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Artigo Juiz Das Garantias Fabiana

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CENTRO UNIVERSITÁRIO DAS FACULDADES

METROPOLITANAS UNIDAS - FMU

FABIANA SILVA FALCHI DE ASSIS

O JUIZ DAS GARANTIAS E SEU PAPEL NA PRESERVAÇÃO DO SISTEMA


ACUSATÓRIO

SÃO PAULO

2022
FABIANA SILVA FALCHI DE ASSIS

O JUIZ DAS GARANTIAS E SEU PAPEL NA PRESERVAÇÃO DO SISTEMA


ACUSATÓRIO

Artigo apresentado ao Centro Universitário das


Faculdades Metropolitanas Unidas- FMU, como
requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel
em Direito.

Orientador: Professor Gabriel Huberman Tyles

Data da Apresentação:
Banca Examinadora:
Professor Orientador:
Professor²:
Professor ³:

São Paulo

2022
O JUIZ DAS GARANTIAS E SEU PAPEL NA PRESERVAÇÃO DO SISTEMA
ACUSATÓRIO

Resumo: A lei 13.964 de 2019, denominada como “Pacote Anticrime”, instituiu


a figura do juiz das garantias, instituto inédito no ordenamento jurídico brasileiro. Trata-se de
magistrado responsável pela atuação na fase preliminar da persecução penal, responsável por
garantir os direitos fundamentais do investigado. O impedimento em atuar na fase do inquérito
policial e, posteriormente, na instrução e julgamento do feito, visa preservar a imparcialidade
do magistrado, uma vez que ao decidir sobre determinados temas na fase preliminar o
magistrado pode ficar comprometido com alguma das teses apresentadas. A figura do juiz das
garantias é consequência do princípio acusatório, previsto na Constituição Federal de 1988, que
prevê a separação das funções de julgar, acusar e defender. Dessa forma o presente trabalho
visa abordar a questão do juiz das garantias, discorrendo sobre a sua função.

Palavras-chave: Imparcialidade; Juiz das garantias; pacote anticrime.

Abstract: The act. n°13.964/2019, also known as “Anticrime Package”,


instituted the figure of the judge of guarantees, an unprecedented institute in the Brazilian legal
system. It is a magistrate responsible for acting in the preliminary phase of criminal prosecution,
responsible for guaranteeing the fundamental rights of the investigated. The impediment to act
in the phase of the police investigation and, later, in the instruction and judgment of the fact,
aims to preserve the magistrate's impartiality, since when deciding on certain subjects in the
preliminary phase the magistrate may be committed to any of the presented theses. The figure
of the judge of guarantees is a consequence of the accusatory principle, provided for in the
Federal Constitution of 1988, which provides for the separation of the functions of judging,
accusing and defending. Thus, this paper aims to approach the issue of the judge of guarantees,
discussing its function.

Keywords: Anticrime Package; impartiality; judge of guarantees.


SUMÁRIO

Sumário
Introdução .................................................................................................................. 6
Capítulo I. Referencial Teórico ................................................................................. 8
1.1 Garantismo Penal .......................................................................................................................... 9
1.2 Garantia da Imparcialidade do Julgador ..................................................................................... 10
Capítulo II. Teoria da Dissonância Cognitiva ........................................................ 15
Capítulo III. Sistemas Processuais Penais ............................................................ 18
3.1 Sistema inquisitorial .................................................................................................................... 18
3.2 Sistema acusatório ...................................................................................................................... 19
3.3 Sistema misto .............................................................................................................................. 20
Capítulo IV. Discussão sobre a constitucionalidade do juiz das garantias. ...... 21
4.1 Da inconstitucionalidade Formal................................................................................................. 21
4.2 Da inconstitucionalidade Material .............................................................................................. 25
Conclusão ................................................................................................................ 31
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 34
Introdução

A lei 13.964 de 2019, denominada como “Pacote Anticrime”, apesar de ter um


aspecto punitivo, trouxe diversos institutos garantistas, de forma a impedir as prisões
provisórias genéricas e criar o juiz das garantias.

Tais alterações visam a adequar à lei processual penal brasileira, em vigor desde
1941, à Constituição Federal, promulgada em 1988.

Isso ocorre diante do necessário avanço do direito, acompanhando as evoluções


sociais. Segundo Antonio Scarance Fernandes1 o direito representa o reflexo dos valores
dominantes em determinado momento histórico, de forma que as alterações políticas no tempo
e a diversidade de ideologias em uma mesma época fazem com que haja diferentes tratamentos
aos institutos processuais na evolução histórica.

Apesar de estar consagrado o modelo penal acusatório na Constituição Federal,


o Código de Processo Penal continha diversos dispositivos que são resquícios do sistema
inquisitório, de forma a possibilitar que o magistrado tomasse o lugar do órgão acusatório, tal
como o art. 311, com redação anterior a Lei 13.964, que permitia a decretação da prisão
preventiva de ofício, ou até mesmo o disposto art. 156, I, que permite ao juiz, de ofício, antes
mesmo de iniciada a ação penal, ordenar a produção antecipada de provas consideradas urgentes
e relevantes, observando a necessidade e adequação da medida .

Para Aury Lopes Jr. 2 “No processo penal brasileiro, o juiz mantém-se afastado
da investigação preliminar – como autêntico garantidor -, limitando-se a exercer o controle
formal da prisão em flagrante e a autorizar aquelas medidas restritivas de direitos (cautelares,
busca e apreensão, intervenções telefônicas etc.). O alheamento é uma importante garantia de
imparcialidade e, apesar de existirem alguns dispositivos que permitam a atuação de ofício, os
juízes devem condicionar sua atuação à prévia invocação do MP, da própria polícia ou do
sujeito passivo”.

Apesar da necessidade de se manter afastado da investigação preliminar, o


magistrado profere diversas decisões na fase pré-processual, de forma que sua atuação no

1
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 5ª Ed. ver., atual. e ampl -São Paulo : Editora
dos Tribunais, 2007. p. 18-19.
2
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 15. Ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018. p. 123.
processo pode sofrer influência nas provas obtidas no inquérito policial, comprometendo a
parcialidade do juiz para julgar o processo.

A implementação do juiz das garantias está suspensa por decisão liminar do


Ministro Luiz Fux, nos autos das ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305, por se tratar de “completa
reorganização da Justiça criminal do país, preponderantemente em normas de organização
judiciária, sobre as quais o Poder Judiciário tem iniciativa legislativa própria”.

O presente artigo, tem a finalidade analisar como a adoção do juiz das garantias
na legislação brasileira pode preservar a imparcialidade do juiz, de modo que a decisão do
magistrado não seja contaminada por juízos prévios a respeito da culpabilidade dos acusados.
Capítulo I. Referencial Teórico
A lei n° 13.964/2019, popularmente chamada de “pacote anticrime”, proposta
legislativa encaminhada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, foi promulgada em 24
de dezembro de 2019, entrando em vigência no dia 23 de janeiro de 2020.

A figura do juiz das garantias foi instituída no art. 3°-B, como responsável pelo
controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos fundamentais
do acusado.

Verifica-se que a competência do juiz das garantias começa no inquérito policial e


termina com o recebimento - ou não - da denúncia. Recebendo-a, a sua competência cessa de
pronto, passando as questões inconclusas ao juiz da instrução e julgamento (art. 3.º-C, § 1.º,
CPP).

