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Theatro Da Eloquencia

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frôigÇ Co\

Presented to the

LIBRARY of the
UNIVERSITY OF TORONTO
by

Professor

Ralph G. Stanton
,

/)As A

THEATRO DA ELOQUÊNCIA
OU ARTE
RHETORICA.
,

THEATRO DA ELOQUÊNCIA,
OU AR T E
RHETÕRIC
FUNDADA
A NOS PRECEITOS DOS
melhores Oradores Gregos , e Latinos.

FRANCISCO
DE
DE PINA,
E DE MELLO, SA',
Moço Fidalgo da Cafa de Sua Mageflacíe Fideliffima 9
e Académico da Academia Real da Hijloria
Portugueza.

OFFERECIDA
AO REVERENDÍSSIMO senhor desembargador

JOACHIM S ALTER
DE MENDOÇA,
Prior da Collcgíada de S. Chriílovaõ de Lisboa , Juiz dos Ca
zamentos , e Chancellcr do Patriarchado &c. &c.
POR
ANTÓNIO DA SILVA , E COSTA.

LISBOA:
FRANCISCO BORGES DE SOUSA
Na Officina de
Anno de MDCCLXVI.

Com as licenças necefiarias.


DEDICATÓRIA.

REVERENDÍSSIMO senhor.

ES EJ ANDO jatisfazer a bum a


das principaes obrigaçoens , que temos todos de fa-
zermos ferviços d fociedade > de que fomos membros^
§ 3 ewpren*
empymdí eflampar efta Arte de Rhetorica , que pa-
ra fer recommendavel lhe bafia o celebre "nome de feu
Author. NaÔ há coufa taõ útil , como efta S ciência.
A Rhetorica he a arte de persuadir , e por i(fo a mais
neceffaria no commercio humano. Anima todos os dij.
curfos , e dá novo pezo a todas as razoens daqui :

vem , que tem lugar em toda a parte em que jearre-


zoa , e difcorre. O difcurfo de hum homem \em ar*
tificio , he hum cháos poderá ter boas razoens , ai*
:

legar excellentes provas , mas fe nao as [abe dispor


com ordem , quem o entenderá ? Quem fe perfuadu
rd delias ? A difpoftçaó das partes dá alma ao to-
do \ convida a diflmgmr ás pr^pwçotns ; moftra a
relação , e dependência ^ que humas tem ãas outras ;
colloca no feu verdadeiro lugar o que de outra for-
te fe naõ conheceria. E , na verdade , a Rhetorica tem
tal força , que obriga a ver a reconhecer , e admi-
,

rar o que de outro modo fe nao defcobrir ia* Os ma-


,

teriaes podem fer fmiplez as razoens mui fingelas;


,

mas a difpofiçaô delias fará efeitos taes , que fem


elh naõ fe confeg/uiriao.
Tendo por efte modo fatisfeito a efta obrigação
geral , pafjo a cumprir com a particular , que te-
nho á Júa llluftre pefjoa , pelo muito que lhe devo.
Eftou taõ contente de o ter tomado por Mecenas , que
Je efta efe olha nao procede f]e de grandes obrigações,
nafeera do nobre interefje de dar a efta Obra hum
Patrono , em quem concorrem todas as qualidades
para o fer. He Z7 M. geralmente reconhecido pelo Sa-
,

cerdote mais perfeito , pelo Paftor mais vigilante ,


mais caritativo pelo Jurifconjulto mais perito , pe*
,

lo Miniftro mais inteiro , mais r*eólo. Os lugares,


que exercita, nao faõ pequeno theatro , em que a ca-
ridade a juftiçà , a mo de[lia , a genoroftdade 5 a
,

prudência , a gravidade , os coftumes e todas as maiz


,

virtudes reaíçaõ tanto , que em tudo quanto obra %


fe faz hum verdadeiro exemplar da perfeição. Efe
eu agora quizejfe detalhar cada httma das fuás ex~
cellentes prerogativas , feria querer fazer hum livro,
e nao huma Dedicatória , no defcrevé-las ; mas re*
tnetto-me ao [tlencio.
A
natural paixão , que tenho dlllufirijjíma Fa-
tnilia dos Mendoças , que tem produzido tantos Va~
roens famofos , ennobrecendo igualmente a Portugal*,
e a Hefpanha , e de que V. M. he legitimo defcenden-
te , com a prerogativa de poffuir jeu irmão o Senhor
Duarte Salter de Mendoça , Fidalgo da Cafa de Sua
Mageflade , do Jeu Confelho , e do da Rainha N. Sèm
f/hora , hum bom Morgado injiituido por hum dos Se-
nhores da mefma Cafa me anima a referir a fua
:

Genealogia , ainda a pezar do modefto caraâter de


F. Al., aquém he muito dej agradável o incenjodos
elogios.
Os Mendoças fao taÔ antigos , que a fua ori-
gem fe perde nas trevas da antiguidade. Poderia re-
ferir fabulas , ou conjeSlurasfobre a fua extracção,
mas como efta Cafa nao necejftta de ornato para lu*
zir, e nem as fabulas devem fer publicadas em hum
feculo, em que a boa filo fofia tem polido os efpiritor,
principio nos jeus primeiros progenitores , em que ge-
ralmente concordaS os melhores Genealógicos.
/>. Lopo Sarracines , que foi Conde , e Senhor
Soberano de Bifcaya. Pofjuio pelos armo* ide 905. o
fenhorio de Durango por fua mulher D. Dalda , fi-
lha herdeira de D. Sancho E/ligues , Senhor de Du^
rango* (1) Nafceo defie matrimonio
O
Duque D. Fortunio , a quem chamarão por
alcunha D. Zuria 5 pelo qual geralmente o conhecerão
os hijloriadores antigos. Pojjuio o fenhorio de Bif-
caya , e falleceo noanno de 930. Cazou com D. jíuria-
e teve a § 4 OXo,
(1) Salazar de Caftro, Gafa Faw«e p, 2. çapí pag. tfj.
5
D. Lopo Fortune j
que foi terceiro Soberano dê
,

Bifcaya e fe achou na batalha de Haffinas no anno


,

de 945. Cazou com D. Nunapfilha do Conde D. Gonça*


lo Fernandes , Soberano de Cajlella Burgos &c. , e
,

foi feu filho


D, Nuno Lopes quefoi quarto Soberano de Bif-
,

caya. Cazou com a Infanta D. Velafquita filha de ,

D. Sancho Garcia ofegando Rey de Navarra , e da.


Rainha /). Toda e for ao pays de
,

D. Lopo Nunes quinto Soberano de Bifcaya >


,

que cazou no anno de ioio.com D. Uzenda y filha


de D. António , Infante de Leatí , a quem o Conde
D. Fedro no feu Nobiliário deo o nome de D. AJboa-
zar Ramires f filho de D. Ramiro , fegundo Rey de
Leaõ , e teve entre outros filhos , a
,

D. Imgo Lopes Conde , e Jexto Soberano de.


,

Bifcaya , Durango e Naxera , que logrou defde o


,

anno de 1028. , até loy 6. Cazou com D. Toda Or~


tiz filha de D. Orttz Sanches , Senhor de Naxera *
,

e Alferez mor de Navarra e teve , dlèm de D. Lo :


*

po Inigues fettimo Soberano de Bifcaya de quem


, ,

procedem os Rey s de Hefpanha a ,

D. Sancho Inigues que falleceo em vida dejeu ,

Pay no anno de 1070. , havendo [ido c azado com D*


,

Thereza , de quem najceo


D. Lopo Sanches que foi Senhor de Alaba , e do
,

Valle dé^kodio , e fe intitulava Príncipe , comocon-


jla de h (ih a ejcriptura , que confirmou no anno de
1094. Cazou £ um fua parenta D.Sancha Diaz de
Frtas , filha de D. Dtogo Lopes , oitavo Soberano de
Bijtaya* , e teve a
r

D* Inigo Lopes. y;RicòH ornem, ( a mayor dignida-


\

de da quelle tempo ) e Senhor de Lhodio Sor ia, C afiei* ,

la a Felha j e Burgof pe/vs annos de 1118.^1127.(2)


Cazou

(z) Alarcão íUlaçau Genealog* U 4* cap* 1. pug. $ly


Cazou com D. Maria Garcia , de Garcia Gon-
filha
çalves Salvadores , Padroeiro de S. Martim de £/-
calada \ e teve a
D, Inigo Lopes , Senhor de Lhodio , e da Vi11a
de Mendoça , de cujo appellido ja ujava no mino de
1 162 , e morreo no de 1 189.
havendo fido c azado com
D. Thereza Ximems ,
filha de D. Ximeno ínigues ,
'Rico- Homem Senhor de los Cameres , é de D. Ma»
,

ria Gonçalves de "Lara , e teve , dlèm de D. Inigo


Lopes de Mendoça , quarto Senhor de Lbodio , e Zai-
tegui a ,

D. Gonçalo Lopes de Mendoça , que foi Senhor


da Cafa , e Ftlla defle nome ; e cazou com D. Maria
Garcia Salvadores , filba de Garcia Gonçalves Sal*
vadores , ( Irmão de D. Godo Senhora de Lara ) e de
£). Maria Ladfon de Guevara fua mulher , e teve a
Lopo Gonçalves de Mendoça , Senhor da Villa
de Mendoça , que cazando com D. Maria Garcia de
Ayala teve, dlèm de Ruy Lopes de Mendoça , fegun-
do Almirante de Caflella ,. a
Diogo Lopes de Mendoça , que foi Senhor da
Filia cie Mendoça , e outras muitas terras , e eh ar
mado por antonomazta o Forte Senhor. Cazou com D,
Leonor Furtado Senhora de Mendibil EJcamona ,
, ,

Martio da Cueta , e Veto , filba de D. Fernão Perez


de Lara , chamado o Furtado, (3) Rico-Homem , e
Mordomo mór d El Re y D. Affonfo o Defejado , {filho
de D* Pedro Gonçalves de Lara , Conde de Lara f Me-
dina de la Torre &*c.) que o houve em D. Urraca
Rainha proprietária de Leão , e Cajlella ) e de D
Guiomar Affonfo. E teve, dlèm de Lopo Diaz de Men-
doça , Progenitor dos Príncipes de Melito , Duques
do Infantado Marquezes de Montes Claros , e AL
,

geeira e dos Condes de Pr iego e de Galvi &>c*, e de


,. ,

Fernão
(5) Salaz. de MeRioça Dsgn. 1, 2. c. 5?. Trdles Aííurias illuft.t. i.c.lj.ip, 22 c.
A-krc.l, 4, c> I p. 3 1 5,cqí liftíli Sal 4ç Çafkoy Ca£a de Lara U ijji.a 1 j*p, I <rái
Fernão Furtado de Mendoça que pafjando a efle \

Reyno foi progenitor dos Condes de Vai de Reys a


,
,

Pedro Diaz de Mendoça , que foy hum dos du-


zentos Fidalgos que o Rey D. Affonfo X. herdou em
,

Sevilha no anno de 1253. (4) Teve de fua mulher D.


Maria Arraes , filha de D. Fernando Arraes , Fidal-
go Cajlelhano , que foi Fronteiro mor das armas do
Rey /)• Affonfo de Caftella , contra o Algarve alem ,

de outros filhos de quem ha illuftrijjimos defcenden*


,

tes , a
Fernando Arraes de Mendoça , que teve o mef-
mo Governo contra o Rey D. Affonfo IV. de Portu-
gal , (5) para onde paffou no anno de 1339. depois
de feita a paz. Eftabeleceo-fe no Algarve , onde ca*
zou , e teve de fua mulher , cujo nome ignoramos , a
Pedro Arraes de Mendoça , que também viveo
no Algarve onde cazou , fegundo dizem alguns , com
,

D. Ignez de Mello , filha de Ruy de Mello da Cunha-,


porém a combinação dos tempos o repugna , e he cer-
to que faltao muitas memorias defta família > e que
o Algarve he efleril de noticias Genealógicas. Teve de
jua mulher r que podia jer da família deTeive, a
Fernando Arraes de Mendoça , que fuccedeo
tia Cafa de feu pay , que logrou em Tavira. Cazou em
Caftella com l>. brancifca de Ávila , filha de D. Luiz
de Ávila Fidalgo Cajlelhano , e teve a
,

Gonçalo Arraes de Mendoça que [uccedeo na ,

Cafa de feu pay foi Cavalheiro , e Vaffallo ( grande


,

dignidade naquelle tempo ) d' EIRey D. jfoao I. a


quem fez difttnâlos ferviços fendo hum dos Fidal- \

gos que ainda no tempo em que EIRey era Meftre^


,

o começarão a fervir. Acompanhou o Condeftavel na


defeza do Reyno e paffou depois a jervir em Ceu-
,

ta j onde falleceo. O mefmo Rey lhe fez varias mer-


cês

(4) Idem Salazar.

(5) Monarch Luz. 1.7.!.$ c. if, Europ. Portug. t. 2. c. ?. pag. i6$.n, êf*
cès i
como confia da jua ChancelJaria. (6) Cazou com
D. Ignes Madeira , filha herdeira de Affcnfo Ma-
deira , Fidalgo valido do me/mo Rey , que lhe fez
mercê do Julgado de Fermedo ; e porque ejla doação
nao teve effetto , lhe doou outras terras , e teve , en»
tre outros filhos , a
João Arraes de Mendoça , que foi Cavalleiro
da Ordem de Cbrifio , e da Cafa d E/Rey D. Affon-
fo V. (7) Sérvio em Ceuta , onde cazou com D, Ifa*
bel Nabo , filha de Vafco Nabo , Cavalheiro Fidal-
go , que naquelle tempo era o foro de maior gradua-
ção e Adail da Gente de Guerra na me'Jma Cidade,
,

Po/to , que conrejponde ao de General da Fronteira ,


e de D* Ifabel Camello , filha de Vafco Martins Ca-
mello j e teve a
Simam Arraes de Mendoça , que foi Fidalgo
da Cafa Real. Sérvio em Ceuta mais de quarenta
annos com tanta dijlinçao , pelo jeu valor , e luzi*
mento , que dos Mouros era especialmente temido»
Eflando captivo em Tetuam , o Rey de Fez o mandou
bufcar para o ver , pela fama , que delle havia entre
aquelles bárbaros. Sérvio com tal dezinterefle , que
nunca quiz foldo , nem ração , como recebiao os ou-
tros Fidalgos , que ferviaõ naquella Praça. As fuás
acçoens fao bem conhecidas na hijíoria. Morreo en-
venenado pelos Mouros na mefma Cidade. Cazou com
D. Maria de Florença , de huma das principaes fa-
mílias da Ilha da Madeira , e teve a
Vafco Nabo de Mendoça , natural de Ceuta ,
cnde fe achou em algumas das occajioens de feu pay,
portando-fe fempre nellas com muito valor. Sérvio
também em Tanger'e , em Arzila , e em outros pre-
zidios de Africa. Depois de ejlar em Lisboa paflou
duas vezes a Ceuta , pela noticia que havia ? de que
os

(6) Chron. do Cond. e d'E!Rey D. Joaõ o I. p, Ji c. 16q.


(7Í Triuaf. de la Nob. tuí. pag. 1 ig, col. 1%
»/ Mouros vinhaofobre a meftna Cidade. ElRey D.Se-
-bajliaõ o honrou muitoelogiando publicamente ofeu
,

valor. Foi Fidalgo da Cafa Real, Cazou com /), Ca


tbarina Teixeira Lobo , Irmaã do valorofo Cbrifto*
*vaõ Teixeira Lobo , e teve a
SimaÕdç Mendoça Nabo , Fidalgo da Cafa Real,
que fuccedeo a [eu pay na fua Cafa, Cazou com D.
Brites Paes de Faria 5 Padroeira da Capella de N*
f
Senhora da Piedade ? que tinha fido de eus ajcen*
dentes , e teve a
Fújco Nabo de Mendoça Fidalgo da Cafa Real.
,

Foi Senhor da Ca [a de Jeu pay. E de fua fegunda


mulher D. Ifabel da Silva , filha de Domingos Fer-
nandes da Silva , Cavalheiro Africano ,e de D. Bar*
bara Oiaz , filha do Defembargador Anto?iio Diaz 1
Cavalleiro da Ordem de Cbrijlo , teve a
D, Antónia da Mendoça Nabo que fendo her-
,

deira da Cajá de J eus pays , cazou com António Sal-


ter de Macedo Fidalgo da Cajá Real
, Cavallei-
,

ro da Ordem de Chrtjio , filho de Duarte Salter ,


Fidalgo Jtiglez , d ElRey Carlos I cujo par-
e valido
tido jcvipre feguio , receando-fe
e do tyranno Par-
lamentaria Cromuel , fe pafjou a efle Reyno , para
viver também com mais jegur anca na Fé CathoJica >
que Jernpre profejjou\ e de D. Marianna de Macedo , e
Mariz. Neto pela parte paterna de Joaõ Salter ,
Fidalgo Inglez , e de A
lis Salter , fua prima : Bij-
neto de Nicoldo Salter , Fidalgo , e de Eletia Atkins 9
filha do Barão de Atkins : Terceiro neto de Jay-
me Salter. Qiiarto neto de Thomaz Salter , ambos
Fidalgos defcendentes por varonia dejla llluflrif-
,

fima Cafa , que conta de antiguidade tantos antios,


quantos Inglaterra numera de Reyno\ aliiando- fe fem*
pre nas primeiras daquelle Ejlado. Neto pela parte
materna de Paulo Ptnheiro de Mariz Ferreira , e
de D. Alaria Monteira de Macedo bifneto de Mi-
:

gtpl
guel Ferreira de Mariz Pinheiro , Fidalgo da Cafa
Real, edeD. Tbereza de Marizplba do Dezembar-
gador Sebaftiaô de Mariz , Cavalleiro da Ordem de
Cbrifio , Fidalgo da Cafa Real. Terceiro neto de Mar-
Um Ferreira da May a , Cavalleiro da Ordem de Cbri-
fio , Fidalgo da Cafa Real , do Confelbo d? EIRey ,
e feuDezembargador do Paço , e dejua fegunda mu-
lher D. Brites Pinheiro. Quarto neto de Gafpar
Ferreira Viegas , Fidalgo da Cafa Real ( que era
quinto neto de D. Álvaro Ferreira , Fidalgo da Cajá
Real, que fe achou com EIRey D» João L na toma*
da de Ceuta , do feu Confelho , e depois de viuvo Bif-
fo de Coimbra, e de fua mulher , e prima D. JLuiza
de Carvajal ) , e de £>. Luiza da May a. Nafceo de-+
fie matrimonio unicamente
Vafco Nabo S alter de Mendoça , Cavalleiro da
Ordem de Cbrijlo , Executor mor , e Tbezoureiro mor
f
do Reyno , e Senhor da Cafa de eus pays. Cazou com
!)• Joanna Leocadia Pimentel , e Sottomayor y filha
herdeira de António Gomes do Álamo Rodriguez de
las Varilhas , e Murga , Cavalleiro da Ordem de
Cbrifto , Fidalgo da Cajá Real , e Senhor de buma
•riquifftma Cafa , e dejua mulher , efobrinba D. The-
reza Maria da Cofia Pimentel , e Sottomayor Neta
:

pela parte paterna de Jorge Gomes do Álamo , Ca-


valleiro da Ordem de Cbrifto , Fidalgo da Cafa dos
Reys Filippe , ejoao IV , a quem fez grandes fer-
viços , como declara o mefmo Rey na doação , que lhe
fez de hum extenfo pai% no Par d , e de D. Marian-
na de Torres , filha de António Lopez de Torres ,
Fidalgo da Cafa Real: Bijneta de Diogo Rodriguez
de las Varilhas , Fidalgo Cavalleiro da Cafa Real
,
e de D. Izabel Henriques da Serra fJha de Hen-
,
rique da Serra , Fidalgo Caftelbano que fervio de
,

Capitão de Infantaria a Filippe II. Terceira 'neta de


Jorge Gomes Rodriguez de las Varilhas , Padroeiro
da
da Capei!a de Santo Angelo do Carmo de Lisboa 2
,

e de D. lzabel Henriques do Álamo filha herdeira


\

de Manoel do Álamo , defcen dente da illuflre fami*


lia do feu appelltdo , e Senhor de hum a opulenta Ca-
já na mefma Cidade. Chiaria neta de Diogo liodrt-
guez de las Vartlhcis Itdalgo natural de Salaman-
,

( que paffou a ejte Reyno , pela rebelião de los


ca ,

Communes , defeendente por linha legítima , e de Va-


rão , do Infante D. Vela filho de Ramiro primei-
,

ro Rey de Aragão , e da Rainha D. Hermezenda)


e de fua mulher D. Branca de Alvar ado da fe-
gunda Cajá dos antigos Alvarados , eflabelefci-
dos na Villa de Ampuero nas Montanhas de Bur-
gos.
Era a mefma Senhora neta , pela parte mater-
na de D. Duarte Fernandez da Cofia e Portugal,
Senhor da Villa de Sonjeca , Comendador deNojja
Senhora da Annunciada na Ordem de Santiago , e de
D. jfoanna Maria Pimentel e Sottomayor , filha
de U. Balthazar Sarmeirto Pimentel de Cadorniga y
Senhor da antiga Cafa de Mefquita em Galliza , e
das Villas de Freirias , Vai de Confo , e Villar de
Cierbos ?
Padroeiro do Collegio de Santa Jufla , e
Rufina em Alcald de Henares ( neto dos Condes
,

de Santa Martha ) e de fua mulher D. Thereza de

Sottomayor filha de D. Pedro de Sottomayor , Se-


,

nhor defla Cafa , e das Villas de Fornellos, Tenório ,


e Crejcente , Juftiça mayor do Reyno de Nápoles ,
fendo Vicc-Rey feu Primo o Conde de Lemos Gover-
,

nador da Torre de S. Julião da Barra de Lisboa ,


Embaixador a Saboya por Filippe II. ( e defua mulher
D. Maria de Orquijo Fidalga Italiana ) filho de D.
Fernando de Andrade Senhor da Cafa de Sottoma-
,

yor ( que era filha de D. Fernanda de Andrade Con-


de de Vilhaha , e Andrade Príncipe de Cafcría ,
Senhor das Villas de Pt/entes de Hume , Villalva ,
Fer-
Ferrol , e outros Efiados , defccndente por varonia de
D. Bermudo Peres Conde e Potefiade de Trava e
, 5

de fua mulher a infanta D. Tbereza Henriques ,


Lrtnaã inteira do primeiro Rey de Portugal D. Af
fonfo Henriques ) e de D. Tbereza de Sottomayor ,
filha herdeira de ZX Pedro Alvarez de Sottomayor ,
Senhor dejta Gafa , e da de Fomelos , e Tenório , ( e
de D. Urraca de Mofcozo Ozorio , filha dos tercei*
ros Condes de Áltamira y defcendentes das Cafas
Reaes de Caftella , França , e Aragão por fua quin-
ta avó D. Jgnes de Lacerda , bifneta de S, Luiz Rey
de França , e de D. Affonfo o Sábio Rey de Caftel-
la y e da Rainha D. Piolame de Aragão ) o qual era
filho de D. Álvaro de Sottomayor , Jegundo Conde de
Caminha {filho de D. Pedro Alvarez de Sottomayor y
primeiro Conde de Caminha por mercê d' El Rey D.
Ajfonfo V* de P ortugal , Vifconde de Tuy > Senhor
de Fomelos, Sottomayor e Tenório, e da Condeffa
,

£). Tbereza de Távora Camareira mor da Rainha


,

jD. jfoanna , viuva d' ElRey Henrique IV. , e filha


de Álvaro Pires de Távora , Senhor defia Cafa Ref y

pojleiro mor d ElRey D. Joaõ L , e de D* Leonor da


Lunha , filha de Álvaro da Cunha , Senhor de Pcm*
beiro , que teve por mãy a Rainha D. Leonor mulher
d' ElRey D. Fernando de Portugal) e de D. Ignez
Henriquez de Monroy , filha de D» Fernando de Mon-
roy Rodriguez de las Varilhas , Senhor de Belviz ,
e Deleitoza , e de D. Catharina Henriques , filha de
Pedro Nunes de Herrera , Senhor de Pedraza, Co-
peir o mor d ElRey D. Fernando L de Aragão, e de
D. Branca Henriques , bifneta d ElRey D. Affon-
Jo XL de Cajlella, e de D.Leonor de GufmaÕ filha de ,

D. Pedro Nunes de GufmaÕ , Rico-Homcm &c. E de-


file conjorcio he V. At dignifftmo e preciofo fruflo.
,

Ainda que ,as vantajens do nafcimento firvaÕ


âe pouco , ou para melhor dizer de nada, porque Jaa
dijlin-.
diftinçoens ejlranhas que fd decorao afigura com
;
:

tudo como conflituem aqueíles , que com ellas [ao or-


nados na indijpenjavel neceffidade de imitar as vir*
tudes de feus antepa[fados , e exceder os inferiores nas
acçoens : nao quiz deixar de fazer patentes as obri-
gaçoens 3 com que V. M. nafceo depois de ter moftrado
o modo , com que as tem fatisfeito , nao fd imitando ,
f
mas excedendo muito os eus llluflriffimos progeni-
tores. O Ceo lhe profpere , e lhe felicite os dilatados
annos do meu dezejo.

António da Silva, c Cofta.


LICENÇAS.
DO SANTO
OFFICIO.
CENSURA DO M.R. P. D. THOMA\Z
Caetano de Bem , Clérigo Relugar , Qualifica-
dor do Santo Officio &c.

ILLUSTRISSUvlOS , E REVERENDÍSSIMOS SENHORES.

DE todas as artes , e fciencias , que tanto ornaó


o noílo feculo, fe alguma há, que na verdade
mereça o trabalho , que na fua reftauraçaó , e aug-
mento fetem poíto, he fem duvida a Eloquência , ou
a Arte de perfuadir. Por fer eíta a que mais conduz
para a integridade dos coítumes , c de que tanto pende
a bõa ordem, e perfeição da vida civil. E eíta parece
fer a razaõ , porque antigamente foi eíta faculdade taó
eítimada no foro Grego , e Romano ; e porque tan-
tos , e taô Angulares engenhos fe empregarão cuida-
dofamente em a illuftrar com doutas , e bem adequa-
das reflexoens : entre os quaes merecerão particular
eftimaçaó Cicero , Hcrmogenes , Ariíloteles , Quin-
tiliano 5 e Plataõ. O Author do Tbeatro da Eloquên-
cia , que fe pertende imprimir , com tal ordem , bre-
vidade , e clareza nos propõem os didtames deita fci-
encia , e com tanta íuperioridade os trata, e explica,

que para dignamente podermos louvar a prefente obra


leria precifo , ou pofluirmos como elle a mefma arte
em o gráo mais fublime ; ou fabermos perfeitamente
imitar os melhores exemplares , que nos offerece. E
pelo que pertence áquella parte mais útil, enecefla-
ria, e também a mais frequente deita faculdade, qual
he a Eloquência Sagrada , bem pcdemos eítar íeguros
$§' de
de experimentar novamente aquelles defeitos, é erros
taô perniciofos, de que nos primitivos feculos da Igreja
taõ altamente íe queixava o Apoítolo (i) ifto he, que
:

no Púlpito , e Cadeira da verdade, em lugar das má-


ximas Evangélicas que como verdadeiramente íolidas
,

devem íer o único fundamento e ornato dos difcurfos


,

iagrados , feintroduziaó os documentos das fciencias,


ou totalmente vaãs ou profanas. Porém íe a Eloquên-
,

cia pompofa , earfedtada em algum tempo paííoudo


foro, em que naó deve ter ufo algum , para o Púlpito ,
em que nao deve íer admittida , ávifta de taõ excel-
lente methodo de orar , ja nao apparecerá nefte Sa-
grado lugar fcnao a palavra de Deos , ou a mefma
verdade , ereveíiida daquella íingeleza, fimplicidade,
emodeftia, cm que coníifte a lua maior força , e bei-
leza ; e a que fe renderão povos inteiros , as naçoens
mais barbaras , e incultas ; em fim a vaidade da Grécia ,
e a íbberba do Império Romano. Se houve tempo ,
em que a Eloquência Eccleíiaftica fó fe empregava
em lizonjear os ouvidos com taes agudezas de enge-
nho , que bem podiaõ paílar por Epigrammas , com
figuras, e retratos de tanta delicadeza, que pareciaõ
de migniatura fe ouviamos citar igualmente a Santo
:

Agoftinho , e a Virgílio ; a Homero , e a S. Joaô Chry-


iòfrorno , ea S. Paulo ; fe para aauthoridade fervia a
íentença de- qualquer fcriptor profano , e depois nem
ainda as meímas palavras da Sabedoria Increada , ou
rio Evangelho , fem lhe valer pára a preícripfaô con-
tra a bizarria das opinioens a venerável ancianidade
de femelhante uío de hoje em diante cuidarão os
:

Oradores Evangélicos fomente em doutrina , naó em


palavras; em ferir o coração, enaó osfentidos; em
derrubar os vicios , e plantar virtudes. Refplandecerá
nas Oraçoens Sagradas a doutrina de Chrifto ; o feu
ornato

(I) a.Tím, c. 4» y, ^
ornato tcdoferá tirado da Sagrada Efcriptura, e dou-
trina dos Meílres da Igreja; acabar-fehaõ as citaçcens
dos Àuthores Gentios ; naõ fe verá mais o Púlpito con-
vertido em theatro , a pregação cm eípedaculo; porque
naó deixava de haver também neíla huma eípecie de
divertimento , a que naô faltava a emulação , e par-
tidos ; refledtindo feriamente os que exercitaô eíta
arte, e minifterio fagrado, que o melhor elogio do
Pregador he a compunção do auditório. Toda efta
utilidade, e correcção de intolleraveis abuzos heofím
da prefente obra ; e porque nella nada encontrei . que
ollenda a nofla Fé , e eípirito da Religião Catholica ,
me parece muito digna da licença , que a Voflas Se-
nhorias Illuftriílirras , para imprimir a dita ebra , pe*
de o feu Author. Cala de N. Senhora da Divina Pro-
videncia de Lisboa, em 3. de Dezembro de 1764.

D. Thomaz Caetano de Bem C. R.

VIfta a informação, póde-fe imprimir o livro;


de que íe trata, e depois voltará conferido para
fe dar licença que corra , fem a qual naõ correrá
,
Lisboa 7. de Dezembro de 1764.

Mello. Tboreh L/wa.

§§ % DO
DO ORDINÁRIO.
CENSURA DO MUITO REFERENDO
Abbach Diogo Bar bofa Machado Académico
,

da Academia Real&c.

EXC. mo £ R, mo SENHOR.

OS elogios
fui
, de que he acredora efía obra

Cenfor há mais dedezaíleis annos ,


,

fe
da qual
devem
converter em queixas contra feu eruditiílimo Author,
permittindo que em taõ larga diuturnidade de tempo
eílivefle defraudada a Naçaó Portugueza deita Arte
da Eloquência ; porém como fejaõ inexcrutaveis as
difpoíiçoens da Divina Providencia , decretou que para
inftrucçaõ da Eloquência Ecclefiaítica , que he a mais
nobre, e neceílana , fe pubiicaíle em tempo 3 no qual
nunca nefta Corte fe lamentou taõ abatida e adul- ,

terada. Contra a venerável ancianidade dos noííbs Ora-


dores Evangélicos , quaes foraõ os Quentaes , os Viei-
ras j os Sás , os Chagas , e os A lmeidas , de cujas
vigorofas declamaçoens deviaõ adorar os veftigios ,
ie levantarão alguns eípiritos inquietos amantes dano-
vidade a introduzir na cadeira da verdade o eílylo
JFrancez, praticandoo comtaõfervil imitação, como
he verter em Portugnez o Thema Latino , e muitas
vezes muito mal conílruido , e naõ proferir palavra
Latina em todo oDiícurfo , ( fe he que merece tal
nome ) deftituido das bazes fundamentaes , como faõ
os Textos da Efcritura Sagrada , authoridades dos San-
tos Padres ornato de palavras , e agudeza de con-
,

ceitos , de cuja falta eflèncial fe fegue ouvir-fe huma


arenga infipida ,emconcludente , naõ íe obfervando as
principaes partes' da Oração, que he mover , e deleitar,
iemelhonte a huma arvore , que defpida de flores ,
< e fru:
,

efru&os , he tronco e varas. Bem puderaó eftes ido-


,

latras do eftyloFrancez , feguir a elegância, e Elo-


quência dos Ambrofios, Chryfoftomos e Ghryfologos,
,

que com vehementes declamaçoens fe fizeraõ


as íiias
árbitros dos coraçoens humanos , e naõ praticar a
culpável íimplicidade e reprehenfivel frouxidão, de que
,

abundaõ os Sermoens Francezes,osquaes naó poden-


do chegar á fublimidade dos engenhos Hefpanhoes,bau-
tizaó os difcurfos deftes em Paradoxos , crime de que
nunca feraõ réos eítes foberbos Arifcarchos. Para ex-
termínio deite abominável ufo , e para inítrucçaô do
verdadeiro methodo da Eloquência Ecclefiaítica , íãhe
a lograr da luz publica eíla Arte , fabricada com pro-
fundo eítudo , e vaítiífima erudição por efte grande
e iníigne Author, merecendo que todos que a lerem, lhe
dediquem emrecompenfa de taõ laboriofa applicaçaõ,
os elogios, dos quaes como Meftre enfina a formar , or-
nados de todas as figuras, que fe reprefentaõ neíle Thea-
tro da Eloquência , principalmente quando nelle fe naó
defcobre claufula alguma , que offenda a pureza da Fé,
e bons coítumes. Lisboa 21. de Dezembro de J764»

Diogo Barbofa Machado,

v informação póde-fe imprimir o livro de que


Ifta a
fe trata
, e depois torne para íe dar licença para
correr. Lisboa 6. de Janeiro de 1765.

D» J. A. do Lacedemcnia.

DO
\

DO DESEMBARGO DO PAÇO.
CENSURA DO I L LU.S T
R ISS IMO
e ExcdlentilJimoConde de Filiar maycr do Con- 5

felbo de Sua Mageftaãe Fidelifltma , e Aca-


démico da Academia Real &*c.

SENHOR.
POr ordem deV. Mageftade
Theatro da Eloquência ou \
vi o livro intitulado
Arte de Rhetorica ,
que pertende imprimir Francifco de Pina, de Sá, ede
Mello; e como as muitas, e elegantes producçoens do
feu engenho fejaõ a melhor prova de que o íeu Au-
thor íabe igualmente períuadir com as regras , e com
os exemplos ; podendo eítes bailar para na fua imi-
tação fe alcançar grande aproveitamento, unidos aos
preceitos , e á douta explicação com que os illuftra,
íeraõ da maior utilidade para todo efte Reyno. Pelo
que me parece muito digna de fe imprimir eíta Arte,
em que nada encontrei, que fe oppuzeííè ás Leys de V.
Mageftade. Bellem a 19. de Janeiro de 1765%

O Conde de Filiar maior.

QUe fepoíTa imprimir, viítas as licenças do San-


to Officio , e Ordinário , e depois de impreflb , e
revifto , tornará para a licença de correr. Lis-
boa 24. de Janeiro de 1765.

Carvalho. D* Velho. Siqueira. Affonfeca* Ca/Iro.

SE-
SEGUNDAS LICENÇAS.
EStá conforme com o original. Cafa da Divina
Providencia em 9. de Dezembro de 1766.

D. Tbcmaz Caetano de Bem C. R.

JL Ode correr. Lisboa 9. de Dezembro de 1766.

Thoreh Lima.

XQ'de correr. Lisboa 9. de Dezembro de 1766»

Cofia.

QUe pofTa correr , e taxaõ em trezentos reis. Lis ;


boa 11. de Dezembro de 1766.

Com cinco Rubricas l

THEA?
, ,

Pag. i

THEATRO DA ELOQUÊNCIA
OU ARTE

RHETORICA.
CAPITULO I.

Eloquência he a arte de dizer bem , a que

A os Gregos chamarão Rbetorica. Ainda que


todas as Naçoens polidas íe conformaõ com
as regras , que no Pireo 5 e no Lacio infti-
tuiraõ os mais diftintos Oradores, naô deixou de ha-
ver algumas Províncias . e das que tem alcançado a
•opinião de mais fabias , e eruditas, que interpretan-
do ao Teu modo a Ariftcteles , a Cicero , a Longino,
e Quintiliano , reputados pelos melhores Meftres de-
ites Eftudos , fizeflem hum gofto particular de huma
certa economia das dicçoens , e dos termos , diítin-
guindo-fe muito no feu eftylo , eípecialmente os In-
glezes , os Italianos, os Hefpanhoes , e Francezes.
Naó he do meu intento o difcutir quaes delles er-
raõ, ou acertaõ todos podem acertar, pois huns
:

e outros abundarão no feu fentido. Eu efcrevo para


os Portuguezes , e como eftes fe naò tem atégora apar-
tado da doutrina dos Athenienfes , ç Romanos , ío-
bre os feus preceitos he que formarei todas as Sce-
nas do meu Tbeatro.
A Já
2 THE ATRO DA ELOQUÊNCIA ,

Já houve quem diífe, e entre alguns hum efcrip-


tor taó douto, e intelligente como Martinho de
,

Mendoça ,
que Rheiorica era das artes inúteis
a
,
porque os homens mais fe perfuàdiaõ hoje com o
pezo das razoens , que com o ornato das palavras.
Naõ obítante o parentefco , que me podia inclinar a
feguir a appreheníaõ deite ílluftre engenho , naó me
atrevo a concordar , com ellê^nefte conceito. Por ven-
tura leremos agora mais advertidos , doqueforaô os
viíinhos de Athenas e de Roma , que deraó á elo*
,

qucncia a maior applicaçaõ dos feus eítudos \ Se al-


gum Moderno concebe eíta vaidade , he bem fácil o
deimenti-la , com as leis, que recebemos deftas duas
Naçoens , e por onde íe dirigem depois de tantos fe-
culos todas as Republicas , e impérios políticos. Naõ
poitò negar que devem ler mais attendidas as razoens,
que as vozes dos homens ; porém efta razaõ ficou
muito vacillante , depois de entrar o peccado no Mun-
do , e he precifo endireitar , com a arte , as infecções,
que adquirio com a deíordem da Natureza. A quan-
tos lhes parece razaõ o que he injufiiça ? Quantos
juigaõ a mefma razaõ por iniquidade Que razaõ mais
?>;

patente , que a da Doutrina Chriítaã r E ainda affim


para a intimarem , e a perfuadirem naõ defcobriraõ
outro meio os Chryíbftomos , os Chryfologos,.os
Bafilios , os Nazianzenos , e os Tertulianos.
Com o exemplo dos Gracchos , e de outras fedi.
çoefts inteftinas da Republica Romana , procuraõ al-
guns rnoítrar que a Rbetorica he menos própria , pa-
ra felicitar, que para deftruir a utilidadade publica.
Contra eíles exemplos dou os de Rullo , e os de Ca-
tilina , cujas conjuraçoens fe defvaneceraô fó com a
eloquência de Cícero. As artes e as iciencias naõ de-
,

vem fer aceufadas pelo abulo , que delias fe faz.


Naõ hafeiencia, nem arte , por mais proveitoíà
que
OU ARTE DE RHETORICA. 3

que feja , que naó tenha efte perigo. A Medicino , a


Jurifprudencia v aTheologia , a Philoíophia , a Pin-
tura , a Poefia , a Mufica , a. Náutica eftaõ íbgeitas
á mefrna calamidade ; eatéa Eícriptura Santa íe naó
pode eximir que abuíaílèm delia Luthero, e. Calvino
para refinar , e introduzir o veneno das fuás hereílas.

Nfhil e/l tam inhumanwn quàm eloquentiam


,

à Natura acl fa lutem , &


confervatiovem datam,
aci bonorum peitem , perniciemque converterem

E depois de affirmar efte incomparável Orador que

Nihil eji aliud cloquentia , quàm copiofe loquevsfa-


pientia , ima de \ummis virtutibus, ivgenn lúmen*

domina rerum , &> pacis comes $

He neceíTario fer muito mítico , e infenfiveJ para dei-


tar de eftimá-la. Mas para que bufcamos os Deno-
fthenes , os Efchines , oslfocrates , os Cicercs , os
Horteníios, os Quintilianos , fe o mefmo Chriítofe
aproveitou defta arte quando quiz promulgar a Lei
Evangélica , introduzindo nas luas prégaçoens muitas
•figuras da Rhetorica , goftando tanto das Parábolas,
que fem ellas nunca fallava aos feus ouvintes Sine:

par aboli S) ( diz S.JMattheus ) mmquam loquebatur eis*


Naõ defconhéço que faltando o génio , por mais
que íe eftudem os preceitos , nunca fe alcançará a for-
mofura da dicção: mas aflim como a arte , fem gé-
nio, naô fe adianta ? também o génio ., fem arte, naõ
íe aperfeiçoa. Aos que nafceraõ , com a energia da
palavra he que eu principio a dar as regras y para fe
?
confeguir hum.a verdadeira eloquência.
Mas aritêsfcde paliarmos adiante , he neceííario fa-
ber-íe que aiíim como todas as artes tem huma mate-
2 A ria,
;

4 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

ria , em que fe exercitaõ , deve-fe conhecer primeiro


que tudo a matéria da Rbetorica Digo pois que el- :

la fe extende a todos os objeótos , em que fe perten-


de períuadir os leitores , ou os ouvintes , com boas
razoens com a propriedade das vozes , e com a ener-
,

gia dos termos.


Pode fer a , ou
matéria indefinida
determinada ;
A chama Thefis , ou Univerfal: A de-
indefinida fe
terminada Hypotbefis , ou Singular, Bfta ( diz Arifto-
teies ) he qualquer aílumpto que fe elege , ou fe pro- ,

põem Aquella(diz Quintiliano) que naõ tem limi-


:

tes e por iílb a indefinida naô eftá precifada ao tem-


:

po, ao lugar, ás peíloas , ás circunítancias de- : A


terminada naõ deve íàhir para fora tie hum tempo me-
dido , de hum lugar propoíto , c de circunítancias
particulares.
Dizer guerra , ou a paz há de íèr acceitg ,
, fe a
he matéria indefinida Se há de executar-fe neíte anno,
:

nefte lugar, com eftes inimigos, e com taes condir


çoens , he matéria determinada.
A matéria fe divide também em quatro géneros
porque ha matéria Cognofcitiva , Acttva , Principal^
Incidente.
A
Cognofcitiva refpeita fomente ás Sciencias co- :

mo , por exemplo , o expor as caufas das marés , ou do


impulfo dos ventos.
A Aâliva he quando delia fe produz algum effei-
to , como fe he licito defprezar as riquezas , ou amar
a foledade.
A Principal he a que fe efcolhe paraaíTumpto da
Oração, como as virtudes de algum Santo , ouasac-
çoens de algum Heróe.
A Incidente he a que fe introduz por refpeitoda
outra , como a influencia , a indole a criação , que ,

concorreo para as obras áo Heróe , ou do Santo.


Porém
,

OU ARTE DE RHETORICA. $
Porem nefles géneros da matéria ha outros gé-
neros ,
que chamaõ de cauías , ou de queftoens; e
laõ três :

Género demovftrativo , deliberativo judicial. ,

Ao Demonftraúvo pertence louvar ou vituperar , :

Ao Deliberativo ,
perluadir, ou diííiiadir Ao Ju- :

dicial , accufar , ou defender. O


primeiro género a-
brange o tempo paliado ,,c o preiente; porque íó no
que íuccede , e tem luccedido , fe achaô os motivos do
louvor , e do vitupério. O íegundo abraça o tempo
futuro; porque a períuafaõ, e diííiiafaó naó tem lu-
gar íenaõ no que pode íucceder. O
terceiro cinge
o tempo paliado ; porque íè naõ pôde accufar , ou
defender, fcnaô o que já tem acontecido.
Eftes eraõ os trcs géneros , que fe praticavaõnos
Roftros e que ainda hoje praticaó nos Púlpitos os
-,

Oradores Evangélicos ; mas com diverfos nomes ; por-


que ao género demonftraúvo chamaõ Panegyrico, com
que louvaõ a Deos , e aos Santos Ao deliberativo
:

chamaõ Didascálico^ com que expõem as Eícrípturas,


e declaraõ os myfterios da noila Fé Ao Judicial :

'chamaõ Parenettco , com que produzem as razoens ,


e os motivos, que nos encaminhaõ ao ódio dos ví-
cios , e amor das virtudes.
Como todas as couías tem hum certo fim , a que
fe determinaõ , o da eloquência he fogeitar os ânimos,
com o concerto , e efficacia das vozes : enfinando ,
deleitando , e commovendo he que confegue eíle ár-
duo empenho. Facilita a doutrina com argumentos
a deleitação com o ornato , a commoçaó com as ima-
gens , que fe chamaõ patheticas A doutrina refpeita
:

á neceíTidade , a deleitação á doçura , a ccmmoçaô


á vidoria efte he o fim univeríal da Rhetorica. Po-
:

rem cada hum dos géneros, a que chamemos de cau-


fas y ou de queftoens , tem feu fim particular porque
;

A 3 o gene?
6 THE ATRO DA ELOQUÊNCIA ,

o género demonflrativo tem por fim a probidade , o


deliberativo a utilidade , o judicial a equidade.
Com tudo, a eloquência naó alcança muitas vezes
o feu fim , ou pela inhabilidade dos ouvintes , ou pela
incoherencia dos tempos , e dos fucceílbs ; mas nem
por tifo fe efcurece a arte ; porque efta defgraça pro-
cede menos da Oração , que do Auditório.
Naó deixarei de advertir aqui , que a eloquência
íe deve conformar com os annos do Orador*
Santo Agoftinho nos diz que he muito diíferente
a eloquência , de que deve ufar o mancebo , o varaõ,
e o velho ; pois naó he decente ufar daquella elegân-
cia ; que naõ convém com a peíloa elegante. Na ida-
de juvenil permitte-le mais pompa nos adornos, na
madura , devem fer menos floridos , na provefta , to-
talmente fruftifèros.
Sidónio Apollinario , Bifpo de Claramonte , e
hum dos Padres mais eloquentes do quinto íeculo ,
pertende que o bom Orador deve ter as qualidades
íeguintes :

Oportunidade nos exemplos propriedade nos


,

cpitethos urbanidade nas figuras , pondera-


,

ção nos penfamentos , hum raio nas dicçoens,


hum rio nas clau fulas.
Pôrèm Sidónio procura hum impoílivel ; porque naõ
achei todas eítas qualidades ainda nas Oraçoens de
maior applaufo, antes os mais iníignes Oradores tem
fido notados de vários defeitos. Na Critica de Afi-
nio Pollion fe accufa Cicero de fer exangue no efty-
lo , Cefar infiel nas narraçoens , Tito Livio viciofo
nos termos, e Saluílio antiquado nas phrafes. Muito
mais fe dilíe de Demofthenes , de Efquines , de Pho-
cion , de Ariftides , e de Ifocrates.
Vemos porém , fe naõ todas , algumas prerogati-
vas, com que os homens fe fizeraô famofos. Agamem-
non
OU ARTE DE RHETGRICA. 7
non foi celebrado pela energia, Meneláo pela brevi-
dade, Neítor pela doçura, UlyíTes pela abundância,
Paris pela traça , Auguíio pela fuavidade Tibério
,

pela ponderação, Adriano pela erudição , Conftanti-


no pela advertência , Graciano pela modulação.
Ser Orador, fem defeitos , naõ pode aípirar a tan-
to a debilidade da Natureza Quem menos tiver, efle
:

fera o melhor.

CAPITULO II.

A Eloquência fe divide em quatro partes : Inven-


çaÔ , Difpofiçaõ , Elocução, Prominciaçaõ.
Devem-fe inventar primeiramente os argumentos:
depois de inventados, difpò-los depois de difpoftos,
:

exorná Jos depois de exornados , pronunciá-los. Vou


:

agora a tratar de cada huma deitas partes.


A Invenção fe lubuivide em duas partes huma :

difpõem os argumentos para o credito, outra a ex-


citação para os ânimos. O argumento naõ he outra
couià mais , que deixar a fé promovida. Argumen-
taremos que a virtude deve fer defejada , porque he
hum habito de regular os coílumes.
Tiraõ-fe os argumentos dos lugares, quedefeo-,
briraõ os Rhetoricos , e huns íàõ intrinfecos , outros
extrinfecos. Eu direi dos primeiros , ao depois dos
fegundos , e além diflo tratarei do modo com que os
ânimos fe excitao.
Os lugares intrinfecos , a que Cicero chama as ba-
zes principaes dos argumentos, íaõ quinze.

Definição , Diftribuiçaô , Etymologia , Deriva-


ção , Género , Elpecie , Semelhança , Deíleme-
A 4 lhança,
8 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

lhançn, Oppofiçaõ , Adjuntos, Antecedentes,


Coníequentes , Caufas, Lffeitos, Comparação*

§.

HE precizo o conhecermos
ticular.
a cada huma em par-

A Definição hí deter género, edifferença. De-


fincfe o homem quando íè diz que he zz/lntmalra~
cionalzi fendo o animal o género , pois nelle con-
corda com os brutos , e o racional a differença , pois
com ella fe diílingue delles : porém eíta definição he
philofophica , e a que pertence á Rbetorica he mais
liberal, e exornativa , pois com ella podemos dizer
que o bom em he o empenho da Sabedoria Divina , o
retrato do Soberano Artífice , o compendio das per-
feiçoens , hum Mundo abbreviado , e nunca compre-
hendido.
Por cinco modos fe podem fazer as defíniçoens.
Primeiro pelas partes do compoíto , como por exem-
plo ísO anno he hum circulo temporal , de quatro
Eftaçoens , de doze mezes , e de trezentos e feífenta
e féis dias com oito mil quinhentas e oitenta e qua-
tro horas, ss
Segundo , pelos eíFeitos. ss O ócio he a origem de
todos os vicios , o eftimulo das defordens , a ferru-
gem do animo , a traça do corpo , o lethargo dos
collumes , a ruina das virtudes, ss
Terceiro , por negação , e affirmaçaó. s? Nero naó
foi homem , porque o homem he domeftico , e focia-
vel , e eíle foi íòlitario , e indómito. Naõ foi bruto,
porque os brutos alcançaõ os benefícios , eelle nunca
conheceo o agradecimento, Naõ foi fera , porque as
feras refpcitaõ a fua mefma efpeciç , e elle foi o ma-
ior inimigo da Natureza humana. Só com Nero fe
pôde definir o mefmo Nero. ss
Quarto,
OU ARTE DE RHETORICA. 9
Quarto, pela Tito foi a felicidade
attribuiçaõ. es
do Império Romano Foi dotado de huma elegante
:

preíença , de hum coração aberto , de hum animo he-


róico , de huma liberalidade inexhatíla, de hum ani-
mo conllante, de hum valor modefto , edehumaef-
colhida cultura nas artes , nas fciencias , e no go-
verno, s
Quinto ,
por femelhança metaphorica. t= A lifcn-
ja he hum inimigo deleitavel , hum doce veneno, hum
laço dourado , fciencia dos Validos , efcravidaõ dos
Grandes , vi&ima dos Palácios , fombra dos Prínci-
pes, ca
§•

ADiJlribuiçaõ humas vezes fe faz , com as partes


eílenciaes ,outras, cem as accidentaes comas :

eflenciaes ,
quando dividimos a idade do homem em
Puerícia , Adoielcencia ?
Varonilmade e Velhice:
,

com as acciekntaes, quando repartimos o Oceano em


mar Athlantico, Pacifico , Glacial, Báltico, Brita*
nico , Liguitico , Toicano, Adiiatico, Jónico.
Na DtJíribuiçaÔ ha três regras , que naõ devem
ficar em iilencio. Primeira, que tudoaquillo, quefe
affirma das partes, fe affirma também do todo. Eíie
he o exemplo: c= Para qualquer homem
eminen- fer
te na Sabedoria necefiita de hum engenho agudo , de
hum talento conípicuo , de huma memoria feliz , de
huma faude conííante, de huma applicaçaô incanfa-
vel. M. Tullio íòi engenhofo , conipicuo, recorda*
do, robuílo , applicado; quem lhe pode negar o ler
hum dos maiores fabios entre os homens ? sa
Segunda ? que negando-íè todas as partes, também
o todo fe nega. sr A trifteza de Tibério defmentia
a fua fingeleza , a alteração do alento o feu focego 5 a
defordem dos paíTos a íua medeítia ; a inteniaõ do
íemblan*
ío THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

femblante a fua clemência Quem pôde efperar al-


:

guma acção virtuofa de indícios taõ funeftos ? ts


Terceira , que fè a negação naõ omitte alguma
das partes , fe deve negar o todo neceífarinmente. Com
efta regra prova Ovens, com toda a galantaria, que
hum certo Calvo íó lhe reíbva perder a cabeça.
Ecce tibi nulli fuperant in vértice crines
y

Nullus tn infida fiat tibi fronte piius


:

Omnibus amijjis à tergo &» fronte capillis ,


,

Qutd tibijam re/tat per der e Qalve ? Caput.

§.

AEtymologia , a que Cícero chama Notação por


feconformar com o vocábulo Grego, com que
a deo a conhecer Ariftoteles , he huma arte particu-
lar ( como querem alguns em Quintiliano ) de inquirir
a origem das palavras. O meímo Rhctoricc nos diz
que eila fe faz muito neceíTaria quando há neceíTida^
de de interpretá-las ; e traz o exemplo de M.Celio,
que queria fer reputado por hum homem frugal ,
naõ , porque elle íoííe muito abftinente , mas por fer
f rudbuoíb aos outros homens , querendo que daqui fe

tirada o nome de frugalidade.


A Etymologia naõ deixa de produzir baftante eru»
diçaõ nas vozes , que fe tirarão dos Gregos , e ainda
naquellas , que fe chamaõ Gr eco latinas , das quaes
temos adoptado muitas na nofla lingua , como por ex-
emplo Theologia Philofopbia tyranno &c.
: , ,

Com a mefma etyínologia ( accrefcenta o mefmo


Quintiliano ) fe pôde alcançar o nome de Bruto , Pu*
blicola , Pico , e porque caufa le chamou Lacio í Itá-
lia ; Capitólio , (hiirinal , Vaticano , Exquilinio , a

alguns montes de Roma.


Porém
,

OU ARTE DE RHETORICA. n
Porém alguns tem inquirido o principio das dic-
çoens com tanta fantaíia, e impertinência, qi:e íc
,

tem feito com efte efiudo \ c Mo deixa de


ridículos,
haver Authores , que compuzeraõ livros inteiros das
Etymologias defvanecencío-fe muito deile género de
,

erudição , afíim como por exemplo C. Granio , que


concebeo huma grande jaftancia de achar a etymolo-
gta de Cce/iâes, dizendo que provinha de Ccelites ,
por ferem reputados , como Deofes , os homens, que
viviaô no celibato.
Semelhante a efta foi a etimologia de L. Elio 9
que dizia que o chamar-fe afíim a Pituita , proce-
dera , quta petat vitanu E naô he muito que alguns
Eícriptores continuaílem em íemelhantes futilidades
quando o mefmo Varro , o mais erudito dos Roma-
nos quiz perfuadir a Cicero , que ager íe originava
,

de agere fem outra razão , nem fundamento , do que


,

pielumir que no campo fempre havia que fazer.


Quem quizer perder o tempo em outras extrava-
gantes etymoíogias confulte o Vocabulário do Padre
D. Raphael Bluteau.

A Derivação em pouco differe da etymologia e


fe coníegue quando de hum vocábulo ie tiraó
outros do mefmo género , ou íemelhança , como de
,

amor , amantes , e amar %]q Jaber 3 fabios e [abe-


: ,

dória : de Império , imperar , e Imperador. Ovídio


uíou da Derivação quando diíle :

A' fenibus nomen mite fenatus babet.

E em outra parte :

Fiâíima , qii£ dextra cecidit viât rice vccotur\


Hojlibus à demitis kojiia mmen habet.
A meí*
n THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

A mzfm* eloqnencia Divina íantificou a Deriva-


ção, dizendo ao Príncipe dos Apoftolos: TuesPe-
trus , &* fuper bane petram aaificabo Ecclefiam
tneam*
A mais engenhofa Derivação he a deite famofo
Dyfticho :

R babei Aufoniutn liber hic^habet R que Pelafgum y


R babet Hebraum praiereaque nibil. (a) ,

Os Anagrammas podem fer huma efpecie de De-


rivaçaõ chamaõ-fe Anagrammas os que coíii as mef-
: ,

mas letras produzem diverfos vocábulos como Ma.


, ,

ro Amor
,
e Roma Doroihea e Tbeodora
, Ni-
: , :

ze e Inez
, Natércia e Caterina. Naõ íó fe faz
: ,

o Anagramma com huma fó dicção , mas com mui-


\

tas. Quando Pilatos perguntou a Chrifto Qiiid ejl :

veritas Podia ? elle relponder pelas meímas letras


:

Efl vir qui adeft.


,

O
qne hi de mais engenho nefte género he aqueU
le famofo Tetraftychon , que lendo-fe de cima para
baixo , e de baixo para cima conferva em todas as
dicçoens hum perfeito Anagramma.

Sedtáa petrofas irrifa forte paludes ,


Sepo/iti donis nom fino Ditis opes :

* Signa te , figna temere me tangis ,


&* anguis ,
Roma tibi fabitò , motibus ibit amor.

O gene*

(a) R. Aufonium er-


H, Pclafgum ro-
11. Hebraum» res.
,

OU ARTE DE RHETORICA. 13

O Género he o que comprehende muitas ccufãs


que ie podem chamar da mefma cathegoria a
Efpecte he tudo o que fe comprehende no género. Pó-
:

de-fe chamar género á virtude; e ejpectes ájuííiça,


temperança , fortaleza j e prudência O argumento
:

do género póde-fe fazer por eíle modo t= Toda a :

virtude confiíte na acçaõ , logoajuíliça deve fer ex-


ercitada, zs
Alguns pertendem que íeja mais elegante o ar-
gumento da efpecte para o género 5 que do género ,
para a e\pecie como por exemplo t=A jufiiçadevç
; :

ler amada dos Cidadaons Romanos porque fó dos


,

Bárbaros he que pode fer aborrecida a virtude ; 53


porém Cicero que he a melhor guia para o acerto
,

da eloquência, na Oração pro Ârcbia poeta , depois


de louvar a Poefia em género , he que pafta para a ef-
pecie na defenfa do Cliente. Eu me fogeito a trasla-
dar efte lugar , para melhor inftrucçaÕ dos que en-
traõ na Rbetorica.
E3 Seja puro , e fagrado diante de ti , 6 Povo Ro-
mano , o efpecioíb conceito , que deves fazer da Poe-
fia , a qual naõ foi violada atégora nem da mefma
barbaridade, antes os mefmos penhafcos , efolidoens
corre fponderaó íempre fielmente ás fuás vozes. As
iéras mais indómitas muitas vezes fe arnanfaraô , e fe
fufpenderaõ, com a fua harmonia: e há de dizer-fe
que os Romanos, iníluidos com melhores efpiritos.
,

fe naó movem aos fuaviffimos accentos dos Poetas.?


Os Colophonios dizem que Homero fora feu Cida-
dão , os de Chio o querem tomar para fi , os Sala-
minios o demandaó , os Smyrnios provaô melhor o leu
nafcimento, e chegarão a levantar altares á fua me-
moria; outros muitos contendem fobre a mefma hon-
ra :
:

i4 THE ATRO DA ELOQUÊNCIA ,

Tâ Todos defejaó fazê-lo feu , ainda depois de mor


:

to, fendo-lhe talvez eftranho , fó porque foi Poeta :


e fera crivei que nós meímos repudiemos aeftePob-
ta que eítá vivo , e que íè conforma com os noiiòs
,

coíiumes , e com a nolla Religião ? &c. 3E


-.1

A
elles
Semelhança he communicaçaô de dousobje-
dos d iffe rentes
a
ou quando íe defcobre entre
,

alguma correípondencia. Para moítrarmos me-


lhor a iemelliança ufamos* das partículas w
Aflim co-
tnozz tiaÕ de outra jorte *=.> de fia maneira &c. po-
rém muitas vezes feomittem por elegância. Cicerodiz:
e= Nas doenças naô percebem os homens a fuavida-
de dos manjares; aíTim os lafcivos , os avarentos, os
facinorofos naõ goftaõ dos verdadeiros louvores. 3
Aqui eftá outro exemplo de Virgílio

Ília Colo fixos óculos averfa tenebat ,

magis inc£pto vtdtus fermone movetur.


JSfec
Quem ft dura/ilex , aut flet Marpefia caules.
Eis-aqui outro de Ovidio:

Qtii vir et in foliis venit à radicibus humor \


Et patrum in natos tranfeunt , cumfemine^ mores.

Ylífemelbança fimplez , efemelbança comporta :

a fimplez he quando fó fe confronta huma coufa com


outra ^ ou no íingular , ou no plural. Para a do An-
gular darei eíla quintilha de D. Frantifco de Que-
Tedo.
Delante dei Sol vénia
corriendo Dafne , donzella
de
, . : , , , : ,

OU ARTE DE REETCRIGA, 15

de eflremada gallardia ;
y en ir delante tan bella ,

mieva aurora parecia.

Para a do plural, eítes dous verfos de Lucrécio:

Flori feris ut apes in jaltibus cmnia libam


Omnes nos itidem depajcimur áurea diâia.

A femelhança íempre fera fimplez, ainda quede


huma ío cauía ie tirem varias circunftancias para fe
firmar mais a congruência , afíim corno neita dejoaõ
Perez de Montalvão , taõ celebre , como criticada de
feus emuios.

Vifte concha dei mar


Ia , iba criando una perla,
que bebiendo el fudor bcllo que es nucftro amor fuè crècíendo :

dei alva, forma una perla tan unido que en los dòs ,
,

en fu concavo pequeno , de dòs almas fe hizo un cuerpo,


y que ai paífo que la concha de dòs mitades , una alma
wà con la perla creciendo, y un todo de dòs compueftos
crece la union de entrambos facan me dei coraçon
con un nudo tan eftrecho , con violência , y con eftrucndo
que para facar la perla un amor , que havia criado ;
rdmpen la concha primero y aííí à los ojos falieron
y fequiebran con el golpe eftas lagrimas, que f on
unos pedaços pequenos f por más que encobririas quiero^
Pues aíli mi coraçon pedaços dei coraçon ,
fue concha , que con el tiempo que fe han quebrado allà dentro. 1

Se femelhança fe augmentar com a analogia dos


a
nomes , naõ deixará de -ficar mais viva , e engenho-
ía como he aquelia do Jurado de Córdova T para
v,

mote de huma em preza , com que fahio em humas fe-


ftas hum Fulano Bracámonte p«
.
.-.
i i

El nombre tengo de monte r


y el Etna devo dejer?
pues mítica dexo de arder. \
;
^
Com
ió THSATRO DA ELOQUÊNCIA ,

Com a me fina femelbança do nome , he bellif-


fimo o epitapíiio ,
que fez Pontano a huma menina,
chamada Rofa :

Utque Rofâ brevius nihil efl , ^queque caducum y


Sic cito , fie brevitèr , & tua forma perit.

Para a femelbança compofta nos dá Virgílio hum


bom exemplo :

Hos ego verficulos feci , tulit alter honores :

Sic vos non vobis nidtficatis aves :


Sic vos non vobis vellera fertis oves :
Stc vos non vobis me llifie at is apes :

Sic vos non vobis fertis aratra boves.

