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Resumo: este artigo visa proporcionar uma visão global da chamada “jurisprudência da
crise” do Tribunal Constitucional português, começando por uma breve apresentação do pano de
fundo da crise, passando depois para uma apreciação dos principais traços da jurisprudência como
um todo e por fim analisando os acórdãos em particular.
1. CONTEXTO1,2
A crise económica mundial de 2007, que teve o seu início com a deno-
minada crise do subprime nos Estados Unidos da América, atingiu Portugal
de forma particularmente intensa. As finanças públicas encontravam-se, mesmo
antes do início da recessão, sob pressão considerável 3. Naturalmente, a
1
O presente artigo corresponde, com alguns aprofundamentos, à comunicação apresentada
pelo autor na Conferência Internacional “Tribunais Constitucionais: entre o politico e o jurídico”,
que se realizou na Universidade Católica do Porto em 30 de junho de 2017. Considerando
que a apresentação visava proporcionar uma visão global da jurisprudência da crise do
Tribunal Constitucional (TC) Português, tendo em vista o debate subsequente, dificilmente
poderá ser vista como inovadora, constituindo antes uma constatação de um estado de coisas.
No entanto, tendo em conta a importância e o significado do tema, bem como a circunstância
de poucos textos terem sido publicados sobre a matéria em língua inglesa, cremos que a
publicação do artigo é justificada, quanto mais não seja por fazer com que o tema seja
acessível a um público mais alargado.
[Neste número da Revista JULGAR publica-se o texto original em língua inglesa.]
[Tradução de Nuno de Lemos Jorge, juiz de direito, a partir do texto original em língua inglesa.]
2
O autor agradece o envio de comentários e sugestões para o endereço “psgpcoutinho@gmail.com”.
3
Por exemplo, o valor do défice anual de 2004, 2005 e 2006 foi, respetivamente, de 6,2%,
6,2% e 4,3% do PIB. A dívida pública por referência aos mesmos anos atingiu 62%, 67,4%
e 69,2% do PIB. (estatísticas disponíveis em “https://www.pordata.pt/Portugal/Administra%C
3%A7%C3%B5es+P%C3%BAblicas+despesas++receitas+e+d%C3%A9fice+excedente+em+p
ercentagem+do+PIB-2788-237187” e “https://www.pordata.pt/Portugal/Administra%C3%A7%C
3%B5es+P%C3%BAblicas+d%C3%ADvida+bruta+em+percentagem+do+PIB-2786”). Estes
números servem apenas para mostrar como as finanças do Estado se encontravam em mau
estado, à semelhança do que vinha ocorrendo desde há muitos anos (não será coincidência
que, num dito popular, se afirme que Portugal está em crise desde 1143 — o ano da nossa
independência).
4
V. ligações supra referidas.
5
Esta ideia de que os Memorandos definiram objetivos, mais do que medidas, e fins, mais do
que meios, foi assumida pelo próprio TC. Todavia, ela é muito questionável e efetivamente
questionada por alguns, com base, essencialmente, no argumento de que decorriam do Direito
da União Europeia obrigações concretas. A questão, todavia, é bastante complexa e as suas
implicações são tão profundas que não é possível abordá-las numa visão panorâmica como
é a presente. Para uma análise detalhada da questão das medidas versus metas, entre
outras, vide Miguel Poiares Maduro, António Frada e Leonardo Pierdominici, A crisis between
crises: placing the Portuguese Constitutional jurisprudence of crisis in context, Revista
Eletrónica de Direito Público, Vol. 4, Num. 1, 2017. Por exemplo: «[a]s regras do Semestre
Europeu e a governança do Euro não se limitam a estabelecer determinados objetivos quanto
à dívida ou ao défice. Na verdade, o Direito da União também impõe obrigações quanto ao
específico modo como os Estados devem assegurar estas metas de défice, no [braço]
“preventivo” e, em particular, no procedimento por défice excessivo (o “braço corretivo” do
PEC)», pág. 24, e «as recomendações do Conselho adotadas no âmbito dos regulamentos
do PEC, designadamente as que se dirigem aos Estados-Membros em procedimento por
défice excessivo, são atos jurídicos da UE, que não deixam de produzir efeitos jurídicos em
relação aos Estados-Membros aos quais se dirigem. Pelo contrário, trata-se de recomendações
sui generis, com força vinculativa decorrente do Tratado e das normas dos regulamentos da
UE que (sob cominação de sanções) mandatam os Estados-Membros para darem cumprimento
a essas recomendações e para as levarem à prática», págs. 28 e 29, inter alia.