Segundo Lima3, “cuida-se de verdadeira espécie de competência funcional por


fase do processo”, ou seja, dependendo da fase da persecução penal em que se encontrar, a
competência será de um juiz diferente. Entre a instauração da investigação criminal e o
recebimento da denúncia (ou queixa), a competência será do juiz das garantias, que ficará
impedido de funcionar no processo; após o recebimento da peça acusatória até o trânsito em
julgado de sentença condenatória ou absolutória, a competência será do juiz da instrução e
julgamento. Objetiva-se, assim, minimizar ao máximo as chances de contaminação subjetiva
do juiz da causa, potencializando, pois, a sua imparcialidade, seguindo na contramão da
sistemática até então vigente, quando a prática de qualquer ato decisório pelo juiz na fase
investigatória tornava-o prevento para prosseguir no feito até o julgamento final (CPP, art. 75,
parágrafo único, e art. 83).

Segundo o referido autor4, com a introdução da figura do juiz das garantias no


âmbito processual penal, a regra será a irrestrita separação entre a atividade jurisdicional
exercida antes e depois do início do processo, funcionando o recebimento da peça acusatória
como marco divisório entre essas duas fases da persecução penal. Objetiva-se, assim, evitar que
o juiz da causa, competente para a instrução e julgamento do feito, venha a ser influenciado
pelo conhecimento aprofundado dos elementos de informação produzidos na fase

3
LIMA, Renato Brasileiro de Manual de processo penal: volume único – 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador:
Ed. JusPodivm, 2020. p. 114
4
LIMA, Renato Brasileiro de Manual de processo penal: volume único – 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador:
Ed. JusPodivm, 2020. p. 116.
investigatória, ou que, mesmo antes da instrução probatória sob o crivo do contraditório judicial
e da ampla defesa, já tenha aderido a uma das teses, seja da acusação ou da defesa, tornando,
assim, até mesmo “dispensável o processo”, vez que sua decisão já estaria formada
independentemente das provas produzidas pelas partes.

1.1 Garantismo Penal


Para melhor compreender o instituto do juiz de garantias é necessária uma breve
análise das bases teóricas que fundamentam sua adoção.

O garantismo penal é uma doutrina criada pelo jurista italiano Luigi Ferrajoli, que
pode ser entendido de três formas distintas, mas correlacionadas. Em seu primeiro significado:

“Garantismo” designa um modelo normativo de direito: precisamente, no que


diz respeito ao direito penal, o modelo de “estrita legalidade” SG, próprio do
Estado de direito, que sob o plano epistemológico se caracteriza como um
sistema cognitivo ou de poder mínimo, sob o plano político se caracteriza
como uma técnica de tutela idônea a minimizar a violência e maximizar a
liberdade e, sob o plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos à
função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos. É
consequentemente, “garantista” todo sistema penal que se conforma
normativamente com tal modelo e que o satisfaz efetivamente.5

Portanto, o “garantismo” está presente em um Estado de direito em que haja normas


que limitem a função punitiva do Estado, concedendo segurança aos cidadãos, uma vez que a
atuação do Estado estará restrita aos limites do ordenamento jurídico, principalmente da
Constituição.

Já o segundo significado diz respeito ao Garantismo como teoria jurídica da


validade e da efetividade do Direito, baseando-se na diferença entre a normatividade e a
realidade:

“Garantismo” designa uma teoria jurídica da “validade” e da “efetividade”


como categorias distintas não só entre si, mas, também, pela “existência” ou
“vigor” das normas. Neste sentido, a palavra garantismo exprime uma
aproximação teórica que mantém separados o “ser” e o “dever ser” no direito;
e, aliás, põe como questão teórica central, a divergência existente nos

5
FERRAJOLI, Luigi Direito e razão: teoria do garantismo penal - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
p. 684.
ordenamentos complexos entre modelos normativos (tendentemente
garantistas) e práticas operacionais (tendente antigarantistas), interpretando-a
com a antinomia – dentro de certos limites fisiológica e fora destes patológica
– que subsiste entre validade (e não efetividade) dos primeiros e efetividade
(e invalidade) das segundas .6

Tal significado é uma reflexão sobre a validade e a eficácia da norma, tratando-as


como categorias distintas, pois não basta o ordenamento ter uma visão garantista, se na prática
tal é adotado uma postura diversa.

O terceiro significado de garantismo consiste em uma visão externa da teoria, se


tratando de uma crítica filosófica, na qual o conflito de normas deve ser baseado na finalidade
da teoria garantista.

“Garantismo” designa uma filosófica política que requer do direito e do


Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos
quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade. Neste último sentido, o
garantismo pressupõe a doutrina laica da separação entre direito e moral, entre
validade e justiça, entre ponto de vista interno e ponto de vista externo na
valoração do ordenamento, ou mesmo entre o “ser” e o “dever ser” do direito.
Equivale à assunção, para os fins da legitimação e da perda da legitimação
ético-política do direito e do Estado, do ponto de vista exclusivamente
externo.7

Assim, o garantismo penal pode ser conceituado como uma política criminal, na
qual há intervenção mínima do Estado no sistema normativo punitivo, baseado na validade da
normal e na sua efetividade, que atua como filosofia política externa, que impõe ao Estado e ao
direito, o ônus de buscar a finalidade da norma penal.

1.2 Garantia da Imparcialidade do Julgador


A imparcialidade do julgador é um dos requisitos fundamentais para que possa
exercer a jurisdição, pois se baseia em dois valores, quais sejam: a perseguição da verdade e a
tutela dos direitos fundamentais. Como ensina FERRAJOLI:

6
FERRAJOLI, Luigi Direito e razão: teoria do garantismo penal - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
p. 684.
7
Ibid., p. 685.
A sujeição somente à lei, por ser premissa substancial da dedução
judiciária e juntamente única fonte de legitimação política, exprime por
isso a colocação institucional do juiz. Essa colocação - externa para os
sujeitos em causa e para o sistema político, e estranha aos interesses
particulares de um lado e aos gerais de outro - se exprime no requisito
da imparcialidade, e tem sua justificação ético-política nos dois valores
- a perseguição da verdade e a tutela dos direitos fundamentais - mais
acima associados à jurisdição. O juiz não deve ter qualquer interesse,
nem geral nem particular, em uma ou outra solução da controvérsia que
é chamado a resolver, sendo sua função decidir qual delas é verdadeira
qual é falsa. Ao mesmo tempo ele não deve ser um sujeito
"representativo", não devendo nenhum interesse ou desejo - nem
mesmo da maioria ou da totalidade dos cidadãos - condicionar seu
julgamento que está unicamente em tutela dos direitos subjetivos
lesados: como se viu no parágrafo 37, contrariamente aos poderes
executivo e legislativo que são poderes de maioria, o juiz julga em nome
do povo, mas não da maioria, em tutela das liberdades também das
minorias.8

Para LOPES JR. 9 “a imparcialidade é garantida pelo modelo acusatório e


sacrificada no sistema inquisitório, de modo que somente haverá condições de possibilidade da
imparcialidade quando existir, além da separação inicial das funções de acusar e julgar, um
afastamento do juiz da atividade investigatória”. O referido autor faz crítica a manutenção de
normas provenientes de um sistema acusatório, tal como a possibilidade de converter a prisão
em flagrante em prisão preventiva, de ofício, ou da possibilidade produção antecipada de provas
consideradas urgentes e relevantes. Concluindo que:

O juiz deve manter-se afastado da atividade probatória, para ter o alheamento


necessário para valorar essa prova. A figura do juiz-espectador em oposição à
figura inquisitória do juiz-autor é o preço a ser pago para termos um sistema
acusatório.

Mais do que isso, é uma questão de respeito às esferas de exercício de poder.


São limitações inerentes ao jogo democrático.

8
FERRAJOLI, Luigi Direito e razão: teoria do garantismo penal - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
p. 464.
9
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 15. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 63.
A imparcialidade do juiz foi objeto de um dos mais emblemáticos julgamentos
realizados pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), que na apreciação do caso
Piersack x Bélgica, julgou se um juiz que na fase pré-processual utilizou-se de poderes
investigatórios poderia posteriormente julgar o processo.

