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Evitando o Mito Do Dado (Mobile)

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Evitando

Evitando oo
Mito do Dado
Mito do Dado
John McDowell
John McDowell
Tradução: Haslley Q. Freitas
Tradução: Haslley Q. Freitas
1. O que é o Mito do Dado?

W
ilfrid Sellars, que é o responsá-
vel pelo rótulo, notoriamente deixa
de explicar em termos gerais o
que ele quer dizer por isso. Como ele aponta,
a ideia de dadidade para o conhecimento, da-
didade para um sujeito cognoscente, pode ser
inócua.1 Então como ela se torna perniciosa?
Aqui vai uma sugestão: Dadidade no sentido
do Mito seria uma disponibilidade de cogni-
ção para os sujeitos cuja captação do que é
supostamente Dado a eles não depende de ca-
pacidades requeridas para o tipo de cognição
em questão.
Se isso é o que a Dadidade seria, é bem claro
que ela deve ser mítica. Ter algo Dado a você
seria ser dado algo para conhecer sem necessi-
tar ter as capacidades que seriam necessárias
para que se pudesse conseguir conhecê-lo. E
isso é incoerente.
Então como pode o Mito ser uma armadi-
lha? Bom, poderia se cair no Mito se não se

29 de julho de 2017. Discussão em AncapChannel. □
1
“Empirismo e Filosofia da Mente”, §1. □
percebesse que o conhecimento de um certo
tipo requer certas capacidades. E podemos ver
como isso poderia ser um risco real, no con-
texto no qual Sellars mais discute o Mito, con-
siderando um ditado sellarsiano sobre o co-
nhecimento.
Sellars diz que atribuições de conhecimento
posicionam episódios ou estados “no espaço ló-
gico das razões”.2 Ele identifica o espaço lógico
das razões como o espaço “de justificar e ser
capaz de justificar o que se diz”. Sellars quer
rejeitar uma visão externalista de satisfação
epistêmica, uma visão de acordo com a qual
alguém pode estar justificado a ter uma crença
sem estar numa posição de saber o que o auto-
riza a tal. Conhecer coisas, da forma que Sel-
lars quer dizer em seu ditado, deve ser exercer
capacidades que pertencem à razão, concebida
como a faculdade cujos exercícios incluem a
vindicação de uma autorização de se dizer coi-
sas. Tal faculdade adquire sua primeira atuali-
dade, sua elevação acima da mera potenciali-
dade, quando se aprende a falar. Deve haver
2
“Empirismo e Filosofia da Mente”, §2. □
um potencial para a autoconsciência em suas
operações.
Agora, considere como isso se aplica para
o conhecimento perceptual. O conhecimento
perceptual envolve a sensibilidade; isto é, uma
capacidade para a responsividade diferencial
a aspectos do ambiente, tornada possível por
sistemas sensórios propriamente funcionais.
Mas a sensibilidade não pertence à razão. Nós
a compartilhamos com animais não-racionais.
De acordo com o ditado de Sellars, a facul-
dade racional que nos distingue dos animais
não-racionais deve também estar operativa no
momento em que nos são dadas [pela sensibi-
lidade] coisas para conhecer.
Isso traz a nossa visão uma forma de se cair
no Mito do Dado. O ditado de Sellars implica
que é uma forma do Mito achar que a sensibi-
lidade por si só, sem qualquer envolvimento
de capacidades que pertencem a nossa raci-
onalidade, pode tornar as coisas disponíveis
para a nossa cognição. Isso coincide com uma
doutrina básica de Kant.
Note que eu disse “para a nossa cognição”.
Pode ser tentador objetar ao ditado de Sellars
alegando que ele nega conhecimento aos ani-
mais não-racionais. É perfeitamente natural
– a objeção afirma – falar de conhecimento
quando falamos sobre como a sensibilidade de
animais não-racionais os permite lidar com-
petentemente com seus ambientes. Mas não
há necessidade de ler Sellars, ou Kant, como
se estivessem negando isso. Podemos aceitar
isso mas ainda considerar que o ditado de Sel-
lars, e a associada rejeição ao Mito do Dado,
expressam um insight. O ditado de Sellars ca-
racteriza o conhecimento de um tipo distinto,
atribuível apenas a animais racionais. O Mito,
na versão que eu introduzi, é a ideia de que a
sensibilidade por si só poderia tornar as coi-
sas disponíveis para o tipo de cognição que
depende das capacidades racionais de um su-
jeito. □
2. Um juízo perceptual correto tem a sua inte-
ligibilidade racional, equivalente nesse caso à
autorização epistêmica, de acordo com a expe-
riência de um sujeito. Ele julga que as coisas
estão de tal e tal maneira porque a sua expe-
riência o revela que as coisas estão de tal e
tal maneira: por exemplo, ele vê que as coisas
estão de tal e tal maneira. A inteligibilidade
demonstrada por tal explicação pertence a um
tipo de inteligibilidade que também é exempli-
ficada quando um sujeito julga que as coisas
estão de tal e tal maneira porque a sua ex-
periência meramente parece mostra-lo que as
coisas estão de tal e tal maneira. Esses usos
do “porque” introduzem explicações que mos-
tram a racionalidade em operação. No tipo
de caso com o qual comecei, a racionalidade
torna possível juízos corretos. No outro tipo
de caso, a razão leva seu possuidor ao engano,
ou no máximo o permite fazer um juízo que é
verdadeiro meramente por acaso.
Em Kant, a faculdade mais elevada que nos
distingue dos animais não-racionais aparece
na experiência na forma do entendimento, a
faculdade dos conceitos. Então para seguir o
jeito de Kant de evitar o Mito do Dado nesse
contexto, devemos supor que capacidades que
pertencem a essa faculdade – capacidades con-
ceituais – estão em jogo na forma como a expe-
riência torna o conhecimento disponível para
nós.
Por enquanto, podemos tomar essa intro-
dução da ideia de capacidades conceituais de
maneira bem abstrata. Tudo que precisamos
saber até agora é que elas devem ser capaci-
dades que pertençam à faculdade da razão. Eu
tentarei ser mais específico posteriormente.
