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(Tópicos) John R. Searle - A Redescoberta Da Mente-Martins Fontes (2006)

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Nem toda a realidade

é objetiva; parte dela


é subjetiva
A Redescoberta da M ente
John R. Searle (1932-) é professor de filosofia na Univer­
sidade da Califórnia, Berkeley. Recebeu diversos prêmios e dis­
tinções. Entre eles, estão o N ational Humanities Medal de 2004
(EUA), o Jovellanos 2000 (Espanha) e o Jean-Nicod 2000 (França).
Participou de conferências e ensinou como professor visitante
em diversos países da América do Sul, Europa e Ásia.
John R. Searle
A Redescoberta da Mente

Tradução
EDUARDO PEREIRA E FERREIRA

U M m C A Ç K ) ' TOMBO IP '

. / AQUtSlÇAO
COMPRA ( Y ) DOAÇÃO( )

M artins Fontes
Sao Paulo 2006
Esta obra fo i publicada originalm ente em inglés com o títu lo
TH E REDISCOVERY OF THE M IN D
por The M IT Press, Cambridge, Massachusetts, em 1992.
C opyright © 1992, Massachusetts In s titu te o f Technology.
Copyright © 1997, Livra ria M a rtin s Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, para a presente edição.

I a edição 1997
2a edição 2006

Tradução
ED U A R D O PEREIRA E FERREIRA

Revisão técnica
M aria Viviane do Am aral
Veras Costa Pinto
Revisão da tradução
Jefferson Luiz Camargo
Revisões gráficas
Teresa Cecilia de O liveira Ramos
Eliane Rodrigues de Abreu
D iñarte Zorzanelli da Silva
Produção gráfica
Geraldo Alves
P aginação/Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (QP)


(Câmara Brasileira do Livro , SP, Brasil)
------------------------------------------------------------4 -----------------------------------------
Searle, John R.
A redescoberta da m ente / John Searle ; tradução Eduar­
do Pereira e Ferreira. - 2a ed. - São Paulo : M a rtins Fontes,
2006. - (Tópicos)

T ítu lo orig inal: The rediscovery o f the m ind.


B ibliografia.
ISBN 85-336-2286-4

1. Consciência 2. Filosofia da mente 3. Intencionalidade


(Filosofia) 4. Teoria da identidade do espírito e do cérebro -
Literatura controversa I. T itu lo. II. Série.

06-2792 CDD-128.2

índices para catálogo sistem ático:


1. Filosofia da mente 128.2
2. M ente : Filosofia 128.2

Todos os direitos desta edição para o Brasil reservados à


L iv ra ria M a rtin s Fontes E ditora Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil
Tel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3101.1042
e-mail: info@martinsfontes.com.br http:lfumnv.martinsfontes.com.br
SUMÁRIO

Agradecimentos........................................................ V II
In tro d u çã o ................................................................ 1

1. O que há de errado com a Filosofia da Mente .. 7


2. A história recente do materialismo: a repetição
do mesmo e rro .................................................... 43
Apêndice: Há algum problema com a Psicologia
P opular?.............................................................. 87
3. Rompendo o domínio: cérebros de silício, robôs
conscientes e outras m entes.............................. 97
4. Consciência e seu lugar na natureza.................. 123
5. Reducionismo e a irredutibilidade da consciência 161
6. A estrutura da consciência: uma introdução . . . 183
7. O inconsciente e sua relação com a consciência . 217
8. Consciência, intencionalidade e o “ Background” . 249
9. A crítica da razão co g n itiva .............................. 281
10. O estudo propriamente d ito .............................. 325

Notas.......................................................................... 357
B ib lio g ra fia .............................................................. 367
índice onom ástico.................................................... 377
AGRADECIMENTOS

Tenho-me beneficiado, por um período de vários


anos, de discussões e conversas com amigos, alunos e co­
legas sobre os tópicos abordados neste livro . Não creio
que possa agradecer a todos eles, mas quero expressar
gratidão especialmente aos seguintes: M . E. Aubert, John
Batali, Catharine C arlin, Anthony Dardis, Hubert Drey­
fus, Hana F ilip , Jerry Fodor, Vinod Goel, Stevan Hamad,
Jennifer Hudin, Paul Kube, Ernest Lepore, Elisabeth Lloyd,
K irk Ludwig, Thomas Nagel, Randal Parker, Joêlle Proust,
Irving Rock, Charles Siewart, Melissa Vaughn e Kayley
Vemallis.
Estes, entretanto, são somente alguns dos muitos que
tanto me ajudaram. Apresentei essas idéias em conferên­
cias que m inistrei não somente em Berkeley, mas como
professor visitante nas universidades de Frankfurt, Vene­
za, Florença, Berlim e Rutgers. Meus alunos estão entre
os meus melhores e mais severos críticos, e sou grato por
seu ceticismo persistente. Entre meus benfeitores institu­
cionais, quero agradecer ao Comitê de Pesquisa do Con-
V III A REDESCOBERTA DA MENTE

selho Acadêm ico e ao Gabinete do R eitor da U niversida­


de da C alifornia, Berkeley, e especialmente à R ockefeller
Foundation Center de B ellagio, Itália.
Parte do m aterial deste liv ro apareceu alhures, em
form a prelim inar. Especificam ente, trechos dos capítulos
7 e 10 foram desenvolvidos a p a rtir de meu artigo “ Cons­
ciência, inversão explanatória e ciência cognitiva” (Beha­
v io ra l and B ra in Sciences, 1990) e o capítulo 9 é baseado
em m inha conferência presidencial para a Associação
Filosófica Am ericana em 1990.
Sou especialmente grato a Ned B lock, que leu o ma­
nuscrito inteiro em sua form a prelim inar e fez muitas
observações proveitosas. A cim a de tudo, quero agradecer
a minha mulher, Dagmar Searle, por seu constante auxílio
e conselho. Como sempre, ela tem sido m inha m aior in ­
fluência intelectual e m inha fonte mais forte de estímulo e
inspiração. É a ela que este liv ro é dedicado.
INTRODUÇÃO

Este liv ro tem diversos objetivos, alguns dos quais


não admitem um resumo breve, mas somente emergirão à
medida que o le ito r prosseguir em sua leitura. Seus obje­
tivos mais facilm ente enunciáveis são estes: quero critica r
e superar as tradições dominantes no estudo da mente,
tanto a “ m aterialista” quanto a “ dualista” . Como conside­
ro a consciência o fenômeno m ental p rincipal, quero co­
meçar um exame sério da consciência em seus próprios
termos. Pretendo colocar uma pá de cal na teoria de que a
mente é um programa de computador. E quero fazer algu­
mas propostas para reform ar nosso estudo dos fenômenos
mentais de uma m aneira que ju stifiq u e a esperança na
redescoberta da mente.
H á cerca de duas décadas, comecei a trabalhar com
questões da filo so fia da mente. Precisava de uma explica­
ção da intencionalidade, tanto para estabelecer uma base
para m inha teoria dos atos de fala quanto para completar
essa teoria. A meu ver, a filo so fia da linguagem é um ramo
da filo so fia da mente; portanto, nenhuma teoria da lingua-
2 A REDESCOBERTA DA MENTE

gem é completa sem uma descrição das relações entre


mente e linguagem e de como o sentido - a intencionalida-
de derivada de elementos lingüísticos - é fundamentado
na intencionaüdade intrínseca da mente/cérebro, mais bá­
sica em termos biológicos.
Quando lia os autores clássicos e tentava explicar
seus pontos de vista para meus alunos, eu ficava estarreci­
do ao descobrir que, com poucas exceções, esses autores
negavam sistematicamente o que eu considerava verda­
des simples e óbvias sobre a mente. Era então, como
ainda é, com um negar - im p lícita ou explicitam ente -
asserções como as seguintes: Todos temos estados de
consciência intem os subjetivos e qualitativos, e temos
estados mentais intrínsecamente intencionais, como cren­
ças e desejos, intenções e percepções. Tanto a consciência
quanto a intencionaüdade são processos biológicos cau­
sados por processos neurônicos de baixo nível no cére­
bro, e nenhum deles é redutível a outra coisa qualquer.
A lém disso, consciência e iqtencionalidade são essencial­
mente ligadas, já que só entendemos a noção de um esta­
do intencional inconsciente em termos de sua acessibili­
dade à consciência.
Antes e agora, tudo isso e mais ainda era negado pe­
las concepções dominantes. A corrente principal da orto­
doxia consiste em várias versões de “ m aterialism o” .
Igualm ente incorretos, os oponentes do m aterialism o ge­
ralm ente abraçam alguma doutrina de “ dualism o de pro­
priedades” , aceitando assim o aparato cartesiano que eu
considerava desacreditado já há m uito tempo. O que eu
argumentava então (Searle, 1984b) e repito agora é que
podemos aceitar os fatos óbvios da física - que o mundo
INTRODUÇÃO 3

consiste inteiram ente de partículas físicas dentro de cam­


pos de força - sem negar que entre as características fís i­
cas do mundo há fenômenos biológicos como os estados
internos qualitativos de consciência e intencionaüdade
intrínseca.
M ais ou menos ao mesmo tempo em que surgia meu
interesse em questões da mente, nascia a nova disciplina
da ciência cognitiva. A ciência cognitiva prom etia um
rom pim ento com a tradição behaviorista na psicologia,
porque pretendia penetrar na caixa-preta da mente e exa­
m inar seu funcionam ento intem o. Infelizm ente, porém, a
m aioria dos cientistas cognitivos da corrente prin cip a l
simplesmente repetiu os piores erros dos behavioristas:
insistiu em estudar apenas fenômenos objetivamente obser­
váveis, ignorando, dessa forma, as características essenciais
da mente. Portanto, quando esses cientistas abriram a gran­
de caixa-preta, só encontraram lá dentro uma porção de pe­
quenas caixas-pretas.
Assim , tive pouco auxílio tanto da corrente principal
da filo s o fia da mente quanto da ciência cognitiva nas m i­
nhas investigações, e prossegui na tentativa de desenvol­
ver m inha própria explicação da intencionalidade e de sua
relação com a linguagem (Searle, 1983). Contudo, apenas
desenvolver uma teoria da intencionalidade deixava m ui­
tos problemas importantes por discu tir e, p io r ainda, dei­
xava sem resposta o que me parecia o principal problema
existente. Este liv ro é uma tentativa de preencher ao me­
nos algumas dessas lacunas.
Um a das mais difíceis - e mais importantes - tarefas
da filo s o fia é tom ar clara a distinção entre as característi­
cas do mundo que são intrínsecas, no sentido em que
4 A REDESCOBERTA DA MENTE

existem independentemente de qualquer observador, e as


características que são relativas ao observador, no senti­
do em que somente existem em relação a algum observa­
dor ou usuário externo. Por exemplo, o fato de um objeto
ter uma massa determinada é urna característica intrínse­
ca desse objeto. Se todos morrêssemos, ele ainda teria
aquela mesma massa. Mas o fato de aquele mesmo objeto
ser uma banheira não é uma característica intrínseca; ela
existe somente em relação a observadores e usuários que
atribuem a função de uma banheira a tal objeto. Ter massa
é intrínseco, mas ser uma banheira é relativo ao observa­
dor, mesmo que o objeto tanto tenha massa quanto seja
uma banheira. É por isso que há uma ciência natural que
engloba a massa em seus dom ínios, mas não existe
nenhuma ciência natural de banheiras.
U m dos temas que permeia todo este liv ro é a tentati­
va de tom ar claro quais dos predicados da filo so fia da
mente designam características que são intrínsecas, e quais
relativas ao observador. Uma tendência dominante na filo ­
sofia da mente e na ciência cognitiva tem sido supor que a
computação é uma característica intrínseca do mundo e
que consciência e intencionalidade são de alguma form a
suprimíveis, tanto em favor de outra coisa qualquer quanto
pelo fato de serem relativas ao observador, ou redutíveis a
algo mais básico, como a computação. Neste liv ro , de­
monstro que essas hipóteses estão exatamente invertidas:
consciência e intencionalidade são intrínsecas e não-supri-
m íveis, e a computação - exceto nos poucos casos em que
a computação está sendo efetivamente executada por uma
mente consciente - é relativa ao observador.
INTRODUÇÃO 5

A q u i vai um breve mapa para ajudar o leitor, ou le i­


tora, a orientar-se ao longo do liv ro . Os prim eiros três
capítulos contêm críticas às correntes dominantes da filo ­
sofia da mente. São uma tentativa de superar tanto o dua­
lism o quanto o m aterialism o, com uma atenção m aior dis­
pensada, nesses capítulos, ao materialismo. De início, pen­
sei em dar ao liv ro o títu lo de O que há de errado com a
F ilo so fia da M ente, mas, afinal, esta idéia aparece como
o tema dos três prim eiros capítulos e como o títu lo do p ri­
m eiro. Os próxim os cinco capítulos, de 4 a 8, são uma
série de tentativas de apresentar uma caracterização da
consciência. A p a rtir do momento em que ultrapassamos
tanto o m aterialism o quanto o dualismo, como situamos a
consciência em relação ao resto do mundo (capítulo 4)?
Como explicam os sua aparente irredutibilidade estabele­
cida pelos modelos padrões da redução científica (capítu­
lo 5)? M ais im portante, quais são as características estru­
turais da consciência (capítulo 6)? Como explicar o in ­
consciente e sua relação com a consciência (capítulo 7)? E
quais são as relações entre as capacidades de consciência,
intencionalidade e B ackground* que nos perm item fu n ­
cionar como seres conscientes no mundo (capítulo 8)? N o
decorrer dessas discussões, tento superar vários chavões
cartesianos, tais como dualism o de propriedades, intros-
peccionism o e inco rrigib ilid ad e , mas, nesses capítulos, o
trabalho fundam ental não é crítico. Tento situar a cons­
ciência dentro de nossa concepção geral do mundo e do

* Optou-se por não traduzir “ Background” , termo usado com cono­


tação técnica pelo autor. Dentre as traduções possíveis, figuram “ base” ,
“ formação” , “ antecedentes” , “ conhecimentos” , “ experiência” etc. Ver, a
propósito, o capítulo 8, onde o autor define o termo e explicita seu uso.
(N. do R.)
6 A REDESCOBERTA DA MENTE

resto de nossa vida m ental. O capítulo 9 am plia minhas


críticas anteriores (Searle, 1980a e b) ao paradigma dom i­
nante na ciência cognitiva, e o capítulo fin a l dá algumas
sugestões, por exem plo, sobre como devemos estudar a
mente sem cometer tantos erros óbvios.
Neste liv ro , tenho mais a dizer sobre as opiniões de
outros autores do que em quaisquer de meus outros traba­
lhos - talvez mais do que em todos eles juntos. Isto me
deixa extremamente apreensivo, pois é sempre possível
que eu os possa estar compreendendo tão erradamente
quanto eles a m im . O capítulo 2 deu-me as maiores dores
de cabeça nesse aspecto, e posso apenas dizer que tentei o
mais que pude m ontar um sumário adequado de todo um
conjunto de concepções que considero inadequadas. Quan­
to às referências: os livro s que li na m inha infância filo só ­
fica - livro s de W ittgenstein, A ustin, Strawson, Ryle, Ha­
re etc. - contêm poucas ou nenhuma remissão a outros
autores. Penso que, inconscientemente, passei a acreditar
que a qualidade filo só fica é inversamente proporcional ao
número de referências bibliográficas, e que nenhuma gran­
de obra de filo s o fia jam ais continha muitas notas de roda­
pé. (Quaisquer que sejam suas outras falhas, o Concept o f
M in d , de R yle, é um m odelo nesse sentido: não tem ne­
nhuma.) No exemplo presente, porém, não há referências
bibliográficas evasivas, e provavelm ente serei censurado
mais pelo que o m iti do que pelo que incluí.
O título é uma homenagem óbvia ao clássico de B ru­
no Snell, The D iscovery o f the M ind. Que possamos, re-
descobrindo a consciência - aquilo que é realmente im ­
portante, não o Ersatz cartesiano nem o Doppelgãnger
behaviorista - , redescobrir também a mente.
C A P ÍT U L O 1
O QUE H Á DE ERRADO COM A
FILOSOFIA D A MENTE

