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2018 Capliv Lgalvesajsales
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Introdução
Adentrar ao estudo das letras cearenses é, além de uma possibili-
dade de busca pela própria identidade, permitir-se à descoberta da rele-
vância dessa ficção no cenário nacional, uma vez que as próprias grades
curriculares das licenciaturas em Letras contemplam, em suas disciplinas
de literatura brasileira, alguns dos autores cearenses de maior destaque,
entre eles, José de Alencar, cujo trabalho foi indiscutivelmente significativo
para a criação do romance brasileiro, e Rachel de Queiroz, consagrada en-
tre os cânones da literatura nacional e cuja obra é marcada pela riqueza de
abordagens temáticas.
Conhecida por produzir uma obra de cunho crítico-social em ra-
zão de seu forte caráter de denúncia da condição humana, particularmente
feminina, neste romance a escritora cearense não faz diferente. Ela traz
à cena tipos aprisionados, quando não entre quatro paredes, dentro de si
mesmos, conferindo, inclusive, um cunho existencial à narrativa.
Este mesmo teor de criticidade estende-se também à forma como
as infâncias que aparecem representadas na trama são configuradas, re-
velando a gritante disparidade econômica presente no contexto social que
vitimiza essa tenra idade. Portanto, é com base nessas múltiplas possibili-
dades de enfoque sobre a obra racheliana que este artigo objetiva investigar
a infância, tomando como corpus seu quarto romance, "As três Martas"
Nos romances anteriores, Rachel nos mostrava uma grande preo-
cupação de cunho social e, desta forma, discorria sobre seu compromisso
com os nordestinos. Em "As três Marias", Rachel inaugura uma nova faceta
de suas obras, uma visão mais de cunho psicológico (FONTES, 2012). Para
esta mesma estudiosa:
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COUTINHO, 2012) para referir-se aos assuntos próprios das vivências hu-
manas considerados universais como o amor, o medo, a morte, dentre ou-
tros. Logo, ao adentrar nos saberes da infância, usufrui-se da possibilidade
de auto conhecimento, de ampliação do saber acerca das complexidades
que compõem o arcabouço de experiências do ser humano.
Ao desenvolver estudos tematizados pela infância, estamos contri-
buindo na difusão dos variados modos como cada área do conhecimento
lida com essa categoria. Consequentemente, descobrimos também o modo
como as diferentes sociedades visualizam essa fase da vida. Na base filosó-
fica ocidental, por exemplo, a criança é vista como um animal que precisa
ser disciplinado. Segundo Gagnebin (1997), a infância e o pensamento fi-
losófico possuem estreitos vínculos: as crianças costumam levantar ques-
tionamentos filosóficos para os adultos; também porque os filósofos po-
dem ser comparados a crianças que brincam com coisas difíceis e ignoram
questões importantes da vida adulta.
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E além, rodeando outros pátios, abrigando outras vidas
antípodas, lá estavam as casas do orfanato, onde meni-
nas silenciosas,vestidas de xadrez humilde, aprendiam
a trabalhar, a coser, a tecer as rendas dos enxovais de
noiva que nós vestiríamos mais tarde, a bordar as ca-
misinhas dos filhos que nós teríamos, porque elas eram
as pobres do mundo e aprendiam justamente a viver e a
penar como pobres. (QUEIROZ, 2009, p. 25)
Luciano, irmão de Maria José, é uma criança que vive sob os maus-
-tratos da mãe, a qual tem com ele modos que comumente fazem parte da
rotina de muitas crianças, batendo, colocando apelidos e tratando como
alguém sem importância. Essa forma de dona [úlia lidar com o pequeno
Luciano não difere do modo como outras coletividades em outros períodos
do tempo tratavam as crianças. Isso é ratificado pela defesa de Peter Stearns
(2006), que discorre sobre a variação de comportamento de diferentes so-
ciedades no tocante à criança, afirmando o seguinte:
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dos filhos, enfim, foram ocorrendo, ao longo dos tempos, mudanças na for-
ma de se visualizar a infância e, consequentemente, passou-se a ter cuida-
dos especiais com relação à saúde, educação, alimentação, enfim, foi dada
maior atenção aos indivíduos dessa fase.
