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Hoje Eu Venci o Câncer - David Coimbra
Hoje Eu Venci o Câncer - David Coimbra
Hoje Eu Venci o Câncer - David Coimbra
“Meu bem, guarde uma frase pra mim dentro da sua canção.
Esconda um beijo pra mim nas dobras do blusão.”
Pressa de viver. Quando a morte não estava por perto, eu tinha mais
pressa de viver. Não deveria ser o contrário?
Hoje bem poderia pedir para a vida, como pediu Belchior: vida, pisa
devagar, meu coração, cuidado, é frágil.
Hoje não tenho pressa de viver.
Por que cantava, mesmo sentindo dor?
Por ter certeza de que a dor passaria. A verdade é que sou um otimista.
Não.
Pensando bem, não.
Não sou exatamente um otimista, e sim um realista apreciador da vida.
Aceito as vicissitudes da existência como naturais, não fico procurando
sentido em tudo. Você não é necessariamente culpado pelas coisas ruins que
lhe acontecem, nem necessariamente merecedor das boas.
Vou me socorrer de Freud mais uma vez. Tenho cá nas minhas estantes
um ótimo livro intitulado A arte da entrevista, organizado por Fábio Altman,
publicado pela Scritta em 1995. São várias entrevistas concedidas por
homens célebres que viveram nos séculos XIX e XX, entre eles o gênio que
inventou a psicanálise e descobriu a grande verdade: que as mães (ou seja, as
mulheres) são culpadas de tudo. Pois são!
O entrevistador de Freud foi o jornalista americano George Sylvester
Viereck, que o encontrou em sua casa de veraneio nos Alpes Austríacos, em
1926. Freud tinha então setenta anos de idade e o câncer já lhe devorava o
maxilar. Treze anos depois, não suportando mais a miséria e a dor causadas
pela doença, pediu para que seu médico de confiança lhe abreviasse a vida e
o padecimento com três superdoses de morfina. Morreu em paz, suavemente,
como se deve morrer.
Três superdoses de morfina. Se um homem precisar, onde haverá de
encontrar?
Mas por ora estou mais interessado em superdoses de cerveja. Não
uísque. Uísque mata. Lembre-se disso: uísque mata, e nós não queremos
morrer.
Mas a entrevista.
Viereck abre a entrevista com ponderações de Freud exatamente sobre
certos dramas inexoráveis da existência, como a velhice e a doença.
“Setenta anos de idade me ensinaram a aceitar a vida com alegre
humildade”, disse ele, passeando pelos jardins da sua casa alpina. “Ainda
prefiro viver a morrer. Talvez os deuses sejam generosos conosco, tornando a
vida mais desagradável à medida que envelhecemos. No final, a morte parece
mais tolerável do que os muitos problemas que temos de enfrentar.”
Freud como que antecipava seu fim com essa declaração. Prosseguiu:
“Por que eu devia esperar por algum privilégio? A idade, com seus
visíveis desconfortos, chega para todos. Ela atinge um homem aqui, outro lá.
O seu golpe sempre atinge uma parte vital. A vitória final sempre pertence ao
Conqueror Worm”.
Aí Freud se referia a “O Verme Conquistador”, poema de Edgar Allan
Poe:
Freud continuou:
“Não me revolto contra a ordem universal. Afinal, vivi mais de setenta
anos. Eu tive o que comer. Desfrutei de muitas coisas – do companheirismo
da minha esposa, dos meus filhos, do pôr do sol. Eu vi as plantas crescerem
na primavera. Algumas vezes recebi um aperto de mão amigo. Uma ou duas
vezes encontrei um ser humano que quase me entendeu. O que mais eu posso
querer?”.
Lindo.
O que Freud queria dizer em 1926, e o que quero dizer agora, é que
viver é bom.
Então, sentia-me feliz, quando me dirigia para aquele exame. Nem
suspeitava do que ocorreria nas horas seguintes.
3
1. Beleza e espírito
Tenho que dizer, a despeito dos narizes torcidos das feministas, que nós
homens preferimos as mulheres belas. Sim, a beleza nos comove, somos
todos olhos nos primeiros contatos.
Nos primeiros.
Depois, muda, vai mudando. Porque a mulher precisa ter espírito,
também. Senão, o que sustenta a conversa e o feitiço entre a taça de
champanhe de abertura e o cálice de conhaque de encerramento de um longo
e dispendioso jantar em um restaurante francês?
Espírito. Sim, senhor.
E que gêneros de mulheres têm beleza e espírito?
Direi logo ali.
2. Lindas e mudas
Não procure mulheres de beleza e espírito entre as modelos. As
modelos são lindas, óbvio, ou não seriam modelos “de beleza”. A profissão
de uma modelo é ser bonita. Mas uma modelo, o que uma modelo faz? Ela
caminha pela passarela colocando um pé diante do outro, faz cara de braba,
para, estica o pescoço, gira e vai embora. No fim do desfile, ela aparece
sorrindo e batendo palmas atrás do costureiro, hoje promovido a estilista.
E só.
Uma modelo é muda. Não está acostumada às palavras. Logo, não está
acostumada a raciocinar. Quando ouço a Gisele Bündchen falando,
estremeço. Sinto que há alguma coisa errada ali. A voz dela não passa
confiança, sei que ela não está pensando no que fala, que é tudo ensaiado.
Muito esquisito. Não, não procure mulheres de espírito entre as modelos.
AVA GARDNER
“Quando eu perco a calma, queridos, vocês não encontram em lugar
nenhum.”
“No fundo, eu sou muito superficial.”
“Quero viver até os 150 anos, mas no dia em que eu morrer, desejo que
seja com um cigarro em uma mão e um copo de uísque na outra.”
“O que eu realmente gostaria de dizer sobre o estrelato é que ele me
deu tudo o que eu nunca quis.”
MAE WEST
A atriz frasista campeã é Mae West, sem dúvida. Beba de algumas:
“Ama teu próximo. Mas, se ele for alto, moreno e bonitão, será bem
mais fácil.”
“A melhor forma de se comportar é comportar-se mal.”
“A virtude tem suas vantagens, mas não dá bilheteria.”
SHARON STONE
A nossa loira Sharon Stone foi quem disse exata e precisamente o que
eu disse nesse texto. A frase imortal de Sharon, tão imortal quanto sua
cruzada de pernas, é a seguinte, em palavras publicáveis em um jornal de
família como esse:
“A união da inteligência com a (nome chulo do órgão sexual feminino)
é invencível.”
E é.
Outra boa da Sharon:
“O humor é uma forma de ser valente.”
E é.
4
ESSA É A HISTÓRIA DO ÚLTIMO DIA em que vi meu pai. Minha mãe ficou
sozinha com os três filhos, sem posses, sem pensões e com o salário de
professora primária de colégio estadual. Não era fácil sobreviver.
Estávamos em situação precária. Como os filhos ela não abandonaria, o
que abandonou foi o magistério. Alguns meses depois daquela noite de
chuva, minha mãe começou a vender coleções de livros da Abril Cultural.
Eu adorava aquelas coleções. Cevava-me nelas. “Conhecer” é a
enciclopédia clássica, mas minhas preferidas eram “Grandes Personagens da
Nossa História” e “Grandes Personagens da História Universal”. A melhor
coleção de gastronomia do país é a velha “Bom Apetite”, mas essa só fui
apreciar de fato quando morava sozinho e tinha de me virar na cozinha.
Adulto, consegui encontrar algumas daquelas coleções nos sebos e as
comprei sofregamente. Tenho a maravilhosa “Gênios da Pintura”, recomendo
com entusiasmo. E também a “Enciclopédia da Luta Contra o Crime”, hoje
em dia defasada se você quiser lutar contra o crime, mas ainda uma leitura
deliciosa se você quiser apenas saber sobre antigos casos de mistério ou
conhecer velhos criminosos, como, por exemplo, Jesse James, o
Estrangulador de Boston ou o Vampiro de Londres.
Essas coleções, a venda de cada uma delas correspondia a certa
quantidade de pontos para o vendedor. “Conhecer”, dois pontos; “Gênios da
Pintura”, três. Por aí. A soma de determinado número de pontos valia uma
comissão maior no fim do mês ou algum brinde.
Um dia, a direção da editora anunciou que sortearia um carro entre os
vendedores. Para concorrer, seria preciso acumular determinado número de
pontos. Minha mãe ficou empolgadíssima. Ela precisava muito de dinheiro.
Antes de ela começar a vender os livros nós não tínhamos nem
geladeira, nem TV, nem um monte de outras coisas que as pessoas têm. Por
exigência do meu pai, saímos da casa em que morávamos no Parque
Minuano, Zona Norte profunda de Porto Alegre, e fomos para um
apartamento de um quarto na avenida Assis Brasil.
Tenho certo carinho pela Assis Brasil, porque cresci em suas cercanias,
mas reconheço que, além de ela ser uma das mais extensas ruas do Estado, é
também uma das mais feias.
Porto Alegre é uma cidade arborizada. Nos anos 70, um prefeito,
Guilherme Villela, mandou plantar mais de um milhão de árvores nas ruas.
Esqueceu-se da Assis Brasil. Talvez nem houvesse espaço para as
amenidades do verde nessa avenida de subúrbio, de baixo comércio,
alimentada pela afluência de ruazinhas de calçamento irregular, onde moram
famílias de trabalhadores das classes C e D da capital.