I. A solução p a ra o problem a mente-corpo e p o r que


muitos preferem o problem a ã solução

O famoso problem a mente-corpo, fonte de tanta con­


trovérsia ao longo dos dois últim os m ilênios, tem uma
solução simples. Esta solução encontra-se ao alcance de
qualquer pessoa instruída desde o in ício de um estudo
sério sobre o cérebro há cerca de um século, e, em certo
sentido, todos sabemos que é verdadeira. A q u i está ela: os
fenômenos mentais são causados por processos neurofi-
siológicos no cérebro, e são, eles próprios, características
do cérebro. Para d istin g u ir esta concepção das muitas ou­
tras neste campo, chamo-a de “ naturalismo bio lóg ico ” . Os
processos e fatos mentais fazem parte de nossa história
natural biológica tanto quanto a digestão, a mitose, a m eio-
se ou a secreção enzimática.
O naturalism o biológico suscita m ilhares de questões
próprias dele. Qual é, exatamente, o caráter dos processos
neurofisiológicos, e como, exatamente, os elementos da
8 A REDESCOBERTA DA MENTE

neuroanatoraia - neurônios, sinapses, fissuras sinápticas,


receptores, m itocôndrias, células da neuróglia, fluidos
transmissores etc. - produzem fenômenos mentais? E que
dizer da grande variedade de nossa vida m ental - dores,
desejos, sensações agradáveis, pensamentos, experiências
visuais, crenças, sabores, odores, ansiedade, medo, amor,
ódio, depressão e euforia? Com o a neurofisiologia e xp li­
ca a m ultiplicidade de nossos fenômenos mentais, tanto
conscientes como inconscientes? Estas questões form am
o objeto das neurociências, e enquanto escrevo isto há,
literalm ente, m ilhares de pessoas investigando essas
questões*. Mas nem todas elas são neurobiológicas. A l­
gumas são filosóficas ou psicológicas, ou parte da ciência
cognitiva em geral. Algum as das questões filosóficas são:
o que é exatamente a consciência, e como exatamente os
fenômenos mentais conscientes relacionam-se com os in ­
conscientes? Quais são as características especiais do
“ m ental” , características como consciência, intencionali-
dade, subjetividade, causação mental; e como exatamente
elas funcionam? Quais são a’s relações causais entre fenô­
menos “ m entais” e fenômenos “ físicos” ? E podemos nós
caracterizar tais relações causais de maneira a evitar o
epifenomenalismo?
Tentarei dizer algo sobre algumas dessas questões
posteriorm ente, mas neste ponto quero ressaltar um fato
notável. Eu disse que a solução para o problem a mente-
corpo deveria ser óbvia para qualquer pessoa instruída,
mas hoje, na filo s o fia e na ciência cognitiva, m uitos - tal­
vez a m aioria dos especialistas - afirm am não considerá-
la de modo algum óbvia. De fato, eles nem sequer acredi­
tam que a solução que propus seja verdadeira. Se alguém
O QUE HÁ DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 9

examinar o campo da filo s o fia da mente ñas últim as duas


décadas, va i encontrá-lo ocupado por uma pequena m ino­
ria que insiste na realidade e irredutibilidade da consciên­
cia e da intencionalidade, e cujos membros tendem a con­
siderar-se dualistas de propriedades, e um grupo m uito
m aior da corrente principal, cujos defensores consideram-
se m aterialistas de um tip o ou de outro. Os dualistas de
propriedades pensam que o problem a mente-corpo é es­
pantosamente d ifíc il, talvez completamente insolúvel2.
Os materialistas concordam com que, se a intencionalida­
de e a consciência realmente existem e são irredutíveis a
fenômenos físicos, então de fato haveria um d ifíc il pro­
blema m ente-corpo, mas eles pretendem “ naturalizar” a
intencionalidade, e talvez também a consciência. Por “ na­
turalização” de fenômenos mentais eles entendem a sua
redução a fenômenos físicos. Pensam que a dm itir a reali­
dade e irredutibilidade da consciência e outros fenômenos
mentais leva ao comprom etim ento com alguma form a de
cartesianismo, e eles não vêem como tal enfoque pode se
tom ar com patível com o quadro completo de nosso mun­
do científico.
A credito que os dois lados estão completamente
enganados. Am bos aceitam um determinado vocabulário
e, com ele, um conjunto de hipóteses. Pretendo m ostrar
que o vocabulário é obsoleto, e que as hipóteses são fa l­
sas. É fundam ental m ostrar que tanto o dualism o quanto o
m onismo são falsos porque em geral se supõe que esgo­
tam o campo, não deixando outras opções. A m aior parte
de m inha discussão será d irig id a às várias form as de
m aterialism o, porque é a visão dominante. O dualism o,
sob qualquer form a, é hoje considerado fora de cogitação
10 A REDESCOBERTA DA MENTE

porque se admite que é incom patível com o enfoque cien­


tífic o global.
Dessa form a, a questão que quero propor neste capí­
tu lo e no próxim o é: o que acontece em nosso meio e his­
to ria intelectual que tom a d ifíc il enxergar essas observa­
ções tão simples que fiz a respeito do “ problema mente-
corpo” ? O que fez com que o “ m aterialism o” parecesse
ser o único enfoque racional da filo s o fia da mente? Este
capítulo e o próxim o abordam a situação atual da filo so fia
da mente, e o presente poderia receber o títu lo de “ O que
há de errado com a tradição m aterialista na F ilo so fia da
M ente” .
Vista a p a rtir da perspectiva dos últim os cinqüenta
anos, a filo s o fia da mente, bem como a ciência cognitiva
e determinados ramos da psicologia, apresentam um
espetáculo m uito curioso. A característica mais adm irável
é o quanto da corrente principal da filo s o fia da mente dos
últim os cinqüenta anos parece obviamente falso. A credi­
to que não haja nenhuma outra área da filo s o fia analítica
contemporânea onde tantas coisas im plausíveis sejam
afirmadas. Na filo s o fia da linguagem, por exemplo, não é
de modo algum comum negar a existência de frases e atos
de fala; mas, na filo s o fia da mente, fatos óbvios sobre o
m ental, tais como o fato de que todos nós realmente te­
mos estados mentais subjetivos conscientes, e que estes
não são suprim íveis em favor de qualquer outra coisa, são
rotineiram ente negados por m uitos, talvez pela m aioria
dos pensadores avançados do assunto.
Como é que tantos filósofos e cientistas cognitivos
podem afirm ar tantas coisas que, pelo menos para m im ,
parecem obviamente falsas? Pontos de vista radicais em
o QUE HA DE ERRADO COM 4 FILOSOFIA DA MENTE 11

filo so fia quase nunca são insensatos; há geralmente razões


poderosas e m uito profundas que ju stifica m sua defesa.
Acredito que um dos pressupostos não declarados por trás
do corrente conjunto de enfoques é que eles representam
as únicas alternativas cientificam ente aceitáveis ao anti­
cientificism o que acompanhou o dualismo tradicional, a
crença na im ortalidade da alma, o esplritualism o etc. A
aceitação das concepções correntes é m otivada não tanto
por uma convicção independente em sua veracidade quan­
to por um pavor daquelas que são, aparentemente, as úni­
cas alternativas. Quer dizer, a escolha que nos é tá cita ­
mente apresentada dá-se entre um enfoque “ cie n tífico ” ,
como o representado por uma ou outra das correntes ver­
sões do “ m aterialism o” , e um enfoque “ a n ticie n tífico ” ,
como o representado pelo cartesianismo ou por alguma
outra concepção religiosa tradicional da mente. Outro fato
singular, estreitamente relacionado ao prim eiro, é que a
m aioria dos autores clássicos está profundamente compro­
metida com o vocabulário e as categorias tradicionais.
Eles realmente consideram que há algum significado mais
ou menos evidente associado ao vocabulário arcaico do
“ dualismo” , “ monismo” , “ materialismo” , “ fisicalism o” etc.
e que as questões têm que ser propostas e solucionadas
nesses termos. Usam essas palavras sem embaraço nem
ironia. U m dos m uitos objetivos que tenho neste liv ro é
mostrar que essas duas hipóteses estão erradas. Com­
preendidos de maneira correta, muitos dos enfoques atual­
mente em voga são incompatíveis com o que conhecemos
a respeito do mundo, tanto a partir de nossas próprias ex­
periências quanto das ciências específicas. Para expressar
o que sabemos ser verdadeiro, deveremos desafiar as h i­
póteses por trás do vocabulário tradicional.
12 A REDESCOBERTA DA MENTE

Antes de ide n tificar alguns desses enfoques questio­


náveis, quero fazer uma observação sobre estilos de apre­
sentação. Autores que estão prestes a afirm ar algo que soa
absurdo m uito raramente vêm a público para expressá-lo
diretamente. Em geral, um conjunto de artifícios retóricos
ou estilísticos é empregado para evitar ter que dizê-lo em
palavras simples. O mais óbvio desses artifícios é fazer
rodeios através de um discurso m uito evasivo. Penso que é
óbvio nos escritos de diversos autores, por exemplo, que
eles consideram que realmente não temos estados mentais
como crenças, desejos, medos etc. Mas é d ifíc il encontrar
trechos onde eles efetivamente afirm em isto de form a
direta. Em geral, querem manter o vocabulário de senso
comum, ao mesmo tempo em que negam que o mesmo
represente, efetivamente, algo no mundo real. Outro a rtifí­
cio retórico para disfarçar o im plausível é dar uma desig­
nação ao ponto de vista de senso comum e então rejeitar
esta designação, mas não seu conteúdo. Assim , é m uito
d ifíc il, mesmo no períodp atual, v ir a público e afirm ar:
“ Nenhum ser humano jam ais fo i consciente.” Antes, o(a)
filósofo(a) sofisticado(a) nomeia a concepção de que as
pessoas são algumas vezes conscientes, por exemplo,
como “ a intuição cartesiana” , e então começa a contestar,
questionar, negar algo descrito como “ a intuição cartesia­
na” . Novamente, é d ifíc il v ir a público afirm ar que nin­
guém na história do mundo jam ais bebeu porque estava
com sede, ou comeu porque estava com fome; mas é fá cil
contestar algo se você pode rotulá-lo de antemão como
“ psicologia popular” . E, para dar um nome a este estrata­
gema, vou chamá-lo de estratagema de “ dar-um-nome” . A
outro estratagema, o preferido, chamarei de estratagema
0 QUE HA D E ERRADO C O M A FILOSOFIA DA MENTE 13

da “ era-heróica-da-ciência’\ Quando um(a) escritor(a) en­


tra em apuros, tenta traçar uma analogia entre sua própria
asserção e alguma grande descoberta cien tífica do passa­
do. A concepção parece tola? Bem, os grandes gênios
científicos do passado pareceVam tolos a seus contempo­
râneos ignorantes, dogmáticos e preconceituosos. G alileu
é a analogia histórica favorita. Retoricam ente falando, a
idéia é fazer com que você, o le ito r cético, sinta-se, caso
não acredite na concepção que está sendo desenvolvida,
bancando o cardeal B elarm ino para o G alileu do autor3.
Outros favoritos são o flo g is to e os espíritos vita is, e outra
vez a idéia é forçar o(a) leitor(a) a supor que, se ele (ela)
duvida, por exemplo, que os computadores estão efetiva­
mente pensando, só pode ser porque crê em algo tão não
científico quanto o flo gisto ou os espíritos vitais.

II. Seis teorias inverossímeis da mente

Não tentarei fornecer um catálogo completo de todas


as im plausíveis concepções m aterialistas em voga na filo ­
sofia contemporânea e na ciência cognitiva, mas relacio­
narei somente meia dúzia para dar uma idéia da questão.
O que esses enfoques têm em comum é uma hostilidade
em relação à existência e ao caráter m ental de nossa vida
mental ordinária. De uma maneira ou de outra, todos eles
tentam depreciar fenômenos mentais ordinários como cren­
ças, desejos e intenções, e colocar em dúvida a existência
de características gerais do mental, como a consciência e
a subjetividade4.
14 A REDESCOBERTA DA MENTE

