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LER E ESCREVER NA PRISÃO: EXPERIMENTAÇÕES EM TOCANTINÓPOLIS

Sobre a segunda impressão... Sobre o livro...

Em 2019 uma primeira versão Surge do desejo de ser livre, sair


deste livro foi impressa e da prisão. Materializa parte das
distribuída para os autores e experiências advindas do
autoras e seus familiares, encontro entre pessoas diversas,
unidades prisionais, bibliotecas, todas elas dispostas, por
pesquisadores e representantes diferentes motivos, a ler e escrever
de instituições vinculadas à juntas. Quer ser instrumento de
promoção de educação nas difusão, uma forma de socializar o
prisões. A repercussão foi positiva vivido com pessoas abertas e
evidenciando, na prática, o poder interessadas em saber o que se
da palavra escrita. Publicar este passa dentro de uma unidade
livro nos ensinou que é possível prisional, para além das trágicas
escrevermos e contarmos a nossa notícias de violência,
própria história. Com isso, superlotação, fugas e rebeliões. É
descobrimos outra identidade a junção de fragmentos de relatos
possível para nós: a de autores e de vida, mesclados com reflexões
autoras. Esse processo revelou-se sobre as obras literárias lidas. Uma
como um caminho para “colcha-livro”, escrita a várias
emancipação. mãos.
Esta segunda impressão é uma
oportunidade de irmos mais Sobre os autores e as autoras...
longe, chegarmos em mais mãos,
possibilitando que nossa história São muitos e diversos. Há
seja conhecida por mais pessoas. mulheres e homens. Pessoas que
Ter nossa história lida é uma se abrem, que compartilham
abertura para encontros, que dão parte de suas experiências de vida
força a nossa existência e nos e reflexões. São 32 leitores que se
estimulam a seguir lendo e fizeram autores.
escrevendo.
Lemos para imaginar outros
mundos possíveis, escrevemos
para (re)inventarmo-nos e, no
encontro dos pensamentos, criar
liberdades para viver.

Esperamos que nos leiam!

ISBN 978-65-87645-69-8

9 786587 645698 >


LER E ESCREVER NA PRISÃO:

Experimentações em Tocantinópolis/TO
2
Aline Campos
Rafael Caetano do Nascimento
(Organizadores)

LER E ESCREVER NA PRISÃO:

Experimentações em Tocantinópolis/TO

3
Copyright © Autoras e autores

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos das autoras e dos
autores.

Aline Campos; Rafael Caetano do Nascimento [Orgs.]

Ler e escrever na prisão: experimentações em Tocantinópolis/TO. São


Carlos: Pedro & João Editores, 2020. 234p.

ISBN: 978-65-87645-69-8

1. Leitura e escrita. 2. Educação em contexto de privação de liberdade. 3.


Extensão Universitária. 4. Clube de leitura. 5. Ler e escrever na prisão. I. Título.

CDD – 370

Capa: Felipe Roberto | Argila


Diagramação: Diany Akiko Lee
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito

Conselho Científico da Pedro & João Editores:


Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/ Brasil); Hélio
Márcio Pajeú (UFPE/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da
Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil); Ana
Cláudia Bortolozzi Maia (UNESP/Bauru/Brasil); Mariangela Lima de Almeida
(UFES/Brasil); José Kuiava (UNIOESTE/Brasil); Marisol Barenco de Melo
(UFF/Brasil); Camila Caracelli Scherma (UFFS/Brasil); Luis Fernando Soares Zuin
(USP/Brasil).

Pedro & João Editores


www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 - São Carlos – SP
2020

4
SUMÁRIO

Agradecimentos 11
Apresentação à segunda impressão 13
Apresentação 17
Prefácio de fora 21
Celsimar Custódio Silva
Prefácio de dentro 23
Denisvan Souza dos Santos
Educação, leitura e remição de pena 25
Aline Campos
Educação nas Prisões do Tocantins: o COMEP como estratégia 33
de participação social
Claudenice Passos Palaci
Valcelir Borges da Silva
Maria do Socorro Silva
A construção do espaço educativo na Cadeia Pública de 53
Tocantinópolis
Aline Campos
Darlene Ribeiro da Silva
Elizete Pereira dos Santos
Jhenissa Silva Sousa
Luciana Conceição da Silva
Marilene Soares da Silva
Millena Silva Ramos
Taila Silva Alves
Thátila Ferreira Morais
Educação na prisão: o olhar da gestão da unidade prisional 65
Vinícius Lima Silva
O caminho entre a cela e a sala: uma visão da segurança 71
Cláudio Evandro da Silva Fontenele
Leituras de prosa na cela 73
Aline Campos

5
Uma discussão na cela: afinal, Ubirajara era ou não covarde? 75
Luciana Conceição da Silva
A história de Ubirajara: um resumo 79
Francisco de Assis Alves
Outros modos de vida encontrados na leitura 81
Isaías Veloso Monteiro
Ao sermos presos, nos tornamos Gregor! 83
Darlene Ribeiro da Silva
Incômodo, estorvo e peso: somos todos! 87
Antônio Pereira da Silva
Damos, mas recebemos? 89
Isaías Veloso Monteiro
Construindo absurdos: entre a jiboia que engoliu um elefante 91
e o consumismo
Thátila Ferreira Morais
O valor cabe a nós dar 95
Francisco de Assis Alves
Julgar sem conhecer: caminhos da incompreensão 97
Tácio Pereira Marques
O vampirismo tomou conta da política brasileira 99
Jhenissa Silva Sousa
Uma viagem descontraída pela história do Brasil 103
Antônio Pereira da Silva
O Brasil e eu: histórias sempre podem mudar 107
Gilson Luiz de Souza
Leituras dramáticas em roda 109
Aline Campos
Sentença: culpada por ser inocente! 113
Elizete Pereira dos Santos
Finais injustos desconhecem a história 117
Marcos Vinícius Pereira Soares
Amor, heresia e injustiça 119
Ricardo da Silva

6
Chora não menino, aqui a violência está naturalizada 121
Millena Silva Ramos
A violência naturalizada das prisões 125
Denisvan Souza dos Santos
Uma verdade nua e crua 129
Dourivan Alves de Morais
Dinheiro não me corrompe, já palavras... 131
Jhenissa da Silva Sousa
Luciana Conceição da Silva
Injustiça racial 135
Clauber da Costa Araújo
A verdade não está à venda 137
Willian Torres de Oliveira
Feminismo em texto de 2500 anos atrás? Não acredito! 139
Darlene Ribeiro da Silva
Banquete para a paz 141
Isael da Silva Oliveira
Olhar ao invés de criticar 143
Marco Antônio Pereira Lima
Somos o que aparentamos? 145
Taila Silva Alves
Cuidado, frágil: seres humanos 149
Dourivan Alves de Morais
Relações à prestação 151
Welton Osório da Silva
A leitura de si e as escritas de nós 153
Aline Campos
Das farras do mundão ao estudo na prisão 157
Adriano Silva Evangelista
Cair de paraquedas pode ser apaixonante 159
Aline Campos
Ei negão, não duvide, pode dar certo! 163
Antônio Pereira da Silva

7
Ter acesso à educação não é fácil 165
Clauber da Costa Araújo
Não há monstros na prisão 167
Darlene Ribeiro da Silva
Sentir-se pássaro 171
Denisvan Souza dos Santos
Desmoronar da vida e aprender a ver outros mundos 175
Dourivan Alves de Morais
Super-heroínas armadas com livros e outras ficções 177
Elizete Pereira dos Santos
Olho d’água no jardim da esperança 181
Francisco de Assis Silva
Caminhão, novos caminhos e ideias a brotar 185
Gilson Luiz Souza
Percalços para estudar 187
Isael da Silva Oliveira
Renascer dentro de mim 189
Isaías Veloso Monteiro
Persistir adentrando a prisão 191
Jhenissa Silva Sousa
Andanças de uma preta mulher 199
Luciana Conceição da Silva
Juntos transformamos 203
Marco Antônio Pereira Lima
Mudando as escolhas 205
Marcos Vinícius Pereira Soares
Dialogando com a ficção: reflexões e encontros com a 207
literatura
Marilene Soares da Silva
Abrindo oportunidades e quebrando preconceitos 211
Millena Silva Ramos
Picolés, livros e novos caminhos 215
Ricardo da Silva Soares

8
Amor, luta e esperança: muito obrigado! 217
Ronan Coelho Conceição
Esporte, trabalho e estudo: interrupções e possibilidades 219
Ruan de Sousa Pinto
De insetos a pontuações: muitas aprendizagens 221
Tácio Pereira Marques
Sentir-se bem na cadeia? 223
Taila da Silva Alves
O prazer da leitura no desafio humano de seguir aprendendo 225
Thátila Ferreira Morais
Novas leituras, novos horizontes 227
Welton Osório da Silva
Privado da liberdade, livre para aprender 229
Willian Torres de Oliveira
O que trará o porvir? 231
Aline Campos

9
10
Agradecimentos

Ao juiz Helder Carvalho Lisboa que não mede esforços para


garantir o Direito Humano de acesso à educação, apoiando o
desenvolvimento das atividades educativas no interior da Cadeia
Pública de Tocantinópolis. A publicação desta segunda versão do
livro só foi possível graças ao seu apoio.
À Pró-reitora de Extensão, Cultura e Assuntos Comunitários
da Universidade Federal do Tocantins (PROEX/UFT), que
viabilizou financeiramente a publicação da primeira versão deste
livro e institucionalmente a realização do projeto.
Às instituições que têm atuado como parceiras nas ações
educativas desenvolvidas na Cadeia Pública de Tocantinópolis/TO:
Poder Judiciário do Tocantins; Ministério Público do Tocantins;
Secretaria Estadual de Cidadania e Justiça (SECIJU-TO); Secretaria
Estadual de Educação, Juventude e Esportes (SEDUC-TO) e
Prefeitura Municipal de Tocantinópolis.
Ao Comitê Estadual de Educação em Prisões do Estado do
Tocantins (COMEP), um dos grandes incentivadores do projeto,
contribuindo com sua divulgação e auxiliando com orientações
para sua consolidação e expansão.
Ao diretor da Cadeia Pública de Tocantinópolis, Vinícius Lima
Silva, pelo imprescindível apoio e exemplar conduta na gestão
humana da unidade prisional.
Ao promotor Celsimar Custódio Silva, por ter acreditado em
nós e apadrinhado o projeto.
Ao funcionário da Cadeia Pública de Tocantinópolis e discente
da UFT, Carlos Alberto Soares Filho, pela provocação inicial que
culminou na concretização das ações educativas do projeto
retratado neste livro.
À bibliotecária da UFT do campus de Tocantinópolis, Fani
Rodrigues Hisatomi, pelas orientações e suporte para organização
da biblioteca na Cadeia Pública de Tocantinópolis e deste livro.

11
Ao professor e artista Leon de Paula que, com seu vasto
conhecimento e criatividade, fez excelentes sugestões de títulos de
peças teatrais para leitura.
Ao entusiasta de escritas experimentais, Felipe Ferreira
Joaquim, que camaradamente fez a revisão textual.
Ao professor Gustavo Cunha de Araújo que, salvando-nos de
imprevistos, caprichosamente realizou a diagramação.
Ao artista plástico e amigo, Jonathan Taveira Braga, que
prontamente nos auxiliou com o tratamento da imagem da capa.
Ao companheiro Diogo Barcot Tintor, que pacientemente
editou a capa e nos auxiliou na finalização do arquivo para
impressão.
Ao professor e amigo, Rafael Caetano do Nascimento, que
também nos ajudou na finalização do livro e integrou-se ao projeto
no início de 2019, fortalecendo-o ainda mais.
As extensionista do projeto, pela extraordinária dedicação e
responsabilidade na condução do projeto e escrita deste livro.
A toda a equipe de segurança, sem a qual seria inviável a
promoção de qualquer atividade educativa na unidade prisional; e
todos os demais funcionários e servidores da Cadeia Pública de
Tocantinópolis que, em suas distintas funções, constituem-se como
peças fundamentais para o bom funcionamento da unidade.
Às pessoas privadas de liberdade que participam das
atividades educativas, seja no ensino escolar, no Clube de Leitura
ou no Ensino Superior; sem o interesse e envolvimento delas nada
do que propomos teria sentido.
A todos que, direta ou indiretamente, têm contribuído para a
abertura, estruturação e busca por consolidação do espaço
educativo da Cadeia Pública de Tocantinópolis.
E, em especial, àqueles e àquelas que contribuíram com
escritas para a composição dessa publicação, tornando-se seus
autores.

12
Apresentação à edição de 2020

No final de 2018 o projeto de extensão que desenvolvemos na


Cadeia Pública de Tocantinópolis, hoje denominado Clube dos
Livres, foi contemplado com recurso financeiro da Pró-reitoria de
Extensão, Cultura e Assuntos Comunitários da Universidade
Federal do Tocantins (PROEX/UFT), o qual poderia ser utilizado
apenas na aquisição de produtos e/ou serviços que constasse nas
listas de licitação vigentes da UFT. Para o melhor desenvolvimento
do projeto, necessitávamos de notebook, caixa de som e data-show,
porém o recurso que recebemos era destinado para materiais de
consumo, não sendo permitido a aquisição de materiais
permanentes. Dessa impossibilidade inicial de nossas maiores
necessidades e a partir das análises das possibilidades existentes
em tais listas de licitação fomos construindo a ideia de publicação
de um livro. Sem saber, estávamos adentrando numa aventura.
Estávamos em vias de completar um ano de desenvolvimento
de nosso Clube de Leitura e resolvemos então fazer o registro dessa
trajetória. A proposta do livro era contar coletivamente nossa
história e refletir sobre as aprendizagens e significados dessa
experiência. Para isso, convidamos as pessoas diretamente
envolvidas com o desenvolvimento do projeto para produzirem os
textos que comporiam o livro. Além disso, incluímos algumas das
resenhas críticas dos livros lidos no projeto escritas pelas pessoas
presas. Ao todo, 32 pessoas contribuíram com textos para a
construção coletiva do livro.
Concluída a etapa de produção e organização dos textos
deparamo-nos com outro desafio: a publicação. Tínhamos o
recurso, porém ele era exclusivo para impressão em gráfica. Ou
seja, era necessário encaminhar para a gráfica os arquivos do livro
e de sua capa prontos para impressão sem contar com o serviço de
editoração de uma editora. Isso só foi possível porque nos
empenhamos em aprender a fazer algo que desconhecíamos

13
completamente e, sobretudo, pela colaboração generosa de amigos.
Aprendemos a transformar o arquivo do Word em formato para
impressão de livro e as extensionistas do projeto se reuniram para
produzir a capa com colagem a partir de recortes de revistas. Rafael
Caetano do Nascimento nos ajudou com a finalização do livro,
Felipe Ferreira Joaquim aceitou fazer a revisão textual, Fani
Rodrigues Hisatomi elaborou a ficha catalográfica, Gustavo Cunha
de Araújo cuidou da diagramação, Jonathan Taveira Braga tratou a
imagem da capa e Diogo Barcot Tintor incluiu as orelhas da capa
na imagem tratada e a transformou no arquivo para impressão. A
superação conjunta desse desafio fortaleceu em nós a crença na
força do coletivo.
Após todo o empenho e esforços, efetivamos a publicação do
livro em 2019. Foram impressos 400 exemplares, todos destinados
à distribuição gratuita. A maior parte foi entregue aos próprios
autores e seus familiares, bem como para todas as unidades
prisionais do Estado do Tocantins. Os exemplares restantes foram
distribuídos para bibliotecas da UFT e de outras universidades e
para pesquisadores/as e pessoas atuantes em contextos de privação
de liberdade.
A repercussão do livro foi bastante positiva. Para o projeto,
favoreceu a força coletiva ao evidenciar nossa capacidade de
superação conjunta dos desafios. Para as pessoas presas, contribuiu
na valorização da autoestima. Alguns deles afirmaram, com
orgulho, nunca terem imaginado que escreveriam um livro em suas
vidas. Na unidade, propiciou o estreitamento de relações com os
familiares das pessoas presas e também com a equipe de segurança,
favorecendo a união e parceria. Na UFT e na cidade de
Tocantinópolis, ampliou o conhecimento e divulgação sobre as
ações desenvolvidas no interior da Cadeia Pública. No Estado do
Tocantins e país, possibilitou o estabelecimento de diálogo com
outras instituições e pessoas interessadas na temática da educação
em prisões.
Em 2020, com o apoio do Poder Judiciário, conseguimos outro
recurso para publicação desta segunda versão do livro, que conta

14
com o trabalho de editoração da Pedro e João editores. Esperamos,
assim, que essa nova versão possa ir ainda mais longe e chegar a
mais pessoas interessadas em conhecer, pensar e dialogar sobre os
desafios e possibilidades de promover atividades educativas e
culturais no interior das prisões.

15
16
Apresentação

O que determina o sucesso das empreitadas? A confluência de


múltiplos fatores, provavelmente. E há que se frisar: obter sucesso
não significa atingir a perfeição. Significa, apenas, que no balanço
geral os ganhos foram maiores que as perdas. Só que isso não é
pouco, pois permite que avancemos e avançar é urgente, sobretudo
em relação à prisão.
Em nossa leitura, a experiência que temos vivido de construir
e tentar consolidar o espaço educativo dentro da Cadeia Pública de
Tocantinópolis tem sido exitosa, ou seja, constitui-se como uma
empreitada de sucesso. Não queremos com isso nos tornar fórmula,
mas mostrar que podemos dar certo, contrapor assim a descrença,
anunciar inéditos viáveis1 e juntar forças na esperança de que o
cumprimento de pena pode ser outra coisa além daquilo que nos
apresentam, insistentemente: superlotação, degradação, violência,
selvageria.
Nossa confluência de múltiplos fatores se inicia com o
encontro de um servidor administrativo do sistema prisional com
uma professora universitária, para uma conversa numa disciplina
do curso de Pedagogia da Universidade Federal do Tocantins. Do
encontro, uma indagação/questionamento: por que não aproximar
a universidade da cadeia pública para fomentar a educação em
contexto de privação de liberdade? Da aproximação à primeira, e
primordial, parceria: educação e segurança, juntas! Docente
universitária e diretor da unidade prisional, ambos buscando fazer
da prisão uma instituição também educativa. E, posteriormente,
surgem novos fatores, novas parcerias: para articular e ganhar
força, o Ministério Público; para viabilizar e dar concretude, o
somatório de esforços de diversas instituições (Universidade

1FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do


Oprimido. 17 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

17
Federal do Tocantins, Secretaria de Cidadania e Justiça, Secretaria
de Educação, Juventude e Esporte, Prefeitura Municipal de
Tocantinópolis e Ministério Público); para fazer acontecer, as
graduandas extensionistas e as pessoas presas. É a junção dessas
pessoas e instituições que nos faz dar certo, a despeito das
resistências, dos desafios, das precariedades e dos preconceitos.
Para nós, é importante que aquilo que fazemos no interior de
uma unidade prisional não fique preso e restrito a esse contexto.
Esta publicação quer, pois, ser livre. Ela é fruto desse desejo,
sempre presente e persistente, de sair da prisão. Queremos mostrar
que quando se abre espaço para educação, cultura e lazer dentro de
unidades prisionais é possível nutrir a criação, a reflexão, a
invenção e a transformação, dando visibilidade ao potencial
humano que há em qualquer pessoa, inclusive as presas.
Na teimosa esperança de que podemos ser mais2 estamos, em
coletivo, nos construindo, desconstruindo e reconstruindo por
meio da leitura e da escrita. Vamos assim nos libertando de nós
mesmos, expandindo nossos horizontes, descobrindo outros
modos de ser. Neste horizonte é que organizamos esta publicação,
escrita a várias mãos.
As escritas que compõem esse livro são, de certo modo, livres.
O objetivo não é ser uma obra estritamente acadêmica, no sentido
formal, pois não consiste na análise de conhecimentos
sistematicamente produzidos. O intuito é registrar, compartilhar e
celebrar nossa experiência. É provável que, futuramente, dessa
experiência que temos vivido se desdobrarão análises
sistematizadas, com o objetivo de contribuir para a necessária
produção de conhecimento sobre educação em espaços prisionais,
mas não é esse o caso ainda. Não desconsideramos o valor dessa
obra para a melhor compreensão das especificidades do espaço
prisional no que tange a prática educativa, entretanto, temos
clareza que parte dos textos aqui reunidos não foram estruturados
no dito “rigor científico”: aproximam-se mais de relatos de

2 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 50ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.

18
experiência, sem fazer, todavia, muitos diálogos com referenciais
teóricos, como é habitual na academia.
Para a composição do livro, delimitamos apenas as vozes que,
de alguma forma, estão vinculadas a essa experiência e que por isso
deveriam ser ouvidas: agentes educacionais que promovem a
educação em contexto de privação de liberdade no estado do
Tocantins, população carcerária participante do projeto, agentes
penitenciários, extensionistas da UFT e o gestor da unidade
prisional. Sem dúvida poderiam ser incluídas outras pessoas, mas
essas nos pareceram as fundamentais.
A obra foi submetida a uma revisão textual, porém sem alterar
o conteúdo dos textos produzidos. Os autores possuem habilidades
distintas com a experiência da escrita e não foi nossa intenção criar
uma estrutura textual homogênea. Cada um escreveu o que quis, a
partir do que considerou pertinente falar sobre seu contato com o
projeto e o espaço educativo construído na Cadeia Pública de
Tocantinópolis. Alguns textos foram individuais, outros coletivos.
Alguns mais longos, outros mais curtos. Não definimos quantidade
de caracteres mínimo, nem impusemos limites. Organizá-los foi
como alinhavar retalhos disformes, porém de igual valor para a
composição dessa colcha-livro. O resultado, tal como o próprio
projeto e o espaço educativo que temos construído, é algo
experimental.
Parafraseando Clarice Lispector podemos dizer que, também
para nós, liberdade é pouco, o que desejamos ainda não tem nome.

19
20
Prefácio de fora

A vida no cárcere, para muitas pessoas da sociedade, é


simplesmente a forma de retribuição estatal do mal que o indivíduo
praticou, é a manifestação concreta do Estado-Juiz para aquele que
insiste em quebrar as regras de harmonia e paz social.
Essa ilação não é de todo errada, pois se vislumbra o caráter
punitivo da pena para o transgressor da norma penal. Não
obstante, a pena imposta ao indivíduo que comete um ilícito penal
perpassa esse caminho para, em última análise, buscar a
ressocialização e, com isso, trazer o infrator para o convívio social.
A obra que ora se apresenta é o exemplo vivo de que a
ressocialização é possível e, mais do que isso, é viável e deve ser
assumido pelo Poder Estatal. É capaz de transformar vidas e,
efetivamente, fazer com que o Estado cumpra seu mister na
aplicação da pena, não só a partir do seu caráter punitivo e
retributivo, como também o de resgatar o indivíduo para o
convívio harmonioso de onde saiu.
O experimento de ler e escrever na cadeia de Tocantinópolis
tem sido uma das mais acertadas formas de ressocialização do
preso, isso porque vem se consolidando como uma verdadeira
força motriz na formação de um cidadão, o qual, verdadeiramente,
sairá do cárcere muito diferente do que quando lá entrou.
Alguns dos cidadãos que se encontram ergastulados na cadeia
pública de Tocantinópolis, ao final do cumprimento de suas penas
corporais, sairão alfabetizados, pois somente lá conseguiram a
oportunidade de estudar; alguns outros sairão, inclusive, com
perspectivas melhores de vida: eis que conseguiram ingressar em
cursos superiores; outros, ainda, através do mundo mágico da
leitura poderão interpretar a vida de outra forma, mais
humanizada, mais amável e mais respeitosa para com o seu
semelhante.

21
Nos primeiros capítulos dessa tão importante obra, tem-se
uma leitura mais acadêmica do projeto desenvolvido a partir dos
sonhos de seus idealizadores. Os textos abordam o nascimento e
desenvolvimento de um desejo de contribuir para uma melhoria
social, a partir das pessoas encarceradas, como verdadeiro meio de
ressocialização. A aceitação e participação efetiva do Poder Público
também tem papel importante na construção desse cenário e se
encontra devidamente registrado na obra.
Na sequência, pode-se observar o apogeu da obra quando os
encarcerados se expressam, em textos simples, porém com uma
incomensurável profundidade no sentir e no expressar de suas
singelas palavras, as maravilhas que são descobertas com o hábito
de ler e interpretar textos consagrados da literatura brasileira e até
mesmo estrangeira.
É essa a grande conquista do livro: o despertar no encarcerado
a paixão pela leitura, pela sua interpretação, a qual poderá,
certamente, dar outro rumo para suas vidas.
O projeto “leitura na prisão”, além de ter o condão de
transformar a vida interior do cidadão que encontra-se privado da
sua liberdade (e ressalte-se, somente a liberdade lhe foi tolhida,
pois os demais direitos inerentes à pessoa humana, todos lhes são
assegurados), também serve de meio hábil para diminuição da
pena, sendo essa uma forma legal de remir a pena.
Portanto, nos seus 160 anos de fundação, a cidade de
Tocantinópolis recebe essa expressiva obra como um presente e,
para além disso, traz o recado de que é possível sim resgatar a vida
do ser humano que, por algum motivo, desviou-se da sua rota, do
seu curso normal de cidadão de paz e de bem.
Desejo uma excelente leitura a todos.

Celsimar Custódio Silva (Promotor de Justiça)


Tocantinópolis, Tocantins.
Fevereiro de 2019.

22
Prefácio de dentro

Quando fui convidado para escrever esse texto senti uma


imensa emoção e gratidão por ter sido honrado com tão fúlgida
tarefa. Porém, senti também minhas pernas tremerem e minhas
mãos suarem, pois me pareceu uma grande responsabilidade
transpor os preconceitos fortemente enraizados e sublinhar as
práticas que trazem (possibilidade de) transformação e esperança
para o universo prisional.
Quais são as reações mais frequentes quando se fala em
cadeias, presídios e penitenciarias? Não importa o substantivo
usado, logo surgem os adjetivos empregados às pessoas privadas
de liberdade, que vai dos mais genéricos aos mais específicos, todos
generalizados, sem cota de isenção. Conceitos pré-concebidos
sobre quem está do lado de dentro dos muros das prisões
frequentemente excluem a possibilidade de reconhecer que aqui
dentro estão seres humanos dotados de sentimentos, emoções,
medos, sonhos e histórias que muitas vezes são constituídas por
privações, sofrimentos e violências que distorcem a personalidade
e a própria humanidade do ser.
Sob essa ótica estigmatizada e estereotipada construída em
torno das pessoas privadas de liberdade, limitamos os horizontes
de uma possível ressocialização em sua essência, pois é criado uma
barreira em volta do universo carcerário que dificulta a saída do
submundo, empurrando-nos cada vez mais para esse abismo. E,
com efeito, somos obrigados a incorporar as leis e regras desse
universo buscando sobrevivência. Como resposta, grupos
dominantes nesses espaços nos recebem com um abraço
confortante, análogo àquele dado pela jiboia em sua presa.
Mas existem ações que transformam a atmosfera das prisões,
que ampliam os horizontes, que dão voz, provocam reflexões
críticas e, acima de tudo, valorizam o ser humano.

23
A educação é uma forte aliada, mas pouco valorizada e
reconhecida no processo de ressocialização; é um terreno a ser
conquistado continuamente, pois a crise no processo educacional
fora dos muros, associado aos preconceitos empregados às pessoas
privadas de liberdade, põe em descrença a educação dentro dos
muros.
É preciso sensibilizar o pensamento e compreender que
ressocialização e punição são coisas diferentes, que para além da
punição é preciso criar um ambiente que, de fato, ressocialize
indivíduos e não que produza uma massa populosa de pessoas
revoltadas, dispostas a violarem leis e irem até as últimas
consequências para galgarem o que muitas vezes é ofertado pelas
mídias e negado pelo sistema.
Esse livro torna visível à sociedade externa aos muros os frutos
colhidos no projeto de leitura desenvolvido com a nossa parceria
na CPP – Tocantinópolis/TO. Representa um avanço na
desconstrução de preconceitos e mostra o poder da leitura na
criação de novas perspectivas, que possibilitam a quebra do ciclo
vicioso da reincidência.
Divirta-se, descubra, reflita, desconstrua e surpreenda-se com
a leitura.

Denisvan Souza dos Santos


Tocantinópolis, Tocantins.
Janeiro de 2019.

24
Educação, leitura e remição de pena

Aline Campos

O artigo 205 da Constituição Federal de 1988 afirma que “a


educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando
o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício
da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1998,
p.123)1; enquanto que o artigo 215, por sua vez, afirma que “o
estado garantirá a todos o pleno exercício dos diretos culturais e
acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a
valorização das manifestações culturais” (BRASIL, 1998, p. 126)2.
Tais compreensões de direito são reafirmas pela Lei de Execução
Penal (LEP) que, em seu artigo 10, prevê a assistência educacional
à pessoa em situação de privação de liberdade. Em 2009 foi
aprovada a resolução que dispõe sobre as Diretrizes para oferta de
Educação nos estabelecimentos penais (Resolução nº03, de 11 de
março de 2009); em 2010 foram aprovada as Diretrizes Nacionais
para Educação em Prisões (Resolução CNE/CEB nº 02, de 19 de
maio de 2010); desde julho de 2011 a remição de pena por estudos
está assegurada por lei (Lei n°12.433, de 29 de junho de 2011); e em
26 de novembro de 2013 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
publicou a Recomendação nº44, que dispõe sobre atividades
educacionais complementares para fim de remição de pena pelo
estudo e estabelece critérios para a admissão pela leitura, o que
evidencia um significativo ganho legislativo no que tange a
educação e cultura nas prisões. Percebe-se, assim, que no campo

1 BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil,


Brasília, DF, Senado, 1998.
2Ibidem.

25
legislativo tem-se assegurado a educação e a cultura como direitos
humanos, inclusive para as pessoas presas.
O crescimento dessas discussões tem propiciado avanços na
perspectiva da humanização dos espaços de privação de liberdade.
Porém, esse é um tema sempre controverso. Não raras vezes as
ações positivas dentro do contexto prisional são apontadas por
parcela da sociedade como benefício ou até prêmio ao
comportamento criminoso. Contudo, há que se enfatizar o
argumento de que as pessoas que vivem a situação de privação de
liberdade continuam sendo cidadãos não só de deveres, mas
também de direitos.
Segundo Bobbio (2004)3, a história das declarações dos direitos
humanos passa por três fases: (1) constituem-se como teorias
filosóficas, ou seja, estão no campo do pensamento e da idealização;
(2) ganham concretude e aplicabilidade, sendo identificadas nas
práticas sociais; e (3) tornam-se universal, devendo ser garantida e
preservada sua manutenção. No caso específico da educação e da
cultura nas prisões, é possível perceber que avanços significativos
foram feitos no campo legislativo, ou seja, a idealização está posta
em forma de leis. Tal aparato legislativo tem dado suporte para a
articulação de ações que visam tornar tais direitos realidades
concretas. Espaços educativos tem sido criados dentro de diversas
unidades prisionais, ainda que improvisados e atendendo a um
número limitado de pessoas. Falta, contudo, tornar tais direitos
universais, de modo a atingir toda a população carcerária. Por essa
razão, concordamos com Bobbio (2004)4 de que o desafio atual não
é fundamentar os direitos, mas sim garanti-los e protegê-los. Na
realidade prisional, há que se acrescentar o desafio de lutar contra
discursos, como aquele que é evidenciado por meio de frases como
“direitos humanos para humanos direitos”, que, perigosamente,
visam excluir do direito determinados grupos socialmente
marginalizados.

3 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 7 reimp. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
4 Ibidem.

26
Conforme destaca José (2017, p. 199)5 “a educação é tanto um
direito humano em si, como uma forma indispensável para
fortalecer o respeito a outros direitos e liberdades fundamentais do
ser humano”. Ou seja, por meio da educação é possível compreender
e reconhecer outros direitos. Justamente por essa razão, nos espaços
prisionais a garantia de acesso à educação deve ser compreendida
como demanda urgente. Se partimos da compreensão, prevista na
Lei de Execução Penal, de que a função da pena, além de cumprir a
sentença, consiste em promover a integração social da pessoa presa
quando de seu retorno à sociedade, é fundamental que o espaço
educativo cresça e se fortaleça dentro das prisões. Isso porque é, não
só, mas principalmente, através das ações educativas que se torna
possível “enxergar espaços de possibilidade de humanização em um
dos sistemas que mais se presta para a desumanização” (BUENO,
2009, p.09)6.
Se buscarmos compreender o efeito do encarceramento na
pessoa presa torna-se possível perceber que, como bem destaca
Resende (2009, p. 51)7, “é como se a prisão lhes tirasse o passado,
lhes negasse o futuro e os vinculasse num tempo presente contínuo,
paralisado ali, no cárcere”. Daí, por exemplo, a compressão
crescente de que as prisões se constituem, cada vez mais, como
“escolas do crime”. Na prisão fala-se, majoritariamente, sobre a
própria prisão e o que os conduziram a essa realidade: os crimes.
Trancafiadas a maior parte do tempo em celas superlotadas, as

5 JOSÉ, Gesilane de Oliveira Maciel. Ações educacionais nas prisões e a garantia


de direito aos indivíduos privados de liberdade. In: TORRES, Eli Narciso; JOSÉ,
Gesilane de Oliveira Maciel (Org.). Prisões, Violência e Sociedade: debates
contemporâneos. 1 ed. Jundiaí, SP: Paco, 2017, p. 191 – 208.
6 BUENO, José Geraldo Silveira. Prefácio. In: LOURENÇO, Arlindo da Silva;

ONOFRE, Elenice Maria Cammarosano. O espaço da prisão e suas práticas


educativas: enfoques e perspectivas contemporâneas. São Carlos: EdUSFCar,
2011. p. 07 – 09.
7 RESENDE, Selmo Haroldo de. A vida na prisão: histórias de objetivação e

sujeição na educação do condenado. In: LOURENÇO, Arlindo da Silva; ONOFRE,


Elenice Maria Cammarosano. O espaço da prisão e suas práticas educativas:
enfoques e perspectivas contemporâneas. São Carlos: EdUSFCar, 2011. p.49 – 80.

27
pessoas presas são submetidas a uma série de processos educativos
específicos desse contexto, adquirindo assim aprendizagens
necessárias para a sobrevivência nesse espaço e que as envolvem
cada vez mais com a criminalidade. Para reverter essa situação “é
necessário, então, que a prisão ensine algo de diferente da própria
prisão” (DE MAEYER, 2013, p. 44)8 e para isso urge expandir e
fortalecer a educação e a cultura nos espaços de privação de
liberdade. Oliveira et al (2017, p.250)9 corroboram esse argumento
ao afirmarem que:

A troca de experiência aluno/professor e com os outros alunos propicia à


pessoa presa a participação em um convívio salutar e de aprendizado, o que
justifica a existência da escola no ambiente carcerário e de seu papel
fundamental no processo de ressocialização do preso, apresentando a ele a
possibilidade de resgatar ou aprender uma outra forma de se relacionar,
diferente das relações habituais do cárcere.

Vale ressaltar, contudo, que a promoção da educação e da


cultura dentro das prisões é uma tarefa demasiadamente complexa,
pois “a dinâmica dessa instituição não almeja a formação do
indivíduo, mas sua adaptação excessiva, portanto a sua anulação”
(SANTOS, 2009, p.125)10. Não basta promover a educação e a
cultura, há que se pensar criticamente em como promovê-las de
modo que elas não se configurem apenas como mais um

8 DE MAEYER, Marc. A educação na prisão não é uma mera atividade. Educação


& Realidade, Porto Alegre, v.38, n.1, p.33-49, jan./mar. 2013.
9 OLIVEIRA, Leandra Salustiana da Silva; MENDONÇA, Mônica Renata Dantas;

QUEIROZ, Renato Barbosa. Educação Prisional: mecanismo de autonomia ou de


poder? In: TORRES, Eli Narciso; JOSÉ, Gesilane de Oliveira Maciel (Org.). Prisões,
Violência e Sociedade: debates contemporâneos. 1 ed. Jundiaí, SP: Paco, 2017, p.
239 – 258.
10 SANTOS, Silvio dos. A educação escolar na prisão sob a ótica dos detentos. In:

ONOFRE, Elenice Maria Cammarosano (Org.). A educação escolar entre as


grades. São Carlos: EdUFSCar, 2007. p. 93 – 109.

28
instrumento de disciplinarização e anulação de identidades. Nesse
sentido, De Maeyer (2006, p.22)11, enfatiza que:

O direito à educação deve ser exercido sob algumas condições: não pode ser
considerado sinônimo de formação profissional, tampouco usado como
ferramenta de reabilitação social. É ferramenta democrática de progresso,
não mercadoria. A educação deve ser aberta, multidisciplinar e contribuir
para o desenvolvimento da comunidade.

O referido autor problematiza o papel da educação dentro das


prisões, que muitas vezes apenas reforça as estruturas disciplinares
e volta-se apenas para o atendimento ao mercado de trabalho.
Ainda que seja indiscutível o valor do trabalho como vínculo de
inserção social e importante demanda da Educação de Jovens e
Adultos, a educação não pode restringir-se a isso, não pode perder
seu princípio emancipatório. Ou seja, ela deve estar a serviço do
progresso da sociedade e não do mercado de trabalho. Trata-se,
assim, de não perder de vista seu papel no desenvolvimento da
humanização. Na complexidade desse processo, é necessário
compreender que:

Ensinar em um ambiente singular como a prisão exige do educador, acima


de tudo, uma tomada de consciência da realidade prisional, de suas nuances
e cultura própria, e agir eticamente em relação ao ambiente e em relação aos
presos, sujeitos do processo de aprendizagem, pois, apesar e
independentemente do crime cometido, são seres humanos dotados de
direito, que merecem respeito e atenção à sua dignidade. (OLIVEIRA et al,
2017, p. 251 - 252)12.

11DE MAEYER, Marc. Na prisão existe a perspectiva da educação ao longo da


vida? Revista Alfabetização e cidadania: Revista de Educação de Jovens e
Adultos – Diversidade do Público EJA, n. 19, jul. 2006.
12 OLIVEIRA, Leandra Salustiana da Silva; MENDONÇA, Mônica Renata Dantas;

QUEIROZ, Renato Barbosa. Educação Prisional: mecanismo de autonomia ou de


poder? In: TORRES, Eli Narciso; JOSÉ, Gesilane de Oliveira Maciel (Org.). Prisões,
Violência e Sociedade: debates contemporâneos. 1 ed. Jundiaí, SP: Paco, 2017, p.
239 – 258.

29
Nesse sentido, é importante problematizar a ausência da
educação em contexto de privação de liberdade nas grades
curriculares de diversos cursos de licenciatura. Além de serem
escassas as ofertas de educação formal nas prisões, quando elas
ocorrem atendem um número limitado de pessoas presas e são
conduzidas por professores que, na grande maioria das vezes, não
tiveram preparo algum para lidar com uma realidade repleta de
especificidades. São profissionais que geralmente desconhecem a
realidade prisional e que, na maior parte das vezes, nunca
refletiram sobre as demandas da educação nesse contexto. Passam
a ter que aprender na prática, em geral sozinhos, o que significa
educar na prisão e, por isso, correm o sério risco de reproduzirem
a educação escolar da qual a maior parte da população carcerária
evadiu quando estavam nas ruas.
Dentro desse cenário complexo, Scarfó el al (2009)13, apesar de
reconhecerem a responsabilidade indiscutível do Estado na
promoção e garantia do acesso à educação para a população
carcerária, problematizam também o papel da sociedade civil, a qual
consideram fundamental tanto na promoção de práticas educativas,
quanto no controle e fortalecimento das ações do Estado. Esta é uma
importante problematização, pois as prisões são, historicamente,
espaços que isolam e que se querem isolados. A sociedade, via de
regra, não se interessa pelo que ocorre no interior das prisões,
mostrando-se preocupada com esta realidade apenas quando os
problemas explodem em forma de rebeliões ou fugas. Ou seja, a
sociedade tem sido negligente com sua responsabilidade em relação
à condição de vida da população que vive o aprisionamento e se
sente acuada e amedrontada frente aos resultando de tal abandono.
Reverter esse quadro requer uma abertura das prisões, o que inclui

13SCARFÓ, Francisco; BREGLIA, Florencia; FREJTMAN, Valéria. Sociedade civil


e educação pública nos presídios: questões para reflexão. In: LOURENÇO,
Arlindo da Silva; ONOFRE, Elenice Maria Cammarosano. O espaço da prisão e
suas práticas educativas: enfoques e perspectivas contemporâneas. São Carlos:
EdUSFCar, 2011. p.147 – 165.