6
Todas as concretas decisões sobre as quais nos debruçaremos (Acórdãos n.ºs 399/2010,
396/2011, 353/2012, 187/2013, 474/2013 e 862/2013) são consideradas como parte integrante
da referida jurisprudência, mas não constituem a sua totalidade. Outras foram tomadas pelo
Tribunal relativamente a medidas de austeridade. Todavia, estas foram as mais paradigmáticas.
7
Vide Maria Benedita Urbano, A jurisprudência da crise no divã. Diagnóstico: bipolaridade?, in
Gonçalo de Almeida Ribeiro e Luís Pereira Coutinho (coord.), O Tribunal Constitucional e a
Crise, Coimbra, Almedina, 2014: «(...) é possível concluir que, pontualmente, ele [o Tribunal]
se rendeu demasiado depressa aos argumentos do legislador, optando por uma decisão em
que não expandiu ao máximo, como habitualmente, o alcance das normas constitucionais
em prol de uma sua leitura mais rights friendly (...)», pág. 17.
8
Por exemplo: «[e]sta ablação é cumulada com as prévias reduções já impostas no ano
anterior» e «estas medidas terão uma duração de três anos (2012 a 2014), o que determinará
a produção de efeitos cumulativos e continuados dos sacrifícios ao longo deste período, a
que acresce o congelamento dos salários e pensões do setor público, verificado nos anos
de 2010, 2011 e 2012, e cuja manutenção nos anos seguintes se encontra prevista nos
memorandos que consubstanciam o PAEF, o que, conjugado com o fenómeno da inflação,
resulta numa redução real desses salários e pensões equivalente às taxas de inflação
verificadas em todos esses anos.»
9
Maria Benedita Urbano, op. cit., pág. 15.
10
Ana Maria Guerra Martins, Constitutional Judge, Social Rights and Public Debt Crisis — The
Portuguese Constitutional Case Law, Maastricht Journal of European and Comparative Law,
Volume 22, num. 5, 2015, pág. 688. A ideia de que as medidas teriam de ser temporárias e
transitórias, em coerência com a circunstância de apenas serem aceitáveis em virtude de
circunstâncias excecionais, constituiu uma linha transversal a toda a jurisprudência da crise.
11
Gonçalo de Almeida Ribeiro, O Constitucionalismo dos Princípios, in Gonçalo de Almeida
Ribeiro e Luís Pereira Coutinho (coord.), op. cit., pág. 81.
12
Vide Jorge Reis Novais, Em defesa do Tribunal Constitucional, Coimbra, Almedina, 2014, pág. 83.
13
Gonçalo de Almeida Ribeiro, op. cit., págs. 82 e ss..
0DULD /~FLD $PDUDO -RVp %RUJHV 6RHLUR &DUORV 3DPSORQD GH 2OL-
veira; João Cura Mariano; Rui Moura Ramos (Acórdão n.º 399/2010)
&DUORV3DPSORQDGH2OLYHLUD-&XQKD%DUERVD-RmR&XUD0DULDQR
(Acórdão n.º 396/2011)
&DWDULQD6DUPHQWRH&DVWUR&DUORV3DPSORQDGH2OLYHLUD-&XQKD
Barbosa; Vítor Gomes; Maria Lúcia Amaral; Rui Moura Ramos (Acór-
dão n.º 353/2012)
MXt]HV $FyUGmR Q
0DULD/~FLD$PDUDO-RVpGD&XQKD%DUERVD$FyUGmRQ
0DULD GH )iWLPD 0DWD0RXURV 0DULD -RVp 5DQJHO GH 0HVTXLWD
(Acórdão n.º 862/2013)
14
Ana Maria Guerra Martins, op. cit., págs. 697 e 698.