Prim eiram ente, talvez a versão mais radical desses


enfoques seja a idéia de que, enquanto tais, os estados
mentais não existem de modo algum. Este enfoque é sus­
tentado por aqueles que se autodenominam “ m aterialistas
elim in a tivos” . A idéia é que, contrariamente a uma o p i­
nião amplamente aceita, na verdade não existem quais­
quer fatos como crenças, desejos, esperanças, medos etc.
Versões prim eiras dessa concepção foram propostas por
Feyerabend (1963) e R orty (1965).
U m segundo ponto de vista, utilizado freqüentemente
para dar sustentação ao m aterialism o elim inativo, é a
asserção de que a psicologia popular é - com toda a proba­
bilidade - simplesmente e inteiramente falsa. Este enfoque
fo i desenvolvido por P. M . Churchland (1981) e Stich
(1983). A psicologia popular in c lu i asserções como as de
que as pessoas às vezes bebem porque estão com sede e
comem porque estão com fome; que elas têm desejos e
crenças, que algumas dêssas crenças são verdadeiras, ou
pelo menos falsas; que algumas crenças são m elhor sus­
tentadas que outras; que as pessoas às vezes fazem algo
porque querem fazê-lo; que elas vez por outra têm a fli­
ções, e que estas são quase sempre desagradáveis. E assim
- mais ou menos indefinidam ente - por diante. A conexão
entre a psicologia popular e o m aterialism o elim inativo é
esta: presume-se que a psicologia popular seja uma teoria
empírica, e supõe-se que as entidades que “ postula” - a fli­
ções, sensações agradáveis, ânsias e assim por diante -
sejam entidades teóricas exatamente correspondentes,
ontologicamente falando, a quarks e muônios. Se a teoria
é abandonada, as entidades teóricas m orrem com ela:
demonstrar a falsidade da psicologia popular seria rem o-
O QUE HA DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 15

ver qualquer ju stifica tiva para aceitar a existência das enti­


dades da psicologia popular. Sinceramente, espero não
estar sendo injusto ao caracterizar essas concepções como
im plausíveis, mas tenho de confessar que esta é a impres­
são que elas me dão. Permitam-me retomar a listagem.
Uma terceira concepção deste mesmo tipo defende
que não há nada de especificamente mental nos chamados
estados mentais. Estados mentais consistem inteiramente
nas suas relações causais entre si, e entre os inputs e os out­
puts do sistema do qual fazem parte. Essas relações causais
poderiam ser reproduzidas por qualquer sistema que tives­
se as propriedades causais corretas. Assim , um sistema
feito de pedras ou latas de cerveja, se tivesse as relações
causais corretas, deveria ter as mesmas crenças, desejos
etc. que nós temos, porque tudo o que existe são crenças e
desejos. A versão mais influente desta concepção é chama­
da de “ funcionalism o” , e é tão amplamente defendida que
chega a constituir uma ortodoxia contemporânea.
Um a quarta concepção im plausível, e, na verdade, a
mais famosa e amplamente aceita do presente catálogo, é
o ponto de vista de que um computador poderia ter - na
verdade deve ter - pensamentos, sentimentos e entendi­
mento unicamente em virtude de im plem entar um progra­
ma de com putador apropriado com os inputs e outputs
apropriados. B atizei alhures esse enfoque como “ in te li­
gência a rtific ia l fo rte ” , mas ele também tem sido chama­
do de “ funcionalism o de com putador” .
Uma quinta form a de incredibilidade é encontrada na
asserção de que não devemos considerar nosso vocabulá­
rio mental de “ crença” e “ desejo” , “ medo” e “ esperança”
etc. como uma representação efetiva dos fenômenos in-
16 A REDESCOBERTA DA MENTE

trinsecamente mentais, mas, mais propriam ente, apenas


como um modo de dizer. E simplesmente um vocabulário
ú til para explicar e prognosticar o comportamento, mas
não para ser tomado literalm ente, como se remetesse a
fenômenos psicológicos reais, intrínsecos, subjetivos. Os
adeptos deste ponto de vista consideram que o uso do
vocabulário de senso comum é uma questão de assumir
uma “ atitude intencional” em relação a um sistema5.
Em sexto lugar, outra concepção radical é que talvez
a consciência como normalmente a consideramos - como
fenômenos de sensibilidade e percepção internos, íntim os
e subjetivos - na verdade não exista. Esse enfoque quase
nunca é desenvolvido explicitam ente6. M u ito poucas pes­
soas se dispõem a v ir a público afirm ar que a consciência
não existe. Recentemente, porém , tomou-se comum que
autores redefinam a noção de consciência, de modo a esta
não mais referir-se a estados conscientes efetivos, isto é,
estados mentais de prim eira pessoa, intem os, subjetivos,
qualitativos, mas, ao contrário, a fenômenos de terceira
pessoa, publicam ente observáveis. Tais autores aparen­
tam crer que a consciência existe, mas, na verdade, aca­
bam por negar sua existência7.
Algum as vezes, erros na filo s o fia da mente produ­
zem erros na filo s o fia da linguagem. A meu ver, uma tese
inverossím il na filo s o fia da linguagem , que vem do mes­
mo grupo de exemplos que acabamos de considerar, é a
concepção de que onde os significados estão envolvidos
não há absolutamente quaisquer fatos significantes além
de padrões de comportamento verbal. Sob este enfoque,
mais notavelmente sustentado por Quine (1960), não há
absolutamente nenhum fato im portante se, quando você
o QUE HÁ DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 17

ou eu dizemos “ coelho” , queremos significar coelho, uma


parte não separada de um coelho ou um estágio da vida de
um coelho8.
Ora, o que podemos fazer em face de tudo isso? Para
m im , não é o bastante afirm ar que tudo parece im plausí-
vel; ao contrário, penso que um filó so fo com paciência
bastante e tempo deveria sentar e fazer uma refutação
ponto por ponto, linha por linha, de toda a tradição. Tentei
fazer isto com uma tese específica da tradição, a asserção
de que computadores têm pensamentos e sentimentos e
entendimento unicamente em virtude de instanciar um pro­
grama de computador (o programa de computador “ cor­
reto” com os “ corretos” inputs e outputs) (Searle, 1980a).
Esta concepção, inteligência a rtificia l forte, é um objetivo
atraente por ser razoavelmente claro; há uma simples e
decisiva refutação, e a refutação pode ser estendida a ou­
tras versões do funcionalism o. Também tentei refutar a
tese da indeterm inabilidade de Quine (Searle, 1987), que,
acredito, também se presta a um ataque frontal. Em outros
pontos de vista, entretanto, a situação é m uito mais com­
plicada. Como, por exemplo, alguém empreenderia a refu­
tação do ponto de vista de que a consciência não existe?
Deveria eu beliscar seus adeptos para lem brá-los de que
são conscientes? D everia beliscar a m im mesmo e relatar
os resultados no Journal o f Philosophy!
Para conduzir um argumento no sentido tradicional,
é essencial que haja algum fundamento comum. A não
ser que os participantes concordem com as premissas,
não há como tentar tira r uma conclusão. M as, se alguém
negar a existência da consciência logo de in ício , é d ifíc il
saber qual seria a base comum no estudo da mente. A meu
18 A REDESCOBERTA DA MENTE

ver, se sua teoria resulta na concepção de que a consciên­


cia não existe, você simplesmente produziu uma reductio
ad absurdum da teoria, e o mesmo acontece com muitas
outras concepções da filo s o fia da mente contemporânea.
Vários anos debatendo essas questões, tanto em pú­
b lico quanto por escrito, convenceram-me de que, m uito
freqüentemente, os problemas fundamentais do debate
não sobem à superfície. Se você discute com pessoas, por
exemplo, sobre a inteligência a rtific ia l forte ou a indeter-
m inabilidade da tradução, a im plausibilidade transparente
dessas teorias é disfarçada pelo caráter aparentemente
técnico dos argumentos lançados para frente e para trás.
P ior ainda, é d ifíc il trazer abertamente à superfície as
assunções que levam a essas teorias. Quando, por exem­
plo, alguém se sente à vontade com a idéia de que um
computador teria, repentina e miraculosamente, estados
mentais apenas em virtude de executar um determinado
tipo de programa, as assunções subjacentes que fazem
essa concepção parecer possível quase nunca são form u­
ladas explícitam ente. Assim , nesta discussão, quero tentar
um enfoque diferente da refutação direta. Não vou apre­
sentar mais uma “ refutação do funcionalism o” ; na verda­
de, quero dar in ício à tarefa de expor - e assim m inar - as
bases sobre as quais se assenta toda essa tradição. Se você
está seduzido pelo funcionalism o, creio que não precisa
de refutação; você precisa de socorro.
A tradição m aterialista é sólida, complexa, ubíqua e,
ainda assim, evasiva. Seus vários elementos - sua atitude
em relação à consciência, sua concepção da verificação
científica, sua m etafísica e teoria do conhecimento - são
todos mutuamente sustentadores, de modo que, ao ser
O QUE HÁ DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 19

contestada urna parte, os defensores podem facilm ente re­


correr à outra parte cuja exatidão é tid a como certa. Falo
aqui por experiência própria. Quando você apresenta uma
refutação da IA (inteligência a rtific ia l) forte ou da tese da
indeterm inabilidade ou do funcionalism o, os defensores
não consideram necessário tentar rebater seus argumentos
reais, porque sabem de antemão que você deve estar erra­
do. Eles sabem que a tradição m aterialista - que muitas
vezes chamam erradamente de “ ciência” - está do lado
deles. E a tradição não é somente parte da filo s o fia acadê­
mica. Se você assistir a conferências sobre a ciência cog­
n itiva ou le r artigos populares sobre inteligência a rtific ia l,
vai se deparar com a mesma tradição. Esta é m uito grande
para ser resumida num parágrafo ou mesmo num capítu­
lo, mas acredito que, se continuar a p e rm itir que ela se
revele a si mesma, o le ito r não terá dificuldade para reco­
nhecê-la.
Antes de in ic ia r um ataque aos fundamentos, preciso
especificar determinados elementos da estrutura um pou­
co mais precisamente e dizer algo sobre sua história.

III. Os fundam entos do m aterialism o moderno

Por “ tradição” quero referir-m e, em grande parte, ao


grupo de concepções e pressuposições metodológicas que
se concentra em tom o das seguintes (freqüentemente não
declaradas) assunções e teses:
1. Onde está envolvido o estudo científico da mente,
a consciência e suas características especiais são de im ­
portância m uito reduzida. É bastante possível, realmente
20 A REDESCOBERTA DA MENTE

desejável, fazer uma descrição da linguagem , da cognição


e dos estados mentais em geral, sem levar em conta a
consciência e a subjetividade9.
2. A ciência é objetiva. E objetiva não somente no
sentido de que se empenha por chegar a conclusões que
sejam independentes de preferências e pontos de vista
pessoais, mas, mais im portante, envolve uma realidade
que é objetiva. A ciência é objetiva porque a própria reali­
dade é objetiva.
3. Porque a realidade é objetiva, o m elhor método
para o estudo da mente é adotar o ponto de vista objetivo,
ou de terceira pessoa. A objetividade da ciência requer
que os fenômenos estudados sejam completamente obje­
tivos, e, no caso da ciência cognitiva, isto significa que
ela deve estudar objetivam ente o comportamento obser­
vável. N o que diz respeito à ciência cognitiva madura, o
estudo da mente e o estudo do comportamento inteligente
(inclusive os fundamentos causais do comportamento)
são praticamente o mesmo estudo.
4. A partir do ponto de vista objetivo, de terceira pes­
soa, a única resposta à pergunta epistemológica “ Como
conheceríamos os fenômenos mentais de outro sistema?”
é: conhecemos pela observação de seu comportamento.
Esta é a única solução para o “ problema de outras mentes” .
A epistemología representa um papel especial na
ciência cognitiva porque uma ciência objetiva da cognição
deve ser capaz de d istinguir coisas como cognição, com­
portamento inteligente .processamento de informação etc.,
de outros fenômenos naturais. Uma questão básica, talvez
a questão básica, no estudo da mente é a questão episte­
m ológica: como saberíamos se algum outro “ sistema” tem
o QUE HA D E ERRADO C O M A FILOSOFIA DA M ENTE 21

tais e tais propriedades mentais ou não? E a única resposta


científica é: através de seu comportamento.
5. Com portamento inteligente e relações causais de
comportamento inteligente são, em certo sentido, a essên­
cia do mental. A aceitação do ponto de vista de que há
uma conexão essencial entre mente e comportamento va­
ria desde a versão radical do behaviorism o, que afirm a
que não há nada que possa ter estados mentais a menos
que tenha disposições para comportamento, até a tentati­
va funcionalista de d e fin ir as noções mentais em termos
de relações causais intemas e extemas, na confusa asser­
ção de W ittgenstein (1953, § 580), “ um ‘processo interno’
necessita de critérios exteriores” 10.
6. Cada evento no universo é, em princípio, conhecí-
vel e in te lig íve l por investigadores humanos. Porque a rea­
lidade é física, e porque a ciência envolve a investigação
da realidade física, e porque não há lim ite s ao nosso
conhecimento da realidade física, segue-se que todos os
eventos no universo são conhecíveis e inteligíveis por nós.
7. As únicas coisas que existem são essencialmente
físicas, na fo rm a em que o físico é tradicionalm ente con­
cebido, isto é, como oposto ao m ental. Isto significa que
nas oposições tradicionais - dualism o versus m onism o,
m entalism o versus m aterialism o - o termo da direita de­
signa a concepção correta, e o termo da esquerda designa
a concepção falsa.
Já deve estar claro que essas concepções se susten­
tam mutuamente; porque a realidade é objetiva (tópico 2),
deve ser essencialmente fís ic a (tópico 7). E a ontologia
objetivista dos tópicos 2 e 7 leva naturalmente à metodo­
logia objetivista dos tópicos 3 e 4. Mas, se a mente real-
22 A REDESCOBERTA DA MENTE

mente existe e tem uma ontologia objetiva, então parece


que sua ontologia deve ser, em certo sentido, com porta-
mental e causai (tópico 5). Isto, entretanto, im pele a epis­
tem ología para o prim eiro plano (tópico 4), porque agora
toma-se crucialm ente im portante poder d istinguir o com ­
portamento dos sistemas em que não há estados mentais
daqueles que realmente têm estados mentais. A p a rtir do
fato de que a realidade é essencialmente física (tópico 7),
e do fato de que ela é completamente objetiva (tópico 2),
é natural adm itir que, na realidade, tudo é conhecível por
nós (tópico 6). Por fim , uma coisa é óbvia: não há lugar -
ou existe, de qualquer maneira, m uito pouco espaço -
para a consciência nesse quadro geral (tópico 1).
A o longo deste liv ro , espero m ostrar que cada um
desses tópicos é, na m elhor das hipóteses, falso, e que o
quadro total que apresentam não é apenas profundamente
não científico, é incoerente.

