de
encontro à parede do caixote – pois bem, por isso deixei de ser macaco”. Pedro
Vermelho prossegue:
Tenho medo que não compreendam direito o que entendo por saída. [...] Não me
refiro a esse grande sentimento de liberdade por todos os lados. [...] Não, liberdade
eu não queria. Apenas uma saída; à direita, à esquerda, para onde quer que fosse
(Kafka, 1994, p. 61).
e se relacionar. Por isso, a filosofia de forma alguma se presta a ser a base de uma
comunicação universal, de um
comércio agradável do espírito, que encontraria no conceito sua mercadoria
própria, ou antes seu valor de troca, do ponto de vista de uma sociabilidade
desinteressada, nutrida pela conversação democrática ocidental, capaz de
engendrar um consenso de opinião, e de fornecer uma ética para a comunicação,
como a arte lhe forneceria uma estética. [...] E é preciso muita inocência, ou
safadeza, a uma filosofia da comunicação que pretende restaurar a sociedade de
amigos ou mesmo de sábios, formando uma opinião universal como "consenso"
capaz de moralizar as nações, os Estados e o Mercado” (Deleuze; Guattari, 1992, p.
129; 139).215
215
Ainda a esse respeito, em uma conferência de 1987, Deleuze afirma categoricamente: “Em
outros termos, informar é fazer circular uma palavra de ordem. As declarações da polícia são
chamadas, a justo título, comunicados. Elas nos comunicam informações, nos dizem aquilo que
julgam que somos capazes ou devemos ou temos a obrigação de crer. Ou nem mesmo crer, mas
fazer como se acreditássemos. Não nos pedem para crer, mas para nos comportar como se
crêssemos. […] Isso é informação, isso é comunicação; à parte essas palavras de ordem e sua
transmissão, não existe comunicação. O que equivale a dizer que a informação é exatamente o
sistema do controle” (Deleuze, 1999 [1987]).
216
Ainda conforme Deleuze e Guattari: “Não nos falta comunicação, ao contrário, nós temos
comunicação demais, falta-nos criação. Falta-nos resistência ao presente. A criação de conceitos
faz apelo por si mesma a uma forma futura, invoca uma nova terra e um povo que não existe
ainda. A europeização não constitui um devir, constitui somente a história do capitalismo que
impede o devir dos povos sujeitados. A arte e a filosofia juntam-se neste ponto, a constituição de
uma terra e de um povo ausentes, como correlato da criação. [...] Esse povo e essa terra não serão
reencontrados em nossas democracias. As democracias são maiorias, mas um devir é por natureza
o que se subtrai sempre à maioria” (1992, p.139). Sobre o conceito de devir, cf. nota 198.
166
217
A autora afirma que “nos colocar no lugar dos nossos responsáveis” significa “nos deixarmos
infectar pela tolice que os capturou” (Stengers, 2015, p. 122).
168
Para concluir esta parte da tese, propomos um breve exame do percurso que
fizemos até aqui. No primeiro capítulo, tratamos de demonstrar a importância de
pensar a Terra (e a crise ecológica planetária) a partir das equivocações por meio
das quais sua unidade pode ser traçada, de maneira a fazer justiça à diversidade de
ontologias e modos de existir com quem convivemos nesta Terra. Para tanto, é
preciso admitir outras configurações de mundo que não só a moderna; ou, em
outras palavras, a de descolonizar a ideia que tradicionalmente fazemos do que é a
realidade.
É preciso, desse modo, perceber que a dominação da cosmologia moderna
que biparte o Mundo nas categorias natureza e cultura se fez/faz pela extirpação
das diferenças que constituem esse Mundo; que esse delírio de hegemonia tem
como preço a homogenia, operação da qual resultam existências empobrecidas,
nas quais inúmeros seres humanos e extra-humanos são enclausurados em
relações muito restritas, alheias a seus interesses e histórias próprios, impedidos
de existir segundo os preceitos dos mundos de que fazem parte. Em suma, por
meio do projeto de unificação do mundo empreendido pelo Ocidente, os seres são
tornados escravos de uma única história, e não seus colaboradores (Tsing, 2015a),
e o que resta disso é um mundo cada vez menos rico e diverso. Voltar-nos a
histórias que tratem de outras configurações do mundo, portanto, se faz mais que
necessário, tanto para conceber a Terra sob um registro não colonialista quanto
para ser capaz de aprender com outros povos modalidades distintas de cuidado e
convivência multiespecífica. Pois, como afirmam os organizadores do Colóquio
Internacional Os Mil Nomes de Gaia na versão em língua inglesa da justificativa
para a realização do evento:
Está mais do que na hora de dar espaço à perspectiva dos outros, de outros “nós”,
de todos aqueles humanos que habitam mundos nos quais “humano” e “mundo”
são distribuídos de maneiras radicalmente distintas. Em suma, agora se torna
essencial descobrir se “nós mesmos” somos realmente capazes de reconhecer a
legitimidade absoluta da presença desses outros “nós”, por exemplo, os povos
indígenas [e outros povos extra-modernos, tradicionais ou em vias de se constituir],
na discussão sobre o destino de um planeta comum – comum a “nós” todos,
incluindo os inúmeros coletivos não humanos com quem compartilhamos a Terra
(Danowski et. al., 2014, p. 4-5, com acréscimo meu).
169
Foi por essa razão que este segundo capítulo se organizou em tornou da
noção de resistência. Começamos abordando aquilo a que se resiste, em franca
consonância com o compromisso, assumido desde o capítulo anterior, de fazer
proliferar as equivocações que se expressam como “variedades de mundos e de
fins” (Danowski; Viveiros de Castro, 2017, p. 39). Por isso, tratamos do
Antropoceno, do estado de exceção ontológico reinante no mundo erigido em
torno do anthropos e da necessidade de fazer penetrar, nas narrativas sobre a nova
época geológica, outras histórias que façam justiça à diversidade de modos de
existir (e deixar de existir) da/na Terra. Na sequência, ocupamo-nos com aqueles
a quem se resiste: seguindo Latour em sua encenação da guerra dos mundos, nos
ativemos sobretudo aos Humanos, o Povo da Mercadoria, que não só jamais foi
moderno como também, julgando não ter ainda saído do Holoceno, ou empenhado
em fazer da nossa época o verdadeiro império do anthropos, não mede esforços
para submeter a ecologia à economia. Dessa operação, tal qual ocorre num
processo de refino, extraem os lucros que irão rechear seus bolsos (mas só alguns
bolsos), descartando como “externalidade” a degradação eco-ontológica com que
os demais existentes terão de se haver. Por fim, expusemos algumas ideias a
respeito do que significa resistir, fazer irromper mundos dentro do mundo,
suscitar acontecimentos produtores de uma nova terra e um novo povo em meio
aos quais haja espaço para alguma regeneração da diversidade eco-ontológica da
Terra. Nesse contexto, resistir adquire um sentido eminentemente positivo e ativo,
pois profundamente vinculado à inventividade e criação necessárias para liberar a
vida das forças que a aniquilam e aprisionam.
Resta-nos ainda falar dos Terranos, o povo vinculado à Terra e a ela
destinado – e, por isso, profundamente comprometido com a tarefa de renovar os
laços cosmopolíticos com os outros seres. Porque não se trata de um povo com
identidade definida, tentaremos juntar as pistas para sua composição através da
análise de alguns conceitos, práticas e narrativas que orientam as experimentações
tateantes daqueles que se ocupam em “aprender com a Terra, [...a viver] nesta
Terra, para esta Terra” (Danowski, 2019),218 inventando continuamente novas
maneiras de
cultivar [seus] alimentos, formar coletivos, estabelecer alianças com indivíduos e
povos os mais diversos (humanos e extra-humanos), ocupar e cultivar o espaço
218
Trata-se de uma paráfrase do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade (1928).
170
3
Cosmopolíticas terranas
cidadãos (2017, p. 5), para que atribuam sua existência não mais à terra sob seus
pés, mas a um poder transcendente sobre suas cabeças,219 para que a relação de
pertencimento se inverta – de pertencer à T(t)erra a dela pretender se apropriar.
De enfeitiçados pela T(t)erra, outra tradução possível para Earthbound, a
enfeitiçados pela mercadoria, presas da feitiçaria capitalista. O primeiro feitiço
liberta, pluraliza as modalidades de coexistência; o último, captor, as reduz a um
único modo de existir.
Nessa guerra de mundos e feitiçarias, a proteção ou antídoto à captura se faz
reconectando os laços rompidos com a T(t)erra e seus seres, reestabelecendo os
fluxos, fazendo das variadas maneiras de pertencer ao mundo saídas à barbárie a
que estão destinados os Humanos e sua Natureza. O coletivo dos Terranos, assim,
deve ser entendido como composto por esses outros modos de ocupar a Terra,
outras maneiras de distribuir as agências e potências, outras formas de constituir
territórios. Nesse sentido, propomos que seu modo de existência é melhor descrito
pela ideia de rexistência, mencionada por Viveiros de Castro no artigo “Os
involuntários da pátria – elogio do subdesenvolvimento” (2017). O neologismo é
um amálgama entre existência e resistência, mas poderíamos acrescentar
igualmente a insistência e a ressurgência – todos esses termos caracterizando a
relação dos povos indígenas com os brancos que os desejam aniquilar para se
apropriar de suas terras e subsumir os mundos aos quais aqueles pertencem. Se,
como dissemos na seção 2.3.2, resistir é, antes e acima de tudo, liberar a
existência das tentativas de aprisionamento a uma univocidade, então resistir é
também insistir na divergência, ou mesmo ressurgir de modo diverso para escapar
da subjugação à forma-Estado de pensar e agir. Por caminhos e influências
distintos aos de Viveiros de Castro, o antropólogo e artista colombiano Adolfo
Albán Achinte cunhou um conceito em muito similar ao desenvolvido pelo
brasileiro, apesar da grafia ligeiramente diferente:
Concebo a re-existência como os dispositivos que as comunidades [indígenas e
afrodescendentes] criam e desenvolvem para inventarem cotidianamente a vida e o
poder, e desta maneira confrontar a realidade estabelecida pelo projeto hegemônico
que desde [os tempos da] colônia até nossos dias tem inferiorizado, silenciado e
219
Mas a transcendência que o Estado opera não é nada perto da “transcendência máxima”
representada pela intrusão de Gaia, esta sim verdadeiramente implacável, como vimos na seção
2.3.1. No entanto, e mesmo que pareça paradoxal à primeira vista, só podemos defrontar essa
potência que nos ultrapassa procedendo de forma imanente: isto é, aprendendo a reconhecer os
seres com quem precisamos nos aliançar para existir, aqueles com quem conformamos territórios,
comunidades cosmopolíticas que estabelecem nosso vínculo com a Terra.
173
220
Até onde temos conhecimento, Viveiros de Castro não chegou a desenvolver com mais
precisão a noção de rexistência mencionada nesse artigo de 2017 e em algumas outras poucas
ocasiões. Por sua vez, a ideia de re-existência de Albán Achinte nos parece figurar mais como uma
forma de nomear os dispositivos de enfrentamento ao projeto modernizador do que efetivamente
como um conceito filosófico; de modo que não dispomos de muitos elementos para fazer uma
comparação justa e adequada entre os dois conceitos. Por isso, limitamo-nos a afirmar que, em
termos gerais, ambas as noções dizem respeito à capacidade dos povos extra-modernos de se
organizarem de forma cosmopoliticamente distinta em relação ao projeto hegemônico colonizador
que perdura até os dias de hoje. Nas menções futuras ao conceito, optamos por empregar a grafia
proposta por Viveiros de Castro apenas por uma questão de padronização, e porque se trata de um
autor a que vimos nos referindo com maior frequência nesta tese. A noção de rexistência/re-
existência parece ser evocada também nas recentes manifestações pelo clima e contra
megaprojetos econômicos poluidores: a frase "We exist, we resist, we rise" vem sendo lida (com
variações) em cartazes carregados em diversos protestos, como a marcha do clima de Nova York
em 2014 e as mobilizações contra a construção do oleoduto Dakota Access nos Estados Unidos,
em 2017 (falaremos adiante dessas manifestações).
221
Segundo Viveiros de Castro, a “descolonização do pensamento” trata de operar “uma dupla
descolonização: assumir o estatuto integral do pensamento alheio enquanto pensamento e
descolonizar o próprio pensamento. Deixar de ser o colonialista de si mesmo, subordinado às
ideias mestras, às ideias-chave de sujeito, autoridade, origem, verdade. A descolonização envolve
esse duplo movimento, o reconhecimento da descolonização histórica, sociopolítica do mundo, e
os efeitos que isso tem sobre a descolonização do pensamento” (2012b, p. 255).
174
3.1.
Sobre cosmos e políticas
– Ana Tsing
redefinem sem cessar seu contorno. Ao contrário, a política dos Humanos e de seu
projeto modernizador é na verdade, como argumenta Marisol de la Cadena, uma
tentativa de despolitizar a política, esvaziando-a de reais antagonismos:
O campo político como comumente o reconhecemos foi forjado não apenas pela
distinção entre amigos e inimigos entre humanos, mas também pela antitética
separação entre “Humanidade” e “Natureza”. Juntas, essas duas antíteses – entre
humanidade e natureza, entre humanos supostamente superiores e inferiores –
declararam a extinção gradual dos seres “outros-que-humanos” e dos mundos nos
quais eles existiam. O pluriverso, os mundos múltiplos [...] cruciais para a
possibilidade do político, desapareceram. Em seu lugar, um único mundo surgiu,
habitado por muitos povos (agora chamados de culturas) mais ou menos
distanciados de uma única “Natureza”. [...] A relação entre mundos se deu por
meio de um antagonismo silencioso, com o mundo Ocidental definindo como
história (e com “História”) seu papel soberbamente hegemônico enquanto
civilizador e, como consequência, aumentando seu poder de organizar a vida
homogênea que ele tanto lutou para expandir. A “Política” enquanto uma relação
de discordância entre mundos – como o “encontro dos heterogêneos”, nas palavras
de Rancière – desapareceu, ou raramente aconteceu (Cadena, 2010, p. 345-346,
grifos meus).
3.1.1.
Idiotia, a arte da hesitação
222
O livro é composto de sete volumes que foram primeiramente publicados pela Éditions La
Découverte (Paris, 1997) e depois republicados em dois volumes pela mesma editora. A referência
usada nesta pesquisa é a tradução da obra para o inglês, publicada em 2011 pela University of
Minnesota Press.
178
Desacelerar a urgência de tomar uma decisão requer ser capaz de hesitar diante
das conclusões que parecem ser evidentes e universais, fazer gaguejar as certezas
de que sabemos tudo o que achamos que sabemos a respeito de “nós” mesmos e
das práticas que nos definem. Isto porque, quando se trata de negociar problemas
que parecem globais, é sempre o “‘nosso’ conhecimento, os fatos produzidos por
‘nosso’ equipamento técnico, mas também os julgamentos associados com
‘nossas’ práticas que estão predominantemente no controle” (ibidem, p. 48).