30
a entrada da sociedade civil nesse contexto assumindo sua função de
promotora de educação e da cultura.
Assim como compete ao Estado promover e garantir a
educação formal, cabe a sociedade civil alavancar a educação não
formal dentro das prisões, a qual “está bastante vinculada ao
conceito de cultura e aos princípios de emancipação, cidadania e
autonomia, e configura-se como mecanismo de promoção,
proteção e reparação dos direitos humanos” (JOSÉ, 2007, p. 202).
Como estratégia de valorização e incentivo à participação nas
atividades educativas, a Lei de Execução Penal (LEP) prevê a
remição de pena por estudo, que é entendida como cumprimento
de pena por meio do envolvimento com atividades educativas.
Remição porque entende-se que seja um pagamento e não um
perdão, como na remissão. As pessoas presas podem, portanto,
buscar se engajarem em seu processo de transformação para, assim,
ampliarem suas possibilidades de (re)socialização14.
A referida lei determina que para cada 12 horas de estudo a
pessoa presa tem o direito de remir um dia de pena. Ou seja, horas
estudadas são convertidas em tempo de pena cumprida,
reduzindo-se o tempo total que a pessoa deve permanecer privada
da liberdade.
Outra possibilidade de remir a pena, ainda não incluída na
LEP, é por meio da leitura. A recomendação nº44 do CNJ estipula
que a pessoa presa terá, no período compreendido entre 21 e 30
dias, a possibilidade de ler um livro e apresentar ao final da leitura
uma resenha sobre a obra lida, a qual será convertida em quatro
dias de remição. Portanto, em um ano podem ser remidos por

14 Utiliza-se a grafia (re)socialização no lugar de ressocialização para marcar a


problematização em relação ao prefixo RE que remete à uma nova chance. Tal
insatisfação se justifica a partir dos seguintes entendimentos: (1) As pessoas em
situação de restrição e privação de liberdade nem sempre estavam devidamente
inseridas na sociedade antes de serem aprisionadas; (2) As prisões são instituições
que fazem parte da sociedade, desse modo se constituem como mais um espaço
de convívio, onde ocorrem processos de socialização; (3) A socialização é um
processo contínuo, portanto, ocorre antes, durante e após o encarceramento.

31
leitura, no máximo, 48 dias. A recomendação é clara no que diz
respeito à necessidade de que as resenhas sejam avaliadas, o que
está condicionado à capacidade gerencial da unidade prisional,
pois não são disponibilizados funcionários extras para atenderem
a essa demanda. Além disso, sabe-se que, infelizmente, atividades
que possibilitam remição de pena são ainda restritas e reduzidas na
maior parte das unidades prisionais.
Paralelo a essas questões pertinentes aos espaços de privação
de liberdade, temos no espaço universitário a histórica
desvalorização da extensão. Justamente as atividades que
articulam a universidade com a sociedade são as menos
incentivadas e, consequentemente, menos praticadas por seus
servidores.
Eis então que essas duas questões paralelas – a remição de
pena e a extensão universitária – podem se cruzar, formando assim
um ponto de encontro. Ou seja, a Universidade, enquanto
Instituição de Ensino com responsabilidades sociais, apresenta-se
como possibilidade de promover atividades educativas no contexto
prisional com vistas à remição de pena, contribuindo assim no
processo de garantia do direito humano do acesso à educação para
as pessoas presas.

32
Educação nas Prisões do Tocantins:
o COMEP como estratégia de participação social

Claudenice Passos Palaci


Valcelir Borges da Silva
Maria do Socorro Silva

Alguns aspectos históricos da educação nas prisões do Estado do


Tocantins

A educação figura como um direito humano fundamental


conforme previsto em nossa Constituição Federal e amparado por
tratados e acordos internacionais como a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, sendo, em todo caso, extensivo à pessoa presa
que não pode ser privada dos direitos não atingidos pela sentença
a qual fora condenada. É também objeto de legislação
infraconstitucional que, no âmbito da Lei de Execução Penal
brasileira, são estabelecidos parâmetros de atuação do executivo
para a garantia deste direito à pessoa presa durante o processo de
cumprimento da pena. Nos estados, a execução da Política de
Educação nas Prisões deve ser fruto de uma articulação entre o
órgão responsável pela administração penitenciária e prisional com
a rede de instituições ofertantes, havendo necessidade de ampla
mobilização e diálogo entre estas instituições, bem como com os
órgãos da justiça, da administração pública local e entes da
sociedade civil organizada.
A escolarização formal no Sistema Penitenciário do Tocantins
passou a ser formulada a partir do ano de 20011, momento em que

1 Dados referentes à história da educação nas prisões do Tocantins, salvo outras


indicações, foram obtidos no Plano Estadual de Educação em Prisões do
Tocantins, disponível em: <http://depen.gov.br/DEPEN/dirpp/cgpc/acoes-de-
educacao/peep-to.pdf>. Último acesso em 24. Jan. 2019.

33
o Governo do Estado, por meio da então Secretaria Estadual da
Educação e Cultura, contemplou esta demanda no Planejamento
Estratégico Estadual – PES. Diagnósticos referentes ao perfil das
pessoas privadas de liberdade daquela época, realizado junto às
Unidades Prisionais, revelavam um baixo nível de escolaridade da
população privada de liberdade, aliado a outros fatores sociais
como a fragilidade dos vínculos com seus familiares, a
hipossuficiência e vulnerabilidade econômica, a exposição a
diversos modos de violência e negação de direitos e o uso abusivo
de drogas. Esta realidade exigia urgente intervenção do Estado no
sentido de promover políticas públicas mais sólidas e consistentes
voltadas à melhor humanização do ambiente carcerário e isso
exigia maior garantia dos direitos das pessoas que lá estavam
cumprindo suas penas.
Nesse contexto, alguns programas, projetos e ações de
inclusão já disponíveis no sistema educacional no extramuros
foram disponibilizados para a população privada de liberdade,
iniciando o longo processo de preparação destes para uma inclusão
produtiva na sociedade. Entre as ações realizadas com este intuito,
destaca-se a participação de 26 (vinte e seis) alunos-internos nos
exames supletivos de ensino fundamental e médio no ano de 2001
e, a partir de então, houve participação periódica deste público
nestes exames e a continuidade da aplicação mesmo após serem
substituídos pelo Exame Nacional de Certificação de Competências
da Educação de Jovens e Adultos-ENCCEJA e pelo Exame
Nacional de Ensino Médio-ENEM. Tomando por base experiências
já em andamento em outros Estados, o Tocantins estabeleceu
parcerias com instituições educacionais e outras afins, visando à
expansão e ao aprimoramento da oferta educacional no Sistema
Prisional.
No ano de 2002, motivado por pressões externas, o Estado
iniciou de maneira mais sistemática a oferta de educação formal aos
adolescentes em conflito com a lei no cumprimento de medidas
socioeducativas, o que possibilitou que algumas ações
contemplassem também o público adulto do sistema prisional. Mas

34
a oferta específica para este público só veio a se consolidar a partir
de novembro de 2004, quando foi realizada reunião técnica com
representantes das secretarias estaduais da Educação (SEDUC), da
Cidadania e Justiça (SECIJU) e da Segurança Pública (SSP), para
viabilizar a implantação da educação nas prisões do Estado, o que
resultou na assinatura do Convênio 408/2004, publicado no Diário
Oficial n° 1847 do dia 21 de janeiro de 2005 (PORTO JUNIOR;
SOUZA, 2008, p. 16)2. A partir deste convênio, constituiu-se um
grupo de trabalho com o objetivo de elaborar um projeto piloto de
educação para o sistema prisional denominado projeto
“Ressocialização Educativa na Casa de Custódia de Palmas”.
O projeto logo tomou fôlego como “Ressocialização Educativa
no Sistema Prisional do Tocantins”, mantendo-se como iniciativa
conjunta entre a Secretaria da Educação e a Secretaria da Defesa e
Proteção Social (antes de Cidadania e Justiça), com apoio do
Ministério da Educação e Cultura e do Ministério da Justiça, cujo
objetivo era fortalecer as ações educativas desenvolvidas nas
Unidades Prisionais do Tocantins por técnicos das secretarias em
parceria com professores das universidades e membros da
sociedade civil. Este projeto foi implantado e consolidado,
mediante o esforço coletivo dos professores, alunos e agentes
penitenciários, tendo sido divulgado e partilhado em eventos
regionais e nacionais na área da educação. Em 2006, o Projeto
Ressocialização Educativa no Sistema Prisional do Estado do
Tocantins foi expandido de modo a atender outras unidades
prisionais: Unidade de Tratamento Penal Barra da Grota-
Araguaína, Centro de Reeducação Social Luz do Amanhã-Cariri,
Casa de Prisão Provisória de Porto Nacional e Unidade Prisional
Feminina de Palmas.
Inicia-se, então, uma nova fase de fortalecimento e de
aprofundamento teórico e metodológico de professores e de

2 PORTO JUNIOR, Francisco Gilson Rebouças; SOUZA, Sandoval Antunes de


(Org.). Educação Prisional e Práticas Pedagógicas: construindo experiências.
UNITINS, Palmas, 2008.

35
agentes penitenciários, momento em que são construídos módulos
de estudos e realizados os encontros de formação continuada para
possibilitar a ampliação da ação pedagógica dos envolvidos no
processo. Com o avanço da compreensão do papel da educação nas
prisões, sentiu-se a necessidade de transformar o caráter provisório
do projeto em Escola definitiva, o que ocorreu com a publicação da
lei de criação da “Escola-interna Estadual Nova Geração” no
âmbito da Casa de Prisão Provisória de Palmas (antiga Casa de
Custódia de Palmas), através do Decreto Nº 2.822, de 7 de agosto
de 2006, iniciando formalmente a oferta da educação nas prisões do
Tocantins com turmas de ensino fundamental, séries iniciais 1° e 2°
segmentos da EJA, e, em seguida, o ensino médio, 3° segmento
(SILVA, 2008, p. 48)3.
Neste mesmo ano foi criado o Grupo de Pesquisa em
Educação, Cultura e Transversalidade (GPECT) por docentes da
Fundação Universidade do Tocantins (UNITINS) e pesquisadores
de outras instituições, cujo objetivo era desenvolver e divulgar
pesquisas e experiências em temáticas da educação, entre elas a
educação no sistema prisional. Este grupo foi responsável pela
sistematização de algumas experiências da área e fundamental
para a realização da Especialização “Educação e Práticas
Pedagógicas no Sistema Prisional” ofertada a professores, agentes
penitenciários e técnicos envolvidos com a educação no Sistema
Prisional, disponibilizando os módulos de estudo e outras
publicações do grupo na sua página institucional4.
No ano de 2007 houve a implantação do programa
Profuncionário nas unidades prisionais: Unidade de Tratamento
Penal Barra da Grota (Araguaína), Centro de Reeducação Social
Luz do Amanhã (Carirí), Casa de Prisão Provisória de Palmas
(Palmas), Casa de Prisão Provisória de Porto Nacional (Porto

3 SILVA, Valcelir B. da. Olho-Espelho: reflexões sobre a intervenção pedagógica


no ambiente da Casa de Prisão de Palmas-TO. 2008. 88f. Dissertação (Mestrado em
Ciências do Ambiente). Universidade Federal do Tocantins, Palmas, 2008.
4 Ver: <https://www.unitins.br/gpect/default.html>. Último acesso em 23. Jan. 2019.

36
Nacional) e Cadeia Pública de Tocantinópolis (Tocantinópolis). O
programa vinha sendo desenvolvido pelo governo do Estado
desde 2002, através de parceria entre o Ministério da Educação
(MEC), a Universidade de Brasília (UNB) e governo do Tocantins,
através da SEDUC, e visava a profissionalização de servidores não
docentes das escolas estaduais e municipais do Tocantins. O
programa foi levado para dentro do sistema penitenciário, através
das escolas estaduais, com o intuito de oferecer a profissionalização
técnica dos detentos nos cursos de Alimentação Escolar ou em Meio
Ambiente e Manutenção da Infra-Estrutura Escolar.
Em função do número excessivo de detentos, do número
insuficiente de agentes carcerários, da morosidade do sistema
judiciário e de espaços físicos inadequados ao atendimento
educacional, algumas unidades prisionais do estado, no ano de
2010, foram impossibilitadas de manter programas de
escolarização e reinserção social, ocasionando a paralisação no
atendimento educacional em algumas unidades prisionais, tais
como: Casa de Prisão Provisória de Palmas, Unidade de
Tratamento Penal Barra da Grota (Araguaína), Centro de
Reeducação Social Luz da Amanhã (Cariri).
Em 2012, o governo do Estado, por meio de parceria entre as
Secretarias da Educação e da Cidadania e Justiça, lançou o
Programa de Educação em Prisões “Da Reinserção para a Vida
Cidadã”, cujo objetivo era ofertar cursos de qualificação
profissional aos alunos privados de liberdade, promovendo a
redução da pena e a ressocialização através do trabalho de
recuperação e manutenção do mobiliário escolar das unidades
estaduais de ensino. Este programa oferecia a qualificação
profissional aos presos do regime fechado para a recuperação de
carteiras escolares e cursos de qualificação profissional para os
presos do regime semiaberto de manutenção e conservação das
escolas estaduais. Embora bastante interessante, o programa foi
muito pouco efetivado.
Atendendo a uma demanda dos ministérios da Educação e da
Justiça, em 2012 foi elaborada a primeira versão do Plano Estadual

37
de Educação nas Prisões do Tocantins (PEEP), o qual não chegou a
ser implementado em sua totalidade. O PEEP constitui o principal
instrumento de planejamento da Política Pública Estadual de
Educação em Prisões, devendo ser avaliado constantemente e
reformulado a cada dois anos. Uma nova versão do PEEP chegou a
ser trabalhada dentro da gerência de educação de jovens e adultos
da SEDUC e passou pelo setor responsável pela Política de
Educação para o Sistema Prisional da SECIJU para atualização de
dados dos presos. O PEEP constitui fundamental requisito para que
os estados possam obter apoio técnico e financeiro do governo
federal para a execução das ações de educação em prisões no
Estado.
Em 2014 a SEDUC, juntamente com a SECIJU, firmaram o
Termo de Cooperação Técnica nº 231/2014, publicado no Diário
Oficial do Estado do Tocantins nº 4.187 de 07 de agosto de 2014, o
qual objetiva atribuir competências entre as cooperantes para a
efetivação da educação no sistema penitenciário do Estado do
Tocantins. O referido Termo possui como objetivo a cooperação
técnica, pedagógica, material e financeira entre os partícipes, com
intuito de garantir a implementação da Educação Básica, em nível
de Ensino Fundamental e Médio na modalidade de Educação de
Jovens e Adultos, em Educação Profissionalizante e Educação
Especial, conforme diagnóstico, nas unidades prisionais do Estado
do Tocantins, a fim de oportunizar a escolarização e formação crítica
dos reeducandos e sua reinserção social, bem como instituir
mecanismos que garantam a participação social no planejamento e
execução da política de educação nas prisões.
Em 2015 houve a participação das Escolas-internas nas
audiências públicas que tinham como finalidade a elaboração do
Plano Estadual de Educação (PEE/TO) e culminou com a inclusão
no PEE TO de meta específica da educação em prisões e suas
estratégias. No mesmo ano o segmento passou a ter representação
no Fórum Estadual Permanente de Educação de Jovens e Adultos
(FPEJA), alguns profissionais da área representaram o Estado do
Tocantins como delegados no Encontro Nacional de Educação de

38
Jovens e Adultos-ENEJA, realizado em Goiânia, e na Conferência
Internacional de Educação de Adultos (Confintea Brasil + 6), em
Brasília. No âmbito do município de Palmas, houve mobilização de
educadores e técnicos da área para participarem da Conferência
Municipal de Educação, onde foi garantida uma meta com
estratégias especificas para a oferta da educação nas prisões do
município, o que constituiu uma grande vitória, tendo em vista que
até o momento o segmento estava totalmente invisibilizado no
âmbito municipal.
No âmbito da Secretaria de Cidadania e Justiça foi criada a
Diretoria de Políticas e Projetos de Educação para o Sistema
Prisional (DPPESP), através da Publicação no Diário Oficial do
Estado Nº 4414 de 14 de Julho de 2015. Esta Diretoria abarcava o
leque de assistências básicas previstas na LEP, mantendo o foco no
desenvolvimento da política de educação nas prisões. No período
de 2015 a 2018 a diretoria foi responsável por diversas ações de
educação nas prisões, das quais se destacam: projetos Banho de Sol
e Cultura nas Prisões e Ponto de Leitura e Cultura nas Prisões;
fortalecimento dos programas ENEM PPL e ENCCEJA PPL;
monitoramento das atividades de educação nas unidades
prisionais; ampliação da oferta; aprovação de projetos para
utilização de recursos do fundo penitenciário; oferta do ensino
superior à distância na Cadeia Pública de Tocantinópolis;
instituição do primeiro Comitê de Educação em Prisões do País;
formação para as equipes pedagógicas e de segurança envolvidas
nas atividades de educação nas prisões; ampliação e/ou reforma
dos espaços destinados a oferta de escolarização, entre outras.
Em 2016 foi criado o Comitê Estadual de Educação em Prisões
do Tocantins (COMEP TO) com o objetivo de garantir a
participação da sociedade na gestão da política educacional voltada
às pessoas privadas de liberdade no Sistema Penitenciário
Estadual. O COMEP TO foi fundamental para garantir a
participação social e o aprimoramento e sustentabilidade da
política de educação em prisões no Estado, contribuindo no
desenvolvimento de projetos educacionais nas prisões, advindos

39
de variadas instituições, entre os quais se destacam os projetos de
extensão universitária da UFT “Leitura e Escrita na Prisão”
(Tocantinópolis) e “Rompendo Limites Rumo à Universidade”
(Porto Nacional).
Atualmente, são ofertadas turmas de educação formal em 16
das 39 unidades prisionais do Estado, atendendo diretamente a um
público de 622 alunos-internos5, com oferta de escolarização nas
seguintes unidades: Unidade Prisional Feminina de Palmas, Casa
de Prisão Provisória de Palmas, Casa de Prisão Provisória de Porto
Nacional, Unidade Prisional Feminina de Pedro Afonso, Cadeia
Pública de Miracema, Casa de Prisão Provisória de Paraíso, Cadeia
Pública de Guaraí, Unidade de Tratamento Penal Barra da Grota –
Araguaína, Centro de Reeducação Social Luz do Amanhã - Cariri,
Unidade Prisional Feminina de Lajeado, Cadeia Pública de
Colmeia, Unidade Prisional Feminina de Babaçulândia, Unidade
Prisional Feminina de Talismã, Cadeia Pública de Arraias, Cadeia
Pública de Tocantinópolis e Cadeia Pública de Colinas.

Previsão legal da participação social na educação em prisões

Como ocorre em outros países, no Brasil grande parte da


sociedade não considera as pessoas em privação de liberdade como
detentoras de direitos. Para a maioria, tudo o que se refere ao
sistema prisional faz parte de um mundo que se quer muito
distante, como se este não fizesse, inclusive, parte da sociedade.
Condenando o sistema prisional ao isolamento, a sociedade
permite que cada vez mais ele se torne um espaço marcado por
profundas perversidades expressas nas condições indignas e
degradantes da maioria das prisões do Brasil. É necessário mudar
esse paradigma para o bem não só das pessoas encarceradas, mas
de toda a sociedade brasileira. Nesse contexto, as autoridades
públicas do país, assim como a sociedade civil organizada, têm um

5 Dados disponibilizados pelo Sistema de Gestão Escolar da Secretaria da


Educação, Juventude e Esportes, referentes a dezembro de 2018.

40
relevante e fundamental papel a cumprir. Às autoridades públicas
está, dentre muitos, o desafio de investir em ações que possibilitem
o maior contato da sociedade com o ambiente prisional, rompendo
o seu isolamento e estimulando, por meio de mecanismos e
processos de participação e controle social, o desenvolvimento de
projetos e programas diversos (educacionais, culturais, ambientais,
de direitos das mulheres, de saúde, etc.). Como base em tudo isso
está o reconhecimento do direito humano à educação como parte
do processo de humanização e dignificação das pessoas
encarceradas. E, como disse nosso grande educador Paulo Freire
(2000, p.31), “se a educação sozinha não transforma a sociedade,
sem ela tampouco a sociedade muda”6.
Várias gestões de governos, nas três esferas, buscaram atuar
pela mudança do modelo prisional visando o cumprimento da lei
nacional e dos acordos internacionais assinados pelo Brasil que
reconheciam os direitos humanos de presos e presas. Quanto à
Educação em Prisões e, mais especificamente, no tocante ao papel
dos mecanismos na e para a efetivação das Políticas Públicas, para
a garantia do direito à educação àqueles/as em situação de privação
de liberdade, vale ressaltar o papel dos Organismos Internacionais,
com ênfase à ONU e a UNESCO, nas últimas décadas. A
Declaração dos Direitos Humanos reconhece o direito à educação
em seu artigo 26 e estabelece que o objetivo dele seja o pleno
desenvolvimento da pessoa humana, o que elevou este artigo ao
“status jurídico internacional e de caráter obrigatório para Estados
Nacionais por meio dos artigos 13 e 14 do Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc), interpretados
pelas Observações Gerais 11 e 13 do Comitê de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (Desc)” (CARREIRA, 2009, p. 10)7.

6 FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos.


São Paulo: Editora UNESP, 2000.
7 CARREIRA, Denise Relatoria Nacional para o Direito Humano à Educação:

Educação nas Prisões Brasileiras / Denise Carreira e Suelaine Carneiro – São Paulo:
Plataforma DhESCA Brasil, 2009. 116 p. Disponível em: < http://www.cmv-

41
O comitê (Desc) foi criado em 1985 no âmbito das Nações
Unidas para supervisionar o cumprimento dos direitos humanos
econômicos, sociais e culturais. Dessa forma os Estados signatários
do pacto, entre eles o Brasil, assumem obrigações de respeitar,
proteger e satisfazer os padrões de direitos humanos entendidos
como parâmetros que descrevem certa qualidade de vida. O direito
à educação é também chamado de “direito de síntese”, ao
possibilitar e potencializar a garantia dos outros, tanto no que se
refere à exigência, como no desfrute dos demais direitos
(GRACIANO Apud CARREIRA, 2005, p. 10)8.
A garantia do direito à educação está prevista também em
outros documentos internacionais: Declaração Mundial sobre
Educação para Todos (artigo 1º); Convenção Internacional sobre os
Direitos da Criança (parágrafo 1º, art. 29); Convenção para a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
(artigos 10 e 14); Convenção contra a Discriminação no Ensino
(artigos 3º, 4º e 5º); Declaração e Plano de Ação de Viena (parte no
1, parágrafo 33 e 80); Agenda 21 (capítulo 36); Declaração de
Copenhague (compromisso nº6); Plataforma de Ação de Beijing
(parágrafos 69, 80, 81 e 82); Agenda de Habitat (parágrafos 2.36 e
3.43); Afirmação de Aman e Plano de Ação para o Decênio das
Nações Unidas para a Educação na Esfera dos Direitos Humanos
(parágrafo 2º) e a Declaração e o Programa de Ação de Durban –
contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias
Correlatas (dos artigos 117 a 143)9.
O processo constituinte brasileiro aprofundou a questão
colocada pelo movimento social, ao final da década de 1970 e início
dos anos 1980, sobre a democratização do Estado e os mecanismos
necessários para torná-lo público. Nesse processo, a atuação de
organizações de sociedade civil vinculadas à luta dos direitos

educare.com/wp-content/uploads/2013/07/FINAL-relatorioeduca%C3%A7%C3
%A3onasprisoesnov2009.pdf>. Último acesso em 23. Jan. 2019.
8 Ibidem.

9 Ibidem.

42
humanos teve papel-chave. Porém, muitas dessas experiências e
políticas inovadoras foram sabotadas ou ficaram “à margem”, não
conseguindo impactar o sistema prisional como um todo. Somente
com a Constituição Federal de 1988, também conhecida como
Constituição Cidadã, foi possível consolidar direitos e prever, em
diversos dispositivos legais, a participação da sociedade civil
organizada na formulação, implementação e controle social das
políticas públicas. Os artigos 198, 204 e 206 da Constituição
permitiram a criação e consolidação dos conselhos de políticas
públicas, os chamados “conselhos de direitos”, no âmbito da saúde,
da assistência social e da educação, nos três níveis de governo.
Constituem-se em mecanismos legais e institucionais de controle
social das políticas públicas, espaços democráticos de decisão e de
participação social de forma deliberativa, inclusive, na construção
das políticas públicas.
Para Moroni apud Madrigal (2015)10, o Conselho de Políticas
Públicas é como um espaço “fundamentalmente político,
institucionalizado, funcionando de forma colegiada, autônomo,
integrante do poder público, de caráter deliberativo, composto por
membros do governo e da sociedade civil, com as finalidades de
elaboração, de deliberação e o controle da execução das políticas
públicas”.
O direito de participação popular na formulação das políticas
públicas e no controle das ações do Estado está garantido e
regulamentado por leis específicas, como a Lei Orgânica da Saúde
(LOS), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a Lei Orgânica
da Assistência Social (LOAS), o Estatuto das Cidades, dentre outras.
Essa legislação permite ao cidadão, junto aos Órgãos Públicos:
peticionar aos Poderes Públicos para a defesa de seus direitos (Art. 5º
- XXXIV); obter certidões em repartições públicas (Art. 5º - XXXV);

10MADRIGAL, Alexis. Os Conselhos de Políticas Públicas à luz da Constituição


Federal de 1988. Jus.com.br, 2015. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/
40415/os-conselhos-de-politicas-publicas-a-luz-da-constituicao-federal-de-1988>.
Último acesso em 23. Jan. 2019.

43
fiscalizar as contas municipais (Art. 31º, § 3º); denunciar
irregularidades ou ilegalidades (Art. 74º, § 2º); participar dos
conselhos de gestão de saúde (Art. 198º - III); assistência social (Art.
2014º - II), e da educação (Art. 206º - VI); cooperar por meio de
associações no planejamento municipal (Art. 29º - XII); receber
informações das autoridades (Art. 5º - XXXIII); promover ações
judiciais e representações (Art. 5º - LXXIII); autorizar o cidadão à
denúncia do prefeito (Decreto-lei nº 201/67); assegurar à população o
acesso à prestação de contas, aos planos e diretrizes orçamentárias e
demais instrumentos de transparência vinculados à gestão fiscal (Lei
de Responsabilidade Fiscal nº 101 de 200, Art. 48º e Art. 49º).
Os conselhos poderão desempenhar as funções de:
Fiscalização: pressupõe o acompanhamento e o controle dos atos
praticados pelos governantes; Mobilização: refere-se ao estímulo à
participação popular na gestão pública e às contribuições para a
formulação e disseminação de estratégias de informação para a
sociedade sobre as políticas públicas; Deliberação: refere-se à
prerrogativa de decidir sobre as estratégias utilizadas nas políticas
públicas de sua competência; e Consultoria: relaciona-se à emissão
de opiniões e sugestões sobre assuntos que lhe são correlatos11.
O documento internacional “Regras Mínimas das Nações
Unidas para o Tratamento de Presos”, também conhecido como
“Regras de Mandela”, aprovado pelo Conselho Econômico e Social
da ONU em 1957, destacou o acesso à educação de pessoas
encarceradas. A partir deste documento normativo, e demais
legislações, elaborou-se a Resolução nº 14, de 11 de novembro de
1994, do Conselho Nacional de Políticas Criminal e Penitenciária
(CNPCP), que estabelece sua adaptação e aplicação no contexto
brasileiro e, no item referente à legislação e normas nacionais para
educação nas prisões, ficou definido que:

a.A educação de pessoas encarceradas no sistema prisional integra a


chamada educação de jovens e adultos (EJA). A Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB), de 1996, define a educação de jovens e adultos

11 Ibidem.

44
como aquela destinada a pessoas “que não tiveram acesso ou continuidade
de estudos no ensino fundamental e médio na idade própria”;
b.A LDB regulamenta o direito previsto na Constituição brasileira em seu
capítulo II, seção 1, artigo 208, inciso I, de que todos os cidadãos e cidadãs têm o
direito ao “Ensino Fundamental obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive,
sua oferta para todos os que a ele não tiverem acesso na idade própria”;
c.A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional determina também que
os sistemas de ensino devem assegurar cursos e exames que proporcionam
oportunidades educacionais apropriadas aos interesses, condições de vida e
trabalho de jovens e adultos. Prevê que o acesso e a permanência devem ser
viabilizados e estimulados por ações integradas dos poderes públicos.

O Ministério da Educação, o Ministério da Justiça e a


representação da UNESCO no Brasil realizaram em Brasília, entre
os dias 12 a 14 de julho de 2006, o “Seminário Nacional pela
Educação nas Prisões: significados e proposições”, com o objetivo
de criar mecanismos institucionais capazes de possibilitar o
enfrentamento dos graves problemas que perpassavam a inclusão
social de apenados e egressos do Sistema Penitenciário em nosso
país. Os participantes do evento elaboraram as “Diretrizes
Nacionais para a Educação no Sistema Prisional” e os “parâmetros
nacionais” com relação a três eixos: gestão, articulação e
mobilização; formação e valorização dos profissionais envolvidos
na oferta; e aspectos pedagógicos. A aprovação das Diretrizes
Nacionais para Educação no Sistema Prisional foi considerada um
avanço para grande parte das organizações de sociedade civil que
atuavam no campo da educação de jovens e adultos e da questão
prisional ao fixar parâmetros para a construção de políticas
estaduais de educação no sistema prisional, com destaque para a
participação social na elaboração e implementação da Política
Pública.
O Governo Federal e os Governos Estaduais, junto com a
Sociedade Civil, receberam a responsabilidade de trabalhar o
refinamento e a concretização destas proposições. A partir destas
recomendações, o Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária (CNPCP/MJ) elaborou a Resolução nº 03/2009 e o
Conselho Nacional de Educação (CNE/CEB) elaborou a Resolução

45
nº 02/2010. Em 2011 o Governo Federal instituiu o Plano Estratégico
de Educação no âmbito do Sistema Prisional (Decreto Nº 7.626 de
24 de novembro de 2011 e, em 2014, o Plano Nacional de Educação
- PNE 2015-2015 (Lei 13.005 de 25 de junho de 2014).

O COMEP TO e a gestão da política de Educação nas Prisões do


Tocantins

“Um chamamento às autoridades e à sociedade...”

As experiências e conhecimentos acumulados coletivamente


por profissionais que se mantiveram vinculados à educação em
prisões em quase duas décadas desde a abertura das primeiras
turmas no sistema penitenciário prisional do Tocantins apontaram,
desde cedo, para a necessidade da existência de um órgão
qualificado que pudesse congregar pessoas e instituições capazes
de promover debates e proposições ao executivo, sobre como
implantar/implementar de modo coerente e sustentável ações de
desenvolvimento da educação no âmbito do Sistema Penitenciário
estadual. A criação deste órgão, seja ele Fórum de debate, Comissão
ou um Comitê, manteve-se como demanda reprimida e postergada
por diversas vezes desde 2004, o que contribuiu para que a
educação em prisões no estado caminhasse em ritmo muito aquém
de suas necessidades e potencialidades, cedendo espaço ao
aprofundamento das condições negativas do cárcere e ao
fortalecimento de organizações criminosas instaladas no interior
do Sistema Penitenciário. Soma-se a este desafio a óbvia
impossibilidade da pessoa presa de dirigir-se aos pontos
convencionais de oferta de escolarização, bem como de pleitear
diretamente este direito aos órgãos responsáveis pela oferta, e,
ainda, a histórica ineficiência do poder executivo em efetivar as
condições e instrumentos apropriados à garantia do direito à
educação das pessoas privadas de liberdade.
Foi envolto neste contexto que o Comitê Estadual de Educação
em Prisões do Tocantins (COMEP TO) foi criado por meio da

46
portaria da Secretaria Estadual de Cidadania e Justiça nº 262, de 13
de julho de 2016, publicada no Diário Oficial do Estado nº 6.666, de
20 de julho de 2016, em respeito à legislação brasileira e amparado
por amplo apoio doutrinário num contexto de maior compreensão
do valor da participação da sociedade no processo de execução
penal. O COMEP TO se consolidou, desde então, como
fundamental instrumento de mobilização da sociedade
tocantinense em prol de uma proposta de consolidação da Política
Educacional voltada às pessoas privadas de liberdade,
congregando 18 entidades membro, quais sejam: Secretaria de
Estado de Cidadania e Justiça, Escola Superior de Gestão
Penitenciária do Estado do Tocantins, Secretaria de Estado de
Educação, Juventude e Esportes, Diretorias Regionais de Educação,
Conselho Estadual de Educação do Tocantins, Sindicato dos
Trabalhadores de Educação do Tocantins, Universidade Federal do
Tocantins, Universidade do Estado do Tocantins, Instituto Federal
de Educação, Ciências e Tecnologia do Tocantins, Ministério
Público Estadual, Defensoria Pública do Estado do Tocantins,
Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Tocantins, Conselho
da Comunidade na Execução Penal, Conselho Penitenciário do
Estado do Tocantins, Conselho Estadual de Proteção e Defesa dos
Direitos Humanos do Tocantins, Fórum Estadual Permanente de
Educação de Jovens e Adultos do Estado do TO, Instituição Social
Resgate Sem Fronteiras e Pastoral Carcerária Arquidiocesana do
Tocantins. Por indicação do próprio Comitê ou por solicitação
externa foi aprovada pelo colegiado do COMEP TO a incorporação,
na condição de instituição convidada, do “Tribunal de Justiça do
Tocantins” e da “União Nacional dos Dirigentes Municipais de
Educação”, além dos profissionais e pesquisadores da área: Aline
Campos UFT/Tocantinópolis, Elisângela Rodrigues Torres SEDUC,
Fátima Brasileiro NEPEEP-UFT/Palmas, Francisco Gilson
Rebouças Pôrto Júnior UFT/Palmas, Iolanda Felipe de Oliveira
SEDUC, Leandro Bezerra de Souza SECIJU, Maria Rita Rodrigues
Amaral SEDUC, Maria do Rosário Lopes Dias CCEP/DNO, Maria

47
do Socorro Silva NEPEEP-UFT/Palmas, Valéria S. Medeiros
Reichert UFT/Araguaína e Waldeni Monteiro Fontes SECAD.
Em pouco mais de dois anos de funcionamento como espaço
privilegiado de debates e proposições qualificadas acerca da Educação
em Prisões no estado, o COMEP TO constituiu, internamente, três
Comissões Permanentes de Trabalho: Comissão 1: Políticas Públicas,
Legislação e Normas da Educação em Prisões; Comissão 2: Banco de
Dados, Memória, Acervo Digital e Acervo Físico; e, Comissão 3:
Práticas Educativas e Pedagógicas, Currículo, Formação e Produção
Científica, que foram responsáveis, direta ou indiretamente, por ações
estratégicas na área. Destacam-se, entre outras:

▪ Plano Estadual de Educação em Prisões do Tocantins: criação de Grupo


de Trabalho para o estudo da atual Política Pública de Educação em Prisões
e elaboração de proposta para a atualização do Plano Estadual de Educação
em Prisões do Tocantins – PEEP TO. O grupo chegou a realizar estudo acerca
da atual legislação da educação, dos planos de alguns estados da federação,
mas não chegou à fase de sistematização e proposição de adequações
necessárias às especificidades e peculiaridades do Sistema Penitenciário
local.

▪ Projeto “Pontos de Leitura e Cultura nas Prisões”: elaboração e


reestruturação do projeto que foi cedido à SECIJU TO. O Comitê
desenvolveu campanhas para a divulgação do projeto e captação de livros,
em articulação e parceria com suas instituições-membro e com demais
segmentos da sociedade.

▪ Projeto “Rompendo Limites: rumo à universidade”: capacitação das


pessoas envolvidas (acadêmicos e docentes da UFT, docentes da Rede
Estadual de Educação – SEDUC TO e técnicos de defesa social – SECIJU TO).
O projeto de Extensão Universitária foi proposto e implementado pela
Universidade Federal do Tocantins/Campus de Porto Nacional em parceria
com a Unidade Prisional de Porto Nacional e tem como principal propósito
a preparação dos reeducandos da Unidade Prisional para a realização do
ENEM PPL.

▪ Banco de Dados e Memórias da Educação em Prisões do Estado: criação e


atualização de Pastas-Arquivo digitais contendo dados estatísticos, legislações,
documentos, fotos, vídeos, publicações e a construção (em andamento) de um
Site/blog sobre a educação em prisões no Estado. O Comitê ainda prestou

48
assessoria técnica e disponibilizou dados, informações e documentos para
acadêmicos, pesquisadores e instituições interessadas na temática.

▪ Diálogo próximo e direto com as Pessoas Privadas de Liberdade: contatos


face-a-face com as pessoas privadas de liberdade e realização de algumas
atividades em seus espaços internos por intermédio das Instituições-
membros capazes e legitimadas pela comunidade interna para tal: Resgate
Sem Fronteiras, Pastoral Carcerária, Universal nos Presídios, representantes
da Sociedade Civil Organizada, as quais realizam atividades de cunho
social, educativa e religioso no âmbito dos presídios e que também prestam
assistência às famílias.

▪ Número de Turmas e Unidades Prisionais Contempladas com


Escolarização: assessoramento técnico prestado às equipes da SECIJU TO e
da SEDUC TO, desenvolvendo ações conjuntas no monitoramento das
turmas já abertas e na implantação/ampliação da oferta de escolarização nas
demais Unidades Prisionais. De 2004 a 2015 foram implantadas turmas de
escolarização em apenas 08 Unidades Prisionais do Estado, este número
subiu para 16 até 2018. O COMEP TO foi, reconhecidamente, fundamental
para que o Estado do Tocantins saltasse da 8ª posição, em 2014, para a 1ª em
2017, no ranking dos estados brasileiros com a maior porcentagem de
pessoas presas envolvidas com atividades educacionais, segundo dados dos
relatórios do Departamento Penitenciário Nacional de 2014 e 2017.

▪ Eventos e Formação das Equipes Pedagógicas: organização e participação


em Seminários, Simpósios, Encontros Estaduais e outros, voltados para o
estudo e o debate acerca da educação e outras temáticas relativas ao Sistema
Penitenciário e Prisional, assim como a participação em eventos de
Formação de equipes pedagógicas e equipes técnicas da Defesa Social que
atuam nas Escolas em prisões.

▪ Espaços de Representação da Educação em Prisões: participação nos


eventos: Encontro Estadual de Educação de Jovens e Adultos do Tocantins–
EEJA TO, Encontro Nacional de Educação de Jovens e Adultos–ENEJA,
Conferência Internacional de Educação de Jovens e Adultos–Confintea
Brasil+6; Conferência Nacional de Educação–CONAE/2018: etapas
Municipal (Palmas), Estadual e Nacional. O Comitê integra, como instituição
membro, o Fórum Estadual Permanente de Educação de Jovens, Adultos e
Idosos do Tocantins-FPEJA TO, o Fórum Municipal de Educação de Palmas-
FME e o Fórum Estadual de Educação do Tocantins- FEE TO.

49
▪ Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão de Educação em Prisões-
NEPEEP: proposição da criação de um Núcleo voltado ao desenvolvimento
de pesquisas e projetos na área da educação em contextos de privação de
liberdade. O NEPEEP foi gestado nos encontros e reuniões do COMEP TO e
ganhou forma através de projeto da Universidade Federal do
Tocantins/Campus de Miracema, sendo formalmente instituído e em
funcionamento, com a participação dos membros do Comitê, representando
a garantia de um espaço, no âmbito da Universidade, para a produção
científica e desenvolvimento de projetos na interface Universidade,
Educação e Prisões, com potencial para a oferta de cursos de pós-graduação
lato sensu e stricto sensu contemplando o público que atua no Sistema
Penitenciário.

