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Dissertação Josean Ricardo
Dissertação Josean Ricardo
Dissertação Josean Ricardo
Macapá
2018
2
Macapá
2018
3
Data da aprovação:___/___/____
Banca Examinadora:
______________________________________
______________________________________
______________________________________
Gilberto Gil
5
Agradecimentos.
À professora Doutora Cecília Maria Chaves Brito Bastos que, com sua enorme
serenidade e experiência com entrevistas em História Oral, me orientou enormemente
na condução do processo com entrevistados e entrevistadas e nos caminhos
burocráticos para aprovar a pesquisa.
À minha esposa Vitória Gurgel e meu filho Glauber Gurgel de Souza que em
muito contribuíram com a motivação e a paciência necessárias para compreender este
ofício e o tempo que tinha que dedicar em favor deste.
Obrigado.
8
RESUMO
ABSTRACT
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..............................................................................................................13
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................165
Fontes........................................................................................................................171
Referências................................................................................................................172
Entrevistas..................................................................................................................177
Lista de abreviaturas
INTRODUÇÃO
1
Em Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade, Judith Butler propõe o conceito de
performatividade, como sendo o modo que se inscreve o que é percebido como masculino e como feminino nos
corpos, para a autora a imposição do binarismo de gênero nomeia e constrói uma expectativa sobre os corpos, essa
expectativa orienta a percepção sobre quem estaria, ou não, dentro do esperado pela norma binária para o masculino
e o feminino.
14
Inglaterra, onde termo queer (estranho), que era utilizado para se referir de forma
depreciativa aos homossexuais, foi recuperado por seus movimentos organizados e
passou a ser utilizado como forma de autoidentificação, funcionando como arma
política (2007).
2
A Área de Livre Comércio de Macapá e Santana (ALCMS) foi criado com a Lei Federal 8.387/91.
3
O IBGE disponibiliza gráficos que possibilitam perceber este crescimento demográfico do Amapá, que já era
uma constante desde Criação do Território Federal do Amapá, mas que teve um novo impulso com a
transformação deste em uma unidade da Federação.
https://cidades.ibge.gov.br/painel/populacao.php?codmun=160030, visto em 30 de fevereiro de 2018.
16
outras atitudes e procedimentos na vida prática, que não façam das diferenças
motivações para a manutenção de imposições normativas e segregacionistas.
advento do capitalismo industrial, das antigas escolas jesuítas, e faz uma breve análise
sobre as disposições das cadeiras, organização dos alunos em classes que nos
colégios jesuítas poderiam ter entre duzentos e trezentos organizados em grupos de
dez - a decúria. Essa organização das cadeiras, tal como num campo de batalha,
refletia a forma geral da avaliação, com confrontação entre dois grupos, onde o valor
de cada aluno correspondia a sua classificação na respectiva decúria, o que passou a
ser modificada num processo de repartição de indivíduos:
Na prática a escola tem muito pouca autonomia, está inscrita no poder estatal
e dele provém delimitações e imposições curriculares, assim como as habilidades a
serem desenvolvidas por professores para seus alunos e alunas inseridos neste
sistema de ensino. O privilégio de quem opera os discursos acaba sendo estatal e,
embora isso não possibilite mudanças drásticas em relação aos currículos, esse
privilégio pode e deve ser utilizado como ponto fundamental em discussões sobre as
funções da escola, que devem ser debatidas não só entre os profissionais da
educação como também em sala de aula, com a presença de alunos e alunas na
construção de um espaço mais democrático.
Desde então, muito já foi produzido, mas precisamos pensar o quanto desta
produção chega à escola, e esta responsabilidade deveria ser assumida por
historiadoras, historiadores, professoras e professores de história. A escola tem
saberes próprios que estão inseridos numa sociedade que delega e hierarquiza os
indivíduos numa lógica que se apresenta como atemporal, mas que é uma construção
histórica. Guacira Lopes Louro, referência nesse campo do conhecimento no Brasil,
salienta que:
22
Louro, por sua vez afirma que, as concepções de gênero diferem não apenas
entre as sociedades ou os momentos históricos, mas se diferem também no interior
de uma mesma sociedade, ao se considerar os diversos grupos (étnicos, religiosos,
raciais, de classe) que a constituem (1997).
Butler afirma ainda que não haveria uma identidade preexistente pelo qual as
pessoas pudessem ser definidas, assim, para a autora, o postulado de uma identidade
de gênero verdadeira seria uma ficção reguladora (Butler, 2016). O conceito de
performatividade em relação ao gênero é fundamental para entendermos como se
processa a construção do processo de estigmatização pelo qual passam crianças e
adolescentes que não desempenham “corretamente” seus gêneros no contexto
escolar, posto que é pela não conformidade entre o que se espera para cada gênero
que se fundamenta o estigma heteronormativo. Este processo de estigmatização pode
acontecer sem que efetivamente se saiba absolutamente qualquer coisa sobre a
sexualidade da pessoa estigmatizada, e, mais precisamente, se baseia numa suposta
“inadequada” performance de gênero, assim reconhecida numa dada cultura. Neste
sentido, é importante destacar que a diferença entre gênero e sexualidade que
segundo Guacira Lopes Louro em 1997, não era evidente e hoje, de modo geral,
podemos afirmar que permanece não sendo:
No geral, a percepção que se tem sobre os papéis sociais relativos aos sexos,
às performances de gênero e mesmo às práticas sexuais é baseada em pressupostos
normativos. A própria homossexualidade é uma invenção normativa que, segundo
Foucault, tem suas consequências práticas num processo de normatização, criado no
século XIX, mas que até hoje nos é apresentado como uma verdade absoluta:
Ao mesmo tempo que esta citação nos elucida sobre a construção social do
que entendemos hoje como homossexualidade, ela nos serve como exemplo de
representações, no sentido de que a partir desse momento surge uma nova
representação sobre quem pratica a sodomia, passa a ser percebida como uma
espécie, uma patologia, uma perversão. O que a partir de então justificará discursos
“científicos” e práticas discriminatórias direcionadas aos antes sodomitas, agora
homossexuais, das mais diversas, numa relação em que práticas e representações se
afirmam e nos chegam até hoje no contexto escolar heteronormativo.
histórica não podem ser limitadas quanto aos seus objetos, pois nenhum objeto é
estático, novas demandas são constantemente apresentadas e quanto mais amplos
forem os espaços para questionamentos, novas demandas virão à tona.
Michel Foucault, buscava compreender por meio de uma história dos discursos
normativos, os motivos pelos quais pensamos da maneira que geralmente pensamos.
Tendo relação, mesmo que indireta, com a obra de Foucault sobre a história da
loucura, em qualquer escola pode-se perceber os efeitos da inclusão de alunos com
déficits intelectuais, que antes eram simplesmente excluídos, ou como sugeriu
Goffman, “colocados com seus iguais” (1988, p.46). Concomitantemente, esta
inclusão não vem sendo na mesma medida percebida em relação aos indivíduos que
não correspondem a heteronormatividade, que no contexto escolar ainda enfrenta
grandes resistências.
30
Assim, torna-se necessário trazer ao debate os motivos pelos quais, ainda que
de forma silenciosa, haja uma, inclusão subordinada a heteronormatividade, ou
mesmo uma exclusão, daqueles e daquelas que apresentam performances de gênero
e ou sexualidades que não se enquadram no esperado pela norma. Esta exclusão se
apresenta nos currículos escolares, posto que quem não se identificam com a
heteronormatividade não se vêm representado nos conteúdos estudados. A própria
sexualidade é silenciada, ou pouco debatida no currículo, mas alunos e alunas
aprendem na escola sobre às sexualidades nas escolas, não tanto no currículo oficial,
como sugere Richard Miskolci, no cotidiano escolar:
compreender o que a História tem a ver com isso, parte-se do pressuposto dos estudos
culturais de que o conhecimento é resultado de um processo de criação e
interpretação social. Esta concepção do conhecimento está intimamente relacionada
à forma com que se legitimam determinadas condutas e se reprimem outras. Para
Tomaz Tadeu da Silva a ideia de construção cultural:
(2000, grifos do autor p. 33). Para Circe Bittencourt o currículo oculto: “é constituído
por ações que impõe normas e comportamentos vividos nas escolas, mas sem
registros oficiais, tais como discriminações étnicas e sexuais, valorização do
individualismo, ausência ou valorização do trabalho coletivo etc.” (2008, p. 104). Já
Richard Miskolci o define como: “um processo não dito, não explicitado, não colocado
nos textos, mas que está na própria estrutura do aprendizado, nas relações
interpessoais, até na própria estrutura arquitetônica, que continua a ser
normatizadora.” (2016, p.41). É pelo currículo oculto que se aprende e que se ensina,
no cotidiano escolar a abjeção aos alunos e alunas percebidas fora da normalidade
quanto aos seus gêneros e sexualidades.
Desta feita o próprio espaço físico escolar pode hoje em dia, dada a
permanência deste modelo de banheiro, ser utilizado por professores como referência
para se pensar a própria arquitetura escolar como forma de problematizar a vigilância
em relação as sexualidades. Mas é sabido que para profissionais da educação a tarefa
que se apresenta pode ser de fato assustadora, por isso torna-se necessário oferecer-
lhes ferramentas adequadas para que se sintam seguros e confiantes para abordar
esta problemática. É preciso fazer com que estes profissionais percebam que o
silêncio corrobora para a manutenção da escola como um lugar de reprodução dos
papéis historicamente normatizados para os sexos e às sexualidades, contribuindo
para a sua manutenção na sociedade envolvente.
40
Para Miskolci “há um vínculo moral com a alteridade do qual não se pode fugir,
por pior que sejam as consequências para nós mesmos” (2016, p. 66). Desta feita,
professores e professoras não podem se eximir de discutir a temática, muito menos
ainda profissionais da história. Por meio desta disciplina e de seus referenciais teóricos
torna-se possível desconstruir a naturalização das opressões por meio do
conhecimento de suas construções históricas, fundamentais para a compreensão de
que as identidades relacionadas aos gêneros e sexualidade são normatizadas. É
possível também, através da história, problematizar-se como essa normatização é
reforçada socialmente em práticas cotidianas ao mesmo tempo em que os
questionamentos a ela relacionados se mantém silenciados numa ordem discursiva
que a escola não deve ignorar, posto que ao fazer isso silenciam-se as demandas de
alunos e dos alunas que são estigmatizados no próprio ambiente escolar, como
também das alunas e alunos que estigmatizam, pois ao mesmo tempo em que são
“permitidas” estas estigmatizações não lhes são oferecidas efetivas possibilidades
para de questionem suas práticas. Para Guacira Lopes numa educação
heteronormativa a lógica binária sexo-gênero-desejo marginaliza as diferenças, ao
mesmo tempo que precisa destas para reformar a norma:
Guacira Lopes Louro afirma a existência de uma estrutura escolar que funciona
na formação dos sujeitos, que reafirma a posição delegadas a estes pela sociedade:
4
Termo ainda hoje em disputa, na luta pela despatologização, por associar a homossexualidade a uma patologia,
como já destacado, mas que Infelizmente, até o presente momento, não podemos afirmar que esteja em desuso.
