Psychoanalysis">
A Intima Utopia-Editado
A Intima Utopia-Editado
A Intima Utopia-Editado
INTRODUÇÃO
Neste século de todas as loucuras, por que ainda falar da psicose, esse
fragmento de espelho que cada um carrega com grande esforço para que lhe
sejam menos estranhas suas próprias rupturas e as das sociedades que
acreditou compreender?
Viemos de infâncias paralelas, ignorantes uma da outra.
Ele, judeu. Cidades cada vez mais latinas o protegeram do nazismo.
Descobriu concomitantemente os campos do exílio e as ilhas do Caribe.
Ela, filha de psiquiatra. Foi criada por “empregadas” parafrênicas, cujos
delírios, já antigos, as diziam “inocentes”. Eram-lhes confiadas a cozinha, as
crianças e os cães nos vastos domínios dos hospitais em que, durante a
Ocupação, por trás dos fossos, agia o “extermínio suave”.
Assim, desde cedo carregamos em nós mesmos o “asilo”. Ele nos
protegeu das loucuras da história. E continuamos a falar do asilo aqui,
quaisquer que tenham sido, ao longo dos anos, os nomes que ele adotou.
Utopias coletivas, militâncias, psicoterapia institucional. Sempre é
necessário um lugar que permita viver e encontrar o outro.
Provisoriamente, chamamos nossas construções singulares de
“Quimeras” ou “Monstros”; com cada alma vagabunda, exploramos seus
estratos e contornos. Tudo pode formá-los, ou melhor, deformá-los: um ataque
de mau humor ou a queda do muro de Berlim. E sua combinatória nos
interessa mais que sua significação.
A psicoterapia analítica das psicoses parece a priori uma empreitada
desmedida. De Freud – que a dizia impossível pela ausência de “transferência”
– até Lacan – que não quis estabelecer nada além de suas “preliminares” –, a
psicanálise permanece no limiar desse domínio no qual a falha simbólica
1
Este texto foi extraído do livro L´intime utopie: travail analytique et processus psychotiques, publicado na
França em 1991. Os autores, próximos a Guattari, trabalharam por anos na clínica de La Borde. Dessa
cumplicidade clínica, institucional e teórica nasceu o presente trabalho, incompreensivelmente ainda inédito
no Brasil. Traduzido de maneira caseira por iniciativa do psicanalista Maurício Porto, há anos atrás, o texto
foi aqui cuidadosamente revisado e aprimorado pela psicanalista e tradutora Cláudia Berliner.
proíbe e torna perigosa a associação livre de figuras e palavras, o
desenfreamento sistemático do pensamento.
Bleuler já afirmava que uma quantidade três vezes maior de pacientes
saía de Burgholzli depois de os médicos “terem começado a tratá-los
2
2
Clínica de Bleuler na Suíça, no início dos anos vinte.
3
Paul Federn, “Psychanalyse des psychoses”, in La psychologie du moi et les psychoses. Paris: PUF, 1979.
4
Se tal termo pode nos parecer chocante, basta pensar no que foi, por exemplo, a psiquiatria oficial na URSS
após a Segunda Guerra Mundial; ou, atualmente, a larga prática de lobotomias nos Estados Unidos.
Muito frequentemente as categorias da psicose, da neurose e da
perversão têm sido cuidadosamente separadas apenas para, em seguida,
melhor descrever a mistura de suas particularidades em formas híbridas,
“mistas”, limites, adjacentes ou monstruosas . Uma vez ultrapassado o longo
5
deveria nos fazer esquecer que a reflexão de Freud não teve nem motivos nem
efeitos terapêuticos, que ela nunca questionou o autor do texto original na
experiência do tratamento e da transferência – crucial, entretanto, para a teoria
psicanalítica.
Negligenciando os escolásticos que tão frequentemente acompanham as
práticas de cuidados asilares, certo número de pesquisadores anglo-saxões se
encarregaram de “análises” de psicóticos. Suas trajetórias empíricas –
acidentadas, mas tenazes – estão atentas principalmente aos avatares do
terapeuta, a isto que sempre o obsta, a panóplia da contratransferência. O
pragmatismo de alguns se combina com uma notável ausência de elaborações
teóricas; então, algumas convicções básicas servem de referência para
prescrições psicoterapêuticas unívocas. A hipótese de uma carência materna
na determinação das psicoses geralmente resume o sentido dos esforços
terapêuticos destinados a dar ao paciente a “mãe boa” que lhe teria faltado . 8
oportunidade para fazer tábula rasa. A atenção dos terapeutas – sua capacidade
de análise – deve incidir, em primeiro lugar, sobre seus próprios instrumentos,
7
Daniel-Paul Schreber, Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
8
Para John Rosen, o dispositivo "transferencial" está dado de antemão. O médico, substituto de uma mãe
excessivamente narcísica, deve fazer de conta que concorda com as convicções delirantes do doente para, ao
mesmo tempo, através de vários estratagemas, levá-lo a reconhecer-se como "louco". John Rosen, L'analyse
directe. Paris: PUF, 1960.
Para Sechehaye, o papel das falhas semânticas é essencial. A ação proposta é menos compensatória e as
reparações – a "Realização" – são sobretudo simbólicas. M.-A. Sechehaye, Memórias de uma esquizofrênica.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1950 Introduction à une psychothérapie des schizophrènes. Paris: PUF,
1954..