▪ Educação Superior no Sistema Penitenciário: criação de Grupo de


Trabalho para o estudo da atual Política Pública de Educação em Prisões e
elaboração de uma proposta para a oferta de Educação Superior nas
modalidades presencial, semi-presencial e à distância no Sistema
Penitenciário estadual. Através de reuniões do COMEP com a Coordenação
da Universidade Aberta do Brasil (UAB) da UFT foi possível contemplar a
população privada de liberdade no edital de seleção dos cursos oferecidos
para 2018, no qual dois reeducandos iniciaram o curso de Licenciatura em
Matemática na Unidade Prisional de Tocantinópolis.

▪ Educação Profissional: criação de Grupo de Trabalho com a finalidade de


estudo e elaboração de proposta para a oferta de Educação Profissional e
Ensino Profissionalizante, Técnicos e/ou Tecnólogo, nas modalidades
presencial, à distância no Sistema Penitenciário estadual, preferencialmente,
em concomitância com a Educação de Jovens e Adultos, PROEJA.

▪ Observatório de Leitura e Inovações Tecnológicas para a Educação do


Tocantins: o Comitê possui Grupo de Trabalho com o objetivo de pesquisar,
elaborar propostas e projetos de Leitura e Escrita para o Sistema
Penitenciário, contribuindo para a regulamentação da remição de pena pela
leitura. Foi convidado e faz parte do Observatório de Leitura e Inovações
Tecnológicas para a Educação do Tocantins, Cátedra UNESCO de Leitura
(PUC-Rio), que tem como objetivo consolidar e divulgar as ações de fomento
à leitura no estado do Tocantins.

Como fora exposto, o Comitê Estadual de Educação em


Prisões do Estado do Tocantins – COMEP TO vem se constituindo
como uma experiência exitosa de promoção da participação social
na gestão da política educacional em prisões, obtendo o

50
reconhecimento do próprio Departamento Penitenciário Nacional
(DEPEN). Com o COMEP TO o Estado do Tocantins está na
vanguarda da gestão da Política de Educação em Prisões, sendo o
primeiro estado da federação brasileira e, o único até o momento, a
constituir um Comitê próprio, além de exercer a empreitada de
capacitar outros Estados na formação de seus comitês. Ressalta-se,
no entanto, que se por um lado a atuação do Comitê é capaz de
promover avanços e reconhecimento na participação da gestão
estadual da Política de Educação em Prisões, por outro provoca
tensionamentos que, se não forem bem administrados, poderão
comprometer seu propósito.

51
52
A construção do espaço educativo
na Cadeia Pública de Tocantinópolis1

Aline Campos
Darlene Ribeiro da Silva
Elizete Pereira dos Santos
Jhenissa Silva Sousa
Luciana Conceição da Silva
Marilene Soares da Silva
Millena Silva Ramos
Taila Silva Alves
Thátila Ferreira Morais

A universidade é sustentada por um tripé: ensino, pesquisa e


extensão. O ensino compreende as atividades de formação de
profissionais, nas mais diversas áreas do conhecimento. A pesquisa
refere-se à produção de conhecimento, ou seja, a sistematização das
experiências, saberes e observações, de modo a contribuir na
ampliação da compreensão do mundo, em seus diversos aspectos.
E a extensão, por sua vez, ocorre quando a universidade extrapola
seus muros e coloca o seu aparato e saberes à serviço da
comunidade. Infelizmente, existe um desequilíbrio nesse tripé e a
extensão é, ainda, o campo menos valorizado e, por conseguinte,
menos desenvolvido pela universidade. Isso não significa, porém,
que ela seja menos importante, pelo contrário, é tão importante
quanto o ensino e a pesquisa para o desenvolvimento da sociedade.
O ideal, inclusive, seria que as universidades conseguissem fazer a
articulação entre esse tripé, de modo que essas três distintas ações
se retroalimentassem. Um desafio grande, sem dúvida, mas que
precisa ser encarado.

1Versão ampliada de texto originalmente publicado na Revista de Extensão


Universitária Capim Dourado da UFT, em 2018.

53
Partindo dessa compreensão da extensão universitária e tendo
já adquirido, em virtude de experiências anteriores, um pouco de
conhecimento sobre educação em contexto de privação de liberdade
nós - docente e discentes da UFT - nos aproximamos da Cadeia
Pública de Tocantinópolis. O intuito era verificar se nesse espaço
haveria alguma possibilidade para desenvolvermos um trabalho
educativo. Devido a essas experiências anteriores em outros espaços
de privação de liberdade, bem como relatos de outros pesquisadores
dessa temática, tínhamos em vista que poderia haver resistência por
parte da administração da cadeia pública em relação a nossa
proposta. Felizmente, a reação da direção desta unidade foi
totalmente inversa. Desde o início a direção não só se colocou aberta
a nos receber, como se mostrou interessada e disposta a participar
conjuntamente na construção do projeto.
Apresentamos então nossa proposta, que naquele momento
era bastante abrangente: gostaríamos de iniciar uma parceria entre
a UFT e a unidade prisional, por meio de atividades educativas que
possibilitassem uma vivência formativa tanto para as pessoas em
situação de privação de liberdade quanto para as graduandas da
universidade. Após essa apresentação geral, iniciamos o diálogo no
intuito de ouvir da direção quais as demandas e necessidades da
unidade com as quais poderíamos contribuir. A leitura e a escrita,
associadas ao crescente interesse pela remição de pena, foi a
demanda a nós apresentada. Diante disso, passamos a elaborar
uma proposta de oficinas com caráter experimental e que tivessem
como objetivo trabalhar a leitura e a escrita como experiência2,
numa perspectiva voltada à educação libertadora proposta por
Paulo Freire. Surgiu, assim, o projeto de extensão “Biblioteca e
remição de pena por leitura: construindo o espaço educativo da
Cadeia Pública de Tocantinópolis/TO”.
Diferente da maior parte das unidades prisionais, a Cadeia
Pública de Tocantinópolis contava, nessa aproximação inicial, com

2LARROSA, Jorge Bondía. Experiência e alteridade em educação. Revista


Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v.19, n2, p.04-27, jul./dez. 2011.

54
uma sala destinada para possíveis atividades educativas. Era apenas
o espaço físico, porém para o contexto de prisões já era muito!
Iniciamos entrando na carceragem para nos apresentar, explicar
nossa proposta e verificar quantos teriam interesse em participar.
Dos aproximadamente 403 internos da unidade, um pouco mais da
metade manifestou interesse pelas oficinas. Entretanto, por questões
de segurança e espaço físico, não seria possível desenvolver o
trabalho com esse total de pessoas. Sempre em diálogo com a direção
e respeitando as orientações da unidade em relação à segurança,
definimos o número de 12 participantes e coube à direção selecionar,
entre os interessados, quais poderiam participar.
A primeira oficina ocorreu no dia 29 de junho de 2017. Era
novidade para todos e tudo ainda bastante incipiente. Alguns
chegaram com algemas nas mãos, outros algemados nos pés. Não
tínhamos cadeiras. Sentamos todos no chão, em roda. Misturamo-
nos a eles, nos apresentamos e nos colocamos abertas a ouvi-los,
interessadas em descobrir o que eles esperavam de um espaço
educativo na prisão. Nas primeiras oficias imperou a timidez, o
silêncio e a resistência em expressar opiniões. Nossos encontros
semanais foram, gradualmente, rompendo essa barreira por meio
do estabelecimento de relações de confiança, entre todas as partes.
As algemas, que inicialmente permaneciam durante toda a oficina,
começaram a serem retiradas logo que adentravam o espaço
educativo, até que simplesmente tornaram-se desnecessárias. As
vozes começaram também a ser mais pronunciadas.
Paralelamente ao desenvolvimento das oficinas, buscamos
estabelecer outras parcerias. Com o apoio do Ministério Público,
conseguimos que a Diretoria de Ensino fornecesse carteiras, lousa
e material de consumo; a prefeitura municipal fez a doação de 10
computares e a próprio Ministério Público conseguiu verba para
pintar a sala e adquirir o mobiliário para alocar os computadores.

3Número aproximado no período em que se iniciou o projeto. No início de 2019,


entretanto, esse número foi elevado para em torno de 60.

55
Organizamos, em dezembro de 2017, o I Encontro de Educação
em Contexto de Privação de Liberdade, no qual pudemos socializar
a experiência de educação na Cadeia Pública de Tocantinópolis e
promover o debate sobre a educação para pessoas presas, dando
visibilidade para uma temática até então pouco discutida no
campus de Tocantinópolis da UFT. Durante esse evento foi
realizada uma campanha de arrecadação de livros, com os quais foi
possível iniciar a estruturação de uma pequena biblioteca na
unidade prisional. Em decorrência da estruturação do projeto foi
possível dar início, ainda em 2017, a aulas de alfabetização por
meio do Programa Brasil Alfabetizado, promovidas pela Diretoria
Regional de ensino e que contou com a participação de uma das
graduandas extensionistas como professora alfabetizadora. A
concretização dessas conquistas foram, pouco a pouco, injetando
ânimo e aumentando o envolvimento daqueles que fizeram parte
dessa construção coletiva.
Com o espaço estruturado, em fevereiro de 2018 foi possível à
Secretaria de Educação, Juventude e Esporte iniciar as aulas do
ensino formal. No período da manhã passou a ser ofertado o
segundo ciclo do ensino fundamental e no período da tarde, o
ensino médio. A viabilização desse ensino ocorre por meio de
“escolas-mães”, ou seja, uma escola assume a responsabilidade
pela oferta e envia seus professores para ministrarem as aulas no
interior da cadeia, numa sala que é considerada como expansão da
escola. A “escola-mãe” da turma de ensino fundamental é o
Colégio Estadual Pio XII4 e da turma do Ensino Médio é a Escola
Estadual Professor José Carneiro de Brito.
Com a chegada do ensino formal, o espaço educativo da
Cadeia Pública passou a estar ocupado nos dois períodos do dia,
ao longo de toda a semana. O ensino não-formal, promovido pelo
projeto de extensão da UFT, teve então de ser remanejado para o
único horário e dia disponível: sábado à tarde. Mas o que nos

4Em 2019 esta escola foi fechada, passando a responsabilidade pela oferta do
Ensino Fundamental para a Escola Estadual Pe Giuliano Moretti.

56
caberia agora fazer? Novamente voltamos ao diálogo com a direção
da unidade para verificar as demandas. Com a entrada da escola, o
ensino formal estava garantido e, com ele, a remição de pena por
estudo. Considerando que as ferramentas que dispúnhamos e
nossa expertise é no campo da Educação, foi-nos solicitado
viabilizar a remição de pena por leitura. Vale destacar que a
remição de pena por leitura já era uma prática de interesse de
algumas pessoas presas na unidade, entretanto, o processo para
viabilizá-la ainda não estava estruturado por falta de recurso
humano para fazer o acompanhamento necessário para validação
das leituras. Nesse sentido, em virtude da aproximação com a
realidade do espaço, foi possível compreender essas dificuldades e
colocar a universidade a serviço de mais essa demanda da referida
cadeia pública. Organizamos, então, um novo projeto para ser
desenvolvido ao longo do primeiro semestre de 2018, que foi
intitulado de “Clube de Leitura e escola: consolidando o espaço
educativo na Cadeia Pública de Tocantinópolis”. Consistia em
nos reunirmos uma vez por semana para dialogar sobre trechos
pré-estabelecidos de uma obra literária definida para leitura
comum entre os participantes. De posse da proposta, adentramos a
carceragem e convidamos as pessoas para fazerem parte do projeto.
Inicialmente, houve 19 pessoas interessadas em participar e como
não teve impedimento por parte da direção da unidade em relação
a esse número de pessoas, iniciamos o Clube de Leitura com todos
que manifestaram interesse em fazer parte do projeto.
No primeiro encontro fizemos uma roda de apresentação e em
seguida explicamos detalhadamente os mecanismos para obtenção
da remição de pena por leitura, bem como a proposta do Clube de
Leitura. Em seguida, apresentamos alguns livros que selecionamos
previamente, levando em consideração a maior quantidade de
exemplares disponíveis no acervo da biblioteca da unidade. Havia
mais de dez títulos para que os participantes pudessem escolher,
coletivamente, qual prefeririam ler. Os livros circularam entre as
pessoas e ao final foi escolhida a primeira obra para leitura.

57
Passamos em seguida a estruturar a divisão dos trechos para
realização da leitura semanal, que os participantes deveriam
realizar ao longo da semana na cela para que fosse discutido
posteriormente no encontro aos sábados. Por não haver um
exemplar para cada um dos participantes, organizamos a
distribuição dos livros de acordo com as celas, de modo que eles
pudessem, no interior da carceragem, fazer o revezamento do livro.
De modo geral, os livros eram lidos em três semanas e todos os
sábados nos encontrávamos para discutir o trecho lido ao longo de
cada semana. Finalizada a leitura, passávamos a auxiliá-los na
escrita da resenha, que ocorria no último sábado do mês. Para isso,
relembrávamos coletivamente as principais passagens da história e
também os orientávamos a incluir em suas resenhas os significados
pessoais que eles atribuíam à leitura realizada. Após a escrita das
resenhas, as graduandas digitavam-nas e realizavam uma primeira
correção gramatical e ortográfica, que era em seguida encaminhada
para a coordenadora do projeto que realizava a segunda correção.
Feitas as duas correções, as resenhas digitadas eram impressas e
entregues aos participantes para que comparassem com os
manuscritos, verificando assim as palavras ou trechos alterados, e
pudessem passar o texto a limpo para validação da remição de
pena por leitura.
Ao longo dessa versão do projeto foram lidas quatro obras,
todas escolhidas pelos participantes coletivamente: “Ubirajara”
(José de Alencar); “A metamorfose” (Franz Kafka); “O pequeno
príncipe” (Antoine de Saint-Exupéry); e “O vampiro que descobriu
o Brasil” (Ivan Jaf). Na avaliação do projeto, realizada após sua
conclusão por meio de roda de conversa envolvendo todos os
participantes, estes apresentaram dois fatores que dificultavam a
realização da leitura no interior da cela. O primeiro deles,
diretamente relacionado à estrutura da unidade, advinha da
superlotação. A grande quantidade de pessoas dividindo um
mesmo espaço dificultava a concentração necessária para o
desenvolvimento da leitura, haja visto ser praticamente impossível
o silêncio e a ausência de interrupções. O segundo fator,

58
relacionado com suas trajetórias escolares deficitárias, dizia
respeito à dificuldade que eles apresentavam de compreender o
texto lido. Diziam que liam, porém entendiam muito pouco, vindo
a ter uma compreensão do texto apenas a partir do diálogo
desenvolvido ao longo dos encontros aos sábados.
Diante dessas colocações, novamente reformulamos nossa
proposta. Elaboramos então o projeto intitulado “Leitura
Dramática na prisão: libertação possível?”, que visava a
continuidade do Clube de Leitura, porém num formato que
possibilitasse a leitura das obras ao longo dos encontros e não mais
na cela. Optamos, assim, pela leitura de peças teatrais, uma vez que
poderíamos dividir as falas dos personagens entre os participantes
do projeto. Nesse novo formato, o primeiro encontro do mês era
destinado para a contextualização da obra e do autor, bem como
para passar a limpo a resenha produzida no mês anterior. O
segundo e terceiro encontros eram destinados para o
desenvolvimento da leitura compartilhada e o quarto encontro
para a escrita das resenhas. Nessa versão do projeto, ao contrário
da anterior, as obras a serem lidas foram previamente selecionadas
pelas organizadoras da extensão universitária. Optou-se pela
escolha de obras que dialogassem, de alguma forma, com temas
intimamente relacionados às infrações criminais. O objetivo, com
isso, era fazer com que tais assuntos pudessem ser alvo de
discussão a partir da experiência do outro (o personagem), mas que
propiciassem, ainda que indiretamente, a reflexão sobre as próprias
experiências. As obras selecionadas foram: O Santo Inquérito (Dias
Gomes); Barrela (Plínio Marcos); A prostituta respeitosa (Paul
Sartre); Lisístrata – A greve do sexo (Aristófones); e O casamento
do pequeno burguês (Bertolt Brecht). Tais obras não existiam no
acervo da biblioteca da Cadeia Pública, por isso optamos por
imprimir arquivos digitalizados das obras encontrados na internet.
Imprimíamos entre 10 e 15 exemplares de cada obra e os
distribuíamos para os participantes, para que pudessem
acompanhar a leitura.

59
Ao final dessa versão do projeto, concluída em dezembro de
2018, realizamos novamente uma roda de conversa para avaliar o
desenvolvimento do projeto. Dessa vez os participantes afirmaram
estarem satisfeito com a dinâmica das leituras, não havendo
sugestões de alteração. Um dos pontos fortes desse diálogo
avaliativo foi a força do riso. Em todos os encontros, durante as
leituras, éramos pegos em situações nas quais todos riam de um
trecho do livro, de modo que o som das risadas contagiava o espaço
educativo. Não sabemos dizer como (e se) isso nos transformava,
mas parece haver uma potência enorme em rir genuinamente
dentro da prisão, sobretudo quando esse riso é coletivo e se ri de
um livro. No desejo de aprofundar essa perspectiva, a proposta a
ser desenvolvida pelo Clube da Leitura ao longo do primeiro
semestre de 2019 foi intitulada como “Riso na prisão: (re)pensar o
mundo através da comédia”, no qual pretendemos ler
coletivamente cinco peças teatrais consideradas comédias: “A Paz”
(Aristófanes); “A comédia dos erros” (Shakespeare); “O avarento”
(Molière); “O santo e a porca” (Ariano Suassuna); e “O pagador de
promessas” (Dias Gomes).
Diante da realidade nacional, estamos em uma situação
favorável. As diversas parcerias, e sobretudo o apoio da direção,
têm contribuído demasiadamente para o bom desenvolvimento
das ações educativas extensionistas na Cadeia Pública de
Tocantinópolis. Entretanto, certas resistências ainda se fazem
presentes e se colocam como desafios. O preconceito a que está
submetida a população carcerária é taxativo e os aprisiona tanto
quanto a própria prisão. Considerável parcela da sociedade,
inclusive funcionários e funcionárias do sistema prisional e da
própria educação, assumem posturas e falas que evidenciam o
descrédito em relação a qualquer possibilidade de mudança no
comportamento das pessoas presas. Estamos diante de um grupo
de pessoas socialmente indesejadas, o que não faltam são
manifestações de oposição em relação às ações positivas a elas
destinadas. Por isso, o desafio dessa educação é, além de contribuir
no processo de emancipação e libertação, também desenvolver um

60
trabalho que dê visibilidade à humanidade dessas pessoas
temporariamente presas.
Para os que estudam e/ou conhecem a realidade da educação
em contexto de privação de liberdade e, portanto, sabem dos
diversos desafios que precisam ser enfrentados para que tal
educação seja realizada, não fica dúvida de que a experiência aqui
relatada é um caso bastante excepcional. Em um ano e meio
tivemos grandes avanços. A perspectiva é que, pouco a pouco, o
projeto cresça ainda mais, ampliando o atendimento, tanto em
termos de carga horária quanto em número de pessoas envolvidas.
Tais progressos, vale dizer, só têm sido possíveis em decorrência
das parcerias que foram estabelecidas e do comprometimento das
alunas voluntárias da UFT com o desenvolvimento do projeto.
O enfrentamento da contradição entre a lógica da prisão - que
preza pela disciplinarização dos corpos5 e anulação do ser - e da
lógica da educação - que preza pela emancipação e autonomia - é o
grande desafio para a concretização da educação em contexto de
privação de liberdade. Trata-se de um enfrentamento que a
educação, sozinha, não dará conta, pois suas ações, nesse contexto,
resvalam na autoridade dos espaços prisionais. Daí a
imprescindível necessidade de parcerias efetivas entre essas duas
instituições: educação e prisão.
Essa breve, porém exitosa, trajetória que temos percorrido têm
nitidamente contribuído para o envolvimento crescente das
pessoas que fazem parte desse projeto e suscitam diversos
questionamentos: como a construção desse espaço educativo
impacta sobre a dinâmica da cadeia pública? A participação nas
oficinas tem alterado o comportamento das pessoas que dela
participam ou ampliado seus horizontes de vida? Qual o impacto
dessa vivência na formação das futuras educadoras que atuam
como promotoras das oficinas? Essas são algumas das inquietações
que instigam, mas que não podem ser precisamente respondidas,

5 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Raquel Ramalhete


(tradução). 36ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.

61
pois não puderam ainda ser devidamente sistematizadas, como
preza os procedimentos de pesquisa. São convites para
articularmos o ensino, a pesquisa e a extensão!
O que vemos é a abertura real de um espaço da sociedade para
as ações de ensino e extensão e o anúncio de um possível campo de
pesquisa. Nesse curto período de desenvolvimento do projeto, das
sete extensionista que atuam no projeto, uma já defendeu seu
Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e outras quatro o estão
desenvolvendo na temática da educação em contexto de
encarceramento. Percebemos, assim, a articulação do tripé ensino-
pesquisa-extensão, uma vez que o projeto atende a uma demanda
social, coloca as estudantes de graduação numa atividade de
articulação entre a teoria e a prática, ao ministrarem as oficinas e,
por fim, motiva-as a compreender (pesquisar) a realidade em que
estão inseridas e atuando.
Nessas reflexões advindas de nossa ação, ou seja, nessa práxis,
é fundamental não cair na visão romântica de que a educação será
capaz de transformar sozinha uma realidade demasiadamente
complexa e paradoxal: a prisão. Porém, por meio dela, é possível
resignificar o tempo de pena, fazer-se o contraponto à opressão,
resistir na condição humana e reafirmar as outras identidades da
pessoa presa, para além da faceta de criminoso. Isso não é pouco!
Apesar dos desafios, inerentes a toda e qualquer ação, a
experiência exitosa que tem sido desenvolvida a partir da parceria
entre a Cadeia Pública de Tocantinópolis e a UFT, com o apoio de
diversas instituições, tem evidenciado a potência da extensão
universitária, da educação e da cultura na prisão.
Foi a extensão que alavancou a estruturação do espaço
educativo, que provocou e despertou em outras instituições a
responsabilidade coletiva pela garantia do acesso à educação e à
cultura para as pessoas presas, e que tem viabilizado a remição de
pena por leitura. Todas essas conquistas evidenciam a importância
do fortalecimento da extensão universitária, enquanto promotora
da transformação social. E são as ações educativas e culturais na
Cadeia que tem propiciado o desenvolvimento do raciocínio crítico

62
e o envolvimento com assuntos diferentes dos característicos da
convivência carcerária.
Por diferentes razões e modos, prisão e universidade são
instituições fechadas em si mesmas e que precisam urgentemente
se abrir. Na universidade, a extensão apresenta-se como principal
possibilidade de abertura para a comunidade, deixando assim de
ser espaço apenas para a “elite cultural”. Na prisão, por sua vez,
essa abertura potencialmente pode ocorrer por meio das ações
educativas e culturais, que possibilitam a crescente inserção da
sociedade civil nesse espaço.
Caminhos e possibilidades estão sendo reveladas. A
aproximação entre a extensão universitária e os espaços de
privação de liberdade mostram-se como parceria significativa para
a promoção da garantia do acesso à educação para a população
carcerária, bem como possibilidade para que a Universidade
assuma seu papel e responsabilidade frente as demandas sociais.
Sigamos nesse caminho!

63
64
Educação na prisão:
o olhar da gestão da unidade prisional

Vinícius Lima Silva

Começo este texto fazendo um breve relato do início da minha


carreira no sistema prisional do Tocantins como agente
penitenciário.
Em meados de 2005 o sistema prisional do Tocantins padecia
de fugas por todo o Estado. Os noticiários da TV Anhanguera não
falavam outra coisa além das fugas e precariedade das cadeias de
norte a sul do Estado. Foi quando o governo anunciou e publicou
o Edital do concurso de agente penitenciário, em maio de 2005, por
meio da Secretaria de Administração de Tocantins. Eram 76 vagas,
sendo 62 masculinas e 14 femininas. Fiz o concurso para a regional
de Araguaína; logo, meu primeiro local de trabalho foi a Unidade
de Tratamento Penal Barra da Grota, o famoso “Barra Cascavel”,
assim batizado pelos presos devido a sua estrutura moderna e
rígida disciplina, pois o mesmo foi construído com o título de
segurança máxima cravado na placa de inauguração. Meu segundo
local de trabalho, no sistema prisional do Tocantins, passou a ser a
Cadeia Pública de Tocantinópolis, onde estou há aproximadamente
07 (sete) anos como chefe desta unidade prisional.
As dificuldades no decorrer deste período foram imensas:
precariedade da infraestrutura, falta de efetivo, superlotação. Não
havia nenhuma atividade voltada para remição de pena ou mesmo
ressocialização, simplesmente funcionava como uma espécie de
depósito de pessoas em conflito com a lei.
A Lei de Execução Penal, que trata das pessoas privadas de
liberdade no país, deixa claro a obrigatoriedade dos Estados de
ofertarem ensino regular ou supletivo, com formação geral ou
educação profissional de nível médio. Os convênios que o Estado
estabelecia com entidades públicas ficavam só no papel. Alegava-

65
se, dentre outras coisas: falta de espaço, pessoal, segurança... Enfim,
o fato é que se deixava de cumprir o que a Lei de Execução Penal
regulamenta e o acesso à educação aos privados de liberdade não
se efetivava na Cadeia de Tocantinópolis.
Tudo começou a mudar quando, em 2017, o aluno do curso de
pedagogia da UFT e também funcionário da Cadeia Pública, Carlos
Alberto Soares Filho, relatou-me que havia uma professora da UFT
que gostaria de conhecer a unidade prisional e verificar a
viabilidade de desenvolver algum projeto de cunho educacional na
cadeia de Tocantinópolis, por já possuir experiências educacionais
desenvolvidas com apenados do Estado de São Paulo.
Nessa época, já existia na unidade a remição por artesanato e
por serviços gerais que os custodiados fizessem. Mas faltava o
despertar para a Educação, não havia essa pegada.
Feitas as devidas apresentações, entre a direção do
estabelecimento prisional e a professora da UFT Aline Campos, não
restaram dúvidas de que, a partir daquele encontro e conversa
informal, muita coisa mudaria. Pois havia o desejo extraordinário
de ambos em dar os passos iniciais a todo e qualquer projeto com
viabilidade que se enquadrasse nas peculiaridades da nossa
unidade prisional. Com muita dificuldade conseguimos abrir
espaço em um cômodo para ser idealizado como sala de aula.
Dispúnhamos da sala de aula, mas padecíamos da falta de mobília
e de parceiros. Foi quando em conversa com o Promotor Celsimar
Custódio Silva, outro entusiasta de projetos a serem desenvolvidos,
o Ministério Público abraçou a causa e através das postulações
financeiras perante o Juizado Especial Cível e Criminal de
Tocantinópolis conseguimos alguns progressos indispensáveis para
efetivar os projetos educacionais em parceria com a Diretoria
Regional de Ensino de Tocantinópolis.
A simplicidade da professora Aline e os esforços engendrados
por ela me deixaram feliz e satisfeito. Fiquei de certa forma
assustado, porque não é comum esse trabalho voluntariado,
especialmente em cadeias. Há tempos trabalhando no sistema
prisional, percebi que esse ambiente sempre foi negligenciado por

66
instituições que deveriam promover a educação de forma universal
e sem preconceitos. Posso dizer que a UFT, hoje, tem um braço na
Cadeia de Tocantinópolis, promovendo a educação por meio do
trabalho da professora Aline e de suas alunas na forma de projetos
de extensão.
A princípio, em junho de 2017, a professora Aline começou
com oficinas experimentais uma vez por semana, para trabalhar a
leitura e a escrita com os alunos. Ela entrou na carceragem, se
apresentou e convidou aqueles que tivessem interesse e assim
alguns se prontificaram, com certa desconfiança, afinal aquilo era
algo que nunca havia ocorrido antes. Chegando na sala de aula que
não havia carteiras, coube à professora Aline lidar com a situação:
“não tem carteiras a gente senta no chão mesmo”, afirmou. E assim,
todos se sentaram no chão numa roda de conversas. Ainda no
segundo semestre de 2017 foi ofertado aos custodiados, que não
sabiam ler e escrever, o Programa Brasil Alfabetizado, cuja
professora era uma aluna da UFT, a Jhenissa.
Por meio da Diretoria Regional de Ensino foram cedidas as
carteiras, pelo Ministério Público e Poder Judiciário foi adquirido
recurso para aquisição da mobília para alocar os computadores
cedidos pela prefeitura, outra parceira do projeto.
Portanto, temos muito o que comemorar: os presos têm acesso
ao ensino fundamental e médio, 02 (dois) dos custodiados que
apresentam bom comportamento carcerário estão aprovados para
o curso de licenciatura em matemática da UFT modalidade EaD, os
computadores cedidos pela prefeitura já estão instalados na sala de
aula prontos para o início das aulas. As barreiras foram sendo
superadas, os mitos que existem em torno das pessoas
encarceradas foram se desfazendo.
O pouco que conseguimos em relação à educação prisional na
nossa unidade é grandioso diante de todos os obstáculos e desafios
postos no dia a dia e que estão sendo, um a um, superados graças
às pessoas que acreditam que a educação liberta tanto os
encarcerados através da remição, quanto às mentes das pessoas
intramuros e extramuros.

67
A educação, como ferramenta de inclusão na sociedade
brasileira (onde temos até os não-encarcerados muitas vezes
excluídos), tem a contribuir infinitamente com as pessoas privadas
de liberdade de Tocantinópolis e com toda a sociedade local. É
sabido por muitos que pela educação na prisão pode-se reduzir,
mesmo que minimamente, o nível de reincidência, porque não se
pretende que a educação sozinha seja capaz de acabar com a
criminalidade. Muitos acreditam que a proposta dos que militam
pela educação na prisão seja vender a ideia de que a educação
mudará e resolverá todos os problemas sociais que levam à
criminalidade. Essa é uma visão, ao meu ver, que não agrega e não
ajuda em nada, pois só polemiza quando ouvimos dizeres do tipo:
“o Estado não pode passar a mão na cabeça de bandido”, “bandido
bom é bandido morto”, “vocês estão protegendo bandido, bandido
não tem recuperação”, dentre outros.
Ao contrário, penso que a punição para os que estão em
conflito com a lei é a restrição de liberdade, não podemos perder
nossa civilidade manchando as mãos com a mesma violência que
sofremos quando o Estado não consegue suprir direitos sagrados:
educação de qualidade, lazer, esporte, geração de emprego, saúde,
saneamento básico. A falta de tudo isso é alimento para a
criminalidade. Não quero aqui vitimizar os que cometeram algum
crime, eles devem ter suas reprimendas impostas nos termos da lei.
O que for proposto fora dos limites da lei é crime e quem comete
crime é criminoso, então, partindo dessa premissa, o que fazemos
aqui na nossa cadeia é dar condições de acesso à educação a aqueles
que não tiveram. É sabido que a maioria dos presos brasileiros são
jovens, pobres, negros e com baixa escolaridade.
É nessa esteira que a educação na Cadeia Pública de
Tocantinópolis surge como uma luz no fim do túnel, uma pequena
centelha de esperança. Depois que a educação prisional passou a
ser uma realidade nesta unidade prisional, há um clima menos
hostil, não se ouve falar em rebeliões, maus-tratos, desrespeito; os
presos têm ocupação e produzem. Em breve queremos que os
presos de bom comportamento e autorizados pela justiça

68
trabalhem na limpeza urbana da nossa cidade, cuidando de praças
e jardins em parceria com a prefeitura, que já sinalizou
positivamente com a ideia. Mas tudo isso se deve a um trabalho
árduo e invisível que a sociedade as vezes não toma conta e que
tem trazidos efeitos positivos cada vez mais visíveis. São poucos os
que visitam as cadeias, ainda é um lugar que a maioria vê como um
problema do Estado e que apenas ele deve resolver. Essa visão é
distorcida, todos somos responsáveis pela educação, seja ela nas
prisões ou não.
Lutaremos para que o direito à educação seja garantido e
mantido na cadeia de Tocantinópolis, pois só assim podemos
manter viva dentro de nós a esperança de uma sociedade com
menos violência e mais paz.

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70
O caminho entre a cela e a sala: uma visão da segurança

Cláudio Evandro da Silva Fontenele

Falar em espaço educativo num ambiente prisional pode até


soar estranho para quem não conhece uma cadeia e a rotina de
trabalho dos agentes prisionais durante a lida diária com os
ergastulados ali presentes, pois muitos imaginam que o cárcere é
apenas um local para o cumprimento da pena imposta pela justiça
sem que haja meios para a ressocialização. Entretanto, o Estado
também oferece aos presos a oportunidade de participarem de
projetos que lhes impulsionem a voltar ao convívio em sociedade
como cidadãos de bem, daí a importância de se ter um espaço
educacional que possa oportunizar o aprendizado àqueles que
demonstrem interesse pelo ensino proposto e à ressocialização.
A cadeia pública de Tocantinópolis é uma das unidades
prisionais do Estado privilegiada, que consegue proporcionar um
espaço amplo e climatizado para o reeducando que almeja a
formação educacional; entretanto, percebe-se o grande desinteresse
da população carcerária em se fazer presente aos estudos, se
compararmos a quantidade de presos da unidade com os
frequentadores das aulas, mesmo eles sabendo que isso vai servir
para remição de suas penas.
Os professores são também agentes ressocializadores, na
medida em que participam no processo de formação educacional
dos internos, motivando-os para não desistirem de seus projetos de
vida e orientando-os para o mercado de trabalho, quando estes
forem postos em liberdade.
Trabalhar em uma cadeia pública como a Casa de Prisão
Provisória de Tocantinópolis requer muita atenção, engajamento,
compromisso, seriedade e dinamismo na condução das rotinas
diárias, principalmente nos dias que possuem agendadas várias
tarefas ao mesmo tempo e com baixo efetivo disponível no plantão,

71
onde temos que atender, por exemplo, o banho de sol dos internos,
a sala de aula, escolta para atendimento médico, escolta para
audiências, foras outros trabalhos de segurança da unidade.
Porém, com a colaboração e companheirismo dos colegas
conseguimos alinhar os procedimentos de segurança para atender
as demandas propostas pela unidade.
Para manter a escola funcionando, nosso maior desafio é ter
um efetivo de agentes que possam ficar direcionados
exclusivamente para essa tarefa, pois nunca saberemos quando os
reeducandos que ali se encontram podem mudar o foco e planejar
algo que prejudique ou comprometa a segurança de todos.
O agente de segurança prisional tem que estar apto e sensível a
“ver e ouvir”, pois o ambiente carcerário é um local com vários tipos
de mentes ociosas que passam a maior parte do tempo planejando e
observando o comportamento dos plantonistas e, portanto, não
podemos perder o foco no quesito da segurança, tanto a nossa quanto
dos frequentadores da unidade e dos próprios presos.
Podemos perceber então que, sem um efetivo mínimo de
agentes disponíveis no plantão para o atendimento da demanda da
escola, não seria possível manter o ambiente em funcionamento e
com a devida segurança.

72
Leituras de prosa na cela

Aline Campos

No primeiro formato do projeto de leitura, desenvolvido no


primeiro semestre de 2018, elaboramos uma proposta
experimental. Tínhamos, até então, mais experiência com a
educação formal escolar do que com a não-formal e nenhuma de
nós havia antes desenvolvido algum trabalho com leitura em
prisões. Tendo conhecimento da importância e valor da remição de
pena para a população carcerária, estruturamos o projeto com base
na Recomendação 44 do Conselho Nacional de Justiça, que orienta
a regulamentação da remição de pena por leitura.
Sabíamos que não teríamos condições de conduzir uma
proposta na qual os participantes tivessem liberdade para
escolherem individualmente os livros que gostariam de ler, isso
porque não poderíamos nos dedicar integralmente ao projeto. E se,
na hipótese de termos 15 participantes, cada um deles escolhesse
um livro distinto, como faríamos para dar conta de avaliar as
diferentes resenhas? É muito difícil avaliar uma resenha de um
livro que você não leu. Teríamos então que ler todos os livros
escolhidos pelos participantes e isso era definitivamente inviável.
Como compatibilizaríamos essas leituras e avaliações com nossas
outras demandas da UFT? Além disso, como saberíamos se de fato
a resenha foi escrita por quem a assinou e entregou? Precisávamos
encontrar algum formato que atendesse a remição pela leitura,
respeitando as orientações da normativa e que fosse compatível
com nossa disponibilidade de tempo de dedicação ao projeto para
acompanhamento das leituras e produções escritas.
Acabamos concluindo que teríamos que definir uma única
leitura para todos os participantes, assim, conseguiríamos fazer a
leitura do livro e avaliar as resenhas produzidas. Porém, quais
livros seriam lidos? Como definiríamos os títulos? Considerando

73
que precisaríamos de mais de um exemplar para viabilizar a leitura
simultânea entre várias pessoas, fizemos o levantamento dos livros
disponíveis no acervo da biblioteca estruturada no espaço
educativo da Cadeia Pública de Tocantinópolis que possuíam
maior quantidade de exemplares. Deste levantamento
conseguimos tirar uma média de dez títulos, os quais foram
apresentados aos participantes para que eles, coletivamente,
definissem a leitura que gostariam de fazer.
Nesse momento de inauguração do Clube de Leitura, todos os
participantes afirmaram nunca terem lido um livro inteiro na vida
até então. Porém, alguns deles disseram-se habituados com a
leitura da bíblia, apenas. Talvez por isso todos os títulos que
apresentamos pareceram-lhes estranhos, ainda que alguns sejam
considerados clássicos da literatura. Os livros circularam entre eles,
e buscamos apresentar brevemente o contexto de cada um deles no
intuito de auxiliar no processo de escolha. Eles olharam os livros,
conversaram entre si e por fim decidiram por ler “Ubirajara”, de
José de Alencar. Esse procedimento foi repetido nos três meses
subsequentes, para definição das demais obras que seriam lidas ao
longo dessa primeira edição do projeto. Foram escolhidos,
sucessivamente: “A metamorfose” (Franz Kafka); “O pequeno
príncipe” (Antoine de Saint-Exupéry); e “O vampiro que descobriu
o Brasil” (Ivan Jaf).
A seguir apresentamos, para cada obra lida, um texto que
busca compartilhar um pouco as reflexões que emergiram das
leituras e que foram socializadas entre os participantes nos
encontros semanais presenciais. Tais textos foram escritos pelas
graduandas voluntárias do projeto, com base em suas observações,
escutas, participação nos diálogos e registros de diários de campo.
Após cada texto referente às obras lidas, apresentamos duas das
resenhas produzidas pelos participantes, a fim de socializar as
interpretações e reflexões a partir de suas próprias palavras.