45
Goffman:
Não existe pior esbulho, pior privação, talvez, do que a dos derrotados
na luta simbólica pelo reconhecimento, pelo acesso a um ser social
socialmente reconhecido, (...). Essa luta não se reduz a um combate
goffmaniano para lograr uma representação favorável de si: ela é uma
concorrência em torno de um poder que só pode ser obtido junto a
outros concorrentes pelo mesmo poder, um poder sobre os outros que
deriva sua existência dos outros, de seu olhar, de sua percepção e de
sua apreciação (...), logo um poder sobre um desejo de poder e sobre
o objeto desse desejo. (2001, p.295)
perspectiva os dominados estariam engajados numa luta para impor uma nova
dominação que representaria uma inversão das posições binárias dominantes, que
dentro dessa concepção limitada, objetivariam simplesmente mudar as posições entre
dominados e dominadores. Sobre esse tipo de binarismo Guacira Lopes Louro,
citando Jacques Derrida, enfatiza que:
A autora aponta ainda que essa lógica poderia ser abalada por um processo
desconstrutivo: “desconstruir um discurso implicaria minar, escavar, perturbar e
subverter os termos que afirma e sobre os quais o próprio discurso se afirma.” (2015,
p.43). Na escola é possível atuar para desmistificar as imposições binárias
possibilitando uma melhor compreensão de como historicamente fomos ensinados a
perceber e nos relacionar com as diferenças.
As diferentes demandas que chegam aos campos educacionais não podem ser
simplesmente entendidas como silenciáveis ou não. Entende-se que a instituição
escolar, desde a sua concepção, detém uma cultura própria e mesmo objetivos
didáticos que cerceiam as vozes dos grupos historicamente estigmatizados. Mas este
campo não se apresenta numa realidade monolítica, ele é permeado por concepções
de identidades cada vez mais diversas que se relacionam e disputam seus
pertencimentos. Resistências às estigmatizações geram conflitos, o que é evidente,
precisamos perceber estes conflitos oportunidades para o debate, possibilitando a
promoção de reflexões sobre o papel da escola e o que faz estas estigmatizações
parecerem, para muitos, ainda como legítimas. Sem dúvida são oportunidades que se
renovam a cada novo conflito e se perdem nas frequentes tentativas de silenciamento.
A partir da crítica a estas abordagens, Silva propõe uma outra possibilidade que
levasse em conta as contribuições da teoria cultural recente:
Não há como saber quantos estudantes todos os anos deixam as escolas por
sofrerem os mais diversos tipos de violência no contexto escolar. A falta de uma
pesquisa a esse respeito pode esconder formalmente o problema, contudo são
comuns as evasões de discentes percebidos fora da heteronormatividadedos,
pessoas que não foram oficialmente expulsas, mas que ao serem expostas aos mais
diversos tipos de violências sucumbiram.
Percebe-se que para Goffman, as relações entre pessoas potencialmente
estigmatizáveis e “normais” são de fato apresentadas na escola, pois, para o autor,
antes disso estas estariam protegidos dentro de um círculo doméstico:
pessoal, mas antes de tudo social, com o grupo dominante ou dominado, nesse
contexto fica clara a preocupação de muitos educadores e educadoras em abordar
temas relacionados a heteronormatividade e serem repreendidas, ou mesmo
estigmatizadas, por questionarem a dominação imposta. Daniel Borrilho, entende que
em sociedades fortemente marcadas pela dominação masculina, a homofobia
promove uma espécie de “vigilância de gênero”, pois a virilidade deve se estruturar
não somente em função da negação do feminino, mas também na rejeição à
homossexualidade, para o autor:
A dominação masculina por outro lado, como afirma Bourdieu, torna o privilégio
masculino “uma cilada que impõe a todo homem o dever de afirmar, em toda e
qualquer circunstância a sua virilidade” (2015, p. 64), podemos dizer que uma das
formas de demonstrar essa virilidade é através da repulsa a diferença sexual, numa
classificação em que os homens enquadrados no ideal heteronormativo, acabam
sendo impelidos a reforçar sua posição dominante pela repulsa a diferença, o que
torna ambientes heteronormativos, como as escolas, locais privilegiados para a
estigmatização das diferenças de gênero e sexualidade.
52
A escola pelo silêncio que é uma forma de negação das diferenças de gêneros
e de sexualidades, acaba por reforçar os estigmas. Para Michael Pollack, “um passado
que permanece mudo é muitas vezes menos o produto do esquecimento do que de
um trabalho de gestão da memória segundo as possibilidades de comunicação.”
(1989, p.13). Que memória temos dos indivíduos estigmatizados nos contextos
escolares? Essa memória é percebida como uma memória relevante? Acreditamos
estar diante de uma oportunidade de reconhecimento dessas memórias, momento em
que elas podem ser ouvidas e de que, a partir delas, se possa refletir e pensar ações
efetivas que oportunizem o reconhecimento das diferenças de gênero e sexualidade
no contexto escolar.
Bourdieu afirma que um dos fatores que fez com que a dominação masculina
não mais se imponha como indiscutível, está o aumento do acesso das mulheres à
instrução escolar e, correlativamente, à independência econômica e a transformação
das estruturas familiares (2015, p.107). Não seria um erro dizer que as questões
relacionadas a dominação masculina em relação às mulheres não são atendidas de
forma adequada no ensino escolar, mas mesmo com as dificuldades estas vêm
alcançando grandes avanços em áreas que antes eram praticamente exclusivas do
masculino, por meio do acesso ao ensino escolar e pelo acúmulo de esforços para
romper com as barreiras impostas ao feminino. Por sua vez, não vemos este avanço
na escolarização de pessoas não heteronormativas, principalmente daqueles e
daquelas que detém, de forma mais evidente, os sinais estigmatizáveis na cultura
heteronormatividade.
explicada, julgada.” (1999, p.67). Embora não haja uma unidade entre os discursos é
fundamental perceber que, embora até mesmo conflitantes, estes discursos são
construções sociais.
As estruturas do mundo social não são um dado objetivo, tal como não
são as categorias intelectuais e psicológicas: todas elas são
historicamente produzidas pelas práticas articuladas (políticas, sociais,
discursivas) que constroem as suas figuras. (2002, p.27)
É inegável que haja uma disputa de representações, mas esta luta, contra a
menina ou o menino que não apresenta a performance esperada, é uma imposição do
que propriamente uma luta, pois crianças e adolescentes que sofrem com cobranças
heteronormativas não possuem, de modo geral, ferramentas discursivas em que estas
se fundamentem, fazendo com que estes e estas as percebam como lutas contra suas
identidades, não tendo elementos para contestar efetivamente a norma, a luta passa
a ser por sobrevivência, nesse contexto as referências externas à escola, que lhes são
apresentadas pelos meios de comunicação de massa, ganharam uma importância
fundamental e suas representatividades nestes espaços são constantemente
combatidas pelos defensores das normatizações. Deborah Britzman percebe o
isolamento discursivo provocado pela falta de referências para estes jovens e a
importância da mídia nesse processo:
58
Sem se ater ao de que o sentido dos discursos está na recepção, torna-se difícil
pensar na existência das inúmeras subjetividades que orientam, mas não determinam,
as percepções dos sujeitos históricos. Não somos passivos às representações que
nos são impostas, ressignificamos e temos nas memórias daqueles e daquelas que
passaram por processos de estigmatizações heteronormativas nos contextos
escolares possibilidades de perceber, não só discursos heteronormativos e
estigmatizações, mas também como reagiram e que táticas utilizaram para isso.
Stuart Hall também contesta Foucault ao afirmar que para este: o sujeito é
produzido “como um efeito” do discurso e no discurso, no interior de formações
discursivas específicas, não tendo qualquer existência própria (2014, grifos do autor,
p. 120). A nulidade do sujeito histórico apagaria qualquer possibilidade de reflexão
para além da reprodução discursivas. Os discursos nos atingem, mas como nos
atemos a eles depende de como são percebidos e recebidos, para que possamos de
fato estabelecer relações dialógicas com o conhecimento histórico é preciso analisar
as construções históricas dos discursos no tempo, como propôs o próprio Foucault em
História da Sexualidade (1988), mas é fundamental que pensemos que os discursos
devem ser apresentados como representações e que encontram diferentes
possibilidades de interpretação.
5
Um exemplar desta obra é facilmente encontrado nas bibliotecas escolares do Brasil, o exemplar citado trata-
se de sua vigésima segunda edição. A resistência da cultura escolar pode ser percebida também no apego das
escolas a estas fontes, que embora sejam facilmente questionáveis fazem parte dos patrimônios das escolas e
nelas são conservadas. Para um professor de história atento estes materiais serviriam para promover reflexões
sobre seus muitos conceitos, o que para uma pessoa desavisada, mesmo com as melhores intenções do mundo,
deveriam ser recolhidas ou incineradas, para nós são fontes primordiais para se pensar gênero e sexualidade no
tempo.
61
É importante destacar que esta obra foi reeditada por muitos anos chegando
em 1988 a sua 22° edição, sem muitas alterações em seus textos. Para se ter uma
breve noção, a Lei 6.515/77, conhecida como a Lei do divórcio, foi aprovada no Brasil
em 1977 e este livro, nesta edição de 1988, ainda adotava o conceito de desquite.
Nessas reedições conceitos permaneceram estáticos ao longo de muitos anos, o que
denota a fixidez com que temas relacionados aos gêneros e sexualidades eram
pensados para a educação escolar.
Para isso é necessário promover meios para que a escola reflita sobre sua
participação histórica nesse processo e que reconheça as diferenças existente dentro
dos seus portões para que possa fazer destas diferenças oportunidades de
aprendizado e, principalmente, que se questionem as representações que a instituição
historicamente tem afirmado sobre as diferenças de gênero e de sexualidade.