9
Em 1940, em Saint-Alban, Lozère, François Tosquelles lançou concretamente as bases de uma terapêutica
psicanalítica das psicoses no hospital psiquiátrico.
a instituição, os dispositivos sociais, as modalidades de troca, a economia dos
desejos, aí onde se elabora o acolhimento dos pacientes psicóticos. Essa
questão de método, que liga as vicissitudes da alienação mental aos sintomas
coletivos de alienação social – com suas especificidades de acordo com cada
espaço de cuidado – continua sendo axiomática para nós.
A “sessão” é como um elemento, mais ou menos articulado, de um
“tratamento”, ou seja, de um complexo agenciamento institucional, com suas
múltiplas determinações, suas necessárias polissemias, suas condições
singulares de enunciação. Esse agenciamento instável sofre os efeitos da
história, a nossa e a de nosso tempo. Temos de reconhecer, descrever e
acompanhar sua evolução; a transformação permanente da cena terapêutica
importa mais do que um modelo estratégico preconcebido.
Todos aqueles que insistem na “não presença” dos sujeitos psicóticos
estão preocupados, sobretudo, com a criação das condições de um “encontro”,
com a instauração de coordenadas mínimas de espaço e tempo, necessárias
para a emergência de um “sentido”. Os trabalhos de Gisela Pankov, os textos
de Henri Maldiney, as pesquisas de Binswanger – e geralmente aquelas dos
fenomenólogos – nos parecem propor um descentramento útil. Exigências
ético-estéticas substituirão as hermenêuticas do discurso, os impasses da
significação. Elas liberam os dados formais, as sensações e os movimentos, as
imagens e as ações de sua estrita sujeição aos jogos do significante, à ordem
reduzida do “gnósico” . 10
Nesse domínio, consultar principalmente: Arthur Tatossian, Phénoménologie des psychoses. Paris: Masson,
10
1979. Intervenção na 77a. sessão do Congresso de Psiquiatria e Neurologia em Língua francesa (junho de
1979).
liberdades: pensar melhor, juntos, os avatares da História e os impasses da
Razão. Possibilitaram o relato de uma experiência, sem que precisássemos
virar religiosos ou falar de nossas filiações.
Félix continuou esse trabalho com paciência, dentro e em torno do
“Seminário”, que ele coordena há mais de dez anos. Sempre teve a delicadeza
de nos fazer sentir que encontrava em nossos escritos e dizeres questões
pertinentes para as suas próprias.
Embora a interpretação nos forneça, às vezes, a oportunidade de
comentários pontuais, nossos procedimentos de trabalho são, veremos,
essencialmente “cartográficos”.
O próprio Freud, no fim de sua vida, opunha as “construções”,
essenciais, às interpretações, de peso menor . 11
Sua tarefa (do analista) consiste em reconstituir aquilo que foi esquecido a partir de vestígios que
restaram dele ou, mais exatamente, em construí-lo.
O analista conclui um fragmento de construção e o comunica ao sujeito para que ele seja
influenciado pelo fragmento. A partir do novo material que surge daí, poderá elaborar um novo fragmento,
utilizá-lo da mesma maneira e avançar pouco a pouco, alternando assim até o final.
Sigmund Freud, Constructions en analyse (1937), in Standard Edition, v. XXIII. Traduzido do inglês e
11
cotejado com o texto alemão por A. de Guinzbourg. As passagens foram sublinhadas por nós.
A construção é um verdadeiro “quadro”, uma ficção biográfica “digna
de confiança”. Ela não é verificável nem pelo assentimento nem pela
denegação do paciente, mas sempre de maneira indireta. A produção do
“novo” é relançada pelas hipóteses do analista. Às vezes a “reação terapêutica
negativa”, agravando os sintomas ou a angústia, confirma a contrario a
pertinência das construções. Em todos os casos, uma “conjectura” do analista
torna-se uma “convicção” do paciente . Nesse ponto, Freud se sente obrigado
12
Acontece muitas vezes de não conseguirmos que o paciente rememore aquilo que foi recalcado.
Entretanto, se a análise foi conduzida corretamente, induzimos nele uma convicção inquebrantável na
veracidade de nossa construção, que obterá um resultado terapêutico semelhante ao da rememoração de
uma lembrança. A questão de saber em quais circunstâncias isso se produz ou como é possível que isso que
consideramos um substituto incompleto possa, entretanto, dar um resultado completo - tudo isso será objeto
de pesquisas posteriores.
Sarah Kofman assinala, com precisão literal, a ética desse gênero de intervenção: "Seu valor reside em sua
12
eficácia: provoca efeitos inconscientes que se traduzem pelo afluxo de novos sonhos, de novas associações
etc". Sarah Kofman, Un métier impossible. Paris: Galilée, 1983.
Será que, apesar de tudo, precisamos perseguir a miragem de uma
reconstituição, de um afresco acabado da assunção do Sujeito? Podemos ainda
nos contentar com retraçar, em cada tratamento, o movimento unívoco de uma
maturação cujos termos e etapas conhecemos de antemão?
Preferiremos a “obra aberta”. Não completar. Mais que concluir, abrir
novas pistas. Fazer trabalhar as forças e as formas, ao invés de lhes dar uma
última assinatura. Não compreender a espiral de um eterno retorno, mas
produzir, ou criar. Colocar-se na origem de um movimento e não no seu final,
na sua cópia ou representação.