Quero dizer, com isso, que não é exatamente agradável morar na Assis
Brasil. E lá estávamos nós, naquele apartamento frio e desprovido de
conforto, até que minha mãe decidiu comprar TV e geladeira a fim de
suavizar nossas condições. Adquiriu-as em dezenas de prestações numa
antiga loja de departamentos chamada Ibraco.
Lembro da minha mãe sentada na cama à noite, com os carnês no colo,
fazendo contas, desesperada com os juros que inchavam o valor das
prestações como se fossem uma infecção. Toda semana vinha uma cartinha
da loja ou do SPC. Passei a odiar aquela Ibraco.
Quando minha mãe trocou o magistério pela venda de enciclopédias, as
coisas melhoraram lá em casa, mas o apartamento continuava ruim como no
dia em que ela o alugou: apertado, encardido, tomado por baratas. Eu
detestava o apartamento e o edifício tanto quanto a loja Ibraco. Às vezes
ainda sonho com aquele lugar, e nunca é um sonho bom.
Então, precisávamos sair de lá, e minha mãe contava com o sorteio do
carro para isso. Eu achava comoventemente ridícula aquela esperança:
imagine, apostar tudo em um sorteio, apostar no imponderável. Aos oito anos
de idade, era mais cético do que ela. Talvez os embates com meu pai tenham
me amadurecido precocemente. Minha mãe conta que, aos cinco anos de
idade, eu o confrontava quando ele chegava bêbado em casa. Apontava-lhe o
dedo e acusava:
– Irresponsável!
Aí, claro, ele me batia.
Minha mãe tentava evitar que entrássemos em conflito. Quando meu
pai vinha chegando, quase sempre bêbado, ela mandava que eu e minha irmã
corrêssemos para a cama e fingíssemos que estávamos dormindo. Do escuro
do quarto, cheios de medo, escutávamos as vozes alteradas dos dois, que
discutiam na cozinha.
Meu pai era daquela geração de homens que se desnorteou com as
mudanças do mundo. A nova liberdade sexual e a velha necessidade de
prover uma família convivendo juntas. Ele havia casado jovem, como era
norma na época – 22 anos. Certamente havia ânsia de liberdade nele e o
casamento lhe parecia uma prisão. Lembro de um domingo de sol em que eu
estava brincando no pátio, e minha mãe, ao aprontar o almoço, pediu:
– David, vai ali ao clube e chama teu pai pra almoçar.
O clube ficava no fim do quarteirão. Nossa rua era tranquila e, naquele
tempo, um menino de seis anos de idade podia sair para chamar o pai logo
adiante, que não havia perigo. Então, fui. Encontrei meu pai sentado a uma
mesa, bebendo com uns quatro ou cinco amigos.
– Pai, a mãe está te chamando pra almoçar – avisei.
Os amigos caçoaram:
– Ih, olha aí... a polícia veio te buscar...
Meu pai se tomou de brios de macho.
– Vou ficar mais um pouco. Espera aí, guri!
Aquilo me deixou ansioso. Fiquei parado ao lado da mesa, nervoso,
insistindo:
– Vem pai, vem pai...
Ele não ia.
Quando finalmente se levantou, fraquejou das pernas. Saiu do clube
cambaleando. Ao chegarmos à rua, caiu. Desabou no leito de
paralelepípedos, encostado ao meio-fio.
– Pai! – eu chamava. – Pai!
Tentava erguê-lo, mas ele era pesado demais para mim. E agora? O que
faria? Se o deixasse ali para ir chamar a mãe, algo podia acontecer com ele.
Se ficasse, seria de pouca valia. Devia sair ou devia ficar? Sair ou ficar?
Ainda estava neste impasse quando chegou um vizinho e acudiu. Ergueu meu
pai e o levou para casa.
Esse contato com a realidade mais crua da vida deve ter sido a causa da
minha maturidade precoce. Por isso, naquele episódio do sorteio, duvidava e
sentia pena da minha mãe: de onde havia tirado a ideia de que com certeza
venceria?
Não sei de onde, mas o fato é que ela acalentava essa certeza. Por isso,
batalhou a fim de somar os tais pontos necessários para entrar no concurso.
Antes de sair para uma venda, ela me mostrava a foto do carro que estaria em
disputa: um flamante Chevette, coisa mais linda. Eu olhava e balançava a
cabeça, condescendente:
– Que bom, mãe...
Mas ela não conseguia reunir os pontos para entrar na disputa. Tinha de
apresentá-los na segunda-feira e, no domingo, ainda faltava a venda de uma
coleção. Um pontinho só. Minha mãe trabalhou naquele domingo desde cedo,
pela manhã. Nada. À noite, in extremis, deixou minha irmã e meu irmão
pequenos na casa da minha avó, pegou-me pela mão e anunciou:
– Vamos para o Parque Minuano.
O Parque Minuano era o nosso antigo bairro, em que ficava a casa de
onde tivemos de sair quando ela se separou do meu pai.
No ônibus, perguntei qual era a ideia, e ela disse:
– Vou pedir ajuda para a dona Eunice.
Só de ouvir esse nome, estremeci. Dona Eunice era a diretora do
Costinha, o colégio em que eu estudava e onde minha mãe havia trabalhado
como professora. Ela era algo parecido com uma governanta alemã.
Silenciava uma sala de aula sublevada só com o olhar. Os alunos a temiam,
os professores a respeitavam, seu nome era pronunciado em voz baixa. Dona
Eunice...
Mas ali estava uma diretora que se importava com a escola que dirigia.
São as donas Eunices, disciplinadoras, atentas, exigentes, que fazem as boas
escolas. Numa escola, como em uma empresa ou em qualquer outra
instituição, alguém tem de tomar as decisões, alguém tem de ter iniciativa,
alguém tem de ter autoridade, sem, é claro, precisar usar de autoritarismo. Em
suma, alguém tem de mandar.
Dona Eunice mandava e esperava ser obedecida.
Obedeciam-na.
Pois bem. Ao chegarmos à casa dela, dona Eunice não me parecia
aquele dobermann do Costinha. Não. Estava macia como uma recepcionista.
Recebeu minha mãe com um sorriso e a mim com um carinho na cabeça.
Sentamos no sofá da sala e minha mãe começou o seu discurso: estava ali
para vender-lhe uma coleção de livros e, sim, ela acreditava naquelas
coleções, sabia que qualquer uma seria ótima aquisição, mas não, naquela
noite ela não iria defender a venda com argumentos em favor da qualidade
dos livros, nada disso, ela estava ali para pedir ajuda. Exatamente. Para pedir
ajuda. Precisava vender mais uma coleção, uma única coleção, para entrar em
um sorteio que ela sabia que ganharia e que seria importante para a sua vida.
Era o que tinha a dizer.
Dona Eunice ficou olhando para a minha mãe por alguns segundos e
depois falou com sua firmeza típica:
– Vou te ajudar. Vou comprar essa coleção.
E comprou.
Minha mãe voltou exultante para casa, sorrindo sem parar, enquanto o
ônibus trepidava pela Assis Brasil e, exultante e sorrindo, foi para a cama. O
sorteio seria realizado na noite seguinte.
Na segunda-feira, não lembro de ter visto dona Eunice na escola, mas
lembro de passar o dia pensando no inexplicável otimismo da minha mãe. E
sentindo pena dela. Lembro também de quando ela se despediu de nós, toda
alegre, no fim do dia, antes de ir para o concurso. Deu um beijo em mim e
nos meus irmãos. Acenou para o meu avô, que ia dormir no sofá, e saiu
faceira.
Eu dormia na parte de baixo de um beliche. A minha irmã dormia na
parte de cima. O meu irmão na cama da minha mãe. Fui acordado de
madrugada. Era a mãe, que sacudia meus ombros:
– Ganhei, David! Ganhei!
Esfreguei os olhos:
– Hein?
– Ganhei!
Ela ganhou. Incrivelmente, ela ganhou. Essas coisas não acontecem,
mas daquela vez aconteceu. Ela ganhou.
6
NEM VIMOS O CHEVETTE. Minha mãe vendeu-o sem sequer tirar da loja.
Usaria o dinheiro para adquirir algo importante para nossas vidas, mas, antes
disso, fez uma concessão ao prazer: anunciou que nos levaria para almoçar
fora, eu, meus irmãos e meu avô. Quando ela falou em ir a um restaurante,
me assustei.
– Mãe, tu vai gastar essa fortuna?
Era muito mais caro comer naquela época. Mesmo comer em casa era
mais caro do que hoje. Raramente tínhamos batatinha frita à mesa, porque,
para fritá-las, era necessário derramar dois dedos de azeite na frigideira, e o
azeite era coisa valiosa. Camarão, só de ano em ano. Nos domingos íamos
almoçar na casa do meu avô, no bairro Navegantes. Pegávamos dois ônibus.
No caminho entre uma parada e outra, minha mãe dizia para mim e para
minha irmã:
– Vão olhando para baixo. Se acharmos cinco cruzeiros, compramos
um galeto assado.
Referia-se aos tradicionais galetos de “televisão de cachorro”, aqueles
fornos envidraçados, com espeto rotatório, que existem em botecos de
subúrbio. O galeto fica douradinho e eles colocam junto mais um punhado de
polentas fritas, além da salada de batata. Uma delícia.