63
Para efetivação de uma prática didática sobre uma temática tão silenciada no
contexto escolar tive que conversar com a coordenação pedagógica da Escola
Estadual José de Anchieta, meu local de trabalho, sobre a atividade que estava
propondo, para me respaldar junto a coordenação e deixar ciente o corpo técnico
sobre o trabalho que estava desenvolvendo, algo necessário, pois logo na idealização
da proposta, com o conhecimento da realidade escolar, era possível prever que
resistências poderiam vir de discentes, de seus responsáveis e mesmo de outros
profissionais da escola. A tarefa logo na sua idealização já se mostrava árdua, mas é
70
preciso ter coragem para renovar o ensino de História, como salienta Paulo Miceli, no
artigo: Uma pedagogia da História? segundo o autor:
esperado para o sexo feminino de seu nascimento, tinha sua sexualidade voltada para
o masculino, tendo inclusive engravidado enquanto ainda se identificava como Ivana.
Provavelmente a repercussão negativa da trama fez com que a autora optasse por
fazer a personagem sofresse um aborto resultado de violência.
Essas entre outras questões eram discutidas brevemente no início das nossas
aulas de forma descontínua, dependendo dos infortúnios do personagem, que não
foram poucos. Fui tentando deixar claras as diferenças entre gênero e sexualidade e
os discursos heteronormativos da novela, salientando que a novela é um produto de
consumo, uma ficção produzida e norteada por diversos interesses que possibilitam
ampliar ou não as polêmicas e contestações, e que, como uma ficção, estava passível
de críticas e poderia ser percebida como um desrespeito dependendo do olhar que se
tenha sobre as questões até mesmo por pessoas LGBTI, que poderiam não se sentir
representadas pela forma como os temas eram abordados.
lidar com questões pertinentes às inquietações de seus alunos e alunas, e que estão
respaldados pelos Parâmetros Curriculares Nacionais em seus Temas Transversais a
tratarem dos temas.
Assim decidi focar nos temas que a novela trazia e a partir destes levantar
outras questões como: Ivan é branco, nasceu numa condição financeira privilegiada,
como a grande maioria dos personagens de novela, mas se ele tivesse outras
características estigmatizáveis na nossa sociedade sua situação seria diferente?
Como seria se ele fosse negro pobre e deficiente físico? Destaquei que pelo que se
idealiza tradicionalmente na nossa sociedade como “ideal” há pessoas que podem ter
diferentes características que as tornem mais suscetíveis às estigmatizações e que o
ambiente escolar historicamente reforça estereótipos. E o que se pensa sobre a
heteronormatividade, o machismo, o racismo, o preconceito social, as exclusões
históricas de pessoas com necessidades especiais, entre outras, quando não
questionado acabam por não reorientar nossas práticas no dia-a-dia.
6
Os questionamentos ao chegarem aos pais de determinados alunos poderia levar a escola algumas
insatisfações com o trabalho em relação as temáticas e deslegitimar todo um trabalho que vinha sendo
desenvolvido durante as aulas, o que para um público do Ensino Médio poderia ser mais viável por uma
possível menor resistência, dada a idade dos adolescentes.
74
ficção: Eu não quero voltar sozinho7. Em cada turma apresentei brevemente do que
se tratava o filme que se passa predominantemente no ambiente escolar. Por se tratar
de um curta-metragem com duração de aproximadamente 15 minutos, foi possível
utilizarmos restante da aula para o debate. Com base na proposta de Selva Fonseca,
que no livro Didática e Prática de ensino de história, descreve uma atividade didática
realizada a partir da apresentação, a alunos da antiga sétima série do ensino
fundamental, do excepcional o curta-metragem Ilha das Flores e faz a seguinte
observação sobre as possibilidades da apresentação de curtas-metragens em sala de
aula:
7
Este curta metragem deve ampla divulgação nas redes sociais, o que possibilitou aos seus idealizadores a
produção de um longa metragem que teve uma divulgação ainda maior e se tornou referência para a
abordagem do tema no cinema nacional. O curta metragem exibido pode ser visto no seguinte link:
https://www.youtube.com/watch?v=1Wav5KjBHbI, visto em 20/05/2018.
75
que precisam ser reconhecidas em seus direitos em relação a cidadania, que estão
em constantes disputas.
O filme apresenta a história de Léo, um adolescente cego, que com sua amiga
Giovanna acolhe como amigo um novo aluno na sua sala de aula, o Gabriel. Os três
permanecem juntos na trama até que um professor de história requer um trabalho em
dupla sobre Atenas e Esparta, e promove uma divisão por gênero, os rapazes
escreveriam sobre Esparta e as garotas sobre Atenas. Essa divisão na trama acaba
por aproximar ainda mais os amigos Léo e Gabriel. Na trama Léo confessa à amiga
Giovanna estar apaixonado por Gabriel, e esta, perplexa, pois era apaixonada por Léo,
sai e o deixa na escola sozinho, assim Léo acaba tendo que voltar sozinho para casa
com sua bengala. É quando Gabriel entra no quarto de Léo, que pensando estar
diante de Giovanna reclama que ela o havia abandonado na escola justamente no
momento em que precisava dela pois tinha lhe dito que estava apaixonado pelo amigo.
Gabriel ou ouvir o relato de Léo lhe rouba um beijo e sai de cena deixando Léo
confuso, até que algum tempo depois Giovanna entra no quarto e Léo percebe que o
beijo que lhe foi dado veio do Gabriel.
A escola estaria preparada para acolher sem estigmatizar alunos e alunas com
sexualidades diferentes da esperada? O que alunos e alunas perceberam como difícil,
mas que todos deveriam respeitar. Nesse momento na turma 803, um aluno ponderou
que ele não estava preparado para ver aquele beijo, o que foi seguido por risos pelos
demais alunos: “traumatizou o menino professor!”, afirmou um segundo, “conta tudo
pra tua mãe Kiko!”, sugeriu um terceiro, também acompanhado de mais risos.
alguns ponderaram que eles teriam que obedecer às mesmas regras da escola que
um casal heterossexual, mas seria difícil que todos respeitassem, o que afirmei ser
importante de ser destacado, pois o que se espera não são privilégios, mas sim
reconhecimentos.
Sem citar nomes, destaquei fatos que presenciei ao longo da minha vida
profissional e parte das histórias escolares de pessoas percebidas fora da
heteronormatividade que vinha colhendo aqui no Amapá, por meio das entrevistas
prévias que estava realizando, que dariam origem a dois ou três materiais audiovisuais
que buscariam contar a uma História das estigmatizações escolares em relação a
alunos e alunas não heteronormativos no Amapá . Salientando que as pessoas que
estava entrevistando sofreram estigmatizações por parte de discentes e docentes,
experiências de violências que passaram o nível das, “piadinhas”, xingamentos,
humilhações e chegaram à violência física na escola (ou fora dela), mas que reagiram,
algumas conseguiram terminar a escola e mesmo se formar posteriormente, mas para
algumas pessoas essas experiências tornaram suas permanências na escola
verdadeiros martírios e que para determinadas pessoas chegou ao ponto de não
conseguirem mais permanecer na escola.
78
Esta experiência didática não chegou a ser finalizada: faltava apenas uma
turma, a 706, mas no dia anterior havia ocorrido uma apresentação em outra turma e
um aluno levou ao conhecimento de sua mãe que na escola um professor tinha
apresentado um filme com adolescentes do mesmo sexo se beijando, e no dia
seguinte a mãe estava na coordenação pedagógica para saber do que se tratava e o
absurdo que significava para ela a situação que lhe fora apresentada por seu filho.
Assim, fui chamado para esclarecer do que se tratava; ao chegar na coordenação me
deparei com uma mãe muito chateada e a coordenadora da escola se dizendo ciente
da proposta e explicando do que se tratava o filme.
Tive que esclarecer toda a proposta, mas a mãe salientou que se o pai do
adolescente estivesse em Macapá ela nem saberia o que ele faria, pois era de uma
religião ainda mais conservadora que a dela. Enfatizei que gênero e sexualidade são
temas transversais e que o trabalho que estava desenvolvendo era justamente para
dirimir conflitos, momento em que a chamei para ver o filme, mas esta preferiu não
ver. A mãe entendeu do que se tratava, mas deixou claro que, na sua opinião, ela
deveria ter conhecimento de que o beijo entre pessoas do mesmo sexo seria mostrado
na escola ao seu filho, que ela deveria estar sabendo disso, pois nem o teria levado a
escola naquele dia. Entender as possíveis interpretações para a proposta é
fundamental, a mesma já havia sido modificada para dirimir possíveis conflitos, mas
este veio à tona. A mãe relatou não ter ouvido do seu filho nenhum dos episódios de
violência contra alunos e alunas percebidos como não-heteronormativos no ambiente
escolar que fizeram parte da aula, relatei que aquele era o momento mais leve da aula,
79
Uma entrevista é uma troca entre dois sujeitos: literalmente uma visão
mútua. Uma parte não pode realmente ver a outra a menos que a outra
possa vê-lo ou vê-la em troca. Os dois sujeitos, interatuando, não
podem agir juntos a menos que alguma mutualidade seja estabelecida.
O pesquisador de campo, entretanto, tem um objetivo amparado em
igualdade, como condição para uma comunicação menos distorcida e
um conjunto de informações menos tendenciosas. (1997, p.9)
primeiras sondagens de possíveis informantes, com muito zelo, fui arguir um amigo
próximo que já conhecia há mais de 11 anos sobre suas memórias escolares e
possíveis estigmatizações, que este, por não performar o que se esperava para o
masculino poderia ter sofrido. De imediato este me perguntou de que memórias eu
estava falando, assim expliquei o que procurava que basicamente eram dois tipos de
memórias, as de estigmatizações que possivelmente ele teria sofrido de estudantes e
as que poderia ter sofrido por parte de profissionais das escolas em que tinha
estudado, que para mim seriam as mais significativas. Neste momento o meu amigo,
que aqui não posso revelar o nome pois no decorrer da execução da pesquisa saiu do
Amapá, o que impossibilitou ceder seu depoimento formal, me respondeu que estas
não eram as memórias mais dolorosas, mas sim a memória de quando alunos e alunas
eram denunciadas pela escola aos seus pais, em seguida este me descreveu a
situação da seguinte maneira: - A pessoa está ali de boa e do nada alguém lhe entrega
um papel pedindo a presença dos pais na escola, a criança obviamente entrega o
informativo, os pais vão na escola e quando voltam a sua vida vira um inferno. A forma
como este me narrou esta memória fez claramente entender que a prática da escola
convocar os pais de alunos e alunas percebidas como não-heteronormativas, na
Macapá dos anos 90, era algo comum, não só comum, mas que fazia parte das
memórias mais dolorosas possíveis, pois demarcava o momento em que a percepção
da escola sobre aqueles discentes percebidos fora da heteronormatividade era levada
a vida privada familiar de alunas e alunos.