Porém, a elaboração freudiana fica obscura em um ponto essencial. A
divisão entre as tarefas do analista e as do paciente está tão claramente
delimitada que evita a questão da transferência: “O analista não viveu nem
recalcou nada do material em questão (aquele do paciente); sua tarefa não
consistiria em rememorar qualquer coisa que fosse... mas em reconstituir
aquilo que foi esquecido, a partir dos vestígios...”.
Qualquer que seja a “tarefa” do analista, ele pode estar tão facilmente
isento de seu próprio inconsciente? Que dizer da “transferência do analista”,
da “contratransferência”, dos “materiais e associações” do terapeuta? Quais
subterfúgios poderiam afastar isso tudo do campo fechado da sessão e dos
desenvolvimentos do tratamento?
Como assinala Serge Viderman:
13
Serge Viderman, A construção do espaço analítico. São Paulo: Escuta, 1990.
pseudocentro de sua partida – seu ponto de impulsão – rapidamente se torna
excentrado. A proliferação do trabalho não reconhece qualquer hierarquia
durável. Cada um dos momentos da cartografia pode se alçar à posição
dominante ou se ver rechaçado para uma região menor. Essas posições não
serão nem consolidadas nem definitivas; apenas operatórias e datadas;
nenhuma delas servirá de desfiladeiro obrigatório para a história inconsciente
do “sujeito”.
O “sujeito”, não mais definido por seu estatuto de indivíduo e sim pelos
índices de singularidade que o afetam, é ultrapassado por uma produção de
subjetividade, cujos agenciamentos, materiais e signos tentamos identificar.
Nesse sentido, a interpretação figurará nessa exploração como uma ferramenta
entre outras:
14
Félix Guattari, Cartographies schizoanalytiques. Paris: Galilée, 1989.
inoperantes. Para nós, estes últimos não são menos didáticos, nem os
primeiros mais interessantes.
Uma história bem longa testemunha inflexões, desvios ou transgressões
às quais a psicoterapia dos processos psicóticos conduz inelutavelmente
aqueles que a ela se dedicam; mas mostra também o que uma teoria do
inconsciente pode esperar de uma pragmática para a qual, aqui, apenas
esboçamos algumas direções.
O CORPO, O MAPA E O MONSTRO
Sessão
Élodie15 Quero te falar do meu bebê. Eu tinha te dito primeiro que era preciso que eu o pusesse
numa prisão de negros muçulmanos. (...) Meu filho eu tive porque tinha comido batatas para cortar
os testículos dos alemães. Isso me fez gozar, por minha vagina, e não matei os alemães, mas me
inchou a barriga. Bem! Agora, pari porque meu bebê me disse para circuncidá-lo... como minha
cruz. Então quando fui fazer cocô... a urina...
Polack Daí, o que aconteceu?
E. O bebê saiu de minhas regras e sempre se comunicou com minha barriga.
P. Ele ainda está na barriga?
E. Não, agora não mais.
P. Por onde ele anda?*
E. Eu não sei. Não entendo, é uma outra maneira de parir que eu não entendo.
P. Ele se comunica com você falando?
E. Sim, dentro da minha barriga.
P. E qual língua ele fala?
E. Francês.
P. Podemos falar ao mesmo tempo?
E. Vocês falam mas eu não falo, fico silenciosa.
P. Você nos escuta?
E. Não, eu escuto vocês brigando; é como um rádio.
P. O que eu digo a ele?
E. Você lhe diz que tinha me dado receitas, que não queria fazê-lo, que tinha me dado os
medicamentos sem compreender, que deixou ele achar que você era idiota, porque sabe que
como é seu filho, ele não te engana, ora!
P. Ele é apenas meu filho ou é meu filho e de mais alguém?
E. De você e de mais alguém.
P. Quem é esse mais alguém?
E. Um de meus namorados, Ahmed.
P. O que ele deu para fazer essa criança?
E. O esperma.
P. E eu dei o quê?
E. A carta branca e o esperma branco das cartas brancas. Você não me fez nada, me deu os
medicamentos, mas uma hora depois se tornou a carta branca.
P. Então passou**** pelos medicamentos?
E. Isso. Você me dá medicamentos para minhas regras 16.
P. Como você acha que esse bebê é?
15
Já falamos de Élodie em La Borde ou le droit à la folie (D. Sabourin e J.-C. Polack). Sua psicose, quase
imutável após uma dezena de anos, se estabilizou, não sem dificuldade, na cotidianidade protegida de um
"Centro de Adaptação para o trabalho" em um "setor" psiquiátrico da periferia parisiense. O registro da
sessão, com o consentimento de Élodie, data de 1984. Faz três anos que ela não vem me ver. Fui visitá-la uma
vez em seu local de trabalho.
**
N.R.: A tradução literal da expressão francesa (Où est-ce qu’il serait passé?) seria: por onde é que ele passa?
****
N.R.: Vide nota anterior.
16
Efetivamente, prescrevo-lhe um contraceptivo oral.