O Tribunal entendeu de que o juiz com poderes investigatórios é incompatível com


a função de julgador, discorrendo que a imparcialidade tem duas perspectivas, uma objetiva e
outra subjetiva.

A imparcialidade subjetiva diz respeito aos sentimentos e convicções pessoais dos


magistrados frente ao caso concreto, assim, o juiz que conhece um determinado assunto realiza
um “pré-juízo”.

Já a imparcialidade objetiva se relaciona com o objeto do processo, e não com as


partes, segundo LOPES JR. “a imparcialidade objetiva diz respeito a se tal juiz se encontrar em
uma situação dotada de garantias bastantes para dissipar qualquer dúvida razoável acerca de
sua imparcialidade”.10

Assim, o contato do juiz com objeto na investigação preliminar poderia causar “pré-
juízos” e impressões favoráveis ou contrárias ao imputado na hora do julgamento.

Em outro julgado referência para o tema, no Caso De Cubber vs. Bélgica, o Tribunal
Europeu de Direitos Humanos decidiu que “na própria direção, praticamente exclusiva, da
instrução preparatória das ações penais empreendidas contra o Requerente, o citado magistrado
havia formado já nesta fase do processo, segundo toda verossimilhança, uma ideia sobre a
culpabilidade daquele. Nestas condições, é legítimo temer que, quando começaram os debates,
o magistrado não disporia de uma inteira liberdade de julgamento e não ofereceria, em
consequência, as garantias de imparcialidade necessárias”11.

O tema já foi discutido pelo Supremo Tribunal Federal, conforme se verifica pelo
Informativo n° 528 do STF, destacando o seguinte julgado:

A Turma, por maioria, concedeu, de ofício, habeas corpus impetrado


em favor de condenado por atentado violento ao pudor contra a própria
filha, para anular, em virtude de ofensa à garantia da imparcialidade da
jurisdição, o processo desde o recebimento da denúncia. Determinou-

10
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 15. Ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018. p. 65
11
TEDH, Caso De Cubber vs. Bélgica, sentença de 26.10.1984.
se a imediata expedição de alvará de soltura do paciente, se por al não
estiver preso. No caso, no curso de procedimento oficioso de
investigação de paternidade (Lei 8.560/92, art. 2º) promovido pela filha
do paciente para averiguar a identidade do pai da criança que essa
tivera, surgiram indícios da prática delituosa supra, sendo tais relatos
enviados ao Ministério Público. O parquet, no intuito de ser instaurada
a devida ação penal, denunciara o paciente, vindo a inicial acusatória a
ser recebida e processada pelo mesmo juiz daquela ação investigatória
de paternidade. Entendeu-se que o juiz sentenciante teria atuado como
se autoridade policial fosse, em virtude de, no procedimento preliminar
de investigação de paternidade, em que apurados os fatos, ter ouvido
testemunhas antes de encaminhar os autos ao Ministério Público para a
propositura de ação penal.

HC 94641/BA, rel. orig. Min. Ellen Gracie, rel. p/ o acórdão Min.


Joaquim Barbosa, 11.11.2008. (HC-94641)

Em acréscimo a esses fundamentos, o Min. Cezar Peluso, em voto-


vista, concluiu que, na espécie, pelo conteúdo da decisão do juiz, restara
evidenciado que ele teria sido influenciado pelos elementos coligidos
na investigação preliminar. Dessa forma, considerou que teria ocorrido
hipótese de ruptura da denominada imparcialidade objetiva do
magistrado, cuja falta, incapacita-o, de todo, para conhecer e decidir
causa que lhe tenha sido submetida. Esclareceu que a imparcialidade
denomina-se objetiva, uma vez que não provém de ausência de vínculos
juridicamente importantes entre o juiz e qualquer dos interessados
jurídicos na causa, sejam partes ou não (imparcialidade dita subjetiva),
mas porque corresponde à condição de originalidade da cognição que
irá o juiz desenvolver na causa, no sentido de que não haja ainda, de
modo consciente ou inconsciente, formado nenhuma convicção ou
juízo prévio, no mesmo ou em outro processo, sobre os fatos por apurar
ou sobre a sorte jurídica da lide por decidir. Assim, sua perda significa
falta da isenção inerente ao exercício legítimo da função jurisdicional.
Observou, por último, que, mediante interpretação lata do art. 252, III,
do CPP ("Art. 252. O juiz não poderá exercer jurisdição no processo em
que:... III - tiver funcionado como juiz de outra instância,
pronunciando-se, de fato ou de direito, sobre a questão;"), mas
conforme com o princípio do justo processo da lei (CF, art. 5º, LIV),
não pode, sob pena de imparcialidade objetiva e por conseqüente
impedimento, exercer jurisdição em causa penal o juiz que, em
procedimento preliminar e oficioso de investigação de paternidade, se
tenha pronunciado, de fato ou de direito, sobre a questão. Vencida a
Min. Ellen Gracie, relatora, que, no ponto, não conhecia do writ ao
fundamento de supressão de instância e o indeferia em relação às
demais questões suscitadas.

No referido julgado discutia-se a parcialidade do magistrado que em procedimento


de averiguação de paternidade movido pela filha do acusado, após a negativa dos supostos pais
em relação à paternidade, e após a colheita de provas, apresentou relatório com determinação
de encaminhamento do procedimento para o Ministério Público, pois havia indícios de que o
pai da garota teria cometido atentado violento ao pudor contra ela. Ao receber a denúncia,
baseada em fatos por ele apurados, decretou a prisão preventiva do acusado e posteriormente o
condenou.

A Segunda Turma teve o entendimento de que houve ofensa à garantia da


imparcialidade, pois o magistrado teria sido influenciado pelos elementos apurados na
investigação preliminar, ocorrendo a ruptura da imparcialidade objetiva do magistrado.

No referido julgado verifica-se que a figura do juiz inquisidor ainda está presente
nos tribunais brasileiros, uma vez que os magistrados assumem a função da acusação,
amparados em dispositivos do Código de Processo Penal, com características do sistema
inquisitorial.
Capítulo II. Teoria da Dissonância Cognitiva
Para melhor entender a imparcialidade objetiva, se mostra essencial o destaque a
teoria da Dissonância Cognitiva. Trata-se, a “Theory of Cognitive Dissonance” de Leon
Festinger,12. de um estudo da psicologia acerca da cognição e do comportamento humano: está
fundamentada na ideia de que seres racionais tendem a sempre buscar uma zona de conforto,
um estado de coerência entre suas opiniões (decisões, atitudes), daí por que passam a
desenvolver um processo voluntário ou involuntário, porém inevitável, de modo a evitar um
sentimento incômodo de dissonância cognitiva. Dessa forma, há uma tendência natural do ser
humano à estabilidade cognitiva, intolerante a incongruências, que são inevitáveis no caso de
tomada de decisões e de conhecimento de novas informações que coloquem em xeque a
primeira impressão.

Apresentada no campo do processo penal pelo jurista alemão Bernd Schünemann,


segundo o qual o acúmulo de papéis (conhecimento dos autos do inquérito, proferir a decisão
de recebimento da denúncia e exercer atividades na audiência de instrução e julgamento)
impede que o magistrado realize uma avaliação imparcial da causa, pois não é possível realizar
um processamento ideal das informações.

A dissonância cognitiva está relacionada ao fato de que o magistrado deve lidar


com opiniões antagônicas, incompatíveis, bem como sua “opinião” sobre o caso penal que
sempre encontrará antagonismo frente a uma das outras duas (acusação ou defesa), diante da
tensão psíquica gerada pela dissonância cognitiva haverá dois efeitos, o efeito inércia ou
perseverança e a busca seletiva de informações.