A partir deste momento a procura por esta memória, que foi me apresentada
como comum, tornou-se um desafio. A própria mudança do meu amigo me impunha
buscar novas vozes que poderiam suprir esta lacuna. Ao mesmo tempo que estas
memórias denunciariam uma prática nitidamente discriminatória, esta envolveria
novos elementos na cena que até então não havia mensurado, as famílias de
possíveis entrevistados e entrevistadas entravam na história da heteronormatividade
e estigmatização na cultura escolar amapaense. A intimidade possibilitou a primeira
declaração em relação as denúncias, pois este era o amigo mais próximo que poderia
ter passado por estas estigmatizações em sua vida escolar, assim tive que ir a campo
em busca de novas vozes capazes não só de suprir esta lacuna, mas que pudessem
trazer novas perspectivas quanto a esta e outras práticas, resistências as imposições
heteronormativas e ressignificações.
84
Como estas denúncias, repetindo aqui o termo utilizado pela pessoa que me
revelou esta prática, foram feitas? O que era dito nestas denúncias? Como estas
chegavam aos alunos e alunas que passaram por estes constrangimentos? São
memórias de quando a escola efetivamente afetou as relações entre discentes e suas
famílias, são memórias que não são facilmente reveladas justamente por envolverem
feridas que só são expostas quando realmente se tem um comprometimento com a
mudança, mas mesmo este comprometimento não é suficiente para que estas
memórias sejam reveladas, justamente porque envolvem familiares e retomam dores
e ressentimentos que até a fatídica pergunta era algo íntimo e mesmo secreto, algo
da esfera do privado e que estava intimamente guardado. O que desequilibraria ainda
mais a pretensão de igualdade preconizada na pesquisa.
Este pesquisador ser percebido como diferente do público a ser entrevistado foi
uma das barreiras que perpassaram relações identitárias diversas. Como um
desconhecido, os obstáculos começaram pelo sotaque, que demarca uma diferença
identitária regional, posto que embora me apresentasse como professor vinculado ao
Estado do Amapá, a pergunta sobre a minha origem foi recorrente nos diálogos que
fizeram parte das aproximações com o público alvo. As quais ponderei já ter perdido
muito do sotaque pernambucano nos seus 14 anos trabalhando como professor de
história aqui no Amapá.
Outra pessoa a ser entrevistada sugeriu levar uma pessoa amiga para se sentir
mais confortável ao dar seu depoimento. O que passou a ser uma sugestão de opção
a quem se mostrasse insegura para depor. O que foi feito por quatro pessoas
86
Para realização das gravações das entrevistas foram necessários meses, como
disse, em alguns casos mais de um ano entre o primeiro contato e a entrevista e
mesmo entre o primeiro contato e a negativa de ceder o depoimento, vários possíveis
entrevistados e entrevistadas desistiram de dar seus depoimentos.
E a princípio era por esta motivação, por esta possibilidade, que este
pesquisador pensava que a proposta seria aceita pela maioria. Mas é difícil falar, como
salienta Michael Pollak, no seu artigo, Memória e Identidade Social: Uma pessoa a
quem nunca ninguém perguntou quem ela é, de repente ser solicitada a relatar como
foi a sua vida, tem muita dificuldade para entender esse súbito interesse. Já é difícil
fazê-Ia falar, quanto mais falar de si (1992, p.213).
O tempo entre as sondagens para as entrevistas e suas efetivações, fez vários
entrevistados e entrevistadas repensarem. Para estes e estas o medo foi
predominante, posto que as estigmatizações aos LGBTI continuam no presente em
nossa sociedade. Vários dos possíveis entrevistados, percebendo a possibilidade de
87
Portelli, afirma que a primeira coisa que torna a história oral diferente é que ela
nos conta menos sobre eventos do que sobre significados (1997a, p.31), neste sentido
é fundamental compreender as diversas negativas, foram descortinando o significado
ainda presente destas estigmatizações sofridas por aqueles e aquelas que não
conseguiram quebrar o silêncio. Além das que conseguiram, com mais ou com menos
resistências ceder seus depoimentos para este pesquisador, mas as efetivações
foram resultado de muita luta interna para a maioria. Ao final, na visão deste
pesquisador, apenas quatro das quatorze pessoas entrevistadas, no grupo dos ex-
alunos e alunas pareceram totalmente confortáveis durante todo o processo.
Eu nunca falei sobre isso pra ninguém, abertamente assim a fundo né,
a gente conversa quando a gente se encontra, amigos assim..., mas
conversar, falar sobre o assunto nunca tinha conversado abertamente
porque é difícil, é difícil você se lembrar né, que talvez minha vida
tivesse tomado outro rumo, então é complicado, por isso é tão difícil
você encontrar um LGBT para falar o momento de escola, contar como
foi seu momento de escola não é fácil, ninguém quer se expor,
ninguém quer falar, mas a gente precisa falar porque tem pessoas
passando por isso nesse momento, tem pessoas deixando de estudar,
tem pessoas se matando.
É uma dor, eu acho que talvez nunca cura, o que pode acontecer é eu
amadurecer e lidar com isso com o tempo. Quando tu me pediu para
falar sobre isso foi muito difícil pra mim, mas eu percebo que eu tenho
que falar sobre isso, porque eu tenho que alertar outros pais, outros
professores, que eles matam nós silenciosamente, não é uma morte
de ir lá te dar um tiro, é uma morte muito pior, que pode não cicatrizar,
por dentro é uma dor que não cessa, tem pessoas que não se
recuperam, tem amigos que até hoje não voltaram pra escola, vivem
de subempregos, sabem mal assinar o nome e são gays.
91
tenham escutado frases do tipo: “antigamente a palavra dos professores era Lei!”,
“antigamente o que um professor dizia sobre seus alunos aos seus pais era verdade,
agora nem os pais nos respeitam.” Essas insatisfações com a queda do prestígio
profissional são legítimas, e a perda não se resume ao respeito, mas sim à dignidade
da própria função docente. Estes discursos deixam claro que o posicionamento dos
professores como inquestionáveis denotam um desejo de que a função docente seja,
ou volte a ser, pelo menos no horizonte de suas expectativas, inquestionável. Torna-
se importante destacar que esta não é uma mera expectativa autoritária da docência,
é facilmente compreensível que nós, profissionais da educação no contexto escolar
nos percebamos desamparados, posto que problemas relacionados às diversas
formas de violência no contexto escolar se agravam a cada ano no país, e o medo, já
há muitos anos, passou a fazer parte do exercício da função, sem dúvida a história do
medo e da insegurança no contexto escolar serão temas de muito mais pesquisas em
educação e em história da educação.
Mas o que acorria no dia-a-dia de uma prática docente percebida, pelo menos
no plano ideal, como inquestionável? Que injustiças e resistências em relação a
discentes percebidos por estereótipos para seus gêneros e sexualidades. nessas
relações no tempo? Para ampliar as possibilidades de serem visibilizados outros
olhares, a pesquisa também contou com a participação de professoras e de um
professor. Uma destas professoras, além da função, é mãe de dois ex-alunos que não
são heteronormativos, o que poderia ampliar ainda mais estas possibilidades.
Este público de fato foi o mais fácil de ser acessado, pois como professor de
história da educação básica tive o privilégio de ter contato com outros profissionais da
educação que percebiam e se identificavam com as demandas de alunos e alunas
não heteronormativos no contexto escolar. Durante o ano de 2017, a presença de uma
mãe no meu local de trabalho reclamando do tratamento homofóbico direcionado por
uma professora ao seu filho chegou ao meu conhecimento. Fui conversar com ela a
esse respeito e pedi seu depoimento, esta mãe compreendeu a relação do ocorrido
com seu filho com a temática da pesquisa, mas temia ser identificada com isso expor
o seu filho. Mas mesmo não querendo se identificar ela cedeu o seu depoimento, para
que isto pudesse ser possível foram filmadas apenas as suas mãos.
93
Na busca por dialogar com a cultura escolar, o espaço e o tempo pensado para
este fim foi o da Semana Pedagógica, que acontece todos os anos na semana anterior
a que inicia o calendário letivo. Esta capacitação teria que ter uma legibilidade, teria
que vir de algo comum ao ofício dos meus colegas professores e professoras, assim
a forma encontrada para promover o debate foi a aula, pois assim se daria legibilidade
para a demanda e este momento por reunir todos os profissionais da educação das
escolas proporcionaria junto a estes importantes reflexões sobre a temática.
Ciente das possíveis resistências à temática, esta proposta não poderia deixar
de ser apresentada como uma oportunidade de qualificação, que fosse não
simplesmente fizesse uma constatação do que ao longo dos anos vem sendo imposto
a todos e todas que não foram percebidos diante das “normalidades” impostas a uma
sociedade que historicamente esconde e exclui as diferenças. Levar a compreensão
que vivemos sobre representações que orientam nossas percepções pode parecer até
mesmo óbvio para profissionais que fazem parte das ciências humanas, mas em
relação a profissionais ligados a outras áreas de conhecimento pode parecer não só
estranho como até mesmo uma intromissão em suas formas de compreender o
95
Para a aula foram elaborados onze slides que seriam apresentados numa
ordem onde os conceitos pudessem ser expostos objetivamente a começar pelos
sugeridos no título da aula: Gênero e sexualidade: estigmas no cotidiano escolar do
Amapá entre 1988 e 2018. A partir de uma breve introdução, onde foram apresentados
um breve histórico do crescimento populacional do Amapá entre 1988 e 2018 e as
mudanças legais na educação, com a Constituição, que garantiria uma educação
básica para todos e a Lei 9394/96, nossa Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que
levaria a cidadania como a principal preocupação da formação escolar, passando pelo
conceito de cultura escolar, a construção social do currículo e o currículo oculto no
qual se promove uma série de estigmatização.
8
Para a apresentação precisaria de uma caixa de som e um Datashow, equipamentos presentes na escola, que
não haveria problemas de acoplar ao meu notebook.