Eu invoquei a ideia de juízos que são raci-
onalmente inteligíveis de acordo com a expe-
riência, no melhor caso na medida em que são
revelados como corretos. Existe uma interpre-
tação de tal ideia que eu preciso rejeitar.
A ideia não é só que a experiência nos dá
itens – experiências – dos quais os juízos são
respostas racionais. Isso seria consistente com
a suposição de que capacidades racionais es-
tão operativas somente em respostas a expe-
riências, não nas experiências em si. Nessa
visão, o envolvimento de capacidades racio-
nais ocorreria completamente após o fluxo de
experiências.
Mas isso não faria justiça ao papel da expe-
riência na nossa aquisição de conhecimento.
Como notei, até para Sellars não há nada de
errado em dizer que as coisas nos são dadas
para conhecer. A ideia da dadidade se torna
mítica – ela se torna a ideia da Dadidade –
apenas se falharmos em impor os requisitos ne-
cessários para a captação do que é dado. E é na
experiência em si que temos as coisas dadas
perceptualmente a nós para conhecer. Evitar o
Mito requer que capacidades que pertencem à
razão estejam operativas na experiência em si,
não apenas em juízos nos quais respondemos
à experiência. □
3. Como devemos elaborar tal imagem? Eu
costumava assumir que para conceber as ex-
periências como atualizações de capacidades
conceituais, deveríamos atribuir conteúdo pro-
posicional às experiências, o tipo de conteúdo
que juízos possuem. E eu costumava assumir
que o conteúdo de uma experiência deveria
incluir tudo que a experiência permite que al-
guém conheça não-inferencialmente. Mas am-
bas assunções agora me parecem equivocadas.

4. Deixe-me começar com a segunda. Podemos
questiona-la mesmo se, por enquanto, continu-
armos a assumir que as experiências possuem
conteúdo proposicional. Suponha que eu te-
nha um pássaro no meu campo de visão, e isso
me coloca em uma posição de conhecer não-
inferencialmente que ele é um cardinal. Não
é que eu infiro que o que eu vejo é um cardi-
nal pela forma que as coisas parecem, como
quando eu identifico a espécie de um pássaro
comparando o que eu vejo com uma fotografia
num guia de campo. Eu posso imediatamente
reconhecer cardinais se as condições de visibi-
lidade forem boas o suficiente.
Charles Travis me forçou a pensar em tais
casos, e ao abandonar minha velha assunção,
eu estou parcialmente chegando a uma visão
a qual ele me induziu.3 Na minha velha as-
sunção, já que a minha experiência me coloca
numa posição de conhecer não-inferencial-
mente que o que eu vejo é um cardinal, seu
conteúdo teria que incluir uma proposição na
qual o conceito de um cardinal aparece: tal-
3
Agradeço ao Travis por muita discussão prestativa. □
vez uma proposição exprimível, na ocasião,
dizendo “Aquilo é um cardinal”. Mas o que
me parece correto é isso: a minha experiên-
cia torna o pássaro visualmente presente a
mim, e a minha capacidade recognitiva me
permite saber não-inferencialmente que o que
eu vejo é um cardinal. Mesmo se eu continuar
assumindo que a minha experiência possui
conteúdo, não há necessidade de supor que o
conceito sob o qual a minha capacidade recog-
nitiva me permite saber o que eu vejo figura
em tal conteúdo.
Considere uma experiência tida, em cir-
cunstâncias semelhantes, por alguém que não
consegue identificar imediatamente que o que
ele vê é um cardinal. Talvez ele nem tenha o
conceito de um cardinal. A sua experiência
pode ser que nem a minha na maneira como
ela torna o pássaro visualmente presente a ele.
Para mim, o que eu vejo parece (parece ser)
um cardinal, e para ele não. Mas isso é apenas
dizer que a minha experiência me inclina, e a
experiência similar dele não o inclina, a dizer
que aquilo é um cardinal. Não há nenhuma
base aqui para insistir que o conceito de um
cardinal deve figurar no conteúdo da minha
experiência em si.
Seria correto dizer que eu sou diferente da
outra pessoa na medida em que eu vejo que
o pássaro é um cardinal; a minha experiência
me revela que é um cardinal. Mas isso não é
nenhum problema para o que estou propondo.
Tais locuções – “Eu vejo que. . . ”, “Minha expe-
riência me mostra que. . . ” – aceitam, em suas
“que. . . ” cláusulas, especificações de coisas que
a experiência de alguém o coloca na posição de
saber não-inferencialmente.4 Isso pode incluir
conhecimento que a experiência torna dispo-
nível ao trazer algo à vista para alguém que
tem uma capacidade recognitiva adequada. E
como eu insisti, o conteúdo, cuja figuração em
tal conhecimento se deve à capacidade recog-
nitiva, não precisa ser parte do conteúdo da
experiência em si. □

4
Essas locuções podem até ser entendidas de tal forma que cre-
denciais inferenciais não sejam negados para o conhecimento em
questão. Considere, por exemplo, “Eu vejo que o carteiro ainda
não veio hoje”. □
5. Deveríamos concluir que capacidades con-
ceituais não estão operativas no momento em
que se tem objetos visualmente presentes a al-
guém, mas apenas no que alguém julga do que
de qualquer forma se vê? Deveríamos aban-
donar a própria ideia de que as experiências
perceptuais tidas por animais racionais não
possuem conteúdo conceitual?
Isso seria drástico demais. Nada no que eu
disse sobre capacidades recognitivas desaloja
o argumento de que, sob pena de se cair no
Mito do Dado, as capacidades que pertencem à
faculdade cognitiva mais elevada devem estar
operativas na experiência. Ao dar a alguém coi-
sas para conhecer, a experiência deve exercer
capacidades conceituais. Alguns conceitos que
figuram no conhecimento provido por uma ex-
periência podem ser excluídos do conteúdo da
experiência em si, na maneira como eu ilustrei
com o conceito de um cardinal, mas nem todos
podem.