As propriedades de obje&os , applica-


difterentes
das a hum fó fogeito, fazem
femelbança ainda mais a
adíiva , e elegante , como nella copla do Nicetas de
D. Eugénio Gerardo Lobo :

Prudência aprendiò la fierpe


de fu vida en lo advertido ,
fimplicidad la paloma ,
y candidez el armitw.
Ainda que depois de exemplificada a Setnelbança
tem a Defjemelhança pouco que conhecer, naô dei*
xarei de advertir que quando huma ; e outra ao mef-
,

mo tempo concorrem , daõ huma notável galantaria


í eloquência como fe vê nefta redondilha ao Con-
,

de de Cifuentes , que fendo de gentil prelença per-


deo a vifta em menino.

Sin duda que el Cieloquizo


de piedofo , y prevenido
ítio bazer
:

OU ARTE DE RHETORICA; 17

bazer ai Conde Cupido ,


*
porque no fueffe Narcifo.

E ainda melhor Luiz de Gongora neftes quatro verfos:

Que yò , y tu nos parecemos


ai roble , que mas reftjie
f
los opios dei vievto ayrado ,

tu en fer dura , yò enfer firme.

Efta fe pôde chamar também Semelhança , e Def*


Jemelbança fímplez , para a comporta nos dá Plinio
o exemplo em hum dos Proemios da íua Hiíloria
natural.
zz Vemos que os outros animaes vivem com a
compofiçaõ , e bondade da Natureza Que fe amaõ, :

c fe conformaó entre íi , e fó fe oppõem aos que naô


iaó da íua efpecie : O
leaó mais feroz naô conten-
de com os outros leoens a ferpente naõ infulta as
:

outras ferpentes ; nem as feras marinhas a geração


das mefmas feras fó o homem exifte cruel , e fe-
:

mentido contra o mefmo homem* 1=1

§.

NA a
Oppofiçao há quatro géneros de Oppoítos ,
que fe dá o nome de t= repugnantes , reTa*
tivos , privativos , e contradiâlorios. Os repugnan-
tes íaó os que tem entre fi huma grande diveríida-
de , e irreconciliaçaõ , como a virtude ? e o vicio ;
a guerra , e a paz. Defte género de Oppofiçao ufou
Cicero quando diíle
32 Se fugimos da eílulticia , figamos a fabedoria :

fe fugimos da malicia , figamos a bondade, sâ


Horácio também íe lembrou dos repugnantes ,
nefta advertência :

B Virtus
x8 THEATRO DA ELOQUÊNCIA,
Virtus efl vitium fugere , & Japientia prima
Stulútia caruiffe. . .

Virgílio fe aproveitou delles naquelle verfo :

Nulla falus bello , pacem te pofcimus omnes*

Os relativos faó os que muito fe difíerençaó, e


mutuamente fe correfpondem , como o Pai eofilôo: ,

o Senhor , e ojervo o Meftre e o difcipulo. Eu


: ,

dou o exemplo para eftas relaçoens.


tr Tanto deve fer o poder do Pai , como a obe-
diência do filho tanta a authoridade do Senhor , co-
:

mo a fogeiçaõ do fervo tanta a fciencia do Meftre,


:

como a imitação do difcipulo, =3


Os privativos fe conhecem pelas íuas qualidades,
e pela fua privação , como a morte , e a vida : a luz y
e a efcuridade : nos privativos fe funda a copla fe-
guinte
Ven muerte tan efcondida^
que nò te fienta venir ,
porque el gujio de mor ir
no me buelva a dar la vida.

O Marquez de Valença D. Jofeph Miguel Joaó ,

de Portugal nos offerece outro exemplo em hum dos


Epigrammas da fua Centúria impreila.

De brevitate qu&ri vit<e nos fapè fohmus :

Cum wage /tt nobis mors metuenda brevis.


Agoftinho de Salazar nos propõem outro em hua
das fuás Comedias

Aun dà pavor aun dà efpanto


ver
OU ARTE DE RHETORICA. 19
ver que algunos afiro s brillen \

como \eràn las tetiieblas ,


fi Jon las luzes horribles ?

Os
contradiâlorios fe verificaó quando íe nega ,
e fe affirma huma coufa ao meímo tempo , e huma
delias há de fer falfa , ou verdadeira. Eis-aqui o ex-
emplo.
es vejo com Ticio em algumas con-
Quando me
verfaçoens , elle diz muito mal , e eu muito bem de
vós a elle todos o acreditaõ , a mim ninguém me
:

dá credito : naõ fei fe ifto procede da minha inha-


bilidade , le da íua galantaria , fe das voífas acçoens. zz

§•. ,
,'

OS Adjuntos faõ aquellas circunftancias , que a*


companhaó a matéria propofta huns faõ da :

coufa, como o tempo, e o lugar outros do corpo, :

como a gentileza ou
, a deformidade , a força , ou
a fraqueza , a doença , ou a difpofiçaõ : outrosdo
animo , como os vicios , e as virtudes : em fim podem
reputar-fe como adjuntos quantos accidentes occor-
rem aoeítado das acçoens, dos fucceííòs , dos fogei-
tos , ou depois , ou no mefmo tempo,
ou dantes ,

Eftá portentofoT, Livio na praética de Annibal , com


os adjuntos do tempo, e do lugar.
pz Pela parte direita
, e pela efquerda eílamos cer-
cados de dous mares , e nem hum fó navio fe nos oí«
ferece , para a retirada. A' roda do Pó eftá outro mr>
ior rio , e mais violento
,
qual he o Rhodano. Pe-
las coftas nos carregaó os Alpes , que ainda aos mais
robuítos , e intrépidos , apenas abrem huma difficul-
tofa pagaílem. Aqui naó há outra efperança , fenaó
a de morrer , ou vencer, ss
B a Com
ao THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

Com a incultura do lugar argumentava Ovidio pa«


ra defculpar os feus veríos :

Si qua videbuntur cafu non diôta latim ,


In qua fcribebat barbara terra fuiu

Com os adjuntos do corpo moftra o mefmo Poe-


ta a horribilidade da fome , e he hum dos grandes
lugares dos Metamorphofis.

Quafttamque famen lapidofo vidit in antro


Unguibus &* raris vellentem dentibus berbas
, :

Hirtus erat crinis cava lumina , pallor inore ,


,

Labra incana fttu Jcabri rubigine fauces


, :

Dura per quam fpeóiart vifcerapoffent,


cútis ,

Offafub incurvis extabant árida Zumbis :


Ventris erat pro ventre locus pendere putares:

Peólus , &àfpin<e tantummodo Crate teneri :

Auxerat artículos macies , genuumque rigebat


Orbis j &
immodico prodibant tubere tali.

Pódem-fe contar oito géneros nos adjuntos. Pri*


meiro , refpeita á peíToa ? como a educação , a indole,
a idade , o fexo , a pátria , o parentefco, a fama , a
virtude , o engenho , o nome. Segundo , ao negocio,
ou matéria , de que íe trata. Terceiro , ao lugar. Quar-
to , á companhia, que concorre para alguma acçaó.
Quinto á repetição da obra, Sexto, á caufa, e ao
,

fim delia. Settimo , ao modo , e á ferie da cou.ía fuc-


cadida. Oitavo, ao tempo do fucceífo. Muito me di^
lataria le qirzeífe explicar , e exemplificar eftes oito
géneros ; e aíiim paliarei a tratar dos outros lugares.
§.
OAfjtecedente fcientifico he tudo aquillo , de que
fe infere huma coufa neceflaria
•,porém nos ter-
mos
OU ARTE DE RHETORICA. 21

mos rhetoricos bafta que fe infira o que he prová-


vel , ou verifimil , ou ainda o hypeibolico. con- O
fequente he a demonítraçaó , que ie tiia do antece-
dente. Os fruétos faó o con fequente das fíoies , e as
cicatrizes das feridas. Pela grandeza de huma cic:>
triz inferio Cicero na Philippe (ettima o tamanho do
golpe : Luculentam tamen ipje plagavi acceptt , ut
declarat cicatrix:
Com baílante galantaria ufou Marcial de outra
inferência :

Hoc mibifufpeõlii ejl quèd oles benè^PoJlbumefemper^


Pojibume , non benè olct ,
qut benè jemper o/et.

Porém naó he neceílàrio que nos detenhamos ne-


íle lugar : palio ás cm/fas , e aos ejfeiíos.

§.
QUatro géneros de cauías tomarão os Rhetoricos
dos Phiiofophos. Caufa eficiente ^ material , for*
mal , final.
A caufa efficiente heaquelh, pela qual alguma cou-
fa fe executa : O
Sol he caufa efficiente do dia.
A caufa material he a que delia , e por ella as mef-
mas coufas exiílem : Os bronzes , e os mármores laó
a caufa material daseítatuas.
A caufa formal he a razaó, fignal , ou cara Ser,
por onde humas coufas fe diftinguem das outras ; e
efta he natural , ou artificial. A
primeira fe verifica
nos génios, com que fedifferençaõ os homens: a fe-
gunda na fymmetria de diverfas fabricas , filhas da ar-
te , ou do engenho,

A caufa fitial heaquella, por cujo motivo a cou-


fa fe emprende , ou fe coníegue A cauíà final da :

guerra deve fer a paz.


B 3 Pode-
n THEATRO DA ELOQUÊNCIA,
Póde-fe argumentar com a caufa efficiente por efte
modo:
ta Quem
defeja dilatar a vida há de regular os co-
ftumes ; porque os exceífos deítroem as forças com :

a debilidade íe aprella a velhice , e a velhice prono-


ítica morte, sá
a
Eis-aqui hum dyfticho de Marcial com outro ar-
gumento do meímo género.

Nuper erat medicus , nunc eft Fefpillo, Diaulus :

Quod Vefpillo facit ,


fecerat &* medicus.

Para a caufa material he bom exemplo o de Oví-


dio na defcripçaó da caía do Sol , e o de Virgílio na
das armas de Eneas, que naó repito por ferem dif-
fuíos e por naó omittir o de António de Solis na
,

do palácio de Motezuma. Farei Portuguezas as fuás


vozes , com pouca alteração da lua elegância.
B* Deixou-fe ver a larga diftancia o palácio de Mo-
tezuma, que manifeítava, naó fem encarecimento, a
magnificência daquelles Reis , edifício taó dei com*
paliado 5 que íe fervia por trinta portas a differentes
ruas. A fachada principal , que occupava toda a fren-
te de huma efpaçofa praça, era de vários jafpes ne-
gros , vermelhos , e brancos , de naó mal entendida
collocaçaõ , e polimento. Sobre a portada íe faziaõ re-
parar em hum grande efcudo as armas dos Motezu-
mas hum grypho , meio águia , e meio leaõ , com
:

hum tigre feroz entre as garras , a modo que voava


com a preza : Pa fiados três pátios da mefma fa-
: : :

brica , e matéria , que a da fachada , chegarão ao quar-


to , em que refidia Motezuma , em cujos íàloens era
de igual admiração a grandeza , e o adorno. Os pa-
vimentos com eíteiras de vários lavores , as paredes
com differentes colgaduras de algodão , e pello de
coelho,
:

OU ARTE DE RtíETORICA. 2j

coelho; e no mais interior , de penna. Humas, e ou-


tras illuminadas com a viveza das cores , e com a
difterença das figuras. Os teétos , de cyprefte , e de ce-
dro , 'e de outras madeiras cheirofas , com diverfas
folhagens , e relevos , em cuja contextura íe repa-
rou , que fem haverem achado o uíb dos pregos , fòr-
mavaõ grandes artezoens , formando na lua mefma Cra-
vação as taboas , e o emmadeiramento &c«=:
O argumento da califa formal pode fer deita forte :

Er A vida dos brutos pende da matéria caduca , que


he o corpo : a dos homens , da alma que he eterna :
com eíta grande exceilencia da Natureza humana 3 ne-
nhum Varão judiciofo deve temer a morte. S3
Oda cauta final fe acha neítes veríbs de Oví-
dio

Vronaque cumfpeâíent animalia catera t erram ,


Os homint fublime dedit , ccelumque tueri
Jutfit ,
&> ereólos ad fjdera iollere vulttts.

Eftas íaõ as caufas 7


e os effeitos faó os que del-
ias fe produzem : Huns propriamente faó philoíephi-
cos outros rhetoricos :
, os philoíbphicos laó a clari-
dade a refpeito da luz , o calor a refpeito do fogo >
a conftipaçaó a refpeito do frio. Os rhetoricos po-
dem fer também eftes , e outros menos precifcs ; por-
que bailará que fejaó conjeduraveis ; como a deíirui-
çaô ,que pode fer effeito do Reino dividido os cui- :

dados , que podem fer eífeito do Matrimonio , e as ca-


lamidades , do appetite. Para eíte ultimo eífeito , eis-
aqui hum exemplo de Silo Itálico :

Idem afpice late


Florentes qnondam luxas , qttas verterit urbes ?
Qtiippe nec ira Deiim tantutn^ 11 ec iela,nec boftes
B 4 'Quan-
24 THE ATRO DA ELOQUÊNCIA,
Quantum Jola noces animis illapja volúpias ,
Ebrietas tibi tida comes , tibi luxus , &* atris
Circa te f emper volitans infâmia pennis.

§.

A Comparação
gares intrinfecos
tas coufas convém em
,
que
no ultimo lugar dos lu-
eftá
fefaz quando duas , ou mui»
,

hum terceiro objefto, e efte


fica com ellas commum , e relativo. Três faó os mo-
dos de comparar : Primeiro , do maior para o menor :

Segundo , do menor para o maior Terceiro , de


:

igual p^i*a igual ; e por eftes três modos fe difteren-


ça a comparação da femelbança \ porque efta naõ at-
tende para o mais , ou para o menos. A' femelbança
pertence propriamente a qualidade , á comparação a
quantidade aqueila confronta a vulto , efta , com di-
:

ftribuiçao , advertência , e medida. Quando fefaz o


argumento do maior para o menor , tudo o que fe
acha no maior tem no menor a mefma, e ainda mais
força , e efficacia. A
eloquência Divina , que nos deo
o exemplo da humildade , com o Lavapés dos Difci-
pulos , nos dá também a regra , para efte género de
comparação
Si ergo ego lavi pedes vejlros Dominus , &* Ma-
gijler &* vos debetis alter alterius lavare pedes.
,

No Cap. 6. de S. Mattheus nos offerece o mefmo


Divino Orador o exemplo , para o argumento do me-
nor para o maior
Sifoenum agri , quod hodie eft , &* eras in cliba-
num mittitur , Deus fie veftit , quanto magis vos ?
Com o meímo argumento efereveo hum boticário
na fua officina efta fentença de Santo Agoftinho
Si tantum ut aliquantò plus vivatur , quanto ma»
gis ut femper vivatur ?
Agofti-
: :

OU ARTE DE RHETORICA. 2$

Agoftinho de Salazar feguio a mefma comparação)


quando diíle em hum dos léus Romances

Qiie mucho que amen los hçmbres ,

Ji de ezentarje de amar
bazen vanidad los Diojes !

Para o argumento de igual para igual he excel-


lente a comparação de Ovidio na carta de Penélope
a Ulylies.

Ter futnus imbelles numero : fine viribus uscor ,

Laertefque jenex , Tbelemacufque puer.

§.

EStamos nos lugares extrinjecos os quaes nao de-


,

pendem da arte , ou do engenho do Orador ; e


por 1ÍI0lhe chama Ariftoteles argumentos Jem arti-
ficio. Quintiliano os divide em íeis géneros
t^Leis , ou fentenças , fama , eícriptura , juramen-
to, tormento, teftemunhas. =2
Alei , ou he Divina , ou natural , ou poíitiva : a
Dtvina foi promulgada por Deos, para o eftabeleci-
mento da Religião : a natural he influída pela Natu«
reza , para a confervaçaõ da efpecie a pofitiva pe-
:

los homens , para a conftituiçaõ da fociedade.


ALei Divina , e natural naõ fe podem refutar,
a pofitiva pode fer infringida por muitos modos : Pri-
meiro , interpretando-a : Segundo , molirando-fe que
íènao conforma com a mente do Legislador: Tercei-
ro, que eftá preferi pta Quarto, oppondo-lhe outra
:

lei: Quinto, que há cafos, em que a mefma lei naõ


pode fubfiftir. Porém eftas oppofiçoens devem fer fub-
ftanciaes, e nao engenhofas, antepondo a verdade á
fubti-
26 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

íubtijeza de outra forte , em lugar do credito


s
gran-
,
geará o Orador a irrifaó do Auditório.

§.

SEOrador
fama eíH
a
que
do aflumpto , pode dizer o
a favor
deíle confenfo popular heque di(íeraõ
muitos Authores , que a voz do povo era a voz de
Deos ^ e ie aproveitará do conceito de Ovidio :

Fama manet faâíi pofito velamine currunt


, , ,
Et memorem famam , qui benè geffit babet. ,

Se convier contrariar a fama , fe trará a opinião


de Lourenço Graciano , de que fe a voz do povo hé de
Deos j fó pode fer do Deos Baccho. Também fe pô-
de dizer , com Séneca JEjlimes judicia , non nu-
:

meres com Cicero na Oração pro Planco Non con-


: ;

filium in vulgo , non dijcnmen y non diligentia e :

com Ovidio

Mixtaque cum veris paffim commenta vagantur ,


Mille rumorum , cotifufaque verba volutanu

O Orador fe valerá
a fua authoridade
das Efcripturas ponderando
, e juntamente
a fé, que íe deve
dar aos monumentos , aos contratos, ás eftipulações,
aos telta mentos &c.
Se for neceílario contrariá-las, difputará a fua va-
lidade moftrando que fe naõ conformarão com as Leis,
ç

que lhes que foraõ fal-


faltaõ os requifitos efíenciaes ,

fificadas , ou que nao tem credito por efte , ou aquel-


le motivo.
O jura-
:

OU ARTE DE RHETORICA. 27

O Juramento ,
que he a affirmaçaó
, ou negação

de alguma couia trazendo a Deos por teítemu-


nha , ou he feito pelo Orador ? ou pela pelica , que
accufa , ou ie defende , que vitupera , ou que louva.
Se pelo Orador deve ufar rariíiimas vezes deita la-
grada afleveraçaõ , e fó nas matérias mais graves, e
precifas íe lhe permitte íèndo também precifo que a
:

innocencia dos feus cofturnes o façaó attendivel , e


venerável Se por outra peíloa , fera também de gran-
de pezo , fe ella for confpicua ; porém fe o juramen-
to merecer impugnação íervirá efte lugar de Salviano:
Si pejeret Francus quid novi facit ? Qtti perju*
rium ipfum fermonis genus putat e[je non criminisi
P lures inventas qui Japius pejerent , quatn qui om-
nino non jurent.
§.

O Tormento
verdade
hoje naõ eítá
;
íe applica aos
porem
em
efte
réos para confeíTarem a
modo de
a conhecer já
ufo , fenaõ nos crimes mais atro-
zes : Baila para aqui efte lugar de Séneca :

Verberihus , igne , morte , cruciatu eloqui ,


Quodeunque celas adiget inviiam dolor
E' peei ore imo condita arcana ruet ,
Necejjitas plus pofje , quam pietas jolet.

§.

AS Tejlemunbas faó as que fe chamaó juridica-


mente para declararem o feu fentimemò na pre*
fença do Juiz, Para produzirem prova faõ neceííarios
9
íegundo osjuriftas, os requiíitos feguintes :

A certa
28 THEATRO DA ELOQUÊNCIA,
A certa fciencia do cafo , o que fó pode fer fen-
do as ttjletnunhas de vifta Que tudo o quedepuze-
:

rem feja de baixo de juramento Que fejaô pefloas :

maduras, circunípedtas , e de bons coíUimes Que :

efíejaó no conceito de fallarem verdade Que fe pre- :

fumaõ izentas de cobiça , e de paixão Que naõ fejaó :

inimigas ; e fe forem nobres , e de boa confciencia , te-


rão ainda mais credito os feus depoimentos. Alòm
deitas circunftancias jurídicas, também fe pôde valer o
Orador dos teítemunhos Sagrados quaes faó as reíò- :

luçoens dos Concílios, e dos Pontifíces, a tradição


Apoftolica , a doutrina dos Padres, e as revelaçoens
approvadas.
Os
defeitos das teflemunhas , fegundo os mefmos
Juriíhs , íaó a infâmia , a malignidade , o arrojo , a
fervidaó , a inimizade , ou amizade , ou outro qual-
quer motivo, aonde a fufpeiçaõ fe prefuma \ a contra-
dição nos depoimentos , e o eftarem eíles defmenti-
dos por peíloas de maior credito. Eis-aqui tudo o que
pertence á primeira parte da Invenção ; o que ref-
peita á fegunda , que he a commoçaó dos ânimos
direi no

CAPITULO III.

NO útil , e no bon-
deleitavel conflitue
dade dos Eferiptores; poremos Rhetoricos af-
Horácio a

piraõ á maior empreza com a força da palavra , pois


he todo o feu intento mover, inclinar, inflammar,
e dobrar o animo com a eloquência. Ouvintes há , que
refiflem a todos os feus esforços e ainda que reco-
;

nhecem o bem raras vezes


, o abraçaõ Ovidio diíle :

na figura de Medea :

Video y
; ::

OU ARTE DE RHETCRICA. 29
fc Video me Hora ,
proboque ,

Deteriora fequor.

Séneca noHyppolito com as vozes de Phedra

Qii(€ memoras feio


Vera ejfe , nutrix , fea furor cogit Jequi
Peior a* *— «

O que trasladou Petrarca no Triumpho da fama :

Et veggio ilmeglio , &> ai peggior trí appiglio.

E Garcilaflb em hum dos feus Sonetos:

Conofco lo mejor , lo peior aprttebo.

O nolTo Carnoens feguio eítes meímos veftigios

Que conheci mil vezes na ventura


O melhor , e o peior fegui forçado*

E o Author deite Theatro também difle na fua


primeira Egloga da Ethica paíloril

Parece coufa fatal ,


mas r/lo de Adam nos vem y
que conheçamos o bem ,
e fujamos para o maL
Os affeãos , ou paixoens fobre quê trabalha a^/c-
quencia para commover o animo , fôrafi divididos
pe-
los Eftoicos em quatro géneros : dous
, que perten-
cem ao bem , como a efperança , e o gojlo
, e dous ,
que refpeitaõ ao mal , cemo a irijíeza e o medo.
,

Todos
3o THE ATRO DA ELOQUENCÍ A
Todos quatro comprendeo Virgílio em menos de hum
hexametro

Hinc metuunt , cupiuntque , dolent ,


gaudemque
*

E Boecio os defcreve naõ com menos elegante


brevidade :

Gaudia pelle ,
pelle timorem ,
fpemque fuga to ,
nec dolor adfit.

Porém alguns Philofophos , a quem feguiraó os


Rhetoricos , acharão mais extenfaó nos afíe&os , que
podemos reduzir a dez :

ss Amor,
ódio, medo, efperança , oufadia, la.
ftima , indignação , manfidaó , emulação. =s
ira ,

Vou a dizer de cada hum dellcs diftintamente :


O
amor he hum afte&o, que nos perfuade a
querer bem a outrem. Nelle (e devem achar ires con-
diçoens : Primeira , que defejemos todo o bem ( ao
menos o que nos parece que ohe) á peífòa a quem
amamos Segunda , que naõ fó lho defejemos , mas
:

que lho procuremos j porque efte defejo , fem fru&o,


he hum cadáver da vontade , como diíle Júlio Ce-
iàr Scaligero :

Tu , fi ex animo forte velis cui betrefaâíum


Addas operam ; fola
cadáver e£e voluntas.

Mas quando fe naó pode fazer o bem , bailará


que íe defeje

Ut deftnt vires tamen eft laudanda voluntas

Tercei-
OU ARTE DE RHETORICA. 31

Terceira ,
que o amor deve fer menos extremofo
pela própria utilidade, que pela do òbje&o, que íe
ama.
tu Se para nós, (dizCicero)e naô para o ama-
do for o írudlo das noílas acçcens , if to já naó fera
amor, porém ufura , ou conveniência. :=:
E por eíla caufa fe nota entre o amor , e a ami-
zade huma grande difterença ; porque o amor naó af-
pira á fatisfaçaõ, e a amizade neceífita de ler corres-
pondida,
O amor ferve na Rbetorica de fer bem acceito ,
naó fó o Orador, mas o aífumpto da Oraçaó aos ou-
vintes.
Hum ,dos maiores triumphos da eloquerxta de Cí-
cero foi deílruir os projedlos deRulo, que com o
efpeciofo pretexto das leis agrarias pemndia paílar
de Tribuno da Plebe a Diclador da Republica \ e to-
da eíla vi&oria fe deveo ao amor , que tinha a M.
Tullio o Povo Romano : Para mais o conciliar diíle
ailim na fegunda Oraçaó contra o Tribuno.
55 Eu leu o primeiro homem novo do noílo tem-
po, que vós fízeíieis Coníul , e com a minha eleição
confeguiíleis o privilegio de que a Nobreza havia tan-
tos annos , que eílava de poífe , e que fempre defen-
deo com todas as fuás forças. Vós me elevalreis a eíla
dignidade., com hum concurfo taõ univerfal do voílo
applaufo, que atégora nenhum Patriciano o alcançou,
com mais efplendor , nem Plebeo algum com maior
gloria. Augmenta mais a minha divida o ver , que na
minha eteiçaõ defprez^fteis aquelies eferutinios , que
fuftentaó a liberdade dos pareceres , pois me fubiíteis
ao Confulado pelo meio das acclamaçoens, edosfuf-
fragios públicos , que me feraò fempre mais eftima-
veis , e gloriofos , que o Magiflrado , com que me
tendes engrandecido. ,

Sendo
$i THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

Senio eu pois hum homem novo e hum homem ,

Plebeo, e que devo unicamente ao Povo Promano o


caradter, com que
hoje mediftinguo declaro diante ,

do corpo do Senado e de toda a Nobreza


inteiro ,

Romana, que eu lerei íèmpre hum Goníul popular,


e que em quanto me durar o Coníulado , nenhuma
couía me fera mais amável, que os intereíles deite Povo,
a quem reconheço taõ grandes obrigaçoens. zz
Ainda que o louvor na própria boca fe envileça,
póde-fe permittir ao Orador , que para alcançar a be-
nevolência do Auditório , diga de fi algumas prero-
gativas com tanto que as inculque com huma mode-
,

rada expofiçaõ. Aqui eftá outro exemplo do mefmo


Cícero na meíma invedkiva contra Rulo
;s Naó me Terá licito o trazer-vos aos olhos al-
guma imagem dos meus Maiores , naó porque elles
defdifíèllem dos iioflbs coftumes , mas porque carece-
rão do louvor popular , e das luzes das voíias hon-
ras. De mim fópollo dizer, que nem deíèjo parecer
arrogante, nem ingrato arrogante , dizendo o que
:

naó tenho ingrato , deixando de dizer que pelos


:

meus eftudos , e doutrina confegui eíta grande dig*


nidade Vós : que ma deiteis , he que podeis julgar
,

fe era digno de a confeguir. ss


líio he pelo que refpeita ao Orador, e para ofo-
geito da Oraçaô , fe haõ de notar todas as circun-
ftancias que o podem fazer amável : faó varias as que
fe aífignaó : fera a primeira a eminência das virtu-
des : Virgílio nos dá o exemplo :

Rex erat JEneas iwhis , quo juftior alter ,


Nec pietate fuit , necbello major , ar mis. &
A fegunda , a utilidade , e os benefícios remunera-
dos. Outro exemplo do mefmo Poeta :

j
Tu
: :

OU ARTE DE RHETORICA. 33

Tu mihi quodcunque hoc regnifceptra , Jovemque


Concilias : Tu das epulis accumbere Dtviím ,
Ntmborumquefacis , tempefl atum que potentem.

Terceira a formofura da prefença. Aqui vem ter-

ceira vez o referido Virgílio :

.
Sed cuvMis altior ihat
Anc bifes ; mihi meti s juvemli arde bat amore
Compellare Virum,& dextra conjimgere dextram.

Quarta , a correfpondencia do mefmo amor Si :

vis amari avia \ foi fentença de Séneca , que ficou


,

em provérbio ; e fobre elle diíTe Marcial

Ut prafiem Pyladen ali quismibi praftat Orejlem:


Hoc non fit verbis , Marte : ut amaris , ama.

E com
, pouca differença , Ovidio :

Sit procul omne nefas , ut ameris amabilis e/lo*

Paílemos de hum extremo a outro.

O Ódio he huma paixão , com que aborrecemos


aquilío , que ? cu he , ou nos parece máo. Os
motivos para o excitarmos facilmente íe encontraráõ
fe confrontarmos o ódio com o amor , de que temos
hum egrégio exemplo em Cornelio Tácito na vida
de feu fogro Júlio Agrícola , fazendo orar a Galgaco
na frente do íeu exercito , para accender o ódio dos
Inglezes contra os Romanos
c= liítes devoradores do Univerfo depois deaíTo-
?
G larem
34 THE ATRO DA ELOQUÊNCIA ,

larem toda a Terra ,


paííhraó , com o mefmo eftrago,
para os mares. Com os ricos íè moíiraó avarentos,
comos pobres ambicipíòs , fem que o Oriente, ou
o Occidente poda faciar-lhes a fua ambição , e a fua
avareza* Ao roubar ao deftruir , ao defpedaçar , com
,

hum falfonome, chamaõ Império } e dizem que dei-


xaõ a paz naquellas Províncias , que ficarão defertas,
e deítruidas com as fuás maldades. Os filhos , e os
parentes , que faõ as prendas mais amadas da Nature-
za ; com o pretexto de os aliftarem na noíla pátria,
os levaõ a fer cí cravos na fua. As eípofas , e as irmaãs
fàó eíhipradas , e humas vezes as ínfultaó com a li-
cença de inimigos , outras com a capa de amigos , pois
fe eícapaó do furor da guerra , naõ fe livraô do fa-
crilego abufo da hofpedagem confomem as noíías
:

riquezas com os tributos , e provifoens dos feus ex-


ércitos , e Cidades. Para nos terem mais cobardes , e
enfraquecidos, nos gaftaó as forças em exercícios me-
cânicos , augmentando-fe o noílo trabalho entre os
golpes, e as injurias. Os efcravos , ainda que naíci-
dos , para a fervidaô , íèmpre faô fuftentados y e ape-
nas vendidos pelos feus fenhores ; íó a pobre Brita-
nia cada dia compra a fua mefma eícravidaõ 3 cada
dia a alimenta &c. =2
A Oração de Coge C,ofar na vida de D. Joaõ de
Caílro he toda hum incêndio , para a commoçaõ do
ódio era o intento deite Bárbaro excitar o animo do
:

Rei de Cambaia , para fazer a guerra aosPortugue-


zes ; e depois de fallar em Sultão Badur , Pai deite
Príncipe, profegue deite modo:
E3 A eíte clementiffimo Príncipe debaixo do fagra-
do da paz tirarão os Portuguezes a vida , com efcan»
dalo de todos os Reis , e nao menor injuria dos feus
valfallos, indignos de o havermos fido de hum Prín-
cipe taó grande, pois infeaíiveis , e ingratos eítamos
alimen-
OU ARTE DE RHETORICA; 3y.

alimentando os homicidas do noíTo Monarca em noA


ft mefma caía ,
gozando como herança a Praça , que
afle<mraraõ , com taó atroz deli£to : hontem hofpe-
des , e hoje fenhores.
Vóso Príncipe herdeiro deite Império , que ve-
,

des os vofíos vaílalios cada dia receber leis deites in-


fulruofos a vós toca determinar , a quem havemos
:

de obedecer primeiro , fe ao noílò Rei, Te aos noí-


fos inimigos.
Creícerá com a noffa paciência o feu atrevimen-
to : depois de cõmettido o maior delidlo , qual naó
teraõ por leve ? Quem duvidará de fer offeníor , aon-
de fenaõ víngaó as injurias ? Acabemos pois de def-
pertar deite mortal lethargo : mettames até os coto-
los os braços no fangue deites cruéis tyrannos : neíte
veneno banhemos os alfanges , porque percaó , com
as vidas , a gloria de taõ grandes iniultos &c. 513

O do
Medo he huma
perigo ; os
perturbação do animo , nafeida
modos de o concitar faõ três
Primeiro, pronoíticar , com reprefentaçoens eviden-
:

tes , algum grande mal , ou horrível calamidade, co-


mo a peite , a fome , a guerra , a infâmia , a pobre-
za &c. Dá-nos hum bom exemplo o noílò Camoens in-
troduzindo o Gigante Adamafior a vaticinar as def-
graças Portuguezas nas viagens da índia :

Sabe que quantas ndos e/ia viagem ,


Otte tu fazes , fizerem de atrevidas.
Inimiga terão efia paragem
Com ventos j e tormentas de (medidas :
E da primeira armada , que paffagem
fizer por eftas ondas mjoffridas ,
C 2 Eu
$6 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

Eu farei de itnprovifo tal caftigo ,


Que feja tnór o damno , que o perigo.
&c.

O
fegundo modo he moftrar que a calamidade ef-
imminente , porque naó coftumaó os homens
tá quafi
temer tanto o damno remoto , como o viíinho Te- :

mos o exemplo "na íegunda Oração de Cícero contra


Catilina :

es Parece-me que eftou vendo efta Cidade que


,
he a cabeça, e orefplandor do Univerfo , e o afylo
de todas as gentes , íubitamente arruinada com hum
geral incêndio.
Por huma parte fe me reprcfenta fepultada a Pá-
tria , por outra os Cidadaons amontoados, e fem íe-
pulchro.
Cuido que fempre trago diante dos olhos o fem-
blante de Cethego , encarniçado na vofla mortanda-
de He tempo, ó Romanos, de vos empregares, co-
:

mo ja tendes diípoílo na voda fbmma fegurança , na


,

das voíTas efpoías , e filhos , na da voflh liberdade


e falvaçaô de toda a Itália , e de toda a Republica
Romana &c. s=3

O
terceiro modo he quando fe moftra que a ca-
lamidade naó fó ha de fer commua , mas particular ;
porque recebemos , com maior íufto , os males pró-
prios, do que os públicos. Pôde lèrvir de exemplo o
que ponderava Júlia a feu marido Pompeo na Phar-
lalia de Lucano :

A d Stygias inquit ) tenebras, manefque nocentes


(
Po/l bellum civile trahor vidiipja tenentes
:

Eumenides quaterent qnas ve/lris lâmpadas armis


Preparai innumeras puppes Acberontis adufti
Porlitor , in multas laxam ur Tártara pwnas
Fix
~
OU ARTE DE RHETORICA; 37
Vix operi cttnót* dextra pr operante foror es
Sufficiunt \ lafjant rumpentes jíamina Parcas :

Cônjuge me latos duxijii , tnagne , triumphos

Fortuna efi mutata


,

íoris. ——- 4.
,

As do medo fervem de muito aos Gra*


excitaçoens
dores Evangélicos para a emenda dos vidos , e tem
maior efficacia com a reprefentaçaó- da eterna infeli-
cidade. Eis-aqui hura exemplo do A. do Thedtro , que
vem nos feus quatro Novifjimos do homem :
xx Proferidas eftas ultimas palavras , fe acharáô cm
hum momento os condemnados no Inferno. Com va-
rias femelhanças , e metaphoras pertende a Santa Efc
criptura exprimir o conceito defte lugar infeliciílimo ,
e naó fei ie melhor o reprefenta o aiibmbro, do que
as vozes. Terra tenebrola , terra da miferia , e da fom-
bra , terra do horror , e da defordem a nomeia o San-
to Job, Grande lago da ira deDeos, e cárcere do de-
mónio lhe chama S. Joaõ. Trevas exteriores , S. Mafr»
theus. Cháos immenfuravel S. Lucas. Emulação ar^
,

dente , Prizaõ eterna , S* Judas,


S. Paulo.
Muitos contemplativos , fundados neftas expref-
foens , e em outras taõ tremendas , como verdadeiras,
confideraó o Inferno no centro da Terra , como huma
caverna profundiílima , cavada entre rochedos inaccef-
fiveis, fem refpiradouro , nem lahida , cheia de fu-
mo, de fogo, de enxofre, coberta de huma horrí-
vel efcuridade ; infeftada de efpeftros , e fantafmas in*
foífriveis, combatida de clamores diflbnantes, atulha-
da de cadáveres horrendos , de hum vapor peíiilen-
te , de hum clima deftemperadiffimo , de hum tor-
mento continuo , de huma efcravidaó , lem rcfgnc
9
de huma infelicidade, fem fim &c, a

Cj AEfi
38 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

AEfperança he hum gofto , nafcido da opinião


de algum bem , que eftá para vir. Dous faõ os
eftimulos , que a íuítentaô , e a commovem hum a :

formofura , e grandeza do meímo bem outro os me- ,

ios por onde elle (e pode alcançar , quaes faô as


,

riquezas , as forças , a induftria , a prudência os ami-


,

gos , a fraqueza dos emulos , o patrocínio de algu-


ma peílòa grande, e íobre tudo o favor divino.
Com a certeza de huma grande vi&oria excitava
Júlio Agrícola a efperança dos feus íoldados.
:nSe acafo tiveífeis defronte huma gente nova,
e defconhecida , eu me empenharia a exhortar-vos pa-
ra o conflidto ; mas para elle naõ quero mais , do que
a memoria das voíTas façanhas , e que vos informeis
da voíTa mefma viíla , e da voíla experiência. Eítes
faô osmefmos, que o annopaflado accómetteraõ de
noite , e furtivamente huma das noflàs Legioens , e
que baftaraõ as noílas vozes para os deixarmos venci-
dos. Eftes faõ os mais cobardes de todos os Britanos,
porque nunca fe atreverão a ver nos a cara fenaó ne-
ite ultimo aperto \ e no lugar, aonde já naó podem
achar outro alylo para a liia fugida: Os brutos mais
esforçados , e ferozes , fàõ os que defamparaõ as bre*
nhãs para fahirem ao encontro dos caçadores ; os pu-
lillanimes nunca fe defcobrem , fenaó depois de tala-
dos os bofques , e de ficarem patentes as luas caver-
nas. Em diverfas batalhas temos desbaratado todos
aquelles , que nos fizeraô rofto ; agora lo nos ficarão
para efta os que nos deraõ as coitas, e fe amedron-
tarão com o ruido das noílas armas Naó os trouxe
:

a efte lugar a oppofiçaô, ou a refiftencia , mas a ne*


ceffidade.
Naõ o occupaõ para fuílentá-lo , fenaó porque naó
tem
OU ARTE DE RHETORICA, 39
tem outro, aonde feacolhaó. Naõ os ajuntou o va-
lor, mss o ultimo receio para entregarem nas vof-
,

fàs mãos huma grande i e infigne vi&oria &c. =s


Virgílio nos dá também outro exemplo 3 na& me-
nos digno deite lugar :

O' pafjt graviora dabit Deus bis quoque finem ;


Vos , & ScylUam rabiem penitufque fonantes
Acceflis Jcopulos , vos , &* Cycíopeafaxa
Èxpertt , r evocai e ânimos , m^flumque timorem
Ah tule sforfan , &
hac oiim memimfle juvabit»
Per v ar tos cafus , per tot difcrimina verum
lendimus in Latium , fedes ubi fata quietas
Oft tuitmt iilic fas regna refurgere Troj#
:

lJtu ate , &* vos nut rebus fervate Jecundis.

A efperança da felicidade eterna merece fer mui-


tas vezes excitada no púlpito , porque efte he o maior
negocio da nofla confideraçaõ , para o que pede fer-
vir hum exemplo do A. do 7 teatro , nos citados Dif-
curiós dos JVoviffimos do bomtm.
trjá que eita admirável Cidade doEmpyreofe
nao properciena com alguma ideia humana , vere-
mos fe cabe na medida de huma intelligencia Angé-
lica. Com huma cana de curo vioS Joaó nos exraíis
de Pathmos medir por hum Anjo aCorteCelefte ; e
achou que era a Cidade de huma quadra pei feita Em
cada face da quadra havia doze mileftadios, que fa-
zem quatiOcentas e quarenta e quatro legeas. Os edi-
fícios eraó taó altos , como o comprimento da ma-
quina o muro , que a cercava , tinha de altura cen-
:

to e quarenta e quatro covados Abriaõ fe três por-


:

tas em cada lanço: três 20 Oriente , três ao Occiden*


te , três ao Norte , três ao Meio dia ; formada cada
huma das portas de huma fó pérola. Via-fe tudo ba-
C 4 nhado
4o THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

nhado de huma claridade divina , femelhante ás lu-


zes ,
que íe formão no cryítal. As pedras do muro
eraô dejafpe, e toda a Cidade de ouro tranfparen*
te. Difcornaó pelas ruas os Cidadaons Celeftes. Do
Throno de Deos íâhia hum rio cryftallino, cujas agoas
eternizaó a vida. Pelas íuas margens fe erguiaõ diver-
fas arvores , que repetiaõ os fru&os todos os mezes.
Naõ havia alli , nem morte , nem doença , nem pran-
to , nem queixa , nem luto efte immenfuravel con-
:

curfo de delicias reinará com Deos , e com os Rem-


aventurados por todos os feculos dos feculos. O' pro-
dígio muito alem da noííà compreheníaõ ! O' eftimu*
lcTtaõ- digno da noílâ efperança ! &c. ts

AOufadia he hum affefto , com que fe vence o


receyo do perigo. Tito Livio na figura de An-
nibal nos enfina como podemos excitar ella paixão :

23 Imaginais que os Alpes fnó mais , do que huma


eminência , que fe acha nos montes ? Permitto-vos que
fejaõ mais remontados , que os Pyreneos ; Entendeis
pois que ha terras , que toquem nas eípheras , ou que
íaó innacceffiveis ao valor dos homens ? &c. sfc
De hum ardente concurfo deites eftimulos eftá
cheia a Oração de Cortéz para commover os feus tol-
dados á empreza de México.
sg Naó he o meu animo facilitar-vos a empreza,
que acometemos : Combates nos efperaó fanguino-
lentos , acçoens incríveis , batalhas deíiguaes , em que
vos fera neceííàrio foccorrer-vos de todo o voílo va-
lor : miíerias daneceffidade , inclemências do tempo,
afperezas da terra , aonde vos precifareis do fofn-
mento , que he o fegundo valor dos homens , e taó
filho do coração , como o primeiro ; e talvez que na
guerra
OU ARTE DE RHETORICA. 4*

guerra firva mais a paciência , que as maõs ; e por


efla caufa fe daria a Hercules o nome de invencível,
e íe chamariaõ trabalhos ás fuás façanhas. Cofumia-
dos eílais a padecer , e coftumados a pelejar neftas
Ilhas , que deixais conquifladas : maior he a noíla em-
preza , e devemos ir prevenidos de maior oufadia ,
qne fempre faõ as difliculdades do tamanho dos in-
tentos. A antiguidade pintou no mais alto dos mon-
tes o templo da fama , e o íèu Simulachro no mais
alto do templo , dando a entender que para achá-la ,
ainda depois do cume vencido , fe neceílitava do tra-
balho dos olhos. Poucos fomos, mas a uniaõ multipli-
ca os exércitos , e na noífa conformidade eítará a nof-
fa maior fortaleza : Hum, amigos, há defer o con-
felho em tudo o que fe refolver , hum o braço na
execução, commua a utilidade , e commua a gloria
de toda a conquifta. Do valor de qualquer de nós fe
há de fabricar , e compor a íegurança de todos. Mais
tereis que obedecer no meu exemplo , que nas minhas
ordens ; e de mim poffo aíTegurar-vos que me baíta o
animo a conqriftar hum Mundo inteiro ; e ainda n>o
promette o coração , com naõ fèl que movimento ex-
traordinario , que coílurna fer o melhor prefagio. Al-
to pois a converter em obras as palavras ; e naõ vos
pareça temeridade efia minha confiança , pois fe fun-
da em que vos tenho ao meu lado , e deixo de fiar
de mim o que efpero de vós. r;
O nofíb Ca moem naõ eftá menos a£Hvo na pra-
dica do Condeíiavel , depois da acclamaçaõ do Rei
D. Joaõ I.

Como da gente illuftre Portuga eza


Há de haver quem refizfe o pátrio Marte ?
Como de/la Província que Princeza
,
Foi das gemes na guerra em toda aparte

4i THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

Ha de fahir quem negue ter defeza ?


(Miem negue a fé o amor , o esforço , e arte
,

De Portuguez r e por nenhum refpeito


O próprio Reino queira ver fogeito í
Como naS fois vós inda os defcendentes
Daquelles que debaixo da bandeira
,

Do grande Henriques , feros , e valentes


Vencefieis ejia gente tao guerreira ?
Quando tantas bandeiras , tantas gentes
PuzeraÕ em fugida , de maneira
Que fette illujtres Condes lhe trouxer ao
Prezos y a fora a preza , que tiver aò ?

Eu fd com meus vajjallos , e com efta


( E dizendo ijlo arranca meta efpada )
Defenderei da força dura , e iifefta
A terra nunca dantes fobjugada :
ire.
Com o mefmo eftimulo animava Turno osLa«
tinos contra os Troianos :

Occurratnus ad uvdam
Dum trepidi , egreffifque labant vejligia prima
Au dentes fortuna juvat.

Outro exemplo nos dá o engenhofo , e elegante


Candamo na Comedia: El duelo contra fu dama.

Fortuna
Ji atrevimientos amparas ,

mnguno ès mayor ,
que el mio :

mueftre efta vez tu inconftancia


que de las temeridades
a un los riefgos fe acobardam
A Laflí
OU ARTE DE RHETORICA, 43

§.

A Laftima he huma dor do animo , com que fen-


„ timos o mal alheio. Quatro motivos feaflignaõ
para a fua commoçaó. Primeiro , fe alguém padece
indignamente alguma grande calamidade , como por
exemplo, a dos últimos annos de Luiz de Camoens,
de que elle fe queixa no Canto 7. das Luíiadas :

Agora com pobreza aborrecida


Por bofpicios alheios degradado :

Agora da efperança jd adquirida f


De novo mais
, que nunca derribado.

O fegundo motivo fe a peíloa perfeguida , ou ve-


,

xada for bem acceita


, e bemquiíla na pátria. Com et
te argumento livrou da morte o Pai dos três Horá-
rios a humdelles por matar a fua Irmaã. He dos gran-
des lugares de Tito Livio :
es Por ventura tereis valor, ó Romanos para ve-
,

res atormentado com o flagello e debaixo do pati-


,

bulo aquém viíleis há pouco entrar por efta Cida-


,

de , com as infignias de huma vidtoria ? Efpeftaculo


fera efte , que apenas poderáõ íbffrê-lo ainda os olhos
dos Albanos. Vai , ó Verdugo , ata aquellas maõs va-
lentes , e armadas , que naó há muitas horas , que
adquirirão o Império ao Povo Romano :Vai , e co-
bre a cabeça do libertador deíla Cidade, fufpende-o
na arvore infelice ; açoílao, ou na Pomerio entre os
dardos, e osdefpojos contrários , ou fora delle entre
o fepulchro dos Curiacios. Para que parte podeis le-
var efte criminofo , aonde o naó vingue a fua fama
,
e a fua honra da fealdade de taó enorme fupplicio? =3
O terceiro motivo, fe expuzermos a grandeza , e
a duração da calamidade, ou outras circunftancias fe-
melhan-
44 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

melhantes , dequefevaleô o noííb Camoens na mor-


te de D« Ignez de Caítro :

O tu, que tens de humano o gejlc e o peito}y


( Se de humano he matar buma donzelia
Fraca , efem força , fo por ter foge it o
O coração a quem Joube vencé-la )
A e/las criancinhas tem rejpeito,
Pois o nao tens d morte efcura delia ;
Mova-te a piedade fua , e minha ,
Pois naõ te move a culpa , que naõ tinha.

Efe vencendo a Maura refijlcncia


A morte fabes dar com fogo e ferro , ,
Sabe também dar vida com clemência
, ,
A quem para perdê-la naõ fez erro :

Mas \e to affim merece efía innocencia ,


Põem me em perpetuo , e mifero defierro
Na Sythia fria , ou la na Lybia ardente ,
Onde em lagrimas viva eternamente.

O quarto motivo he quando íe põem diante dos


olhos algum final, ou monumento, que melhor re-
prefente o objeéh) da commiferaçaõ como fez Exa-
,

toro , e Theodoro moltrando aos Sicilianos o paluda»


mento, de que eftava veftido Jeronymo , Rei deSi-
cilia , quando foi morto por Androncdoro. Damefi-
ma induftria ufou M. António moílrando a túnica de
Ceiar , cheia de íàngue , no Povo Romano , e dizendo:
s= Aqui tendes o frudto dos noílos juramentos , e
a prova da noíTa gratidão: Huns homens ingratos,
e perjuros acabaõ de matar ao melhor de todos os ho-
mens á aquelle, que , depois de os falvar nos campos
:

da Pharfalia , os fez feus confidentes , amigos e mi- ,

niftros y para mais a feu falvo lhe tirarem a vida , co-


mo
:

OU ARTE DE RHETORICA. 45
mo fe os benefícios incentivos da maídcde.
fòfiem
Aqui tens, ó Povo Romano, aquella Opa rozagsnte,
que tantas vezes adoralte na campanha , e na tribu*
na, e que cobrindo, com a íua clemência , as mi fe-
rias da Republica , agora a vês cheia do Isngue do
teu mefmo bemfeitor aqui a tens aberra por diver*
:

ias partes, com as pontas dos punhaes aqui a tens


:

maculada , com a crueldade das feridas Qi:e tigre


:

haverá taõ feroz , que fe naó laftime ? Que homem


taó vil , e cobarde , que íè fatisfaça com a dor deita
tragedia , e que naó faiba converter em vingança huma
laitiina inútil ? =3
§•

A Ira he hum
furor breve , nafcido de alguma in-
juria , e que algumas vezes fe miíhira com o de-
fejo do defaggravo. DiíFere àoOdio , em que eí!e he
huma ira permanente , e inveterada , e aquella huma
paixão inítantanea.
Afllm a ira , como o ódio podem fer culpáveis , e
innocentes Podemos irar-nos , fem deliíio , como nos
:

adverte o Apoítolo Irafcimini , #" tiolite peccare.


:

E também o ódio fera izento do peccado fe o tiver-


mos , como aquelle , com que Decs aborrece os pec-
cadores: Âltijjimus ódio hahet pec calores. Devem- fe
aborrecer os delidos , e naó os delinquentes. Em Da-
vid temos o exemplo de ambos os ódios elle abor-
:

recia com ódio perfeito os léus inimigos Pcrfcéío


:

ódio o deram illos : e elles a David , cem ódio iníquo :


Ódio iniquo oderunt me.
Accende-fe a ira , com a lembrança doaggravo,
e fe faz maior a íua chamma , com a circunftancia do
defprezo.
Camoens nos dá hum bom excrrplo para excitar
efla paixão, pondo a Baccho no pakcio de Neptuno»
e orando contra a oufadia des noílcs Argenautas
E 'vos
46 THEATPvO DA ELOQUÊNCIA
E vós , Deofes do Mar , que nao foffreis
Injuria alguma em vofjb Reino grande ,
Qj/e com caftígo igual vos nao vingueis
De quemquer que por elle corra e ande , :

Qm defetddo foi ejie y em que viveis í


(Suem pode Jer que tanto vos abrande
Os peitos , com razão % endurecidos
Contra os humanos fracos , e atrevidos ?

Filieis que com grandijjima ou fadia


For ao já cõmetter o Ceo fu premo :
Filieis aquella infana f anta fia
De tentarem o Mar , com vela , e remo :

Fijieis ainda vemos cada dia


j e
Soberbas e infolencias taes , que temo
,

Que do Mar , e do Ceo em poucos annos


Fenhaó Deofes afer y e nós humanos.

Eu vi que contra os Mynias ,


que primeiro
No vo/Jo Retno efle caminho abrirão y
Boreas injuriado , e o companheiro
aquilo 5 e os outros todos refiflirao :

Pois fe do ajuntamento aventureiro


Os ventos efla injuria a[fim fentirao 9
Fós a quem mais compete
, vingança ,
efla
Qtte ejper ais ? Porque a pondes em tardança ?

Qiiafi da meíma forte excita Diana a iVtfdeEolo


110 Peregrino do Author úoTheatro:

Monarca de iracundas tempeflades ,


( Diz a tri forme Deofa ) a cujo império
Geme o Mar treme a Terra e inda duvido
, ,

De que efle j a fem fttflo , o Firmamento


,
:

SL»e
OU ARTE DE RHETCRICA. 47
Que Joninolencia he effà em que defconfas
, ,

Quando nefta diji anciã ejidsfabendo ,


Que nas ondas huns triftes navegantes
JibufaÔ do teu grande Jojfrimento i

Para a Corte de Vénus o Favorito


Pertende contra mim favorecê-los :

He crivei que o confintas , jendo Paphos


f
Contraria fempre a teu de dem fevero !

NaÕ fallo jd da minha repugnância ,


jlo teu alto decoro be Jd que at tendo :

Que efperas para ver o campo errante


Infamada de mtj eros fragmentos ?

A Indignação hehurna dor apprehendida pela feli-


cidade dos indignos, Naó he ira , porque naó
aflenra em aggravo particular Naó he inveja, por*
:

que eíta fe irrita , com a ventura dos beneméritos •

é aquella com a daquelle , que s naó merece Pó- :

de4e fundar a indignação no que diííe Virgílio na


licloga 8.

Mopfo Nifa datur Quid non Jperemus amantes


\ l

^fungentur jam gryphes equis , <evoque jequenti


Cum caràbus timtdt venient ad pocula dama.
Por cinco modos fe pode excitar a indignação :
Primeiro, comparando a infâmia das acçoens de al-
gum fogeito, e o feu baixo nafcimento, cem as fuás
riquezas, poder, e arrogância. Afílm fe indignava a
Nobreza Romana contra Narciío, eferavo do Impe-
rador Cláudio.
Segun-
48 THEATRO DA ELOQUÊNCIA,
Segundo , fe confrontarmos as virtudes do bene-
mérito, com os vicios do indigna, no concurfo de
alguma pertençaõ. Indignado íe achou o Senado Ro-
mano, quando vio competir fobre^a Pretura a Vati-
nio corn P. Cutaó.
,

Terceiro , pela defordem , com que alguns Mini-


ílros uíao da Magiítratura : faó tantos os exemplos
em todas as Naçoens , e ainda nas mais polidas , que
he melhor paíla-los em fiíencio.
Quarto ,
quando fe vem lifonjeados os homens ef-
curos, e deíprezados os infignes. Receberão a Çataõ
corn grande apparato os Athenienfes imaginando que
elle era Demétrio , hum eferavo de Pompeo. Do ma-
gnifico tumulo que teve Licino, e do que naò teve
o mefmo Cataó , eomefmo Pompeo dílle M. Var-
ro , com a mais ardente indignação :

Marmóreo Licinus tumulo jac et , at Cato , nullo*


Pompeias ,
parvo : Credimus ef/e Deos ?

Quinto, verem- íe reduzidos á fumma miíeria os


Varoens fublimes, como a Belizario , depois de Tu-
ftentar untas vezes o Império a Juftiniano ; e a Du-
arte Pacheco , depois de aílombrar a Azia , com as
fuás façanhas.
Naõ podemos ouvir fem indignação o que de fi

nos repreienta Camoens na fua Luíiada :

E
ainda Nymphas minhas , naõ baflava
,

Qtie tamanhas miferias me cercaffem ,


Se naõ que aquelles , que eu cantando andava,
Tal premio de meus ver/os me tornajjem !

A troco dos dejeanjos , que efperava ,


Das capellas de louro , que me honraffem ,
Trabalhos nunca ufados me inventarão ,
Com que em taõ duro efiado me deitarão.
&c. A Man-
: :

OU ARTE DE RHETORICA. 49
§.«

AManJidaS he hum movimento oppoílo ao da


ira , que fe concilia com differentes induftrias;
Primeira , pela dor , e ingénua ccníííTaÔ da culpa.
Deita forte applacou M. Tullio a ira de Cefar para
perdoar a Ligario. Eíias faô as palavras de Cícero
cm nome do accufado :

ss Fallei atégora, como íe falia ao Juiz: ago-


ra fallo , como fe deve fallar ao Pai. Errei : obrei
temera ria mente : recorro á tua clemência peço per- :

dão do delido y e rogo que me perdoes &c«=s


Segunda , pela gloria que reíulta do perdaô
com ella argumentava Ovidio a Auguílo:

Sed fiifi pecc afiem, quid tu conceder? poffes ?


Materiam vem* Jors tibi tiqftra dediu

Terceira , porque nem todos os deíidos íe de-


vem caftigar : a naó fer aíllm ( dizia o mefmo Poe-
ta) em breve tempo ficaria Júpiter fem raios:

Si quoties peccant bomines fua fulmina tnittat


Júpiter , exiguo tempore inermis erit.

Quarta , moftrando que o delinquente eftá ve-


xado por outros caminhos , e que le lhe naõ
deve
accrefcentar a afflicçaõ. O mefmo elegiaco

Parcite Ccerulet , vos parcite Nimiva Pctiti:


Infeftumque mibi ftt faíis ejje Jovem.
Quinta , provando que o perdoar
mo he de hum anii
generoio: o mefmo Oviaio:
gp THEATRO DA ELOQUÊNCIA
Corpora magnânimo jaús e/l pro/iraffe leoni
Pugna juiim finem , dum jacet hoftis , habet.

Sexta, porque fe deve perdoar aos rendidos, e


íó debellar os íoberbos : Virgílio :

__ Romane , memento
Par cere fubjeâlis Q* , debellar e fuperbos*

Settima ,
porque a clemência ainda no conceito
dos Idolatras faz com que os homens íejaô íemelhan-
tes aos Deofes. Claudiano

Sis pius in pritnis , nam cum vincamur in omni


Munere , Jola Deos <equat clementia nobis.

Gom a manjidao applacou Abigail a ira de Da-


vid, Efther a de Aíluero , Volumnia , e Veturia a
de Coriolano , as mulheres , e meninos
de Génova a
de Luiz XI. de França o Pontífice Jado a de Ale-
,

xandre, e S. Leaó Papa a de Atila.


Se ponderarmos que a culpa foi coaóta , ou fem
conhecimento de que o era \ fera outro modo de con-
feguir a piedade. Delle uíou Cícero para que Cefar
naó caftigaíle a Marcello :

Attendei P. C. quanto fe faz patente efte juí-


!=a

zo de G. Cefar. Todos os que fomos obrigados a íe-


guir aquelias armas , naõ íei com que funeíto , emi«
íero fado da Republica , fe alguma culpa tivemos ,
cao&da pelos abíurdos da Natureza , citamos certa-
mente innocentes defta maldade , porque o mefmo Ce-
a C.
far pelos vollos rogos coníervou na RepubPica
Marcello , e também fem alguém lho pedir me re-
íiiíuio, e a outros Varocns para noílo proveito , e
,

proveito
r da pátria,
A digr
b

OU ARTE DE RHRTORICA. &


Adignidade, e concnríò. de tantos homens emi-
vendo nefte rnefmo indulto. Marcello naô
nentes eílais
convocou os inimigos para a Cúria, mas julgou que
a guerra civil era recebida pela maior dos Romanos;
e eíie juizo foi mais; por ignorância, e por hum vaô,
e falío medo , do que por ambição , ou crueldade* 53

A Emulação he hurn fentimento csufado pela £e»


licidade alheianaô porque outrem a poílua
,

mas porque caiecemos delia. Alexandre Magno naô


pode (uítentar os olhos enxutos lobre ofepulchrode
Achilles lembrando-fe das fuás proezas. Pela mefma
caufa chorou Júlio Cefar vendo huma eftatua do mef-
mo Alexandre no Templo de Hercules. Deve- fe pois
excitar a emuljçaõ com a memoria dos Varoens m«
ligues. Allim excitava Eneas a defeufiího Afcanio;

Difce , puer virtutem, m


me , verumque laborem $
fortuna ex ohts ; num te mea dextera Mio
,

Defevfutn dabit , &> magna inter premia ducet l


Tu factto mox , cum matura adoleroerit £tas
Sis memor atque animo repetentem exempla tuorunt,
Et pater JEneas , &
avunculus excitei Heãor ?

Eis-aqui o que nos diz Saluílio no pioemio da guer-


ra Jugurthina :

tç: Muitas vezes ouvi a P. Maxirro , e a P. Scí-


pião , e aos mais preclaros Varouis da noíla
Cidade
que quando viaõ as imagens dos íeus Maiores íeac-,
cendiao vehementiflimanicnte com a anciã da virtu-
de, naô que os íin ulachrcs tivellcm por
fi íó tanta ,
efficacia ,
mas pela nu nu ria , que nelles !e continuava
das acçoens heróicas. &c. =j
D 2 Aqui
yx THE ATRO DA ELOQUÊNCIA,
§.

AQui temos
Invenção^
o mais
e íó me refta
fubftancial
dizer que fegundo a dou-
que pertence á

trina de Cícero no íegundo livro do feu Orador , to*


da a commoçaô , que fe pertende nos ouvintes , ou
feja de amor , ou de ódio , de medo , de oufadia &c.
deve primeiro reprefentá-la o Orador em fi mefmo.
Para excitar o amor ha de moílrar que ama , para
,

coramover o ódio , a la/lima , a indignação , ha de


dar a entender que aborrece , que fe laftíma , que fe
indigna &c. Efte também he hum dos preceitos de
Horácio na fua Poética :

Si vis me flere ãolendum eft


Primum ipfi tibi ; tunc tua me infortunia ladent.

Pollion , que orava fempre com grande froxidaô,


moftrou tanto incêndio no dia , em que lhe morreo

hum filho ,
que difle Séneca :

Magna pars eloquentite eft dolor.

LI-
SI

LIVRO IL
CAPITULO I

da Invenção fegue a Difpoficaõ ,


DEpois
que he pôr em ordem
, fe
aquellas couías , que
ie achaó difpoílas. Ellahetaó preciza em tu-
do o que íe pode offerecer aos olhos , ou ao
penfamento, que naõ haveria obje&o , que naõ fof-
le confuío, fenaô eftivelle difpoíto , e bem ordena-
do. Com a Difpoficaõ he que íe tirou o Mundo do
feu chãos :

Qute poflquam evolvit , ccecoque exemit acervo


,
Diffociata locis , concorde pace ligavit.

Até no Inferno que he o centro da confuíaó^


,

há ordem , como adverte Santo Agoftinho :

Ibi eft , &


ita eji ubi effe , & quomodo effe orai-
nattffimum eft.

Confegue-fe a Difpofiçaõ na Rhetorica , dividin»


do aoração nas fuás partes eííenciaes ; e ainda que
alguns quizeraó que ellas foílem íeis , podemos redu-
zi-las a quatro
,
que faõ Exórdio, Narração , Con-
:

firmação , Peroração.
Com o Exórdio devemos conciliar os ânimos pa* ,
ra fer bem vifta dos ouvintes a matéria, que perten-
demos propor. Expomos com a Narração o que que-
D 3 remos
54 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

remos perfuadir: coma Confirmação efcclhemos aquel-


las razoens , que mais íe conformaó com o noílo in-
tento com a Peroração ajuntamos os rogos aos af-
:

fedtos , para commovermos , e convencermos o cora-


ção e o difcuríò do Auditório.
,

O exórdio he de duas maneiras hum , que fe cha-


:

ma legitimo , ou moderado , outro repentino , ou ve-


hemente. O legitimo fe tira do principio do aílumpto
introduzindo-o , com huma expreílaó modeíía e fo- ,

cegada o repentino quando o Orador , com toda


:
,

a veliemencia , fahe com huma pròpoíiçaõ inopina-


da ; como
aquella de Cicero na primeira Oração con-
tra Catilina ;

Qoufque tandem abutere y Catilina ^patientia


nojira ?