Eu pensava no galeto e na nota de cinco cruzeiros, azul, linda, com o
Tiradentes na efígie. Nunca achamos dinheiro nenhum. Nunca comemos o
galeto da televisão de cachorro, a não ser em datas especialíssimas em que
sobrou algum dinheiro.
Mas agora minha mãe queria comemorar sua boa sorte. Fomos à
Churrascaria Santa Tereza, na Assis Brasil, perto do Hospital Cristo
Redentor, onde nasci.
Para mim, foi um lauto banquete. Sentia-me como se estivesse jantando
no Palácio de Buckingham, com a rainha na ponta da mesa. E era só uma
churrascaria de subúrbio... Quando minha mãe pagou a conta, fiquei olhando
para todo aquele dinheiro consumido num único almoço. Uma gastança. Era
assim que os ricos viviam, pensei.
O resto do dinheiro da venda do Chevette minha mãe juntou com o que
havia recebido da venda da casa no Parque Minuano e deu de entrada para a
compra de um apartamento na Coorigha, blocos de edifícios encravados no
pâncreas do IAPI.
O IAPI é parte fundamental da minha vida. Tenho de falar a respeito.
Mas, antes, preciso retornar àquele dia sombrio de março. Como havia dito,
vi minha mãe chegar, e vi a preocupação em cada linha de seu rosto.
7
CERTA VEZ, QUANDO ERA REPÓRTER DE POLÍTICA, fui pautado para fazer
uma matéria a respeito do então prefeito de Porto Alegre, Olívio Dutra. A
ideia era passar o dia com ele. Um dia comum de trabalho na vida do prefeito
da cidade.
Olívio Dutra é uma espécie de Mujica brasileiro. Era bancário quando
começou na política e continuou com sua vida simples de trabalhador mesmo
depois de ter sido eleito prefeito, deputado e governador do Estado. Olívio
anda de ônibus pela cidade e ainda mora no mesmo apartamento do começo
da carreira, na Assis Brasil, a avenida enfumaçada e barulhenta para a qual
nos mudamos logo que minha mãe se desquitou do meu pai.
Foi neste apartamento da Assis Brasil que o encontrei no início da
manhã, para irmos juntos à prefeitura. Entramos no ônibus que levava Olívio
ao centro da cidade todos os dias. Ele seguiu todo o tempo de pé, segurando
na barra de ferro presa ao teto, grave atrás de seu bigode de Rivellino; e eu ao
lado, marcando-o como um Caçapava, de bloquinho na mão, observando suas
reações e as dos demais passageiros. Chegamos ao ponto final e descemos.
Olívio saiu caminhando rapidamente, como se quisesse fugir de mim, e acho
até que queria mesmo, tocado pela velha desconfiança das esquerdas com a
imprensa. Quase tinha de correr para acompanhá-lo. Em certo momento, o
fotógrafo pediu:
– David, diz para ele sorrir. Pra sair na foto.
Virei-me para Olívio:
– Prefeito, o senhor pode sorrir, por favor? Vai ficar melhor na foto...
Olívio, sem parar de caminhar, sem nem me olhar, respondeu:
– Mas não estou com vontade de sorrir.
E não sorriu.
Naquele sábado da operação eu estava assim, sem vontade de sorrir.
Provavelmente foi o único dia da minha vida em que não sorri nenhuma vez.
Minha madrinha Sônia ainda fez alguma brincadeira quando eu estava
tirando a roupa e vestindo o avental do hospital. Tinha boa intenção, queria
que eu relaxasse, mas qual o quê. Não conseguia me concentrar em nada,
pensar em nada, achar graça de nada.
Sem sorrisos, deitei na maca, inalei o gás anestésico e dormi.
Acordei com dor.
Muita, muita dor. Estava em uma sala ampla, deitado. O rosto da
Marcinha pairava acima do meu. Ela sorria. Eu, não. Eu apenas gemi:
– Dor... dor... dor...
No início, ela não compreendeu a extensão da dor de que eu reclamava,
porque continuou sorrindo, me fez um carinho no rosto e disse que estava
tudo bem. Eu só conseguia repetir:
– Estou com dor! Estou com dor!
Doía-me o flanco de uma forma que não devia ser possível. Mas era.
Bem... haviam-me tirado um pedaço.
– Ele está com dor! – gritou a Marcinha, enfim percebendo a urgência
na minha voz.
E as enfermeiras começaram a falar umas para as outras:
– Liga para o doutor! Liga para o doutor!
Em meio à confusão da minha mente e à dor terrível do meu corpo,
pensei: mas ainda vão ligar para o doutor?
Ligaram.
Em minutos, me deram uma dose de morfina e apaguei.
Schopenhauer dizia que a felicidade é a ausência de dor. Quando
acordei, constatei essa verdade. Já estava no quarto, cercado pelas pessoas da
minha família. Como aquele sujeito que, depois do tiroteio, apalpa o corpo
para saber se não foi atingindo, fiquei alguns segundos em expectativa, para
saber se a dor excruciante voltaria. Não voltou. As dores que sentia então
eram suportáveis. Sorri, enfim. Ainda estava no jogo.
9
OUTRO CASO SÉRIO SÃO as atividades intestinais. “Obrar”, como diria Dom
Pedro I em carta para a Marquesa de Santos.
Depois da operação, fiquei uns dois dias sem obrar, devido às doses de
morfina.
Só poderia receber alta se meu intestino voltasse a funcionar
normalmente e, para que isso acontecesse, teria de interromper a morfina e
suportar a dor com analgésicos convencionais. Concordei de pronto. Chega
de morfina. Queria sair de uma vez daquele lugar.
O curioso é que meu filho não obrava também. Ele estava com cinco
anos de idade e, desde que percebera que havia algo errado comigo, não “ia
aos pés”, como se diz no Rio Grande. Estava assim havia cinco dias. Quando
eu já me sentia melhor, ele foi me visitar no hospital. Chegou ao quarto,
sorriu, me deu um beijo e anunciou:
– Quero fazer cocô.
E fez, ali no banheiro do quarto mesmo.
Mas não vou me estender nesses assuntos escatológicos. Apenas quero
sublinhar que, quando você está numa cama de hospital, tudo que é natural se
torna ainda mais natural. Todas as vaidades ficam do lado de fora de um
quarto de hospital.
12
AGORA ERA O DIÁRIO CATARINENSE. Agora era vida de repórter. Agora era o
que sempre quis.
O subeditor-chefe do Diário era o jornalista Emanuel Mattos, que mais
tarde se tornaria um grande amigo. Ele me deu algumas opções de locais
onde trabalhar: a editoria de Geral, em Florianópolis, ou as sedes de Lajes,
Chapecó ou Criciúma. Escolhi Criciúma sem nem conhecer a cidade, só
porque ficava mais perto de Porto Alegre.
Foi muita sorte.
Criciúma é uma cidade acolhedora. Lá fiz amigos que são mais do que
amigos: são irmãos. Um deles é o jornalista Nei Manique. Ele era o
coordenador da nossa sucursal. Hoje o Nei é quase um ermitão, não gosta de
sair de casa, mas nos anos 80...
Naquela época, o Nei Manique tinha uma casinha de madeira no Lote
6, bairro da parte alta de Criciúma. A casinha virou nossa sede informal. Era
lá que nos homiziávamos quando os bares, para nossa completa
incompreensão, fechavam, e a noite se tornava inóspita.
Chegávamos já alegres, devido aos vapores etílicos. Na entrada, o Nei
fazia séria advertência:
– Pessoal, esse é um bairro residencial. Aqui vivem famílias de
trabalhadores. É preciso respeito! Portanto, peço que vocês cantem “Parabéns
a você” bem alto, para que os vizinhos pensem que estamos comemorando
um aniversário. De preferência, um aniversário de criança, que é mais
inocente.
Cinco minutos depois, cada um com seu copo na mão, começávamos a
cantar:
– Parabéns a você! Nesta data querida! Muitas feeeelicidaaaaades...
E no final: É pique! É pique! É pique, é pique, é pique! Rá! Tim! Bum!
Joãozinho! Joãozinho!
Todo mundo achava que Joãozinho era um bom nome de criança
aniversariante. Um nome clássico, pelo menos.
E seguia a festa. Todos animados, alguns casais já se formando, outros
se deformando, e eu pensava: “Por que não reforçar para os vizinhos que
estamos festejando o aniversário do pequeno Joãozinho?”. Então, puxava:
– Parabéns...
E os outros paravam o que estavam fazendo para entoar:
– ...a você! Nesta data querida! Muitas feeeeeeelicidaaaaaaadesss...
Terminado o “Parabéns”, alguns gritavam Joãozinho!, Joãozinho!, e a
festa ia em frente.
Mais 45 minutos se passavam. Três ou quatro pares se embolavam
pelos cantos penumbrosos, um discursava sobre como salvar o Brasil, outro
dormia no sofá, oito ou nove Travoltas ondulavam em volta da mesinha da
sala, e um gaiato rompia:
– PÁ!
E todo mundo, em coro:
– rabéns a você! Nesta data querida! Muitas
feeeeeeeeliiiiciiiidaaaadeeessss...
E outra boa hora era consumida e ninguém mais entendia o discurso do
cara que queria salvar o Brasil, e um tentava tocar Vento negro ao violão e
outros dois faziam miojo na cozinha e alguém gritava:
– PÁÁÁÁÁÁ...