“Fazer-se de idiota sempre foi uma função da filosofia”, afirmou Deleuze
certa feita (1980),223 sustentando que ir além do consensualmente estabelecido é
uma espécie de condição de possibilidade para a criação: segundo o autor, pensar
223
Em O que é a filosofia?, Deleuze e Guattari ressaltam que o idiota, enquanto personagem
conceitual, sofreu mutações ao longo do tempo. Assim, por exemplo, o idiota que eles veem em
Descartes não é o mesmo que Chestov viu na obra de Dostoiévski. Ao compará-los, os autores
concluem que “[o] antigo idiota queria evidências, às quais ele chegaria por si mesmo: nessa
expectativa, duvidaria de tudo, mesmo de 3 + 2 = 5; colocaria em dúvida todas as verdades da
Natureza. O novo idiota não quer, de maneira alguma, evidências, não se ‘resignará’ jamais a que
3 + 2 = 5, ele quer o absurdo — não se trata da mesma imagem do pensamento. O antigo idiota
queria o verdadeiro, mas o novo quer fazer do absurdo a mais alta potência do pensamento, isto é,
criar. O antigo idiota queria não prestar contas senão à razão, mas o novo idiota, mais próximo de
Jó que de Sócrates, quer que se lhe prestem contas de 'cada vítima da história', esses não são os
mesmos conceitos. Ele não aceitará jamais as verdades da História. O antigo idiota queria dar-se
conta, por si mesmo, do que era compreensível ou não, razoável ou não, perdido ou salvo, mas o
novo idiota quer que lhe devolvam o perdido, o incompreensível, o absurdo. Seguramente não é o
mesmo personagem, houve uma mutação. E, todavia, um fio tênue une os dois idiotas, como se
fosse necessário que o primeiro perdesse a razão para que o segundo reencontrasse o que o outro
tinha perdido a princípio, ganhando-a. Descartes na Rússia tornou-se louco?” (Deleuze; Guattari,
1992, p. 84-85). Por essa comparação, vemos que o conceito de idiota tomado emprestado por
Stengers se assemelha mais ao de Dostoiévski (ou a Bartleby, personagem do romance de Herman
Melville do qual Deleuze trata no artigo “Bartleby, ou a fórmula” [1997], e que a autora cita como
exemplo de atitude idiótica) que ao do filósofo francês.
179
224
Em “On modes and examples”, Viveiros de Castro lembra uma passagem de um artigo escrito
pelo também antropólogo Irving Hallowell que fornece um excelente exemplo de como a
180
hesitação opera na cosmopolítica. Para o povo Ojibwa, objeto de estudo de Hallowell, entes
materiais que consideramos inanimados, como pedras e conchas, assim como pessoas cuja
existência física não conseguimos ver, são referidos por categoria gramaticais empregadas para
designar seres “animados”. Perguntado pelo antropólogo se todas as pedras que viam ali então
eram vivas, um ancião respondeu: “Não! Mas algumas são”. Hallowell prossegue: “A hipótese que
se insinua para mim é que a alocação das pedras numa categoria gramatical “animada” [...] não
envolve uma teoria conscientemente formulada sobre a natureza das pedras. [Tal alocação] deixa
aberta uma porta que nossa orientação [teórica] fundada em solo dogmático mantém bem fechada.
Enquanto nós não esperamos que uma pedra manifeste propriedades animadas de qualquer tipo
sob nenhuma circunstância, os Ojibwa reconhecem a priori potencialidades para animação em
certas classes de objetos e sob certas circunstâncias. [...] Os Ojibwa em geral não percebem as
pedras como mais animadas do que nós percebemos. O teste crucial é a experiência. Há alguma
testemunha pessoal disponível? Em resposta a esta pergunta, podemos dizer que informantes
afirmaram que pedras foram vistas se movendo, que algumas manifestam outras propriedades
animadas, e [... que podem ser] representada[s] como um personagem vivo em sua mitologia”
(Hallowell apud Viveiros de Castro, 2019). A função da hesitação, nesse sentido, é deixar sempre
uma porta aberta para o cosmos.
181
definição “daquilo que é mais importante”, mas com a desaceleração sem a qual
não pode haver criação. [...] É preciso ousar dizer que o murmúrio do idiota
cósmico é indiferente ao argumento da urgência, como a qualquer outro. Ele não o
nega; apenas suspendeu os “e portanto...” de que nós, tão cheios de boa vontade,
tão empreendedores, sempre prontos para falar em nome de todos, somos os
mestres (Stengers, 2007, p. 67-68).
3.1.2.
Diplomacia: aprender a compor um coletivo
225
É de se notar a semelhança da concepção de “política” de Stengers e Rancière: como vimos na
citação de Marisol de la Cadena no início deste capítulo, o francês a define como “encontro de
heterogêneos". Não saberia dizer se tal aproximação é proposital ou mesmo se os autores estão
cientes dela.
226
É este também o sentido da convocação a “prestar atenção” ou a “reaprender a arte de ter
cuidado”, que Stengers enuncia em Au temps des catastrophes: contra a pretensa univocidade do
mundo forjado pelo poder, contra a paralisia suscitada pelo sentimento de inevitabilidade da
catástrofe que está por vir, contra a impotência que visa a reduzir nossas possibilidades de ação
política a uma escolha entre alternativas infernais, é preciso criar meios para pensar “de dentro”
das situações que nos concernem, de experimentar conexões entre elementos até então
desatrelados, de curto-circuitar os caminhos traçados pela razoabilidade do Estado e do capital,
como forma de tornar possíveis outras formas de agir, pensar e viver. A atenção e o cuidado como
manifestações da arte da heterogeneidade.
182
227
Stengers descreve o cosmopolitismo kantiano como um projeto político que pretendia
estabelecer a “paz perpétua” na qual cada um “se pensaria como membro com plenos direitos
[membre à parite entière] da sociedade civil mundial” – uma paz que seria definitiva e
“ecumênica” (Stengers, 2007, p. 49), já que faria as vezes de uma transcendência com o poder de
dirimir as divergências que impediriam a plena constituição e desenvolvimento dos indivíduos
(cujo modelo é o europeu civilizado, distinto do “selvagem” preso no “estado de natureza”)
enquanto sujeitos humanos.
228
Podemos comparar o delírio de conversibilidade irrestrita expresso pelo cosmopolitismo
kantiano com a leitura que Deleuze e Guattari fazem, partindo de Marx, do capitalismo enquanto
“axiomática geral”. Tratamos desta visão sobre o projeto de conversibilidade universal capitalista
no artigo “Desaxiomatizar a natureza, tarefa da ecologia política”, do qual destaco o seguinte
trecho: “segundo os autores, [...] ‘o capitalismo se forma quando o fluxo de riqueza não
qualificado encontra o fluxo de trabalho não qualificado e se conjuga com ele’, acrescentando: ‘É
o mesmo que dizer que o capitalismo se forma com uma axiomática geral dos fluxos
descodificados’. O termo ‘axiomática’, tomado emprestado do domínio das ciências, é empregado
para destacar que, no capitalismo, o capital funciona como um mecanismo de produção de uma
equivalência geral que permite aferir e comparar o ‘valor’ de objetos e relações pertencentes
originalmente a campos distintos. Ele é, portanto, um modelo lógico abstrato (o do mercado
capitalista) por meio do qual os fluxos heterogêneos que compõem o tecido social são ‘reduzidos à
sua referência ao capital, ou seja, são descodificados – compreendidos fora de seu código
particular’ – para serem conjugados sob um sistema de comparabilidade valorativa” (Costa, 2017,
p. 146-147, ligeiramente modificado). Vemos, assim, que o cosmopolitismo, enquanto projeto
político de instauração de uma “liga dos povos” que, “após muitas revoluções transformadoras,
virá por fim a realizar o que a Natureza apresenta como propósito supremo: um estado de
cidadania mundial como o seio em que se desenvolverão todas as disposições originárias do
gênero humano” (Kant, s./d., p. 12; 17), denota uma subjetividade que guarda grandes
semelhanças com a expressa pelo capitalismo.
183
229
Aqui, pode ser interessante comparar a função que Stengers estabelece para o prefixo “cosmos”
com a maneira como o antropólogo Ghassan Hage pensa sua própria disciplina de atuação.
Segundo Hage, a antropologia procederia de maneira análoga ao ato xamânico, na medida em que
seu objetivo é “induzir uma presença obsedante (haunting)”, fazendo-nos sentir assombrados
(haunted) a cada momento de nossas vidas pelo que poderíamos ser, mas que não somos” (Hage
apud Viveiros de Castro, 2012a, p. 155). A inspiração deste tipo de prática antropológica,
endossada também por interlocutores próximos a Stengers, como Latour e Viveiros de Castro, é
patente.
230
Vale lembrar que o conceito de “diplomacia” stengeriano não coincide exatamente com o
proposto por Latour em diversas obras, notadamente a partir de War of the Worlds (2002) e, mais
recentemente, em Enquête sur les modes d’existence (2013) e Face à Gaïa (2015a), embora alguns
aspectos de uma noção ecoem na outra. Quando se oferece como diplomata para negociar a
composição do mundo comum, Latour claramente espera alcançar um acordo de paz que ponha
fim à guerra dos mundos – ele se coloca como um mediador nessa negociação, com vistas a
estabelecer uma civilização por vir, aterrissada em Gaia. Diversamente, para Stengers a
diplomacia parece dizer respeito a um movimento anterior à decisão: o mais importante na
composição do mundo comum seria a proliferação das divergências, proliferação essencial para
184
que as decisões sobre uma questão sejam tomadas diante os demais envolvidos, e não motivadas
por interesses previamente estabelecidos.
231
Sobre o emprego do artigo feminino, cf. nota 50.
232
No mesmo capítulo, a autora distingue dois tipos de diplomatas: a pesquisadora, que, após o
encontro com o outro coletivo, retorna a seu grupo para reportar o que aprendeu; e a diplomata
técnica, que se dispõe a mediar um possível acordo entre os coletivos. É a este último tipo que
Stengers se refere quando, em textos subsequentes, menciona apenas o papel da “diplomata” (cf.
Stengers, 2011, p. 383-385).
185
Para situar esses conceitos no contexto desta pesquisa, podemos dizer que a
cosmopolítica, enquanto modalidade que desejamos privilegiar para pensar a
política no Antropoceno, demanda a capacidade de resistir às soluções que nos
encurralam entre o capitalismo e a destruição inexorável da Terra, de não se
deixar contagiar pelo sentimento de impotência dos que não creem no mundo, de
fazer irromper nele novos mundos, novos povos, novas maneiras de ocupar a
Terra. Se pensar é criar (e, por meio dessa criação, resistir), a cosmopolítica faz as
vezes de uma espécie de plano de imanência234 instaurado pelo ato de pensar:
233
Ainda segundo Stengers: “Obviamente, as demandas podem então parecer incomensuráveis – a
necessidade de algum tipo de árbitro então será reivindicada. Mas não há nada de definitivo na
incomensurabilidade; ela simplesmente marca a necessidade, não de se identificar com
formulações iniciais, mas sim de transformar as demandas de alguém em vetores que habilitam
este alguém a aprender e conectar. Eu gosto do termo ‘divergências’, como empregado por
Deleuze, que escreveu que apenas linhas divergentes se comunicam (comunicação, aqui, tem o
sentido de criação, não redundância). Mas divergir não é divergir ‘de alguma coisa’. Designa o que
importa para você, e como importa (no sentido positivo), e portanto permite a constituição de
alianças simbióticas, sempre laterais, nunca enraizados em um “mesmo” que as transcenderia ou
reconciliaria” (idem, 2013, p. 174).
234
Agradeço ao amigo Rafael Saldanha pela perspicácia de reconhecer, e me sugerir como
organização conceitual a partir do pensamento de Deleuze e Guattari, que a “cosmopolítica”
186
236
Cf. Davi Kopenawa: “[...P]ara que minhas palavras sejam ouvidas longe da floresta, fiz com
que fossem desenhadas nas línguas dos brancos” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 76, grifo meu). E
também: “Gostaria que, após tê-las compreendido, [os brancos] dissessem a si mesmos: ‘Os
Yanomami são gente diferente de nós, e no entanto suas palavras são retas e claras. Agora
entendemos o que eles pensam. São palavras verdadeiras! [...]’” (ibidem, p. 64).
237
Cf. Deleuze: “O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles não há
obra. Podem ser pessoas [...], mas também coisas, plantas, até animais [...]. Fictícios ou reais,
188
animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores. [...] Eu preciso de meus
intercessores para me exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem mim: sempre se trabalha em
vários, mesmo quando isso não se vê. [...S]e falar sozinho, mesmo inventando ficções,
forçosamente terá um discurso de intelectual, não poderá escapar ao ‘discurso do senhor ou do
colonizador’, um discurso preestabelecido. O que é preciso é pegar alguém que esteja ‘fabulando’
[...]. Pegar as pessoas em flagrante delito de fabular é captar o movimento de constituição de um
povo. Os povos não preexistem. [...] Não existe povo que não se constitua assim” (Deleuze, 2013,
pp. 160-161). A necessidade dos intercessores para o processo (cosmopolítico) de criação e
renovação do mundo fica explícita também na filosofia yanomami, conforme Davi Kopenawa e
Bruce Albert contam em A queda do céu: “Para nós, a política [...s]ão as palavras de Omama e dos
xapiri que ele nos deixou. São as palavras que escutamos no tempo dos sonhos e que preferimos,
pois são nossas mesmo” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 390); e “Defendo a floresta porque a
conheço, graças ao poder da yãkoana. Seu espírito, Urihinari, e o de Omama só são visíveis aos
olhos dos xamãs. São suas palavras que dou a ouvir agora. Não são coisas que vêm só do meu
pensamento” (ibidem, p. 391).
238
Nesse sentido, a contestação que é feita com alguma frequência à noção de “Parlamento das
Coisas” de Latour – que pode ser sintetizada na formulação “se há a necessidade de humanos
representando as coisas, não se trata de um parlamento das coisas” – se mostra uma falsa questão;
pois o que se reivindica através de contestações desse gênero é uma suposta simetria de condições
de participação na política, como se o mais importasse fosse a capacidade de representar a si
mesmo, sem intermediários. Ora, por mais que as coisas ou fenômenos não precisem dos homens
para agir e se expressar, em determinadas situações se faz necessário trazê-los para a arena
política, buscar entender como e por que agem, trata-los como agentes políticos dignos de
consideração e cuidado; essas são ocasiões em que os humanos servem de intercessores para esses
outros se exprimirem, intercessão que termina por estabelecer um vínculo (cosmo)político que
também aos humanos modifica, fazendo-os agir e pensar de modo distinto. Como explica Latour,
numa afirmação que, a nosso ver, situa o Parlamento das coisas no âmbito da questão ecológica:
“É evidente que não há outra política [ao menos entre os povos ditos modernos] que não a dos
humanos e em seu benefício! Isso nunca esteve em questão. [...] O que o Novo Regime Climático
coloca em questão não é o lugar central do humano, mas sua composição, sua presença, sua
figuração, em suma, sua destinação. Se você modifica essas [características], altera também a
definição dos interesses [desse humano]” (2017, p. 109, com acréscimos meus).
189
239
Este parágrafo e o anterior reproduzem, com modificações, trechos de meu artigo “Ecologia e
resistência no rastro do voo da bruxa: a cosmopolítica como exercício de filosofia especulativa”
(2017).
190
pensar”, Stengers pôde, por exemplo, mesmo como “filha da filosofia” – esta
prática cuja tradição se constituiu historicamente desqualificando outras formas de
agir no mundo, como no exemplo da magia –, fazer das bruxas, passadas e atuais,
suas intercessoras; traçar sua relação com a filosofia a partir dessas poderosas
presenças que insistem e honrar sua contribuição imprescindível ao que pôde ser
criado neste encontro. Nas palavras da autora, “eu não poderia pertencer [à
filosofia] sem pensar na presença dessas mulheres; não de mulheres fracas ou
injustamente excluídas, mas mulheres de cujo poder os filósofos podem ter tido
medo” (idem, 2005, p. 196).
3.2.
Terranos e seus mundos
almejado por Haraway ao escrever seu Staying with the trouble: em suas palavras,
“a questão do livro é o que pensar pode significar na civilização em que nos
encontramos” (Haraway, 2016, p. 130).