O exórdio
legitimo há de ter propriedade , cau-
tella , modeftia , e brevidade. Verifica«íe aproprie*
dade quando o exórdio fe faz peculiar , coherente , e
uniforme á matéria , e mais partes da Oraçaõ co» :

nhecer-íe-há que o exórdio tem a devida proprieda-


de quando fe naõ polia applicar a outro aílumpto ? naó
fendo como a eípada Delphica , que tanto fervia pa-
ra degolar as vidtimas , como os crirninofos ; e ainda
fera peior fe fe puder acommodar adous argumentos
contrários, como ao louvor , e ao vitupério , á cle-
mência , e á iniquidade &c. ou fe o bu içarmos muito
longe do intento eu conheci hum Pregador 9 que em
:

quaíi todos os Sermoens fempre principiava pela crea-


çaõ do Mundo.
A
cautella no exórdio he para que elle fe forme
com engenho, e cultura ; imitando os Archite&os, que
no frontifpicio dos Palácios inculcaõ o eíplendor da
editicio. Se o Orador enfaftiar os ouvintes no princi-
pio
? ,

OU ARTE DE RHETORICA. $S

pio da Oração, mó
pode eíperar nella o triumpho
da eloquência. Muito mão Piloto fera aqitelh ? (diz
Quintiliano ) que apenas Jabio do porto foi dar a
travêz com o navio.
Mas naõ fe deve também empregar no exórdio
demafiado artifício , nem fe valha o Orador de pon-
deraçoens muito exquifitas , ou falias, ou de hyper-
boles inveriíimeis , e de portentos de pouco credito»
A modeília no exórdio he taõ precifa aos Ora»
dores , que íem ella nunca confeguiráó a benevolên-
cia do Auditório. Porém há alguns taõ fatisfeitos do
feu magifterio ,
que ainda lhes parece pouco o ca*»
radter de Oráculos. Elles prefumem que tudo o que
dizem lahe pela boca das Sibyllas elles fe efcutaõ
:

e fe enamoraõ, e julgaô o Auditório , por mais dis-


creto que feja , como indigno da fua eloquência efta
:

vaidade naó íó he aborrecida mas contraria ao in«


,

tento do Orador* O mefmo Cicero confefla , que naõ


havia exórdio , em que naõ tremeííe a fua iníelligen-
cia , e todos os feus membros. Naõ digo que feja tan-
to o tempo , que faça languida a Oração ; mas a ou-
fadia^ naõ deve fer também tanta, que caia no def-
vanecimento. De L. Craflo, diíle o mefmo Cicero,
que a fua modeília naõ oífendia , antes recommendava
as fuás Oraçoens.
A brevidade do exórdio fe há de medir pela
grandeza da^Oraçaô O
edifício , fe for grande , deve
ter a entrada dilatada, e naõ como a do Templo de
Júpiter Olympico que naõ cabia por ella o fímula*
,

chro; por iflo dizia Phydias que o fizera de ouro,


e de marfim , e juntamente aílentado 7 porque o pe-
zo da matéria o naõ deixaffe levantar; mas também
naõ há de ter a fachada taõ extenfa como a da Ci-
dade dos Myndios , aos quaes gritava Diógenes que
fechaífem as portas do muro por naõ fugir a Povoação.
D 4 Deve-
$6 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

Deve-fe evitar no exórdio o andar rodeando com


palavras inúteis, e varias , para fe vir, depois de
hum largo circulo 5 a cahir no aflumpto com tudo :

naõ haõ de fer os exórdios taõ íingelos , e de taó


pouco artificio , como os de Xenephonte.
De varias origens íè podem deduzir os exórdios.
Cicero quafi fempre os bufcava nos adjuntos da pef-
foa , do lugar , e do tempo. Principiou a Oração por
M. Coeho pela eftranheza do tempo , pois foi obri-
gado a dizer em dia feftivo contra o coftume dos Ro-
manos. A Oraçaõ pro Milone pelas peíloas dos con-
trários , e pelo lugar que tinhaó cercado com as ar-
mas ; pela peílòa de Pompeo , que era o Juiz , e pela
forma do juízo ; e a pro Rege Deiotaro pelo aper-
to do lugar , pois a naõ diíTe nos Roítros , ou no
Senado ; mas privadamente no Palácio de Cefar. O
exórdio deita Oraçaõ pode fervir de exemplo a todas
as circunítancias da primeira Origem.
ê Sou também commovido, com a novidade do
lugar , porque digo entre paredes domefticas , de huma
matéria grande , como que nunca foi atégora trata-
a
da em alguma controverfia digo , fora daquelle íi*
:

tio , e daquelle ajuntamento , em que coítiimá" fun«


dar-fe o eítudo , e o cuidado dos Oradores ; mas di-
ante dos teus olhos , O' Cefar , diante da tua face me
acommodo e me aquieto
, :Na verdade que fe eu
: : :

levaífe ao geral concurfo eftas minhas vozes , elle ou-


vindo-as , e tu controvertendo-as , quanto applaufo me
concederia o Povo Romano Que Cidadão deixaria!

de favorecer hum Rei , que toda a fua vida empre-


gou emconípirar com as armas da Republica! &c. zx
Com os me finos adjuntos da peíloa , e do tem-
po teceo o Padre Vieira o exórdio no Sermaõ de San-
to António, depois de publicadas as Cortes:
p: A* Arca do TeiUtfiento , que afíim lhe chama
S. Gre-
OU ARTE DE RHETORICA: 57
das here fias , que eíte
S Gregório IX ao martello
:

ao lu-
nome lhe deo o Mundo: 00 defeníor da Fé,
Hef-
me da Igreja, á maravilha da Itália á honra de Lis- ,

panha , á gloria de Portugal , ao melhor filhote


Será-
boa ao Cherubim mais eminente da Religião
que oad-
phica celebramos fefta hoje. NeceíTario foi
vertiflimos pois o dia o naô fuppõem antes pare- ,
,

ce que diz outra coufa. Celebramos feita hoje, co-


mo dizia , ao noílo Portuguez Santo António e fe ;

havemos de reparar em circunftancias de tempo , naô

he a menor difficuldcde da fefta o celebrar^fe hoje:


hoje ? em quatorze de Septembro Santo António ?
&C £3
Commefmos adjuntos do tempo e do lu-
os ,

gar da companhia , da caufa , do fim , ordenou o


,

melmo Orador o exórdio das Cinco pedras de David'.


Admirável foy David na harpa, admirável na
sr
funda Com a harpa aftugentava demónios com a
! ,

funda derrubava gigantes : Taes faó hoje as duas


: : :

acçoens , ou verdadeiramente as duas ícenas deite gran-


de theatro harpa , e funda
: Coro , e púlpito mu-
: :

fica , e Sermão a muíica , como a harpa de David,


:

naô he fó para recreiar , ou divertir os íentidos íe- ,

naó para lançar fora do corpo, ealma de Saul oef-


pirito máo , que , como pai da difcordia , ainda por
antipathia natural he inimigo de toda a confonancia»
O Sermão , como funda de David , naõ he para fa-
zer tiro ao ar , ou efpantar , com oeítálo , he para
ferir , para derrubar , para proítrar aos pés de Chri-
fto os íeus contrários, e tanto mais , quanto maiores.
Dividindo pois eftes dous inítrumentos , e dando a ca-
da hum o que lhe toca , aos Cantores deixo a harpa,
e para mim tomarei a funda. A
funda de David , e
as fuás cinco pedras feraó o argumento fucceílivo de-
ltas cinco exhortaçoens &c, ss
Será
y8 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

Será o exórdio de muita efficacia quando nelie


fe concede alguma propoíiçaõ , para tirar delia com
maior força o fèntido contrario. O
mefmo Vieira ío-
bre o preceito de amar aos inimigos :

r:Os antigos diziaõ amai, aquém vos ama , e


:

aborrecei a quem vos aborrece iílo he querer bem a


:

quem vos quer bem , e querer mal a quem vos quer


mal.
Mas eíte didame , ainda que hoje taõ feguido,
pofto que pareça fundado na igualdade , e na jufli-
ça , he o maior, e o mais perigo fo erro , que a Sa-
bedoria Divina veio allumiar, e reformar ao Mundo
&c.s
Pôde fe preparar também o exórdio com alguma
controveríia , ou qucftaó infigne , ou efta feia parti-
cular , ou univerfal :particular , como a do mefmo
Vieira no Sermaõ de S. Gonçalo :

se Donde
ha muito que eieger , naõ pode haver
pouco fobre que duvidar : celebra hoje a noííà devo»
çaô hum Santo , fobre cujo eftado duvidarão os hy-
itoriadores : fobre cuja proíiílaõ duvidou elfe mefmo;
e fobre cujas grandezas , para eleger as maiores , eu
iou o que mais duvido &c. :=2
Univerfal , como eíía de Cicero
tr Muitas vezes difeorri comigo , fe a copia da
facúndia , e a fumma applicaçaõ da eloquência feria
proveitofa, ou nociva aos homens, e ás Cidades, â
Naõ deixará de fer digno o exórdio , quando fe
valer de alguma fentença iiluítre, como o de Salu-
ílio na Oração de Catilina:
t=: Tende por certo , ó Soldados, que as vozes

naó acerefeentaõ o valor , nem com a oração do Ge*


neral fe faz o cobardevalente ; nem fe pode fazer
,

intrépido o exercito pufilanime. 22


Ou de algum preceito moral, como aquelle de Ceíar:
t=To.
OU ARTE DE RHETORICA. 59

1= homens, que fe deliberaó fobre ma-


Todos os
térias duvidofas convém que eílejaó
fem ódio , íem
amor, íem ira, fem compaixão, s
Ou fe fe fundar em algum exemplo famofo, co-
mo o do citado Vieira no Semiaó da Degoiaçaõ do
Baptiíta :

js dos antigos Hebreos ( de quem o to»


Ufo foi
maraó os Gentios mais íabios , Gregos , e Romanos ?
e íem perigo da Fé , antes com louvor dos coftumes
o deverão imitai- os Catholicos ) ufo foi digo nos ia»
moios banquetes , naô fó íaborearem as mezas f com
praros regalados , e exquifitos , mas também com pro-
blemas difcretos , e proveitofos. sa
Na iuípenfaó , com que artificiofamente
o Ora-
dor leva o Auditório, fem eíle faber aonde vai pa-
rar o difcurfo , he hum excellente modo de conílruir
o exórdio , de que le valeo o Conde Thezauro na en-
genhofaobra doíèu Canocbiale Ariftotelico. Em huma
Declamação , fobre a felicidade da paz , do Author
do Tbeatro , temos hum fegundo exemplo :

trCanfaraô-fe os Philoíòphos antigos em averi-


guar qual devia fer o objeólo mais appetecido no
Mundo huns diíTeraõ que o Senhorio outros que
: :

a formofura outro que as riquezas


: Mas ó fenho- :

rio houve quem affirmou , como Diocleciano , que era


cativeiro a formofura , como eípurina , que era pe-
:

rigo ; as riquezas , como hum dos fette Sábios da Gré-


cia , que eraõ cuidados votarão alguns , em que era
:

o focego do animo ; porém , como eíle focego por


mais que fe procure ,: nunca fe alcança também eíres ,

naõ atinarão com oobjedlo, que bufcavaõ eíle bem :

atégora taõ ignorado , he que venho hoje a declarar-


vos , e prometter-vos. &c. S3
Por huma regra geral fe há de procurar o exór-
dio no mais intimo da matéria , e retocá-lo na.õ fem al-
gum
6o THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

gum género de deftreza com os argumentos e affeílos,


,

que ao depois fe haõ de feguir unais difíuíamentc o :

que naó fera difficultofo fe o Orador confiderar dian-


te de quem falia , por quem roga , ou a quem aceufa,
em que tempo , em que lugar , em que eílado das cou-
fas , e que conceito podem fazer os Juizes , e os ou-
vintes Tudo no feu quarto livro das Injlituiçoens
:

manda ponderar Quintiliano,


Com o exórdio a que chamamos legitimo fe per-
tendem três cou ias a benevolência , a attençao , e a
:

docilidade do Auditório*
A benevolência procede de quatro princípios :
Da peííòa do Orador , da peílba dos contrários , da
peíloa dos que ouvem , e dos que fentencêaó , e da
pefloa por quem fe faz a Oração.
Da peíloa do Orador, fe he taó modefta no feu
femblante, e na íua fama , como na íua recommen-
daçaó. Ifto naó tira, como j a diílèmos, que elle fe
polia recommendar com a moderação devida.
A benevolência que refpeita á peíloa dos con-
trários he a matéria mais delicada , e difficil para os
Oradores j efpecialmente fe elles faô de approvadas
virtudes , e merecimentos : os Pvhetoricos nos man-
dão imitar a Cicero em femelhante aperto Eftava
:

eíte grande Orador no Senado defendendo a eaufa de


Murena , aceufado por Cataô , o melhor Romano
que conhecia na Republica : recorreo Cicero a zom-
fe
bar da feita dos Eíloicos , da qual era Cataõ hum a-
cerrimo partidário ; e o fez com tanto fal , e agu-
deza, que chegou a diílolver a aceufaçaó , com o rifo
dos senadores. He verdade que he perigofo efte re-
fugio , porque Cataõ irritado de fe converter hum
afro taó ferio em argumento jocofo , fez com que
Cicero fofreíle á vilta dos P. C. aquella vehemente
exclamação Dii boni^quam ridicuhtm babemus Con-
:

fukm\ Sem
,

OU ARTE DE RHETORICA. 61

Sem embargo defte perigo , há muitos que fe naõ


apartaô do exemplo de Cicero : com fumma galan-
taria , e agudeza accufou hum dos noflòs diftintos
Poetas a três peíToas illuftres ,
que tendo nafcido no
Oriente feguiaô em tudo as direccoens de Manoel Ga»
mes da Palma.

llluftres (aonaõ lho nego ,


,

difcretos fao nao lho tolho ,


,

mas pendentes áefta Palma ,


quem nao dirá quefaõ Cocos}

Se os contrários faó de pouco merecimento, fa-


zendo o Orador alguma memoria dos Teus defeitos
fácil lhe fera alcançar dos ouvintes a defafteiçaõ pa-
ra elles , e a benevolência para fi. Dá-nos o melmo
Cicero o exemplo na Oração pro Deiotaro :
t= Efte cruel Caftor , porque nao diga malévo-
lo , e impio , trouxe íempre arrifcada a vida de feu
Avô , e o encheo de hum continuo medo , com a fua
fera adolefcencia ; cuja velhice devia elle, como feu
neto, amparar, e defender. Defde os íeus primeiros
annos nos veio logo recommendada a fua crueldade,
e malevolencia. Corrompeo com dadivas o efcravo
de Deiotaro, e o obrigou a accufar o feu mefmo Se-
nhor, e para iílo o apartou da companhia dos Le-
gados. 53
Se os contrários naõ forem taô beneméritos, co-
mo Cataõ , nem taô perverfos , como Caftor, ainâa
que fe diítinguaõ em algumas prendas, fera precifo
defacreditá-las , e muito mais fe forem as da eloquên-
cia, porque faó as que feoppõem mais vivamente ao
triumpho do Orador ; porém efte defcredito há de
fer fundado na publicidade, e nos evidentes defeitos
dos contrários 5 e nos que fó pertencem ao argumen-
to .
6z THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

to, e á demonftraçnô dajtiftiça. Bem fe poderia âo


cufar a facúndia de Jeronymo Savanarola que teve
,
tantos annos ao íeu arbítrio o povo de Florença pelo
,
maligno intento das fuás declaniaçoens.
Da elegância de Nevio , e de Hortenfio affe-
flava Cicero, que -fe temia diante do Juiz Aquilioj
para com efta dellreza defàcreditar aaccufaçaõ, que
laziaô eítes dous Oradores a Quinftio :
t=: A iumma graça e a eloquência , que faô os
?
privilégios mais pocíeroíos na Cidade , ambas vejo
contra mim. Deitas , O' C. Aquilio, huma receio , a
outra temo. Porém nem a elegância de Q. Horten-
fio me embaraça as vozes , porque nada me commove,
nem a graça de S. Nevio prejudicará a P. Quin&io. as
A benevolência , que procede da peíloa dos Jui-
zes , ou dos ouvintes , coníegue-fe , por três modos.
Primeiro , fe o Orador moítra nelh s huma grande con.
fiança , como fez Cicero na Oraçaó pro Rofcio Ame.
rino. Segundo , íe os Juizes , ou ouvintes faõ inte^
relTados na mefma cauía , como o rneimo Cicero per-
luade varias vezes nas Philippicas, Terceiro , fe fe
recommenda , com a devida modeília , a juftiça , a
fé , a authoridadé , e outros dotes íemelhantes do
Auditório , ou do Juizo. Afíim o executou o mef*
mo Orador na Oraçaô pro Milone com as prendas
de Pompeo :

s= Alenta-me , erecreia-me o confelho de hum


taõ SapientiíTimo, ejuiliflimo Varaó como Cn. Pom-
peo , pois nunca imaginou a fua equidade entregar
aquelle homem ás lanças dos íoldados , que eítava
entregue , como réo , ao cafligo dos Juizes : nen
foi da fua labidoria armar a temeridade da multidão
fediciofa , com a authoridadé publica, zsx
A benevolência , quenaíce da peíloa do Cliente
pódefundar-fena lua innocencia , cms luas virtudes,
fe
OU ARTE DE RHETORICA. 63

fe foi inevitável a , ou fe eflá de*


fua calamidade
famparado de amigos , cu valedores.
Eítes , e outros motivos de produzir a bene-
volência deve deícobrir o Orador quando a caufa
neceífita de recommendaçaõ; mastendo-a em íi mef-
ma , naõ feri neceílario tanto para fe alcançar avi-
éloria.
Santo Agoftinho na fua Rhetorica reduz eftes
caufas a quatro géneros caufas boneftas , incrí-
:

veis y duvidozas , humildes.

§.

AS honeflas fao aquellas , que íèm alguma in-


finuaçõ confeguem a benevolência dos ouvintes ,
como as em que íe dos louvores de Deos ,
trata
dos feus Santos , dos Vâroens iníignes , das acçoens
heróicas ,recommendaçaõ das virtudes. Neílas
e da
naô fedeve fatigar muito o Orador para ter benévolo
o Auditório , porque ellas por fi mefmas fe reccm-
ipendaõ.
As incríveis , que também fe chamaô admi-
ráveis y ovt paradoxas , faõ as que fe apartaõ da
opinião popular , como as Diífertaçoens do Padre
Feijoó. Também fe chamaó caufas incríveis as que
contém a defenía do facrilegio , o louvor do parri-
cidio , e outras de íemelhante argumento.
Defte género há huma Oração de Ifocrates ? em
que louva o crueliffimo Bufíris. Da mefma forte hea
de Perpena quando íe atreveo a elogiar a traição com ,

que matou a Sertório. Já houve quem louvou a febre ,


a gotta ; e foi louvado até o mefmo demónio pelo im-
piiílimo Joaõ Bruno em Witemberg. Por cila rszaó
€Ílá bem fundado o provérbio de que nau há fatui-
dade>quenaô tenha patrono.
As
64 TIIEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

As duvidofas faó as que parecera por huma par-


te honejias ,
por outra iílicítas. Tal foi a de Junio
Bruto matando a feus filhos por fe porem pela fac-
ção cie Tarquinios : tai a de Maníio , matando tam-
bém o filho vi&onoíò por tranfgredir o bando , que
eíiava publicado no exercito ;ea do Horácio dego-
lando a lrmaã por chorar a morte do marido , de
que elle tinha tríumphado. Tal a do Velho Xicotencal,
que votou no Senado deTlafcala, que morrelle o fi-
lho por fe oppor aos defignios da Republica. Tal fi-
nalmente a do matricidiodeOreftes por vingar o adul-
tério , que a mãi tinha commettido , o que fez dizer
a Ovidio :

dubiumpius , aut jceleratus Oreftes.

As humildes faÕ as que fe fundão em matérias


vis , pequenas , ou defprezadas , como fe algum Ora-
dor intentalle dizer no Senado , ou em outro lugar
confpicuo , fobre a limpeza das immundicias publicas.
Caufa humilde foi também a do panigyrico, que Po-
lycrates fez ao rato , Luciano á molca , Maioraggio
ao lodo, fcicaligero ao pato, Jano Douza á fombra,
Daniel Heiníio ao jumento , e ao piolho , Calcagni-
no ao gago, e á pulga, e Faííeracio ao nada*

BAfla de benevolência , direi agora , como íe con-


fegue no exórdio a attençaó dos ouvintes. Dir
zem os Rhetoricos que per dous modos çom as pro-
:

meílàs , ou com os roges : com as promeífas , obri*


gandofe o Orador a tratar das coulas grandes, ou
novas , ou uteis , ou expeftaveis. Defta lorte he o
exórdio da Oração de Cicero pro Rabino ;

ts De-
;

OU ARTE DE RHETORICÀ. 6$
Deveis fuppor, o Romanos 9 que depois da
í=2

memoria dos homens naõ t -:m havido outra matéria


mais delicada que mais neceflite da voíía providen-
,

cia , nem mais digna de íèr recebida pelo Tribuno


da Plebe , e peloarnpáro do Conful , nem mais ca-
paz de fe levar á çréfença do Povo Romano. z3
O exórdio , que mais pode arrebatar a attençao
dos ouvintes he o do Padre Vieira no Prologomeno
da Hiiloria do Futuro :
fe Nenhuma coufa fe pdde prometter á Nature-
za humana mais conforme ao feu maior appetite , nem
mais fuperior a toda a íua capacidade , que a noti-
cia dos tempos ^èvfcrcdeílbs futuros : Ifto he o que
off rece a Portugal , á Europa , éao Mundo efta nova,
e nunca viíta Hiftoria. A$<outras Hiftorias contaó as
coufas paliadas , efta as què eftaô por vir. As outras
trazem á memoria aquelles fúcceífos públicos , que
vioo Mundo ; efta intenta manifeftar ao Mundo aquel-
les fegredos occultcs , e efcuriílimos , que naõ che-
ga a penetrar o entendimento &c. ^
Mas naõ íei feefte grande Orador defempenhou
a promefTa defte nunca imaginado exórdio , e fe aca-
fo fe fez íèmelhante ao Poeta Cyclico , de quem dií*
fe Horácio

Qttid dignum tonto feres hic promiffor biatus ?


Parturient montes , nafcetur ridiculus mus.

Antes defejarei que o Orador nos dê mais


, e
prometta menos. Homero , Virgílio Ca*
, Taílo , e
moens no exórdio das íuas Epopeias cumprirão o que
prometteraõ.
Será bom advertir, que fe ao Orador lhe for pre-
cifo tratar de alguma matéria que naó conrefponda
,

á dignidade da Oração > que deve antes defculpá-la,


E como
66 THEATRO DA ELOQUÊNCIA
como fez Cicero na Philippica VIL
Somos obrigados P. C. a tratar da Via Appia,
tu
e da moeda coufas bem pequenas , mas talvez ne-
:

ceííarias. zí
O mefmo fez o Author das Declamaçoens , que
andaó em nome de Quintiliano, tratando do eftra-
go que fez hum rico a hum pobre na criação das
,

fuás abelhas :

ts Naó pareça a alguém que efta minha cauía


he inferior á voíía dignidade : Primeiro que tudo naó
deveis eíperar que fendo eu pobre perde íle coufas
grandes j mas ainda que feja pouco aquillo , que o
rico me deftruio , fempre he menos o que me dei-
xou. &c. s
§.

OS rogos , com os quaes fe confegue a attençaõ,


deve interpô-los o Orador deíorte , que o Au-
ditório o attenda com cuidado, e diligencia. Aífim
o fez Cicero na Oraçaó pro Rofcio Amerino :
trPor efta razaó vos togo, ó Juizes, que com
bom femblante attendais com toda a diligencia ás mi*
nhãs ponderaçoens &c. tjs
Propter quod obfecro patienter me audias , dif-
fe também o Apoftolo orando na prefença de Agrippa.
Naó fó no exórdio , mas pelo meio da oraçaó ,
fe podem repetir os rogos Cicero na Oraçaó pro
:

Cluentio
s: Eu vos peço que ja que atéqui attentamente
me ouviftéis , me attendais da raefma forte daqui em
diante; porque naó direi coufa, que naó feja digna
defte concurfo , do voíío filencio, dos v-oílòs defe-
jos j e das voflas attençoens* =4

Coníe-
OU ARTE DE RHETORICA. 67

COnfegue-fe a docilidade de Auditório por três


modos Primeiro , fe o Orador promette de fer
:

breve. Efta brevidade ferve para o Orador , e para os


ouvintes : para o Orador , porque lhe fera mais útil
o fobrar-lhe, que ofaltar-lhe a eloquência : para os
ouvintes , porque he melhor ficarem com o appeti-
te , que com o faftio da Oração. O
fegundo , fe o Ora*
dor propõem a matéria com íingeleza, e conciiaõ #
imitando a Cícero na Oração pro Lege Manilia :

és Há fe de dizer de Cn. Pompeo que he aquel- ,

leVaraô da mais fingular, e eminente virtude &c. ^


Ou feguindo em hum dos Sermoens da tercei-
ra Quarta feira de Quareíma ao Padre Vieira :

fcs Dous lugares , e dous pertendentes , hum me-

morial , e huma intercefíbra , num Príncipe , e hum


defpacho faõ a reprefentaçaõ politica, ea hiftoria Chri-
ftaã defte Evangelho. =2
Terceiro , fe o Orador divide a Oração em duas,
ou três partes capítulos, ou diícurfos ; como fez o
,

mefmo Cicero na citada Philippica VII.


írQual he a razaõ porque naô quero a paz?
Porque he torpe; porque he perigo fa ; porque naô po-
de confeguir-fe. Em
quanto explico eftas três razoens,
peço-vos P. C. que meattendais , com aquella benig-
nidade , com que fempre coftumais ouvir-me. =3
Ainda naô há muitos annos que eftas divifoens
eraô mui agradáveis ao Orador, enaõ fei fe também
ao Auditório : hoje fe vai perdendo efte gofto ; e fe
pertende que a Oração naô tenha mais que hum dif-
curío :fe alguém fe tentar a dividi-la , há de fer com
quatro condiçoens. Primeira , que íeja cheia ifto he, :

que as fuás partes fe igualem , e conrefpondaõ Se- :

gunda, que fejaõ asmelmas partes difterentes * defor-


E 2 te
68 THE ATRO DA ELOQUÊNCIA ,

te que o que fe contiver em huma , naó fe conte-


nha na outra. Terceira que naô excedaó de duas , ou
,

três , e quando muito até quatro.


Quarta, que adiviíaó íeja liza , e fácil, e que
naó inculque , com muito artificio , o engenho do
Orador.
Quafi todas as divifoens de Cicero faó por efte
modo íirva de exemplo a pro Lege Manilia
: :

ss Primeiramente tratarei do género da guer-


ra , logo da fua grandeza , e ao depois direi como
fe há de eleger o Imperador. :=:
Porém eu naó condenaria fe o Orador quizefle
fahir deita fingeleza , e fizefle a fua divifaó mais ador-
nada , como a do Padre Vieira nas Exéquias de D.
Maria de Attaide :

t=: Contra efte taô inefperado apartamento te-


mos três queixoíàs , a modo de Martha , enaõquei-
xofas de Maria , porque o executa, fenaô de Deos ,
porque o permitte Domine nos eft tibi cura ? Eque
;

queixofas faó eítas ? A primeira he a idade , a fe*


gunda a gentileza a terceira a difcriçaõ.
,

Pararão todas como Martha Quajletit ,


, : ait: &
E que conformemente íe queixaõ Corpo, alma, e !

nniaõ he toda a fabrica do ccmpoílo humano Por :

parte da uniaõ queixa-íe a idade cortada por parte:

da alma queixa-fe a difcriçaó immudecida por parte :

do corpo queixa-fe a gentileza eclipfada. Chora a


idade o golpe , chora a difcriçaõ o filencio , cho-
ra a gentileza o eclipíe ; porque lhe naô valerão
contra a morte, nem a idade ornais florente, nem á
gentileza o mais florido, nem á difcriçaõ o mais fló-
rido. Vamos ouvindo efías três queixofas , depois ref-
ponderemos a ellas. z=!
Ainda que nos exórdios legítimos íe proporciona
a fua medida com as outras partes da Oração , fe ufa
algu-
,

OU ARTE DE RHETORICA. <s 9

algumas vezes dos exórdios concifos ; como aquelle


do Padre Vieira nas lagrimas de S. Pedro :
es Cantou o gallo , olhou Chriíto , e chorou
Pedro%:=s
§.

EStes faõ os modos , com que fe fará o exórdio


legitimo , e também por muitos fe pode fazer
o exórdio repentino mas eu aílígnarei fomente
,
fette.
Primeiro , pela liberdade 4 com que fe falia ; como
a de Mucio Scevola diante de Porfena :
Eu fou Cidadão Romano : chamaõ*me C.
íd
Mucio pertendi , como inimigo matar ao inimigo :
:

taò apparelhado entaó , como agora , para a morte 1


He do valorRomano naó fó executar, mas foífrer
as acçoens mais fortes Naô fou eu fó faõ muitos os
: ,

que tem confpirado contra a tua vida : Depois de


mim , eítá outro eíquadraó de mancebos , para ga-
nhar efta honra* &c. =í
Segundo, pela indignação
, accufaçaó , ou repre-
henfaõ Aífim Veturia
! afeu filho Coriolano , que vi-
nha capitaneando hum grande exercito para deftruir
a fua Pátria :

ta Primeiro que me abraces, faiba eu fe venho


para hum , ou para
filho hum inimigo
? Se eftou como

Mãi ou como captiva nefte alojamento ? Será crivei


,

que a minha caduca vida , e a minha infauíla velhice


me traga, aonde te veja defterrado, e ao depois de-
ftruidor de Roma Tivefte valor para laquear , e
!

aílblar huma terra que te deo o fuftento , e a origem !


,
Será poífivel que naó fe acabe a ira , ainda que ve-
nhas com hum animo ameaçador , e perverfo , ten-
do chegado de fronte da tua pátria Naõ te veyo ao !

penfa mento , quando ella fe te oífereceo aos olhos


tua Mãi, tua mulher, e teus filhos, e que dentro dos
E 3 íeus
70 THE ATRO DA ELOQUÊNCIA,
feus muros eílaõ as minhas cafas , e os meus Pena-
tes ? Logo fe eu naó te pa rifle, naõ feria Roma com-
batida : fe eu naó tiveíle hum filho , morreria livre em
huma pátria livre, a
Terceiro , pelos fucceílòs inopinados , como o do
Padre Vieira fahindo de hum extraordinário naufrá-
gio na Ilha de S. Miguel :

es E quantas vezes os que parecem acaíos foraõ


confelhos altiíTimos da Providencia divina Acafo pa« !

rece que eftava Chriílo encoítado íobre o poço de


Sichar , e era coníelho da Providencia divina, por-
que havia de chegar alli huma mulher, ( a Samarita-
na ) que fe havia de converter. A caio parece que en-
trava Chriílo pela Cidade deNaim , e era coníelho
da Providencia divina , porque havia de fahir dalli
hum moço defunto , que havia de refufcitar.
Acafo parece que paiTeava Chriílo pelas praias de
Galilea , eera coníelho da Providencia divina, por-
que havia de chamar dalli a dous pefcadores , que
deixadas as redes , e o Mundo, o haviaó defeguir.
Pai ece-me , íenhores , que me tenho explicado ;
Acafo , c bem acafo aportei ás praias deíla Ilha :

acafo, e bem acafo entrei pelas portas deite Cidade :


acafo, e bem acafo me vejo hoje neíle Púlpito , que
he verdadeiramente o poço de Sichar , aonde fe be-
bem as agoas da verdadeira doutrina : E quem vos
difle a vós , nern a mim , fe de baixo deftes acafos fe
occulta algum grande confelho da Providencia divina ?
Quem vosdiíle fe haverá neíla Naim algum mance*
bo morto no feu peccado ,
que por eíle meio haja
de refufcitar ? &c. ;$
Quarto, peia occafiaõ de alguma alegria, ou fe-
licidade publica. O meímo Orador rendendo ^s gra-
ças a S. Francifco Xavier pelo nafcimento de hum
dos noílos Infantes
es Eílrei-
: :

OU ARTE DE RHETORICA. yr

£ Eftreito mappa para ta(S univeríal alegria {

pequeno theatro para taõ grande felicidade!


Felice, e alegre a Monarchia de Portugal, com
o novo nafcimento do quarto Infante : Felices , e
alegres Suas Mageítades , com o novo augmento do
quarto filho Felices e alegres Suas Altezas , com a
:
5

nov^ companhia do quarto Irmaõ. ej


Quinto , pelo movimento de alguma grande def-
confolaçaõ. O
mefmo Vieira vindo do Maranhão quafi
íèm efperança de fazerem nelle algum frudo as Mif-
foens da Companhia
^Eíèquizefle Dons que efte taõ illuílre , etaõ
numsrofo Auditório fahiíTe boje taõ defenganado da
pregação como vem enganado com o Pregador z5
, !

Sexto , quando íe traz á memoria algum efpe*


étaculo horrível , e temerofo. O mefmo Padre no Ser-
mão do Juizo :
;r Abrazado finalmente o Mundo, e reduzido a
hum mar de cinzas tudo o que o eíquecimento deite
dia edificou fobre a Terra &c. :=!

Settimo ,
quando
convoca alguma figura para
fe
melhor ie moverem os ânimos Affim principiou I faias
os feusCapitulos ss Audite Cceli , &* auribus per-
:

cipe Terra &c. =j


E o mefmo Vieira no Sermaó do Carnaval em
Roma
5= Maior efpe&aculo, ó Tybre, vés efte dia , tu,
nas tuas margens, habitadas das tuas ribeiras , daquelle
,
que vio antigamente o Jordão nas Soledades dode-
íerto , quando o demónio tentou a Chrifto. =s

COmo o
exórdio he
\ affim de hum , como de outro
officio
propor o aílumpto ., devemos dizer
E 4 algu-
71 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

alguma coufa àapropo/içaõ. Efta há de ter cinco pre-


rogativas ,
para fer perfeita. Primeira , que leja huma ,
íimplez, e naõ comporta, nem formada de partes re*
~pugnantes ou diferentes ; porque deíla conformida-
,

de he que depende a unidade daOraçaô Há de ir :

iempre o Orador com os olhos no que propôs, para


fe naõ apartar do allumpto, tendo prefente o pre-
ceito de Horácio :

Denique fit quodvis ftmplex dumtaxat , & unum.


Segunda, que para que naô fe fati-
feja clara»,
gue a intelligencia na fuacomprehenfaó. Terceira,
que fe terminem nella todas as partes , e argumen-
tos da Oração , e que igualmente os abranja. Quar-
ta , que polia facilmente fer tratada , com a copia de-
vida , fuggerindo-lhe os refplandores da eloquência,
N

Quinta , que fira os ânimos , com a novidade , e os


perfuada , com o proveito, porque eílas duas cir-
cunftancias faõ muito poderoías para conciliar a at-
,

tenção , e a benevolência dos ouvintes.


A novidade na propoftç aõhe quando efta fe apar-
ta do commura , e do vulgar , e procura o eftranho,
e o exquifito. Efta novidade he de dous géneros hum, :

que refpeita á matéria , que fe há de propor , outro.,


que toca ao eftylo da propofiçaõ.
Porém efta novidade naô há de fer deforte, que
degenere em propoftçoens ridículas , ou nimiamente
frias , ou paradoxas como aquella dos Eftoifcos , que
;

affirmaraõ , que as doenças, as dores', odefamparo,


as affrontas , a pobreza , e outras calamidades da Na-
tureza , ou da fortuna, naõ alteravaõ a felicidade hu-
mana , e que baftava a virtude para fazer ao homem
goílofo , ainda que eftiveíle entre as neves do Ape-
nino , ou as chammas do Mongibelo.
I I Corn
;

OU ARTE DE RHETORICA. 73
Com tudo há humas propoftçoens , que parecem
paradoxas , e atrevidas , e fícaõ admiráveis depois de
explicadas. Tal foi a do Padre Vieira no Sermão de
N. Senhora da Graça.
es Todos os Padres, todos os Doutores quaiv
to mais ponderaõ , quanto mais encarecem , e quan-
to mais querem dar a conhecer a Graça da Senhora,
medem-na pela Maternidade de Deos mas com licen-
:

ça de todos, e ajudado, com o favor da mefma Se-


nhora , para maior gloria da fua Graça , determino
dizer delia hoje o que atégora fe naõ difle :Digo
que o fer Maria, Mãi de Deos, naõ he baftante me-
dida , para nos dar a conhecer a grandeza da fua Gra-
ça•,
porque a Graça de Maria foi maior graça , que
a graça de May de Deos &c. rs
O eftylo da propo/içao também deve fer novo ,
e muito differente da explicação popular Propo/içao
:

vulgar leria efta Vos habitais em bum a eftancia mui-


:

to húmida : e Marcial a fez nova , e exquifita , quan-


do difl&: .S&Jtuereis que nao morrão os peixes dei- ,
yneJia e/i anciã.
tai-os vo/Ja
difle de hum homem
Horácio que tinha fó hum
,

olho ,
fempre cheio de lagrimas , que ejie olho
e efle
andava fempre chorando a morte de feu IrmaÕ pu- :

dera trazer outras muitas prepofiçoens deita qualida-


de , porém eítas baítaó para exemplo.
Autilidade, finalmente, que fe pertende na pro*
pofiçao, ceve fer aâíiva, e nao contemplativa : Delia
forte a diftingue Séneca : chama-fe utilidade contem-
plativa , a que attende fomente ao conhecimento, co-
mo por exemplo ts O numero dos nefeios he infinito s=s
Chama-fe utilidade aâíiva , a que tem algum fim nas
acçoens humanas , como efta s= Os defeitos dos ami-
:

gos devem fer tolerados. z=l


Delia ufou o Padre Vieira no Sermão de Santa
Iria ts AíTiro
74 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

i± AíHm como fegurar a vida da eternidade he


a maior prudcncia aflim perde-la, ou arrifcá-la he
,

a mais rematada loucura :Só aquelle , que fe fou-


be falvar , poílo que em tudo o mais obrafle como
nefcio, foi prudente: e fó aquelle, que naô foube
aífegurar eíte ponto, ainda que em tudo pareça pru-
dente , he louco, zi
Eis aqui o que mais eíTencialmente fe pode di-
zer do exórdio ;fegue-fe a Narração , de que dhei
o mais principal no

CAPITULO II.

A Narração pela doutrina de Cicero deve


fpicua , provável', breve efuave. Faz-fe per»
,

fpicuai guardando a ordem dos tempos, para queaquil-


fer per-

lo , que foi primeiro, primeiro fe refira, e elegen-


do para illo as palavras próprias , e que eftaõ-m uíb,
naõ interrompendo a ferie das acçoens , e evitando os
termos amphibologicos , como "por exemplo ^Ten-
ceraÕ os Partbos os Romanos z=: em que naõ fe co-
nhece quaes foraõ os vencidos e os vencedores. Deve-
,

fe também fugir dos termos , e difcuríos cfcuros , a


que os Francezes chamaõ goltmatias , aos quaes os
Hefpanhoes quizeraõ dar o nome de cultura, e faó
labyrintho.
Santo Agoftinho foi taõ amigo da clareza da Ora-
ção , que antes queria que o reprehendeífem os Gram-
maticos , que o naõ entendeíTem os Povo?.
Fica a Narração provável por quatro modos Pri- :

meiro fe a peíloa , que narra , hede conhecido cre-


,

dito , e probidade. Segundo, fe expõem <rs fucceífos ,


fem muito adorno 9 porque a verdade pinta-fe nua.
De
: — ,

OU ARTE DE RHETORICA. 7S
De huma Hiftoria , com pouco ornato , diíle Antó-
nio de Sol is £2 Pajja hoje por hl floria verdadeira ,

ajudando fe do mejino dejalinho , e pouco adorno do


feu ejiylo , para parecer \e d verdade , e acreditar ,
com alguns , a ftncerubde do efcriptcr. =:
Porèrn quanto a mim efte defaJinho da narração
jiaõ prova muitas vezes a finceridade doAuthor, por-
que haverá algum , que a naõ íâiba fazer de outra
lòrte. Terceiro, fe fe naõ diz o que repugna ao cre-
dito , e ao commum fentimento dos homens. He huma
das regras de Horácio :

Quodcunque ojlendis mihi fie , incrédulas odi.

Huma grande parte dos Efcriptores defejaõ fa-


zer as íuas narraçoens admiráveis , ainda que fe fa-
çaõ incríveis. Deitas diz o meímo Solis , que fe devem
pôr entre as erratas do volume.
Quando o Orador neceíTite de trazer algum fuc-
ceíío invepfimil 5 poílo que feja verdadeiro , deve
primeíto preparar o animo dos ouvintes , combinando
efte com outros portentos ja averiguados , e acceitos
ou ponderando que a Natureza naó le obrigou a fuften-
tar íempre o mais commum , ou dizendo , com Ariíto-
teles , que a inverifemelhança naô implica , com a
verdade , valendo-fe do que diíle Calderon em cafo
femelhante

que
fi novedades no huviera
quedara la admiracion
tnutil ai Mundo. —
Quarto , fe fe expuzerero com individuação as cir-
cunftancias dos acontecimentos , e os adjuntos da peí-
foa .
76 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

foa , do do tempo , de que o Padre Vieira


lugar , e
nos dá hum bom exemplo com a narração de comb
,

fe cortou o braço a S. Francifco Xavier :

t= Mas ja he tempo que vejamos o facrifício ; e


preparem-ie os coraçoens de novo animo , e valor pa-
ra hum nunca vifto efpe£taculo* O lugar que fe ele-
,

geo foi huma Capella interior para onde fe trasla-


, ,

dou o fanto corpo a titulo de maior decência


, o :

tempo o mais fecreto da meia noite , fem noticia


,

dentro , nem fora , do que eftava determinado Ne :

tiimultus fieret in populo ; porque íabendo fe , toda


Goa, e toda a índia fe poria em armas, para defen-
der o braço , que tantas vezes a tinha defendido Os :

aífiftentes eraò o \ ifitador , o Provincial , o Prepo-


ííto da Província , o executor hum Irmaô leigo , naõ
parecendo decente , que as maõs fagradas , que of-
ferecem a Deos o (acrificio incruento de feu Filho,
fe enfanguentaíTem no de Xavier.
'
Poftos aílim de joelhos todos , levantou o exe-
cutor o braço do Santo , taó natural , e flqjiyel , co-
mo fe foífe de hum corpo vivo , que éltivelfc dor-
mindo , e indo para o cortar , eis-que fubitamentâ
tremeo a terra , a Capella , e todos os que nella efta-
vaó: tornarão outra vez a intentar o golpe, e naõ iò
o pavimento , mas as paredes, com fegundo tremor,
pareceo que íe queriaõ arruinar defencaixadas as pe-
dras infiítindo porém terceira vez no mefmo inten-
:

to , foi tanto maior o tremor, e o abalo, que o té-


dio , e todo , o edifício daquella grande caía parece
que cahia (obre os que eftavaõ na Capella ; com que
todos attonitos fahiraõ para fora Feita por elles
nova confulta , quando parece que fe havia de refol-
ver nella, que lè.efcrevefle a Roma , e fe reprefen-
taílem os manifeltos e prodigiofos indícios , com que
,

Deos moítrava que naô era fervido, que o fanto cor-


po
:

OU ARTE DE RHETORICA. 77

po mas perfeverafle inteiro , para que a


fe dividiííe ,

lua mefma inteireza foíle hum perpetuo teftimunho


a todo o Oriente da verdade da Fé , que lhe
prega-
ra ;o que fe refolveo foi, que tomaflèm ao meímo
Santo por interceílòr contra fi , elhepediílèm licença
para a execução do que eraó mandados.
Entraõ outra vez todos na mefma Capella , e po-
ílos de joelhos,fallou aíTim hum dos Prelados: Bemaven-
turado Santo , bem fabeis vós que vimos aqui naó
tanto por nofTa vontade , quanto por obediência do
noflo Padre Geral: E pois em vida foííeis tao obe-
diente , dai-nos agora , depois de morto , licença para
,

que podamos executar o que fenos ordena , mandando


el\a relíquia do voílo corpo , que a pede o Summo
Pontífice. Difle ; e em fe ouvindo o nome do Sum-
mo Pontifice , do Padre Geral , e efta palavra m Obe-
diência 23 obedeceo o Santo , obedeceo a terra obe-
,

decerão as paredes , obedeceo tudo e o braço fe deixou


,

cortar, manando da ferida tanto fangue, que encheo


hum £9ÍS~4ej>rata, e banhou-fe nelle huma toalha,
que ptófra etfeeffeito hia prevenida a qual , depois de
,

muitos annos, levou o Conde de Linhares , Vice Pvei


da índia , para a apreíentar a EIRci D. Philippe
IV. =i
Quando os fucceflos fe propõem com termos
admirativos , fe produz ainda melhor a probabilidade.
O meímo Vieira fahindo do referido naufrágio $ que
o levou á Ilha de S. Miguel
t= A quem aconteceo jamais , depois de virado
o navio, e depois de eftarem todos fora delle fobre
o cortado, ficar aflim parado , e immovei por efpaço
de hum quarto de hora ] fem a fúria dos ventos *o
defcompor , fem o impulfo das ondas o foçobrar,
fem o pezo da carga, edaagoa, de que eltava até
orneio alagado ^ oleyar a pique , e depois dar outra
volta
78 THE ATRO DA ELOQUÊNCIA ,

volta para a parte contraria , epôr-fe outra yez di-


reito , e admittir dentro em fios que íe tinhaõ ti-
rado fora ? ss
Ainda narração nos fucceíTos Canónicos, em
a
que pada probabilidade a fer innegavel certeza , he
a
mais elegante o praticá-la , com as circunftancias ,

que tenho referido. O


mefmo Vieira logo mais abaixo
da relação deite naufrágio.
pi Mandou Deos a Jonas que fofle pregar aos
Gentios de Ninive ; naó quiz Jonas , e para fugir
da Miífaõ, e do meímo Deos, que lha encommen-
dava , embarca-fe de Joppe para Tharfis. E que íuc-
cedeoajonas nefta viagem, e nefta fugida? que O
lhe fuccedeo foi que indo todos os navios com vento
a poppa , e mar bonança , fó contra o de Jonas fe le-
vantou humaternpeftade , tao terrível, que naõ bailan-
do amainar as velas, e calar os maílros , naõ bailan-
do alijar ao mar a carga , naõ bailando tudo ornais,
que fabe, e pôde a arte em femelhantes trabalhos , dei-
xando já o leme , e o navio á mercê drv^.rnares , e
dos ventos , e deíconfiando até doíocorro dòCeop
Piloto, e marinheiros, que ^raõ Gentios , defceraõ
ao porâõ, aonde vinha Jonas, a pedir-lhe que fizef-
íe Oraçaô ao feu Deos , pois os (eus Deofes naó
lhes valiaõ tal era a tempeílade , tal o perigo , tal a
:

defefperaçaó de todos .... Subido Jonas ao convêz


!

do navio , reconheceo que era elle a caufa da tem-


peílade , e para que os mais fe falvaífem pedio que
o lançaíTem ao mar. . Fizeraó-no aífim por ultimo
. .

remédio os marinheiros ; vai Jonas ao mar, traga-o


huma baléa , mergulha para o fundo o monílro, e
defapparecem ambos. Paílados três dias apparece
. . .

ao romper da alva diante do porto de Ninive huma


galé , de forma nunca viíla , á vela , e íó com dous
remos. A
vela era a nuvem de agoa , que refpirava
a balça ,
:

OU ARTE DE RHETORICA. 79

a balêa , e humas vezes parece que fubia , outras ,

que amainava: os remos eraõ as duas grandes bar-


batanas , com que batendo a compaflò , hia vogando.
Abica á praia o defconhecido baixel , levanta, aberto
pelo meio o caítello da proa , que entaô fe conhe-
ceo que era boca ; eftende a lingua , como prancha
íòbre a areia, e fahio de dentro vivo o íepultado
Jonas. s3
Eis-aqui como fepóde fazer a narração, naõ fó
perfpicua , e provável, mas fummamente exquiflta , e
eloquente ; mas ainda refta de faber como fe fará breve,
e fuave.
§.

PAra a
bufcar
narração
fer breve , fe lhe naõ deve ir
hum
principio remoto , ou inconnexo. O
Padre Colónia adverte que eíle principio naô há de
fer x^abovo^ , e acere ícenta vque Horácio zombou
de hum certo Poeta naquelle verío

(gui gemino bellum Trojanum orãitur ab ovo*

Mas foíFrerá a memoria deite Author , que fe lhe


diga haver-fe defeuidado em hum lugar tao íabido da
Arte Poética.
Horácio nefte verfo naô zomba de algum Poe-
ta , antes louva o Poeta Homero , porque naõ foi buf-
car o principio da guerra Troiana no par de ovos de
Leda , eftuprada por Júpiter. De hum dos ovos , fe-
gundo a fabula , na fceo Helena , e Clytemneftra; do
outro, Caftor, e Pollux ; e iílo quer dizer tzabovo
gemino, s Demais , que o verío , ai legado pelo dito
Padre , naô he o de Horácio ; porque eíle principia :

Nec gemino bellum , e naõ Qtii gemino bellum O re-


: :

lativo qui podia affirmar quTHoinero , ou outro Poe-


ta
8o THEATRO DA ELOQUÊNCIA,
ta principiaífe a narroçaõ por eítes dous ovos
; e o nec
he negativo de que o fizeíle.
elle
De quem poderia zombar Horácio era de Anti-
niaco , que para tratar da redução de Diomedes , prin-
cipiou por huma origem taõ diítante , como a da mor-
te de Meleagro , e por iífo dillè o mefmo Horácio
no verfo antecedente :

Nec reditam Diomedis ab interitu Meleagri.

Digo pois que a narração para íer breve , deve


tomar o principio da origem mais conhecida, e da
menos embaraçada , e que nao feja nem remota , nem
ambígua , nem impertinente Devem-fe também nel-
:

la omittir algumas circunftnncias fuperfluas ; pois pa-


ra dizer que nos embarcámos naô he neceílario de-
,

clarar que chegámos ao porto, que ajuílámos o fre-


te, que íe levarão as ancoras , que íe deferirão as vé*
las , que cortámos as ondas que deixámos a praia :
,

falvo fe neílas circunftancias íuccedell> algnrpa couía


notável. *
Para moftrar Ovidio que eftava ja no mar largo,
foi baftante o dizer ISlihil eft nift pontus ,
: ater. &
A brevidade da narração tem o perigo de po«
der ficar efcura. Por efta caufa nos adverte Quintilia-
no , que mó imitemos as de Saluftio , e eu diílera que
nem as de Cornei io Tácito* A
eíle género de brevu
dade naó dá o mefmoRhetorico o nome de narração ',

mas de confufaó. Aflim o entendeo de íi mefmo o ci«


tado Horácio :

brevis effe laboro ,


Objcurus fio

A narração mais brevç , e mais perfpicua , e ele-


gante
,

OU ARTE DE RHETORICA. fr|

gante he a daquelle dyílhico, de que fazem author o


demónio,
O aflumpto he efte matou hum carneiro a hum
:

menino , degolou a Mai defte o carneiro: o mefmo


por eira cauía lhe fez o marido ; e por efte delido
o mandou enforcar a juftiça dyíHchoheofeguinte: : O
Fervex cumpuero ,
puerunus Jponfa , marito
,
Impete , cultelo , fune , dolore perit.

Porém brevidades naô fervem para a Ora-


eftas
tória , porque
eloquência naõ fe pode reduzir a fe*
a
melhantes apertos Diremos que a narração he £r*w
:

quando naó ieja impertinente , nem lhe falte também


o que lhe for neceflario , para a explicação, e intei-
reza dos fucceííòs.
§.

A Narração 'para fcrjuave fehá de compor das


jrpzçsj g dos termos próprios
collopftndoos deíbrte, que naõ fiquem
e harmónicos,
defunidos , ou
encontrados , e fe devem eleger os vocábulos
mais
fonoros, cultos, e conhecidos. Porém defra
ordem
e defta efcolha trataremos particularmente
quando çhe'
garmos ao Período.
Tenho fallado da Narraç ao em género, que fe
divide em três efpecies Narração Oratória : Nar*
:

ração hifíorica Narração poética. E ainda


:
que íó
me pertence a primeira para eíia melhor fe
, conhe-
cer , direi
alguma coufa das outras.
O Orador , e oHiftoriador devem obfervar a or-
dem dos tempos, o Poeta naõ fe obriga
a efta per-
fpicmdade. He do Orador feguir
a verifemelhança,
do Hiitonador a verdade do Poeta
narração do Orador deve
, o fingimento : A
fer adornada , a doHifto-
£ riador
8z THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

riador íingela , a do Poeta polida , e engenhofa.


Pertende^ Quintiliano que o melhor exemplo pa-
ra a narração Oratória o de Cicero na OraçaÓ
feja
proMilone, que principia tnMilo atitem cum in Se*
natufuiflet. 25 Quer o Padre Colónia que lhe naõ fi.
que inferior a do terceiro livro de Officiis , que co-
meça ts C. Canius , eques Romanas, sa
Porém tendo nós exemplos nos noílòs Oradores,
efcufamos de ir bufcá los aos eílrangeiros eu darei:

hum do Padre Vieira no Sermão XII. do feu Xavier


acordado
t: Defendia no Reino de Buahiem huma compa-
nhia defoldados Hefpanhoes huma pequena Fortale-
za, cujos muros, ou trincheiras eraó de madeira, e
os tédios das cafas , cobertos de palha e os Mouros,
•,

que a vieraó íitiar , naó fó muitos em numero , mas


fornecidos de artilheria , bombas e todos os petre-
,

chos de guerra , e guiados por hum rebelde domefti-


co , que , fugido da meíma Fortaleza , fe paíTàra a el-
les. Succedeo pois, que paílados os grin^jrQs, com-
bates , em que matarão o Alferez , e ienrao mortal-
mente o Capitão , houve de fupprir o poífo de am-
bos o Ajudante. Eíte , e os mais , reconhecendo o pe-
rigo na defigualdade das forças refolveraõ encom-
,

mendar a defenfa a huma imagem de S. Francifco Xa-


vier. Puzeraó-lhe na maõ a bandeira, pediraõ-lhe as
ordens , que o Ajudante diílribuia em feu nome , e
nada fe obrava , íèm o mudo confentimento do novo
Capitão , o qual tanto que tomou o governo das ar-
mas , como fe mandara tocar caixa aos milagres , co-
meçarão a apparecer na campanha huns apôs outros,
e a guerra a mudar de íemblante. A bandeira , por mais
que aílòpraílem diverfos ventos íempre eííeve direi-
,

ta contra o inimigo : as balas de tal forte íe defvia-


vaõ do ponto , a que eraõ tiradas , que cm nenhum
folda-
OU ARTE DE RHETORICA. Sj
foldado tocarão : as fettas de fogo , que choviaó fo-
bre os telhados , aili fe confumiaõ fem prenderem em
Jiuma palha Tendo fabricado dons Caftellos para que
:

Jevados da corrente abrazaílem a Fortaleza , humaiv


deo antes de chegar , e o outro voltou atraz , con-
tra a mefma corrente : e pofto que com a artilheria ti-
ve/Tem derrubado duas cortinas , ehum baluarte, foi
tal o terror dos Mouros que fenaõ atreverão ao ak
falto. E finalmente defenganados , e raivofos , mais
fugindo, que retirando íe , puzeraó fogo aos feus alo-
jamentos , que ferviraõ de luminárias a taõ grande
.viótoria. s3
Para melhor fe conhecer a diíferença , que pode
haver nas varraçoens , eu darei hum exemplo , mo-
ílrando o modo, com que dous grandes Oradores re*
ferem o mefmo fueceflo , para que vendo-fe a mode-
ração de hum , e a pompa do outro , fe perceba mais
claramente o caminho do acerto. Na Oração deSan*
ta Ifabei diz aíTim o famofo Hortenfio Félix Paravi*
cino.
^=~He célebre na antiguidade a deftreza de Alcon.
X^âílim fe chamava hum grande frecheiro daquelles
tempos) Ficou adormecido no campo hum feu filho 9
ecomo coftuma ler doce a relva, bem que enganoía
cilada das ferpentes , huma , que acreditava entre outras
aquella verde traição , chegou ao menino , e abra-
jçando-o enganofammte, com hum , e outro orbe 9
com huma e outra volta , achou defeanfo na íua af-
,

flicçaõ , cem a morte , que ao menino prevenia : Veio


a bufeá lo o Pai; pafmou á primeira viíla , e neutral
entre o ardor, e o gelo, entre o temor damortedo
filho , e o defejo de livrá-lo, ficou perplexo; mas
de quanta liíonja lhe íervio o fuílo Toma o arco ,
!

ajufta a íetta , vibra a corda


,
peem o ponto , fahem
as pennas do arco rompendo com tanto íilençioj como
F % velo?
$4 TtfEATRO DA ELOQUÊNCIA,
velocidade os ares trafpafla a cobra com tal atten-
:

çaõ , que para que obedecefle tanto ao amor , como


ádeftreza, medio a diílancia , que havia do eftrondo
á oftenfa, e nas entranhas da ferpente, abraçada com
o menino, logrando o tiro, tirou á ferpente a vida,
e o menino , nem na pelle ficou offendido. ^
Eis-aqui agora como propõem o mefmo cafoo
noílo Vieira.
tí Foi á caça hum famofo atirador da Thef-
falia, e deixou hum filho pequeno ao pé de huma
arvore , em quanto íe metteo peias brenhas quando :

tornou vio que eftava enrofeada huma ferp: nte no


menino: e que confelhò tomaria oPJ em hum caio
taó perigoio ? Se atirava í ferpente, arrifcava-le a
matar o filho, fe lhe naõ atirava mordia a ferpente
o menino , e matava o a refoiuçaó foi , que emb^beo
:

huma fettanoarco e medio a corda com tanta cer-


,

teza , e peíou o impulfo com tanta igualdade , que


matando a ferpente , naô matou o menino» hz
Para fe reconhecer a narração biíUrí&i^z poda
ver no primeiro livro de Tito Livio o roubo d&* Sa-«
binas; no fegundo a batalha dos Horacios, e Cunacios-,
no terceiro' a morte de Lucrécia , a dos filhos dejunio
Bruto , e a expulfaõ dos Tarquinios \ no quarto o atre«
vimento de Scevola contra Porfena ; no quinto os
vários fucceíTos de Coriolano ; no fexto a b. talha de
Cannas ; no fettimo o concuríò de Annibal com Sei*
piaô diante de Antiocho. No oitavo a jornada do mel-
mo Annibal á Itália por Hefpanha , pelos Pyreneos,
pelas Gallias , pelos Alpes, epelo Apennino.
Em Saluftio a batalha contr» Catilina; em Q.
Curcio o cerco de Tyro o fucceilb de Abdalonymo ,
,

a morte de Alexandre a conílernaçaõ do exercito


,

a anguftia , e morte de Sifygambis.


Entre os modernos he excellente a narração à&
Henri-
,,
;

OU ARTE DE RHETORICA. 85

Henrique Catherino íobre os motivos das guerras Civis


de França , e a de António de Solis acerca do eftado
em que eftava Hefpanha antes da primeira vinda de
Carlos V.
Famiano Eftrada tem admiráveis narraçoens na
fua Guerra Bélgica darei huma delias ? para exem-
:

plo da narração hiftorica e fera a do inaudito eítrago,


j

que fizeraó as minas aquáticas dejambelo nofitiode


Anvers :

ti Sendo chegada a hora, que eftava medida,


fubitamente arrebentou aquelle fero navio, com taõ
horrorofo eftrondo , que parecia que o Ceo fe arruina-
va , e fe defencaixava a maquina do Univcrfo ; pois
defpedindo , entre relâmpagos , e trovoens , huma tem-
peftade de pedras , de cadêas , e de balas , caufou
hum deftroço taõ incrível , que eftava fó a verdade
no íucceilb.
OCaílello , aonde carregou a fabrica infernal ,
e a empalizada da ponte para a parte da Foltaleza
de Sgata Maria a mefma ponte das náos , pegada
.,

ao Qutellò , os foldados, os marinheiros , os cabos ,


a artilheria , as armas , preparadas em todos os lu-
gares, foi tudo arrebatado, e efpalhado , com tanta
violência , pelos ares , como coftuma fazer o vento
com as folhas das arvores. Abrio-fe prodigiofamente
o Elcalda , e moftrou as fuás mais profundas areias
logo revolvendo-fe fobre as margens , fubio até fe
igualar com os diques , e fobrepujou a fortificação
de Santa Maria: Eítenderaõ fe as torças , eoefpan-
to do terremoto a nove mil paíTos de diftancia im- :

pellio a mil paííos , álòm do rio , varias pedras fe-


pulchraes de extraordinária grandeza , e fe viraó cra-
vadas em algumas partes quatro palmos dentro da ter-
ra. Porém nenhuma ruina foi mais laftimofa ,
quea
dos homens : A huns abrazou fubitaneamente a força
F 3
do
80 THEATRO DA ELOQUÊNCIA
do incêndio , e com furiofo encontro os fez chocar
huns com outros , ou os fez voar mifturados com
as pedras , e com os troncos , deixando os logo ca-
hir , ou delpedaçados na terra, ou fubmergidos nas
agoas ; A outros , fó o vapor peftilente os acabou
fern outra ferida Naõ foraõ poucos os que burrifa-
:

dos , com as accezas efcumas do foberbo rio , fica-


rão por largo tempo atormentados. A muitos . que
vieraõ do ar á terra, os opprimio a companhia dos
penhafcos , e houve algum , a quem a meíma penha
lhe deo a morte, e a fepultura :t=s
Quanto a mim , efta he das melhores narraçoens ,
que eu tenho lido , por iílo tive algum goíto de
a pôr nefte lugar ; e ainda a achará mais elegante
quem a quizer ler no original.
As narraçoens poéticas le devem bufcar na Enei-
da , e as mais diftintas faõ no íegundo livro a mor-
te de Laocoonte , a de Priamo , e a da deftruiçaó de
Tróia : no terceiro he admirável a das Harpias ; e
no nono a de Nifo , e Eurialo. <
^ ,

Ovidio nos Metamorphofis tem humá exceilente


narração na ceia de Philemon , e de Baucis* Horá-
cio naô eftá menos digno na Satyra primeira , com o
avarento Umidio. No noffb Camoens também há mui-
tas , e boas , e faó as principaes as do Cabo de Boa
Efperança e as dos doze de Inglaterra.
,

Eu quizera produzi-las , fe naõ foraõ taõ exten*


ias , e fe naõ anaaraô as Lufiadas nas maõs de todas
as peflbas eruditas. PaíTo agora com a Confirmação
para o

CAPI-
OU ARTE DE RHETORICA. g7

CAPITULO III.