74
Uma discussão na cela:
afinal, Ubirajara era ou não covarde?

Luciana Conceição da Silva

O livro que deu início ao projeto de leitura, em março de 2018,


foi “Ubirajara” de José de Alencar, um clássico da literatura
brasileira, escolhido pelos próprios participantes. Devemos admitir
que a escolha nos surpreendeu, pois trata-se de um romance escrito
no período do romantismo brasileiro, tendo a figura do índio como
herói e a natureza como uma beleza intocável. Para algumas de nós,
apesar de ser uma obra clássica e muitas vezes de leitura
obrigatória nas escolas, trata-se de uma leitura ”chata”, justamente
por enaltecer o índio de maneira exagerada e distorcida, na
perspectiva de construção de uma história épica. Entretanto, eles
não tinham nenhum conhecimento prévio sobre a obra e o que
aparentemente os motivou pela escolha foi o fato dela ser
protagonizada por indígenas, que representam parcela da
identidade de formação do povo brasileiro. Vale destacar que o
município de Tocantinópolis é composto majoritariamente por
terras indígenas Apinajés, de modo que é bastante comum vê-los
transitando pela cidade, sobretudo nos comércios de alimentos. E,
alguns dos participantes, afirmaram conhecer e até frequentar
algumas aldeias da região.
A obra foi publicada em 1874 e apresenta a cultura dos
indígenas na perspectiva romântica, tratando de valores como
bravura, lealdade e a relação que eles estabelecem com a natureza.
Trata-se da história de Jaguarê, um índio Araguaia que busca
inimigos para conseguir o título de guerreiro da tribo. É quando
cruza seu caminho Pojucã, um índio guerreiro de outra tribo, com o
qual trava uma difícil batalha e sai vencedor, tornando-se Jurandir.
Esse momento do livro foi, sem dúvida, um dos pontos mais fortes
de discussão na roda de conversa. Chamou-nos especialmente a

75
atenção quando um dos participantes afirmou estar cansado de
discutir se Ubirajara era ou não covarde, já que esse tema havia sido
amplamente debatido na cela durante a semana. A discussão
ocorreu porque Jaguarê, ao invés de matar Pojucã na própria mata,
decide levá-lo vivo para sua aldeia, a fim de matá-lo em público.
Para alguns isso evidenciou a covardia de seu caráter, algo que o
diminuía enquanto homem. Mas havia também os que o defendiam,
não sendo possível chegar a um consenso.
Essa frase “discutimos isso na cela”, reiterada por outros
participantes, evidenciou algo ao nosso ver muito positivo. Os
participantes levavam para as celas os livros e liam em voz alta.
Com isso, faziam com que até seus colegas que não participavam
do projeto viajassem nessa leitura e discussão. Simbolicamente, o
projeto, por meio das leituras, atravessava os limites do espaço
educativo e se expandia pela cadeia. Isso não havia sido planejado
e tampouco era controlável, contudo, era imensamente satisfatório
tomar conhecimento de que estava acontecendo.
Em meio a sua busca por se tornar guerreiro, Jaguarê se
deparou também com Araci, filha do cacique de uma aldeia rival.
Ele se apaixona por ela, mas para que este amor se tornasse possível
deveria enfrentar desafios e os guerreiros mais corajosos. Ao vencer
todos, torna-se Ubirajara. Entretanto, quando sua identidade é
descoberta e tomam conhecimento de que foi ele quem venceu e
aprisionou Pojucã, sem saber que este era irmão de Araci, uma
guerra é declara pela libertação de Pojucã. O pai de Araci é atingido
pelos Tapuias e fica cego. Por isso, o guerreiro que conseguisse
dobrar seu arco e atirar a flecha se tornaria seu sucessor, mas
nenhum dos guerreiros de sua aldeia conseguiu fazer isso.
Ubirajara é então chamado e alcança o feito virando o grande líder
dos dois povos, unindo assim Tocantim e Araguaia e criando uma
nova nação: os Ubirajaras. Por fim, Jandira, que era a mulher
inicialmente prometida para ser esposa de Ubirajara, não se
conforma em perdê-lo para Araci e foge para floresta sem aceitar
outro marido. Contudo, ao se tornar um líder, Ubirajara ganha o

76
privilégio de poder ter duas esposas: Araci e Jandira, resolvendo-
se assim o conflito amoroso.
O desfecho da obra apresentou a possibilidade de uma cultura
com bigamia aos líderes de algumas etnias e esse aspecto foi tema
para acalorar nossos debates. A história, dado o contexto e período
em que foi escrita, coloca a figura masculina como protagonista,
estando as mulheres sempre à serviço dos homens. O fato do grupo
do Clube da Leitura ser composto de participantes homens e
mediadoras mulheres, fez com que as discussões em torno das
questões sobre machismo fossem potencializadas. Sabemos que o
machismo é algo enraizado em nossa sociedade e percebemos que
nos espaços prisionais essa cultura também se faz presente, sendo
ainda mais evidente, dada a brutalização desse espaço, que exige
uma postura firme, frequentemente e culturalmente associada à
masculinidade, excluindo tudo que possa demonstrar fraqueza, já
que essa é uma característica culturalmente atrelada às mulheres.
Assim como a discussão sobre o caráter covarde ou não de
Ubirajara polemizou as conversas entre os presos na cela, as
relações estabelecidas entre homens e mulheres na sociedade
ocidental contemporânea, advindas da cultura indígena retratada
no livro, foi tema extremamente polêmico na roda de conversa
entre participantes e mediadoras. Percebemo-nos, de alguma
forma, lutando pelo nosso espaço enquanto mulheres, defendendo
nosso direito de assumir outras posições, se assim o desejarmos.
Do livro, passando pelas celas, as discussões chegaram à roda
de conversa no espaço educativo, girando em torno de temas
polêmicos e diversos relacionados à população indígena. Quem é o
indígena na nossa sociedade hoje? Uns afirmaram serem pessoas
preguiçosas, que não gostam de trabalhar e que por isso não se
desenvolvem na vida. Outros diziam se tratarem de pessoas que
perderam suas origens, deixando de serem índios. Todos, de algum
modo, trouxeram algumas ideias equivocadas sobre o índio, tais

77
como as já denunciadas por Bessa Freire1. Nada fora do normal, já
que todos nós aprendemos na escola de forma equivocada que
índio é aquele ser selvagem que usa cocar, pena, urucum, arco e
flecha. Romper com esses estereótipos e compreender que ser índio
é muito mais do que isso é tarefa complicada, pois a desconstrução
é um processo longo e difícil.
Para encerrar, volto novamente à pergunta: afinal, Ubirajara
era ou não covarde? Diria que depende do ponto de vista de cada
um e que não é necessário haver uma única resposta. Para quem
olhar para o fato de que Ubirajara enfrentou todos e tudo com sua
coragem, pode ser que não. Porém, os que preferirem olhar para a
humilhação que Ubirajara causou à Pojucã, pode ser que sim.
Jaguarê, Jurandir, Ubirajara... havia muitas facetas em uma só
pessoa. Talvez possamos cogitar, ainda, que coexiste a coragem e
covardia no protagonista da história. E mais: o mesmo acontece
conosco e com a população carcerária. Somos todos seres com
múltiplas identidades.
Algumas pessoas que leram essa obra podem achar que é
somente uma história sobre índio, um romance bobo e nada
diferente de tantos outros. Porém, caros leitores, espero levar vocês
a refletirem que falamos aqui de grupos estigmatizados: no livro os
indígenas, em nosso espaço educativo os presos e nós mulheres. De
certa forma, todos estamos representados nas discussões que
suscitam essa obra. No meio dos debates, vimos emergir o
preconceito enraizado em nossa sociedade, porém este foi só o
começo para que abríssemos nossas mentes, a partir de nossas
conversas e socialização de olhares e experiências. Este foi só o
primeiro livro! Talvez com a socialização dessa experiência seja
possível entrever o quanto todos que dela participaram cresceram ao
longo de seu desenvolvimento. Melhor ainda será se com a leitura
desse nosso relato e reflexões, possamos contribuir para o exercício
das pessoas se colocarem nos lugares desses grupos estigmatizados.

1FREIRE, José Ribamar Bessa. As cinco ideias equivocadas sobre o índio, Revista
Ensaio e Pesquisa em Educação, vol. 01, 2016, p. 03 – 23.

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A história de Ubirajara: um resumo

Francisco de Assis Alves


(Resenha crítica produzida no projeto)

Ubirajara foi caçar um guerreiro para lutar com ele e encontrou


o Pojucã e travou um combate com ele durante três dias. Ubirajara
sofreu muito, mas conseguiu vencer o Pojucã e tornou-se vitorioso.
Depois pegou Pojucã e o levou para a aldeia, como prisioneiro.
Pojucã falou que foi dominado pelo Ubirajara, que venceu porque
ele era mais forte de que ele. Assim, Ubirajara torna-se guerreiro do
Araguaia.
Jandira é virgem e muito bonita e se apaixona por Ubirajara,
mas o Ubirajara não quer ela. Ubirajara dá Jandira para Pojucã, mas
ela não quer e vai atrás do Ubirajara, mas Ubirajara não quer ela.
Ele vai atrás de Araci, por quem se apaixonou, ela pertence a aldeia
do Tocantim.
Quando ele chega na aldeia, ele não fala quem ele é, e ele é
recebido como uma pessoa comum. Ele é recebido pela
hospitalidade de Itaquê, pai de Araci. Ubirajara entra em batalha
com outros pretendentes pelo amor de Araci. Ele luta bastante, mas
consegue ser vitorioso e ganha o amor de Araci. Ubirajara revela
que ele é um guerreiro da tribo do Araguaia, e Itaquê o declara seu
inimigo, pois Pojucã era seu filho. Ubirajara deixa Araci a sua
espera e vai para Araguaia se preparar para a guerra e manda
Pojucã para a tribo dos Tocantins, para ele ajudar seu pai na guerra
contra os Tapuias.
Itaquê fica cego na batalha contra os Tapuias e acaba que
Itaquê se une com Ubirajara, formando uma única nação. Reúnem
mil homens do Araguaia, mil homens da tribo do Tocantim e vão
lutar contra os Tapuias. Eles vencem e o Ubirajara se torna o chefe
da nação, casando-se com Jandira e Araci.

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Outros modos de vida encontrados na leitura

Isaías Veloso Monteiro


(Resenha crítica produzida no projeto)

Em Ubirajara, no primeiro capítulo, o jovem Araguaia Jaguarê


sonhava um dia ser guerreiro imbatível. No meio da mata
encontrou vários desafios e algo muito mais surpreendente do que
ele imaginava: uma linda virgem índia, Araci, filha do chefe da
nação Tocantim, Itaquê. A jovem parte e Jaguarê cruza com Pojucã,
guerreiro Tocantim, e começaram uma luta sem precedentes, da
qual o Araguaia sai vencedor. Seguindo os costumes dos povos
primitivos, Jaguarê leva o prisioneiro de guerra para a tribo
Araguaia, onde, segundo o costume e seguindo os rituais, ele seria
executado.
Esse feito garante a Jaguarê o título de guerreiro Ubirajara,
senhor da lança e o posto de chefe dos índios Araguaia, herdado de
seu pai Camacã. Não contente com essa conquista, Ubirajara quer
uma outra esposa. Ele já tinha a promessa de casamento com a
jovem Jandira, mas não conseguiu esquecer de Araci. Logo depois
da festa da vitória, o herói segue para a nação de Tocantim. É
recebido com todas as honras de hóspede, pois pensam que ele era
enviado de Tupã. Sendo assim, Ubirajara, como mandam as
tradições, se senta na taba do chefe Itaquê com os mais bravos
guerreiros para fumar cachimbo da paz entre todos presentes.
Ubirajara passa a ser chamado Jurandir, aquele que foi trazido pela
luz do céu. A lei da hospitalidade não permitia que perguntasse ao
estrangeiro seu nome e nem sua nação.
Depois Jurandir pede ao chefe Itaquê a mão de Araci, e o
pedido foi aceito e Jurandir deixa de ser estrangeiro e passa a
pertencer a oca de Itaquê. Por isso foi trabalhar para o pai da noiva.
E, conforme as tradições, ele tem de disputar com os outros
guerreiros a posse de Araci. Jurandir vence todos os guerreiros,

81
passando por provas de força. Uma vez que venceu o combate seria
o esposo de uma índia da taba Tocantim, mas ao revelar sua
identidade torna-se inimigo da nação. Araci queria acompanhá-lo,
porém, o herói não permitiu porque jamais trairia seu chefe Itaquê,
e que ele deveria apelar pelo combate final. Dessa forma, Ubirajara
volta para a sua tribo e liberta Pojucã para que ele lute ao lado do
povo Tocantim.
Gostei dessa história, pois ela fez eu ver um modo de vida
diferente. Porque nós devemos honrar a nossa raça, seja lá qual for,
com dignidade, respeito, sinceridade e lutar pelos nossos objetivos,
que é ser feliz com a pessoa amada.
A obra me sugeriu uma outra forma de tratar as pessoas. Essa
obra me fez sentir felicidade, pois ela trouxe outra forma de
harmonia.

82
Ao sermos presos, nos tornamos Gregor!

Darlene Ribeiro da Silva

A leitura da obra “A Metamorfose”, de Franz Kafka,


promoveu importantes reflexões, porém, inicio com um
questionamento que me parece bastante pertinente, pois provoca
inquietação nos meus pensamentos. Pode até parecer uma simples
pergunta, mas sua compreensão é complexa: qual seria o
verdadeiro valor de uma vida?
Ao lermos esta obra percebemos que a história trata de uma
mudança física do protagonista Gregor, que se transforma em um
inseto. Porém, essa mudança traz consigo várias problemáticas e
reflexões sobre a vida. Nota-se que a partir do momento que
Gregor ficou preso no corpo de um inseto, passou,
contraditoriamente, a se sentir livre de toda alienação em que a
sociedade capitalista o havia aprisionado. No entanto, ao ser livre,
torna-se indesejado para seus familiares e para a sociedade. Sua
família não aceita sua condição e não sabe como lidar com o
ocorrido, valendo-se assim da agressão. Seu pai, com medo, o
espanta e machuca diversas vezes, e por ninguém o querer por
perto vai ficando cada vez mais isolado. Logo ele, que havia se
dedicado inteiramente a sua família, que era tão amado antes,
acabou sendo abandonado por ela até morrer.
Antes de compartilhar as reflexões que fizemos a partir da
leitura dessa obra, é necessário dizer que ler e aceitá-la como uma
leitura enriquecedora não foi simples e fácil, pois trata-se de um
clássico, escrito no período da Revolução Industrial, contendo uma
escrita formal e de difícil compreensão. Além disso, apesar de
possibilitar inúmeras associações com a realidade, é uma história
aparentemente nada realista. No entanto, o gosto literário é um
processo que se adquiri aos poucos, e a partir do momento em que

83
nele se adentra vamos nos sentindo pertencentes a esse outro
mundo no qual nossos pensamentos e imaginação são libertos.
Desta forma, apesar da escolha por essa obra ter partido dos
próprios participantes, após lerem o primeiro trecho dela na cela,
chegaram no encontro presencial manifestando suas insatisfações
com a história e decididos a mudar de livro. Alegavam que a leitura
era difícil e que não haviam compreendido nada, que não tinha
sentido algum o personagem se transformar num inseto e ficar o
trecho inteiro tentando, sem sucesso, mexer suas “perninhas”.
Houve um participante, inclusive, que afirmou que o livro deveria
ter sido escrito pelo autor sob efeito de algum tipo de droga.
Ouvimos suas queixas e de maneira alguma estava em nossos
planos forçá-los a ler uma obra que não lhes interessava.
Entretanto, apresentamos alguns argumentos em defesa do livro e
da continuação de sua leitura. Enfatizamos tratar-se de uma obra
considerada mundialmente como um clássico, o que evidenciava
sua importância; relembramos que já havíamos “gastado” uma
semana lendo parte do livro e que se não o concluíssemos e
produzíssemos as resenhas sobre ele atrasaríamos a remição de
leitura do mês; e, por fim, propusemos fazer a discussão do trecho
lido, já que estávamos ali e que apenas ao final do encontro
decidíssemos por continuar ou não a leitura. Assim o fizemos e, por
termos tido um debate tão interessante, eles acabaram optando por
continuar com a leitura.
Ao discutimos as compreensões fragmentadas de cada um, o
que estava obscuro e impenetrável, passou a ter sentido e a ser
compreendido coletivamente. É a partir dessas reflexões que passei
a me questionar sobre o valor que uma vida possui. Em meio às
nossas conversas, fomos concluindo que insetos são tidos pelos
seres humanos como seres abomináveis, indesejados, detestados e
odiados, exigindo assim sua eliminação. Simbolicamente, os
insetos representam o que ninguém quer por perto. Em meio a essa
reflexão, foi que um participante disse: “ah, estou entendendo,
somos os insetos da sociedade”. Em nossa leitura sobre a obra,
percebemos que Gregor poderia representar as pessoas presas.

84
Seria a prisão responsável pela transformação do sujeito em um
inseto? Seria a sociedade, com suas mazelas, desigualdade social e
econômica, pobreza, violência que transforma humanos em
insetos? Ou seria o indivíduo, o único responsável por se converter
em um inseto social? O que pareceu certo para nós é que se tornar
uma pessoa presa assimila-se muito com a transformação de
Gregor num inseto, com todas as consequências de tal
transformação. Suas metamorfoses, entretanto, consistem na perda
da identidade de humano para a aquisição da identidade de
bandido. Com essa nova identidade, quem os quer por perto?
Nesse novo papel, qual o valor de suas vidas? Podem (ou devem)
ser abandonados, esquecidos ou eliminados? Quais os critérios
para que algumas vidas tenham mais valor que outras? Como se
mensura o valor de uma vida? O que é necessário para que o valor
de uma vida seja reconhecida?
Outro ponto presente na obra que foi bastante discutido pelos
participantes relaciona-se com a reciprocidade. Na história, Gregor
havia se dedicado inteiramente, ao longo de cinco anos de sua vida,
aos seus pais, sacrificando-se num trabalho que não gostava para
que seus familiares pudessem desfrutar de uma boa vida. Mesmo
sofrendo, sentindo-se preso e escravizado, ele persistia vivendo o
trabalho alienado, para que assim sua família sobrevivesse e
quitasse sua dívida. Porém, quando uma metamorfose o atinge
transformando-o num ser desprezível, o que aqueles a quem ele
servia fazem? Abandonam-no! Simplesmente não o entendem, não
são capazes de compreender seus pedidos de ajuda e o desprezam,
enxotando-o para longe. É a partir desse momento do livro que os
participantes refletem sobre a reciprocidade entre as pessoas, pois
Gregor doa-se compulsivamente à sua família, e a mesma o
despreza justo quando ele mais precisa, deixando de tratá-lo da
forma como faziam antes. Gregor, por não ter mais serventia e
constituir-se como um peso, é condenado ao isolamento, sendo
mantido distante por meio de maus-tratos, agressões e violência.
Ainda sobre essa obra, há um desdobramento digno de nota.
Meses depois da conclusão da leitura, um dos participantes nos

85
relatou uma situação por ele vivida na cela. Contou que estava
assistindo o quadro “Quem quer ser um milionário” do programa
Caldeirão do Huck, quando ouviu a seguinte pergunta feita pelo
apresentador do programa: “No livro ‘A metamorfose’ de Franz
Kafka, o personagem principal é transformado em qual ser?”. Em
seguida, o apresentador leu algumas alternativas. De imediato ele
falou para os demais colegas de cela: “a resposta certa é inseto”. Ao
verem que ele acertou, os colegas afirmaram que havia sido chute.
Ele, entretanto, retrocou dizendo que sabia pois havia lido o livro e
que tinha até a resenha para comprovar. Seu relato exalava uma
certa satisfação, orgulho de si mesmo, talvez. Esse episódio revelou
outra coisa positiva: as reverberações das leituras estavam sendo
maiores e mais duradouras do que supúnhamos.
Da insatisfação inicial, com o quase abandono da leitura,
terminamos com problematizações profundas. Todos levamos
conosco as inquietações suscitadas nas discussões e também a
eterna dúvida: qual será o inseto em que Gregor foi transformado?

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Incômodo, estorvo e peso: somos todos!

Antônio Pereira da Silva


(Resenha crítica produzida no projeto)

A metamorfose conta a história de Gregor, que trabalhava em


uma empresa por causa da dívida de seus pais, quando uma certa
manhã acordou como um inseto. Já que ele se viu transformado,
parou para refletir sobre sua vida, porque mesmo como ser
humano, por causa das constantes viagens e por causa de seu chefe,
as vezes pensava em desistir de tudo, porque não se sentia humano
e para o chefe não passava de um inseto que a qualquer hora
poderia ser esmagado.
Por cinco anos não tinha nem uma falta, mas por causa da
mudança e da revolução industrial os preços são constantes, foi aí
que entendeu que realmente tinha sofrido uma metamorfose, se
transformado em um inseto. Porém, todo tempo ele não era inseto,
se sentia como um, e só depois que se tornou um inseto é que se
sente realmente um ser humano, depois de pensar em tudo que ele
tinha feito pelos seus pais e por sua irmã e quando muda para
aquela forma todos se assustaram, o gerente saiu correndo
assustado.
Só após Gregor despertar do crepúsculo foi que ele começou a
pensar como iria recomeçar, então ele às vezes ficava imaginando.
A sua irmã, que era a que mais se preocupava com ele, com a sua
atual situação passa a se distanciar, desta maneira como se sentiria
qualquer um de nós se nos encontrássemos em uma situação
parecida com a de Gregor? E quando o pai diz que o melhor para a
família seria que ele desaparecesse e a mãe fica calada? Aí que
devemos pensar que tudo o que ele era e fez. Dedicou cinco anos
de sua vida somente para a família, mas não valeu de nada, pois
estavam todos decididos a abandona-lo. Então nos tornamos um
inseto para nossa própria família e ela não nos abandona.

87
A história finaliza com a morte de Gregor.
O que ocorre com a sociedade em si é que todos nós às vezes
não paramos para pensar que vamos um dia ou outro nos tornar
um incomodo para as outras pessoas de modo que elas venham ver
que somos um estorvo ou um peso. É aí que devemos parar para
refletir, quando nos humilhávamos e desprezávamos aqueles que
tanto nos ajudaram. Esta obra me fez pensar que devemos cuidar
melhor das nossas crianças e de nossos idosos, é por isso que gostei
da obra, me fez pensar que não devemos nos doar
compulsivamente para os outros.

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Damos, mas recebemos?

Isaías Veloso Monteiro


(Resenha crítica produzida no projeto)

A história relata a vida de um caixeiro viajante que certo dia


acordou em uma situação de que nem ele sabia o que estava
acontecendo, ele estava sentindo fortes dores no corpo, não
conseguia nem sequer levantar da cama, pois não tinha equilíbrio
em suas pernas. Chegou até a pensar que era por causa do seu
trabalho, que era muito cansativo, mas na verdade ele não estava
acreditando no que estava acontecendo, porque isto nunca tinha
acontecido com ele, pois acordava todos os dias cedo para ir
trabalhar. Neste dia já era mais de sete horas e nada de se levantar.
Os seus pais e sua irmã começaram a se preocupar com
Gregor, porque ele nunca tinha faltado sequer um dia de serviço na
empresa, sua mãe foi até o quarto e chamou por Gregor, logo veio
seu pai e sua irmã perguntando se ele estava bem ou estava
precisando de ajuda, ele respondeu que estava bem. Mas a
preocupação maior dele era com o seu serviço e o seu chefe, porque
além de estar insatisfeito com seu serviço, não podia largar e nem
mesmo faltar nem um dia na empresa, por causa da dívida de seu
pai. Logo depois chegou o gerente na sua residência e se deparou
com a sua situação e se assustou ao ver como se encontrava seu
funcionário. Então o pai de Gregor o agride tentando colocá-lo
novamente dentro do quarto.
No segundo capítulo Gregor continuava dentro do quarto e
sua irmã mesmo assustada se aproxima dele levando comida,
levando outros tipos de comida que ele começou a comer. Certo dia
Grete observou que Gregor estava subindo nas paredes e ela
resolveu tirar os móveis do quarto, só assim ele poderia respirar
melhor e ter mais espaço para se mover. Com a ausência de seu pai,
sua mãe foi ajudá-lo, mesmo assustada e com medo de seu marido

89
chegar. Nas mudanças dos móveis Gregor estava querendo
aparecer para sua mãe, mas a Grete disfarçava, porém depois sua
mãe viu Gregor e desmaiou. Grete foi ajudar sua mãe, logo seu pai
chegou, quando o pai de Gregor chega e vê sua esposa desmaiada,
ele pensou outra coisa e já foi falando para sua filha que o culpado
de tudo era Gregor. Por isso, logo partiu para o quarto de Gregor
tentando esmagá-lo com os pés e começou a atirar maçãs nele, mas
sua irmã viu o que estava acontecendo e saiu em direção de seu pai
pedindo para ele poupar a vida de Gregor.
No terceiro capítulo, a vida de Gregor foi cada dia mais
ficando difícil, a sua irmã não tinha mais tempo suficiente para
cuidar dele e sua empregada só o maltratava. Ele não comia mais
direito e estava cada dia mais fraco, seu pai passou a trabalhar,
coisa que não fazia antes, e só ficava o tempo que estava em casa
exibindo seu uniforme que usava em seu trabalho. Certo dia, todos
da família estavam tranquilos quando se assustaram com um
barulho e correram para o quarto de Gregor e sua mãe perguntou
para a faxineira se ele estava vivo, a faxineira empurrou o cadáver
de Gregor com a vassoura e falou que ele estava morto, depois
foram todos para uma nova casa e ficaram todos feliz porque
tiraram um peso de suas costas.
Não gostei da obra porque ela me traz a triste lembranças de
alguém que eu fazia o possível para vê-la feliz e só tive decepção.
Está obra me sugere que na verdade não devemos nos dedicar
muito as pessoas, mas sim passar a pensar mais em si próprio
porque nem tudo que fazemos de bom para os outros recebemos
de volta.

90
Construindo absurdos:
entre a jiboia que engoliu um elefante e o consumismo

Thátila Ferreira Morais

O que acontece com nossos sentimentos, inocência e


imaginação quando crescemos? O que realmente tem valor para as
“pessoas grandes”? Estas e outras questões foram levantadas na
roda de conversa, em decorrência da leitura da obra “O pequeno
príncipe”. Inicialmente, porém, antes de colocarmos as
interpretações gerais dos participantes para serem compartilhadas
e discutidas, o comentário geral era de um certo descontentamento
com a obra, por ser aparentemente sem sentido. Onde já se viu uma
jiboia engolir um elefante? “Um absurdo!”, afirmou um dos
participantes. Alguns, além de insatisfeitos, consideraram que se
tratava de uma obra para crianças.
Trata-se da história de um piloto que, quando criança, tinha o
grande sonho de ser artista, porém foi desencorajado pelos adultos
de seguir com esse sonho, tornando-se assim piloto de avião. Numa
de suas viagens, seu avião sofre uma pane em pleno deserto
africano e é quando ele conhece o pequeno príncipe. Ao conversar
com esse novo amigo, percebe que a sua visão de mundo é mais
parecida com a de uma criança do que com a dos adultos. Tal
percepção adveio do fato dele ter feito vários desenhos para o
pequeno príncipe, que conseguia interpretá-los exatamente da
forma como almejava que fossem vistos pelos adultos quando ele
era ainda criança, mas que nunca conseguira.
A partir de então o pequeno príncipe passa a relatar as viagens
feitas por ele em outros seis planetas que visitou, destacando
figuras marcantes que conhecera em cada um deles. No relato,
destaca que todos levam uma vida solitária e corroída pelas
obrigações que eles próprios se atribuíram ao longo da vida.

91
A leitura dessa obra com os participantes do clube de leitura,
seguida do debate reflexivo, resultou em momentos de constante
problematizações acerca dos relatos feitos pelo pequeno príncipe
sobre os planetas visitados por ele. A cada personagem
apresentado pelo pequeno príncipe, dimensões das contradições
da vida adulta apareciam. Foi daí que fomos, coletivamente,
interpretando que a proposta principal da obra é nos mostrar o
verdadeiro valor das coisas e, sobretudo, das pessoas, o que não
pode ser mensurado com números. Porém, com o passar do tempo,
vamos nos tornando adultos e perdendo estas compreensões de
valores da vida.
Conforme fomos compreendendo a sutil crítica ao modo de
viver adulto, foi possível estabelecer relações entre as
características dos personagens dos diferentes planetas com o
sistema capitalista que move a sociedade em que vivemos. O valor
das pessoas/coisas se refletia, por exemplo, na fala do homem de
negócios do quarto planeta, que dizia: "Tenho tanto trabalho. Sou
um sujeito sério, não me preocupo com futilidades". Desta forma,
ao longo do debate sobre a leitura estabelecido pelo grupo, fomos
percebendo claramente a crítica feita ao homem e à civilização
moderna, enfatizando o valor que atribuímos às coisas materiais,
perdendo os valores mais essenciais do ser humano enquanto ser
social. Ora, por que taxamos enfaticamente de absurda a
imaginação de uma criança que vê a possibilidade de uma jiboia
engolir um elefante, enquanto consideramos normal nos matarmos
de trabalhar para ter bens materiais muitas vezes desnecessários?
A leitura após as discussões mostrou-se bastante envolvente,
apesar de ter sido relatado inicialmente pelos participantes que se
tratava de uma leitura difícil e confusa por envolver emoções e
sentimentos. Ela nos conduziu a diversas reflexões, provocando
uma revisão de nossos valores e explicações para os
acontecimentos de nossa vida. Permitiu-nos refletir sobre questões
referentes à natureza humana, bem como nossas relações
interpessoais, como a amizade e o amor.

92
Dentre as principais reflexões que surgiram, é possível
destacar a forma como vamos perdendo a sensibilidade do olhar,
deixando assim de valorizar as pequenas coisas conforme vamos
crescendo e nos tornando adultos. Outro ponto bastante reforçado
pelo grupo foi o olhar sábio, sensível e inocente das crianças, que
podem servir de guia na vida das “pessoas grandes”, que são, em
geral, muito sérias e movidas pelo desejo insaciável por números e
consumo.
Os laços de amizade estabelecidos entre o pequeno príncipe, a
raposa e a rosa também trouxeram para o debate alguns pontos
interessantes, como o fato de que somente através do coração
conseguimos perceber o que é realmente importante e essencial. A
forma como dispomos de tempo e dedicação para com alguém ou
algo nos faz compreender o quanto este é especial em nossas vidas,
reforçando assim a conclusão de que quando uma pessoa consegue
cativar outra, independente de quantas outras existam no mundo,
ela passará a ser única por tudo o que ela representa, mostrando
assim o significado do amor. O amor, segundo nossas leituras a
partir do livro, implica a responsabilidade diante do ser amado.
Após a leitura, discussão e produção das resenhas sobre o
livro, organizamos uma exibição no espaço educativo da animação
“O pequeno príncipe”, dirigida por Mark Osborne e lançada em
2015, que apresenta uma releitura do livro. Baixamos o filme da
internet e o transmitimos através de data show e caixa de som. Para
criar o clima de cinema, levamos pipoca e refrigerante. Durante a
maior parte do filme, rimos. Entretanto, teve um participante que,
emocionado, levantou-se e foi até o banheiro para lavar o rosto.
Apesar de muito participativo, ele era, costumeiramente, um dos
que mais afirmava não entender nada das leituras e, no caso dessa
obra, foi um dos que declarou não ver sentido na história. Logo que
este se levantou para ir ao banheiro e alguns dos participantes o
notaram emocionado, rapidamente começaram a provocá-lo
contagiando a sala de risos. Após sair do banheiro ele retrucou: “Eu
achei que ia sair mais duro da prisão, mas pelo visto estou ficando
mais mole” e, novamente, o riso foi geral. Curioso notar que além

93
da obra propiciar a reflexão sobre as emoções e sentimentos,
acabou também por provocá-los concretamente.
Após a exibição do filme foi possível dialogar, recapitular a
história e nossas principais reflexões, bem como compreender o
que é uma releitura. Vimos que algumas das provocações
propostas no filme coincidiam com questões que havíamos
discutido. O filme, nesse sentido, foi um instrumento interessante
para aprofundar, de maneira divertida, ainda mais as reflexões.

94
O valor cabe a nós dar

Francisco de Assis Alves


(Resenha crítica produzida no projeto)

O livro é baseado em uma recordação do seu primeiro


desenho: um elefante engolido por uma jiboia e decidiu perguntar
aos adultos o que eles viam na ilustração. As respostas foram
unanimes: um chapéu. Até mesmo o pequeno príncipe pode nos
fazer refletir sobre a facilidade de ver a vida com o mesmo olhar
puro e ingênuo de uma criança.
Esse resumo fala da história do pequeno príncipe, para que
você tenha noção do quanto vale a pena ler toda essa história.
Foi deste modo que o narrador travou conhecimentos com o
pequeno príncipe. O piloto na sua primeira vez no deserto, acorda
com uma voz pedindo para ele desenhar um carneiro, a pedido do
pequeno príncipe. Então ele contou que viera de um planeta, do
qual o narrador imaginava ser um asteroide B 612, visto pelo
telescópio uma única vez em 1909 por um astrônomo turco. O
pequeno planeta era do tamanho de uma casa. Ele contou o drama
que vivia em seu planeta com baobás, enquanto eram pequenos. O
pequeno príncipe admirava o pôr-do-sol e apreciava a beleza de
contemplar as estrelas.
O piloto acreditava que o pequeno príncipe havia viajado
segurando nas penas dos pássaros selvagens. O príncipe contou-
lhe as suas aventuras em vários outros planetas: o primeiro era
habitado por apenas um rei; o segundo, por um vaidoso; o terceiro,
um bêbado; o quarto, por um homem de negócios; o quinto, um
acendedor de lampião e o sexto um velho geógrafo que escrevia
livros enormes; e por último, ele visitou o nosso planeta Terra, onde
ao chegar encontrou uma serpente que lhe prometeu mandar de
volta ao seu planeta através de uma picada.

95
No planeta terra encontrou uma raposa, a qual o pequeno
príncipe tinha que cativar para ser sua amiga. O pequeno príncipe
procura o homem e se despede dele, pois decide voltar para seu
planeta para procurar a sua flor.
Este livro me faz entender que devemos dar valor a uma
pessoa que gostamos. Esta história não era difícil de entender,
porém tive muita dificuldade para resumi-la. Essa leitura me faz
refletir que devo me comunicar melhor com meus amigos de
trabalho.

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Julgar sem conhecer:
caminhos da incompreensão

Tácio Pereira Marques


(Resenha crítica produzida no projeto)

Esta história do pequeno príncipe fala de um menino que tinha


seis anos que desenhou uma cobra jiboia com um elefante dentro,
só que ao mostrar para as pessoas adultas elas falavam que era um
chapéu. Até que ele conheceu o pequeno príncipe, que lhe pediu
para desenhar um carneiro, mas desenhou uma caixa com um
carneiro dentro.
Todos falavam para ele que ele não era bom para desenhar, daí
ele diz que vai ser um piloto de avião, quando ele fica preso no
deserto ele encontra o Pequeno Príncipe que morava em um
planeta que tinha três vulcões. Ele sai do planeta dele depois de
brigar com a rosa, procurando outros planetas. Depois ele voltou
para a terra dele. Ele viu que a rosa era única, depois que conversou
com a raposa percebeu que tinha que voltar para a sua rosa, foi
quando ele foi picado por uma serpente. Ele voltou para o planeta
dele, se despedindo do seu amigo piloto.
Apesar de ter feito a leitura do livro, achei difícil fazer o
resumo do livro, pois não consegui compreender algumas coisas
presentes na obra difíceis de entender.
O que eu entendi do livro é que muitas pessoas não
conseguem compreender as outras, porque as pessoas fazem
julgamentos dos outros sem conhecê-las. A leitura do livro o
Pequeno Príncipe me provocou um sentimento revoltante, pois não
me agradou como eu esperava.

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O vampirismo tomou conta da política brasileira

Jhenissa Silva Sousa

Entre os dias 01 a 23 de junho de 2018, foi lido o livro O Vampiro


que descobriu o Brasil de Ivan Jaf. Relatado pelos participantes como
uma leitura densa e difícil, por misturar ficção, humor e fatos
históricos sobre a história do Brasil. Apesar da dificuldade, esta
obra criou condições concretas para que os mesmos levantassem
algumas questões relativas à corrupção, ambição, justiça,
exploração, religião, desigualdade social, visibilidade social e
humanidade.
O livro conta a história de Antônio Brás, um comerciante
português que foi transformado num vampiro imortal ao ser
mordido por um velho vampiro. Para reverter tal situação era
necessário matar o vampiro que lhe mordeu em sua taberna.
Assim, em busca de seu estado natural, embarcou na caravana de
Pedro Alves Cabral, na perseguição ao velho. Para alguns dos
participantes do Clube da Leitura a chegada de Pedro Alves Cabral
no Brasil e a exploração das riquezas da colônia para o crescimento
de Portugal deu início à desigualdade social no país, que não se
esgotou no período colonial, mas que atravessou todos os períodos
históricos do Brasil. Para a maioria dos participantes, a corrupção e
a exploração existem desde o “descobrimento” do Brasil e por se
constituírem como traços da identidade de formação de nosso país,
consideram que estas jamais deixarão de existir.
Na história, o velho vampiro gostava de participar dos
momentos importantes da história da humanidade e, por isso, se
apossava das identidades de sujeitos que representavam figuras de
destaque na sociedade, nos diferentes tempos históricos do Brasil.
Para os participantes, o vampiro representa, na verdade, os donos
do poder que sugavam (e ainda sugam) a população marginalizada
(índios, pobres, negros, imigrantes e etc.) para permanecerem no

99
poder, pois esses grupos configuram a parcela da população sem
visibilidade social. E, justamente por se tratar de uma população
marginalizada, a justiça não poderia ser alcançada por esta
população, podendo o vampiro (donos do poder) fazer o que bem
entender, sem sofrer punição alguma. No livro, tal situação se
evidencia quando, num determinado momento da história, o
vampiro acaba mordendo o pescoço de uma prostituta num beco
de um bairro periférico. Por pertencer a um grupo social marginal,
ninguém sentiria a falta dela ou buscaria compreender e investigar
a razão de sua morte, estando assim o vampiro livre de qualquer
suspeita. Sobre esse trecho, alguns participantes manifestaram o
sentimento de injustiça, já que a justiça não alcançaria aquela
prostituta.
A religião é problematizada no livro como instrumento de
doutrinação e alienação dos indígenas e dos negros. E sobre isso
alguns participantes expressavam estranheza, talvez porque a
religião sempre apareceu em suas vidas como algo positivo, que
lhes ajudaria a se preservar diante das adversidades no decorrer de
suas trajetórias de vida.
A preservação da humanidade e a imortalidade do homem
que havia se transformado num vampiro atravessou a maioria dos
assuntos discutidos. Antônio Brás buscava preservar a sua
humanidade enquanto era vampiro, não consumindo o sangue de
humanos. Talvez estes dois temas foram os que menos apareceram
de maneira clara, mas que, no entanto, vários momentos os
participantes sinalizavam para eles. Ao meu ver, os participantes
enxergavam em Antônio Brás uma humanidade superior em
relação aos demais personagens da história, talvez pelo seu esforço
constante para não sugar o sangue de um humano, não porque não
desejasse, mas sobretudo porque isso lhe tiraria a humanidade. De
alguma forma, Antônio Brás representa aquele que não quer se
corromper, inclusive na política.
Ao percorrerem brevemente toda a história do Brasil após a
invasão/descoberta, por meio da leitura do livro, o elemento de
discussão mais forte que circulou na roda de conversa foi o aspecto

100
corrompido da política brasileira. Quanto a isso, há que se registrar
que 2018 foi um ano em que notícias sobre corrupções envolvendo
políticos povoaram os noticiários, o que pode ter influenciado a
significação do livro. Fato é que para eles, a história se repete
atualmente, a exploração do Brasil continua até os dias de hoje, os
vampiros continuam sugando a população brasileira: “Os
vampiros são os políticos!”, disseram alguns participantes. Para
alguns deles, a ambição e a corrupção dos políticos brasileiros,
aliado ao eleitor sem acesso a informação, é que fazem com que
essa história permaneça como um ciclo vicioso, sem perspectiva de
ruptura. A partir dessas discussões coletivas, entendendo o
vampirismo como esse processo de exploração que suga a vida de
uns (pobres, marginais) para alimentar a vida de outros (elites,
donos do poder), caberia a seguinte reflexão: será possível
concretizar a busca de Antônio Brás e matar o velho vampiro ou
ficaremos repetindo eternamente a mesma história, apenas com
personagens diferentes?