E o coro vinha:
– ...rabéns a voooocê! Nesta data queriiiiidaaaa...
Cantávamos vinte, trinta Parabéns por madrugada. Desconfio que os
vizinhos não se deixavam enganar. Mesmo assim, ninguém se queixava do
barulho. Talvez pelo prestígio do Nei na comunidade, talvez por indulgência
da vizinhança. O que é uma sabedoria. Afinal, uma festa serve para que as
pessoas se divirtam, não é para fazer mal a ninguém. Let it be.
16
NA SEGUNDA OCORREU OUTRO FATO que ilustra bem como todos ficamos
desconcertados nessa etapa inicial de combate ao câncer. Todos, que digo,
são todos mesmo, inclusive os médicos, porque o câncer é um milheiro de
males, as pessoas reagem de formas diferentes às diferentes formas da doença
e às diferentes formas de tratamento. Então, é muito difícil fazer
prognósticos.
E lá estava eu, junto com a Marcinha, nós dois sentados em frente a um
oncologista – nunca pensei que me consultaria com um oncologista.
De posse dos meus exames, ele foi muito atencioso, muito didático,
mas não totalmente objetivo, e eu precisava saber objetivamente o que estava
acontecendo. Queria traçar um plano. Foi o que eu disse, perguntando em
seguida:
– Claramente: o que tenho de fazer? O que você faria, se estivesse em
meu lugar?
Ele:
– Acho que você deve operar essas metástases.
Fiquei perplexo. Pensei por alguns segundos: os pontos estavam
localizados no peito, no ilíaco e na base da coluna. Seria preciso tirar aqueles
tumores? Foi o que questionei:
– Vou ter que me submeter a três outras cirurgias? Escavar os ossos em
três pontos, um deles na base da coluna?
Ele balançou a cabeça:
– Sim. É isso.
Recuei na cadeira.
– Não vou fazer isso – decidi, de imediato.
A Marcinha protestou:
– David! O médico está dizendo que operar é melhor...
– Qual é a alternativa? – perguntei ao médico. – Tenho alternativa? Isso
de esburacar a base da minha coluna vertebral não me agrada. Não me agrada
mesmo.
O médico piscou.
– Bom... Você pode fazer uma rádio...
– Rádio! – resolvi, sem vacilar. – Vai ser isso: rádio!
A Marcinha saiu do consultório reclamando. Dizia que o melhor seria
seguir a primeira sugestão do médico, que eu estava era com medo de passar
por outra cirurgia, que devia fazer o que era certo. Mas algo me dizia que o
certo era não fazer aquelas malditas operações.
“Algo” tinha razão.
19
DAS TANTAS COISAS RUINS de se estar na situação em que estava, uma das
piores, como já enfatizei, é a falta de certezas. Os médicos supunham que a
causa da doença havia sido genética, mas não tinham certeza. Supunham que
havia se desenvolvido durante dez anos, mas não tinham certeza. Isso quanto
ao passado. Quanto ao futuro, isto é, se eu ia sobreviver ou não, nem
suposições eles faziam.
O fato é que, como já disse, o câncer não é uma doença só. É legião,
porque são muitas. O câncer de próstata é completamente diferente do câncer
de rim, que é diferente do de pâncreas, que é diferente de todos os outros. E
os cânceres de próstata são diferentes entre si, como todos os demais. Ainda
há que se levar em consideração a forma como cada paciente vai reagir à
notícia da doença, ao tratamento e a cada pequena derrota que sofrerá, se ele
terá condições financeiras de bancar o combate ao mal, se terá apoio da
família e das pessoas que o cercam.
São várias variáveis.
Por exemplo: os felizes leigos que não tiveram contato próximo com o
câncer acreditam que todos os doentes perdem o cabelo devido ao tratamento.
Mas não. A queda de cabelo ocorre por causa da quimioterapia, que nem
sempre deve ser aplicada. No caso do câncer de rim, a quimioterapia não
funciona. Assim, comecei a me tratar tomando uma droga moderna, para a
época. Era um antiangiogênico. Numa definição grosseira, trata-se de uma
substância que estrangula os vasos que alimentam o tumor. A ideia é matar o
câncer de fome, ou pelo menos impedir seu crescimento.
Dá certo? Como em tudo o mais, os médicos não tinham certeza.
Alguns pacientes (raríssimos) tinham até se curado com antiangiogênicos,
outros (raros) mantinham a doença estável havia seis ou sete anos, mas
também ocorria de uns (a maioria) segurarem a doença só por três ou quatro
meses, sem citar aqueles (poucos, mas não tanto) em que as drogas não
faziam diferença, e esses morriam rapidamente.
E agora? O que fazer?
Bem, quando você não tem alternativa, a questão está resolvida. Tinha
de tomar o remédio direitinho, como os médicos mandavam, e nada mais.
Só que não existe isso de “nada mais”. A partir do momento em que se
tornou público que eu estava com a “doença ruim”, as pessoas,
generosamente, começaram a procurar alternativas de salvação – para a
minha salvação.
Houve uma mobilização ecumênica para pedir a interferência de Deus
em meu favor. Soube de missas católicas e luteranas, sessões espíritas,
reuniões de grupos de oração e até cultos em sinagogas que pediram pela
minha recuperação. Espero que o Senhor tenha se sensibilizado. Mas, se Ele
não se sensibilizou, eu, sim. O interesse das pessoas em meu bem-estar
realmente me comoveu e elevou meu estado de espírito.
Um dia de setembro, estava fazendo o programa Sala de Redação, da
Rádio Gaúcha, no Acampamento Farroupilha, e deu-se algo que me tocou.
Se você é de fora do Rio Grande do Sul e não tem ideia do que é o
Acampamento Farroupilha, explico: é uma reunião de tradicionalistas
gaúchos em comemoração ao aniversário da Guerra dos Farrapos, ocorrida
entre 1835 e 1845. Os gaúchos montam barracos em um terreno perto do Rio
Guaíba, em Porto Alegre, e lá permanecem todo o mês de setembro,
comendo, bebendo, se divertindo.
Algumas emissoras de rádio e TV transmitem seus programas
diretamente de lá, entre elas a Gaúcha. Eu era integrante do Sala de Redação,
do qual falarei mais tarde. Havia um grupo grande de pessoas assistindo ao
programa. Saí por trás do palco, para não ser assediado, porque tinha um
compromisso em seguida. Mas uma senhora, não sei como, adivinhou que eu
ia escapulir por ali e estava me esperando. Chamou-me. Parei. Ela tinha uma
Bíblia nas mãos.
– Trouxe essa Bíblia pra ti – ela me disse, com muita doçura. – Sei que
vai te ajudar. E também quero te dizer que estou rezando por ti.
Fiquei meio paralisado. Uma pessoa desconhecida, que eu jamais vira
na vida, saíra da sua casa e se postara atrás de um galpão, esperando um
programa de rádio terminar, só para me dar uma Bíblia e dizer que orava por
mim...
Aceitei o presente, agradeci, trocamos mais algumas palavras e ela
mesma se despediu:
– Sei que tu tens compromissos. Podes ir.
Fui.
Saí dali flutuando, sentindo-me bem. Realmente bem. Depois daquele
encontro, inflei-me de confiança para continuar a batalha.
Onde será que ela está agora? Onde vive? O que faz?
Não lembro do nome dela, não sei nem se perguntei, tal foi minha
desorientação com seu gesto. É possível até que, se a vir de novo, não a
reconheça. Mas o fato de ela ter feito o que fez, o fato de ter se movimentado
em favor de outra pessoa em um mundo cada vez mais egoísta, sem esperar
nada em troca, isso fez a diferença. Era o bem pelo bem, sem segundas
intenções, sem a pretensão da recompensa.
Foi bonito.
25
NELSON RODRIGUES DIZIA QUE ERA de Otto Lara Resende a frase célebre “o
mineiro só é solidário no câncer”. Otto negava. Suspeito que fosse do próprio
Nelson. De qualquer forma, o fato é que o câncer desperta solidariedade
mesmo, e não só em mineiros. As pessoas pensam que você vai morrer em
seguida e passam a tratá-lo como um cadáver virtual, uma espécie de pré-
morto. É muito bom. As pessoas ficam gentis e tolerantes. Não dão mais
importância às coisas sem importância, enxergam mais o que você tem de
bom do que o que tem de ruim, exaltam suas qualidades e esquecem seus
defeitos.
A vida como devia ser.
É claro que, se você é insensível e comete o deslize de sobreviver, tudo
volta ao normal. Mas, enquanto você está ameaçado de morte, as pessoas
continuam boazinhas e solidárias.
Só que com o Sant’Ana não foi assim. Quando voltei a trabalhar,
depois da operação e do início do tratamento, ele me provocou de novo no
Sala de Redação e de novo brigamos feio no ar. Aí se deu o episódio da
bengala. O Pedro Ernesto havia encerrado o programa. Eu, furioso, levantei-
me e dei um chute em uma cadeira vazia, que estava ao meu lado. O
Sant’Ana, achando que fosse agredi-lo, levantou a bengala para se defender.
O Cacalo, assustado, segurou a bengala. O Kenny pedia paz. Uma cena
ridícula. Acabei rindo dela, depois de sair do estúdio.
Nunca mais nos falamos, eu e o Sant’Ana. Nos meses seguintes, ele
escreveu um punhado de colunas sobre mim no jornal, sem jamais citar meu
nome. Era sempre o homem que ele odiava, o seu inimigo, essas coisas.