E. Parecido com você; tem os olhos azuis17.
P. É um menino?
E. Sim, chama-se Franck.
P. Foi você que lhe deu esse nome?
E. Não,foi ele que escolheu, e eu concordei. Franck quer dizer “moisi” * em alemão.
P. Tem certeza? Quem é que te disse isso?
E. Ninguém. Mas eu sei disso, quer dizer Moshe, Moisés em alemão.
P. Moisés é como “moisi”?
E. É isso. O cocô!
P. É uma criança ou é um cocô? É uma criança ou é merda?
E. Não sei.. Ele fala comigo, isso foi feito pela merda.
P. E cresceu no reto?
E. É isso, por minhas regras, pela magnitude, pela força de minhas regras.
P. Mas quando ele fala com você, você o escuta com o que do corpo?
E. Minha orelha se comunica com minha barriga.
P. Então você o escuta com a orelha e com a barriga?
E. Isso.
P. E você lhe fala com o quê?
E. C-c-com a voz, com o coração.
P. Ele escuta?
E. Sim.
P. E quando eu falo, você me escuta com o quê?
E. Não é do mesmo modo: é com a orelha.
P. Somente com a orelha?
E. Não, é da barriga, vem da barriga, mas minha barriga não se comunica com minha orelha.
Os medicamentos fazem a barriga se comunicar..., a orelha pela barriga, não são perceptíveis.
P. Mas acho que, afinal, esse bebê se parece bastante comigo, não?
E. Ele tem tua voz. É loiro.
P. Mas eu não sou loiro!
E. É como os olhos: vejo com meus olhos azuis, a cor dos olhos muda com os medicamentos,
por isso eles são castanhos.
P. Você está vendo as coisas de outra forma neste momento?
E. Digamos que vejo menos bem.. a luz... Antes eu era bem míope.
P. Você também tinha esperma?
E. Não, masturbei-me com esperma de vela, o esperma da vela. Um esperma verde. A cor
verde.
P. E daí?
E. Tenho medo.. porque o vinho, há um tipo de vinho que me deixa efervescente, que me faz
“pasmar”*!
P. Que te excita sexualmente, quer dizer?
E. É isso; apesar de mim...
17
Meus olhos são castanhos.
**
N.R.: Moisi significa mofado, tanto no sentido literal, quanto figurado, de ficar largado, esquecido ou de
permanecer por muito tempo num mesmo lugar. A palavra em francês também contém o pronome “moi” = eu
ou mim. A pronúncia de Moïse (Moisés) em francês é bem próxima de moisi.
**
N.R.: pâmoiser, neologismo já incorporado à língua francesa, usado no sentido tanto de pasmar, extasiar-se,
desfalecer, quanto de excitar-se, gozar. Chama a atenção nessa palavra a mesma presença do pronome “moi”
e até de moisi. Pâmoiser também pode ser escutado como pas + moi + ser, que poderia ser traduzido por
“nãoeuzar”.
Posso fazer amor com meu namorado, ele tem a minha idade, tem 35 anos, eu tenho 37; ele
também (...) é estéril! É, digamos, o esperma dele, ele tem o esperma que não é mais jovem
como antes, branco. Ele ficou doente. Não foi trabalhar, imagino... desde minha bolinação.
P. Que doença ele teve?
E. Do sexo e do ventre. Por minha causa, por minhas regras. Enfim, penso que é por minha
causa.
P. Porque você tinha...
E. ...emagrecido. Não tenho mais minhas regras como antes. E isso mostra que ele não pode
mais ter a mesma vida de antes. Então, veja, ele espirra, sua saliva é purulenta por causa de
seu esperma, subiu até a saliva, é um muçulmano. Seu... grupo sanguíneo quando a gente é
examinado por um médico, positivo ou negativo, ele cospe muito por causa de seu esperma.
P. O que ele faz com a saliva?
E. Ele cospe, eu te disse!
P. O que nasce do chão quando ele cospe?
E. Não, nada...
IMAGENS DO CORPO
Na aparente desordem de seu mundo, Élodie parece querer construir
uma forma. No umbigo de seu delírio, um corpo agarra partes, pedaços,
destroços, órgãos e os junta formando um monstro bizarro. É para esse
trabalho que sou convidado, já tomado nos materiais de sua construção,
engolido por suas máquinas, utilizado. Então, preciso de figuras, de traços, de
limites, algumas ferramentas. No país da psicose, não sou intérprete, mas
explorador e cartógrafo.
Devo notar inicialmente a importância dos diversos “fluxos” (alimentos,
matérias fecais, urina, esperma, medicamentos etc.) nessa economia
generalizada, confusa e transitivista. Constatar que qualquer coisa pode fazer o
outro se comunicar com a pessoa. A voz, por exemplo. Como para Wolfson,
as palavras transferem a violência, o afeto ou a energia de um corpo para
outro. Mas o outro está mal definido na sua estranheza em relação ao corpo
“próprio”; também a língua circula no interior de uma anatomia imaginária.
Aliás, nenhuma “explicação”, nenhum traçado de limites pode modificar esses
percursos hiperdialéticos do “corpo sem órgãos”, atravessado mas
transformado pelas matérias que o impregnam ou o irrigam.
Algumas hipóteses poderiam “localizar-me” nesse espaço corporal.
Uma delas me situa como criança na barriga de Élodie, sem que seja muito
precisa minha locação, digestiva ou genital. O bebê é, entre outros, fruto de
nossa cópula; mas se trata, bem se vê, de uma gravidez coletiva onde intervêm
o esperma de outro paciente, minha receita e “meus” medicamentos; e, sem
dúvida, uma fecundação original (Ho Chi Minh...).
