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HISTÓRIA DAS AMÉRICAS EM DEBATE - MANTOVANI, Giovana
HISTÓRIA DAS AMÉRICAS EM DEBATE - MANTOVANI, Giovana
HISTÓRIA DAS AMÉRICAS EM DEBATE - MANTOVANI, Giovana
Introdução
A história dos mecanismos de conquista e colonização do amplo continente
americano suscitou debates seculares nas instituições produtoras de conhecimento.
A dominação europeia nesse novo continente – protagonizada sobretudo pelos reinos
da Espanha e da Inglaterra – constituiu um tema muito discutido desde o século XV.
A multiplicidade dos sistemas políticos e econômicos ali implantados acabou por dotar
a história americana de pluralidades, aquando da própria historiografia falar da
existência de Américas, no plural, em detrimento de uma realidade uniforme e
homogênea. No entanto, fosse sob o aspecto de uma extensão do reino metropolitano
ou como um refúgio de outsiders europeus – suscitando o termo de Norbert Elias
(2000) –, a colonização das Américas contou com a mão de obra escrava, ora
fornecida pelos habitantes locais, ora “importada” do continente africano.
Vinculada a mecanismos institucionais ou culturais, a dominação de povos e o
trabalho escravo integrou a história americana. Embora remeta ao ínterim pré-
colombiano e anteceda o contato intercontinental, a escravidão foi maximizada e teve
seus impactos amplificados a partir dos séculos XV e XVI, tornando-se a principal
força de trabalho em grande parte do continente e modelando as relações sociais,
econômicas e culturais. A escravidão, portanto, consistiu em uma instituição
integrante da história americana, cujo estudo se torna preeminente nas análises
acerca da conquista e colonização do Novo Mundo. Tal constatação perdura mesmo
diante dos múltiplos sistemas políticos implantados pelas distintas metrópoles
europeias, historicamente diversas em suas constituições culturais.
A América, secularmente isolada do restante do globo, havia tido uma história
distinta e livre de grandes influências externas. Assim, foi uma complexa interação de
fatores internos que, no alvorecer do século XVI, deu muitas formas às diversas
sociedades indígenas: estados altamente estruturados, senhorias mais ou menos
estáveis, tribos e grupos seminômades ou nômades (WACHTEL, 2018). Seria nesse
mundo notoriamente autossuficiente que um amplo impacto brutal e sem precedentes
ocorreria a partir da invasão dos homens europeus – os quais comungavam de uma
realidade profundamente diferente. No que concerne ao processo de conquista e
colonização espanhola, a reação dos americanos nativos diante da invasão hispânica
teria variado consideravelmente: de ofertas de aliança a uma colaboração
parcialmente forçada, de uma resistência passiva a uma hostilidade permanente –
como apontam as obras de Bartolomé de Las Casas (BRUIT, 1995). No entanto, em
toda parte, a chegada desses homens causaria um amplo impacto e espanto, não
menos intenso entre os próprios conquistadores: “ambos os lados estavam
descobrindo uma nova raça de homem de cuja existência jamais haviam suspeitado.”
(WACHTEL, 2018, p. 195).
Embora muito se discorreu sobre o trauma da conquista espanhola – fosse
ressaltando sua importância para homologar uma efetiva mundialização do globo
(MARKS, 2007) ou para a criação de uma rede econômico-cultural concreta
(MCNEILL, MCNEILL, 2010) –, fato é que a chegada do europeu nos impérios pré-
colombianos causou uma desestruturação no modelo político, religioso e cultural
daqueles povos. Afinal, o governo espanhol, ao mesmo tempo em que fazia uso das
instituições nativas, realizava sua desintegração, deixando apenas estruturas parciais
que sobreviveriam fora do contexto coerente que lhes havia dado sentido. Assim, “As
consequências destrutivas da conquista afetaram as sociedades nativas em todos os
níveis: demográfico, econômico, social e ideológico.” (WATCHEL, 2018, p. 200). No
plano eclesiástico, por exemplo, muitas discussões foram feitas para compreender a
compatibilidade da “descoberta” do Novo Mundo com as palavras bíblicas (SANTOS,
NETO, 2011). Muitos dos interesses dos invasores consistiam na extração de
minérios, especialmente a prata e o ouro, muito apreciados na Europa e na China.
