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Como Evitar As Catástrofes Da Emergência Climática - REVISTA PIAUI - No 199 PDF
Como Evitar As Catástrofes Da Emergência Climática - REVISTA PIAUI - No 199 PDF
Como Evitar As Catástrofes Da Emergência Climática - REVISTA PIAUI - No 199 PDF
anais do desastre II
O que as cidades estão fazendo para evitar a repetição das catástrofes climáticas
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U
m forte temporal caiu sobre Salvador no começo de outubro de 2019. Por
volta das onze e meia da noite do dia 3, um estrondo assustou os
moradores do bairro Fazenda Grande do Retiro, na Zona Norte da
capital baiana. A chuva que caía havia dois dias tinha saturado o solo de um
barranco já encharcado pelo vazamento numa tubulação de água. O solo cedeu, o
muro de contenção da encosta rompeu, e cinco casas desabaram. Os escombros
foram arrastados morro abaixo até atingir um galpão no pé da encosta. Dezenas
de casas tinham sido construídas no declive, onde viviam 31 famílias com cerca
de 150 pessoas no total. Ninguém se feriu. Ninguém morreu.
Dois meses antes do desastre, aconteceu algo raro nas cidades brasileiras: adotou-
se uma medida preventiva eficaz. A Defesa Civil de Salvador havia retirado as 31
famílias de suas casas. O diretor da instituição, Sosthenes Macêdo, tomou a
iniciativa depois de ouvir o relato de um engenheiro que estivera no local e
constatara a existência de rachaduras. “Chefe, tira essas famílias daí, porque vai
ruir”, recomendou o perito. Macêdo ordenou a desocupação. No dia em que se
reuniu com as famílias para comunicar a decisão, uma senhora lhe disse que não
iria sair de casa. O diretor alegou que, pela lei, podia retirá-la. “Deus foi tão bom
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que não precisou de lei”, disse ele à piauí ao evocar o caso mais de três anos
depois. “A parede de uma das casas caiu e todos entenderam que era para sair.”
N
o fim de fevereiro, Sosthenes Macêdo foi a Punta del Este, no litoral do
Uruguai, para representar a cidade de Salvador em um encontro
promovido pelo Escritório das Nações Unidas para Redução do Risco de
Desastres (UNDRR, na sigla em inglês). Durante o evento, a capital baiana foi
reconhecida como um “hub de resiliência”, um selo que a ONU confere às cidades
que demonstram estar preparadas para enfrentar desastres e dispostas a trabalhar
em parceria com outros municípios.
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O
s ingredientes do desabamento na Fazenda Grande do Retiro não eram
muito diferentes daqueles que produziram a tragédia de São Sebastião,
no litoral de São Paulo. Também ali, uma chuva fortíssima provocou o
deslizamento de terra em encostas onde haviam sido construídas casas
irregularmente, apesar do risco conhecido. A partir de um dado patamar, o solo
se liquefaz e a terra vem abaixo, trazendo junto o que estiver nela.
Não foi uma chuva qualquer: foi simplesmente a tempestade mais intensa já
registrada em todo o território brasileiro. Na cidade de Bertioga, choveram 682
mm em 24 horas, o suficiente para encher mais de meia caixa d’água de mil litros
em cada metro quadrado da cidade. O volume ajuda a explicar o estrago deixado
pela chuva e o saldo de 65 mortes. Ainda assim, a tragédia poderia ter sido
minimizada.
Por trás da quantidade atípica de chuva no litoral paulista está a chegada de uma
frente fria muito intensa que ficou estacionada naquela região. Ao encontrar o
oceano muito aquecido, a frente fria começou a sugar a umidade do oceano,
alimentando a tempestade ao longo de horas. Se a meteorologia explica o volume
anormal da chuva que caiu naquela noite, a violência de seus efeitos pode ser
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Uma foto de satélite que viralizou nas redes sociais escancarou como a ocupação
do território determinou a seletividade dos impactos da tempestade. Publicada
pelo geógrafo Adriano Liziero, a imagem retrata uma cidade dividida em duas
realidades distintas pela BR-101 (Rio-Santos). Do lado plano, mais próximo do
litoral, está a Barra do Sahy, que abriga condomínios de luxo e casas de veraneio
ocupadas apenas durante parte do ano. Do outro lado da rodovia, fica a Vila do
Sahy, onde mora boa parte da população local, em casas precárias construídas
nas áreas de encosta da Serra do Mar. Foi de lá que veio a maioria das vítimas. A
parte abastada da cidade sofreu principalmente prejuízos materiais.
