Letramentos Marginais - Literatura, Cultura e Alteridade
Letramentos Marginais - Literatura, Cultura e Alteridade
Letramentos Marginais - Literatura, Cultura e Alteridade
Org.
Acauam Silvério de Oliveira
Recife
UPE-EDUPE, 2019
UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO – UPE
REITOR Pedro Henrique Falcão
VICE-REITOR Dra. Socorro Cavalcanti
L649
Letramentos Marginais: literatura, cultura e alteridade [recurso
eletrônico] / Acauam Silvério de Oliveira (Orgs.). – Recife: EDUPE,
2018.
171p.; Il.
Ebook: PDF
Disponível em: http://www.edupe.com.br/
7
encontro com o texto, seu conteúdo humano e vivo, por um con-
junto de fórmulas e métodos que, em nome do rigor científico, faz
perder justamente aquilo que interessa na literatura. “Ler poemas e
romances não conduz à reflexão sobre a condição humana, sobre o
indivíduo e a sociedade, o amor e o ódio, a alegria e o desespero, mas
sobre noções críticas tradicionais ou modernas” (TODOROV, 2010,
27). Os métodos de análise utilizados pelas escolas, que deveriam ser-
vir para facilitar o acesso àquele “algo” que nos textos está para além
do método, acabam se tornando fins em si mesmos.
Na escola, aprende-se mais sobre os métodos de análise crítica
do que sobre as obras. O texto literário torna-se mero pretexto para
realização de exercícios gramaticais, ou suporte para discussões éticas
e morais que passam ao largo da forma estética. Obras consideradas
difíceis são fragmentadas e substituídas por paráfrases, filmes ou re-
sumos da internet. Ao final do processo, o amor à literatura é subs-
tituído pelo apego ao método, que gradativamente mata a razão de
ser do próprio método. A literatura dispersa em fragmentos é tratada
como um objeto cultural como outro qualquer, deixa de fazer senti-
do para os alunos.
O problema, contudo, não diz respeito apenas à utilização de
práticas escolares defasadas, ou a certa incapacidade dos professores
de despertar a paixão em seus alunos. A crise da literatura assume
contornos bem mais amplos. Já nos anos oitenta ninguém menos que
Roland Barthes declarava, alarmado, que “A literatura, como Força
Ativa, Mito vivo, está não em crise (fórmula fácil demais), mas talvez
em vias de morrer” (BARTHES, 2005, p. 306). Nesse sentido, Rildo
Cosson (2014) apresenta dados bastante significativos que apontam
para a perda de centralidade da literatura no cotidiano do brasileiro,
confirmando o diagnóstico de Barthes. Em uma pesquisa realizada
em 2012 (Retratos da Leitura no Brasil) constatou-se que a média de
8
leitura do brasileiro é de dois livros por ano, índice baixíssimo e que
vem caindo ainda mais. Além disso, a leitura está longe de ser uma
forma comum de lazer: enquanto 85% dos brasileiros passa seu tem-
po livre assistindo televisão, e 52% ouvindo música, apenas 28% tem
na leitura a atividade de lazer predileta. Os números pioram ainda
mais quando se trata especificamente de literatura, pois a maior parte
dos livros lidos são obras didáticas, e o livro mais lido é, de longe, a
Bíblia. Podemos dizer que no Brasil a leitura é vista mais como uma
espécie de obrigação, seja escolar ou religiosa, do que como fonte de
prazer e conhecimento.
Obviamente que no contexto brasileiro, onde a cultura letrada é
historicamente demarcada enquanto espaço de exclusão e manuten-
ção de privilégios, o lugar secundário da literatura no cotidiano do
cidadão médio está longe de representar uma novidade. Contudo,
reconhecer essa defasagem, que é um dado histórico, não ajuda a
resolver o problema dos professores que precisam lidar com a matéria
em sala de aula. Buscando soluções para o problema, frequentemente
esses profissionais adotam duas posições conflitantes para lidar com a
marginalização da literatura nas escolas e na sociedade. De um lado,
diminuem a presença do cânone em detrimento de best sellers e suces-
sos do momento, de modo a fazer com que ao menos os alunos leiam
algo. De outro, insistem na leitura dos “clássicos”, frequentemente
adotando procedimentos que “forçam” a leitura dos alunos, como
provas e fichamentos. Para Cosson, em ambos os casos, o resultado é
o progressivo distanciamento entre leitores e literatura.
Tanto as indicações de Cosson e Todorov quanto as pesquisas
aqui reunidas demonstram, portanto, que a chamada crise da litera-
tura possui uma amplitude mais profunda, atingindo não apenas o
âmbito escolar, mas também algumas das bases tradicionais de reco-
nhecimento do que seja, afinal, o objeto literário. Em certo sentido,
9
é a própria concepção de literatura com que leitores, especialistas e
instituições ainda operam que parece cada vez menos capaz de sus-
tentar-se sob seus próprios pés.
Contudo, existe ainda outro elemento importante nesse debate
que não pode ser desconsiderado. Pois se é certo que a crise da lite-
ratura é um dado concreto de nossa época, não é menos verdadeiro
que a “crise” é o lugar por excelência do literário. Em certo sentido, a
literatura é um permanente estar em crise. Os discursos literários são
sempre discursos de crise, justamente por se tratar de um objeto que
nunca está onde se imagina, em processo de (des)construção perma-
nente. Parafraseando Lacan, o literário não existe: eis aí sua potência.
Estar em crise, antes de um dado social é, pois, o modo mesmo da
literatura se posicionar no mundo. Como afirma Marcos Siscar em
relação à poesia (mas que aqui podemos ampliar para literatura como
um todo), “a força dita utópica, profética, transformadora do poeta
não está na confiança romântica em uma antecipação futurologista,
em sua condição de “antena da raça” (Ezra Pound), mas na capacidade
de revelar, em perspectiva histórica, eventualmente designada como
“fenômeno futuro”, a crise, o colapso ou o naufrágio como sentido
da experiência presente” (SISCAR, 2007, p. 176). Nesse sentido, a
Literatura é o próprio movimento ininterrupto de definição do que
seja, ou não, literário, não existindo para além dessa perpétua petição
de princípios sobre o que pertence ou não a seu campo. O tema da
crise da literatura é mais do que uma simples constatação sociocultu-
ral: é o próprio modo por meio do qual a literatura se apresenta para
o mundo, ao menos desde o advento da modernidade.
A literatura como ser para a crise. Nesse sentido, o ruir das anti-
gas certezas que sustentavam os discursos literários faz parte de um
processo social mais abrangente, que acarreta profundas transforma-
ções na própria concepção de sistema literário, com o surgimento
10
de novos agentes, novas vozes e novos espaços de produção e circu-
lação. Estamos diante de um fato social complexo, repleto de aspec-
tos sociais, políticos e ideológicos, com impactos nas mais diversas
áreas circunscritas ao campo literário, como a teoria, crítica, história
e educação. A emergência desses novos atores desloca as percepções
e os lugares tradicionais da literatura, que precisam ser ressignifica-
dos por um olhar que contemple às margens desse sistema. A escola
precisa pensar novas práticas, além de estabelecer novos parâmetros
de relação com o objeto literário, reconhecendo seu caráter imaterial
formado pelo conjunto de práticas discursivas a seu redor. Reconhe-
cer na literatura um objeto vivo, que demanda constante reflexão e
necessidade de atualização.
É a partir desse emaranhado complexo de questões que faz sen-
tido pensar a noção de marginalidade expressa desde o título deste
livro. Todos os artigos aqui apresentados em alguma medida apon-
tam para a necessidade de desenvolvimento de Letramentos Múlti-
plos (ROJO, 2009), práticas de letramento que aceitam o desafio de
considerar o campo literário como um espaço dinâmico de disputas
discursivas. O professor deve estar atento para aquilo que se encontra
às margens dos discursos institucionais, pois é a partir de tais espaços
que novos sentidos serão efetivamente construídos.
Pensando em articular as múltiplas dimensões inscritas nessas
margens, dividimos esse livro em três partes. A seção “Vozes Mar-
ginais” reúne textos que assumem uma postura de confronto e des-
nudamento dos processos de marginalização presentes nas práticas
escolares, desvelando seus processos de apagamento e reprodução das
desigualdades. O artigo Literatura africana: uma análise do livro di-
dático de língua portuguesa do ensino fundamental como ferramenta de
implementação da lei nº 10.639/03, de Alex Sandra da Silva Moura,
busca apresentar o processo de marginalização da literatura e culturas
11
africanas e afro-brasileiras a partir da análise do conteúdo de quatro
livros didáticos de grande penetração nas escolas estaduais do Estado
de Pernambuco. Ainda que não seja inesperada, a conclusão não deixa
de surpreender: não apenas é praticamente inexistente a presença da
herança africana nos livros didáticos analisados, como esta diminuiu
significativamente após a implementação da lei 10.639/03. O lugar
da literatura indígena nos documentos curriculares oficiais do estado de
Pernambuco e nas escolas estaduais de Bom Conselho, de Ana Flávia
Ferro, propõe uma reflexão sobre o não lugar da literatura indígena
nas propostas da rede estadual de Pernambuco a partir da análise dos
documentos curriculares oficiais. Já A “escrevivência” e a autoria femi-
nina na literatura afro-brasileira, de Ângela Maria Florentino e Shirley
Bezerra Lopes, parte da obra de Conceição Evaristo e seu conceito de
“escrevivência”, para analisar a literatura de autoria feminina negra,
bem como os processos de marginalização e resistência da mulher
negra na sociedade brasileira.
A seção “Letramentos Marginais” busca apresentar modos alter-
nativos de lidar com a literatura na escola, a partir da relação do li-
terário com novos meios e plataformas. O artigo Literatura e ensino:
as várias faces do letramento literário, de Edivânia Helena Nunes, pro-
põe uma reflexão inicial sobre a posição frágil que a literatura ocupa
atualmente nos currículos e práticas escolares. Já Literatura e outras
linguagens: ressignificando o ensino, de Ana Elizabete Novaes e Poliana
Martins Oliveira Sá, discorre sobre a importância de aliar o ensino
da literatura a outras linguagens, na perspectiva de estreitar a relação
dos alunos com a literatura. Enquanto Tecnologia e ensino de literatu-
ra: uma experiência utilizando como suporte o aplicativo WhatsApp, de
Maria Liliane de Lima Tenório, nos oferece um exemplo prático de
utilização de uma tecnologia de grande penetração entre os alunos
nas aulas de Literatura.
12
Por fim, a seção “Gêneros Marginais” apresenta algumas refle-
xões e propostas para o trabalho com gêneros considerados pela ins-
tituição escolar como “inferiores”, ou menos complexos do que os
pertencentes à “Grande Literatura”. No artigo Em vias da literatura:
uma proposta com o gênero crônica, Sheila Vieira Galvão propõe um
trabalho com o gênero crônica, realizado com os últimos anos do en-
sino fundamental, com o objetivo de propiciar uma transição mais
adequada e prazerosa dos alunos para as leituras consideradas mais
canônicas. A literatura de cordel na sala de aula: uma possível propos-
ta para o letramento literário, de Patrícia Amaral Barbosa e Thiago
Barros dos Anjos, apresenta uma bem-sucedida experiência com a
literatura de cordel nas salas de aula do ensino fundamental, seguida
de uma reflexão sobre os processos de marginalização da cultura po-
pular no âmbito escolar. Por fim, em O cordel de Patativa e o baião de
Luiz Gonzaga: vozes que exaltam o nordestino, denunciam a realidade e
ecoam poesia literária, José Hilário Gomes de Souza analisa a riqueza
e complexidade de duas formas estéticas (o baião de Luiz Gonzaga e
o cordel de Patativa do Assaré) marginalizadas pela escola, enfatizan-
do as relações de continuidade entre elas.
Todos os textos aqui reunidos, de uma forma ou de outra, pro-
curam se posicionar diante dos novos desafios provocados pelas mu-
danças no campo literário, mudanças essas que atingem diretamente
o corpo de pesquisadores. A importância deste trabalho vai para além
de um significado puramente simbólico, uma vez que todos os pes-
quisadores, além de integrarem o programa de Mestrado Profissional
em Letras do campus Garanhuns – PE, são professores atuantes nas
redes estadual e municipal do Estado. As questões aqui apresentadas,
portanto, estão intimamente relacionadas à prática docente desses
profissionais, assumindo um sentido mais profundo de práxis que
cumpre não apenas as expectativas do PROFLETRAS, mas atende
13
também aos significados mais profundos que estão na base do pró-
prio conceito de extensão universitária. Nesse sentido, acreditamos
ser um passo importante o processo de compartilhamento e divulga-
ção científica dos resultados obtidos por esses pesquisadores em suas
práticas.
14
Referências
15
PARTE I
VOZES MARGINAIS
1 - Literatura Africana: uma análise do livro didático de
Língua Portuguesa do Ensino Fundamental como ferramenta
de implementação da Lei nº10.639/03
Alex Sandra da Silva Moura
Introdução
A obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Africana e
Afro-brasileira no currículo escolar da escola pública e particular do
Brasil, implementada pela lei nº 10.639/03, foi uma grande conquis-
ta para todos aqueles que lutaram para que as culturas africanas fos-
sem reconhecidas como fundamentais na formação cultural do povo
brasileiro. A referida lei propõe novas diretrizes curriculares para o
ensino da história e cultura africana e afro-brasileira, a fim de mini-
mizar o efeito de décadas de estudos históricos que costumavam re-
duzir esta questão a temas dos livros de história, tratado tão somente
em capítulos sobre a escravidão e a vida nas senzalas.