Um ponto de parada natural, para as expe-
riências visuais, seriam os sensíveis próprios
da visão [aquilo que é percebido apenas pela
visão] e os sensíveis comuns [aquilo que é per-
cebido também por outros sentidos] acessíveis
à visão. Devemos conceber a experiência como
exercendo capacidades conceituais associadas
com os conceitos de sensíveis próprios e co-
muns.
Então devemos supor que a minha expe-
riência quando vejo um cardinal possui con-
teúdo proposicional envolvendo sensíveis pró-
prios e comuns? Isso preservaria uma das as-
sunções que eu costumava fazer. Mas eu acre-
dito que essa assunção está equivocada tam-
bém. O que nós precisamos é de uma ideia de
conteúdo que não é proposicional, mas intuici-
onal, no que eu tomo como o sentido kantiano.
“Intuição” é a tradução padrão do termo
kantiano “Anschauung”. A etimologia de “in-
tuição” se adequa à noção de Kant, e Kant
usa uma expressão cognata quando escreve
em Latim. Mas precisamos esquecer muito da
ressonância filosófica de tal palavra. Um Ans-
chauung é um ter-em-vista. (Como é usual na
filosofia, Kant trata a experiência visual como
exemplária).
Kant diz: “A mesma função que dá unidade
a várias representações em um juízo também
dá unidade à mera síntese de várias represen-
tações em uma intuição; e essa unidade, na sua
mais geral expressão, nós intitulamos como
o conceito puro do entendimento”.5 A capaci-
dade cujo exercício no julgamento é respon-
sável pela unidade do conteúdo de juízos –
unidade proposicional – também é responsá-
vel pela correspondente unidade no conteúdo
de intuições. Sellars dá uma ilustração útil: a
unidade proposicional em um juízo exprimível
por “Isso é um cubo” corresponde à unidade in-
tuicional exprimível por “esse cubo”.6 A frase
demonstrativa pode parcialmente capturar o
conteúdo de uma intuição na qual se é visual-
mente apresentado com um cubo. (Retornarei
a isso).
A unidade proposicional vem em várias for-
mas. Kant pega uma classificação das formas
de julgamento, e assim das formas de unidade
proposicional, da lógica de sua época, e tra-
balha para descrever uma forma de unidade
intuicional correspondente para cada. Mas a
ideia de que formas de unidade intuicional
5
Crítica da Razão Pura, A79/B104-5. □
6
Science and Metaphysics, p. 5. □
devam corresponder a formas de unidade pro-
posicional pode ser separada dos detalhes de
como Kant a elabora. Não é óbvio o porquê
de Kant acreditar que a ideia requer que para
cada forma de unidade proposicional deve-se
corresponder uma forma de unidade intuici-
onal. E, de qualquer forma, não precisamos
seguir Kant em seu inventário de formas de
unidade proposicional.
Michael Thompson identificou uma distin-
tiva forma de unidade proposicional para o
pensamento e fala sobre os vivos como tais.7
O ponto primário de Thompson é sobre uma
forma exemplificada ao dizer o que coisas ani-
madas de um certo tipo fazem, como em “Lo-
bos caçam em bandos” ou “A celidônia-menor
floresce na primavera”. Mas o pensamento de
Thompson pode naturalmente ser estendido
para uma forma ou formas exemplificadas na
fala do que coisas animadas individuais es-
tão fazendo, como em “Aqueles lobos estão
caçando” ou “Essa celidônia-menor está flo-
rescendo”.8 E estaria no espírito da concepção
7
Ver “The Representation of Life”. □
8
Uma forma ou formas: talvez devamos distinguir uma versão
de Kant identificar uma forma correspondente
ou formas correspondentes à unidade intui-
cional, uma das quais poderíamos identificar
na minha experiência visual de um cardinal.
O conceito de um pássaro, assim como o con-
ceito de um cardinal, não precisa fazer parte do
conteúdo da experiência; as mesmas conside-
rações se aplicariam. Mas talvez nós possamos
dizer que tal conceito me é dado em tal experi-
ência, não que seja algo que eu sei por exercer
uma capacidade conceitual sobre o que eu de
qualquer forma vejo, mas que o que eu vejo
é um animal – não porque “animal” expressa
parte do conteúdo unificado na experiência de
acordo com uma certa forma de unidade intui-
cional, mas porque “animal” captura a forma
categorial de uma intuição, o tipo distintivo
de unidade que ela possui.
Os sensíveis comuns acessíveis à visão são
modos de ocupação espacial: forma, tamanho,
posição, movimento ou sua ausência. Numa
intuição unificada por uma forma capturável
animal de uma versão não-animal. Um caso especial da versão
animal seria uma forma para a falta da ação intencional, que é o
tópico de G.E.M. Anscombe, Intention. □
por “animal”, podemos reconhecer conteúdo,
sob a classificação de modos de ocupação es-
pacial, que não poderia figurar em intuições
de objetos inanimados. Podemos pensar so-
bre sensíveis comuns acessíveis à visão como
incluindo, por exemplo, posturas tais como
pousar ou modos de locomoção tais como pu-
lar e voar.
Podemos evitar tais questões nos concen-
trando, como Sellars faz, na presencidade de
coisas como cubos coloridos. Mas mesmo com
esse foco restrito, ainda há uma complicação.
Se pode haver intuições visuais cujo conteúdo
é parcialmente especificável por, digamos, “a-
quele cubo”, intuições nas quais algo sendo
cúbico é visualmente dado a alguém, então a
faculdade cognitiva mais elevada [razão] deve
estar na nossa imagem não apenas por ser res-
ponsável pela unidade com a qual certos con-
teúdos figuram em tal intuição, mas também,
na forma da imaginação produtiva, como pro-
vendo parte do conteúdo em si – nos dando,
assim, o resto do cubo, atrás da superfície vi-
sível. Sellars frequentemente usa o exemplo
de um cubo de gelo rosa, e uma razão para
isso é presumivelmente que tal exemplo o per-
mite não se preocupar com essa complicação,
porque ele imagina seu cubo de gelo como
transluzente, de modo que o seu lado de trás
possa ser visto.9 □

9
Ver Willem A. deVries Wilfrid Sellars, p. 305, n. 18. □
6. Até agora, capacidades conceituais estão em
cena apenas como o tipo de capacidades que
deve estar em jogo na experiência se quiser-
mos evitar o Mito: capacidades que pertencem
à racionalidade em um sentido exigente. Mas
eu prometi ser mais específico.
