A Literatura para Situações: Um Recurso para a Psicologia Existencialista
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A Literatura para Situações - Thaís Fernanda de Oliveira Martins
Introdução
Os livros, enfim, são um convite à transcendência, ao desvario, à errância, ao desvio em relação ao destino bovino da humanidade conformada.
Bradbury (1953/2012)
Toda experiência literária é permeada por ao menos dois momentos: o momento da escrita e o momento de leitura. Momentos distintos, mas inter-relacionados. Primeiro, é necessário o desenrolar da escrita; é necessário que a pessoa¹ autora escolha – entre tantas possíveis temáticas, entre todas as suas inquietações, entre tudo aquilo que precisa ser dito – sobre o que escrever, para poder compilar suas ideias por meio da escrita, transmitindo pelas palavras as nuances de uma existência. Um processo único e singular; diferente para cada pessoa que opte por embarcar nessa empreitada; composto por construções e reconstruções. A história é finalizada – o livro é editado, impresso, divulgado – mas é por meio da leitura de outrem que a experiência literária, enfim, conclui-se. A pessoa leitora se faz responsável por costurar as palavras escritas pelo fio de sua subjetividade; resgatar aquela obra outrora encerrada para iniciá-la novamente; criar e recriar sentidos e significações enquanto espera pelo que acontecerá no próximo capítulo; se satisfazer ou se decepcionar com o final criado por quem escreveu.
No entanto, engana-se quem pensa que a experiência literária se limita à leitura finalizada ou apenas a um momento de lazer/entretenimento. "A ficção… não existe meramente para entretenimento; de fato, a ficção mais eficaz pode ser definida como aquela que interpreta honesta e inteligentemente um problema humano genuíno"² (Jaffe & Scott, 1966, p. 13, tradução nossa). Ler é transcender à realidade, atuando sobre ela de forma engajada de modo a transformá-la; de certo modo, ler é um ato de revolução; é revisitar a história da realidade humana, a vida em movimento, registrada por diferentes subjetividades, seja esse registro ficcional ou não; é ampliar o campo dos possíveis de cada pessoa leitora que se lança a uma existência em constante construção. Atrevemo-nos a dizer que ler é poesia pura e sincera.
O interesse em estudar a relação entre literatura e Psicologia³ surgiu de um pensamento; semelhante à experiência relatada por Virginia Woolf (1929/2014) quando pensava sobre a possibilidade de estudar a temática mulheres e ficção
,
Era possível passar um dia inteiro nesse lugar com a mente perdida em pensamentos. Um pensamento – para lhe dar um nome mais altivo do que merece – tinha deixado seu rastro pela corrente. Oscilava, minuto a minuto, para cá e para lá entre os reflexos e as plantas aquáticas, deixando-se mostrar e submergir na água até… Sabe aquele puxão, e então um amontoado de ideias na ponta da linha, e depois o recolher cauteloso e a exposição cuidadosa? Por fim, assentado na grama, tão pequeno e tão insignificante parecia esse meu pensamento; o tipo de peixe que um bom pescador devolveria à água para que engordasse e um dia fosse digno de ser cozido e comido… Por menor que fosse, esse pensamento tinha, apesar de tudo, o mistério próprio da sua espécie - de volta à mente, tornou-se imediatamente muito empolgante e digno de atenção; e, conforme zunia, afundava e zanzava para lá e para cá, despertava um aluvião e um tumulto de ideias tal que me era impossível ficar parada. (Woolf, 1929/2014, p. 14).
O interesse específico pela literatura dá-se por percebê-la como uma fonte de histórias ricas em temáticas diferenciadas que estão, direta ou indiretamente, relacionadas às pessoas que se contatam com ela, podendo operar como mediadora entre a pessoa, seu contexto sociomaterial e sua existência em tal contexto. Como aponta Michele Petit, antropóloga francesa pela qual nos afeiçoamos no momento de elaboração da problemática aqui tratada,
Os livros lidos ajudam algumas vezes a manter a dor ou o medo à distância, transformar a agonia em ideia e a reencontrar a alegria: nesses contextos difíceis, encontrei leitores felizes. Viviam em um ambiente pouco habituado à felicidade. Seus olhares eram às vezes bastante sofridos. E, no entanto, souberam fazer uso de textos ou fragmentos de textos, ou ainda de imagens, para desviar sensivelmente o curso de suas vidas e pensar suas relações com o mundo. (Petit, 2010, p. 33-34).