Com a implementação das novas diretrizes curriculares, tornou-
-se necessário mudar e atualizar a grade curricular; alterar e adaptar os
materiais pedagógicos, em especial o Livro Didático que, em muitos
casos, é o suporte mais usado pelos professores; bem como investir na
formação docente.
Para melhor compreender como se tem vivenciado o conteúdo
programático a que se refere à Lei em questão, em especial ao que
tange seu §1º: “o estudo da História da África e dos Africanos, a luta
dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação
da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas
áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”,
17
propõe-se neste artigo investigar a presença da literatura africana em
gêneros textuais narrativos, poesia ou músicas nos livros didáticos de
Língua Portuguesa, usando como corpus quatro Livros Didáticos do
nono ano que são/foram utilizados nas redes públicas e privadas de
Pernambuco.
Baseando-se nos estudos de Marcuschi, Santomé e outros autores
que tratam do tema, temos nosso aporte teórico e desenvolvemos a
pesquisa a partir da análise bibliográfica qualitativa e quantitativa dos
Livros Didáticos do nono ano, elencados a seguir:
18
nas casas de famílias pobres - que não têm acesso a jornais e revistas
ou a mídias digitais -, é necessário direcionar o olhar para a forma
como a história e a cultura africana vêm sendo discutidas neste aporte
pedagógico, dada sua importância em formar ou deformar uma gera-
ção de leitores quando minimiza ou perpetua visões estereotipadas.
A autora Ana Célia da Silva (2008) afirma: “No livro didático a
humanidade e a cidadania, na maioria das vezes, são representados
pelo homem branco e de classe média. A mulher, o negro, os povos
indígenas, entre outros, são descritos pela cor da pele ou pelo gênero,
para registrar sua existência” (Superando o Racismo na Escola, 2008,
p.17).
Cabe analisar se ainda é esta a ideia estereotipada que os livros
didáticos de Língua Portuguesa trazem impressas em suas páginas: a
valorização do homem branco e de sua cultura, em detrimentos das
demais. Por muitos anos, o único momento em que paramos para
homenagear e vivenciar parte das tradições africanas no âmbito esco-
lar foi no dia 20 de novembro, por ocasião do “Dia da Consciência
Negra”, numa homenagem a Zumbi dos Palmares. Faz-se necessário
ativar a memória em muitos outros momentos do ano letivo, para
que além do reconhecimento da importância das culturas africanas
para a formação cultural do povo brasileiro, possamos também mi-
nimizar os preconceitos raciais e muitas outras situações de violência
que podem estar ligadas à forma como tais questões são tratadas na
escola e reproduzidas nos textos que os estudantes ainda adolescen-
tes têm acesso.
Reconhecemos que os livros didáticos que chegam às escolas pú-
blicas passam por um longo processo analítico, realizado por espe-
cialistas em educação, considerando os documentos oficiais que nor-
teiam a prática pedagógica nas escolas, como a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação (LDB) e os Parâmetros Curriculares Nacionais
19
(PCN). Com base nesses pressupostos são elaborados os currículos
de ensino nas escolas e os critérios de avaliação de livros didáticos
pelo Programa Nacional de Livros Didáticos (PNLD).
Dessa forma, o Livro Didático é mais que um objeto de leitura e
pesquisa dos estudantes, é também uma fonte norteadora das ações
pedagógicas, porque traz de forma explícita o que e como ensinar. O
foco desta pesquisa é a aplicação da Lei 10.639/03 em Livros Didá-
ticos do Ensino Fundamental, por considerar que essa é uma etapa
fundamental para o desenvolvimento crítico do leitor. Analisando
especificamente a presença da literatura africana em gêneros textuais
narrativos, poesia ou músicas, nos livros posteriores à referida Lei, e
comparando ao único livro aqui analisado que é anterior a ela, pode-
remos traçar um quadro demonstrativo da presença da temática nos
livros didáticos no decorrer dos últimos quinze anos.
A partir da leitura de Marcuschi (2008) podemos obter uma clas-
sificação bastante útil para identificar como se dá a abordagem da
temática afrobrasileira nos textos que contemplam o referido assunto
nos livros ora analisados. Tratam-se de exercícios de compreensão em
livros didáticos de língua portuguesa (LDP), enfatizando a noção de
língua subjacente a eles e as habilidades desenvolvidas por eles. O
autor propõe uma tipologia de perguntas de compreensão em LDP
(Livro Didático de Português), segundo a qual são nove os tipos de
perguntas que poderemos encontrar nos livros didáticos (p.271-272),
conforme descritos a seguir:
20
Tipo Especificações:
21
São perguntas que se relacionam superfi-
cialmente como texto e deixam a resposta
6) Subjetivas:
por conta do aluno, não há como testar a
validade delas.
Santomé, ao falar sobre currículo, afirma que este deve preparar
os alunos para se tornarem cidadãos críticos, solidários e democráti-
cos, em uma sociedade igualmente solidária e democrática. Especifica
ainda que uma meta desse tipo exige que os currículos selecionados, as
experiências vivenciadas em sala de aula e as formas avaliativas “pro-
movam a construção dos conhecimentos, destrezas, atitudes, normas
e valores necessários para ser bom/boa cidadão/cidadã” (SANTOMÉ
apud SILVA, 1995, p.159).
22
Assim, percebemos o quão importante é o livro didático para
formação da cidadania, enquanto instrumento que materializa o cur-
rículo vivenciado nas escolas. Temos uma tradição histórica de valo-
rização das culturas hegemônicas, e os livros didáticos trazem em si
os conteúdos considerados necessários ao ensino. Por isso é tão im-
portante observar e analisar reflexivamente o que há de verdades e de
estereótipos em suas páginas impressas.
Quando se analisam de maneira atenta os conteúdos que são desenvol-
vidos de forma explícita na maioria das instituições escolares e aquilo
que é enfatizado nas propostas curriculares, chama fortemente a atenção
a arrasadora presença das culturas que podemos chamar de hegemôni-
cas. As culturas ou vozes dos grupos sociais chamados minoritários e/
ou marginalizados que não dispõem de estruturas importantes de po-
der, costumam ser silenciadas quando não estereotipadas e deformadas,
para anular suas possibilidades de reação (SANTOMÉ apud SILVA,
1995, p.161).
23
rém, algumas informações específicas sobre este continente são usadas
de forma generalizada, tratando-o como um grande e terrível lugar
para se viver. Para tentar explicar esta expectativa negativa que se tem
da África, Anderson Ribeiro Oliva (2008), afirma que:
A África e suas múltiplas experiências históricas não nos foram apresen-
tadas durante nossas trajetórias de vida e formações escolares, a não ser
por meio de informações que estavam recheadas de equívocos e sim-
plificações. Quantos de nós estudamos a África quando estávamos nos
bancos das escolas? Quantos tiveram as disciplinas História, Literatura
e Artes ou Geografia da África nos cursos de Graduação? Quantos li-
vros ou textos lemos sobre a questão? Tirando as leituras que associam
a África e os Africanos à escravidão (...) ou ainda as imagens chocantes
de um mundo africano em agonia, da AIDS que se alastra, da fome que
esmaga, dos grupos étnicos que se enfrentam com grande violência ou
dos safáris e animais exóticos, o que sabemos sobre a África? (História
e Cultura Afro-Brasileira e Africana na escola. 2008, p.30)
24
apenas a transmitir os preceitos sociais dos grupos dominantes. Po-
rém, é justamente neste ponto que a escola e seus currículos come-
tem falhas: peca-se pela parcialidade e pela expressão exclusiva das
ideologias dominantes. Assim nos diz Santomé (1995): “O ensino e
a aprendizagem que ocorrem nas salas de aula representam uma das
maneiras de construir significados, reforçar e conformar interesses
sociais, formas de poder, de experiências, que têm sempre um signi-
ficado cultural e político” (p.166)
A parcialidade curricular, por assim dizer, contribui para a perpe-
tuação de uma geração que acredita (porque assim lhes foi ensinado
na escola – instituição que detém o conhecimento) que a África é
um lugar de mazelas infindáveis. E os livros didáticos, materiais mais
acessíveis a professores e alunos, e por isso largamente utilizados na
educação escolar brasileira, ainda apresentam falácias ao abordarem
temas relativos ao continente africano, conforme mostra pesquisa de-
senvolvida por Oliva, que nos diz:
Silêncio, desconhecimento e poucas experiências positivas. Poderíamos
assim, definir o entendimento e a abordagem da história africana nas
coleções de livros didáticos brasileiros. Apenas um número muito pe-
queno de manuais possui capítulos específicos sobre a temática. Nas
outras obras, a África aparece apenas como um figurante que passa des-
percebido em cena, sendo mencionada como um apêndice misterioso e
pouco interessante de outros assuntos. (OLIVA, 2008, p. 31).
26
apresentação dos conteúdos: tamanho da letra, imagens, atividades,
entre outros.
Sabemos que a Literatura não se constitui em uma disciplina iso-
lada dos conteúdos de Língua Portuguesa, por isso não aparecem con-
teúdos especificamente literários. Portanto, cabe ao professor analisar
como a temática é abordada nos livros didáticos do Ensino Funda-
mental, pois como já foi dito, consideramos ser este período muito
propício para a formação de um leitor crítico, e só se pode formar um
bom leitor a partir do contato com a leitura de diversos gêneros, bem
como de uma iniciação com a leitura literária.
27
Pelos temas apresentados nas unidades, faz-se primeiramente a
leitura atenta destes capítulos, em que já se percebe que a cultura
africana não está contemplada na unidade que se refere à “Minha
Pátria”, exclusão injusta aos que tanto trabalharam para fazer a pátria
que hoje temos.
Já a unidade 8, traz imagens que remetem à escravidão, sendo um
capítulo dedicado à “Arte e História” da colonização brasileira. Apre-
senta trechos de relatos da viagem de Debret, cujos textos completos
estão na obra Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, intitulados “Apli-
cação do castigo do açoite”, p. 165 e “O castigo do açoite”, p.168.
Este último vem ilustrado com o quadro do mesmo autor (Debret) e
cujo título é Aplicação do castigo do açoite. Assim, segundo Marchus-
chi, textos do tipo ‘Relato de Viagem’, encontram-se sob o domínio
social de comunicação por ele intitulado “Documentação e memori-
zação de ações humanas”, cuja capacidade dominante da linguagem
é o “relatar”. Portanto, esses textos tratam da temática, mas não se
encaixam no que buscamos em literatura africana: gênero narrativo,
poesia e música.
Seguindo com a leitura do capítulo, nas páginas 171 e 172, en-
contra-se um trecho da obra da segunda parte do romance Fogo Mor-
to, de José Lins do Rego, chamado “O engenho de Seu Lula”. Não
é necessária uma análise criteriosa para perceber que se trata de uma
narrativa literária em que são identificáveis as características que com-
põem o texto narrativo: enredo, personagens, lugar e tempo onde se
desenvolvem as ações. Assim, temos um primeiro texto que se en-
quadra no gênero e tema ora pesquisados, embora o texto aborde a
questão escravagista, enfatizando a hipótese de que a abordagem em
textos que tratam do negro e do africano nos livros didáticos geral-
mente associam este tema à escravidão.
28
Quanto às perguntas relacionadas ao texto, são bastante varia-
das quanto à tipologia. Há questões globais, de inferência e metalin-
guísticas; porém, predominam as perguntas denominadas objetivas e
cópias. Uma possível explicação para tal variação é que as atividades
sobre o texto não se encontram divididas quanto à abordagem (inter-
pretativas, vocabulares e opinativas).
Ainda no capítulo oito do livro 01, p. 185, encontra-se um tre-
cho da poesia Navio Negreiro do poeta Castro Alves. A abordagem
feita em relação às perguntas sobre o texto considera principalmente
a subjetividade e complexidade interpretativa da obra de Debret, José
Lins do Rego e Castro Alves. São perguntas mais globais e de inferên-
cia.
O livro apresenta mais uma narrativa intitulada Boas-Vindas, de
Ana Lúcia E. F. Valente, um texto jornalístico e uma entrevista que
tratam do tema “racismo”. As perguntas sobre os textos levam a uma
reflexão sobre o racismo para uma posterior produção escrita. É im-
portante salientar que todos os outros capítulos do livro foram anali-
sados cuidadosamente e não foi encontrado nenhum outro texto que
trate do tema história e cultura afro-brasileira.
29
O módulo 02, que se intitula Gente Brasileira, gera uma expecta-
tiva em relação ao tema da afrodescendência. Porém, o que se encon-
tra que pode ser relacionado à temática são textos biográficos de bra-
sileiros que se tornaram célebres por algum feito, como por exemplo,
do geógrafo Milton Santos e da catadora de papel Maria das Graças
Marçal (p.72 e 73).