TV. Origens históricas dos fundamentos

Historicam ente, como chegamos a esta situação? C o­


mo chegamos a uma situação em que as pessoas podem
afirm ar coisas que são incom patíveis com fatos óbvios de
suas experiências?
O que queremos saber é: o que há com a h istória da
discussão contemporânea na filo s o fia da mente, psicolo­
gia, ciência cognitiva e inteligência a rtific ia l que tom a
tais perspectivas concebíveis, que as faz parecer perfeita-
mente respeitáveis e aceitáveis? Em qualquer tempo dado
na história intelectual estamos, todos nós, trabalhando
o QUE HÁ DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 23

dentro de determinadas tradições que fazem determinadas


perguntas parecerem as perguntas certas e determinadas
respostas parecerem as únicas respostas possíveis. Na
filo s o fia da mente contemporânea, a tradição histórica
está nos tomando cegos para os fatos óbvios de nossas
experiências, dando-nos uma m etodologia e um vocabu­
lário que faz hipóteses obviamente falsas parecerem acei­
táveis. A tradição emergiu de suas p rim itiva s e toscas o ri­
gens behavioristas há mais de m eio século, através de
suas teorias de identidade “ tip o -tip o ” e “ ocorrência-ocor-
rência” , até a sofisticação dos atuais modelos computa­
cionais de cognição. Ora, o que há com a tradição que a
tom a tão poderosa em ta l via contra-intuitiva? Gostaria
de ter dessas questões um entendimento suficiente que
me permitisse fornecer uma análise histórica completa,
mas temo que tenha somente umas poucas conjecturas e
sugestões a fazer sobre a natureza dos sintomas. Parece-
me que há pelo menos quatro fatores em atuação.
Primeiramente, temos um terror de ca ir no dualism o
cartesiano. A falência da tradição cartesiana e o absurdo
de supor que há dois tipos de substâncias ou propriedades
no mundo, “ m ental” e “ física ” , são tão ameaçadores para
nós e têm uma história tão execrável que relutam os em
adm itir qualquer coisa que possa cheirar a cartesianismo.
Relutamos em reconhecer qualquer dos fatos consensuais
que soam “ cartesianos” porque parece que, se aceitarmos
os fatos, teremos de aceitar toda a m etafísica cartesiana.
Qualquer espécie de m entalism o que reconheça os fatos
óbvios de nossa existência é considerada automaticamen­
te suspeita. N o lim ite extremo, alguns filóso fo s relutam
em adm itir a existência da consciência porque não conse-
24 A REDESCOBERTA DA MENTE

guem enxergar que o estado mental da consciência é ape­


nas urna característica bio lóg ica ordinária, isto é, fís ic a ,
do cérebro. De um modo talvez mais exasperante ainda,
eles são auxiliados nesse erro por aqueles filósofos que de
bom grado reconhecem a existência da consciência e,
assim fazendo, supõem estar afirm ando a existência de
algo não-físico.
A concepção de que a consciência, os estados men­
tais etc. existem , no sentido mais singelo e óbvio, e de­
sempenham um efetivo papel causai em nosso comporta­
mento não tem nada de especial a ver com o dualism o
cartesiano. A lém do mais, ninguém precisa le r as M e d i­
tações para estar cônscio de que somos conscientes, ou de
que nossos desejos, como fenômenos mentais, conscien­
tes ou inconscientes, são fenômenos causais reais. Mas,
quando alguém lem bra aos filósofos essas “ intuições car­
tesianas” , é m ediatamente acusado de cartesianismo. Pes­
soalmente falando, fu i acusado de sustentar alguma dou­
trin a m aluca de “ dualism o de propriedades” e “ acesso
privilegiado” , ou de acreditar em “ introspecção” ou “ neo-
vita lism o ” , ou até “ m isticism o” , ainda que não tenha nun­
ca, im p lícita ou explicitam ente, endossado quaisquer des­
sas concepções. Por quê? Em parte, sem dúvida, simples­
mente por negligência intelectual (ou talvez algo ainda
p io r) da parte dos comentadores, mas há também algo
mais profundo em questão. Eles acham d ifíc il entender
que alguém poderia aceitar os fatos óbvios sobre os esta­
dos mentais sem aceitar o aparato cartesiano que tradicio­
nalmente acompanhou o reconhecimento desses fatos.
A creditam que as únicas escolhas reais viáveis dão-se
entre alguma form a de m aterialism o e alguma form a de
O QUE HA DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 25

dualism o. U m dos meus objetivos ao escrever este liv ro


consiste em dem onstrar que esta concepção está errada,
que alguém pode fazer uma descrição coerente dos fatos
da mente sem endossar qualquer um dos desacreditados
aparatos cartesianos.
Em segundo lugar, ju n to com a tradição cartesiana,
herdamos um vocabulário, e, com o vocabulário, um de­
term inado conjunto de categorias, dentro das quais esta­
mos historicam ente condicionados a raciocinar sobre es­
ses problemas. O vocabulário não é inocente, porque nele
está im p lícito um surpreendente número de asserções teó­
ricas que são quase certamente falsas. O vocabulário
in c lu i uma série de oposições aparentes: “ fís ic o ” versus
“ m ental” , “ corpo” versus “ mente” , “ m aterialism o” ver­
sus “ m entalism o” , “ m atéria” versus “ espírito” . Im p lícita
nestas oposições está a tese de que, sob os mesmos aspec­
tos, o mesmo fenômeno não pode, literalm ente, satisfazer
s

a ambos os termos. As vezes a semântica, e mesmo a


m orfologia, parecem tom ar explícita esta oposição, como
na aparente oposição entre “ m aterialism o” e “ im ateria-
lism o ” . Assim , espera-se que acreditemos que, se algo é
mental, não pode ser físico; que se é uma questão de espí­
rito, não pode ser uma questão de matéria; se é m a te ria l,
não pode ser m aterial. Mas esses enfoques parecem-me
obviamente falsos, em vista de tudo o que sabemos a res­
peito da neurobiologia. O cérebro causa determinados fe­
nômenos “ m entais” , tais como estados mentais conscien­
tes, e esses estados conscientes são simplesmente caracte­
rísticas de nível superior do cérebro. A consciência é uma
propriedade emergente, ou de nível superior, do cérebro,
no sentido absolutamente inócuo de “ de nível superior”
26 A REDESCOBERTA DA MENTE

on “ emergente” , no qual a solidez é uma propriedade


emergente de nível superior de moléculas de H 20 quando
estas estão em uma estrutura cristalina (gelo), e a liquidez
é, de form a semelhante, uma propriedade emergente de
nível superior de moléculas de H 20 quando estas estão,
falando grosso modo, girando em tom o umas das outras
(água). A consciência é uma propriedade mental, e portan­
to física, do cérebro, no sentido em que a liquidez é uma
propriedade de sistemas de moléculas. Se há uma tese que
gostaria de tom ar clara nesta discussão, esta tese é simples­
mente a seguinte: o fato de uma característica ser mental
não im plica que não seja física; o fato de uma característica
ser física não im plica que não seja mental. Revisando
Descartes, por enquanto poderíamos dizer não somente
“ penso, logo existo” e “ sou um ser pensante” , mas também
sou um ser pensante, portanto sou um serfísico.
Observe-se, porém, como o vocabulário tom a d ifíc il,
se não im possível, dizer b que pretendo usando a term i­
nologia tradicional. Quando digo que a consciência é uma
característica física de n ível superior do cérebro, a ten­
dência é entender que isto significa físico-em -oposição-
ao-mental, significando que consciência deve ser descrita
somente em termos comportamentais ou neurofisiológi-
cos objetivos. Mas o que quero dizer, realmente, é que a
consciência enquanto consciência, enquanto m ental, en­
quanto subjetiva, enquanto qualitativa, é fís ic a , e física
porque mental. Tudo isso mostra, creio eu, a inadequação
do vocabulário tradicional.
Junto com as oposições aparentes estão designações
que aparentemente esgotam as possíveis posições que
alguém possa ocupar: há o monismo versus dualismo, ma-
o QUE HÁ DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 27

terialism o e fisicalism o versus m entalism o e idealism o. A


avidez de se encaixar nas categorias tradicionais produz
uma term inologia excêntrica, tal como “ dualism o de pro­
priedades” , “ m onismo anôm alo” , “ identidade de ocor­
rência” etc. M inhas próprias concepções não se encaixam
em nenhum dos rótulos tradicionais, mas, para m uitos
filósofos, a idéia de que alguém possa defender um ponto
de vista que não se encaixe nessas categorias parece
incom preensível11. P ior ainda, talvez, há diversos substan­
tivos e verbos que parecem ter significados claros, como
se realmente representassem objetos e atividades bem
definidos - “ m ente” , “ ego” e “ introspecção” são exem­
plos óbvios. O vocabulário contemporâneo da ciência
cognitiva não é melhor. Tendemos a adm itir acriticamente
que expressões como “ cognição” , “ inteligência” e “ p ro ­
cessamento de inform ação” têm definições claras e efeti­
vamente representam algumas categorias naturais. Em
minha opinião, tais assunções estão erradas. Vale enfati­
zar este ponto: “ inteligência” , “ comportamento inteligen­
te” , “ cognição” e “ processamento de inform ação” , por
exemplo, não são idéias definidas precisamente. E, mais
espantoso ainda, m uitas noções que soam bastante técni­
cas são pobremente definidas - noções como “ com pu­
tador” , “ computação” , “ program a” e “ sím bolo” , por
exemplo. Não im porta m uito, para grande parte dos obje­
tivos da ciência da computação, que essas noções sejam
mal definidas (assim como também não é im portante que
os fabricantes de m o b iliá rio tenham uma definição filo so ­
ficamente precisa de “ cadeira” e “ mesa” ); mas, quando
cientistas cognitivos afirm am coisas como cérebros são
computadores, mentes são programas etc., então a d e fin i­
ção dessas noções toma-se crucial.
28 A REDESCOBERTA DA MENTE

Em terceiro lugar, hoje se v e rifica uma tendência


objetivadora persistente na filo so fia , na ciência e na vida
intelectual em geral. Temos a convicção de que, se algo é
real, deve ser igualm ente acessível a todos os observado­
res competentes. Desde o século X V II, as pessoas instruí­
das do Ocidente passaram a aceitar uma pressuposição
m etafísica absolutamente básica: a realidade é objetiva.
Essa assunção mostrou-se ú til para nós de muitas m anei­
ras, mas é obviamente falsa, como revela um momento de
reflexão sobre os estados subjetivos próprios de qualquer
pessoa. E esta assunção levou, talvez inevitavelm ente, à
concepção de que a única form a “ cien tífica ” de estudar a
mente é vê-la como um conjunto de fenômenos objetivos.
A p a rtir do momento em que adotamos a hipótese de que
algo qualquer que seja objetivo deve ser igualmente aces­
sível a qualquer observador, as questões são automatica­
mente desviadas da subjetividade dos estados mentais,
voltando-se para a objetividade do comportamento exter­
no. Em decorrência disso, ao invés de perguntarmos: “ O
que é ter uma crença?” , “ O que é ter um desejo?” , “ O que
significa estar em determinados tipos de estados conscien­
tes?” , fazemos a pergunta de terceira pessoa: “ Sob que
condições iríam os a trib u ir, do exterior, crenças, desejos
etc. a algum outro sistema?” Isso nos parece perfeitam en-
te natural, porque, sem dúvida, a m aioria das questões que
precisamos responder sobre os fenômenos mentais envol­
ve outras pessoas, e não apenas nós mesmos.
Contudo, o caráter de terceira pessoa da epistem olo­
gía não nos deve cegar para o fato de que a ontologia efe­
tiva dos estados mentais é uma ontologia de prim eira pes­
soa. O modo como o ponto de vista de terceira pessoa é
o QUE HÁ DE ERRADO COM A FILOSOFÍA DA MENTE 29

aplicado na prática tom a d ifíc il para nós perceber a d ife ­


rença entre algo que realmente tem urna mente, como um
ser humano, e algo que se comporta como se tivesse uma
mente, como um computador. E, a p a rtir do momento em
que você esquece a distinção entre um sistema que real­
mente tem estados mentais e outro que meramente atua
como se tivesse estados mentais, então você perde de
vista uma característica essencial do m ental, a saber, que
sua ontologia é essencialmente uma ontologia de prim eira
pessoa. Crenças, desejos etc. são sempre crenças e dese­
jos de alguém , e são sempre potencialm ente conscientes,
mesmo nos casos em que são efetivamente inconscientes.
Apresento uma argumentação para este últim o ponto
no capítulo 7. Agora, tentarei diagnosticar um padrão his­
toricamente condicionado de investigação que faz o enfo­
que de terceira pessoa parecer o único ponto de vista
científicam ente aceitável a p a rtir do qual se pode exam i­
nar a mente. Seria necessário um historiador para respon­
der a perguntas como quando a questão de sob-que-con-
dições-atribuiríamos-estados-mentais veio a parecer a per­
gunta certa? Mas os efeitos intelectuais de sua persistên­
cia parecem claros. Exatamente da mesma form a como a
distinção de senso comum estabelecida por K ant entre as
aparências das coisas e as coisas em si eventualmente
levava a extremos de absoluto idealism o, a persistência
da pergunta do senso comum: “ Sob que condições a tri­
buiríamos estados mentais?” nos levou ao behaviorism o,
ao funcionalism o, à IA forte, ao m aterialism o e lim in a ti-
vo, à atitude intencional e, sem dúvida, a outras confu­
sões conhecidas apenas dos especialistas.
30 A REDESCOBERTA DA MENTE

Em quarto lugar, por causa de nossa concepção da


história do desenvolvimento do conhecimento passamos a
sofrer daquilo que A ustin chamou de “ ivresse des grands
profondeurs” . Seja como for, não parece bastante afirm ar
verdades simples e óbvias sobre a mente - queremos algo
mais profundo. Queremos uma descoberta teórica. E, lo g i­
camente, nosso modelo de uma grande descoberta teórica
vem da história das ciências físicas. Sonhamos com algu­
ma grande “ ruptura” no estudo da mente, aguardamos
ansiosamente uma ciência cognitiva “ madura” . Assim , o
fato de as concepções em questão serem implausíveis e
contra-intuitivas não conta contra elas. Pelo contrário,
pode parecer um grande m érito do funcionalism o contem­
porâneo e da inteügência a rtific ia l o fato de irem comple­
tamente contra nossas intuições. Pois não é exatamente
essa característica que tom a as ciências físicas tão fasci­
nantes? Nossas intuições correntes sobre espaço e tempo
ou, a propósito disso, sobre a solidez da mesa à nossa fren­
te, term inaram por mostrar-sesmeras ilusões substituídas
por um conhecimento m uito mais profundo do funciona­
mento intem o do universo. Uma grande ruptura no estudo
da mente não poderia, de modo semelhante, mostrar que
nossas crenças mais firm em ente defendidas sobre nossos
estados mentais são igualm ente ilusórias? Não podemos,
sensatamente, esperar por grandes descobertas que irão
superar nossas suposições de senso comum? E, quem
sabe, algumas dessas grandes descobertas não poderiam
ser feitas por um de nós?
o QUE HÁ DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 31

V. M inando os fundamentos

Uma maneira de expor algumas das características


notáveis da argumentação que vou apresentar consiste em
form ulá-las em oposição aos sete princípios que m encio­
nei anteriormente. Para fazer isto, preciso prim eiro tom ar
claras as distinções entre ontologia, epistemología e cau-
sação. Há uma distinção entre as respostas às questões: O
que é isto? (ontologia), Como tomamos conhecimento
disto? (epistem ologia), e O que isto causa? (causação).
Por exemplo, no caso do coração, a ontologia é que este é
uma grande peça de tecido m uscular na cavidade toráci­
ca; a epistem ologia é que descobrimos isto através do uso
de estetoscópios, eletrocardiogram as e, numa emergên­
cia, podemos abrir o peito e dar uma olhada; e a causação
é que o coração bombeia sangue através do corpo. Com
essas distinções em mente, podemos começar o trabalho.

1. A consciência é realmente im portante. Demons­


trarei que não há como estudar os fenômenos da mente
sem, im p lícita ou explicitam ente, estudar a consciência.
A razão básica disso é que realmente não temos noção do
mental independentemente de nossa noção de consciên­
cia. Sem dúvida, a cada dado instante da vida de uma pes­
soa, a m aioria dos fenômenos mentais na existência dessa
mesma pessoa não está presente na consciência. N o mé­
todo form al, a m aioria dos predicados mentais que se
aplicam a m im a cada dado instante terá condições de u ti­
lização, sejam quais forem os meus estados conscientes
naquele momento. Entretanto, embora a m aior parte de
nossa vida m ental em qualquer ponto dado seja incons-
32 A REDESCOBERTA DA MENTE

ciente, demonstrarei que não temos idéia de um estado


mental inconsciente, exceto em termos derivados de esta­
dos mentais conscientes. Se estou certo sobre isto, então
todo o debate recente sobre estados mentais em p rin cip io
inacessíveis à consciência é, de fato, incoerente (mais
sobre isto no capítulo 7).