97
A aula tinha ainda duas hipóteses: a de que nas escolas do Amapá, entre os
anos de 1988 e 2018, existe um silenciamento do ponto de vista didático das questões
relacionadas à diferença sexual e às relações de gênero. E de que seja possível
elaborar uma narrativa que quebre este silenciamento, que promova debates
possibilitando uma reflexão sobre a construção destas diferenças e promova
possibilidades para um novo agir. O objetivo da aula: analisar as representações
levantadas por pessoas que viveram no contexto escolar, no período estipulado na
pesquisa, experiências discriminatórias quanto a sexualidade e fazer destas
representações possibilidades de se discutir estas temáticas no contexto escolar.
Após a apresentação destas memórias fiz a seguinte indagação: o que faz com
que um profissional de Educação Física que foi professor do Dionathan Cunha,
tempos depois do professor da Alexia Leblock, ter um comportamento extremamente
discriminatório? Podemos dizer que as representações não levam os mesmos
significados a pessoas diferentes, enquanto entenderam alunos como a Alexia e
Dionathan como pessoas a serem corrigidas, moldadas em conformidade ao seu sexo
de nascimento, havia profissionais que percebiam de outra forma. Essas memórias
são fundamentais para refletirmos sobre os estereótipos e suas relações com
processos de estigmatização de alunas e alunos percebidos como não
heteronormativos. Esse contraponto teve o objetivo de elucidar que pessoas
diferentes passaram por processos diferentes de convivência e percepções de suas
performances de gênero e sexualidades, de modo que, embora dominantes, estes
processos de estigmatizações não são comuns a todos e todas.
Eu convivia só com minha mãe, o diretor pediu pra chamar minha mãe
devido meu comportamento ser diferente dos outros e minha mãe foi
na escola e devido a esse episódio eu saí da escola porque o que eles
relataram foi totalmente diferente pra ela...
Para destacar que estas denúncias eram direcionadas tanto a pessoas do sexo
masculino quanto do feminino, apresentei o trecho do relato de Igor Reale Alves,
nascido em 11/06/1987, em entrevista concedida em 17/02/2018, na qual afirmou que
a partir desse momento teve sua relação com o pai significativamente alterada:
Foi na sexta série, na sexta série, tinha uma brincadeira na escola que
era meninos e meninas, aí chamaram meu pai no Atual, lá no Atual, aí
eles pegaram pai para falar que eu estava com um comportamento
estranho, tanto eu quanto meus amigos (...) que era para ele falar
comigo, só que ele não falou, ele me escroteou perguntando se eu era
viado e tudo mais, depois disso ele ficou em cima.
Após a apresentação dos vídeos passamos aos dois últimos slides, que
fundamentariam um novo agir que deveria ser partilhado e precisaria da participação
de todos e todas, a inclusão da temática nos Projetos Político-Pedagógicos da Escola
Estadual José de Anchieta. Assim, o penúltimo trouxe uma apreciação do que
determina a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, nossa LDB, que estabelece seis
incumbências para os profissionais de ensino que têm cargos ou funções específicas
ou especializadas na escola, as quais foram destacadas as duas primeiras,
estabelecidas no art. 13, da referida Lei:
discriminações que eram muito mais frequentes, na sua visão, do que acontecem hoje
em dia. Este destacou a importância do trabalho e parabenizou pela escolha do tema.
A primeira foi a Escola Estadual Azevedo Costa, onde trabalhei como professor
de história entre os anos letivos de 2006 a 2008, na qual fui recebido por uma
coordenação composta por uma profissional que me conhecia, do período em que
havíamos trabalhado juntos, e outro que não me conhecia, falei ainda com o atual
diretor da escola fazia parte do corpo docente no período em que lá trabalhei. Tratei,
de fato, da proposta com a coordenação pedagógica, esclarecendo do que se tratava
a temática por cerca de dez minutos.
Na mesma tarde fui na outra escola da rede estadual em que havia trabalhado
por um bom tempo, a Escola Estadual Gonçalves Dias, na qual trabalhei entre os anos
de 2010 e 2013, a coordenadora responsável pela semana pedagógica não era e
mesma do período em que trabalhei e não me conhecia, coincidentemente esta escola
também tem como gestor um profissional que era docente no período em que lá
trabalhei, este, como o da Escola Estadual Azevedo Costa foram eleitos diretores
pela comunidade escolar, no recente processo de promover eleições para direções
escolares aqui no Amapá. A coordenadora pedagógica, que demonstrou interesse
pela pesquisa, mas disse ter fechado toda a programação da semana pedagógica com
antecedência e não teria como encaixar a apresentação para este período, pediu meu
contato para que apresentasse a proposta em uma das reuniões que acontecem
anualmente na instituição com o corpo docente e demais funcionários da escola ao
longo do ano letivo, o que pode ou não vir a acontecer, e não terá registro neste
trabalho.
Desta feita das três instituições que havia pensado em fazer as práticas
pedagógicas, só havia conseguido ter espaço em duas. Chegado o sábado, munido
do meu notebook e disposição para promover o debate me dirigi a Escola Estadual
Azevedo Costa. Chegando lá, me deparei com o fato de que a programação havia
sido alterada e meus trinta minutos estipulados e mais dez para discussões haviam
sido apagados da programação. Não fui avisado da mudança na programação e o
coordenador me disse que mudou a programação e esqueceu de me avisar, mesmo
tendo meu telefone de contato. Este episódio pode ser o indicador de uma resistência
à temática e posso dizer uma indelicadeza posto o que havíamos acordado, o que
sem dúvida é um dado que não pode deixar de ser mencionado.
havia entrevistado estudou muitos anos nesta escola. Assim, numa tentativa de
convencimento, apresentaria estas memórias para demonstrar que daquela escola
especificamente existem memórias significativas de resistência e mesmo de uma
compreensão por parte de professores que no passado participaram da formação
desta aluna que, hoje, enfatiza o respeito com que sempre foi tratada pelos
professores e demais profissionais da instituição, tendo se sentido em alguns casos
efetivamente acolhida por estes profissionais.
Mas isto não foi necessário, na verdade nem precisei usar todos os meus
argumentos, muito menos citar o nome e nem apresentar as memórias da Alexia. Ao
chegar na Escola Estadual Gabriel de Almeida Café fui recebido por Maria Socorro
Varanda, a qual me apresentei como professor da rede estadual que estava pleiteando
um espaço no período da semana pedagógica para apresentar a proposta pedagógica
de capacitação na cultura escolar. Segui explicando do que se tratava a proposta, que
seria uma forma de capacitar profissionais da escola promovendo reflexões sobre a
questão. Foi quando essa me interrompeu falando da importância da temática e
afirmando que alguns professores têm dificuldades de entender estes alunos. Me foi
solicitado que relacionasse o tema com a proposta para o Encontro Pedagógico que
ela estava elaborando (que tinha relação com os a interdisciplinaridade e a
transdisciplinaridade). Destaquei que esta demanda envolve não só todas as
disciplinas como a todos que fazem parte da cultura escolar, tanto que a temática da
pluralidade cultural faz parte dos nos Parâmetros Curriculares Nacionais como parte
dos Temas Transversais, e neste sentido é interdisciplinar, mas a proposta da minha
apresentação não trabalharia especificamente como cada disciplina poderia
desenvolver atividades pedagógicas sobre as temáticas.
Neste momento ficou bastante claro para mim que conhecer as pessoas que
fazem parte das escolas, não tem o mesmo peso de ter pessoas que organizam o
planejamento pedagógico das escolas identificadas com a temática e as demandas
relacionadas a ela no contexto escolar, na verdade não adianta conhecer as pessoas
se elas não se identificam com a demanda. Socorro Varanda é a maior prova disso,
não conhecia previamente esta profissional, mas a mesma acolheu de imediato a
proposta.
Socorro Varanda, me informou que haveria uma mesa redonda, na tarde do dia
6 de março de 2018, na qual pessoas de outras instituições dariam suas contribuições,
106
Das quatro falas marcadas para a ocasião, a minha foi a terceira. A grande
atenção dos professores a apresentação era evidenciada pelo silêncio. O tempo
escasso só me possibilitaria apresentar duas falas, assim apresentei o trecho no qual
Regianne Susarte descreve o momento em que foi denunciada e teve que deixar a
escola. Fala que foi assistida em um silêncio quase que absoluto, em seguida expliquei
que em outros depoimentos há a indicação de que a prática ainda possa estar
ocorrendo, por causa da performance de gênero, como foi o caso de Regianne
Susarte, ou, como acontece em memórias mais recentes, as denúncias ocorreram
quando a escola percebeu a formação de casais homoafetivos em seus domínios,
portanto têm relação mais direta com a sexualidade.
108
Neste momento acorreu o fato mais inusitado dessa prática. O atual diretor da
escola, interrompe a apresentação dizendo: - “Eu defendi Alexia aqui na escola uma
vez quando estavam incomodando ela”. Rhuam R. M. Marinho, foi aluno da escola e
contemporâneo a Alexia. A forma com que ele se referiu a ela me respondeu uma
questão que tinha deixado sem aprofundar durante a entrevista, nesta Alexia havia
afirmado que sempre foi uma transexual, mas ela era tratada pelo nome de Alexia na
escola? Os professores a reconheciam como Alexia? foram perguntas que na
perspectiva da igualdade, preconizada durante as entrevistas, este pesquisador não
pôde fazer.
Neste momento ponderei que a percepção que geralmente se tem sobre estes
alunos é orientada pela heteronormatividade, o que nos faz perceber como
desrespeito alguns comportamentos e não outros. É comum nas escolas vermos
alunos do sexo masculino nos corredores performando suas masculinidades
ocupando corredores e falando alto, meninas que com seus adereços enfatizam suas
feminilidades, mas quando vemos alunos e alunas não heteronormativos tornando
evidentes suas performances de gêneros fora da norma, percebemos como
desrespeito. Enfatizei ainda que é comum vermos esses alunos e alunas retraídas,
tímidas e inseguras, o fato deles e delas estarem apresentando, com uma maior
liberdade hoje em dia, seus gêneros e sexualidades na escola não é um retrocesso,
mas uma prova de que hoje estes alunos e alunas têm uma maior liberdade para
reivindicar suas demandas.