O Confirmar he o mefmo que corroborar as cau*


ias , com novas razoens , com novas provas , e
argumentos. Há Confirmação propriamente affim cha-
mada , que he quando fe eítabelece a matéria , e Con-
firmação , que íe chama Confutação Yque he quan-
do fe impugnaõ , e fe desfazem as razoens contrarias.
A Confirmação ^ propriamente dita , fe faz , com
extenfaó dos argumentos , a que podemos dar o no-
me de argumentação , fe tanto nos permittem os Cri-
ticos.
Os argumentos da Confirmação bufcaõ-fe nos lu-
gares intriníecos , e extrinfecos de queja temos fal-
lado. Querem alguns que os argumentos mais fortes
fe dividaó entre o principio , e o fim da Oração , guar-
dando jps fracos para o meio, e imitando o bom Ge-
nera), que uêíía forte he que compõem o exercito.
Ás efpecies do argumento faõ quatro Syllogif- :

mo , Entbymema , Inauçao , e Exemplo Há quem ac- :

creícenta outras quatro; que fàô o Dilema } oCro-


çodillo , o Sorites , o Epicherema.
O Syllogifmo coníta de três propoíiçoens diftin-
tas , que fe communicaõ entre fi por tal modo , que
concedida a primeira , que fe chama zz maior , e ^
a fegunda , que fe chama ti menor zz , precifamente
fe há de conceder a terceira que fe chama zí conje*
,
quencia. :=s
Se eu houveíTe de tratar radicalmente do Syllo-
gifmo , me dilataria muito ;
porque há Syllogijmos
communs , expofitorios , abfolutos , modaes , fimplez,

denionftrativcs, tópicos opinativos pfeudographos,


} ^
F 4 condi*
88 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

condicionaes , disjuntivos , e copulativos : e como


iíto feria fora do meu intento , porque efta matéria
pertence á Lógica , falia rei fó do Syllogifmo Rbeto*
rico.
Efte coníla de cinco partes, atadas também en-
tre fi , com certa ordem , e proporção i
e por iffo lhe
chamaõ alguns Syllogifmo perfeito.
A parte he a propofíçaó , a fegun-
fua primeira
da prova , a terceira a matéria propofta , e prin-
a fua
cipal , em que o argumento fe funda , e fe chama
tiaffumptozi , a quarta a prova do mefmo affum-
pto , a quinta a conclufaó.
OPadre Colónia nos offerece hum exemplo de
Cícero taó próprio deite lugar , que eícufamos de ir
bufcar outro mais longe.
Oque Cicero quer provar he que o Mundo fe
governa pela Providencia divina : íe intentalle eftabe-
lecer , como Lógico , eíla verdade , diria :
és Tudo aquillo que he bem adminiítrado , he ad-
miniftrado pela divina Providencia : o Mundo he bem
adminiítrado , logo he adminiítrado pêra FrÕfWçncia
divina. :ra

Porém , como Orador , expôs o Syllogifmo por


efte modo

Propofiçaó fazem aquellas coufas , que


Melhor fe
fe obraõ com confelho , que as que >
fem elle , íe executaó :
Prova da pro- Aquella cafa , que fe governa pela
pofiçaõ. razaó , eítá mais bem inítruida , e appa-
relhada de todas as coufas , que a que
fe adminiítra defatinadamente , e íèm
prudência : O
exercito , que tem hum
Vedor fabio , e hum General intelligen-
te }
rege fe em todas as partes ,
com
maior
: :

OU ARTE DE RHETORICA; 89

maior commodidade , que o que he re-


gido pela imprudência, e temeridade de
quem o manda O meímo fnccede no
:

navio , porque efte acaba felizmente a


fua derrota , fendo governado por hum
bom Piloto
jíffumpto. Nada há mais em todas
excellente as
couías , que o governo do Mundo :

Prova do Pois o nafcimento , e a morte dos Sig-


cffiimpto. nos guardaó huma certa ordem defini-
da ; e as annuaes commutaçoens , fem
alguma neceílidade , ou violência , fe
fazem fempre da mefma forte , e faó di-
rigidas ao proveito de todas as coufas.
ConcJujao. Signaes faõ eftes , e naõ faõ peque-
nos , de que a natureza do Mundo he
governada por hum certo , e íúperior
confelho ;

Algumas vezes mudaõ os Oradores a ordem das


,
(

provas deixando fem cila , a propofiçao , ou o af*


, ,

fumpto para a porem na conclujaõ. Temos o exem-


,

plo no Padre Vieira :

Propofiçao Primeiramente parece que he mais


amar a quem me aborrece^
difficultoíò
do que aborrecer a quem me ama :

Prova da O aggravo , com que me oífendeo


propofiçao. inimigo , he dor no coração próprio :
a conrefpondencia , com que falto aO
amigo he dor no coração alheio
,

Jíffumpto No remédio das dores fempre fe aco-


de primeiro á que mais laílíma , e fem-
pre he mais fenfitiva a que eltá mais
perto :

Conclu-
90 THE ATRO DA ELOQUÊNCIA,

.Cofjrfufao. Logo he mais natural no homem o


ódio aos inimigos 5 que o amor aos ami*
gos :

Provada Porque no ódio ao inimigo acode a


conclufaõ. dor própria _, com a vingança no amor
:

ao amigo acode-fe á dor alheia , com a


conreípondcncia.

Mas nem fempre terá cinco partes o Syllogifmo


Rbetcrico , também pode fer de quatro , íe alguma
delias naó necefiitar de prova He o exemplo do nief-
:

mo Vieira , fazendo hum novo argumento pela parte


contraria.

Propofiçao Por outra parte parece , que he mais


quem nos ama ,
difficultofo aborrecer a
que amar quem nos aborrece
a ;

Prova da Amar a quem me aborrece he fer


propofiçaõ. humano com quem o nao h^rõfyigo •
aborrecer a quem me amVfteTer \;ruel,
com quem mo nao merece
Afíumpto O fer humano he fer homem o fer :

cruel he fer fera


Conclufaõ. Logoaborrecer a quem me ama tar^
to mais difficultofo he , quanto mais re-
pugnante á Natureza,

E pode o Syllogifmo Rbetorico de três par-


íer
tes , fe nenhuma delIas^neceíTitar de prova; e ficará
fempre differente do Syllogifmo Logtco ; tanto porque
os Lógicos nos feus Syllogiímos attendem í certeza
da opinião, e os Rbetoricos á probabilidade, como
porque aquelles nao podem alterar-lhe a forma , e eftes
podem inverter-la, e amplificá-la : e por iílb dizia Zeno,
que
: : ,

OU ARTE DE RHETORICA. 91

que a Diakõiica era , como a maõ fechada , ea Rbe*


torica como a maõ
j
aberta.
Naó fe prohibe poièm que os Oradores fe va-
lhaõ em alguma occafiaó do Syllogifmo Logko ermo ,

he muito que o aproveitem, quando os Poetas o naó


deíprezaó; como fe vê na Satyra quinta de Ferfio:

An quifquam eft alius líber nifi ducere vitam


,

Ctii Itcet ut vult ? licet ut volo vivere , nonfim


Líber ior Bruto} *

Como fe diíTèíre t= Ninguém he mais livre que


aquelle , a quem he o viver
licito como quizer a , :

mim me hé licito o viver como quero r logo eu fou


,

mais livre que Bruto. s=s

O Entbymema he hum Syllogifmo imperfeito , pois


(óconfta de duas partes
,
que fe chamaõ zzan*
tecedtnte e confequente s aífim como e Todas as ar-
,
,

tes devem fer appetecidas ? logo deve íer appeteci-


da a Rhetorica. =s
O Entbymema mais familiar dos Oradores he o
que le faz à contrariishe o exemplo : eíle
ss Se a clemência te naõ chega a fazer amável
mal te pode fazer amável a crueldade, ss
E fe o Entbymema pergunta , ainda ficará mais
rehemente , aífim como efte
1= Se naó fofte fiel a Deos , como o hás de fer
aos homens ? :=;
He muito elegante o <te Alciato a huma ando*
rinha, que fez ofeu ninho em huma eftatua de Me*
dêa:

Dirá
91 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

Dirá par eus Mede a fuos fivviffima natos


Perdit Et fperas parcat ut ilia
: tuis ?

Por motivos devem fer mais acceitos os Enthy-


três
memas que os Syllogifmos , aos Oradores. Primei-
,

ro, porque com elles podem oceultar aquelle artifi-


cio , que talvez , conhecendo-fe deítrua mais , que
,

favoreça acaufa; e também na ice daqui que quando


o Orador ufa do Syllogijmo , lhe varia , ou lhe traní-
põem algumas vezes as luas partes.
Segundo , porque como o Syllogifmo he mais cla-
ro , que oEntbymema , naõ entenda o Auditório que
o Orador fia pouco da Tua comprehenfaó , declaran-
do-lhe demafiadamente o argumento ; A's vezes he utii
deixar a explicação ao difeurfo dos ouvintes. Tercei-
ro, porque o Entbymema atormenta mais aoadver-
íãrio , que o Syllogifmo ; pois o fere , e o penetra com
maior vehemencia ; e eíla he a razaõ , porque le cha-
ma o dardo , ou a lança do Orador. Deita íbrte he
que feria Cicero a M. António Sirvaô de exemplo
:

eítas breves palavras , que tem força de Enthymçma\


zz António quer a paz? Deponha as armas. =;
Como fe diíleíle es António naó depõem as
:

armas ^ logo naõ quer a paz» =3

§•

A
íè tira
Indução he hum argumento
, e diítintamente
coufas difFercntes
,
que de muitas
conciliadas,
provável. Com a Indução con-
huma Conclufao
clue Séneca que no homem he digna ló de louvor a
virtude
?£ Naó fe diz que he boa a náo , que eíU pin-
tada com cores fubidas , nem a que tem o efporaó
de ouro, ou de prata , mas aquella, que helegura ,

e velei-
: :

OU ARTE DE RHETORICA. 9j
e veleira : Naó
dirás que he boa a efpada , que tem
otalabarte dourado, mas a que tern o gume mais aci-
calado , e que he de melhor têmpera e corte naó
5
:

ie buíca a vaia mais íormoía , mas a mais direita :

Logo também no homem nada importa o que he tran-


Gtoriô. nem o que he applaudido por muitos, mas íó
o que he verdadeiramente bom. =5
A indução naõ fo he eftimada dos Orsdcres , mas
dos Poetas Com ella argumentava Ovidio a Augufto
:

na única Elegia do fegundo livro dos Tri/ies , fazendo


huma brgi enumeração dos que compuzeraó livros
amorolòs , para concluir que era indigno de íer cafti-
godo pela lua Arte de amar.
Com a meíma indução provava Eneas , que podia
defcer vivo ao Inferno porque também Orpheo The-
, ,

ieo , e Hercules lá tinhaõ deícido. Bem íe pode cha-


mar indução a efte argumento do Authordo Tòeatro
no feu Peregrino

Nem Tbefeo , nem Alcides contendendo ,


Com o bruto
Cbaronte e o fero Minos
,

Nem defalando as portas de diamante ,


y
Ou ao fet óz Cerbéro reftjlindo :

Nem domando no cárcere fulphureo


As Gorgonas , as Hydras os Chelydros ,

Mais impávidos foraõ mais valentes


,
,
Do que eu fui , com Mavorte competindo
£)tse excedendo ao barqueiro na carranca
Ao trifauce mohjjo no alarido '

Ao Juiz inexorável na inclewerièia ,

& vo veneno aos mcnjlros


do Cocyto:

Moveu-
94 THEATRO DA ELOQUÊNCIA
Movendo contra mim o pezo junto
De tanto horror em partes dividido ,
, (j

Batalhando com Marte batalhava


,

Com toda a indignação do lago EJlygio.

O Exemplo he huma indução imperfeita


a indução argumenta com
porque
o exem~
muitas coufas
pio fó com huma. Com elle periuatfia Cicero , que
;

Milon naò devia fer condenado pela morte de Clo-


dio trazendo o fucceíTo de hum dos Horacios depois
,

de matar a Irmaã.
írNegaõ fer digno de vida , e de gozar a luz
do dia aquelle queconfeíTa o homicidio. Em que Ci«
dade diíputaõ efta matéria eftes homens infenfatos ?
Naó menos , que naquella Cidade , que , naõ eftando
ainda livre, vio o primeiro crime capital, executado
pelo fortiffimo Varaó M. Horácio, que fem embar-
go de confeíTar que com as íuas propriaç piaôs ma-
tara fua Irmaã, foi abfoluto por todo o cóneuríò do
Povo Romano. 52
Da me Ima forte provava Juno na Eneida , que lhe
era licito períeguir os Troianos; pois que o fora a
Falias períeguir os Gregos : O
Padre Vieira nos dá
também o exemplo do exemplo no feu Prolegomeno
á Hiíloria do Futuro :
í=s Affim que bem pódc hum homem , menor que

todos , defcobrir, e alcançar o que os grandes , eemi-


nentiílimos naõ defcobriraõ 5 porque eíta ventura naó
he privilegio dos entendimentos , fenao prerogativa
dos tempos.' De fde que Tubal principiou a povoar
Hefpanha , que foi no an.no da creaçaõ do Mundo
de 1800 até o de Chrifto de 1428 , em que fe pal-
iarão mais de 3 60c annos . era o termo da navegação
do
,j

OU ARTE DE RHETORICA. 9?

do mar Oceano, junto fomente á Cofta de Africa


o Cabo chamado de :rNaõ;=; fendo os mares , que de-
pois delie fe feguiaõ taõ temerofos aos navegantes,
que era provérbio entre elles : ( como eícreve^o noílo
joaó de Barros ) Quem paflar o Cabo de Naó , ou ^ ^
tornará , ounaô. Apparecia ao largo defte , o Cabo
Bojador , pelo muito que fe mettia dentro do mar
cuja paíTagem , tanto por fama, e horror commurn ,
como por defengano de muitas experiências , fe re-
putava entre todos por empreza taó arrifcada , eim-
poííivel á induítria e poder humano, como fepóde
,

ver no quarto capitulo da primeira Década ; mas quem


ler o capitulo feguinte verá também , como hum ho-
mem Fortuguez naó de muito nome, chamado Pul-
lianes , foi o primeiío, quediípondo-fe oufadamente
ao rompimento de huma tamanha aventura , venceo
felizmente o Cabo em huma barca , quebrou aquelle
antiquiílimo encantamento , e moftrou , com grande
defengano , a Hefpanha , ao Mundo , e ao meímo O-
ceano , „que tarribem o NaÕ navegado era navegável.
&c.:=i
Quando o exemplo combina
, e fe applicaõ to-
fe
das as fuás circunftancias
, mais formoíò, &per«
fica
fuafivo. Alíim o pompofo Hortenfio , depois de tra-
zer o exempla daquelle grande atirador de TheíTalia,
que ja fica referido , o applica defte modo :

irDormindo eftava Joaõ na ignorância das en-


tranhas de fua Mãi Colhido o tinha a primeira fer-
:

pente com taõ apertadas voltas no peito que bebia


, ,
a alma o veneno achaque da primeira herva doPa-
;

raizo. Defde a fua caía lhe dá o animo a Maria :


era Mãi de Deos , e noíla vem ao
lugar do perigo,
:

reconhece em Joaó a ierpente , vibra o amor , nãô


os braços de traidora , as entranhas fim de Mãi: arroja
a fetta , que efcolheo o Pai por tal , como a vozes
o diz.
90 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

o diz I faias : Pofuit me quafi fagittam eleâíamx Pe-


netrou as entranhas delíabel, atraveflou aferpente,
íó o eftrondo íentiojoaõ, e no beneficio de ver-íe
livre, faltou goílofo Exultavit infans in gáudio tn
:

útero me o &c=i
Se da applic2çaó fe tira outro conceito , que fe
naó efpera , ainda fica o exemplo mais engenhofo , e
vehemente: Aífim o Padre Vieira, com eíle mefmo
luccelTo.
p Aquella ferpente do Paraizo enrofeou-fe em
Adam , em Chriíto : em Adam , porque
e enrofeou-fe
foi o suthor da culpa em Chrifto , porque tomou
:

a culpa de Adam fobre íi. Quiz o Eterno Padre matar


a ferpente; mas como houve ? Faz hum tiro á fer-
fe
pente, que eftava enrofeada no homem , mata afer-
pente , e naõ toca no homem faz outro tiro á fer-
:

pente, que eftava enroícada no Pilho, mata a ferpen-


te j e pada de parte a parte o Filho Pois ao Filho
:

mata , e ao homem naó toca ? Sim ao Filho atirou


:

com taó pouco reparo , como fe naõ fofle Filho ; eao


homem com tanto tento, como fe iòflc Pai. à
Pertencem a eíte lugar os que propriamente fe
chamaó Símiles , que ainda que difterem pouco do
exemplo , no modo de os propor he em que confifte
a diveríidade : O
mefmo Vieira nosenfina eíle modo
na terceira Oraçaõ do feu Xavier acordado.
tà Aconteceo vos ja , depois de hum fonho pe-
zado , funeílo, etemerofa, em que vos imagináveis,*
ou affbgado no mar , ou ardendo no incêndio , ou lan-
çado pelos ares de entre as pontas do touro , acordar
fubitamente , e ficar no mefmo momento defearrega-
do do pezo , alleviado da trifteza , fegurodo temor,
e livre do íon^ado perigo ? Tal ficou Malaca com as
ultimas palavras do Sermão de Xavier , refufeitando,
como da morte ávida, de toda aquella confuzaô de
temo
: :

OU ARTE DE RHETORICA. 97
temores , de ameaças e defefperaçoens , em que pou«
,

co antes fe confiderava perdida, s


Eíies Símiles íaô muito frequentes nos Poetas
Baítará trazermos dous hum do Latino, outro do Lu*
:

fitano O de Virgílio he efte na Écloga quinta:


:

Tale tuum carmen nobis divine Poeta , ,

Quale fopor feffts in granune quale per aflum ,

Dulcis aqu<e fali ente jittm rejlwguere rivo.

E efte o de Camoens no Canto primeiro das Lu-


fiadas :

Qual Aufiro fero , ou Boreas na efpeffura


De filveftre arvoredo abnflácida ,
Rompendo os ramos vai da maia efcura^
Com ímpeto , e braveza dejmedida :

Brama toda a m ntanba , ofvm murmura ,


Rompem -fe as folhas, , ferve a ferra erguida

j
Tal andada o tumulto levantado ,
Entre os Deofes , no Olympo confagrado.

§.

O Dilema he hum argumento, que confia de duas


partes contrarias, com as quaes fe colhe , e con-
vence precisamente o adverfario. Efta he a razaõ , por-
que lhe chaimôSy/fogifmo bicorne , pois tem aspon*
tas difpoltas por tal modo , que quem foge de huma,
fempre cahe na outra Eíla prerogativa o faz muito
:

eftimavel aos Oradores, Com hum Dilema perfuadia


Cicero aos Romanos, que naô rnandaflem Legados a
M. António
sSe o vaô rogar há de defprezá-los : fe o vaõ
mandar, naõ há de attendê-los. ~
G Contra
98 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

Contra o mefmo inimigo difparou o mefmo Cí-


cero outra fetta femelhante na Philippica fegunda 2
cc Os que matarão a Ceíàr , ou íaõ libertadores
da Pátria , cu homicidas : Se libertadores , loucamen-
te me argues de que eu feja feu parcial: Se parrici-
das , criminofamente os nomeias , com títulos hono-
ríficos ; Affim que , ou fem caufa me criminas , ou te
criminas a ti meímo , quando honras tanto os homi:
cidas de Ceíàr. çe
Com hum Dilema pertenderaõ os Farifeos con-
vencer a Chriíto , quando lhe aprefentaraõ a adulte-
ra : Ut fi diceret ( adverte Santo Agoftinho ) non la-
rr
•piâetur adultera , injuftus convinceretur : // diceret
lapidetur , manfueúis non videretur. :=!

Se diz que naó feja apedrejada ( traduz , e am-


* =3
plifica o Padre Vieira ) he tnmfgreílor da Lei Te diz :

( o que naó dirá ) que a apedrejem , perde a opinião


de mifericordiofo e a eftimaçaó do Povo e fobre
, :

tudo contradizer-fe a fi mefmo e as Efcripturas do ,

Meflias , que interpreta de fi Logo , t ou diga que fe


:

execute a Lei , ou que naó fe execute, ou que feja


apedrejada a delinquente , ou que o naó feja, fem-
pre o temos colhido , porque naó pode efcapar de hum
laço, fem cahir no outro. ;d
Póde-fe voltar a força do Dilema contra a pef-
foa , que o produz , de que Ariíloteles nos dá o ex-
emplo no livro íegundo Rhetor,
^=Huma certa Sacerdotiza ( diz oPhilofopho)
perfuadia a hum feu filho , quenao foíle Orador , por-
que fe períuadires as coufas injuftas incitarás a ira ,

dos Deofes íeasjuílas, a dos homens Antes (lhe


;

refpondeo o filho) devo fer Orpdor ; porque feper-


fuadir as coufas injurias, agradarei aos homens, fe as
jullas, aos Deofes. h
OPhilofopho Biantes aconfelhando a hum certo
íiiance*
:

OU ARTE DE RHETORICA. 99
mancebo que fenaõ eazafFe , ufou defte dilema : Se a
mulher for feia , fera do teu defagrado : fe formofa,
do agrado dos outros, Antes íe for feia (dizia o man-
cebo) defagradará aos outros ; fe formofa , me agra-
dará a mim*
He muito celebre o dilema de Prcthaqoras, ede
hum Teu difcipulo
: Ajuflou-íe Prothagcras com elle
de lhe enfinar a Rhetonca , com o contrato de lhe
dar huma certa quantia de dinheiro , fe , depois de bem
inftruiao i vencelle o difcipulo a primeira caufa, que
patrocina ffe. Sahindo o difcipulo taó fabio , como a
Meftre , fe negava ao pagamento. Obrigou-o Protha-
goras em Juizo , e levou a caufa ao Areópago e nelle
:

expôs efte dilema :

sp Para qualquer parte


i queascoufas fe tomem

me deves fatisfazer o dinheiro Se eu vencer , por-,


:

que ficas condenado , fe tu venceres porque ven-


,
ces a primeira caufa, que defendes: Antes pelo con-
trario; ( reípondk o difcipulo
) porque fe eu vencer
nada te devo, fe tu me venceres , também te naõ devo
nada , porque perco a primeira caufa que patroci-
,
no. Z3
Também fe pódedeftruir q dilema y fe enfraque-
cermos alguma das fuás partes, ou fe defcobrirmos
algum meio entre as duas propofiçoens. Aílím o fez
aquelle patrão , a quem o fervo dizia no fupplicio
i=:Sefou máo para que te aproveitas das minhas
acçoens, febom para que me caftigas ? Refpondia-lhe
o patrão : Naõ te caítigo porque es bom . fenaõ
,
para que o fejas. :=}

§.

O Crocodilo he
de, ou fe
hum argumento, com qwe íe
embaraça o juizo do contrario. Cha-
G 2 ma-iè
pren-
ioo THEATRO DA ELOQUÊNCIA
ma-fe Crocodilo de hum Apologo ,
que fingirão os
Poetas.
Tinha hum Crocodilo arrebatado a hum menino
para dentro do pedia lhe a Mãi que lhe refti-
rio*:
tuiíle o filho, dizia-lhe a fera que lho reftituiria , fe
ella lhe fallaílè verdade em huma queftaõ , que lhe
queria propor : a queftaõ era íe havia , ou naõ de
reftituir-lhe o filho ? Difle a Mãi que elle lho na6
reftituiria na coníideraçaõ da íua fereza a que o Cro-
:

codilo refpondeo :Gudifleiles que fim, ou que naõ,


taunca to devia reftituir , pois de huma , ou de outra
forte faltavas á verdade Hias contra ella dizendo que
fim, porque eu naõ to queria reftituir, e também di«.
zendo que naõ , porque mentias fe eu tu reftituiíle =í
Aqui pertencem aquellas propofiçoens , que por
íi mefmas fe fazem menrtirofas. TalfoiadaquellePoeta

Cretenfe , quando diífe que todos os Creteníes era&


mentirofos ; pois entrando elle nefte numero , ou dif-
fefle verdade , ou mentira , fempre ficava falfa a propo-
fiçaô,
§.

OSorites he hum argumento de que íetiraacon-


cluíaô por degráos: Aífim provava Themifto-
cles , gracejando com feu filho , que efte era Impe-
rador do Mundo.
s=: Meu filho governa fua Mãi, ella a mim, eu

aos Athenienfes , eftes á Grécia, Grécia á Europa,


Europa ao Univerfo , logo meu filho governa toda
a redondeza ,,s
Da me ima forte inferia hum noílo Portuguez, que
tinha as fuás cafas no melhor fitio do Univerfo :

c= A melhor parte do Mundo he a Europa a


melhor da Europa asHefpanhas, a melhor das Hef-
panhas Portugal , a melhor de Portugal Lisboa a ,

melhor
OU ARTE DE RHETORICA. 101

melhor de Lisboa a ribeira, a melhor da ribeira o fitio


das minhas cafas logo as minhas cafas eftaõ no me-
:

lhor fitio do Mundo, s


Sem embargo do Sorites ter muita parte de ri-
dículo , foi muito familiar aos Eftoicos , principalmen-
te a Zeno , Coripheo deita Seita , e a feu difcipulo
Chryfíppo.
Convém queos Oradores naó íubaõ muitas ve-
zes ou talvez nenhuma , por eftes degráos , ainda que
,

tenhaô o exemplo do Padre Vieira , pois com elles


quiz provar a humildade deChriílo no primeiro Ser-»
maõ do Mandato do quarto Tomo.
trDofer ao naó fer vai infinita diftancia, e fendo
efta diftancia infinita , hoje fe viraô no Cenáculo de
Jerufalem dous degráos, ou dous eftados abaixo do
naó íer: O primeiro em Judas porque eítava mais
,

abaixo do naõ fer, porque lhe fora melhor naõ fer,


que íer: e o fegundo em Chriílo , que eftando Ju-
das mais abaixo do naô fer , elle eftava aos pés de
Judas. Medi agora , começando de Deos , a baixeza >
em que o Filho do meímo Deos Abaixo
eftá poflo :

de Deos, com infinita diftancia eftá todo o creado:


abaixo de todo o creado com diftancia também in-
finita eítá o naõ fer; abaixo do naô ler eftá Judas;
e abaixo de Judas eftá Chrifto.^

OEpicherema he qua íi como hum emhymema aper-


tado
, em que
duas propoíiçoens íe reduzem a
huma fó Sobre efta propofiçaó: Semcauja^vemra-
:

zao accufa o fervo a feu Senhor s


fe pode fundar o
feguinte Epicberema :
t=Naó deve o fervo temerariamente queixar-fe
do feu Senhor: logo o fervo, e o Medico de Deio-
G 3 taxo
lo:, THEATRO DA ELOQUÊNCIA
taro naõ devem queixar-fe delle diante de Cefar. 3
Quem quizer ver mais diffiifamente tratada eíla
matéria leia a Quintiliano no livro quinto das fuás
Infittuiçoens Capitulo X.

Eis aquidaornais
direi
neceíTario ^Confirmação agora
Confutação com ': he que deftrui-
eíta
,

mos os argumentos , as razoens , eas authoridades da


cauía , que patrocinamos. Por fette modos íe pode fa-
zer a Confutação. Primeiro , negando claramente o que
affirma o adverfario. Aifim Cicero pro Quinólio :

es Negamos-teSexto Nevio , que polluiíles os


,

bens de Quin&io , com o Edito do Pretor. =s


Da mefma íorte o Padre Vieira , tendo hum certo
Religiofo , grande feu emulo , efpalhado contra elle
varias calumnias em Caítella , e efcrevendo o mefmo
Padre ao Provincial da Companhia de Andaluzia , lhe
diz entre outras juftifícaçoens :
± Mente fua Paternidade , que naó acho outro
termo mais breve para explicar-me, e defender-me. =í
Segundo , quando fe moítra , com evidencia , que
a affirmaçaõ contraria he incrível , e repugnante : o
mefmo Cicero pro Rofcio Amerino, com os colhi*
mes doaccufado, manifefta que elle naô podia com*
tnetter o parricidio , que lhe imputavaõ : He lugar dif-
fufo , por iíío o naò tranlcrevo.
Terceiro , quando fe naó nega a matéria da ac-
cufaçaó , mas fe deículpa , e fe defende , moftrando
que o fafto fora jufto, e bem ordenado : O mefmo
Orador pro Rabino nao nega a morte de Saturnio
de que o accufava Memmio :

psAccufas a C. Rabirio de que matara a L. Sa«


turnioj eja tem moftrado Rabirio com muitas tefti*
inunhas,
:

OU ARTE DE RHETORICA. 103

munhas ,e também tem nioftrado Q. Hortenfío cc-


piofamente, que falfamente felhe imputa eíle homi-
cídio ; porém íe a mim ío me pertenceílè efta defeza ,
havia de acceitar o crime , havia de reconhecê-lo, havia
deconfeííá lo Oxalá que efta caufa me perroittifle o
:

poder antes dizer que L. Saturnio , inimigo capital


do Povo Romano , fora morto por C. Rabirio ca !

Quarto ,
quando refpondemos aos contrários com
outro argumento, ouqueftaó igual, ou de maior dif-
iculdade. Virgílio na difputa de Alopfo , e de Da-
metas faz dizer a efte Paftor ;

Dic quibus in terris ( & eris mihimagnus Apollo }


Três patent C&lt fpatium non atnpltus ulnas í

E Mopfo refponde com outro novo enigma

Dic quibus in terris infcripti twmiwa Regum


Nafcawtur flores ,
Ò* Phylltaa jolus habeto ?

Deite género he aquella foluçaó que deo o Im-


,

perador Juliano a Delphidio , que accuiava a Nume-


rio na íua prefença , e efte negava os cargos , que
lhe imputavaó :
t:Se o negar bafta ( difle Delphidio) quem ja-
mais fera culpado? E febafta oaccuíar ( refpondeo
o Imperador ) quem jamais fera innocente ? s3
Quinto , quando uíamos da indignação , ou do
defprezo , parecendo-nos os contrários indignes de
fatisfaçaõ , ou de refpofta. Scipiaõ Africano , fendo ac-
eufado pelos feus emulos , depois de íujeitar Cartha-
go, e chamado a Juizo para eflar prezente á aceu-
façao, refpondeo livremente que íelembraíleRoma 9
que naquelle mefmo dia , em que o aceufavaõ , ti-
nha elle vencido Annibal, e triumphado dos Cartha-
G 4 ginen
io 4 THEATRO DA ELOQUÊNCIA
ginenfes dahi attrahindo , com a fua authorida-
:

de , toda a multidão do Povo Romano , e rodeado


dos íeus amigos , diífe para todos , com íemblante
feguro e vi&oriofo :
,

Nefte meímo dia , ó Tribunos da Plebe , nefte


es
nieímo dia , ó Povo Rpmano, pelejei felizmente na
Africa com Annibal , e com todos os Carthaginenfes
e como hoje leja jufto deixarmos pleitos , e aceu-
façoens , irei logo daqui ao Capitólio faudar ao Ópti-
mo Máximo Júpiter , a Juno , a Minerva , e aos ou-
tros Deofes, que prefidem áquella fublime Fortale*
za e a todos agradecerei o darem-me talento , e e£*
,

forço para que nefte meímo dia , e em outras occa*


íioens pudeíle tratar taó egregiamente a Republica.
Aquelles Romanos , a quem melhor eítiver o acornpa-
nhar-me, venhaõ comigo , e roguem ás Divindades,
que lhes concedaõ Imperadores , femelhantes a Sei-
piaó Africano. =s
Com eftas palavras fe envergonharão osemulos,
e fe desfez a aceufaçaô.
Azombaria pode fer outro modo , ainda que
mais arrifeado , para fe enfraquecer o orgulho do ac«
eufador j porém naó deve degenerar , nem em chor-
rice, nem em maledicência. Cicero goftava defta Con-
futação*
Tinha recebido Hortenfio, deVerres, que elle
defendia , huma Efphynge de prata de grande preço ;
Efphynge era hum nome equivoco , que naõ fó figni*
ficava hum monftro , mas hum enigma , ou argumen-
to torcido : Chegou a occafiaõ , em que Hortenfio dif-
fe a Tullio , que naó entendia huma argúcia deíle ge*
nero, que lhe tinha propofto ; e reípondeo Cicero:
S= Eu me admiro, de que naó a entendas, ten-
do a Efphynge em tua cafa. =2
De Fannio, que era calvo, efem fobrancelhas,
diíle
: :

OU ARTE DE RHETORICA. 105

difleo mefmo Orador, queelle nem hum pello tinha


de homem de bem ., .

Triario accuíava a Eícauro de ter conduzido


em
carretas pelas ruas de Roma humas columnas de már-
more :

« Tendes razaõ , ( lhe difle o mefmo Cícero)


porque as que eu fiz conduzir do monte Albano,
vieraó íbbre huma albarda. =3
Até o mefmo Demofthenes taó fevero nas fuás
Oraçoens fe agradava deftas picantes joccfidades
:

Notava-lhe Efchines ( o leu maior competidor , eque


era murmurado de ter vendido huma Embaixada a Phi-
lippe de Macedónia ) que tinha fempre a maõ no feio
quando orava refpondeo Demofthenes
:

es Sei que talvez naõ convém o ter a maó no


íeio , quando fe ora , mas convém levar a maó no
feio, quando fefaz a Embaixada, :=3
O lettimo modo de confutar he , com a compen-
façaô , e he quando , nem o fado fe nega , nem fe
contende fobrç as Leis , mas fe defconta com algu-
ma acçaõ preclara, a acçaô criminofa. AíTim fe li-
vrou o ultimo dos Horacios da morte da Irmaã , cora
o grande ferviço, que tinha feito ao Povo Roma-
no no defafio dos Curiacios ; e por iílo difle Tito
Livio que fora abfoluto gg Magis admiratione virtu-
tis , quam jure caufa. g$
Segue-fe agora a Peroração , de que tratarei no

CAPITULO IV.

A Peroração , ou o Epilogo , como outros lhe cha-


maõ , he a ultima parte da Oração , em que o
Orador deve pôr todo o feu esforço. Confta a Pêro-
raçaõ
io6 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

raçaode duas partes huma he a Enumeração outra


:
,

a commoçaó dos ânimos, A primeira fe faz, com a


recopilaçaõ dos pontos principaes , de que a Oração
fe compõem, reduzindoos a hum afpeílo concifo,
em que fe veja toda a fubílancia dodifcurío, a que
os Gregos chamaõ ts Anacepbaleofis tfi porém adverte
;
Quintiliano que efta naõ feja tal, que fe converta em
huma nova Oração Póde.fe imitar aquelle pintor de
: ,

quem affirma Galeno, que na pedra preciofadehum


annel reprezentara a tragedia dePhaetonte, com o
carro ,e cavallos do Sol o Mundo abrazado, com
,

hum incêndio univerfal, a Júpiter irado , e defpedin-


do o raio , com que o precipitou no Eridano , a triíte-
za do Pai ; e em fim todas as circunftancias , com que
os Gregos idearão efte fingimento.
Cicero foi algumas vezes muito breve nos feus
Epílogos , como por exemplo o da Oração pro Lege
Manilia :
m Vede fe por ventura deveis por efta razaõ ap-
plicar-vos í guerra com todo ocuidad.o, na qual deve
íer defendida , com a Republica , a gloria do voflo
nome, afalvaçaô dos companheiros , os grandes tri-
butos , e a felicidade dos melhores Cidadaons ? =3
Também no Epilogo fe recopilaõ as partes prin-
cipaes do difeurfo para as converter emobjedto mais
alto , e proveitofo : o Padre Vieira na Oração das
Exéquias de D. Maria de Attaide :
e: Tenho acabado , e fatisfeito , fe me naó en-
gano , ás noíías três queixofas , mas fe ellas tiveraõ
tempo para fe «queixar de novo , eeu forças para di-
zer , e vós paciência para ouvir , he certo que as quei-
xas , que fe fizeraõ , tanto fem razaô , contra efta mor-
te, fe haviaõ de converter todas, e com muita ra-
zão , contra as noíías vidas : Oh idades cegas Oh gen-
!

tilezas enganadas ! Oh diíeriçoens mal entendidas I


Vive
OU ARTE DE RHETORICA. 107

Vive aidade, como fe naô houvera morte: ViveJ


a
gentileza , como fe naõ paííara o tempo Vive a dií :

criçaõ , como fe naõ temera o Juizo. &c. :=:

§.

A Segunda parte do Epilogo , que he a commoçaa


dos ânimos, fefaz com a amplificação , de que
tratarei mais diffufamente no lugar , que lhe pertence.
Serve a amplificação de nos eftendermos no Epi-
logo , com aquellas partes , que melhor excitem aquel-
le movimento: lifías íaõ muitas , e varias, e fe deve
ufar delias conforme os aílumptos ou louvando , ou :

vituperando , ou accufando , ou defendendo &c,


Cicero foi eminente nefta ultima parte da Ora-
ção : naõ parecia que inflammava , mas que abrazava
os ouvintes, efpecialmente em excitar a laftima dos
Juizes para os réos ; e fe era neceílario até íe valia
da eloquência das lagrimas , como fe vê na Oração
pro Milone. ,

cr Tenho acabado; nem ja porcaufa das lagri-


mas poderia fallar : as mefmas lagrimas, que podiaõ
esforçar a defenfa ,
parece que a embaraçaõ. 23
A efte mefmo intento he admirável o Epilogo
de Virgílio na Oração de Sinon :

Ouod te per , Super os &


confcia Numina veri ,
Per ifiqua qu<e reftat adbuc mor t alibus ufquam
eji,
Intemerata jides , oro : mijerere laborum
Tantorum \ miferere animi , non digna ferentis.

Em fim, o maior triumpho, que íe pode efperar


ào Epilogo ^k há de alcançar com a brevidade, e com
avehemencia tr Cedo feenxugao as lagrimas, (dizia
:

Cicero ) e de preffa fe extinguç o incêndio, u E pa-


ra
108 THEATRO DA ELOQUÊNCIA
ra fe lograr efte tempo , deve a brevidade fer vehe-
mente , e a vehemencia breve :
He verdade que os homens commummente tra*
taó melhor o principio , que o fim das producçoens
intelk&uaes , porque raros faõ os que principiaõ , com
eípirito , que naô acabem com pouco alento, deven-
do fer nos Oradores pelo contrario.
e Na peroração ( diz o Conde Thefauro ) deve
eílar o Orador mais inflammado , e por iíiò he que
inflamma melhor os ouvintes na ira , na laftima , no
amor , e no ódio ; e fe lhe concede o exceífo de pa«
lavras compoftas , de metaphoras peregrinas , e de
epíthetos agudos , e engenhofos ; o que naõ he aíTim
no exórdio , aonde , devendo eftar o animo quieto , e
frio , tudo ifto fe lhe notaria por huma pueril , e in-
tempeftiva afte&açaó ; e naó por outro motivo , do que
fer próprio da paixaõ o defpertar o engenho , ainda
que adormeça o juizo s&fl
Eftas faõ as quatro partes da Oração, e para fe-
guirmos o fio da Rhetorica , devemos agora voltar
para a Elocução , que he a lua terceira parte , depois
da Invenção, eDifpofiçaô, de queja temos tratado,
e para iíTo pairarei ao

Ui
109

LIVRO IH.
CAPITULO L

ASfim como aDiJpofiçaÕ rethorica ordena ,


e colloca no feu lugar competente todas as
coufas inventadas, também a Elocução , com
huma nova ordem , diftribue as palavras , as
figuras, os termos, e as fentenças , com que fe ex-
plica , fe anima , e fe adorna tudo aquillo , que fe
tem inventado Dividiremos pois a Elocução em qua-
tro claíTes : huma , que pertença ás Figuras , outra ao
Periodo , a terceira ao Eftylo 3 a quarta á Amplificação.
E principiando pela primeira claíle , digo que as
figuras , humas faô propriamente rethoricas , outras
Grammattcaes : As rhetoricas fe chamaõ Ejcbemas,
e íaó hum certo ornamento da Oração, e hum modo
mrisilluítre defallar, e que fe aparta da vulgarida-
de As Grammaticaes , humas lè chamaõ Tropos ,
:

que attendem á mudança do íentido , que fazem as


dicçoens ; outras íe chamaó Verbaes , ou literaes ,
que coníiííem na alteração das letras e dos vocábu-
,

los. Direi das primeiras , logo das fegundas , eao de-


pois das terceiras.
Os Rbetoricos coftumaõ reduzir a três cathego-
rias o primeiro género de Figuras pondo em huma
,
as que íaõ mais próprias para mover : em outra as que
conduzem para eníinar , e em outra as que propen-
dem para deleitar Eu naõ julgo por muito neceíTa-
:

ria efta dillnbuiçaó porque talvez a meíma Figura,


j

que
no THE ATRO BA ELOQUENCÍA ,

que fe afllgna para hum intento , firva para outro :

Cuido que baítara o hí-la» difponcio conforme fe fo*


rem deduzindo j e ieja par cite modo :

Exclamação Expoliçaõ Hjrpotypofí


Dubitaçao Suftentaçaó Profopopea
Obfecraçaõ Communicaçaô Ethopea
Imprecação Correcção Antithefi
Interrogação Concelho Fpiphonema
*
Subjeçaõ Diíiribuiçaõ Appftrophe
Preterição Permiílaó Emphafe
Reticencia Licença Hyperbole

A Exclamação hehumi elevação da voz com q pela


interjeição := Oh ss ou rahz: íignifica mos al-
gum aftedío vehemtnte, ou exprimimos alguma coufa
grande : os Latinos , álèm deitas duas interjeiçoens
tem ado p heu 53 vah tzprob , e tmhaõ antigamente
s sedepol 52 hercle :=; mehercle 5E Júpiter s meca-
ítor sa medius fidius.
A Exclamação pode nafcer de vários affe&os :

Pode nalcer da indignação como a de Cicero na pri-


,

meira Oração contra Catilina :

5£ Oh tempos Oh coítumes ! Entende eftas cou» !

fas o Senado , o Coníui as vê , e efte homem ainda


vive !Viver Naó fomente vive, mas ainda vem ao
meímo Senado, ss
Pode nalcer de huma grande dor , e afflicçaó. E
o meímo Cicero na íegunda Oração contra António:
t? Oh miferavel de mim ! que ainda , depois de
extin&as lagrimas, me
as fica a dor no coração, s
Pôde nafcer da triíieza : o meímo Cicero no ter-
ceiro de 0/pciís.
s Oh
OU APvTE DE RHETORICA. in
t=: Oh cafa antiga ! Qiiaó differente Senhor agora
te vejo ! a
Pode nafeer da impaciência em alguma grande
atrocidade O mefmo Cicero na Oração pro Coelio.
:

& Oh Deofes immortaes ! Porque caufa algumas


vezes , ou c bem na voíla dillimulaÇáó as grandes mal-
dades dos homens, ou refervais para outro tempo o
caíiigo dos prezentes delidos ? ss
Pode nafeer da laftima o mefmo Cicero pro :

Sylla :

rr Ohmiferavel , e infelice aquelle dia, em que


P. Sylla foi declarado Coníul a todas as Centúrias !

Oh fementida , Oh
arrebatada fortuna Oh cego !

defejo Oh errada
! gratulaçaõ ; que cedo todas aquel-
las caufas de alegria , e de goíto fe paííaraõ para o
luto, e para as lagrimas hsâi
Pode naícer finalmente da alegria, e dos outros
affe&os, de que naõ trago os exemplos , por naõ fer
mais extenfo.

A Dubitaçao , a que os Gregos chamarão Diapo*


JTjL refis , he hum reparo , de que te vale o Ora-
dor , para moftrar que tem o animo pendente febre
o que há de dizer. Aííim o executou Scipiaó na Dé-
cada terceira de Tito Livio :

trNem o confelho, nem a Oração me fuggere


o modo, com que vos hei de fallar , nem íèi o no*
raie
,
que devo dar-vos nefla occaíiaõ : O de Cidadaons ?
Naô , porque vos efqueceis da Pátria. O de foldados ?
Tampouco, porque negafíeis o Império, e os auf-
picios , e violafteis a religião do Sacramento. O de
inimigos? Menos, porque conheço que as eíf aturas,
os lemMantes e os veíiidos faô de Cidadaons Ro-
,

manos. Po rèm vejo que as obras , as palavras , os


,

ÉOflífí?
ii* THE ATRO DA ELOQUÊNCIA ,

eonfelhos , e os ânimos defmentern ovoílo nome, e


a voíla obrigação. :=!
Atéqui rica a dubitaçaõ pendente , mas algumas
vezes íe lhe íegue a reíoluçaõ Temos o exemplo em
:

Virgílio com a Rainha de Carthago no quarto da


Eneida

Eu- En quid agam ? Rurfupne procos irrifa priores


ç a5 ExperiarlNon admodumquepetam connubia fupplex
Quos ego fum toties jam dedignata maritos í
Iliacas igitur clafjes , atque ulttma Teucrum
JuJJa Jequar ? 1

An Tyrtis , omnique manu ftipata meorum


Infequar ? Et quos Sidónia vix orbe revelli
Rurfus agam pélago} Et ventis dare vela jubebo ?
Refo- Ouin morerejut merha estferroque avertedolorem.

Pode haver cafo , em qqe feufe da dubitaçaõ por


tal modo, que ella meíma íir de reíoluçaõ. AfTim
a
o fez Cicero fallando com Bruto no leu Orador :
:== Sempre, ó Bruto, duvidei muito, e por muito
tempo, mais difficultoío onegar-vos, ou con-
le era
ceder vos o que muitas vezes me tínheis pedido ; por-
que o nega lo a quem eu unicamente amava , e era
da meíma foite amado, na verdade que duro me pa-
recia ; e o receber elle huma taò grande couíà , como
a que naó cabe na imaginação , quanto mais na poí-
íibilidade , julgava eu que mal pertencia áquelle , que
podia receiar a repreheníaõ dos doutos , e pruden-
tes. =2
O Padre Vieira deo huma
bella fahida idubita*
taçaõ no Sermão fetrimo do primeiro Tomo :
trAsvoflas confiíToens , viftas a huma luz , pa-
rece que tem que louvar viíjas a outra, parece que
:

tem
: : ,

OU ARTE DE RHETORICA. iíj

qué condenar: EiTfíem as louvarei, nem as con-


t£fti
denarei, fomente me admirarei delias Eftas minhas
:

admiraçoens faô as que haveis de ouvir naõ fera o :

Sermaõ admirável ? mas fera admirativo ; Et admirai*


Juta turfa, a
§.
i

AObfecraçaÕ he aquella íupplica , com que im*


pioramos algum favor , ou beneficio j como efta
de Cicero pro Deiotaro
t= Primeiramente , ó Cefar , nos livra deite re-
ceio pela tua authoridade , pela tua conftancia , pela
tua clemência , para que naõ fuípeitemos que ainda
alimentas alguma parte da tua ira : Eu to peço por
aquella maõ direita , com que afleguraftes a hofpe-
dagem ao Rei Deiotaro digo por aquella maõ , que
:

he taõ firme nas batalhas , como nas promeííàs..is"


He também excellente a Gbfecraçaõ de Ovidio
na Elegia única do fegundo livro dos Triftes , que
principia Perfuperos igitur a de Palinurp no íex-.
: :

to da Eneida , eade Ama ta no duodécimo.


Quando o Orador fe confia muito na Obfecraçaõ
pode convertê-la em proteftaçaÔ , coma qual fica a
iupplica com maior valentia , e novidade. Padre Vi* O
eira nos dá hum bom exemplo
eis O
que venho a pedir , ou a proteftar , Senhor,
he que nos ajudeis ,. e liberteis : jidjuvanos., &> re-
dime vos.
Mui conformes faô efías duas petiçoens ambas
ao lugar , e ao tempo em tempo que taõ.opprimi-
:
,
dos , e taõ captivos eftamos que devemos pedir
,
com maior neceffidade , ienaõ que nos liberteis ? Re-
dtmenos. E na Caía da Senhora da Ajuda-, que de-
vemos eíperar com maior confiança . íènaõ que nes
,

ajudeis ? Adjuvavas,
H Naè
ii 4 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

Naó hei de pedir pedindo ] fenaõ proteftando >


e argumentando , pois eíla he a licença , e liberdade,
que tem quem naó pede favor , fenâõ juftiça. Se a
caufa fora fó noiia , e eu viera a rogar fó por noílo
remédio ,
e mifericordia ; mas como
pedira favor ,

a caufa , ,Senhor ,
que noíTa , e como
he mai$ voíla
venho a requerer por parte da vofla honra , e gloria
Propter nomentuitm : razaó he que peça fó razap ,
jufto he que peça fó juftiça Sobre efte prefuppoíto
:

vos hei de arguir , vos hei de argumentar y e confio


tanto da voíla ragaõ , e da voíTa benignidade ,
que
também vos hei de convencer. s£

AImprecaçaÔ,ox\ Execração, como outros lhe cha-


maó, he quando pedimos algum grande mal pa-
ra os outros ou para nós mefmos. Para os outros nos
,

dá o exemplo Camoens no quarto das Lufiadas :

Ob maldito o primeiro , que no Mundo ,


Nas ondas vela pôs em fecco lenho ,
Digno da eterna pena do Profundo ,
Se he jufto djufta Lei , que ligo , e tenho :

Nunca juizo algum alto , e facundo ,

Nem cithara fonora, ou claro engenho


Te 4? por ifjo fama , nem memoria ,

Mas comtigo fe acabe o nome , e gloria.

Para nós mefmos Virgílio no quarto da Eneida

Sed mihi optem prius ima dehifcat ,


vel tellus , ,

Vel pater omnipotens adigat me fulmine adumbras í


Pallentes timbras Erebi , noâlemque profundam ,
Antes pudor\ quam te violem^ aut tua jura refolvaw*
?r
Lmais
:

OU ARTE DE RHETCRICA; «y
mais próprio ao intento o Author do Tbeatro
E
na fua Conquiíta de Goa , Canto ieltimo.

Como he crivei que os orbes permaneçaS


Nos eixos defja fabrica luzida
(Sufpirava a belliflima homicida)
A vi/ia de hum pavor taò formidável ?
Sobre mim , Jobre o fado , que fomenta
Taõ maligna , e medonha de/ventura ,
Caia toda a celejle arcbiteólura*

§.

A Interrogação ferve para quando fe faz alguma


pergunta , naô por íè duvidar da matéria , mas
por fazer mais vehemente a iníiancia. Temos o ex-
emplo em Cicero contra Catilina
s= Naô entendes que ja eftaõ defcobertos os teus
confelhos ? Naõ ves que a tua imminente conjuração
ja eítá fabida de todos ? Quanto fizeíte na noite pa£
fada, aonde eltivefte , que peflòas convocafte , que
reíoluçoens tòmaíie , qual julgas de nós que o pode
ignorar ? :=*

O
Padre Vieira na quinta Oração do feu Xavier
acordado ufa defta figura com fingular elegância :
sr Tínhamos ganhado Ormus , e era noflo Or-
mus ;quem he Ormus ? Maicate e de quem he
e de :

Maícate? Cochim e de quem heCochim ? Ceilaô


: :

e de quem he Ceilão ? Malaca e de quem he Mala*:

ca Cujas faõ tantas Conquiftas no Oriente ? Cujas


?

as armadas, quenavegaó, e cobrem aquelles mares?


Cujos os portos , que fe enriquecem com os com-
mercios , e tributos, que o Indo, e o Ganges íópa*
gavaõ ao Tejo ? ha
Naõ eítá menos a&ivo , com outra Interroga*
H % çaS)
nó THEATRO DA ELOQUÊNCIA ';

çaõ, o noílo Camoens no quarto Canto das Lufía-


das

Nao tens junto comtigo o lfmaelita ,


Com quem jempre terás guerras fobèj as ?
Naõ fegue elle do Arábio a lei maldita ,
Se tu pela de Cbrifto fd pelejas ?
NaÕ tem Cidades mil terra infinita
,
,
Se terras , e riqueza mais defejas í
\

NaÕ he elle por armas esforçado ,


Se queres por v/dlorias fer honrado ?

QUando ás Interrogaçoens fe lhes dá refpofla , fica


fendo efta outro género de figura , que fe cha-
ma SubjeçaÕ. Delia ufou Cicero na Oraçaó pro Lege
Manilia, louvando a Pompeo.
srQue coufa tao nova como diípôr o exercito
hum mancebo particular em tempo taõperigoío á Re-
publica ? E com effeito o difpôs Prefidio ao meímo
exercito ? Prefidio. Executou illuftremente efta mate*
ria, com a fua difpofiçaó ? Executou.
Que couía taó fora docoftume, como odar-fe«
lhe o Império, easLegioens , conceder-íè-lhe. a Si-
cília, e a Africa , para tratar a guerra neftas Provín-
cias fendo de huma idade taó diítante docaradter de
Senador? Eportou-íe nas mefmas Provincias com íin-
gular defintereíTe , igualdade , e virtude , acabou a gran-
de guerra de Africa , e trouxe finalmente vi&oriofo
o exercito. :=s

O Padre
Vieira com a mefma Subjeçaõ no Ser-
,

mão do primeiro Tomo.


fettimo
52 Deixai-me agora fazer a mefma pergunta ou ,

asmeímas perguntas ao noíiò Mundo , e ao noílo tem*


po?
,

OU ARTE DE RHETORICÀ. n7

cego ? O Gentio ? Nao. Pois quem he íioji


cego , que fó merece o nome de cego ? Trífte , e
temerofa coufa he que fediga ; mas he forçofa con-
ièquencia dizer- Te , que fomos nós os Catholicos ; por-
que o Gentio, o Herege, o Judeo faó cegos , fem
fé, e com os olhos fechados , e iò nós os Catholicos
iòmos cegos , com a verdadeira Fé e com os olhos
,

abertos Populum ctzcum ,


: & óculos babentem. zz

Ppofia í Interrogação, eSubjeçao he a Prete*


riçaõ, pois com ella fingimos naõ faber, ou naõ
querer dizer o mefmo , que defejamos declarar.
Efta figura foi muito amada de Cicero , e com
ellafez a Pompeo outro Elogio :

es Naõ hei de dizer , ó Romanos , quantas proe-


zas elle obrou na guerra, aílim por mar, como por
terra, ecom quanta facilidade proíperou a paz, ea
campanha : Brevemente direi que fempre os Cidadaons
fe conformarão com a fua vontade , que os compa-
nheiros o feguiraõ , que os inimigos lhe obedecerão ,
e que até os ventos , e as tempeftades o lifonjearaõ. zz'
Contra Vatinio aproveitou o mefmo Cícero tam-
bém efta figura :

que fiquem em íilencio aquellas ac-


E3 Softrerei
çoens efcuras da tua primeira idade : porém na tua
Adolefcencia minafte as paredes , rcubafte os vifinhos
sçoutafte tua Mãi , e eu naõ te caftiguei. Fique en-
coberta a torpeza nas fombras , e maldades da mef-
ma Adolefcencia , e feja efte o premio da tua indi-
gnidade, S
H 3 A Re-
1 18 THE ATRO DA ELOQUÊNCIA
§.

A Reticencia naô fica muito diftante da Preteri*


çao: chamaraõ-lhe os Gregos Apofiopefi*
Delia ufou Marcial na Satyra oitava :

Maiorum primus quisquis fuit Me tuorum ,


Aut pajtor fuit , autiUum quoddicere nollo.
,

He famofa a Reticencia de Virgílio no primeiro


da Eneida:

Jam Coziam terramque meo fine numine venti


Ali /cere , &* tantas audetis tollere moles ?
(Mios ego .... Sed motos prafiat componere fluâtus y
Poji mthi non fimile pxnâ commt/Ja luetis.

E nao he inferior a de Camoens no Canto !

fe-
gundo das Lufiadas

Mas morra em fim nas mãos das brutas gentes >


(a)
Jgue pois eu fui. E nijlo de mimof a
. .
,

O ro/lo banha em ligrimas ardentes


Como c
y
o orvalho jic a afrejca rofa.

He também mui digna


lugar a de Álvaro
deite
Cienfuegos na vida de S. Francilco de Borja :
és Fedia-lhe que o deixaíTe deloccupado no íeu
mefmo lenho , aonde eftivefle taõ ditoíamente cra-
vado, que naò voItaíTe mais os olhos aos erros dos
íeus primeiros annos, mais laftimofos que floridos,
attendendo fò ao ultimo quartel da lua vida , que con-
ih grava

(a) EudiíTera =: Porem morra nas maõs &c, sa para tirar a horrível cacopho»
JJiadoss mas morra.
:

OU ARTE DE RHETORICA. n9
fagrava defpido ao templo da fua maior gloria; can-
fado , roto lenho , que ie arrimava na margem do de-
fengano : Que a lua confuíãô .... mas de que Pheniz
íe arrancará a penna , que poda efcrever com vive-
za os amorofos delíquios daquella alma em huma ac-
ção por íi mefma cheia de ternura ? 53

COm zExpoliçaõ", ou com dMet abole, como lhe


chaniaõ os Gregos , explicamos a mefma fentença
por diverfos termos. Eufebio Eraiílenoa praticou feliz-
mente na mortandade dos Innocentes executada por
Herodes :

r: Que bemaventurada idade a daquelles , que


naõ podendo ainda nomear a Ghriílo , merecem o
morrer pelo meímo Ghriílo Que ainda naõ poden-
!

do íbffrer as feridas y ja lhes faõ idóneos os tormen-


tos! Oh que felizmente naícidos os que na primeira
luz do nalcimento lhes fahe ao encontro a vida eterna!
Vem-fe fora do tempo deílinados á morte ; po-
rém felicitaõ a morte com a vida : Apenas gofta-
raó do tempo prezente , quando logo pafiaraõ ao fu-
turo: Naó tinhaó ainda entrado no berço , quando ja
confeguem a coroa : Arrebatados dos braços das Mais,
foraõ entregues ao regaço dos Anjos, fc
Parece«me que com a mefma figura naó eftá me-
nos eloquente o Padre Vieira no Sermão fettimo do
primeiro Tomo:
ks Peccar he enfermar mortalmente : peccar , e
immudecer , he cahir na enfermidade , e renunciar
o remédio : Peccar he fazer naufrágio o navegante
peccar, e immudecer he ir-fe com o pezo ao fundo,,
e naó lançar maõ da taboa , em que fe pode falvar*
Peccar he apagarem-fe as lâmpadas ás Virgens
H 4 nef-
iío THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

nefcias: peccar, e immudecer he apagarem-fe-lhes as


lâmpadas, e fecharem-fe-lhes as portas. peccado O
tem muitas portas para entrar , e huma fó para fa-
hir , que he a Gonfiílaó Peccar he abrir as portas
:

ao demónio, para que entre áalma: Peccar , e im«


mudecer lie abrir-lheas partas para que entre , e cer*
rar-lhe a porta ,
para que na6 polia íahir. sq

§.

ASuftentaçcio ', que fe chama Paraâoxon entre os


Gregos he aquella figura , com que fetem fuf-
,

penfo o Auditório por algum tempo , fem elle al-


cançar o que fe pertende dizer. O Conde Thezauro
principiou o feu Canochiale , com eíla elegância :

3S Hum divino parto do engenho , mais conhe-


cido por íemelhança , que por naícimento ; que em
todos os feculos , e entre todos os homens foi fem-
pre de tanta admiração , que quando fe lê , ou fe ouve
fe recebe com taõfumma alegria e com tanto ap-
,

plaufo daquelles mefmos , que o naõ conhecem , como


íefoíle hum peregrino milagre , he a Agtideza &c. :=*

§•

SEAuditório
o Orador confiado na
,

o que há de
fua caufa , pergunta ao
fazer, então he que ufa da-
quella figura , aque os Rhetoricos chamaõ Cornmu-
nicaçaõ
ò
', como fez Cicero contra o Pretor de Sicília :
e: para me dizeres o que
Agora vos confulto eu
devo fazer Talvez que o voílò filencio íe porá da
?

parte daquelle confelho, que eu neceílariamente hei


de tomar.

AO--
:

OU ARTE DE RHETORICA- 121

§.

A Correcção he outra figura , com a qual emenda-


mos alguma voz, ou algum termo, que deixa-
mos proferido: o mefmo Cícero contra Clodio , que
tinha eíiuprado íua Irmaã.
Eu fallaria
, com maior vehemencia , fe naõ fe
metteíTe de permeio a inimizade, que tenho com o
marido deita mulher Quiz dizer hz Irmaõ 53 , e íem-
:

pre aqui me equivoco, a


Plinio o moço , no feu famofo Panegyrico a Tra*
jano , nos dá outro exemplo
t=:Que deíTemelhante foi otranfíto, que fez há
pouco tempo outro Príncipe, fe acaíò foi traníito*
e naó deítruiçaõ. ?a
§.

AConceffao he quando moftra o Orador que per-


>

mitte alguma couía ao feu adverfario Cícero :

contra Verres :

£2 Leves faó na verdade os crimes deite réo :


Navarcho refgatou o medo das varas , com o pre-
ço de huma Cidade nobiliílima outro , deo dinhei-
:

ro por naô fer condenado ; Tudo iíto fe tem viíto al-


gumas vezes Naô quer o Povo Romano , que com
:

crimes taó communs feja Verres aceufado pede de- :

lidtos mais novos , defeja culpas mais eltranhas. Naõ


do Pretor da Sicília , mas de hum crueliflimo tyran-
no fe hi de fazer o proceíTo.

LOgra-fe a Dijlribuiçao quando fe divide a fen-


tença em diverfas partes , e fe dá a cada huma o
attributo, que lhe pertence* Eítá admirável o Padre
Vieira
I2i THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

Vieira com efta figura na terceira Dominga daQua-


refma do primeiro Tomo :
E=Hia o Propheta Habacuc com huma ceftinha
de pam no braço , em que levava de comer para os
feus íegadores } quando lhe fahio ao caminho hum
Anjo, e diz-lhe que leve aquelle comer a Babylonia,
e que o dê a Daniel , que eftava no Lago dos Leoens:
C^ue vos parece que refponderia o Propheta neíte ca-
for Senhor, íe eu nunca vi Babylonia , nem fei aon-
de eftá tal Lago , como eu hei de levar de comer a
Daniel ao Lago de Babylonia ? Se os íegadores an-
darão aqui nas Lizirias , e o recado fe vos dera a
vós , como havíeis de acceitá-lo , fem replica Co- !

mo vos havíeis de arrojar ao Lago , a Babylonia , e


aos Leoens !

Avizaõ-vos para a armada , para Capitão de mar,


e guerra , para Almirante , para General , e fendo o
Lagofinho o mar Oceano na Coita , aonde elle he mais
fobcrbo , emais indómito, ver como vos arrojais ao
Lago Acenaõ-vos com o governo do Brafil , de An-
!

gola, da índia , com a Embaixada de Roma , de Paris


de Inglaterra, de Hollanda , e fendo eftas as Baby-
lonias das quatro partes do Mundo, ver como vo?;, (

arrojais a Babylonia Há le de prover a gineta , a


!

bengala , o baítaõ para as fronteiras mais empenha-


das do Reino, e fendo a guerra contra os Leoens de
Hefpanha ,tanto valor , tanta feiencia , tanto exer-
cito , ver como vos arremedais aos Leoens
Se vós naô vifteis o mar , mais que no Tejo :
Se naó vifteis o Mundo , mais que nos mappas Se :

naô vifteis a guerra , mais que nos pannos de Tunes,


como vos arrojais ao governo da guerra , do mar
do Mundo ? sq

A Pre
:

OU ARTE DE RHETORICA. 123

§•

APermiffao he quando fe concede alguma coufa


á vontade dos contrários, por le ter na caufa huma
grande confiança. Cicero contra Catilina :
^Saheja, ó Catilina, acampo com eíle im-
portuno efquadraó de malfeitores ajunta-tecom Man*
:

lio: move-te com os Cidadaons perdidos: fepara-te


dos bons: declara a guerra á Pátria } ealegra-te com
a impiedade dos latrocínios. =2
Eis-aqui outro exemplo de Hyperides, allegado
por Rutilio :

5= Porém eu omitto , ó Juizes , o grande, e le-


gitimo direito da minha caufa: Eu vos concedo que
a determineis, como vos parecer mais Jufto ; porque
ainda que conítituais alguma coufa de novo , naõ re-
ceio que deixeis de feguir voluntariamente o que vos
peço por amor da utilidade cominúa, 53

§•

COm ti Licença diz o Orador alguma vez em fua


defeza , diante de quem pôde temer , o que pa-
rece que podia deígoítá-lo , e naõ chega a oífendê-lo.
Cicero pro Ligario na prefença de Cefar
Sabe , ó Cefar , que nenhuma coufa me meíte
medo :reconheço aquella grande luz , que me com-
munica a tua liberalidade , e fabedoria quando fallo
diante de ti : esforçarei a voz quanto puder , para que
ouça o que vou a dizer todo o Povo Pvomano.
Recebida a guerra , e executada a fua maior par-
te , livremente digo que naõ fui violentado para aquel-
las armas , que te tomarão contra ti porém legui
;
neíte movimento todo o meu arbítrio , emeperíuadi
com toda a minha vontade , &c. =*
Com
i2+ THE ATRO DA ELOQUÊNCIA,
§.