Os conceitos que extraímos das experiências de resistência cosmopolítica
examinadas a seguir se encontram organizados em cinco pares, a partir dos quais
pensamos cinco “eixos de resistência”: o sonho e a fabulação como formas de se
contrapor às histórias centradas na ideia de uma suposta autopoiesis do Homem,
que legitimam a aniquilação eco-ontológica em curso; o humor e a precaução
contra a captura das possibilidades de agir no mundo empreendida pelos
“especialistas”, que, com sua seriedade, se presumem os detentores legítimos do
saber e do fazer; a construção de fugas e refúgios contra a homogeneidade do
progresso capitalista; as experimentações e as práticas de reclaim contra a
escravização da vida e das temporalidades pretendida pelo modo de existência
dominante; e, por fim, o par insubmissão e obstrução, para desestabilizar ou
reduzir o alcance do controle exercido pelo capital e pelo Estado. Cada um dos
conceitos pode dizer respeito a mais de uma experiência/movimento de resistência
cosmopolítica; pode até mesmo designar práticas de ontologias distintas. Além
disso, sua categorização em um “eixo” não implica sua desconexão com os
demais grupos; ao contrário, podemos passar de uns aos outros sem grandes
percalços. O modo de elencá-los, assim, consistiu apenas numa tentativa de
organização, por meio da qual buscamos destacar determinadas características em
detrimento de outras, o que não impede que haja ressonâncias entre os conceitos
apresentados no decorrer do capítulo.
3.2.1.
O pensamento que sai em visita: sonho e fabulação contra o
antropocentrismo
esquecimento. Esta última não apenas porque os napë precisam desenhar palavras
para se lembrar do que dizem seus grandes homens, mas também porque sua
concepção de conhecimento é essencialmente narcisista e antropocêntrica – já
que, com os olhos pousados nos “desenhos de suas falas colados em peles de
papel” (os livros, que para esse povo são uns dos signos que atestam sua cultura e
civilização), “estudam apenas seu próprio pensamento e, assim, só conhecem o
que já está dentro deles mesmos” (Kopenawa; Albert, op. cit., p. 455). Eis o
paradoxo da epistemologia ocidental, do ponto de vista de Kopenawa e Albert: os
brancos acreditam tudo saber, enquanto suas mentes permanecem “cravadas em
seus próprios rastros” (ibidem, p. 455); pensam deter o conhecimento verdadeiro
sobre o mundo, mas nunca chegaram a ver e ouvir os seres que o habitam; seu
modo de lembrar é cheio de esquecimento, incapazes que são de considerar os
laços cosmopolíticos que tecem e sustentam a existência.
Os brancos, com suas mentes fincadas na mercadoria, [...c]ontinuam a estragar a
terra em todos os lugares onde vivem [...] Nunca passa pela cabeça deles que se a
maltratarem demais, ela vai acabar revertendo ao caos. Seu pensamento está cheio
de esquecimento e vertigem. Por isso eles não têm medo de nada e acham que
estão a salvo de tudo (ibidem, p. 436).
Vimos também que essa paixão narcísica alimenta o forte viés colonialista
que se expressa no pensamento e na prática políticos e econômicos dos brancos,
na medida em que seu modo de conhecer, existir e se reproduzir enquanto povo
implica a aniquilação da diversidade geontológica do mundo. Aquilo que os
brancos chamam de história e civilização, os feitos de que tanto se orgulham, têm
significado para tantos outros povos e seres a destruição de suas vidas, de suas
práticas epistemoló-gicas, sociais, cosmopolíticas; de suas maneiras próprias de
ocupar a Terra, de seus vínculos com ela. Nesse sentido, o diagnóstico de
Kopenawa parece ecoar a máxima benjaminiana de que “[n]unca houve um
monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie”
(Benjamin, 1987, p. 225): 240 tendo compreendido bem a lógica que move o
pensamento ocidental, Kopenawa se pergunta, perplexo diante dos artefatos
outrora pertencentes a povos ameríndios e exibidos num museu em Paris, se o
interesse dos brancos pelos objetos dos Yanomami (mas também pela riqueza
240
Ou ainda, como Deleuze sintetiza numa passagem de seu livro dedicado à filosofia de
Nietzsche: “Toda a violência da cultura nos é apresentada pela história como a propriedade
legítima dos povos, dos Estados e das Igrejas, como a manifestação da sua força” (Deleuze, 2001,
p. 208).
194
enterrada em sua floresta) já não seria um sinal de que seu povo, também, está
começando a desaparecer (Kopenawa; Albert, op. cit., p. 429)...
Antigamente, toda a terra do Brasil era ocupada por povos como o nosso. Hoje,
está quase vazia de nossa gente e o mesmo acontece no mundo inteiro. Quase todos
os povos da floresta desapareceram. Os que ainda existem, aqui e ali, são apenas o
resto dos muitos que os brancos mataram antigamente para roubar suas terras.
Depois, com a testa ainda cheia da gordura desses mortos, esses mesmos brancos
se apaixonaram pelos objetos cujos donos tinham matado como se fossem
inimigos! E desde então, guardam-nos fechados no vidro de seus museus, para
mostrar a seus filhos o que resta daqueles que seus antigos fizeram morrer! Mas
essas crianças, quando crescerem, vão acabar perguntando para seus pais: “Hou!
Esses objetos são muito bonitos, mas por que vocês destruíram seus donos?”.
Então, eles só poderão responder: “Ma! Se essa gente ainda estivesse viva,
estaríamos pobres! Estavam atrapalhando! Se não tivéssemos tomado sua floresta,
não teríamos ouro!”. Porém, apesar de tudo isso, os brancos não se incomodam
nem um pouco em exibir os despojos daqueles que mataram! Nós nunca faríamos
uma coisa dessas! (ibidem, pp. 428-429).
amplamente abordada, sob ângulos distintos, ao longo desta tese. Já tratamos por
exemplo da conexão, bastante reveladora do modo de existência ocidental, entre
epistemologia e colonização (no seu sentido largo de subjugação), por meio da
qual certas filosofias se vinculam inexoravelmente a atividades devastadoras
como o garimpo; do quanto o conceito de sujeito se mostra profundamente atado
às práticas e instituições capitalistas; e em que medida a confiança dos Humanos
em possuir exclusivamente o conhecimento sobre a composição do mundo vem
custando a aniquilação deste mesmo mundo e da diversidade que o povoa.241
Vimos também o quanto pensar conforme os consensos estabelecidos serve à
legitimação do projeto ontológico-político daqueles que se passam por nossos
responsáveis, os quais, apelando para uma suposta realidade inelutável e
solicitando que sejamos “razoáveis” em nossas reivindicações, alimentam o
sentimento de impotência que sustém a descrença no mundo para garantir seu
quinhão em meio a uma existência empobrecida. 242 Ainda, e com o mesmo
sentido, falamos da importância de fazer proliferar histórias que não façam do
Homem o centro gravitacional da existência, que atentem para os arranjos
multiespecíficos e as alianças “contra-natureza”, que deem conta da participação
dos seres ctônicos, inorgânicos, invisíveis, sobrenaturais na composição do
mundo; em suma, que permitam a intrusão de outros modos de existência nas
narrativas modernas tão saturadas de antropocentrismo e mononaturalismo, de
forma a fazer jus à diversidade geontológica da Terra.243
Diametralmente, a concepção que os Yanomami têm de pensamento,
educação, conhecimento e política são profundamente marcadas pela
heteronomia: as palavras transmitidas pelos xapiri “penetram em [seu]
pensamento com a yãkoana e o sonho”, numa aprendizagem que prescinde de
livros e escolas. É pelo canto dos xamãs, que fazem dançar as imagens dos seres
da floresta, pelos “discursos hereamuu de [seus] grandes homens, os diálogos
wayamuu e yãimuu de suas festas” que sua história é repassada, passando a
habitar o fundo de seu pensamento. As palavras dos espíritos são sua “lei e
governo” (Kopenawa; Albert, op. cit., pp. 390-391), fonte de verdadeiro
conhecimento sobre a floresta e da motivação para defendê-la – não são como as
241
Cf. especialmente as seções 2.2.1 e 2.2.2.1 acima.
242
Cf. seções 2.3.1 e 2.3.2.
243
Cf. sobretudo seções 1.2 e 2.1.
196
246
A esse respeito, Kopenawa diz: “Quando dormem, [os brancos] só veem no sonho o que os
cerca durante o dia. Eles não sabem sonhar de verdade, pois os espíritos não levam sua imagem
durante o sonho. Nós, xamãs, ao contrário, somos capazes de sonhar muito longe” (Kopenawa;
Albert, 2015, p. 460).
247
Albert explica que tal expressão se refere “aos estados de alteração de consciência provocados
pelos alucinógenos e pelo sonho (mas também pela dor e pela doença), durante os quais a imagem
corpórea/essência vital (utupë) se vê deslocada e/ou afetada. No caso, o fantasma (pore), que cada
vivente traz em si enquanto componente da pessoa, assume o comando psíquico em detrimento da
consciência (pihi). ‘Tornar-se outro’ (literalmente ‘assumir valor de outro’) refere-se
primeiramente a esse processo” (Kopenawa; Albert, op. cit., p. 615).
248
Sobre o conceito de devir, ver nota 198.
249
Segundo Deleuze e Guattari, trata-se de uma “zona objetiva de indeterminação ou de
incerteza”, na qual é impossível precisar a fronteira entre um termo e outro da relação, na medida
em que nela se dão “núpcias anti-natureza fora do corpo programado” (2012, p. 68).
198
enumeram as virtudes adquiridas por meio dessa aliança cósmica, as quais lhes
permitirão resistir às investidas (neo)colonizadoras e defender sua terra.250 Nesse
sentido, os Yanomami parecem estar muito melhor preparados que os modernos
para enfrentar a ameaça da queda do céu: como aponta Latour, em face da
devastação ecológica, os brancos se encontram suspensos entre a esperança e o
desespero porque seu futuro (avenir) não é prenhe de possibilidades de devir
(devenir) (Latour, 2015a, p. 313), de fazer novos mundos no mundo, de fazer
mundos com o mundo.
Como prova de sua capacidade de tornar o mundo uma “reserva de relações
inéditas” (Zourabichvili, 2016, p. 97), 251 tudo (ou virtualmente tudo) que os
Yanomami possuem ou podem possuir, bem como tudo que são ou podem se
tornar, depende de uma negociação, ou diplomacia, cosmopolítica. O caráter
iminentemente instável das relações de composição do mundo – a possibilidade
de reversão ao caos está sempre à espreita, pois é um dos desdobramentos
possíveis do “perpétuo desequilíbrio” que caracteriza sua ontologia –252 demanda
uma incessante mobiliza-ção do cosmos, envolvendo seres das mais variadas
estirpes (humanos e extra-humanos, aí incluídos os espíritos), com vistas a manter
a configuração atual da terra-floresta e o potencial criativo da existência como um
todo. A respeito do recurso ao xamanismo para a intervenção nas forças do
cosmos, Albert explica:
Legado de Omamë, o xamanismo é um ver-saber estratégico para a contenção dos
poderes entrópicos da alteridade cosmológica e social; para isso, socializa certas
figuras dessa alteridade sob a forma de entidades auxiliares, numa espécie de
homeopatia simbólica generalizada (2002, p. 255).
250
Entre essas virtudes, Kopenawa destaca a eloquência para proferir discursos e o vigor que faz
com que suas exortações sejam seguidas (ibidem, p. 381); a capacidade de falar a língua dos
brancos e a valentia de se expressar nela com firmeza (ibidem, p. 385; 389); a raiva que os torna
destemidos (ibidem, p. 451); a bravura, vigilância e proteção que os prepara para a guerra (ibidem,
p. 443-444); a coragem para jamais ceder sua terra (ibidem, p. 332).
251
Cf. tratamos na seção 2.3.1, sobre a Terra como um acontecimento.
252
Nas palavras de Lévi-Strauss citadas por Valentim, “no pensamento dos ameríndios parece
indispensável uma espécie de clinâmen filosófico para que, em todo e qualquer setor do cosmos ou
da sociedade, as coisas não permaneçam em seu estado inicial e que, de um dualismo instável em
qualquer nível que se o apreenda, sempre resulte um outro dualismo instável” (2018, p. 275).
Sobre a necessidade dessa interferência na ordem do cosmos, Danowski e Viveiros de Castro
concluem: “A ênfase da práxis indígena é na produção regrada de transformações capazes de
reproduzir o presente etnográfico (rituais de ciclo de vida, gestão metafísica da morte, xamanismo
como diplomacia cósmica) e, assim, de impedir a proliferação regressiva e caótica de
transformações. O controle é necessário porque o potencial transformativo do mundo, como o
atestam os índices onipresentes de atividade de uma intencionalidade antropomorfa universal,
manifesta uma perigosa mas necessária remanência” (2017, pp. 96-97).
199
media a relação entre mundos, agencia a interferência dos seres sobrenaturais para
resistir à ameaça de deterioração do mundo. Contra o feitiço capitalista que,
contaminando o pensamento, se expressa no desejo obstinado por mercadorias e
ocasiona a devastação da floresta, espalhando por toda parte a pobreza e o horror
das cidades (ibidem, p. 431-433), o sonho devolve a política ao cosmos,
permitindo a convocação de inúmeros aliados na guerra pela defesa da floresta e
fazendo irromper, no horizonte da deterioração provável, possíveis saídas. Ele
carrega em si a potência de descolonizar a política; sua função estratégica é
conjurar os mecanismos de captura do Estado e do capital, impedir que os
Yanomami caiam no esquecimento a respeito da verdade das relações que
sustentam a Terra e o céu, permitindo-lhes uma oposição ativa ao risco de, como
seus inimigos, passarem a pensar só em si e em suas mercadorias – mesmo que a
investida ostensiva de seus inimigos faça parecer que não há alternativa a não ser
virar brancos:
Vocês não entendem por que queremos proteger nossa floresta? Perguntem-me, eu
responderei! Nossos antepassados foram criados com ela no primeiro tempo. Desde
então, os nossos se alimentam de sua caça e de seus frutos. Queremos que nossos
filhos lá cresçam rindo. Queremos voltar a ser muitos e continuar a viver como
nossos antigos. Não queremos virar brancos! Olhem para mim! Imito a sua fala
como um fantasma e me embrulho em roupas para vir lhes falar. Porém, em minha
casa, falo em minha língua, caço na floresta e trabalho em minha roça. Bebo
yãkoana e faço dançar meus espíritos. Falo a nossos convidados em diálogos
wayamuu e yãimuu! Sou habitante da floresta e não deixarei de sê-lo! Assim é!
(Kopenawa; Albert, op. cit., p. 389).
256
Apesar de “nós” brancos também sonharmos, a epistemologia que nos rege não considera o
sonho um meio legítimo de conhecimento – é emblemático nesse sentido o esforço de Descartes
em suas Meditações metafísicas (2000) para distinguir determinantemente, em meio a tudo aquilo
que poderia pensar, o que seria efetivamente real do que seria apenas uma mera ilusão (categoria
na qual insere o sonho e a imaginação). Mesmo nos dias atuais, ainda que o sonho frequentemente
figure como objeto de nossa curiosidade e interpretação, podendo até mesmo ser considerado
premonitório em algumas ocasiões e por algumas pessoas (consideradas por isso supersticiosas),
apenas na psicanálise ele parece possuir um estatuto de maior legitimidade ou seriedade. No
entanto, como lembrou Danowski (2019, comunicação verbal), contrariando a tradição do
pensamento ocidental, para Nietzsche os sonhos constituíam uma ocasião de alargamento da
experiência; isto é, não uma ilusão a ser contornada ou desvendada, mas uma outra dimensão da
existência, da qual o pensamento e a vida também se alimentam para criar. Tal consideração é
evidenciada em passagens como “Alargamento da experiência: há casos em que os sonhos
enriquecem realmente o círculo de nossa experiência: quem sabe, sem os sonhos, o que seria de
nossa impressão de voar?” (Nietzsche apud Danowski, 1983, p. 65) e “Aquilo que vivemos no
sonho, e que nele vivemos repetidas vezes, termina por pertencer à economia global de nossa
201
***
alma, tanto quanto algo ‘realmente’ vivido: em virtude disso tornamo-nos mais ricos ou mais
pobres, temos uma necessidade a mais ou a menos e, afinal somos um pouco guiados pelos hábitos
de nossos sonhos, em plena luz do dia e até nos momentos mais serenos do nosso espírito
desperto” (Nietzsche, 1992, §193, p. 93). E ainda: “[N]o meio deste sonho acordei repentinamente,
mas apenas para a consciência de que sonho e tenho de prosseguir sonhando, para não sucumbir:
tal como o sonâmbulo tem de prosseguir o sonho para não cair por terra” (idem, 2012, p. 88).