Se a ideia do conceitual seleciona um tipo
de conteúdo, parece certo focar no conteúdo
de juízos, já que julgar é o paradigmático exer-
cício da racionalidade teorética.
Podemos pensar em juízos como os análo-
gos internos das asserções. Isso torna natural
contar o julgamento como uma atividade dis-
cursiva, apesar de que a ideia de discurso tenha
a sua aplicação primária em performances ma-
nifestas.10 Numa asserção, alguém torna algo
discursivamente explícito. E a ideia de tornar
as coisas explícitas se estende sem esforço ao
julgamento. Podemos dizer que alguém torna
o que se julga explícito a si mesmo.
Eu disse que deveríamos centrar nossa ideia
10
Talvez já seja metafórico até nessa aplicação. Veja Stephen Engs-
trom, “Sensibility and Understanding”, para algumas observações
sobre como o entendimento discursivo pode ser concebido como
operando, que é o que a etimologia do termo indica que deveria
significar. □
do conceitual no conteúdo de juízos. Mas agora
que introduzi a ideia do discursivo, eu posso
colocar o ponto dessa forma: deveríamos cen-
trar a ideia do conceitual no conteúdo da ati-
vidade discursiva.
Agora, intuir não é discursivo, mesmo no
sentido estendido no qual o julgamento é. O
conteúdo discursivo é articulado. O conteúdo
intuicional não é. Parte do ponto é o de que
há tipicamente aspectos do conteúdo de uma
intuição que o sujeito não tem nenhuma forma
de tornar discursivamente explícitos. Intuições
visuais tipicamente apresentam a alguém ca-
racterísticas visíveis de objetos que não se está
equipado para atribuir aos objetos fazendo pre-
dicações apropriadas em alegações ou juízos.
Para transformar tal aspecto do conteúdo de
uma intuição no conteúdo associado com uma
capacidade que é discursiva no sentido primá-
rio, seria necessário esculpi-lo, dessa forma, a
partir do conteúdo categorialmente unificado,
mas ainda conteúdo inarticulado, da intuição
determinando-o como o significado de uma ex-
pressão linguística, a qual se estabelece como
um meio para tornar tal conteúdo explícito.
(Isso pode ser através da cunhagem de um ad-
jetivo. Ou a expressão pode ser algo como “ter
tal tom de cor”). Talvez possamos ignorar a
linguagem e equiparmo-nos com uma capaci-
dade correlata que é discursiva no sentido no
qual um julgamento é discursivo. Haveria a
mesma necessidade de isolar um aspecto do
conteúdo da intuição, determinando-o como
sendo o conteúdo associado com uma capaci-
dade de fazer predicações nos julgamentos.
E articular vai além de intuir mesmo se nos
restringirmos a aspectos do conteúdo intuici-
onal que estão associados com capacidades
discursivas que já se tem.
Em interações discursivas com conteúdo,
se junta significâncias. Isso é particularmente
claro com performances discursivas no sen-
tido primário, cujo conteúdo é a significância
de uma combinação de expressões significa-
tivas. Mas apesar de julgar não precisar ser
concebido como um ato estendido no tempo,
como fazer uma alegação, o seu ser discur-
sivo envolve um correlato da maneira como
se junta significâncias na fala significativa.
Eu pretendo que isso seja consistente com
rejeitar, como devemos, a ideia de que os con-
teúdos que se juta na atividade discursiva são
blocos de construção autônomos, elementos
separadamente pensáveis no conteúdo de ale-
gações ou juízos. Pode-se pensar na signifi-
cância de, digamos, uma expressão predicativa
apenas no contexto de um pensamento no qual
o conteúdo ocorre predicativamente. Mas po-
demos reconhecer isso e ainda dizer que na
atividade discursiva juntamos conteúdos, de
uma forma que pode ser modelada no ato de
unificar expressões significativas no discurso
literal.
Não é assim que ocorre com o conteúdo
intuicional. A unidade do conteúdo intuicio-
nal é dada, não é o resultado de nosso juntar
significâncias. Mesmo se a exploração discur-
siva de algum conteúdo dado na intuição não
requeira que se adquira uma nova capacidade
discursiva, é preciso esculpir tal conteúdo a
partir do conteúdo inarticulado de uma intui-
ção antes que se possa junta-lo a outros bits de
conteúdo na atividade discursiva. O intuir não
esculpe o conteúdo dessa forma para alguém.
Se o conteúdo intuicional não é discursivo,
por que insistir que é conceitual? Porque todo
aspecto do conteúdo de uma intuição está pre-
sente numa forma na qual ele já está adequado
para ser o conteúdo associado com uma capaci-
dade discursiva, se não estiver – ao menos até
então – de fato assim associado. Isso é parte
da força de dizer, com Kant, que o que dá uni-
dade a intuições é a mesma função que dá
unidade aos juízos. Se um sujeito ainda não
possui a capacidade discursiva associada com
algum aspecto do conteúdo de sua intuição,
tudo que ele precisa fazer, para adquirir tal
capacidade discursiva, é isolar tal aspecto se
equipando com um meio de tornar tal con-
teúdo – o próprio conteúdo – explícito na fala
ou julgamento. O conteúdo de uma intuição
é tal que seu sujeito pode analisa-lo em signi-
ficâncias para capacidades discursivas, quer
isso requeira ou não a introdução de novas
capacidades discursivas associadas com tais
significâncias. Quer por meio da introdução
de novas capacidades discursivas ou não, o
sujeito de uma intuição está numa posição de
juntar aspectos de seu conteúdo, o próprio
conteúdo que já está lá na intuição, em perfor-
mances discursivas.