Os fluxos ligam zonas ou “personagens” múltiplos e contraditórios. A
lógica do “e... e” prima sobre a do “ou... ou”. É dito que a criança se parece
comigo, dando como prova imediata disso um traço diferencial: a cor dos
olhos. “Minha orelha se comunica com minha barriga”, mas “minha barriga
não se comunica com minha orelha”. Élodie utiliza o “não” mais como
escansão do que como negação. Mesmo quando aprova minhas hipóteses, o
“não” lhe serve de demarcação e ruptura em uma sequência descontínua de
palavras, como se precisasse esculpir uma proposição num magma sem
sujeitos, por meio de uma pontuação precária e peremptória. Quando as
palavras não extraem seu valor da função metafórica, encontram-no na sua
qualidade de elementos materiais para a construção espacial de um conjunto
vivo. São os tijolos metonímicos de uma “linguagem-espaço”, cujas
coordenadas formais devem ser circunscritas e repertoriadas; e, no projeto
psicoterapêutico, “habitadas”.
Sob o nome de “imagem do corpo”, de “corpo fantasiado”, de “corpo
vivido”, a questão do corpo efetivamente ocupa, na cena estratégica do
tratamento da psicose, um lugar geralmente privilegiado. As palavras
enganam: a imagem do corpo é mais que uma imagem, é um modo de
representação possível, uma formulação figurativa precária, não
necessariamente ligada a matérias icônicas ou a signos visuais 17. 17
1717
Num trabalho recente, Nicolaïdis tentou pôr ordem nas relações existentes entre noções cruciais como
"processo primário", representação "primária" e "secundária", representação "-palavra” ou representação "-
coisa", “representante representativo". Nicos Nicolaïdis, A representação. São Paulo: Escuta, 1989.
1818
A "imagem do corpo" de Dolto, em oposição ao esquema corporal, é uma "memória" de traços relacionais
e libidinais, um registro das relações de desejo com o outro, os outros e os objetos. É um corpo vivo, o traço
estruturante da história emocional de um ser humano, destilado de um processo intuitivo de fantasias, relações
afetivas e eróticas pré-genitais. Dolto afirma que as fantasias, aqui, significam: "memorização afetiva,
auditiva, gustativa, visual, tátil, barestésica e cinestésica de percepções sutis, fracas ou intensas, sentidas
Portanto, o termo “imagem” não deve nos conduzir apenas ao
continente do visual, do escópico, ou à problemática isolada do olhar; da
mesma maneira que o espelho, em seus diversos agenciamentos, “estádios” ou
vicissitudes, tampouco pode resumir as aventuras ideais do Sujeito, os
impasses e as fraturas da identificação.
MAPAS
Embora já coloque na imagem do corpo os acontecimentos constitutivos
de uma história, Gisela Pankow propõe ver nessa imagem apenas uma
organização puramente espacial, uma dialética entre as partes e o todo, uma
ligação dinâmica cuja ausência é característica da dissociação 19. 19
como linguagem de desejo do sujeito em relação a um outro...". Françoise Dolto, A imagem inconsciente do
corpo. São Paulo: Perspectiva, 2002.
1919
Daí sua abordagem puramente "formal" dos desenhos, representações e modelagens que servem de
matéria-prima para o trabalho do tratamento: "Considero o corpo como modelo de uma estrutura espacial,
estrutura que me interessa sobretudo em seu aspecto dialético". Gisela Pankow, L'être-là du schizophrène.
Paris: Aubier, 1981.
2020
Gregory Bateson assinala: "Os balineses são muito dependentes da orientação no espaço. Para executar um
comportamento qualquer, precisam primeiro situar os pontos cardeais; quando um balinês viaja de carro
através de estradas sinuosas e perde seus pontos de referência, pode ficar seriamente desorientado e incapaz
de agir; um dançarino, por exemplo, não conseguirá mais dançar; para se recuperar, precisará reencontrar
algum ponto de referência importante, como, por exemplo, a montanha central da ilha, em relação ao qual
possa restituir os pontos cardeais". Gregory Bateson, Steps to an ecology of mind. Chicago: University of
Chicago Press, 2000.
2121
Barbara Glowczewski, “Les Warlpiri”. In Chimères, nº 1, 1986.
Em sua monografia sobre Leon, o trabalho de Françoise Dolto começa
efetivamente com a modelagem de uma cadeira vazia. Leon é uma criança
“retardada”, muito musical, praticamente incapaz de andar ou de ficar em pé
sem apoio. Estamos em 1941. Ele é filho de um alfaiate judeu polonês não
praticante e de uma bretã cristã. É batizado, não circuncidado, “francês”. É
uma espécie de “monstro”, sem costas, sem pernas, sem marcha, sem ereção
global do corpo, mas extremamente dotado com as mãos no piano. Sua
existência rastejante e torva se prolonga até o dia em que, em uma sessão,
consegue fazer reconhecer sua precariedade ao ser reificado diante do objeto
antropomórfico. A analista obtém sua primeira resposta quando interroga
Leon não mais sobre seu desejo, mas sobre o da cadeira que o espera,
canibalística, prestes a devorar seu “assento” e suas “costas” 22. 22
Rapidamente, esboço um mapa da França para lhe explicar o que significa zona ocupada, zona livre,
linha de demarcação, todas estas palavras que utilizamos o tempo todo ao nosso redor nos dias de hoje.