Desagradável. Só parou quando o Nelson Sirotsky o chamou e intercedeu – o
Nelson era a única pessoa que o Sant’Ana realmente respeitava.
Entendo que ele estava em processo de degeneração física, por isso
exagerou. Mas meu momento não comportava considerações, estava mais
preocupado em continuar vivo. Passado um ano de tudo aquilo, as previsões
do Sant’Ana se concretizaram: a diretora de redação do jornal, Marta Gleich,
me convidou para assumir a última página no lugar dele. Não considerei uma
vitória sobre o Sant’Ana, nem uma vingança. Apesar de tudo o que
aconteceu, sei que o personagem que o Sant’Ana representava faz falta para
Porto Alegre. Sem nenhuma demagogia e sem querer parecer bonzinho, digo
que, se o Sant’Ana estivesse bem e voltasse ao que era antes das nossas
brigas, ficaria feliz em, de vez em quando, compartilhar mesas de bares com
ele. Mas é claro que não foi o que aconteceu. Sant’Ana morreu em 19 de
julho de 2017.
30
Dinho – Quando você soube que tinha câncer foi como se o “chão se
abrisse” sob seus pés. Anos depois do primeiro tratamento, quando houve a
recaída, foi pior saber que “o monstro não estava morto”. Como você viveu
esta experiência?
Servan-Schreiber – A primeira vez em que sabemos que temos um
câncer é algo muito curioso. Eu estava cheio de projetos, tinha 31 anos, e isso
não fazia parte dos planos. Há uma frase que diz: “A vida é o que vem depois
que acabamos de fazer planos”. É muito útil lembrar disso nos momentos em
que nada ocorre como fora previsto. Foi um verdadeiro momento de choque
para mim. Mas é preciso fazer o necessário. Fiz o tratamento convencional,
que me salvou a vida. Mas sete anos depois tive uma recaída, e foi algo muito
duro. Temos todos esta tendência de pensar que acabou, e quando o câncer
reaparece é algo bastante difícil e decepcionante. Foi aí que me disse que o
tratamento que seguia não era suficiente, que seria preciso que cuidasse de
mim de outra forma. Deveria buscar por mim mesmo o que fazer para
estimular a capacidade do meu corpo para resistir à doença.
(...)
Dinho – Entre as causas que poderiam ter colaborado para o
surgimento do câncer em seu corpo, você cita o fato de ter brincado na
infância em meio a vinhas infestadas de pesticidas, o seu complicado estado
emocional logo antes da recaída ou a alimentação nociva a sua saúde.
Servan-Schreiber – Nunca é uma só coisa. O câncer é a parte aparente
do iceberg. Todos temos células cancerosas. Uma pessoa em cada quatro
morrerá de câncer. Três em cada quatro não morrerão. Há fatores que
permitem resistir. O que faz com que se tenha câncer? É quando existem mais
fatores que favorecem as células cancerosas do que fatores que as detêm.
Quando há um desequilíbrio entre os dois, o câncer se manifesta, é algo
simples assim. E entre os fatores que favorecem o câncer estão, efetivamente,
os pesticidas, a contaminação química do meio ambiente, as gorduras ômega-
6, o açúcar, a carne vermelha, a falta de atividade física, o tabaco, o álcool, a
parte psicológica. Uns se acumulam aos outros e favorecem sem parar o
aumento das células cancerosas. E se não há, do outro lado, algo para resistir
a isso, surge a doença. Ao se entender este processo, compreende-se melhor
como se pode lutar contra o câncer.
Dinho – Foi na época do reaparecimento de seu câncer que você
compreendeu que deveria agir diferentemente para combater a doença.
Servan-Schreiber – O que compreendi de mais incrível, porque
ninguém nunca fala, é o seguinte: o que se pode fazer contra as doenças
cardiovasculares funciona também para o câncer. É incrível, ninguém sabe
disso. E todos os estudos provam isso, não é algo misterioso. Todo mundo
sabe que, mudando seu comportamento, pode agir sobre as doenças
cardiovasculares, seja para evitá-las ou curá-las. Alguém que teve um enfarte
deve fazer esporte, parar de fumar, mudar a alimentação. Todo mundo sabe
disso. Para o câncer, as pessoas acham que não é a mesma coisa, que não se
pode fazer nada. E não é verdade. É a mesma coisa. É muito simples como
mensagem.
Dinho – Você praticou jogging hoje?
Servan-Schreiber – Certamente. Hoje pela manhã. (...)
Dinho – Você meditou?
Servan-Schreiber – Hoje meditei pouco, apenas vinte minutos. Gosto
de fazer pela manhã, escovo os dentes, depois faço ioga e medito.
Dinho – Fez exercícios de respiração?
Servan-Schreiber – Durante a meditação, faço exercícios de
respiração. O que mais ajuda é fazer três vezes por dia, durante três minutos a
cada vez. Não é muito fácil achar tempo para isso, mas, ao mesmo tempo,
não é muito. É o tempo gasto para se escovar os dentes, por exemplo. As
pessoas que fazem isso têm suas vidas alteradas em duas ou três semanas. E
chega uma hora em que não se pode mais não fazer. (...)
Dinho – O que você comeu no café da manhã?
Servan-Schreiber – Meu café da manhã é composto de uma maçã bio,
com iogurte de soja, gengibre fresco e linhaça. Há variações, mas no geral é
isso. Pode-se colocar granola bio.
Dinho – E no almoço?
Servan-Schreiber – Comi couve roxa com cebola, cozida no cúrcuma
misturado com pimenta-do-reino e óleo de oliva, além de tofu. Estava
delicioso. Para acompanhar, pão de cereais integral. Como sobremesa, comi
frutas vermelhas com molho de agave e de gengibre.
Dinho – Pesquisas mostram que certos alimentos ajudam também a
potencializar tratamentos convencionais, como o chá verde, no caso da
radioterapia, e o cúrcuma, para a quimioterapia. Como é isso?
Servan-Schreiber – São alimentos que atuam em sinergia com o
tratamento. São mecanismos complementares. Essa é beleza destes
tratamentos pela alimentação ou pelo esporte. Os tratamentos químicos
miram um ou dois mecanismos biológicos. Mas as células cancerosas
desenvolvem resistências a estes tratamentos. A beleza da alimentação é que
em cada alimento há múltiplas moléculas fitoquímicas anticâncer que atuam
sobre diferentes mecanismos e reduzem a progressão do câncer. Nenhuma
delas é tão forte como um medicamento, mas quando, todos os dias, três
vezes por dia, damos ao nosso corpo coisas que contribuem para que resista a
todos os diferentes mecanismos necessários à progressão do câncer, isso pode
ter um efeito considerável.
Dinho – Não se trata, como você diz, somente de ingerir bons
alimentos, mas de evitar os ruins.
Servan-Schreiber – Eu aconselho começar acrescentando as boas
coisas, porque é difícil mudar os hábitos. É difícil parar de comer açúcar,
carne, batata frita. Não vale a pena começar desta forma, mas sim
acrescentando à alimentação chá verde, cúrcuma, colocar alho, alho-poró e
cebola em cada prato que você comer. Fazendo assim, é mais fácil.
Dinho – O açúcar é realmente um veneno?
Servan-Schreiber – O açúcar alimenta diretamente as células
cancerosas. O que se faz para detectar um câncer? Injeta-se glicose radioativa
para ver onde ela se acumula no corpo. Chama-se um PET Scan. Por quê?
Porque o câncer necessita de açúcar para crescer. Observa-se onde há
acumulação de açúcar, e ali há um câncer. Nós passamos de um consumo de
cinco quilos de açúcar por pessoa ao ano, em 1820, para setenta quilos!
Passamos a alimentar a progressão de todas essas células cancerosas que
fazem parte do corpo.
Dinho – Você alerta para estudos que provam uma relação direta entre
a incidência de câncer e o consumo de carne vermelha, frios e laticínios, e
cita o caso do Brasil, onde a carne é parte importante da dieta.
Servan-Schreiber – E no Brasil a carne é muito rica em gordura
ômega-6, porque os animais recebem uma má alimentação. O Fundo Mundial
de Pesquisas sobre o Câncer (WCRF, na sigla em inglês) diz que se deveria
comer no máximo 300 g de carne vermelha por semana. Hoje, se come 300 g
por dia! Na Argentina e em certas regiões do Brasil, o volume deve ser ainda
maior. São índices completamente delirantes. A média na dieta francesa hoje
é feita de quinze vezes mais gorduras ômega-6 do que ômega-3, e se
comemos com frequência em estabelecimentos de fast-food, a diferença
aumenta para quarenta vezes mais o ômega-6. Isto vem do azeite de girassol,
de milho, dos óleos vegetais de produtos industrializados. É ruim por
incentivar o câncer, doenças cardiovasculares, artrite, Alzheimer, depressão,
todas as doenças crônicas degenerativas, problemas presentes bem mais no
Ocidente do que na Ásia, mesmo que eles lá estejam nos alcançando, porque
estão adotando nossos hábitos alimentares.
(...)
Dinho – No aumento de nossas defesas naturais, você insiste que o
tratamento do corpo também passa pelo do espírito.
Servan-Schreiber – O importante é administrar as reações ao estresse.