Compreende-se que, enquanto instrumento cultural e artístico, a literatura possui potencial para abordar temáticas cotidianas e, quando apresentada a uma pessoa, ela contribui, em maior ou menor escala, para que ocorra uma reflexão, ou seja, um movimento do pensamento dessa pessoa. Por se tratar de um dispositivo de comunicação, que serve para contar histórias reais ou fantasiosas por meio de diferentes gêneros, podemos afirmar que a literatura em si é social. Sendo assim, ela possibilita que as pessoas que dela se apropriam estabeleçam uma nova ordem de relação com o real.
A relação entre Psicologia e Literatura vem sendo tema de estudo para algumas pessoas pesquisadoras da área da Psicologia, como por exemplo, Gonçalves (2011), que, influenciada por suas próprias experiências, buscou articular a noção de subjetividade sartriana com as narrativas literárias de Sartre, defendendo que a literatura pode ser solicitada como um campo de pesquisa pelos profissionais da humanidade, por ser capaz de proporcionar às pessoas leitoras uma compreensão das experiências humanas. Como concluiu Gonçalves (2011),
Fazer pesquisa em psicologia social envolve lidar com a alteridade, com formas singulares de existência. A alteridade nos surge como um novo território a ser conhecido, com seu dialeto próprio, suas paisagens (modos de espacialidade) e ritmos (modos de temporalidade). Adentrar este território que é o outro envolve um deslocamento do território que nos é familiar. Nesse sentido, a literatura surge como um campo que possibilita o exercício de contato com a alteridade. Ao nos envolvermos com uma narrativa literária, nos abrimos a um território desconhecido, com uma linguagem própria e com um modo singular de compor
um mundo que passamos a habitar. Ao mergulharmos neste no mundo da literatura, temos a oportunidade de conhecer uma rica e complexa rede de significados, capaz de revelar modos de constituir sentidos para as vivências humanas. Ao abrir esta possibilidade de transformar nossa maneira de olhar a realidade, a literatura torna-se uma importante prática social e fonte de pesquisa. (p. 94-95).
Entendemos que delimitar um tema a ser investigado não é tarefa fácil. Ainda mais difícil é ter que delimitar um foco de investigação em um campo vasto de atuação da Psicologia, assim como as contribuições que a literatura pode oferecer. O recorte realizado – a psicologia e a arte literária – passou pelo filtro do especificamente
, levando-nos a uma temática mais específica, qual seja, a psicologia existencialista e a literatura. O recorte feito também levou em consideração a significância de que tais discussões partissem de um campo mais amplo da psicologia, informando caminhos para que a relação interdisciplinar psicologia-literatura possa ser cada vez mais contemplada por pessoas pesquisadoras das áreas. Consideramos que esta delimitação é coesa e apropriada ao curto período do qual dispomos para produzi-la. Não obstante, não deixa de ser um recorte importante, visto que a literatura é, ainda hoje, pouco explorada neste campo de atuação da pessoa psicóloga.
Para fundamentar a relação que aqui propomos discutir, literatura e Psicologia, recorremos à filosofia existencialista de Jean-Paul Sartre. Logo, nos encontramos diante de três diferentes campos: Psicologia, Filosofia e Literatura. Campos esses que, cada qual com suas particularidades, se encontram e entrelaçam seus saberes – especialmente quando pensamos na temática aqui abordada. Como coloca Sass (2020):
Pode parecer estranho afirmar que Sartre teve interesse por essa área [a Psicologia], mas… a psicologia era considerada por Sartre parte integrante da filosofia. Herança de sua formação literária, bem descrita em As palavras, e que resultou na escolha da École Normale Supérieure como a instituição responsável por seus estudos superiores. É sabido que o projeto existencial
de Sartre sempre foi o de ser escritor e romancista, porém, para ele, não bastava somente dominar a arte da retórica e da composição, era preciso construir seus personagens da maneira mais real e concreta possível. (p. 9, grifos do autor).
Diante do exposto, esta obra teve, a princípio, como móbil a seguinte questão: quais contribuições o pensamento de Jean-Paul Sartre sobre a literatura e sua filosofia existencial nos oferecem para que a arte literária possa ser utilizada como instrumento de intervenção nas práticas da psicologia existencial? Por conseguinte, pudemos delimitar como objetivo a ser alcançado: analisar como a literatura pode ser usada como um instrumento mediador do sujeito com suas experiências, nas práticas da Psicologia existencialista sartriana.
Partindo da ideia do teatro de situações apresentadas por Sartre em sua obra Un Théâtre de Situations (1973), em que o autor discorre sobre como os espetáculos teatrais – por meio das histórias encenadas pelas personagens – podem desvelar ao espectador sua própria liberdade, encontramos pistas que nos levaram a pensar as contribuições do que chamamos literatura para a situação à prática da Psicologia existencialista sartriana. Trata-se, como demonstraremos pela construção de nossas análises, de uma literatura que, em seu enredo, apresenta situações semelhantes às das pessoas leitoras e que age como mediadora para que essas alcancem uma reflexão sobre suas próprias realidades.