Mais tarde, ela acredita poder explicar os sintomas por uma contenção
traumática da primeira infância: enquanto trabalhavam, os pais afivelavam o
menino sobre sua cadeira sanitária, interditando-lhe toda motricidade além da
distal, das mãos, dos dedos. Contudo, chamam a atenção no tratamento os
percursos (solidários) cruzados da imagem do corpo sexuado, das referências
genealógicas, das leis que ordenam a organização dos lugares e territórios, das
situações administrativas e da geografia política.
Escrevi inicialmente os percursos “solidários”, mas prefiro falar de
cruzamentos e encruzilhadas. Porque gostaria de evitar dar a entender (como
às vezes Dolto parece inclinada a fazer) que esses estratos semióticos se
articulam o tempo todo em uma estrutura significante nuclear, que o
“intérprete” decifra e atualiza. A observadora de Leon põe em funcionamento
dois tipos de “causas”. Uma privilegia a questão da identidade e do nome. A
outra, desvenda um acontecimento traumático particular, a contenção da
criança sobre sua cadeira. A preocupação em reunir todas as situações em uma
única trama desemboca necessariamente na hipótese de uma estrutura
significante sobredeterminada, cuja falha deve fazer desabar todo o edifício.
Cada um pode nomear essa falha como quiser. E embora Dolto não utilize a
2222
Mac Laren, cineasta de desenhos animados canadense, já pressentira essa intuição boschiana de um objeto
sádico com sua "Cadeira", menos exigente que a de Leon, mas mais caprichosa. Um homem tentava sentar
em uma cadeira que se esquivava sem parar, recuava, balançava e tombava, numa recusa absolutamente
sistemática. Até que o homem acabava compreendendo: agachado mas ereto, oferecia seus joelhos e seu peito
para a cadeira; prelúdio de um amor feliz e recíproco.
foraclusão do Nome-do-Pai, sua prática revela que ela liga todos os elementos
“patogênicos” da biografia da criança numa situação global de erros ou de
mentiras, parasitando todas as articulações simbólicas necessárias para o
acesso da criança à sua fala.
Entretanto, parece-nos que a força essencial da intervenção de Dolto é
justamente essa migração, constante em seu trabalho, de um estrato semiótico
a outro. Ela procura o espaço no qual uma transferência seja possível; uma
cena onde a fantasia, por mais fracionada que seja, possa aparecer numa
brincadeira. Distinguiremos, por um lado, interpretações totalizantes (sobre a
identidade do pai, a clandestinidade, a circuncisão, a ameaça de morte, a
divisão da França em dois, as vicissitudes da situação edípica etc.); e, por
outro, os assinalamentos estéticos, formais, mais ou menos lastreados no
teatro kleiniano de objetos bons e maus, de coisas do “dentro” e do “fora” ou
das sucessivas peripécias das diversas “castrações”. Estas últimas são
pertinentes, sobretudo, pela apreensão, instantânea, intuitiva, de uma
configuração dramática do corpo da criança, na sua relação com os objetos,
animados ou inanimados, de seu entorno imediato. Tudo isso, evidentemente,
na presença de sua terapeuta, parte significativa desse traçado.
Os fracassos da simbolização são “falhas da linguagem dirigida à
criança”; mas são, em primeiro lugar, os acidentes de um espaço não
vetorizado habitado por formas esparsas, truncadas e sem ligações 23. 23
2323
Mais geóloga que geógrafa, Pankov tem outras metáforas para sua descrição de terreno e para suas
intervenções: "... o universo da psicose aparece como um universo esfacelado onde cada parcela está mais ou
menos distante das outras. As distâncias podem se modificar pelo surgimento de uma lacuna imprevista. Por
quê? Não sei. Apenas constato. Podemos ganhar terreno, podemos preencher buracos...", "... o que importa é
o seguinte: às vezes, em ‘entulhos de um terreno’, percebemos um ‘estrato geológico’ parecido com outro
observado em outros entulhos. Então, tento ‘aproximar’, tento reunir estratos idênticos em terrenos diferentes.
Chamo de estruturação dinâmica esse processo que consiste em reconstituir a unidade aparentemente perdida
de esferas psíquicas esparsas (...). O primeiro terreno que é preciso estruturar – ainda que parcialmente – é o
conjunto das camadas psíquicas a partir das quais o reconhecimento da imagem do corpo se torna possível".
Gisela Pankow, op. cit.
MONSTROS
Alain Cazans e Marc Hermant pedem diretamente “um monstro” a
alguns de seus pacientes, e o saco da lareira de seus consultórios fica coberto
de amontoados teratológicos multicoloridos onde às vezes se entrevê o
humano. Essas figuras não são a imagem do corpo, mas entre elas e essa
imagem há uma relação de denotação, de ilustração, de redução, de
decupagem, de abstração. São pedaços, mas deixam supor o resto, os restos. E
estes são brechas nos conjuntos caóticos e móveis, o corpo vivido, erógeno ou
sofredor.
Os grafismos e as produções plásticas são ensaios de representação
euclidiana, “mapas”, processos cartográficos em que evidentemente dominam
as representações espaciais, os materiais icônicos.