Para tanto, a mão de obra indígena desempenhou um importante papel na economia
extrativa implantada pela Coroa espanhola, ao longo de todo o período colonial e
ainda no alvorecer dos primeiros Estados Nacionais do século XIX.
Apesar do descenso demográfico dos indígenas ocasionado pela invasão e
colonização espanhola – as estimativas apontam para uma redução de 90% da
população nativa ainda no século XVI (WATCHEL, 2018) –, o trabalho escravo na
América espanhola foi composto majoritariamente pelos povos locais. O frade
dominicano Bartolomé de Las Casas (1484-1566) dedicou diversas obras ao
comportamento dos indígenas diante da conquista espanhola e suas observações
podem ser estendidas para grande parte do período de existência da escravização
dos nativos (BRUIT, 1995). Sob uma aparente insolência e preguiça, os nativos
submetidos ao sistema escravista buscavam formas de resistência aos mecanismos
institucionais de dominação que frequentemente se manifestavam de forma
mascarada e implícita. Dentre os modelos de resistência adotados pelos indígenas foi
a tentativa de manutenção dos códigos linguísticos e culturais frente às imposições
homogeneizantes da Coroa espanhola. Além da comunicação em dialetos locais,
muitos dos povos buscavam perpetuar seus costumes e valores através de ritos ou
canções, todos mascarados e infiltrados no sistema colonial.
A música como subterfúgio de resistência não se restringiu aos indígenas da
América espanhola. Embora com significados e contextos distintos, a música como
instrumento de resistência política e cultural esteve presente em outra porção do
continente americano: aquela dominada pela Inglaterra. É um consenso que a mão
de obra indígena desempenhou um papel menos determinante na economia agrícola
implantada nas chamadas Treze Colônias Inglesas – localizadas no leste do atual
território dos Estados Unidos –, onde o trabalho africano seria de maior
predominância. Os negros “importados” do continente africano teriam sido levados
majoritariamente à porção sul da área das Treze Colônias, sendo complementares à
mão de obra servil e livre. Para esses povos, submetidos ao tráfico intercontinental de
escravos, a língua e a cultura inglesa foram de maior receptividade quando
comparadas à adoção do espanhol pelos indígenas nas colônias hispânicas. Não
deve nos surpreender que as músicas cantadas pelos escravos africanos no território
inglês incorporassem elementos da religião cristã e fossem cantadas na língua
inglesa. Nesse contexto, os spirituals desempenharam um importante papel, não
somente por constituir um meio de expressão, mas sobretudo por seu conteúdo servir
de esperança aos negros e inspirá-los a uma resistência frente à dominação.
O presente trabalho visará discorrer acerca da importância das músicas na
escravidão indígena nas colônias espanholas e na escravidão africana nas colônias
inglesas, destacando-as como mecanismos de resistência cultural e política. O texto
está estruturado em um tópico central responsável por aprofundar o debate, assim
como de uma conclusão.
Referências Bibliográficas
ALCOCER, Paulina. Un siglo de estudios sobre la literatura y los cantos rituales
uitotos. Latinoamérica, México, n. 02, 2015, p. 185-202.
BRUIT, Héctor. Bartolomé de Las Casas e a simulação dos vencidos. São Paulo:
Iluminuras, 1995.
ECHEVERRI, Juan Álvaro. The People of the Center of the World: A Study in
Culture, History, and Orality in the Colombian Amazon (Estudo de Pós-doutorado).
Nueva York New School for Social Research, 1997.
MARKS, Robert B. Los orígenes del mundo moderno. Una nueva visión.
Barcelona: Crítica, 2007.
MCNEILL, William H., MCNEILL, J. R. Las redes humanas: Una historia global del
mundo. Barcelona: Booket, 2010.
RANGEL, Fernando Urbina. Las hojas del poder: relatos sobre la cosa entre los
Uitotos y Muinanes de la Amazonia colombiana. Bogotá: Centro Editorial de la
Universidad Nacional
de Colombia, 1992.