Embora o presente estudo se atenha ao uso da literatura pela Psicologia existencialista, não descartamos que ela também possa ser instrumento às práticas de outras abordagens, que podem solicitá-la segundo as particularidades de seus aportes. Ademais, ainda que não nos aprofundemos nas contribuições que a literatura pode apresentar a cada campo prático da Psicologia existencialista sartriana, o caminho que percorremos nos possibilita pensar o uso da literatura como instrumento por essas diferentes práticas. Visto que a pessoa psicóloga existencialista sartriana, onde quer que atue, atuará baseada nos pressupostos da psicanálise existencial e do método progressivo-regressivo, procuramos pensar as contribuições da literatura para a situação segundo a aplicabilidade de tais métodos. Logo, quando falamos do uso da literatura nas práticas da Psicologia existencialista sartriana, estamos considerando os diferentes campos práticos nas áreas de saúde, social, escolar, trabalho etc.; além do campo acadêmico com o desenvolvimento das práticas de pesquisa e da própria formação da pessoa profissional de Psicologia.
Conforme Sartre (1947/2015), as funções da literatura ultrapassam o simples momento de lazer e se desdobram por toda a existência das pessoas que com ela se engajam, sejam elas autoras ou leitoras. Falar sobre literatura, segundo a visão de Sartre, é falar sobre uma literatura que se justifica por sua função social. Por meio da narrativa, as palavras designam objetos, indicam as coisas do mundo, transmitem ideias, informam a nós e às outras pessoas. As palavras encontradas em uma narrativa não são meros objetos de contemplação, são instrumentos de comunicação. Tal como aponta o autor:
[...] falar é agir; uma coisa nomeada não é mais inteiramente a mesma, perdeu a sua inocência. Nomeando a conduta de um indivíduo, nós a revelamos a ele; ele se vê. E como ao mesmo tempo a nomeamos para todos os outros, no momento em que ele se vê, sabe que está sendo visto; seu gesto furtivo, que dele passava despercebido, passa a existir enormemente, a existir para todos, integra-se no espírito objetivo, assume dimensões novas, é recuperado. Depois disso, como se pode querer que ele continue agindo da mesma maneira? Ou irá perseverar em sua conduta por obstinação, e com conhecimento de causa, ou irá abandoná-la. Assim, ao falar, eu desvendo a situação por meu próprio projeto de mudá-la; desvendo-a a mim mesmo e aos outros, para mudá-la. (Sartre, 1947/2015, p. 28).
Tratando-se de arte, cabe lembrar que toda representação tem como pano de fundo o universo. De criação em criação, a pessoa artista nos apresenta um resgate da totalidade do ser. Pela ação, nos revelamos e revelamos o mundo ao nosso redor, nos relacionamos com esse mundo e com seus fenômenos, de modo a transformá-lo e a superá-lo. Não há como a pessoa artista retratar a realidade com uma obra imparcial. Na condição de escolher retratar as injustiças, que faça de modo a superá-las. Se leio acusações acerca da realidade, comprometo-me e torno-me responsável por mantê-la tal qual foi retratada ou por transformá-la. Pela experiência literária, as pessoas escritoras e leitoras são responsáveis pelo universo (Sartre, 1947/2015).
Percebemos, na filosofia existencial de Sartre, o empenho do autor em buscar compreender a constituição do sujeito; constituição essa que se dá por meio de um movimento fluido e incessante; compreensão essa que necessita considerar, em seu processo de análise, a subjetividade de cada pessoa na relação com a objetividade, considerando que ela deve ser compreendida em situação e por meio da fluidez de sua existência. Encontramos, nessa filosofia, contribuições apropriadas para enriquecer o campo das humanidades. Quanto ao desenrolar da Psicologia, segundo o existencialismo sartriano, entende-se que sua prática deve buscar compreender a pessoa em sua totalidade, como singular/universal, subjetivo/objetivo, considerando-o em sua condição sócio-histórica. Ou seja, não devemos ter em conta a pessoa enquanto uma subjetividade desvinculada do campo objetivo, considerando que ela se edifica enquanto sujeito ao mesmo tempo em que constrói o campo sociomaterial e este a constrói. Veremos, então, no desenrolar deste estudo, como Sartre constrói uma filosofia que contribui com uma nova perspectiva para o campo da psicologia.
O que Sartre não nos apresentou, e o que buscamos averiguar, foi um estudo direto que explora as contribuições reais aos saberes e fazeres no campo da Psicologia com o uso de um instrumento tão rico que é a arte literária.