O “monstro” é um canteiro de partes vivas e inertes, um agregado de
objetos, de territórios, de signos, desafiando, como no delírio, “a realidade
natural”, as leis das ordens e das espécies, as lógicas de pertencimento, a
fortiori as lógicas do discurso. Chamaremos de “monstro” tudo aquilo que, a
pretexto de fazer corpo, coloca em relação inorgânica coisas que não
pertencem aos mesmos conjuntos categoriais. O disparate. Os personagens dos
jardins de Bomarzo, ao norte de Roma, são duplamente monstruosos. Por um
lado, porque figuram monstros míticos, saídos da lenda, exacerbados por suas
proporções gigantescas. Mas também porque, talhados diretamente na rocha
que aflora no campo, criam a ilusão de uma metamorfose natural em que os
limites da pedra e da carne, do vegetal e do animal, do natural e do construído,
estão insolentemente embaralhados.
Uma fantasia psicótica é, ao mesmo tempo, um breve acontecimento e
uma configuração, um monstro, uma quimera...
Objetos de desejo, objetos materiais, mitos, continentes, qualidades
abstratas vêm se avizinhar. Ou melhor, entram em composição num plano de
consistência particular, cujo código – a referência, a legenda cartográfica – é
justamente o corpo. Portanto, nessa perspectiva, o monstro seria o trabalho do
mapa sobre o corpo, uma diagramatização do corpo desejante. Capta um
momento do lugar “transferencial” no tratamento. Um pedaço de corpo do
paciente faz alguma coisa com um pedaço do meu corpo em um determinado
tipo de contexto – territorial, mítico, institucional, econômico e, certamente,
simbólico. Para o monstro, o tempo não está dado de maneira homogênea.
Determinado pedaço do corpo de Élodie (seu ventre, sua uretra, sua orelha),
determinada produção (o sangue, a urina, o cocô) se relaciona com alguns de
meus objetos, algumas de minhas zonas erógenas, de minhas palavras ou de
minhas ações, a receita, os medicamentos. E tudo isso se passa no Egito, na
Bretanha ou em Tours, há vinte anos ou no século passado. As articulações, os
planos de consistência, os componentes de passagem ora são históricos, ora
territoriais, às vezes somente fonemáticos ou tecnológicos. As mídias, por
exemplo o rádio, e sobretudo a televisão, inserem-se em agenciamentos
complexos com a sexualidade, o trabalho e a vida doméstica. O canal de
televisão funciona como embreante e relé. Da realidade ao delírio, o
movimento recíproco passa pela pequena tela que o filtra, torce, amplifica,
enriquece, difrata. A reportagem ora é ao vivo, ora gravada. O monstro é um
canteiro, uma maquete de montar cujas peças teriam se perdido, enquanto as
peças perdidas de outra construção teriam vindo se misturar às primeiras.
Buster Keaton compra uma casa pré-fabricada para si; monta-a numa ordem
qualquer: a porta está no terceiro andar e quando ele sai do quarto, cai no
vazio. A chaminé joga água na calçada. A fumaça sai pelas janelas. Buster
anda pelo teto.
O bebê de Élodie surge como terceiro termo na sessão, bússola no
espaço cartográfico de suas identidades esfaceladas. Ele é homem e judeu,
réplica miniaturizada de seu terapeuta. Embora sefardita, ela faz sua parte nas
lutas contra os alemães. Não os mata, mas faz uma criança ao abrigo de uma
“prisão de negros muçulmanos”.
Como a Virgem, Élodie é a sede de uma reencarnação. Talvez o bebê
tenha nascido de uma absorção oral, talvez de uma masturbação anal. Em todo
caso, no seu corpo a cloaca fetal – uretra, vagina e ânus confundidos –
continua fazendo seu trabalho em uma indiferenciação monstruosa. A
encruzilhada digestivo-genito-urinária articula os sistemas e os redistribui.
Situa-se no ponto de encontro dos personagens importantes da vida de Élodie,
os genitores masculinos, Ahmed e eu. É acumuladora e redistribuidora de
fluxo; pilha e transformador. É principalmente nesse espaço que os jogos de
palavras permitem a passagem contínua dos objetos às palavras, e depois
dessas palavras a outros objetos, num deslizamento de sentido incessante que
o corpo de Élodie tenta dominar.
A carta [carte] branca é a receita que lhe faço e que ela vigia com a
maior atenção, a ordem dos medicamentos, seu nome, a quantidade, escrita em
letras ou números, minha maneira de assinar... É também “carta branca”,
liberdade concedida, “assinatura em branco”, direito de fazer uma criança com
os comprimidos brancos de minha receita branca, esperma branco sensível à
escrita. “Uma hora depois” de tê-los tomado, esses medicamentos voltam a ser
a outra coisa que a fecunda completamente. As passagens fecais, o fluxo
urinário, os fluxos de palavras, correntes de esperma se entrecruzam em um
espaço preciso, que Élodie sinalizará mais tarde como “a pele sobre o
quadril”, ponto de concentração desses diversos metabolismos,
entroncamentos e transformações. No tratamento, trabalhamos somente essas
trocas, dons e raptos, pelos quais o corpo de Élodie e o meu pensam se
comunicar num espaço caótico, anistórico, “anacrônico” e confuso. A ambição
continua sendo modesta: mostrar mais uma vez aqui que o delírio está
ocupado por um mapa [carte]. E que este se deixa construir no tratamento,
pedaço por pedaço – em uma progressiva articulação fundadora e antecipadora
de um “sentido”.
(...)