No Módulo 03, intitulado As Mil Faces do Brasil, numa seção
cujo objetivo é trabalhar a gramática (estrutura das palavras), há uma
reportagem (p.111) intitulada Guardiã do Divino, que remete às tra-
dições religiosas africanas. Porém, somente um olhar atento do pro-
fessor, voltado aos valores culturais afrodescendentes, levaria a um
estudo cultural do texto, uma vez que o mesmo não passa de um
pretexto do livro didático para se trabalhar a gramática.
Um pouco mais adiante, numa seção de Produção de Texto com o
tema Folclore Brasileiro, surge um texto jornalístico que trata das ori-
gens culturais do povo brasileiro, destacando o tripé brancos, índios
e negros. Porém o texto, que se encontra nas p. 147 e 148, pertence
à esfera jornalística, de autoria de José Edward, tendo sido publicado
na Revista Veja em 20 de dezembro de 2000, não atendendo ao crité-
rio investigado nesta pesquisa.
Somente na página 281 é que podemos encontrar um texto poé-
tico de Mia Couto, intitulado Companheiros. O texto aborda ques-
tões relacionadas à vida do povo moçambicano e na página 282 traz
um box informativo sobre Moçambique. As perguntas que visam in-
terpretar o texto são Subjetivas, segundo a classificação adotada por
Marcuschi, e levam o estudante a refletir e construir respostas pes-
soais, em algumas situações se colocando no lugar do eu-lírico do
poema.
30
Livro 03. Português Linguagens (William Cereja e Thereza
Cochar).
32
cam-se textos da esfera jornalística (reportagens, notícias, artigos de
opinião e entrevista) e da esfera instrucional (biografias), seguindo a
classificação de Marchuschi (2008), p.194.
O que mais chama atenção no gráfico, é que, ao comparar a quan-
tidade de páginas e de gêneros textuais encontrados nos livros poste-
riores à Lei 10.639/03 ao livro anterior à obrigatoriedade do ensino
da história e cultura africana, vê-se claramente que o número de páginas
e de gêneros textuais abordados no livro de 2000 é superior a todos os li-
vros posteriores à referida Lei.
Se supúnhamos que a criação e implementação de uma lei que
torna obrigatório o ensino da história e cultura africana traria um
aumento quantitativo e qualitativo de conteúdos que abordem esse
tema nos materiais didáticos, essa pesquisa comprova o contrário: ou
seja, que no decorrer destes 15 anos (tomando por base os anos de
edições dos livros 2000-2016) houve uma redução na quantidade de
textos que tratam da temática.
Considerações finais
33
Porém, no que diz respeito à produção de materiais de apoio pe-
dagógico, especialmente o Livro Didático, o que se observa é um
descaso com a literatura africana, e consequentemente com o ensino
da história e cultura da África. Há uma grande deficiência de gêneros
literários narrativos, de poesias e músicas nas páginas dos referidos
manuais; e o que é pior: a presente pesquisa demonstrou que houve
uma redução da quantidade de páginas e textos dedicados à temática
africana nos Livros Didáticos de Língua Portuguesa, o que nos faz su-
por que, nas escolas em que livro didático é a ferramenta principal de
trabalho, é cada vez mais raro falar da história ou da cultura africana.
A Lei que obriga o ensino da história e cultura africana não trou-
xe nenhuma garantia quanto à sua efetivação, faltando fiscalização
mais adequada; e claro, critérios mais rigorosos (que considerem esta
questão no momento de escolha dos livros didáticos que chegam às
escolas públicas. É evidente a necessidade de estudar a História e a
Cultura da África e dos africanos, dada a escassez de textos literários
e pesquisas nessas áreas, o que se traduz no pouco espaço dedicado
ao tema nos livros, assim como na desvalorização do negro na socie-
dade.
34
Referências
35
SOUZA, Ana Lúcia et alli. De olho na cultura: pontos de vista
afro-brasileiros. Salvador: Centro de Estudos afro-orientais; Bra-
sília: Fundação Palmares, 2005.p.141
36
2 - O lugar da literatura indígena nos documentos curriculares
oficiais do Estado de Pernambuco e nas Escolas Estaduais
de Bom Conselho
Ana Flávia Ferro
Introdução
38
propostas da rede estadual de Pernambuco. Afinal, é sobretudo na
escola que se aprende a valorizar a pluralidade nas maneiras de viver,
assim como é nela que “se assume o compromisso ético de contribuir
com as transformações necessárias à construção de uma sociedade
mais justa” (PCN Pluralidade Cultural).
39
rimoniais, histórias de animais, narrativas sobre fatos gerais da vida,
cantos diversos e poemas.
Entre as características dessa literatura, merece destaque o fato
de apresentarem “uma interação de multimodalidades: a leitura da
palavra impressa interage com a leitura das ilustrações, com a percep-
ção de desenhos geométricos, de elementos rítmicos e performáticos”
(THIEL, 2013, p. 1178). Trata-se, portanto, de uma rica experiência
para crianças, jovens e adultos brasileiros, tanto no que diz respei-
to ao contato com outras formas de literatura, como com as cultu-
ras dos povos indígenas, tão diversas e tão significantes para o nosso
povo já que representam também um contato com nossa identidade.
De acordo com Graúna (2011, p. 258): “as implicações em torno
dessa temática permitem compreender o aspecto da auto história e
sua relação com a oralidade e a escrita, entre outras questões identi-
tárias que emanam da literatura contemporânea de autoria indígena
no Brasil”.
No entanto, essa riqueza não está sendo explorada como poderia.
Mesmo após a implementação da Lei 11.645/08, essa literatura ain-
da é praticamente desconhecida e pouco ou quase nunca trabalhada
nas escolas. Isso ocorre por vários motivos inclusive por não haver
materiais disponíveis sobre a temática. Como afirma a autora ante-
riormente citada,
Notória foi e é ainda a insatisfação dos trabalhadores e trabalhadoras da
Educação diante da falta de material didático sobre o assunto. A partir
de março de 2008, foi constante, e é ainda, da parte de professores(as)
a procura por um modelo que oriente o uso dessa lei nas disciplinas de
Literatura, História, Geografia, Língua Portuguesa, Artes e outras dis-
ciplinas afins. (GRAUNA, 2011, p. 236)
Lenda do Boitatá
42
Texto de autoria indígena:
O ROUBO DO FOGO
Povo Guaraní (Mito Guarani)
43
[...]
Acontece que, por trás de todos, saiu o pequeno curucu,
dizendo:
- Durante a luta os urubus se preocuparam apenas
com os animais grandes e não notaram que eu peguei uma
brasinha e coloquei na minha boca. Espero que ainda es-
teja acesa. Mas pode ser que...
- Depressa. Pare de falar, meu caro curucu. Não po-
demos perder tempo. Dê-me esta brasa imediatamente -
disse Nhanderequeí, tomando a brasa em suas mãos e as-
soprando levemente.
[...]
Nhanderequeí soprou ainda mais forte e, finalmente,
as chamas apareceram no meio da palha e do carvão que
sustentaram o fogo aceso para sempre.
Percebendo que tudo estava sob controle, o herói
ordenou que seus parentes encontrassem madeiras caneli-
nha, criciúma, cacho de coqueiro e cipó-de-sapo e as usas-
sem sempre toda vez que quisessem acender e conservar o
fogo. Além disso, o corajoso herói ensinou os Apopocúva
a fazer um pilãozinho onde guardar as brasas e assim con-
servar o fogo para sempre.
Dizem os velhos desse povo que até os dias de hoje
os Apopocúva guardam o pilãozinho e aquelas madeiras.
44
Como se pode perceber, as textualidades indígenas “além de sus-
citarem a imaginação, promovem a percepção de como os outros, os
diferentes, representam sua realidade, leem o mundo, e produzem
textos com uma configuração estética diferente daquela do cânone
ocidental” (THIÉL e QUIRINO, 2011, p.6633), trazendo ao leitor
não-índio o conhecimento de sua rica cultura. Nesse ínterim, faz-se
necessária uma mudança de paradigmas, partindo do reconhecimen-
to de que como partes importantes da constituição do nosso povo, os
indígenas precisam ser (re)conhecidos e o contato com sua cultura e
com a literatura por eles produzida é uma excelente maneira de fazê-
lo.
45
Tratando do eixo Letramento Literário e das expectativas de apren-
dizagem para os anos finais do ensino fundamental os parâmetros Cur-
riculares de Língua Portuguesa do Estado de Pernambuco sugerem
que o trabalho com o texto literário na escola, através de “atividades
intertextuais podem permitir o acesso a diferentes representações de
experiências humanas e a descoberta do quanto a literatura pode dizer
sobre isso”. No entanto, das 31 expectativas de aprendizagem cons-
tantes no documento, apenas quatro (EA13, EA14, EA15 e EA16)
fazem referência aos grupos minoritários, e apenas uma (EA15) faz
referência à literatura produzida pelos indígenas.
O eixo em análise indica, ainda, a importância de se considerar o
momento histórico de produção dos textos, reconhecendo-se a lite-
ratura como elemento da cultura, da história e da identidade brasilei-
ra. No entanto, praticamente desconsidera a necessidade de o aluno
entrar em contato com as produções literárias oriundas das culturas
afro-brasileira e indígena - duas etnias fortemente entrelaçadas na
constituição do povo brasileiro. Assim, observa-se a supremacia legi-
timada da cultura e da literatura eurocêntricas.
46
brasileiro. Iniciaremos pelo sétimo ano, uma vez que no sexto ano do
Ensino Fundamental esta literatura não aparece citada.
QUADRO 1:
Ano do ensino
fundamental BIMESTRES
EXPECTATIVA DE APRENDIZAGEM
em que é LETIVOS
proposta
7º III
- Reconhecer a contribuição dos principais
8º III
autores da história da literatura nacional.
9º II e III
7º III
- Reconhecer a importância de obras literá-
rias nacionais para a formação da consciên- 8º III
cia e da identidade do povo brasileiro.
9º II e III
47
- Identificar diferentes formas de represen- 8º
II e IV
tação de grupos objeto de discriminação,
tais como o índio, a mulher, o negro, o imi-
grante, o homossexual, o idoso, o pobre,
em contextos históricos e literários. 9º I
2.3. Currículo de português para o Ensino Médio - com base nos Parâ-
metros Curriculares do estado de Pernambuco.
QUADRO 2:
SÉRIE DO
EXPECTATIVA DE ENSINO BIMESTRES
APRENDIZAGEM MÉDIO EM QUE LETIVOS
É PROPOSTA
49
• O Setecentismo: o contexto social e
histórico e o estudo da produção li-
terária do período setecentista. O ar-
cadismo mineiro - o épico, o lírico e
o satírico. Cláudio Manoel da Costa.
Tomás Antônio Gonzaga – José Basí-
lio da Gama. 1ª III e IV
50
Os conteúdos propostos para a Terceira Série do Ensino Médio
são voltados à continuidade da história da literatura, com destaque
para autores e obras constantes no cânone nacional. Porém quanto às
expectativas de aprendizagem, observa-se uma tímida referência aos
grupos minoritários, não como autores, produtores de literatura, mas
como temática.
Diante do exposto, fica clara a enorme lacuna da literatura indí-
gena nos documentos curriculares do Estado de Pernambuco, mesmo
após a aprovação da Lei 11.645/2008, que determina sua inclusão
nos currículos nacionais. Observa-se que, se nos anos finais do Ensi-
no Fundamental são propostos poucos conteúdos sobre a temática,
no Ensino Médio eles são praticamente inexistentes. A prioridade é
para a literatura de base europeia. Assim, como declara Thiel:
O espaço escolar promove repertórios canônicos de tradição literária
europeia, incluídos em antologias ou considerados leitura obrigatória
para referência em qualquer círculo de discussão acadêmica. Professores
desconhecem os autores indígenas ou julgam suas obras por critérios
canônicos ocidentais de literariedade, o que faz com que não reconhe-
çam nestas textualidades valor estético comparável àquele dos textos
recomendados nos currículos e exigidos em exames e concursos. (2013,
p.1177)
QUADRO 3:
QUANTIDADE DE RESPOSTAS
FORNECIDAS
QUESTIONAMENTOS
NÃO SEI
SIM NÃO
INFORMAR
52
A escola em que trabalha já de-
senvolveu projetos com a temá-
04 09 -
tica história e cultura indíge-
na?
53
nunca teve acesso, na escola, a materiais de orientação para o traba-
lho com história, cultura e literatura indígena. Vale salientar, ainda,
que nenhum dos entrevistados encontrou na biblioteca de sua escola
livros de literatura de autores indígenas, o que sinaliza, no mínimo,
pouca oferta de títulos na distribuição realizada pelo PNBE (Progra-
ma Nacional Biblioteca da Escola).
Este cenário perpetua a marginalização da cultura dos povos in-
dígenas e o desconhecimento da literatura de sua autoria. Sobre esse
contexto, Santos & Costa, declaram:
Precisamos, pois, inserir a literatura produzida por indígenas e por afri-
canos em nossas salas de aulas para que possamos permitir que crianças
e jovens não indígenas e não africanos possam (re)conhecer o valor da
história e da cultura do Outro, desconstruindo preconceitos e estereó-
tipos e dando espaço, assim, ao multiculturalismo. (2015, p. 245)
Considerações Finais
55
Referências
57
3 - A “escrevivência” e a autoria feminina na literatura
afro-brasileira
Ângela Maria Florentino dos Santos Campos
Shirley Bezerra Lopes Albuquerque
Introdução
58
O Brasil, em razão de sua dimensão e da ausência de preocupação com
a reprodução biológica dos negros, foi o maior importador de escravos
das Américas. Estudos recentes estimam em quase 10 milhões o núme-
ro de negros transferidos para o Novo Mundo, entre os séculos XV e
XIX. Para o Brasil teriam vindo em torno de 3.650.000 (BIBLIOTE-
CA NACIONAL, 1988, p. 9).