O estresse não provoca câncer, mas certas reações ao estresse podem
alimentar a progressão de um câncer já existente. É preciso aprender a buscar
recursos para reagir ao estresse de forma diferente. Pode ser nas relações com
os outros. Uma das formas mais eficazes de gerir o estresse é se relacionar.
Pode ser também aprendendo a dar atenção a si mesmo, por meio da
meditação ou de exercícios como o da coerência cardíaca (...).
Dinho – Você diz que vivemos sob a tirania dos antibióticos, mas
também dos medicamentos psicotrópicos, ansiolíticos e antidepressivos,
receitados de forma abusiva para combater o estresse, a ansiedade e a
depressão.
Servan-Schreiber – Os medicamentos antibióticos e antidepressivos
são uma das maiores descobertas científicas da medicina do século XX. Não
se trata de criticá-los. Muitas pessoas tiveram a vida salva pelos
antidepressivos, e ocorreu também um verdadeiro avanço científico, pois,
hoje, eles provocam muito menos efeitos colaterais do que no passado. O que
não é normal é o desequilíbrio com o qual eles são utilizados. Hoje, tanto nos
Estados Unidos como na França – ignoro como seja no Brasil –, é
praticamente impossível sair do consultório de seu clínico sem a prescrição
de um antidepressivo. O lítio e outros medicamentos são muito eficazes. O
importante é utilizá-los em casos legítimos e justificados, e não a torto e a
direito. O que denuncio é o uso irresponsável dos medicamentos. Um francês
em cada sete toma antidepressivo ou ansiolítico, e isto não tem nenhum
sentido. Nos Estados Unidos, cerca de 10 milhões de americanos tomam
antidepressivos. Isto é anormal. Esta medicina não reconhece que o corpo e o
cérebro emocional têm sua própria capacidade de adaptação e reequilíbrio. É
preciso utilizar estes mecanismos, exatamente o que fazem os métodos
naturais de tratamento contra o estresse, a ansiedade e a depressão.
Dinho – Em relação à psicanálise, você chegou a dizer que, muitas
vezes, trata-se de uma perda de tempo.
Servan-Schreiber – O que eu digo é que o objetivo da psicanálise não
é o de curar. E foi Lacan (Jacques Lacan, psicanalista francês – 1901-1981)
quem disse isso. Ele afirmou: o objetivo da psicanálise é a compreensão de si
mesmo, e a cura, quando ocorre, é um benefício a mais. Eu sou médico, e o
que me interessa é a cura. Toda minha vocação e meu interesse pela medicina
está em aliviar o sofrimento das pessoas. É bastante presunçoso escrever um
livro com o título de “curar”, mas me permiti fazê-lo porque a definição de
cura é muito simples: quando os sintomas desaparecem, e não retornam. Isto
é muito claro quando se fala de pneumonia, por exemplo. Você sofre de uma
pneumonia, eu receito antibióticos, e dez anos depois você não apresenta
mais os sintomas e não sofre mais da doença. Normalmente, é um mal que
não reaparece. Vi – e está nos livros científicos, não sou o único a afirmar –
pessoas serem curadas por estes métodos naturais, e os sintomas não
reaparecerem. Então, pode-se falar de cura. Apresente-me um estudo sobre a
psicanálise que mostre isso. Não conheço nenhum. Não estamos no mesmo
domínio de aplicação. Não se trata de dizer que a psicanálise é uma perda de
tempo. Depende do que você quer. E são os próprios psicanalistas que dizem
isso. Muitos pacientes que vêm me consultar seguem um tratamento
psicanalítico. Não vejo nenhum inconveniente nisso, são coisas
complementares.
(...)
Dinho – O seu discurso, por vezes, assemelha-se a aforismos budistas.
Servan-Schreiber – Gosto bastante da expressão mind-body medicine
(medicina do corpo e da mente). Ela define a integração do que existe de
melhor na medicina convencional com o que funciona nesta medicina que
utiliza as capacidades de autocura, de autocorreção no interior do corpo e do
cérebro. Mas não é preciso se tornar um budista. Estive recentemente em um
debate com o Dalai Lama (líder tibetano), em Boston, e ele disse ao final de
sua conferência: “Você não precisa crer na reencarnação, no nirvana ou nas
deidades budistas, comece simplesmente tendo mais emoções positivas do
que negativas e concentrando seu espírito e sua atenção nisso. Assim já
começará a ser um ser humano muito mais evoluído”.
Dinho – Em resumo, seus métodos não trazem nenhuma novidade, mas
a comprovação científica das técnicas.
Servan-Schreiber – A ideia de que se pode ser curado pela nutrição
não é nova. Hipócrates já dizia isso. Acupuntura, nutrição, exercício físico,
nada disso é novo. A coerência cardíaca é inspirada em tipos de meditação
que datam de cinco mil anos. O novo é que começamos a ter estudos
científicos que mostram que os métodos funcionam, e também começa-se a
entender alguns de seus mecanismos. Graças às novas imagens cerebrais,
começamos a entender como funciona a acupuntura, como certos pontos
podem anestesiar o centro de ligação da ansiedade no cérebro. Isto é
apaixonante, e não se sabia. Na questão da nutrição, começamos a perceber
no nível bioquímico a importância dos ácidos graxos ômega-3 na própria
constituição das membranas neuronais, no equilíbrio emocional e no controle
das reações de inflamação no corpo. Isso é revolucionário. Sabíamos que a
nutrição era importante, mas não com tanta precisão que alguns aspectos
poderiam ter um grande impacto no equilíbrio emocional. Nesta área, há
quatro estudos de caso de pacientes sofrendo de problemas emocionais
citados no meu livro, realizados nos últimos quatro anos. Isso não existia, é
recente. Temos a prova científica de que funciona. No caso dos exercícios
físicos, há dois estudos comparando a prática do jogging com o uso de um
antidepressivo moderno extremamente eficaz, o Zoloft. Isso é recente, de
2001 e 2002. O estudo sobre a papel dos animais de estimação no equilíbrio
emocional datam dos últimos cinco anos. Não é nenhuma novidade dizer que
ter um gato ou um cachorro faz bem. Mas, sem os estudos científicos, não
podemos recomendar isso num dossiê médico no hospital. Foi por isso que
me senti capaz de colocar tudo isso num livro, com argumentos que
pudessem convencer. Os estudos científicos são novidade, e a maioria dos
conceitos são antigos. O conceito é novo para o caso do EMDR ou a
simulação da luz do nascer do sol.
(...)
Dinho – A integração neuroemocional pelos movimentos oculares,
chamada de EMDR, e a hipnose podem realmente ajudar a resolver
problemas emocionais?
Servan-Schreiber – A ideia de que se pode utilizar o movimento dos
olhos e o foco no corpo para estimular os mecanismos de digestão dos
traumas emocionais foi inteiramente desenvolvida por Francine Shapiro, na
Califórnia, em 1982. Há catorze estudos devidamente controlados que
provam esse método, recomendado por instituições médicas em vários países.
O método foi aceito pelos ministérios da Saúde da Inglaterra, Irlanda e Israel.
Mas ainda é algo bastante controverso. Há muitas pessoas que, apesar dos
estudos científicos, não querem acreditar que funciona, porque não entendem
como funciona. É o mesmo caso do lítio, que até hoje não compreendemos
bem como age. O EMDR é algo totalmente provado. Também não é um
medicamento, não há uma patente, não há muito dinheiro a ganhar com isso,
não tem um caminho como o do Lipitor. Mas um estudo publicado há pouco
mais de um ano, que compara o EMDR e o Prozac em casos de estresse pós-
traumático, revelou resultados impressionantes. Após oito semanas de
tratamento com o Prozac, vinte por cento das pessoas não apresentavam mais
nenhum sintoma. Com o EMDR, o índice positivo foi de cinquenta por cento.
Depois de dois meses, o tratamento foi suspenso. Seis meses depois, nenhum
dos pacientes tratados com o Prozac melhorou. Entre os que foram tratados
pelo EMDR, oitenta por cento sararam. Mas nos departamentos de psiquiatria
continuam a prescrever Prozac. A cada vez que eu prescrevo Prozac, a
farmácia da esquina ganha dinheiro, a indústria do transporte que distribui o
remédio na França ganha dinheiro, as publicações médicas que fazem
publicidade do Prozac ganham dinheiro, a indústria farmacêutica idem. O
pior é que eu, como médico, mesmo sem querer, ganho dinheiro, pois meu
fundo de pensão dos Estados Unidos investe no laboratório Pfizer. Então se
fala muito mais do Prozac do que do EMDR, que não faz ninguém ganhar
tanto dinheiro.
(...)
Dinho – As estatísticas revelam uma epidemia de câncer no mundo
ocidental. Pode-se falar em “epidemia”?
Servan-Schreiber – A palavra “epidemia” não é ideia minha. São os
epidemiologistas do câncer que o dizem. É óbvio que hoje temos melhores
técnicas de detecção, e matematicamente temos mais casos de câncer. Mas os
cânceres que não detectamos aumentam ainda mais rapidamente que os
demais. O câncer do linfoma, do pâncreas, do cérebro, das crianças e dos
adolescentes são os que aumentam mais rápido, e não são detectados. Então,
não se trata só disso. E também não é uma questão de envelhecimento da
população, porque os cânceres das crianças e dos adolescentes também
aumentam muito rápido. O câncer de mama em jovens nunca aumentou tão
rápido.