2. Nem toda a realidade é objetiva; parte dela é sub­


je tiv a . H á uma confusão persistente entre a asserção de
que deveríamos tentar, tanto quanto possível, elim inar da
busca da verdade preconceitos subjetivos pessoais e a
asserção de que o mundo real não contém elementos que
sejam irredutivelm ente subjetivos. E esta confusão, por
sua vez, é baseada numa confusão entre o sentido episte­
m ológico da distinção subjetivo/objetivo e o sentido
ontológico. Epistemicamente, a distinção discrim ina dife ­
rentes graus de independência de asserções em relação
aos caprichos de valores especiais, preconceitos pessoais,
pontos de vista e emoções. Ontologicam ente, a distinção
determina categorias diferentes de realidade em pírica
(mais sobre essas distinções no capítulo 4). E pistem i­
camente, o ideal de objetividade expressa uma meta que
vale a pena, mesmo se inalcançável. Em termos ontológi-
cos, porém, a asserção de que toda a realidade é objetiva
é, neurobiologicam ente falando, simplesmente falsa. Em
geral, os estados mentais têm uma ontologia irre d u tive l­
mente subjetiva, como teremos ocasião de exam inar de
modo mais detalhado mais adiante.
Se estou certo em pensar que consciência e subjetivi­
dade são essenciais para a mente, então a concepção do
mental empregada pela tradição é m al concebida desde o
o QUE HA DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 33

in icio , já que se trata, essencialmente, de uma concepção


objetiva, de terceira pessoa. A tradição tenta estudar a
mente como se esta consistisse em fenômenos neutros,
independentes de consciência e subjetividade. Tal enfo­
que, porém, deixa de fora as características cruciais que
distinguem os fenômenos mentais dos não-mentais. E
isto, mais que qualquer outra razão, explica a im plausibi-
lidade das concepções que m encionei no in ício . Se, por
exemplo, você tentar tratar crenças como fenômenos que
não têm conexão essencial com a consciência, então é
provável que acabe adotando a idéia de que elas possam
ser definidas unicamente .em termos de comportamento
externo (behaviorism o), ou em termos de relações de cau­
sa e efeito (funcionalism o), ou de que elas realmente não
existam de modo algum (m aterialism o e lim in a tivo ), ou
que o debate sobre crenças e desejos deva ser apenas in ­
terpretado como uma determinada maneira de falar (a ati­
tude intencional). O absurdo m áxim o é tentar tratar a pró­
pria consciência independentemente da consciência, isto
é, tratá-la unicamente a p a rtir de um ponto de vista de ter­
ceira pessoa, e isto leva à concepção de que a consciência
como tal, como eventos fenoménicos “ internos” , “ p riva ­
dos” , não existe realmente.
Algum as vezes a tensão entre a m etodologia e o
absurdo dos resultados toma-se visível. Na literatura re­
cente, há uma disputa sobre algo chamado q u a lia e
supõe-se que o problem a seja: “ pode o funcionalism o ex­
plicar os q u a lid V \ O que a controvérsia revela é que a
mente consiste em ú ltim a análise, por assim dizer, em
q u a lia , O funcionalism o não pode explicar os q u a lia por­
que fo i concebido em tom o de um problem a diferente, a
34 A REDESCOBERTA DA MENTE

saber, atribuições de intencionalidade baseadas em testemu­


nhos de terceira pessoa, ao passo que os fenômenos mentais
efetivos não têm nada a ver com atribuições, mas sim com a
existência de estados mentais conscientes e inconscientes,
ambos fenômenos subjetivos, de prim eira pessoa.

3. Porque é um erro supor que a ontologia do mental


é objetiva, é um erro supor que a metodologia de uma ciên­
cia da mente só deva ocupar-se de comportamento o bje ti­
vamente observável. Porque os fenômenos mentais estão
essencialmente relacionados à consciência, e porque a
consciência é essencialmente subjetiva, segue-se que a
ontologia do m ental é essencialmente uma ontologia de
prim eira pessoa. Os estados mentais são sempre estados
mentais de alguém. Há sempre uma “ prim eira pessoa” ,
um “ eu” , que tem esses estados mentais. A conseqüência
disso para a presente discussão é que o ponto de vista de
prim eira pessoa é prim eiro. Na prática efetiva de investi­
gação, estudaremos, é claro, outras pessoas, simplesmen­
te porque a m aior parte de nossa pesquisa não é sobre nós
mesmos. Mas é im portante enfatizar que o que estamos
tentando a ting ir ao estudarmos outras pessoas é precisa­
mente o ponto de vista de prim eira pessoa. Quando estu­
damos ele ou ela, o que estamos estudando é o eu que é
ele ou ela. E esta não é uma questão epistêmica.
Levando em consideração as distinções entre ontolo­
gia, epistem ología e causação, se alguém tivesse que re­
sum ir a crise da tradição em um parágrafo, seria este:
A ontologia subjetivista do m ental parece intolerá­
vel. Parece metafisicamente intolerável que devesse haver
entidades “ privadas” , irredutivelm ente subjetivas, no m un-
o QUE H A D E ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 35

do, e epistemológicamente intolerável que devesse haver


uma assimetria entre o modo como cada homem ou m u­
lher conhece os seus fenômenos mentais, internos e o modo
como as pessoas de fora os conhecem. A crise produz um
afastamento da subjetividade, e a nova direção assumida
consiste em reescrever a ontologia em termos da episte­
mología e da causação. Prim eiro, desfazemo-nos da sub­
jetividade pela redefinição da ontologia em termos de tercei­
ra pessoa, da base epistêmica, do comportamento. Dizemos:
“ Estados mentais são apenas disposições para com por­
tamento” (behaviorism o), e quando a absurdidade disso
toma-se insuportável recorremos à causação. Dizemos: “ Os
estados mentais são definidos por suas relações causais”
(funcionalism o), ou “ Os estados mentais são estados com­
putacionais” (IA forte).
A tradição adm ite, falsamente em m inha opinião,
que no estudo da mente somos forçados a escolher entre
“ introspecção” e “ com portam ento” . Há diversos erros
envolvidos nisto, entre eles:
A

4. E um erro supor que sabemos da existência dos


fenômenos mentais em outras pessoas somente pela ob­
servação de seu comportamento. Creio que a “ solução”
tradicional para o “ problema de outras mentes” , ainda que
já venha nos ocupando há séculos, não sobreviverá sequer
a um momento de reflexão séria. Terei mais a dizer sobre
essas questões posteriormente (no capítulo 3), mas, por
ora, somente isto: se você pensar por um momento sobre
como sabemos que cães e gatos são conscientes, e que
computadores e carros não são conscientes (e, a propósito,
nao há dúvidas de que você e eu sabemos dessas coisas),
36 A REDESCOBERTA DA MENTE

verá que a base de nossa certeza não é o “ com porta­


m ento” , mas antes uma determinada concepção causai de
como o mundo funciona. Qualquer um pode ver que cães
e gatos são, em certos aspectos im portantes, relevante­
mente semelhantes a nós. Aqueles são os olhos, isto é a
pele, estas são as orelhas etc. O “ com portam ento” so­
mente faz sentido como a expressão ou manifestação de
uma realidade mental subjacente, porque podemos perce­
ber a base causai do mental e, desse modo, perceber o
comportamento como uma manifestação do m ental. O
princípio a p artir do qual “ resolvem os” o problem a de
outras mentes, como demonstrarei, não é: mesmo-com-
portamento-portanto-mesmos-fenômenos-mentais. Este é
o velho erro cultuado no teste de Turing. Se esse princípio
estivesse correto, todos teríamos que concluir que os
rádios são conscientes porque exibem comportamento
verbal inteligente. Mas não tiram os qualquer conclusão
desse tipo, porque temos uma “ teoria” sobre como os
rádios funcionam . O p rin cip io a p a rtir do qual “ resolve­
mos o problem a de outras mentes” é: mesmas-causas-
mesmos-efeitos e causas-relevantem ente-sim ilares-efei-
tos-relevantemente-similares. N aquilo que diz respeito ao
conhecimento de outras mentes, o comportamento sozi­
nho não tem interesse para nós; é antes a combinação do
comportamento com o conhecimento dos sustentáculos cau­
sais do comportamento que form a a base de nosso conhe­
cimento.
Contudo, mesmo o precedente parece-me fazer con­
cessões demais à tradição, porque sugere que nossa atitu­
de básica em relação a cães, gatos, rádios e outras pessoas
é epistêmica; sugere que, em nossos procedimentos diá-
o QUE HÁ DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 37

rios com o mundo, estamos ocupados “ solucionando o pro­


blema de outras mentes” , e que cães e gatos estão passan­
do no teste e rádios e carros fracassando. Mas esta suges­
tão está errada. Exceto em casos excepcionais, não solu­
cionamos o problema de outras mentes, pois ele não apa­
rece. Nossas capacidades de Background para lid a r com o
mundo nos perm item lid a r com pessoas de uma maneira e
com carros de outra, mas, além disso, não criam os uma
hipótese no sentido de que essa pessoa seja consciente e
aquele carro não seja consciente, exceto em casos inco-
muns. Terei mais a dizer sobre isto mais adiante (nos
capítulos 3 e 8).
É evidente que, nas ciências, as questões epistêmicas
realmente aparecem, mas as questões epistêmicas não são
mais fundamentais para a compreensão da natureza da
mente do que para o entendimento da natureza dos fenô­
menos estudados em qualquer outra disciplina. Por que
deveriam ser? H á questões epistêmicas interessantes so­
bre o conhecimento do passado em história, ou sobre o
conhecimento de entidades não-observadas em física.
Mas a pergunta: “ Como se pode ve rifica r a existência dos
fenômenos?” não deveria ser confundida com a pergunta:
“ Qual é a natureza dos fenômenos cuja existência é ve ri­
ficada?” A questão crucial não é: “ Sob que condições
atribuiríam os estados mentais a outras pessoas?” , mas
antes: “ O que é que as pessoas efetivamente têm quando
têm estados mentais?” “ O que são fenômenos m entais” ,
e não “ Como tomamos conhecimento deles, e como eles
funcionam causalmente na vida do organismo?”
Não quero que este ponto seja m al compreendido:
não estou afirm ando que é fá c il decifrar os estados men-
38 A REDESCOBERTA DA MENTE

tais, e que não temos que nos preocupar com questões epis-
têmicas. Esta não é, de modo algum, a questão. Penso que
é mensamente d ifíc il estudar fenômenos mentais, e o
único guia para a m etodologia é o universal - use qualquer
ferramenta ou arma que esteja à mão, e aferre-se a qual­
quer ferramenta ou arma que funcione. A idéia que estou
apresentando aqui é diferente: a epistem ologia do estudo
do mental não determina sua ontologia mais do que a
epistem ologia de qualquer outra disciplina determina sua
ontologia. Pelo contrário, no estudo da mente, como em
qualquer outro lugar, todo o problem a da epistem ologia é
alcançar a ontologia preexistente.

5. Com portamento ou relações causais p a ra com­


portam ento não são fundam entais p a ra a existência de
fenômenos m entais. A credito que a relação dos estados
mentais com o comportamento é puramente contingente.
E fá c il perceber isto quando consideramos como é possí­
vel ter estados mentais sem o comportamento, e o com ­
portamento sem estados mentais (darei alguns exemplos
no capítulo 3). Causalmente, sabemos que os processos
cerebrais são suficientes para qualquer estado m ental, e
que a ligação entre esses processos cerebrais e o sistema
nervoso m otor é uma conexão neurofisiológica contin­
gente como qualquer outra.

6. E incom patível com o que de fa to sabemos sobre o


universo e nosso lu g a r nele supor que tudo é conhecível
p o r nós. Nossos cérebros são os resultados de determina­
dos processos evolutivos e, como tal, são simplesmente
os mais desenvolvidos numa série completa de caminhos
o q u e HA DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 39

evolutivos que in c lu i os cérebros de cães, babuínos, g o lfi­


nhos etc. Ora, ninguém supõe, por exem plo, que os cães
possam ser levados a compreender a mecânica quântica;
o cérebro do cão simplesmente não é desenvolvido àquele
grau. E é fá c il im aginar um ser que, ao longo da mesma
progressão evolutiva, seja mais desenvolvido do que nós,
que esteja para nós aproximadamente como estamos para
os cães. Da mesma form a como achamos que os cães não
podem compreender mecânica quântica, assim este pro­
duto evolutivo im aginário concluiria que, embora os
seres humanos possam entender mecânica quântica, há
m uita coisa que o cérebro humano não pode compreen­
der12. É uma boa idéia perguntarmos a nós mesmos: quem
pensamos que somos? E ao menos parte da resposta é que
somos animais biológicos selecionados por enfrentar am­
bientes de caça e extrativism o, e que, até onde sabemos,
não tivemos nenhuma alteração sig n ifica tiva em nosso
conjunto de genes por vários milhares de anos. Felizmente
(ou infelizm ente), a natureza é pródiga, e exatamente como
cada macho produz esperma suficiente para repovoar a
Terra, assim também temos m uito mais neurônios do que
precisamos para uma existência de caça e extrativism o.
Acredito que o fenômeno do excesso de neurônios - em
oposição, digamos, ao dos polegares opostos - é a chave
para compreender como saímos da caça-extrativism o e
produzimos filo so fia , ciência, tecnologia, neuroses, p u b li­
cidade etc. Mas não deveríamos nunca esquecer quem
somos; e, por sermos como somos, é um erro adm itir que
tudo o que existe é compreensível aos nossos cérebros. É
claro que metodológicamente temos de agir como se
pudéssemos entender tudo, porque não há nenhuma ma­
neira de conhecer o que não podemos: para saber os lim i-
40 A REDESCOBERTA DA MENTE

tes do conhecimento, teríamos de conhecer os dois lados


do lim ite . Dessa form a, a onisciência potencial é aceitável
como um a rtifício heurístico, mas seria auto-enganação
supô-la um fato.
A lém do mais, sabemos que m uitos seres em nossa
Terra têm estruturas neurofisiológicas diferentes o bas­
tante das nossas para que nos possam ser literalm ente
não-conhecíveis quais realmente sejam as experiências
desses seres. D iscutirei um exemplo disto no capítulo 3.