COni aHypotypofi expomos taõ vivamente os íuc-


ceílos, eas deícripçocns que parece que as po-,

mos diante dos olhos. Cícero uíbu muitas vezes, e


com grande felicidade deita figura, de que eu pudera
trazer vários exemplos porém nenhum me parece
,

melhor do que eíte do Padre Vieira reprefentando-


nos o engenho do açúcar :

es Bem recebida foiaquella breve , e difcreta de-


finição de quem chamou a hum engenho de açúcar,
doce Inferno. E verdadeiramente quem vir na eícu-
ridade da noite aquellas fornalhas tremendas perpe-
tuamente ardentes : as levaredas , que eítaõ fahindo
a borbotoens de cada huma pelas duas bocas , ou ven-
tas , por onde refpiraó os incêndios os Ethyopes , :

ou Cyclopes , banhados em íuor , taõ negros , como


robuftos , que fubminiftraõ a groíTa , e dura matéria
ao fogo , e os forcados , com que o revolvem , e ati-
çaõ as caldeiras , ou lagos ferventes com os cachoens
: ,

iempre batidos, e rebatidos, ja vomitando efcumas ,


ja exhalando nuvens de vapores, mais de calor, que
de fumo , e tornando-os a chover para outra vez os
exhalar : O
ruido das rodas* , das cadêas , da gente,
da cor toda da mefma noite, trabalhando vivamen-
te , e gemendo tudo ao mefmo tempo , fem momen-
to de tregoas , nem de defcanço Quem vir em fim :

toda a maquina , e apparato confufo , e eftrondofo


daquella Babylonia , naõ poderá duvidar , ainda que
tenha vifto Ethnas , e Vefuvios , que he huma fenie-
lhança do Inferno, s
Ainda que mais pompofo , naõ eftá menos ele-
gante Álvaro Cienfuegos , quando nos moítra o e£
panto , com que ficou o Duque de Gandía á vifta do
cadáver da Imperatriz D. Ifabel.
ss Fica
OU ARTE DE RHETORICA. í 2?
:=: Ficou o Marquez de perto , e quafí unido
ao íemblante defunto inclinada a cabeça algum tan-
,

to , levantada a maõ direita com a toalha , que ti-


nha tirado daquelle roílo denegrido ; a eíquerda fo-
bre o bordo do caixão, fria, eque ie diftinguia mal
da que eftava defunta , e vifinha abertos com muita :

expreflaõ os olhos embargados todos os movimen-


:

tos : o coração extático por algum tempo , e fem que


o fentiíle pulfar o peito: arriçado o cabello com o
furto ; eoque antes ondeava manfamente pelas coitas
fe encreípou confufo , defordenado , e retorcido para
cima, fugindo daquelle aíTombro , como ferpente , que
feenrofca, enfurecida, ou aíluftada ; ficando muito
íempo naquella natural acçaõ , em que o apanhou o
jhorror de taó efpantofa novidade, pça
He também admirável Hypotypofi de Virgílio
a
na deícripçaó da fragoa de Vulcano e a de Ovídio ,

na da cafa dofomno para onde envio os meus Lei-


,

tores em quanto lhes dou outra Hypotypofi donoííò


Camoens : a

Nas fraguas itnmortaes , onde forjavao


As pontas para as fettas penetrantes ,
Por lenha coraçoens ardendo eftavaô ,
Vivas entranhas , inda palpitantes :

As agoas , onde os ferros temperavaS ,


Lagrimas (ao de mi/eros amantes ,
A viva fiamrna , e nunca morto lume ,
Defejo hefd 9 que queima , e naõ confume»

§.
AProfopopea nos dá o atrevimento para introdu-
zirmos a fallar os efpiritos , os defuntos , os
auzentes , e ainda as Províncias , as Cidades , as efta-
tuas , os montes as arvores , &c,
;
Deita
izí THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

Deita forte falia Roma a Catilina em huma das


Oraçoens de Cícero:
jrHá muitos annos que naõ tem havido defor-
dem, que tu anão movefles: fem ti fenaõ tem cô-
mettido algum delido grave, e affrontofo.... Tu naó
fó tiveite ouíadia para defprezar as Leis , eos Juízos
públicos, mas para pervertemos , e arruiná-los. Eftas
acçoens taõ odiolas , e que naó deverão fer tolera*
das 5
eu as foffri , como pude &c. =:
Lucano deo também vozes á mefma Roma ap-
parecendo aCefar na paílagem do Rubicon ; eonoílb
Camoens ao Ganges, e ao Indo, quando appareceraô
em ionhos ao Rei D. Manoel.
Naõ deixa também de fer Projopopea quando
fingimos algum intrinfeco movimento , e operaçoens
racionaes , e íenfitivas nascoufas inanimadas , e tal he
a do Fialmo 113 :

be Maré vidit , &


fugit Jordanis converjus :

eft retrorjum montes


: exitltaventnt ut aríetes , &
co 11es , Jicut agni ovtum. Qind eft tibi maré quodftt-
gifti ? tt tu Jordanis quia converfus es retrorfumt^

§.

CHama-fe Ethopea
á defcripçaô dos coftumes , dos
deiejos
, das acçoens , do engenho , ou da Ín-
dole de qualquer peíloa. Deita figura ufou Saluftio,
fallando de Catilina :

es Lúcio Catilina foi de geração illuftre,ede


huma grande robuitcz , aífim no corpo, como no ani-
mo porém de hum nocivo, e depravado engenho.
\

Defde a íiia Adolefcencia lhe foraõ agradáveis as guer-


ras inteítinas , as diícordias civis, as mortandades,
os roubos , e em todos eíles eícandalos he que exer-
citou a fna mocidade. Parece incrível oquantocoftu-
mou
OU ARTE DE RHETCRICA. 12 y

raouocorpo ao foffrimento da fome , do frio, edas


vigílias. Era de hum animo aftuto, e atrevido, def-
mentindo, com falias cores, as fuás idéas no gefto,
e no femblante. Foi cubiçofo do alheio, e do íeu ,
pródigo: ardia nas lafcivias, e tinha muito de elo-
quente , e pouco de fabio. A vaftidaõ do feu efpirito
íempre o fazia afpirar aos proje&os mais altos , im«
moderados , e talvez incríveis &c. Ê£
Huma das melhores Etbopeas , que tenho encon-
trado , he a do caradter de Motezuma por António
Solis ; ainda que diíFufa , naõ me atrevo a omittí la :
fas Foi Motezuma Principe de raros dotes na tu-

raes : de agradável , e mageftofa prefença , declaro ,


e perfpicaz entendimento, falto de cultura, mas in-
clinado á fubftancia das coufas. Oleu valor o fez me-
lhor entre os feus antes , e depois de chegar á Co-
;

roa , lhe deo entre os eítrangeiros a opinião mais ve-


nerável dos Reis tinha o génio, e inclinação militar:
:

entendia as artes da guerra, e quando chegava o ca fo


de tomar as armas , era o exercito a lua Corte : Ga-
nhou pela fua pelToa , e direcção nove batalhas cam-
paes: Conquiílou differentes Províncias , e dilatou os
limites do feu Império, deixando os reíplandores do
Sólio pelos applaufos da campanha , e tendo por me-
lhor Sceptro o que fe forma do baftâó. Foi natural*
mente dadivofo , e liberal fazia grandes mercês , fem
:

género de oftentaçaó tratando as dadivas , como di-


\

vidas , e pondo a magnificência entre os officios da


Mageftade. Amava a juftiça , e zelava a fua admi-
niftraçaô nos Miniftros , com rigida feveridade era:

continente nas ordens da gula , e moderado nos in-


centivos da fenfualidadeo
Porém eftas virtudes, tanto de homem como de
Rei , fe desluziaó , ou apagavaõ com maiores vicios
de Rei > e de homem, A
fua continência o fazia
mais
128 THE ATRO DA ELOQUÊNCIA ,

mais vicioío, que temperado, pois fe intr^duzio no


leu tempo o tributo das concubinas , nafcendo a for-
mofura em todo o fcu Reino eí crava das íuas mo-
ei eraçoens , defordenando o antojo
, íem achar def-
culpa no appetite. A fua juftiça tocava no extremo
contrario , e chegou a equivocar-íe com a íua cru-
eldade , porque tratava , como vinganças os caftigos ,
,

executando muitas vezes a ira , o que pudera fazer a


razaõ. A fua liberalidade occafionou maiores dam-
nos , do que produzio benefícios, porque chegou a
carregar os feus Reinos de impofiçoens intolleraveis
e Te convertia nas fuás profufoens , e defperdicios
o fru&o aborrecivel da íua iniquidade.
Naõ dava meio , nem admittia diftinçaó entre
a eícravidaõ, e a vaflallagem e achando politica na
,

oppreílaõ dos feus vaflallos , íe agradava mais do feu


temor , que da fua paciência Foi a foberba o feu
:

vicio capital, e dominante : jurava pelos feus mere-


cimentos , quando encarecia a fua fortuna e julgava
•,

de ú melhor, que dos feus Deofes ; ainda que foi


fummamente dado á fuperftiçaô da fua idolatria; eo
demónio chegou a favorece lo , com frequentes vi-
fitas , cuja malignidade tem fuás pra£licas , e vifoens ,
para os que chegaõ a certo gráo no caminho da per-
dição. ^
Há. outra Etbopea , que íe chama imperfeita , a
que os Gregos deraõ o nome de Profopograpbia ,
que he quando fedeferevem as partes naturaes , eac*
cídentaes do corpo , como efta de Franciíco Vavaf-
íor expondo as feiçoens de Sócrates
£: Sócrates naó foi deíTemelhante a Efopo na de-
formidade do corpo ; porque tinha os narizes rombos
os olhos virados, a cabeça calva, o ventre inchado,
as pernas tortas e por efta razaó dizia Alcibíades ,
,

que elle naõ fe diftinguia dos Satyros. a


Onoflò
i
, ;

OU ARTE DE RHETORICA; *i$


O noflo Camoens tem huma excellente Profo*
pographia pintando-nos o Gigante Adamaílcr :

Nao acabava , quando huma figura


Se nos mo/Ira no ar robufta , e valida ,
De disforme i e grandifjtma efi atura ^
O rofío carregado , a barba ejqtialida :
Os olhos encovados , e a pojlura
Medonha , emd^ açor terrena , e paili da
Cheios de terra , e crefpos os cabellos ,
A boca negra , os dentes amarellos.

Quando a Ethopea fe ajunta com a Profopogra*


phia faz ainda mais elegante , e viva a defcripçaõ :

temos hum exemplo em Cicero dando a conhecer a


Calphurnio em huma carta , que efcreveo a Attico ;
porém eu deixo eíte lugar por trazer outro de Ma-
noel de Faria caracterizando o noííò famoío Viriato.
í: Era Viriato nodeliniamento do corpo, gran-
de , membros avultados, cabellos crefpos ( fignal de
fortaleza) fobrancelhas cahidas, geíto terrível , nariz
curvo , e naó pequeno , com proporção ao roíto. No
animo , prudente modeíto, liberal de engenho
, ,

prompto de invenção
, copiofo. Do trato da fua peíloa ,
jamais fe infèrio grandeza, ou fuperioridade mais, :

que nelle , havia que ver em qualquer íoldado íeu.


Da fua prudência vigilante ou da fua vigilância pru-
,

dente , nunca deixarão de inferir-íe profperiílimos fuc-


ceílos. Dos defpojos
lhe ficava íómenre a gloria de
vê-los aos íeus pés , fem os fazer dignos das fuás
maôs prezava-fe de confeguí-los , e coníeguidos ,
•,

de defprezá-los. Dormia armado febre a terra nua


fervia-lhe de reclinatorio o pavez, e o morriaó de
cabeceira : taixava o fomno , com avareza , a vigi-
lância : Pouco era logo , com tanto Varaõ , tanta vi-
dloria.^ I Ufa*
aja THE ATRO DA ELOQUÊNCIA,
§.

U
tenças
Samos da Antithefi
quando contrapomos as
ou as (entéricas ás fen-
palavras ás palavras
:
,

Cicero fe aproveitou deita figura , compa-


rando a Marcello, que conquiílou a Sicilia , com Ver-
,

res y que a defpojou :


ã Conferi com aquella guerra : a che-
eíta paz
gada deite Pretor , com a viftoria daquelle Impera-
dor as impuras cohortes de hum , com o invifto
:

exercito do outro : Direis que o Reino de Sicilia foi


edificado por aquelle , que o captivou , e foi captivo
por eíte , que o recebeo edificado, s
Naô feeíqueceo o Padre Vieira deita figura no
Sermão decimo terceiro do fegundo Tomo.
sr Abraham merecia muito , Ifaac naõ merecia
nada ; porque Abraham caminhava cóm fciencia , e
Ifaac com ignorância : Abraham ao facrificio fabi-
do 3 e Ifaac ao facrifício ignorado &c. =j
He digna deite lugar a Antithefi de Ovidio :
Frigida pugnahant calidis , humentia , ftccis ,
Mo ília , cum duris , [me pondere , babentia pondus.
E Marcial com a fua coítumada agudeza , e ga-
lanteria :

Difficilis , facilis ,
jucundas , acerbus es idem
Nec tecum poffum viver e , nec jine te.

Ficará a Antithefi rrtais engenhofa , quando a


íentença parece que fe contradiz a fi mefrna , como
por exemplo Naõ come para que viva , mas vive
:

para que coma Ou também: Em quanto imaginas


:

o que bds de fazer , nao fazes o que tens imagi-


na do\
: —
OU ARTE DE RHETORICA. 131

nado E neíle fentido diíle o Séneca trágico Mifer


: :

ex potente pat , ex mifer o potens.


.Ficará mais bella a Antitbefi feao mefmo tem-
$ib fe contrapuzerem as palavras , e as fencenças , co-
mo neíle verfo de Virgílio :

\ . Alba ligtijlra cadunt , vaccinia nigra leguniur.

Sorèm deve ufar-íê defta figura com muita mo-


deração , por naó cahir no defeito de que accufaõ a
Séneca , nem no daquelle Orador , de quem diíTe Per*
íio :

„.

Librat in antitbefis .—
~—
——
Crimifiis rafis

§.

AEpiphonema he huma exclamação fentenciofa,


com que fecha a narração de algum fuccef-
fe
fo infigne , ou matéria admirável ; Cicero no livro de
Seneõiate i

:r Todos
deíejaõ a velhice para confeguirem os
feus defejos, e accufaô-na , depois de confeguida :
Tanta he a ineonftancia , a loucura , e a perveríida-
de \\a
Virgílio , depois de narrar os trabalhos da ar-
mada Troiana :

Tanta molis erat Romanam condere gentem !

E também he feu aquelle

"
'
j
Tanta ve anitnis ccelejlibiis ira !

I 2, E feu
T3i THEATRO DA ELOQUÊNCIA
E feu também o outro :

Quidnon mor talia peâíora cogis


Auri j acra fames ! "! "g

E eíle também

En queis confevimus agros

Lucrécio no lacrificio de Ephigenia

Tantum religio potuit fuadere maiorum í

E o noíTo Camoens :

Tanta veneração aos Pais fe deve ?

§.

AApoftrophe he quando nos tiramos do fio da


Oraçaõ, e nos viramos para alguém por dizer-
Ihe alguma coufa de grande ponderação Cicero pro :

Milone :

« Por vós , por vós he que chamo , ó fortiílimos


Varoens , que tendes derramado tanto Tangue em de-
feníà da Republica : Por vós he que chamo , ó Gen-
turioens , por vós ó Toldados no prefente perigo de
,

hum Cidadão invi&o Por ventura fera expulfado de-


:

lia Cidade tanto valor , como o de Milon , naõ fó á


voílh vifta , mas eftando vós armados , e prefidindo
a efte Juízo ? s=s
He mui conforme ao efpirito do Padre Vieira a
Apo{lropbe , com que fe vira no Prologomeno á Hi-
ftoria do Futuro para Philippe IV". deCaítella:
ê: Ouvi , Senhor , a yoz de hum eítrangeiro ,
defin-
OU ARTE DE RHETORXCA. 133
definíereílado vaííallo, que foi p voflo por fujeiçaõ,
e hoje he também voííò ( poíto que naó vaílallo ) por
affefto.
Ouvi a voz de hum homem , que nem das feli-
cidades de Portugal efpera , nem das voílas teme ; por-
que vive fora da jurifdiçaó da fortuna por eltado :

muito abaixo da fua roda , e por coração muito aci-


ma delia, zz
Camoens no quarto das Lufiadas tem a mefma
figura :

O y
tu Sertório , o nobre Coriolano ,
Catilina, e vdsoutros dos antigos ,
Que contra vofjas pátrias , com profano
Coração , vos fizejleis inimigos :
Se lã no Reino e\curo de Summano
Receberdes gravijjímos caftigos ,
Dizei-lhe que também dos Portugueses
Alguns traidores houve algumas vezes.

Naô fó fe chamaó os homens nos Apoflrophes^


mas também as Deidades : Ciccro na primeira Oraçaô
contra Catilina :

d
O' Júpiter, que fofte conftituido por Rómulo
coMi os melmos aufpicios , com que o foi efta Cida-
de tu , a quem verdadeiramente intitulamos o feu de-
:

fenfor , e o defte Império, feri poífivel que naô apar-


tes os olhos de Catilina , e nos Íeus companheiros das
tuas aras, e dos outros templos, dos feus edifícios,
dos feus muros, da vida, e da fortuna dos feus Ci-
dadaons? =3
Eftende-fe o Apoflropke aos defuntos , como na
Oração de Germânico dada por Cornelio Tácito , que
,

vem quafi no principio dos íeus Annaes:


£3 O' alma do divino Augufto , recebida nas ef-
I 3 pheras:
i
34
THEATRO DA ELOQUÊNCIA
pheras O' imagem de Drufo meu Pai , e Senhor >
:

fazei que a voílà memoria lave a macula que puze- ,

raó ettes Soldados nos feus coraçoens.^


E ainda ás coufas inanimadas. Cicero pro Mi-
lone ;

t= A vós he que imploro e obtefto , ó outeiros


,

de Alteia A vós , ó aras deftruidas pelos mefmos


:

Albanos , que fois companheiras , e coetâneas nos fa-


çrificios do Povo Romano, ss
Ainda que eu tenho dito que feufa de Apojlro-
phe pelo meio da Oração, naó deixa alguma vez de
praticar- fe no principio do Exórdio ; aílim o fez o mel-
mo Cicero em huma das Oraçoens contra Catilina :

:sf Até quando finalmente , ó Catilina y hás de


abular da nona paciência ? &

§•

OEmpbafe confegue quando íe diz mais , do


fe
que íoaõ Augufto nos dá o exem-
as palavras :

plo com efta carta ,


, que efcreveo a Drufo , que fe
achava Proconful na Efclavonia :

es Pois que eítais no Illirico , lembrai-vos que


fois dos Cefares que vos mandou o Senado : Que iòis
:

moço meu fobrinho > e Cidadão Romano, s


:

5.

AHyperbole fe faz pela augmentaçaõ , ou diminui-


ção , encarecendo , o que pertendemos exagge-
rar, ou anniquilando o que pertendemos diminuir, com
tanto , que naó exceda os limites da verilemelhança.
He bom exemplo o de Virgílio para exprimir a gran-
de veiocidade de Camilla
: :

OU ARTE DE RHETORICA, 13$

Ília , vel intaâla fegetis per fumma volaret


Gramina nec teneras curju lafijjet ariftas ,
,

Vel maré per médium fluóiu fufpenja tumenti


Ferret iter , céleres nec tingeret aquore plantas*

Jacinto Freire de Andrada na vida de D. Joaó


de Caftro :

trQue temos que recear defte Império de lou-


cos , que , com hum braço na Afia , outro no Occi*
•dente , querem abarcar o Mundo : hyperbole que ia-
hio da Sagrada Efcriptura Et pofuit pedem fuum :

dextrum juper maré, ftniflrum atitemfuper t erram ;


aonde também acha eíte fe :

&s Tu Rex
magnificatus es , (y invaluijli , &
magnitude* tua pervenit ufque ad Ccelum , potejias &
tua ufque ad términos univerfe terra. ==s
O noflo Camoens no fexto das Lufiadas

Agora \obre as nuvens os fubiaõ


As ondas de Neptuno furibundo•:
Agora a ver parece que dejeiaõ
A y

s intimas entranhas do Profundo.

OAbbade deSambade Manoel Moreira deSoufa


no Prometheu , deferevendo o Caucaíò

%an que defpues de haver hcllado


alto ,

Las Provindas dei ayre , nadie entiende ,


Si es entre Cielo , y tierra equivocado ,
«,

Orbe que Jube , d esfera , que dejeiende.


,

As Hyperboles naõ fó faõ muito frequentes nos


Oradores, mas também nos Pintores Hi-
e Poetas , :

pérbole foi o de Thimantes quando pintou deus Sa»


tyros a medirem com hum thyr(o o dedo de Pcly-
I 4 phemo.
i36 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

phemo. De Zeuzis diíle Quintiliano , que naó tinha


ralgo, que naó fofle byperboltco.
Alguns aceufaó de inveriíimil a hyperbole de Ho*
mero quando fingio que Polyphemo atirara a Ulyíles ,
com hum penhaíco , em que liiaõ as orelhas , que
andavaó nelle paftando.
Da mefma forte he aceufado Virgílio de repre-
fentar o mefmo Gigante nomeio do mar, aonde as
ondas lhe naó chegavaõ aos joelhos.
Deita efpecie he o de Eitacio quando nos diz
no quinto da fua Thebaida , que a íbmbra do monte
Athos chegava até a Ilha de Lemnos e o de Lou-;

renço Graciano dizendo, que em huma pequena par-


te do coração de Alexandre cabia folgadamente o
Mundo deixando lugar para outros muitos,
,

vamos agora ao$


Eftas faõ as figuras íentencioías ,

Tropos, de que oslihetoricos tem formado dez eí*


pecies , que faõ

Meta phora A ntonomafia


Allegoria Syllepfis
Metonymia Ironia
Metalepfis Antiphrafis
Synedoche Sarcaímo*

AMetapbora he quando leva o verbo ^ o nome ^


íe
ou o adverbio para outra llgnificaçaô , alheia
da fua , pela força da lemeihança ; e aíTim dizemos y
ou por atrevimento , ou por elegância que
sr Os. prados riem, que as fontes chorão, ou
murmuraô , que o t-mpo corre que a idade fe mur-
,

cha , ou florece , que defmaia a elperança ? que a ía T

mu íe efeurece &c.
E com
OU ARTE DE RHETORICA. 137

E com figura chamamos neve á bran-


a mefma
cura do Cifne
, balança á juftiça, rio á eloquência &c,
Efta he a elegância mais frequente , e a mais
ampla, que tem a Rbetorica ; porque tranícende a tu-
do o que conhece defde oEmpyreo até oAbyf-
fe
mo ; Metaphoras taô dilatadas y
e faõ as origens das
que fe naõ podem reduzir a numero.
Humas faõ fimplez , outras engenhofas A fím* :

plez he quando naõ paíla odifcurfo do primeiro obje-


éto Se diílermos que o Cifne be hama neve viven-
te , naõ faremos outro dilcu* fo , que o de comparar ,
ou aílemeliiar a neve á brancura do Cilne ; porém
fe diílermos , com Virgílio que os dous Scipioens
,

foraõ dous raios da gyerra , naõ fó íe nos reprezenta ,


com efta ítmelhança , a condição do raio e do guer- ,

reiro , naõ fó a violência , com que fe movem , mas


os eílragQs , que execuíaô ; e a efte género de Me*
tdpboras he que chamaó engenhofas os Oradores.
Tal foi também a de Ariítoteles quando difle :
Sol lucem díjjeminat. Tal a do Paute Vieira fallando
deLuthero , e deCalvino^ EraS duas ferpentes ve-
nenojas eraõ dous lobos do rebanho de Chrtjio.
\

Porém fendo a Metaphora de tanta extenfàõ , e


frequência 7 fe pode fazer viciofa por três princí-
pios :

Pela humildade ,
pela vileza ^ pela demafiada cu*
fadia : A
humilde he a que condenou Tullio , e
Quintiliano no que chamou aos penhnícos Verru- :

gas do Mundo* Horácio reprehende também aM.Fu-


rio Bibaculo por dizer que a neve dos Mipes era a
faliva de Júpiter.
A vil he como a que chamou a Gláucia : Efterco
da Cúria e he- reprovada a deTertuliano por cha-
\

mar ao Diluvio : Barre/ia univerfal da Natureza.


A atrevida he femelhante á de Cícero quando
difle
1 38 THE ATRO DA ELOQUÊNCIA y

difle,que depois da morte de Catão ficara pupillo o


Senado. Há com tudo atrevimentos, que naõ fe por-
mittem aos Oradores, e fe concedem aos Poetas, e
por ido fe naõ condena Horácio, quando fe atre-
veo a dizer Per Siculas equitavit tindas fe bem
: :

que ainda entre os Poetas há ouíadias , que íe naõ


confentem ; como a do Botelho no Alfonfo :

A gritos de efplendor for dos los ojos*

«•

AAUegoria he huma fimultanea continuação de


Metaphoras , como efta de Cicero
t= Nem fui taõ tímido, que tendo governado a náo
da Republica nas maiores tormentas , e trazendo-a a
falvamento , me amedrentaíle a pequena nuvem do
teu femblante , com o contaminado animo do teu Col-
lega: Eu vi outros ventos ; eu conheci animofamente
outras tormentas, e naõ me deíanimei nas tempefta.
des imminentes, antes eu íó me facrifiquei pela fal-
vaçaô de todos, ps
Eis-aqui outra do Padre Vieira :

í=: Alli , onde chega o prezente , e começa o


futuro , era atégora o Cabo de Naõ. Naõ havia hifto-
riador , que dalli paflafle hum ponto com a narração
dos fncceííòs da fua hiftoria naõ havia Chronolo-
:

gico , que dalli adiantaííe hum momento a conta dos


ieus annos , edias: naõ havia peníamento , que ain-
da com a imaginação ( que a tudo fe atreve ) deíTe
hum paílo feguro mais adiante naquelletaõdefufado
caminho. O que confufamente fe reprezentava adi-
ante , e ao longo deite Cabo era a carranca medonha,
e temerofiflimo Bojador do futuro; coberto todo de
névoas, de fombras, de nuvens eípeiFas, de eícuri-
dade
OU ARTE DE RHETORICA. 1*9

dade, de cegueira, de medos, de horrores , de im-


polliveis. Mas íe agora virmos desfeitas eftas névoas,
deívanecido efte efcuro , facilitada eíta patfagem , do-
brado efte Cabo , fondado efte fundo , e navegável,
e navegada a immeníidade de mares , que depois delle
#e feguem , e ifto por hum Piloto de taõ pouco no-
me , e em huma taõ pequena barquinha , como a do
nòfíò limitado talento, demos os louvores a Deos , e
ãs difpofíçoins da íua Providencia , e entendamos que
h paflou o Cabo , porque chegou a hora. s
Para os Poetas , a melhor Allegoria he a de Ho-
rácio na Ode da Guerra Civil 9 do livro primeiro :

O* navis referente in maré te novi


Fluâíus O' quid agis ? fortiter occupa
:

Portum : nonne vides , ut


Nudum remigio latus
Et malas celeri Jaucius Africo
Antennaque gemam ? ac fine funibus
Vioc durare carin<$
Pojjint impériofius
Alquor ? non tibi funt integra Hntea
&c.

Pela náo , fe entende a Republica , as cndas pe-


la guerra civil , o porto pela paz , os remes pelos foi-
dados , os marinheiros pelos Magiílrados , os maftros
pelos Capitaens &c. ,

Naõ deve ficar em filencio a Allegoria daquelle


Dialogo entre os Francezes , Hefpanhoes e Italia-
,
nos na occafiaó em que fubio ao Pontificado Urba-
fio VIII. , que por fer da Cafa Barbarina
eraó as abe-
lhas o brazaô das íuas armas.

Gal-
140 THEATRO DA ELOQUÊNCIA \

Gallus.
Callis mella dabunt : Hifpanis fpicula figem.

Hifpanus.
Spicula fi figant , emoriuntur apes.

Italus.
Mella dabunt cunâiis : nullifua fpicula figent ;
Spicula nam Princeps figere nefcit apum.

Parece*meque o meu Leitor fe naô defgoftará , de


que eu IJue dê a tradução.

Francez.
Mel aos Francezes darão
as abelhas Bar batinas ,
e aos Hefpanboes o ferrão.

Hefpanhol.
Se forem taô ferinas ,
ellas
que o ferrão queirão metter f
Certamente haõ de morrer.

Italiano.
O mel a todos lhe vem ]
a nenhum a ponta dejlra ;
porque em fim a abelha meflra
nao [abe ferir alguém.

Amais engenhofa , e elegante Allegoria lie a


daquelle dyflicho de hum Governador de huma Pra-
ça do Império , ao qual convidou hum Rei Francez
com huma grande promeffa para que lha entrega ílè:
Chamava-íe Petra ao Governador , e reípondeo por
efte modo
Sum
:

OU ARTE DE RHETORICA. í4í

Sum petrapetrcfo non crefcunt lilia


;
fundo :

In petris aquilae nidificare Jolent.

De que eu também fiz a tradução feguinte

Sou pedra nunca em caminho


; e
taõ duro os lírios tem medra :

as águias he que na pedra


cojiumao fazer o ninbo.

§.

AMetonymia que também fe chama Hypallagey


,

ou TranfnominaçaÕ, he quafi taõ valia , como


a Metaphora , e naó menos frequente Por quatro :

modos principaes he que delia fe ufa :

Primeiro , quando a caufa fe põem em lugar do


effeito, ou o Author em lugar da obra , que faz, e
o Inventor da que inventa. Daqui vem o tomarmos
Marte pela guerra , Vulcano pelo fogo , Diana pela
caftidade, Mercúrio pela eloquência : com eíta figu-
ra diíle Chrifto Hahent Moyfen ,
: Prophetas , to- &
mando os Prophetas, e a Aloyíés pelos feus livros*
Virgílio tomou Baccho pelas vinhas : Bacchus
amat colles ; e a Ucalegon pela fua cafa ; pro- Jam
ocimus ardet Ucalegon.
O fegundo modo he quando fe tomaõ os eíFei-
tcs pelas caufas o mefmo Poeta tomou a traição de
:

Sinon pelo mefmo traidor.

Accipe Danaum infidias


Difce omnes.
,
—&—
crimine ab uno
. —
Ou quando fe attribue ás caufas o que he pró-
prio dos efíeitos. Horácio attribuio á morte a cor,
que
i 42 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

que ella produz nos defuntos : Pallidamors xquopuU


jat pede :

Virgílio deo a mefma cor ás doenças; eatrifte-


za á velhice :

PallefHefque habitant morbi , triftijquefeneâlus.

O terceiro modo he quando fe toma a coufa,


que comprehende pela comprehendida : Tom a-fe Ro-
ma pelos Romanos , o Ceo por Deos , e a Terra pe-
los homens.
O
quarto modo he quando fe tomaõ as infignias
pelo meímo, que ellas indicaó tomaõ-fe as armas :

pela guerra, e as togas pela paz.

ESpecie àQMetonymiahezMetalepfu ,
pois com
tranfpomos huma dicção daquelle fignifica-
ella
do , que ella devia ter , fegundo as antecedencias
para outro que naõ tinha. Alfim o fez Virgílio quan-
do fignificou pelas efpigas os Eftios , c pelos Eftios os
annos

Pq/l aliquot ( mea regna ) videns mirabor ariftas*

§.

também fe executa por quatro mo-


ASynedocbe
dos : Primeiro , quando fe toma a parte pelo to-
a ponta da efpada pela mefma
efpada Oví-
do como :

dio Jugulum mucrone


:
refolviti ou a quilha pela nao

Virgílio ;

Non anni domuere decem non mille carin


,
£ Ah
: : :

OU ARTE DE RHETORICA. i4j

O Abbade de Sambade na Carta de Affònfo de


Albuquerque ao Rei D. Manoel

Já do indignado Oceano
as rompentes qy ilhas vofjas
tinhaõ j mais que dividido 5
efcandalizado as ondas.

Por efte mefmo modo fe toma a vida ou a al- ,

ma do homem pelo mefmo homem Cicero nas fuás :

Epiftolas Vos mea cbari/Jima anima fapi/Jimè ad


:

me fcribite &C.
E
aqui pertence também a vulgar licença de fe
tomar hum
por muitos , como fez Virgílio : Hojiis
habet muros , ou muitos por hum , como Cicero : Nos
populo impofuimus , &
Oratores viji fumus ; e Oví-
dio:

Nos jragili ligno vajium fulcavimus aquorl

O fegundo modo he quando tomamos o todo


pela parte como o mefmo Virgílio
:
, que tomou
anno pela eftaçaõ do Inverno

——
Quam multa ghmerantur aves , ubifrigidus atínus
Trans pontum fugat.

Oterceiro modo he quando recebemos a coufa


pela matéria de que ella foi feita , affim como o fer-
ro pela efpada: Cicero na Tufcul.
primeira :Infer-
vorum ferrum
ia
,
nao. Valério Flacco
& manus incidi [je : Ou o pinho pe-
: Volat immijis cava pinus

O quarto modo he quando entendemos a efpe-


cie pelo género : Juvenal
Qui
f44 THEATRO DA ELOQUÊNCIA 1

Qiá curtos fimulant , fr bacchanalia vivunt.

Ou o género pela efpecie , como Virgílio

Prgdamque ex unguibus
Projicit fiuvio
ales

é
AAntonomafia he huma efpecie da Synedoche \
pois , com ella , em
lugar do próprio nome ,
louvamos , ou vituperamos , com outro. Para louvar
a Cicero lhe chamamos o Príncipe dos Oradores \ e
clle para vituperar a Clodio , lhe chama a fúria, a
apejle da Republica.
Deíla figura fe ufa por três modos Primeiro :

quando a deduzimos do animo ; como Virgilio cha-


mando a Eneas Magnanimus Ancbifiades. Segundo
:

quando a tiramos do corpo , fignificando pelo gigan-


te , a Polyphemo : Terceiro , por hum cara&er ex-
trinfeco , como fez o meímo Poeta faliando do meni-
no Troiío ;

Infeliz puer }
atque impar congrejjus Acbilli.

§.

ASylkpfis também he outra efpecie de Synedo-


che , pois com ella accommodamos hum verbo a
duas fentenças diverfas: o mefmo Virgilio: Sociis ,
&1
Rege recepto. E na Écloga primeira

Sunt nobis tnitia poma ,


Cajlane* molks , &* prejji copia laótis.

A Ironia
OU ARTE DE RHETORICA. s 45

§.

A Ironia he dizermos o contrario do que as pala-


vras fignificaõ, por iílo lhe chama Quintiliano
prattica contraria , dijjimulada , e illufiva : eíta figura
ie percebe algumas vezes pelo obje&o , a que leap.
plicaõ as palavras , ou pelo geílo , com que fe inti-
maó , ou pelo medo , com que fe iaz a pronuncia-
çaõ porém como iílo fó os olhos , e os ouvidos o
•,

percebem , naó pofia dizer fenaõ da Ironia , que fe


iaz com as vozes.
Aborrecendo Cicero mortalmente a Clodio , falia
da íua morte por efte modo na Oraçaõ pro Milone.
:= Chora o Senado , entriftece-íe a Ordem Eque-
ftre, toda a Cidade eftá contaminada com o luto, os
municípios fe achaõ incultos , eftaó affli&as as Co-
lónias, e finalmente os mefmos campos fufpiraó por
hum taô benigno , taõ fingular , e taó pacifico Ci-
dadão. =í
Mais atrevido , e naõ menos irónico eftá o Pa-
dre Vieira naquelle inimitável Sermaõ , recitado no
Templo da Senhora da Ajuda : AÍIim , fallando com
Deos.
Abrazai, deftruí, confumi-nos a todos ; mas po-
g2
de que algum dia queirais os Heípanhoes , e Por-
fer
tuguezes , e que os naõ acheis. Hollanda vos dará
os Apoftolicos conquiftadores , que levem pelo Mun-
do os Eftandartes da Cruz Hollanda vos dará os
:

Pregadores Evangélicos, que femeiem nas terras dos


Bárbaros a doutrina Catholica , e a reguem com o
próprio fangue Hollanda defenderá a verdade dos
:

voílos Sacramentos , e a atithoridade da Igreja Ro-


mana Hollanda edificará Templos Hollanda levan-
: :

tará Altares: Hollanda coníagrará Sacerdotes, e of-


ferecerá o Sacrifício dovoíTo Santiílimo Corpo Hol- :

K landa
í4 6 THE ATRO DA ELOQUÊNCIA,
landa em fim vos fervirá, e venerará tao religiofa.
mente , como em Amfterdam Meldeburg , e Fliílin-
,

ga , e em todas as outras Colónias daquelle frio , e


alagado Inferno íe eftá fazendo todos os dias. 33
Até o mefmo Deos ufou da Ironia no peccado
do primeiro homem :

es Ecce Adam quafi anus ex nobis fadias eji ,


fciens bonum , & malum. 53

§.

Milito fémelhante á Ironia he a AntipBrafis r


em que eíta he Ironia , com huma
e fó diífere
,

fó palavra , e aquelia com muitas. Com ella fe cha-


marão Parcas àparcendo ás três crueliflimas Irmaãs \
e Eumenides ás fúrias Infernaes , fendo que Eume-
mdes quer dizer benevolência \ com a meíma figura
íe chamou bellum á guerra,

O Sarca fmo
he outra efpecie de Ironia , e fó com
adifferença de conter maior acerbidade , e def-
prezo. Comeile infultavaó os Judeos a Chriíto na
Cruz,
zzVah ! qui deftruis templum Dei ,
&* in tri-
duo illuâ reedificas : Salva temetipjum fi lilius :

Dei es j defcende de Cruce .... alios J alvos fecit ,


feipfum non pote/l falvum facere* ~
§.

Tropos ; feguem-fe as figuras


Stes faó os que ,

fechamaô Verbaes , de que humas íe fazem pelo


augmentQ) outras pela diminuição , e outras pela/,?.
melhança.
OU ARTE DE RHETORICA. 247

melhança. Eis*aqui as que pertencem ao augmento:

Repetição Converfaõ
Anadiploíls Complexaó
Epanalepfis Scheíis
Conduplicaçaó Onomaton
Gradação Paromeon
Synonymia Tradução
Hypozeuxis Polyfyntheton.

$:

A Repetição , cu Anaphora , corno lhe chamaó


os Gregos P he quando 3 mefma palavra fe re-
pete muitas vezes no principio de caaa membro do
período : Cicero na primeira contra Catilina :
te Nada te moveo o noélurno prefidio de Palá-
cio Nada as vigias da Cidade ? Nada o temor do
?

Povo ? Nada a permifíaõ de todos os bons Cidadaons?


Nada efte lugar taó defendido , aonde fe ajunta o Se-
nado ? Nada as línguas , e o femblante dos Senado-
res ? a
David no Pfalmo 28: Vox Domivi in virtutc :

Vox Domini in magnificenlia Vox Domini cotifri-


:

gentis cedros.

§.

AAnadiplofis fe confegue quando fe acaba o pe-


ríodo com huma dicção, e fe principia outro
com a mefma. Eíle he o exemplo:

XJrbs Hetrufca feio jequitur pulcherrimus JJlur :

djlttr equo fidens , &


verftcoloriòus armis.

K 2 A Con-
148 THEATRO DA ELOQUÊNCIA
§.

AConverfao he contraria á Repetição , pois efta


principia, eaquella acaba muitas vezes como
meímo vocábulo. Cícero contra António.
ss Magoais-vos talvez , ó P. C. de três exércitos
deftruidos? Pois deítruio-os António. Suf pirais pelos
Clariííimos Cidadaons ? Pois eftes também vo los ti-
rou António. Eftá perdida a authoridade deita Ordem?
Pois perdeo-a António, a

ACompkxaò he hum laço , com que fe ata a Re*


petição^ e a ConverfaS , pois neíta figura fe prin-
cipiaõ muitas vezes os periodos com a mefma pala»
vra , e fe acabaõ da mefma forte com outra : o mef-
mo Cicero pro Lege Agraria :
!= Quem he o Author defta nova Lei ? Rullo :
Quem he o que pertende tirar o direito dos votos
á maior parte do Povo Romano ? Rullo :Quem he
o que tem hum fegredo prevenido, paranaõ fahirem
das urnas fenaõ os nomes dos Tribus , em que elle
fe confia ? Rullo : Quem nomeará os Decemviros ,
conforme os íèus intentos , e intereíTes ? Rullo ?Quem
íerá o primeiro deites Decemviros ? He neceílario
que eu o pergunte ? O meímo Rullo. a

Ainda com a Epanalepfis fe logra melhor efta


conrefpondencia ; pois fe principia, efe acaba
com o meímo vocábulo. OPadre Vieira naja citada
Oração das Exéquias de D. Maria de Attaide :

p: David patinava de quaó eítreitamente lhe mé-


dio
: :

OU ARTE DE RHETORICA; 149

dio Deos a vida : EcCe inenfurabiles poÇuifli dies meos ;


e viveo oitenta annos David: Jacob chamava aos feus
dias poucos , e máos Dies peregrinationis me<eparvi ,
:

&* mali ; e viveo cento e quarenta annos Jacob :


Job aflombrava fe da brevidade , cem que fe via ca-
minhar á íepultura Dies mei breviabuntur , #*/ò-
:

lum mihi fupereft fepulchrum \ e viveo duzentos e


fettenta annos Job. s
He também Epanalepfts a do Doutor Salazar,
pedindo-lhe confelho Philippe IV. de Caftella fobre
a guerra de Portugal
m Confejo me pide vueflra Mageftad , y anos
há que vueftra Mageftad devia pedir confejo. =s
O Conde de Cerbelhon no Retrato penico de
Affonío VIII :

^ Los Reys nacen exemplo, pêro exemplo nd


mas , que para otros Reys. S2
Virgílio:

Ambo florentes aiatibus , Árcades ambo.

O mefmo Poeta em outra parte:

Multa faper Priamo rogitans , fuper Heâlore multa.

Naõ íb fefaz z Epanalepfts principiando, e aca-


bando , com huma dicçaõ , mas também cem duas 1.

Permitta-fe-me hum exemplo de Marcial ainda que ,

diflufo •, porque naõ me kmbra cutro mais breve

Rumpitur invidia , quidam , cbarifflme Juli y


Qiiod me Roma legit rumpitur invtdia.
;

Rumpitur invidia quvd turba femper m omni


Motijlramur digito j rumpitur invidia.
Rumpitur invidia tribuit qucd&ejar Merque
K 3 Jus
i£ THEATRO DA ELOQUÊNCIA
Jus tnibi natorum \ rumpitur invidia.
Rumpitur invidia quod rus miht dulcefuburbe ,
Parvaque tn urbe eft domus rumpitur invidia. \

Rumpitur invidia quoct jum jucundus amicis


Quod conviva frequens ; rumpitur invidia.
Rumpitur invidia quodamamur, quodque probamur
Rumpatur quifquis rumpitur invidia*

AConduplicaçao chamada Epizeuxis pelos Gre*


,

gos, he quando repetimos juntos, ou hum, ou


muitos vocábulos. O Padre Vieira
mAgora , agora Oradores Evangélicos he o tem*
po de aproveitar da occaíiaõ. s
Virgílio:

Nunc 9
num infurgite remis
Heâíorei focii

O mefmo Poeta em outro lugar:

Me me adfum
, ,
quifeci > in me convertiteferrum >
O Rutuh : mea fraus omnis &c.

E ainda com mais força para exprimir â alegria


de Achates chegando á vifta da Itália

It aliam , ltaliam , primus conclamai Achates ;


It aliam , l<eto focii clamor e falutant.

A Gradação, que os Gregos eh amaõ Clímax i


a
faz com que fubá, oivdefça a Oraçaó por huns
certos
: : :

OU ARTE DE RHETORICA. iyi

certos degráos : Confunde-fe eíla figura com o argu-


mento , a que chamamos Sorites , de que ja fizemos
menção: Cicero a praticou , efcrevendo a Attico:
ss Se dormes , levanta-te : fe te levantas , anda : fe

andas , corre : fe corres , voa. &


Tertuliano nos dá outro exemplo no livro dos
Efpeétaculos
te A quem , fem Deos , eftá a verdade defco-
berta ? A quem ie deícobre Deos , fem Chrifto ? Por
quem foi Chrifto procurado, fem o Efpirito Santo ?
A quem fe ajuntou o Efpirito Santo , fem o Sacra-
mento da Fé ? s=s
§.

UZamos da Sytionymia quando fe trata de algp-


,
ma coufa grande , e amontoamos as palavras $
ou as fentenças para explicar o mefmo conceito.
Para as fentenças Cicero na Oraçaõ pro Milone
ss Por ventura fois vós fomente os ignorantes?
Sois eílrangeiros era Roma ? Eftaô , fem attençaó , os
voffbs ouvidos? Naô andaô coftumados ás pradicaspu*
blicas da Cidade ? z:
Para as palavras , Saluftio :
ts Maximis , ducibus y fortibus , ftretmique wi~
tiijlris. aoJ

E o Cómico Plauto

Quicunque ubique funt^ qui fuere , quiqUefu»


"
turifunt
Stulti , fioltdi , fatui , fungt > blenni , buccones.

K 4 A Hy<
15* THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

A Hypozeuxts dá hum verbo a cada claufula co-


mo fepóde notar neíles verfos de Virgílio :
,

Regem adit , & Regi memorat, nomenque, genufque


Qutdve petat quidve ipfefuerat Mezenttus arma
, :

Qu<e fibi conciliei violentaque peâlora Turni


,

Edocet , humanis qu<e fit fiducia rebus


jldmonet)immifcetque preces faudfit mora Tarchon
Jungit opes , fcedufque ferit* »
^ ~
§.

AScheJis Onomaton dá hum epitheto a cada fub-


ftantivo com ella podemos dizer
: :

cr A frefca Primavera o fecco Eftio o fgcun»


, ,

do Outono , o eíteril Inverno. ;=?

Om
c com
a
a
Paromeon principiamos
mefma letra j como
diverfas dicçoens
neíle verfo :

O Tite tuti tate tibi tantatyranne tulifti.

Ou neíle :

Machina multa minax minltatur máxima muris*

§.

NA Tradução
os Gregos ,
, ou Polyptoton
fe variaõ os géneros
, como
, ou
a nomeao
os caíòs,
ou 05 modos, ou os tempos > com o meímo vocábu-
lo j
;

OU ARTE DE RHETORICA. 153

lo ; e he o que fez Cicero na Oração pro Archia


poeta :

S=seftaõ todos os livros , cheias as vozes


Cheios
dos fabios , cheia a antiguidade de exemplos. =3
Hum fó nome, variado por diverfos cafos le acha
nos verfos feguintes :

Cum vanitas ftt vanitatis filia ,


Et vanitati vanitatem procreet ,
Q> vanitas , quid vanitate vanius ?

A mefma Tradução fe acha neíle verfo á morte


de Chrifto :

Mors, mortis, morti, mortem> mors> morte dedijli*

APolyfyntbeton > ou Polyfyndeton , como outros


lhe chamaõ , fe coníegue , quando a Oração
abunda de muitas conjunçoens. Virgílio :

Athamafque T boafque , •

Pelidefque Neoptokmus * primufque Macbasti.

E em outra parte :

jífcaniutnque, patremque meum.jttxtaque Creufam.

Porém rariífimas vezes fepóde ufar na noíTa lín-


gua defta figura , antes omittir as conjunçoens , fera
maior elegância , como praticou Jacinto Freire na vi-
da de D, Joaô de Caftro,
Eftas faó as figuras Verbaes que pertencem ao
,
ãugmento , agora direi das querefpeitaõ á diminui-
ção , que fe reduzem a féis
Reti-
154 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

Reticencia verbal Dyafyrmos


Adjunção verbal Charientyfmos
Dijunçaõ verbal Hyperbaton.

A Reticencia verbal he quando fe entende algu-


ma palavra na Oraçaó que fem ella ficaria im-
perfeita. Cicero contra Verres :
,

es Por ventura a efte homem ? Por ventura a efte


defaforo ? Por ventura a efte atrevimento taí
Entende-íè o verbo foffreremos.
Virgílio

At vero Rutulis impar ea pugna viãeri


Jam dudum , &* vario mtfceri peâiora motu.
Ao infinitivo videri , fe entende ccepit , e ao infini-
tivo mijceri, feentende cceperunt*
Na noíla lingua temos outro exemplo , com a pri-
meira quadra de hum Soneto , feito á morte do Mar-
quez de Marialva :

Effe triumphador do adverjo fado ,


A(Jumpto ao pafmo em partes dividido ,
Amado pelas fuás , e temido ,
E nas quatro do Mundo respeitado.

§.

Adjunção^ ou a Zeugma , fegundo os Grego»,


A he quando a hum fó verbo conrefpondem mui-
tos fubftantivos : Cicero :
sr A* lafcivia vence a vergonha , ao atrevimento
o medo, á loucura a razaô.;=3
Porem
: ,

OU ARTE DE RHETORICA. 155

Porém deita figura há três efpecies, que faõ : Pro-


tozeugma Mefozeugma , Hypozeugma.
?

A
primeira he quando o verbo eftá no princi-
pio da Oração , como neíle lugar de Cicero. fe- A
gunda quando o verbo fica no meio , como no ter-

ceiro da Eneida.

Trojugen a interprés Divum ,


quinumina Ph<ebi ,
Qui trtpodas , clarii lauros , qui fidera jentis ,

Et volucrum línguas ,
&* prapetts omina pemi<e.

A terceira he quando o verbo fica no fim da


Oração ; como acha no meímo Cicero
fe :

tr JSleque enim ts es Catilina , nt te , aut pu-


,

dor à turpitudine ,
, aut metus à periculo > aut ratio
à furor e revocarit. s
§.

ADijunçaS , ou Diffoluçaõ verbal , chamada


Afyntheton pelos Gregos , fe verifica ,
quando
omittimos na Oração as particulas , e as conjunçoens :

O inefmo Cicero:
;=: Eftes defejos das letras alimentaõ à^ mocida-

de , recreaõ a velhice , concedem o allivio , e o afylo


nas adverfidades, deleitaõ em cafa , naõ emharaçaõ
fora , pernoitaô comnofco y fempre nos acompanhaõ
amaó a fpledade.^:
§.

COm o Dyajyrmos augmentamos as coufas pe-


quenas , e diminuímos as grandes. Com eíta fi-
gura di/Ie Cicero
t: Antes quero imitar a negligencia dos Catoens 5
que a prudência dos Caulinas. s=j

OCha-
i S6 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

§.

OCharientyfmos he quando explicamos ascoufas


mais acerbas com termos
fuaves Os Romanos :

uíàvaó defta figura , dizendo que viviaõ os que ti-


nhaõ mandado matar , como fuccedeo a Cicero quan-
do mandou enforcar no cárcere os companheiros de
Catilina.
§.

UZa-fe do Hyperbaton quando por mais elegân-


cia alteramos a devida ordem , e collocaçao
das palavras como nefte exemplo de Cicero , refe*
,

rido por Quintiliano


Animadverti , Judie es omnem accujatoris
t= ,-

Orationem in duas divtjam e/Je partes. =3


Pela ordem natural devia dizer Omnem oraúo- :

nem accttfatoris divijúm efje in duas partes ; e por


attender ao numero do periodo he que alterou efta
diipoíiçaõ A maior parte dos vários maiores de Luiz
:

deGongora eftaó produzidos, com efta figura, o que


fe naõ deve imitar , porque álèm de eliar nelles ufa-
da , com grande atrevimento , e deíproporçaó , no
que confiftia algum dia a cultura Heípanhola , hepre-
cifo introduzi-la , com grande moderação , e necef?
íidade.

A S figuras verbaes
também

Paronomafia
féis
,
que tocaõ á femelhança , faõ

Prolepfis
Semelhante cadencia Homeoíís
Semelhante decadência „ Metaítaíis.

A Paro-
: ,:

OU ARTE DE RHETORICA. 157

§.

AP ar onomafia, ou a Annominaçaõ, como outros


lhe chamaõ \ he quando as vozes quafi feme-
Ihantes, ou conrefpondentes fazem diverfo fentido
daquelle> que ieefperava da lua femelhança , ou con-
reipondencia.
Executa-fe por três modos efta figura Primeiro :

pela alteração ; como Séneca :

zzNibil in Natura tam Jacrurn^ eft , quod fa-


crtlegium non inveniat. P!
Como Tullio contra António :
es Cum in grémio mimaram mentum , & men-
tem deponeres. :=:

Como Heródoto Qu# : nocent , docent.


Como S. Bernardo:
Hoc agant inCellis^ quodAngeli
çs in Coe lis. =3
Ou como Marcial

Qui modo ficus eras ,


jam caprificus eris.

Segundo pelo equivoco, como aquelle a Satur-


no f que comia Edit quos edit
os filhos : como o :

outro a hum íoldado Eunuco Tela te decet , non


:

tela : Ou como o que fe applicou a hum Orador


caçador de lebres :

es Cttius camporum lepores , quam oratorum le*


pores ajfequeris. =q
O terceiro por eco. Inventus eft nifi ventus :
Nullum eft dijerimen , nifi crimen : hum rio dei- A
penhado Diruit , dum ruit : Cefar diíle Qúot in-
: :

feólatores habuerat , babuit feólatores Cícero Res : :

mtbi invifa , vij£ Junt. E era veríb diíle também

O fortunaiam natam 3 me conluie , Romam.


Também
158 THE ATRO DA ELOQUÊNCIA,
Tambcm na noíla lingua temos algumas Paro-
fjomafias : que me lembrarem do Padre Vieira :
darei as
s= Pedro deixou as redes, e os enredos: Haverá
algum deites omnipotentes, que fetenhaó accufado
deite peccado ? Accufado naô, eícufado fim E quan* :

tos peccados vos parece que irâó envoltos neítas


envoltas ? &c. zz
Porém ainda que temos o exemplo de homens
taõ grandes, me cofiaria muito a uíàr deita figura por-
5
que naõ fó faz froxa , mas ridícula a Oração.

§.

A Semelhante cadencia he huma conreípondencia


de vocábulos pelos mefmos cafos , e tempos ,
como fe vê nefte exemplo de Cícero :

t=:Que couía pode fer taócommua, como a alma


aos viventes , a terra aos defuntos , o mar aos flu-
ctuantes, a praia aos lançados das ondas ? sa

§.
SEmelbante decadência he quando os membros , ou
as partículas do periodo acabaõ domeímomodo:
O mefmo Cicero pro Lege Agraria :

c: Apparelhou a guerra no fim do Inverno , re-


cebeo-a no principio da Primavera , acabou-a no meia
do Veraõ. :=;
E Quintiliano :

=: Naó pode fer que o homem obre fortemen-


te , e viva torpemente, á
§ '

AProhpfis fe quando ao principio fe ex-


verifica
plica o fentido da Oração , e ao depois fe am-
plifica ; aíTim como :

~Ro-
OU ARTE DE RHETORICA. i
S9
^Roma teve dons Reis, que muito a illuítra-
raó : Rómulo na guerra > Numa na paz. z:
Deíla figura uíou humtxoílò Embaixador em Fran-
ça que perguntado, depois d^ Acclamaçaõ , que par-
tido tomaria , fe Portugal cahiííe outra vez no do-
mínio de Caftella , reípondeo :
~Que íeadefgraça folie tanta, que aíílrnfuc-
cedelle , que antes íe havia de entregar aos Turcos,
que aos Caftelhanos ; porque Te na Turquia defender
a Fé, ferei Martyr, fe apoftatar lerei Baxá ; e em
Gaitella , nem Baxá , nem Martyr. ^

AHo?neofis explica pela femelhança huma coufa


menos conhecida , com outra mais notória :Vir-
gílio 3
para nos moftrar a grandeza do Cavallo Troiano^

Inflar montis equum , divina Palladis arte ,


JEdificant* -*

i
AMetaflafiS propõem o que eílá para fucceder ,
ou, inda que naó fucceda, fe efperava queíiic-
cedeíTe Camoens introduzindo ao Gigante Adamaílor
:

a pronoíticar os íados Lulitanos :

Pois vens ver os fegredos ejcondidos


Da Natureza , e do húmido elemento ,

A nenhum grande humano concedidos ,


De nobre , ou de immortal merecimento :

Ouve os damnos de mim que apercebidos


,

Eftaõ a teu fobejo atrevimento


Por todo o largo mar , e pela terra ,
Que inda has de fojugar com dura guerra.
&c. A Ow-
i6o THE ATRO DA ELOQUÊNCIA,
§.

AQnomatopea he huma ficção do nome com que ,

fe imita o íom ou o ruido de qualquer couía


,

animada , ou fem alma eis-aqui o exemplo neíle


:

verfo :

Hórrida per campos bum bum bombarda fonabant.

E também neíle

At tuba terribilis taratan tarantara dixit.

Pedro Calderon na Comedia : Affeâlos de ódio , y


amor

toca trompeta
Envez de (alva yd, ,
con voz màs clara ,
La botajela el monta
, , y la tarara.

Com eíla mefma dizemos que as abelhas,


figura
e os mofquitos zunem : Que
o Leaõ ruge Que o :

%2Xomeia\ Que o jumento zurra: Que o lobo hutva :


Que o porco grunhe Que oelephante brama Que
: :

o gallo cucurrica Que a gallinha carcareja Que o


: :

melro a(jovia Que o pato gafna


: Que o morcego :

range Que o coelho , a lebre , e o gato chia Que


: :

oscanhoens efbombardeao Que aseípingardas esfu*


:

zihw.
Alguns Rhctoricos mettem a Tranfiçaó no numero
das figuras por eíla caufa a porei também neíle lu-
:

gar. A TranfiçaÕ he aquella advertência , com que


no meio do difeurío , ou no principio infinuamos o
que nos reíla ainda por dizer: Cicero proLegeMa-
nilia
^DiíTe
:

OU ARTE DE RHETORICA* 161

es Difíe do género da guerra , agora direi bre-


vemente da fua grandeza, s*
Suetonio : i=s Atéqui do Príncipe, agora do mcn-
ftro.^s
António Solis na Hiftoria de México :

Mas antes de chegar ao immediato do noflò


t:
empenho fera bem que digamos em que poflura eí-
, ,

tavaõ de Hefpanha , quando le deo princi-


as coufas
pio á conquifta daquelle novo Mundo , para que fo
veja primeiro o feu principio, que o leu augrcento^
E em outra parte da meíma Hiftoria :

t= Porém ja parece necelTario o faberrros queiit


era Motezuma que eftaiíO tinha nefta occaíiaõ a fua
,

Monarchia , e porque razaõ íeaíluftou ella tanto, e


os feus vaflallos , com a vinca dos Hefpanhoes. z$
Ainda fe acha no n^elmo Author a feguinte 2ran«
jíçqq :

t=í Porém antes de referir os fucceíTos daquella


Corte , nos chama á lua deícripçaô a grandeza dos
feus edifícios , a fua forma de governo, e politica,
com outras noticias , que íaô convenientes , para in*
telligencia, ou conceito dos mefmos fucceílòs: def-
•vios da narração , neceílarios na hiftoria , como naõ
fejaô peregrinos do argumento , e careçaô de outros
Refeitos , que fazem viciofa a digreflaô. s
O noílo Camoens nas Lufiadas

Primeiro tratarei da larga terra ,


Depois direi da fanguinofa guerra*

§•

AQui tenho dado


fazem mençaô
as principaes figuras , de que
os Rhetoricos; feguem-fe agora
os defeitos da Ekcucaõ , de que tratarei no
L CAPI,
ióí THEATRO DA ELOQUÊNCIA

CAPITULO II.

OS defeitos da Elocução faõ três


Ejcuridade , Defordem. A.
: Barbaridade f
Oração barbara fe
divide em barbarifmo e folecij no : barbarifmo
, O
he de dons modos , hum da pronunciaçaô , outro da
efcripta. O
da pronunciaçaó he fazer huroa fyllab* bre-
ve , fendo longa e huma longa , fendo breve
, : O
da efcripta he pôr huma letra em lugar de outra ,
ou efcrever con duis letras , o que há de fer com
huma , ou com numa o que há de fer com duas j e
também fo cahe n barbarifmo ou accrefcentando ou
> , ,

diminuindo ou mudando , ou tranímudando as letras


,

ou as lyllabas.
Accrefcentando como Mavors em lugar de Mars \
,

ou Mavorte em lugar de Marte. Diminuindo, como


jalmentum , em lugar de j aljatnentum jur dição em :

lugar de / uri/di ç ao Mudando , como petnucies em


:

lugar de permeies : derruba em lugar de derriba.


Tranfinudando como difplicina em lugar de difet- ,

plina Madanella em lugar de Magdalena e da mef-


: ;

ma forte fe faz o barbar tfmo com os tempos , ja di-


minuindo-os ,
ja augmentandoos.
Há outra efpecie de barbarifmo , que fe chama
Labdaeifmo , e he quando pronunciamos as fyllabas
com demafiada força , e impero , pois defte modo
parece que fe diz moultis em lugar dzmultis: moo/-
lis em lugir de mollis.
Aqui pertence também o Etacifmo^ que he quando
damos maior fom á letra ^E=; , que aquelle , que
fe lhe deve: lifte vicio he muito frequência na noíla
Trovin-
,

OU ARTE DE RHETORICÀ. 163

Província do Minho, sonde fediz sr perra , dedos ,


cavèça , com todo o^j E != aberto , devendo fer fe-
chado.
He igualmente defte lugar o que fe chama traulip»
mo , que he a repetição da íyllaba quando fe titubea
com a lingua , e aífim pronunciaó alguns cacamt em
lugar de canit Tutullius em lugar de Tullius.
:

O Solecifmo he huma deíigual , eimproporcio-


nada compofiçaõ das partes da Oraçaõ , como por
exemplo: Acuta gladius em lugar úzgladtus acu~
tus. Diftere do barbarismo , em que eíle he vicio da
dicçaõ , aquelle da Oraçaó.
Por quatorze modos fecahe no Solecifmo : Pri-
meiro, pela mudança dos géneros , pondo o femi-
nino pelo mafculino , ou o maíeulino pel< feminino»
Segundo , pela mudança dos números cm
efahate
foliando com huma íó peíloa em lugar àefnlve, aonde
t

ie toma o plural pelo fivguiar ; porém eíle vicio


ás vezes le toma por elegância com a figura Synedtche.
Terceiro , pela mudança dos calos como : 11*
,

Iam , quem quaris , ego fum , em lugar de 11le ,


quem quiris , tomando o accuiativo pelo nominativo.
Quarto, pela mudança das pelicas ceno: pà$
,

vai , quiparent Âtridis , quamprimum arma imite f


em lugar de qui paretis , tomando a terceira peíloa
pela iegunda ,
Quinto , pela mudança dos tempos , como Fu* :

mat Neptunia Tróia, em lugar defumavit , toman-


do-le o prezente pelo futuro.
Sexto pelas qualidades, como Spoliavtitr eos, &*
, :

corpora ruda riliriquunt , cm lugar de fpoliant fin-


gindo o primeiro verbo, com a a&ividade, que naõ
tem.
Settimo , pela mudança des modos, como: Itis
paratis arma em lugar de Ite parote arma , temsn-
5 ,

L 2 do-íe
X 64 THEATRO DA ELOQUÊNCIA
do-fe o Indicativo pelo Imperativo.
Oitavo , pela mudança dos advérbios , como :
Vbi ducis aftnum ijlum , em lugar de qub ducis \
tomandofe a quietação pelo movimento.
Nono , pela mudança das propofiçoens , comoí
Sub lucetn ibant , em lugar de ante lucem , tomando*
fe a imminencia pela precedência.
Decimo, pela mudança dos gráos , como : Ref-
pondit jfuno faturnia janota Deorum em lugar de
Sanciiljima , tomando fe o poíitivo pelo fuperlativo*
Decimo primeiro, pela mudança das conjugaçoens,
como

At capys
, &
quorum melior Jentetitia menti ,
Aut pélago Danaum infidias , fufpeôiaque dona
Pr<ecipttare jubent rJubjeóiifque urere flammis ,
Aut terebrar* cavas uteri , <y tentar e latebras.