15
Jorge Reis Novais, op. cit., pág 93. A ideia de que o TC atuou como devia é defendida
passim, por exemplo: «[c]olocada assim a questão [“afinal, está ou não o Tribunal
Constitucional a meter-se na política?”], a resposta só pode ser: sim, está a meter-se na
política e faz bem. Para ser ainda mais claro, a função do Tribunal Constitucional quando faz
fiscalização da constitucionalidade das leis obriga-o a meter-se na política, pela razão muito
simples de que, em Estado de Direito democrático, a lei é política, a lei é a expressão, por
excelência, das opções e do programa políticos do Governo e do Parlamento, isto é, do
legislador democrático. Logo, não existe fiscalização da constitucionalidade de leis que não
obrigue o Tribunal Constitucional a meter-se na política», pág. 82, «(...) as normas
constitucionais, todas elas, sem exceção, prevalecem sobre a lei, são resistentes ao legislador,
se a lei as atacar, elas resistem», pág. 145, e «[os críticos do Tribunal Constitucional]
sistematicamente [concluem] que a ponderação foi adequada sempre que o Tribunal não
declarou a inconstitucionalidade das medidas de austeridade, mas já teria falhado o espírito
da releitura constitucional sempre que o resultado da ponderação foi o da inconstitucionalidade»,
pág. 168, entre muitas outras.
Nesta primeira decisão, anterior à assinatura dos MdE, havia duas ques-
tões a apreciar: um aumento generalizado das taxas de IRS e a criação de
um novo escalão deste imposto para contribuintes com rendimentos mais
elevados. Estas medidas foram impugnadas com fundamento na proibição da
retroatividade das leis fiscais (artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República
Portuguesa).
O Tribunal reiterou a sua jurisprudência anterior, afirmando que a única
forma de retroatividade proibida pela Constituição é a designada “retroatividade
própria”, e não a “retroatividade imprópria”17, que o Tribunal considerou estar
em causa.
Os votos de vencido, neste caso, incluíam: 1) os juízes que consideravam
que a retroatividade inautêntica também era proibida pela Constituição; e 2)
aqueles que consideravam que, embora a retroatividade imprópria não fosse
completamente proibida, essa avaliação teria que ser feita caso a caso, atra-
vés de uma ponderação de outros valores constitucionais, designadamente
os da proteção da confiança e da proporcionalidade.
16
Como veremos adiante, muitas destas decisões, especialmente as que dizem respeito ao
controlo de normas dos Orçamentos do Estado, apreciaram um grande número de questões.
17
A diferença entre os dois conceitos pode ser sumariamente explicada do modo seguinte: a
retroatividade própria refere-se às hipóteses em que uma lei nova pretende aplicar-se a factos
já ocorridos e que já produziram os respetivos efeitos jurídicos (p. ex., o meu rendimento de
um certo ano já foi determinado, bem como o imposto devido sobre tal rendimento); a
retroatividade imprópria, por outro lado, refere-se a hipóteses em que a lei nova pretende
aplicar-se a factos que já ocorreram, mas não produziram os respetivos efeitos jurídicos (p.
ex., o meu rendimento de um certo ano já foi determinado, mas o imposto devido sobre tal
rendimento não o foi).
18
Esta última questão não será aqui abordada.
4. CONCLUSÕES
Seria injusto concluir sem dizer que o Tribunal deu o seu melhor em cir-
cunstâncias extremamente difíceis, pressionado, de um lado, por entidades
políticas para permitir medidas vistas como essenciais para o cumprimento de
objetivos financeiros e, de outro, pelo seu próprio dever de defesa da Consti-
tuição e pelas pessoas que viram os seus direitos diminuídos e restringidos.
Foi obrigado a navegar em águas muito turbulentas, entre assegurar que os
direitos constitucionalmente protegidos eram preservados e, simultaneamente,
não se alhear da situação excecional e dos compromissos internacionais.
A natureza fortemente política de muitas questões também gerou, nessa
altura, acusações aos juízes por decidirem alinhados com os partidos políticos
que os indicaram para o Tribunal19. Esta acusação foi categoricamente infir-
mada num estudo conduzido por um reputado periódico português.
19
Em Portugal, a maioria dos juízes do TC é eleita pelo Parlamento. A necessidade de uma
maioria de 2/3 e a eleição com base em lista têm implicado, na prática, que os dois maiores
partidos cheguem a consenso, distribuindo equitativamente os 10 lugares entre si, na
proporção da sua representatividade de cada um.