No tocante aos caminhos percorridos, consultamos alguns escritos de Jean-Paul Sartre, sem a pretensão de esgotá-los, que se mostraram válidos para a produção desta obra, tais como: Esboço para uma Teoria das Emoções, de 1939; O imaginário, publicado em 1940; O Existencialismo é um Humanismo, com primeira publicação em 1946; O Ser e o Nada, publicado em 1943; O que é a Subjetividade?, obra oriunda de uma conferência proferida por Sartre em Roma, no ano de 1961; Que é a Literatura?, com primeira publicação em 1947; Questão de Método, publicado inicialmente em 1957 e incluso, em 1960, como introdução na obra Crítica da Razão Dialética; sua autobiografia, As Palavras, publicada em 1963; e, publicado em 1973, Un théâtre de Situations. Além das obras de Sartre, recorremos, também, a outras pessoas autoras que – em diálogo com a filosofia sartriana e com o objetivo de pesquisa – apresentaram contribuições para que melhor abordássemos a temática proposta, como: Tzvetan Todorov (1939-2017) e seu escrito A Literatura em Perigo, de 2007; Michèle Petit (1946) e sua obra A Arte de Ler ou como Resistir à Adversidade, de 2010; Hans Robert Jauss (1921-1997), com o movimento teórico da estética da recepção
apresentado em sua obra A História da Literatura como Provocação à Teoria Literária, de 1969; e Antônio Cândido (1918-2017) com suas contribuições acerca do direito à literatura apresentadas em seus Vários Escritos, de 1953.
Para além de implicações pessoais, teóricas e práticas, a concepção desta obra se deu, também, considerando fatos que abalaram o cenário literário no Brasil. Quando, em setembro de 2019, na Bienal do Livro realizada na cidade do Rio de Janeiro, a comunidade literária presenciou mais um momento de censura. Trata-se de um grande encontro literário internacional, onde as pessoas leitoras recebem a oportunidade de estar em contato com as pessoas autoras de sua preferência, conhecer outras tantas e se contatarem com inúmeros títulos literários.
Nesta edição da Bienal, o então prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, iniciou uma caçada pela história em quadrinhos Vingadores - A Cruzada das Crianças, cuja série é assinada por Allan Heinberg⁴, pois ela trazia em suas ilustrações uma cena representada por duas pessoas do sexo masculino se beijando, considerada inapropriada, segundo Crivella, por se tratar de um livro destinado a crianças e adolescentes. Crivella pronunciou⁵ que iria retirar as edições de tal obra do evento que já estava em andamento. Foram realizadas manifestações e posicionamentos a favor e contra o pronunciamento do ex-prefeito.
A prefeitura enviou agentes ao evento a fim de que fiscalizassem, aleatoriamente
, obras que pudessem conter, segundo a noção do ex-prefeito, conteúdos impróprios sem a devida sinalização. Após a inspeção, esses conteúdos não foram encontrados. Ao revés, o livro em questão se esgotou rapidamente; passeatas e manifestações foram realizadas no local do evento e a prefeitura chegou a enviar fiscais sem uniforme, em uma nova tentativa de fiscalização. Em meio ao ocorrido, o Supremo Tribunal Federal (STF), em 8 de setembro de 2019, suspendeu a decisão judicial que permitia a apreensão de livros na Bienal⁶, considerando que a atuação da prefeitura do Rio de Janeiro era um atentado à liberdade de expressão e que as motivações do ex-prefeito não tinham respaldo no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas em um posicionamento heteronormativo.
Mencionamos, acima, mais um momento de censura, pois não nos esquecemos das inúmeras obras literárias que já foram censuradas por todo o mundo: Lolita (1955), de Vladimir Nabokov; 1984 (1949), de George Orwell; Admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley; O crime do Padre Amaro (1875), de Eça de Queiros; Feliz ano novo (1975), de Rubem Fonseca; e até mesmo a saga de fantasia infanto-juvenil, Harry Potter, com primeiro livro (Harry Potter e a Pedra Filosofal) publicado em 1997, de J. K. Rowling⁷, entre tantos outros títulos e pessoas autoras censuradas por não condizerem com as ideologias dominantes de certos períodos, como por exemplo, o Regime Nazista⁸ ou a Ditadura Militar.
Outra grande ameaça à literatura veio por meio do Projeto de Lei 3887/2020 para reforma tributária, apresentado em julho de 2020, pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes, que indicou a proposta da taxação dos livros. Em 1946, o então deputado e escritor Jorge Amado apresentou uma emenda constitucional isentando do pagamento de impostos ao papel utilizado na impressão de livros, revistas e jornais. Anos depois, em 1988, a medida passou a valer,