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Uma viagem descontraída pela história do Brasil

Antônio Pereira da Silva


(Resenha crítica produzida no projeto)

Foi em 02 de fevereiro de 1500 que Antônio Brás se


transformou em um vampiro. Três dias depois ele não conseguiu
mais comer bacalhau, nem tomar vinho. Alguns dias depois
Domingos encontra Antônio e lhe diz que ele era realmente um
vampiro. É aí que Antônio decide ir atrás do vampiro que o
mordeu. Então ele embarcou junto com a tripulação de Pedro
Alvares Cabral. Na viagem, doenças e maus tratos acabaram
matando muitos marinheiros. Um certo dia, encontraram um
homem morto sem sangue algum. Antônio teve certeza que o
Velho vampiro estava ali. Mas então a esquadria tomou outro rumo
e, no dia 21 de abril, gritou: “terra à vista!”. Quando os portugueses
desembarcaram foi aí que Antônio teve o primeiro encontro com o
Velho.
Então Antônio, em sua procura pelo Velho, acompanhou o
ataque dos holandeses em Salvador. Com a ocupação de Salvador
os portugueses vão para o Rio de Janeiro. Em suas viagens, Antônio
presenciou outros fatos. Um deles foi o enforcamento de Calabar.
Antônio teve uma grande alegria: poder ver outra vez as
nuvens, pois acostumou-se com luz.
Estando cansado de procurar o Velho, acabou ficando em
Pentangue, Ribeirão do Carmo, Rio dos Velhos. Foi ali que ele ficou
sabendo do terremoto que arrasou Lisboa. Então foi ali que
Antônio teve seu terceiro encontro com o Velho, mas sua procura
continuou. Alguns dias depois ele ficou sabendo da prisão de
Tiradentes. Depois de perder o Velho outra vez, Antônio Brás
começou sua procura rumo ao Rio de Janeiro. Em sua busca
incessante viu ser cruzado por seu caminho uma das nossas mais
belas lendas brasileiras: a mula sem cabeça. Foi aí que Antônio viu,

103
no dia 08 de março de 1808, a enorme esquadria que trazia toda a
família real de Portugal.
Alguns séculos depois, em sua procura, Antônio quase mata
seu amigo Domingos. Só quando ele falou foi que Antônio pode
reconhecê-lo. Domingos ensina que o Velho mordia, mas não
matava, para que a alma voltasse quando ele saísse do corpo de sua
vítima. Sua obsessão por matar o Velho era tão grande que ele se
precipitou. Quando ele viu José Bonifácio de Andrade e Silva
tropeçando em algumas coisas, ele logo pensou que era o velho e o
espetou com a agulha de prata, mas não era ele. Porém, por ter
atentado contra a vida do ministro, foi levado para uma mata e lhe
deram três tiros. Domingos salvou a vida de Antônio e lhe disse
que o Velho não era o ministro.
Em sua procura, Antônio presencia um outro fato importante
de nossa história, quando, no dia 07 de setembro, o príncipe Dom
Pedro I proclama a independência do Brasil. Contudo, o país que
vivia uma crise quase sem fim, consegue recuperar a economia.
Iniciou-se uma fase com grandes riquezas, com cafezais, que eram
a maior riqueza daquela época.
Como Antônio não desistia de sua procura, acabou vendo
outro grande acontecimento: o fim da escravidão no Brasil, em
1888. Foi numa dessas procuras que Antônio viu bem de perto o
fim da Monarquia e a proclamação da República.
Com tantas investidas sem sucesso, Antônio decidiu mudar de
estratégia. E assim ele vive as constantes mudanças de governo, ora
eram os paulistas, ora os mineiros. Antônio viu a revolução que
levou Getúlio Vargas à presidência do Brasil. Junto com o novo
governo Antônio viu chegar a tecnologia e com ela o telefone,
gramofones, aviões e o cinema. Mais à frente Antônio viu chegarem
os liquidificadores, batedeiras, vitrolas, gravadores e a imagem na
televisão. Antônio também viu o governo de João Goulart, que não
durou muito porque no dia 31 de março de 1964 os militares deram
um golpe. Começava o período de maior truculência que o nosso
país já viveu: a ditadura militar.

104
Foi na década de 70 que Antônio mordeu uma mulher,
bebendo pela primeira vez sangue humano. Mas se arrependeu, foi
a primeira e única vez. Antônio viu o Tancredo Neves morrer antes
de assumir a presidência do Brasil. Mais uma vez Antônio esteve
na frente do Velho e não teve sorte em sua tentativa de matá-lo.
Finalmente, após cinco séculos, pôde ter sua vingança contra
o Velho. Mas descobriu que seu amigo Domingos é que era o
vampiro que mudou a sua vida por 500 anos. Mas agora com a
morte dele Antônio pôde voltar a tomar seu vinho e comer
bacalhau junto no azeite.
Para mim, que foi a primeira vez que li este livro, gostei muito
dessa obra. Me fez viajar pela história do meu país de uma maneira
descontraída. Eu acredito que a corrupção começou lá atrás e está
impregnada até os dias de hoje. Nossa sociedade ainda pode ter
jeito, se homens honestos assumirem o nosso maravilhoso país. Eu
aconselho todos a lerem este livro.

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O Brasil e eu: histórias sempre podem mudar

Gilson Luiz de Souza


(Resenha crítica produzida no projeto)

Antônio era um português que gostava de comer bacalhau e


beber vinho. Ele estava trabalhando quando foi mordido por um
vampiro. Com isso, ele se tornou um vampiro, o que lhe desagradou,
pois não podia mais degustar das coisas que mais gostava.
Antônio conheceu Domingos, um vampiro que lhe contou
como fazer para voltar a ser mortal. Antônio precisava matar
aquele que havia lhe mordido. Então, ele decidiu embarcar em um
navio que ia para as índias em busca do vampiro.
Nessa viagem Antônio acabou por chegar no Brasil. Na busca
pelo vampiro Antônio presenciou os principais marcos históricos
do Brasil. Viu os índios sendo explorados, viu os holandeses
disputarem o Brasil com os portugueses e Calabar ser morto por
traição. Depois mordeu uma jumenta que o acompanhou em suas
viagens, dando origem ao mito da mula sem cabeça.
Com o passar do tempo viu a busca pelo ouro em Minas Gerais,
a família real vindo para o Brasil, Dom Pedro I proclamar a
independência do Brasil, viu também a morte de Tiradentes, a
abolição da escravatura, a proclamação da república, a plantação de
café em São Paulo, ditadura militar e todos os governos do Brasil.
Ao acompanhar os quinhentos anos do Brasil Antônio concluiu
que apesar de mudarem os Governos a exploração continuava a
mesma. No fim da história Antônio finalmente consegue matar o
vampiro que lhe mordeu, porém, descobre que ele era seu amigo,
Domingos. Com a morte de Domingos Antônio volta a ser mortal e
pode degustar dos melhores vinhos e petiscos de bacalhau.
Essa história me fez lembrar de minha infância na escola e ao
perceber tantas mudanças de lá para cá, me leva a crer que ainda
podemos mudar muito o nosso país politicamente.

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Leituras dramáticas em roda

Aline Campos

Optamos por desenvolver o projeto em módulos semestrais


devido às experiências anteriores com atividades educativas em
espaços prisionais. Aprendemos que na prisão as pessoas são
passageiras: umas ficam mais, outras menos, mas todas vão embora
em maior ou menor tempo. Por mais que alguns tenham penas
longas, nada garante que irão cumpri-las por completo numa
mesma unidade prisional, pois há diversas razões que podem
ocasionar em transferência para outra unidade. As transferências,
os alvarás de soltura ou progressões de regime mudam a
composição da população carcerária constantemente. Por isso, nem
sempre é fácil concluir algo dentro da prisão. Além disso, a maior
parte das pessoas presas tem a marca da interrupção em suas
trajetórias de vida: o “fracasso escolar”, o abandono familiar, a
perda de um emprego. Começar, desenvolver e concluir algo
assume, assim, uma dimensão significativa. Esta é a primeira razão
pela qual optamos pelo formato semestral, pois assim
aumentaríamos a probabilidade de que os participantes, se
desejassem, pudessem completar todo o processo formativo
proposto, o que culminaria, além das remições por leitura mensais,
na entrega do certificado de participação.
A segunda razão pelo formato semestral foi a possibilidade de
maior flexibilidade no formato da proposta. Também de
experiências anteriores, vínhamos adotando a prática de diálogo
direto e escuta atenta dos participantes no processo de avaliação
das ações educativas na prisão, a fim de que tais vozes pudessem
ser incorporadas no aperfeiçoamento das ações. Ainda que um
projeto mais duradouro não inviabilize o desenvolvimento de uma
avaliação contínua, nos moldes que acreditamos, a conclusão do
projeto é sempre um momento especialmente fértil para avaliá-lo

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e, por isso, nos pareceu mais interessante trabalhar com espaços de
tempo mais curtos.
Da avaliação coletiva da primeira versão do Clube de Leitura,
tivemos ponderações muito significativas. Temos buscado, dentro
dos inevitáveis limites, desenvolver uma relação de confiança e
cumplicidade com os participantes, de modo que as falas sejam as
mais sinceras possíveis. Em nenhum contexto educativo o
estabelecimento desse tipo de relação é fácil, na prisão o desafio é
maior ainda. A situação de controle e disciplina a que estão
submetidos faz com que a maior parte deles não se sinta em posição
de quem pode fazer críticas, já que o lugar que ocupam nesse
contexto é o da aceitação e obediência. Além disso, como o bom
comportamento e o envolvimento em ações formativas pesam a
favor deles no cumprimento da pena (e eles sabem disso), é comum
que falem o que a sociedade, os professores, os gestores das
unidades e, sobretudo, os juízes querem ouvir. Somado a isso, o
sentimento de abandono social que experimentam ao se tornarem
pessoas presas, contribui para que recebam os promotores das
ações educativas com muito respeito e gratidão. Esses fatores todos
podem dificultar, por exemplo, que eles expressem suas
insatisfações com as propostas ofertadas. Daí a importância do
estabelecimento de vínculos de confiança e cumplicidade.
O desenvolvimento da habilidade de leitura e escrita não é
algo que evolui num curto período e, no limite, podemos dizer que
consiste num processo permanente, no qual vamos cada vez mais
nos aperfeiçoando. Não esperávamos, nesse sentido, que com a
conclusão da primeira versão do projeto os participantes
apresentassem um grande avanço nessas habilidades, porém
progressos foram notados e os próprios participantes trouxeram
exemplos práticos disso na roda de conversa avaliativa. A
interpretação de texto foi um dos pontos mais destacados por eles,
que afirmaram serem capazes de ler, porém, enfrentaram muita
dificuldade para compreender sozinhos as obras lidas. Segundo
eles, algumas coisas eles discutiam na cela, mas era no encontro
presencial para discussão da obra que o texto ganhava forma e

110
então eles começavam a entender melhor a história. Foram diversos
os encontros que alguns deles (em especial um) chegaram
afirmando não terem entendido nada do trecho previamente
selecionado para leitura. Porém, ao iniciarmos o diálogo, íamos
instigando-os a falar sobre as passagens que lembravam,
conectando um momento ao outro, suscitando reflexões e a partir
daí eles reconstruíam a história toda, polemizavam as mais
diversas questões, divagavam e assumiam completamente o
espaço. Vez ou outra precisávamos retomar o fio condutor, dado os
caminhos longínquos que seguíamos a partir de um trecho do livro.
Consideramos importante destacar essa potência do
compartilhar a experiência sobre uma mesma leitura em grupo.
Definitivamente não acreditamos que existam fórmulas para a
implementação de projetos de remição de pena por leitura. Temos
clareza que, apesar de elementos comuns, as diferentes unidades
prisionais do país possuem especificidades que precisam ser
consideradas no processo de proposição de projetos de leitura e
apenas aqueles que estão diretamente envolvidos com a unidade é
que são capazes de identificar os melhores contornos. Entretanto,
enfatizamos que em nossa experiência esse foi um dos pontos fortes
(se não o mais).
Apesar do projeto ter sido considerado, de modo geral,
satisfatório pelos participantes, eles nos apresentaram dois
problemas. O primeiro era a dificuldade de execução da leitura no
interior das celas, já que a concentração na leitura em um espaço
reduzido, com baixa luminosidade e cheio de gente era
praticamente impossível. Tínhamos, assim, um problema a ser
superado. Não havia a menor possibilidade de alterarmos a curto
prazo a estrutura da unidade, a fim de reduzir a superlotação ou
propiciar espaços adequados para a leitura licenciosa. O segundo
problema, segundo eles, era que sozinhos não conseguiam
interpretar o texto. Diante dessa problemática, a única solução que
nos parecia possível era tirar o momento de leitura da cela e trazê-
lo para o encontro semanal presencial no espaço educativo, o que

111
entendíamos que talvez pudesse ajudar a resolver,
simultaneamente, os dois problemas por eles identificados.
A solução pensada evidenciou estruturas que precisavam ser
reformuladas para a segunda versão do projeto, porém, ainda
restavam dúvidas. Seguiríamos lendo os livros do acervo da
biblioteca com títulos repetidos? Será que algum tipo de livro
poderia ser mais adequado para as leituras coletivas? Como
coordenaríamos a leitura no encontro presencial? Leria quem
quisesse ou cada participante um parágrafo?
Mais uma vez em decorrência de experiência anteriores, mas
também em diálogo com outros professores da UFT com formação
em artes, optamos pelas peças teatrais. A estrutura do texto teatral,
com falas definidas entre os personagens, pareceu-nos uma forma
que facilitaria a organização da leitura compartilhada. Havia ainda
a possibilidade de conferir ao texto o tom de leitura dramática,
enfatizando assim as entonações a partir da busca pela
compreensão da pontuação.
Não havia, todavia, títulos repetidos de obras teatrais no
acervo da biblioteca. Decidimos então por não usar
necessariamente os livros do acervo, mas buscar obras que
pudessem servir como disparadoras de assuntos que dialogasse, de
alguma forma, com a infração das regras e o crime ou com temas
que se relacionassem com essas problemáticas. Escolhemos, assim,
cinco peças teatrais, as quais traziam elementos para pensar a
justiça/injustiça; julgamento; estupro; violência; intolerância;
machismo; racismo; sexo; autoafirmação/aparências. Foram elas:
“O santo inquérito” (Dias Gomes); “Barrela” (Plínio Marcos); “A
prostituta respeitosa” (Paul Sartre); “Lisístrata – a greve do sexo”
(Aristófanes); e “O casamento do pequeno burguês” (Bertolt
Brecht).
A seguir são apresentados os textos das graduandas
extensionista que trazem as principais reflexões feitas a partir das
leituras coletivas das referidas obras e algumas das resenhas
elaboradas pelos participantes.

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Sentença: culpada por ser inocente!

Elizete Pereira dos Santos

A primeira peça teatral lida em grupo na segunda versão do


Clube de Leitura foi “O Santo Inquérito”, de Dias Gomes. A obra
conta a história de Branca, que é presa e acusada de heresia. O
primeiro ponto a se destacar sobre a leitura dessa obra, não se refere
às reflexões. Como era a primeira obra teatral a ser lida,
propusemos a dinâmica de distribuir aleatoriamente os
personagens, o que foi aceito sem objeções por todos os
participantes, apesar de ninguém querer ter de ler as falas de uma
personagem feminina. O princípio da aleatoriedade fez com que o
papel da protagonista Branca ficasse em incumbência do
participante com a cor de pele negra mais retinta do grupo. Foi
impossível controlar as brincadeiras, tanto pela oposição entre o
nome da personagem e a cor da pele do leitor sorteado, quanto por
ser o papel de uma mulher. Todavia, as brincadeiras tinham tom
de provocação divertida, sendo bem recebida por ele. E, em
diversas passagens da história, essas duas provocações vinham à
tona, interrompendo a leitura com risos generalizados que traziam
uma certa leveza e descontração ao espaço educativo.
Branca, além de muito inocente, tinha um bom coração e por
isso acabou salvando um padre de um afogamento. Para impedir
que ele se afogasse ela fez uma respiração boca a boca nele e, a
partir de então, o padre passou a ter certa obsessão pela vida dela,
o que acabou não sendo tão bom para ela.
Tendo seu noivo e o próprio pai presos para que confessem
que ela cometeu os crimes de heresia que fora acusada, Branca se
vê em uma situação que não consegue identificar qual teria sido
seu erro. Para os participantes do projeto, Branca é injustiçada e isso
despertou neles sentimento de indignação. O pai de Branca diz o
que os acusadores querem ouvir, confessando assim um crime que

113
não existiu, e é liberto, para insatisfação geral dos participantes.
Segundo eles, o pai de Branca foi covarde ao abandonar o noivo
dela para ser torturado e por ceder às pressões de seus acusadores.
De certa forma, nas discussões na roda de conversa, alguns
participantes deram a entender que a liberdade à custa da perda do
caráter perde seu valor. O noivo de Branca, que se manteve fiel a
verdade, mesmo após sucessivas torturas, é executado como
punição por permanecer negando até o fim, o que foi defendido na
discussão como a postura mais honrada a ser assumida.
Branca, ao final das contas, é condenada à morte na fogueira,
fazendo com que o sentimento de insatisfação tomasse conta do
clima de encerramento da leitura. Muitos afirmaram não terem
gostado da história, pois acharam injusto o desfecho. Interessante
aqui destacar como o gostar ou não de uma história enquanto obra
literária, nesse momento, ainda se misturava com o aprovar ao não
seus desdobramentos. Nesse sentido, a pergunta “você gostou do
livro?” era respondida como equivalente à “você gostou do que
acontece na história contada no livro?”. Ou seja, nessa
interpretação, apenas histórias com finais felizes é que poderiam se
constituir em um bom livro. A compressão de que uma história
trágica, ou injusta, como essa peça teatral lida, poderia ser
considerada boa, independentemente de seu desfecho, parecia
ainda não estar clara.
A explicação para a condenação injusta de Branca, que foi
destacada nas discussões como sendo a mais lógica, é que o padre
foi quem fez e seguiu com a acusação de heresia pelo fato dela ter
despertado nele o pecado da cobiça. Sendo ele casto, não poderia
consumar seu desejo e ter a companhia de Branca, preferindo vê-la
morta a não poder tê-la para si. Dessa nossa conclusão, foi possível
refletir o quanto que essa história se reproduz, em outros formatos,
quando mulheres se tornam vítimas de violência cometidas por
homens ciumentos, possessivos ou que não aceitam o término de
uma relação.
Nas resenhas, a ingenuidade de Branca foi apontada como
principal motivo dela ter sido condenada. Ela foi inocente ao

114
revelar ao padre, sem pudor, que tomava banho no rio nua, ao
salvá-lo do afogamento, ao se tornar sua amiga, ao lhe confidenciar
sua forma de viver e compreender o mundo. Por isso, sua
condenação foi injusta, o que fez com que as falas dos participantes
evidenciassem a solidariedade deles para com a protagonista do
livro.
O poder da igreja retratado na época em que se situa a história
do livro, que permitia a execução da pena de morte pela Inquisição,
é problematizado e colocado em xeque nas discussões durante a
roda de conversa e nas análises na produção das resenhas.
Uma questão que também levantada por alguns participantes,
foi a similaridade do processo de construção da acusação na
história do livro com os tempos atuais. Eles criticaram o sistema de
justiça, que ainda hoje tende a privilegiar os mais fortes e condenar,
não necessariamente os verdadeiros culpados, mas sim os mais
fracos. Porém, ao estimularmos um dos que fez tal reflexão a
escrever sobre isso na resenha ele, rapidamente, respondeu: “não
sou doido, e se o juiz ler isso? ”. Essa reação particular evidencia o
peso que o controle exerce sobre as pessoas presas já que, se
quiserem sair o quanto antes pela porta da frente da prisão, devem
andar na linha da obediência. Entretanto, essa relação que
estabelecem com o sistema de justiça e com o sistema penal-
penitenciário dificulta a manifestação espontânea da criticidade,
sobretudo quando a discussão resvala nas temáticas associadas a
esses sistemas.

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Finais injustos desconhecem a história

Marcos Vinícius Pereira Soares


(Resenha crítica produzida no projeto)

Branca era uma moça que estava tomando banho no riacho,


quando a mesma viu uma pessoa se afogando e foi ajudá-la.
Quando tirou a pessoa da água viu que não estava respirando e
começou a prestar os socorros ali mesmo. Depois que o mesmo
acordou falou que era um padre.
A partir daí o Padre começou a dizer que a mulher não podia
ter feito isso, devido a mesma ser uma mulher e por ser noiva de
Augusto, e que tomava banho pelada e que tinha o demônio no
corpo. Dizia ainda que o noivo estava a levando para um mau
caminho.
Depois de alguns dias o Santo Ofício recebeu uma denúncia
contra Branca e encontrou na casa dela uma bíblia em português, o
que era reprovado pela igreja, achando ainda uma bacia de água.
Branca, Simão e Augusto são presos. Augusto é torturado para
confessar que Branca praticava heresia, mas ele não confessou nada
e morreu. Simão, por sua vez, confessou e foi solto. Branca não
confessou nada também e foi queimada em uma fogueira. E o padre
ficou livre do sentimento que sentia por Branca.
Na minha opinião Branca e Augusto foram acusados
injustamente e não poderiam ter o fim que eles tiveram. Eu acho
que não podemos julgar as pessoas sem antes conhecer sua história.

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Amor, heresia e injustiça

Ricardo da Silva Soares


(Resenha crítica produzida no projeto)

O Santo Inquérito, de Dias Gomes, conta a história de uma


moça com o nome de Branca, que é acusada por te cometido
heresia. Narra que no começo ela salva um Padre chamado
Bernardo, ela o salva com um “beijo” e a partir daí ela fala de sua
vida para o padre. Ele acha também que o noivo dela, chamado
Augusto, é uma tentação para ela, sendo assim o padre Bernardo
quer lhe retribuir ajudando-a para que ela se arrependa dos seus
pecados. O pai dela, chamado de Simão, surge e pergunta para ela
o que o Padre quer com ela, e Branca fala que ele quer ajudá-la. Mas
o padre sente algo por ela, porém não demonstra seus sentimentos.
Sendo assim, Padre Bernardo faz uma denúncia para o Santo
Oficio, e então o visitador vai na casa de Branca e acha uma bíblia
em português. Branca e sua família são presas por heresia. Seu
noivo morre de tantas torturas, seu pai se salva por ter se
arrependido de tudo e Branca morre por ter cometido heresia e não
se arrepender.
O que achei da obra foi que a história é muito interessante, fala
de uma moça que vai ser julgada por heresia, seu pai também vai
preso junto com seu noivo Augusto, pois um Padre chamado
Bernardo acusa ela para o Santo Oficio. É uma história boa, até
porque ela salva o padre. Mas o padre faz covardia com ela e com
seu noivo, porque ele morre de torturas. Seu pai, Simão, se
arrepende e se salva, mas Branca morre no final. Isso foi injustiça.
Gostei muito da história, porque achei muitos conhecimentos
que não tinha. Nunca imaginei que pessoas podiam morrer porque
tinham bíblia em português e que uma moça não podia tomar
banho no rio pelada, porque todos têm sua opinião própria. Então,
gostei do livro.

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Chora não menino, aqui a violência
está naturalizada

Millena Silva Ramos

Barrela foi a obra lida no mês de outubro no Clube da Leitura.


Trata-se de uma peça composta por nove personagens, cujo cenário
é uma cela de prisão em que os presos estão amontoados
aguardando julgamento. Por se tratar de uma história que se passa
em um cenário que os participantes do projeto conhecem bem, a
princípio eles acharam que poderiam se familiarizar com a história
ou ao menos com o cenário. Porém, com o desenrolar da história,
viram que ela era mais forte do que eles estavam imaginando, pois,
assim como a maioria afirmou, retrata um contexto passado das
prisões, em que estas eram ainda mais violentas.
A peça inicia com o pesadelo de um dos personagens, o
Portuga, que incomoda os outros detentos no meio da noite
acordando assustado. Tirica, acorda nervoso e já afrontando
Portuga, dizendo que este foi traído e pondo em dúvida a sua
masculinidade por afirmar que ele não era homem suficiente para
dar conta de sua mulher, o que justificava a traição. Então Portuga,
para revidar, revela um segredo do passado de Tirica. Afirma que
o mesmo havia “servido de mulher” para outros homens por muito
tempo durante o período em que ficara no reformatório, devendo,
portanto, ser homossexual. Os outros presos da cela queriam punir
Portuga por tê-los acordado, assim, o Louco dando a ideia diz para
“enrabar” ele. Com a revelação do segredo de Tirica todos falam
que a “mulherzinha” da cela deveria ser ele, por já ter tido relações
homossexuais antes. Ele fica mais enfurecido, jurando então
Portuga de morte. Bereco, que era a autoridade da cela, mandou
que todos parassem com a baderna. Fumaça pede um fumo para
Bereco, mas o mesmo não o dá, pois só tinha dois, o de amanhã e o
de depois. Até este momento da história os participantes

121
manifestavam familiaridade com o contexto, já que acontecesse o
mesmo em suas celas em relação aos conflitos, que segundo eles
são constantes e diários. Enfatizavam, entretanto, que a dimensão
sexual evidenciada na peça não se reproduzia mais nas prisões.
Alguns participantes sentiram-se, inicialmente, um pouco
desconfortáveis em fazer a leitura da peça, dado o linguajar
assumido pelos personagens, repleto de expressões chulas.
Entretanto, percebíamos que a leitura se desenvolvia de maneira
muito mais fluida e sem tantos “gaguejos”, quando comparada às
obras anteriores.
Em meio a toda confusão, os personagens ouvem um barulho
de cela se abrindo, o que lhes chama a atenção. O Carcereiro entra
em cena e coloca um jovem dentro da cela: o Garoto. Por ser bem
cuidado, jovem e bonito, Garoto vira o alvo dos outros detentos, que
antes queriam violentar Tirica, mas Bereco não deixou. Bereco
prometeu proteção ao Garoto em troca de dinheiro, pois logo viu que
ele era de uma classe social mais elevada. Porém, a autoridade de
Bereco acaba sendo questionada e os detentos violentam
sexualmente, em coletivo, o Garoto. Ao terminarem, o Garoto se
retrai chorando, ao que os demais tentam tranquilizá-lo, afirmando
não terem feito nada demais. Nesse trecho do livro foi interessante
observar o quanto a violência cometida contra o garoto de classe
social mais elevada é sentida na leitura como mais atroz. Apenas na
discussão que nos demos conta que Tirica, por exemplo, também foi
vítima de violência sexual quando era adolescente no reformatório.
A violência sofrida por Tirica, contudo, já estava naturalizada, assim
como toda a violência que os demais detentos vivenciaram em suas
trajetórias de vida ou experimentavam na prisão.
Como na vez em que Tirica tenta abusar sexualmente do
Garoto, ele não consegue, os outros começam a “tirar onda” com
ele, chamando-o de “brocha” e “veadinho”, provocando ainda
mais a sua ira. Tirica pega uma colher e amola para usar como faca,
para assim poder matar Portuga na primeira oportunidade que
tivesse. Portuga se distrai e Tirica lhe dá o primeiro golpe nas
costas, fazendo-o cair no chão e permanece golpeando enfurecido.

122
O dia amanhece e o Garoto é liberado, saindo da cela chamado pelo
nome e sobrenome.
Para eles esta história é pesada e, apesar de realista, muitos
deles alegaram que atualmente o sistema prisional mudou e por
isso não é comum ocorrer este tipo de violência nas cadeias, o que
não significa que não haja nenhum tipo violência dentro das
prisões, muito pelo contrário. Ainda sobre o aspecto da violência
sexual, explicaram sobre a divisão dos presos por determinados
tipos de crime ou por facções no interior das unidades prisionais.
Na opinião deles, tal medida contribui para uma maior segurança
de todas as pessoas presas, já que dentro da cadeia a violência é
uma realidade constante, havendo entre os presos suas próprias
leis e punições.
Uma outra questão levantada foi a da hierarquização dentro da
cela, onde um preso detém a autoridade sobre os outros. Afirmaram
que é necessário ter humildade e compaixão com o próximo em
todas as ocasiões, principalmente na condição de preso.
De forma geral, essa leitura possibilitou a reflexão sobre
diversos aspectos relacionados à convivência na prisão. Situação
interessante de ser destacada foi que logo após concluir a leitura
perguntamos o que tinham achado da obra e a primeira frase obtida
como resposta foi: “eu não imaginava que vocês trariam um livro
assim para a gente ler”. Pareceu-lhes estranho que o cotidiano de
uma cela pudesse ser transformado numa obra literária, assim
como o uso de palavras de baixo calão pudesse estar presente num
livro. Ao mesmo tempo, um dos participantes afirmou que essa
obra foi a de mais fácil compreensão entre todas as lidas até então.
Inicialmente alguns manifestaram certo constrangimento em ler
em voz alta determinadas palavras, riam envergonhados. No
transcorrer da leitura isso foi sendo minimizado conforme a leitura
ia ganhando dinamicidade, porém, vez ou outra o espaço era
contagiado pelos risos. Foi curioso perceber que, apesar de ser uma
história repleta de violência, riu-se muito, indagando-nos se assim
como entre os personagens do livro, também entre os participantes
a violência não estaria de certo modo naturalizada.

123
Na fase de elaboração da escrita notamos a apreensão de
alguns participantes. Viemos a entender que a preocupação se
referia ao fato de que a história envolvia um assunto desconfortável
de expor. Preocupava-os o que o juiz poderia achar de uma resenha
sobre uma história como essa, temiam que isso pudesse prejudicar
suas remições. Foi necessário tranquilizá-los e esclarecer que eles
poderiam resumir a história se valendo de sinônimos menos chulos
para algumas palavras e expressões.

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A violência naturalizada das prisões

Denisvan Souza dos Santos


(Resenha crítica produzida no projeto)

O escrito Plínio Marcos é conhecido por suas obras


naturalistas, nas quais ele busca mostrar através da arte do teatro
questões polemicas relacionadas ao submundo. Suas obras são
marcadas por uma linguagem coloquial extremamente vulgar e
recheado de termos chulos.
No texto teatral “Barrela” não é diferente, o autor apresenta
uma situação dentro de uma cela de prisão, onde a violência é
assustadoramente naturalizada. Apesar de não haver
personagens femininos os aspectos dos personagens que os
aproxima da imagem feminina servem para justificar as
violências sofridas no contexto.
A peça inicia dentro da cela durante a noite, um detento
Portuga é desperto subitamente de seu sono por conta de um
pesadelo, fazendo com que seus companheiros também
despertem causando uma irritação geral. Portuga tenta acalmar
a todos explicando a situação, outro detento chamado Tirica
sugere que Portuga, por ter sido traído por sua falecida esposa,
teria se tornado menos homem e, portanto, deveria ser colocado
no papel de mulher (passivo) para satisfazer sexualmente seus
companheiros de cela como punição da sua infração. Para sair
dessa situação desconfortante Portuga expõe uma conversa que
teve durante o banho de sol com Morcego que afirma ter tido
relações sexuais com Tirica e que ele teria sido mulher
(assumindo a posição de passivo). Tirica agora teme quanto aos
olhares desejosos por satisfação sexual, jura não ser mulherzinha
(homossexual) e que teria realmente ocorrido uma relação,
porém foi um evento insólito, sem seu consentimento e

125
aprovação, não havia gostado, em outras palavras, o mesmo foi
vítima de violência sexual.
Por conta da exposição feita por Portuga, Tirica exaspera-se ao
ponto de o jurar de morte e cria uma tensão na cela que é controlada
por Bereco (Xerife da cela). Nesse ponto da história chega um novo
detento que logo é identificado pelos veteranos como garoto, um
rapaz de classe mais elevada e que claramente não faz parte
daquele universo. Tirica logo reverte a situação sugerindo que o
garoto, por ter pele bem cuidada, delicada e um rostinho bonitinho,
características análogas de uma mulher, deveria satisfazer as
necessidades sexuais dos demais.
Bereco tenta proteger o garoto, utilizando de sua autoridade
sobre os demais e gera uma onda de descontentamento sendo sua
autoridade questionada. Como forma da manutenção do poder,
Bereco resigna-se da tarefa de proteger Garoto e o deixa nas mãos
de seus companheiros de cela cheios de ideias lascivas, que o
estupram coletivamente.
A obra é cheia de questões inauditas, tem função de chocar e
trazer ao leitor reflexões inéditas sobre assuntos que nos circundam
diariamente, mas quase nunca notadas. Barrela de Plínio Marcos
que durante 21 anos esteve censurado por causa da sua abordagem
grotesca da violência praticadas em contexto prisionais, também
mostra como o feminino naturalmente é ligado a passividade para
justificar as agressões tão comuns neste universo onde a
demonstração de masculinidade é uma capa que os tornam imunes
a violências direcionadas ao feminino. O texto demonstra também
como ocorre o desmonte da identidade dos detentos, que ao
adentrarem nestes espaços passam a ser identificados, não por seus
nomes, mas por números e vulgos.
Concluo que cumprindo seu papel de chocar e trazer
incômodo a obra Barrela do escritor maldito, como ficou conhecido
Plínio Marcos, é uma importante obra influenciadora no
questionamento sobre a violência contida dentro dos muros das
prisões, tanto quanto na violência praticada socialmente do lado de
fora destes que conduzem grande parte da sociedade em maioria

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de classes socioeconomicamente vulneráveis para o lado escuro e
violento dos muros, forçando-os assim a sair destes labirintos
sozinhos sob constantes ataques preconceituosos vindos do lado de
fora, ou simplesmente deixados para sucumbirem no submundo
do crime e das prisões, onde a violência naturalizada reina sem
qualquer tipo de censura.

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Uma verdade nua e crua

Dourivan Alves de Morais


(Resenha crítica produzida no projeto)

Os presos estavam todos em uma cela, quando acordam


sobressaltados, pulam da cama no meio da cela. Portuga acorda de
um pesadelo no meio da cela, começa uma discussão de punição.
Tirica perturba Portuga por ter sido traído pela mulher, que acabou
por matar. Afirmam que a mulher o traiu pelo fato de ele não ser
um homem suficiente para a mulher. Por isso, Tirica “tirava onda”
com o Portuga pelo fato dele ser corno. Portuga, por sua vez,
acusava Tirica de no passado ter gostado de homens, e por isso
todos os colegas dele de cela queriam ficar com ele.
Tirica jurou de morte o Portuga e passou a amolar uma colher
para fazer uma faca para matar Portuga. Bereco, que era chefe da
cela tenta conter, mas começa uma confusão na qual havia uma
tensão de violência sexual. Quem vai ser a “mulher” do grupo para
saciar o desejo de todos? O Louco pedia o tempo todo para que
alguém fosse violentado sexualmente. Em meio a discussão chega
um novo preso: o Garoto. O garoto se torna alvo do desejo de todos,
Tirica foi ficar com o garoto e broxou, pois, no passado foi
violentado. Bahia falava: “sem vaselina”. Tirica vivia passando
Portuga para trás, pois sua mulher colocava chifre nele.
No fim, o Garoto foi estuprado coletivamente pelos
companheiros de cela e Portuga mata Tirica. Hoje em dia acontece
muito, isso é um crime muito cobrado pela justiça.
O sistema carcerário do passado era muito cobrado pelos
próprios presos. Também os agentes daquela época eram bastantes
rígidos, pelo fato de existir muita cobrança dentro do sistema da
parte de todos, inclusive entre presos. Existem pessoas condenadas
por alguns tipos de artigo que, por muitas vezes, criticam outras
pessoas de artigos que consideram inaceitáveis, como o artigo de

129
abuso sexual. Porém, todos praticaram um crime, não importa o
crime, crime é crime.
Muitos de nós pagamos por crimes que alguém cometeu, ou
muitas vezes também pagamos por crime que não cometemos,
apesar de vivermos em um país que é democracia, onde temos o
direito de ir e vir.
Eu gostei dessa obra, pois o autor passa para o leitor a
realidade do sistema prisional no Brasil. Ou porque a verdade é
assim, nua e crua?

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Dinheiro não me corrompe, já palavras...

Jhenissa da Silva Sousa


Luciana Conceição da Silva

A leitura da obra “A prostituta respeitosa” de Paul Sartre,


escrita em 1946, aborda temas como racismo, poder, preconceito,
relações de classe e moral. Por estarmos iniciando o segundo
módulo do projeto de leituras, os participantes demonstraram-se
mais amadurecidos na leitura e nas reflexões do livro, além de um
pouco mais despidos das insensibilidades da prisão. Estávamos
num período de recesso, fazendo o fechamento da primeira versão
e elaborando a segunda, e a retomada dos encontros foi marcada
pela animação, característica de quando renovamos as energias.
Nesta leitura, a escolha aleatória dos personagens foi um dos
momentos mais aguardados pelos participantes: quem seria o
“sortudo” que leria as falas da protagonista Lizzie, uma prostituta?
Havia um clima de descontração e expectativa de alguns por um
momento de “vingança”, para que pudessem retribuir as
provocações das leituras anteriores. Apesar da situação estar
envolta em brincadeiras que não geraram indisposições ou
agressões entre os participantes, parecia-nos que elas expressavam
um desafio, que não era o de representar a figura de uma prostituta,
mas antes o de ser colocado no papel de mulher. Logo que tomaram
conhecimento de quais seriam os personagens presentes na
história, rapidamente começaram a especular a quem caberia, nesse
espaço majoritariamente masculino, o papel de mulher. As
brincadeiras e especulações faziam com que os risos tomassem
conta do espaço. Seria uma escolha difícil! Todos apontavam para
quem consideravam que deveria, dessa vez, ser a mulher. O que
estava implícito era o desejo de sacanear o colega, já que na
concepção de muitos deles fazer um papel de mulher significava
ser ridicularizado como homem.

131
Antes de aprofundarmos nas reflexões, gostaríamos de situar
você leitor quanto ao enredo da obra, para que assim lhe seja
possível compreender melhor nossas reflexões.
A peça inicia com Lizzie num trem, onde também se
encontravam dois homens negros conversando. Chegam,
posteriormente, quatro homens brancos, que assediam e insultam
Lizzie. Os negros tentam defendê-la, porém um dos homens
brancos saca uma arma e mata um dos negros, enquanto o outro
consegue fugir. Ponto muito importante que não podemos deixar
de mencionar é que esta história se situa no sul do EUA, na década
de 40, numa sociedade e época extremamente racista e
segregacionista.
Um dos debates feito na roda de conversa foi o poder do
racismo, que se mostrou capaz de inverter as posições dos culpados
e inocentes, já que, na história, o negro sobrevivente passou a ser
procurado pela polícia como o responsável pelo crime. É sabido
que boa parte da população carcerária é composta de negros, tanto
a masculina como a feminina, por isso trazer esta realidade para o
debate foi um momento importante. Muitos não se viam como
negros, mas entendiam que quem tinha a pele mais escura sofria
bem mais que os outros. Percebemos que a maior parte deles
acreditava que ser negro era possuir a cor da pele preta, por isso
nem todos incluíam nesse grupo os afrodescendentes. Tal situação
encontra correspondência com o que ocorre de modo geral na
sociedade brasileira. Ainda há uma parcela de sua população negra
que não se reconhece como tal, e nem acha que sofre racismo.
Situação essa já bastante discutida por sociólogos e antropólogos
em decorrência das polêmicas sobre o mito da democracia racial,
decorrentes da clássica obra “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto
Freyre1.
Ao longo de todo o debate sobre essa obra a discriminação pela
posição social e o preconceito racial atravessaram as discussões.
Muitos falavam que por ser negro, o negro da história já era

1 FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala, 50ª edição. Global Editora. 2005.

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culpado e mais ainda por ser um negro pobre. Reafirmaram que até
os dias de hoje o negro é o que mais sofre em nossa sociedade, que
são relegados a uma posição de marginalidade. Entretanto, o negro
sobre quem falávamos em nossos diálogos era sempre o outro.
Quase nenhum dos participantes se percebia (ou se assumia?) na
figura do negro discriminado. Porque é tão difícil se reconhecer no
outro?
O preconceito pela profissão de prostituta, comum em nossa
sociedade, não foi percebido ao longo das discussões. Quase nada
foi dito sobre este elemento, apesar da profissão representar algo
culturalmente imoral. E apesar de condenarem a conduta da
personagem ao trair o negro em favor dos brancos, eles não
associaram o comportamento da prostituta com a sua profissão ou
condição social, mas a uma postura moral. Logo, apesar de a
prostituição marcar a identidade da principal personagem da
história, Lizzie não foi a protagonista em nossas discussões em
função desse aspecto.
A principal discussão relacionada à Lizzie foi a subordinação
por ela sofrida decorrente de sua posição social de marginalidade.
A posição social de uma pessoa pode lhe beneficiar ou lhe sujeitar
à submissão e opressão. Porém, muitas vezes, para aqueles que
ocupam as posições de inferioridade é imperceptível o
estabelecimento de tais relações. Devido às suas próprias
condições, não se percebem dominados, não reconhecem no outro
o poder de suas palavras e o quanto podem ser manipuladores. É
o que acontece com Lizzie na história, ludibriada pelas belas
palavras de seus algozes.
A relação de poder entre o Senador e a prostituta, decorrente
de suas distintas posições sociais, foi comparada pelos
participantes com a relação estabelecida entre os políticos e os
eleitores, marcadas por mentiras e enganações, que se valem de
falsas promessas para obterem o que desejam, no caso, os votos.
Na peça, a prostituta não aceitou ser comprada por dinheiro,
mantendo-se firme a seus princípios de compromisso com a
verdade. Contudo, o Senador representava uma figura de bom

133
caráter para Lizzie, o qual ela admirava e, por isso, acabou cedendo
às suas palavras. Os participantes foram enfáticos ao dizerem que
ela não deveria ter cedido, deveria ter falado a verdade
independente das consequências, seu compromisso deveria ser
com a verdade em prol de quem havia lhe ajudado: o negro. Por
acabar cedendo à versão mentirosa da história dos brancos,
acusando assim injustamente o negro, a prostituta, segundo os
participantes, passou a não ter nada de respeitosa. Porém, cabe
questionar: a ingenuidade de Lizzie, manipulada pelas palavras do
Senador, isenta-a da culpa pela condenação injusta do negro?