202
257
O pensamento como arte de visitar é associado por Haraway à exortação “Think we must! We
must think!”, presente no romance Three guineas, de Virginia Woolf (1938), e retomada pelas
autoras de Women who make a fuss. Haraway promove, assim, um deslocamento dos contextos
originais dos enunciados de Arendt e Woolf para atualizá-los numa nova força de pensamento
capaz de nos ajudar a “fazer a retransmissão, herdar o problema, e reinventar as condições para o
prosperar multiespecífico, não apenas num tempo de guerras humanas e genocídios infindáveis,
mas num tempo de extinções em massa e genocídios multiespecíficos propelidos pela ação
humana, que arremessam pessoas e criaturas no vórtex. Precisamos ousar ‘fazer’ a retransmissão;
isto é, criar, fabular, para não cair em desespero”. (Haraway, 2016, p. 130).
258
Haraway se refere sobretudo aos extra-humanos, mas não é difícil reparar que tais
recomendações podem se aplicar ao encontro dos Ocidentais com as outras “culturas”, nas quais
os extra-humanos possuem estatutos ontológicos distintos. A autora mesma menciona a conexão
entre especismo, racismo e outras expressões do pensamento colonialista em diversas passagens de
seu Staying with the trouble.
203
que se façam possíveis em meio às histórias e aos perigos que ameaçam nossa
existência.
As histórias multiespecíficas que conto são sobre recuperação em histórias
complexas que estão cheias tanto de morte como de vida, cheias tanto de fins,
mesmo de genocídios, como também de inícios. [...N]ão estou interessada em
reconciliação ou restauração, mas profundamente comprometida com as
possibilidades mais modestas de recuperação parcial e de nos darmos bem juntos
[getting on together]. Chamemos isso de conviver com o problema [staying with
the trouble] (ibidem, p. 447-450).
O pensamento que sai em visita não pretende, assim, sair para se distrair,
para se livrar do problema, pois sabe não ser possível fazê-lo de uma vez por
todas; sabe que isso significaria abrir mão do mundo. Ao contrário: para os
viajantes capazes de “se emaranhar e seguir as linhas de viver e morrer”, o mundo
efetivamente importa (ibidem, pp. 927-931) – o que lhes permite prescindir de
delírios salvacionistas, mas também do derrotismo paralisante.259 Importar-se com
o mundo – asserção em muito similar à exortação deleuziana a “acreditar no
mundo” – implica, assim, se engajar em tentativas de tornar presente aquilo que
estava ausente, aquilo que reivindica estar no mundo à sua própria maneira.
Importar-se com o mundo é prestar atenção e se vincular a essas novas presenças,
é tornar-se mutuamente capazes. É ter coragem para contar novas histórias sobre
nós e sobre esses outros com quem existimos, seja seguindo a linha de fuga do
voo da bruxa (como propuseram Deleuze e Guattari), a dos espíritos que habitam
terras distantes ou as linhas de viver e morrer que traçam a história da Terra e dos
seus seres, para que o pensamento se constitua efetivamente como criação e
resistência, para que não se curve aos desígnios dos poderes estabelecidos,
tampouco se comprometa ativa ou passivamente com os extermínios que
259
Nesse sentido, a ideia de conviver com o problema se assemelha à leitura de Danowski e
Viveiros de Castro da expressão “pessimismo alegre”, empregada por Zourabichvili para
caracterizar a filosofia deleuziana. Numa entrevista concedida à jornalista Eliane Brum em 2014,
eles opuseram o pessimismo alegre ao otimismo desencantado com que geralmente pensamos o
futuro (mesmo que, acrescentamos, algumas vezes o peso caia mais para o otimismo e em outras
para o desencanto). O pessimismo alegre, então, seria uma exortação a “viver o presente tal como
ele é, enfrentando as dificuldades que ele apresenta, mas sem imaginar que a gente tem poderes
messiânicos, demiúrgicos de salvar o planeta”; é preciso viver sem se pensar “a palmatória do
mundo”, sem achar que precisa “pensar pelo mundo todo” (Danowski; Viveiros de Castro, 2014).
Em outras palavras, tal atitude diz respeito a lidar com as questões de forma situada, fazer de uma
questão literalmente uma situação, um meio de situar-se e de aprender a cuidar das relações nela
implicadas, em vez de julgar o mérito do envolvimento e a eficácia da regeneração obtida por sua
capacidade de figurar como solução definitiva (valendo para “o mundo todo”); esse salto de
perspectiva é profundamente debilitador. A alegria produzida no cuidado situado, portanto, não
provém da esperança de salvação generalizada – nesse sentido, ela é pessimista –, mas sim da
construção de maneiras de ficarmos bem juntos, de produzir regenerações, ainda que parciais, das
relações em que nos engajamos.
204
260
Em Staying with the trouble, Haraway repete continuamente essa fórmula, com variações:
“importa quais ideias usamos para pensar outras ideias” (2016, p. 904), “importa quais
conhecimentos conhecem conhecimentos”, “importa quais relações relacionam relações (ibidem,
p. 909-910), até o de dificílima tradução “importa quais materiais usamos para pensar com outros
entes; importa quais histórias contamos para contar com outros outras histórias; importa que nós
amarram nós, que pensamentos pensam pensamentos, que descrições descrevem descrições, que
laços enlaçam laços. Importa quais histórias fabricam mundos, que mundos fabricam histórias”
(ibidem, p. 496-498) entre outras construções nessa mesma forma.
261
A sigla SF abarca também a ficção científica (science fiction), (o jogo) cama de gato (string
figures), o feminismo especulativo (speculative feminism) e o fato científico (scientific fact), entre
outras práticas que a autora considera métodos de seguir os seres nos agenciamentos que são as
tramas em que o mundo se faz. Para a autora, compreender melhor quem vive, quem morre e de
que maneira o fazem nessa urdidura é essencial para agir em prol de uma justiça multiespecífica
(Haraway, 2016, p. 328-329).
262
Haraway define a sym fiction como o gênero da sympoiesis (que ela define simplesmente como
“fazer-com”) e da symchthonia – neologismo que indica sintonia e simbiose com os seres ctônicos
205
que povoam seu Chthuluceno –, que trata da “co-existência dos seres terrestres” [the coming
together of earthly ones] (Haraway, 2016, p. 136).
263
A autora anunciou para breve a criação de uma plataforma digital para o compartilhamento de
histórias, jogos, especulações científicas, ideias, desenhos…, enfim, para registro das
contribuições mais diversas à fabulação de novas modalidades de convivência no Chthuluceno.
206
3.3.2.
“Tirar do certo”: o riso e a precaução contra o feitiço do consenso
264
Cf. sobretudo seção 2.2.2.1.
208
poderes públicos, que precisam envidar os mais variados esforços, intervir das
maneiras mais variadas, exercer as maiores coerções e violências para garantir as
condições de funcionamento do capitalismo. Isso sem falar, é claro, nos
empresários, nos industriais, os investidores, os detentores do poder econômico
que mais diretamente se beneficiam com o enfeitiçamento generalizado. Porém,
essa categorização tem validade num plano diferente daquele de onde a captura
ocorre, na medida em que os diversos interesses em jogo não explicariam por si
sós a submissão voluntária a esse modo de vida e produção, sobretudo da parte
dos que nada têm a ganhar. Por que se resignam às escolhas infernais? Por que tão
prontamente se prestam a repetir o “não há saída”, "não tem jeito", como se não
fossem suas próprias vidas as aprisionadas? Ao mesmo tempo, é importante se
esquivar de explicações simplistas ou maniqueístas para tal fenômeno, que
atribuem a sujeição a uma suposta cegueira provocada por manipulações
ideológicas ou a supostos interesses egoístas daqueles que, movidos por sua sede
de poder, traem sua classe e trabalham em prol dos opressores. Não que essas
situações não possam ocorrer; mas Stengers e Pignarre veem nelas mais a
consequência da captura que sua causa.
O interesse dos autores, assim, reside no processo de fabricação daquilo que
chamam de petites mains (“pequenas mãos”), o contingente de enfeitiçados que
resulta do longo “processo seletivo” para integrar o distinto grupo dos
“razoáveis”, isto é, daqueles que aprenderam a se comportar e se conformar àquilo
que o modo de vida ocidental determina como possível e desejado. Tal seleto
grupo, assim, se vangloria de ser o embaixador do que Deleuze e Guattari
chamaram de forma-Estado do pensamento, isto é, um pensamento pautado pela
exigência de representar a realidade, que se dobra às determinações consensuais
do que pode ou não ser pensado, que se posiciona como aliado do Estado,
resignando-se a reproduzir seus postulados em lugar de pensar à sua revelia. Com
isso, qualquer tentativa de pensar para além das categorias e proposições
consideradas plausíveis – como por exemplo as expressas pelas cosmopolíticas
extra-modernas e pelas várias experiências contemporâneas que tentam contornar
a suposta inevitabilidade capitalista – são prontamente solapadas com meio-
sorrisos irônicos, suspiros condescendentes, questionamentos do tipo “você
acredita mesmo que...?”. De modo que, para funcionar, o capitalismo depende
sobremaneira da renúncia ao pensamento, cobrada como ingresso para o clube
209
265
Por exemplo, cf. Viveiros de Castro, 1996.
211
266
Para seguirmos com a comparação entre os perigos de captura pelo cruzamento de perspectivas
no mundo ameríndio e no nosso, citamos uma passagem do artigo “O medo dos outros”, no qual
Viveiros de Castro defende uma posição em muito similar à de Stengers e Pignarre: “Vejo esses
encontros sobrenaturais na floresta, em que o eu é capturado por um outrem e definido por este
como ‘segunda pessoa’, como um tipo de protoexperiência indígena do Estado, ou seja, uma
premonição da experiência propriamente fatal de se descobrir ‘cidadão’ de um Estado (a morte e
os impostos...). Minha intenção, assim, é sugerir que o verdadeiro equivalente da ‘categoria
indígena do sobrenatural’ não são nossas experiências extraordinárias ou paranormais (abduções
por alienígenas, percepção extrassensorial, mediunidade, premonição), mas sim a experiência
quotidiana, totalmente aterrorizante em sua normalidade, de existir sob um Estado” (2011b, p.
904). O medo a que o autor se refere no artigo diz respeito sobretudo às ocasiões em que somos
instados pelas autoridades estatais a apresentar algum documento ou esclarecer alguma situação
(nunca se sabe exatamente o que de nós pode ser exigido), enquanto o argumento de Stengers e
Pignarre se concentra sobre modos menos coercitivos (ao menos aparentemente) de captura. Ainda
assim, em ambos os textos, o Estado (ou a forma-Estado do pensamento) figura como o inimigo
do qual é preciso saber se proteger.
267
Trataremos desse aprendizado do comum também em outras seções adiante, sob prismas
ligeiramente distintos.
212
268
Uma passagem do ensaio de Deleuze sobre a obra de Sacher-Masoch ilustra bem tal afirmação:
“Chamamos humor não mais o movimento que sobe da lei para um princípio mais elevado, mas o
que desce da lei para as consequências. [...] Toma-se a lei ao pé da letra; não se contesta seu
caráter último ou primeiro [...]. A lei [...] será [...] humoristicamente infringida, obliquamente, pelo
aprofundamento das consequências” (2009b, p. 88). Foi exatamente o que os quilombolas fizeram.
214
269
Nesse contexto, é interessante destacar o tipo de ativismo realizado por coletivos como o
ClownBloc e o Clandestine Insurgent Rebel Clown Army (CIRCA). O nome do primeiro é uma
clara referência aos black bloc, grupos formados sobretudo por anarquistas e/ou autonomistas que
adotam táticas de ação direta nos protestos: a depredação de propriedades privadas que
simbolizam o poder capitalista e a disposição ao enfrentamento das forças policiais é sua marca.
No entanto, os ClownBloc não privilegiam a violência em suas táticas de atuação: seus integrantes
protestam vestidos de palhaços, cantam, dançam, fazem brincadeiras e ironizam a bruta opressão
policial habitual dessas situações. Ecoando e adaptando a famosa frase atribuída à feminista Emma
Goldman, um dos organizadores do coletivo afirmou certa vez: “Se a revolução não for divertida,
não quero me envolver” (Lipkin, 2012). Cf. também nota 313. A não-violência também caracteriza
a participação do CIRCA nas manifestações anticapitalistas (CIRCA, 2007). Ainda, como veremos
algumas páginas adiante, os ativistas da ZAD de Notre-Dame-des-Landes, na França, também
protestaram contra a severa investida policial vestidos de palhaço.
215
envergonhado fugir...
A outra modalidade de resistência à feitiçaria que examinaremos diz
respeito ao cultivo da precaução na abordagem de assuntos considerados de
grande complexidade, porque envolvendo a participação de agentes ocultos ou
indeterminados. Como vimos na seção 1.3.2, os quilombolas chamam de
"assuntar" sua prática de produção de conhecimento baseada na especulação do
sentido dos acontecimentos a partir de uma cuidadosa observação dos sinais por
eles deixados, mas sem com isso pretender alcançar um significado unívoco para
os fenômenos observados. Distinguindo-se tanto da profecia quanto da previsão
(mas também da produção epistemológica ocidental, que tem na ciência seu
modelo áureo),270 a arte de assuntar demanda uma abordagem precavida na lida
com “assuntos pesados” – como, por exemplo, a mudança de Era em curso e a
consequente possibilidade do fim do mundo por ela representada –, na medida em
que de tais assuntos, por “ultrapassa[rem] a experiência cotidiana e alça[rem] o
domínio do Mistério, do sobrenatural, do tempo de Deus” (ibidem, p. 39), só é
possível ter notícias parciais, recolher vestígios imprecisos. Por isso, pretender
uma conclusão definitiva a partir de tais rastos seria uma atitude altamente
imprudente: mais que estabelecer e estabilizar uma verdade, tal modo de conhecer
consiste “numa tentativa provisória e mediada por artifícios de imaginar o
acontecimento a partir de suas formas residuais” (ibidem, p. 385).
Vimos também, naquela mesma seção, que a produção epistemológica
quilombola é claramente orientada pelo interesse em compor com o frágil “fluxo
ecológico da criação”, isto é, em suscitar agenciamentos nesse fluxo que
favoreçam a reprodução da vida na região. Isso implica uma postura bastante
atenciosa com relação a qualquer movimento que possa afetar a circulação
cosmopolítica, desde a chegada das energias “pesadas e fortes” ao local até a
enunciação, da parte do ambientalista que os visitava regularmente, de supostas
verdades incontestáveis sobre as causas da seca que afetam as lavouras, as hortas
e a criação de animais. Exímios pensadores das relações que constituem seu meio,
o episódio dessa visita demonstra que os quilombolas não podem reputar como
270
Nunca é demais ressaltar que a diferença em relação à epistemologia científica não deve ser
compreendida como uma diversidade de perspectiva sobre um mesmo “real” (no caso, a crise
ecológica): ela consiste em modos distintos de enunciar o problema, de agenciar causas e
consequências e de conceber conclusões: enquanto a arte de assuntar “explicita o artifício [de sua
prática epistemológica] e lida com ele”, a ciência, “apesar de se servir de artifícios e mediações
técnicas, mascara-os para que o enunciado circule como um fato” (Vieira, 2015a, p. 394).
216
271
O conceito foi empregado num artigo em inglês e, conforme o autor explicou, o trocadilho com
o termo oneness (unicidade), cujo sentido é exatamente aquilo a que o conceito se opõe, é
intencional. Até onde temos conhecimento, Viveiros de Castro não propôs uma tradução ao
português daquele neologismo.