(...)
Dinho – Você ainda mantém um diário?
Servan-Schreiber – Escrevo um diário. Isto me toma menos de cinco
minutos por dia. O diário me serve para ter uma perspectiva sobre o meu dia.
É um diário de gratidão. Não escrevo sobre tudo, somente sobre os melhores
momentos do dia, e por que foram os melhores. É importante, porque faz
refletir, nos torna mais sensíveis ao que é positivo. Não sei se ajuda contra o
câncer, mas ajuda a estar de bom humor. Melhor viver a vida de bom humor,
com ou sem câncer (risos).
35
QUANDO SAÍ DO BRASIL para vir morar nos Estados Unidos, duas dores
importantes me tolhiam os movimentos: nas costelas, do lado esquerdo do
peito, e na perna esquerda, à altura da virilha. Doía muito, a ponto de mal
conseguir caminhar.
Numa situação como essa, você passa o dia tenso, contraído, o que só
piora o quadro: os músculos começam a doer e, por algum motivo, outros
ossos, que não têm tumores, também. Assim, sentia dores na coxa esquerda,
na virilha, na base da coluna, nas costelas, nas costas e no pescoço. Foi um
tempo duro.
Como tinha uma espera de sete horas em São Paulo até tomar o voo
para os Estados Unidos, decidi alugar um quarto no hotel do aeroporto e
descansar durante aquele tempo. Uma boa ideia. Até porque não consigo
dormir naquela poltrona da classe econômica do avião. Desta forma, pelo
menos estava descansado para enfrentar a viagem.
Junto com uma grande mala, levava meu laptop. Não queria deixar de
trabalhar – havia uma Copa do Mundo para cobrir, e combinei com os
editores do jornal de mandar pelo menos um texto por dia. Não queria me
sentir um peso inútil.
Mas o trabalho era a menor das minhas preocupações. Além de tentar
me manter vivo, precisava organizar a vinda da minha família para Boston.
Tinha de encontrar uma boa escola para o Bernardo e um bom lugar para
morarmos, tinha de abrir conta em banco, comprar um celular novo, com um
número americano, tinha de cumprir todas as pequenas, médias e grandes
burocracias necessárias para uma mudança desta dimensão, havendo dois
detalhes importantes como acréscimo nas dificuldades: não conseguia dar
dois passos sem sentir muita dor e meu inglês era precário.
Devo ter feito uns quinze ou vinte cursos de inglês na vida, sem
completar nenhum. Antes de morar nos Estados Unidos, viajei por grande
parte do mundo, sempre me saindo razoavelmente bem com um pedaço de
inglês mais um pedaço de espanhol. Achava que sabia falar um pouco da
língua de Shakespeare e Megan Fox. Meu pouco era quase nada.
Um dia, para tentar alugar o apartamento, tive de falar com o agente da
imobiliária por telefone. Jesus Cristo. Chegava a suar, tal o esforço para
entender o que o americano dizia. Ainda hoje, se estou distraído e um
americano vem falar comigo sobre algo que não está no contexto, me
atrapalho todo, tenho que pedir para repetir. É que, como trabalho em
português, escrevo em português e passo o dia falando em português,
obviamente penso em português. Aí, na hora de usar o inglês, tem de ligar
uma chavezinha no cérebro.
Vou reproduzir uma crônica que escrevi em 2017, depois de mais de
três anos morando nos Estados Unidos, para você compreender como me
sentia quando cheguei:
Meu primeiro pensamento, ao ver aquela mãe que conduzia suas duas
filhas pequenas, foi: ela vai bater no poste.
Não era um automóvel que ela levava, era um carrinho de bebê com
dois lugares, ocupados por duas meninas pequenas. Elas eram loirinhas e
muito bonitinhas. Estavam sentadas lado a lado, silenciosas, ignorando o que
o destino lhes reservava.
A mãe também era loira e não destituída de algum encanto. Era jovem,
esguia e alta, provavelmente da minha altura. Vinha falando ao celular, tão
entretida na conversa, que não percebia que empurrava o carrinho com as
crianças exatamente para um grande e sólido poste de cimento a alguns
metros de distância.
Eu caminhava no sentido oposto, aproximando-me dela, muito longe
para dar o alarme sobre a colisão iminente, mas perto o suficiente para
constatar que, sim, ela ia acertar o poste e, não, ela não olhava para onde
empurrava o carrinho. Pior: ela caminhava em alta velocidade, apressada,
decerto por causa da pessoa com quem falava ao telefone.
Não era uma cena comum, por dois motivos. Um: há poucos postes por
aqui. A fiação de telefonia e de energia elétrica em geral está enterrada, o que
diminui a poluição visual e, o mais importante, protege os fios das
intempéries. Em mais de três anos vivendo em Boston, nunca faltou
eletricidade na minha casa. Nunca. Nem um só minuto de um só dia. E, olha,
houve várias blizzards, que são pesadas tempestades de neve. Antes dessas
ocorrências, a defesa civil me ligou e advertiu: compre lanternas, pode faltar
luz. Corri para o comércio, comprei as três últimas lanternas disponíveis em
uma ferragem, e jamais as usei.
O segundo motivo pelo qual aquela cena era rara é que os americanos
pouco falam ao celular. Estão sempre com o celular na mão e sempre usando-
o, mas não FALANDO nele. Ficam digitando ou vendo algum vídeo ou lendo
algum texto.
Então, aquela mãe distraída era em tudo diferente. Ela falava ao celular
e falava alto e caminhava rápido e não via que o poste estava cada vez mais
próximo. As nenezinhas continuavam indiferentes, dois anjinhos, e me deu
uma angústia de salvá-las. Mas como? Deveria gritar? Como é que se diz
poste em inglês? Seria post? Às vezes, o inglês me falha. Isso acontece
sobretudo quando estou como aquela mãe: desatento, sem prestar atenção no
contexto. Ah, o maldito contexto está sempre nos exigindo.
Outro dia, estava em um café com o Bernardo e a Marcinha, chamei a
moça para pedir guardanapos e, em vez de falar napkin, falei kidnap. Ela me
olhou assustada, e só aí percebi que tinha pedido um sequestro em vez de um
guardanapo. Como não havia sequestrador à mão, ela piscou duas ou três
vezes, raciocinou e voltou da cozinha com três elegantes guardanapos de
pano. Que alívio.
Agora, um desastre estava em vias de ocorrer e eu não me decidia sobre
como alertar a vítima. Se gritasse, talvez fosse pior. A americana poderia se
assustar, poderia pensar que pretendia atacá-la e, em pânico, chamar a polícia
ou sair correndo, sei lá. Melhor não gritar. Melhor falar alto e ser bem
específico: “Cuidado, madame, a senhora pode colidir com o poste aí em
frente e machucar suas belas filhinhas!”.
Poucos metros a separavam do poste. Ela quase corria. Meu Deus!
Como é que é poste mesmo? Não dava tempo de olhar no Google Translate.
Um dia eu soube como dizer poste. Acho que não é post. No caso específico
daquele poste é outra coisa. Como é que é mesmo? Como é que é mesmo?
Duas palavras... Poste de luz...
Lembrei! Pole! Sabe pole position? Pois é: pole light. Ou seria light
pole? Pole light ou light pole? Pole light ou light pole?
Enquanto me decidia, a mãe, CATAPUMBA!, pechou no poste.
– My God! – exclamei, e corri para ajudá-la, ao mesmo tempo em que
tive certeza: é light pole.
Olhei para as crianças. Estavam perplexas, mas ilesas. Nem chorar,
choraram. Perguntei para a mãe se estava tudo certo, se ela precisava de algo.
Sem desgrudar o celular da orelha, ela sorriu para mim, disse que não havia
problema, que estava tudo bem, considerou rapidamente se o carrinho fora
avariado, concluiu que não, me desejou um bom dia e se foi, falando sem
parar com a pessoa do outro lado da linha. Afastei-me, pensando nos perigos
do mundo moderno e repetindo mentalmente: light pole, light pole, light
pole... Vá que alguém precise da minha ajuda...
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ESSA CRÔNICA RESUME o que senti nos meus primeiros quarenta dias de
Estados Unidos. Neste tempo, afligia-me pensar se a mudança seria boa para
minha mulher e para meu filho. A Marcinha é arquiteta, teria de largar o
trabalho, ficar longe da família e dos amigos. O Bernardo estava contente em
seu primeiro ano de escola, tinha seus amiguinhos, já começava a aprender a
ler e a escrever. Seria um abalo profundo para ambos, e tudo por minha
causa. Era muita responsabilidade. Valeria a pena?
O que aplacava minha inquietação era a força da minha mulher. Com
suavidade, mas muita confiança, a Marcinha jamais cogitou fazer algo que
não fosse me acompanhar e me ajudar naquele momento complicado da
existência em que exatamente isso, existir, ou continuar existindo, era a
minha tarefa.
A Marcinha foi muito corajosa. E o Bernardo também, apesar de sua
pouca idade. Eles chegaram em um domingo de meados de julho, dia da final
da Copa do Mundo de 2014, disputada entre Alemanha e Argentina. Eu
estava apreensivo com a entrada deles nos Estados Unidos. A passagem pela
imigração sempre é uma tensão. Será que daria tudo certo?
Deu.
Ou quase. No começo da manhã, a Marcinha me ligou do aeroporto de
Atlanta contando que havia passado a imigração, mas uma das malas se
extraviara.