60
pode ser uma espécie de vingança, às vezes fico pensando sobre isso.
Não sei se vingança, talvez desafio, um modo de ferir o silêncio impos-
to, ou ainda, executar um gesto de teimosa esperança. Gosto de dizer
ainda que a escrita é para mim o movimento de dança-canto que o meu
corpo não executa, é a senha pela qual eu acesso o mundo (EVARIS-
TO, 2005a, p. 202).
62
A mulher negra duramente aviltada em seus mais intrínsecos di-
reitos foi tirada de sua origem, de seu lar, de seu povo e foi feita es-
crava sem ao menos ter o direito a maternidade, pois seus filhos eram
vendidos logo após o nascimento, como se fossem animais. Já nas-
ciam escravos com destino à senzala e ao trabalho pesado.
Na casa grande servia passava a criar os filhos da sinhá, dona da
casa e mulher branca. Sofria a rejeição de suas patroas e eram vistas
como estorvos e “sem educação, de hábitos péssimos, o que ameaça-
va, em potencial, a integridade física daqueles pequeninos entregues
aos seus cuidados” (CIVILETTI, 1991).
Cativa e sem voz, vista como objeto sexual e coisa sem valor, a
mulher negra vivia sua saga, respirando qual um náufrago em deses-
pero descomunal cumprindo um dogma imposto por seus opressores
que se apresentavam como constituintes de uma sociedade ética e
digna. Nos dias atuais, as mulheres afrodescentes desbravam seus ca-
minhos, lutam por seus direitos, registram sua fala e autoria em uma
sociedade ainda preconceituosa que insiste em reproduzir conceitos e
práticas machistas, discriminatórias e antissociais.
Diante desse contexto, o presente artigo almeja trazer algumas
contribuições referentes à análise da literatura afro-brasileira femi-
nina através do aprofundamento bibliográfico com pesquisas em li-
vros, leituras de produções literárias e entrevistas. Intentamos avaliar
a importância da escrita de autoria negra feminina para a literatura
afro-brasileira, tendo como produtora alguém que escreve a partir de
sua própria condição.
Essa literatura plena, marcada por experiências vividas ou ob-
servadas ao longo de suas vidas, traz para os leitores mais que uma
simples literatura: trata-se de uma escrita da vivência, que Conceição
Evaristo vai chamar de “escrevivência”. Esse elemento emerge como
diferenciador entre o texto escrito “sobre” o negro para o texto escri-
63
to “pelo” negro. A autoria dessa produção literária reflete o pertenci-
mento à literatura afrodescendente que vai ser observada e sentida no
ato recepcional, ao mesmo tempo em que registra o direito à sobrevi-
vência e reconstrução de sua história.
Sobre o exercício de reconstrução da própria história, Evaristo
afirma que:
O primeiro exercício da sobrevivência efetuado pelos africanos depor-
tados no Brasil, assim como em toda a diáspora, foi talvez o de buscar
recompor o tecido cultural africano que se desteceu pelos caminhos,
recolher fragmentos, traços, vestígios, acompanhar pegadas na tentativa
de reelaborar, de compor uma cultura de exílio refazendo a sua identi-
dade de emigrante nu (EVARISTO, s/d).
65
negro, ao mesmo tempo em que evoca a ancestralidade, registra o
sentimento pela pátria e demonstra de maneira veemente o repúdio
aos abusos sofridos na condição desumana de escravo.
A literatura afro-brasileira vem passando por um momento muito
importante, de intensa produção e divulgação, fazendo com que seu
conjunto de obras se amplie e caminhe para a consolidação acadê-
mica, tornando-se campo específico de estudos e produção literária
negra.
Essa literatura vem se afirmando, uma vez que tem raízes que es-
tão presentes em tempos e momentos históricos do nosso povo. Sen-
do múltipla e numerosa ela se expande e torna-se conhecida e apre-
ciada, “enfim, essa literatura não só existe como é múltipla e diversa”
(DUARTE, 2010, p.113).
Quando os escritores passaram a assumir seu pertencimento en-
quanto sujeitos vinculados à etnia afrodescendente sua produção li-
terária começa a se expandir no cenário cultural, ao passo em que
avança também o movimento negro ganhando visibilidade, e sendo
acrescido a essas novas demandas.
Dessa forma, o atual momento é oportuno para a ampliação de
tais estudos, para que haja material teórico suficiente que dê conta
de uma reflexão crítica acerca da literatura afro-brasileira, sobretudo
a de autoria feminina. É importante considerar que um marco para
a divulgação e ampliação dessa literatura é a publicação de Cadernos
Negros, que desde 1978 traz uma abordagem discursiva sobre a lite-
ratura negra e tem sua produção marcada pelo protesto contra o ra-
cismo. A partir daí surgem várias discussões a respeito da autoria das
obras literárias consideradas afrodescendentes.
Para alguns escritores afrodescendentes que lançam um olhar mais
crítico acerca da importância da autoria, é fundamental a autentici-
dade dessa enunciação, enfatizando que a literatura negra precisa ser
66
escrita por autor negro, pois esse tem uma vivência, sendo o único a
conhecer profundamente o significado do que é ser negro, o senti-
mento de pertencimento a essa história.
O professor pesquisador Eduardo de Assis Duarte assevera que:
A literatura negra é aquela desenvolvida por autor negro ou mulato
que escreva sobre sua raça dentro do significado do que é ser negro, da
cor negra, de forma assumida, discutindo os problemas que a concer-
nem: religião, sociedade, racismo. Ele tem que se assumir como negro.
(DUARTE, 2011, p. 377).
67
literários escritos por descendentes africanos, isso significaria restrin-
gir a perspectiva autoral, sem considerar os aspectos éticos e de iden-
tificação com esse tipo de obra.
Nesse sentido, Bernd (1988) propõe a seguinte reflexão:
A montagem da poesia negra faz-se a partir da (re)conquista da posição
de sujeito da enunciação, fato que viabiliza a re-escritura da História
do ponto de vista do negro. Edificando-se como espaço privilegiado
da manifestação da subjetividade, o poema negro reflete o trânsito da
alienação à conscientização. Assim, a proposta do eu lírico não se limita
à reivindicação de um mero reconhecimento, mas amplifica-se, corres-
pondendo a um ato de reapropriação de um espaço existencial que lhe
seja próprio (BERND, 1988, p. 77, grifos da autora).
68
essa literatura não perca os traços da negritude e sim que ganhe mais
força sendo de autoria negra.
71
bastante significativa que remete à condição de escravo vivenciada
por seu avô. Ponciá:
...não se acostumava ao próprio nome. Continuava achando o nome
vazio, distante. Quando aprendeu a ler e a escrever, foi pior ainda, ao
descobrir o acento agudo de Ponciá. Ás vezes, num exercício de auto-
flagelo ficava a copiar o nome e a repeti-lo, na tentativa de se achar, de
encontrar o seu eco. E era tão doloroso [...] sabia que o sobrenome dela
tinha vindo desde antes do avô de seu avô, [...]. Na assinatura dela, a
reminiscência do poderio do senhor, de um tal coronel Vicêncio. O
tempo passou deixando a marca daqueles que se fizeram donos das ter-
ras e dos homens. [...] Ponciá Vicêncio era para ela um nome que não
tinha dono (EVARISTO, 2003, p. 29).
72
O texto de Ponciá Vicêncio destaca-se também pelo território feminino
de onde emana um olhar outro e uma discursividade específica. É desse
lugar marcado, sim, pela etnicidade que provém à voz e as vozes-ecos
das correntes arrastadas. Vê-se que no romance fala um sujeito étnico,
[...] Mas, também, fala um sujeito gendrado, tocado pela condição de
ser mulher e negra num país que faz dela vítima de olhares e ofensas
nascidas do preconceito. Esse ser construído pelas relações de gênero
se inscreve de forma indelével no romance de Conceição Evaristo, que,
sem descartar a necessidade histórica do testemunho, supera-o para tor-
ná-lo perene na ficção.
Considerações finais
A literatura negra, apesar de estar relacionada com vários acon-
tecimentos estruturais da formação da nacionalidade brasileira, se
constitui a partir de um fenômeno autônomo que tem o poder de
73
proporcionar o estudo e o conhecimento sobre autores, autorias e
identidade de um povo que tão bem representa sua cultura. Também
tem o poder de lançar reflexões sobre a vida desses autores(as), o lu-
gar de onde eles(as) falam e qual o propósito de suas enunciações.
E nesse universo culturalmente plural, que coexiste na literatura
afrodescendente, contemplamos a trajetória da mulher negra, forte,
lutadora e resiliente, capaz de seguir conquistando espaço e dignida-
de numa sociedade ainda tão machista e preconceituosa.
A presente pesquisa nos permitiu refletir sobre a importância dos
escritos femininos para o enriquecimento da Literatura Afrodescen-
dente, levando em consideração a enunciação da mulher negra como
forma de empoderamento, posicionamento e apropriação da condi-
ção de ser humano contra a tirania e a subjugação que lhe é imposta
pela sociedade.
A obra evaristiana acolhe as vozes daquelas que sentiram e sentem
na pele os grilhões da indiferença e da maldade. Dessa forma, o dis-
curso de Conceição Evaristo tem destinatário literário certo e preciso.
Refletimos então que a literatura afro-brasileira se constitui en-
quanto um legado literário riquíssimo, que fala das vidas e realida-
des de um povo que ajudou a construir a nação brasileira, podendo
adentrar as portas da escola ressignificando conceitos e metodologias
de forma a colaborar com o conhecimento real da história dos afro-
descendentes através de escritores afrodescendentes.
74
Referências
75
______. Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face. In:
MOREIRA, Nadilza Martins de Barros; SCHNEIDER, Liane.
(Orgs.) Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. João
Pessoa: Idéia Editora Ltda, 2005.
76
OLIVEIRA, Eduardo. Cosmovisão africana no Brasil. 2013.
Disponível em: tps://filosofiadaancestralidade.wordpress.
com/2013/03/01/cosmovisao-africananobrasil-elementos-para-
-uma-filosofia-afrodescendente-eduardo-david-de-oliveira/. Aces-
so em: 20 mar. 2018.
77
PARTE II
letramentos MARGINAIS
1 - Literatura e ensino: as várias faces do letramento
literário
Edivânia Helena Nunes
Introdução
79
tica efetiva e não apenas esporádica, mero pretexto para abordagens
gramaticais ou ensinamentos morais. Nesse sentido, refletir sobre o
papel da literatura e a sua importância na formação do ser humano
deve ser uma das principais prerrogativas do ensino da literatura.
A literatura, como produção humana, está inserida e ligada à vida
social. Sendo assim, todos devem ter direito à literatura, pois o con-
tato com a mesma permite o encontro com o universal, colocando
os leitores como iguais, uma vez que, o que o universal diz respeito
a todos os seres. O ensino da literatura deve promover o letramento
literário, o gosto pelo estético, o histórico e, assim, contribuir para a
formação humanizadora e cidadã, por meio das experiências com os
textos literários e com a arte. Pois, como afirma Candido (2011), é
através da literatura que um povo constrói a sua identidade, atua em
sociedade e fortalece a existência da coletividade.
Diante do exposto, este artigo buscou elencar algumas reflexões,
a partir da percepção dos alunos do 9º ano do ensino fundamental
do município de Ipojuca-PE, a respeito de suas experiências com o
texto literário. Para isto, foi aplicado um questionário com questões
abertas e, a partir das respostas apresentadas, avaliou-se se o ensino
da literatura tem contribuído para o letramento literário, a formação
cidadã e como experiência humanizadora em uma turma de 9º ano
de Ensino Fundamental II. Quais os desafios do ensino da literatura,
uma vez que a disciplina parece estar sendo apresentada apenas como
pretexto para transmitir conceitos morais ou conteúdos gramaticais?
Na tentativa de alcançar seus propósitos, o artigo será organiza-
do da seguinte maneira: inicialmente, a abordagem sobre o ensino
da literatura de acordo com o que preconizam os documentos legais
como PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) e LDB (Lei de Di-
retrizes e Bases), relacionando as orientações destes documentos com
aquilo que acontece na prática em sala de aula quanto ao ensino da
80
Literatura. Finalmente, será apresentada a análise das respostas dos
estudantes, concluindo com as reflexões dos resultados nas conside-
rações finais.
81
não se mostra suficiente para assegurar ao ensino da literatura o lugar
de destaque que este um dia ocupou.
O tratamento do texto literário oral ou escrito envolve o exercício de
reconhecimento de singularidade e propriedades que matizam um tipo
particular do uso da linguagem. É possível afastar uma série de equívo-
cos que costumam estar presentes na escola em relação aos textos lite-
rários, ou seja, torná-los como pretexto para o tratamento de questões
outras (valores morais, tópicos gramaticais) que não aqueles que contri-
buem para a formação de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as
particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das constru-
ções literárias (PCN, 1998, p. 27).