7. A concepção cartesiana do físico , a concepção da


realidade fís ic a como “ res extensa” , é simplesmente não
adequada p a ra descrever os fa to s que correspondem a
afirm ações sobre a realidade física . Quando chegamos à
proposição de que a realidade é física, chegamos ao que é
talvez o ponto crucial de toda a discussão. Quando consi­
deramos o “ fís ic o ” , consideramos talvez coisas como
moléculas e átomos e partículas subatômicas. E conside­
ramos que sejam físicas num sentido de que são opostas
ao m ental, e que coisas como sensações de sofrim ento
são mentais. E, se somos educados em nossa cultura, tam­
bém consideramos que essas duas categorias devem esgo­
tar tudo o que existe. Mas a pobreza dessas categorias
toma-se aparente tão logo você passa a pensar sobre os
diferentes tipos de objetos que o mundo contém, isto é,
tão logo você começa a pensar sobre os fatos que corres­
pondem a diversas espécies de afirmações empíricas. As­
sim, se você pensar sobre problemas de balança de paga­
mentos, sentenças não-gram aticais, razões para suspeitar
da lógica modal, m inha habilidade para esquiar, o gover­
no do estado da C alifórnia, e tentos marcados em jogos
de futebol, estará menos inclinado a pensar que tudo deve
o QUE HÁ DE ERRADO COM A FILOSOFIA DA MENTE 41

ser categorizado ou como mental ou como físico. Da lista


que forneci, quais itens são mentais e quais são físicos?
Há pelo menos três coisas erradas com nossa concep­
ção tradicional de que a realidade é física. Prim eiro, como
observei, a term inologia é esquematizada em tom o de
uma falsa oposição entre o “ fís ic o ” e o “ m ental” , e, como
já afirm ei, isto é um erro. Em segundo lugar, se conside­
ramos o físico em termos cartesianos como res extensa,
então é ultrapassado, mesmo como uma questão de física,
supor que a realidade física seja física segundo essa d e fi­
nição. Desde a teoria da relatividade, passamos a conside­
rar, por exemplo, elétrons como pontos de massa/energia.
Assim, na definição cartesiana de “ físico ” , os elétrons não
seriam incluídos como físicos. Em terceiro lugar, e mais
importante para nossa presente discussão, é um erro m uito
profundo supor que a questão crucial para a ontologia seja:
“ Que espécies de coisas existem no mundo?” , em oposição
a: “ Quais devem ser as circunstâncias no mundo para que
nossas afirmações empíricas sejam verdadeiras?” .
Noam Chomsky disse uma vez (durante uma conver­
sa) que, tão logo passamos a compreender qualquer coisa,
classificam o-la como “ física ” . Sob esse ponto de vista, tr i­
vialm ente, qualquer coisa é ou física ou in in te lig íve l. Se
consideramos a constituição do mundo, então logicam en­
te tudo nele é fe ito de partículas, e as partículas estão
entre nossos paradigmas do físico. E, se form os chamar
de física qualquer coisa que é constituída de partículas
físicas, então, trivialm ente, tudo no mundo é físico. Mas
dizer isto não é negar que o mundo contenha tentos m ar­
cados em jogos de futebol, taxas de juros, governos e
sofrimentos. Tudo isso tem sua própria maneira de e xistir
- atlética, econômica, política, mental etc.
42 A REDESCOBERTA DA MENTE

A conclusão é esta: uma vez que você se dê conta da


incoerência do dualismo, você também pode ver que o m o­
nismo e o m aterialism o estão igualmente errados. Os dua­
listas perguntaram: “ Quantos tipos de coisas e proprieda­
des existem?” , e contaram dois. Os monistas, confrontan­
do-se com a mesma questão, chegaram somente até um.
Mas o erro verdadeiro fo i realmente começar a contar. M o ­
nism o e m aterialism o são definidos em termos de dualis­
mo e m entalism o, e já que as definições de dualism o e
mentalismo são incoerentes, o monismo e o m aterialism o

herdaram essa incoerência. E comum considerar o dualis­


mo como tendo duas versões: dualism o de substâncias e
dualism o de propriedades; mas a estas quero adicionar
uma terceira, que chamarei de “ dualism o de conceitos” .
Esta concepção consiste em considerar os conceitos dua­
listas m uito seriamente, isto é, consiste no ponto de vista
de que, em algum sentido relevante, “ físico ” im plica “ não-
m ental” , e “ m ental” im p lica “ não-físico” . Tanto o dua­
lism o tradicional quantQ o m aterialism o pressupõem o
dualismo conceituai definido dessa form a. Introduzo essa
definição para tom ar claro por que me parece m elhor
considerar o m aterialism o como realmente uma form a de
dualismo. É esta form a de dualismo que começa pela acei­
tação das categorias cartesianas. Creio que, se você tom ar
essas categorias seriamente - as categorias de m ental e
físico, mente e corpo como um dualista coerente, aca­
bará por ver-se com pelido ao m aterialism o. O m aterialis­
mo é, portanto, em certo sentido, a mais fin a flo r do dua­
lism o, e volto-m e agora para uma discussão de suas d ifi­
culdades e sua história recente.
C A P ÍT U LO 2
A HISTO RIA RECENTE DO
M ATERIALISM O : A REPETIÇÃO
DO MESMO ERRO

I. O m istério do m aterialism o

O que se supõe sig n ifica r exatamente a doutrina co­


nhecida como “ m aterialism o” ? Alguém podia pensar que
consistiria na concepção de que a m icroestrutura do m un­
do seja inteiram ente constituída de partículas m ateriais.
A dificuldade, porém , é que a concepção é coerente com
praticamente qualquer filo s o fia da mente, exceto, talvez,
o ponto de vista cartesiano de que, além das partículas f í ­
sicas, há almas ou substâncias mentais “ m a te ria is” , enti­
dades espirituais que sobrevivem à destruição de nossos
corpos e vivem na im ortalidade. Atualm ente, porém , até
onde posso ver, ninguém acredita na existência de subs­
tâncias espirituais im ortais, a não ser no terreno re lig io ­
so. Pelo que conheço, não há m otivações puramente filo ­
sóficas ou científicas para a aceitação da existência de
substâncias mentais im ortais. Assim , deixando de lado a
oposição à crença, m otivada pela religião, em almas im o r­
tais, permanece a questão: exatamente o que se supõe sig-
44 A REDESCOBERTA DA MENTE

n ific a r o m aterialism o na filo s o fia da mente? A que con­


cepções se supõe que se oponha?
Se alguém lê os prim eiros trabalhos de nossos con­
temporâneos que se intitulam materialistas - J. J. C. Smart
(1965), U. T. Place (1956) e D. Arm strong (1968), por
exemplo parece claro que, quando eles declaram a iden­
tidade do mental com o físico, estão afirm ando algo mais
do que simplesmente a rejeição do dualism o de substân­
cias cartesiano. Parece-me que querem negar a existência
de quaisquer fenômenos mentais irredutíveis no mundo.
Eles querem negar que haja quaisquer propriedades feno-
menológicas irredutíveis, tais como consciência, ou qua-
lia. Ora, por que são tão ansiosos por rejeitar a existência
de fenômenos mentais intrínsecos irredutíveis? Por que
não reconhecem simplesmente que essas propriedades são
propriedades biológicas ordinárias de n ível superior de
sistemas neurofisiológicos como os cérebros humanos?
Penso que a resposta a isso é extremamente com ple­
xa, mas ao menos parte da resposta tem relação com o
fato de que eles aceitam as categorias cartesianas tra d i­
cionais e, juntam ente com as categorias, o conseqüente
vocabulário com suas im plicações. A credito que, a p a rtir
desse ponto de vista, aceitar a existência e irre d u tib ilid a -
de dos fenômenos mentais seria equivalente a a d m itir
algum tip o de cartesianismo, Nos termos deles, seria um
“ dualismo de propriedades” , e não um “ dualismo de subs­
tâncias” , mas, a p a rtir de seu ponto de vista, o dualism o
de propriedades seria exatamente tão incom patível com
o m aterialism o quanto o dualism o de substâncias. A esta
altura, ficará óbvio que sou contrário às pressuposições
por trás de sua concepção. A q u ilo em que quero in s is tir
A HISTÓRIA RECENTE DO MATERIALISMO 45

incessantemente é que podemos aceitar os fatos obvios


da física - por exem plo, que o mundo é constituido intei-
ramente de partículas físicas em campos de força - sem,
ao mesmo tempo, negar os fatos óbvios de nossas próprias
experiências - por exemplo, que somos todos conscientes
e que nossos estados conscientes têm propriedades feno-
menológicas irredutíveis bastante específicas. O erro é su­
por que essas duas teses são incompatíveis, e tal erro deriva
da aceitação das pressuposições dissimuladas pelo voca­
bulário tradicional. M inha concepção, enfaticamente, não
é uma form a de dualism o. Rejeito tanto o dualism o de
propriedades quanto o de substâncias; mas, justamente pe­
las razões pelas quais rejeito o dualismo, rejeito igualm en­
te o m aterialism o e o monismo. O erro profundo é supor
que devamos escolher entre essas concepções.
É a incapacidade de perceber a coerência do menta-
lism o ingênuo com o fisicalism o ingênuo que leva àque­
les debates bastante confusos na história p rim itiv a desse
tema, nos quais os autores tentam encontrar um vocabu­
lário “ tópico-neutro” ou evitar algo que designam por
“ perturbadores nom ológicos” (Sm art, 1965). Note-se
que ninguém considera que, digamos, a digestão tenha
que ser descrita num vocabulário “ tópico-neutro” . N in ­
guém sente o im pulso de dizer: “ há algo acontecendo em
m im que se parece com o que acontece quando eu d ig iro
uma pizza” . Em bora as pessoas realmente sintam o im ­
pulso de dizer: “ há algo acontecendo em m im que se pa­
rece com o que acontece quando vejo uma laranja” . O
im pulso é tentar encontrar uma descrição dos fenômenos
que não use o vocabulário m entalístico. Mas qual a fin a ­
lidade de se fazer isso? Os fatos permanecem os mesmos.
46 A REDESCOBERTA DA MENTE

O fato é que os fenômenos mentais têm propriedades


m entalísticas, da mesma form a como o que acontece em
meu estômago tem propriedades digestivas. Não nos
livram os dessas propriedades simplesmente encontrando
um vocabulário alternativo. Os filóso fo s m aterialistas
desejam re je ita r a existência de propriedades mentais
sem negar a realidade de alguns fenômenos que funda­
mentem o uso de nosso vocabulário m entalístico. Dessa
form a, eles têm que achar um vocabulário alternativo
para descrever os fenômenos1. Em m inha opinião, porém,
tudo isso é perda de tempo. Deveríamos simplesmente
adm itir, em p rim eiro lugar, os fenômenos mentais (e p or­
tanto físicos), da mesma maneira como adm itim os os fe­
nômenos digestivos no estômago.
Neste capítulo quero examinar, bem resumidamente,
a história do m aterialism o durante o ú ltim o meio século.
Creio que esta história apresenta um padrão bastante con­
fuso, mas m uito revelador, de argumentação e contra-
argumentação, que sç tem verificado na filo so fia da mente
desde o positivism o dos anos 30. Esse padrão nem sempre
é visível na superfície. Nem é mesmo visível na superfície
que as mesmas questões estejam sendo discutidas. Mas
acredito que, contrariamente às aparências superficiais, só
houve realmente um tema principal de discussão na filo so ­
fia da mente nos últim os cinqüenta anos, mais ou menos, e
este tema é o problem a mente-corpo. M uitas vezes, os
filósofos parecem discutir outra coisa qualquer - a análise
da crença ou a natureza da consciência, por exemplo - ,
mas quase invariavelm ente fica claro que eles não estão
realmente interessados nas características especiais da
crença ou da consciência. Não estão interessados em
A HISTÓRIA RECENTE DO MATERIALISMO 47

como o fato de ter uma crença difere do fato de fazer uma


suposição ou propor uma hipótese, mas, antes, querem tes­
tar suas certezas sobre o problem a m ente-corpo contra o
exemplo da crença. O mesmo acontece com a consciên­
cia: há, surpreendentemente, pouca discussão sobre a
consciência como tal; antes, os materialistas vêem a cons­
ciência com um “ problem a” especial para a teoria mate­
ria lista da mente. Isto é, querem encontrar uma maneira
de “ m anipular” a consciência, dado seu m aterialism o2.
O padrão que essas discussões quase invariavelm en­
te parecem adotar é o seguinte. U m filó s o fo desenvolve
uma teoria m aterialista da mente. Faz isso a p a rtir da as­
sunção arraigada de que alguma versão da teoria m ate­
ria lista da mente deva ser a correta - a final, não sabe­
mos, através das descobertas da ciência, que não há nada
no universo além de partículas físicas e campos de força
agindo sobre as partículas físicas? E, sem dúvida, deve
ser possível apresentar uma descrição dos seres humanos
de um modo que seja consistente e coerente com nossa
explicação da natureza em geral. E, com certeza, não de­
corre daí que nossa explicação dos seres humanos deva
ser um m aterialism o consumado? Dessa form a, o filó s o ­
fo planeja dar uma explicação m aterialista da mente. Ele,
então, enfrenta dificuldades. Parece sempre que está dei­
xando algo de fora. O padrão geral de discussão é que as
críticas da teoria m aterialista geralmente tom am uma
form a mais ou menos técnica, mas, na realidade, por trás
das objeções técnicas está uma objeção m uito mais p ro ­
funda, e essa objeção mais profunda pode ser colocada
de form a bastante simples: a teoria em questão deixou de
lado a mente; e xcluiu alguma característica essencial da
48 A REDESCOBERTA DA MENTE

mente, tal como consciência, qua lia ou conteúdo semân­


tico . Vemos esse padrão repetidamente. Um a tese m ate­
ria lista é desenvolvida. Mas a tese encontra dificuldades;
as dificuldades tom am form as diferentes, mas são sem­
pre manifestações de uma dificuldade subjacente mais
profunda, a saber, que a tese em questão nega fatos
óbvios e por todos nós conhecidos sobre as nossas p ró ­
prias mentes. E isto leva continuam ente a esforços mais
extremos para persistir com a tese m aterialista e tentar
defender os argumentos apresentados por aqueles que
insistem em preservar os fatos. Depois de alguns anos de
manobras desesperadas para explicar a razão das d ific u l­
dades, apresenta-se algum novo desenvolvim ento que
pretensamente resolve as dificuldades, mas então v e rifi­
camos que ele enfrenta novas dificuldades, só que estas
não são tão novas - são, na verdade, as mesmas velhas
dificuldades.
Se refletíssemos sobre a filo s o fia da mente nos ú lti­
mos cinqüenta anos como um único indivíduo, diríam os
que tal pessoa é um neurótico com pulsivo, e que sua
neurose assume a form a de repetir o mesmo padrão de
com portam ento diversas vezes. Segundo m inha expe­
riência, a neurose não pode ser curada por um ataque
frontal. Não é o bastante apenas m ostrar os erros lógicos
que estão sendo com etidos. A refutação direta sim ples­
mente conduz a uma repetição do padrão de com porta­
m ento neurótico. O que temos que fazer, em p rim eiro
lugar, é ir atrás dos sintomas e encontrar as assunções
inconscientes que resultaram no comportamento. Depois
de vários anos discutindo esses temas, estou hoje con­
vencido de que, com m uito poucas exceções, todos os
A HISTORIA RECENTE DO MATERIALISMO 49

grupos envolvidos na discussão dos temas correntes na


filo s o fia da mente são escravos de um determinado con­
jun to de categorias verbais. Eles são prisioneiros de uma
determinada term inologia, uma term inologia que recua
pelo menos até Descartes, se não antes, e, para superar o
comportamento com pulsivo, teremos que exam inar as
origens inconscientes das discussões. Teremos que tentar
pôr a descoberto o que é aquilo que todos estão dando
por certo para estim ular a controvérsia e m antê-la viva.
Não desejaria que meu uso de uma analogia terapêu­
tica fosse visto como insinuação de um endosso geral de
modos psicanalíticos de interpretação de temas intelec­
tuais. Assim , vamos m o d ifica r a m etáfora terapêutica da
seguinte maneira: quero sugerir que meu empreendimen­
to atual é um pouco parecido com aquele de um antropó­
logo ocupado em descrever o comportamento exótico de
uma trib o distante. A trib o tem um conjunto de padrões
de comportamento e uma m etafísica que devemos tentar
revelar e entender. É fá c il caçoar das m om ices da trib o
de filósofos da mente, e devo confessar que nem sempre
fu i capaz de resistir a essa tentação. M as de in ício , pelo
menos, devo in s is tir em que a trib o somos nós - somos
os possuidores das assunções metafísicas que tom am
possível o com portam ento da tribo . Desta form a, antes
que efetivam ente apresente uma análise e uma crítica do
comportamento da tribo , quero apresentar uma idéia que
deveríamos todos considerar aceitável, porque a idéia é
realmente parte de nossa cultura cien tífica contem porâ­
nea. E, ainda assim, m ais tarde afirm arei que a idéia é
incoerente; trata-se, apenas, de mais um sintom a do mes­
mo quadro neurótico.
50 A REDESCOBERTA DA MENTE