A OBRA
O monstro é um agregado de fantasias cambiantes. A fala do psicótico,
na falta de representações plásticas ou gráficas, dá dele uma figura virtual, em
que as palavras e as coisas não são claramente distintas. Quando Élodie me diz
pela trigésima vez, “eu tenho uma pequena pele aí (peau là), no quadril”, isso
faz imagem e começo a ver uma membrana, sua forma, sua ligadura, sua
disposição. Entretanto, ela talvez esteja parcialmente prisioneira de
assonâncias fonéticas (peau là/Polack) ou de um jogo metáforo-metonímico
que evoca o “pote” (pot), o penico (pot de chambre), sua merda, colada ao seu
quadril, não separada, fecundante. Significantes e significados são conceitos
muito pobres. Numa terminologia mais hjemsleviana, diríamos que o monstro
reúne modalidades múltiplas de ligação entre matérias, substâncias e formas;
que ele não privilegia nenhuma. Nesse canteiro multissemiótico, o espaço da
sessão e da relação dual seleciona, reduz, abstrai. A dominante textual,
carregada de imagens ou não, induz uma decifração, uma leitura, uma
interpretação, que as passagens ao ato perturbam por princípio.
Ao contrário, a cartografia monstruosa é uma “obra aberta” 24, 24
CANTEIROS DE OBRAS
Um dos méritos da psicoterapia institucional foi ter ampliado os limites
do canteiro de obras, os modos de expressão, os registros, os regimes de
signos. E ter concomitantemente fornecido ao trabalho do cartógrafo
componentes, objetos, interesses heteróclitos.
O clube de La Borde estabeleceu parceria com uma cidadezinha da
Costa do Marfim graças à passagem de um estagiário africano, aprendiz de
cozinheiro. Foram organizados intercâmbios, uma viagem, contratos.
Pacientes tidos como autistas acordam, delírio e deriva de continentes,
chamado das diferenças e do longínquo, proximidade de sociedades precárias,
ligadas aos elementos, à terra, às necessidades, talvez à alma das coisas, à
magia das palavras.
Em La Chesnaie, alguns vagões ferroviários, montados sobre pilotis de
cimento e tijolo, brotam das paisagens, magníficos e incongruentes. “Que”,
“quando” e “como” são questões inúteis. Toda uma rede de fantasias, de
loucuras e de cumplicidades funda a arquitetura.
Deligny trabalha diretamente sobre o terreno com linhas de errância
[lignes d’erre], pontos de passagem e de encontro. Ele começa anotando no
mapa os percursos “espontâneos” da criança autista, os hábitos, os circuitos.
Depois marca o terreno com materiais, signos, cores, sons. Todos estes
elementos são referenciáveis a passagens, a presenças, de outras crianças mais
“socializadas”, de educadores, dele mesmo. Ele se ocupa dos elementos: a
pedra, a madeira, a água que corre. Dispõe armadilhas vivas: uma ação
iniciada que é preciso prosseguir, um trapo secando e que pode ser
despregado, uma pedra plana sobre a qual se bate com seixos; uma frigideira.
A criança às voltas com as matérias, as formas, as percepções do outro, se
desloca por um canteiro habitado. O espaço anárquico se constrói; um
“monstro” o ocupa, nele se desenvolve, escutando aquilo que vive, aqueles
que falam, sua própria fala. Deligny traça, colore, apaga, retoma. Trabalha
sobre a terra, representa sobre o papel: dupla inscrição.
Os mapas mais antigos desenhavam somente os contornos das terras; ou
o limite dos mares, os portulanos. Agora, as inovações técnicas e o
fracionamento dos saberes permitem colocar no mapa muitos outros
parâmetros além das fronteiras nacionais, o traçado dos litorais e dos rios. O
interesse recairá, alternadamente, no subsolo, no relevo, nas produções, na
demografia, na incidência de uma doença, na densidade das práticas
religiosas; ou nas escolhas políticas, nas instituições sociais, nos tipos de
consumo alimentar; ou então na frequentação dos cinemas, na frequência da
interrupção voluntária da gravidez, na fauna, na flora. De tudo isso será até
possível dar uma representação móvel fazendo diagramas das mudanças,
evoluções e sucessivos estados, traçando as tendências e os vetores. Uma
recomposição espaço-temporal do conjunto desses dados supõe um holograma
móvel e monstruoso em que o geógrafo, em busca de pontos de referência,
traça a estratégia, os projetos, os avanços dos poderes.
Do mapa ao terreno, o trabalho do geógrafo se alterna. Não há
progresso no espaço físico da investigação que não deva seu ritmo à precisão
do modo de representação. Américo Vespúcio descobriu a América bem antes
de Cristovão Colombo ter posto os pés em La Española. As projeções e os
projetos antecedem a aventura, dão-lhe sua consistência diagramática. Os
mapas são instrumentos ambíguos, estabelecidos e impostos. Como bem
mostram os pesquisadores da revista Hérodote, o processo cartográfico
contém, desde o princípio, o empreendimento de poder que o demanda. Longe
de ser um instrumento neutro, um modo de figuração inocente, é um suporte
logístico, uma arma sofisticada, cujas medidas, signos, códigos, escalas e
pontos de vista quase sempre preparam uma conquista, um assalto, uma
guerra, uma ocupação.
O esfacelamento ou a dissociação do corpo na psicose propõe aos
terapeutas e aos pacientes uma ação de reconquista, uma aliança necessária e
duradoura. Tratar-se-á de um corpo a recuperar, sobre os corpos e os
incorporais do monstro. Em seguida, de uma história. Mas isso é outra
história...