Diante dessa afirmação, percebemos que, ao mesmo tempo em
que o documento deixa a desejar no que concerne à importância do
ensino da literatura pela escola, ele nos chama a atenção para o fato
de que a escola não deve relegar o ensino da literatura a mera condi-
ção de transmissora de ensinamentos morais e conceitos gramaticais,
descaracterizando o ensino da literatura na sala de aula. Pois, como
é sabido, o ensino da história da literatura tem sido priorizado pela
escola, usurpado do educando a construção de laços com o texto li-
terário, deixando a escola de ocupar o espaço de formação de leitores
e, em especial, do letramento literário, este indispensável para a hu-
manização e formação cidadã dos jovens. Para Coelho (2008, p. 72):
[...] precisamos aprender a interrogar o mundo à nossa volta e, de acor-
do com as circunstâncias, em que cabe a cada um viver, programarmos
a ação transformadora do nosso “eu” e dos que de nós dependem para
se assumirem, conscientemente, como seres humanos, num mundo que
se transforma de minuto a minuto.
83
Elaborar, a partir deles, sentidos para si mesmo e para o mundo em
que vive, posto que “a literatura está presente em cada um de nós,
analfabetos ou eruditos, como anedota, causo, história em quadri-
nhos, noticiário policial, canção popular, moda de viola, samba car-
navalesco” (CANDIDO, 1995, p. 177).
O ensino da literatura na escola tem sido frequentemente redu-
zido à contextualização histórica, à caracterização de obras e seus res-
pectivos autores e à leitura dos clássicos. Dessa forma, o educando não
consegue ir além do nível mais elementar de compreensão, deixando
de perceber a plurissignificação do texto literário, seus diálogos com
outros textos, em grande parte porque este aparece nos livros didáti-
cos de forma fragmentária, descaracterizando a obra em seu suporte
original.
Indo de encontro ao exposto anteriormente, Lajolo (2005, p. 93)
sugere “que a escola transforme a leitura literária que patrocina em
uma atividade mais significativa”. A leitura literária, pautada apenas
em questões de características de obras e autores que valoriza a pe-
riodização da literatura, não vai contribuir para a leitura de textos
literários de forma prazerosa.
Evidentemente se faz necessário refletir sobre o ensino e o letra-
mento literário adotado pela escola, de modo a ressignificar a apren-
dizagem da literatura.
84
damental do município de Ipojuca-PE. Perguntado aos estudantes
se os professores realizavam oficinas ou outras atividades utilizando
a leituras de textos literários em seu suporte original, 90% dos entre-
vistados responderam que não e 10% afirmaram que sim, conforme
gráfico a seguir:
85
Ao serem questionados se consideravam a leitura de textos lite-
rários importante para sua formação, cem porcento dos educandos
consideraram que sim, apontando que, mesmo havendo uma defi-
ciência no trabalho com o texto literário, os estudantes reconhecem
sua importância para a sua formação, como se observa no gráfico a
seguir:
86
É possível perceber, a partir das respostas dos estudantes, que a
escola não tem desenvolvido um trabalho adequado com a leitura
do texto literário e, consequentemente, com o letramento literário,
especialmente em seu suporte original, ou seja, a obra original e com-
pleta.
Com o PNLD (Plano Nacional do Livro Didático), democra-
tizou-se o acesso ao livro didático, sendo este o meio pelo qual os
educandos mais têm acesso aos textos literários, mesmo que de for-
ma fragmentada e com fins diferentes daqueles que devem ser dados
à leitura literária, ficando o aprendizado da literatura restrito a esse
suporte.
Ainda sobre o ensino da literatura proposto pelos livros didáticos,
é possível perceber que este é restrito a estilos literários, periodização
de autores e suas respectivas obras, transformando o texto literário
em um mero texto didático.
Considerações finais
88
Referências
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel. Teoria da Literatura. 5ª Ed.
Coimbra: Livraria Almeida, 1983. p. 10-13.
89
MAGNANI, Maria do Rosário Mortatti, (2001). Leitura, lite-
ratura e escola - Sobre a formação do gosto. 2ª ed. São Paulo:
Martins Fontes.
90
2 - Literatura e outras linguagens: ressignificando o ensino
Ana Elizabete Novaes de Souza
Poliana Martins Oliveira Sá
Introdução
91
1. O ensino de literatura de acordo com os Parâmetros Curriculares
Nacionais e os Parâmetros para a Educação Básica do Estado de
Pernambuco
92
É importante que o trabalho com o texto literário esteja incorporado
às práticas cotidianas da sala de aula, visto tratar-se de uma forma es-
pecífica de conhecimento. Essa variável de constituição da experiência
humana possui propriedades compositivas que devem ser mostradas,
discutidas e consideradas quando se trata de ler as diferentes manifes-
tações colocadas sob a rubrica geral de texto literário (BRASIL, 1997,
p. 29).
93
O ensino gramatical aparece nos planos curriculares de Português, des-
de as séries iniciais, sem que os alunos, até as séries finais do Ensino
Médio, dominem a nomenclatura. Estaria a falha nos alunos? (...) Os
estudos literários seguem o mesmo caminho. A história da literatura
costuma ser o foco da compreensão do texto, uma história que nem
sempre corresponde ao texto que lhe serve de exemplo (BRASIL, 2000,
p.16).
Assim, questiona-se que o ensino de literatura é muitas vezes dado
tal qual o de gramática, sem articulação com a realidade do aluno.
Questiona-se, nas entrelinhas, o papel do professor.
Dadas as colocações dos PCN para o Ensino Fundamental e Mé-
dio, queremos refletir sobre as colocações dos Parâmetros para a Edu-
cação Básica no Estado de Pernambuco (2012), especificamente para
o ensino de Língua Portuguesa que destacam o porquê de tratar a
formação leitora em um eixo específico denominado Letramento Li-
terário:
Para além da leitura de textos de recepção pragmática, a leitura literária
ocupa lugar de destaque na formação de um leitor proficiente. O leitor
de literatura é alguém que escolhe ler porque descobriu o prazer de ler.
Mas, além do despertar do gosto, a formação para a literatura faz-se a
partir do desenvolvimento de capacidades que auxiliam os leitores em
formação a abordar o texto literário, dando conta de suas especifici-
dades e das estratégias e recursos que fazem a sua literariedade (PER-
NAMBUCO, 2012, p.85).
95
Considerando essas relações, muitos professores têm adotado em
suas práticas um trabalho com Literatura articulando-a a outras lin-
guagens, na perspectiva de favorecer e estimular a leitura dos clássi-
cos.
Em uma realidade tecnológica, na qual as crianças e os adolescen-
tes estão imersos atualmente, faz-se necessário dinamizar o trabalho,
e isso não é restrito a literatura. Não é mais possível à escola descon-
siderar tal realidade mas, aliada a ela, desenvolver novas práticas.
Nesse sentindo, surgem críticas de estudiosos e professores acerca
do desenvolvimento desse trabalho, considerando que o livro possa
ser substituído por outros recursos, ou ainda, que o empenho em ex-
plorar outras linguagens deixe em segundo plano a leitura das obras
literárias. Evidentemente, não é possível garantir que isso não irá
acontecer, mesmo não sendo esse o objetivo no desenvolvimento do
trabalho. Existe a consciência generalizada de que os alunos, em sua
maioria, não têm estímulo para a leitura, ou simplesmente não gos-
tam da leitura que a escola oferece, e é, sobretudo, considerando esse
público atual, que a escola necessita rever suas práticas e apostar em
novas possibilidades.
Segundo Perrone (2006, p. 24), “reconhecer as mudanças tec-
nológicas não é o problema, o problema consiste em um deslum-
bramento com essas tecnologias em detrimento do livro”. A autora
reconhece que o aluno está mais familiarizado com a linguagem vi-
sual, possibilitada pelas tecnologias, e que é possível mostrar-lhe as
relações da literatura com outras linguagens, como por exemplo, o
cinema. “Muitos adolescentes começaram por Harry Potter, o filme,
e a partir dele descobriram o prazer da leitura de Harry Potter, o li-
vro. E de Harry Potter poderão passar, mais tarde, a obras melhores”
(PERRONE, 2006, p. 24).
96
É nesse sentido que precisamos repensar o ensino da Literatura,
reconhecendo a familiaridade dos alunos de hoje com o campo
tecnológico e as relações que, inegavelmente, a literatura estabelece com
outras linguagens. Não se trata de uma substituição de instrumentos,
mas de aliar instrumentos diversificados, com o mesmo objetivo.
Segundo Silva (2014, p.02) “desconsiderar as novas tecnologias que
nos dão acesso a diversas linguagens é isolar a escola do mundo em
que vivemos, é tentar impedir a inovação e a utilização de ferramentas
que podem estar a serviço da promoção do conhecimento”. Os ado-
lescentes de hoje nasceram na era digital, não aceitam mais as imposi-
ções da escola e descobriram, em suas vivências, outras formas de ver
e representar o mundo, bem como desenvolveram o prazer em outras
leituras que, muitas vezes, não são contempladas pela escola. Para
esses adolescentes, o ensino da literatura, precisa ser ressignificado e
vivenciado, considerando todas as suas possibilidades.
Nesse sentido, acreditamos que é perfeitamente possível, desen-
volver um trabalho nas aulas de literatura, articulando-a a outras lin-
guagens, e apresentaremos no tópico seguinte algumas estratégias que
podem ser ampliadas em sala de aula, na perspectiva de desenvolver
esse trabalho.
98
Fonte: Elaborado pelas autoras.
99
Analisando o Gráfico 03, percebemos que a maioria dos profes-
sores possui formação específica em Língua Portuguesa, correspon-
dendo a 90% dos que responderam aos questionários, apenas 10%
possuem formação em outras áreas, mesmo ministrando a disciplina.
No gráfico 04, apresentamos os resultados do questionamento
acerca da formação específica em Literatura, que os professores atuan-
tes na disciplina possuem, e constamos que 55% possui formação
específica em Literatura. Mesmo representado mais da metade dos
professores que possuem a formação, consideramos que 45% é um
número elevado de professores que atuam na área de Literatura sem
formação específica, conforme apresentado no Gráfico 04:
100
Fonte: Elaborado pelas autoras.
101
Com o questionamento 7, queríamos saber a frequência com que
acontecem as aulas de Literatura e, conforme Gráfico 07, constata-
mos que em 80% das práticas dos professores, as aulas acontecem
semanalmente, mas, surpreendentemente, 15% dos professores, afir-
maram que as aulas de Literatura acontecem bimestralmente.
Dessa forma, percebemos uma incoerência, ao compararmos o
Gráfico 07 com o Gráfico 05. Neste, todos os professores consideram
importante a garantia de tempo destinado a Literatura, e no Gráfico
07, 15% deles, afirmam que essas aulas apenas acontecem bimestral-
mente, ou seja, 04 vezes durante o ano, o que acaba por negar a ga-
rantia de tempo destinado a essas aulas.
102
Tabela 01 - Questionamento 08
103
No questionamento 09, buscamos saber se o professor costuma
envolver outras linguagens em seu trabalho com literatura, e confor-
me Gráfico 09, constatamos que todos os professores possuem essa
prática.
104
Tabela 02 - Questionamento 09
- Linguagens aliadas ao trabalho com literatura:
105
Fonte: Elaborado pelas autoras.
106
Tabela 02 - Questionamento 12
107
entanto, precisamos de mais pesquisas na área, que nos possibilitem
evidenciar como esse trabalho de fato vem acontecendo, se a literatu-
ra está sendo aliada, como aqui propomos, ou substituída por outras
linguagens. Pesquisas que viabilizem análises e avaliações quanto à
qualidade desse trabalho e, dessa forma, desencadear o desenvolvi-
mento de práticas que possibilitem o diálogo entre diferentes lingua-
gens, favorecendo de forma eficiente o trabalho com Literatura.
Considerações finais
108
Referências
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros cur-
riculares nacionais: Ensino de primeira à quarta série: Língua
portuguesa. Brasília: 1997.
110
3 - Tecnologia e ensino de literatura: uma experiência
utilizando como suporte o aplicativo WhatsApp
Maria Liliane de Lima Tenório
Introdução
Os progressos tecnológicos pelos quais vem passando a sociedade
moderna nos fazem perceber que não podemos conceber um ensi-
no que desconsidere essa nova realidade. O mundo moderno dife-
rencia-se pela multiplicidade de modos de compreender a realidade,
estabelecendo o aparecimento de novas estratégias para o processo
de produção do conhecimento. Peña (2004, p.10) afirma que diante
dessa nova realidade tecnológica é de suma importância que o pro-
fessor possua conhecimentos dessas linguagens, percebendo todas as
contribuições que essas tecnologias trazem para o ensino.
De fato, segundo Peña, faz-se necessária a modernização tecnoló-
gica dos professores a fim de enfrentar os novos desafios da sociedade
contemporânea empregando as Tecnologias Digitais de Informação
e de Comunicação (TDIC). O que implica em pensar sobre a neces-
sidade de reavaliarmos as condições atuais de produção do saber e os
efeitos da variedade de experiências e das novas tecnologias nas prá-
ticas culturais de leitura e escrita.