S
e a chuva é um evento natural – ainda que sua intensidade seja turbinada
pelos gases do efeito estufa que lançamos na atmosfera –, as áreas mais
vulneráveis de uma cidade são determinadas pelas desigualdades sociais.
Por isso, os especialistas se mostram muito cuidadosos ao selecionar os termos
que usam para nomear esses eventos. “Desastres não são naturais, são
socioeconômicos”, disse a economista Adriana Campelo. “Se não houvesse ali
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Salvador não foi a única cidade formalmente reconhecida como um hub dessa
rede no evento de Punta del Este. Bogotá e Dosquebradas, na Colômbia, também
receberam o certificado, juntando-se a outras quatro cidades da América Latina e
do Caribe que já tinham o título: Campinas e Recife, no Brasil, Medellín, na
Colômbia, e Cidade do México. “São cidades que têm ou tiveram problemas, mas
se comprometem a criar uma capacitação para si, fazer mentoria e apoiar outros
municípios”, definiu Campelo.
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O
padrão que se viu em Salvador depois dos deslizamentos de 2015 – um
poder público que só age com firmeza depois de uma grande tragédia – é
a norma na maneira como o Brasil tem combatido os eventos climáticos
extremos. Os gestores costumam estar a reboque dos desastres. Não é o que
recomendam os especialistas, que rezam pela cartilha da ação preventiva. “Se
você investir 1 dólar em prevenção, pode economizar de 7 a 15 dólares que
seriam gastos para remediar as consequências do desastre”, disse a japonesa
Mami Mizutori, diretora da UNDRR. Mizutori sacou outra estatística eloquente
para defender a eficácia dos sistemas de alerta precoce para a redução de danos.
“Nos países que têm esses sistemas efetivos, a mortalidade por desastres é oito
vezes menor do que nos demais”, afirmou.
Antes disso, o Brasil tinha dado um passo significativo para romper com essa
lógica perversa de esperar o desastre e agir depois. Em 2011, fortaleceu o
arcabouço legal e institucional para a prevenção dos desastres. Aconteceu, claro,
depois de uma tragédia de vulto – as enchentes e deslizamentos na Região
Serrana do estado do Rio de Janeiro. Foi o evento climático extremo que deixou o
maior número de vítimas na história recente do país: mais de novecentos mortos
e centenas de desaparecidos, com a maior parte das ocorrências registradas em
Nova Friburgo, Teresópolis e Petrópolis.
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técnico que forneceria dados essenciais para orientar essas ações: o Centro
Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden),
vinculado ao Ministério da Ciência e sediado em São José dos Campos, no
interior paulista.
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Mesmo que os moradores tivessem recebido o recado em tempo hábil, não seria
garantia de sucesso da operação. Depois do alerta, é fundamental que a
população tenha confiança nas orientações e saiba o que fazer. Para isso, cada
área de risco precisa ter um plano de ação para o caso de um desastre, incluindo
rotas de fuga e um ponto de abrigo previamente definido para socorrer os
evacuados – em geral, são escolas da própria localidade.
O
Recife mudou a partir de 2014. Naquele ano, um relatório do IPCC, o
painel de cientistas montado pela ONU para avaliar o que a ciência sabe
sobre o aquecimento global, informou que a capital pernambucana era a
16ª cidade mais vulnerável do mundo à crise climática. A principal
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Em maio do ano passado, três meses depois de ter recebido o certificado, o Recife
foi palco da pior catástrofe climática de Pernambuco nos últimos cinquenta anos.
Em 24 horas, caiu um volume de água correspondente a 70% do que se esperava
para o estado em um mês inteiro. As inundações e deslizamentos de terra
provocados pela chuva mataram mais de 130 pessoas em todo o estado.