O efeito inércia ou perseverança é um mecanismo de autoconfirmação da hipótese


preestabelecida, superestimando informações anteriormente consideradas como corretas (tal
como as informações fornecidas pelo inquérito ou a denúncia, utilizadas pelo juízo para aceitar
a acusação ou decretar uma prisão preventiva), enquanto as informações dissonantes são
sistematicamente subavaliadas.

Já a busca seletiva de informações o magistrado busca, predominantemente,


informações que confirmem a hipótese anteriormente aceita, que estejam de acordo com sua
preconcepção, gerando o efeito confirmador-tranquilizador.

12
FESTINGER, Leon. A Theory of Cognitive Dissonance. 1. Ed. Stanford University Press;
Anniversary, 1957.
O autor LOPES JR. ao explicar sobre a teoria de dissonância cognitiva, assim
discorre:

“Demonstra SCHÜNEMANN que – em grande parte dos casos analisados –


o juiz, ao receber a denúncia e posteriormente instruir o feito, passa a ocupar
– de fato – a posição de parte contrária diante do acusado que nega os fatos e,
por isso, está impedido de realizar uma avaliação imparcial, processar as
informações de forma adequada. Grande parte desse problema vem do fato de
o juiz ler e estudar os autos da investigação preliminar (inquérito policial) para
decidir se recebe ou não a denúncia, para decidir se decreta ou não a prisão
preventiva, formando uma imagem mental dos fatos para, depois, passar à
“busca por confirmação” dessas hipóteses na instrução. O quadro agrava-se se
permitirmos que o juiz, de ofício vá em busca dessa prova sequer produzida
pelo acusador. Enfim, o risco de pré-julgamento é real e tão expressivo que a
tendência é separar o juiz que recebe a denúncia (que atua na fase pré-
processual) daquele que irá instruir e julgar o final.

Conforme as pesquisas empíricas do autor, “os juízes dotados de


conhecimentos dos autos (a investigação) não aprenderam e não armazenaram
corretamente o conteúdo defensivo” presente na instrução, porque eles só
aprendiam e armazenavam as informações incriminadoras que confirmavam
o que estava na investigação. “O juiz tendencialmente apega-se à imagem do
ato que lhe foi transmitida pelos autos da investigação preliminar; informações
dissonantes desta imagem inicial são não apenas menosprezadas, como diria
a teoria da dissonância, mas frequentemente sequer percebidas.” O quadro
mental é agravado pelo chamado “efeito aliança”, onde o juiz tendencialmente
se orienta pela avaliação realizada pelo promotor. O juiz “vê não no advogado
criminalista, mas apenas no promotor, a pessoa relevante que lhe serve de
padrão de orientação”. Inclusive, aponta a pesquisa, o “efeito atenção”
diminui drasticamente tão logo o juiz termine sua inquirição e a defesa inicie
suas perguntas, a ponto de serem completamente desprezadas na sentença as
respostas dadas pelas testemunhas às perguntas do advogado de defesa.”13

Conclui o autor que deve-se buscar medidas de redução de danos, que diminuam
a permeabilidade inquisitória e os riscos para a imparcialidade e a estrutura acusatória
constitucionalmente demarcada, tais como a) impedir atos de gestão e iniciativa de prova

13
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 15. Ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018. p. 71.
(ativismo probatório do juiz), bem como da decretação, de ofício, de medidas restritivas de
direitos fundamentais; b) impedir que o mesmo juiz que recebe a acusação, instrua e julgue o
feito; c) criar a figura de um “juiz de investigação” responsável pelas decisões sobre medidas
restritivas de direitos fundamentais requeridas pelo investigador e que ao final recebe ou rejeita
a denúncia; d) excluir os autos do inquérito policial do processo, permanecendo apenas as
provas cautelares ou técnicas irrepetíveis, para evitar a contaminação e o efeito perseverança.

A teoria da dissonância cognitiva pode ser ilustrada com o estudo realizado por
Jerry Ross e Barry M. Staw (Organizational Escalation And Exit: Lessons From The Shoreham
Nuclear Power Plant), no qual, em um exercício, pediram para que os alunos, na posição de
executivos de alto escalão, decidissem como direcionar os recursos financeiros para as filiais
da sua empresa.

Primeiramente era entregue um dossiê com as informações econômicas das filiais,


devendo os alunos optarem por alocar os investimentos de maneira a otimizar os recursos.
Independentemente da escolha realizada, os alunos eram informados que os investimentos não
tiveram os resultados econômicos esperados, sendo, na verdade, um prejuízo.

Após a entrega dos relatórios negativos era dada nova oportunidade para os alunos
alocarem recursos, e, apesar dos documentos e informações de que a primeira escolha tinha
sido errada, os alunos tinham a tendência a escolher a mesma filial, reafirmando a primeira
decisão.

Em continuidade no estudo, os alunos teriam que substituir o executivo que teria


tomado a decisão de alocar os recursos em uma das filiais, sendo que tal decisão apresentou
resultados negativos.

Na segunda parte do estudo, com os mesmos documentos fornecidos na primeira


parte, os alunos decidiram destinar o investimento para outras filiais, diferentemente do
primeiro estudo, os alunos escolheram de forma racional, não sendo influenciados a se
comprometerem com a primeira escolha.

O estudo demonstra que após uma pessoa tomar uma decisão, ela fica mais
suscetível a mantê-la, ainda que surjam evidências que foi uma escolha errada. De modo que
caso a primeira decisão seja de outra pessoa, a segunda pessoa a decidir pode agir com mais
discernimento e imparcialidade.
Capítulo III. Sistemas Processuais Penais
Para melhor entender a intenção do legislador ao instituir o juiz das garantias é
necessária uma breve análise dos sistemas processuais penais existentes.

3.1 Sistema inquisitorial


Segundo LIMA14, o sistema inquisitorial é típico de sistemas ditatoriais, tem como
característica principal o fato de as funções de acusar, defender e julgar encontrarem-se
concentradas em uma única pessoa, que assume assim as vestes de um juiz acusador, chamado
de juiz inquisidor.

Segundo o autor:

Essa concentração de poderes nas mãos do juiz compromete,


invariavelmente, sua imparcialidade. Afinal, o juiz que atua como
acusador fica ligado psicologicamente ao resultado da demanda,
perdendo a objetividade e a imparcialidade no julgamento. Nesse
sistema, não há falar em contraditório, o qual nem sequer seria
concebível em virtude da falta de contraposição entre acusação e
defesa. Ademais, geralmente o acusado permanecia encarcerado
preventivamente, sendo mantido incomunicável.

Lopes Jr15. entende que não há parcialidade no sistema inquisitorial, pois o juiz-
autor busca a prova e decide a partir da prova que ele mesmo produziu. A aglutinação de
funções na mão do juiz e atribuição de poderes instrutórios ao julgador não promovem uma
estrutura dialética ou contraditória.

Nesse sistema processual penal o acusado transforma-se em mero objeto de


verificação, não sendo considerado como sujeito de direitos, abolindo-se a acusação e a
publicidade. Sendo possível o juiz-inquisidor atuar de ofício, pautando sua decisão em
declarações de testemunha, cujos nomes são mantidos em sigilo.

É evidente que tais características são incompatíveis com os direitos e garantias


individuais, previstos tanto na Constituição Federal, como na Convenção Americana sobre os
Direitos Humanos, pois não há um julgador imparcial, equidistante das partes.

14
LIMA, Renato Brasileiro de Manual de processo penal: volume único - 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador:
Ed. JusPodivm, 2020. p. 42
15
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 15. Ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018. p. 42.
O sistema inquisitorial foi adotado pelo direito canônico a partir do século XIII, se
espalhando por toda Europa, sendo utilizado até o final do século XVIII, momento em que por
conta dos movimentos filosóficos e com a Revolução Francesa, com os ideais de valorização
do homem, houve repercussão no direito processual penal, diminuindo paulatinamente as
características do modelo inquisitivo.