Eu disse que a unidade do conteúdo in-
tuicional é dado. Kant às vezes sugere uma
imagem diferente. Ele diz, por exemplo, que
“toda combinação, estejamos nós conscientes
dela ou não. . . é um ato do entendimento (Vers-
tandeshandung)” (B130). No seu contexto, tal
observação implica que nós ativamente jun-
tamos conteúdo nas intuições não menos que
em juízos (apesar de que com intuições a ati-
vidade deva ser inconsciente). E isso não vai
bem com a minha afirmação de que o con-
teúdo intuicional não é discursivo. Mas Kant
não precisa manter que a unidade do conteúdo
intuicional não é dado. O que ele realmente
quer insistir é que ele não é Dado: que ele não
é provido pela sensibilidade sozinha. Ao intuir,
capacidades que pertencem à faculdade cogni-
tiva mais elevada estão em jogo. A unidade do
conteúdo intuicional reflete uma operação da
mesma função unificadora que está presente
nos juízos, nesse caso ativamente exercida. É
por isso que é correto dizer que o conteúdo
unificado em intuições é do mesmo tipo que o
conteúdo unificado em juízos: isto é, conteúdo
conceitual. Nós não poderíamos ter intuições,
com suas específicas formas de unidade, se não
pudéssemos fazer juízos, com suas correspon-
dentes formas de unidade. Podemos até dizer
que a função provedora de unidade é essenci-
almente a faculdade de atividade discursiva,
uma capacidade de julgar. Mas suas operações
no prover da unidade de intuições não é um
caso de atividade discursiva.
Não que seja o caso de uma atividade pré-
discursiva, ao menos se isso significar que in-
tuir é um precursor mais primitivo de julgar.
Os dois tipos de unidade que Kant diz serem
providos pela mesma função, a unidade das in-
tuições e a unidade dos juízos, estão no mesmo
nível. □
7. Numa intuição visual, um objeto está visual-
mente presente a um sujeito com as caracterís-
ticas que são visíveis ao sujeito do seu ponto
de vista. É através da presença dessas carac-
terísticas que o objeto está presente. De que
outra forma poderia um objeto se apresentar
a alguém?
O conceito de um objeto aqui é formal. Nos
termos de Kant, uma categoria, um conceito
puro do entendimento, é um conceito de um
objeto em geral. Um conceito formal, como
podemos naturalmente dizer, de um tipo de
objeto é explicado pela especificação de uma
forma de unidade categorial, uma forma do
tipo de unidade que caracteriza intuições. Tal-
vez, como eu sugeri, seguindo Thompson, “ani-
mal” pode ser entendido como expressando
tal conceito.
Na explicação que eu tenho dado, ter um
objeto presente a você numa intuição é a atu-
alização de capacidades que são conceituais,
num sentido que pertence à tese de Kant de
que o que é responsável pela unidade com a
qual o conteúdo associado figura na intuição
é a mesma função que dá a unidade aos juí-
zos. Eu insisti que apesar da função que dá
tal unidade ser uma faculdade de atividade
discursiva, não é na atividade discursiva que
essas capacidades entram em operação nas in-
tuições. Com muito do conteúdo de uma intui-
ção visual ordinária, as capacidades que estão
em jogo quando nós o temos como parte do
conteúdo da nossa intuição não são sequer sus-
cetíveis a exercício discursivo. Podemos fazer
uso do conteúdo ser dado numa intuição para
adquirir uma capacidade discursiva nova, mas
com muito do conteúdo de uma intuição or-
dinária, isso nunca ocorre. (Pense nas formas
e tons de cor finamente discrimináveis que a
experiência visual nos apresenta). Contudo, o
conteúdo de uma intuição é todo conceitual,
no seguinte sentido: ele está na intuição numa
forma na qual se poderia fazer com que esse
mesmo conteúdo figurasse numa atividade dis-
cursiva. Isso seria explorar um potencial para
a atividade discursiva que já está lá nas capaci-
dades atualizadas ao se ter uma intuição com
aquele conteúdo.11
11
Conteúdo intuicional que não é trazido para a atividade discur-
siva é facilmente esquecido. Isso não apresenta nenhum desafio
Numa intuição, um objeto se apresenta a
nós mesmo se não explorarmos seu potencial
para a atividade discursiva. Kant diz que o “eu
penso” da apercepção deve ser capaz de acom-
panhar todas as minhas Vorstellungen (repre-
sentações), num sentido que está relacionado
à ideia de operações da função que dá uni-
dade tanto a juízos quanto a intuições (B131).
Um objeto se apresenta a um sujeito em uma
intuição quer ou não o “eu penso” acompa-
nhe quaisquer dos conteúdos da intuição. Mas
qualquer conteúdo de uma intuição deve ser
capaz de ser acompanhado pelo “eu penso”.
E o “eu penso” acompanhar algum conteúdo
de uma intuição, por exemplo, uma intuição
visual minha, é eu julgar que eu estou visual-
mente confrontado com um objeto de tais e
tais características. Já que a intuição torna o
objeto visualmente presente a mim através de
tais características, tal juízo seria correto.
Agora temos em vista duas maneiras pe-
las quais as intuições tornam possíveis juízos
para o dizer que ele é conteúdo conceitual, no sentido que eu ten-
tei explicar. Veja Sean Dorrance Kelly, “Demonstrative Concepts
and Experience”. □
corretos.
Uma delas é a que eu acabei de descrever.