217
3.3.3.
Fuga e refúgio: ressurgir nas margens e ruínas do capitalismo
272
No original, em inglês, “Global Compact for Safe, Orderly and Regular Migration”. O Brasil,
que era um dos 152 países signatários, comunicou à ONU em 8 de janeiro de 2019 sua retirada do
pacto. A justificativa fornecida pelo presidente Jair Bolsonaro e seu ministro das Relações
Exteriores, Ernesto Araújo, é a de que o acordo fere a soberania nacional para tratar do tema. Com
a decisão, o país se junta aos Estados Unidos e a outras nações cujo posicionamento político vem
220
sendo marcado (uns de forma mais explícita que outros) pela xenofobia e pelo nacionalismo
(Reuters, 2019; Mantovani, 2018).
273
Essa estimativa corresponde ao número total de migrantes no mundo, sem desagregação das
causas das migrações.
274
Juridicamente falando, os migrantes climáticos não podem ser considerados refugiados porque
o que caracteriza estes últimos, segundo a legislação internacional, é um temor de “ser
perseguid[o] por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas”
(ACNUR, 2011, p. 49). Razões ambientais, portanto, não figuram nessa convenção como uma
perseguição da qual pode ser preciso se refugiar (UNU, 2015). A ONG internacional
Environmental Justice Foundation, por sua vez, tem advogado fortemente pelo reconhecimento
jurídico da categoria de “refugiados climáticos” – definidos pela organização como “pessoas ou
grupos de pessoas que, por razões de mudança ambiental relacionada ao clima, repentina ou
progressiva, afetando suas condições de vida, são obrigadas a abandonar seus lares temporária ou
permanentemente, e que se deslocam tanto dentro de seus países quanto para fora deles” – e pela
adoção de um acordo legalmente vinculante para protegê-los (What we do, 2019).
275
Um relatório divulgado pela International Organization for Migration em 2008 afirmava não
haver uma estimativa precisa para o número de migrantes climáticos até o ano de 2050: as
previsões variavam de 25 milhões a um bilhão de deslocamentos, sendo o número de 200 milhões
a estimativa mais citada (IOM, 2009, p. 5). Nesse sentido, o estudo encomendado pelo Banco
Mundial, que mencionaremos a seguir, figura entre os esforços recentes para melhor compreender
esse fenômeno.
276
O acanhado número de estudos sobre o tema se deve sobretudo à ausência ou insuficiência de
dados oficiais sobre esse tipo de deslocamento e à dificuldade de isolar o fator climático/ambiental
de outros aspectos que motivam as migrações, como situações de conflito, instabilidade política,
problemas econômicos ou abusos de direitos humanos (UNU, 2015). Conjecturamos também que
221
Mundial e divulgada em março de 2018, avaliou que, até 2050, mais de 143
milhões de pessoas – sobretudo da África subsaariana, do sul da Ásia e da
América Latina, três regiões já consideradas “superaquecidas” –, migrarão dentro
de seus países para áreas menos afetadas pelo aumento no nível do mar, menos
suscetíveis à ocorrência de tempestades, mais favoráveis às colheitas e com maior
disponibilidade de água (Rigaud et al., 2018). Após 2050, a previsão é de que as
migrações internas aumentem vertiginosamente, considerando que o corte nas
emissões de gases de efeito estufa que poderiam minorar o problema muito
provavelmente não ocorrerão. Deve-se ter em mente, ainda, que as projeções do
estudo se baseiam em uma expectativa de mudanças lentas e graduais do clima,
não levando em conta os deslocamentos provocados por variações climáticas
extremas ou de curto prazo, situações que os autores caracterizam como
“preocupação substancial em termos de políticas de desenvolvimento” (ibidem, p.
8). Considere-se também, a título de comparação, que 2017 foi o quinto ano
consecutivo de recorde no aumento do número de migrantes forçados em todo o
mundo: a ONU registrou 68,5 milhões de pessoas, dos quais 28,5 milhões são
refugiados e/ou a espera de asilo em outro país e 40 milhões deslocados
internamente (UNHCR, 2018).277
Mesmo que as correlações entre migração e clima sejam ainda difíceis de
estabelecer com precisão, a hipótese levantada por Latour em seu ensaio intitulado
Où aterrir?, como já mencionamos na seção 2.2.2.2, é a de que a piora das
condições de vida que tem levado a esses deslocamentos em escala global consiste
num projeto político e econômico dos detentores do capital, na medida em que
seus lucros astronômicos são obtidos às expensas de atividades que causam
anomalias catastróficas nos diversos fluxos do planeta, da circulação
biogeoquímica à dos inúmeros povos que habitam a Terra. Latour argumenta que,
diante da evidência da deterioração ecológica pelas práticas que, por
conveniência, chamamos aqui de capitalistas, as elites políticas e econômicas
decidiram não mais agir como se ainda pudesse haver um horizonte de
prosperidade ao alcance de todos, destruindo impiedosa e subitamente a ilusão de
pode contribuir para essa dificuldade o fato de que apenas recentemente a ciência do clima pôde
começar a desenvolver metodologias de "atribuição", ou seja, que visam a determinar a influência
das mudanças do clima na ocorrência de eventos climáticos extremos.
277
Esse número se refere ao total de migrações contabilizadas no ano, não apenas as provocadas
por questões climáticas/ecológicas.
222
278
Nas palavras de Latour, “[a] nova universalidade é a de sentir que o sol está em vias de ceder”
(2017, p. 19). Resta saber quem de nós seremos capazes de responder a essa tragédia comum
223
que saibamos que o peso da intrusão de Gaia não recairá igualmente sobre todos
os existentes, nos vemos hoje ameaçados – uns mais que outros, mas em última
instância, todos – de sermos privados de nossos territórios, privados da própria
Terra. Dito de outro modo, no Antropoceno, somos todos, ou estamos em vias de
nos tornar, refugiados ecológicos em busca de um canto seguro para nos abrigar;
ou, nas palavras de Haraway, “neste momento, a Terra está cheia de refugiados,
humanos ou não, desprovidos de refúgio” (2016, p. 100).
Embora o próprio Latour não faça isso em Où aterrir?, acreditamos ser útil
retomar aqui sua ideia de guerra dos mundos. Agora podemos entender que os
Humanos são aqueles que, vendo seu projeto modernizador ameaçado pela
intrusão de Gaia, optam por nele insistir, acreditando poder prescindir do solo que
os sustenta. Eles fogem da Terra, da iminência de sua intrusão, como se pudessem
se abrigar alhures; julgam seguir, desse modo, em direção ao “fora deste mundo”
(Hors-Sol),279 “o horizonte daquele que não pertence mais às realidades de uma
Terra que reage às suas ações” (2017, p. 48). Os Terranos, ao contrário, são
aqueles que são atraídos por uma força diametralmente oposta, puxados em
direção à Terra. Sabem que é na própria Terra que precisam se refugiar, é a Terra
que precisam aprender a ocupar de uma maneira que não impeça outros seres de a
ocuparem a seu modo (ibidem, p. 84). Refúgios são espaços de convivência entre
criaturas provenientes de contextos biológicos, políticos e culturais variados, de
onde se torna possível resistir a episódios de destruição ecológica severa.280 Nos
refúgios, interações diversas criam possibilidades inesperadas de recomposições
(mesmo que parciais) da diversidade, permitindo repovoar a Terra. As
recomposições possíveis são sempre parciais porque, diante da voracidade da
destruição que nos cerca, não há razão para cultivar sonhos salvacionistas, para
esperar solucionar o problema de uma vez por todas.
Os Terranos sabem que a capacidade de constituir refúgios e aprender a
neles habitar, de criar novos modos de convivência com os seres de que
dependemos para existir, de criar saídas para a barbárie capitalista, pode prover a
inventividade, o vigor e a coragem de que precisam para recompor o solo que os
aprendendo a criar uma comunidade com a Terra e quem seguirá confiando a resposta àqueles que
lucram com a catástrofe...
279
Na tradução ao inglês de Où aterrir?, intitulada Down to Earth (2018), Hors-Sol aparece como
Out-of-this-World (Fora-deste-Mundo), que julgamos fazer mais sentido ao verter ao português.
280
Essa definição de refúgio foi sugerida por Haraway (2016) a partir do conceito apresentado por
Tsing em “A Threat to Holocene Resurgence Is a Threat to Livability” (2017).
224
nutre e sustenta. Nesta seção, assim, partiremos dos conceitos de refúgio e fuga
para abordar algumas dessas movimentações restauradoras das condições de
habitação do mundo.
***
281
O que Tsing chama de “agricultura do Holoceno” consiste nas técnicas de cultivo praticadas
antes do sistema das plantations implementado pela colonização europeia. A autora as distingue
daquilo que chama de projetos modernos, caracterizados por “uma combinação das ecologias de
plantation, tecnologias industriais, projetos de governança estatais e imperiais e modos de
acumulação capitalista” (2017, p. 53). Nesse sentido, ela parece se valer da atual indefinição por
parte dos geólogos quanto à data de início do Antropoceno para situá-la no período histórico em
que as paisagens começaram a ser convertidas em plantations.
226
282
Cf. TSING, A. et. al. (2017). Arts of Living on a Damaged Planet: Ghosts and Monsters of the
Anthropocene. London: University of Minnesota Press. A ideia do livro surgiu na conferência
epônima realizada na Universidade da Califórnia em 2014, da qual muitos dos autores dos artigos
reunidos na obra participaram.
227
284
Seguindo Calheiros, empregamos aqui a palavra aikewara (com inicial minúscula e em itálico)
como adjetivo referente ao povo Aikewara (com inicial maiúscula e sem itálico) de que tratamos
nesta seção, mas os nativos o empregam para designar, mais genericamente, “todos os povos
indígenas do mundo” (Calheiros, 2014, p. 2). Nas próximas menções à palavra, é esse segundo
sentido que prevalece.
285
Isto é, a aurora do mundo atual – antes deste, houve uma outra terra, o mundo-de-outrora.
231
286
Termo utilizado pelos próprios Aikewara, assim como “capitalismo”, aprendidos em seus
contatos tanto com a Guerrilha do Araguaia quanto com integrantes de organizações e movimentos
de cunho político, como a Comissão Pastoral da Terra, o Partido dos Trabalhadores e o
Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (Calheiros, 2014, p. 3).
287
Tal opressão desmedida sobre a Terra não é sem consequências: os Aikewara veem no
surgimento da AIDS, nas “ondas gigantes como aquelas que atingiram o Japão” e até mesmo nos
icebergs “uma resposta do mundo à “opressão capitalista” (Calheiros, 2014, p. 71).
288
A caça, o canibalismo e o capitalismo são, digamos, as modalidades de captura decorrentes do
desejo destoante incutido pelo Inimigo nos antepassados desse povo.
232
“Era assim que costumava ser” pois, atualmente, cercados por cidades e
vilarejos por toda parte, fugir – refugiar-se no espaço liso ou nômade (Deleuze;
Guattari, 2012) da floresta,290 reconstituir os refúgios que lhes permitiam reaver
289
Especificamente a respeito da ameaça de predação pelos karuwara, a dança (o ritual xamânico)
se converte numa espécie de variação da fuga: “Dançam para não se desviar, para não se
aproximar dos mortos (aqueles que não se movem), para não se aproximar perigosamente do plano
animal que subjaz à existência mundana. [...] Dançam para superar a força da putrescência que
cresce surdamente em seus corpos, para superar o “peso” das flechas que carregam em seus
estômagos. Dançam para “permanecer”, como a certa altura me disse Arikasú. E isso é
“verdadeiramente bom” (katueté)” (Calheiros, 2014, p. 210). O sonho xamânico, também, pode ser
compreendido por essa chave da fuga: sendo uma experiência de vislumbre de “outro tempo, outro
lugar”, “ele desenha uma fuga, conduz o vivente [...] a um outro mundo, a um lugar radicalmente
diferente do nosso”. Foi “presta[ndo] atenção naquilo que está além da experiência mundana,
[dando] ouvido à voz, melhor, ao sussurro do outro” que puderam “escapar do jugo dos antigos
moruwisaw” e “ainda hoje se mantêm livres da forma-wetometé; afinal, o que seria o culto além de
um sonho, isto é, além de um momento em que experienciam um outro lugar (em que tocam no
céu)?” (ibidem, p. 271-272).
290
Segundo Deleuze e Guattari, o espaço liso ou nômade seria um campo heterogêneo que “esposa
um tipo muito particular de multiplicidades: as multiplicidades não métricas, acentradas,
233
rizomáticas, que ocupam o espaço sem ‘medi-lo’, e que só́ se pode explorar ‘avançando
progressivamente’” (2012, p. 40). Em contraposição aos muros, cercas e caminhos que marcam o
trajeto estriado, por meio do qual os homens são distribuídos num “espaço fechado, atribuindo a
cada um sua parte, e regulando a comunicação entre as partes”, o percurso nômade “faz o
contrário, distribui os homens (ou os animais) num espaço aberto, indefinido, não comunicante”
(ibidem, p. 54). Ele designa, assim, um modo de se relacionar com a terra (mas também com o
pensamento) não mediado pelo regime de propriedade, pelos aparelhos de Estado; em suma, um
modo de ocupação espacial não colonizado pela forma-Estado. Embora os autores citem a floresta
como um espaço estriado, referindo-se, conjecturamos, à demarcação territorial que pode ser feita
a partir dos tipos e espécies de viventes observados em determinados setores – o deserto, o mar ou
a estepe são as imagens oferecidas para o conceito de espaço liso –, propomos que o intenso
comércio cosmopolítico (seja de ordem biológica, ontológica ou sobrenatural) entre seres das mais
variadas estirpes fazem da floresta um verdadeiro celeiro de multiplicidades, de onde podem sair
alianças inesperadas que, por sua vez, favorecem a resistência e a ressurgência, emperrando, ao
menos localmente, a máquina de estriamento estatal-capitalista. É claro que não se pode deter tal
máquina indefinidamente: a sobrecodificação e a degradação já estão por toda parte. Mas se,
seguindo Tsing, podemos pensar a floresta como um exemplo de “paisagens-justapostas [patchy
landscapes]” acolhendo “temporalidades múltiplas e associações variáveis de humanos e não
humanos: o material mesmo da sobrevivência colaborativa” (Tsing, 2015a, p. 27), então ela pode
corresponder à imagem do patchwork evocada por Deleuze e Guattari para explicar o espaço liso:
“em cada modelo, com efeito, o liso nos pareceu pertencer a uma heterogeneidade de base: feltro
ou patchwork e não tecelagem [...], variação contínua que extravasa toda repartição entre
constantes e variáveis, liberação de uma linha que não passa entre dois pontos, desprendimento de
um plano que não procede por linhas paralelas e perpendiculares” (2012, p. 211).
291
Uma das drásticas consequências da expansão do cerco dos kamará aos Aikewara é o
desapareci-mento dos queixadas das cercanias da Terra Indígena do Sororó. Por razões que não
apresentaremos aqui pelo bem da concisão, a caça a esses animais é de extrema importância na
cosmontologia desse povo; por isso, sua carne é crucial para a realização do ritual Karuwara. “Sem
a carne, sem a sua potência”, Calheiros explica, os Aikewara se tornam “incapazes de crescer e
sobrepujar as forças do podre que atravessam nossos corpos, que os diminuem e os enfraquecem”
(Calheiros, 2019). Nesse sentido, o etnólogo se pergunta: “como permanecer fugindo, se
transformando, se o elemento basal desta marcha, desta operação vital, encontra-se, agora,
desaparecido? Como escapar, por exemplo, da feitiçaria dos brancos – a atração das cidades –, sua
influência, ou do desejo antropofágico de seus antigos chefes sem o auxílio dos queixadas? Como
lutar contra esse déficit ontológico?” (ibidem). O desespero com a constatação da extinção dos
queixadas na região, assim, se justifica: os Aikewara “sabiam que aquilo representava o fim de um
mundo” (ibidem).