Cinco minutos depois, quem me ligou foi um amigo americano, o
Edward, que é casado com uma amiga brasileira, a Greice Zaffari. Estavam
me convidando para passar o domingo com eles, em sua bela casa em
Manchester by the Sea, a quarenta quilômetros ao Norte de Boston. Expliquei
que não poderia, que a Marcinha e o Bernardo chegariam em poucas horas, e
contei sobre a perda da mala. O Edward, um homem muito solícito, muito
gentil, respondeu que trataria de tudo.
– Tudo o quê?
– Vou passar aí, te pego, depois vamos ao aeroporto. Conheço algumas
pessoas lá, vamos resolver essa história da mala. Depois, vocês vão almoçar
conosco em Manchester.
De fato, uma hora depois ele chegou à minha casa, fomos ao aeroporto
e lá ele mobilizou metade da companhia aérea por causa da mala. Os
funcionários se comprometeram gravemente em enviá-la para meu
apartamento assim que fosse encontrada. Foi o que aconteceu, dois dias
depois.
Quando a Marcinha e o Bernardo enfim chegaram, senti uma alegria
que não vou esquecer. Era como se as coisas estivessem entrando no seu
devido lugar. E, de certa forma, estavam mesmo. Principalmente porque,
depois da terceira infusão da droga imunoterápica, as dores haviam
diminuído bastante. Naquele domingo, eu já conseguia caminhar, uma grande
vitória. E uma grande esperança.
Fomos para Manchester by the Sea. Edward e Greice têm dois filhos:
Arthur, um loirinho de olhos azuis, que na época estava com oito anos, e
Marcela, uma moreninha que andava por volta dos doze. É uma família
bonita e amorosa. Fizeram tudo para que nos sentíssemos bem. Arthur levou
o Bernardo para a piscina e lá eles brincaram por horas. Almoçamos, vimos a
final da Copa, escrevi um texto no computador da casa e enviei ao jornal.
Retornamos a Boston só à noite, depois do jantar.
Imagine o estado de exaustão física da Marcinha e do Bernardo – após
uma viagem de 24 horas, eles ainda nem tinham podido realmente relaxar,
porque a gente só relaxa de verdade quando está em casa. Por isso, no
momento em que chegamos à porta do edifício em que moro, o Bernardo
desceu do carro e saiu correndo, como se quisesse fugir do cansaço que
sentia.
Foi uma noite de sono restaurador, em que aconteceu algo inédito: o
Bernardo dormiu sem a companhia do bico e da naninha.
A naninha é aquele pedaço de pano que as crianças cheiram, como o
que o Linus, da turma do Charlie Brown, arrasta pelas histórias em
quadrinhos. O bico é a chupeta, como se diz em São Paulo e no Rio. Aos seis
anos de idade, já estava na hora dele largar aqueles instrumentos de
segurança da primeira infância. Mas quem diz que conseguia demovê-lo?
No Natal anterior eu havia escrito uma crônica sobre o assunto. O título
é “Me ensina a esquecer”, porque, realmente, eu também queria muito
aprender a esquecer certas vicissitudes. Eis:
Meu filho já deveria ter largado o bico. Seis anos de idade,
francamente. Ele sabe disso, tanto que, neste ano, decidiu que entregaria o
bico para o Papai Noel. Desde novembro vem falando:
– No Natal, vou dar o bico para o Papai Noel. Eu vou.
Bem. Contratei um Papai Noel. Um ótimo Papai Noel. Eu mesmo quase
acreditei que fosse o próprio, vindo direto do Polo Norte com seu trenó
voador. Quando ele chegou à porta, batendo sino, meu guri saiu correndo
pela casa:
– O bico! Tenho que achar o bico!
De fato, mal o Papai Noel entrou, ele lhe estendeu o bico:
– Ó.
Depois, encheu o Papai Noel de perguntas. Sobre o clima da Lapônia,
sobre a velocidade das renas, sobre o salário dos duendes que trabalham na
fábrica de brinquedos. A festa prosseguiu, depois que o Papai Noel se foi, e o
meu guri se distraiu com os brinquedos novos, sobretudo com um minion, ele
adora os minions. Então, chegou a hora de dormir. A hora do bico. Nesse
momento, acometeu-o uma violenta síndrome de abstinência.
– O bico! – implorava, aos prantos. – Quero o bico! Liga pro Papai
Noel! Liga pro celular dele!
Tentei consolá-lo sugerindo que pensasse nos brinquedos que havia
recebido. Que tentasse esquecer do bico.
– Mas eu não consigo esquecer! – ele gritava. – Não consigo esquecer!
E, olhando para mim com os olhos rasos d’água, pediu:
– Pai, me ensina a esquecer! Me ensina a esquecer.
Suspirei.
Disse que ia tentar. Que aprender a esquecer talvez seja o mais
importante da vida, porque a vida é feita de perdas. Que, às vezes, é
fundamental deixar de lutar, aceitar a derrota e seguir em frente, porque lá
adiante tudo será novo e diferente e, decerto, melhor.
– Em certas ocasiões, a gente tem que desistir, meu filho. Simplesmente
desistir. Porque, depois que a gente desiste, começa a esquecer, e vai
esquecendo, vai esquecendo, até que um dia aquilo não faz mais falta e a
gente olha e nem quer mais.
Ele esfregou os olhos. Aprumou-se na cama:
– Eu vou desistir do bico, pai.
– Isso. Isso...
– Porque é bom esquecer.
Eis a verdade. É bom esquecer.
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É UMA BOA HISTÓRIA. Mostra que o futuro é inconfiável, por isso não
adianta se preocupar com ele.
A cada dia o seu cuidado, disse Jesus, e é isso mesmo. Você prepara o
seu futuro. Como? Você cuida da sua cabeça e do seu corpo, tenta não
dissipar patrimônio, trata as pessoas com consideração e, mais do que tudo,
faz a coisa certa.
Isso é fundamental.
Se você faz a coisa certa, terá paz. Não por causa do futuro: por causa
do passado. Você olhará para o passado digno que construiu e irá suspirar de
contentamento: está tudo certo.
Então, o que aprendi não foi nada grandioso. Ao contrário, aprendi que
não são supostas glórias ou façanhas que vão me fazer feliz, e sim a soma de
dias bons. Aprendi que a cada dia você constrói o seu passado e é esse
passado sólido, harmonioso e, se possível, bonito que fará com que você se
sinta feliz.
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DEPOIS DE CINCO INFUSÕES, fiz mais uma tomografia. Não sentia qualquer
dor nova, estava bem-disposto, tudo indicava que o resultado seria bom, mas,
ainda assim, fiquei apreensivo: se o Nivolumab não estivesse funcionando, a
situação se tornaria preocupante. Muito preocupante. O André Fay, sempre
otimista, jurava que havia alternativas, mas eu sabia que seria um quadro bem
mais complicado.
Tinha de dar certo, tinha de dar certo.
Deu certo.
Um dia depois do exame, o André me enviou uma mensagem por
celular: “Pode abrir a champanhe. Os resultados foram ótimos”.
Foi o que fiz. Saí de casa e fui à loja de bebidas que tem na esquina.
Comprei uma garrafa de champanhe, voltei e chamei a Marcinha:
– Vamos brindar ali na sacada – disse a ela.
Ela veio, sorrindo. Ela sabia qual era a razão do brinde. Chocamos
nossas taças, sorrimos e bebemos. Estávamos nos últimos dias de verão no
norte do mundo. Olhei para a tarde que se esvaía sobre as copas das árvores
de Brookline. Pensei que um dia que termina bem é uma realização. E
lembrei de um texto do filósofo Sêneca que li, certa feita.
Dois mil anos atrás, ele escreveu o seguinte:
“Li isso em Epicuro hoje: ‘Se queres gozar da verdadeira liberdade,
escraviza-te à filosofia’. O homem que a ela se submete emancipa-se em um
ponto ou em outro. O corpo, uma vez curado, frequentemente dói outra vez.
Mas o espírito, uma vez curado, sara para sempre. Vou dizer o que entendo
como saúde: é quando o corpo está contente e confiante. É quando
compreendemos que todas as coisas que perseguimos ou com as quais
sonhamos nenhuma relação têm com a felicidade. Darei o meio de medir o
teu desenvolvimento: é compreender que, de todos os homens, os mais
infelizes são os mais bem-sucedidos.”
Sêneca queria dizer que, muitas vezes, confundimos prazer com
felicidade. O prazer é complexo, depende de posses, conquistas, sucesso e
ocupação de espaço.
A felicidade é simples. Um dia bem vivido, sem dores físicas
importantes, em que você agiu com correção e que termina em paz é um dia
plenamente feliz. É um dia vitorioso. Você dizer para si mesmo: “Hoje, até o
câncer eu venci”.
Quantos dias mais me cabem? Não sei. Felizmente não sei. Mas, sejam
quantos forem, o que espero deles é poder terminá-los olhando o sol que se
põe, talvez sorrindo para alguém que amo, talvez fazendo um brinde à vida,
ou apenas dizendo para mim mesmo: tem sido bom.
Texto de acordo com a nova ortografia.
C633h
ISBN 978-85-254-3744-0
CDU: 929:070
www.lpm.com.br
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Uma história do mundo
Coimbra, David
9788525427526
272 páginas