A q u i está a idéia. Acreditam os que a pergunta a se­


g u ir deve fazer sentido: como é possível partículas não-
inteligentes de m atéria produzirem inteligência? Como é
possível que as partículas não-inteligentes de m atéria em
nossos cérebros produzam o com portam ento inteligente
em que nós todos nos engajamos? Ora, isto nos parece
configurar uma pergunta perfeitam ente in te lig íve l. Na
verdade, parece um projeto de pesquisa m uito valioso, e
de fato é um projeto de pesquisa amplamente persegui­
do3e incidentalm ente m uito bem fundado.
Porque consideramos a pergunta inteligível, conside­
ramos a seguinte resposta plausível: partículas não-inteli­
gentes de m atéria podem produzir inteligência por causa
de sua organização. As partículas não-inteligentes de ma­
téria estão organizadas em determinadas formas dinâm i­
cas, e é a organização dinâm ica que é constitutiva da inte­
ligência. De fato, é perfeitam ente possível reproduzir arti­
ficialm ente a form a de organização dinâm ica que tom a
possível a inteligência. A estrutura subjacente dessa orga­
nização é chamada de “ computador” , o projeto de progra­
mação de um computador é chamado de “ inteligência
a rtific ia r’; e, quando em operação, o computador produz
inteligência porque está executando o programa de com­
putador correto com os corretos inputs e outputs.
Ora, essa história não soa ao menos plausível a você?
Devo confessar que se pode fazer com que soe bastante
plausível a m im , e na verdade penso que, se não parece
nem sequer remotamente plausível a você, é provável que
você não seja um membro completamente socializado de
nossa cultura intelectual contemporânea. M ais adiante
m ostrarei que tanto a pergunta quanto a resposta são
A HISTORIA RECENTE DO MATERIALISMO 51

incoerentes. Quando apresentamos a pergunta e damos a


resposta nesses termos, realmente não temos a mais vaga
idéia daquilo que estamos falando. M as apresento este
exem plo aqui porque quero que ele pareça natural, na
verdade prom issor, enquanto projeto de pesquisa.
A firm e i, poucos parágrafos atrás, que a história do
m aterialism o filo s ó fic o no século X X exibe um padrão
curioso, um padrão no qual há uma tensão recorrente
entre, por um lado, o ím peto m aterialista de dar uma
explicação dos fenômenos mentais que não faz nenhuma
referência a qualquer coisa intrínseca ou irredutivelm ente
mental, e, por outro, a condição intelectual geral com que
cada investigador depara de não afirm ar qualquer coisa
que seja obviamente falsa. Para p e rm itir que esse padrão
se mostre a si mesmo, quero agora apresentar um esboço
bastante conciso, da form a mais neutra e objetiva que pu­
der, do padrão de teses e respostas que os m aterialistas
personificaram . O o bjetivo do que se segue é fornecer
evidência para as asserções feitas no capítulo 1 através de
ilustrações concretas das tendências que identifiquei.

II. Behaviorism o

No in ício era o behaviorism o. O behaviorism o apre­


sentou-se em duas variedades: “ behaviorism o m etodoló­
gico” e “ behaviorism o ló g ico ” . O behaviorism o metodo­
lógico é uma estratégia de pesquisa em psicologia, no
sentido de que uma ciência da psicologia deva consistir
cm descobrir as correlações entre inputs de estím ulos e
outputs com portam entais (Watson, 1925). Um a ciência
52 A REDESCOBERTA DA MENTE

em pírica rigorosa, de acordo com esta concepção, não faz


nenhuma referência a quaisquer itens m entalísticos ou
introspectivos m isteriosos.
O behaviorism o lógico va i ainda um degrau além e
insiste em que não existem tais itens para se fazer re fe ­
rência, exceto na medida em que existam na form a de
comportamento. De acordo com o behaviorism o lógico,
é uma questão de definição, uma questão de análise ló g i­
ca, que os termos mentais possam ser definidos em te r­
mos de com portam ento, que afirmações sobre a mente
possam ser traduzidas, sem nenhum resíduo, em afirm a­
ções sobre o com portam ento (Hem pel, 1949; R yle,
1949). De acordo com o behaviorism o lógico, muitas das
afirmações na tradução serão hipotéticas na form a, p o r­
que os fenômenos mentais em questão consistem não em
efetivos padrões de com portam ento ocorrentes, mas,
antes, em disposições para o com portam ento. Assim ,
segundo uma exposição behaviorista padrão, dizer que
John acha que va i chover é simplesmente dizer que John
estará inclinado a fechar as janelas, guardar os apetre­
chos de ja rd im e levar um guarda-chuva se sair à rua. N o
modo m aterial de discurso, o behaviorism o sustenta que a
mente é somente com portam ento e disposições para
comportamento. N o m odo fo rm a l de discurso, consiste
na concepção de que afirm ações sobre fenômenos m en­
tais podem ser traduzidas em afirm ações sobre com por­
tamento possível e real.
As objeções ao behaviorism o podem ser divididas
em dois tipos: objeções de senso com um e objeções mais
ou menos técnicas. Um a objeção de senso comum óbvia
é a de que o behaviorista parece deixar de lado os feno-
A HISTÓRIA RECENTE DO MATERIALISMO 53

menos mentais em questão. Não fic a nada para a expe­


riência subjetiva do pensar ou do sentir na explicação be­
haviorista; existem apenas padrões de com portam ento
objetivam ente observável.
Diversas objeções mais ou menos técnicas foram
feitas ao behaviorism o lógico. Prim eiro, os behavioristas
nunca conseguiram tornar a noção de uma “ disposição”
totalm ente clara. N inguém jam ais conseguiu dar uma
explicação satisfatória sobre que espécies de anteceden­
tes deveria haver nas afirmações hipotéticas para produ­
z ir uma análise disposicional adequada de termos m en­
tais em termos com portam entais (Ham pshire, 1950;
Geach, 1957). Em segundo lugar, parecia haver um pro­
blema quanto a uma determinada form a de circularidade
na análise: para expormos uma análise da crença em ter­
mos de com portam ento, parece que temos de fazer refe­
rência ao desejo; para apresentarmos uma análise do
desejo, parece que temos de fazer referência à crença
(Chisholm , 1957). Assim , considerando nosso exem plo
anterior, estamos tentando analisar a hipótese de que John
acha que va i chover em termos da hipótese de que, se as
janelas estiverem abertas, John as fechará, e outras hipó­
teses sim ilares. Queremos analisar a afirm ação categóri­
ca de que John acha que va i chover em termos de deter­
minadas afirmações hipotéticas sobre o que John fará
sob que condições. Entretanto, a crença de John de que
vai chover será m anifesta no comportamento de fechar
as janelas somente se adm itirm os hipóteses adicionais,
como, por exem plo, que John não quer que a água da
chuva entre através das janelas, e que John acredita que
janelas abertas deixam entrar a água da chuva. Se não há
54 A REDESCOBERTA DA MENTE

nada de que ele goste mais do que o flu xo da água da chu­


va através das janelas, ele não estará disposto a fechá-las.
Sem algumas hipóteses desse tip o sobre os desejos de
John (e suas outras crenças), parece que não podemos
começar a analisar nenhuma afirm ação sobre suas cren­
ças originais. Observações semelhantes podem ser feitas
sobre a análise dos desejos; tais análises parecem e x ig ir
referência às crenças.
Uma terceira objeção técnica ao behaviorism o era a
de que deixava de lado as relações causais entre os esta­
dos mentais e o comportamento (Lew is, 1966). Por iden­
tifica r, por exemplo, o sofrim ento com a disposição para
o comportamento de sofrim ento, o behaviorism o e xclui
o fato de que o sofrim ento causa o comportamento. De
modo semelhante, se tentamos a n a lisa r as crenças e
desejos em termos de com portam ento, não somos mais
capazes de afirm ar que as crenças e os desejos causam o
comportamento.
Em bora a m aioria das discussões na literatura filo ­
sófica talvez envolva as objçções “ técnicas” , na verdade
são as objeções de senso comum as mais embaraçosas. O
absurdo do behaviorism o repousa no fato de que ele nega
a existência de quaisquer estados mentais internos além
do comportamento exterior (Ogden e Richards, 1926). E
isto, sabemos, é totalm ente contrário ao nosso senso usual
sobre o que é ser um ser humano. Por esta razão, os beha-
vioristas eram sarcasticamente acusados de “ sim ular anes­
tesia” 4, e eram alvo de m uitas piadas maldosas (e.g.,
prim eiro behaviorista para segundo behaviorista logo
depois de fazer amor: “ F o i ótim o para você; como fo i
para m im ?” ). Esta objeção de senso comum ao behavio-
A HISTORIA RECENTE DO MATERIALISMO 55

rism o era às vezes colocada na form a de argumentos que


apelavam às nossas intuições. U m destes é a objeção
superator/superespartano (Putnam, 1963). Podemos fa ­
cilm ente im aginar um ator de habilidades superiores que
pudesse fazer uma im itação perfeita do com portam ento
de alguém com dor, mesmo que o ator em questão não
estivesse sofrendo, e podemos im aginar também um su-
perespartano que fosse capaz de agüentar a dor sem dar
qualquer sinal de estar sofrendo.

III. Teorias de identidade tipo

Supunha-se que o behaviorismo lógico fosse uma ver­


dade analítica. Ele sustentava uma conexão de definição
entre conceitos mentais e comportamentais. N a história
recente das filo so fia s m aterialistas da mente, fo i substi­
tuído pela “ teoria de identidade” , que afirm ava que, por
serem empíricos, sintéticos, contingentes, os estados men­
tais eram idênticos aos estados do cérebro e do sistema
nervoso central (Place, 1956; Smart, 1965). Segundo os
teóricos da identidade, não havia absurdo lógico em su­
por que pudesse haver fenômenos mentais isolados, in ­
dependentes da realidade m aterial; ela simplesmente
concluiu, de fato, que nossos estados mentais, como as
dores, eram idênticos a estados de nosso sistema nervo­
so. Nesse caso, pretendia-se que as dores fossem id ê n ti­
cas a excitações de fibras C5. Descartes p odia estar certo
em pensar que houvesse fenômenos mentais independen­
tes; simplesmente term inou por revelar-se, na verdade,
que ele estava errado. Os fenômenos mentais eram sim -
56 A REDESCOBERTA DA MENTE

plesmente estados do cérebro e do sistema nervoso cen­


tral. Supunha-se que a identidade entre a mente e o cére­
bro fosse uma identidade empírica, da mesma form a como
se supunha que entre raio e descargas elétricas (Smart,
1965), ou entre água e moléculas de H 20 (Feigl, 1958;
Schaffer, 1961), houvesse identidades empíricas ou contin­
gentes. Ficou claro, meramente por uma questão de desco­
berta científica, que os raios eram apenas correntes de elé­
trons, e que a água, em todas as suas diversas formas, nada
mais era que aglomerados de moléculas de H 20 .
Da mesma form a como no caso do behaviorismo,
podemos d iv id ir as dificuldades da teoria de identidade em
objeções “ técnicas” e objeções de senso comum. Neste
caso, a objeção de senso comum assume a form a de um
dilema. Suponhamos que a teoria de identidade seja, como
seus defensores afirm am , uma verdade empírica. Sendo
assim, então deve haver, quanto aos fenômemos em ques­
tão, características logicamente independentes que perm i­
tam que ela seja identificada no lado esquerdo da afirm a­
ção de identidade de uma maneira diferente daquela com
que é identificada no lado direito da afirmação de identida­
de (Stevenson, 1960). Se, por exemplo, as dores são idênti­
cas a eventos neurofisiológicos, então deve haver dois con­
juntos de características, características de dor e caracterís­
ticas neurofisiológicas, e estes dois conjuntos de caracterís­
ticas nos perm item d e fin ir claramente ambos os lados da
afirmação sintética de identidade. Assim , por exemplo,
suponhamos que tenhamos uma afirmação do tipo:

O evento de dor x é idêntico ao evento neurofisiológico y.