234
adiante, sempre, “não voltam”, não são como as antas, comparavam, que são
facilmente capturadas por andarem sempre pelos mesmos caminhos. Eles seguem
adiante, sempre no sentido do fora, sempre na direção daquilo que está além, além
da casa dos pais, além da aldeia. E o fazem, pois sabem que, caso se detenham por
muito tempo, o desejo canibal aflorará (ibidem, p. 245).
292
No que se segue, utilizaremos a tradução dessa obra ao português, publicada no Brasil em cinco
volumes.
235
3.3.4.
Reivindicar a experimentação: ativar alianças extra-capitalistas
293
Cf. os autores: “Por isso é falso definir o nômade pelo movimento. [...O] nômade é antes aquele
que não se move. Enquanto o migrante abandona um meio tornado amorfo ou ingrato, o nômade é
aquele que não parte, não quer partir, que se agarra a esse espaço liso onde a floresta recua, onde a
estepe ou o deserto crescem, e inventa o nomadismo como resposta a esse desafio. Certamente, o
nômade se move, mas sentado, ele sempre só está sentado quando se move (o beduíno a galope, de
joelhos sobre a sela, sentado sobre a planta de seus pés virados, "proeza de equilíbrio")” (Deleuze;
Guattari, 2012, p. 55).
236
295
O relato não fornece nenhuma informação que permita identificar o gênero da pessoa que o
narra (não que isso tenha qualquer importância para o caso).
237
296
É por essa razão que, cientes de que o assistencialismo é um dos mecanismos de subjugação
política mais empregados pelo Estado, em diversas ocasiões os povos do semiárido brasileiro
recusaram-se a esperar a distribuição dos víveres prometidos pelo governo nos episódios de seca
severa na região, apoderando-se à força dos alimentos. Como propõe Rondinelly Medeiros, o
saque não apenas interrompia a corrupção envolvida na distribuição, mas também consistia na
“manifestação política paroxística e equivalente oposta ao projeto colonizador-
desenvolvimentista” (2013), estruturado sobre a imagética e práxis de uma suposta necessidade de
combate à seca. Quer dizer, o saque consistia numa espécie de “ferramenta-modelo de organização
social” (ibidem) da qual lançavam mão em situações em que o controle do Estado perigava
recrudescer; em reação a suas investidas, os sertanejos embarcavam nessas rebeliões, que
ameaçavam “não só a noção de propriedade privada, mas igualmente algumas características da
cultura brasileira sertaneja relativas à hierarquia social” (Neves, 2000, p. 220).
238
nos quais, todavia, vidas, lugares, culturas, espécies, direitos estão em risco.297 Eles
saíram em barcos de pesca e a remo e em pirogas e todos os tipos de pequenas
embarcações, alguns dirigindo de tão longe quanto o Texas e evadindo as
autoridades para chegar, outros também refugiados [de outras áreas atingidas pelo
furacão] trabalhando na cidade. Houve engarrafamentos de reboques de barco – os
celebrados Cajun Navy 298 – indo em direção à cidade no dia seguinte ao
rompimento dos diques. Nenhuma dessas pessoas disse “não posso resgatá-los
todos”; todos eles disseram “posso resgatar alguém, e esse é um trabalho tão
significativo e importante que vou arriscar minha vida e desafiar as autoridades
para fazê-lo” (2016, p. 249-256).
Solnit conclui, assim, que “[aquelas] pessoas que tinham perdido tudo, que
estavam vivendo nos escombros ou nas ruínas, encontraram agência, sentido,
comunidade, prontidão em seu trabalho junto a outros sobreviventes” (ibidem, p.
165-166). De modo análogo, ainda que a resposta ao recente furacão Florence
repita a fórmula do abandono aos pobres e resgate aos ricos, consistindo numa
evidência da replicação planetária da barbárie, o relato com que abrimos esta
seção chama igualmente a atenção para a solidariedade que se estabeleceu entre os
residentes daquela área atingida, que “circulavam para verificar se outros estavam
bem, levavam mantimentos e assistência a quem precisasse” (Anônimo, 2018).
Esses e outros episódios mostram que, diferentemente do que nos querem fazer
crer, não é a “abstração que alguns chamam de ‘egoísmo humano’” (Stengers,
2015, p. 14) que precisa ser combatida, mas sim a prostração fabricada por
aqueles que extraem lucros astronômicos da fabricação da ilusão de que são os
únicos agentes da história. Pois não é que não haja meios de agir sem eles: mas é
preciso reavê-los, reivindicá-los, tornar-nos capazes de “nos reconectar com
aquilo de que fomos separados, para nos reapropriarmos da capacidade de fabricar
nossas próprias questões” (ibidem, p. 88-89, ligeiramente modificado) e de
experimentar maneiras de respondê-las. No restante desta seção, assim, trataremos
de dois conceitos que julgamos expressões importantes desse imperativo: a noção
stengeriana de reclaim e o que chamamos aqui de “experimentação”, a partir
sobretudo da vivência de um grupo de agricultores ecológicos do sertão
paraibano.
297
A esse respeito, cf. também a nota 259 (seção 3.2.1), sobre os conceitos de conviver com o
problema e pessimismo alegre.
298
Grupo de proprietários de barcos na Louisiana que são voluntários nos resgates em desastres.
Constituído informalmente por ocasião do furacão Katrina e reativado em 2016 devido a novas
enchentes decorrentes da passagem dos furacões Harvey e Irma, se tornaram uma ONG em 2017 e
participaram do auxílio em diversas catástrofes desde então, incluindo a causada pelo furacão
Florence. Cf. Cajun Navy, 2019 e About us, 2019.
240
***
Nem mestre todo-poderoso nem servo submisso da terra, a relação que o(a)
cultivador estabelece com ela é marcada pela experimentação criativa. Por meio
299
Logo de saída, a autora adverte que não pretende fazer da vida no campo a causa ou origem
exclusiva da democracia; seu interesse tampouco reside em investigar a opinião que os
agricultores podem ter sobre política, ou mesmo seu comportamento eleitoral. Trata-se, mais
propriamente, de analisar em que medida os valores que associamos à democracia são favorecidos
por uma relação de cuidado e observação para com a terra, e que modos inventivos de organização
podem surgir dessa prática.
241
dela, aprende-se a “ajustar seu ritmo ao das estações e das plantas” (ibidem, p.
28), a respeitar as temporalidades próprias dos seres, a testar combinações,
suscitar alianças, interpretar as respostas da terra. Tal aprendizado, sugere Zask,
produz marcas indeléveis na formação do caráter: estimula o gosto pela invenção,
aguça a percepção da alteridade do mundo, suscita o respeito e a colaboração
necessários à construção de um coletivo. A reciprocidade experimentada nessa
prática refreia quaisquer impulsos de dominação. Não se trataria, portanto, de
ditar à natureza suas vontades, de lhe arrancar os frutos, de lhe extorquir seus
segredos, de lhe impor seus desejos insaciáveis: produzir o alimento demanda
moderar as pulsões (ibidem, p. 49). Nesse sentido, “ao se familiarizar com a
‘disciplina’ da natureza, o camponês respeita suas leis e tenta fazer delas as regras
de sua própria vida” (Zask, loc. cit.).
A agricultura campesina, nesse sentido, difere substancialmente daquilo que
é praticado pelo agronegócio: a subsistência não pode se confundir com o lucro, a
fertilidade da terra não obedece à noção capitalista de eficiência, a ocupação e o
usufruto da terra nada têm a ver com sua apropriação exclusiva. A imagem bíblica
da terra arrasada que Adão passou a lavrar a duras penas após ser expulso do
jardim do Éden se materializa hoje nas paisagens devastadas pelos pesticidas,
uniformizadas (ou simplificadas, para falar como Haraway), esgotadas pelos
métodos agroindustriais. Nesse sentido, é a privatização das áreas de lavragem e o
cultivo pela coerção (Tsing, 2015b, p. 189) – isto é, feito às custas da exploração
de plantas, animais, micróbios e pessoas – que devemos responsabilizar pela
associação entre trabalho na terra e sofrimento que perdura em nosso imaginário.
O trabalho que faz sofrer é o alienado de sua finalidade; ao contrário, quando o
cultivo se faz em consonância com o ritmo da própria terra e dos seus seres, não
distancia o indivíduo dele mesmo, não o esgota física e mentalmente. Ao
contrário, ele é a condição de sua existência, fornecendo aquilo de que os homens
precisam para sua humanização (a alimentação, o prazer estético, o espírito de
descoberta, a curiosidade para aprender e transmitir o saber, a postura solícita que
desenvolve qualidades morais).300 Torna-se, assim, fonte de aprendizado e alegria,
300
Tal afirmação encontra ressonância na descrição oferecida por Tsing do trabalho de restauração
de paisagens camponesas em alguns campos abandonados do Japão realizado por professor K, um
economista ambiental de Kyoto, e seus alunos: “Por causa do trabalho que eles tinham feito ali, [as
plantas e animais de paisagens camponesas] estavam começando a voltar. Mas tudo isso era um
trabalho contínuo de amor. A sustentabilidade da natureza, ele disse, nunca simplesmente
242
acontece: ela precisa ser desenvolvida [brought out] através do trabalho humano que também
desenvolve nossa humanidade” (Tsing, 2015a, p. 145).
243
301
Já tratamos das múltiplas alienações e devastações causadas pelo modelo de produção
monocultor nas seções 2.2.2.2 e 3.3.3. A respeito do tema, cf. Tsing, 2015a, 2015b, 2017;
Haraway et. al., 2016; Haraway, 2016. Especificamente sobre a cotonicultura, Zask lembra que
Thomas Jefferson via um profundo antagonismo entre o ideal de liberdade que passara a
caracterizar a democracia norte-americana e a concentração de terras propiciada pelo sistema de
plantation, em especial os de café e algodão, os quais, além de instaurar uma desigualdade seminal
entre aristocratas proprietários e camponeses sem terra, esgotam o solo em menos de três anos
(Zask, 2016, p. 155). Também John Steinbeck, em seu livro ganhador do Pulitzer Grapes of
Wrath, critica num diálogo o caráter predatório da cotonicultura: “Você sabe que a terra está
empobrecendo. Você sabe o que o algodão faz à terra: rouba-a, suga todo o seu sangue”
(Steinbeck, 1939, p. 22).
244
dona Maria vivem com a família, a mudança se deu de forma análoga: o solo
desgastado de quase uma década atrás recuperou a fertilidade depois que
construíram uma barragem subterrânea, que retém a água e permite a irrigação da
plantação. Mal dá para acreditar, ao observar a agrofloresta que ali floresceu, que
o solo era “frouxiado” como é o da paisagem do outro lado da cerca, que a família
ainda não teve tempo de cultivar. Já seu Dóia, que diz ter sido ensinado a
trabalhar pela seca, aprendeu a técnica da ensilagem (método de conservação da
forragem para alimentação animal em período de estiagem) e fez diversos testes
até descobrir que “o gado gosta mais da folhagem do arroz [vermelho] do que do
capim, por conta do sal que tem na palha” (Programa Semear, 2017, s./p.).302 O
aprendizado que se consolida com as experiências circula numa rede que conecta
agricultores de diversas partes do semiárido, além de organizações da sociedade
civil e universidades. A inventividade não se restringe às técnicas de cultivo e
manejo, fazendo-se notar também em modos de organização social em larga
medida independentes do Estado, como a participação nas feiras populares onde
vendem seus produtos e a criação do Fundo Rotativo Solidário, que permitia,
mediante o pagamento de uma pequena taxa mensal, a construção por mutirão de
uma cisterna por mês no terreno de um participante sorteado, quando as cisternas
ainda não eram objeto de política pública (Holliver, 2016, p. 28; 46). A
experimentação, assim, diz respeito a um agenciamento cosmopolítico que
favorece a um só tempo a recuperação ecológica, o aprendizado da coletividade e
a resistência anticapitalista.303
Especificamente no que diz respeito à água, a descrição que Zask faz da
relação entre o agricultor e a chuva parece até ter se inspirado nos
experimentadores do semiárido. Ela afirma que, em localidades de pouca
disponibilidade hídrica, a situação de escassez produz um modo de existência
302
Os agricultores e as práticas citados aqui são alguns dos que conhecemos numa visita ao Vale
do Sabugi em fevereiro de 2017. Agradecemos imensamente aos experimentadores que aceitaram
contar suas histórias e mostrar o trabalho incrível que vêm fazendo em suas terras, e ao amigo
Rondinelly Medeiros por ter sido, com sua família e amigos, um anfitrião tão gentil e afetuoso
nessa viagem. Essas e inúmeras outras práticas dos agricultores experimentadores do semiárido
estão reunidas na publicação Semeando saberes, inspirando soluções, organizada pelo Programa
Semear e parceiros (2017).
303
Num sentido amplo, reconhecemos a experimentação também em diversos movimentos de
resistência anticapitalista e de reivindicação de autonomia não diretamente ligados à causa
ecológica. Porém, mesmo reconhecendo que as possibilidades de alianças com esses outros
movimentos são muitas e desejáveis, nosso interesse aqui é analisar a experimentação no contexto
da questão ambiental, mais precisamente do aprendizado cosmopolítico capaz de constituir
comunidade com os seres-da-terra.
246
304
Com um sentido análogo, Viveiros de Castro assevera, sobre os agricultores experimentadores
do semiárido, que sua política “é essencialmente uma hidropolítica”, à qual se pode atribuir o
caráter singular de sua civilização “tecnicamente resiliente e culturalmente original” (2019).
305
Holliver oferece vários exemplos dessa capacidade de previsão meteorológica. Citamos alguns:
“Quando, no mês de dezembro, uma árvore seca e cheia de cupins se quebra, isso é um sinal de
que a chuva está chegando. Uma aroeira que resistiu e chegou até esse mês carregada de folhas
indica o mesmo. [...] Quando o bacurau canta no fim do dia, isso é um indicativo de que o inverno
ainda não terminou, ainda há chuva por vir neste período. Já o canto do ‘gavião de rapina’
significa seca. Outra técnica bem conhecida é a observação da vida social das formigas, em
particular da altitude do terreno onde elas fazem seus ninhos: quanto mais alto o monte de terra
onde está a entrada, maior será a quantidade de chuvas prevista, pois as formigas não querem
correr o risco de ver suas casas inundadas. A quantidade de bagaço que as mesmas formigas
retiram de suas casas para fazer uma nova armazenagem sugere também fortes indicativos: uma
grande quantidade demonstra que as formigas estão em processo de limpeza de seus ninhos, pois
precisarão de muito espaço para estocar o novo capim do inverno” (2016, p. 35-36).
247
tempos, mas também se conectaram, por meio das práticas e inovações adotadas,
a ritmos e tempos outros, como os dos indígenas que ali viviam no século XVII,
antes de serem exterminados pelos bandeirantes que visavam converter suas terras
em fazendas, ou os dos camponeses que cultivavam seus pequenos roçados
(verdadeiros refúgios, no sentido que a palavra tem na obra de Tsing)306 dentro das
fazendas e latifúndios do sertão onde serviam de mão-de-obra. Esses povos
desenvolveram muitas das técnicas que hoje seu Heleno, seu Inácio e seu Dóia,
entre tantos outros, redescobrem e adaptam. Assim, em lugar da “antropologia da
onipotência” (Zask, 2016, p. 29) que tão bem serve aos desígnios do capital, esses
agricultores experimentaram um agenciamento cultivador-terra, que lhes
descortinou possibilidades de existência diferentes das alternativas infernais
usuais. Ou ainda, para colocar a questão nos termos propostos por Zask (mas sob
uma formulação decididamente influenciada por Stengers e Latour), eles
reinventam a democracia ao estendê-la aos demos, povos, do campo, ao conceder
cidadania cosmopolítica a esses agentes extra-humanos de que dependem para
existir, ao aprender a pensar com e diante deles e, com eles, descobrir a
independência que lhes permite rexistir em meio à devastação da qual o
capitalismo se alimenta para prosperar.