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Injustiça racial

Clauber da Costa Araújo


(Resenha crítica produzida no projeto)

Lizzie se vê envolvida em um problema racial, ela tenta não


tomar partido nem quer saber do que testemunhou. Porém, tanto o
negro que está sendo acusado de algo que não fez, quanto alguns
brancos que representam os verdadeiros culpados, procuram-na e
dependem dessa única testemunha do crime que ocorreu dentro do
trem.
A questão racial, a ingenuidade, a tensa relação entre
opressores e os seres marginalizados pela sociedade, reafirmam a
primazia da existência sobre a essência, característica do homem na
visão existencialista.
É uma história interessante, só que de respeitosa a prostituta
não tinha era nada. Na verdade, ela não passava de uma
mercenária, que apesar de tudo e o negro sendo acusado
injustamente, a mesma acaba ficando com Fred.

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A verdade não está à venda

Willian Torres Oliveira


(Resenha crítica produzida no projeto)

Lizzie, a prostituta, estava em um vagão de trem que tinha


dois negros ao lado de sua poltrona, quando chega um grupo de
homens brancos e bêbados que queriam estuprá-la, mas um dos
negros evita que eles a estuprassem. Porém, nesse conflito, um dos
negros foi assassinado por um dos brancos e eles fogem. O negro
foi até a casa da prostituta para pedir que ela fizesse o depoimento
a favor dele, mas ela disse que não iria dar porque não queria se
envolver com o crime ocorrido, então ela pediu que o negro fosse
embora, pois ela não ia depor a favor de ninguém.
Fred, que é filho do senador, foi até a casa de Lizzie para ver
se consegue um acordo com ela para que faça seu depoimento
contra o negro, mas ela disse que falaria a verdade. Então chega um
policial e a oprime para que falasse ao contrário, acusando o negro.
Então o senador chega na casa de Lizzie e consegue convencê-la
para que ela pudesse depor a favor de seu sobrinho.
O negro vai até a casa de Lizzie e entra sem que ela perceba,
mas ela disse que sabia que ele iria lá. O negro estava com medo
dos brancos e ali ele poderia se esconder. Mas não teve jeito, Fred
o encontrou dentro da casa. Lizzie estava com raiva e falou para o
negro atirar em Fred, mas o negro não tem coragem de atirar. Ela
entrega o negro porque ela não tem como sair daquela situação em
que ficou acuada, sem saber o que fazer.
Eu acho que nessa história tanto o negro quanto Lizzie
estavam sendo subordinados e oprimidos. Por estarem no poder,
os brancos se acham no direito de comprar a verdade de um ser
humano por uma pessoa discriminada, uma prostituta e um negro,
é muito errado, eu não concordo.

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138
Feminismo em texto de 2500 anos atrás?
Não acredito!

Darlene Ribeiro da Silva

No mês de novembro de 2018 foi lida e discutida a obra


“Lisístrata - A greve do sexo” de Aristófanes. Trata-se de uma
comédia da Grécia Antiga, escrita a 450 a.C. Ao apresentar o
contexto histórico da obra, bem como sobre seu autor, os
participantes manifestaram surpresa em saber que a história havia
sido escrita há tanto tempo. Um dos participantes, inclusive,
afirmou não acreditar que tal peça havia sido, de fato, encenada em
tempos tão remotos. A contestação desse participante gerou
discussão e descontração, permanecendo uma enorme dúvida.
Por se tratar de uma comédia, com uma textura fortemente
sensual, sua leitura foi de fácil compreensão, sendo divertida e
engraçada, ocasionando nos participantes satisfação e prazer. Não
se trata, porém, de um humor vazio. A peça é recheada de ironia e
crítica, e vale-se de sofisticadas linguagens metafóricas, entretanto,
estas são acessíveis ao grande público. Daí, pois, que nos vimos
rindo em diversas passagens do livro.
A obra retrata o conflito existente entre Atenas e Esparta,
gerando assim a Guerra do Peloponeso. As mulheres de ambas as
cidades, insatisfeitas com os problemas advindo da guerra e pelas
perdas de seus maridos, se reúnem lideradas por Lisístrata e
decidem fazer uma greve de sexo, com a finalidade de obter o fim
da Guerra, estabelecendo assim a paz e tendo seus maridos de volta
aos seus lares. Seus maridos, que não conseguem conter seus
desejos carnais, acabam após algum tempo cedendo à
reivindicação das esposas, selando assim a paz.
Apesar da obra ter sido escritas por homens, para ser
apresentada a plateias compostas apenas por homens, retrata de
alguma maneira o feminismo. Na história, as mulheres que não

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tinham direitos e cujas vozes não eram ouvidas sagazmente
elaboram uma estratégia, valendo-se da fraqueza dos homens, para
obter o que desejavam. A obra não trata diretamente sobre a luta
pela igualdade de gênero; entretanto, abre possibilidades reflexivas
sobre o papel, lugar e poder das mulheres na sociedade. Nesse
sentido, a obra provocou um olhar diferenciado em relação à figura
feminina, o que pode ser percebido na fala dos participantes
quando se referiam à força das mulheres.
No debate, os participantes enfatizaram a necessidade das
mulheres serem bem tratadas. Muitos afirmaram ser fundamental
dar mais carinho e atenção, dedicando-se mais a suas mulheres e
famílias, sendo companheiros e satisfazendo seus desejos.
Reconheceram, entretanto, já terem sido falhos nesse sentido.
A história, ao inverter a posição de força entre homens e
mulheres, fez-se provocativa. Em geral, a força está principalmente
atrelada ao masculino, sendo os homens os controladores das
decisões e as mulheres as submissas. No entanto, a partir da obra,
os participantes reconheceram o quanto podem se tornarem
submissos em decorrência de seus desejos, tornando inclusive
escravos deles. Diante dessa história fictícia, vimos emergir entre
os participantes um certo medo de que as mulheres se inspirassem
nessa ideia. Porém, um dos participantes comentou que as
mulheres, de certa forma, já fazem isso no interior de seus lares,
controlando muitas vezes assim seus maridos ao privá-los do sexo.
Reconhecer a força, a capacidade e a determinação das
mulheres não é suficiente, entretanto, para que nossos direitos e
oportunidades sejam igualitários na sociedade. Estabelecer esse
diálogo seja talvez o passo inicial e, porque não, dispará-lo a partir
da leitura prazerosa e divertida de um livro?

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Banquete para a paz

Isael da Silva Oliveira


(Resenha crítica produzida no projeto)

Há 411 a.C. foi apresentado uma grande guerra entre Atenas e


Esparta. Nessa batalha as mulheres dos soldados sentiam-se
solitárias, carentes de seus maridos, pois só viviam voltando para
a guerra. Então Lisístrata faz uma convenção com todas as
mulheres e explica para elas como fazer para dar fim nesta guerra.
No entanto, umas ficam sem concordar de imediato, mas
Lisístrata com sua sabedoria convence a todas que é o melhor para
dar um fim nesta guerra fazendo assim outra guerra: a guerra do
sexo. Como os homens são submissos as mulheres, elas apostaram
que seria possível estabelecer a paz a partir de uma greve de sexo.
Mas, quando eles retornam não entenderam o que estava
acontecendo. Suas mulheres foram explicar, porém os mesmos não
quiseram dar atenção.
Com o passar dos dias, todos estavam loucos por suas esposas,
e recorreram ao comissário que representava a comarca da cidade,
porém não obtiveram sucesso. As mulheres estavam dispostas a ter
toda atenção de seus maridos e darem um fim na guerra e trazer a
paz. Como eles não tiveram como apagar suas tochas e vendo que
suas mulheres não iriam abrir as portas, então pararam a guerra e
foram atender o pedido de acordo com suas mulheres. Assim, foi
preparado um belo banquete, onde todos beberam e dançaram com
suas mulheres.
Essa história me retrata uma luta a qual todas as mulheres
tinham um mesmo propósito da paz, democracia e amor. Percebe-
se que as mulheres tinham força, capacidade e determinações em
suas atitudes, mostrando também que as mulheres fazem parte de
uma sociedade semelhante aos homens.

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Olhar ao invés de criticar

Marco Antônio Pereira Lima


(Resenha crítica produzida no projeto)

O livro conta a história do fim de uma guerra por meio da


greve de sexo. Lisístrata conseguiu reunir todas as mulheres para
tentar acabar com aquilo que impedia todas as mulheres de serem
felizes ao lado de quem elas tanto amavam: seus maridos. Eu a acho
muito corajosa e inteligente, pois com isso que ela conseguiu o seu
objetivo que era pôr fim à guerra e todas as partes ganharam com
isso, tanto Esparta como Atenas.
Foi uma luta justa e que todos ficaram contentes. Acredito que
viram que as esposas só queriam o bem para todas as partes e que
as mulheres também têm visão para a vida. Se todos olhassem e
não criticassem as mulheres seria melhor, pois o machismo tem que
acabar, não importa a época, temos que viver em um mundo
melhor e isso só depende de cada um de nós.
OBS: Guerra, isso é coisa de pessoas fracas e aqueles que têm
ambição.

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Somos o que aparentamos?

Taila Silva Alves

A última obra discutida, em dezembro de 2018, foi “O


casamento do pequeno burguês”, de Bertolt Brecht. Esta obra foi
escrita quando o autor tinha apenas 21 anos de idade, em 1919.
Retrata a história da falência de um casamento da alta sociedade,
de modo que a comédia vai ganhando poder conforme a ingestão
de álcool vai fazendo efeito nas pessoas ali presentes. A peça é
iniciada numa festa de casamento, onde coisas que pareciam
sólidas começam as desmoronar, assim como a moral de algumas
pessoas que vivem de aparência. Com relação a isso, os
participantes observaram que durante a festa de casamento
retratada na peça há discussões que acontecem entre a família dos
noivos e os convidados, ao mesmo tempo em que todos estão com
um lindo sorriso de falsidade, o que é bastante comum em nossa
sociedade. No decorrer dos diálogos na roda de conversa os
participantes afirmaram que consideram que antigamente as
pessoas pensavam mais umas nas outras, não eram tão egoístas
como hoje em dia. Para alguns deles, nos dias atuais existem
pessoas da sua própria família que fazem de conta que mal lhe
conhece, sendo as vezes mais comum uma pessoa de fora ajudar
quando precisa do que alguém próximo da família.
Apesar de escrita há um século, o tema abordado pela peça se
faz atual e pertinente em nossa sociedade. Mostra uma realidade
na qual as pessoas vivem apenas de aparência: pai que nunca
termina de contar uma história, noivo que briga com noiva, uns
julgando a vida dos outros, intrigas por pequenas coisas. Nas
discussões sobre a leitura foi possível estabelecer diversos paralelos
com situações que vivemos hoje em dia, em todas as famílias.
A peça possui nove personagens, sendo que nenhum deles
tem nome específico. A proposta era que os personagens não

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tivessem mais importância e foco do que a trama em si,
despersonificando-a. Assim, poderia ser uma trama de qualquer
família de pequenos burgueses. E foi exatamente o que os
participantes observaram, já que todos puderam estabelecer
paralelos com suas famílias ou com aquelas de pessoas que
conhecem. Alguns participantes relataram que a situação da peça
era o que muitas pessoas vivenciam no seu cotidiano, mostrando
ser para a sociedade algo que na verdade não se é. Afirmaram que
é bastante comum casais postarem declarações bonitinhas em redes
sociais para o companheiro(a), e na vida real isso não passar de
uma farsa, pois fora das redes sociais agem feito um matando o
outro. Assim como o casal de pequenos burgueses se esforçava
para manter as aparências, também hoje a maior parte das pessoas,
para mostrar para a sociedade que é feliz, tem que fazer cenas
lindas artificiais, registrá-las e compartilhá-las nas redes sociais.
A obra nos fez parar para refletir o quanto as pessoas vivem
de aparência, criando um mundo que não existe, e esquecendo que
uma hora esse teatro é desmascarado. Na peça, esse
desmantelamento da farsa é retratado simbolicamente no
desmontar dos móveis, revelando sua fragilidade, bem como no
mal cheiro da cola, que não foi eficaz em manter as peças dos
móveis unidas.
Os participantes disseram que o ser humano tem necessidade
de ser notado pelos os outros e que faz de tudo para que isso
aconteça, mesmo que para isso tenha que incorporar um
personagem na vida real. Viver de aparência hoje em dia se tornou
tão natural, que as pessoas não se dão conta que não são felizes
vivendo aqueles personagens. Isso parece ter se acentuado com o
advento da necessidade compulsiva por likes. Além disso, somos
influenciados a nos destacarmos por meio do físico, da beleza e não
tanto pelo intelectual e sabedoria. Adotamos essa vida farsesca
para nos sentirmos inclusos e aceitos no meio da sociedade em que
vivemos. Porém, precisamos nos conscientizar de que somos seres
humanos cheios de inseguranças e erros, porque isso é natural na
condição humana.

146
O aspecto mais destacado na discussão desse livro foi que o
autor retrata a realidade como ela é. Mesmo a obra sendo uma
comédia, não deixa de ser crítica e serve para que as pessoas
possam refletir sobre seus atos e modos de vida. A leitura provoca-
nos a tomar consciência de que temos que mostrar quem somos de
verdade. Num mundo de aparências, feliz mesmo é quem vive de
verdades!

147
148
Cuidado, frágil: seres humanos

Dourivan Alves de Morais


(Resenha crítica produzida no projeto)

Acontece o casamento do pequeno burguês onde o autor dessa


peça fala do noivo e da noiva, sobre o pai da noiva e a mãe do noivo.
Na verdade, esse casamento do pequeno burguês é uma comédia
muito engraçada, porque nela o autor não fala o nome dos
personagens.
O autor cita os personagens como a noiva e a irmã do noivo,
seu amigo, a madame e seu marido, e o moço que nos tempos
antigos fazia móveis de madeira maciça porque duravam mais. O
noivo procurou fabricar seus próprios móveis, porque ele falava
que os móveis da loja não prestavam. As fábricas fazem muitos, em
grande proporção, para vender mais produtos, porque assim a loja
pode dividir em muitas prestações, por isso vendem muitos
móveis. A qualidade dos móveis das lojas é bastante inferior aos
móveis feitos manualmente. Na verdade, antigamente os móveis
eram feitos só com pincha de madeira de elite e somente as pessoas
boas de condição financeira poderiam comprar esses tipos de
móveis, sendo assim, o noivo preferiu fabricar seus próprios
móveis.
Refiro-me aos móveis comparando com as pessoas, que muitas
vezes ficam criticando uns aos outros pelos seus comportamentos
e aparentam uma coisa que na verdade é outra, e assim, vem a
desmanchar como os móveis.
As pessoas de antigamente eram mais humanas, pois
pensavam umas nas outras como se fossem membros da família.
Hoje em dia vivemos em um mundo em que existe membro da sua
própria família que não liga para você quando precisa de ajuda, de
modo que é mais provável uma pessoa de fora ajudar do que seu
próprio parente.

149
A minha reflexão é a seguinte: o autor passou a realidade dos
seres humanos porque o mesmo faz uma crítica social, usando o
humor cínico. Não é a realidade dos seres humanos do mundo em
que vivemos? Até porque, usando alguns móveis de exemplo para
fazer uma comparação como as pessoas que vivem de aparência,
mas na realidade da vida existem pessoas que não podem ver outra
pessoa mudar de vida que ficam com muita raiva quando vê seu
sucesso, crescendo e mudando para uma vida melhor. Sendo que
na verdade, a mesma está com inveja e esta faz mal tanto a quem
tem, quanto a quem está sendo invejado.
Esta obra me impactou porque o autor retrata a vida como ela
é. Eu gostei muito porque a cada vez que participo do clube da
leitura, eu me sinto realizado. Mas, também nós somos muito
gratos a Deus, por ter uma professora como a Aline, uma pessoa de
muita competência. Que Deus te abençoe pela forma de ensinar.

150
Relações à prestação

Welton Osório da Silva


(Resenha crítica produzida no projeto)

O casamento do pequeno burguês é uma comédia muito


engraçada, porque o autor não fala dos nomes dos personagens,
temos o noivo, a noiva, pai da noiva, mãe da noiva, madame,
amigo, seu amigo, entre outros.
Tudo começa num jantar, com o pai da noiva contando
histórias e a mãe do noivo chamando-o para beber. O amigo fala
para o marido fazer logo o discurso, pois sua mulher só estava
brincando. O pai do noivo não deixava que o pai da noiva contasse
histórias, enquanto o marido brigava com a madame porque ela
estava espiando o armário dos outros. O grande problema começa
quando quebraram as cadeiras e outros móveis da casa, mas não
entenderam o motivo. Naquele tempo faziam os móveis de
madeira, porque duravam mais, e o noivo fabricou seus próprios
móveis, e ele dizia que os da loja eram uma porcaria, os feitos em
fábricas não prestavam, pois faziam em grandes proporções para
venda, e ainda dividiam em várias prestações sendo bastante
inferiores aos móveis feitos numa oficina comum.
A madame pergunta se o moço não queria acompanhar ela até
sua casa, os noivos começam a brigar e os outros convidados
também, mas depois fica tudo bem. O noivo fala que bebe por ela,
a mesma diz que afinal hoje é festa e quando todos vão embora eles
deitam na cama, ela quebra, como todos os outros móveis da casa,
os dois se beijam e se abraçam.
O que o autor quer nos dizer sobre os móveis de madeira que
estavam desmontando, trazendo para os dias de hoje, é uma crítica
às pessoas que vivem de aparência. Porque na verdade elas não são
aquilo que falam. O autor retrata isso na peça do Casamento do
Pequeno Burguês, por isso quando ela fala dos móveis

151
desmontando, as críticas são para os casais que quando estão na
rua aparentam um casal feliz, mas em casa há somente brigas.

152
A leitura de si e as escritas de nós

Aline Campos

Numa sociedade letrada, ler e escrever são habilidades


inclusivas. Por isso, Paulo Freire1 defendeu exaustivamente a
alfabetização, sobretudo de adultos, como um ato político. Para ele,
a compreensão de um texto requer a percepção das relações que se
estabelecem entre o texto e o contexto, o que depende de uma
leitura crítica, que envolve interpretação e reescrita do lido. Ler é,
pois, muito mais do que decodificar palavras sequenciadas e
relaciona-se diretamente com as experiências de vida do leitor, que
irá significar o texto a partir de sua própria leitura. Tal dimensão
da leitura se tornou especialmente evidente nas rodas de conversa
do Clube de Leitura, já que víamos emergir diversos relatos de vida
que se cruzavam e se misturavam com as interpretações sobre as
obras lidas. Cada leitor/a, ao discutir o texto lido, trazia para o
debate coletivo a leitura que partia de si.
Dentre as diversas possibilidades de leitura, há a literatura
que, para Antonio Candido2, deve ser vista como um direito
humano básico, pois trata-se de um fator indispensável de
humanização. Segundo este sociólogo e crítico literário, é
reconhecido como direito de todos alguns bens fundamentais, tais
como saúde, moradia, instrução e alimentação. Entretanto, ele
problematiza se o pobre tem o direito de ler Dostoievski ou ouvir
os quartetos de Beethoven. Em nossa experiência extensionista
tivemos a oportunidade de presenciar, em mais de uma ocasião, a
admiração de pessoas ao tomarem conhecimento que lemos com
indivíduos presos obras de Franz Kafka e Paul Sartre. O que

1 FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam.


48 ed. São Paulo, Cortez, 2006.
2 CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ___. Vários Escritos. 5 ed. Rio de

Janeiro: Ouro sobre Azul/ São Paulo: Duas Cidades, 2011.

153
fundamenta essa surpresa é justamente o estranhamento de obras
ditas eruditas estarem em meio a um grupo não só popular, como
também marginal.
Antonio Candido afirma ainda que a literatura traz em si,
livremente, o “bem” e o “mal”, proporcionando vivermos
dialeticamente os problemas, o que possibilita uma humanização
profunda. No Clube de Leitura essa dialética foi constante e se
evidenciou, por exemplo, quando discutimos a postura de
Ubirajara em expor Pocujã; a reação da família de Gregor ao vê-lo
transformado em inseto; as contradições da vida adulta
denunciadas pelo Pequeno Príncipe; a preocupação de Antônio
Brás em não ser corrompido pelo sangue humano; o envolvimento
do padre na condenação de Branca por heresia; a complexidade dos
conflitos que levaram Tirica a matar Portuga; a conduta de Lizzie
ao testemunhar contra o negro; a força e a inteligência das mulheres
unidas e lideradas por Lisístrata; e a fragilidade das aparências do
casamento de pequenos burgueses. Assim, a partir do outro (o
personagem fictício), foi possível revermos nossas próprias
compreensões de mundo, ampliando nossas visões. Mas de que
forma esse processo humanizou cada um de nós?
Ao refletir sobre a escrita de si, Foucault3 evidencia que a escrita
é uma forma de quem escreve se manifestar tanto para si como para
os outros, daí que o ato de escrever seja uma forma de se mostrar,
se expor. Para ele, nos textos direcionados a outrem, em que
informações pessoais são compartilhadas, o texto escrito torna o
escritor “presente” para quem o lê. É nesta perspectiva que foram
escritos os textos a seguir. Todas as pessoas envolvidas com o
projeto foram estimuladas a refletirem sobre sua participação no
espaço educativo da Cadeia Pública de Tocantinópolis, efetuando
assim a leitura de si. Dessa leitura, emergiram as escritas de si que,
reunidas, compõe as escritas de nós.

3FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In:____. O que é um autor? Lisboa:


Passagens, 1992. p. 129-160.

154
Considerando a condição de vulnerabilidade da população
carcerária, pareceu-nos ético, à princípio, manter suas identidades
preservadas por meio do uso de codinomes, como geralmente é
feito em pesquisas envolvendo esse público. Contudo, acabamos
decidindo coletivamente por apresentar todas as identidades. Após
a boneca deste livro ter ficado pronta reunimo-nos com os
participantes do projeto, agora como autores do livro, para lhes
apresentar o resultando antes de encaminhá-lo para revisão
textual, diagramação e impressão. Nesse encontro aproveitamos
também para perguntar se eles queriam alterar algo em seus textos,
explicamos todas as etapas e prazos para que o livro ficasse pronto
e a ideia era propor que eles escolhessem seus codinomes. Foi nesse
momento que um deles tomou a palavra dizendo que, por ele,
poderia ficar o nome verdadeiro. Outros começaram a se
posicionar concordando com o que primeiro se pronunciou, até que
um disse que mostraria o livro para as pessoas e não teria sentido
se o nome dele não estivesse ali. Foi aí que me dei conta que usamos
codinomes quando eles estão na condição de sujeitos de pesquisa.
Aqui eles são autores, como omitir seus nomes verdadeiros?
Esperamos que na leitura de cada um dos textos a seguir seja
possível sentir a presença desses sujeitos diversos que compõem o
nosso Clube de Leitura e que se mostram/expõem a partir de suas
escritas de si.

155
156
Das farras do mundão ao estudo na prisão

Adriano Silva Evangelista


(Participante do projeto)

No começo da minha trajetória de vida eu não quis estudar e


fui para o mundão que me oferecia só coisas que me deixavam para
baixo, até que vim preso. Passei dez meses preso lá em
Augustinópolis, meu pai viu que lá na Cadeia que eu estava não
tinha benefícios e conseguiu uma vaga na Cadeia Pública de
Tocantinópolis. Quando eu cheguei aqui, em dezembro de 2017, e
a professora Aline foi na minha cela perguntar quem queria
participar dos estudos, eu falei que queria e comecei a participar e,
graças à Deus, estou participando de várias remições e aprendendo
mais e mais, graças a nosso bom Pai. E também fiquei muito feliz.
Com fé em Deus vou terminar meu ensino médio e ingressar na
faculdade, é isso ressocializar na sociedade, como eu era antes. E
arrumar um trabalho bom. Graças à escola aqui na cadeia, com fé
em Deus, vou conseguir me ressocializar na sociedade, graças a
esse projeto da Cadeia Pública de Tocantinópolis e as professoras e
todos que derramam força nesse projeto.
Na minha visão dos estudos dos livros, eu achei muito
interessante esse projeto. Foi muito bom para os detentos, todos os
colaboradores desse projeto estão de parabéns, porque eu mesmo
acho muito bom, porque fazia tempo que eu não lia um livro e
voltei a ler e me aperfeiçoar na leitura, além de estar ganhando
meus benefícios. Só tenho a agradecer a todos.
Eu não gostava de estudar porque fui muito mimado e acabei
trocando os estudos por bebidas, festas, carro bom, etc. Essas coisas
que fizeram eu não gostar do colégio, porque eu não queria nada
com nada da vida, só queria saber de farra e farra. Parei de estudar
no segundo ano do ensino médio. Até que vim preso e quando

157
cheguei aqui entrei nesse projeto e agarrei com as duas mãos e
estou aqui, na luta, firme e forte.

158
Cair de paraquedas pode ser apaixonante

Aline Campos
(Professora no curso de Pedagogia da UFT e
coordenadora do projeto)

Caí de paraquedas no sistema prisional. Era recém-formada,


com um contrato de professora eventual na Secretaria Estadual de
Educação em São Paulo, e “pingava” de escola em escola
substituindo professores. Foi quando uma escola me ofereceu a
atribuição de aulas numa unidade prisional, já que nenhum de seus
professores estava interessado em assumi-las. Não aceitei de
imediato, tive receio. Além disso, não tinha tido, ao longo de toda
minha graduação, preparação alguma para trabalhar nesse
contexto. Porém, após uma visita para conhecer a unidade prisional
voltei intrigada e disposta a experimentar. Foram quatro anos de
dedicação apaixonada, dois deles desenvolvendo uma pesquisa de
mestrado sobre educação em contexto de privação de liberdade1.
Interessava-me muito, e ainda interessa, entender o que significa o
trabalho educativo no interior da prisão. Após dois contratos de
trabalho, ambos renovados, fui forçada a sair por questões de
impossibilidade de outra recontratação. Entristecida, busquei
outras vias para me manter atrelada ao contexto prisional. Viajei
para a Argentina, onde acompanhei algumas atividades do Grupo
de Estudios Sobre Educación en la Cárcel – GESEC. Voltei ao Brasil
e fui aprovada no concurso para docente da UFT, vindo trabalhar
no curso de Pedagogia do campus de Tocantinópolis. Como
professora da UFT, descobri que por meio da extensão universitária
poderia contribuir na promoção do acesso à educação e cultura

1CAMPOS, Aline. Educação, escola e prisão: o “espaço de voz” de educandos do


Centro de Ressocialização de Rio Claro/SP. 2015. 275 f. Dissertação (Dissertação
de Mestrado) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos. 2015.

159
para a população carcerária. Foi assim que, com o apoio de
graduandas voluntárias e devido à receptividade do diretor da
unidade prisional, pudemos iniciar a estruturação do espaço
educativo da Cadeia Pública de Tocantinópolis.
Tive diversas experiências relacionadas à prisão desde 2011,
quando entrei pela primeira vez numa unidade prisional.
Justamente por ter vivenciado e conhecido outras experiências e
outros contextos é que o projeto de leitura e escrita na Cadeia
Pública de Tocantinópolis tem me animado tanto. Temos buscado
mensurar, qualitativamente, o resultado dessa experiência por
meio do projeto de pesquisa “Cadeia pública e espaço educativo:
a práxis de uma experiência”. Porém, o envolvimento,
acompanhamento e observação no desenvolvimento das ações
educativas já indicam resultados significativos, sobretudo no
comportamento reflexivo dos participantes.
Não fui dessas pessoas que desde pequenas são apaixonadas
por livros, tampouco a presença de livros foi algo marcante na casa
de meus pais. Lembro de ter aprendido o valor e importância do
livro, muito mais do que gostar naturalmente deles. Talvez por isso
nunca tenha partido de mim uma proposta de projeto com leitura
de obras literárias. Não me sentiria suficientemente capaz e
preparada para elaborar tal proposta. Porém, quando a demanda
por remição de pena por leitura nos foi apresentada, a proposta foi
sendo gradualmente criada em coletivo e coube a mim a função de
coordenar as ações. Ainda que tivesse ciência do poder da leitura,
até por já ter ouvido relatos anteriores, devo reconhecer que me
surpreendi. No começo, angustiava-me que a maior parte dos
participantes diziam não entender quase nada das leituras. Ficava
perdida, sem saber como mediar o processo de desenvolvimento
da interpretação do texto. Questionava-me se conseguiríamos
avançar, se seria possível promover o desenvolvimento dos
participantes. Será que teríamos que explicar a eles as histórias? Se
assim o fosse, poderíamos dizer que eles leram as obras? Eram
muitas as incertezas e o papel de coordenadora tinha um peso de
responsabilidade enorme.

160
Não sabendo como remar, fui deixando o barco seguir no
ritmo da correnteza. Foi então que percebi que por mais calmo que
pareça o rio, ele jamais deixa de fluir. As primeiras obras foram
mais difíceis, tentávamos extrair deles qualquer mínima
compreensão. Amarrávamos os trechos apresentados e assim
compúnhamos a história. Em meio a esse processo os elementos da
vida entrecruzavam as narrativas, as vezes até nos perdíamos. Vi,
na prática, a leitura de mundo alimentar a leitura da palavra e, com
isso, entendi melhor Paulo Freire. Percebi que minhas angústias
advinham de minha preocupação com a leitura da palavra, que
subestimava o poder da leitura de mundo. Essa experiência, ao me
libertar da preocupação de ter que controlar a aprendizagem
alheia, aproximou-me da figura do mestre ignorante emancipado,
apontada por Jacques Rancière2.
Voltava para casa sempre animada, querendo compartilhar a
diversidade de reflexões e debates que havíamos experimentado.
Não houve uma obra sequer, dentre as nove que foram lidas, que
eu não tenha gostado. Até Ubirajara, que a princípio pensei que
seria uma leitura chatíssima, surpreendeu-me ao se revelar como
ponte para discussões extremamente atuais.
Reconheço que um ano é pouco tempo para fazer afirmações
consistentes, porém, essa experiência tem me levado a crer que a
leitura na prisão é um instrumento de extrema potência para a
socialização, justamente porque ela nos humaniza. E a
humanização na/da prisão é urgente.

2 RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação


intelectual. Trad. Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

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Ei negão, não duvide, pode dar certo!

Antônio Pereira da Silva1


(Participante do projeto)

No décimo primeiro dia do mês de novembro do ano de 2017


eu cheguei à Cadeia Pública de Tocantinópolis. Quando foi no dia
05 de janeiro de 2018 comecei a fazer remição e a participar dos
encontros do Clube de Leitura. Foi para mim um grande desafio,
pois eu nunca tinha parado para ler um livro. Vim no começo
apenas visando a remição pela leitura, mas com o decorrer do
tempo me surpreendi comigo mesmo. Por isso digo a todos que,
como eu, um dia veio a ser preso: as atividades escolares e o Clube
de Leitura são essenciais e muito gratificantes. Mas quando uma
mulher guerreira veio com este convite, eu mesmo duvidei que
daria certo. Porém, quando aquela que conduz esse projeto com
detentos e para detentos faz com carinho, tudo dá certo. Agradeço
muito por isso, por acreditar ainda no ser humano. Muito obrigado
por acreditar nesse negão, com muitos déficits, mas que busca uma
vida diferente.
Eu nunca pensei que um dia eu estaria lendo uma obra como
“O Casamento do Pequeno Burguês”, de Bertold Brecht, mas a obra
que mais me fez refletir na vida foi “A metamorfose”, do Kafka,
porque ela mostra verdadeiramente como o ser humano se porta
com as coisas que não convém a ele.

1 Foi aprovado no Encceja de 2018, concluindo o Ensino Fundamental.

163
164
Ter acesso à educação não é fácil

Clauber da Costa Araújo


(Participante do projeto)

Minha trajetória nunca foi fácil. Nasci e cresci na zona rural,


onde a educação era bastante escassa, mas sempre superei
obstáculos. Conclui o primário em um povoado, vulgo Passarinho.
Já o ensino fundamental foi mais difícil, pois teria que vir para a
cidade. Não tinha essas facilidades que hoje os alunos têm para
estudar, mas consegui de novo, desta vez na escola Paroquial
Cristo Rei. Já o ensino médio, este sim que foi difícil mesmo. Tinha
que percorrer nove quilômetros de bicicleta até Tocantinópolis para
vir e outros nove para voltar. Passei por cima de todos os
obstáculos e terminei o ensino médio com 17 anos no Colégio
Estadual Deputado Darcy Marinho. Cheguei a concluir quatro
períodos do então chamado Normal Superior, em um curso
telepresencial, porém minhas condições financeiras me fizeram
desistir. Aí entrei para o crime e vim parar aqui. Hoje sou aluno da
UFT, num curso superior à distância, graças ao trabalho fantástico
do projeto de educação na prisão e de nossa digníssima e
extraordinária, minha ídola, Aline.
Para mim o projeto foi mais que importante, importantíssimo.
Apesar de ter entrado no meio do projeto, meu desenvolvimento
foi muito eficaz. Durante todo o projeto de leitura só veio a somar
na minha vida pessoal e educacional. Espero que minha trajetória
escolar seja gloriosa e eficiente. Com certeza minha história escolar
antes do projeto era monótona, sem muito interesse. Agora não,
praticamente mudou tudo, meu interesse é outro.

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166
Não há monstros na prisão

Darlene Ribeiro da Silva


(Graduanda no curso de Pedagogia da UFT e
extensionista no projeto)

Busco aqui apresentar a relevância que o projeto de leitura


no espaço prisional possui tanto na minha formação profissional,
quanto como ser humano. Antes do projeto se iniciar não via a
prisão como um espaço onde poderia ter alguma prática
educativa. Minha visão sobre as pessoas privadas de liberdade
era totalmente estigmatizada, fortalecida pelo discurso da
sociedade capitalista. No entanto, queria me aventurar e
conhecer novos espaços que fugissem do ambiente escolar, pois
sabia que as práticas educativas não ocorriam somente nesse
ambiente. Queria, pois, participar de algo que fizesse sentido na
minha formação, algo para poder lutar e me inserir.
Foi quando tomei conhecimento de que a professora Aline
Campos desenvolvia um projeto educativo no espaço prisional,
o que me oportunizou adentrar nesse contexto a partir da
participação no mesmo. Confesso que no início a experiência me
provocou estranheza e desconforto, mas ao estarmos todos
juntos na sala, discutindo sobre as obras, não me senti mais como
antes. Era como se tudo que haviam me dito sobre as prisões,
sobre todo o terror que elas apresentavam e sobre as pessoas
presas fosse uma grande máscara que foi caindo, revelando o
que havia por detrás dessas visões estereotipadas que são
reforçadas pela sociedade. Apesar de estarmos com pessoas que
cometeram delitos, estas não eram monstros e nem insetos.
Percebi que o fato de estarem presas não lhes tirava sua
humanidade, continuavam sendo pessoas, que apresentavam
suas opiniões, sentimentos e críticas.

167
Participar do projeto me proporcionou, assim, um olhar
diferenciado sobre as pessoas, principalmente as que estão privadas
de liberdade. Quando nos reuníamos, sentia-me dentro de uma sala
normal e não dentro de uma cadeia, pois nesse espaço
dialogávamos, riamos, debatíamos e apresentávamos nossas
opiniões sobre os diversos temas presentes nas obras literárias lidas.
Desta forma, ao me envolver e me inserir nesse espaço, por
meio do projeto de extensão, a curiosidade por conhecer mais
sobre a educação nesse contexto se tornou evidente. Foi então
que percebi que já havia encontrado algo pelo qual lutar e
militar: educação no contexto de privação de liberdade. Mas,
diante de todas as obras lidas, o que mais me fez acreditar na
educação nesse espaço foi a colaboração dos participantes e o
grande desenvolvimento deles, fazendo-me crer numa educação
libertadora.
Ao meu ver, o projeto possibilita a ocorrência de uma
formação compartilhada, pois não vamos lá para ensinar, mas
para dialogar, e nesse diálogo é oportunizado a troca de
conhecimentos, aprendemos com os participantes e eles conosco.
Além disso, o projeto ajudou-nos a adentrarmos no mundo da
leitura, pois lemos as obras literárias junto com os participantes,
obtendo ainda mais o gosto pela leitura. Comoveu-me o fato de
que muitos dos participantes nunca haviam lido nenhum livro
literário antes. Por meio do projeto tiveram seus primeiros
contatos, adquirindo aos poucos o gosto pelo ato de ler. Alguns
tinham dificuldade ao realizar a leitura, alguns não gostavam de
pronto das obras, mas por meio dos debates o obscuro se tornava
visível, possibilitando a compreensão e a reflexão sobre as obras.
E isso não ocorria somente com os sujeitos privados, mas
conosco também. Havia livros que não conseguia compreender
e nem apresentar minha opinião, porém, a partir do momento
em que todos apresentavam seus entendimentos da leitura, já
passava a compreender melhor e muitas das vezes ficava
encantada com as reflexões que os outros atribuíam sobre a obra.

168
Portanto, minha participação nesse projeto de leitura e escrita
possibilitou-me descontruir os preconceitos relacionados aos
sujeitos privados de liberdade, bem como contribuiu imensamente
na minha formação acadêmica, aumentando também ainda mais o
gosto pela literatura, possibilitando-me alçar voos mais longes.
Percebo hoje que num espaço estigmatizado e indesejado, existem
PESSOAS como nós. Quando estamos no Clube de Leitura, não há
mais divisão entre presos e pessoas com liberdade, mas somente
pessoas disposta a ler e dialogar.