Tomando a conjunção copulativa pela diíjun-


ítiva , e a diíjundiiva pela copulativa.
Decimo fegundo , pela affirmaçaó de duas nega-
çoens , como Nihil nunquam peccavit , em lugar
:

de Nihil unquanu
Decimo terceiro , pela falta deaccentos nasdic-
çoens , quando delles neceflUa a Oração.
Decimo quarto, pela mudança da ordem daspa->
lavras como JEdituufque Sacerdos cantant , em lu-
, :

gar de JEditttus , Sacerdofque cantant.

AEfcuridade da elocução fe divide em duas ef-


Amphibologia e Synchefis. A Ampbi-
pecies : ,

bologia he huma indifterença de fentenças ou de


,

palavras , que fe pódeacgommodar a dous íentidos


con-
OU ARTE DE RHETORICA. i6y

contrários. A
equivocaçaó deites dous fentidos pode
fer dedous modos, hum viciofo , outro elegante: O
vicioÇo heaquelle, em que íè naõ diftingue o nomi-
nativo àg accufativo, nem o aceufativo do nomina-
tivo. Deitas amphibologias he de que ufavaõ os Orá-
culos Gentílicos , ou proferidos pelo demónio , ou
pela aftucia dos Sacerdotes O de Delphos difte a
:

Pyrrho :

Aio te JEacida Romanos vincere poffe.

Aonde naó conhece fe os Romanos haviaô


fe

de vencer a Pyrrho fe Pyrrho aos Romanos \ e com


,

o mefmo engano refpondeo a Creíío na guerra dos


Medos.
O£/^0»^hequandodepropofito , por alguma
razaõ particular ordenamos a Oraçaõ deforte , que
fe porfà conftruir por dous modos , e ambos de dous,
com fentido contrario. E em termos que com a meí- ,

ma Oraçaõ fe poíTa louvar , e vituperar, lilònjear?


e ofFender &c.
§.

ASynchefts hum
labyrintho de vozes pela ir-
he
regularidade da fua collocaçaõ , qwe faz a Ora-
ção inintelligivel ; aflim como elta doíegundo Imo
da Eneida :

Jttuenes fortiffima , frujlra ,


Peâlora , fi voeis audentem extrema cupido eft
Certa jequi ( qu& fit rebus fortuna videtis
Exceffere omties adytis , arifque reliâiis
Dii quibus Imperium hoc fteterat ) fuecurritisurbi
lncenfa moriamur ,
: &
tn media arma ruatnus.

L 3 A com
166 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

A coníufaõ cem tudo tem aqui feu género de


elegância ,
porque naqueile aperto , em que le pro-
ferirão eítas palavras parecia que a dor, ouadeíel-
,

peraçaó revolvia o conceito , e as dicçoen^.


Efta mefma elegância tem o Abbadede Sambadc
no ieu Prometbeu , com a eftancia íeguinte

Qiie Sizifo agoviado ai duro pezo y


Con fuce/Jivo afan , el monte efe ale :

Qiie alimento cruel de Ticto prezo ,


De el pecho a fieras , (in que elalma exale :

Jufto es : &c.
§.

A De (ordem
que fe
da elocução contém varias efpecíes,
podem reduzir a onze

Cacophonia
:

Pleonafmo
Periíiologia Catacbreíis
Macrologia Hyíterologia
Tapinofis Ansftrophe
Efcrologia Tmefis
Meta pia f mo.

O Pleonafino he hu-ma impertinente fuperflui-


dade na Oraçaó ; como íe dideramos
s Fallei com a boca , vi com os olhos ,
ouvi
com os ouvidos, s
Porque batta dizer : Fallei , vi , ouvi.

A es
Periffohgta lhe he muito femelhante

Eu
quando dizemos
líca-íe
vou para onde poflo
:

, e naó para
, c veri-

onde naó
poflò i
:

OU ARTE DE RHETORICA. 167

poílo : Viva EIRei , e nao morra alegre-fe , e naó


:

efteja triíte : efcolha a paz e naó queira a guerra. 33


,

§.

EM pouco differe também a Macrologia , que he


quando amplificamos a fentença com alguma ex-
plicação fria , e defneceflaría , aífim como nefte lugar
deTitoLivio :

rz Legati , non interpretata pace , retro de-


mum y unde veneram , abierunt. ss

A Tapinofis faz a fentença humilde , e acanhada


devendo fer fublime , como em Virgílio
3

i
penitufque cavernas
Ingentes , uterumque armato milite compknt.

E pedia a fentença que difleíTe : Armatorummir


litum legionibus.
§.

AEfchrologia forma Oraçaõ indecorofa na equi-a


vocaçaõ das dicçoens , ou dos termos , e uíando
de palavras , que poílcõ deixar deshoneíto o fentido :

tal he eííe lugar deSaluílio: Duâíabat arrexit , &


ânimos militum ; cu aquelle de Virgílio :

At ramum hunc ( operit ramum ,


qui vejle latebat* )

ACaccphonia he quando fe ajuntaõ duas dicçoens,


que confundem em hum a
fe fó , ccnioo zzmas
morra ;=? do noílo Camoens.
L 4 Ccmo
i68 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

Como a Cacophonia íe define : Obfcenum dióium ,


imaginarão alguns que adonde naõ houvcíle desho-
neíhdade, naõ haveria Cacophonia: porètn oadje&ivo
obfcenns figniffca humas vezes coufa impudica , outras
a de máo agouro. A impudica , como nefte lugar de
Cicero
B Nam j
&> ob [cenas voluptates , de quibus multa
apud Mos babetur Oratio. SÉ
A de máo agouro nefte de Virgílio:

Nec me terrete timentem


Obfcentf volucres.

Eaílim, fem que concorra a deshon^ílidade rz ,

pode dar Cacopboma. E eíba íe verifica cm L ^jufe-


tando, com huma, duas palavras que faç õ hum máo ,

fom na oração: Cacophaton ejltnala locutio &ma- ,

le fonans diâíum diíle Defpauterio


, o que íe pode ;

affirmar fem que o ajuntamento


, das palavras ou ,

das fyllabas , feja deshoneíto. Euja defenui iftomef-


nif) na fegunda refpofta aos reparos do Triumpho da
Religião.
§•

ACatachrefts he hum abufo do nome alheio ac- ,

cornmodado a outra fignificaçao , que lhe naõ foi


attribuida ; como quando chamamos Parricida ao ma-
tador da Mai , ou do Irmão , devendo chamur-lhe Ma*
trtcida , e Fratricida.

AHyjterologia he quando feperverte a ordem das


íentenças, como leve em Virgílio, faltando de
Polyphemo ;

Vofiquam
: :

OU ARTE DE RHETORICA. 169

Poftquam altos tetigit fluólus> & adaquora venit :

Sendo que primeiro devia vir para o mar , do


que tocaíie as ondas.
§.
AAnaflrophe he outra efpecie de Hyjlerologia ,
pois com ella fe pervertem as palavras da fua
devida íignificaçaó. Aílim como

_ Italiam contra marta omnia circum


Tranftra per &* remos.

Devendo dizer : Contra Italiam circum maria


minta per tranftra &c.
§.

ATmefis tem com a Anajirophe huma grande fe-


melhança com ella fe divide em duas huma pa-
:

lavra compofta ; aífim como Septem fubjeâia trioni 3


:

€m lugar de Jubjeda feptenirioni.

OMetaplajmo he huma transformação das dicçoens r


ou da pra&ica por caufa do ornato , ou do me-
tro , como Deúm , ou Firam , em lugar de Deorum ,
ou Virorunu Há mais treze efpecies de Metap/afmo
que faõ

Protheíis Eébfis
Epenthefis Syítole
Paragoge Dierefís
Apherefis Synereíis
Sincope Synalepha
Apocope Eclipfis
Metathefís.
Com
170 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

§.

COm Protbefis accrefcentamos huma letra no


a
principio da dicção , como Gnate em lugar de :

Note Ajtat em lugar de Stat. Virgílio.


:

multa talenta
Gnatis parce tuis

Na noíTa lingua também fe ufa da Protbejis quan-


do dizemos : enamorado em lugar de namorado , ou
acojiumado y
em lugar de cojiumado.

§•
AEpentbefts faz o accrefcentamento da letra no
meio da dicçaó , como : Navita em lugar de
Nauta. Ovidio:

Quid tibi cum gladio ? Dublam Rege, navita puppim.

AParagege faz efte accrefcentamento no fim ,


como : Accingier em lugar de Accingi. Vir-
gílio :

i Magicas invitam accingier artes.

Camoens ufou de Joanne em lugar dejoaõ:

Numa naõ, mas be Joanne,


De Portugal terceiro ,
(em Jegundo.

§.

COm Apherefts fe tira a letra , ou a fyllaba do


a
principio da dicção, como: Temno em lugar de
Contemno. Virgílio
Dtfcite
:

OU ARTE DE RHETORICA. x 7i

Difcite jufttúam mor.iti , & non temvere Divos.

Om
c a Syncope fe tira
Vixet eni lugar de fcxiflet.
do meio da dicção
O meimo Virgílio
, como
:

Vixet , cui Ditam Deus , ant fua dextra dediffet.

Com a mefma Syncope dizemos Efprito em lugar


de Ejpirito. O noílo Camoens :

Memoria fou que grito ,

Para dar teflemunho em toda a parte


Do mais gentil efprito
Que tirarão do Mundo Amor , e Marte.

COm
ou
a Apocope
a fyllaba ,
no fim da dicção a letra",
fe tira
como: Tuguri em lugar deí#-
guriu O mefmo Virgílio :

Pauperis , & tuguri congeflum cefpite culmen.

E com a mefma Apoccpe dizemos também tnar~


mor em lugar de mármore O mefmo Camoens : :

Ou tu no monte Pindafo es najcida ,

Ou mar mor te pario formofa e dura. ,

§•

COm aEâía/is , que também fe chama Dieflole,


fazemos longa a fyllaba , que de fua natureza he
breve. Virgílio :

lia*
171 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

Jtaliam fato profugus , lavinaque venit


Littora.

Italiam he breve, e aqui a fez longa o Poeta :


Hum grande engenho do noílo tempo uíou da mefma
licença na feguinte Copla :

Eftuda , eftuda os Cu jactos ,


Os Accurfios , os Barthòlos
Que wa fé de que os entendes
Tens jujtificado efirondo.

§•

ASyftole pelo contrario faz breve a fyllaba , que


era longa. Virgílio ;

totumque inftruâlo Marte videres


Fervere heucaten , auroque effulgere fluâlus.

Fervere , e effulgere eftaõ com as penúltimas bre-


ves , fendo longas.
§.

COm laba
a Dierefis dividimos
, como : Evoluiffe
em duas huma fó fyl-
em lugar de Evolviffe
Ovidio

Debuerat fufos , evoluifje fuos.

A
Synerefis he contraria á Dierefis , pois fa*
zemos de duas huma íó íyllaba , como em aheo y
que tem três , e ie acha em Virgílio com duas :

Afjueta ripis volucres P & fluminis aheo.


Com
, :

OU ARTE DE RHETORICA. *7|

§.

Om deixamos de pronunciar osms;


c a EcUpfts
quando íelhefegue vogal: Virgílio :

O f
Curas hominum ! O 1
quantum eft in rebus inane í

Ainda que â EcUpfts fe naô permitte na Poefia


vulgar , uíbu delia hum dos noffos bons Poetas nas duas
coplas , que ie feguem :

Jícuàao , que Je eu o entendo


anda ãefgraçado Apollo
pois Je lhe rebelião as palmas >
como lhe fugirão os louros.

Os Verdenegros palmares
de hum trombudo promontório^
para magoa dos luzeiros
romperão em noâlurno aborto,

§-

COm a vogal
a Synalepha fe fupprime , ou fe confunde
,
que acaba , com a outra , que princi-
pia : Virgílio :

Vrimus abit longeque * ante * omnia corpora Nijus


Emicat.

Porém a Synalepha ja naô he licença be preceito ,

Poético , e até fe executa ainda quando fe interpõem


hum dithongo : O mefmo Virgílio

lll<e * autem paribus quasfulgere cernis in armis.


E entre
i 74 THEATRO da eloquência ,

E entre os Latinos fç admitte zSynalepha com


a ultima vogal de hum verfo , e com a do principio
do outro : O
meímo Poeta :

Et fpumas mifcent argenti , vivaque fulphura*


*
Idaajque pife es.

E da mefma forte fe faz , pofto que acabe o verfo


com a letra sm^
O meímo Virgílio

jfamque iter emenfi turres , ac teâia latinorum *


* Árdua cernebant juvenes , murofque fubiôant.

$•

Om
c „ gar ,
a Metatbefis fe põem as letras fora do feu lu-
fazendo por efte modo huma diverfa pro-
nunciaçaô , como : Tymhre em lugar de Tymber :

Evandre em lugar de Evander.

§•

DEpois das figuras, e dos vicios da Elocução ,


fegue-fe o tratarmos do Período , que he huma
das fuás partes mais eílenciaes, e das mais delicadas,
que tem a Rbetorica , o que farei no

£"<"'--' * '' '


*-^P~fr
]

I TfínffSK/9

LI
,

w
LIVRO IV
CAPITULO I.

O Período he huma contextura de vozes , or-


denadas por tal modo que façaó huma ora-
,

^aõ perfeita , a qual fe deve proporcionar,


com as forças da reípiraçaó.
Entre os primeiros Oradores da Grécia , aonds
teve a Rbetorica o feu mais illuíire principio ain- ,

da fe adomavaõ as Oraçoens de pompofas fentenças , e

raras vezes fe mediaó as claufulas , com a refpiraçaô,


antes , com hum fimultaneo , e dilatado concurío de
palavras , fe-faziaó femelhantes ao canto das Cigarras.
Naó íe fazia ponto até a matéria naõ eltar aca-
bada , e primeiro fe enfaftiavaõ os ouvintes, do que
a oração tomaíle algum alento , e o Período defcanfo.
Do Areópago paílbu eíla prolixidade rhetorica
para os roftros Romanos, e foi muito valida com os
primeiros Declamadores por lhes parecer que levan-
do muito tempo fuípenfo o fentido da Oração, gran*
geavaô mais a attençaõ , que o faftio do auditório.
E naõ deixou de inficionar efte contagio ao mef»
mo Cicero na fua mocidade ; pois Cornelio Tácito
que lhe pôs nas mãos a palma da eloquência , lhe no-
tou nas primeiras Oraçoens algum fabor da elegância
Grega. Elle mefmo confellou ingenuamente íèr-lhe
precitoimmudecer, quando principiava a faher fallar.
•Só as Philippicas
,
que foraõ os últimos accentos defte
Ciíne do Tybre , por eftarcm ja apartadas daquelle
vicio,
*76 THEATRO BA ELOQUÊNCIA,
vicio lhe alcançarão a antonomazia de Orador divino.
,

Os
Italianos eíiando mais perto deTullio, quê
as outras Naçoens , defconheceraõ também algum
dia
eíta 'differença , e imitarão menos a adoleícencia
, que
a velhice da Oratória Hum ddles foi Joaõ Bocca*
:

cio , que no feu Admeto , e na fua Fiammeta mo-


ftrou ainda maior boca que a do íeu appellido : Ou-
,
tro foiGoielino , de cuja Hiftoria darei hum exemplo,
para melhor íe conhecer efta pendente verbofidade.
ta A família Gonzaga , que fegundodiveriòs Au-
thores , diverfamente deicende neítes noílos Paizes,
ou das Cafas principaes de Alemanha , ou dos Teu*
tónicos, ou dos Cimbros, ou do Rei dos Longo-
bardos, tem lançado taõ altos os fundamentos da lua
nobreza , que ella da antiguidade , edos Impérios no-
biliílima Mãi, a ama Itália, naõ por eftrangeira, e
peregrina, mas por íua própria , e natural , e a co-
nhece , e a nutre no feio , nem a íuftenta no berço,
como Infanta , antes como adulta , e proveéta a en-
che daquelle louvor , e gloria immortal , que ella tem
alcançaao com o próprio valor , em quanto com a lua
amada produtora , fortemente combatendo , a tem
defendido , e guardado muitos annos dos feros aliai-
tos das Naçoens eftrangeiras , e finalmente a nume-
ra , e com muito amor a agalalha entre aquellas fuás
mais valoroíàs famílias , de cuja excellencia , e bel-
leza recebeo , e recebe muito ornamento , e efplen-,
dor. sai

Atéqui Gofelino , e cuido que fe naõ poderá in-


ventar elegância mais enfadonha.
Oprimeiro , que principiou a reconhecer o fa-
ílio na enrolada importunidade de íemelhantes Ora-
çoens, foi Trafimaco, defcobrindo huma particular
confonancia nas clauíulas breves , e notando que fó
citas enchiaõ dç huma nova , e maravilhofa doçura
os
:

OU ARTE DE RHETORICA. 177

os ouvidos ; e affim fe começarão a conhecer os ef-


feitos da arte, fem ainda a arte íer conhecida.
Veio ao depois Gorgias Leontino C|ue adiantou ,

mais eíta obfervaçaó , e julgando que ainda eraó ex-


tenfos os Períodos de Trifimaco , es fez mais con-
cifos , dividindo-os em partes entre fi meníbradas , e
conrefpondentes , a que chamou tss artigos , ou par*
ticulas y e deitas formou os membros do Período de- ,

forte que nao ficou redondo , nem cortado. Parecia


huma oração ligada i fendo lòluta , huma elegância
métrica , que nao tinha metro aos Profiftas fe lhes
:

fingia verío , aos Poetas profa.


Eis-aqui a arte , que reconheceo Cicero , quando
mais neceífitava delia, para deftruir feu inimigo M.
António j razaó , porque fe diz , que ferira a Ver-
res , com o gume , e a António , com a ponta.
Depois de bem advertida adiftèrença defta Elo*
cuçao , foi acceita a dos Períodos breves, como mais
vehemente e , nella trabalhou Aíinio , Ceftio , Argen-
tario Séneca j Porcio , Arellio , Sillo , Oíco,e outros
,

muitos , e por eftes veftigios caminhou Plinio Na- ,

zario , Aufonio, e todos os Declamadores, e Pane-


gyriftas , que fe lhes íeguiraó ; o que fuppoílo í pode-
mos dizer , com huma nova definição , que
s= O
Periodo he huma fentença breve , eabfo-
luta , que fecomprehende nas fuás partes, ou mem-
bros dependentes huns dos outros , e atados recipro-
camente , com hum certo numero , que nao he verfo ,
e parece mais do que profa. sj
Os Rhetoricos fazem efte Periodo íemelhante a
huma abobeda aonde eftaô as pedras , com hum vin-
,

culo continuado : Outros o aílemelhaõ a huma ma-,


,"
deixa , dividida em molhos , e os molhos em anneis
e por efta caufa chamava Augufto á elegância de Me-
cenas : Cincimws Mec<enatis.
M As
178 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

AS partes do Período faõ os membros


tículas A
eftas fe chamaó partes
:
, e as par-
menores ,
áquellas partes maiores.
O membroou o Cólon , como o nomeaõ os Gre-
,

gos , de duas , de três , ou de mais particu*


fe faz
las e as partículas faõ as dicçoens de huma , de
,

duas de três ou de mais fyllabas.


, ,

O Período para fer perfeito há de ter ao menos


dous membros , e cada partícula duas fyllabas no :

primeiro membro há de ficar o fentido fufpenfo , no


fegundo concluído como nefte exemplo de Cicero:
,

££ Antes que ó P. C. diga da Republica direi :

áquellas coufas , que imagino fe devem dizer nefte


tempo, sq
Eis-aqui o primeiro membro fem acabar o fenti-
do da oração , o qual fe completa no fegundo mem-
bro pelo modo feguinte ;í
tu Eu vos exporei brevemente o juizo , aflim da
minha idéa , como da minha vinda. 33
Porém eftes Períodos ainda fe podem fazer mais
concifos , como logo veremos. E antes diílo deve*
mos notar que há três géneros de Períodos:
Período de dous membros Período de três Pe-
: :

ríodo de quatro Ao primeiro chamarão os Gregos


:

Dicolos ao íegundo
\ Trícolos: ao terceiro Tetra-
:

colos. Cada hum deftes géneros formão o legitimo


Período, pois eíte naó íoffrerá nem mais de qua- ,

tro membros , nem menos de dous. Deita doutrina


fe lembrou Terenciano Amaro, quando diflè :

Ouatuor è membris plenum formar e videbis


Rbetore circuitu y five ambitis ille vocetur.

O Pe-
OU ARTE DE RHETORICA. i?|

O
&
Período Dicolos
vras ,
abjline Labore >
:
fe pode fazer com duas pala-
como o
daquelles aphorifmos : Suftine ,
&
conftantia : 8pêro dum piro. f
O
Tricclos com três j como o daquella carta de
:

Cefar ao Senado: Veni\ vidi, vici.


O
Tetracolos com quatro , como aquelle de Flau-
to : Magnus , Crijpus , Craffus , Cwfius.
Debaixo da mefma concifaó fe podem fazer os
Períodos mais extenfos exemplo do Dicolos he eíle
:

de Séneca trágico : Malim offendere quam fcedari.


,

Do Tricolos , como o daquelle avifo que fe dá,

na peite Cito fuge , longe vade , Jerò redi.


:

Do Tetracolos , como o de Plínio defcrevendo a


Domiciano : Superbia in fronte , ira in oculis , pai-
lor in corpore , in ore impudentia.

§.

POrèm todos eftes Períodos •, pofto que pareçaô acti-


vos naõ faõ harmónicos
, ,
porque fe naó confe-
gue harmonia na brevidade; nem defempenhaó as
a
regras do mefmo Período , porque aqui ficaô muitas
vezes as partículas fervindo de membros , e pela dou*
trina que fe tem dado , deve o Período conftar de
membros , e os membros , de partículas.
Para que fe naõ exceda a fua verdadeira medida
querem alguns que cada membro tenha , pouco mais ,
ou menos , a extenfaõ de hum hexametro Parece-me :

que íe naõ deve trabalhar muito nefla proporção , por-


que a naõ vejo obfervada na eloquência de Cicero.

M 2 Temos
tÇp THEATRO DA ELOQUÊNCIA,
§.

TEmos vifto ofuaPeríodo na fua maior concifaó


legitima regularidade
, re-
vê-lo na
íla e, harmo-
nia ; e darei para iíío hum exemplo década hum dos.
feus géneros. Aqui fe offerece Cicero para o primeiro:

Membro primeiro.

Se alguma coufa me accontecer,eftou com animo


es
conftante , e apparelhado para acabar a vida :

Membro fegundo.

Porque naó pode vir huma morte torpe a hum


Varaó forte : Hum íucceílo inopinado a huma pef-
foa Conluiar: huma contingência miferanda a hum
homem fabio. ~$
He do mefmo Orador o exemplo para o fegundo
género :

Membro primeiro.

es Como d'antes me naõ atreveílè a tocar a autho»


ridade deite lugar pela minha idade

Membro fegundo.

E aflentava comigo que lhe naõ convinha que


eu trouxeíTe fenaõ o que citava perfeiçoado com o
engenho , e trabalhado com a induítria :

Membro terceiro.

Imaginei que devia paíTar o tempo como tempo


dos meus amigos, s
Ainda
;

OU ARTE DE RHETORICA; 181

Ainda he de Cicero o exemplo do terceiro gé-


nero y faliando do caftigo dos Parricidas :

Membro primeiro*

és Affim vivem deforte ,


que naõ refpiraô :

Membro fegundo.

Affim morrem por tal modo ;


que ficaó fem fe-

pultura
Membro terceiro.

Saõ lançados nas ondas , fem que nunca fe lavem :

Membro quarto.

Saô em fim taô novamente precipitados , que nem


ainda 3 depois de mortos , defeançaõ nos penhafeos, 53

A' Lèm Período


deitas condiçoens, ficará maisplaufivelo
confeguir ao menos huma delias três
fe
pre rogativas : Igualdade dos membros Çontrapojiçao :

nos termos ; Semelhança , ou conrefpondencia na bar*


menta.
A igualdade dos membros hea confonancia \ que
Tefuha da medida de hum para outro membro. Temos
o exemplo em hum dos melhores Oradores da Grécia,
que foi Ifocrates :

t: Muitas vezes me admirei daquelles ,


que cele-
brarão os dias feftivos : E que inltituiraõ os lugares
da contenda. =j
Aonde fe vê que as três vozes : Celebrarão os
M 3 dtas
i8a THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

dias fejlivoi , fe igualaó com as outras ; Injlituirao


os lugares da contenda.
O que imitou também Cícero, quando diílè :

£= Sptremus qua volumus quod acciderit fe-:

ramus. si
E em outra parte :
t= Alter um optare crudelitas e/i: alterum con-
fervare clementia. &
§.

AContrapo/içaÕ nos termos he huma corrrefpon*


dente oppofiçaó dos membros , femelhante á que
traz o referido Iíocrates
as Sapius accidtt ut imprudentes felicitèr , pru-
dentes infelicitèr agamus. sal
Ou como efta de Cicero :

s= A morte he torpe na fugida , gloriofa na vi-


toria. =2
Ou como a de hum Elogio do Conde Thefauro
a Cefar
53 Em quanto ganhou a laurea Regia ,
perdeo a
palma populan ss
Efta mefma contrapofiçao praticou o Author da-
quelle dyfticho á Rainha de Carthago :

Infelix Dido , nulli benè nupta marito


Hoc pereunte 5 fugis , hoc fugiente , per is.

Com huma contrapofta galantaria eftá também


o Monoftichon a huma Dama chamada Chione ; que
no Grego íignifica a neve, fendo dia muito morena,
e dcfengraçada ;

Frigida es , & nigra es i non es , & es Chione.

A Se*
OU ARTE DE RHETORICA. 183

§.

Semelhança na conrefpondencia he quando fe


A logra huma reciproca harmonia entre o princi-
pio e o fim do Período ; de que nos dá o exemplo
,

Ariftoteles no Elogio de Nireo :

Á Nireus Aglai<e , Nireus ab Syme , Nireus qui


pulcherrimus. ;p
Ou como a de Eílatorio , fallando dos Efpartanos :
ês Trecenti fumus , fed viri : fed artnati jed :

Lacones s fed adThermopytas nunqUam vidiplures


:

trecentos. =:
Ou como adeCeftio aomefmo aflumpto :

£3 Nos fine deliciis , educamur fine muris:


,
vivimus : Sine vita , vincimus. zz
E ainda melhor eíle meímo Orador animando a
Cicero no feu ultimo aperto:
§? Todas as vezes que acabares podes ter , ó
Cicero, aconfolaçaõ, de que viveíle para odeiejo
do Povo , pouco \ para as acçoens grandes , baílante ;
para a Republica , muito ; para a memoria , fempre, as
Difficultoio fera que fe logrem todas eftas pre-
rogativas em hum fó Período ; porém Cicero o che-
gou a confeguir na Oração pro Milone, e poriílo
fe deleitava muito o meímo Orador de ter vencido
efta grande difficuldade. Eu ja dei eíle exemplo fi-
gurado na minha Balança intelk£tuãl\ e da mefma
íorte o darei agora, para ler melhor conhecido :

M 4 Eft
i84 THEATRO DA ELOQUÊNCIA

Eft enim Judices

Non fcripta lex , fed nata

Quam non dediçimus,


|
arnpuimus
[ verum ex
accepimus, I
haufirnus
natura ipfa,
j

legimus, | expreffimus ,
adquam

I :

.1
non docti noninftitutij

fed fadli ,
fed imbuti

fumus»

Refta ainda faber fe tendo os Rbetboricos dado


ao Período , ou dous , ou três , ou quatro membros ,
fe pode haver Período álèmdeftas três efpecies ? Digo
que pode, e he o que coníla de hum membro 10-
mente a que Ariftoteles chama Monocolos ; quando
á maneira de huma ferpente , que ajunta a cabeça
com a cauda , fe deduz com huma orbiculada harmo-
nia , em termos , que nunca exceda muito a medida,
que lhe temos prefcripto Tal he o deCicero, de-
:

pois de expulfar a Catilina de Roma.


S3 Nefte dia , ó Romanos , pelo grande amor
dos Deoíes immortaes , e com os meus trabalhos , con-
felhos , e perigos , vedes que a Republica , a vida
de todos os Cidadaons , os bens , as fortunas , as mu-
lheres , os filhos , o domicilio do clariífiino Impé-
rio,
OU ARTE DE RHETORICA. 185

rio , a volla formofiífima , e feliciílima Cidade , eflá


para vós , do incêndio , do ferro , e quaíi da garganta
do Fado , nao fó arrebatada, mas reítituida.:^

§.

ALguns dos meus Leitores terão reparado, em


que havendo muitos Períodos , adornados de
excellentes vozes , fentenças, e peníamentcs , lhes fal-
ta hum certo género de harmonia , que os faz de-
fagradaveis aos ouvidos ; eque há outros , que, com
menos ornato , fe fazem fummamente goíloíos. O fe-
gredo deita conhecida differença confiíle em ter, ou
naô ter numero o Período. Efte numero naô he arith-
metico , nem poético , mas funda*fe em huma certa
fuavidade , que melhor fe percebe , do que fe explica ,
diflimulada, e encoberta na Oração foluta ; e ainda
que tem baftante dificuldade o reduzi-la a preceitos ,
eu me atrevo a dar algumas regras , por onde fe co-
nheça de algum modo efta confonancia do Período.
Conflituo a primeira regra na collocaçaõ das dic-
çoens ; pois com as mefmas vozes , polias em feu lu-
gar , ou fóradelle, ficará o Período numerofo , ou
dillònante. Façamos efta demonítraçaõ com hum Pe-
rwdo de Cicero:
t=: Nulla e/l tanta vis , tantaque copia qu£ non
,

ferro , ac vir i bus debilitari , frangi que poffit. =3


Aflim eílá o Período numerofo , e fera diíTonante
fe alterarmos a collocaçaõ das palavras , ediíTermos:
tr. Nulla ejt vis tanta , copiaque tanta , qu&
non poffit debilitari , frangique viribus , ac ferro, zz
Porém a mefma coliocaçaô , que ferve na língua
Latina, naô ferve para a noífa pois íe quizermos
,

traduzir efte Período de Cicero , guardando a mefma


ordem dos vocábulos, ficará nao ló diflonante, mas
bárbaro ; eis-aqui o exemplo :

is' Ne-
i86 THE ATRO DA ELOQUÊNCIA,
ts Nenhuma há tanta força , tanta e copia , que
naõ , com o ferro, e com as forças, ler debilitada
quebrada , e polia. 55
E accõmodando a collocaçaó Latina á Portugueza
he que faremos omefmo Período harmónico , e poli-
do ; aflim como
=: Naô há força taõ grande , nera taô grande
abundância ,
que com o ferro, e com as forças , naõ
polia fer debilitada , e infringida, tz

D
breves
Ou por fegunda regra a alternativa das fyllabas
breves com as longas, e a das longas com as
pois o concurfo das breves fazem a Oração
,

demaziadamente movida , e defpenhada , o das longas


languida , e vagaroíà.
Mas para iíto he ueceflario haver conhecimento
da difterença das mefmas fyllabas , e dos pés de que
fe forma a Poefia Latina : Saber que o pé daélilo tem
humafyllaba longa , eduas breves o Eípondeo, duas :

longas o Anapefto , duas breves , e huma longa : o


:

Choreo , ouThrocheo , huma longa , e outra breve;


e aflim dos mais , de que os Poetas Latinos fizeraó
vinte e oito efpecies,
A
regular alternativa deitas fyllabas fe percebe
naquelle elogio de Cicero a Cefar
Domuifti gentes immanttate barbaras mul-
r= :

titudine innumerabiles: loas infinitas omnes omni \

genere copiaram abundantes &C. s ,

Alguns engenhos fuperiores efpecialmente dos ,

Poetas tem ufado do concurfo das fyllabas breves pa-


ra melhor figurarem as imagens de algum impulfo
accelerado , como
fez Virgílio para reprezentar
aflim
o impeto dos remeiros, e a celeridade dos navios
lnde
J,

OU ARTE DE RHETORICA. 187

Inde ubi clara dedit fonitum tuba finibus omnes


Haud mora projiluerefuis , ferit atbera clamor
Nauticus. —
E da mefma forte para moíirar a ligeireza dos
cavallos.

at clamor , &> agmtne faâlo


Quadrupedanteputremfonitu quatit ungida campum.

E com as fyllabas longas reprefentou o mefmo


Poeta a extenfaó* de huma tempeíiade.

Luãt antes ventos , tempeftatefque fonoras.

Porém como nem todos para


faô Poetas Latinos ,

terem a devida inftrucçaó das íyliabas longas, e bre-


ves , devo advertir que no noílo idioma conrefpondem
ás fyllabas breves as que chamamos graves , e ás lon-
gas , as que fe chamaõ agudas*
A três géneros podemos reduzir asdiccoens, em
que fe incluem as fyllabas. O
primeiro tem a ultima
aguda ; compõem de huma ló fyllaba a dic»
e nelle fe
çaõ,como: tiNaõ,jimzz ou de duas, como^íi?-
vor, Defdem, zz ou de três como =S Exemplar , Ref-
,

plandor, sss ou de quatro , como ts Particular P Mur-


ttturador. zi
O fegundo género tem a penúltima aguda: e defte
ou faõ as dicçoens de duas fyllabas , como ts Mor-
te, Vida, =2 ou de três , como ú
Aurora , Fortuna, =h
ou de quatro , como 52 Temperança, Recompenja, =3
ou de cinco , como ~ Defconhecido , Impertinente. :=:
Há outras de íeis , e de fette fyllabas , e ainda de mais
como o Heautontimorumenos de Terêncio ; eo Clu-
ninjiaridyfarcbidosàz Plauto , que por exorbitantes,
naõ entraõ na regra, O
ter*
188 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

O terceiro tem a penúltima aguda ; e fe


género
chamaó Efdruxulos do Italiano Sdrucciolare , que fig-

nifica efcorregar , pela facilidade , com que pada a lin*


gua da penúltima fyllaba para a ultima , quando fe fe-
re a antecedente.
Os Efdruxulos , huns faó mais velozes , outros
mais tardos : quero dizer , huns mais rigorofos , ou-
tros menos : Os rigorofos tem huma letra confoante
entre duas vogaes ; os menos rigorofos, a que pode-
mos chamar impróprios , íaõ formados com duas vo?
gaes , fem intervir a confoante.
As menos fyllabas ,
que pode ter o Efdruxulo ri»
gorofo , faõ três ; como es hórrido , túmido zz os de
quatro fyllabas faõ , como por exemplo &s invalido*
indómito ~
os de cinco , como s
matemático, acadé-
micos os de féis, como sAriJlotelicoj antepenúl-
timo* =:
Os EJdruxulos menos próprios feguem a mef-
ma quantidade os de três fyllabas sa Thracia , Rufi
:

fia zz os de quatro sr Cajialia , Betulia ss os de cin-


co zzefftcacia, diligencias os de íeis exorbitân- s
cia concupifcencia*
, s
Porém como entre os vulgares fe coftumaõ li-

quidar as ultimas vogaes , tanto na Profa , como no


Verfo , ficaó eftas dicçoens com menos huma íylla-
ba das que tem entre os Latinos ,
por cuja razaõ fi-

ca perdendo o Efdruxulo a fua força.


E fendo regra geral , que naõ há dicçaõ , que
tenha mais de huma fyllaba aguda em que deícanfa
o accento , ou feja a ultima , ou a penúltima , ou an-
tepenúltima , fe tira daqui também a generalidade de
que quantas mais dicçoens pequenas tiver o Período
terá mais lyllabas agudas , e quanto maiores , mais
fyllabas graves ; e fendo formado com as primeiras,
ficará muito efcabrofo, e defpenhadoj fecomasíe-
gundas,
GU ARTE DE RHETORICA. 189

gundas muito languido , e detido ; e para fe con*


,

ièguir o numero no mefmo Período devemos miftu-


rar as dicçoens maiores com as pequenas , e as pe-
quenas com as maiores. Eis-aqui o exemplo :

33 O
Sol , que fe dilata pelas eípheras como ,

hum golfo de rei plandores , há de parecer huma nia-


china tenebrofa , naquelle terrível dia , em que dê o
o ultimo íuípiro a vaidade do Univerfo. sg
Efte he o Período harmónico pela alternativa das
fyllabas graves, com as agudas: agora o medrarei
eícabrofo , com o concurlo das dicçoens pequenas :

53 O
Sol, que no Ceo he hum mar de luz,
há de vir a fer hum caos no fim do Mundo. sã
Deita meíma diílonancia he aquelle verío de
Ennio ;

Si Inci , ft mox , fi nox , ft jam data fit frux.

Vejamos agora em outro Período como fica def-


cahido com o
concurío das dicçoens maiores :

ts O
Soberano Planeta produzindo continua-
mente inexhauriveis reíplandores , vê-lo hemos trifte-
mente fubmergido na obícuridade daquellas efpan-
tofas levaredas , deítinadas ao movimento do Uiu>
verlo. sa

A Terceira regra para o numero do Período fera


outra rniííura de vozes, que fe podem chamar
ss jacentes , e exultantes. z=s Entendo por jacentes
as dicçoens , que tem mais fyllabas graves ; e por
exultantes os Ejdruxulos. Efte foi o fegredo, com
que S. Leaõ Papa confeguia a fuavidade do numero
• em todas as fuás Oraçoens. Tirarei hum exemplo do
JPanegyrko aos Apoíiolos S. Pedro , e 3. Paulo :

a A pre-;
190 THEATRO DA ELOQUÊNCIA t

íà A
prezente fefiividade , álèm daquella revê*
retida ,
que lhe he devida em todos os âmbitos da
terra há
, de íer venerada com eípecia! e própria
í
alegria da nofíà Cidade para que, sonde foi glori-
,

ficada a morte dos mais fingulares Apofíolos , ahi íeja


o Principado do contentamento no dia do íeu marty-
rio. Eítes ião os Varoens pelos quaes , ó Roma , fo-
íte illuítrada com a Doutrina Evangélica ; etu que
,
eras meítra do engano , es agora difcipula da ver-
dade, za
Deve-fe reparar na medida com que o Santo Pon-
tifice diílribue as íyllabas graves , e as agudas , com
os Efdruxulos,
§.

dar-fe por quarta regra o uío de alguns ter-


PO'demagníficos. Cicero
mos na Oraçaõ pro Fonteio :

tr Naô ó Juizes
que pelo voílo pare-
lòffrais,
,

cer fejaõ commovidas as aras dos Deofes immortaes,


e da Mãi Vefta , com as quotidianas lamentaçoens de
huma Virgem. =3
O Padre Vieira nas lagrimas de Heraclito
fcs Aos relâmpagos , e raios chamou a antigui-
dade rifas Vefta ,
: &
Vulcani Entre tantos re-:

lâmpagos, trovoens , e raios da eloquência , quem naõ


julgará ao miíeravel pranto , cego , attonito , e ful-
minado ? 53

FUnda-íe a quinta regra na efcolha das vozes mais


fonoras , quaes faõ as de muitas fyllabas , pois
com a fua extenfaô fe faz melhor o eco nos ouvi-
dos para fe lograr a confonancia \ e por iílò o vo-
cábulo ss Império ;u he mais íonoro , que Reino : Im-
perante melhor, que Império Superintendente me-
:

lhor , que Imperante ; &c.


Porém
,

OU ARTE DE RHETORICA- 191

Porém ja temos dito , que eftas dicçoens maio-


res fe devem alternar com as
menores , ainda que
ás vezes o feu concuríò faz pompofa
a Oração , como
nefíe lugar de Eílacio ;

Magnanimum JEaclden formidatamque Tonanti


Progeniem &*c
,


Mas também naõ he certo que na exteníaõ de
cada vocábulo coníiíta toda a íua fonoridade por- ,

que há alguns menos dilatados, que faõ mais fono-


ros do que os maiores ; e para declarar efte , que
parece hum myfterio rhetorico , devo advertir que de-
pende efta harmonia da differença das letras vogaes
e confoantes ; porque humas faõ mais claras , e ex-
preífivas , outras mais efeuras , e confuías , outras
mais afperas , e diflbnantes.
Pelo que refpeita ás vogaes, faõ mais canoros, cla-
ros, e íuaves os vocábulos, que fe compõem do Ká As
como ~ fachada :zz menos fuaves , e claros os que
fe formão do e E ^ como ss rebelde, ss Confufos
,

e afperos os que fe compõem do ss I =s como t=s in-


vifivel: á Outros varonis , e harmónicos , como os que
fe formão do ts O 35 como : fogofo : Outros fune-
ftos , e triftes j como os que fe compõem do pc U £j
como i/fr/fruáío. dá
Porém como a maior parte dos vocábulos faõ
compoítos de difterentes vogaes, enaõ fe pode achar
em todos por efta caufa a viveza do fom , que íe pro-
cura , teremos cuidado de efeolher aquelles, em que
a força e a confonancia de humas fyllabas dimi-
,

nuaó ou diflimulem a diílonancia , e fraqueza das


,

outras; porque a brandura do ts A zz fe alenta com


•a valentia do =0:=3 o t=:*EsG acompanhado deitas
•fluas letras } fica menos froxo ; o t= I s menos con-
fufòj
19* THE ATRO DA ELOQUÊNCIA,
fufo ; e o sUí
menos funefto. Daqui fe fegue que
as dicçoens, que fe compuzerem de melhores vo*
gaesj faraó mais íèníivel o numero do Período.

§.

EStas mefmas advertências feverificaõ também nas


coníòantes,
que fe dividem em três géneros :

As do primeiro género fe chamaô cr Efpiraes tà


porque fe formaõ com o alento como faõ P. B. M. F.
,

As do fegundo íe chamaó ss Lamhentes sa porque


fe pronunciaó com os toques da lingua , como L.
N. T. D. R. S. Z.
As do terceiro fe chamaõ 5a Guturaes ~ porque
nafcem da garganta, como C. G. I. Q. X.
Das Efpiraes a mais fuave, e canora he o cPs,
ja he menos o es B s , o tejM ss tem baílante doçura:
'

o •=: F £3 he galhardo , e polido.


Das Lambentes a melhor heo :r L :3 , o :=: :=: N
he doce : oí^Ts
enérgico o ca-Dvsa brando: o :

5=R £3 afperiíTimo: Disâhss fibilante:o srZs de-


licado.
Das Guturaes o js C zs , ainda que eftrondofo,
he duro ; e violento : o ^Gz; que he
delle naíce
hum C
:=: modificado
=2 o ;=: I =: coníoante he mais
:

afpero, que o vogal: o zzQjz naõ deixa de fer duro:


C
Do x: ^ , e do ts S s: fe gerou mais ef- o?Xsa
cabrofa de todas as letras.
Em todas eítas coníòantes fe devem fazer asob-
íèrvaçoens , que propuz. nas voga es para a efcolha ,

das palavras ;te com as melhores , aílim de humas, co-


mo de outras, fe ajudará muito o numero do Período.

A Sexta , e ultima regra finalmente para elle


que ienaó devem repetir muitas dicçoens coi>
,

refpon-
he
,
:

*
OU ARTE DE RHETORICA. 193

refpondentes ou fejaô graves, ou agudas, oquefe


,

chama xzrimazz na Poefia*


Ainda na lingua Latina faó infipidas eftas repe-
tiçoens ; como : amatrices , adjutrices ,
praftigia-
tf ices fuerunt , ou como diífe Ennio:

M<crentes , flentes , lacrymantes , & miferatites.

§.

ENaô íó o concurfo dos vocábulos rimados


evitar, mas também odosaíToantes
deve
dequeufaõ ,
fe

os Poetas nos Romances ; porque a frequência de foar


o accento na mefma vogal faz unifona a harmonia
que por fer reputada como defeito na Mufica , o deve
também fer á fua imitação no mtmero do Período.
Naó me atrevo a querer que íe obfervem pon-
tualmente eftas regras , efpecialmente em huma Oração
dilatada, nem aconfelharei que fe embarace o difcurfo
emfemelhante defempenho, porque o grande cuidado
de obfervar a arte faz quaíi íempre a arte menos per-
feita :Eftas regras fó fervem para
evitarem os defeitos iè
principaes , e para fe coníeguir os muitos adtos com
a facilidade de fe conhecer, e de fe ufar da confonancia#
Só nos elogios breves ? e nas infcripçoens lapi-
deas he que fedeve ter maior advertência para a in-
teira fatisfaçaô deites preceitos ,
por fer huma com-
pofiçaõ
?
em que Ver-
fe faz notável a
falta menor :

dade feja queDemofthenes parece que praticava ainda


nas Oraçoens grandes as mais pequenas delicadezas
do numero, fegundo oque fe infere de Quintiliano
Neque Demojlbenes fulmina vibrajje diceretur , nifi
wumeris vibrata fuifjent \ porém nem todos podem
.íer como efte grande Orador da Grécia,
Efte he o modo , por onde fe pode fazer agra-,
N dayel
íc;
4 THEATRO DA ELOQUÊNCIA,
daVel a Elocução , e debaixo deita doutrina forma cada
hum dos Oradores hum caraéler particular , para ha-
ver de explicar-íè, a que commummente fe chama
Efty-
Jo s
de que falia rei no

CAPITULO II,

OEftylo íignificou dia hum ponteiro de


algum
com que
ferro , figuravaó as letras , ou em
fe
madeira, ou em cera , antes que fedeíTe na invenção
do pergaminho, e do papel; e veio ao depois a íig*
nificar por translação aquelle uíb da elocução , com
que cada hum fe diítinguia em fallar , ou efcrever j
e eíta he hoje a acceitaçaõ , que temos deite vocábulo.
Diftinguiraõ os Oradores três géneros de Ejiy-
lo : Magnifico , ou fublime : humilde , ou infimo :
igual, ou medíocre.
O
EJlylo fublime he o que coníta de vozes es-
plendidas J de termos brilhantes , de lentenças ele-
vadas , de figuras pompofas , de epíthetos metaphori-
cos y de translaçoens atrevidas, e de periphrafes pro-
porcionados. Eíte eílylo he menos ufado dos Ora-,
dores j que dos Poetas.
Lucano pertendeo fundar nelle a fua Pbarjalia,
mas com tanto exceíío , que na meíma altura veio
a perder orefplandor da fubiimidade ; e o meímoacon-
tecco a Miguel da Silveira no leu Machabeo Poetas
\

ambos de hum enthufiafmo enfurecido, eque parece


que antes fe defpenhaõ , do que caminhão pela emi-
nência do Pindo Virgílio , Taílo , e Camoens hu-
:

mas vezes fe remontai), outras le abatem, eeítesfaõ»


os voos mais próprios das Águias,
Diony*
OU ARTE DE RHETORICA. ipy

Dionyfio CafííoLongino , famofoSophifla do ter-


ceiro feculo 5 e Confelheiro de Zenobia , Rainha dos
Palmyrenos fez hum Tratado do E/tylo fublime que
,
,

eftá reputado , efpecialmente entre os Francezes 5 pe*


la melhor obra , que fe tem feito nefte género.
Porém efta obra quanto ao meu parecer , per*
,

cence mais á fublimidadedos penfamentos , que á dos


termos , no que há huma grande differença , porque
fe pode dar hum penfamento fublime em termos hu-
mildes, e penfamento humilde em termos íubhmes.
Tenho achado muitos Rbetoricos , que naõ advertem
nefta difparidade. Offerecia Dário a Alexandre huma
ile fuás filhas , com a ametade da Afia , e dez mil
talentos de ouro Eu acceitara a offerta ( difíe Pat>
:

menion) fe fora Alexandre: e eu também ( refpon-


deo Alexandre ) fefora Parmenion. Eis-aqui hum pen-
famento fublime, fem que a expreílaô íeja muito ele-
vada.
E como aqui tratamos da elevação das palavras i
e naõ dos conceitos , devemos conhecer a fublimi-
dade do EJlylo , naõ em Longino , mas em Ariftcte*
les , aonde fe achaõ os melhores preceitos deite ar-
gumento.
Seguia-fe agora o dar alguns exemplos do E/ly-
lo \iihlime ;
porém cu naõ tenho achado em algum
Orador , que em huma Oração continuada defempe-
nhe todas as fuás prerogativas. O Padre Colónia nos
remette para as Philippicas de Cícero, para as Ora*
çoens contra Verres , e contra Pifon, epara adefenía
de Milon : ConfeíTo que nas mefmas Oraçcens hí
muitos esforços de elevação , e de magnificência Ora-
tória , porém a maior parte delias eítando fundadas
no EJlylo Forenfe , fica em muita diílancia do nofib
aílumpto.
Álvaro Cienfuegos quiz defempenhar o feu-ap»
N 2 pellido
i
96 THEATRO DA ELOQUÊNCIA*
pellido na vida de S. Francifco deBorja; porém eílá
cheio de aftedlaçoens , ede huma pompa defpropor*
cionada. O
Conde Thelauro pertende que o eftylo mais
íiiblíme he o da Nemefis de Júlio Ceíar Efcaligero ;
e elle me parece ainda mais affe&ado , e entumece
do, que o do mefmo Cienfuegos*

§•

O Eftylo humilde , fingelo, ou infimo , he o que


naó admitte algum adorno rbetorico , e fó fe
funda em vozes commuas , e familiares Uza-fedelle :

nas cartas , e converfaçoens , porém naó fe deve tratar


com tanta pobreza que o façamos infipido.
,

Intenta o referido Colónia que íejaó as Éclogas


de Virgílio o melhor exemplar para efte Eftylo* Eu
finto o contrario, porque há muitos lugares neílai9#-
cólica , cheios de elevação; eneila fallaó muitas ve-
zes os Paftores , como fefodem educados nas Cida-
des , e naó nos aprifcos , e cantaó menos com a frau-
ta, qus com a trombeta Com toda afingeieza prin-r
:

eipía Virgilio a Écloga viii :

\ Damonis muÇam dicemus & Alphefíbtei,

[ Mas detenda-fe muito pouco nefta linguagem pa.»

ftoril 5 paílklogo para a elevação deites verfos :

Tu viihi feu magni Çuperas jam faxa Timavi ,


Sive oram Illyrici legis aquoris : en erit unquam ;

Ília dies mibi cum liccat tuz dicere faâía ?

Omefmo
digo das Éclogas do noílo Camoens;
pois , fem fe fentir , eílá voando continuamente da
humildade das choças para a eminência dolielicona.
Entre
OU ARTE DE RHETORICA. 197

Entre os Poetas os melhores exemplares do EJiylo


ínfimo faõ os Idyllios de Theocnto , as Eglogas de
Francifco Rodrigues Lobo , e as Poefias ruíticas de D.
Francifco Manoel. Sempre me parecco que os Pafto-
res deviaó fallar como homens do campo, enaõda
Corte : efta foi a razaó , porque fiz também neíte eílylo
a minha Bucólica ; e houve quem difle que eu nella
tinha efiropeado a noíla lingua : Eu
refpondi com
huma rizada , naó fó ao termo 3 mas ao juizo.

§.

OEfiylo medíocre he , como a virtude , entre dous


extremos. Chama-lhe Cicero EJiylo purifica*
:

th ; pois nelle íe podem lograr todas as delicias da


eloquência he hum eílylo , fem foberba , fem hu-
:

mildade , fem faítio. Todas as figuras da Rbetorica


lhe faõ permit tidas , fe delias fe ufa com circunfpe-
6ta moderação admitte raras vezes as circunlocuçoevs^
:

c os epítbetos haô de fer íómente os naturaes , e os


que attendem menos á pompa, que á energia.
Quaíi toda a elegância de Demoíthenes , de Ci-
cero , e do Padre Vieira he fundada nelle Eftylo ;
c efte he o mais próprio , aífim para os Oradores Sa-
grados ) como para os profanos.
Hum dos léus melhores exemplares he o Tele-
maco do Arcebifpo de Cambrai Moníieur de Fenelon ;
efte he hum livro , que naõ fó pelo argumento , mas
pela elegância fe devia collocar na tribuna de Mi-
nerva.
Ainda que mais próprio da Oratória oE/ly-
feja
lo medíocre , nem por
iílo deve fer nella deTprezado
o [ublime , e o Ínfimo ; pois como o officio do Ora-
dor heenfinar, deleitar, mover, ouperfundir pode
,
aproveitar oE/lylo ivfimo para os documentos, 0/0-
3 N ^ blime
198 THEATRO DA ELOQUÊNCIA,
blime para a deleitação , o medíocre para a commoçaó y
ou perfuaíaõ.
Neíles três géneros de Eftylo , há outros, que
formão differentes efpecies ; pqrque há E/iylo con-
ceituoiò , ponderativo , erudito , picante, e pôde dar-
fe Ejlylo que comprehenda todos. Naõ julgo que faó
preciíos »>s exemplos para fe conhecerem ; e fó adver-
tirei que toda a energia do Ejlylo coníifte na bõa
eleição dos verbos, dos nomes , e dos advérbios , por-
que há huns, que fó tocaõ a fignificaçaó ; outros , que
a declaraó ; outros , que a acereícentaõ ; outros , que a
dobrão , e que a refie&em. Os que fomente a tocaõ
fazem o Eftylo languido , confuíò , e pueril os que :

a declaraó latisfazem á explicação : os que a acerei-


centaó accendem o animo ; e os que a dobrão , e re-
flectem , alegrão o difeurfo , fazendo huma efpecie
de eco nos ouvidos , e no entendimento.
Efta diíferença neceíTitava de huma dilatada ex«
pofiçaõ contentar-me hei com dar os exemplos do
:

verbo , do nome , e do adverbio reflexivo , para deixar


ao juizo do meu Leitor o conhecê-los por fi mefmo*
Do verbo , com hum lugar de António Solis na
fua Hiftoria de México , fallando da appariçaó , que
fez o demónio aos Mágicos daquella Província.
ss Vénia como delpechado, enfurecido, afeando*
con el ceno de la ira la miírroa fíereza. =5
O verbo m afeando j* faz aqui toda a reflexa&
que podia deícobrir a eloquência.
Do nome nos dá Eugénio Gerardo Lobo o exem-
plo em huma copla do feu Nicetas

Por dorada puerta fale


elmas bermofo prodígio ,
que mereciò fimulacros
en los altares dei vicio.
Dor.
OU ARTE DE RHETORICA. 199

Do adverbio o Padre Vieira nas lagrimas de He-


racjíto : =3 ,

t= Lacrymis adamanta movebis , diíie atrevida ^


mas verdadeiramente Ovídio,
Por fe confeguirá a bondade do Ejlyk,
efte meio
epor cinco modos faremos viciofo Primeiro quan-
o : ,

do íica túmido , e inchado : Segundo , quando fe mo-


ítrafrio, e pueril: Terceiro, quando fevê defatado ,
e fluãuante Quarto , quando fe fcfferece fecco , e
:

exangue Quinto , quando apparece violento , e e£


:

cabroío.
O EJlylo inchado he o que fó fe funda na pom-
pa vazia das palavras.
O EJlylo pueril he o de allufoens incongruen-
tes , agudezas infipidas , redundâncias frívolas.
O EJlylo dejatado he o que naõ tem numero ,
nem claufulas , nem dedução.
O EJlylo fecco he ao que lhe falta o efpirito , e o
adorno.
O
Eftylo violento he o que intenta achar a cuk
tura, fem íuavidade, e o concerto, fem harmonia.
De todos eftes pudera dár baftantes exemplos ,
porém melhor fera paflá-los emfilencio, por naõ mo-
ílrarmos engenho em fadigas alheias.
Alèmdeftes EJlylos há mais três, a que fedeo
o nome de Aftatico, Lacónico, e Rbodio.
O
Afiatico he o que tem huma prolixa verboíl-
dade o Lacónico he breviífimo , agudo e expreífivo ,
: ,

e que pode reduzir huma larga Graçaó a poucas pa-


lavras : oRbodio he hum meio entre eftes dous iiao :

he taô diíFufo , como o primeiro, nem taõ conciíb,


como o fegundo. Do primeiro , e terceiro efcufò de
Haár osexemplos, pois naõ he neceflaria grande m~
para fe conhecerem
telligencia darei do fegundo os :

que me vierem á memoria. \ ,

N 4 Phl
200 THEATRO DA ELOQUÊNCIA,
Philippe de Macedónia declarando a guerra aos
Efpartanos em huma carta cheia de foberba , recebeo
delles efta refpofta :

s: Os Efpartanos a Philippe : Dionyfio em Co-


rintho. si
Com hum 65 NaÕTZ pofto em huma folha de pa-
pel refponderaõ a outra carta do mefmo Philippe , em
que lhes pedia huma coufa injufta :

Nao fó os homens, até as mulheres da mefma Na-


çaó eraõ concifas, agudas , e exprellivas. Entregan-
do huma a feu filho o efcudo quando hia para a guer^
,

ra , lhe difle Aut cum hoc , aut in hoc.


:

A Diógenes lhe foi muito agradável efta elegân-


cia : Olha^ nao firas a teu Pai , dizia elle a hum ra-
paz 5 que andava atirando pedradas pelas ruas , para
lhe chamar filho de huma meretriz.
Perguntou Auguílo a hum mancebo , que fe pa«
recia muito com elle , fe fua Mai tinha vindo a Ro-
ma; e refpondeo-lhe : Minha Mai, naõ, meu Pai
muitas vezes.
§.

ENtre o Eftylo Afiatico


e o Lacónico fe pode
,

metter a Amplificação , como huma das partes


ellenciaes da Rbetorica. Diremos que he hum certo
género de elegância mais copiofo, e vehemente , que,
com o pezo das razoens , e enumeração das circun.
ftancias fe imprime melhor a perfuafaõ nos ouvidos,
e nos ânimos do Auditório. Porém efta definição fe
explica melhor nos exemplos : Dido , para chamar in-
grato , e deshumano a Eneas , amplificou por efte mo-
do eíie conceito :

Nec tibi diva parens generis, nec D ardanus auâíor


Perfide fed duris genuit te cautibus horrens
,

Caucafus } Hyrcan<eque admorunt ubera tigres*


Que
: ,

OU ARTE DE RHETGRICA* 201

Que trasladou o noflb Camoens :

Ou tu do monte Pindafo es ttafcida ,

Ou marmor te parto formofa e dura , :

Naõ pode fer que foffe concebida


Dureza tal de humana creatura.
&c.

A amplificação tem dous géneros , em que fe di-

vide : hum das matérias , e das fentenças : outro da


repetição das palavras , e dos termos.
Por nove modos íe faz a Amplificação das ma*
terias , e fentenças Primeiro pelo concurfo das de-
:

finiçoens : íegundo pelo concurfo dos adjuntos ter- :

ceiro pela enumeração das partes : quarto pelas cali-


fas , e ejfeitos quinto pelas confequencias : fexto pe-
:

los fimiles , comparaçoens , e exemplos : fettimo pe-


los contrários , deffemelbantes , eoppoftos oitavo pe- :

lo incremento nono pelos hyperboles.


:

Para o concurfo das definiçoens temos o exemplo


em Cicero na Oraçaô pro Milone
ê:A Cúria he o templo da fantidade , da gran-
deza, do entendimento, doconíelho publico: a ara
dos companheiros : o Empório de iodas as gentes :

a Cadeira do Povo Romano , concedida a huma fò


ordem. =2
O Padre Vieira definindo- a Terra no Elogio de
S« Sebaftiaõ , que vem no Tomo XIV".
t= E como a Terra feja o hoípital da pobreza
o vaile das lagrimas, o deferto da fome, e a pátria
do ódio, e perfeguiçaõ, bem clara fica a coníequen-
cía , ou a demonítraçaõ Evangélica , de que também
hi bêrnaventurados na Terra. ^

Para
aot THEATRO DA ELOQUÊNCIA,
§.

P Ara Amplificação dos adjuntos S. Jeronymo


trOh
a
de todos os mortaes Tu en-
infeliciflimo !

tras para executares o eftupro naquella lapa , em que


naíceo o 1 ilho de Deos Naõ temes que o Infante
!

chore no Prefepio ? Naõ temes que te veja a Vir-


gem , há pouco parida ? Os Anjos clamaõ , osPafto-
res correm , a Eítrella refplandece , os Magos ado-
raó , Herodes treme , Jerufalem fe conturba e tu •,

entras no cubículo da Virgem para enganar a Vir-


gem ! hz
Ovidio , com os meímos adjuntos :

Jam mihi deterior canis afpergittir atas ,


jfamque meos vultus ruga Jenilis arat :

Jam vigor ^ &


lapfo languent in corpore vires ,

Necjuveni , lufus , qui placuere , juvant.

Ara pela enumeração das par-


a Amplificação
tes , o Theologo S. Gregório fobre a admirável
conftancia da Mãi dos Machabeos :

S3 Nada pode enfraquecer o valor da Mãi , ou


a conítancia do íeu animo Nem os inftrumcntos in-
: ,

ventados para defencaixar os membros nem a vifta, :

e preparação das rodas , nem as exquiíiías invençoens


da crueldade, nem os garfos de ferro , nem a bra-
veza das feras , nem as efpadas afiadas, nem as pa»
nellas ferventes , nem o fogo, que fe afloprava , nem
a variedade das turbas , nem oefpedtaculo da famí-
lia , nem os membros , que fe defpedaçavaô , nem
as carnes, que íeconfumiaõ , nem os caudolofos rios
de langue , nem a flor da idade ; que íe murchava,
nem
OU ARTE DE RHETORICA. 203

nem os males prezentes , nem o ameaço das calami-


dades. =S

PAra a Amplificação yzhs caufas e efFeitos


, : An-
tónio Solis na Hiftoria Mexicana :

cr Nefte eítado eftavaó as coufas da Monarchia ,


quando entrou na fua poHeílaó o Rei D. Carlos ,
que chegou a Helpanha por Settembro defte anno.
Começou a iertnar-íe a tempeftade , e íe foi pou-
co a pouco introduzindo o locego , como influído
da prezença Real , lèja por virtude occulta da Coroa ,
ou porque aífifte Deos , com igual providencia tan- ,

to á Mageftade do que governa , como á obrigação,


ou ao temor natural de quem obedece Sentiraõ-íe os
:

primeiros efFeitos defta felicidade em Caftella , cuja


quietação íe foi comrnunicaruio aos de mais Reinos de
Hefpanha; e paílòu aos Dominios de fora , como co-
fluma no corpo humano diftribuir-íe o calor natural,
fahindo do coração em beneficio dos membros mais
diftantes: Chegarão brevemente ás Ilhas da Ameri-
ca as influencias do novo Rei , obrando tanto nellas
o feu nome , como em Hefpanhaa fua prefença dií- :

puzeraó*fe os ânimos a maiores emprezas , crefceo o


esforço nos íòldados , e fe pôs a maõ nas primeiras
operaçoens , que precederão á Conquifta da Nova Hef-
panha, cujo Império tinha o Ceo deítinado para en-
grandecer os princípios deite Augufto Monarcha.^:

PAra a Atnplificaçiiç
de o exemplo,
àzs confequeticias :Hegrsn»
que nos dá o Padre Vieira:
ir Finjamos, pois ( o que até fingido e imagi- ,

nado faz horror) finjamos que vem a Bahia ; e o re-


ílo
204 THE ATRO DA ELOQUÊNCIA,
fto do Brafil a maõs dos Olandezes Que he o que :

há de fucceder em tal cafo ? Entrarão por efta Cida-


de com fúria de vencedores, e de hereges; naõ per*
doaráô a eftado , a fexo nem a idade , e com os fios
,

dos mefmos alfanges medirão a todos. Chorarão as


mulheres , vendo que íe naõ guarda decoro á fua mo»
deftia chorarão 05 velhos
: vendo que fe naõ guarda
,

refpeito ás fuás cans chorarão os nobres , vendo que


:

fe naõ guarda cortezia á fua qualidade choraráõ os :

Religioíbs , e veneráveis Sacerdotes , vendo que até


as coroas fagradas os naõ defendem choraráõ final- :

mente todos , e mais laftimofamente que todos os in-


nocentes ; porque nem a eíles perdoará ( como em
outras occafioens naõ perdoou ) a deshumanidade he-
retica. . .