Um potencial para a atividade discursiva sem-
pre está presente enquanto uma intuição pos-
sui conteúdo. E é possível explorar um pouco
desse potencial num juízo correto que reuti-
liza alguma parte do conteúdo da intuição. No
tipo de caso que primeiro nos abre a essa pos-
sibilidade, nós adicionamos uma referência à
primeira pessoa. Quando o “eu penso” acom-
panha algum conteúdo fornecido em uma in-
tuição, isso acarreta um juízo correto de que
estou sendo confrontado por um objeto com
tais e tais características. Mas estar numa po-
sição de fazer tal juízo é estar numa posição
de julgar que há um objeto com tais e tais ca-
racterísticas em uma localização tal e tal. Não
é preciso referir-se a si mesmo num juízo cujo
status como correto depende no seu ser uma
exploração discursiva de alguma parte do con-
teúdo de uma intuição.
A outra maneira pela qual as intuições tor-
nam o conhecimento possível é aquela que
ilustrei com meu conhecimento de que o pás-
saro que eu vejo é um cardinal. Aqui um juízo
correto tornado possível por uma intuição tem
conteúdo que vai além do conteúdo da intui-
ção. A intuição torna algo perceptualmente
presente ao sujeito e o sujeito reconhece que
aquela coisa é uma instância de um tipo. Ou
como um indivíduo; parece razoável encon-
trar uma estrutura correspondente num caso
no qual a experiência permite que se conheça
não-inferencialmente com quem é que se está
perceptualmente confrontado. □
8. Travis insiste que a experiência não repre-
senta as coisas dessa forma.12 Se as experi-
ências forem intuições, ele está estritamente
correto. Qualquer coisa que representa as coi-
sas dessa forma tem conteúdo proposicional,
e eu estive apresentando uma concepção de
intuições na qual elas não possuem conteúdo
proposicional. Mas apesar de Travis estar cor-
reto sobre a natureza da tese de que as experi-
ências representam as coisas dessa forma, ele
está incorreto sobre o espírito de tal tese, como
podemos ver ao considerarmos a primeira das
duas maneiras pelas quais as intuições tornam
possíveis juízos corretos. Mesmo não sendo
discursivas, as intuições possuem conteúdo de
um tipo que corporifica um potencial imediato
para a exploração do mesmo conteúdo num
juízo correto. As intuições imediatamente re-
velam que as coisas são do modo que elas se-
riam julgadas como sendo naqueles juízos.
Quando Sellars introduz o caráter concei-
tual que ele atribui a experiências, ele descreve
experiências como “por assim dizer, fazendo”
12
Ver “The Silence of the Senses”. □
alegações ou “contendo” alegações.13 Se expe-
riências são intuições, isso está similarmente
errado em natureza mas correto em espírito.
Intuições não possuem o tipo de conteúdo que
alegações possuem. Mas intuições imediata-
mente revelam as coisas como sendo como
elas seriam alegadas como sendo em alega-
ções que não seriam nada mais que explora-
ções discursivas de alguma parte do conteúdo
das intuições.
Quando Travis diz que as experiências não
representam as coisas dessa forma, ele não
quer dizer eu as experiências são intuições no
sentido que venho explicando. Ele diz que a ex-
periência não é um caso de intencionalidade, e
eu acho que é justo entende-lo como negando
que quaisquer capacidades conceituais este-
jam em jogo na experiência. As experiências
visuais nos trazem os nossos arredores à vista;
isso deve ser ponto pacífico. A ideia de Tra-
vis é a de que a forma como a experiência
torna [um tipo de] conhecimento disponível
para nós pode ser entendida, de maneira geral,
13
“Empirismo e Filosofia da Mente”, §16. □
com base no modelo de como uma experiência
pode me permitir saber que o que eu vejo é um
cardinal. Na imagem de Travis, capacidades
conceituais entram em jogo apenas no nosso
julgar, como podemos, o que as experiências
visuais de qualquer forma nos trazem à vista,
independentemente de qualquer operação de
nossas capacidades conceituais.14 Na imagem
de Travis, ter as coisas em vista não depende
de nossas capacidades conceituais. E se não de-
pende de capacidades conceituais, ter as coisas
em vista deve ser provido pela sensibilidade
sozinha.
O problema com isso é o de que é uma
forma do Mito do Dado. Nós não caímos no
Mito só por supor que características de nossos
arredores nos são dadas na experiência visual.
Mas na imagem de Travis, essa dadidade se
torna um caso de Dadidade.
Travis acredita que a ideia de que experiên-
cias possuem conteúdo conflita com a ideia de
que a experiência diretamente nos traz nossos
arredores à vista. Ele não está só em pensar
14
“In making out, or trying to, what it is that we confront”: “The
Silence of the Senses”, p. 65. □
assim.15 Querendo, como é razoável, manter a
ideia de que a experiência diretamente nos traz
nossos arredores à vista, ele é levado a negar
que as experiências possuem conteúdo. Mas
não há conflito. As intuições, como eu as expli-
quei, diretamente nos trazem objetos à vista
através do trazer suas propriedades perceptí-
veis à vista. As intuições o fazem precisamente
por ter o tipo de conteúdo que possuem.
Se as intuições tornam [um tipo de] conhe-
cimento disponível para nós, intuições mera-
mente aparentes meramente aparentemente
tornam [um tipo de] conhecimento disponí-
vel para nós. É frequentemente pensado que
quando as pessoas insistem que as experiên-
cias possuem conteúdo, elas estão respondendo
a uma necessidade sentida de acomodar o fato
de que a experiência pode nos enganar.16 Mas
o motivo adequado para creditar experiências
com conteúdo é o de que devemos evitar o
Mito do Dado. Dar espaço para experiências
enganadoras é um subproduto inegável. □

15
Ver, e.g. Bill Brewer, “Perception and Content”. □
16
Ver Brewer, “Perception and Content”. □
9. Donald Davidson alega que “nada pode con-
tar como uma razão para ter uma crença ex-
ceto uma outra crença”.17 O seu ponto é negar
que crenças podem ser tomadas como racio-
nais à luz de episódios ou estados na consciên-
cia sensória – ao menos que isso signifique que
elas podem ser tomadas como racionais à luz
de crenças sobre episódios ou estados na cons-
ciência sensória. Isso colocaria a relevância
racional potencial de crenças sobre episódios
ou estados na consciência sensória no mesmo
nível da relevância racional potencial de cren-
ças sobre qualquer coisa sobre o qual se pode
ter crenças.