O que deu errado? Na verdade, um olhar atento mostra que o Recife sofreu
menos do que algumas cidades do seu entorno. A maior parte das fatalidades
aconteceu em Jaboatão dos Guararapes, com 64 vítimas, e houve mortes
registradas em outros oito municípios. A chuva do Recife mostrou os limites de
se pensar as estratégias de prevenção em escala municipal, já que os eventos
climáticos desconhecem divisas e fronteiras. Para o escritório da ONU que
promove a redução de riscos de desastres, o caso está servindo como um
aprendizado. “É preciso preparar a resiliência em escala regional”, disse Adriana
Campelo. “Para não deixar ninguém para trás, temos que ir todos juntos.”
M
esmo as cidades que fizerem o dever de casa podem sofrer impactos
severos na era das catástrofes, em razão dos limites da ciência.
Petrópolis foi vítima disso em fevereiro do ano passado, na avaliação
de Osvaldo de Moraes, do Cemaden. “O que aconteceu ali foi um fenômeno
meteorológico que a ciência ainda não é capaz de prever com altíssima
resolução”, disse ele.
A maneira como aquele temporal se formou não difere muito da tempestade que
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desabou sobre o litoral Norte de São Paulo. Uma bolha de baixa pressão
estacionou sobre Petrópolis, com a convergência de umidade vinda da Amazônia
canalizada pela serra, e isso foi alimentando a tempestade. Para piorar, a
precipitação naquele dia se concentrou exatamente sobre as áreas de maior risco.
“No próprio Centro de Petrópolis e em bairros um pouco afastados não houve
chuva nenhuma”, disse Moraes.
O que fez daquela chuva um evento singular foi a grande intensidade aliada à
formação muito rápida. Foram 260 mm de água em seis horas, mais do que a
média histórica para todo o mês de fevereiro na cidade. “Quando veio o primeiro
aviso do Cemaden, já estava chovendo em Petrópolis”, reconheceu Moraes. Para
o físico, o caso se enquadra nos cerca de 5% de eventos extremos que a ciência
não é – talvez nunca seja – capaz de antecipar. “Esse evento tampouco teria sido
previsto com antecedência se tivesse acontecido nos Estados Unidos ou na
Europa.”
A cidade não estava despreparada. Desde a grande chuva de 2011, aquela que
motivou a criação do Cemaden e da política nacional para enfrentar eventos
extremos, Petrópolis tinha se reforçado para outros temporais de proporções
bíblicas. A Defesa Civil virou uma secretaria da prefeitura. A infraestrutura
ganhou radares, pluviômetros e uma rede de dezoito sirenes espalhadas pelas
áreas de risco. Mas parte desse sistema dependia do alerta precoce para entrar em
funcionamento. O resultado é que, embora a chuva de 2022 tenha alcançado
intensidade comparável com a tempestade histórica de 2011, que vitimou 71
pessoas em Petrópolis, o número de vítimas explodiu: 241.
A tragédia deixou os gestores em alerta. “Foi um ano muito difícil para nós”,
disse à piauí Rodrigo d’Almeida, que ocupa uma diretoria da Secretaria Municipal
de Proteção e Defesa Civil e representou Petrópolis em Punta del Este. Segundo
ele, depois do desastre, a prefeitura, entre outras medidas, aumentou o número
de escolas para operarem como ponto de apoio aos moradores evacuados.
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contabilizando óbitos.”
O gestor lembrou ainda que essas ações são apenas uma parte do sistema de
gestão de risco dos desastres. E elas continuarão sendo o equivalente a enxugar
gelo se o poder público não atacar as raízes estruturais do problema – que, em
Petrópolis como em tantas cidades brasileiras, tem a ver com a ocupação
desordenada do território. “O que pode mudar essa situação é uma política
pública de habitação”, avalia D’Almeida. “Não vamos impedir a chuva de cair
cada vez mais forte, mas com certeza vai diminuir o número de óbitos.”
Esse conteúdo foi publicado originalmente na piauí_199 com o título “Antes da chuva”.
O repórter viajou a Punta del Este a convite da UNDRR (Escritório das Nações Unidas
para Redução do Risco de Desastres).
Bernardo Esteves
Repórter da piauí, é apresentador do podcast A Terra é Redonda (Mesmo) e
autor do livro Domingo É Dia de Ciência (Azougue Editorial)
LEIA TAMBÉM
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