Entraráõ os hereges nefta Igreja , e nas outras,


c arrebatarão eíla cuítodia , em que agora eftais ado-
rado dos Anjos tomaráó os cálices , e vafos fagra-
:

dos , e applicá-los haõ ás fuás nefandas embriague-


zes : derrubaráõ dos Altares os vultos , e eílatuas dos
Santos, deformá-las haõ a cutiladas , e mettê-lashaõ
no fogo ; e naõ perdoaráõ as maõs furiofas , e facri-
legas ás Imagens tremendas de Chriíto crucificado,
nem ás da Virgem Maria. . . .

Em fim , Senhor , defpojados aílim os Templos,


e derrubados os Altares , acabar fe há no Brafil a Chri-
ftandade Catholica , acabar- fe há o culto Divino , naf-
cerá herva nas Igrejas, corno nos campos, e naõ ha*
verá quem entre nellas.
Fartará hum dia de Natal , e naõ haverá memo-
ria do voíTo Nafcimenío Paílará a Quarefina, e a
:

Semana Santa , e naõ fe celebraráõ os Myfterios da


voflh Paixão choraráõ as pedras da rua , como diz
:

Jeremias , que chorarão as de Jerufalem deftruida ;


Pia Sion lugart y eo quod mn [wt , qui veniafit ad
jolem-
:

OU ARTE DE RHETORICA. 205


folemnitatem Ver-fe haõ hermas , e folitarias ] eque
:

naó as piza a devoção dos fieis , como cofturoa em


femelhantes dias : naó haverá Miflas , nem Altares,
nem Sacerdotes , que as digaõ : morreráõ os Catho-
licos , fem confifíaô , nem Sacramentos prégar-íè haõ
:

herefias ncAes mefmos Púlpitos , e em lugar de S. Je-


ronymo , e Santo Agoftinho , ouvir-fe haõ , e allegar-
fe haõ nelles os infames nomes de Calvino , e de Lu-
thero beberão a falfa doutrina os innocentes , que
:

ficarem , relíquias dos Portuguezes ; e chegaremos a


eftado , que fe perguntarmos aos filhos , e aos netos
dos que agora eftaõ Menino , de que feita fois ?
: Hum
reíponderá : Eu fou Calvinifta j outro : Eu fou Lu.
therano. s

PAra a Amplificação
melhanças e
das comparações , das Se-
, exemplos eítá Marcial cheio de ga-
lantaria nefte Epigramma :

Quod nimio gaudes twâlem producere vim ,


vhium , Gaure , Catcnis babes :
/grjo/co
Carmina , quod ferieis Mufis , &> Apclline nullo ,
Laudari debes y hoc Ciceronis babes :

Quod vomis , Antoni , quod luxiriaris Apici :


Quod fures vitium , dic inibi , cujus babes ?
O Cámoens nos dá owtro exemplo mais
noffo
ferio na morte de D. Ignez de Caftro

Affim como a bonina , que cortada


Antes do tempo foi cândida , ebella 9
Smdo das maõs laj eivas maltratada
Da menina , que a trouxe na capella :

O chei-
lo6 THEATRO DA ELOQUÊNCIA
O cheiro traz perdido , a cor mudada
,
Tal efid morta a pdlltda donzella ,
Seccps do rojío as rozas , e perdida
A branca , e viva cor , c'o a doce vida*

§.

PAra
temos
a Amplificação dos contrários, c oppoílos
a Cicero :

m Deita parte contende o pejo , da outra o de-


faforo daqui a pudicícia, dalli o eítupro daqui a leal.
: :

dade, dalli o engano: daqui a religião, dalli o fa-


crilegio ; daqui a honeftidade , dalli a torpeza da- :

qui a continência , dalli a lafcivia em fim , a igualda-


:

cie , a temperança , a fortaleza , a prudência , e to-


das as virtudes combatem com a iniquidade , com
a luxuria , com a temeridade , e com todos os vícios:
Contende ultimamente a abundância com a pobre-
za , o raciocínio com a brutalidade, a fizudeza com
a loucura , e a boa efperança com a defefperaçaõ de
todas as couias. =:
O Padre Vieira introduzindo a Saul com David
fobre o combate do Philiftheo
trOlha, moço, (dizia Saul a David apontando-
Ihe para o Gigantç ) olha que aquelle he mais que
homem e tu menino : aquelle armado , e tu fem ar-
,

mas: aquelle exercitado em batalhas , e tu fem exercí-


cio da guerra, ri
§.

PAra a
Vieira :
Amplificação do incremento , o mefmo

ssPonde naquella balança Reinos , ponde Sce-


ptros, ponde Coroas ponde Impérios , ponde Mo-
,

narchias, ponde tudo o. que pôde dar a natureza, e


tudo
: : ,

OU ARTE DE RHETORICA. 207


tudo o que pode dar a fortuna ; ponde o Mundo
ponde mil Mundos , ponde o mefmo Ceo , com a íua
Gloria ; nada difto faz pendor em comparação da gra-
ça , que taõ facilmente perdemos. 23
Hum dos maiores esforços poéticos na Ampli-
ficação do incremento he o do nollò Camoens

A noite ejcura dava


Repoufo aos canfados
Animaes , ejquecidos da verdura :

O valle trtfte e/lava


Ç }

buns ramos carregados ,


Que mda anoitefaziao mais efcura x

Offrecia a efpeflura
Hum temerofo ejpanto ;
As roucas rans foavaõ
N' bum charco de agoa negra , e ajudava®
Do paffaro noâíurno o trtfte canto ;
O Tejo , com fom grave ,
Corria mais medonho , que fuave.
Como toda a trtfteza
No fikncio conjifte ,

Parecia que o valle e/lava mudo


E com efta graveza
EJiava tudo trifte ,

Forem o trifte Almeno mais que tudo;

%
PÃra Amplificação
Mercader
a dos byper boles D. Gafpar
, Conde de Cerbelhon , r,o feu Retrato

politico :

tz: Fará V. M, temer a voz dos feus clarins nos


ouvidos mais infiéis, porque naõ haja eftrondo , que
amis pareça harmonia Os exércitos de V, M, autho-
:

rizaráô
2ô8 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

rizaráó tanto o ameaço, que deixem impraticável a


reíiítencia , fazendo que V. M. conquifte tantos Im-
périos como vontades , porque os feus louros naõ fó
adornem, mas frutifiquem. Os baixeis de V. M. en-
curvando a Neptuno a fua variável eípadoa, daraõ
leis aos ventos , e ás ondas , e fe alguma vez íe en-
crefparem, felhes dará licença para ferem formofas,
e naõ cruéis. AíTim terá V. M. occupada a agoa , com
as fuás armadas , a terra , com os feus exércitos , o
ar , com os feus applaufos , deixando o fogo , para
os noflòs coraçoens. Ouviráõ o nome de V. M, as
balizas do Mundo j e o Ceo, que naõ produz ado-
raçoens , produzirá influencias : Será todo o Mundo
Catholico, porque V. M. naõ faberá ter outros vaf-
fallos. Cortará a efpada de V. M. mais álèm dos ele-
mentos , e tornará á bainha a íèr focego , depois
de fer vi&oria. 52
Remetto o meu Leitor para o Polyphemo de Vir-
gílio, para o Adamaílor deCamoens, epara adef-
cripçaó do Caucafo no Prometheu do Abbade Ma-
noel deSoufa Moreira.
Eftas íaõ as Amplijicaçoens das mater i as , eíen-
íenças j vou agora dar as das palavras.

§.

A Amplificação das palavras fe faz por féis modos


principaes Primeiro pelas metapboras fegundo
: :

pelos fynonymos : terceiro pelas vozes illuftr es : quar-


to pelos epttbetos quinto pelos peripbrafes
: lextó
:

pelas repetiçoens.
Para a Amplificação das metapboras temos o Pa-
dre Vieira no primeiro Sermaõ do primeiro Tomo.
ES Huma arvore tem raizes , tem tronco , tem
ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, temfru-
£tos;
,
;:

OU ARTE DE RHETORICA. 209


ílos; affim he o Sermão: Há de ter raízes fortes,
e fólidas , porque há de fer fundado no Evangelho
há de ter hum tronco , porque há de ter hum íõ afc
fumpto , e tratar huma fó matéria deite tronco haó :

de nafcer diverfos ramos , que faõ diverfos difcur-


fos , mas nafcidos na mefma matéria , e continuados
nella eíles ramos naõ haó de fer íeccos , mas co-
:

bertos de folhas, porque osdifcurfos haô de fer vefti-


dos , e ornados de palavras há de ter eíta arvore
:

varas, que faõ a reprehenfaõ dos vicios: há de ter


flores , que faõ as fentenças ; e por remate de tudo há
de ter fru&os , que he o fruáo , eofim, a que fe há
de ordenar oSermaõ. De maneira, que há de haver
fru&os, há de haver flores, há de haver varas, há
de haver folhas , há de haver ramos , mas tudo naí-
cido , e fundado em hum fó tronco, que he huma fó
matéria : Se tudo faõ troncos , naõ he Sermão , he ma-
deira fe tudo faõ ramos, naõ he Sermão, faõ ma-
:

ravalhas fe tudo faõ folhas , naõ he Sermaó , faõ ver-


:

ças : fe tudo íaõ varas , naó he Sermão , he feixe


fe tudo faõ flores, naõ he Sermão, he ramalhete. Se-
rem tudo fruélos , naõ pôde fer , porque naõ há frudto
íem arvore. Aílim que nefta arvore, a que podemos
chamar arvore da vida , há de haver o proveitofo
do frudlo , oformofo das flores , o rigorofo das varas
o veítido das folhas , o eftendido dos ramos ; mas tudo
ifto nafcido, e formado de hum fó tronco \ eeílenaõ
levantado no ar, fenaô fundado nas raizes doEvan-
gel lio. ~

PAra que
zAmplificaçaS dos Synonymos , douaCice^
Ca-
todiíle , ,
para explicar a íua ira contra
tilina ; s= Non firam , 12011 parcam non finam,
,
E
as
para mcítrar a violência , com que foi lançado de
O Roma
2io THE ATRO DA ELOQUÊNCIA
Roma , diíle também : s=s Abiit , eMejJit , evafit , eru*
pit. 3QS

PAra
jires
a ou termos illu*
Amplificação das tos*/
o mefmo Orador contra Verres
,

, :

es Naó trazemos ao voíTo Juizo a hum ladrão


diflimulado mas a hum roubador publico: naó tra-
,

zemos a hum adultero , mas a hum expugnador da


pudicícia naó trazemos a hum facrilego mas a hum
: j

inimigo das coufas fagradas , e religiofas naó tra« :

zemos a hum homicida , mas a hum crueliífimo ver-


dugo dos noífos Gidadaons , e companheiros, sa

ANtes devemos
de entrarmos na Amplificação dos
iaber qus o epítetho
eptlhé*
tos , , ao qual
dá Quintiliano o nome de ts appofito z$ he hum adjer
dlivo , com que fica ou mais clara , ou mais enér-
,

gica , ou mais aguda a fignificaçaõ do iubftantivo*


a que fe ajunta. Huns íaó próprios , e naturaes , outros
translativos : he próprio, e natural o epítbeto de fria
que damos á neve: o Az aromático aoincenlò: ode
palhclo ao enfermo : o de negro ao Ethyope. E eítes
mefmos íicaráó translativos , applicados a outros fub-
fíantivos , como fe chamarmos frio ao eftylo : aro*
maticos aos bons coftumes : pallida i morte : negra
á opinião , ou á tama.
Muitas faõ as fontes de que podem nafcer os
,

epíthetos. Primeira ,
pode nafcer o epítbeto da caufa
eficiente , e com ella chamaremos á meza s: offi-

ciofa. =J
2 Da caufa material , com que diremos que he
fcs marmóreo s o edifício,
3 Da
OU ARTE DE RHETORICA. 211

3 caufa formal, com que íe dará o epithto


Dn
de ES trifauce =s ao cerbero.
4 Da caufa final , chamando á fortaleza «?*'//• —
tar. ès
5 Com o eífeito próprio , fe chamará ao Sol ~ /»-
minofo. 53
6 Com o eífeito extriníeco ss macillento & ao en«
fermo.
7 Com
a natureza da coufa ts húmida , oxx forni
hria s á noite.
i
8 Com o lugar s
filveflres zz aos Faunos.
9 Com algum lugar infigne zzTbeffalicoszZ aos
venenos.
10 Com o fitio ts montuofa =J a Arménia.
11 Com o tempo s= matutina ~ á luz.
12 Com a duração do tempo ta caducos ao tronca.
13 Com imitação da matéria £3 cryftallinazz í
jgfphera.
14 Com o miniílerio ss á águia 53 fulminante. :=;

ij Com os coílumes t= fraudulentas á Grécia,


ió Com os Genitores Saturnia ja a Juno.
;=:

17 Com a pátria ou região ç$ Hyrcam s ao


,

tigre.
18 Com o habito zzcerdofozz ao javali.
19 Com os dotes do corpo p; ebúrneos 53 aos den*
tes,
pudibundas ás faces , dourados aos cabellos.
20 Com os vicios do corpo £=: deforme ss a Pa-
lyphemo, s=? £0*0 =3 a Vulcano.
21 Coma invenção e=: vulcaneas s ás armas 9 <S7-
byllinos aos verfos.
22 Com a côr 53 nevados 53 aos Cifnes , tenebro*
fos aos corvos.
23 Com a quantidade í=f profundo ?3 ao mar;
24 Com o numero sí infinitos tz aos nefcios.
25 Com o eítrondo ta canoras ás trombetas. $
O 2 26 Com
212 THE1TR0 DA ELOQUÊNCIA;
26 Comi o pretérito zz/cientificazz a Athenas.
27 Com o prezente zi calmo/o zz ao Eítio.
28 Com o futuro zz/erttlzz á íemente.
29 Com as acçoens zz Africano zz a Scipiaô.
30 Com o prodígio ziCorvinozz a Meilalla.
31 Com 0$ Authores das artes Dedaltcazz
:=: í
archite&ura.
32 Com as iníignias t; Caducifero zz a Mercúrio.
3 3 Com o lugar , aonde alguém fe venera s: £p/te-
/?/;# s=í a Diana.
34 Com a qualidade do lugar zz a/peros
sss aos
Pynneos.
3J Com a poíleflàõ ps Acbilleazz á lança.
3o Com o officio zz au/ptcantezz a Caflandra.
37 Com os Aícendentes t=á Qitiriteszz aos Ro-
manos.
38 Com o ornato tx laureada ss á cabeça.
39 Comos affèítos es intrépido zz ao guerreiros
40 Com a imitação dos affedtos humanos zz ira-
cundo tz ao raio.
41 Com o modo de obrar zzjediciofo zz a Ca ti*
lina.
42 Com as influencias zz in/elice zz a Hercules.
43 Com
imitação das faculdades d'a)ma sá w*-
a
moráveis zz aos Faltos.
44 Com a imitação da voz , da viíía , e do ou*
vido es murmur adoras =3 ás fontes , vigilantes ás ef-
írellas , /urdos aos penedos.
45 Com a eílimaçaõ S± auri/era zz á virtude.
46 Com a conftancia zi invencível'zz ao Fado.
47 Com a prezença éfc formidáveis zz aos Pla-
netas.
48 Com o eftado zz mercante zz á Cidade.
49 Com a opulência zz fru6íifero~ ao Outono.
50 Com a pobreza ás arvores zz de/ptdas. zz
51 Com
:,

OU ARTE DE RHETORICA. 1213

51 Com ofocego sr plácido na ao golfo.


52 Com a recepção ts depofitaria 33 á urna &c,
&c. &c.
Daqui pode inferir que fao innumeraveis as
fe
origens , de que podem nafcer os epíthetos.
Agora darei hum exemplo do Conde Theíauro
para a fua simplificação.
;=:Jaíàhia a húmida aurora das cerúleas ondas y
e illuftrava de huma cor alaranjada , taó brilhante
como o ouro, algumas fubtis, e dilatadas nuvens , que
a eícura noite tinha deixado nas efpheras.
Reverberava huma purpúrea claridade na cândi-
da eminência do alto Apenino ; burrifava com trans-
parentes orvalhos a molle relva dos verdes prados ,
e os pállidos ramos dos trémulos alamos , aonde hum
emplumado coro de pequenas aves , brincando, com
as matizadas azas , e modulando , com fuaviííima har-
monia , feftiva , e alegremente- a faudavaõ. sàj
Porém efta Amplificação dos epíthetos , ficará
mais engraçada , e vehemente , quando concorrerem
muitos , e fucceffívamente com hum fó fubílantivo
he hum bom exemplo o de António de Mendoça no
Romance á Soberana Virgem :

Cuya Mia planta termofa


pifa dei dragou mas fiero
el voraz ,rugiente , altivo ?
fanudo , erizado cfteHo,

§.

OS Periphrafes , a que vulgarmente chamamos


Circunlocuçoens faô hum rodeio de palavras ,
com que explicamos , com mais cultura , e extenfaó,
o que podíamos dizer com brevidade , e íingeleza
O 3 ufando
1 14 THE ATRO DA ELOQUÊNCIA ,

ufando fó do nome próprio , que conrerponde ao nof-


fo conceito.
Elles íaõ mais familiares aos Poetas , que aos
Oradores , porém ainda a eftes íe faz algumas vezes
precifo o feu ufo ; efpecialmente nas vozes incultas,
obfcenas e antiquadas , e naquellas , que fe naó achaó
?
na própria lingua.
Eu quizera dar aos Periphrafes as mefmas ori-
gens , que dei aos epitheios , porém receio que os
meus Leitores fe enfaftiem , íe eu repetir huma tao
infipida diftribuiçaõ. Cuido que que eu dê al-
bailará
gum exemplo da fua Amplificação , que deíempenhou
felizmente Eugénio Gerardo Lobo no feu Nicetas ;
quando efte Martyr cortou com os íeus dentes a lin-
gua , para refiftir aos inlultos de huma Proítituta

Com religioja impaciência Alma de lafantafia i


defpedaza a que l precifo retrato legal dei juizioy
interprete delicado j dei volumen humano
dei coraçon ej condido. índice , comento , y jignó.
En fin el dulceinjirumento
de lei eloquência partido ,
de la aljava de los lábios
flecbò ai contrario por tiro»

§•

PAra a Amplificação das repetiçoens em , que fe


introduz a mefma
palavra ou por cauía
, do or-
nato , ou da commoçaõ do animo , temos o exemplo
em Cicero na defenfa de Rofcio Amerino ;
Accufaõ a Rofcio Amerino aquelles , que fe
íss

oppuzeraô a todas as fuás fortunas ; e elle moftra em


Juizo 5 que lhe naô deixarão íenaó calamidades : ac-
cufaô-no aquelles ; a quem foi útil a morte de feu Pai;
e elle
OU ARTE DE RHETORICA. 21 j

c elle mofira em Juizo ,


que eíles naó fó lhe caufa-
raõ a trifteza da mefma morte, mas huma extrema
neceffidade accufaõ-no aquelles , que fummamente o
:

defejaô matar , e elle moftra em Juizo , que veio com


guarda ao Tribunal , para aqui naô fer deípedaçado
diante dos voíios olhos accufaõ-no finalmente aquel-
:

les , contra os quaes eítá o Povo pedindo o merecido


caítigo ; e elle moftra em Juizo , que he o único ,
que ficou da malvada mortandade , que occaíionaraó
cites infames accufhdores. =3
Ovidio na Epiftola de Phyllis a Demophoonte :

Credidimus blandis , quorum tibi copia , ver bis ,


Credidimus generi , nominibufque tuis :

Credidimus lacrymis ; an& hac fimulare docenturi


Ha quoque habent artes , quaquajubeíitur , eunt.
António Barbofa Bacellar , hum dos noflòs gran-
des engenhos do paíTado íeculo nas fuás Saudades de
Lydia , e Armido :

Oh quantas vezes me jurafte aâíivo ,


Que atraz antes o Tejo tornaria ,
Qtie pudefje jamais Armido efqutvo ,
Sem os olhos de Lydia , ver o dia \

Torna atraz , doce Tejo fugitivo ,


Que ja Armido de Lydia fe defvia :
Toma atraz , lifonjea a minha queixa ,
Torna atraz , que ja Armido a Lydia deixa.

Eftes faó todos os meios , por onde fe pode fa-


zer regular a Elocução ; e como ainda para ella fera
muito conveniente a Imitação \ por fer huma das par-
tes mais attendida na eloquência, a darei no

O 4 LI-
zi6

LIVRO V.
CAPITULO I.

_
T i
-A,
Oda aportentoía variedade, de que o Mundo
fe compõem, he huma fucceíliva Imitação ,
ou da Natureza , ou da Arte. A mefma Sa-
bedoria Divina para fahir a luz, com huma
,

das grandes obras da lua Omnipotência , qual foi o


homem, fevaleo da Imitação , lendo o meímo Deos
o exemplar, eo homem o exemplo ,
pois o fez á fua
Imagem e íemelhanca.
,

Fez os Ceos
, e os elementos em figura circular,
á Imitação da Eternidade : a luz , que fecommunica,
fem deteriorar-fe, á Imitação da fua EfTencia: os brutos
á Imitação àos homens : as plantas á dos brutos \ diítin-
guindo os homens dos brutos pelo raciocínio, eos
brutos das plantas pela fenfaçaõ , fe tanto confenteo*
os Caterfianos*
Ao depois asfegundas caufas foraõ imitando as
obras do feu Soberano Artífice : os campos , com as
fuás flores, imitarão o brilhante jardim do Firmamento:
o curfo das agoas , o das efpheras. PaíTou a Natu-
reza para a Arte , com eítas imitaçoens Imitarão :

os homens os raios , com as bombardas : o tempo


com os relógios as eftreílas , com as luminárias : as
:

exhalaçoens, com os foguetes: a fi mefmos , com as efta-


tuas as eftatuas , com as pinturas ; e com a pintura ,
:

e efculptura imitarão tudo o que nos reprezenta o


Uniyeriò, fendo taõ diííicil numerar eftas imagens
como
;

OU ARTE DE RHETORICA* 217

como explicar a Gloria, eo ufo da Imitação.


Por eíta caufa ainda na antiguidade, aonde naõ
havia tantos exemplares , para tirar os retratos , nunca
eíleve ociola a Imitação , humas vezes emendando,
outras desfigurando , e outras illufírando as feiçoens.
Os primeiros, que tomarão os pincéis , para dei-
tar eítas linhas, foraõ os Poetas ; e o primeiro Poeta
foi o primeiro homem , pois naó falta quem diga que
compuzera em verío o Pfalino 92. , que anda entre
os de David \ e teve por exemplar ao meímo Deos
porque huns o chamaó Faólor , outros Poeta do Ceo ,

e da Terra.
Enós , neto de Adam , imitou ao Avô neíle fo-
berano exercício : de Enós paliou a Sambetha mu- ,

lher de Noé : de Sambetha a íeu filho Tubal , até


chegar a Homero.
A Homero, naõ fó imitou Virgílio, retratando
a Odyílea na Eneida, mas, fegundo Demétrio Pha-
lareo , fe fizeraó famofos Thucidides, e Heródoto , pro-
totypos da eloquência Grega, com a imitação , que
íizeraõ do Poeta Grego nas fuás Hiftorias.
Cicero , que fubio ao mais alto ponto da eloquên-
cia Latina , naõ fe dedignou de imitar a Demoílhenes.
Seria hum proje£lo indefignavel o trazermos á me-
moria , quanto maisápenna, o prodigiofo concurfo
dos Imitadores.
Porém como fó pertence ao meu intento, naó
os que imitarão , mas os que devemos imitar ; direi
que Cicero entre os Oradores Latinos he o mais digno
de fer imitado , e entre os noíTos Oradores o Padre
Vieira ^fallo do ufo da Elocução , e farei o officio de
Palemon nos outros requifitos , que pertencem á Ora-
toria.
AntonioSolis , ainda que em eílylo hiílorico , naó
tem igual nas refkxoens > na fuavidade ; na pureza
da
2i8 THEATRO DA ELOQUÊNCIA,
da língua , na eminência dos penfamentos : quanto
a mim , eu onaô acho inferior a Tito Livio :efte
Jtambem he dos melhores exemplares para a imitação.
O Retrato politico de Aftonío VIII. pelo Conde
de Cerbelhon , pode parecera alguém demaíiadamente
florido ; porém eu fempre me arrebato , quando o leio.
Jacinto Freire na vida de D. Joaó de Caftro he
mais varonil , e he dos noíTos mais eloquentes Efcrip-
tores.
Os Illuftrifllmos Fenelon, Bofluet, Flechier faõ
os melhores da lingua Franceza. Na Oratória Sagra-
da parecem inimitáveis Bourdaloue , e Maílillon.
Devem íer igualmente muito attendidos na ele-
gância Q. Curcio , Saluítio , os Cornmentarios de Ge-
lar , Lúcio Floro , Cornelio Tácito , Valério Máxi-
mo, Paterculo , e o Padre Famiano Eftrada.
Entre os PP. aííim Gregos, como Latinos eu
dou o primeiro lugar a S. Joaõ Chryíbflomo. Alguns
reputaó a Tertuliano pelo Cicero da Igreja : naõ há
duvida que he vehemente , efpirituoío, e elegante ; po-
rém em muitas partes eícuro , e demaíiadamente frí-
volo, fubtil , eengenhofo. Abaixo deS. Joaõ Chry-
foílomo eftá S. Gregório Nazianzeno , S. Pedro Chry-
lòlogo, S. Bafilio , S. Gregório Magno , S. Leaô Papa
S. Jeronymo , que devem eftar diante dos Oradores
Evangélicos para femearem devidamente a Doutrina,
de Chrifto.
Dos Poetas Latinos o primeiro he Virgílio : fóbe y
e defce com eleição , e medida , cuja flexibilidade
fe faz muito precifa na eloquência : o fucceífivo eftre-
pito de Lucano , ja naõ deve fer imitado. Também
naõ aconfelhara que íeimitafle Eftacio naThebaida,
mas fó em alguns lugares da Achilleida. Ovidionaõ
deixa de fer bom para a expreílaô das imagens , dos
affeótos , e da facilidade.
Jero-
,

OU ARTE DE RHETORICA. 219

Jeronymo Vida , Sanazaro , Plauto , Terêncio ,


Juvenal Tibullo
, , Catullo , e Claudiano , fe pedem
imitar, exceptuando os últimos nos lugares em que
abufaraõ da liberdade Gentílica.
Dos noífos Poetas ninguém difputa a Camoens
o primeiro lugar ; eu ponho em íegundo a Gabriel
Pereira de Caítro , com licença de Manoel de Faria ,

que tomou teima com a fua Ulyfjea.


Dos Hefpanhoes , fegundo o meu fraco juizo
tem a primazia Luiz de Gongora nos verfos peque-
nos , ainda que venero muito a fuavidade de Garci-
laço de la Vega. Eugénio Gerardo Lobo illuítrou o
Parnafo Hefpanhol nonoílo íeculo com as fuás Poefías.
Dos Italianos , Torquato Taílo me parece mais
imitavel na arte , que na aufteridade com que tratou
as Mufas Diíferaõ delle pi que peccara em naõpec*
:

car. ~
Pudera trazer hum innumeravel efquadraó de
Poetas Italianos, porém baítará que ponha na fron-
te o Pajior Ftdo do Cavalheiro Guarini , e de me-
lhor vontade o puzera, fe em lugar dos verfos fol-
tos fe metteílem os rimados nefte dociííimo , e en-
genholo Poema.
Dos Francezes naõ poífo dar muitos exempla-
res , ainda que fejaõ baftantes os Poetas delta Pro-
víncia , pois como amaô mais os frudtos , do que as
flores , naõ íe fabem haver com a elegância Poética.
Depois do Reinado de Francifco I. he que prin-
cipiou eíía Naçaõ a olhar para a altura do Pindo }
ainda que nunca pode vencer a fua eminência. Al-
guns dos noííòs modernos lhes pertendem fazer com-
panhia na raiz do monte ,. ou por moda , ou por lhes
parecer muito diíScil a ladeira» Ainda naõ houve quem
os defenganafle de que nefte lugar nunca paílariaõ de
ferem Sylenos.
Os
220 THEATRO DA ELOQUÊNCIA,
Os
Poetas de França mais antigos , e conheci-
dos faó Marot , Rabelais , Roníàrd , Malherbe , May-
nard , Voiture, Scarron , Calprenede , e o Marquez
de Racan os menos antigos faõ : De la Motthe le
:

Vayer, Moliere, Chapelain , Desbarreaux, Mcze-


rai , Chapelle Beaferade
, , PeliíTon , o Conde deBuf-

íi , La Fontaine , Santeuil , Pradon Racine Pai , e fi-


lho.
Os mais modernos faõ Mafcaron, St: Evre-:

mont , Corneille Defpreaux , Rouíleau Desfontai-


, ,

nes o mais chegado ao noílb feculo he Voltaire.


; e
De todos eíles os que eftaõ em melhor lugar íaõ o
mefmo Voltaire, Rouíleau , Defpreaux, Corneille ,
Racina Pai , e Moliere porém talvez que nenhum
;

delles nos poíTa fervir de exemplar para a noífa elo-


quencia.
Devo padar em filencio os Oradores, e Poetas
Alemaens , Olandezes , e Inglezes porque naõ te- ,

nho o devido conhecimento da íua lingua Ouço faK :

lar muito deites últimos em Milton , Shakefpear, e


Pope. De Pope , e de Milton tenho vifto as tradu-
çoens ; porém , com ellas , naõ poílb fazer o verda-
deiro juizo dos Originaes.
De todos eftes AA. fe devem entregar á me»
moria os lugares mais illuftres , porque facilitará a
imitação efta variadade de efpecies efcolhidas. De-
vemos fugir da imitação , que fe chama fervi/ ? que
he quando fe traslada , e naõ fe imita , e feguirmos
a Natureza , que debaixo do mefmo modello forma
differentes indivíduos.
Por nove modos fe confegue a Imitação Pri- :

meiro exprimindo o conceito penfamento , ou a fen-


, ,

tença por outra* palavras affim imitou Camoens a


:

Virgílio : Virgílio dille

Si
,

OU ARTE DE RHETORICA. 221

Si tamen , ò Superi, mortaliafacia videtis.

E o noíiò Camoens :

Se lã no q/Jefito Ethereo , a que fubtjie \


Memoria Uejta vida je confente*

s-

SEgundo naó conferindo as mefmas palavras ,


,

ou fentenças , mas coníervando fomente o metho-


do aílim imitou Ovidio a Cicero Cicero diífe nas
: :

Philippicas :

Quizera que fízefíem os Deofes immortaes


ca
que antes deitemos as graças a S. Sulpicio eftando vi-
vo , do que lhe procuraííemos as honras depois de
morto, z:
E Ovidio.

Si tnea cufn veflris valuiffettt vota Pelafgi ,


Non for et ambtguus tanti ctrtaminis bares :
Tuque tuis armis , nos te potiremur , Achille*

§.

O
tido :
Terceiro
meímos termos
, guardando
, e
as mefmas palavras, ou os
transferindo-as a outro ferir

Cicero diííè contra António :

Oh bárbaro atrevimento Tu tens oufadia para


ir !

entrares naquella Cafa? Tu atreves-te a profanar aquel-


la entrada âantiffima ? Tu atreves*te a apparecer com
eíTe criminofo femblaníe diante dos Deofes Penates,
que exiftem naquella morada ? e=i
E qualquer Orador Evangélico podia também dizer:
p=Oh
222 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

— Oh barbara temeridade ! Tu tens ouíadia pa-


ra entrares neíle Templo ! Tu te atreves a profanar
aquelle fantiffímo Veftibulo? Tu te atreves a appa-
recer com effe atrevido femblante diante de Deos, e
dos íeus Santos, que fe veneraô nefta fagrada habi-
tação
§•

O Quarto , ufando dos niefmos termos


e applicando as a diverfos objeítos
Cicero diíle contra Catilina :
,

:
e palavras,
O mefmo
55 Até quando finalmente , ó Catilina , has de
abufar da noíla paciência ? Até quando há de eícar-
necer de nós elTa tua ira ? Até que limites fe há de
precipitar eííe teu atrevimento : Naó te move para o
refreares , nem a nofturna guarda do Palácio , nem
as vigiasda Cidade, nerri o temor do Povo, nem
o fequito de todos os bons , nem hum lugar taô de-
fendido, como aquelle, em que fe ajunta o Senado ,
nem as vozes femblantes dos Senadores ? 53
, e
E pode fer efta a imitação :
tt Até quando finalmente , ó peccador , has de
abufar da paciência divina ? Até quando efearnecerás
da fua piedade ? Até que limites fe há de precipitar
eííe teu atrevimento ? &c. p3

§.

O Quinto, feguindo as figuras , os períodos, os ador-


nos , mas com díverfas palavras, e com difte-
rente conceito. Diz Cicero na Philippica fegunda.
gs Naõ agrada a António o meu Confulado , map
agradou a P. Servilio , para que nomêe em primeiro
lugar o que primeiro morreo entre os Confules da-
qudie lempo agradou a Q. Lu&acio , cuja autho-
:

ridade
r 1 :

OU ARTE DE RHETORICA. 213

ridade fempre viverá nefta Republica: agradou aos


dous Lucullos , a M. Crallo , aQ. Hortencio, aC

Curion, e íbbre tudo oapprovou Cn. Pcmpeo,
E na única Elegia do fegundo livro dos Triíles
pudera também dizer Ovidio á Augufto :

c: Offendeo-fe Augufto das minhas Poefias , mas


goftou muito delias Virgílio j porque heJDÍlo que pri-
meiro traga á memoria o nome de hum Poeta , que
morreo primeiro entre os grandes Poetas daquelle. tem-
po : goítou delias Mecenas , cujo (cientifico patro-
cínio durará fempre na lembrança dos homens goftou :

delias Propercio, Tibullo, e Máximo; e fobre tudo


haõ de ler eítimadas de toda a poíteridade. a

o Sexto , amplificando algum conceito, ou fentença.


Difle Virgilio naGeorgica primeira»

Prima ceres ferro mortales verter e terram


ln[lituit. — ——
E Ovidio no quinto das Transformaçoens :

Prima Ceres unco glebas dimovit arairox


Prima deditfruges , alimentaque mitia terris
Prima dedtt leges Cereris funt omnia munus%
:

5.

OSettimo reduzindo a huma breve fentença huma


,

Oração dilatada: Cicero na Oração pro Mar*


cello faz hum diftufo Elogio a Cefar com a gloria
,

de vencer , e perdoar ; e hum excellente engenho ,


reduzio efta extenfaó ao dyfticho feguinte :

Gloria
Z2* THE ATRO DA ELOQUÊNCIA,
Gloria vincendí junãa e/l , cum milite , Ç<ejar :

Çéefar parceiídi gloria tola tua ejl.

O Oitavo , pondo a Oração foluta na Oração li-


gada : Claudiano reduzio a números poéticos
hum lugar do Panegyrico de Plinio: Diz Plinio:
£2 Algum refpiandeceo na guerra, mas perdeo
eílà gloria na paz: outro foi eminente na toga , ein-
felice nas armas : hum alcançou o obfequio com o ter-
ror, outro com a humanidade: aquelle perdeo aglo*
ria domeftica , eíle a publica : Finalmente, ninguém
houve atégora , cujas virtudes naõ foflem contamina*
das com os vicios : mas que grande concórdia , que
grande harmonia de toda a gloria fe acha infeparavel do
riofTo Príncipe ! Naô íe perde a fèveridade , com a
alegria: naõ fe perde a gravidade , com a íingeleza :

naõ fe perde a mageíladc , com a benevolência. ^


E Claudiano :
mmquam fincera bonorum
Sors ulli couceffa viro quem vultus bonejlat
:

Dedecoralur mores antmus quem pulchrior ornat


:

Corpus deflituit bellis inftgnior ille ,


\

Sed pacem fcedat vitiis bic publica firlix ,


:

Sed privata minus, partitum fingula quemque


:

Nobilitant: hunc forma decens^hunc robur in armis\


Hunc rtgor , hunc pietas illumfolertia júris ,
:

tiunc joboles , cajltque tori jparguntur in omnes 3


:

In te mixta fluunt , &qiite divifa beatos


Ejjkiunt , colleSia tenes. ~

sr

O nono
, :

OU ARTE DE RHETORICA. ft£

O Nono finalmente , mudando para o idioma ver-


náculo o que eftá em lingua eítranha : aífim imi-
tou Cícero a Demofthenes Virgílio a Homero na
:

Eneida nas Georgicas a Hefiodo nas Éclogas a Theo-


: :

crito Terêncio a Apollodoro : Plauto a Demophilo :


:

Horácio a Lucilio: Ovídio a Párthenio Eftacio a :

A nt ima co j e o noíTo Camoens ao mefmo Virgílio , de


que darei hum exemplo; Diíle Virgílio nofettimoda
Eneida :

Pajlorale canit ftgnum , cornuque recurvo


Tartaream intendit vocem , qua protinus omne
Lontr^mutt nemus , &
ftlva intonuere profunda
Audttt &> Trivia longe locus ; audiit amnis
\

Sulfúrea Naralbus aqua , fontefque velini;


Et trepida matres preffere ad peâlora natos.

E Camoens no quarto das Luziadas t

Deo fignal a trombeta Cajlelhana


,
Horrendo , fero, ingente, e temerojo :

Ouvto-o o monte Ar t abro , e o Guadiana


Atraz tornou as ondas de medrofo
Ouvio°o o Douro , e a terra tranftagana ;
Correo ao mar o Tejo duvidofo
E as Mais, que o Jom terrível efcutaraõ.
Aos peitos os filhinhos apertarão.

§•
MAsfempre ferabom que cilas imitaçoens fe adi-
antem aos exemplares , como fez Camoens ne-

° "M
ftZU ° merm0 TUS"Í
d* En^f&Õ X°
P O' lux
%i$ THEATRO DA ELOQUÊNCIA
O 1

lux Troj£ germane Heâlor


Quidita cutn tuo lacerato corpor e mifer !

E Virgílio :

O lux Dardani*
, fpes ò fidiffima Teucrum;

Qu& tant<e tenuere mora ? Quibus Heâlor ab orif


Expeâlato venis ? Ut te pofl multa tuorum
Funera , pofl vários hominunique , urbifque labores
jQefqfJt afpiaimus i Qiue caufa indigna feretias
fwdavit vultusi Aut cur b<ec vulnera cerno?

Aqui íe verifica o que dizia omefmo Virgílio:


Ex Ennii flercore gemmas , aururnque colligo,
A'quelles , que o notavaõ de elle trasladar i-Home-
ro ? tamhem coííumava refponder , conforme nos iníi-
nua S. Jeronymo Magnarum effe virium Herculi
:

ciavam extorquere de mana.

S.

ESta he a Imitação, que refpeita aos termos , e eftylo

dos efcriptores , e como podemos feguir os í eus


veftigtos ; porém como também a eloquência deve
eftar cheiade affe&os, e de paixoens , e de tudo o
mais ^ que pertence aos obje&os da Arte, e da Na-
tureza, fcrá precifo que também aqui empregue a fua
imitação, por fera mais illuftre, de que a elegância
fe compõem. Naõ hi coufa alguma no Mundo, que
jiaõ Oradores :
pofla fer imitada pelos A
fabrica das
efpheras, a qualidade dos elementos , a fundação dos
Reinos , e das Cidades , a fymmetria dos edifícios ,
a amenidade dos campos, a afpereza das ferras, as
acçoens dos homens , e dos brutos 3 e tudo o mais , de
que íe adorna a diverfa, e dilatada circunferência do
Univer-
,

OU ARTE DE RHETORICA. «7
Univerfo. Por iílò naô ápprovo que diíTelíe Horácio
que nefta parte tinhaô tanta liberdade os Poetas , como
os Pintores ; pois he bem fácil de ver , que aquelles
a tem muito maior do qúe eftes. Couías há ( diíle
Caramuel) que naô cabem na efphera da pintura , e
para iílo nomea a neve, o ouro, eoSol; Quíe nul-
lius Apellis penicillo exprimuntur ; e o Sol , o ouro ,
eneve íàõ muito fáceis á imitação dos Poetas, eOra*
dores. Ficou fem expreflaó a pintura quando os Pin-
tores Mexicanos quizeraô retratar o eftrondo das bom-
bardas ; e vemos confeguidos eftes retratos , naô fó ,
com o cencuríb das dicçoens , mas também das letras :
Com o ;= m =5 , e com o 5= r ss imitou , ou retratou
o nolío Camoens a voz horrifona do feu gigante ,
pois fem fazermos , com a boca , hum fom horrorofo
e corpulento, talvez que naô podamos recitar aquelle
verfo das Luíiadas :

C hum tom de voz nas falia horrendo , egroffo.

Virgílio imitou os aflovios dos ventos . quando


difle:

—— ^
magno cum murmure montis
Circum clauftra fremunt \

E os latidos do caõ Cerbero neftes dous verfos :

Cerberus hac ingens latratu regna trifauci


Perjonat , adverfo recubens itnmanis in antro.

;

E o clangor da trombeta de caça :

Extulit , & rauco ftrepuerunt comua cantul

Pz De
i2g THEATRO DA ELOQUÊNCIA,
De que fe aproveitou o TaíTo para exprimir o
fom da trombeta Tartarea :

// rouco fuom delia Tartarea trompa.


I

Até a imitação do movimento fe pôde coufeguir


por femelhante modo. O movimento rápido eftá imi-
tado neíte lugar do meímo Virgílio:
ci
« _ — qua Jumma labentes
H
jfunâluras ta buiata dabant , convellimus altis
Sedimus, impullimujque, ea lapfa repente ruinam
I
&
Cum fonitu trahit , Danaumfuper agmina late
Incidit. —
E o movimento froxo, faliando dos dardos de
Priamo

Sic fatus fenior teluraque imbelle , fine iclu ,

Conjecit. .

A mefma froxidaô do verfo moílra a debilidade


com que fe fazia o tiro.
Eu pudera moftrar em todas as figuras da Rbe-
torica muitos exemplos de como nellas fe confegue
melhor a imitação; mas receio o dilatar me muito nefta
cxpofiçaô \ e agora me contentarei com a advertência
deque aílim a imitação, como as figuras e as outras ,

partes , de que fe forma a elocução, ficaráõ muito mais


elegantes, e efplendidas , fe forem acompanhadas da-
quella particular illumimiçaó , a que chamamos !=: A-
gudezazz de que direi alguma coula no

CA<
: ,

OU ARTE DE RHETORICA. 219

CAPITULO II.

A agudeza
£=
fegundo os Lógicos , he
Huma
,

engenhofa expreíTaó , ou do con«


ceito , ou do penfamento , ou da fentença ; ou hum
:

dito inefperado, que faz, coma fua novidade, arre*


batar o animo , pela luz exquifita, que communica
ao entendimento, s=i
Segundo os Rhetoricos , pela definição do Conde
Thefauro , he
;=Hum clariífimo lume da Oratória, e da Poé-
tica, alma das paginas, ultimo esforço dodifcurfo,'
veíligio da Divindade ; que nao fó pela íiia virtude
osdifcretos fedifferençaó dosrufticos, porém os An-
jos , dos homens : com a fua efpirituofa efficacia fal-
laõ ascoufas mudas, vivem as infenfiveis , refufcitaô
as mortas : as Urnas , os mármores , as eítatuas re-
cebem delia oefpirito, e o movimento; etndo o que
naõ he animado pela Agudeza parece fepultado, e
a mortecido. zs
Há três géneros de Agudeza Agudeza da : pa«
lavra : Agudeza da acçaõ Agudeza mifta
: :

Do primeiro género nos dá o exemplo Jorge de


Monte maior, que vifitando hum Grande de Hefpanha
lhe negou a cadeira , e mandou vir hum aíTento razo
,
para que elle fe alientaíle , o que Monte maior nao
acceitou , de que enfadado o Grande, lhe diííe: Por-
que nó fe [tenta ? A que refpondeo Porque me fiento.
:

Do fegundo género nos ofierece o exemplo Ale^


xandre Magno, pondo o fignete fobre a boca de Parme-
nion , depois de ter lido huma carta de grande fegredo.
P 3 Do
23o THE ATRO DA ELOQUÊNCIA,
Do terceiro género he o fucceílo de Diógenes
com Platão : detínio eíte Philofopho o homem por hum
animal , fem pennas , de dous pés. Entrou Diógenes
na Aula de Platão com hum gallo depennado , e ar-
rojando© no meio dos diícipulos , lhes diíle: Eis-
aqui o homem de vo/Jo Me/ire.
De todos eftes três géneros, e das muitas, eva-
rias efpecies em que elles íe dividem , pudera eu tra-
,

zer hum grande numero de exemplos ; porém como


tratou efta matéria com toda adiífufaôoCondeThe-
fauro no feu famofo Canochiale Ariftotelico , que hoje
temos traduzido na lingua Cafteihana pelo Augufti-
niano Fr. Miguel de Sequeiros, me parece cfcuiado
oreoetir. ou trasladar efte argumento Com tudo em :

alguns lugares , que


beneficio dos meus Leitores darei
moítraõ mais
íe naõ achaõ no Thefouro , e em que
íe

vivos , e agudos os penfamentos. Fie muito engenho-


fo aquelle fundado na Etymologia :

A Rui Gonçales dizilde ,

que mire mucho por Ji *


porque el punto de la 5=: * =3

Se k và bolviendo tildes

E eíte fundado no equivoco

Parid bella flor de Lis ,

que el nò parir fe os eftrana :

fi paris , paris a
Hefpafía ,
Si nò paris , a Paris.

A hum Marquez muito mal cafado a quem lhé


inorreo a mulher

El Marquez , y fu muger %
: , a ^

OU ARTE DE RHETORICA. *ji


contentos quedon los dos :

ella fe jue ver a Dios ,


y a èl le vim Dios a ver.
A outro Marquez, a quem mcrreohuma mula. de
três, que tinha muito magras:

Al Marquez le folheio
una mula de las três ;
y mi amigo , que las viò
pergunto : Qtial de e/las es
la mula , que fe muriò*

Francifco de Quevedo á Apolio fcguindo a Da»


phne ;

No corras mas , Dafne bella^


que verte buir taô furtof
de mi , que alumbro la esfera
>
a no feres tan bermofa
por la nocbe te tuviera.

Ao Conde de Cifuentes , que nafceo cego . fen-


do mujto gentil

Sin duda que el Cie lo quizo '

de piedofo, y prevenido
hazer ai Conde Cupido^
porque no fue/Je JSíarcifò.

Quafi do mefmo aflumpto he o fegulnte Epi-


gramma a dous Irmaós de gentil
prefenca . lendo ce-
gos de cada hum dos olhos :

Lufce puer , hmen \ quod babes concede forori, ;


òtc tu ver us Amor , ficerit illa Vénus
P 4 Anto»
*$* THEATRO DA ELOQUÊNCIA
António de Solis acordando de hum fonho

EJle rato de muerte fugitivo


Vivi ; y
ai defpertar , muerte enojoja
Me fuè la vida ò riefgo de mi fuerte {
:

Que muera yo de enfermedad de vivo ?


Que una vez que la muerte me es guftofa ,

Ha de haver fido temporal la muerte ?

O noffo Camoens

Naõ he a gentileza
Do teu rojlo celefle
Fora do natural}
Nao pode a Natureza fazer tal :

Tu mejma , d bella Nympba , te fizejle ;


Porem , porque tom afie
TaÕ duro coração fe te formafle ?

O mefmo Solis á morte do Príncipe D, Carlos


fallecido na flor da fua idade , e que fempre confer-
you hum admirável íbcego, defde o feu naícimento ;

Todavia en Ju afpsâlo permanece


La quietude que triunfo dei Mundo ciego ^
Sacando luz de enganos advertidos :

O vivo yaze , ò fi muriò , parece


Que fm turbar
,
la paz de jus jentidos ]
Continuo la muerte fu fociego.

O mefmo Poeta diante da Imagem de hum Cru-


cifixo :

Hajla quando mi torpe defoario


Abnjará Sçwr de tu clemência l
Que
: :

OU ARTE DE RHETORICA. 233

Que parece que aprendo en tu paciência


Màs libertad, que dtfte a mi alvedrio.

O Conde de Tarouca no caftigo ,


que Júpiter
deo a Prometheu por furtar hum raio do Sol

De que ftrve tormento,


el duriffímo
Que Jove intenta executar conmigo ?
Si es que ai exemplo atiende en mi caftigo y
No tiene imitador mi atrevimiento.
António Barbofa Baccllar á morte de D. Maria
de Ataide

Se nao for tumulo as idades


efte
Myfterio occulto , venerado medo,
jicabou-Je o refpeito ds Divindades :
Mas que importa que o cale efte penedo ,
Se hd de \er fempre altar de faudades ,
E haõ deeftragar os votos ofegredo*
O Authorde Theatro a huma eftatua de Vénus,
que pereceo no fogo :

DE balde o incêndio conjumir intenta


Efja eftatua , que a Fenus fe dedica ,
Pois bem que a cbamma ao mármore fe applica %
Na 5 queima o fogo aquém o fogo alenta:
Se a levar e da ao Nume be que fuftenta
O novo ardor a imagem verifica :
Tanto a ignea violência mais fe explica ,
Qiianto a Deidade mais Je reprefenta*
Reduza embora a cálida figura
A pó que fe inflamma
fubtil o raio ,

Nejje ardente milagre da efculptura:


Que
234 THEATRO DA ELOQUÊNCIA
Que inda no eflrago convalece a fama ;
Porque nas cinzas da matéria dura ,

Melhor indicio nos offrece a chamma.

K morte de D. Rodrigo Calderò taó aborreci-


do no valimento , como admirado no cadafalfo :

Efte , que en la fortuna màs fubida


Nò cupo en fi , ni cupo en èl lafuerte j
Viviendo , pareciò digno de muerte ,
Muriendo , pareciò digno de vida.

Chegando a fer Cardeal o filho de hum efcravo,


mandou pôr hum efcudo na portada das fuás cafas
aonde eftava gravado hum urfo , prezo com huma
cadêa a huma columna , fazendo-íe por efte modo def-
cendente das Familias Uríina, e Colomna , as mais
illuítres de Roma; e emcima do efcudo huma Águia,
para moftrar que feguia o partido do Império. No
outro dia appareceo lòbre o efcudo efte dyfticho :

Redde aquilam Império, columnam redde Columnis,


Urfinis urjum , fola catena tibi.

Cuido que bafta de exemplos para a Agudeza^


e daqui pada rei para a Pronunciaçaó , que he a ul-
tima parte da Rhetorica , o que farei no

LI-
,i,

235"

LIVRO VI.
CAPITULO I.

APronunciaçaÕ he buma idónea conreÇponden-


da cia voz , e doge/lo , para fe tratar , com
diferentes , e proporcionadas expreffoens ,
a variedade das matérias , e dos ajfeclos.
Três coufas faõ necefiarias para a reéh Pronun-
ciaçaõ :Memoria > Foz e Ge/lo.
,

A Memoria he o feu principal fundamento , por-


que mal fepóde dizer o que fenaõ chega a decorar.
Há dous géneros de Memoria : artificial , e natural
Defta fe tem viílo vários prodígios Mithridates fat-
:

iava vinte e duas línguas de outras tantas Naçoens


que dominava. Cyro nomeava pelo feu próprio nome
a todos os Toldados do leu innumeravel exercito. Cy-
neas, Embaixador de Pyrrho em Roma, nofegundo
dia da fua chegada , faudou pelo leu nome a todos
os Senadores , e a huma grande multidão de Povo
que fe achava no concurfo. Fernando de Córdova , que
floreceo no XV. feculo foi hum milagre da memoria
natural. Delledá o Abbade Tnthemio efte eítupen-
do teítimunho:
n Sendo mancebo de vinte annos, eja graduado
cm Artes , Medicina , eTheologia , veio de Heípanha
a França no anno de e a todas as efcholas
1445 >

Parifíenles admirou , com


admirável fabedoria ....
a fua
Sabia de memoria toda a Biblia^ csEfcriptos deNi-
çoláo*
236 THE ATRO DA ELOQUÊNCIA
coMo de Lyra , os de Santo Thomaz , os de Alexan-
dre de Hales, os deEfcoto, os de S. Boaventura,
e os de outros muitos principaes Theologos Da mef- :

ma forte todos os livros de hum , e outro Direito ;


allim mefmo os de Avicena , os de Galeno , os de
Hippocrates , os de Ariítoteles, os de Alberto Magno
,
e outras muitas, obras de Philoíophia , e Metaphyfica
e os feus Commentos : Nas allegaçoens era promp-
tifiimo , e nas difputas agudiífimo: Finalmente fabia
com perfeição a lingua Hebraica , Grega , Latina ,
Arábica , Caldea , &c. es
Porém memoria he taó diffici!
a raridade deita
como o alcançar , com a Arte , o que negou a Na-
tureza ; pois deite artificio mais fe tira o (jabalho,.
do que o proveito , e foi talvez inventado mais para a
oltentaçaó , que para o ufo.
Mandaõ os feus Inventores , que íe conduza a
imaginação a hum lugar dilatado , e compoíto de huma
grande variedade de partes infignes , aíTim como as
de huma Bafilica , hum grande Palácio , ouhumedi-
iicio magnifico.
Que feintroduzaõ todas eítas efpecies na memoria
com a mais exatta attençaõ , deíòrte que fiquem taõ
firmes nella , como na fabrica.
Que feja efta taó proporcionada ao intento , que
todas as Aias diíierenças naõeítejaõ remotas , nem en-
contradas , ou confuías , para que a imaginação clara
e diftintamente as reconheça.
Que a mefma imaginação fe empregue , com maior
cuidado, nos objectos mais formofos, eefplendidos,
como as janellasclarabóias , eílatuas , pórticos, pin-
,

turas, columnas , arcos, jardins, fontes, e outras de-


ite género , para que melhor fe gravem , e íe repitaõ
na memoria*
Que conformemos as matérias ,
que queremos
tratar ,
OU ARTE DE RHETORICA. 237
tratar , imagens , que mais impreílas tiver-
com as
mos ;
exemplo nos ajudará a imaginação a lem-
pois por
brar-nos da guerra com a efpada , para a navegação
com a ancora, para a agricultura com o arado, para
as letras com os livros ; e da mefma íorte nos aju-
darão eftas, e outras figuras, tomadas fymbolicamen-
te , porque a efpada nos reprezentará a vingança , a
ancora a efperança , o arado a vida campeftre , os livros
o trabalho intelle&ual o Leaõ nos fará lembrar da
:

magnimidade, o lobo do latrocínio, o tigre da fe-


rocidade, arapofa daaftucia, a ovelha damaníidaó,
a pomba dainnocencia , a columna da firmeza , a ba-
lança da juíliça , a oliveira da paz , a palma da vi-
storia , o carvalho da fortaleza &c.
Eu conheci hum Eftudante em Coimbra , que
em todos os feus A£tos íe aproveitou defta memoria ,
e achava grande facilidade em leguir comellaosAu-
thores da Concordata ; pois para fe lembrar de Gre-
nha fingia na imaginação algum homem , feu conhe-
cido, com a cabeça muito povoada , e comamefnu
femelhança concordava os outros nomes ; mas atéqui
pôde aproveitar a Arte.
António deSoufa de Macedo ,
que teve acurio-
íidade de a experimentar , ccnfeíla na lua Eva , e Ave ,
que fenaô podia reter fenaó hum certo género de
fubftantivos de huma fignificaçao mais viva ; e que
dos outros nunca fe forma idéa , ou figura baftante
para fuílentar os lugares , que a arte lhe pinta , em
termos , que dalli os poíía ir tirando a memoria.
Quem quizer ver eíla matéria com mais extenfaõ
veja o Thelouro da memoria artificial de Cofme Rof-
feílio.

A Melhor arte para cultivar a memoria he a boa


ordem , e dedução das Oraçoens , porque he mais
fácil
238 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

fácil o perceber, e reter a harmonia, que a difíbnan-


cia dás partes ;
por ifíò fe.repete com mais facilidade
o veria , que a profa. Também fe decora melhor a
obra, que íe compõem, e que ao depois fe trasla-
da, e a que fe lê, que a que fe ouve.
Aconfelha Quintiliano, que nos lugares maisdi-
ítintos da Oraçaô fe ponhaô algumas notas , para que
delles fe naõ defcuide a memoria , que fe emprega
melhor naquellas imagens, porque faõ differentes dos
cara&eres ; e aífim nos lugares , v. g. , que perten-
cem á juftiça podemos diítinguMos com huma balan*
ça: os da paz , com huma oliveira os da guerra ,
:

com huma efpada os da concórdia com duas maõs


:

unidas , &c.
O
mefmo Quintiliano recommenda que fe eílude
a Oraçaô por partes , e he boa advertência , porque
oquedepreila fe aprende, depreda fahe da memoria.
Serve igualmemte para ellaolugar, e o tempo:
O lugar há de fer defoccupado , e diftante do mais
pequeno ruido , aonde fe pofla , com voz clara , efem
receio de fer ouvido , repetir o que íe vai decorando.
O tempo he o melhor odaraanhaã, por eftar oeílo-
mago fem oppreflaõ , e o cérebro fem os vapores
que fobem do cozimento. Eu tenho a experiência , de
que tudo o que o entrego de noite á memoria , o repito
de manhaã , com maior facilidade. Finalmente o me-
lhor modo de ajudar a memoria he o cultivá-la

Fertilis afftduo , fínon renovetur aratro ,


Nihil nifi cum fpinis gramen habebit agcr.

He
verdade que há memoria taõ infeliz , que fe
pôde comparar á agoa , aonde fe naó imprime figu-
ra , que logo fe naõ apague ; com oimpulfo da cor-
rente.

OU ARTE DE RHETORICA. 239

Há outra femelhante á arêa,


que com a mefma
facilidade , com qúe recebe as imagens , as desfigura.

Há outra, que he como os mármores , em que


he taò difficil imprimir os rifcos , como o defvane^
cê-los.

A Voz he o eípirito da Eloquência porque fem


nenhum conceito deixa de fer cadáver Naô
ella
baila que fe declarem os penfamentos ; heprecifo que
,

fe exponhaó , com concerto , e propriedade. Muitas


vezes faõ lublimes os difcurfos , e com huma má ex*
prellaó, parecem humildes; e talvez fe podem fazer
elevados, com oefpirito, que fe dá ás palavras. Por
iflo nos diz Gicero no feu Orador , que naó faz tan-
ta harmonia o que íediz, como o modo, com que
fe profere, As engraçadas Poeíias de Marcial pare-
ciaê do infipido Fidentino, quando elie as recitava ;

Quem recitas meus ejl , ò Fidentine , libellus j


Sed , malè cum recitas , tncipit efje tuus.

Háalguns , que comem as palavras : outros , que


as maftigaõ: outros , que as vomitaõ outros, que:

as embaraçaô : outros , que as retinem ; tudo he en-


fadonho , e mais enfadonho que tudo , o hí-las di-
ítribuindo, com huma certa paufa , e a modo de quem
canta, e de que vaõ efcutando o que dizem.
Para evitar eíles vícios affignaõ os Rhetoricos
três princrpaes advertências. Primeira , que a Pronun*
ciaçao íèja clara , limpa, e diftinta , ficando todas as
palavras , e fyllabas bem proferidas , fem íe cahir no
extremo contrario Naó fe há de pronunciar com tan-
:

to defcanfo , que fe feparem as letras, nem com tan-


ta velocidade , que le confundaõ.
Efte
* 4o THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

Efte era o defeito do Orador Hatherio que j


quando orava tinha fempre hum efcravo junto de fi
para puxar-lhe pela capa donde veio a dizer Augu-
;

íto , tomando a metaphora de hum coche defpenha-


do, que lhe era neceílario embaraçar lhe o impeto
das rodas 3 com hum tirante para o deter no preci-
pício.
A voz naó há de affligir , nem fatigar a refpi-
raçaõ antes deve ir achando humas certas , e imper-
,

ceptíveis morulas , em que defcanfe o alento , e dan-


do aos ouvintes alguns breves intervalos para medi-
tarem as dicçoens , e as claufulas.
Afegunda advertência , he mudar o tom da voz,
com da Oração ; porque pede huma
as varias partes
difterença o Exórdio , outra a Narração , outra a Con-
firmação , e a Peroração outra. Quando o exórdio
naó entra com algum afte&o vehemente , como a da
exclamação , da indignação , &c. fedeveufar de hwma
noz fubmifla , e vergonhofa ; e o Orador fe deve ex-
por^ commodeftia, porque odemafiado defaffògono
principio do Difcurfo , quafi fempre degenera em íb-
berba. Convém figurar-fe com algum género dccon-
fideraçaó , detendo fe algum efpaço no filencio , e fem
movimento. Com efte breve filencio fe preparou Ulyf-
fes quando expôs a fua pertençaõ fobre as armas de
Achilles :

——— Óculos paulum tellure moratos


Suftulit ad Próceres , expeâlatoque refolvit
Ora fono , neque abeft facundis gratia diâiis*

O calarem-fe todos quando Eneas declamou a rui-


na de Tróia , e eítarem attentos ao que elle diria , mo-
ítra que antes que principiaíTe ficara algum tempo em
filencio
Conti-
:

OU ARTE DE RHETORICA. %&


Conticuere omnes , intentique ora tevebant ,
'
Inde toro Pater JEneas , fie orfus.

Efte filencio, imitando a Virgílio ? cílá claramen-


te em Camoens , orando o Gamma diante do Rei de
Melinde

Promptos eflavaõ todos efeutando


O que o fublime Gamma contaria ,
Chiando depois de bum pouco e/lar cuidando ?
Jl levantando o rojio , a/fim dizia :

Mandas-me > o Rei érc.

Do Exórdio fubindo a voz pouco a pouco


vai
jpara a JSlarraçaÕ. Na
Confirmação , efpecialmente
na Argumentação fe lhe deve dar maior corpo e mui- •,

to mais na Peroração , porque nella põem todo ofeu


esforço o Oraecr para alcançar o triumpho.
Naô fó há de kzer a voz efta mudança nas qua-
tro partes da CraçaÕ porém há de transformar* fe em
,

todos os affedlos , que ella for produzindo. Nos da


Ira te requer hvma wjs aguda, eincitadora: nos da
Lajiima , flexível , e interrompida : nos do Cofio 5
branda, efeítiva: nos do Medo , exangue > eremif-
fa, &c.