Encerrado este momento, paramos para um lanche e foi neste momento que
várias professoras vieram falar comigo, uma delas elogiou a proposta e me pediu
fontes para leitura, outra disse que tem um aluno na educação especial que sofre
estigmatizações heteronormativas e ficamos por alguns minutos conversando. Na
volta do lanche chamei atenção para o fato de como no primeiro momento só os
professores falaram e só depois as professoras de forma reservada vieram pontuar
suas percepções. Esse momento foi fundamental para que outras professoras
falassem sobre a temática, uma professora em especial contou que sempre chama
atenção de casais que namoram e se beijam pelos corredores da escola de forma
mais explícita, mas quando ela faz estas observações em relação aos alunos
homoafetivos estes a chamam de homofóbica. A ela sugeri inserir no Projeto Político-
Pedagógico, quando este atender esta demanda, uma definição teórica de homofobia,
para que esta se respalde e quando for chamada de homofóbica poder explicar o que
110
A escola encontrava-se com sérios problemas, uma reforma estava sendo feita
durante as férias e não havia sido concluída, a expectativa gerada pela reforma era
de que a escola, no retorno às aulas, estaria com todas as suas salas de aula
climatizadas e o telhado da quadra, que havia caído no ano anterior, reposto, o
resultado é que o Encontro Pedagógico aconteceria naquela semana, mas as aulas
não se iniciariam nas semanas seguintes.
9
A reportagem realizada pela Rede Amazônica que foi realizada neste dia e que foi ao ar no dia seguinte pode
ser vista neste link: http://g1.globo.com/ap/amapa/amapa-tv/videos/t/edicoes/v/prestes-a-inicar-o-ano-letivo-
escola-estadual-esta-em-condicoes-precarias/6566278/, acesso em 13/05/2018.
112
Neste momento abrimos a discussão para que os demais colegas dessem suas
contribuições. Como a apresentação tinha sido bem recebida e percebendo a
possibilidade de ter o registro das ponderações que viriam resolvi ligar o gravador de
voz do meu celular, para poder gravar os depoimentos que viriam e depois correr atrás
destas pessoas para que cedessem autorizações para a utilização de seus
depoimentos para esta pesquisa de modo formal.
O que foi bastante positivo, pois pude guardar em um áudio tudo o que viria
com muita força e indignação pela fala da professora Alexnara Maciel, que desde o
início da apresentação demonstrou um grande interesse pela discussão. Nos seus
olhos ficava clara a sua vontade de contribuir com a discussão, esta fez uma longa
fala da qual foi extraída a parte que trata especificamente do tema:
Em seguida outra professora solicitou a fala, Rosilene Corrêa da Silva, deu uma
contribuição em relação às denúncias que a escola fazia, aos pais de alunos e alunas
percebidos como fora da “normalidade” para seus gêneros e sexualidades, que aqui
será citada na íntegra:
Segundo a professora, este relato remonta a 1986, quando esta tinha 11 anos,
a mesma idade de sua colega então denunciada. Este breve depoimento demonstra
que não chegou a ser preciso ter uma performance de gênero ou sexualidade não-
heteronormativas, bastando andar com alguém que assim fosse percebida para ser
denunciada. O que fatalmente abria precedentes para uma infinidade de pessoas que
podem ter sido denunciadas sem nunca ter nem tido performances de gênero e nem
sexualidades fora do esperado para a norma. O que também deixa claro a abjeção e
a tentativa de patologizar a aluna percebida como “sapatão”, no sentido de afastar a
aluna denunciada de uma possibilidade de “contágio”. Embora este depoimento
remonte a um período dois anos anterior a 1988, é importante porque as memórias
mais próximas a esta data foram as mais difíceis de serem acessadas e a violência
física sofrida pela colega de escola da professora Rosilene Silva, torna importante
frisar porque algumas pessoas que haviam relatado estas violências nestes momentos
das denúncias não conseguiram ceder seus depoimentos.
ele me disse: olha a gente precisa conversar, eu vou te dizer uma coisa
só aqui, o teu filho, tu tens que olhar porque ele está usando duas
camisas, aí eu disse deixa eu te dizer uma coisa, mas porque esse
papo? - Porque ele anda com um rapaz... Aí eu disse: - Deixa eu te
dizer uma coisa, eu tenho dois irmãos, por quem tenho o maior orgulho
que são homoafetivos. Eu acho que a primeira coisa que tu tens que
repensar, como tu faz parte da parte pedagógica é como ele está como
indivíduo, e se um dia meu filho vestir uma camisa rosa eu bato palma,
eu aplaudo ele sem nenhum problema porque o que está faltando é a
gente entender que quando a pessoa tem uma opção é fazer valer o
que diz a Constituição quando ela diz que todos somos iguais.
Pela proximidade de tempo deste relato, fica claro que estas denúncias em
relação ao gênero ainda podem estar acontecendo, ao mesmo tempo que destaca os
posicionamentos de alguns pais e mães que não aceitam posicionamentos
discriminatórios da escola para com seus filhos o que vem, por certo, intimidando
novas denúncias.
A cultura é muito mais forte que a educação formal, muito mais forte,
e lidar com a cultura, com algo que nossa sociedade não respeita, não
valoriza, é algo extremamente difícil porque nós temos que nos
desconstruir para nos reconstruímos diante dessas novas
perspectivas, porque aquilo de onde nós nascemos e reafirmamos ao
longo de toda nossa existência, legitimamos aquilo como uma verdade
única e absoluta e como dizem os filósofos não existe uma verdade
única, a não ser nas exatas, tudo pode se transformar se nós
permitirmos.
Quanto mais o aluno sentir a História como algo próximo dele, mais
terá vontade de interagir com ela, não como uma coisa externa,
distante, mas como uma prática que ele se sentirá qualificado e
inclinado a exercer. O verdadeiro potencial transformador da História
é a oportunidade que ela oferece de praticar a “inclusão histórica”.
(2010, p.28)
As disputas pelo em torno dos direitos da população LGBTI têm tido como seus
palcos principais o Congresso Federal, a relutância em manter intocáveis conceitos
como o de família, por exemplo, encontraram um forte amparo. Assim como as
propostas de sepultamento programa Brasil Sem Homofobia10, criado em 2004, que
teve suas ações efetivas combatidas de forma sistemática no Congresso Federal onde
o crescimento de grupos conservadores que se alinham em torno de pautas que
consideram fundamentais para a manutenção de seus discursos historicamente
fundamentados na normatização compulsória do gêneros e sexualidades.
10
O Brasil Sem Homofobia, se definia como: Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB e
de Promoção da Cidadania Homossexual, com o objetivo de promover a cidadania de gays, lésbicas, travestis,
transgêneros e bissexuais, a partir da equiparação de direitos e do combate à violência e à discriminação
homofóbicas, respeitando a especificidade de cada um desses grupos populacionais. Visto dia 06/06/2018 em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/brasil_sem_homofobia.pdf.
11
No caderno do programa Escola sem homofobia destaca-se os objetivos destes materiais: “os materiais que
compõem o kit educativo do Projeto procuram contribuir para a desconstrução de imagens estereotipadas sobre
lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, e promover como ganho a convivência e o respeito em relação
às diferenças, tendo sido concebidos com o pressuposto de facilitar essa tarefa.” Visto dia 06/06/2018, acessado
em: file: ///C:/Users/Vick/Downloads/kit-gay-escola-sem-homofobia-mec.pdf
12
Em 2017 o Conselho Nacional de Educação, do governo Michel Temer, já havia retirado os conceitos de
identidade de gênero e orientação sexual da BNCC, Base Nacional Comum Curricular e nessa nova versão do
PNLD, Programa Nacional do Livro Didático estas preocupações foram silenciadas, é esperar o que virá nos
próximos livros didáticos selecionados pelo atual governo sobre a temática. Segue a versão atualizada do PNLD,
de 2018, visto em 08/06/2018: file:///C:/Users/Vick/Downloads/Guia_PNLD_2018_Apresentacao.pdf
118
13
Acessado em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1050668,
em 28 de março de 2018.
119
Deste modo o material para a Educação Básica passou a ser planejado para o
Ensino Médio, mas, mesmo assim, ficava difícil prever a maturidade desse público.
Pois a cultura heteronormativa se esforça para se manter intocada, o que torna difícil
mensurar como este poderia ser apresentado por docentes que não se identifiquem
com a proposta. Por outro lado, entre adultos, mesmo que alguém pense em promover
alguma “piada”, este ficará limitado a expor, entre colegas, chacotas como forma de
deslegitimar o trabalho. O material obviamente pode ser questionado, mas esperamos
que sem a promoção de novas estigmatizações aqueles e aquelas que cederam seus
120
depoimentos14. Após muita reflexão sobre estas possibilidades foi decidido focar o
material audiovisual para o público adulto, para aqueles e aquelas que fazem parte,
como adultos, da cultura escolar, os profissionais da educação e se possível para os
demais funcionários que fazem parte das escolas.
14
A confecção de um material voltado para ser trabalhado em aulas de história, sem a utilização destas
entrevistas, demanda uma pesquisa ainda mais vasta o que não poderia ser desenvolvida nos dois anos
determinados para a realização do mestrado.
121
O Colorindo permite uma leitura que seja realizada por todos e todas dentro da
coletividade dos profissionais das instituições escolares concomitantemente, e sem
ocupar um tempo demasiadamente grande, além dos custos de materiais impressos
e a incerteza da leitura que possa ser ou não realizada por cada profissional da
instituição neste momento. Roger Chartier, preocupado com como se dão
historicamente as leituras analisou as formas como historicamente são socializadas.
Para o autor:
Não podemos esquecer que mesmo num ambiente formado por docentes, o
estigma pode ser direcionado à pessoa que questione a estigmatização
heteronormativa. O audiovisual possibilita que profissionais da educação discutam a
questão a partir de um material produzido externamente, e distribuído de maneira
institucional.
Para Da-Rin toda uma crítica social que poderia ser desenvolvida a partir de
Housing Problems encerrou-se no próprio filme, graças a falta de apoio institucional
para a realização de trabalhos semelhantes; o que, para o autor, só foi retomado pelo
documentário após a II Guerra mundial, com o desenvolvimento de equipamentos
mais leves, que possibilitavam captar a imagem e o som e depois sincronizá-los com
mais precisão, maior qualidade e menor custo.
, finalizado em 1983, aborda uma das entrevistas do filme como uma entrevista de
história oral.