Estamos diante do aparecimento de uma nova cultura, que re-
quer de nós uma adaptação nos modos de ver, ler, pensar, ensinar e
aprender. Contudo, mesmo diante de uma sociedade moderna e tão
tecnológica verificamos cada vez mais as dificuldades que os estudan-
tes apresentam em realizar a leitura crítica de um texto, a maioria
deles realizando apenas uma espécie de decodificação de palavras sem
nenhuma reflexão acerca do sentido do que leem. Não há inferência
111
de sentido do texto e, quando se trata de um texto literário, a dificul-
dade torna-se maior ainda.
É possível perceber que grande parte dos estudantes não consegue
compreender o tipo de linguagem empregada em textos literários,
que muitas vezes foram escritos em séculos passados. Isso acaba por
fazer com que o estudante se distancie ainda mais da obra. Vemos que
grande parte dos estudantes, quando estabelecem um contato literá-
rio, o fazem a partir de obras contemporâneas, e principalmente com
obras adaptadas para o cinema. Dificilmente esse contato é realizado
com obras consideradas clássicas.
Diante dessas dificuldades elencadas, é necessário que o educa-
dor busque estratégias para que o estudante possa de alguma forma
ser motivado a realizar a leitura de textos literários. E uma forma de
propiciar esse estímulo seria associar o estudo de literatura ao uso de
tecnologias, uma vez que é algo que faz parte da nova realidade/perfil
estudantil.
Neste trabalho, propomo-nos a pesquisar de que maneira a tecno-
logia poderia ser incorporada ao ensino de literatura para que possa
de forma integrada proporcionar aos estudantes uma aprendizagem
significativa e motivadora. Nossa finalidade foi buscar alternativas
para diversificar a metodologia no ensino das aulas de Língua Por-
tuguesa, trazendo para sala de aula ferramentas atuais, das quais os
estudantes já fazem uso com propriedade. Defendemos a hipótese de
que o uso de um aplicativo como o WhatsApp, que é visto por muitos
educadores como um vilão no espaço escolar, pode ser um aliado na
efetivação da aprendizagem.
Para isso nos baseamos em estudos realizados por Candido (2002)
que enfatiza o direito que todos devem ter ao acesso à literatura;
Calvino (1993) que discorre sobre a importância de ler os clássicos
literários; Kensky (2007) que aponta os inúmeros benefícios que a
112
tecnologia pode trazer para o âmbito educacional; além de Santaella
(2014); Moran (2012); Lévy (1999) entre outros estudiosos que ser-
virão de base para esta pesquisa.
1. Literatura e tecnologia
113
Ensinar com as novas mídias será uma revolução se mudarmos os pa-
radigmas convencionais do ensino, [...] A internet é um novo meio de
comunicação [...] que pode ajudar a rever, a ampliar e a modificar mui-
tas das formas atuais de ensinar e aprender.
115
Vemos, pois, que a utilização das tecnologias traz muitos bene-
fícios e transformações; sendo assim, é fundamental que o professor
utilize várias estratégias para que o estudante se sinta motivado. Per-
mitir que os estudantes tenham acesso a esses novos meios de infor-
mação e comunicação advindos da tecnologia digital, assim como a
ampliação de novas habilidades do aluno, é obrigação do ensino não
só de língua portuguesa como das demais áreas, uma vez que esse
acesso permitirá uma popularização do conhecimento em sua função
social.
2. WhatsApp: suporte para o ensino de literatura
117
Uma vez que o aplicativo WhatsApp permite tantas formas de in-
teração acreditamos que esses recursos permitirão aos usuários den-
tro de um contexto educacional a reflexão e o compartilhamento de
conhecimento com a utilização do mesmo. Refletindo sobre as tec-
nologias e principalmente sobre as redes sociais através do aplicativo
WhatsApp, pensamos em utilizar esse instrumento como uma manei-
ra de buscar novos conhecimentos, uma vez que esse aplicativo está
presente na vida da maioria de nossos educandos.
Inicialmente foi criado um grupo no aplicativo WhatsApp para
cada turma de 8º ano. Cabe salientar que as atividades eram reali-
zadas em duplas e/ou grupos, uma vez que foi identificado após um
levantamento prévio que alguns estudantes não possuíam smartpho-
nes. O gênero textual abordado em sala de aula durante a unidade
bimestral foi “Contos de terror, de humor e de encantamento”, de
modo que foi trabalhado o conteúdo teórico relacionado aos contos
como características, produções, tipos de contos entre outros aspec-
tos em sala de aula.
Em seguida, os estudantes realizaram pesquisas em seus smar-
tphones buscando um conto de sua preferência, e ao encontrarem
compartilharam o texto no grupo da turma com breves comentários
sobre sua escolha. Após isso, foi solicitado que produzissem um ví-
deo representando a história/conto escolhido. Os estudantes então
elaboraram as falas, o roteiro, e os cenários e/ou lugares que fossem
adequados ao conto escolhido (podemos citar como a exemplo da
preocupação na busca de um cenário adequado a gravação de um
conto de terror cuja gravação foi realizada em um cemitério). Para
que fossem realizadas essas atividades, os estudantes utilizaram seus
celulares para filmar, instalaram programas/aplicativos tais como Mo-
vie Maker, VideoShow para fazer a edição, efeitos e legendas e posta-
ram no grupo da turma.
118
Ao longo da realização das atividades foi possível perceber que os
estudantes utilizam o letramento digital, já que apresentam compe-
tência para realizar práticas de leitura e escrita que fogem ao “conven-
cional”. Para Xavier (2002, p. 135):
Ser letrado digital pressupõe assumir mudanças nos modos de ler e es-
crever os códigos e sinais verbais e não verbais, como imagens e dese-
nhos, se compararmos às formas de leitura e escrita feitas no livro, até
porque o suporte sobre o qual estão os textos digitais é a tela, também
digital.
Considerações finais
121
aprendizagem do educando, por meio de um aplicativo que ele já co-
nhece e utiliza com propriedade.
Cabe ao professor buscar estratégias inovadoras que estimulem
a aprendizagem dos estudantes e, acima de tudo, aprender a utilizar
os múltiplos recursos de maneira coerente para facilitar tanto o seu
trabalho, quanto os resultados de seu trabalho que é a aprendizagem
de seus alunos.
122
Referências
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. In: ____ Por que ler
os clássicos. Tradução: Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993.
123
FREITAS, Maria Tereza de Assunção. A formação de professores
ante os desafios da cibercultura. In: FREITAS, M.T.A. Ciber-
cultura e formação de professores. Belo Horizonte, Autêntica,
2009, pp.57-74.
124
SANTAELLA, L. O leitor ubíquo e suas consequências para a
educação. In: Complexidade: redes e conexões na produção do
conhecimento. Patrícia
125
PARTE III
gêneros MARGINAIS
126
1 - Em vias da literatura: uma proposta com o gênero
crônica
Sheila Vieira Nanes dos Santos Galvão
Introdução
128
Vale ressaltar a importância do contato incessante de Tzetan Todorov,
desde sua infância, com obras dos mais variados estilos: “sempre me
vejo cercado de livros [...] sempre haviam muitos livros em minha
casa” (TODOROV, 2009, p. 15). Fator que foi determinante na for-
mação de um leitor que sentia “frêmito” diante das leituras.
Em contrapartida, não apontamos os não leitores de obras mais
densas como incultos, visto que toda sociedade possui produções,
não necessariamente verbais, mas que originam, mesmo em meio à
simplicidade, um modo de ver, sentir e pensar o mundo.
Se o intuito é formar leitores, é preciso considerar os elementos
que constituem essa simplicidade, bem como a sociedade na qual o
indivíduo se insere, “devemos levar em conta, ainda, a cultura espe-
cífica de sua classe, a sua cultura particular, pontos de referência de-
terminantes para identificarmos seu lugar na sociedade” (CALDAS,
2000, p. 21), de modo que não tomemos apenas a cultura da classe
dominante, que é produzida por si e para si.
Dessa maneira, não consideramos uma transgressão ou uma afron-
ta ao cânone partirmos da leitura de crônicas para o desenvolvimento
paulatino de um leitor mais profícuo. Afinal, a crônica é um gênero
capaz de jogar a literatura de volta no mundo (CASTELLO, 2007).
Acrescentamos: no mundo do discente.
Também não apontamos aqui o exato lugar de nascimento do
leitor, mas propomos que se faz necessário conhecer o grupo a fim de
criar estratégias que os introduzam da maneira mais eficaz possível no
mundo da leitura e, finalmente, fazer nascer leitores de obras com-
plexas.
129
2. Um breve conceito sobre o gênero crônica
130
histórias da vida de hoje. Histórias que podem ter acontecido com
todo mundo: até com você mesmo, com pessoas da sua família ou
com seus amigos”, mostrando, assim como Amaral (2017), que entre
texto e leitor pode existir um diálogo.
Para Castello (2007) a crônica é fronteiriça e causadora de di-
vergências, visto que há aqueles que a consideram como um “gênero
menor”, a desprezando no sentido literário e a definindo como carac-
terizadora de eventos que não são capazes de ultrapassar o tempo e,
por isso, dispensáveis da ‘estante dos clássicos’.
Para elevar a crônica, o autor busca enfatizar a particularidade
desse gênero, colocando-o não como ensaio, teoria ou crítica, mas
simplesmente como crônica. Além disso, é um texto que se introdu-
ziu e se introduz em diversos suportes, não mais apenas nos jornais,
sendo assim ela “está onde não devia estar” (CASTELLO, 2007, p.
1), e, talvez por isso, incomode tanto.
Conforme aponta Castello (2007), as crônicas também estariam
à margem do cânone por estarem tão próximas do factual, do rotinei-
ro, daquilo que é comum e não causa grande alvoroço por faltar, por
exemplo, um herói que viva aventuras diversas ao longo da narração.
Embora haja quase uma unanimidade na definição da crônica
enquanto gênero, ainda assim é possível identificar marcas que tor-
nam a definição do gênero uma tarefa complexa, principalmente por
seu hibridismo. O mais importante é seu caráter atraente pela leitura
que se torna mais próxima do aprendiz quando se visa à formação de
leitores de obras mais complexas.
131
– Séries Finais, na cidade de Cachoeirinha – PE e representava um
público que demonstrava pouco interesse por leituras mais profun-
das. O contato desses alunos com uma leitura mais sistemática e mais
complexa se dá basicamente na escola, visto que a maioria convive
com pais e/ou responsáveis que não concluíram os estudos e muitos
que sequer tiveram contato com as letras. Portanto, a escola tem pra-
ticamente toda a responsabilidade de formar esses jovens em leitores
proficientes.
Desta feita, empiricamente, notamos que não podíamos partir
daquilo que não pertencia efetivamente ao cotidiano deles, porque “é
papel do professor partir daquilo que o aluno já conhece para aquilo
que ele desconhece, a fim de se proporcionar o crescimento do leitor
por meio da ampliação de seus horizontes de leitura” (COSSON,
2016, p. 35). Portanto, foi necessário pensar em estratégias que incu-
tissem neles a leitura de textos mais complexos de modo paulatino.
Por isso, o gênero crônica, por seu caráter mais acessível, foi escolhido
para introduzi-los no vasto mundo da leitura com vistas à formação
do leitor literário.
132
posto que “o resultado da construção da maquete é a forma indisso-
ciável de apresentar o seu conteúdo e a sua forma” (PELUSO; PAG-
NO, 2015, p. 1062).
As ações pensadas como primordiais aconteciam à medida que o
grupo observava o texto - enquanto leitor – à procura de pistas que os
fizessem pensar em estratégias de organização dos eventos oferecidos
pela leitura, para, então, interpretar, não através de uma produção
escrita, e sim por meio da produção de uma maquete.
Pensamos que uma maneira de introduzir a literatura sem a no-
ção de organização histórica, com movimentos bem estruturados e
margens definidas entre uma “escola literária’ e outra é uma necessi-
dade, visto que o discente deve ser convidado a “sentir” o texto em
suas diversas possibilidades. Além de “sentir” o texto, é necessário
também que ele saiba externar sua visão sobre o que foi lido. Após
a leitura, os discentes são convidados a produzir textos de gêneros
como a resenha ou o resumo. A escolha de produção de uma maquete
também se firma na ideia de que é necessário pensar formas diferentes
de expressão do que fica após uma leitura. Dessa forma, há uma fuga
do tradicional e o aluno percebe que a leitura/literatura existe para
além dos livros.
O trabalho foi desenvolvido no período de vinte dias entre a es-
colha da crônica e a apresentação das maquetes, as quais foram apre-
sentadas para as demais turmas do EF. A seguir veremos o desenvol-
vimento de cada grupo em relação à proposta pedagógica a partir do
gênero crônica.
133
geira, que narra de maneira humorística os estranhos acontecimentos
de uma mulher que nunca havia viajado de avião. Dentre as várias
outras crônicas, o grupo selecionou essa porque a consideraram en-
graçada.
134
Figura 2: Desabafo de um bom marido – Luís Fernando Veríssimo
135
A crônica O melhor amigo, de Fernando Sabino (2007, p.35), nar-
ra acontecimentos que giram em torno de um garotinho que deseja
ter os seus caprichos atendidos quando encontra, supostamente, um
animal abandonado, mas tudo não passava literalmente de capricho.