169
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Sentir-se pássaro

Denisvan Souza dos Santos


(Participante do projeto)

Denisvan Souza dos Santos, 22 anos, negro, estudante e preso


por tráfico de drogas.
Nasci em uma casa sem luxo, mas que tinha o mínimo de
conforto, o suficiente para ser criado com amor e aprender valores
e princípios essenciais sobre família, amizade, religião,
honestidade, cidadania e respeito; tive uma boa base na construção
do meu caráter.
Órfão de pai, minha mãe sempre deu duro para criar e educar
meu irmão e eu, sempre se esforçando com a ajuda dos meus avós
maternos para que nada de essencial (material e imaterial) nos
faltasse. Nossos estudos eram prioridade.
Sempre estudei em escola pública e pouquíssimas vezes fui
um aluno nota dez, mas sempre estive dentro da média
aprobatória; sofri bullying por motivos que desconhecia na época,
hoje eu reconheço que sempre fui diferente, e as pessoas
frequentemente não sabem se relacionar positivamente com o que
é distinto, o que dá espaço para as relações negativas que são
baseadas na violência. Isso quase me fez desistir da escola, mas com
muito sofrimento e lágrimas derramadas encontrei maneiras de
driblar a violência e me fortalecer nas desventuras e seguir em
frente.
A minha vida escolar também foi marcada pelo desconforto
que sentia dentro da sala de aula, pois os padrões adotados no
processo educativo, desde o currículo até a forma em que as salas
de aula eram dispostas me fazia sentir em uma prisão, uma gaiola
que me impedia de alçar vôo. Suportei esse desconforto e consegui
concluir o ensino médio e chegar no ensino superior. A
universidade na minha trajetória representa o início do processo de

171
abertura da gaiola que me manteve aprisionado durante o ensino
básico; e minhas primeiras aulas de voo. Aprendi a desconstruir
preconceitos que antes foram construídos sem questionamento e
reflexão, e passei a me vigiar para evitar a construção de outros
novos preconceitos que tanto nos limitam.
Hoje me assisto como um pássaro que desde sempre criado
dentro de uma gaiola, cresce desconhecendo os riscos que existem
fora do cárcere e ao se ver livre das grades que o aprisionavam,
ignora esses riscos por desconhecê-los. Depois de descobrir os
contratempos e dificuldades da emancipação do pensamento,
desesperado, algumas vezes desejei voltar para as jaulas da
ignorância e fugir dos conflitos que me surgiram fora delas, mas
não há maneiras de voltar, o caminho é em frente; reforcei o meu
desejo pela liberdade e repensei o receio que senti ao descobrir o
novo.
Em uma das curvas do caminho que escolhi seguir no
descobrimento do meu novo mundo tive experiências e sensações
que me trouxeram satisfação passageira e me vendo novamente
como um pássaro tive um encontro com um sujeito de outra
espécie: o gavião, ave de porte majestoso, sagaz e que escondia
embaixo de suas penas um perigoso predador. Fragilizado, foi fácil
me iludir e me fazer acreditar em suas boas intenções em me
ajudar, dizendo que conhecia o mundo e que confiando em sua
experiência e astucia eu estaria no caminho certo. O resultado é que
por muito pouco eu não fiquei aprisionado em suas garras, mas me
livrei a tempo de recomeçar e evitar consequências muito mais
graves e irreversíveis.
Me encontro hoje em uma prisão que limita minha locomoção
física, mas que não aprisiona minha mente, que voa com as asas da
imaginação.
Tudo o que eu vivi na trajetória da vida me fez perceber que a
prisão da mente é muito pior que a prisão física (não ignorando o
molesto da impossibilidade de ir e vir). Na leitura eu encontrei a
chave que liberta a minha mente e que me faz ir além de onde o
corpo pode chegar.

172
O projeto de leitura desenvolvido na cadeia de
Tocantinópolis/TO me fez abrir os olhos para a magia da leitura e,
na condição de privado de liberdade, percebi que nos falta tempo.
Quando podemos levar o corpo para qualquer lugar não nos
importamos em fazer o mesmo com a mente, pois nos parece mais
exaustivo flutuar com a imaginação, mesmo quando a máquina
física exaurida de sua energia só pede descanso. Então eu percebi
que nos falta tempo não apenas para ler e assim libertar nossa
mente, mas nos falta tempo para ouvirmos e compreender o outro,
nos falta tempo para nos preocupar com o mundo, nos falta tempo
de sermos solidários, nos falta tempo de sermos melhores.
Durante algum tempo eu vi a leitura como algo pessoal, feita
isoladamente entre eu e o livro; a leitura era o momento particular
onde eu me identificava ou não com as características dos
personagens, concordava ou discordava, me emocionava ou não
com a leitura, sempre baseado no meu olhar sobre a obra, e ao final
– ou antes de chegar lá – eu concluía se o livro merecia ou não a
minha estima.
Minha experiência no clube da leitura, entre várias outras
coisas, me fez ver a leitura de um ângulo diferente, agora como algo
coletivo.
No primeiro semestre do projeto as obras que seriam lidas por
nós foram escolhidas democraticamente por todos, para minha
surpresa um dos primeiros livros sugeridos e escolhidos foi um do
qual eu já havia formado opinião (negativa), o que me fez pensar
que o tal clube da leitura não seria tão estimulante assim, já que os
livros escolhidos não eram. Logo que começou as discussões sobre
o livro A Metamorfose do Franz Kafka minha opinião foi
radicalmente decomposta; coletivamente, eu pude perceber a
importância que esse clássico representa para sociedade, com
possibilidades de discutir inúmeros assuntos de interesse social a
partir da narrativa deste brilhante escritor tcheco, independente de
um desfecho considerado infeliz, o que me levou a uma avaliação
negativa inicialmente.

173
Reconheço hoje que a justificativa para minha avaliação inicial
da obra partiu de um argumento superficial, que descartava a
importância dos debates referenciados nas entrelinhas, por não os
ter observado em minha primeira leitura pessoal, destacando a
importância da leitura coletiva, que dá espaço e admite outras
leituras sobre a obra e disponibiliza ferramentas extras na
construção da avaliação do texto.
De maneira geral o projeto de leitura me abriu uma janela,
inicialmente pequena, mas que vem tomando dimensões maiores
na minha trajetória de vida sobretudo no período de cumprimento
de pena por tráfico de drogas em Tocantinópolis – TO.
Na escuridão desse universo nefasto a leitura é a corda que me
faz sobressair de volta a superfície.

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Desmoronar da vida e aprender a ver outros mundos

Dourivam Alves de Morais


(Participante do projeto)

Venho através desta para lhe falar. Quando cheguei aqui na


cadeia era uma tarde de quinta-feira, do dia 16 de março de 2017.
Nunca tinha sido preso, quando aos quarenta e seis anos de idade
fui preso, para mim o mundo estava desmontando naquele dia.
Estava trabalhando no meu serviço quando o delegado chegou, já
foi passando a algema. No momento que eu cheguei na delegacia o
meu mundo desmontou. A minha fisionomia se transformou.
Assim, de repente, deixei de ser a pessoa que pagava suas contas
de supermercado e passei a ser um novo detento. Já não era o
mesmo. A própria fisionomia da pessoa automaticamente muda.
Passei mais de noventa dias sem dormir, mas corri para os braços
de Deus, através das suas palavras. Desse dia em diante as coisas
começaram a tomar outras direções. Foi melhorando um pouco,
comecei a fazer tapete para conseguir remição de pena.
Depois apareceu umas mulheres nas birgolas, começaram a
falar que já tinham trabalhado com educação em prisão e então fala
da sua função. A gente começou os nossos encontros na sala de
aula, ali nós sentávamos no chão porque não tinha cadeiras para
sentar, mas era bastante legal. Aí a coisa foi pegando jeito e hoje,
graças a Deus, nós demos um grande avanço. Eu nunca pensava
que participaria de um Clube do Livro, hoje estou tendo essa
oportunidade. Espero que você leitor que ler esse livro, o leia com
bastante atenção porque foi feito com amor e dedicação.
Eu sempre coloco em minhas orações todos, não só as pessoas
do projeto de leitura, mas também o diretor e os agentes da
unidade. Eu sempre quando oro, eu peço que Deus envie um anjo
para mim e, graças a Deus, as coisas já começaram a melhorar
muito. Eu estou conseguindo fazer tudo isso em primeiro lugar por

175
Deus e depois pela Aline e as meninas. Muito obrigado mesmo, de
coração.
Aqui na cadeia aprendi a ver o mundo de outra maneira,
mudei minha forma de pensar e agir. Acredito que só através da
educação que as pessoas podem tomar rumos bons para um
mundo melhor. Educa a criança hoje para amanhã não ter de punir
os homens no futuro. Meu muito obrigado por estar participando
de um grande evento como esse, nunca pensei que minhas resenhas
fossem se tornar um livro. Mas aquilo que é impossível aos homens
é possível pelo poder da graça de Deus. Amém.

176
Super-heroínas armadas com livros e outras ficções

Elizete Pereira dos Santos


(Graduanda no curso de Ciências Sociais da UFT e
extensionista no projeto)

Estar num projeto como esse, onde não são muitas pessoas que
querem trabalhar, não me faz sentir uma pessoa especial. Na
verdade, me fez sentir que isso vem para mim como uma
obrigação, no sentido que preciso dar o meu melhor para melhorar
um pouco a vida do próximo. Não começarei esse texto me
colocando em posição superestimada, como se eu ou alguma de
minhas colegas fossemos super-heroínas. Não somos. Apenas
estamos dando a nossa contribuição para um projeto que deveria
ser uma obrigatoriedade do Estado na sua função de reinserção
dessas pessoas na sociedade, onde em teoria deveríamos ter o
acesso à educação e emprego de forma igualitária. É justamente daí
que começo o meu relato.
Estando há um semestre no projeto posso perceber que a
dificuldade de leitura dos participantes é evidente, muito porque a
maioria não concluiu nem o ensino fundamental. A oferta de aulas
do ensino formal escolar, paralela ao clube da leitura, faz com que
eles tenham um pouco mais de auxilio nas questões da escrita.
Porém, para quem não tinha uma rotina de leitura antes, com toda
certeza teriam certa dificuldade. O que me chama mais atenção é
que seja por remição, por interesse na leitura, ou até mesmo só para
sair das celas que são quentes, úmidas e apertadas, o pensamento
deles com relação aos livros começou a mudar com o passar dos
meses. Isso se torna perceptível quando fazemos a leitura das
resenhas. Pudemos perceber que, com o passar do tempo, eles
começaram a fazer análises mais profundas. Além disso, vimos
como, a partir de cada leitura, eles foram fazendo correlações com
a vida real, o que sempre aparece em suas escritas.

177
É complicado para eles fazerem uma análise de cara de uma
obra teatral e clássica, como eram as obras que estávamos
abordando, justamente por não terem lido muita coisa antes. Para
alguns, quando começaram a participar do projeto, eram os
primeiros livros completo que liam.
Quando eu comecei a frequentar o Clube de Leitura era
somente para ver como funcionava, se eu gostasse ficaria de vez.
Foi o que aconteceu. Com o passar das semanas e as correções que
eu ia fazendo das resenhas, sempre me chamava atenção as
reflexões que eles faziam pela escrita. Na sala mesmo, durante os
encontros, eles apontavam algumas, mas não eram as mesmas do
papel e ali, naquele texto escrito, podíamos ver eternizado a
evolução da escrita de cada um e como a cada dia que se passava
eles conheciam palavras novas e seus significados e passavam
assim a utilizá-las também. Creio que na maioria das vezes eles
nem percebem que estão mudando tão rapidamente. Antes era
preciso recapitular a história para que compreendessem o que o
autor queria dizer com as metáforas e etc., hoje eles já conseguem
fazer essa reflexão por si só.
Quando as pessoas de fora percebem que estamos envolvidas
num projeto como esse, primeiro agem como se fosse muito perigoso,
como se tivéssemos que estar separadas dos alunos por grades dentro
de uma mesma sala de aula. Inclusive muitos já me perguntaram se é
assim que funciona. Depois que explicamos como é que funciona o
projeto e como acontecem os encontros, agem como se fossemos
super-heroínas. Mas o que a maioria não faz é visitar um projeto
assim, para ver como funciona e como pode contribuir de forma que
venha a fazer algo por alguém que não tem nada a ver consigo. E no
final das contas, não posso dizer que não ganhamos nada com isso.
Ganhamos horas de participação em projeto de extensão e algumas de
nós se tornaram bolsistas de pesquisa ou extensão. Mas falando por
mim, eu entrei no projeto por curiosidade e fiquei porque me sentia
bem acolhida; e também porque fiquei, de certa forma, encabulada
com o progresso que os meninos que participam do projeto obtinham
com o passar dos dias.

178
Costumo dizer aos que me perguntam se não é perigoso estar
dentro de um presídio, que tem risco como em todos os lugares da
cidade, até mesmo dentro de nossas próprias casas estamos sujeitos
a criminalidade se alguém a invadir. Entretanto, os participantes
do projeto são muito tranquilos, respeitosos, e demostram possuir
o interesse realmente de estarem inseridos no projeto. Percebemos
isso desde quando eles chegam no espaço educativo, até o
momento em que saem, ou até mesmo quando numa obra em que
acharam mais complicadas e vão escrever a resenha eles suam de
tanto nervosismo, mas mesmo assim não desistem de passar para
o papel o que eles entenderam e acham importante ressaltar. Seja
pela remição ou porque acham a leitura interessante, o índice dos
que faltam aos encontros é pequeno, e tem alguns deles que nunca
faltaram um sábado sequer. O que deixam transparecer é que eles
gostam de estar no Clube de Leitura e de compartilhar a leitura
conosco e com os outros colegas.
O que mais eu poderia dizer sobre esse projeto? Gosto muito
de fazer parte de seu desenvolvimento, estar ao lado de pessoas
que acreditam nas mesmas coisas que eu é muito importante, e
sinto de verdade que estamos fazendo a diferença na vida dessas
pessoas que participam, assim como também o projeto faz a
diferença na minha vida. A professora Aline uma vez me disse uma
coisa que eu nunca vou esquecer: “Não subestime o valor da
liberdade para alguém”. Realmente é verdade, mas nos livros
podemos viajar por tantas histórias, que mesmo não sendo nossas
sentimos uma pontinha de participação nelas. É assim que a cada
dia que passa eu tenho mais certeza da importância dos livros, da
leitura e da reinserção de cada uma dessas pessoas na sociedade.

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Olho d’água no jardim da esperança

Francisco de Assis Silva


(Participante do projeto)

Nasci no município de Pastos Bons/MA, minha família


morava de agregada do dono da terra. Eu, na idade de sete anos,
fui com ele e foi quando eu fui para o colégio na cidade de Pastos
Bons/MA. Eu estive no colégio cinco anos, fiz até o quarto ano aí eu
voltei para a casa do meu pai porque ele vinha para o Goiás, em
1968. Nós chegamos no Estreito em 1971 e eu fui para Altamira/PA.
Nessa saída eu fiquei vinte anos sem mandar notícias, quando eu
voltei para a casa dos meus pais eu era casado, pai de quatro filhos.
Nesta minha trajetória eu passei momentos bons, como também
momentos ruins. Eu tive muita alegria quando nasceu o meu
primeiro filho, eu vivia feliz com a minha família, eu era muito
contente. Mas o destino me trouxe uma surpresa: a minha mulher
passou a beber e acabou a paz na minha vida. Foram quatro anos
de sofrimento. Procurei tratamento para ela, mas não adiantou e eu
abandonei a minha família lá em Dom Elizeu, estado do Pará, em
1990. Voltei para a casa dos meus pais, onde fiquei até 2015.
No dia 19 de maio de 2015 eu fui detido, onde estou até hoje
pagando uma conta que eu não estou devendo, mas Deus não
dorme, quando a gente se sente rejeitado pela sociedade aí vem a
alegria de todos: um grupo de educadoras corajosas, dispostas a
transformar o rebelde numa pessoa melhor.
Eu começo esse texto falando do ambiente que vivo: a cadeia.
E falando dos prisioneiros que nela vivem: estas pessoas que
pensam que podem controlar o outro e por isso geram muitos
conflitos. O mais fraco faz amizade com o que é mais forte para se
defender. Mas a intenção não é se defender, mas sim marcar seu
território. Aí, quando ela acha que está tudo sob seu controle,
começa a controlar o outro. Aí é que começa a batalha, porque o

181
rival não aceita ser controlado por ninguém, ele apela para a
desigualdade, ele não pensa e para pra pensar em falar um ao
outro: “nós não vamos mais brigar, mas sim ser amigos, porque nós
precisamos respeitar um ao outro”. Se todos respeitassem o outro,
todos viviam felizes.
A potência de alegria dele (preso) é quando chega o banho de
sol para sair da cela. Até que surge uma estrela para alegria de
todos, que se chama Clube de Leitura. Ficamos muito satisfeitos em
poder participar e aprender com outras pessoas maravilhosas. Isto
é uma vertente de água cristalina para lavar o coração daquele que
pensa em maldade e limpa a sua memória. Com certeza todos nós
que participamos do Clube da Leitura ficamos de coração alegre e
feliz. Este olho d’água que brotou na Cadeia rega muitas sementes
para elas germinarem e darem seus frutos bons. Mais do que a
própria semente que germinou, isto é uma luz para todos nós, uma
energia positiva graças ao Clube de Leitura que trouxeram para a
alegria de todo preso.
Eu tive um conhecimento muito importante com os livros que
nós lemos. Trouxe um conhecimento que eu não tinha antes, como
a transformação de um inseto que com esta leitura eu aprendi.
Quando eu li o livro “A metamorfose” eu fiquei pensando o que
seria isso, aí resolvi ir à procura no velho dicionário. Lá encontrei a
resposta: metamorfoseado, ou seja, transformado. Ou a palavra
canapé, eu nunca pensei que fosse um sofá pequeno. E se não fosse
a energia positiva que o Clube de Leitura trouxe eu nunca saberia.
Não só isso, muitas outras coisas.
Quando eu vejo completamente a boa vontade de um grupo
de pessoas querendo ajudar o próximo, isso se chama “jardim da
esperança, de amor e dedicação”, de levar um conhecimento para
outras pessoas. Esse jardim é a educadora Aline, as outras que lhe
acompanham, todas excelentes educadoras, são amores de pessoas.
Que Deus ilumine o caminho delas e lhes dê muitos anos de vida
para terem mais tempo para fazer o que mais desejarem.

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Para mim foi muito bom, eu aprendi muito com essas meninas
guerreiras. Se de cem, tivesse dez iguais a elas, dispostas a ajudar o
próximo, o mundo seria melhor.

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Caminhão, novos caminhos e ideias a brotar

Gilson Luiz Sousa1


(Participante do projeto)

Em 13 de outubro de 2017, depois de dois anos desempregado,


com minha Carteira Nacional de Motorista (CNH) já vencida e eu
desesperado em busca de dinheiro para pagar as contas e,
principalmente, as pensões atrasadas do meu filho mais novo, recebi
uma proposta de levar uma mala com 24kg de maconha de Goiânia
(GO) para Estreito (MA). Isso, para ganhar a quantia de 1000 reais.
Esta é a razão por eu estar preso, eu nunca tinha sido preso nenhuma
outra vez. Por isso eu comecei a ficar pensando coisas ruins, por
causa do que eu ouvia falar sobre o sistema carcerário.
Nos três primeiros meses foi difícil, mas assim que comecei a
estudar, comecei a me sentir mais tranquilo, pois eu notei que aquelas
horas de aula me davam uma sensação de liberdade. Não sei se era
por causa da interatividade com os outros alunos e também com as
professoras, só sei que começou a brotar novas ideias na minha
cabeça. Ideias que me tornaram mais paciente, me trazendo esperança
e me fazendo acreditar na minha ressocialização. Quando eu caí aqui,
eu só pensava que minha vida tinha acabado, mas não, graças à Deus,
que colocou essa maravilhosa professora e suas meninas em nossas
vidas. Daí então eu comecei a ver minha vida de um jeito diferente,
parei até de fumar para sair daqui com mais saúde, porque eu já estou
velho e vou precisar de muita saúde para recomeçar. Sou motorista
carreteiro, mas com a ficha de traficante não poderei mais exercer
minha profissão. Mas, por outro lado, vou sair daqui com mais estudo
e quem sabe com a experiência que eu tenho possa conseguir uma
colocação diferente na área do transporte. Tenho 47 anos e isto é o que
eu vivo nos últimos dois anos de minha vida.

1 Foi aprovado no Encceja de 2018, concluindo o Ensino Fundamental.

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Percalços para estudar

Isael da Silva Oliveira


(Participante do projeto)

A minha vida, desde a minha infância, foi muito difícil. Sou de


família humilde e desde os meus sete anos de idade meu pai me
ensinou a trabalhar na lavoura. Fui a escola pela primeira vez aos
dez anos de idade, desde então passei a ter um sonho de ter um
bom grau de escolaridade. Com quinze anos eu vim para o
Tocantins em busca de um ensino melhor, mas por obra do destino
com dezessete anos passei a ter a responsabilidade de ser pai de
família e não dava mais para continuar o estudo. Passei a ter uma
vida de muito trabalho para manter a ordem no lar.
Após treze anos minha vida teve outra fase. Meu casamento
teve fim e vim parar na prisão. Nos primeiros meses eu pensei que
seria o meu fim, mas Deus me deu um novo horizonte de vida.
Logo me veio a oportunidade de voltar a estudar e me senti muito
feliz. Com este projeto estou tendo uma grande oportunidade de
estar me especializando na leitura. Peço a Deus que abençoe esse
projeto e agradeço muito a professora Aline e as demais
colaboradora do projeto.
Com este projeto eu tenho um bom desempenho na minha
leitura e estou muito contente com este trabalho, pois é uma grande
oportunidade termos este trabalho dentro da prisão, pois como eu
não tinha oportunidades lá fora, estou tendo agora.

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Renascer dentro de mim

Isaias Veloso Monteiro1


(Participante do projeto)

Sou de 1981. Nasci no estado do Maranhão e sou de família


humilde. Parei de estudar na sexta série por motivos pessoais. De
lá para cá nunca mais tive oportunidade para recomeçar de novo
meus estudos. Com o passar do tempo eu me encontro com minha
liberdade privada. Graças à Deus e a professora Aline, junto com
toda sua equipe, eu pude retomar meus estudos.
Com esse projeto eu tive a felicidade de renascer dentro de
mim, coisas que eu pensava que não existiam dentro de mim. Por
isso estou muito satisfeito com esse projeto, com ele eu vou poder
terminar os estudos e conseguir aquilo que antes eu sonhava, mas
por motivos pessoais foi interrompido.
Esse projeto do Clube da Leitura só me trouxe coisas boas, hoje
já sei como ler uma história e compreendê-la e até mesmo fazer seu
resumo.

1 Foi aprovado no Encceja de 2018, concluindo o Ensino Fundamental.

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Persistir adentrando a prisão

Jhenissa da Silva Sousa


(Graduanda no curso de Pedagogia da UFT e
extensionista no projeto)

Após adentrar na cadeia pública durante o período no qual os


meus irmãos habitaram a prisão, entre os anos de 2015 a 2016,
tencionei nunca mais entrar naquele espaço. No decorrer de um
ano foi assim, busquei elidir as experiências anteriormente
vivenciadas. Contudo, para mim, seria austero e injusto com as
pessoas privadas de liberdade ter que esquecê-las. Porque as
pessoas são relegadas quando estão numa posição de
marginalidade?
Antes da minha experiência excruciante com a prisão, não
sabia que na minha cidade havia uma cadeia pública na qual
pessoas cumpriam pena, pois diversas vezes transitei em frente
dessa unidade prisional e ela parecia simplesmente não existir.
Ocasionalmente, por meio de reportagens ela surgia, mas
estávamos muito mais focados/as em exaltar a monstruosidade do
ato criminoso dos sujeitos que eram destinados para lá. A prisão
em si não nos interessava.
As reportagens sobre os sujeitos que praticavam crimes nunca
me despertaram atenção e interesse. Porém, uma incitou: a
reportagem que versava sobre meus irmãos. Anteriormente a essa
reportagem, meu irmão mais novo, que neste período trabalhava
na borracharia do meu padrasto, conseguiu juntar mil reais.
Lembro bem do dia em que ele pegou o dinheiro com a nossa mãe,
que estava guardando, e começou a tirar foto, ostentando.
Ostentava com dinheiro que o pertencia, fruto de seu trabalho
como borracheiro. Sem embargo, tempos depois, ao serem presos
por roubo de celulares ao chegarem de uma festa vizinha, a foto da
reportagem era exatamente aquela anterior, com a legenda:

191
“Bandidos ostentando dinheiro de roubo!”, seguida de vários
comentários de desmoralização. A verdade é que quase ninguém
quer saber se as informações são de fato verídicas, se a reportagem
dá conta de transmitir a complexidade da trama que envolve o
crime. Na sociedade, hoje, parece-me que as pessoas precisam
acreditar que o outro representa o mal que deve ser eliminado para
que, assim, elas possam se tornar o bem, a justiça, o cidadão. No
fim, a indiferença e o individualismo diante do outro contribuem
para que possamos viver melhor conosco mesmo.
Posteriormente, quando meus irmãos haviam conquistado a
liberdade, após seis meses de aprisionamento, buscamos eliminar
as experiências vividas na prisão. Naquele tempo, jamais seria
capaz de imaginar que num futuro, relativamente breve, eu
aguardaria ansiosamente para ir à cadeia pública construir novas
experiências, as quais inclusive poderia se constituir numa
possibilidade gradativa de auxiliar na transformação daquele
espaço. Era exatamente isso que estava porvir.
A minha primeira aproximação com a cadeia pública de
Tocantinópolis como promotora de ações educativas ocorreu no
dia 25 de maio de 2017. No encontro com o diretor da unidade,
conversamos sobre o projeto de extensão, o número de alunos, a
organização da sala de aula e as estratégias para aquisição de
materiais. Após a conversa visitamos o espaço destinado para a
atividades educativas, onde havia escrito, na parede acima da
porta, a palavra escola. Em seguida adentramos na carceragem, que
é o espaço onde ficam alocadas as celas.
Adentrar na cadeia pública mediante uma outra posição,
agora não mais de familiar de um preso, mas como uma professora
em formação, vislumbrando deste modo o espaço prisional
enquanto espaço de atuação profissional, embrandeceu-me. Até
este exato átimo, não sei descrever o significado dessa nova
possibilidade para mim. Contudo, pude compreender que melhor
do que esquecer a experiência negativa com o espaço prisional, foi
ter a coragem de voltar ao exato lugar onde ela foi vivenciada,
buscando ressignificá-la, com novos sentidos e com outros sujeitos.

192
No dia 27 de junho de 2017 entrei na cadeia pública de
Tocantinópolis para o desenvolvimento da primeira oficina de nosso
projeto. Os participantes chegaram e permaneceram algemados
durante todo o tempo. Fizemos uma roda de apresentação:
participantes, discentes e docente da Universidade Federal do
Tocantins (UFT). Iniciamos falando sobre os motivos que nos levaram
a participar da oficina e compartilharmos experiências relacionadas
com a educação. A maioria dos participantes compartilharam suas
trajetórias escolares, alguns falaram sobre o desejo de oferecer aos seus
filhos uma boa educação.
Enquanto desenvolvíamos a oficina os agentes penitenciários
faziam seu trabalho de segurança: rondas no corredor do espaço
educativo. Um deles permanência sentado numa cadeira ao lado
da porta do espaço educativo. Curioso que os procedimentos de
segurança, com os participantes algemados e agentes
penitenciários, não foi algo que me impactou. Porém, em outro
momento, na condição de familiar de presos, esses elementos eram
os que mais me abalavam, pois, no meu imaginário, faziam-me
sentir humilhada.
Quando meus irmãos foram presos a sociedade em geral
passou a lhes enxergar como criminosos que deveriam ser punidos,
mas nós familiares os percebíamos como irmãos, primos,
sobrinhos, filhos que acordavam cedo para trabalhar, cuidar da
casa, da mãe e da irmã. O que não queria dizer que não haviam
violado as leis da sociedade e não deveriam ser responsabilizados
por isso. No entanto, a dimensão humana deles continuava lá, mas
parece que apenas nós a víamos.
Na verdade, nunca compreendi a prisão do meu irmão mais
velho. Desde criança ele sempre teve posturas éticas e morais
exemplares. Trabalhador, correto, não fazia nada, absolutamente
nada, de errado. Era justo com as pessoas ao seu redor e em todas
as suas decisões era coerente. Um filho extremamente afetivo com
nossa mãe e seus irmãos, apesar de várias vezes demostrar o
sentimento de inferioridade em relação ao irmão caçula e à irmã do
meio. Talvez os seus defeitos tenham sido ser o filho mais velho de

193
uma mãe solteira e ser negro e pobre numa sociedade
extremamente desigual. Tenho absolutamente convencimento que
já incorri em erros mais graves que meu irmão mais velho e que,
apesar de pertencer à mesma família, a minha cor, sexo e aparência
me beneficiaram. Ninguém poderia suspeitar que aquela menina
“branca, bonita, inteligente, sociável” poderia ser irmã do negro
com problemas de aprendizagem da sala de aula ao lado. Portanto,
não eram as minhas posturas éticas e morais que me tornavam mais
humana, mas sobretudo a minha maior aproximação com o que
seria socialmente aceitável e desejado.
Embora a experiência pessoal com o aprisionamento tenha
contribuído para que desde o início das oficinas desenvolvidas eu
conseguisse olhar muito mais para a dimensão humana das pessoas
privadas de liberdade do que para a dimensão do crime, a fala de
alguns participantes, que evidenciavam a naturalização da violência,
causavam-me desconforto e colocavam em dúvida as minhas
convicções. Acredito que, em parte, talvez porque no início do projeto
não possuía os elementos teóricos suficientes para compreender a
complexidade da educação neste contexto, no qual estávamos
iniciando o desenvolvimento da nossa prática docente. Parecia-me
também que o endurecimento, tensionado pelos participantes,
serviam-lhes para demonstrar robustez diante das promotoras das
ações educativas. Inicialmente os participantes não depreendiam que
estes comportamentos seriam desnecessários no espaço educativo.
No dia 24 de agosto de 2017, na oitava oficina e após quase três
meses do início das atividades educativas, comecei a notar que os
participantes começavam a incorporar e acreditar no acesso à
educação na prisão como um direito e não como uma caridade
ofertada pelas mulheres discentes e docente da UFT que se faziam
presentes fisicamente, rompendo com a rotina e dinâmica prisional,
todos os sábados à tarde. Através de uma roda de conversa, alguns
participantes falaram que as vezes o espaço prisional cria espaços de
(re)socialização, mas quando o preso sai, não encontra oportunidade.
A sociedade não o aceita e o estigmatiza na figura de ex-detento.

194
Em paralelo às atividades de extensão, surgiu a oportunidade
de atuar como alfabetizadora no Programa Brasil Alfabetizado
(PBA), um programa federal em parceria com os municípios e
diretorias de educação na oferta da Educação de Jovens e Adultos.
Pela Diretoria Regional de Educação (DRE), comecei a atuar como
alfabetizadora na Cadeia Pública de Tocantinópolis/TO. Naquela
época, as únicas atividades educativas ofertadas ocorriam às
quintas-feiras por meio do projeto de extensão, com atividades de
leitura e escrita experimentais. Comecei então a ministrar aulas de
alfabetização para três detentos, três vezes por semana no período
vespertino, durante 08 meses. Embora estivesse apreensiva por
“sozinha” embarcar no desafio de alfabetizar adultos privados de
liberdade, ainda sinto os efeitos da minha felicidade no meu
primeiro dia de atuação: 23 de agosto de 2017.
Mesmo com apenas três alunos num espaço que prima pela
disciplina - o que parecia favorável para o desenvolvimento das
atividades - a diferença de idades e de níveis de aprendizagens
foram desafiadoras. Foi árduo promover uma alfabetização que se
internalizasse no período de 08 meses (é possível alfabetizar
alguém em 08 meses?).
Por viver numa cidade pequena, onde a maioria das pessoas
se conhecem, desconhecer a dimensão do crime das pessoas
privadas de liberdade na cadeia pública da cidade é quase
impossível. Permeada de preconceitos, medos e sentimento de
vingança busquei reaver as minhas reais convicções para buscar
ser/me tornar professora para atuar nesse contexto. Contudo, a
alfabetização sempre foi algo que constantemente me tocou.
Continuei tão preocupada com os procedimentos metodológicos e
com a minha prática educativa que, com o decorrer do tempo, o
medo, o preconceito e o sentimento de vingança seguiam se
diluindo em momentos de afeto, admiração e respeito.
Neste tempo, pude vivenciar a íntima relação dos agentes
penitenciários com as pessoas presas, especialmente os
alfabetizandos. Notei muito mais que uma relação de conflito: uma
relação de companheirismo e respeito através de orientações,

195
cuidados, conselhos e conversas. Nestes momentos, rememorava a
minha experiência dolorosa neste espaço e embora o agente
penitenciário representasse a última barreira entre eu e meus
irmãos, eram estes que me possibilitavam entrar na prisão para ter
alguns momentos de convívio nos momentos de visita. Durante a
minha experiência como familiar de preso não conseguia perceber
quanto que o trabalho deste profissional é importante nas prisões.
No dia 31 de agosto de 2017 chegaram como doações da
Diretoria Regional de Educação (DRE) a mobília. Tratava-se da
doação de carteiras, exatas 17 carteiras que limpamos neste dia. Até
então, desde o início desenvolvíamos as oficinas sentados/as no
chão. A partir deste dia as oficinas estavam sendo voltadas para a
prova do ENCCEJA, uma demanda apresentada pelos
participantes. Um dos grandes aprendizados durante a mudança
das oficinas experimentais para a preparação para o ENCCEJA foi
a metodologia que adotamos, a qual envolvia a participação, o
diálogo e a escuta atenta como instrumento metodológico para
reelaborar o projeto de extensão a partir das demandas dos
participantes. Isso foi algo novo para mim. Mesmo a universidade,
com seus conhecimentos, não havia possibilitado tamanha
contribuição para o meu processo formativo.
Em 2018 a oficina foi reorganizada, saímos das oficinas
experimentais para o Clube de Leitura e as Oficinas pedagógicas
junto ao ensino formal. A nova experiência com o Clube de Leitura
revelou-nos a grandiosidade do debate e da escuta atenta. A leitura
das obras atravessava as vozes, os corpos e as expressões dos
participantes. Escutar atentamente o participante que estava com a
fala e olhar para as suas expressões faciais e corporais foi uma das
coisas mais bonitas que a leitura de uma obra me proporcionou
vivenciar. Não se tratava da leitura em si, silenciosa e individual,
que nos impactava e dava vida às obras lidas, mas os confrontos, o
desconforto da diferença de opiniões, o outro que discordava e,
com isso, colocava em dúvida as nossas verdades. Nunca
imaginaria que a educação poderia nos proporcionar um

196
aprendizado tão significativo em tão pouco tempo, sem o sacrifício
de noites mal dormidas e pilhas de textos científicos lidos.
Mas neste período me percebi numa situação de desconforto.
Conhecia a maioria dos participantes do projeto. E os que não me
conheciam, conheciam alguém próximo a mim ou alguém da
minha família. Inicialmente não fiquei incomodada com a nova
realidade. No entanto, com o passar do tempo percebi que de
alguma forma conhecer e ser conhecida anteriormente pelos
participantes prejudicava o meu processo formativo neste contexto.
E durante o desenvolvimento de todo o projeto a insegurança foi
algo bem presente na minha atuação, passando a desejar algumas
vezes afastar-me ao me perceber despida da figura de discente.
Passei então a questionar a minha atuação no espaço prisional:
estou vivendo essas experiências por mim ou pelos meus irmãos?
É realmente neste espaço que desejo atuar? Serei realmente capaz
de atuar num espaço com tamanha complexidade e com tantas
contradições? Não encontrei nenhuma resposta para estes
questionamentos, no entanto, o desejo de continuar foi maior que
o de parar. Talvez isso, por si só, seja uma resposta.
As oficinas pedagógicas junto ao ensino formal desenvolvidas
uma vez por semana durante as aulas regulares, por nós
voluntárias, no Ensino Fundamental (manhã) e Ensino Médio
(tarde), talvez tenham se constituído como as experiências menos
motivadoras. O ensino regular dentro da prisão reproduz a
maneira de organizar as carteiras, os procedimentos
metodológicos, o currículo e as avaliações do sistema de ensino, o
que dificulta a promoção de práticas educativas especificas para
este contexto. Assim, embora através das oficinas pedagógicas
buscássemos promover a autonomia e a emancipação dos alunos,
a sala de aula parecia perpetuar práticas educativas próprias da
prisão, as quais se assemelham com a escola fora dos muros.
No segundo semestre de 2018 saímos da leitura de obras pré-
selecionadas para a leitura de peças teatrais. Anteriormente, as
obras eram lidas no interior da cela e socializada no espaço
educativo. O novo formato possibilitou a leitura das peças teatrais

197
no espaço educativo. No decorrer de toda a minha trajetória escolar
e universitária presenciei pessoas preocupadas com a leitura
coletiva, mas não como os participantes da leitura dramática. Não
se tratava de uma preocupação individual, mas de proporcionar
uma leitura prazerosa para todos/as.
É relevante destacar que numa sociedade tecnológica e em
processo de universalização das comunicações, como a que
vivemos atualmente, os processos formativos, sejam na educação
básica ou na educação superior, em grande parte são mediados por
informações advindas de ferramentas tecnológicas como:
datashow, celular, computadores, notebook, tablete, entre outros.
Seja nos espaços formativos ou não, entrar num espaço sem portar
nenhuma ferramenta eletrônica hoje em dia é quase impossível.
Dificilmente encontraremos um espaço em que todos os sujeitos
não estejam portando celulares e smartphones em suas mãos. Na
prisão, sim! As relações com os presos são estabelecidas através do
diálogo e dos recursos mais simples possíveis: papel, lápis e caneta.
Na leitura coletiva cada participante interpretava um
personagem da peça teatral. Sentados/as em roda, um ao lado do
outro, com o texto sobre a mesa, começávamos a acompanhar a
leitura de cada personagem. Entre um trecho e outro, risos e
olhares. Paramos de olhar para nós mesmos e começamos a olhar
para o outro. A privação de ferramentas tecnológicas nos
possibilitou criar condições concretas para olhar/escutar
atentamente quem estava com a palavra. Sentar em roda para
conversar sobre assuntos diversos, tendo uma peça teatral escrita
há 2500 anos como única ferramenta mediadora, não se constitui
como algo fantástico nos tempos de hoje?
Uma das coisas mais difíceis, ao meu ver, num processo
formativo é refletir sobre o exato momento que se está vivendo,
embora necessário. Sair de dentro da bolha das experiências,
buscando visualizar e analisar tudo o que se está experimentando é
algo extremamente difícil, talvez impossível. Porém, o olhar atento
para com o outro nos possibilita apontar alguns sentidos, mesmo que
estes sejam apenas o reflexo de estrelas que já não existem no céu.

198
Andanças de uma preta mulher

Luciana Conceição da Silva


(Graduanda no curso de Ciências Sociais da UFT e
extensionista no projeto)

Tenho 32 anos, sou preta e estudante da Universidade Federal


do Tocantins no curso de Ciências Sociais.
Para começar, acho que toda a minha vida, ou talvez boa parte
dela, passei sentindo medo. Vim de uma família de quatro irmãos,
três mulheres e um homem, vivíamos constantemente com a
violência doméstica em nossa casa, meu pai tinha problemas com
álcool e descontava toda sua raiva na minha mãe. Muitos
relatavam, principalmente os mais próximos, que eu parecia uma
criança triste, pois chorava constantemente. Hoje entendo que o
medo me fazia desta forma, tinha medo de perder minha mãe, não
éramos felizes, nossa família vivia de aparência.
Quando tinha seis anos de idade meus pais se separaram, não
foi legal, mas me senti mais aliviada. Porém, ainda vivia com este
sentimento de medo, que me seguiu por boa parte de minha vida e
me impactou em muitos aspectos. No ensino fundamental sempre
fui uma boa aluna, quando minha mãe era chamada na escola as
reclamações dos professores eram de que eu não falava muito e não
participava das aulas, tinha muita vergonha. Minha mãe se
esforçava muito para pagar a escola, e eu achava que deveria fazer
jus a todo o seu esforço. Ela nunca havia trabalhado e tinha parado
os estudos no ensino fundamental no oitavo ano, resolveu então
voltar a estudar e achei magnífico! Orgulhava-me dela, uma
mulher sozinha, trabalhando, estudando e cuidando de quatro
filhos. Mas não demonstrava meus sentimentos por ela, tinha
vergonha, algo me travava quanto a isso, talvez fosse toda a
violência que vivi em casa. O lugar que deveria ser de segurança,
amor, entre outras coisas, no final das contas não era bem assim.