Através de sua voz e de sua presença física nas cenas, Eduardo Coutinho
deixa clara sua participação não só no filme como também na vida das pessoas que
dele participaram. Não que o nosso filme apresente uma inserção direta na vida de
alguma das pessoas entrevistadas como efetivamente Coutinho realizou em Cabra
marcado pra morrer, aqui a inserção esperada é dos debates que o audiovisual
poderá promover nos cotidianos escolares.
Nunca é demais destacar que estas perguntas não poderiam ser muito
invasivas, é preciso sensibilidade para se perceber os limites do que se pode ser
perguntado; o equilíbrio tinha que ser sempre observado, mesmo as perguntas sobre
as estigmatizações não poderiam ser feitas de modo invasivo ou que direcionasse
possíveis respostas, perguntas do tipo: “- Como você resistia as estigmatizações?”
poderiam levar a uma supervalorização das resistências limitando nos depoimentos
as estigmatizações e o que representaram no passado. Ao mesmo tempo que a
possibilidade de pensarem não ter reagido de uma forma mais combativa, no
passado poderia ferir ainda mais suas relações com estas memórias. Somos pessoas
do nosso tempo, reelaboramos nossa memória que é construída e reconstruída
constantemente, o que torna possível que memórias de nossas infâncias e
adolescências sejam diretamente influenciada pela forma que, consciente e
inconscientemente, queiramos ser percebidos no presente. Deste modo, optou-se
por não perguntar sobre as formas como estas pessoas reagiram, presumindo que
estas possíveis resistências apareceriam nas falas e de fato vieram, mesmo nas
memórias mais sofridas táticas de resistência no cotidiano escolar e lutas pelas
afirmações e reconhecimentos de suas demandas e identidades.
O roteiro base para este grupo de entrevistados foi elaborado com base em
questões que surgiram a partir da pesquisa bibliográfica, das sondagens prévias
realizadas com este público e das experiências deste pesquisador (às quais se
somam as influências de seus referenciais teóricos). O principal objetivo das
perguntas direcionadas as pessoas que foram estigmatizadas era perceber práticas
recorrentes que caracterizariam a presença, repetições e possíveis mudanças no
tempo destas violências, o que em um único relato não poderia ser observado.
Mas mesmo nesta entrevista é possível perceber as formas com que este
entrevistado reagiu ao que se passava, foi nessa entrevista que pela segunda vez
me foi apresentada nessa pesquisa uma questão que posso afirmar pela repetição
que forma um padrão. Algo que já havia me sido relatado por Wellington Façanha,
ao qual voltaremos, mas que não estava em nenhuma pergunta do roteiro, pois não
havia sido visualizada até a sua feitura, e mesmo durante esta entrevista infelizmente
não me pareceu ser um padrão ou nem como algo para ser perguntado a outras
pessoas entrevistadas. Quando perguntado sobre possíveis estigmatizações, por
parte de outros funcionários da escola que não fossem os professores, Dionathan
Cunha respondeu:
É preciso muita atenção para perceber o que está fora do roteiro, pois este
direciona e orienta obviamente as entrevistas e sendo constituído pelas limitadas
percepções prévias do pesquisador, que pode, como aconteceu neste caso, demorar
a perceber. Só reconheci que havia um padrão quando um outro professor de história,
apresentou a questão, não exatamente com estas palavras, mas como um
silenciamento institucionalizado. Quando perguntado sobre a sua prática, o professor
Alessandro Veloso respondeu:
encontradas para apresentar o debate nas escolas. Algumas pessoas que controlam
a coordenação e orientação escolar não aceitaram uma a proposta de levar o debate
em seus locais de trabalho (como salientado no capítulo anterior), quando este
pesquisador expunha as temáticas a serem tratadas, que memórias chegaram a
estas pessoas? Nunca iremos saber, mas é bom saber que lembraram. Em todo caso
este pesquisador teve que fingir demência15, para evitar atritos, ao explicar toda a
proposta e só depois ouvir que a programação da semana pedagógica já estava
fechada, e que não haveria espaço e nem tempo para ser encaixada na
programação.
15
Expressão utilizada por André as Silva Lopes, um de nossos entrevistados, ao se referir as suas reações frente
a alguns momentos de estigmatização pelos quais passou na escola.
134
Estes testemunhos acabaram por suprir à lacuna da pergunta que não foi feita
por este pesquisador, dados seus limites de percepção. Pois quando a prática foi
percebida quase todas as entrevistas já haviam sido realizadas e essa pergunta não
havia sido feita de forma sistemática. A pergunta poderia ser a seguinte: você em
algum momento procurou apoio da escola frente as estigmatizações que sofria?
como a escola reagiu ou reagia quando você procurou, ou procurava, este apoio?
Numa pesquisa com tantas dificuldades e tempo limitado, podemos cair na tentação
de focar nossas percepções nas nossas expectativas e deixar de perceber outros
aspectos profundamente relevantes.
Para Bourdieu a igualdade formal que pauta a prática pedagógica serve como
máscara e justificação para a indiferença no que diz respeito às desigualdades reais
diante do ensino e da cultura exigida.
escolar não são meros funcionários, são aqueles e aquelas que recebem as
demandas destes alunos e alunas e as silenciam, são parte integrante de sua cultura
agindo efetivamente em sua reprodução. O que confirma um pressuposto levantado
por Foucault em Vigiar e Punir, segundo o qual:
Foi muito difícil eu chegar com a minha mãe, eu moro só com minha
mãe, e dizer... e dizer pra ela que eu estava sofrendo preconceito,
porque eles estavam me chamando de gay, na verdade eu nem
cheguei a dizer a palavra que estavam me xingando, eu só cheguei
pra ela e disse: mãe, lá na escola as pessoas ficam pegando no meu
pé, porque eles falam que minha voz é fina, falam que a maneira que
eu ando é diferente, ficam pegando no meu pé por isso e me
xingando.
137
Ao dizer que morava só com sua mãe, este não apenas explicitou uma
característica de sua família, como também deixou nas entrelinhas que este não tinha
uma rede de proteção familiar que demonstrasse para a escola que este não estava
“sozinho”. Não dá para sabermos se a direção da escola tinha conhecimento de que
Dionathan Cunha morava só com sua mãe.
O que nos faz voltar ao depoimento de Regianne Susarte, que também morava
só com sua mãe, que em seu relato deixou claro que o diretor de sua escola sabia
disso ao salientar o momento em que a escola a denunciou a sua mãe, que como
ainda não sabia lidar com a situação, a retirou da instituição, deixando Regianne por
dois anos e meio sem frequentar a escola, o que até hoje lhe marca
significativamente:
Naquela época foi bem difícil entender porque naquela época tudo era
novo e sempre que eu me lembro disso não tem como eu não me
emocionar, porque a escola me expulsou, quem sabe hoje eu não
estaria formada, dando aula como muitos amigos meus aí, ou em outra
138
Não, até porque todos faziam o mesmo discurso né. Nunca nenhum
funcionário seja da limpeza, da cozinha, professor, orientador, nunca
ninguém, eles falavam a mesma língua, diferente do que acontece
hoje.
Não, porque eu sempre mostrei ser uma pessoa bem ciente das
coisas e também meus pais sempre faziam meu acompanhamento
em cima, então eu acho que os professores viam minha família lá,
viram meu pai, minha mãe, minha tia ou algum outro responsável do
momento não se incomodar com meus comportamentos, minha
maneira de vida e ficaram acho que meio assim com o pé atrás, tipo:
nossa, se eu fizer alguma coisa, se eu distratar o aluno aqui ele vai
chegar no mesmo momento em casa e vai pegar pra mim, porque
acho que muitos comportamentos ruins são feitos com aquela certeza
de que a pessoa não vai ser punida.
Como salienta por Arnon Tavares, este tinha vários familiares presentes na
escola, o que deixa claro que estas pessoas estabeleceram uma rede de proteção
que inibia as estigmatizações, diferentemente do que ocorria no mesmo período com
o Dionathan Cunha. Nesta perspectiva, as práticas de estigmatizações por parte dos
profissionais da educação são seletivas e o que limita as estigmatizações na cultura
140
Eu tive que tomar uma decisão na minha vida, ou passar pela minha
transição ou continuar meus estudos e sempre sofrer aquele estigma,
sempre ser apontada como: aquela existência não pode habitar aqui
nesse lugar, então aquela existência vai ser sempre uma chacota, a
gente sempre vai ter o direito de chacotar com ela porque ela não
está encaixada nesse padrão: Há, não é um menino, é um veadinho,
é um homem que se veste de mulher, então aí as vezes até uns
professores, aí não tinha nome científico da coisa, então aquilo é uma
coisa que a gente não sabe o que é, então a gente vai ter o direito de
tirar sarro da cara, e tiravam algumas piadinhas e aquilo as vezes me
deixava muito pra baixo, aí eu não vou terminar meus estudos eu vou
seguir em frente com minha transição de corpo, eu queria ser uma
menina, aí eu descobri que isso nasceu de dentro pra fora, não foi
uma coisa que nasceu de fora pra dentro foi uma coisa que foi fluindo,
ao mesmo tempo que eu transcendi eu transgredi algo que se chama
normatividade de vida.
O banheiro escolar foi relatado como um lugar em que estas pessoas tiveram
seus acessos limitados, como na situação narrada por Alexia Leblock, de violência
sexual; várias pessoas também narraram não frequentar este espaço ou esperar um
momento mais propício para isso, por medo de sofrer alguma forma de violência.
Regianne Susarte relata o seguinte episódio que aconteceu em sua escola:
Tinha um menino na minha escola o Célio, que ele... eu não sei bem
que fim levou ele, então ele tinha uns trejeitos muito femininos e os
meninos uma vez expulsaram ele de dentro do banheiro masculino,
porque o lugar dele não era lá, o lugar dele era junto com as meninas
e essas coisas eram assim que aconteciam e isso era todo dia,
ninguém falava sobre o assunto, ninguém fazia nada, passava tipo
que meio despercebido.