Em trabalhos prévios, eu tomei o slogan
de Davidson como refletindo um insight: que
capacidades conceituais devem estar em jogo
não só na formação racional de crenças ou
no fazer juízos, mas também no ter as autori-
zações [entitlements] racionais que explora-
mos ao fazer isso. Mas insisti que o insight,
assim entendido, permite que juízos possam
ser tomados como racionais à luz das experi-
17
“A Coherence Theory of Truth and Knowledge”, p. 141. □
ências em si, não apenas à luz de crenças sobre
experiências, já que podemos entender as ex-
periências como atualizações de capacidades
conceituais.18
Tentando explicitar tal possibilidade, que
não encontrei na imagem de Davidson, eu fiz
uma das assunções que eu renunciei: que se as
experiências são atualizações de capacidades
conceituais, elas devem possuir conteúdo pro-
posicional. Isso deu a Davidson uma abertura
para uma resposta reveladora.
Davidson argumentou que, se por “expe-
riência”, nós queiramos dizer algo com con-
teúdo proposicional, ela só pode ser um caso
de tomar as coisas como estando de tal e tal
forma, distintiva em ser causada pelo impacto
que o ambiente tem sobre o nosso aparato
sensório. Mas é claro que a imagem dele [já]
inclui tais coisas. Então eu estava errado, ele
alegou, em supor que havia algo faltando em
sua imagem.19
18
Ver, e.g., Mente e Mundo. □
19
Para uma expressão particularmente clara, ver “Reply to John
McDowell”. Colegas de Davidson em Berkeley opinaram em
uma veia semelhante. Ver Barry Stroud, “Sense-Experience and
the Grounding of Thought”, e Hannah Ginsborg, “Reasons for
Eu quero insistir, contra Davidson, que ter
experiência não é tomar as coisas como es-
tando de tal e tal forma. Como Travis insiste,
nossas experiências visuais trazem os nosso
arredores à vista. Parte do que nós somos por
isso autorizados a tomar como estando de tal e
tal forma, em juízos que seriam racionais dado
o que é visualmente presente a nós, nós toma-
mos sim como estando de tal e tal forma. Mas
mesmo quando nós separamos o [processo
de] aquisição de crenças do [ato de] explicita-
mente julgar as coisas como estando de tal e
tal forma, como deveríamos, nós exageraría-
mos a extensão da atividade doxástica a qual a
experiência nos impele se supuséssemos que
adquirimos todas as crenças às quais nós es-
tamos autorizados através daquilo que temos
em vista.
Então eu concordo com Travis que as ex-
periências visuais apenas trazem os nossos
arredores à vista, e assim nos autorizam a to-
mar certas coisas como estando de tal e tal
forma, mas deixando como uma questão adi-
Belief”. Para uma visão semelhante, independente de Davidson,
ver Kahtrin Glüer, “On Perceiving That”. □
cional o que, se alguma coisa, nós tomamos
como estando de tal e tal forma. Mas como eu
argumentei, a versão de Travis desse pensa-
mento cai no Mito do Dado. E se nós evitar-
mos o Mito concebendo as experiências como
atualizações de capacidades conceituais, ainda
retendo a assunção de que isso requer creditar
as experiências com conteúdo proposicional,
então o ponto de Davidson parece correto. Se
as experiências possuem conteúdo proposici-
onal, é difícil negar que ter uma experiência
é tomar as coisas como estando de tal e tal
forma, ao invés do que eu quero: um tipo di-
ferente de coisa que nos autorize a tomar as
coisas como estando de tal e tal forma.
Se a experiência abrange intuições, existe
um meio-termo entre essas posições. As intui-
ções trazem os nossos arredores à vista, mas
não em uma operação de mera sensibilidade,
então nós evitamos a forma de Travis do Mito
do Dado. Mas o conteúdo conceitual que nos
permite evitar o Mito é intuicional, não propo-
sicional, então ter experiências não é tomar as
coisas como estando de tal e tal forma. Ao tra-
zer os nossos arredores à vista, as experiências
nos autorizam [nos dão justificação para o ato
de/] a tomar as coisas como estando de tal e
tal forma. Se o fazemos ou não é uma questão
adicional.
Como eu disse, existem duas maneiras pe-
las quais a experiência, concebida como abran-
gendo intuições, nos autoriza a jogadas com
conteúdo discursivo. Ela nos autoriza a juízos
que explorariam parte do conteúdo de uma
intuição, e ela figura em nossa autorização a
juízos que vão além desse conteúdo em formas
que refletem capacidades de reconhecer coisas
presentes a nós em uma intuição. Mas como
eu insisti, ao intuir nós não lidamos discursi-
vamente com o conteúdo.
Eu mencionei a proposta de Sellars de que
o conteúdo de uma intuição pode ser captu-
rado, em parte, por uma forma de palavras
como “esse cubo vermelho”. Um conteúdo ex-
pressado dessa forma seria um conteúdo dis-
cursivo fragmentário. Pode ser parte do con-
teúdo de um juízo garantido na segunda da-
quelas duas maneiras, onde o que alguém julga
inclui, além do conteúdo contido na intuição
em si, conceitos cuja participação no juízo re-
flete capacidades recognitivas exercidas em
algo que a intuição torna presente para nós.
Assim, uma parte do discurso que começa com
“Esse cubo vermelho. . . ” pode continuar como
“. . . é aquele que eu vi ontem”.
Eu acredito que isso indica que a proposta
de Sellars é útil até certo ponto. Ela pode pare-
cer implicar que o conteúdo intuicional é es-
sencialmente conteúdo discursivo fragmentá-
rio. Mas o conteúdo intuicional não é nenhum
pouco discursivo. Ter algo em vista pode tor-
nar possível uma expressão demonstrativa, ou
um análogo no juízo, mas o potencial não pre-
cisa ser atualizado. □
10. O slogan de Davidson como formulado res-
tringe a maneira como crenças podem ser to-
madas como racionais para explorações em es-
truturas inferenciais. Ele implica que dar uma
razão para ter uma crença é retratar o con-
teúdo da crença como a conclusão de uma in-
ferência com o conteúdo de uma outra crença
como uma premissa.