199
Quando falo de violência, não quer dizer que meu pai nos batia, ele
nunca tocou a mão em mim, porém havia a violência simbólica que
nos marcou até hoje, a mim e a todos meus irmãos.
Cresci, virei adolescente! Mudou algumas coisas, encontrei no
esporte a fonte de minha alegria, sentia-me bem quando estava com
minhas colegas, mudei em algumas coisas, falava mais, não tinha
mais tanta vergonha. Ainda não tinha me encontrado, era como se
estivesse presa a algo dentro de mim, tinha sentimentos retraídos,
fechava-me dentro de mim mesma. E, pensando bem, vivendo essa
experiência na prisão me vem à mente: será que às vezes não nos
prendemos dentro de nós mesmos? Não digo que se compare a
alguém que está em privação de liberdade, mas as vezes estamos
presos em nossos sentimentos e pensamentos. Inclusive, o que mais
ouvia nas rodas de conversas na Cadeia Pública de Tocantinópolis
era que muitos deles conseguiam refletir sobre suas vidas e
repensar tudo o que fizeram de errado.
Por um tempo não tive lar fixo, pois sempre me mudava ou ia
morar em algum outro lugar, devido a problemas financeiros de
minha mãe. Contudo, teve um tempo, já quando adulta, que me
senti por alguns anos em um lar novamente, foi quando casei e tive
a minha filha. Clara é um dos motivos para acordar, lutar e ser
alguém melhor todos os dias. Estar na universidade também me
fez abrir os olhos para muitas coisas, me desconstruir de muitos
preconceitos que tinha. Hoje sou uma mulher mais forte.
O projeto abriu minha mente para muitas coisas, não me
imaginava participando de algo tão rico assim. Ainda bem que
parei a professora Aline assim que soube e pedi para participar.
Estou no projeto de Leitura na prisão desde o seu início, não foi
fácil. Quando entrei lá não tinha medo, porque já tinha vivido lado
a lado com a violência. Antes que pense e faça a pergunta para si
mesma: como é ser mulher e estar em um lugar majoritariamente
composto por homens? Respondo-te que como mulher, em
qualquer lugar, estará correndo risco, somente pelo fato de ser
mulher. Mas tenho que ser sincera, nunca me imaginei entrando
num lugar como aquele. Na verdade, nós seres humanos aqui fora

200
nem percebemos que aquilo existe, simplesmente porque não
queremos saber, pois tudo que desobedecer a ordem em nossa
sociedade tem que ser banido. Mas deixa eu te dizer um segredo:
eles são seres humanos também como nós. Erraram e estão
pagando por isso, e nós como pessoas temos que fazer nossa parte
para ressocializá-los, possibilitando que voltem para a sociedade
novamente. Isso me faz lembrar a leitura que fizemos em nosso
grupo do livro “A metamorfose” de Franz Kafta, um dos melhores
debates na nossa roda de conversa, ao meu ver. Lembrei do
significado de metamorfose, que quer dizer MUDANÇA. Olha
quão magnífica é essa palavra, a força que ela tem para esses
participantes e inclusive para todos nós: o direito de mudar.
Olhando para trás, relembrando de tudo que já vivi: mudei tanto,
chorei, sorri, fiquei triste, quase desisti, uma mistura de
sentimentos que não cabia em mim. Agora se coloque no lugar
dessas pessoas privadas de liberdade, que sabem que cometeram o
crime e estão pagando por isso. Não estou dizendo que eles são
bonzinhos, mas todos nós erramos de alguma forma. A educação e
a leitura são uma das formas de contribuir na melhora de muita
gente, pode não ser a solução, mas já é um caminho pelo menos.
Para finalizar, marcou-me a fala de um dos participantes que
disse mais ou menos assim: “O preso se compara a um inseto, como
uma barata. As pessoas têm nojo da gente e nos querem longe.
Porque quando a gente está lá fora a gente não pensa e nem reflete
sobre a nossa realidade.” Profundo, né? Eles se perceberam como
insetos. Quantas vezes nós mesmos, aqui fora, não nos sentimos
um inseto? Eu como mulher negra não sou ouvida, assim como
muitas outras mulheres também não são. Somos menosprezadas,
sofremos racismo, machismo e somos mortas todos os dias.
Querem-nos longe também, porque preta universitária não é bom,
é mais uma para a concorrência. Eu não quero ser uma barata, não
quero ser calada. Todos nós queremos ser livres. Que as pessoas
privadas de liberdade, enquanto cumprem suas penas, possam
pelo menos ter o direito de serem livres nessas leituras.

201
202
Juntos transformamos

Marco Antônio Pereira Lima


(Participante do projeto)

Tenho 45 anos, dos quais 30 vivendo no mundo da escuridão,


ou seja, no crime. Já fui preso algumas vezes e já estudei no sistema
fazendo a sétima e oitava série e o primeiro e segundo ano. Bem, eu
cheguei a uma conclusão: esta vida não leva ninguém a lugar
nenhum, somente à morte e à cadeia. Eu penso que Deus tem um
propósito na minha vida e como Deus está sendo generoso através
deste projeto de extensão universitária da UFT, a professora Aline
e as voluntárias, tiveram um grande incentivo para minha decisão.
Este projeto, afirmo, tem um grande papel, muito significativo, na
minha vida. Através dessa leitura decido tirar o crime da minha
vida, estou muito feliz por ter esta chance. Vou ser uma nova
pessoa, vou trabalhar e ver meus dois netos crescerem e viver com
dignidade. Só tenho a agradecer a Secretaria de Educação e os
demais. E pedir que ajude aqueles que estão precisando de vocês.
Nós aqui precisamos de ajuda para sairmos deste buraco e não
vamos conseguir sozinhos, precisamos de ajuda urgente. Podemos
ser alguém no futuro, mas para isso precisamos da ajuda da
sociedade.

203
204
Mudando as escolhas

Marcos Vinícius Pereira Soares1


(Participante do projeto)

Eu tinha parado de estudar há algum tempo atrás por escolha


minha mesmo, mas depois que fui privado de liberdade estou
tendo uma nova oportunidade de terminar o ensino médio aqui
dentro dessa instituição, na qual tem um projeto de leitura que eu
participo também, porque não tinha o hábito de ler, mas agora eu
estou tendo. Espero que esse projeto não pare, porque tem muitas
pessoas que precisam dele. Hoje eu sou muito grato por tudo isso
que está acontecendo aqui na Cadeia Pública de Tocantinópolis e
vou levar muitas coisas boas daqui, como ser mais prestativo com
o próximo e o hábito de estudar.

1 Foi aprovado no Encceja de 2018, concluindo o Ensino Médio.

205
206
Dialogando com a ficção:
reflexões e encontros com a literatura

Marilene Soares da Silva


(Professora no curso de Educação Física da UFT e
colaboradora no projeto)

O objetivo deste texto é registrar nossa experiência com a


leitura de textos literários propostos pelo projeto de Clube de
Leitura na Cadeia Pública de Tocantinópolis. O referido projeto
tem como objetivos: criar um clube de leitura e promover ações de
incentivo à leitura, com vistas à remição de pena.
Quero refletir sobre essa experiência apoiando-me em Larrosa
(2005, p.21)1, quando evidencia que:

experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que
se passa, não o que acontece, ou o que toca. Uma vez que a cada dia se
passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece.
Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos
aconteça. Walter Benjamin, em um texto célebre, já observava a pobreza de
experiências que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas
coisas, mas a experiência é cada vez mais rara.

Assim, mesmo com a experiência cada vez mais rara, é


possível asseverar que a experiência de participar do Clube de
Leitura patrocinou-me vários encontros com palavras de pessoas
que estão privadas de liberdade, mas que não estão privados de
sentir, de se emocionar com a palavra própria como também com a
palavra do universo ficcional.
Acredito na possiblidade que o texto literário tem de propiciar
condições de reflexão na vida do sujeito. Isso porque a realidade

1LARROSA, Jorge Bondía. Notas sobre a experiência e o saber de experiência.


Revista Brasileira de Educação, 2002. Tradução de João Wanderley Geraldi.

207
posta nos atos de fingir, próprios do texto ficcional, propiciam
condições para o sujeito pensar e avaliar sua condição humana, seu
estar. Assim, quando surgiu a oportunidade de participar do
projeto em exposição, fiquei empolgada, diante da oportunidade
de vivenciar a experiência da leitura do texto literário, num
ambiente de privação de liberdade e interrogar-me: que marcas,
que reação, o texto literário pode provocar nesses sujeitos?
Foram muitas marcas, reações, que pude presenciar nas rodas
de conversas sobre os livros indicados. A obra Metamorfose, de
Franz Kafka, provocou sentimentos variados nos sujeitos privados
de liberdade no decorrer de sua leitura. Dessa forma, posso
assinalar que a obra conseguiu conversar com a vida dos sujeitos
leitores que participam do projeto.
Nessa experiência literária, vislumbramos a leitura do livro: O
Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry. A metodologia de
trabalho consistia na leitura da obra e comentários dos sujeitos. Eles
perceberam muitos vazios2 dessa obra, empreendendo reflexões
inusitadas e percebidas com a lente do coração. Legitimando uma
frase clássica dessa obra: “Só se vê bem com o coração, o essencial
é invisível aos olhos”.
Nessa experiência, cabe ressaltar a obra Barrela, de Plínio
Marcos, escrita em 1958, censurada por 21 anos. Essa ainda é bem
contemporânea, uma vez que as situações narradas trazem muitos
indícios do que ocorre no sistema carcerário brasileiro. Esperei,
com ansiedade, a discussão dessa obra, pois acreditava que seria
bem intensa, uma vez que a obra metaforiza o universo prisional.
Mas, percebi uma certa apatia dos sujeitos. Fiquei com
interrogações e pensando que essa apatia que visualizei ocorreu
porque eles vivenciam, de certa forma, situações descritas na obra,

2 Vazios do texto proposto por Iser Wolfgang. Para esse autor, “os vazios dos
textos ficcionais orientam contra o pano de fundo da linguagem pragmática,
contribuindo para a desautomatização das expectativas habituais do leitor”.
(p.109) - ISER, Wolfgang. A interação do texto com o leitor. In: A literatura e o
leitor: textos de estética da recepção. Trad. e Org. Luiz Costa Lima. (Coleção
Literatura e teoria literária; v. 36) 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

208
e assim sendo, não chamam tanto a atenção dos mesmos. Mas vale
ressaltar que registramos aqui impressões pessoais de indícios
percebidos durante as discussões das obras3.
Escrever sobre essa atividade, sob o tapete da reflexão
viabiliza, novamente, um encontro com os saberes dos sujeitos
leitores privados de sua liberdade, constitui, portanto, possiblidade
ímpar de aprendizagem. Isso porque faz reviver as falas e os
sentimentos relativos às obras trabalhadas. Assim, fica a impressão
de que as leituras literárias constituíram experiências dotadas de
significação na vida desses sujeitos. Isso pode ser dito, tendo em
vista que alguns apresentaram dificuldades para entender a obra
Metamorfose, uma vez que essa foi uma das primeiras lidas.
Também porque, inicialmente, parecia que alguns sujeitos estavam
participando apenas dada a possibilidade da remição da pena. Mas
no decorrer do trabalho esses mesmos sujeitos apresentaram
afinidades com a leitura. Ouso inferir que a leitura passou a fazer
parte do universo deles.
Mediante o exposto, participar do Clube de Leituras na Cadeia
Pública de Tocantinópolis foi para mim uma experiência com
sentido etimológico dessa palavra, que é experimentar e provar.
Provar as letras, as cores e as imagens tecidas através das reflexões
das leituras literárias.

3 Cumpre assinalar que, nessa experiência, foram lidas outras obras.

209
210
Abrindo oportunidades e quebrando preconceitos

Millena Silva Ramos


(Graduanda no curso de Educação Física da UFT e
extensionista no projeto)

Faço o curso de Educação Física e tomei conhecimento do


projeto educativo na prisão a partir de uma amiga que cursa
Ciências Sociais e que participava dele. Ao me falar sobre o projeto,
achei muito interessante e tive a ideia de complementar com o meu
curso, dando aulas de Educação Física ou algo que tivesse o mesmo
contexto adaptado para a cadeia. Interessei-me muito, por sempre
simpatizar com as causas sociais, além de ter achado o projeto
interessante e lindo. A Professora convidou-me para ver como
funcionava o projeto e se eu gostasse poderia participar, e assim fiz,
mesmo não sendo possível complementar com o contexto de
Educação Física a princípio.
A sociedade mistifica e rotula muito as pessoas que estão
presas, e nós acabamos reproduzindo isso ao chegar numa prisão
já com um pensamento formado, e comigo não foi diferente. Ao
chegar na cadeia para participar do projeto, fui de coração aberto
para adquirir mais essa nova experiência, mas com um certo
preconceito achando que seria difícil a convivência com os presos.
Porém, ao chegar no Clube da Leitura, vi que a realidade era
totalmente diferente e que a convivência com os presos
participantes do projeto era tranquila.
O projeto é bastante enriquecedor, não só para os presos
participantes, mas também para nós que participamos como
mediadoras das leituras. Cada obra lida se torna uma viagem
incrível para todos, porque ao debatermos ao longo das leituras
vemos o quanto é libertador para os presos a possibilidade de sair
daquele lugar, ao menos pela imaginação. A gente sente um pouco
a realidade deles e o quão é difícil para eles passarem anos dentro

211
de uma unidade prisional sem conviver com outras pessoas senão
os outros colegas de cela e os funcionários.
Ler as resenhas feitas pelos participantes é também muito
gratificante, sobretudo quando eles escrevem o quanto são felizes
por participar do projeto ou quando eles agradecem pela
oportunidade de se libertarem ao menos através da leitura. Além
disso, notar a evolução deles a cada resenha escrita é estimulante,
pois muitos têm dificuldades para escrever por virem de uma
realidade em que a educação básica é precária ou, em alguns casos,
por terem optado pelo “mundo do crime” deixando de estudar.
As obras que lemos são muito boas, são leituras que nem na
educação básica eu me atentaria para ler e permitem aos detentos
reflexões e conhecimentos necessários, sobretudo, levando em
consideração suas condições.
Participando do projeto pude perceber, principalmente pelos
relatos dos detentos, que o sistema prisional brasileiro, apesar das
mudanças, é muito falho. É por isso que cabe a reflexão sobre as
punições, se são justas ou não, e se a prisão é feita para punir ou
para reabilitar. Percebemos que realidade da maior parte das
pessoas presas acontece de forma marginalizada, dentro e fora da
prisão, sendo também escassas as oportunidades de trabalho para
um ex-detento ao voltar para a sociedade. O Brasil necessita de um
sistema que de fato invista na reabilitação, não só dentro da cadeia,
mas fora também, para que ao voltar a conviver em meio à
sociedade o ex-detento se veja como um cidadão digno, assim como
todos os outros, e não opte em voltar para o crime novamente.
Desconstruí muito a imagem que eu tinha antes de entrar
numa prisão e conviver com presidiários. O projeto me serviu para
olhar sem julgamentos os outros, não só os detentos, pois só sabe
da sua realidade quem realmente a vive.
O Clube da Leitura é um projeto muito rico em experiência de
humanização, pois ali dentro convivendo com os presos e
compartilhando um pouco de suas realidades, temos a oportunidade
de nos humanizar, e isso é uma necessidade diária, principalmente
com a conjuntura atual do nosso país. Eu sou muito feliz e grata em

212
participar desse projeto, pois o mesmo possibilita-me adquirir uma
experiência que além de enriquecer a minha vida acadêmica, servirá
para minha vida social, pois cada vez mais aprendo a ser humana
participando desse projeto. OPORTUNIDADE é a palavra que
define esse projeto, porque com ele os presos têm a oportunidade de
se libertarem de alguma forma, e tem a oportunidade a qual não
encontrariam fora da prisão após serem libertos. Oferecer a
oportunidade de conhecimento para pessoas que são
marginalizadas pela sociedade se torna um gesto humano muito
lindo e por isso eu dou os meus parabéns para todos que fazem com
que esse projeto dê certo!

213
214
Picolés, livros e novos caminhos

Ricardo da Silva Soares


(Participante do projeto)

Tenho 21 anos, sou solteiro e estudante. Comecei a estudar no


Giuliano Moretti, lá que eu vim a entender tudo sobre a vida da
educação. As amizades que eu tive lá eram super legais, mas com
certo tempo fui me aproximando das falsas amizades, que me
levaram para o mau caminho e acabei me afastando da escola. Eu
gostava muito da minha professora Marisa de matemática, super
legal ela. Aí parei de estudar, foi minha maior burrice. Pô, mas aí
fui crescendo, sabendo mais das coisas e fui ficando na minha.
Trabalhava fazendo uns bicos para não ficar sujo na cidade, vendia
picolé, achava legal. Aí entrei sem querer no mundo ilícito, mas
Deus é comigo, um dia tudo vai mudar. Fui preso por causa dos
outros, estou aqui hoje pagando os meus erros.
Quando entrei na Cadeia Pública de Tocantinópolis descobri
uma leitura muito importante. Coloquei meu nome, fui
matriculado no Clube da Leitura, lá li vários livros, como o Santo
Inquérito, a Guerra dos Sexos, O Casamento do Pequeno Burguês
e outros, muito boas as leituras! Estou aprendendo as pontuações,
bom isso de ler na frente das pessoas, ouvir. E entendendo tudo
através da leitura.

215
216
Amor, luta e esperança: muito obrigado!

Ronan Coelho Conceição1


(Participante do projeto)

Olha, estes são alguns dos grandes desejos que tenho:


1º - Que a mulher que eu amo venha a ser a minha esposa o
quanto antes; 2º - Ter a minha liberdade de volta, o que eu acho pouco
provável que venha acontecer; 3º - Que Deus derrame o seu amor
sobre o coração das pessoas, para que se encham os quatro cantos do
mundo de pessoas como essas que lutam, incansavelmente, no intuito
de ajudar o próximo. Pois eu posso lhes afirmar, com toda certeza: que
bem que estão fazendo para mim e para todos os que estão sendo
beneficiados com este projeto de valor inestimável.
Eu posso lhes afirmar que não tenho, e sei que nunca vou ter,
palavras que sejam suficientes para agradecer. Por aqui eu já tive
grandes conquistas, como: a conclusão do ensino fundamental, já
conclui também o primeiro ano do ensino médio e acredito que em
2019 termino o ensino médio. Então, só me resta agradecer. Obrigado!
E que Deus derrame muitíssimas bênçãos na vida da Dona Aline e na
vida de todas as pessoas que ela conseguiu comover e trazer para
junto dela e, assim, unirem forças para lutar em prol do próximo e
proporcionar uma melhor perspectiva de vida. Ou seja, revitalizando
as esperanças dessas pessoas que estão privadas de liberdade.
IMPORTANTE: eu não posso deixar de lembrar de uma
importante conquista que foi conseguir que nós que estamos presos
pudéssemos ter acesso a prova do ENCCEJA, pois essa prova foi uma
porta aberta para eu passar do ensino fundamental para o médio. Pois,
com a idade que eu tenho, eu já não tinha mais esperanças de que

1Foi o primeiro aluno da unidade a ser aprovado no Encceja, em 2017, concluindo


o Ensino Fundamental.

217
ainda poderia chegar tão longe nos estudos e em conhecimento. Sei
que não é o bastante, mas mais uma vez eu preciso falar: Obrigado!

218
Esporte, trabalho e estudo:
interrupções e possibilidades

Ruan de Sousa Pinto


(Participante do projeto)

A minha trajetória escolar foi muito importante para mim,


porque nesse tempo eu aprendi muitas coisas, conheci muitas
pessoas e fiz amigos. Nesse tempo tirei notas boas e ruins, mas,
graças a Deus, nunca reprovei. O que me aproximou da escola foi
a vontade de aprender e o que eu mais gostava era de jogar no time
da escola nos jogos estudantis. Só que para jogar no time tinha que
ter notas boas e ser um bom aluno para sempre estar no time.
O que me distanciou da escola foi ter de trabalhar. No segundo
ano do ensino médio tive que deixar a escola para realizar um
sonho que era servir o exército e depois de um ano eu saí do
exército e tive que continuar trabalhando, o que dificultou no
término dos meus estudos. Três anos depois voltei para a escola e
estudei do segundo até o terceiro ano, mas não conclui o ensino
médio. Mas esse projeto que o sistema prisional criou para
podermos estudar, ler mais, nos ajudou muito.
O clube da leitura é muito importante para mim e para todos
os que participam desse projeto. É muito bom para nós
esquecermos os problemas do dia a dia, serve para a gente
aprender mais a cada dia e melhorar a leitura. Me ajudou muito a
perder o nervosismo de ler para outras pessoas. Tenho muito a
agradecer as pessoas que fizeram com que esse projeto do Clube de
Leitura fosse adiante. As educadoras desse projeto nos ajudam
muito na nossa leitura e para ajudar na nossa remição de pena. Só
tenho a agradecer a todos os que fizeram isso acontecer.

219
220
De insetos a pontuações:
muitas aprendizagens

Tácio Pereira Marques


(Participante do projeto)

Estudei até o primeiro ano do ensino médio, nesse tempo eu


gostava de frequentar a escola, mas acabei largando os estudos por
desinteresse mesmo. Daí fui preso em 2017, chegando na cadeia
surgiu o projeto dos estudos, do Clube de Leitura. Foi quando
resolvi voltar a estudar e a me interessar novamente pela leitura.
Na escola já estou terminando de concluir o segundo ano do ensino
médio e li vários livros nesse tempo que estou privado de
liberdade, por meio do Clube de leitura. Com isso eu aprendi muita
coisa que eu não sabia e está sendo bom para mim, porque estou
aproveitando o tempo perdido que estou preso.
A metamorfose foi um dos livros que me chamou mais
atenção, pelo fato do homem ter virado um inseto, aí ninguém
descobriu que inseto era esse, com isso gerou muitas discussões.
Além das remições, o projeto é muito bom para desenvolver a
leitura, é muito importante, pois agrega conhecimentos para nós
detentos. Queremos que ele continue, porque a gente gosta muito.
Além do projeto distrair muito a gente, porque é uma forma da gente
se distrair e se socializar tranquilamente com as outras pessoas.
Quando eu sair daqui vou lembrar desse projeto como uma
coisa boa que aconteceu aqui dentro, que vai ser uma
aprendizagem para a vida toda, pois o projeto ajudou a
desenvolver a leitura, pelo fato de eu não saber as pontuações.

221
222
Sentir-se bem na cadeia?

Taila Silva Alves


(Graduanda no curso de Pedagogia da UFT e
extensionista no projeto)

Minha experiência com o projeto do Clube da Leitura é algo


que aos poucos foi me cativando e creio que cativou todas nós que
participamos do projeto. Essa rica experiência nos proporciona
diversos saberes. É bastante gratificante saber que, de alguma
forma, você pode ajudar alguém que está privado de liberdade.
Pois sabemos que a educação dentro das unidades prisionais ainda
representa um grande desafio, e diante da necessidade de
minimizar os efeitos prejudiciais na privação de liberdade, tive a
oportunidade de participar do projeto.
Esse projeto ajuda e educa tanto quem auxilia em sua
execução, como quem participa. Ao dar suporte aos que
necessitam, aprendemos muito com os participantes do Clube de
Leitura. Cada homem ali tem uma experiência de vida, cada qual
tem sua história, porém possuem objetivos em comum: sair dali e
ser alguém melhor. De certa forma serão, assim eu creio. O projeto
está proporcionando-lhes certa liberdade ali dentro da unidade
prisional, dando-lhes a oportunidade de aprender mais, pois estão
ali privados de sua liberdade e não de sua dignidade humana.
Sabemos que estar naquele lugar já não é nada agradável, e os
efeitos que essa condição lhes causa são visíveis. É perceptível a
vontade da grande maioria ali presente em aprender, obter novos
conhecimentos e experiências. Mas não são somente eles que
aprendem com a gente, a gente também aprende muito com eles,
cada qual tem seu saber diferente.
É gratificante notar a evolução dos participantes desde que
passaram a fazer parte do projeto. Fico feliz ao perceber que, por
mais que a maioria não tenha frequentado a escola ou não tenha

223
tido a oportunidade de estudar, contribuem bastante nas
discussões, com reflexões bastante plausíveis, fazendo com que a
gente se encante e permaneça firme cada vez mais, pois vemos a
dedicação e o esforço de cada um.
Com esse projeto espero que possamos contribuir diretamente
para uma mudança de comportamentos e ações dos participantes
por meio da leitura. De certa forma, estamos ajudando essas
pessoas a ter um retorno ao meio social, pois os mesmos, cedo ou
tarde, terão uma segunda oportunidade para fazer diferente. Além
disso, podem ter, de certa forma, uma qualificação a mais para
atuação no mercado de trabalho nos dias de hoje.
Após o meu convívio com o Clube da Leitura tive
conhecimentos de muitas coisas que pessoas do meu meio social se
equivocam, digamos que até mesmo eu como pessoa tive um
pensamento diferente do que tenho hoje referente ao sistema
prisional, como funciona algumas coisas lá dentro. A gente entra no
projeto com aquele pensamento de participar para se inserir em algo
diferente, ou mesmo por questões de pesquisa para determinado
trabalho, etc., mas, com o convívio no grupo, a gente passa a
frequentar com prazer, com vontade, sem ter aquele pensamento de
dizer que vai porque tem quer ir. Há certas coisas que nos cativa de
tal forma, que não há nada que tire seu ânimo de estar ali, por mais
que num determinado momento você não esteja num momento
bom, você vai para, de certa forma, espairecer e acaba dando certo.
É gratificante estar num lugar que você se sente bem, por mais que
seja um espaço diferente do nosso convívio diário, saber que estamos
ajudando pessoas a mudar seu comportamento para melhor através
da educação, pois a educação liberta!

224
O prazer da leitura no desafio humano de seguir aprendendo

Thátila Ferreira Morais


(Pedagoga formada pela UFT e voluntária no projeto)

O hábito da leitura é, sem dúvida, uma das principais portas


que possibilitam a transformação de mentes, corações e lugares,
com vistas à construção da autonomia e do senso crítico e reflexivo
de todas as pessoas, independentemente da situação ou lugar em
que se encontram. Desta forma, é possível dizer que fazer parte dos
debates reflexivos juntamente com os participantes do Clube de
Leitura da Cadeia Pública de Tocantinópolis trouxe-me
significativas aprendizagens, desde aquelas relacionadas às
ponderações advindas das obras compartilhadas por todos até o
próprio processo de leitura na prisão.
Dentre algumas destas reflexões, destaco a importância da
educação nos espaços de privação de liberdade e o rico
envolvimento do grupo com as obras postas para leitura. É
importante dizer que mesmo sabendo que o ambiente prisional é,
historicamente e por natureza, opressor, que reprime o detento ao
comando de uma estrutura autoritária e rígida rotina, os momentos
de leitura e reflexão em grupo evidenciam, de forma prática e
concreta, que todos naquele espaço onde se encontram
temporariamente podem ainda viajar livremente pela imaginação
através das leituras daqueles livros. Isso é possível perceber
claramente quando consideramos o olhar e o envolvimento por eles
destinados à leitura, bem como o esforço para interpretá-las e
apropriar-se das histórias, nelas mergulhando e sempre as
trazendo como reflexão da própria vida.
Mesmo que alguns tenham relatado algumas vezes a
dificuldade de entendimento das obras, os progressos revelam o
aumento em termos de autoestima em cada um deles. A forma
como foram organizados os encontros e socialização das leituras,

225
faz com que os participantes se sintam com mais capacidade de
reflexão, pois são destinados espaços de vez e voz para cada um se
expressar da forma como querem, livremente, sem julgamentos
e/ou repressão de suas falas.
Tudo isso me faz acreditar e afirmar que a leitura, quando
compartilhada, incentivada, planejada e trabalhada com este grupo
de pessoas privadas de liberdade, possui verdadeiramente o poder
de estabelecer e de promover múltiplas ligações entre os saberes de
todas as naturezas, valorizando-os e respeitando-os de forma a
promover a disseminação dos conhecimentos produzidos
historicamente e confrontando-os com os conhecimentos populares.
O processo de escolha das obras, leitura, debate e produção
escrita das resenhas sobre os textos lidos, mostraram que apesar de
muitos deles nunca ter lido um livro completo antes da prisão,
todos ali se entregaram e se envolveram com a proposta, de forma
a somar positivamente com as socializações. Fato este que mostra
como o tempo destinado por eles para estarem no Clube de Leitura,
todos juntos, sem distinção alguma, com o propósito de aprender
algo novo, relaciona-se com a necessidade humana de seguir
aprendendo sempre.
Contudo, percebi o quanto é grande o desafio de motivar o
prazer pela leitura. Apesar disso, é uma das tarefas mais
gratificantes que pode existir, principalmente quando se cria no
grupo um clima de cumplicidade e de confiança. Isso foi se
construindo gradativamente e os momentos de partilha das leituras
das obras tem se tornado cada vez mais prazerosos e envolventes,
pois a partir disso se iniciou o processo de autoconfiança em cada
um dos componentes do grupo.

226
Novas leituras, novos horizontes

Welton Osório da Silva


(Participante do projeto)

Bom, tudo começa com as oportunidades que eu não tive


antes. Tinha muita dificuldade em estudar porque com 12 anos sai
de casa e fui trabalhar. Nesse período foi que entrei no crime e aí
que tive mais dificuldade para estudar. Era só coisa errada, até que
fui preso em 2013 e estou até hoje.
Foi quando tive a oportunidade de participar dessa oficina de
leitura e está sendo muito bom para mim, estou aprendendo muitas
coisas que não conhecia e tenho mais facilidade de conhecer hoje.
Gosto muito desse projeto que nós temos aqui na Cadeia Pública
de Tocantinópolis, um projeto que me ajuda a ter mais vontade de
estudar. Mas agora, além de estudar na EJA, estou no projeto do
livro, são muitas oportunidades que estou tendo aqui nesse lugar.
É muito ruim estar preso, mas tem as coisas boas do projeto, do
livro e a escola, é muito aprendizado para mim. Quando eu sair
vou continuar lá fora a ter esse pensamento que hoje tenho depois
que tive essa oportunidade. Gosto muito de ler hoje, antes não
gostava, mas também nunca tinha tido a oportunidade que tenho
hoje. São muitas coisas que mudaram na minha vida, sou outra
pessoa, totalmente diferente, e um dos motivos é a leitura que faço.
Todos os sábados nós nos reunimos na sala de aula para ler um
livro e depois fazer o resumo. Gosto de tudo do projeto, nem tenho
palavras para agradecer a oportunidade que vocês me deram.
Muito obrigado.

227
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Privado da liberdade, livre para aprender

Willian Torres Oliveira


(Participante do projeto)

Apesar de estar privado de liberdade, eu me sinto livre para


aprender. A cada dia que estamos no Clube da Leitura venho me
libertar e me expressar de forma que nunca tinha me expressado.
Então só tenho a agradecer as professoras e estagiárias que tem
total paciência conosco. E que esse projeto não venha a acabar,
porque isso está significando muito para mim.
A minha vida agora tem um significado porque estou
aprendendo a conviver com situações que eu não tinha capacidade,
como a interagir e dialogar. Então venho aprimorando a cada dia
que passa. Mas tem pessoas que não acreditam na recuperação de
pessoas como nós privados de liberdade. Mas não é assim, porque
temos a capacidade de aprender e conviver normalmente na
sociedade, porque as oficinas que participamos tem a total
responsabilidade de nos transformar em pessoas melhores. Eu sou
muito grato com o que ganhei de conhecimento.

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O que trará o porvir?

Aline Campos

Logo que comecei a trabalhar em prisão um estudante me


orientou: “Professora, aqui a senhora vai ouvir muitas histórias, quase
todos vão se dizer inocentes. Mas não duvide de ninguém”. Levo isso
como lema de escuta, não por ingenuidade, mas porque não
compete ao educador que atua no sistema prisional julgar as
condutas passadas de seus alunos. Isso é função da justiça, e se ela
é cega, que dirá nós? Interessa-me o que posso fazer/provocar, em
termos educativos, nesse espaço. E a educação tem-se revelado
potente na prisão, nas suas mais diversas modalidades.
O ensino formal escolar apresenta-se como possibilidade de
retomada das trajetórias escolares interrompidas, fornecendo as
certificações necessárias para avançar em melhores possibilidades
de emprego. Entretanto, vemos um grande desinteresse por parcela
da população carcerária em aderir e, sobretudo, acompanhar essas
atividades. Suspeitamos que uma das razões do desinteresse seja a
reprodução do modus operandi da escola, da qual eles outrora já
evadiram.
O ensino superior à distância é uma experiência que está por
ser iniciada em 2019, porém que já está surtindo efeitos positivos.
Seja no maior envolvimento dos alunos diretamente beneficiados
com a ação, quanto na repercussão entre os demais que já criam
expectativas para poderem ser os próximos a ingressarem no
ensino superior. No entanto, trata-se de uma empreitada que, sem
dúvida, revelará inúmeros desafios.
O Clube de Leitura tem nos parecido potente por diversas
razões. Algumas delas já foram destacadas, tais como o
desenvolvimento da habilidade de leitura e escrita, o envolvimento
e compromisso, e o aumento na capacidade de reflexão e
posicionamento crítico. Mas vale destacar ainda que do primeiro

231
semestre para o segundo tivemos um aumento no número de
participantes e de resenhas produzidas. Além disso, chegamos a
trabalhar com a capacidade máxima que comporta a sala, tendo de
criar lista de espera. A menor parte faltava esporadicamente e foram
pouquíssimos os que abandonaram o projeto definitivamente.
Na avaliação final, após um ano de projeto, os participantes
afirmaram estarem participando de algo que nunca antes tinham
vivido. A disposição em roda para debater sobre um livro, a leitura
compartilhada, o trânsito entre falar e ouvir, eram todas situações
novas. No início era constante as sobreposições de falas, o
desinteresse pelo que o outro tinha a dizer e por isso afirmaram que
não só aprenderam a ler e escrever, mas também a ouvir. Num
ambiente onde celulares são proibidos, pudemos nos conectar uns
aos outros e a uma narrativa literária.
No Clube de Leitura, lemos e escrevemos. Nestas práticas,
transitamos entre o individual e o coletivo. Obras literárias foram
individualmente lidas nas celas e depois coletivamente em roda,
mas em ambos os momentos compartilhamos nossas diferentes
leituras, por meio do diálogo nas rodas de conversa. Após a leitura
de cada obra, os participantes escreviam suas resenhas, as quais
eram lidas pelas graduandas extensionistas e posteriormente por
mim, que na sequência as devolvia para que fossem reescritas. De
certa forma, as escritas inicialmente individuais, convertiam-se em
produções também coletivas. Nesse vai e vem entre o eu e o nós, o
incompreendido foi transformado em compreendido e, assim,
aprendemos juntos.
Lamentamos que, mesmo com todos os nossos esforços, o
Clube de Leitura ainda seja excludente, de certa forma. Em parte,
quando falta espaço e não podemos acolher todos os interessados,
mas também porque os que não sabem ler não tem a possibilidade
de participar. Como as vagas são limitadas, esse acabou por ser um
dos critérios de seleção. É justo? Paulo Freire já nos alertava para o
fato de que muito antes da leitura da palavra, já existe a leitura do
mundo. Mas a recomendação 44 do Conselho Nacional de Justiça,
que nos baseamos para estruturar essa proposta inicial, tem a

232
compreensão de leitura no seu sentido mais restrito. Isso não nos
impede de nos inquietar, até porque é a inquietação que move a
busca por novos fazeres. Poderíamos pensar o desenvolvimento de
projetos de leitura tendo o livro como audiobook e resenhas como
podcast, como nos provocou um pesquisador da temática prisional
num evento acadêmico?
Apesar de nossa satisfação com o Clube de Leitura, sabemos
que cada proposta educativa tem suas potencialidades e seus
limites. E, além disso, cada pessoa se adapta e gosta mais de uma
determinada proposta. Há, ainda, aqueles que nenhuma das
propostas serve. Nesse sentido, há que se ter em mente que
nenhuma política pública funciona em 100% dos casos, e com a
população carcerária não seria diferente. Por isso, é importante
ofertar diferentes propostas e cuidar para que o sucesso das ações
não seja abalado por fracassos pontuais. Vivenciamos o trágico
episódio no presídio de Araguaína/TO, ocorrido em 2018, no qual
um grupo de pessoas presas fugiu da unidade prisional fazendo de
refém uma professora. Tal situação, por mais trágica que seja, não
pode pôr em xeque as ações educativas. Quantas unidades
prisionais do país desenvolve algum tipo de atividade educativa?
Em quantas delas houve episódios como o de Araguaína?
O valor da liberdade não pode, jamais, ser subestimado, daí o
fundamental papel da segurança. Porém, em maior ou menor
tempo, todas as pessoas presas voltarão ao convívio em sociedade
e o ideal é que elas sejam preparadas para isso. Ao nosso ver, a
educação tem muito a contribuir nessa preparação e a abertura da
prisão para o acolhimento dessas atividades é primordial.
Ouvimos dos participantes, reiteradamente, pedidos de que o
projeto não acabe. E, geralmente, os que mais nos pedem isso são
justamente os mais envolvidos e comprometidos, independente do
crime cometido. Ouvimos também constantes frases de
agradecimento, insistentemente repetidas. Tais situações incitam a
preocupação com a importância de consolidação das atividades
educativas. Como fazer com que as ações deixem de ser
personificadas e atrelem-se intimamente ao espaço onde se

233
realizam, independente das pessoas que as conduzem? Sabemos
que também nós, educadoras e gestores da unidade, somos
passageiros nesse espaço. Como fazer, então, com que as conquistas
no âmbito educativo permaneçam? Esse é um grande desafio.
Se nos apegarmos aos inúmeros desafios com que nos
defrontamos para fazer acontecer as atividades educativas e
culturais na prisão, desistimos. É muita remada para pouco avanço
no deslocamento do barco. Nesse contexto, vale a máxima:
primeiro arrume o problema para depois pensarmos as soluções. É
assim que temos feito, alimentamos as ideias, fazemos as
proposições e depois vamos descobrindo como concretizá-las,
criando estratégias para superar os empecilhos. Começamos com
poucos envolvidos e somos cada vez mais, seja como participantes,
executoras ou apoiadores. Obtivemos grandes conquistas, apesar
do curto espaço de tempo. A luta agora é para expandi-las e
consolidá-las. Falta-nos espaço físico e recurso financeiro, porém
nos sobra disposição, força de vontade e capacidade de sonhar.

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LER E ESCREVER NA PRISÃO: EXPERIMENTAÇÕES EM TOCANTINÓPOLIS
Sobre a segunda impressão... Sobre o livro...

Em 2019 uma primeira versão Surge do desejo de ser livre, sair


deste livro foi impressa e da prisão. Materializa parte das
distribuída para os autores e experiências advindas do
autoras e seus familiares, encontro entre pessoas diversas,
unidades prisionais, bibliotecas, todas elas dispostas, por
pesquisadores e representantes diferentes motivos, a ler e escrever
de instituições vinculadas à juntas. Quer ser instrumento de
promoção de educação nas difusão, uma forma de socializar o
prisões. A repercussão foi positiva vivido com pessoas abertas e
evidenciando, na prática, o poder interessadas em saber o que se
da palavra escrita. Publicar este passa dentro de uma unidade
livro nos ensinou que é possível prisional, para além das trágicas
escrevermos e contarmos a nossa notícias de violência,
própria história. Com isso, superlotação, fugas e rebeliões. É
descobrimos outra identidade a junção de fragmentos de relatos
possível para nós: a de autores e de vida, mesclados com reflexões
autoras. Esse processo revelou-se sobre as obras literárias lidas. Uma
como um caminho para “colcha-livro”, escrita a várias
emancipação. mãos.
Esta segunda impressão é uma
oportunidade de irmos mais Sobre os autores e as autoras...
longe, chegarmos em mais mãos,
possibilitando que nossa história São muitos e diversos. Há
seja conhecida por mais pessoas. mulheres e homens. Pessoas que
Ter nossa história lida é uma se abrem, que compartilham
abertura para encontros, que dão parte de suas experiências de vida
força a nossa existência e nos e reflexões. São 32 leitores que se
estimulam a seguir lendo e fizeram autores.
escrevendo.
Lemos para imaginar outros
mundos possíveis, escrevemos
para (re)inventarmo-nos e, no
encontro dos pensamentos, criar
liberdades para viver.

Esperamos que nos leiam!

ISBN 978-65-87645-69-8

9 786587 645698 >

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