306
Para aqueles que se veem irremediavelmente ligados à terra, o exílio, sobretudo quando
motivado pelo esgotamento daquela pelas antropotécnicas capitalistas, tem implicações bastante
profundas. “[...Q]uando a desolação atinge a terra, a vinha ou a casa, o pior é que os habitantes não
podem nem ficar nem nutrir o projeto de retornar. Quanto mais o tempo passa, mais difícil fica
retornar, mais a terra os repele. O retorno, sempre protelado, se torna psicologicamente
insuportável. Mas mesmo que não seja possível voltar, tampouco se pode abandonar o projeto.
Essa situação é ainda mais angustiante na medida em que a terra, em seu estado de desolação, é a
marca permanente do fracasso de um povo e de sua cultura. Tudo o que resta é progressivamente
pilhado, destruído e dissipado” (Zask, 2016, p. 31-32). Encontramos uma potente expressão dessa
angústia na obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos (1938); porém, ao contrário das interpretações
de cunho humanista ou mesmo existencialista que atribuem essa angústia à aridez da paisagem do
sertão (tomando-a como uma metáfora para a falta de sentido da vida), seguimos aqui a leitura de
Rondinelly Medeiros, para quem o silêncio angustiante dos personagens, mais que ditado pela
aridez da paisagem, é imposto pelos agentes do poder político e econômico (o comércio, os
soldados, o cobrador da prefeitura, o patrão...), que “os mantêm aprisionados ao não-saber e à
impotência” (2018, p. 124). Isto é, que garantem seu domínio sobre a ordem social interditando os
agenciamentos que Fabiano e família poderiam entreter com a terra e seus seres, bloqueando a
“multiplicação de sociabilidades, a saturação de culturas e naturezas, que produz e prolifera
variações comunicativas e que resgata a alegria. O que silencia e os angustia é justamente a
obrigação de participar de um único meio de sociabilidade, no qual ocupam sempre um lugar
desumano” (ibidem, p. 127). A angústia, portanto, não decorre da dificuldade da vida no sertão (ou
da incontornável miséria da condição humana), mas do exílio forçado imposto pelo agenciamento
Estado-capitalismo, da destruição dos meios materiais e cosmopolíticos de existir fora dele. Nesse
sentido, a saída adotada por Fabiano e sua família (ainda segundo Medeiros), que parece ser
também a seguida pelos agricultores experimentadores de que tratamos aqui, é a de devir outros-
que-humanos para escapar do perigo de se tornarem menos-que-humanos, isto é, humanos de
segunda categoria, submetidos aos desígnios do capital.
248
307
As ecovilas têm sua origem nas comunas que se formaram nos anos 1960 e 1970 inicialmente
nos Estados Unidos, mas que se espalharam pelo mundo, aliando a preocupação ambiental com o
desejo de experimentar modos de vida comunitária alternativos às sociedades industriais. O termo
e sua primeira definição foram cunhados em 1991, quando Robert e Diane Gilman publicaram
Ecovillages and Sustainable Communities, um estudo sobre as comunidades existentes até então.
Quatro anos mais tarde, a primeira conferência sobre ecovilas aconteceu em Findhorh, Escócia,
levando à fundação da Rede Global de Ecovilas (Global Ecovillage Network) e à maior
disseminação de experiências ligadas a esse modo de vida comunitário. Cf. Ecovillage, 2019 e
Gunther, 2013.
308
Cf. Bihouix, F. (2014). L’âge des low tech: vers une civilisation techniquement soutenable.
Paris: Seuil.
249
309
Expressão empregada para se referir a áreas reservadas pelo governo francês para intervenções
de ordenamento público e submetidas a um regime jurídico diferenciado de direitos de compra e
venda, com vistas a coibir a especulação imobiliária que poderia levar ao aumento do preço do
terreno quando o projeto de ordenamento fosse anunciado.
310
As outras fontes consultadas sobre as ações desenvolvidas na ZAD foram Bolis, 2016 e
Mouillard, 2014.
250
311
Cf. Thoiset, 2018.
312
Como lembra Renzo Taddei: “Atraso e subdesenvolvimento, entendidos em oposição a
modernidade e progresso [...] são termos ambíguos em sua significação, mas poderosos em sua
capacidade de apelo emocional, servindo de instrumento semiótico para que grupos políticos
locais os projetem sobre as realidades com as quais convivem. No Nordeste brasileiro, a
agricultura familiar, o subsídio e a ajuda governamental são representados como símbolos do
atraso; e a indústria, o turismo, o agronegócio para exportação, a competitividade mercadológica e
a auto-sustentabilidade transformam-se em símbolos da modernidade” (2006, p. 2).
251
Essa potência de conexão anacrônica é uma das razões pelas quais não
convém pensar a ideia de resistência primordialmente como “revolução”. 313
313
É certo que a ideia que fazemos de “revolução” pode ser modificada por afetos e concepções
que apontam para uma abertura cosmopolítica daquela noção. Esse parece ser o caso, por exemplo,
da proposta de introduzir na política elementos normalmente associados a uma “frivolidade”
supostamente incompatível com ela, como a dança e a alegria: “Se não posso dançar, não é minha
revolução”, diz a frase atribuída à militante feminista Emma Goldman (cf. Shulman, 1991). Parece
ser também o caso das conexões parciais, para falar como Strathern (1991), produzidas entre
movimentos de resistência heterogêneos, como a que a feiticeira neopagã Starhawk estabeleceu
entre as lutas das ecofeministas e dos anarquistas Black Bloc: “Eu quero vencer esta revolução.
Não acredito que tenhamos os meios ecológicos e sociais de levar outra revolução adiante caso
esta fracasse. E as chances de vencê-la são tão mínimas que não podemos fazer outra coisa senão
ser inteligentes, bons estrategistas e nos unir uns com os outros” (Starhawk apud Stengers;
Pignarre, 2005, p. 191). Alegria e ecologia também parecem compor o novo horizonte
252
Como mostra Latour, tal noção está intimamente vinculada a uma concepção do
tempo que supõe uma irreversibilidade entre passado, presente e futuro; quando a
ideia de revolução é invocada, acredita-se, ou espera-se, instaurar uma ruptura que
separa o presente (e o futuro ainda mais promissor) do passado supostamente
arcaico: “‘[m]oderno’, portanto, é duas vezes assimétrico: assinala uma ruptura na
passagem regular do tempo; assinala um combate no qual há vencedores e
vencidos” (Latour, 1994, p. 15). Contra as forças ditas históricas que querem fazer
parecer que “não se pode andar para trás”, trata-se, ao contrário, de recuperar
(reclaim) a habilidade de reconectar elementos heterogêneos, articular dimensões,
convocar novos aliados na tarefa de resistir à imposição de uma única maneira de
existir. O que significa pensar a aliança com os seres da terra, naturais e
sobrenaturais, cultivadas pelas feiticeiras – mas também pelos indígenas e pelos
camponeses estudados nesta tese, por exemplo – como prefigurações possíveis da
forma de habitar o mundo presente e por vir, mais do que um passado que teria
ficado para trás? Com um sentido análogo, Déborah Danowski e Eduardo
Viveiros de Castro afirmam, em Há mundo por vir?:
Para quase todas as formas assumidas pelo pensamento hoje dominante entre
“nós”, apenas uma direção é pensável e desejável, a que leva do “negativo” ao
“positivo”: do menos ao mais, da posse de pouco à propriedade de muito, da
“técnica de subsistência” à “tecnologia de ponta”, do nômade paleolítico ao
cidadão cosmopolita moderno, do índio selvagem ao trabalhador civilizado. Assim,
quando comunidades camponesas “em vias de modernização” decidem voltar a ser
indígenas, demonstrando em juízo sua continuidade histórica com povos nativos
oficialmente extintos, como tantas povoações rurais vêm fazendo no Brasil desde a
promulgação da Constituição de 1988 – a qual deu direitos coletivos de posse da
terra aos índios e descendentes de escravos implantados no campo –, a reação
escandalizada e furibunda das classes dominantes tem sido um espetáculo
imperdível. [...] Assim se dá, pois, que só é possível (e desejável) a um indivíduo
ou comunidade deixar de ser índio; é impossível (e repulsivo) voltar a ser índio:
como alguém pode desejar o atraso como futuro? […T]alvez seja impossível
voltar historicamente a ser índio; mas é perfeitamente possível, mais que isso, está
efetivamente se passando, um devir-índio, local como global, particular como
revolucionário imaginado pela feminista operaísta Mariarosa Dalla Costa numa conferência
proferida em 2002: “Eu precisava admitir que nem em minha militância no Potere operaio [Poder
Operário, grupo político italiano radical de esquerda], nem no movimento feminista, eu tive
qualquer momento, um único momento que fosse, de alegria. Só me recordava de uma fadiga
enorme, imensa. [...] O fato é que, enquanto buscava a causa de minha falta de alegria, eu precisei
admitir que o contexto no qual eu lutava nos anos 1970, diante das fábricas ou dentro das casas –
basicamente a junção tempo-dinheiro [...], constituía um solo incapaz de mobilizar minhas forças
interiores na produção de fluxos de energia. [...] Eu carecia de algo que pudesse gerar emoções
positivas, um imaginário potente, que pudesse descortinar cenários diversos. Eu precisava
encontrar outras questões e novos sujeitos que desejassem e pudessem efetivamente pensar um
mundo diferente. Então, durante uma parte dos anos 1980 eu continuei a perambular, indo de um
cômodo a outro do conceito de reprodução. Até que, em dado momento, eu olhei a porta que dava
para o jardim, e vi a questão da terra” (Dalla Costa, 2002).
253
314
“Opõe-se realidade e ficção para melhor despolitizar o imaginário”, afirma Hache (2016, p. 18).
254
3.2.5.
Insubmissão ao poder, obstrução de seus fluxos
315
Na língua kayapó, Kararaô significa “grito de guerra”, o que confere requintes de provocação
aos planos do governo brasileiro de construir um complexo hidrelétrico na Bacia do Rio Xingu (do
qual Kararaô seria a primeira usina instalada), projeto que ocasionaria “o alagamento de mais de
18 mil km2 e atingiria sete mil índios, de 12 Terras Indígenas, além dos grupos isolados da região”
(Cf. Histórico, 2010). Depois de inúmeras modificações no projeto, a construção da usina acabou
demandando uma menor área alagada (478 km2 no total), tendo preservado do alagamento as
terras indígenas adjacentes (Norte Energia, 2019). No entanto, isso não significa que os impactos
do empreendimento não sejam desastrosos para as populações amazônicas. Além dos problemas
socioeconômicos e ambientais de praxe no entorno de grandes obras, como o aumento do custo de
vida devido à especulação imobiliária, a escalada da violência, a aceleração do processo de
favelização, a remoção de milhares de famílias sem sequer uma indenização minimamente
satisfatória, o crescimento da demanda por equipamentos sociais sem que haja capacidade
instalada, a alta mortandade de peixes e o maior risco de poluição devido ao emprego de óleo
diesel para movimentar as turbinas (G1, 2016), há também o aumento do desmatamento na Volta
Grande do Xingu – “apenas em novembro [de 2018], 4.454 hectares de floresta foram destruídos
na Terra Indígena (TI) Paquiçamba e no município de Senador José Porfírio” –, que vem
provocando a diminuição do volume de água do rio Xingu e o desabastecimento dos povos da
região e o aumento das invasões a terras indígenas, motivadas também pela tentativa de
licenciamento da mineradora Belo Sun (Harari, 2018), entre outras consequências nefastas.
255
não mais daria nomes indígenas a hidrelétricas, mas o projeto só foi arquivado
quando, diante da repercussão negativa do episódio, o Banco Mundial desistiu de
financiar a obra. Isto não impediu, contudo, que 12 anos depois, e malgrado toda a
mobilização não apenas de indígenas, mas também de outros povos da Amazônia,
organizações da sociedade civil, antropólogos, biólogos, ambientalistas,
personalidades nacionais e internacionais e mesmo de especialistas do setor de
energia, todos contrários à instalação de grandes projetos de infraestrutura na
região, o plano de construção da usina – agora nomeada Belo Monte – fosse
desengavetado. Desde então, os indígenas e seus aliados promoveram inúmeras
manifestações, ocuparam os canteiros de obra, emitiram diversos comunicados
conclamando o apoio da sociedade e exigindo do governo e do consórcio de
construção da usina o respeito aos direitos que, desde a etapa dos estudos prévios
até hoje, dois anos depois da entrada da usina em operação, vêm sendo
continuamente violados. O gesto de Tuíra inaugurou uma série de atos de
resistência contra a usina, resistência que já dura quase 30 anos: os índios, mas
também os ribeirinhos, pescadores e demais comunidades da floresta não vão
desistir de lutar. Uma carta divulgada em uma das ocupações realizadas no
principal canteiro de obra da usina, localizado em Vitória do Xingu, no Pará – era
já a segunda ocupação no mesmo mês de maio de 2013 – é bastante emblemática
desse posicionamento. Ela dizia, entre outras coisas:
Nós somos indígenas Munduruku, Xipaya, Kayapó, Arara e Tupinambá. Nós
vivemos do rio e da floresta e somos contra destruírem os dois. Vocês já nos
conhecem, mas agora somos mais.
O seu governo disse que se nós saíssemos do canteiro, nós seríamos ouvidos. Nós
saímos pacificamente – e evitamos que vocês passassem muita vergonha nos
tirando à força daqui. Mesmo assim, nós não fomos atendidos.
[...] Então nós ocupamos mais uma vez o seu canteiro de obras. Não queríamos
estar de volta no seu deserto de buracos e concreto. Não temos nenhum prazer em
sair das nossas casas nas nossas terras e pendurar redes nos seus prédios. Mas,
como não vir? Se não viermos, nós vamos perder nossa terra [...].
A partir de agora o governo tem que parar de dizer mentiras em notas e entrevistas.
E de nos tratar como crianças, ingênuas, tuteladas, irresponsáveis e manipuladas.
Nós somos nós e o governo precisa lidar com isso.
[...] Nós ocupamos de novo no seu canteiro – e quantas vezes será preciso fazer
isso até que a sua própria lei seja cumprida? Quantos interditos proibitórios, multas
e reintegrações de posse vão custar até que nós sejamos ouvidos? Quantas balas de
borracha, bombas e sprays de pimenta vocês pretendem gastar até que vocês
assumam que estão errados? Ou vocês vão assassinar de novo? Quantos índios
mais vocês vão matar além de nosso parente Adenilson Munduruku, da aldeia
Teles Pires, simplesmente porque não queremos barragem? (Cimi, 2013).
Nesta seção, trataremos das estratégias e ações de resistência cosmopolítica
256
que se caracterizam sobretudo pela oposição direta (por meios pacíficos ou não) a
projetos político-econômicos que servem à manutenção do poder estatal-
capitalista ao mesmo tempo em que implicam a devastação eco-ontológica da
Terra, bem como das iniciativas capazes de bloquear as instâncias por onde
circulam os fluxos que sustentam “a organização material, tecnológica e física”
(Comité Invisible, 2014, p. 85) na qual o capitalismo enreda nossas vidas.
Chamaremos o primeiro grupo de atos de insubmissão, considerando que ele
contempla as ações de ativismo ambiental e desobediência civil (desde as
manifestações pacíficas até as ações diretas e confrontos físicos), as insurreições,
as pilhagens, os saques e demais demonstrações públicas de oposição à
aniquilação geontológica e de reivindicação de autonomia para gerir nossa própria
existência, ameaçada pela expansão capitalista. Já o segundo grupo de ações
chamaremos de táticas de obstrução, incluindo as interceptações, sabotagens,
bloqueios e toda sorte de intervenções capazes de interromper os fluxos,
desarticular a infraestrutura, embaraçar, mesmo que somente por um período
indeterminado, o funcionamento dos circuitos da destruição cosmopolítica
empreendida pelo capital.