Cada uma das crianças, que aparecem no livro, carrega o peso de
alguma consequência dos atos adultos: as meninas do grupo desprivilegia-
do são obrigadas a trabalhar e são claramente excluídas dos mesmos privi-
légios do outro grupo de meninas. Praticamente todas são órfãs e vieram
de vários lugares do mundo, portanto, vivem no internato por caridade e
pagam um alto preço por esse favor que lhes é dado.
Luciano vive sob a égide do abandono do pai, exprimindo rebeldia e
carência de afeto. Há também Iandira, amiga de Guta, que mesmo criança,
tem a responsabilidade de cuidar da irmã mais nova. Iandira é bastante
rejeitada por ser considerada "filha do pecado": a mãe é prostituta e o pai
é casado, o que para a época era escandaloso e, para [andira, um aspecto
definido r de toda a sua vida passada, presente e futura.
Como é possível verificar, nem a infância é isenta das tragédias da
vida, conforme a seguinte passagem explicita: "Agente pensa que a infância
ignora os dramas da vida. E esquece que esses dramas não escolhem opor-
tunidade nem observam discrição, exibem-se, nus e pavorosos, aos olhos
dos adultos e aos dos infantes, indiferentemente [...]" (p. 70). Todas as
crianças, neste romance, sem distinção, vivem imersas em um halo de con-
flitos, embora não tenham consciência disso, pois nem elas são poupadas.
Há momentos em que a infância, para as meninas, representa uma
espécie de aprisionamento perpétuo que sufoca e priva a vivência de todas
as outras fases, conforme se nota neste trecho: "O ar dali nos sufocava, pa-
recia-nos que nos impunham anos excessivos de infância. Sentíamos uma
sensação humilhante de fracasso, de retardamento, de mocidade perdida"
(QUEIROZ, 2009, p. 78). Toda essa sensação era provocada pela clausura
do colégio interno e deixava as meninas abatidas de tal forma que se torna-
vam sem perspectivas para o enfrentamento da vida pós-internato. Parecia
que a idade adulta que se aproximava limitava-se ao aspecto cronológico,
uma vez que a maturidade e as vivências das experiências ligadas à ela eram
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Considerações finais
As imagens da infância evocadas no romance «As três Marias" re-
metem-nos a conotações variadas. Nota-se que a noção de infância feliz
está bastante atrelada à estrutura familiar: Luciano vivencia certos conflitos
provocados pelo abandono do pai e os maus-tratos da mãe que vive bata-
lhando sozinha para garantir o sustento da família; Guta, que na primeira
fase, a qual ela considera ser dividida sua infância, vive momentos felizes
de muita diversão ao lado da mãe e do pai, já na segunda fase, ela considera
sua infância triste, pois é o período em que sua mãe morre e ela passa a
viver com a segunda família, fruto do segundo casamento do pai; Maria
da Glória, que tem uma das histórias mais dramáticas por ter sido cuidada
apenas pelo pai, já que a mãe faleceu durante o nascimento da filha, e sua
infância toda se resume ao luto dela e do pai.
Há, ainda, Maria José, que vivencia dentro de si uma série de con-
flitos, porém, diferente dos outros, ela se refugia na religião, buscando em
suas missas e orações uma válvula de escape para esquecer de todos os
seus dramas. Estes personagens constituem o núcleo da trama .narrativa,
mas há várias outras crianças que aparecem no contexto do livro e que
são, igualmente, atravessadas por problemáticas ligadas ao desequilíbrio
do seio familiar.
No caso do livro em questão, pode-se falar de múltiplos conceitos do
ser criança, isso porque no enredo há uma pluralidade de perfis de infân-
cias: mesmo tendo como ponto comum a desestruturação familiar gerada
pela ausência de uma das figuras, paterna ou materna, ou, em certos casos,
dos dois, há a compreensão de infância enquanto um aprisionamento por
não permitir ao sujeito usufruir de certas experiências restritas aos adultos.
Existe uma infância atrelada à privação de prazeres próprios da in-
fância, como brincar, ou mesmo estudar, viver dignamente como qualquer
criança sem ter que trabalhar e assumir responsabilidades por si e por ou-
tros, como no caso das meninas órfãs que viviam no internato por cari-
dade das freiras; há também a noção de infância como uma fase boa que
se resume a brincadeiras, gritaria, sujeira, travessuras e banhos de chuva,
Referências
QUEIROZ, Raquel de. As Três Marias. 25 ed. Fortaleza: José Olympio Edi-
tara, 2009.
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