Para Lopes JR. o sistema inquisitório foi desacreditado por incidir em um erro
psicológico: crer que uma mesma pessoa possa exercer funções tão antagônicas como
investigar, acusar, defender e julgar.16

3.2 Sistema acusatório


Segundo LOPES JR.17 o processo penal acusatório caracteriza-se pela clara
separação entre juiz e partes, que assim deve se manter ao longo de todo o processo (por isso
de nada serve a separação inicial das funções se depois permite-se que o juiz atue de ofício na
gestão da prova, determine prisão de ofício, etc.) para garantia da imparcialidade (juiz que vai
atrás da prova está contaminado, prejuízo que decorre dos pré-juízos) e efetivação do
contraditório.

Para LOPES JR.18 o modelo constitucional é acusatório, em contraste com o Código


de Processo Penal, que é nitidamente inquisitório. O referido autor entende que todos os
dispositivos da lei processual penal que sejam de natureza inquisitória são substancialmente
inconstitucionais e devem ser rechaçados.

LIMA19 ensina que “Chama-se “acusatório” porque, à luz deste sistema, ninguém
poderá ser chamado a juízo sem que haja uma acusação, por meio da qual o fato imputado seja
narrado com todas as suas circunstâncias. Daí, aliás, o porquê da existência do próprio
Ministério Público como titular da ação penal pública. Ora, se é natural que o acusado tenha
uma tendência a negar sua culpa e sustentar sua inocência, se acaso não houvesse a presença de
um órgão acusador, restaria ao julgador o papel de confrontar o acusado no processo,
fulminando sua imparcialidade. Como corolário, tem-se que o processo penal se constitui de
um actum trium personarum, integrado por sujeitos parciais e um imparcial – partes e juiz,

16
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 15. Ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018. p. 42.
17
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 15. Ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018. p. 44.
18
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 15. Ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018. p. 49.
19
LIMA, Renato Brasileiro de Manual de processo penal: volume único – 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador:
Ed. JusPodivm, 2020. p. 43
respectivamente. Somente assim será possível preservar o juiz na condição de terceiro
desinteressado em relação às partes, estando alheio aos interesses processuais.”

O modelo processual penal acusatório visa manter uma posição de igualdade entre
os sujeitos, cabendo as partes a gestão da prova, devendo produzir o material probatório,
observando os princípios do contraditório e ampla defesa, bem como garantindo o direito a
publicidade e o dever de motivação das decisões judiciais.

3.3 Sistema misto


Criado no Código Napoleônico de 1808, o sistema misto, como o próprio nome
sugere, abrange duas fases processuais distintas: a fase pré-processual, de caráter inquisitório,
e a segunda, processual, de caráter acusatório.

Parte da doutrina classifica o sistema brasileiro como misto, diante da fase inicial
da persecução penal ser caracterizada pelo inquérito policial, com características inquisitoriais,
e posteriormente o processo penal, com características acusatórias.

Lopes Jr.20 não concorda com a existência do sistema misto, pois segundo o autor
o processo tem por finalidade a busca pela reconstituição de um fato histórico, de modo que a
gestão da prova é a espinha dorsal do processo penal, estruturando e fundando o sistema a partir
de dois princípios informadores: o princípio acusatório, no qual a gestão da prova está nas mãos
das partes; e o princípio inquisitivo, no qual a gestão da prova está na mão do julgador.

Afirma o referido autor que é reducionismo pensar que basta ter uma acusação
(separação inicial das funções) para constituir-se um processo acusatório. É necessário que se
mantenha a separação para que a estrutura não se rompa e, portanto é decorrência lógica e
inafastável que a iniciativa probatória esteja na mão das partes. Somente isso permite a
imparcialidade do juiz.

20
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 15. Ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018. p. 46.
Capítulo IV. Discussão sobre a constitucionalidade do juiz das
garantias.
As inovações promovidas pela Lei n° 13.964/2019 geraram diversos
questionamentos sobre a constitucionalidade da norma, de forma que foram propostas quatro
ações diretas de inconstitucionalidade, duas por partidos políticos (ADI n. 6.299 ajuizada pelos
partidos PODEMOS e CIDADANIA, e ADI 6.300 ajuizada pelo PSL) e duas por associações
de classe (ADI n. 6.298 ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB e
Associação dos Juízes Federais do Brasil – AJUFE, e ADI n. 6.305 ajuizada pela Associação
Nacional do Ministério Público – CONAMP).

As ADIs n. 6298, 6.299 e 6.300, foram distribuídas em 15.01.2020, no plantão


judicial, de forma que o Ministro Presidente do STF, Dias Toffoli, concedeu parcialmente as
medidas cautelares, suspendendo a eficácia de alguns artigos da Lei, dentre eles os artigos
referentes ao juiz das garantias, determinando a implementação pelos tribunais do juiz das
garantias, no prazo máximo de 180 dias.

O Relator dos processos, Ministro Luiz Fux, ao analisar os processos, revogou a


decisão monocrática do Ministro Dias Toffoli, determinando, dentre outras, a suspensão, até o
julgamento do processo, da eficácia “da implantação do juiz das garantias e seus consectários
(Artigos 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3ª-E, 3º-F, do Código de Processo Penal)”.

Segundo o Ministro Relator há evidências da existência de vícios de


inconstitucionalidade formal e material na redação dos artigos impugnados.

4.1 Da inconstitucionalidade Formal


Sobre a inconstitucionalidade formal, Pedro Lenza21 ensina que “ Como o próprio
nome induz a inconstitucionalidade formal, também conhecida como nomodinâmica, verifica-
se quando a lei ou o ato normativo infraconstitucional contiver algum vício em sua “forma”,
ou seja, em seu processo de formação, vale dizer, no processo legislativo de sua elaboração,
ou, ainda, em razão de sua elaboração por autoridade incompetente”.

No aspecto formal, segundo o relator a discussão giraria em torno da competência


para legislar sobre o tema:

21
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado – 18 ed. ver. atual. e ampl – São Paulo: Saraiva, 2014. p.
287.
“o ponto controverso consiste na natureza jurídica desses dispositivos,
o que definiria a legitimidade para a respectiva iniciativa legislativa e,
em consequência, a satisfação do requisito de constitucionalidade
formal. Afinal, a Constituição Federal define regras específicas de
competência e de iniciativa legislativa em relação a determinadas
matérias, que devem ser observadas como condição sine qua non para
a regularidade da norma a ser produzida. O artigo 22 da Constituição
define que compete privativamente à União legislar sobre direito
restringirá ao estabelecimento de normas gerais. Por fim, o artigo 96,
inciso II, determina que cabe ao “Supremo Tribunal Federal, aos
Tribunais Superiores e aos Tribunais de Justiça propor ao Poder
Legislativo respectivo, [...]: [...] d) a alteração da organização e da
divisão judiciárias”.processual. Por sua vez, o artigo 24 autoriza a
União, os Estados e o Distrito Federal a legislarem concorrentemente
sobre procedimentos em matéria processual, no âmbito do que a
competência da União se

O Ministro Relator prossegue, diferenciando a lei processual, das leis de


organização judiciária: “as leis de organização judiciária “cuidam da administração da
justiça”, já as leis de natureza processual dizem respeito à atuação da justiça. É dizer: “as leis
processuais, portanto, regulamentam a ‘tutela jurisdicional’, enquanto que as de organização
judiciária disciplinam a administração dos órgãos investidos da função jurisdicional”.