A Terceira advertência hepara fe medir a exten-


faô do lugar , e o numero dos ouvintes ; a fim
de íè julgar a valentia da voz, que fera necelfaria ;
Ainda que o lugar feja dilatado, e grande o concur-
fo , nunca a voz fe há de extender tanto , que exr
ceda a expreílaõ natural , e as forças do alento , por-
que os centinuos gritos deíconcertaõ teda aefficacia
^a Oração y reduzindo o Auditório a huma delgo-
ftofâ
Ç^
24* THEATRO DA ELOQUÊNCIA,
ftoíà impaciência. Se o lugar for eftreito , c pouco
povoado também fe naõ há de fumir deforte , que
,

fique defanimada , e froxa A voz muito alta perde


:

toda a íiu força a muito baixa , o alento , e o ef«


:

pirito.
A Plebe commummente avalia a bondade da Ora-
ção , pela frequência dos clamores ; e há alguns , que
enganados , com elte conceito popular , querem an-
tes imitar o eílálo dos trovoens , do que as luzes do
relâmpago , por iíTo ficaõ quafi íempre os ídolos in-
teiros , porque faõ trovoens , qu^ nao deípedem ra»
ios Caníaó os ouvintes , com hum eftrondo fem fru-
:

sto ; e elles também inutilmente fe canfaô , porque


á moleftia dos ouvidos fe lhes ajunta a fadiga da ref-
piraçaõ. Ladradores lhes chama Gicero \ pertendem,,
com os gritos , infundir o alento em humas palavras
que naô tem alma.
Ainda hí outra efpecie de hum ruido fa(lidiofo >
,

a que os Gregos chamarão ss Monotonias que he


huma diílonancia unifona , que leva arraftadas todas
as partes , e afFe£tos da Oração Paíía-fe , com o mef-
:

mo tom da voz , pela laftima , pelo medo , pela ph


dignação ficando dsfeonhecidos nas expreíloens os,
,

movimentos da alma.
O
noílb Camoens introduzindo a orar aquelle
relho , que pertendia apartar os Portuguezes do dei-
cobrimento da índia , deo aos Oradores huma bóa
doutrina, para evitar eftes defeitos ;

A voz pezaia bum pouco levantando ,

Que nós no mar ouvimos claramente ,

C hum faber fó de experiências feito y


Taes palavras tirou do exptrto peito.

Daqui fe conhece que a wsdeyc ter o tom con*


forme
:

OU ARTE DE RHETORICÀ. 243


forme o aflumpto ; e por iííb lhe accrefcentou o Poe-
ta o adjeíiivo de s=r fezada, è Que. fe 1126 deve levan-
tar muito , mas kum pcuco e eíte pouco fci taõ me-
\

dido, que ainda em htm lugar tsõ extenfo ccmo o ,

da praia de Bellêm , era ouvido claramente o Orador,


íunda dos que eftavaõ a bordo.
As palavras tiradas do peito iníinuaõ, queeraô
,

produzidas pelos afleâes de que omefmo peito he


,

s officina : eis-aqui ccmo deve ler a voz dos Oradores


%oz , que fe ouça e naõ t}ue eftruja vez que laia
, :

do peito, e que venha animada daquellas paixoens,


que no peito aíliflem.
§•

OCefto , fegiindo Quintiliano , 1 e hum bem cr*


denodo movimento de todas as partes do corpo*
Pronunciaçao do cerpo lhe chana Valia : o Con-
de Thefauro no feu Lancchiale diz , que :
:= As palavras faó aceno, íem movimento, eos
acenos , palavras fem ruido : Fallaó os olhos, com
os olhos, e em lugar das vozes, fe explicaõ, ja com
o rifo , ja com o pranto : fallaõ as íebrancelhas ,ccm
fe arquearem , cu fe eflenderem : falia a beca, ora
forrindo , ora fuípirando : falia a cabeça , ora negan-
do , ora affirmando : fallaõ os pés, ora brincando,
com a alegria , ora batendo na terra , cem a ira : fal-
laõ 0$ braços , ora extendidos , ora levantados : fal-
laó as maôs tudo o que pede preferir a lingua , e
inventar a arte. Todos os dedos íaõ hum alfabeto,
todo o corpo huma prgina ; fempreprompto para re-
ceber , e rifear tanta variedade de carafleres.
Com efta nova arte àzVrctwwciaçaò hequein-
flruia Ovídio a huma Dsma, para lhe poder falíamos
convites,

Cti Me
344 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

Me fpeâla, nutufque meos , vultumque loquacem^


Excipe furtivas , &
refer ipfa notas.
Verba fuperciliis , fine você loquentia dicam
,
;
Verba Ijges digitis , verba notata mero.

A mefma Pronunciarão fe acha no A£to fegundo


da Comedia de Plauto intitulada tr Miles gloriofus =5

Peâíus digitis pultat , c^r <rm/tf evocaturus foras :

£<?<:<? ##/£//* avortit mxus leva infemore habet ma-


num y
Dextera digitis rationem compnltat feriens fémur
Dexterum , ita vebementer quod faâío opus eji agre
fuppetit
Concrepuit digitis , labor at cérebro commutat Jla*
tus :

Ecce atitem capite nutat , non placet quod reperit :


Quicquid eft incoâíum non expremit , bene coóíum
aiiquid dabit :

Ecce autem adtficat columnam mento Juffulfit fuo


Apage , non placet mihi profeéíò tila edificai to.

Efta he a mefma elegância , com que fe explicou


hum Embaixador de Carthago com Andromaco : efta-
vaó ambos em duas náos fronteiras , e por ferem in-
intelligiveis os íeus idiomas , eftendeo o Embaixador
a mao , com
palma apara cima , e a voltou de re-
pente, para baixo, moftrando, com eíle ge/fo, que
deftruiria a Cidade, fe Andromaco naó lançaíle aos
Corinthios de Tauromino. Porém Andromaco ufando
do mefmo aceno , o ameaçou que voltaria todas as
,

fuás náos , fieelle , com toda a preíTa lhes naó largava


as velas.
Enaô foi muito que ambos fe entende íTem, com
cite género de Pronunciaíao 3 quando ÍQ com ella
falia-
: ,

OU ARTE DE RHETORICA. 245:

fallavaõ osPantominos nos theatros de Roma , em


que foraõ taô infignes Pylades , e Bathyllo.
Pantomino , fem arte , era aquelle negro j de
quem diz o nollo Camoens

Mando moftrar-lhe peças mais fomenos j

Contas decryflallino tran[par ente ,


jilguns foantes c afeáveis pequenos ,
Hum barrete vermelho , cor contente :

Vi logo por [ignaes , e por acenos ,


Que com ijío fe alegra grandemente.
&c.

Com tudo
ainda que fe encareçaõ as energias das
Gefticulaçoens he certo que a íua maior efficacia fe
confegue na companhia das vozes; e deixando as que
pertencem aos Pantominos , e as que fó faõ próprias
co theatro , direi agora as que faó convenientes ? e
decorofas aos Oradores.
§.

O Gefio
rhetoriço naô deve infinuar o mais leve in-
dicio de affèctaçaô : Há de fer natural , com»
poílo, íizudo , e efficaz: os Oradores Italianos ge-
íliculaó , com todo o corpo : os Portuguezes , e Ca-
ftelhanos faò menos defaiFogados : os Francezes mais
encolhidos os Inglezes affe&aõ tanto a gravidade,
:

que parecem eftatuas.


As partes ,
que comprehende o gefto regulado
faô féis : Cabeça , fronte , olhos , braços , maõs ; e
eflatura.
A eflatura do Orador deve andar fempre direi-
ta , mas com huma tal redidaô que naô pareça in- ,

flexível. A cabeça fegue pela maior parte a erecção


do corpo j digo que pela maior parte porque algu-
^

Q. 3 mas
246 THEATRO DA ELOQUÊNCIA )

mas vezes fe permitte acompanhar, com ella â ne- ,

gação , movendo-a para hum , e outro lado , e a af-


tirmaçaõ tocando , com a barba , no peito eíle fegun» :

do gefto ajuda também a exprimir o ameaço , ou o


defcontentamento , ainda que entaô deve fer mais vago-
rofo o noílo Camoens
:

Mas hum velho de afpeito venerando ,


Que ficava nas praias entre a gente j
-

Po/los em nós os olhos , meneiando


Três vezes a cabeça defcontente.
&c.

Voltar a cabeça para hum dos lados ( he mais


natural para o efquerdo ) deixando-a cahir íbbre o
hombro , humas vezes moftra o tédio outras a def-
,

eonfolaçaó. Quando
levantamos he fignal de admi-
a
ração: quando a abaixamos, de trifteza.

Fronte defencolhida denota alegria ; apertada m


feveridade.

o cas
S olhos levantados ao Ceo pronunciaó as íuppli-
: Virgílio

A d Cwlum tendens ardentia numina frufira :

Que trasladou o noílo Camoens

Para o Ceo eryfiallino levantando ,

Com lagrimas , os olbos piedojos*

Os
: ;

OU ARTE DE RHETORICA. 247

Os olhos , retirados para algum dos lados , ou fixos


wo chaó , e virando- fe para naõ ver o ohjeílo, íaõ
indicio do faílio cu do aborrecimento Aflim figurou
,
:

omefmo Virgílio a fombra deDido ávifía deEneas.

Ília [oh fixos óculos averfa tenebat.

Os olhos fechados indicaõ meditação , epoftos,


fem pefíanejar , em alguma parte , íignificaõ aílombro;
Omefmo Virgílio:

Dum Jlupet , obtutuque haret defixus in uno.

Os olhos baixos aílignaõ modeília , e vergonha : O


«mefmo Poeta

Dejecit vultum , & demiffa você locuta efi.

Os olhos nidtantes arguem malícia: osfemiaber-


tos , lilonja , ou traição ; os fomnokntos , pirguiça
os vagos, lafeivia.
§•

OS braços devem mover- fe em huma tal poftura ,


que nem paliem da cabeça para cima , nem do
peito para baixo Nem fe eítendaõ , como fazem os
:

jogadores da efpada , quando a mettem de ponta , nem


com os círculos que pedem os talhos , e os reve-
,

zes , nem como os nadadores , quando andaõ íobre


agoa.
Bem fe lhe pode permittir mais algum defaífogo
nas paixoens vehementes : e fuppoíto que aextenfaó
do bmço acredite authoridade , e poder , nunca fe deve
eílender tanto , que pareça foberba 5 nem tao pouco,
que degenere em melindre'.
Q^4 As
4* THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

AS mãos tem maior efficacia , que todos os outros


Os outros geftos ( diz Quintiliano )
ge/los. es
ajudaô a fallar os das maõs parece que menos aju-
:

daõ, do que fallaõ.


Com ellas pedimos com ellas rogamos , promet-
,

temos , chamamos , deípedimos , ameaçamos abomi- ,

namos , tememos , perguntamos , negamos. Com ellas


moftramos o goílo , a trifteza , a duvida , a confiffàô
opezar , o modo ,
7
o numero , o tempo. =í
a riqueza
No exórdio naõ le coftumaô eítender as maõs,
e fó devem íahir deite encolhimento, depois que a
Oraçaõ principia a accender-fe.
Quando o Orador falia de fi mefmo , hegeflo pró-
prio o pulfar o peito 5 com a mao direira.
Aefquerda , por confelho do meímo Quintiliano ;
naõ deve fazer gefto algum , fem fe acompanhar com
a outra.
Aftagar o rofto , ou a barba , com a maõ 1 hcgefl&
aborrecido , e eíle era o defeito de Cicero antes de
entrar na Oração. Quando imploramos fehaõ de er-;
guer as maõs , com as palmas unidas : quando nos
admiramos , fepará-las na mefma erecção.
Quando fe abaixaõ , confirmamos ; e nos indig-
namos , quando ferimos , com ellas , algum lugar. Vi-
rando as palmas para o Auditório , com os braços
eftendidos , moftramos a deteftaçaõ , e eílendendo a
mau direita fobre os ouvintes , enculcamos oíllencio.
Celebrou-fe no theatro Romano o gefto ^ com
que Atelano na prezença de Nero , e do Senado , acom-
panhou aquelie verfo de hum antigo Poeta:

Hm mi pater ! He ume a mater ! Orctts vos t ene t.

Pois
OU ARTE DE RHETORICA~. 249

Pois quando recitou r^Heu mi pater =3 Fingioque \

bebia ; e no x^Heu mea mater 5fi Que nadava ; al-


!

ludindo , com eitos acçoens, o ter Nero envenenado


íeu padrallo Cláudio em huma bebida , e de querer
affogarfua Mãi Agrippina em hum diípoíto naufrá-
gio e quando chegou á ultima parte do verfo se Orcus
:

vos tenet =3 apontou para o melmoNero , fazr ndo-o


naõ fó author deitas maldades , porém mofti ando aos
Romanos, que eftavaõ dominados por huma Fúria
do Inferno.
Porem e outras agudezas da Gefiimlaçao,
eftas ,

taõ próprias do theatro , naõ íe confentein em hum


Orador grave , fizudo , e circunfpe&o.
Tudo o que refpeita íQraçaõ em geral , e o que
pôde íer mais neceíTario a hum bom Rbelorico , me
parece que deixo baftamente explicado ; e como há
varias eipecies , em que o género da mefma Oração
fe divide , darei as Oraçoens particulares nos Ca-
pítulos feguintes.

CAPITULO IL

AS Oraçoens particulares fe reduzem áquelles


géneros, de que ja fizemos mençaõ no prin-
três
cipio âzítQTbeatro Género â<monfirativo , Delibe-
:

rativo , Judicial :

Ao género demonftrativo pertence o Panegyri-


co , o Epitbalamio , o Genetbliaco , a Oração fúne-
bre , e a Congratulatoria.
Ao género deliberativo qualquer Orsçaõ , em que
fe difiuada o vicio e fe excite
, a virtude.
Ao género Judicial pertcnc, udlas, em que
fe aoeuíaõ os coftuines,
Os
2^0 THEATRO DA ELOQUÊNCIA,
Os noíTos Roílos faô muito difierentes dos da
Grécia, e de Roma, porque os convertemos em hum
lugar fagrado, quefaõos Púlpitos , aonde fe naô tra-
taõ outros aflumptos , que os da noílà Religião.
Para as Oraçoens propriamente Evangélicas re-
metto o meu Leitor ao numero <quafi infinito de Ser-
monarios , aonde a mefma abundância tem degene-
rado em pobreza , e fó direi alguma coufa do Pa-
negyrico , do Epithalamio^ do Genethliaco , da Oração
fúnebre , e da Gratulatoria ; e preíumo que naó desa-
gradará aos que me lerem o tocar , ainda que bre-
vemente , nos preceitos da Hiíloria , da Fabula , e
das Cartas.
.§•

OPanegyrico era huma Oração , em que An.


os
tigos empenhavaõ o maior apparato da fua elo-
quência : Coftumava dizer fenos Teus jogos íolemnes
e na prezença de toda a multidão r que a elles con-
corria: Os primeiros louvores fe dirigiaò ao Nume,
que prefidia á íolemnidade feguiaó-iè os da Cidade,
:

aonde os jogos fe celebravaó; dahi os do Príncipe,


ou Magiftrado, que fe achava prezente 4 e ao depois
es dcs Athíetas , que levavaó os prémios.
Gozarão também do Patiegyrico os Keróes , que
fe tinhaó diflinguido , ou nas virtudes , ou nas ac-
çoens militares , e os Príncipes , que fe íizeraõ dignos
de íerem o objeólo da eloquência : Tal he o Panegyrico
de Plinio a Trajano , ode Pacato aTheodofio, ode
Marmetino a Juliano , &c.
Os noílbs Panegyricos melhorarão deobjeílo,
porque ccmmummente fe dirigem aos Santos*
OPanegyrico tomado genericamente pode ter duas
diípofiçoens ; huma artificiai 5 citra natural : na pri-
meira naó fe attende á ordem do tempo: com ella
diríamos
:

, OU ARTE DE RHETORICA. <$t

diríamos que Gataó foi excelíente Senador, excel


lente Orador , excelíente Imperador efta foi a dif- :

pofiçao de Cicero noPanegyrico dePompeo ; porque


o difpôs com a íciencia militar, com a virtude e J

com Capitão
a felicidade deite infigne da mefrna íorte :

Q. Curcio nos louvores de Alexandre, fundando-o


no feu valor, e fortuna.
A diípoficaó natural he deduzindo os louvores
pela ferie ,
que fe pode dividir em duas
do tempo
partes; huma antes , outra depois donaícimento. A'
primeira pertence a geração , a pátria , e qs aufpicios.v
Se a geração for illuílre , he fácil nefte ponto o Pá-
negyrico > louvando os refplandores da natividade , as
1

acçoens dos Maiores , a herança do fangue 5 e das vir-


tudes : Virgílio nos dá o exemplo
í

Cui genus à proavis ingens , chrumque paterna


Nomen erat vtrtutis > & ipfe acérrimas ãrmis.

Se geração for efcura , diremos , com Minucio


a
Felis in Odiav. Todos nafcemos com igualdade na for*
te , e fd pela virtude nos diftinguimos.
Podemos accrefcentar que muitos Heróes proce-
derão de huma geração humilde, comoAugufto, que
foi neto de hum Libertino, Agatocles , filho de hum
Oleiro , Ptolomeu , filho de hum pobre íoldado , e
Sphicrates , filho de hum çapateiro , o qual chegando
a fer pelas fuás proezas General dos Athenienfes , di-
zia a hum invejofo , que lhe motejava a fua origem :
!=r A minha geração principia em mim , a tua aca-

ba em ti Eu íbu o primeiro dos meus , tu feras o


:

ultimo dos teus.- £2'

Ea pátria for infigns -e-qdornada de Vároens egré-


s gios j deve ks
,

ímxhm-kmbxaâ&no Pwegyrwo :

Vir*
2$% THEATRO DA ELOQUÊNCIA,
Virgílio naó fe efqueceo deita circunílancia

Multa viri virtus


Gentis honos. •
animo ,


mitllufque recurfat
'

Se pelo contrario, pode falvar efte defeito,


fe
com a fentenfa-de Aufonio, applicada á Alexandre
Severo, que tinha nafcido em Africa :

Púnica origo fed qui virtute probaret


illi , ,
Non objlare locum , dum valet ingeniunu

Hum Grego increpava a Anacharfis por fer na*


tural da Scythia ; e elle lhe refpondeo
!=: Na verdade que a minha pátria me pode fcr-
Yir de injuria ;
porém tu injurias a tua. sj

S.

antes do nafcimento acontecer algum prodí-


SE gio , fe deve trazer ao Panegyrico , como o de ío-
nhar Aftyages antes de nafcer íeu filho Cyro , que
ie formava delle huma Vide , que cingia , e aflombra-
va tpdaaAfia: Como o incêndio orbicular, quepre-
fidio ao nafcimento de Joaõ Pico dela Mirandula,
que vaticinou o portento da fua erudição,

§.

AO das
fegundo tempo pertencem as acçoens , as pren-
e as honras próprias do Heróe.
,

Entre as virtudes fe deve primeiro louvar a da


Religião , e a da piedade Virgílio :

Sum pius JEtieas , raptos qui ex bofle Penates


Ciaufie vebo mecum. - ,-

Dcve-fe
-
i ,

OU ARTE DE RHETORICA. ? 253
Deve-fe louvar a clemência , a moderação , a ju-
ftiça : Cicero a Cefar :

^Vencer o animo, reprimir a ira , temperar a


yidloria , levantar o cahido naõ fó com engenho ,
nobreza , e valor, mas amplificarlhe a fua moderna
dignidade , faó virtudes eftas , que quem as obra , naó
o comparo com os infignes Varoens, poièm julgo,
que he mui femelhante aos Deofes. 23
A liberalidade , e a beneficência faó taõ dignas
de louvor, que por ellas entendiaó os antigos que
os homens diltavaó pouco das Deidades ; e affim de-
pois que Alexandre fe fez filho de Júpiter, lhedi-
ziaõ os Embaixadores dos Scythas:
í= Se es hum Deos , faze benefícios aos homens ,
enaó ufurpes o que aos homens deraô os Deofes. zz
Saõ finalmente a fortaleza 5 e a conttancianos tra^
balhos , a grandeza do animo emdeíjprezar os peri-
gos , e todos os horrores , e mudanças da fortuna ,
a fidelidade nas promeííàs , a prudência nos confelhos,
a celeridade nas execuçoens , outro benemérito ar-
gumenta do Panegírico :

Saluftio louvando a Cataó :


53 Cataó nunca foi rico , com as riquezas , nem
fediciofo , com a íediçaó no valor contendia fó , com
:

o esforçado : na vergonha 5 com o modefto na mo-:

deração , com o innocente : antes queria fer bom , que


parecê-lo ; e quanto menos defejava a gloria , mais
a confeguia. tz

O
As
Louvor das prendas fe divide em dous géneros ,
porque humas faõ adquiridas * outras naturaes
adquiridas faõ as Artes liberaes, e as fciencias,
:

e ambas merecem louvor, epatrocinio: Asnaturaes


fao a gentileza \ ç ajaudc^; A gentileza varonil he
diftinta
2^4 THEATRO DA ELOQUÊNCIA,
diííintada feminil; áqyuella chamarão os Latinos ^Dig*
vitas si a efta t: Venuftas* =;
A gentileza , ainda que frágil , naõ deíraerece
os louvores em quanto fe julga acompanhada da vir-
tude, porque íè prefume huma recommendada infi-
nuaçaõ da Natureza : Eumenio no Panegyrico dç Con-
ítantino.
jr A Natureza coftuma apozentar os grandes ef-
piritos em grandes domicílios ; e da eílatura e or- ,

nato dos membros fe pôde inferir quanto a alma he


•benemérita de huma habitação divina, àj
Por i(To muitas Naçoens , eípecialmente os Egyp-
cios , naõ davaõ o Império íenaõ ao homem de ma-
ior gentileza ; e entre os Lacedemonios fe eílranhou
muito que Agefilao tomaíle por mulher , huma das
mais pequenas daquella Naçaõ , a que elle refpondeo
que laac da mal , o menos, izj
Pacato diíTe aTheodofio no feu PQfiegyrko que
*=: ainda que a fua virtude o fazia digno do Império ,

que ajudou muito á virtude a fua gentileza que aquel-


:

la o fizera Príncipe por neceílidade, e efta por de-


cência, si
Com tudo naõ he fempre certo ,
que a Natureza
apozente em hum grande domicilio hum efpirito gran-
de. Que maior eípirito , que o de Sócrates , e que
apozento mais deforme ,
que o da fua eftatura ? Os
que tiverem eira infelicidade, nem por ido feraõ in-
dignos , de que os louvemos, fe por outra parte Q
merecerem. Quem poderá negar os louvores a Ho-
mero, e a Horácio, a Philippe de Macedónia, e a
Annibal ? E nenhum delles podia dizer que devera
aquelle favor ao feu horofcopo. Diriaó o que dizia
Sapho a Phaon:

Si
:

OU ARTE DE RHETORICA. i$S


Si tnihi difficitlsformam natura negavlt y
Ingenio forma damna repetido mea.

A's vezes a gentileza devendo inculcar as vir*


tudes , indica a inclinação dos vícios ; verificando-fe
o que dille Marcial

Infignis fornia^ nequitiaque puer.

§•

A Outra prenda natural , que he a faude , entra


também no numero dos louvores r quando íe
exercita nas acçoens virtuofas. Ter o corpo faõ , é
o animo enfermo pertence mais á aceufaçaõ , que ao
Panegyrico Para elle he neceílario tanta faude na
animo , como no corpo. Juvenal.

Orandum éft\ut fit mens fana in corpore fano.

f.

ASem honras ,
para ferem louvadas , devem aíTentar
peflba benemérita : Plinio a *Trajanoé
trAti fó teaconteceo, que, antes que te fizefc
fem , folies digno de te chamarem Pai da Pátria, sf

AS riquezas
condiçoens
fe podem louvar com quatro
também
Primeira, que fejaõ bem adquiridas.
:

Segunda , cjue o animo as poííua , enaô que ellas pof-


fuaô o animo. Terceira , que o íeu ufo feja para as
acçoens illuftres. Quarta, que com ellas íp ajudem os
amigos , c fe acuda aos neceflitados : O
mefmo Plí-
nio ao mefmo Imperador.
s=Na&
ijá THEATRO DA ELOQUÊNCIA ;

tsNaõ te perfuadés ,
que tens coufa alguma íe ,

naõ a que diítribues pelos teus amigos, 23


Se for pobre a peílòa , que (e pertende louvar,
( o que nunca talvez acontecerá,porque os pobres nunca
íe louvaó ) podemos recorrer á cega diftribuiçaõ da
fortuna , que quafi fempre dá aos máos a abundância ,
e aos bons a pobreza:
fcs Naõ íei com que juftiça ( dizia Petronio )
coíluma fempre a pobreza fer irmaã de hum animo
grande , e de hum engenho illuíire. =3

EM todos cftes louvores devemos advertir em três


cautelas : Primeira, de naõ profanar a verdade,
com a liíònja : Segunda , qUe naõ mifturemos as ac-
[

çoens grandes , com a de pequena coníideraçaõ Ter-» :

ceira , que naõ nos dilatemos nas que podem fer com-
muas a outros, mas íó nas que diftingwem o fujéito
do Panegyrico.
§•

NAõ fó aos homens fe dirigem os louvores, mas


ainda aos brutos, eáscoufas inanimadas. Lou-
va-fe no elephante a prudência , noLeaó a magnani-
jnidade, narapofa aaftucia, nocaõ a fidelidade , no
boi a paciência &c.
As Províncias , e Cidades também fe louvaõ ;
e para efte louvor pode íervir de exemplo o que dá
L. Floro ao território daCampania:
5=: -A Campania he , naõ íó de toda a Itália , mas
de todo o Mundo, o paiz mais deliciofo nenhuma
:

Província tem o Ceo mais fuave :duas vezes fe en-


contra nella a Primavera : nenhuma he mais fecun-
da , por iílo lhe chamaõ a emulação de Baccho , e
de
,,

OU ARTE DE RHETORICA. vtf

de Ceres em nenhuma parte daõ as agoas melhor hof-


:

pedagem como fevê no celebre porto Miíleno e


, ,

no de Gaeta nas tépidas correntes de Baias no Lago


, ,

Lucrino e Averno
, que faõ ccmo huma pirguiça
,

dos mares: Aqui íevcm cercados de vinhas os mon-


tes, aíEm como o Gauro , o Falerno , o Maflico e ,

fobre todos o Vefuvio > forrrjofiífimo imitador do Mon-


gibello. z2
Nas Cidades íe louva a archite&ura dos Templos
dos Palácios , das Fortalezas , os muros , os pórti-
cos , as torres , as pontes , os arcos , os amphitheatros
as columnatas , as eícholas , os aqyeduftos , os banhos
as eftatuas , as ruas , as praças , &c. Serão também
louvados os viíinhos , como alma dos edifícios , e o
fèu valor 9 nobreza , piedade , feiencias , e acçoens iU
lullres. Omefmo Floro falíando da Cidade de Ta-
rento.
tzTarento , obra dos Lacedemonios y e antiga*
mente cabeça da Calábria , e da Apúlia, e de toda
a Lucania , eftá polia em hum admirável íitio ; he
nobre pela grandeza , pelos muros , pelo porto , &c. sa

CAPITULO III.

Epithalamto lie a Oração , em que fe louvaô as


Vodas dos Principes , e dos Grandes. Póde-fe
diílribuir em quatro partes. Na primeira fe haó de
comprehender os louvores das Núpcias e dos bens do
,

Matrimonio Há fede ponderar que comelle fedeo


:

principio á fociedade humana que nelle fe efíabelece


:

a População que por eíte meio fe perpeíuaõos homens


:

na lua efpecie , e fe dilata , cem reciproco laço , a


conveniência dos Parentefcos,
R Os
358 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

Os Antigos neíla primeira parte defperdiçavao


muita erudição. Lembravaô-fe das vodas deThetis
e Peleo , nas quaes fingirão os Gregos que affiíhraó
as Deidades do Olyrnpo. Trazia*) também as de Bac-
cho, e Ariadne , e as de Alcides e Hebe , em que
,

dizisô dançara Marte os tripúdios Pyrrhicos, e Mer-


cúrio os PaleMcos , que cantara Apolio o Épithala-
mio, que leviraô as três graças as tochas Nupciaes ,
que Lucina fabricara o thalamo, que Phebo fora o mor-
domo, e Vénus a pronuba. Porém eíte apparato he
fó para os Poetas , e nunca permittido aos Oradores.

i
NA fegunda parte fe introduzem os louvores dos
efpoíbs , e dos (eus genitores , parentes, &c. aon-
de ie faz menção dos dotes do corpo , e do animo*

§.

NA m^tte a pompa Nupcial ;


terceira parte íe
a alegria dos confan^uinens , dos amigos , dos
co&vidados, e ainda a do Povo.

NA quarta parte entraõ os votos para a prole fu-


tura , e os auípicios, que tem concorrido
para
a fua felicidade.

Ainda que hajabaftantediílancia entre os precei*


tos do Epitbahmio poético
, e o da Oratória ,
fempre aconfelhara que fe lelíe ode Claudiano a Ho-
nório , e Maria , o de Gatullo a Thetis , e Peleo , o de
Eftacio
OU APvTE DE RHETORICA. i S9

Fitado , e Violantilla ,
a Eftella porque tem excellen-
íes idéas de que o Orador fe pode aproveitar.
, O
Author âoTbeairo tem compofto íeis Epithalamios nas
Vodas mais illuftres" do Reino naô os oftercce para
:

exemplo , mas ao menos podem íèrvir para fe evitarem


os erros, que nelles fe dcicobrirern aílim como nas
,

cartas de marear fervem os parceis para acautelar os


navios.

AGenethliaco he aOraçaó,
3
com que feapplaude
o naícimento de algum infaqteillufire; e também
fe pode diftribuir em quatro partes.
A primeira deve comprehender os louvores dos
Pais , e Avós: a fegunda a efperança, que íe pôde
tirar deite nafcimento : a terceira a alegria , e con-
gratulação da prole : a quarta os votos , para que o
menino creíça para ornamento da Pátria , e felicidade
da Família.
A efperança da gloria , edas virtudes do infante ,
que he a parte mais nervofa do Geneíbliaco , fe pode
excitar com o efplendor da origem , com o íèmblante
do nafcido , com o cuidado da fua educação , com o
exemplo dos feus Maiores , e com os prodígios talvez ,

acontecidos, ou antes, ou depois do nafcimento.


Será a difpofiçaõ do Genetbliaco adornando o
Exórdio, com o appiauíò , ecom a congratulação,
deduzindo-os de algumas circunftancias do tempo,
da peíToa , e do lugar.
Na Confirmação íe difporá o elogio dos Geni-
tores , trazendo alguns motivos, para íe vaticinar a
felicidade do infante.
Na Peroração fe animaõ as preces para quefeja
venturolò eíte nafcimento.

R 2 A Oração
i6o THSATRO DA ELOQUÊNCIA,
§.

A Oração fúnebre
exéquias de
méritas.
,

huma
he
,
a que fe
ou de muitas
coíluma recitar nas
peííoas bene-

Artemifa mandava fazer todos os annosá vida


a
do fepulchro de Mauíblo. O mefmo fazia a Cidade
de Athenas aos que tinhaõ emdefenfa da Pátria aca-
bado na guerra ; e deitas he a Oração de Péricles
de que faz menção Thucidides.
Entre os Romanos Valério Publicola foi o pri-
meiro , que introduzio eíte ufo pela morte do feu
companheiro Junio Bruto , fallecido na guerra dos
Tarquinios O Povo Romano goftou tanto defta pie»
:

dofa ceremonia ? que dalli em diante fe deo eíta honra


a todos os Capitaens , que acabavaõ na campanha.
De Roma fe foi eftendendo efte coftume a outras
Províncias até chegar aos Oradores Evangélicos.
Aiguns pertendem , que Sólon , hum dos fette Sa«-
bios da Grécia, fora o inventor da Oração fúnebre y
fundado em três motivos ; hum para dar aos mortos
ainda no íeculo o premio das fuás virttudes : outro
pára coníblaçaó dos amigos, e parentes: outro para
documento dos que ainda vivem.
Neftes meímos motivos fe pôde fundar efte gé-
nero de Oração : iíto he , no louvor , na coníblaçaó
na exhortaçaó no louvor dos defuntos , na confo-
:

laçaõ dos parentes , e amigos , na exhortaçaó dos pre-


mentes, e vindouros.
Póde-fe entrar no exórdio deftas Oraçoe?js , com
n exclamação , como fez Cícero na morte do Orador
Crailo. Alguns principiaõ com a defcripçaó do ap-
parato fúnebre , como o Padre Bento Pereira na morte
do Príncipe D. Theodofio ; ou com algum grave apo-
phthema, que proponha a fragilidade da vida , ou nos
adjun»
:

OU ARTE DE RHETORICA. 261

adjunílos que concorrerão para a morte ; e efte he


,

o Exórdio daOraçaõ de Santo Ambrofio nas exéquias


do Imperador Theodofio.
Na Confirmação íe trará a feliz memoria do de-
funto j que deve ficar nos monumentos , a herança, que
deixa das fuás virtudes ; os exemplos que reprezen-
,

ta aos fucceílores , e a efperança , de que coníeguirá


o deícanço eterno.
Na Exhortaçao devemos perfuadir aos circunílan*
tes a imitação das acçoens ,
para alcançarem a rned
ma felicidade.
Na Peroração fe há de pedir a Deos o premio,
de que parece fe faziaõ dignas as virtudes do defunto.

§.

AOraçaS congratularia he para nella fe darem os


parabéns de algum grande triumpho comeíle :

argumento fe chama t± Epinicio. zi


Ou pela melhoria de alguma grave enfermidade
e da-fe-lhe entaõ o nome de := Soteria. ^3
Ou pela reftituiçaó de algum exterminio , ou au-
zencia larga, a que os Gregos chamarão xzRpiba*
teriofh =5
No feu Exórdio fe deve ufar de todas as ponde-
raçoens, que excitem a alegria, e o applaufo.
Na Confirmação fe haõ de ampliar as razoens , e
a neceílidade
,
que houve para a guerra; a juítiça ,
com que fe intentou ; a oppoíiçaõ , que teve ; a dili-
gencia de prepará-la; o valor de continuá-la , ea bre-
vidade de concluí-la. Far-fe-há menção das utilidades
da vi&oria , ponderando o defeanço dos Povos , e os
eítragos, que fe evitarão nas Províncias Seraõ lou-
:

vados os Capitaens , e Varoens infignes , e naõ fó os


que acompanharão o triumpho , mas os que morrerão
na batalha.
R 3 Na
i6z THE ATRO DA ELOQUÊNCIA,
Na Peroração fe mettem os rogos ao Senhor dos
exércitos , para que continue a meíma felicidade con*
tra os inimigos do leu Nome, e da quietação publica.
Eftes preceitos do si Epinicio =2 podem caber nas ou-
tras Congratulaçoens , mudando fomente os objectos ,
e as ca ufas , para concordarem com o afíumpto.
Ainda que há outros géneros de Oraçoens eftes ,

baftao para fe conhecerem as fuás regras , e por iílo


paliarei daqui para a Hiftoria \ e para o
,

CAPITULO IV.

SEtence,
eu houveííe de
ao
faltaria
dizer tudo o que á Hiftoria per-
intento da minha brevidade ; irei
fomente ao mais principal , e para o que deixo em
filencio , remetto o meu Leitor para o Italiano Maf*
cardo , que tratou eíla matéria , com toda a exacçaõ ,
e felicidade.
A
Hiftoria he hum vocábulo Grego, que fig*
nifíca a narração dascouías fuecedidas , aonde fe in-
cluem as acçoens , e confelhos dos Príncipes , e dos
Vardens , e Capitacns infignes, a defcripçaò das Po-
voaçoens , a ordem dos tempos , como fe foííem hu-
ma viva pintura , que fe reprezentaíle aos olhos.
Há vários géneros de Hiftoria : Hiftoria dos
tempos , que fe chama Cbronica : como a de Auber-
to , Libera to , Máximo , Dextro , ou fejaó fuppoftos >
ou verdadeiros eítes Authores.
Hiftoria , que fe chama Annaes , como a de Tá-
cito :Hiftoria univerfal de huma Naçaó , como a de
Livio Hiftoria de alguma guerra particular , como
:

a deSaluftio: Hijloria geral do Mundo , como a de


Berofo Hiftoria de íi próprio , que fe chama Com*
:

menta*
,

OU ARTE DE RHETGRICA. 263

vientarios , como de Cefar


a Biflcria peculiar de
:

algum Rei, ou Capitão , como'adaQ. Curcio: Hi-


floria de algum Santo , como a de Cienfuegos : Hi-
floria de algum novo defcobrimento , ouConquifta,
como a de Solis : Hiflor ia natural , como a de Plínio ,
e de Monfieur Boífon.
Hifloria dos animaes, como a de Gefnero IH- :

floria das plantas , como a dos Baulinos : Hifloria da


defcripçaó das terras , que fe chama , Ceogropkia ,
debaixo da qual fe entende a Hydrographia , que
he a defcripçaó dos mares Hijloria Genealógica > Me-
:

dica , Cirúrgica , &c.


Naõ obftante tanta diveríidade de Hiflorias par-
ticulares , eu fó direi alguma coufa fobre os precei-
tos da Hifloria em geral,
O primeiro , e o que ferve de alma a toda a Hi-
floria he o da obfervancia da verdade. O adorno
a deducçaõ t a energia , e outros femelhantes attribu*
tos dar-lhe haõ a formofura , mas a verdade he fô a
que lhe dá ò carader.
O fegundo preceito ne defeonhecer-fe na Hijloria
o amor, e o ódio, a invetiva , e aadulaçaõ: Poucos
Riftoriadores há, que naó con fervem eítas paixeens
nos feus eferiptos"; porque álèm dos aíFedos da Pá-
tria , os faz inclinar , ou o medo, ouointerelie, ou
a dependência , ou alifcnja , para a aíFedaçaõ , para
a deículpa , ou para a calumnia.
Neítes defeitos tem cahido os que hiftoriaraõ os
fucceílos do íeu tempo ; pois havendo de tratar das
acçoens dos Príncipes , ou fe expunhaõ a cahir na adu-
lação , ou na vingança de hum poderofo.
O Cardeal de Richelieu mandou degolar fobre
bum afFeítado pretexto a hum defeendente de Mon-
fieur de Thou , por ter cite tratado mal a fua família
na fua Hifloria de França taõ perigo fas faõ eítas ver-
:

R 4 dades ,
264 THE ATRO DA ELOQUÊNCIA ,

dades , que ainda naó eftaó feguras no defcanço do


íepulchro !

Famiano Eílrada dizia que o Hiftoriador naó de-


via ter pátria , nem amigos
, nem inimigos , nem pa-
rentes , nem e porque tudo tinha efte famofo
religião ;

Jefuita , vemos douradas muitas acçoens de Philippe


II. na fua Hifloria Bélgica, que tinha reconhecido a
Europa com diveríb femblante.
Talvez que por eíla caufa naó paílafle Moníieur
DuHaillan comaíua Hifloria Geral de França álèm
de Carlos VIL receando Tuftentar a verdade nos fuc-
ceííos mais chegados ao feu feculo.
O terceiro preceito he pôr patentes , e fem re-
buço tanto as acçoens heróicas , como as indignas ;
porque de humas , e outras aprende igualmente a po-
íteridade : das heróicas a imitação , das indignas o
aborrecimento. Os Patriarchas ( diz Santo Ambro-
fio) tanto nos enfmao acertando , como errando. Cor-
«elio Agrippa de Veritat. Scienl \ fallando da Hi-
floria , nos dá o fundamento deite preceito :
crldecque hanc tanquam vitae magiftram , &
ad ejus inítituitionem utililíimam cenfent fere omnes
Eò quòd multarum rerum exemplis cíim óptimos quof.
que oblaudis nominifque immortalem gloriam ad pre-
,

clara queque facínora accendat tum quòd Ímpios quol-


:

que , ac pravos perpetuas infâmias metu à vitiis de*


terreat. z:
Oquarto preceito confifte, em que o Hiftoriador
deve confultar tanto o que hádedizer, como o que
há de omittir as circunítancias de pouco momento,
:

que nem iiluminaó , nem efeurecem o aílumpo , íerá


embaraço o referi-las; ehá quem diga eftas , e cale
as outras, ou por malícia, ou por inércia.
Os cafos, que naó eítiverem averiguados, naó
. fe devem referir , como verdadeiros : há fe de diftinguir
o falfo,
OU ARTE DE RHETORICA. 265

o falfo, do verdadeiro o extraordinário, do veri*


;

fimil ; o opinativo, do confiante e íedeve ter omef-


:

mo cuidado nos fucceflos que excedem o credito, ou


,

por intempeítivos , ou por prodigiofos ; e fe os ori-


ginaes fe encontrarem , pôde efcolher o Hifioriador
aquelles , que mais fe pareçaô com a verdade*
O quinto preceito he o da boa deducçaó, narrando
primeiro o que primeiro fuccedeo , eíeguindo quanto
for poíiivel a ordem dos tempos pela ferie das acçoens.
O fexto preceito he naõ deixar a narração pen-
dente de muitos cabos , porque ao depois para os unir ,
e atar , ou fica hum laço deforme, ou hum nô cego,
e que o naõ pode delembrulhar fenao a efpada de
Alexandre.
O fettimo preceito he na brevidade das Tranfi»
çoens , e aonde forem fó necefíarios para a clareza do
argumento ; e porque nellas quaíi fempre fe paíía ,
com os annos , álèm dos que pede a narração princi-
pal , fera preciforeítringí-las , para quefe naõoííenda
a Chronologia , fazendo-le alguma declaração deite
tranfito , porque fe naõ pareça com o anachronifmo.
O oitavo preceito he que o eítylo feja claro , fá-
cil , e fincéro , as arengas breves , e vehementes , e
que nellas íe conheça ocaraíter de quem as profere:
as defcripçoens vivas , e fieis : neftas íe pode levantar
mais a elegância , porque como fazem oofficiodapin»
tura , he certo que, eftando fem cores, ficará amor*
tecida,
Eftas faõ as regras que podem caber na minha
,
brevidade, e quem chegar a fazer alguma Historia,
bem fe pode contentar com o defempenho deitas bre-
ves advertências.
Porém eítas ainda fe pedem ccníèguir melhor
com dos bons exemplares. Entre os Gregos
a leitura
faó muito recommendados Thucidides , Heródoto Xe- ,

nophonte^
aó6 THEÀTRO DA ELOQUÊNCIA ,

nophonte , e Polybio entre os Latinos o primeiro


: ,

he T. Livio, depois defie , Saluílio, Q. Curdo', e


Cornelio Tácito.
Dos modernos Famiano Eftrada , Henrique Ca-
therino , Joaõ de Barros , Jacinto Freire , António de
Solis, e o Abbade de Vertot.
He neceífaria , com tudo , alguma cautela na imi-
tação deftes famofos Hiíioriadores ; porque a Heró-
doto lhe notaó a falta de ordem , e de unidade , a
Thucidides hum cftylo violento , a Xenophonte , de
que he fabuloío, a Polybio de narraçoens inúteis, 3
Saluftio, de que fizera pincel da penna , a Q> Curcio
de pouco advertido , a Tácito de Graçoens efeuras
e repentinas , ao Eftrada , de nimiamente polido. Naó
entro na Critica do Barros , e do Freire por me pa«
recer , a que fe lhe faz , impertinente. O
Solis ficou
atégora fem ella , ou ao menos me naõ veio á noti-
cia, porque a que lhe fazem os Francezes naõ merece
attençaô : OVertot também me parece fem defeito
nas Revoluçoens da Republica Romana.

$•

Ainda que a Fabula eílá muito diftanteda Hifloria


devemos confrontá-las ,
para melhor as conhe-
cermos.
A Fábula he huma narração de fucceíTos fingi*
dos , com que fe pertende propor alguma doutrina ,
eípecialmente fobre os coftumes: Tem três géneros:
Fabula racional , Fabula moral. Fabula mifla.
Com a racional fe fazem os Parábolas , coma
moral os Apologos , com a mifia , a que íe compõem
dos Apologos , e da Parábola.
Com a Parábola fingimos que fallaõ os homens ,
com os Apologos , os brutos , e ainda as arvores , os
edifi-
,;

OU APvTE DE RKETORICA. 267

edifícios c outras coufas inanimadas.


,

A Parábola he o género da Fabula mais uíil , e


mais eítimavel : mais útil, porque melhor fe perfua-
dem os -homens, corn o que fe finge de outros ho-
mens , que com o que fe inventa dos brutos : mais
eílimaveí , porque com ella inftruia íernpre a Eloquên-
cia divina aos feus ouvintes : Sitie parabolis ( diz S.
Mattheus) non loquebatur eis.
Na Efcriptura Santa achareis para exemplares a
das Virgens , a do filho pródigo , a do femeador
a do rico , a do pobre , a das vodas , a da vinha ,
a do Pai de famílias &c.
Eílas podem fervir para os objeílos íngrados , e
para os políticos darei huma do Príncipe D. Manoel
no feu preciofo livro O
Conde Lucanor.
fcí Havia hum Deaõ em Santiago , que tinha hum
grande deíejo de aprender a Nigromancia ouvio di-
:

zer que em Toledo havia hum homem muito perito


neíta Arte veio a faliar-lhe , e pedio4he , com toda
:

aefficacia, que lhaenfinafle: refpondeo-lhe o Nigro*


mantico que elle Deaõ era huma peííòa de grandes
efperanças, eque eftas nas maiores fortunas leefquc-
ciaõ dos benefícios , que lhes tinhaõ feito : prometteo-
lhe o Deaõ , com todas as veras , que elle nunca fe
efqueceria daquelle ferviço. Chamou o Nigromantico
huma criada , elhe mandou preparar duas perdizes,
para a ceia , porém que as naõ trouxeíle , femíegun-
da ordem. Dahi introduzio o Deaõ no feu eíkido
e a pouco efpaço entrarão dous homens, com huma
carta, em que fe dava noticia ao Deaõ, que feu Tio
o Arcebifpo de Santiago eftava acabando ávida nao :

o embaraçou efta nova para elle naõ continuar na fua


applicaçaõ a poucos dias lhe veio outro avifo , de que
:

o Tio fàllecera , e que o deixara nomeado Prelado


daquella Dicceíe: pedio-lhe então o Nigromantico
que
*68 THEATRO DA ELOQUÊNCIA,
que renunciaíTeem hum Teu fílhooDeado : refpondeo-
Ihe que quizeífe confentir em que o folie hum íeu
Irmão , que elle o proveria na primeira dignidade
,
que vagaíle: partirão ambos para Santiago , eem bre-
ve tempo foi eleito pelo Pontífice em Biípo de To-
lofa , com a graça de conferir o feu Arcebifpado em
quem lhe pareceíle Tornou o Nigromantico a lem-
:

brar-lhe a lua promefla : refpondeo-lhe que o deixafTe


nomear em hum feu Tio, Irmão de íeu Pai, eque
íòíle, com elle paraToíofa, que Já o acommodaria
Em Tolofa , paliados dous annos , foi promovido a
Cardeal , com a faculdade de nomear o Biípado inflou-
:

lhe terceira vez o Nigromantico , com a palavra pro-


mettida ; eelle fedefculpou , que o devia dar a outro
feu Tio, Irmaô de fua Mãi ; e que o acompanhaílè
a Roma , que lá naô faltaria em que o provede paf-:

faraó á Cúria , e depois de alguns tempos morreo o


Papa , e o Cardeal fubio ao Pontificado : entaõ apertou
mais o Nigromantico pelas promeílas antecedentes :
Porém enfadado o Pontífice deter continuamente aos
ouvidos tanta importunação, lhe chamou herege, e
feiticeiro , e o ameaçou com hum grande caftigo Nifto
:

deo vozes o Nigromantico pela criada, para que lhe


trouxefle as perdizes , e o Papa fantaftico ficou ver-
dadeiro Deaó de Santiago , cheio deconfufaõ , e de
vergonha , dizendo lhe o Nigromantico , que fe foíle
na bôa hora que baítan temente o tinha experimen-
tado,^
§•

APra&ica dos brutos , ou das coufas inanimadas


naõ baila que feja practica para fe poder chamar
,

Âpologo , he neceííario que elles difcorraó , como íe


foliem racionaes , e de bom fentido álèm difto, devem
:

os brutos fallar fegundo o feu próprio caracter a ra-


:

pofa
,

OU ARTE DE RHETORICA. 269

pofâ com aíiucia, o lobo com frsdulencia o Leaõ


,

com íòberania , o cordeiro com fingeleza &c.


Para o Apologo nao íer menos recommendavel
que Parábola , baíb lembrar* íe delle a Eloquência
a
lagrada ? introduzindo o Cardo , com o Cedro , para
nosadmoeftar aonoílb próprio conhecimento, de'que
tantas vezes nos eíquecemos.
:= Carduus Libani mifit adCedrum, quos eíl ín
Líbano, dicens : dà filiam tuam filio meo uxorem :
tranfieruntque beítise faltus ,
quas lunt in Líbano , &
conculcavsrunt Carduum. 53
Os Apclogos de Hiíbppo faô os mais famofos
pela fua gracicfidade , e doutrina : íoraô também muito
eftimados os de Homero, eHeíiodo: Os de D. Fran-
cifco Manoel merecem bafiantes louvores ; efaõ mui-
to lembrados osdePhedro: eu darei hum delles pela
minha tradução :

Em huma ejlancia amena


Via a hum boi muito grande a raã pequena :

Incitada da imeja , que a quebranta ,


De ver grandeza tanta ,
Incha a pelle ; e pergunta fe a eflatura
Daquelle boi leria , por ventura ,
Do que a Jua maior ? Que fim confeffao
Inda os que fe inter ejjaõ
Na pompa , que pertende :
Porém ella de novo a pelle efende ,
E pergunta outra vez fe e/lava pojla
Ja na mejma extenfao ? Mas a rejpojla
Foi , que ao boi nao podia comparar Je:
Novamente indignada entrou a inchar fe ,
Até que arrebentou de prejumida ,
Acabando fe a inveja, com a vida.

Para
2 7o THE ATRO DA ELOQUÊNCIA ,

§.

Ara mi (la pode fervir de exemplo o que


a Fabiilt
Regulas aos Frnncezes
dizia quando os Maflili- ,

eníes lhespediao que lhe* vendeíTeni algum terreno


para edificar huma Cidade.
t=Humacadelia 5 citando para 'parir, rogava a
hum Pailor que lhe vendeíle hum bocado de terra ,
para confeguir o feu parto: ajuflou-íe o preço, eao
depois lhe tornou a pedir que lhe deixaíle criar alli os
ieus cachorros ; porém depois de ferem grandes , e
que ja naó podia o Pailor deitá-los fora , íè deixarão
ficar, chamando propriedade ao empreílimo. Naó de
outra forte fe haverão comvofco os Maflilicnfes ago^ :

ra feraô hoípedes , á manhaã , fenhores. 25

vatmiMimiz&a <iu&mjumiMum mm

CAPITULO V.

A Carta he huma imagem da prafíica familiar , ou


hum interprete do nodo animo, paraacommu-
nicaçaò dos aufentes. Das folhas de hum arbufto, ou
do miolo de hum junco, chamado papyro ^ he que os
antigos começarão a fazer as íiias primeiras Cartas , e
porque efta invenção fe deícobrio junto de Cearia ,
Cidade de Tyro , daqui he que tomarão o nome.
Em quanto a Carta andou na lua primitiva finge-
leza , naô fe fazia eítudo das fuás formalidades veio :

a pompa dos Romanos, e principiou a dar-ihe pre-


ceitos. Hum dos que fizeraõ mais eftimavel efta dou-

Niger , Paulo Sacrato, Juíío Lypfio , &c.


Os
OU ARTE DE RHETOR1CA, 271

Os que deraó ás Cortas o nome demiffivas , re-


duzirão a íua forma a huma fó eípecie: ao depois íe
dividirão muitas, efoipreciío accommodar a cada
em
huma proporção, edifterenca: huma ,
íua particular
e outra naícerndedous princípios, em que íè fimdaò
todas as fuás regras ; que faó o ponderar a quem íe
eícreve , e o que fe eícreve.
A pefíba aquém
fe eícreve, ou hc conhecida,
,

ou deíconhecida ou amiga , cu inimiga ou coníao-


, ,

guinea cu eltranha , ou igual , cu deíigual em cada


, :

huma deitas peííoas havemos de advertir a natureza ,


a fortuna , a oceupaçaõ , a dignidade , e o génio*
Na natureza , fe he homem , ou mulher , me-
nino , ou mancebo , varão , ou veiho , nacional , ou
eítrangeiro.
Na fortuna , fe he criado , ou eferavo , 011 livre ,
feplebeo, fe nobre, feiilnfíre, feherico, ou pobre.
Na oceupaçaõ , fehe Militar, 011 Académico, íe
exercita artes hheraes , ou mecânicas.
Na dignidade, te he Ecciefiaítico , ou Secular,
fe Pontífice, Rei, Príncipe, Cardeal , Bifpo , Gover-
nador , ou Minifiro.
O que fe efcreve também neceíllta de igual adver*
tencia , e diítinçaõ ; pois quando eferevemos , ou he
para dár conta dos noíios negócios, e a £Íks Garfos
fe pedem propriamente chamar mijjivas ou para en- :

commendarmos ou alheios particulares,


os próprios ,

eaeftas fechamaõ de recommendaçaoi ou para im-


plorarmos algum patrocínio, eaeftas íè dá o nome de
Cartas de favor : ou para elogiarmos alguma scvjaõ ,
ou virtude , que íe chamaó Cartas de louvor ou para :

repreheadermos os vicies , que fe charnaó Cartas de


advertência ou para rebatermos alguma offenfa , que
:

fe chamaó de defaggravo ou para nos queixarmos :

delia , que fe châmaõ de refetititneuto ou para nos :

eícu-
* 72 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

efcufarmos de algum empenho, que fe chamaô de dsf»


culpa', ou para congratularmos a felicidade dos ami-
gos , que fe chamaô de parabéns: ou para os acom-
panharmos em alguma calamidade , que fe chamaô
de pezvms. Ou para agradecermos o beneficio , que
fe chamaô de agradecimento ou para gracejarmos ,
:

que fe chamaô de galantaria ou para mandarmos


:

es noílbs demefticos , que fe chamaô de império.

S Cartas tem as raeímas partes da Oração : Eocori


dio , Narração, Confirmação^ Peroração.
GonrefpondeExórdio ao que vulgarmente cha-
'o
mamos cumprimento. Os Latinos o faziaô com eílas
íeis letras. St V. B. E. Q. V. em que queriaõ dizer:
Si vaks , bene e/l , quoque vako.
A narração he o aííiimpto principal da Carta:
nella fe deve guardar a ordem do tempo , edas maté-
rias , tanto nos fucceílos como nas recommendaçoens
,

nas fupplicas, nas advertências &c.


Também nos negócios devemos tratar primeiro
os da peflòa a quem eferevemos , do que os noílos.
,

Naõ devemos omittir o que for precifo noticiar


aoanzente, ou reípeite á fua curioíldade, dependên-
cia 5 defejo , credito , ou fama ; íe bem que as matérias
mais delicadas , que pertencem á honra , fó devemos-
noticia-las aos parentes, aos domeílicos , e aos amigos
da maior familiaridade.
A confirmação inclue em fí tudo o que pedimos ,
ou ponderamos , fegundo as differenças , que temos
expoíio.
*
A Peroração concilie a Carta dando huma breve
,

demonftraçaô do animo, e dos aífe&os de quem a


eícreve.
Além
,
:

OU ARTE DE RHETORICA. 273

A'Ièm deftas partes da Oração , tem a Carta ou-


tras três , que introduzio a cortezia ÇaudaçaÔ^ dej* :

pedida ,
Joôrejcripto.
KJaudaçao he aquellevocativo , que antecede ao
Exórdio , como Meu Senhor , ou Senhor meu.
:

Anova Lei das cortczias nos livrou do embaraço


que havia neíte tratamento ; eos Fortuguezes o tinhaó
feito taõ melindrofo , que quaíi fempre fe introduzia
o efcandalo no mefmo obfequio.
Como a Lei fó prohibio efte género da Jaudaçao^
continuarão alguns com outros vocativos , que receio
venhaõ ao depois 3 dar na mefma delicadeza ; poriílo
difíèra que ajaudaçao fe o mit ti He nas Cartas , equc
fe principiaflem logo pelo Exórdio ; excepto a daquel-
las pefloas , que diftingue a mefma Lei , e como efta
nos prefcreve as outras regras , para o tratamento
efcufo de repeti-las.
Atégora confiítia a dejpedida em pedir a Deos
que guardaile a peííòa , a quem efcreviamos. Hoje va-
mos tomando a moda dos Francezes , e bafta dizer
Sou &c.
Depois da defpedida fepunha a terra, eadata
da carta : alguns as põem á ilharga ; os homens de ne-
gocio a coftumaõ pôr em cima. Segue-fe o nome da
peífoa a quem fe efcreve , e da que efcreve na col-
:

locaçaó deíles nomes há outro embaraço femelhante


ao da faudacaó.
Acompanhado, com o nome, de quem efcreve,
fe coftuma ufar do nome, ou de amigo, ou de cria-
do , ou de fervidor , ou de captivo &c. aqui há tan-
tos pareceres , e differenças , como ridicularias houve
:

homem ,
que lempre punha ss Cervo de V. nu =5 ,e naó
defdizia o apodo do foffrimento outro querendo mo-
, :

ftrar a fua fubmilfeó


, difle és Antípoda deV. nu

S O So-
174 THEATRO DA ELOQUÊNCIA ,

§.

OSobrefcripto dos antigos era muito pompofo ,


porque o adornavaó de vários fuperlativos , de-
clarando nelles os cargos dignidades 3 prendas , e exer-
,

cícios. Porém o Sobrefcrito deve fer íincéro , e baila


qus leve fomente o nome , ou a dignidade.

§.

POrefte modo talvez que pareça humaCartatao


difficultofa , como hum Poema ;
porém Cícero
que foi meílre nefta matéria , ,
que muitas
confefla
vezes as efcrevia , fem fazer caio dos preceitos, e
que punha nellas o primeiro ,
que lhe vinha á ima-
ginação.
Quando as Cartas naó obfervaõ os preceitos, as
mais breves faô as melhores ; como a de Cefar efcre-
vendo ao Senado :

Cheguei , vi , e venci.
Ou como a de hum filho de Pompeio :

pés Cefar venceo , Pompeo morreo , Rufo fugio

Cataô fe matou, acabouf-e aDi&adura, perdeo-íè a


liberdade, ai
Ou como de Tibério a Drufio
a
rr Pois que eítais no Iíirico , lembrai-vos que fois
dos Cefares , que vos mandou o Senado , que fois meu
Sobrinho , c Cidadão Romano. ^

NAs Cartas
terior
ha' dous géneros de Eftylo , hum in~

outro exterior
, interior pertence a
: O
Elocução: efte EJtylo deve fer o infimo , porque íendo
a Carta huma imagem da pra&ica familiar , íeria huma
coufa
,

OU ARTE DE RHETORICA. 275-

coufa bem redicula o querer moftrar que oramos , quan-


do converfamos. Como ja diíTe o que bafta defte gé-
nero àeE/íylo, direi agora do exterior , que contém
em íl o papel , a penna , a tinta , , as letras , e as regras*

§.

DO bom papeldepende muito o concerto da Curta ,


e por ido fe deve efcolher o mais branco , o mais
fino , limpo , e lizo , e o que retenha a tinta na fu-
perficie , fem a trafpaííâr para a outra parte: o papel,
que nos vem de Hollanda , e de Inglaterra enche todas
eítas qualidades.
§i

A Penna há de
te direita
fer teza , lifa , comprida , e da par-
da aza, com ambas as plumas, enaõ
csburgada a modo de ponteiro as melhores faõ as
:

de Ciíhe , e as que fe chamaõ de Tribunal.


O
corte quer-fe longo , e dividido em dous de«
gráos imitando o bico da águia , e naõ o do pardal.
A
racha , que fe faz no meio do corte deve fer
comprida, fe a penna for teza, emais curta, fehdo
branda ; e em tal porporçaõ , que lance a tinta , com
os groíTos , e os finos. Os bicos haó de fer iguaes
tanto na grofíiira como no comprimento , de out r a forte
refpingara a tinta , e ficará manchado o papel.

A
9?a,
Tinta deve fer azulada , macia, crefplnndecen-
te , nem muito grcíTa
nem
,
quecuítea iahir aspe?'-
muito liquida, que íefolte maisdonçceflà-
rio todas as receitas, que fe tem inventado para a
:

fazer , nunca puderaô evitar o defeito de fe fazer


S 2 amareíla
176 THEATRO DA ELOQITENCIA,
amarella com o tempo : a melhor de todas , e que
fempre cpníerva a mefma cor he a legitima de Pelrirn :
em fua falta a da receita feguinte
:=: Quatro onças de bõa galha duas de caparrofa
:

verde, huma de Goma Arábia deitadas em vinho bran-


co com huma cafca fecca de romaã , e mexida com
hum páo de figueira rachado duas vezes cada dia,e doze
de infuíaó , longe do Sol , e do lume. s=s

§.

AS letras
beltas ,
devem fer bem talhadas , iguaes , e ef-
advertindo que nos rafgos da Carta nao
fe permittem filagranas j mas como nem todos apren-
derão bem aefcrever, ecosn aquella perfeição, que
vemos nos Morantes , nos Baratas , e no moderno
Manoel de Andrade , ao menos fe há de trabalhar para
que zsletras fiquem comportas , e quando nem ifto fe
poda confeguir , fejaó íequer intelligiveis as dicçoen^ \
deforte que fe naõ perca o tempo no feu conhecimento.
Aífim eílas , como as letras , devem fer diftintas
em termos que fe nao confundaõ humas com outras
haô de ter virgulas, e pontos, e as lyllabas accen-
tos , para que bem fe conheça o íentido da oração»
Nasmefrnas dicçoens fe há de obfervar a proprie-
dade , e quantidade das letras , e quando devem ler
íingellas, ou dobradas: Efta matéria pertence a Or-
thographia; e ainda que entre nós fenaõ tem aíTen-
tado nas fuás regras, porque cada hum efcreve , con-
forme alua opinião, a minha he que nos vocábulos
devemos ufar das letras da fua origem.

§.

A S regras devem
cifo, que fe a
fer direitas
penna fe
, o que he taó pre*
deímandar, fe há de
ufar
OU ARTE DE RHETORICA, *77
ufar de pauta até naturalizar o coftume. Entre huma i
e outra há de haver huma feparaçaó moderada a me-
:

lhor he que nella naó caiba outra regra defaffogada-


mente. Quando fe muda defentido v ou deaflumpto,
ie há de deíviar a regra naquella diílancia , que fe
chama paragrapho afua ordinária proporção he a de

huma regra em falfo.


A Carta finalmente há de principiar , nem muito
em baixo, nem muito em cima da folha. Pode divi-
di-la a imaginação em três partes , e deixar huma em
branco , e as outras duas para as regras alguns en-
:

chem , com ellas , toda a largura da folha eu naó


:

o approvo , porque na ilharga da carta da parte ef-


querda fempre fedeve deixar algum papel em branco,
para que a maõ fe naó ponha emcima das letras.

FIM.

ÁD-
ADVERTÊNCIA.
VEndem-fe ejles Livros 5 e as mais Obras
defie Ãuthor na loja de António da 5/7-
vet da Cojla, mercador de Livros na rua Au-
gujla y junto à traveqa de 5. Nicolao ; e ou-
tros diferentes de varias faculdades em to-
das as matérias zfc.

v>
a

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