O texto foi escolhido pelo grupo quatro porque alegaram que o ga-
rotinho era egoísta e que seria importante pontuar isso para os colega
de classe. O grupo criou o cenário que representa a casa do garoto. As
ações se desenrolam a partir da entrada do menino na casa. Ao contar
a história, o grupo apontava o cenário exposto através da maquete.
A quinta crônica escolhida foi escrita por Rubem Alves (1999), A
pipoca, que metaforiza homens e pipocas de uma maneira bastante
lúdica. O grupo afirmou que era muito curiosa a forma como o nar-
rador comparava as pessoas às pipocas e por este motivo escolheram
essa crônica.
138
Nesta turma, todos os dias lê-se uma crônica, levantam-se hipóte-
ses a partir da leitura do título e não se cobra nenhuma tarefa extra dos
alunos, senão a discussão sob a perspectiva da efetivação ou não das
hipóteses levantadas. Visto que o desejo é formar leitores que leiam, a
priori, por prazer, a cobrança de atividades mais complexas e contex-
tualizadas será inevitável, a posteriori. Esperamos que a consequência
dessa prática seja a formação de leitores proficientes. Concordamos
quando Ferrarezi Jr e Carvalho (2017, p. 79) apontam com precisão
que “o texto deveria ser usado na escola como texto, para os alunos
aprenderem algo com ele e desenvolverem habilidades pessoais de
leitura com vistas à construção de sua competência leitora”, e assim,
nesse processo contínuo, tornarem-se leitores literários.
Ademais, os efeitos para introdução da literatura são visíveis e já
se pode pensar em trazer obras consideradas de leitura mais comple-
xa, antes mesmo que a turma ser diretamente direcionada à literatu-
ra, ou seja, antes de ingressarem no ensino médio, momento em que
de fato eles têm contato com a literatura como matéria específica da
grade curricular.
139
Referências
140
FERRAREZI JR, C.; CARVALHO, R.S. De alunos a leitores: o
ensino da leitura na educação básica. 1. ed. São Paulo: Parábola
Editorial, 2017. 200 p.
141
2 - A literatura de cordel na sala de aula: uma possível
proposta para o letramento literário
Patrícia Amaral Barbosa
Thiago Barros dos Anjos
Introdução
142
sam à construção da competência comunicativa, o eixo letramento
literário não pode selecionar e hierarquizar a literatura. Ao contrário,
deve abrir espaço para as diferentes produções.
Muitas são as contribuições que as produções literárias de cunho
popular podem oferecer às práticas educativas, porém, para que isto
aconteça efetivamente em nossas unidades de ensino, é importan-
te repensar o currículo, desarmando-nos de preconceitos sobre a li-
teratura popular para que as produções dos escritores, cordelistas e
glosadores ocupem o lugar que já foi definido nos marcos legais: a
chamada parte diversificada do currículo. Garantir a inclusão do tra-
balho com esses eventos de letramentos locais no PPP (Projeto Po-
lítico Pedagógico) da escola proporciona o envolvimento de todos,
uma vez que os artistas locais terão mais espaço dentro da escola e a
comunidade escolar poderá apreciar suas publicações. Além disso, a
biblioteca escolar poderá ampliar o seu acervo ao incluir a produção
dos escritores locais.
O presente artigo parte da ideia de que o trabalho com textos que
fazem parte da literatura popular pode trazer grandes contribuições
para formação do leitor proficiente. Por essa razão, o ensino da lei-
tura deve abranger uma proposta com vistas aos multiletramentos,
a fim de possibilitar a aproximação de diversos gêneros discursivos.
Assim, partimos de uma ação pedagógica que enfoca a literatura de
cordel com intuito de alcançar o que chamamos de letramento lite-
rário.
O artigo está estruturado em três partes: um breve panorama his-
tórico sobre a literatura de cordel, uma abordagem sobre o letramento
e as possibilidades de contribuição do gênero cordel para construção
dessa habilidade nas aulas de língua portuguesa e, por fim, um rela-
to de duas experiências exitosas, realizadas em duas escolas públicas
pernambucanas, envolvendo o trabalho com a literatura de cordel.
143
1. Literatura de cordel: um percurso histórico
144
ra local de cada comunidade. Ao postular sobre a origem cordelistas
nos romanceiros da Idade Média, Homolka explica:
Na época dos poetas romanceiros, estes apresentavam suas nar-
rativas em forma de versos, declamando sobre histórias pa-
lacianas, assuntos corriqueiros da vida bucólica dos aldeões,
trazendo a ‘”notícia” à população mais simples dos vilarejos, ou de-
clarando-se em forma de cantigas, suas mensagens de amor. Em ge-
ral, podemos dizer que as origens do cordel são associadas ao costume
milenar de contar histórias, que aos poucos foram escritas e, poste-
riormente difundidas na forma impressa (Homolka, 2015, p.09).
145
fotos de filmes estrangeiros consagrados e até mesmo clichês de car-
tões postais, porém foi a xilogravura, por volta de 1930, que favore-
ceu a apresentação estética dos folhetos. Por esta razão, Santos (2016,
p.25) salienta que “a xilogravura se torna um coadjuvante fundamen-
tal para compreensão da história que o cordelista conta, auxiliando o
leitor como elemento motivador para a leitura”.
Essa literatura ainda não desfruta do prestígio social necessário,
uma vez que as instâncias de legitimação ainda a tratam como litera-
tura popular com características folclóricas e apenas direcionada para
um público específico, com pouca instrução escolar. A denominação
literatura popular já carrega um ato de exclusão cuja finalidade é se-
parar o “popular” de uma gama de escritos da “Literatura Erudita”.
Abreu (2006, p. 40) faz a seguinte postulação sobre essa distinção:
[...] recorre-se à adjetivação do substantivo literatura, criando-se o con-
ceito de Grande Literatura ou de Alta Literatura ou de Literatura Erudi-
ta - sempre com letras maiúsculas - para abrigar textos que interessam,
separando-os dos outros textos em que também se encontram caracte-
rísticas literárias, mas que não se quer valorizar. Para esses reservam-se
outras expressões, também adjetivadas: literatura popular, literatura in-
fantil, literatura feminina, literatura marginal...
146
da poesia popular. Em um trecho do poema O poeta da roça, Assaré
(2011, p.20) postula:
Meu verso rastêro, singelo e sem graça/ Não entra na praça, no
rico salão/ Meu verso só entra no campo e na roça/ Nas po-
bre paioça, da serra ao sertão[...]. Eu canto o vaquêro vestido de
côro/ Brigando como tôro no mato fechado/ Que pega na ponta
do brabo novio/ Ganhando lugio do dono do gado.
148
A diversidade de letramentos presentes nas obras de cordel denota
uma riqueza interativo-discursiva, com uso de elementos linguísticos
que promovem no leitor a necessária relação colaborativa de cons-
trução de sentidos do texto. As nuances das histórias contidas na li-
teratura de cordel constituem um verdadeiro leque de possibilidades
para o trabalho com a formação da proficiência leitora do estudante,
tendo em vista que a compreensão de um texto literário exige do lei-
tor um maior refinamento e um amadurecimento que lhe permita ir
além da materialidade do texto.
A partir dessa compreensão teórica sobre o letramento fica evi-
dente que a concentração do estudo da literatura popular apenas em
eventos pontuais torna-se uma prática simplista, nociva e inconsis-
tente, que não se sustenta, pois coloca o trabalho de construção da
competência comunicativa numa condição de incompletude. O tem-
po de estudo das aulas de português deve ser ocupado por propostas
realmente significativas, apoiadas nos usos sociais da língua. E a lite-
ratura popular é uma das partes mais significativas desse uso.
149
todo, desvanecendo as classificações que distinguiam o culto do po-
pular e ambos do massivo. Não por acaso, Nestor Garcia Cancline,
em seu artigo Culturas hibridas, poderes oblíquos, apresenta a necessi-
dade de descolecionar e desterritorializar.
A presença do texto literário na sala de aula deve garantir es-
paço para a diversidade de leituras. Nesse sentido foram desenvol-
vidas duas atividades que tiveram como objeto de estudo poemas
de autores populares. As experiências aqui descritas não se propõem
ao abandono do texto canônico, porém vêm trazer uma importante
contribuição para que o popular também seja objeto de estudo da
instituição escolar, uma vez que de acordo com Abreu (2006, p.112)
essa prática “para alguns significará refletir sobre sua própria cultura
e para outros, o conhecimento das variadas formas de criação poética
ou ficcional”.
A primeira experiência aqui apresentada foi desenvolvida numa
escola pública, localizada no município de Bom Conselho - PE, e en-
volveu vinte e cinco estudantes do 5° ano do Ensino Fundamental. A
sequência de atividade teve duração aproximada de quatro semanas e
partiu do estudo do cordel A Triste Partida, de Patativa do Assaré.
A proposta foi transformar a literatura de cordel em um videocordel.
Podemos dizer que o videocordel é uma representação audiovisual
de A Triste Partida. Na verdade, o que ocorre é uma virtualização do
poema, uma vez que as imagens (estudantes caracterizados de retiran-
tes) são justapostas a canção de Luiz Gonzaga. Outras denominações
estão associadas ao experimento: videopoema, poesia artificial, clipe
poema, tecnopoesia, videopoesia, porém todas estão intrinsecamente
relacionadas à videoarte.
Essa proposta parte do princípio de que o poema já não se mani-
festa somente na oralidade ou no livro, mas pode estar em CDs, in-
ternet, e, agora, entrelaçado com outras artes (música, cinema, foto-
150
grafia). Nessa linha, Ferreira (2013, p.43) postula que “o videopoema
é um exemplo de que tecnologia e arte podem caminhar juntas numa
troca de recursos cada vez mais visível e dinâmica”.
O estudo literário de A Triste Partida e a montagem do video-
cordel realizaram-se no decurso de quatro semanas. Essas atividades
tiveram como intuito fazer o estudante apreciar a linguagem corde-
lista e, ainda, representar a saga da família nordestina. Para tanto, o
trabalho didático desenvolveu as seguintes etapas: 1) Reflexão sobre
A Triste Partida; 2) Definição de literatura de cordel; 3) Montagem
de figurino para videocordel; 4) Edição final e estudo comparado
A elaboração dessa primeira experiência mostrou que é possível
trabalhar com a literatura sob diferentes aspectos: tanto a literatu-
ra em folheto, em seu formato tradicional, quanto entrelaçada com
outras artes. A produção desse videocordel representa, portanto, o
resultado de uma proposta de ensino que envolve além de todo um
aparato tecnológico, uma nova forma de enxergar A Triste Partida. É
a leitura performática de um poema de cordel que, inicialmente, era
declamado em praças públicas e que emocionou, e ainda emociona,
crianças e adultos que tiveram contato com o texto.
A segunda experiência foi desenvolvida no Centro de Excelência
Municipal Dom Mota, localizado em Afogados da Ingazeira, interior
do Sertão de Pernambuco, com oferta de ensino para os Anos Ini-
ciais e Finais do Ensino Fundamental. Atualmente a escola atende
a 582 alunos, sendo que 247 estão matriculados nos Anos Iniciais e
335 nos Anos Finais do Ensino Fundamental. A escola adota como
livro didático o módulo apostilado do sistema Expoente de Ensino.
O módulo, fabricado em Curitiba, traz pouquíssimas referências ao
Estado de Pernambuco, e não concede espaço para literatura popular,
ignorando totalmente a literatura local. Nesse sentido é fundamental
ressaltar a importância do planejamento dos professores de modo a
151
estarem atentos a essas lacunas e supri-las mediante a inclusão de pro-
postas com foco nas produções literárias locais.
O público-alvo dessa atividade foram os estudantes do 9º Ano,
turma composta por 38 alunos. Durante a vivência das atividades
observou-se uma excelente receptividade por parte dos alunos em
relação à literatura popular local e as positivas contribuições ao le-
tramento literário. As atividades tiveram uma duração de quatro se-
manas, perfazendo um total de 24 aulas. A proposta era aproximar
os alunos do autor e de sua obra, por meio de uma entrevista e em
seguida, após um trabalho de análise interpretativa, dar ao poema um
caráter multimodal, transformando-o em um curta-metragem. Essa
possibilidade de retextualizar o poema oportunizou a construção de
várias competências presentes no eixo letramento literário. A ativida-
de com o poeta Dedé Monteiro e o poema de sua autoria “Assassina
Brasil teus inocentes” se desenvolveu nas seguintes etapas: 1) Entrevis-
ta com o poeta Dedé Monteiro; 2) Estudo poema “Assassina Brasil
teus inocentes”; 3) Oficina sobre edição e montagem de vídeo; 4)
Socialização do produto final (curta-metragem) e da publicação da
entrevista para comunidade escolar e extraescolar.
Conclusão
152
A pesquisa revelou que a realização das experiências com a litera-
tura de cordel despertou o encantamento e a curiosidade, ajudando
a promover o letramento literário. Por isso, defendemos que a poesia
popular seja introduzida, desde os anos iniciais, na sala de aula. A
leitura do texto literário, sobretudo da literatura de cordel, traz para
esse contexto escolar uma aproximação com a cultura local, contri-
buindo significativamente para formação do aluno leitor.