No mesmo sentido André Lopes salienta suas táticas para conseguir utilizar o
banheiro:
O IETA foi um negócio muito doido, aquela turma que estava no IETA,
a galera estava muito para desconstruir mesmo as coisas sabe, pelo
menos os professores com quem eu convivi, que saíram do IETA, que
foram meus parceiros, meus colegas de IETA, a gente era... se ainda
não era desconstruídos estávamos no caminho e os professores nos
147
famílias em favor de seus filhos e filhas vem se tornando cada vez mais comum. A
entrevista concedida em 17/06/2018, por Arthur Corrêa Baía, nascido em 03/09/1996,
que se define como um homem trans, mas durante o seu período escolar ainda se
identificava pelo seu nome de registro, foi bastante reveladora:
escola para promover estas denúncias quanto uma maior vigilância quanto aos
gêneros percebidos fora da norma; o segundo é que essa eficiência era
acompanhada de uma aceitação muito maior das denúncias de seus filhos e filhas
por parte de suas famílias, o que caracteriza condições mais propícias para inibir de
forma mais eficaz a formação de casais não-heteronormativos nas escolas. Apenas
uma pessoa foi denunciada tanto em relação ao seu gênero quanto em relação a sua
sexualidade.
frequência as denúncias quanto aos seus gêneros, estas pessoas tiveram maior
liberdade para vivenciarem experiências não heteronormativas em relação a
sexualidade, como salientou André Lopes em seu depoimento sobre a experiência
que desenvolveu em escolas públicas na cidade de Macapá, o que promoveu, o já
citado, deslocamento das denúncias do gênero para a sexualidade.
Além de Arthur, outras duas pessoas narraram terem sido denunciadas por
causa de suas sexualidades, isto porque em nenhum momento, Regienne, Igor e
Wellington Façanha afirmaram terem sido denunciados por terem estabelecido
relacionamentos afetivos nas escolas. Kárita Eduarda de Almeida Borges, nascida
em 01/10/1998, denunciada no ensino médio, foi a única das pessoas entrevistadas
que afirmou ter sido denunciada tanto pelo gênero quanto pela sexualidade. Em
entrevista concedida em 26/02/2018, afirmou que a primeira denúncia ocorreu
quando esta foi percebida com um “brinquedo” que para a escola parecia ser de uso
exclusivo do masculino, esta relatou:
No segundo ano do ensino médio foi por conta de uma garota que eu
estava me aproximando; na minha escola existia vários alunos que
apresentavam comportamentos indevidos na escola a respeito de
namoro sabe, por todos os cantos da escola existia um casalzinho
que estava sentado namorando, fazendo qualquer coisa do tipo e
nunca eram chamados atenção. Por conta de eu andar com uma
colega minha que a gente estava começando a se aproximar ela
começou a perceber o nosso comportamento e um certo dia ela
chamou a gente na coordenação e essa menina, ela tinha problemas
porque eu já era assumida com os meus pais, enfrentei vários
problemas na minha casa, na minha família enquanto isso, mas essa
menina não, ela não era assumida para os pais dela, ela causou um
certo constrangimento para essa menina, porque isso gerou muitos
conflitos na família dessa menina depois disso... Ela chamou minha
mãe, chamou os pais dessa menina, sei que na época isso causou o
maior alvoroço porque até querer tirar a menina do Estado eles
quiseram por conta disso, do caso de querer me afastar dela por
causa que eu era uma “má influência”.
Como sugeriu Silvanda Duarte, parecia uma coisa de outro mundo, a ideia de
“contágio” ao que parece é constantemente associada a formação de casais não-
heteronormativos nesta cultura, para a qual a instituição busca desesperadamente
154
conter a “epidemia”. A outra pessoa denunciada por sua sexualidade, foi Chayenne
da Silva Farias, nascida em 27/12/1992, em entrevista concedida no dia 10/03/2018,
destacou que o mesmo episódio que marcou as primeiras estigmatizações, também
a levou a ser denunciada pela escola a sua família:
16
A resolução 001/99 do Conselho Federal de Psicologia pode ser acessada em: https://site.cfp.org.br/wp-
content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf, visto em 06/06/2018.
156
Foi difícil falar, como salienta Regianne Susarte em sua entrevista: quem
disser que é fácil falar está mentindo. Ao mesmo tempo a sensação que ficou foi a
do dever cumprido, ao cederam seus depoimentos acreditando neste trabalho, estas
pessoas deram uma enorme contribuição para entendermos como se processam as
estratégias disciplinares e como estas pessoas lutaram com as táticas que
conseguiram desenvolver para sobreviverem neste sistema disciplinar. Para Michel
Foucault:
Wellington Façanha, citou que sua mãe vive numa união estável homoafetiva
e entende em seu depoimento a esposa de sua mãe como também sendo, para ele,
uma mãe. Assim, não conseguiu ficar calado ao ouvir este discurso e sentir nos
olhares dos amigos o respaldo para se contrapor ao discurso da professora e narrou
160
este fato com um sorriso tão satisfeito que infelizmente não pôde entrar na edição do
Colorindo, pois poderia sugerir um deboche, quando para ele representa uma
afirmação identitária não só de si como também de sua família.
Um exemplo disso vem de uma mãe, que preferiu não ser identificada, esta
aparece no filme por meio de suas mãos, ela passou por um sério problema
relacionado à estigmatização heteronormativa sofrida por seu filho na escola, esta
preferiu não entrar nos detalhes do ocorrido quando da filmagem, pois não gostaria
de ser identificada, mas ao mesmo tempo gostaria de falar que ela foi na escola para
defender seu filho e aceitou mandar um recado para os profissionais da educação,
no qual afirmou que estes precisariam estudar e deixar de ser homens das cavernas,
pois estamos no século XXI e não seria possível ter gente ainda hoje pensando
assim. Obviamente é compreensível e mesmo importante este posicionamento para
reafirmar que as famílias mudaram e a expectativa por um habitus heterossexual,
que promove as estigmatizações e outras violências a ela relacionadas, não é mais
amplamente corroborada pelas famílias destes alunos e alunas, mas ao mesmo
tempo não cabia na proposta do vídeo, assim este trecho do depoimento infelizmente
não fará parte do filme. Foi difícil cortar, mas foi necessário.
161
Os nomes das escolas tanto públicas quanto particulares também não está
presente nas falas, a intenção é não ter que responder a algum processo judicial e
expor tanto este pesquisador quanto as pessoas entrevistadas a esta possibilidade,
pois alguns depoimentos fatalmente se expostos na íntegra levantariam polêmicas e
insatisfações. O tempo, nessa produção, também impossibilitou que algumas
narrativas permanecessem no filme, de modo que vários trechos narrados e
transcritos neste capítulo não fazem parte do Colorindo, não pelos critérios de
seleção explicitados, mas para caber no tempo de uma obra com os objetivos
propostos.
No mesmo sentido, a rigidez metódica não é seguida como deveria ser num
audiovisual estritamente historiográfico. Em algumas falas da narradora,
influenciadas pelos autores e autoras que embasaram o referencial teórico, estes não
são citados no Colorindo, uma melhor discursão sobre estes referenciais não se faz
presente nesta obra, pois fatalmente quebraria o ritmo do filme e o tornaria
demasiadamente longo para a proposta didática , um exemplo disso está numa fala
da narradora na qual se destaca uma reflexão sobre a concepção de tolerância
levantada por Tomaz Tadeu da Silva, que embora referenciada no primeiro capítulo
desta dissertação, não está presente de forma explícita no Colorindo, assim como
outras discussões que serviram como referenciais teóricos foram sintetizadas para
caber no formato da proposta deste audiovisual.
estigmatizáveis podem somar-se; todas estas falas são acompanhadas por trechos
dos depoimentos.
Após trechos de relatos sobre estas denúncias nos quais há uma forte carga
emocional, a psicóloga Isadora Canto destaca as possíveis consequências
psicológicas destes processos de estigmatização. Quando a narradora reaparece em
cena convoca o público para a promoção de outras práticas em relação a este em
relação as pessoas percebidas fora da heteronormatividade na cultura escolar. No
intuito de quebrar os silenciamentos a estas temáticas na educação escolar, seguem
breves depoimentos sobre a falta de discursões e de representatividade destes temas
no currículo, nos projetos escolares, sugerindo assim suas inclusões para possibilitar
debates e práticas mais cidadãs para todos e todas.
165
CONSIDERAÇÕES FINAIS.
A existência destes sujeitos históricos não deve nem pode ser silenciada. A
não inclusão destes sujeitos e temáticas no currículo e nos projetos das escolas
contribui para a percepção abjeta de suas identidades, ao mesmo tempo em que
reforça as oposições binárias quanto aos gêneros e sexualidades. O silêncio colabora
diariamente para novos processos de estigmatizações, além de outras violências a
elas relacionadas, no contexto escolar e fora deste.
cada vez mais contestadas, no entanto, a velocidade com que isso vem ocorrendo,
graças às limitações impostas pela norma dentro das instituições escolares, essa
disputa se arrastará por longos e dolorosos anos. Agora mesmo temos novos alunos
e novas alunas entrando na escola e sendo ensinados a reforçar a
heteronormatividade e naturalizar as estigmatizações. Outros e outras continuarão
chegando para ocupar os locais daqueles e daquelas que já foram estigmatizados,
pois a heteronormatividade se mantém e se reforça pela estigmatização, e precisa
destes e destas para manter o exemplo do que não se pode ser, do que deve ser
vigiado e punido para manter a norma na cultura escolar, mesmo que não se
problematize o objetivo desta e suas consequências na vida destas pessoas.
escolas, mas sim o surgimento de outras representações para outras práticas nestas
instituições. A mudança vem acontecendo, mas uma história que transforme e
chegue onde precisa chegar é esperada para ontem.
171
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as quais as que estabeleram a Área de Livre Comércio de Macapá e Santana. Diário
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WARNER, Michael. Fear of a queer planet: queer politics and social theory.
Minneapolis: University of Minnesota, 1993.
177
Entrevistas
a) Quando você sentiu pela primeira vez que estava sendo estigmatizado(a) na
escola?
b) Houve estigmatizações por parte de professores ou professoras? Pode relatar
o caso?
c) Houve estigmatizações por parte de outros funcionários ou funcionárias da
escola? Pode relatar o caso?
d) Houve apoio de algum professor, professora ou outros funcionários e
funcionárias frente as estigmatizações? Pode relatar o caso?
e) Há alguma lembrança específica sobre a educação física? Pode relatar?
f) Há alguma lembrança específica sobre o uso do banheiro? Pode relatar?
g) Havia a presença do tema nas aulas de História?
h) Seus pais foram chamados a escola por causa de seu comportamento,
percebido pela escola como inadequado, para o que essa esperava para o seu
gênero e ou sexualidade? Quando? Pode relatar?
d) Qual foi o pior relato que chegou a você? Você interviu na escola? Pode
relatar o episódio?
e) Gostaria de mandar alguma mensagem aos professores que poderão
assistir esse vídeo?