É importante notar, contudo, que, no mais das vezes, a distinção entre
insubmissão e obstrução não é nítida: ambas se misturam nas táticas adotadas
pelos movimentos de resistência. A distinção entre elas é proposta aqui mais
como um recurso conceitual que por sua verificação prática. Esse entrelaçamento
é notado, por exemplo, na estratégia de oposição à usina Belo Monte, em especial
na carta mencionada há pouco: os ocupantes não reconhecem como seu o governo
que autoriza projetos que destroem os modos de vida não brancos; denunciam a
violência desmedida com que esse governo recebe seus pleitos, o desrespeito às
leis que deveria fazer cumprir, a impunidade e covardia do assassinato de um
parente seu; e avisam que ocuparão quantas vezes for preciso o canteiro de obras
para se fazerem ouvir, mesmo sabendo que as autoridades não teria escrúpulos de
se valer novamente da força para silenciá-los. Ainda, segundo o relato do
consórcio construtor da usina, os ocupantes teriam ameaçado “queimar máquinas
e equipamentos, além de espalhar papéis na área externa do escritório central para
garantir a propagação do fogo” (Veja, 2013).316 Ainda que haja inúmeras razões
316
O texto claramente se posiciona do lado do consórcio construtor e, por que não dizer, das forças
do capital que operam com a anuência do Estado; sob essa perspectiva, os índios é que são os
257
para desacreditarmos as acusações a indígenas feitas pelos que lucram com sua
aniquilação (e também para desconfiar da revista em que tal informação foi
noticiada), dessa vez a situação nos parece bastante possível: a construção de Belo
Monte implicaria (implicou) uma destruição que eles não estavam dispostos a
permitir.
No livro À nos amis, o coletivo anarquista Comité Invisible defende a tese
de que o poder a que chamamos genericamente de capitalismo reside na própria
infraestrutura que alicerça o mundo contemporâneo – isto é, nas rodovias, redes
de alta tensão e de esgotos, supermercados, nos programas de computador, enfim,
em tudo aquilo que integra a “organização tecnológica e mercantil” na qual nossas
vidas parecem terminantemente enredadas 317 (Comité Invisible, 2014, p. 84,
ligeiramente modificado). Fora do ambiente urbano, a contrapartida desse
estriamento espacial tecnológico é praticada pela extração de recursos agro-
minerais (por indústrias dedicadas a esse negócio ou pela exploração de
trabalhadores em condições precárias que abastecem outras indústrias), a qual
envolve ou integra uma rede altamente automatizada, quimicamente turbinada e
cada vez mais militarmente paramentada, com os auspícios do Estado.318 Nesse
sentido, seja no meio urbano, rural ou na floresta, “toda a indignação dos cidadãos
só os pode levar a dar com sua testa atormentada de cara no concreto armado” da
sociedade capitalista industrializada (ibidem, p. 85) – ou, como poderiam dizer os
indígenas da carta mencionada anteriormente, de cara com o “deserto de buracos e
319
Viveiros de Castro prossegue descrevendo o que chama de “trapaça colonialista” da forma-
Estado do pensamento: “[o] Um e o Único. O Estado como Mundo, o Mundo como Estado
Comum. Mas um verdadeiro comum é precisamente o sem-Um” (2017, p. 2).
320
Evocamos aqui propositalmente as noções de experimentação e reclaim analisadas na seção
anterior, para evidenciar o quanto os conceitos que orbitam a ideia de rexistência cosmopolítica
apresentados nesta tese estão interligados. Se os abordamos em separado, é apenas para salientar
alguns aspectos que nos parecem mais interessantes na lógica de agrupamento dos conceitos que
seguimos aqui.
259
321
Frase lida em cartazes na ZAD de Notre-Dame-des-Landes (cf. seção 3.2.4) e em diversas
outras mobilizações ecopolíticas da França.
260
Casa Branca. Alguns meses depois, outra manifestação reuniu ativistas que,
“vestindo” um tubo inflável (em referência ao oleoduto), formaram uma cadeia
humana que deu a volta na casa presidencial. Em 2013, a mobilização viu seu
auge ao juntar entre 35 e 50 mil pessoas entre ambienta-listas, indígenas, ONGs e
sociedade civil, naquele que foi considerado então o maior protesto climático da
história. 322 Manifestações de apoio aconteceram simultanea-mente em outras
partes dos Estados Unidos e no Canadá e Europa. Em 2014, cerca de 1200
pessoas marcharam até a Casa Branca, algumas das quais se amarraram com
correias de plástico às grades e deitaram-se em lonas pretas que simbolizavam um
derramamento de óleo; 398 delas foram presas. Diversas ONGs tentaram também
interromper o projeto judicialmente, abrindo processos contra o governo. Devido
às disputas, em 2015 o então presidente Barack Obama rejeitou o projeto, mas em
2017 Donald Trump deu sinal verde para sua continuidade; a construção só não
aconteceu ainda devido a exigências regulatórias (o impedimento mais recente foi
emitido por um juiz federal de Montana em novembro de 2018).323 O governo está
se preparando para a resistência que, sabe, enfrentará: um documento vazado
recentemente tipificava os oponentes ao oleoduto como “extremistas e criminosos
violentos”, prevendo uma violenta repressão policial justificada pelo suposto
potencial “terrorista” das ações.324 Ainda assim, diante da notificação emitida pela
empresa responsável pelo oleoduto informando a retomada do projeto, a tribo
Cheyenne River Sioux, do Canadá, respondeu ameaçadoramente: “Estaremos
esperando”.325
Outros projetos do setor de óleo e gás e de mineração estudados pelo
governo norte-americano também vêm encontrando resistência similar. O projeto
do recém-construído oleoduto Dakota Access, que liga os campos de petróleo
(extraído sobretudo via fracking) de Dakota do Norte a Illinois, também foi alvo
de uma intensa oposição de ambientalistas, especialistas do setor e da sociedade
civil; mas foram sobretudo os povos Sioux (Dakota e Lakota) que habitam a
Reserva Indígena Standing Rock que protagonizaram os enfrentamentos mais
322
O recorde de participação foi alcançado pela Marcha do Clima realizada em 21 de setembro de
2014 em Nova Iorque, por ocasião da reunião da Cúpula do Clima prevista para dois dias depois.
A marcha reuniu 311 mil participantes, além dos que tomaram parte em marchas simultâneas
realizadas em várias outras partes do mundo (cf. People’s Climate March, 2019).
323
Cf. Keystone Pipeline, 2019; Mayer, 2011 e Goodell, 2011.
324
Cf. Parrish; Levin, 2018.
325
Cf. McKenna, 2018.
261
326
Ao todo, 761 foram presas ao longo dos 10 meses de oposição ao oleoduto (Associated Press,
2018).
327
Apesar de alguns manifestantes terem pensado que os bisões haviam aparecido
inesperadamente, o que foi considerado como um sinal de esperança, posteriormente testemunhas
afirmaram que os animais foram soltos por pessoas envolvidas nos protestos (aparentemente, eles
haviam sido presos pela empresa construtora do oleoduto). Cf. Hanson, 2016 e Good, 2016.
328
“Nós somos o rio, e o rio somos nós. Não temos outra escolha senão resistir”, afirmou LaDonna
Brave Bull Allard, a responsável pelo primeiro acampamento do movimento de resistência (Brave
Bull Allard, 2016).
329
Ainda segundo Allard: “Precisamos lembrar de que somos parte de uma história maior. Ainda
estamos aqui. Ainda estamos lutando por nossas vidas, 153 anos depois que minha trisavó Mary
observava enquanto seu povo era cruelmente assassinado. Não deveríamos precisar lutar tanto para
sobreviver em nossas próprias terras” (Brave Bull Allard, 2016).
262
330
Para informações sobre o movimento contra a obra, cf. a cobertura do site Democracy Now!
(<https://www.democracynow.org/topics/dakota_access>), Gunderson, 2016 e Levin, 2017.
263
331
Essa autonomia em relação ao capitalismo é ativamente mantida em várias frentes. Em À nos
amis, o Comitê Invisível contabiliza 29 enfrentamentos zapatistas a projetos de minas, rodovias,
usinas elétricas e barragens (2014, p. 90).
332
Cf. por exemplo o site da iniciativa Fossil Free: <https://gofossilfree.org/>.
265
333
A esse respeito, acreditamos que o surgimento do movimento Extinction Rebellion constitui um
marco na recente história da desobediência climática no mundo. Criado em 2018 no Reino Unido
(mas aberto a participantes de outras partes do mundo), o movimento tem como objetivo apoiar e
encorajar atos de desobediência civil (sobretudo climática) envolvendo graus diversos de risco,
com vistas a pressionar o governo por medidas efetivas para fazer frente às mudanças climáticas e
a estimular maior envolvimento dos cidadãos nas decisões que os afetam, por meio de processos
participativos mais democráticos e horizontais. Cf. o site do movimento (<https://rebellion.earth/>)
e New Internationalist, 2018). É interessante também destacar a colaboração cada vez mais
constante entre dezenas de ONGs ambientais do mundo todo na mobilização de manifestações
periódicas, geralmente por ocasião de alguma reunião de chefes de Estado sobre a questão
climática. Entre as mais recentes, o evento Rise for Climate reuniu, no dia 8 de setembro de 2018,
cerca de 250 mil pessoas em 95 países e sete continentes participando de mais de 900 ações que
exigiam o fim dos combustíveis fósseis e a adoção de energias renováveis (cf. o site
<https://riseforclimate.org/>). Alguns destaques dos protestos estão disponíveis em BBC News,
2018.
334
Os manifestantes são assim chamados por participarem dos protestos vestindo os coletes de
segurança amarelos que são equipamento de uso obrigatório nos veículos que circulam na França.
Os coletes são uma referência ao motivo que os levou às ruas: um novo aumento no preço do
266
combustível, que encarece sobremaneira o custo daqueles que habitam o campo e os subúrbios,
que dependem de seus carros para se locomover (os coletes os identificam, assim, como motoristas
prejudicados pelas decisões do governo). Desde as primeiras manifestações realizadas em 17 de
novembro de 2018, que mobilizaram quase 300 mil pessoas de todo o país (as convocações são
feitas por meio das redes sociais e de forma descentralizada – não há a quem atribuir a liderança
dos atos), os gilets jaunes vêm bloqueando a circulação em vias e anéis rodoviários e exigindo o
atendimento de demandas que vão muito além da redução do preço da gasolina (cf. nota 336). Até
o momento em que escrevemos essas linhas, já ocorreram nove atos convocados pelo movimento
na França, além de diversos protestos inspirados nos gilets jaunes realizados em outros países.
Entre as fontes consultadas para compreender o movimento, destacamos Goar, 2018; Leclerc,
2018 e Feertchak, 2018.
335
Trata-se de um movimento apartidário e não-ideológico que vem sendo apoiado com
entusiasmo por simpatizantes e representantes tanto da esquerda quanto da extrema-direita (De
Boissieu, 2018). De modo que é cedo ainda para conjecturar sobre os desdobramentos que o
movimento pode ter, sobretudo considerando que as forças políticas estabelecidas tentarão
sobrecodificar a potência insurrecional dos gilets jaunes, com vistas a direcionar sua indignação
difusa a demandas mais facilmente determináveis (e convenientes aos interesses daquelas forças
políticas).
336
A lista atual de reivindicações do movimento vai muito além da redução do preço dos
combustíveis: entre as 42 exigências fiscais e sociais, está o aumento do salário mínimo, o
estabelecimento de um salário máximo de 15 mil euros, a taxação das grandes riquezas, a
267
Anthropos” (2016, p. 998). Ao contrário, os seres do Chthuluceno, que são também os Terranos,
“são seres mais da lama que do céu” (ibidem, p. 488), inseparáveis de uma pilha de composto,
húmus e não Homo ou anthropos (ibidem, p. 1288).
339
O trecho em que a afirmação se insere é o seguinte: “Na cidade, ao contrário, a
desterritorialização é de imanência: ela libera um Autóctone, isto é, uma potência da terra que
segue um componente marítimo, que passa por sob as águas para refundar o território (o Erecteion,
templo de Atena e de Poseidon)” (1992, p. 114, grifos meus).
269
Considerações finais
340
O Dark Mountain é um projeto que reúne artistas, escritores e pensadores engajados na tarefa
de “contestar as histórias que sustentam nossa civilização, [a saber,], o mito do progresso, da
centralidade humana e de nossa separação da ‘natureza’”, e que por isso estão à procura de “outras
histórias, que possam nos ajudar a compreender [esse nosso] tempo de rupturas e incertezas” (The
Dark Mountain Project, 2019).
341
“O que você faz quando para de fingir?”.
342
Esse argumento é bastante próximo do apresentado pelo filósofo Clive Hamilton no livro
Réquiem for a species (2010).
343
Segundo conta o escritor Douglas Strang, as perguntas a que o Uncivilisation, primeiro
encontro organizado pelo projeto Dark Mountain e realizado em 2010, buscou responder eram: “O
que fazer quando pararmos de fingir que ‘o mundo como nós o conhecemos’ pode ser mantido…
[e] onde encontramos novas histórias para o mundo desconhecido à nossa frente?” (Strang, 2010).
A esse respeito, poderíamos afirmar, seguindo Deleuze: devemos nos servir dessa impotência para
acreditar na vida.
272
Não iremos nos alongar muito: uma tese especulativa como esta não enseja
conclusões muito precisas, tampouco oferece meios para a verificação da validade
daquilo que aqui propusemos. Há, aliás, quem possa objetar que tudo isso não
passa de fantasia, de um mero exercício intelectual que de nada serve para frear a
aniquilação em escala planetária que nos ameaça. Ou que as experiências, práticas
e conceitos considerados por nós exemplos de resistência (ou, o que dá no mesmo,
possibilidades de rexistência) consistem em situações muito específicas, dizendo
respeito a minorias pouco expressivas, baseadas em modos de organização não
escalonáveis. Em suma, que tudo isso é muito pouco diante do tamanho da
ameaça que temos à frente. A resposta a estas objeções tomamos emprestada de
Stengers: aqueles que esperam alguma outra coisa, na verdade estão abdicando da
tarefa de pensar e agir juntos e deixando nosso destino à mercê da “tirania dos
especialistas que irão gerir a penúria, no sentido de que para viver vai ser preciso
merecer, no sentido de ‘pior para os que ficaram para trás, pior para as bocas
inúteis’” (2017, p. 122).
As ideias que aqui articulamos, assim, mobilizam a noção de ecologia em
dois sentidos distintos, porém complementares. O primeiro deles, de natureza
científica, diz respeito às dinâmicas relacionais estabelecidas entre os diversos
seres que constituem o oikos, o local que habitamos: é nesse sentido que podemos
tratar como catástrofe ecológica o problema que serviu de objeto primeiro para
nosso trabalho. Porém, seguindo o que propõe Stengers, a ecologia pode designar
também a abertura a possibilidades outras de habitar o oikos, a imaginação que
nos permite “inventar, produzir, criar novos tipos de relação uns com os outros e
com aquilo de que nós vivemos e aquilo com que nós vivemos” (Stengers, 2017,
p. 124). A ecologia, nessa segunda acepção, se abre ao cosmos e convida à
“criação coletiva, que é também aprendizado de indocilidade em relação àqueles
que nos dizem: ‘vocês são incapazes, vocês são egoístas, vocês são impotentes’”
(Stengers, loc. cit.). Ela diz respeito, portanto, à constituição de novos ethoi que
nos tornem capazes de pensar pelo meio e com o meio, mobilizados pelas
situações que nos concernem, agenciados com os seres nelas envolvidos.
Para encontrar novamente, ou de novas maneiras, a Terra – esse solo
comum que ameaça desabar sob nossos pés –, a ecologia não pode prescindir da
(cosmo)política como bússola. Tentamos, com esta tese, acompanhar o
movimento da Terra e de seus povos, humanos e outros-que-humanos, nessa nova
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