Conclui o relator que sob uma leitura formalista poderia se afirmar que ao
instituírem a função do juiz de garantias, os artigos 3º-A ao 3º-F teriam apenas acrescentado ao
microssistema processual penal mera regra de impedimento do juiz criminal, acrescida de
repartição de competências entre magistrados paras as fases de investigação e de instrução
processual penal. Nesse sentido, esses dispositivos teriam natureza de leis gerais processuais,
definidoras de procedimentos e de competências em matéria processual penal, o que autorizaria
a iniciativa legislativa por qualquer dos três poderes, nos termos do artigo 22 da Constituição.

Entretanto, o Min. Relator não concorda com tal raciocínio afirmando que:

a criação do juiz das garantias não apenas reforma, mas refunda o


processo penal brasileiro e altera direta e estruturalmente o
funcionamento de qualquer unidade judiciária criminal do país. Nesse
ponto, os dispositivos questionados têm natureza materialmente
híbrida, sendo simultaneamente norma geral processual e norma de
organização judiciária, a reclamar a restrição do artigo 96 da
Constituição.

De antemão, o artigo 3º-D, parágrafo único, do Código de Processo


Penal, ao determinar que, “[n]as comarcas em que funcionar apenas
um juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados, a
fim de atender às disposições deste Capítulo”, parece veicular a
violação mais explícita ao artigo da 96 da Constituição.

No entanto, em um juízo perfunctório, entendo que os demais artigos


que tratam do juiz de garantias também padecem da mesma violação
constitucional direta. De fato, para além do artigo 3º-D, parágrafo
único, nenhum dos demais dispositivos cria explicitamente novos
cargos de juízes ou varas criminais. No entanto, a evidência que
emerge acima de qualquer dúvida razoável é a de que a implantação
dos artigos 3º-A a 3º-F do Código de Processo Penal requer, em níveis
poucas vezes visto na história judiciária recente, a reestruturação de
unidades judiciárias e a redistribuição de recursos materiais e
humanos.

Apesar dos argumentos apresentados, com exceção do art. 3°-D, parágrafo único,
as inovações apontadas não invadem a competência do judiciário para organização judiciária,
sobre o tema discorre LIMA22:

“não se sustenta a alegação de que, ao instituir o juiz das garantias, a


Lei n. 13.964/19 estaria violando o poder de auto-organização dos
Tribunais e a sua prerrogativa de propor a alteração da organização e
da divisão judiciárias. A propósito, vale rememorar a distinção entre
normas de organização judiciária e normas de direito processual
propriamente dito, nas palavras de José Frederico Marques: “(...) as
leis de organização judiciária cuidam da administração da justiça e as
leis de processo da atuação da justiça. (...) As leis processuais,
portanto, regulamentam a ‘tutela jurisdicional’, enquanto que as de
organização judiciária disciplinam a administração dos órgãos
investidos da função jurisdicional”.

22
LIMA, Renato Brasileiro de Manual de processo penal: volume único – 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador:
Ed. JusPodivm, 2020. p. 117,
Ora, firmada a premissa de que a norma de direito processual é aquela
que afeta aspectos umbilicalmente ligados à tríade jurisdição, ação e
processo, não há por que se afirmar que teria havido qualquer
inconstitucionalidade nesse ponto, visto que os arts. 3º-A, 3º-B, 3º-C,
3º-D, caput, 3º-E e 3º-F do CPP estão diretamente relacionados a
questões atinentes ao próprio exercício da jurisdição no processo penal
brasileiro. A matéria versada em tais dispositivos – criação de uma
nova causa de impedimento e repartição de competências entre
magistrados para as fases de investigação e de instrução processual
penal (competência funcional por fase da persecução penal) – insere-
se, portanto, no âmbito da competência legislativa privativa da União
prevista no art. 22, inciso I, da Constituição Federal, porquanto versam
sobre Direito Processual.

Trata-se, na verdade, de uma legítima opção feita pelo Congresso


Nacional no exercício de sua liberdade de conformação, que deliberou
por instituir no sistema processual penal brasileiro uma nova espécie
de competência funcional por fase do processo, afastando o magistrado
que interveio na fase investigatória – juiz das garantias – da
possibilidade de mais adiante vir a julgar o mesmo caso penal.

(...)

Enfim, se o Supremo Tribunal Federal reconheceu a


constitucionalidade do art. 33 da Lei Maria da Penha, que determina
expressamente que varas criminais poderão cumular as competências
cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da
prática de violência doméstica e familiar contra a mulher enquanto não
estruturadas as respectivas varas especializadas, algo que, a nosso
juízo, claramente representa matéria relacionada à auto-organização
do Poder Judiciário, seria ilógico apontar a existência de tal vício no
caso do juiz das garantias”

Entretanto, não se pode dizer o mesmo em relação ao parágrafo único do art. 3°-D,
que tem a seguinte redação:

Art. 3º-D. O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato


incluído nas competências dos arts. 4º e 5º deste Código ficará
impedido de funcionar no processo.
Parágrafo único. Nas comarcas em que funcionar apenas um juiz, os
tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados, a fim de
atender às disposições deste Capítulo.

No referido dispositivo legal não se aborda questões do processo penal, mas sim de
organização judiciária, uma vez que estipula um sistema de rodízio de magistrados, sobre o
tema LIMA23, discorre que “ao determinar a forma pela qual deverá ser implementado o juiz
das garantias nas comarcas em que funcionar apenas um juiz, é de todo evidente que o art. 3º-
D, parágrafo único, do CPP, cria uma obrigação aos tribunais no que tange a sua forma de
organização, violando, assim, o poder de auto-organização desses órgãos (CF, art. 96) e
usurpando sua iniciativa para dispor sobre organização judiciária (CF, art. 125, §1º). Prova
disso, aliás, é a própria redação do art. 3º-E do CPP, o qual, em fiel observância à Constituição
Federal, dispõe que “o juiz das garantias será designado conforme as normas de organização
judiciária da União, dos Estados e do Distrito Federal, observando critérios objetivos a serem
periodicamente divulgados pelo respectivo tribunal”. Como se pode notar, diversamente do
parágrafo único do art. 3º-D, o art. 3º-E, também do CPP, vem ao encontro da autonomia dos
tribunais, respeitando, ademais, as peculiaridades de cada estado da federação.”

Verifica-se, portanto que o referido dispositivo legal padece de


inconstitucionalidade formal, violando a autonomia do judiciário no seu poder de auto-
organização.

4.2 Da inconstitucionalidade Material


Já a inconstitucionalidade material, diz respeito ao conteúdo do ato normativo. Caso
o ato normativo afronte qualquer preceito ou princípio da Constituição deverá ser declarado
inconstitucional por possuir um vício material24.

Ao tratar sobre a possível inconstitucionalidade material dos artigos 3º-B a 3º-F do


Código de Processo Penal, o relator divide em dois grupos de argumentos: a ausência de dotação
orçamentária e estudos de impacto prévios para implementação da medida e o impacto da
medida na eficiência dos mecanismos brasileiros de combate à criminalidade.

Quanto ao primeiro grupo, percebe-se que os dispositivos que


instituíram o juiz de garantias violaram diretamente os artigos 169 e

23
LIMA, Renato Brasileiro de Manual de processo penal: volume único – 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador:
Ed. JusPodivm, 2020. p. 119,
24
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado – 18 ed. ver. atual. e ampl – São Paulo: Saraiva, 2014. p.
290.
99 da Constituição, na medida em que o primeiro dispositivo exige
prévia dotação orçamentária para a realização de despesas por parte
da União, dos Estados, do Distrito Federal, e o segundo garante
autonomia orçamentária ao Poder Judiciário. Sem que seja necessário
repetir os elementos fáticos aqui já mencionados, é inegável que a
implementação do juízo das garantias causa impacto orçamentário de
grande monta ao Poder Judiciário, especialmente com os
deslocamentos funcionais de magistrados, os necessários incremento
dos sistemas processuais e das soluções de tecnologia da informação
correlatas, as reestruturações e as redistribuições de recursos
humanos e materiais, entre outras possibilidades. Todas essas
mudanças implicam despesas que não se encontram especificadas nas
leis orçamentárias anuais da União e dos Estados.