As orientações propostas no decurso dos relatos das experiências
exitosas com a literatura de cordel não devem ser consideradas como
receitas prontas, nem tampouco como soluções para os dilemas da
prática pedagógica literária. Elas são passíveis de adaptações e devem
ser vistas como sugestões que, quando bem entendidas e colocadas
em evidência, possibilitam um desenvolvimento qualitativo no le-
tramento literário. Fica aqui o convite para o aprofundamento sobre
esse tema que, sem dúvida, merece ser tratada com mais afinco, prin-
cipalmente por pesquisadores e professores da área, visando oferecer
sua parcela colaborativa em prol do ensino do texto literário.
153
Referências
ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá. 16ª ed. Petrópo-
lis: Vozes, 2011.
154
ROJO, Roxane; ALMEIDA, Eduardo de Moura (Orgs.). Multi-
letramentos na escola. São Paulo: Parábola Editorial, 2012.
155
3 - O cordel de Patativa e o baião de Luiz Gonzaga: vozes
que exaltam o nordestino, denunciam a realidade e ecoam
poesia literária
José Hilário Gomes de Souza
1. A Literatura de Cordel
156
tembro de 1988, com sede no Rio de Janeiro, e que hoje conta com
40 cadeiras de membros efetivos, sendo que 25% destas cadeiras po-
dem ser ocupadas por membros não radicados no Rio de Janeiro.
Entretanto, é oportuno ressaltar que a literatura de cordel enfren-
tou e ainda enfrenta certo preconceito por abordar assuntos conside-
rados prosaicos, ser uma literatura ambulante e ser dirigida ao povo
do meio rural, em comparação à literatura canônica, “compreendida
como um conjunto de obras consagradas num determinado tempo e
que melhor representa a natureza e função da literatura”.
Em seu artigo O cordel como objeto de ensino, Pinto (2006) registra
que
a quase ausência de exemplos de folhetos de Cordel nos livros didáticos
e o tratamento, muitas vezes equivocado do assunto, quando consegue
ser alçado à condição de matéria de leitura e de aula, provam que o
cordel ainda não está efetivamente na pauta da educação formal insti-
tucionalizada. (PINTO, 2006, p.21)
157
Entretanto, segundo Tinhorão (1991), o baião nasceu de uma
forma especial dos violeiros da zona rural do Nordeste tocarem lun-
dus, gênero musical que unia o batuque dos escravos bantos com rit-
mos portugueses, e que por lá chegaram com o nome “baiano”. De
baiano a “baião” foi um pulo de vários acordes e notas. Para reforçar a
sua opinião, Tinhorão nos apresenta um trecho do depoimento pres-
tado pelo compositor e sanfoneiro Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, à
revista Veja, em 15 de março de 1972:
Quando toquei o baião para ele (Humberto Teixeira), saiu a ideia de
um novo gênero. Mas o baião já existia como coisa do folclore. Eu ti-
rei do bojo da viola do cantador, quando faz o tempero para entrar na
cantoria e dá aquela batida, aquela cadência no bojo da viola. A pala-
vra também já existia. Uns dizem que vem do baiano, outros que vem
de baía grande. Daí o baiano que saiu cantando pelo sertão deixou lá
a batida, e os cantadores do Nordeste ficaram com a cadência. O que
não existia era uma música que caracterizasse o baião como ritmo. Era
uma coisa que se falava: “Dá um baião aí... Tinha só o tempero, que era
o prelúdio da cantoria. É aquilo que o cantador faz, quando começa a
pontilhar a viola, esperando a inspiração”.
158
3. O Cordel de Patativa do Assaré
159
De fato, a obra artística de Patativa do Assaré é cativante, pois
costuma retratar o drama social do homem, sobretudo o nordestino,
e aparece como um apelo à humanidade, quase uma deprecação, mas
sempre permeada de esperança.
Por ser uma manifestação artística originada na tradição oral e por
Patativa do Assaré ter sido criado dentro de um universo oral, a voz
ocupa papel importante no processo de criação de sua poesia, pois
como se sabe, ele não foi alfabetizado.
Contudo, é inegável a importância da escrita para o cordel. As-
sim, escrever é dar um lugar onde a obra literária cordelista pode ser
encontrada, é dar uma forma visível à obra poética, garantindo sua
durabilidade.
Quando sai do terreno da oralidade e ganha espaço no terreno
da escrita, ainda assim Patativa continua fiel aos códigos de trans-
missão oral. Mesmo transcrita, “sua poesia é, continua sendo e será
oral” (CARVALHO, 2002, p. 3). Escrita, suas produções ganharam
novo suporte, mas tiveram preservadas sua oralidade genuína. Du-
rante muito tempo, a poesia de Patativa foi somente ouvida; com a
escrita, passou também a ser lida.
Em vida, Patativa do Assaré desempenhou vários papéis: poeta,
cordelista, intérprete e cantador, sempre se utilizando de uma perfor-
mance própria: a força de sua voz expressa em seus versos poéticos.
Conforme Pinheiro (2006), Patativa sabe para quem escreve, o que o
povo quer ouvir e qual a reação que seus versos vão provocar no ou-
vinte e/ou no leitor. Observemos:
Não vá percurá nesse livro singelo \ Os canto mais belo das lira vaidosa
\Nem brio de estrela, nem moça encantada,\ Nem ninho de fada, nem
chêro de rosa. \ Em vez de perfume e do luxo da praça, \ Sem chêro e
sem graça de amargo suó,\ Suó de cabôco que vem do roçado,\ Com
fome, cansado e queimado do só (PINHEIRO, 2006, p.13)
160
Pelo fragmento da obra transcrita, percebe-se uma relação de
intimidade entre o poeta e seu público. Ainda conforme Pinheiro
(2006), com a obra poética de Patativa, o ouvinte ou leitor constrói
sua interpretação e se torna coautor, assumindo a responsabilidade de
fazer o texto existir e de ter sentido para o mundo. Dessa forma, passa
a atingir um dos objetivos da leitura do texto literário, que é fazer o
texto existir e ter sentido no mundo. Candido (2000, p.74) diz que
a literatura é um sistema vivo de obras que atuam umas sobre as ou-
tras e sobre os leitores. As obras só vivem porque os leitores as vivem,
decifrando-as, aceitando-as, deformando-as. Portanto, é preciso que
o público leitor/ouvinte dê sentido e realidade à obra, uma resposta
ao texto. E é isso que se percebe nas obras e no público de Patativa do
Assaré.
É nesse sentido que se pode afirmar que Patativa é localista, fala
de um determinado lugar, sua região, seu sertão: “cante a cidade que
é sua, que eu canto o sertão que é meu”. Ele sabe que sua oralidade é
compreendida, pois a linguagem usada pelo poeta denota seu mun-
do, que não é a cidade, mas o sertão.
161
Asa Branca (“quando olhei a terra ardendo \ qual fogueira de São
João”), composta em parceria com Humberto Teixeira, é considerada
a mais icônica de suas canções, sendo uma das músicas mais executa-
das e regravadas em todo o país e uma das mais conhecidas interna-
cionalmente. Ela também é considerada, por muitos, como o “Hino
do Nordeste”. De acordo com Matos (2011), a perfeição estética e a
popularidade de Asa Branca fizeram-na ser a canção histórica e cul-
turalmente mais representativa do Nordeste brasileiro e da trajetória
artística de Luiz Gonzaga.
Austregésilo (2005), Sousa (apud OLIVEIRA, 1991), analista da
musicografia de Luiz Gonzaga, ressalta que em relação à época do
surgimento do Rei do Baião, ainda era exíguo o mercado nascente
e ninguém ousava arriscar além dos limites precariamente estabele-
cidos pelo gosto radiofônico da época. O analista da musicografia
de o Rei do Baião ainda afirma que, apesar das isoladas incursões
anteriores de artistas nordestinos, Luiz Gonzaga foi o revolucionário
sanfoneiro, compositor e cantor que abriu caminho para o idioma
regional. Junto com Humberto Teixeira, descobriu que o baião era o
mais urbanizável dos ritmos nordestinos.
O Nordeste tem muitas músicas regionais, algumas originais do Sertão,
outras assimiladas e adaptadas. Nenhuma, porém, que desfrute da po-
pularidade e encanto do Baião. Por outra parte, é difícil dar certidão de
batismo de uma música, de uma festa folclórica, porque estas manifes-
tações são universais: logo se irradiam, logo se popularizam (OLIVEI-
RA, 1991, p. 58).
162
5. Cordel e Baião: vozes que denunciam a realidade e ecoam poesia
literária
163
antes do advento e expansão da radiofonia brasileira, difundiu a mú-
sica, a poesia e a literatura popular, com todas as nuances de uma
cultura local. Um local que vivia, como cantou Luiz Gonzaga, “sem
rádio e sem notícia das terras civilizadas”.
É nesse sentido que a oralidade das narrativas sertanejas ganha
espaço e importância na fala dos cantadores, violeiros, cordelistas e
repentistas, etc. O Baião bem como o Cordel cruzam suas vozes para
exprimir, dentre outros temas, as narrativas recorrentes sobre a seca
no Nordeste e o consequente êxodo rural.
Ademais, a poesia presente no cordel e no baião tem forte cunho
de representação social, porque ambos usam a natureza como ele-
mento de temática de suas manifestações artísticas.
De acordo com Austregésilo (2005), no sertão, a natureza é ex-
pressa pela música, por meio das representações coletivas que falam
de ruídos dos carros de boi, do canto dos pássaros, do barulho do
vento e da chuva, enfim, todo um imaginário popular que acaba pro-
jetado em forma de poesia falada e escrita. Nessa linha de raciocínio,
pode-se dizer que as obras de Patativa e de Luiz Gonzaga, como co-
municação humana, desenvolveram códigos próprios do sertão, seu
povo e suas práticas socioculturais. Como literatura, desenvolveram
um tipo de poesia por meio de verbo musical, pois, conforme René
Waltz, apud Massaud Moisés (2012), “a poesia é a arte de comuni-
car a emoção humana pelo verbo musical”. E isso, ambos (Patativa e
Gonzaga), fizeram com maestria em suas obras.
Entre tantos temas recorrentes, um, em especial, une as obras de
Patativa às de Gonzaga: a denúncia social. Em 1953, Gonzaga, em
parceria com Zé Dantas, compôs “Vozes da Seca”. Segundo Austre-
gésilo (2005), contra uma campanha deflagrada neste mesmo ano,
quando uma seca avassaladora assolou o sertão, a composição de
164
Gonzaga e Dantas rejeitava o auxílio dos sulistas e erguia a autoesti-
ma dos nordestinos em nome da dignidade humana:
Seu dotô, os nordestino \ Tem muita gratidão\ Pelo auxílio do sulista\
Nessa seca do Sertão\ Mais dotô, uma esmola\ A um homem que é são\
Ou lhe mata de vergonha\ Ou vicia o cidadão (Vozes da Seca – Luiz
Gonzaga / Zé Dantas)
Por sua vez, Patativa escreveu A Triste Partida, poema que foi pu-
blicado no livro Inspiração Nordestina, em 1956. Em A Triste Parti-
da, há a narrativa da história uma família que, após perder a crença
no fim da seca, parte para São Paulo, na esperança de uma vida me-
lhor, mas com o plano de um dia retornar à sua terra natal. Foi por
intermédio de A Triste Partida que se deu o encontro entre o Rei do
Baião com Patativa. Conforme relatos de pesquisadores, dentre eles
Carvalho (2002), e Oliveira (1991) Luiz Gonzaga e Patativa do As-
saré se conhecem pessoalmente na feira livre do Crato, no Ceará, em
1963.
Segundo Pinheiro (2006 apud Carvalho 2002), o Rei do Baião
ouviu pela primeira vez o poema A Triste Partida cantado por Zé
Gonçalves na Rádio Borborema, na Paraíba. Ficou impressionado
com aquele trabalho e resolveu investigar quem era o autor. Ao saber
que era Patativa, quis comprar a composição, mas o poeta não acei-
tou.
Luiz Gonzaga ouviu A Triste Partida e veio à minha procura. Quando
chegou no Crato, eu estava e ele quis comprar até o direito autoral. Eu
disse: Não, Luiz! O meu mundo eu posso dizer que é a minha família
e a minha poesia. Aí eu num vendo direito autoral por preço nenhum.
Ele disse: “Então, Patativa, vamos fazer outro negócio. Vamos fazer par-
ceria. Você assim não está vendendo. Você me dá as ordens e eu levo
pra RCA o disco e vamos gravar ‘A Triste Partida’. No livro contará você
como autor e eu como cantor. Aí eu aceitei. E ele gravou “A Triste Parti-
165
da” no ano de sessenta e quatro. Foi um estouro quando ele gravou com
aquela voz maravilhosa e tudo. Deu um compasso mais lento e deu um
sucesso muito grande (Apud CARVALHO, 2002, p.98-99).
168
Referências
169
CARVALHO, Gilmar de. Patativa: poeta pássaro do Assaré.
Fortaleza: Omni Editora Associados Ltda., 2002.
170
Rodrigues. O cordel como objeto de ensino. Linguagem em (Re)
vista, nº 5, Niterói, 2006.
171