Eu me propus a modificar o slogan de Da-
vidson dizendo que não só crenças mas tam-
bém as experiências podem ser razões para
crenças. E de acordo com a minha velha assun-
ção, as experiências possuem o mesmo tipo
de conteúdo que crenças. Então foi compre-
ensível que eu fosse interpretado como reco-
mendando uma concepção inferencial, ou ao
menos quase-inferencial, do modo como a ex-
periência nos autoriza a crenças perceptuais.20
Não era isso que eu pretendia. Eu não que-
ria insinuar que a experiência nos dá premis-
sas para inferências cujas conclusões são os
conteúdos de crenças perceptuais. Pelo contrá-
rio, eu acredito que a experiência nos revela
20
Ver Crispin Wright, “Human Nature?”. □
diretamente as coisas como acreditamos que
elas sejam em crenças perceptuais, ou ao me-
nos aparentam fazer isso. Mas é difícil fazer
isso coerir com a suposição de que as expe-
riências possuem o mesmo tipo de conteúdo
que crenças. Essa é só uma forma de registrar
o quão persuasiva é a resposta de Davidson
de que “não tem nada faltando”, contanto que
nós não questionemos a assunção de que o
conteúdo conceitual das experiências teria de
ser proposicional.
Tomar a experiência como abrangendo in-
tuições, no sentido em que expliquei, remove
tal problema. Não deveria nem parecer que
a forma pela qual as intuições nos autorizam
a crenças envolve uma estrutura inferencial.
Se um objeto está presente para alguém atra-
vés da presença para alguém de algumas de
suas propriedades, numa intuição na qual os
conceitos de tais propriedades exemplificam
uma unidade que constitui o conteúdo de um
conceito formal de um objeto, podemos assim
ser autorizados a julgar que estamos sendo
confrontados por um objeto com tais proprie-
dades. A autorização deriva da presença para
nós do objeto em si disponível para nós ao ser
o conteúdo de nossa experiência, não de uma
premissa para uma inferência.
Na interpretação que ofereci no início, a
visão de Sellars do Mito como uma armadilha
a ser evitada, ao pensarmos sobre a experiên-
cia, é uma aplicação de seu pensamento de
que o conhecimento, como tido por animais
racionais, depende de nossas capacidades dis-
tintivamente racionais. Eu acabo de explicar
como isso não implica que a justificação para
tal juízo perceptual é quase-inferencial.21
Encontrar tal implicação é a mesma coisa
que achar que o entendimento kantiano de Sel-
lars do que o conhecimento é para animais ra-
cionais sobre-intelectuailiza a nossa vida epis-
têmica.22 Isso precisa ser discutido, mas eu ter-
minarei brevemente argumentando que isso é
o exato oposto da verdade.
Uma concepção intelectualista do intelecto
humano o considera como algo distinto de
21
Para a ideia de que a rejeição de Sellars do Mito do Dado se
resume à tese de que a justificação dos juízos perceptuais é infe-
rencial ou quase-inferencial, ver Daniel Bonevac, “Sellars vs. the
Given”. □
22
Veja Tyler Burge, “Perceptual Entitlement”. □
nossa natureza animal. O melhor antídoto é
ver tais capacidades da razão como operativas
até mesmo em nossa consciência perceptual
irreflexiva.
É completamente errado acreditar que a
concepção de Sellars implica que toda a nossa
vida epistêmica é ativamente guiada por nós,
através da luz brilhante da razão. Que capa-
cidades racionais estão penetrantemente em
jogo em nossa vida epistêmica humana é refle-
tido no fato de que qualquer parte dela pode ser
acompanhada pelo “eu penso” da autoconsci-
ência explícita. Mas apesar de toda nossa vida
epistêmica ser capaz de ser acompanhada pelo
“eu penso”, em boa parte dela nós apenas se-
guimos o fluxo.
Eu disse que toda nossa vida epistêmica
pode ser acompanhada pelo “eu penso”. As
ocorrências subpessoais no nosso maquinário
cognitivo não são um contraexemplo a essa
alegação. Elas não são, no sentido relevante,
parte de nossa vida epistêmica. Sem dúvida
o conhecimento sobre como o nosso maqui-
nário cognitivo funciona é essencial para um
entendimento completo de como pode ser que
as nossas capacidades epistêmicas são como
são. Mas ter uma posição no espaço das razões
– por exemplo, estar numa posição onde se vê
que as coisas estão de tal e tal forma – não é
um assunto subpessoal. É verdade que o ma-
quinário subpessoal que nos permite ter tais
posições opera fora do alcance de nossa aper-
cepção. E existem, não surpreendentemente,
similaridades entre o nosso maquinário cogni-
tivo subpessoal e o maquinário cognitivo de
animais não-racionais. Mas isso não ameaça
a ideia de que animais racionais são especiais
em ter posições epistêmicas às quais é essen-
cial que possam ser disponíveis à apercepção.
O que torna a concepção internalista de
Sellars apropriada para o nosso conhecimento
perceptual não é que na percepção nós partici-
pamos de uma atividade racional nos moldes
do raciocínio – algo que pode ser considerado
como separado da nossa natureza animal, es-
pecificamente, para propósitos presentes, da
nossa natureza senciente. Isso seria sobre-inte-
lectualizar o nosso conhecimento perceptual.
Mas a razão pela qual o internalismo está cor-
reto sobre o nosso conhecimento perceptual é
que as capacidades racionais, e portanto a dis-
ponibilidade para a apercepção, permeiam a
nossa experiência em si, incluindo a experiên-
cia na qual agimos irreflexivamente no nosso
lidar com os nossos arredores. Tal é a forma
que o engajamento animal com o ambiente
perceptível toma no caso de animais racionais.


Discussão em AncapChannel. Retirado de Pragmatologia. □

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