Acrescente-se a esse argumento que os tribunais não podem fazer uso


de seu poder regulamentar para reorganizar serviços judiciários
quando há incremento de despesa, devendo recorrer a projetos de leis
com rito próprio. No entanto, as reestruturações a serem realizadas,
em sua maioria, necessitariam de novas leis a serem aprovadas pelo
Congresso Nacional e pelas Assembleias Legislativas estaduais, não
havendo tempo hábil para o respectivo planejamento no período da
vacatio legis, que transcorreu no prazo de recesso parlamentar.

Nesse aspecto é importante mencionar que não se trata de criação de nova atividade
dentro do Poder Judiciário, sendo, na verdade uma redistribuição do trabalho, segundo LIMA25

“a Lei n. 13.964/19 não criou nenhuma atividade nova dentro da


estrutura do Poder Judiciário. Com efeito, o controle da legalidade da
investigação criminal e a salvaguarda dos direitos individuais cuja
franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Judiciário
sempre foram atividades realizadas pelos juízes criminais Brasil afora.

O que será necessário, portanto, é apenas redistribuir o trabalho que


antes competia ao mesmo magistrado, seja através da especialização
de varas, seja através da criação de núcleos de inquéritos. É dizer,
haverá necessidade de uma mera adequação da estrutura judiciária já
existente em todo o país para que as funções de juiz das garantias e juiz

25
LIMA, Renato Brasileiro de Manual de processo penal: volume único – 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador:
Ed. JusPodivm, 2020. p. 118
da instrução e julgamento não mais recaiam sobre a mesma pessoa,
dando-se efetividade à norma de impedimento constante do caput do
art. 3º-D do CPP.

Não há, pois, criação de órgãos novos, competências novas. O que há


é uma mera divisão funcional de competências criminais já existentes.
Logo, não há falar em violação às regras constitucionais anteriormente
citada”.

Já o segundo grupo de argumentos apresentados pelo Ministro Relator se referem


ao impacto dessas novas funções aos valores constitucionais que militam pela eficiência do
microssistema processual penal e, de modo mais abrangente, pela operação de mecanismos
anti-criminalidade, sendo apresentada tal análise em dois pontos.

O primeiro ponto diz respeito aos argumentos de Direito Comparado,


que preconizam experiências de outros países que adotam o sistema de
juízo das garantias. Segundo essa perspectiva, a implantação do juiz
das garantias, coloca o Brasil no mesmo patamar de outros países
civilizados, no que tange ao sistema acusatório processual.

No entanto, penso que esse argumento merece uma maior cautela


reflexiva. No exercício da jurisdição constitucional, eu tenho sido
sensível à utilização de argumentos do Direito comparado, sempre
atento aos pronunciamentos de outras Cortes Constitucionais, às
contribuições de doutrinadores estrangeiros, e até mesmo ao exame
qualitativo de outras experiências constitucionais sobre temas comuns
ou sobre arranjos institucionais (A título de exemplo, vide MS
35.985/DF, Rel. Min. Luiz Fux, j. 19/11/2018, DJe 21/11/2018).

(...)

Como exemplo, no exercício de comparação de experiências


constitucionais, tem sido comum o que a doutrina convencionou
chamar de “cherry-picking”, na qual se seleciona estrategicamente um
país ou um caso estrangeiro que apresenta semelhanças pontuais com
o caso paradigma, com vistas a meramente reforçar o argumento
comparativo, sem se ter o cuidado de se justificarem os motivos pelos
quais o caso em comparação realmente se adequa ao paradigma.
Trata-se, assim, de um mero uso retórico do Direito comparado, que
desconsidera particularidades dos arranjos institucionais e da cultura
política de cada um dos países, divergências contextuais, dissidências
doutrinárias e jurisprudenciais, entre outros pontos. (Vide
FRIEDMAN, Andrew. Beyond Cherry-Picking: Selection Criteria for
the Use of Foreign Law in Domestic Constitutional Jurisprudence.
Suffolk University Law Review, v. XLIV, pp. 873-889, 2011).

In casu, com a devida vênia ao pensamento contrário, e ainda em sede


perfunctória e não definitiva, o simples argumento do “sucesso” da
implementação do “Juiz de Garantias” em outros países (e.g.
Alemanha, Portugal e Itália) merece cautela, sob pena de se realizar
um verdadeiro transplante acrítico de ideias e de instituições.

Segundo o relator devem ser observadas outras questões, por exemplo: I) a


capacidade que o sistema judiciário brasileiro possui para a recepcionar o “Juiz de Garantias”
(e.g. contingente processual, bem como os recursos humanos e financeiros disponíveis); (II) a
proximidade e/ou vinculação institucional entre os órgãos de acusação e de julgamento nos
países em análise; (III) as regulamentações das competências do juiz das garantias nos países
comparados. Bem como as experiências comparadas que foram infrutíferas, nas quais a
instituição foi implementada, porém não obteve os resultados esperados e/ou foi posteriormente
extinta.

Nesse aspecto, respeitado o posicionamento do ilustre relator, não cabe ao


judiciário, em sede de Ação Declaratória de Inconstitucionalidade, promover o estudo sobre
tais temas, uma vez que não encontram relação com a constitucionalidade da norma, sob pena
de desviar sua finalidade e incorrer em verdadeiro ativismo judicial.

Cabe ressaltar que apesar da Lei n° 13.964/2019 ter sido promulgada de maneira
célere, os estudos sobre a implementação do juiz das garantias foram realizados desde o projeto
de Lei do Senado n°156, de 2009, contendo mais de uma década de estudos.

O segundo ponto sobre a possível inconstitucionalidade material “refere-se à


alegada presunção de que os juízes que acompanham investigações tendem a produzir vieses
que prejudicam o exercício imparcial da jurisdição, especialmente na fase processual penal.”

A base das ciências comportamentais é o caráter empírico de seus


argumentos. A existência de estudos empíricos que afirmam que seres
humanos desenvolvem vieses em seus processos decisórios não
autoriza a presunção generalizada de que qualquer juiz criminal do
país tem tendências comportamentais típicas de favorecimento à
acusação. Mais ainda, também não se pode inferir, a partir desse dado
científico geral, que a estratégia institucional mais eficiente para
minimizar eventuais vieses cognitivos de juízes criminais seja repartir
as funções entre o juiz das garantias e o juiz da instrução. Defensores
desse argumento sequer ventilam eventuais efeitos colaterais que esse
arranjo proposto pode produzir, inclusive em prejuízo da defesa.

Os argumentos apresentados pelo ilustre ministro relator, mais uma vez, não
guardam relação com o objeto da ação. Nesse caso não se presume de forma generalizada que
“qualquer juiz criminal do país tem tendências comportamentais típicas de favorecimento à
acusação”, mas sim de que tomar decisões na fase do inquérito policial pode influenciar no
julgamento do processo.

Conforme bem pontuado no estudo realizado pelo CNJ26 :

“Cumpre destacar que a compreensão de que o novel instituto promove


a imparcialidade, não parte, em absoluto, da desconfiança pessoal ou
da presunção de que há deliberada atuação parcial dos juízes que
atuam na fase investigatória.

O instituto do “juiz das garantias”, em verdade, permite fortalecer a


imparcialidade do magistrado sob um viés objetivo, que, segundo
Gustavo Badaró “deriva não da relação do juiz com as partes, mas de
sua prévia relação com o objeto do processo”. De fato, o magistrado
não é um indivíduo neutro desprovido de personalidade, mas uma
pessoa que constrói imagens mentais e concepções, a priori, como todo
ser humano. Em última análise, e consoante destacado por Aury Lopes
Jr. e Ruiz Ritter, a promoção da originalidade cognitiva do magistrado
corrobora para o almejado distanciamento com a situação discutida
no processo.

A questão de possíveis efeitos colaterais, inclusive em prejuízo da defesa, não vem


acompanhada de qualquer argumento contundente, apenas o ponto de vista de Pery Francisco
Assis Shikida, pesquisador na área da Análise Econômica do Direito, afirmando que “a
instituição do juiz das garantias, combinada com a morosidade atual de muitos juízos criminais
do país em virtude do assolamento de processos, pode fornecer também incentivos à

26
CNJ. A implantação do juiz das garantias no poder judiciário brasileiro – junho/2020.
impunidade ou, ao menos, prejudicar a duração razoável do processo - aumentando o tempo
necessário para que prestação jurisdicional final ocorra.”

Nesse ponto, algumas considerações devem ser feitas. Em primeiro lugar, a


eventual “morosidade atual de muitos juízos criminais do país” não deve ser combinada com a
instituição do juiz das garantias, por se tratar de falácia lógica, pois tal posicionamento afirma
que ao instituir o juiz das garantias poderia ocasionar mais demora, indo de encontro com um
dos motivos de sua implementação, que seria a especialização e consequente maior celeridade
ao processo.

É importante ressaltar que parte da impunidade é ocasionada por processos em que


a prescrição ocorre no próprio STF, segundo dados do CNJ de 201727, apontados pelo jornal O
Estado de S. Paulo28, um em cada cinco processos em tramitação no Supremo Tribunal Federal
(STF) prescreveu no ano passado, revela relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A
taxa de prescrição, que chegou a 18,8%, é a maior em oito anos. Ou seja, nesses casos, o
Estado perdeu o direito de punir. O movimento foi acompanhado de um aumento exponencial
nos processos originários na Corte, que cresceram seis vezes de 2009 até o ano passado,
saltando de 476 para 2.803.

Nesse aspecto, deve-se combater a morosidade do judiciário, e não a utilizar como


argumento para a não implementação do juiz das garantias

27
CNJ. Supremo em ação 2017: ano-base 2016/Conselho Nacional de Justiça - Brasília: CNJ, 2017
28
Disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/um-em-cada-cinco-processos-caduca-
no-supremo/ matéria de 02.10.2017, acessado em 25.04.2022.
Conclusão

O sistema processual penal acusatório, modelo adotado pela Constituição Federal,


tem como principal característica a separação das funções de: acusar, defender e julgar. Essa
separação de poderes garante a titularidade exclusiva da ação penal pública por parte do
Ministério Público (art. 129, I, da CF), assegurando que o magistrado não tenha iniciativa
probatória, garantido maior imparcialidade.

Apesar de ser possível identificar o modelo acusatório na carta magna, através de


sua interpretação sistemática, o Código de Processo Penal ainda contém diversos resquícios do
modelo inquisitório.

Diante dessa divergência entre a lei processual e a Constituição Federal, o legislador


promoveu diversas propostas legislativas visando consagrar o modelo acusatório, adotando a
figura do juiz das garantias.

A instituição do juiz das garantias, inserido no ordenamento jurídico por conta da


Lei n° 13.964/2019, visa separar as competências do magistrado que atua na fase investigativa,
responsável pela proteção dos direitos do investigado, do magistrado que realizará a instrução
e julgamento do processo.

Nesse caso, a atuação na fase pré-processual gera um impedimento para instruir e


julgar o processo.

Tal separação visa garantir maior imparcialidade do magistrado, pois, em seu


aspecto objetivo, a atuação na fase do inquérito policial, decidindo sobre o cabimento de prisão
provisória ou outra medida cautelar, pode influenciar suas decisões futuras, ainda que de
maneira inconsciente.

Nesse cenário, não se pode afirmar que todo magistrado que atuou no inquérito
policial é parcial, ficando comprometido a julgar a causa de acordo com as decisões tomadas.
Na verdade, a adoção do juiz das garantias visa afastar a possibilidade que o magistrado seja
influenciado pelos atos praticados na fase pré-processual.

Assim como toda inovação legislativa, a proposta de inserção da figura do juiz das
garantias sofreu diversas críticas, fundadas basicamente: nas despesas para sua implementação
e no possível atraso no andamento dos processos.
A ideia de que a implementação do juiz das garantias trará mais morosidade ao
judiciário vem desacompanhada de fundamentos. Isso porque alguns dos modelos sugeridos se
aproximam do funcionamento do Departamento de Inquéritos Policiais adotado pelo Tribunal
de Justiça de São Paulo29,, no qual treze magistrados atuam exclusivamente na fase de
investigação criminal, decretando medidas como prisões, buscas e apreensões e conduzindo
audiências. Tal departamento funciona há mais de 30 anos, dando maior celeridade e eficiência
na tramitação regular dos inquéritos policiais, não atuando na fase de recebimento da denúncia
e na homologação dos acordos de não persecução penal, situações que o diferencia do juiz das
garantias.

Segundo o Min. Dias Toffoli30 “Trata-se, portanto, de um modelo que vem se


difundindo pelo país, notadamente porque aprimora a atividade judicial realizada na fase pré-
processual, a qual se torna mais especializada e prestigia a imparcialidade judicial.”

Apesar da liminar concedida nos autos da ADIN 6.296/DF, verifica-se que, com
exceção do disposto no parágrafo único do art. 3°-D, a implementação do juízo das garantias
não afronta o texto constitucional, garantindo, na verdade, a adequação da lei processual com
as premissas constitucionais.

Em relação ao referido dispositivo31, verifica-se que padece de


inconstitucionalidade formal, pois viola a autonomia do judiciário no seu poder de auto-
organização.

Nesse caso a revogação do parágrafo único não comprometeria a implementação


do juízo das garantias, uma vez que o próprio CNJ já possui minuta de resolução
regulamentando a matéria, prevendo a hipótese de rodízio de magistrados.

Conclui-se que a adoção do juiz das garantias, apesar de não solucionar todos os
problemas que se referem à imparcialidade dos magistrados, é um grande avanço, pois permite

29
Dantas Dimitrius. Em São Paulo o Juiz das Garantias já funciona há 36 anos, 07 de janeiro de 2020. Disponível
em: //oglobo.globo.com/politica/em-sao-paulo-juiz-de-garantias-ja-funciona-ha-36-anos-24174858 Acesso em:
25 de abril de 2022
30
STF, Medida Cautelar na Ação Direta De Inconstitucionalidade n° 6.298 - DF
31
Art. 3º-D. O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências dos arts. 4º e
5º deste Código ficará impedido de funcionar no processo.
Parágrafo único. Nas comarcas em que funcionar apenas um juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízio de
magistrados, a fim de atender às disposições deste Capítulo.
que o processo seja julgado por juiz que não atuou na fase preliminar, não comprometendo seu
julgamento com uma decisão já tomada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CNJ. Supremo em ação 2017: ano-base 2016/Conselho Nacional de Justiça - Brasília: CNJ,
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DANTAS, Dimetrius. Em São Paulo o Juiz das garantias já funciona há 36 anos, 07 de janeiro
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acusatório e contraditório no processo penal brasileiro: as reformas de junho de 2008, in Revista
da ESMP: Reforma Processual Penal, São Paulo, V. 2, n° 1, julho/dezembro 2008,

TEDH, Caso De Cubber vs. Bélgica, sentença de 26.10.1984.


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incentivar-ampliacao-dipo-sp Acesso em: 25 de abril de 2022.

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