A HISTÓRIA RECENTE DO MATERIALISMO 57

Compreendemos tal afirm ação porque entendemos


que o mesmo e único evento fo i identificado em virtude
de duas espécies diferentes de propriedades, proprieda­
des de dor e propriedades neurofisiológicas. Se assim
for, porém, então parece que estamos diante de um d ile ­
ma: ou as características de dor são características intros­
pectivas, mentais, subjetivas, ou não são. Ora, se são, daí
decorre que não nos livram os realmente da mente. C on ti­
nuamos ainda com uma form a de dualism o, se bem que
um dualism o de propriedades, e não de substâncias.
Continuamos com conjuntos de propriedades mentais,
ainda que nos tenhamos livra d o de substâncias mentais.
Se, por outro lado, tentamos tratar a “ d or” com o se não
designasse uma característica m ental subjetiva de deter­
minados eventos neurofisiológicos, então seu significado
toma-se totalmente m isterioso e inexplicado. Assim como
ocorreu com o behaviorism o, deixamos de lado a mente,
pois não temos como especificar essas características
mentais subjetivas de nossas experiências.
Espero que esteja claro que isso é apenas uma repe­
tição da objeção de senso comum ao behaviorism o. Nesse
caso, nós a colocamos na form a de um dilem a: ou a espé­
cie de m aterialism o da identidade deixa de lado a mente,
ou não deixa; se deixa, é falsa; se não deixa, não é mate­
rialism o.
Os teóricos da identidade australianos pensavam ter
uma resposta a essa objeção. A resposta era tentar des­
crever as supostas características mentais através de um
vocabulário “ tópico-neutro” . A idéia era obter uma des­
crição das características mentais que não mencionasse o
fato de que eram mentais (Smart, 1965). Isto pode certa-
58 / i REDESCOBERTA DA MENTE

mente ser fe ito: podemos nos re fe rir a dores sem m encio­


nar o fato de que são dores, exatamente da mesma form a
que podemos nos re fe rir a aviões sem m encionar o fato
de que são aviões. Isto é, podemos nos re fe rir a um avião
dizendo: “ Uma determinada porção do patrim ônio per­
tencente aos Estados U nidos” , e podemos nos re fe rir a
uma persistente imagem am arelo-laranja dizendo: “ U m
determ inado evento ocorrendo em m im que é como o
evento que acontece em m im quando vejo uma laranja.”
Mas o fato de que alguém possa referir-se a um fenôm e­
no sem especificar suas características essenciais não
sign ifica que ele não exista e não tenha aquelas caracte-
rísticas essenciais. E, ainda, uma dor ou uma imagem
persistente, ou um avião, mesmo que nossas descrições
deixem de m encionar esses fatos.
O utra objeção mais “ técnica” à teoria de identidade
era esta: parece im provável que para cada tip o de estado
m ental haja um e somente um tip o de estado neurofisio-
lógico ao qual seja idêntico. Mesmo que m inha crença de
que Denver é a capital do C olorado seja idêntica a um
determinado estado de meu cérebro, parece ser demais
esperar que todo o m undo que acredita que Denver é a
capital do C olorado deva ter uma configuração n eu ro fi-
siológica idêntica em seu cérebro (B lo ck e Fodor, 1972;
Putnam, 1967). E através das espécies, mesmo que seja
verdadeiro que em todos os seres humanos as dores são
idênticas a eventos neurofisiológicos humanos, não pre­
cisamos e xclu ir a possibilidade de que, em algumas
outras espécies, pudesse haver dores que fossem id ê n ti­
cas a algum outro tip o de configuração neurofisiológica.
Parece, em resumo, demais esperar que cada tip o de esta-
A HISTÓRIA RECENTE DO MATERIALISMO 59

do m ental seja idêntico a algum tipo de estado neurofi-


siológico. E, de fato, parece uma espécie de “ chauvinis­
mo neuronico” (B lock, 1978) supor que somente entida­
des com neurônios, como nós próprios, possam ter estados
mentais.
Uma terceira objeção “ técnica” à teoria de identida­
de deriva da le i de Leibniz. Se dois eventos só são id ê n ti­
cos se tiverem todas as suas propriedades em comum,
então parece que estados mentais não podem ser id ê n ti­
cos a estados físicos, porque estados mentais têm deter­
minadas propriedades que estados físicos não têm (Smart,
1965; Shaffer, 1961). Por exem plo, m inha dor está no
meu dedo do pé, mas meu estado n eurofisiológico cor­
respondente percorre toda a extensão do dedo do pé até o
tálamo, e va i além. Assim , onde está a dor, realmente?
Os teóricos da identidade não tiveram m uita dificuldade
com esta objeção. Eles salientaram que a unidade de aná­
lise é realmente a experiência de ter dor, e que a expe­
riência (juntam ente com a experiência da imagem in te ­
gral do corpo) presum ivelm ente tem lugar no sistema
nervoso central (Sm art, 1965). Neste ponto, parece-me
que os m aterialistas estão absolutamente certos.
Uma objeção técnica mais radical à teoria da id e n ti­
dade fo i apresentada por Saul K rip ke (1971) com o
seguinte argumento m odal: se fosse realmente verdadei­
ro que a dor é idêntica à excitação da fib ra C, então esta
teria que ser uma verdade necessária, da mesma form a
que a afirm ação de identidade “ o calor é idêntico ao
m ovim ento das m oléculas” é uma verdade necessária.
Isto porque, em ambos os casos, as expressões de cada
lado do enunciado de identidade são “ designadores ríg i-
60 A REDESCOBERTA DA MENTE

dos” . Com isto ele quer dizer que cada expressão ide n ti­
fica o objeto a que se refere em termos de suas p ro prie ­
dades essenciais. Essa sensação de dor que tenho agora é
essencialmente uma sensação de dor porque qualquer coi-
sa idêntica a essa sensação teria que ser uma dor, e este
estado cerebral é essencialmente um estado cerebral por­
que qualquer coisa idêntica a ele teria de ser um estado
cerebral. Assim , parece que o teórico da identidade que
declara que dores são determinados tipos de estados
cerebrais, e que esta dor específica é idêntica a este esta­
do cerebral específico, seria forçado a considerar tanto
que é uma verdade necessária que, em geral, as dores são
estados cerebrais quanto que é uma verdade necessária
que esta dor específica é um estado cerebral. Mas nenhu­
ma dessas alternativas parece correta. Não parece certo
afirm ar quer que as dores em geral sejam necessariamente
estados cerebrais, ou que m inha dor atual é necessaria­
mente um estado cerebral; porque parece fá c il im aginar
que alguma espécie de ser pudesse ter estados cerebrais
como esses sem ter dores, e dores como essas sem estar
nesses tipos de estados cerebrais. É até possível conceber
uma situação na qual eu tivesse exatamente essa mesma
dor sem ter esse mesmo estado cerebral, e na qual eu tives­
se exatamente esse mesmo estado cerebral sem ter dor.
O debate sobre a força desse argumento m odal con­
tinuou por alguns anos, e ainda persiste (Lycan, 1971,
1987; Sher, 1977). D o ponto de vista de nossos presentes
interesses, quero chamar a atenção para o fato de que se
trata essencialmente da objeção de senso comum em rou­
pagem sofisticada. A objeção de senso comum a qual­
quer teoria de identidade é a de que você não pode iden-
A HISTÓRIA r e c e n t e d o m a t e r ia l is m o 61

tifícar qualquer coisa mental com qualquer coisa nao-men­


tal, sem deixar de lado o m ental. Segundo o argumento
modal de K ripke , a identificação de estados mentais com
estados físicos teria que ser necessária, e, não obstante,
não pode ser necessária, porque o m ental não poderia ser
necessariamente físico. Como diz K ripke, citando Butler:
“ Tudo é o que é, e não uma outra coisa.” 6
Seja como fo r, a idéia de que qualquer tip o de estado
mental é idêntico a algum tip o de estado neurofisiológico
parecia realmente fo rte demais. Contudo, parecia que a
m otivação filo só fica subjacente do m aterialism o poderia
ser preservada com uma tese m uito mais fraca, a tese de
que, para cada exem plo ocorrência de um estado mental,
haverá algum evento neurofisiológico ocorrência ao qual
esse exemplo ocorrência seja idêntico. Essas concepções
eram chamadas “ teorias de identidade ocorrência-ocor-
rência” , e logo substituíram as teorias de identidade tip o -
tipo. Alguns autores realmente achavam que uma teoria
de identidade ocorrência-ocorrência pudesse escapar à
força dos argumentos modais de K ripke 7.

TV. Teorias de identidade ocorrência-ocorrência

Os teóricos da identidade ocorrência herdaram a obje­


ção de senso comum às teorias de identidade tipo, a objeção
de que elas ainda pareciam conter alguma form a de dua­
lism o de propriedades; mas eles tinham algumas d ific u l­
dades adicionais próprias.
Uma delas era a seguinte. Se duas pessoas que estão
no mesmo estado m ental estão em estados n eu ro fisioló -
62 A REDESCOBERTA DA MENTE

gicos diferentes, então o que há com esses estados neuro-


fisioló gico s diferentes que os coloca no mesmo estado
mental? Se tanto você quanto eu acreditamos que Denver
é a capital do Colorado, então o que é que temos em
comum que faz de nossas diferentes ondulações neurofi-
siológicas a mesma crença? Note-se que os teóricos da
identidade ocorrência não podem dar a essa pergunta a
resposta de senso comum; eles não podem afirm ar que o
que tom a dois eventos neurofisiológicos o mesmo tip o
de evento m ental é que eles têm o mesmo tip o de carac­
terísticas mentais, porque era precisamente a elim inação
ou redução dessas características mentais que o m ateria­
lism o buscava atingir. Eles têm que encontrar alguma
resposta não-m entalística à pergunta: “ O que há com
dois estados neurofisiológicos diferentes que os transfor­
ma em ocorrências do mesmo tip o de estado m ental?”
Dada toda a tradição dentro da qual estavam trabalhan­
do, a única resposta plausível só poderia dar-se em estilo
behaviorista. Sua resposta fo i que um estado neurofisio-
lógico era um estado m ental particular em virtude de sua
função, e isto leva naturalm ente à próxim a concepção.

V Funcionalism o caixa-preta

O que tom a dois estados neurofisiológicos ocorrên­


cias do mesmo tipo de estado m ental é o fato de desem­
penharem a mesma função na vida total do organismo. A
noção de uma função é um tanto vaga, mas os teóricos da
identidade ocorrência tomaram-na mais consistente da ma­
neira seguinte. Duas ocorrências de estado cerebral d ife-
a h is t o r ia r e c e n t e d o m a t e r ia l is m o 63

rentes seriam ocorrências do mesmo tip o de estado men­


tal sse os dois estados cerebrais tivessem as mesmas rela­
ções causais com os estímulos de input que o organismo
recebe, com seus diversos outros estados “ m entais” e
com seu comportamento de output correspondente (Lew is,
1972; G rice, 1975). Dessa form a, por exem plo, m inha
crença de que está para chover será, em m im , um estado
causado pela m inha percepção da concentração de nu­
vens e do aumento das trovoadas; e, juntamente com meu
desejo de que a chuva não entre pelas janelas, essa per­
cepção, conseqüentemente, fará com que eu as feche. N o-
te-se que, ao id e n tifica r estados mentais em termos de
suas relações causais - não apenas com estím ulos de
input e comportamentos de output correspondentes, mas
também com outros estados mentais - , os teóricos da
identidade ocorrência imediatamente evitavam duas obje-
ções ao behaviorism o. Um a delas era a de que o behavio-
rism o tinha negligenciado as relações causais dos esta­
dos mentais e, de acordo com a segunda, havia uma c ir­
cularidade no behaviorism o, no sentido de que as crenças
tinham que ser analisadas em termos de desejos, e estes
em termos de crenças. Os teóricos da identidade ocorrên­
cia da linha funcionalista podem aceitar essa circularida­
de de bom grado, argumentando que todo o sistema de
conceitos pode ser convertido em termos do sistema de
relações causais.
O funcionalism o tinha um belo a rtifíc io técnico atra­
vés do qual tom ava esse sistema de relações com pleta­
mente claro sem invocar quaisquer “ entidades mentais
misteriosas” . Esse a rtifíc io é chamado de “ sentença de
Ramsey” 8, e funciona da seguinte maneira: suponhamos
64 A REDESCOBERTA DA MENTE

que John tem a crença de que p, e que esta é causada por


sua percepção de que p ; e, juntam ente com seu desejo de
que q , a crença de que p causa sua ação a. Porque esta­
mos definindo crenças em termos de suas relações cau­
sais, podemos e lim in a r o uso e xplícito da palavra “ cren­
ça” na frase anterior, e simplesmente dizer que há um
algo que tom a parte em tais e tais relações causais. Fa­
lando form alm ente, o modo como elim inam os a menção
e xplícita de crença consiste simplesmentp na colocação
de uma variável, “ x” , no lugar de qualquer expressão que
se re fira à crença de John de que p ; e fazemos preceder
de um quantificador existencial toda a sentença (Lew is,
1972). Toda a h istó ria sobre a crença de John de que p
pode então ser contada da seguinte maneira:

(3x) (John tem xScxé causado pela percepção de que p & x


juntamente com um desejo de que q causa a ação a)

A lém disso, supõe-se que as sentenças de Ramsey se


livra m da ocorrência de termos psicológicos remanes­
centes, como “ desejo” e “ percepção” . Uma vez que as
sentenças de Ramsey sejam compreendidas desse modo,
resulta que o funcionalism o tem a vantagem crucial de
m ostrar que não há nada de especialmente m ental nos
estados mentais. Falar de estados mentais é simplesmen­
te fa lar de um conjunto neutro de relações causais; e o
aparente “ chauvinism o” das teorias de identidade tip o-
tip o - isto é, o chauvinism o de supor que somente siste­
mas com cérebros como os nossos possam ter estados
mentais - é então evitado por essa concepção m uito mais
“ lib e ra l” 9. Todo e qualquer sistema, não im porta do que
A HISTORIA RECENTE DO MATERIALISMO 65

fosse constituído, poderia ter estados m entais, contanto


que tivesse as relações causais corretas entre seus inputs,
seu funcionam ento interno e seus outputs. O funcionalis­
mo dessa variedade não diz nada sobre com o a crença
opera para ter as relações causais que tem. Sim plesm en­
te, trata a mente como uma espécie de caixa-preta na qual
essas diversas relações causais ocorrem e, p or este m o ti­
vo, é às vezes rotulado de “ funcionalism o caixa-preta” .
As objeções ao funcionalism o caixa-preta exibiram
a mesma m istura das objeções de senso com um e té cni­
cas que vim os antes. A objeção de senso comum era a de
que o funcionalism o parece deixar de lado a sensação
subjetiva qualitativa de pelo menos alguns de nossos es­
tados mentais. Há determinadas experiências qualitativas
bem específicas envolvidas no ato de ver um objeto ver­
melho ou ter uma dor nas costas, e simplesmente descre­
ver essas experiências em termos de suas relações cau­
sais deixa de lado esses qualia especiais. U m a prova
disto fo i oferecida da seguinte maneira: suponhamos que
uma parte da população tivesse seus espectros de cores
invertidos de tal m aneira que, por exem plo, a experiência
que eles designam por “ ver verm elho” fosse chamada de
“ ver verde” por uma pessoa norm al; e o que eles desig­
nam por “ ver verde” fosse chamada de “ ver verm elho”
por uma pessoa norm al (B lo ck e Fodor, 1972). Ora , po­
demos supor que esta “ inversão de espectro” seja in te ira ­
mente não-detectável por quaisquer dos testes usuais de
discernimento de cores, já que o grupo anorm al faz exa­
tamente as mesmas discrim inações de cores em resposta
a la ta m e n te os mesmos estím ulos tal como o resto da
população. Quando instadas a colocar os lápis vermelhos
66 A REDESCOBERTA DA MENTE

numa pilha e os lápis verdes em outra, essas pessoas fa ­


zem exatamente o que o resto de nós faríam os; parece
diferente para elas em seu interior, mas não há como detec­
tar esta diferença a p a rtir do exterior.
Ora, se essa possibilidade é até mesmo in te lig íve l
para nós - e seguramente é - , então o funcionalism o cai-
xa-preta deve estar errado em supor que as relações cau­
sais especificadas de form a neutra sejam suficientes para
explicar fenômenos mentais; isto porque tais especifica­
ções deixam de lado uma característica crucial de m uitos
fenômenos mentais, ou seja, sua sensação qualitativa.
Uma objeção análoga era a de que uma população
enorme, digamos toda a população da China, podia com ­
portar-se de form a a im ita r a organização funcional de
um cérebro humano, fazendo-o a ponto de ter as relações
de estím ulos e respostas corretas e o padrão correto de
relações de causa-e-efeito internas. Mesmo assim, po­
rém, o sistema ainda não perceberia coisa alguma como
um sistema. Toda a pophlação da China não sentiria uma
dor somente im itando a organização funcional apropria­
da à dor (B lock, 1978).
Outra objeção mais técnica ao funcionalism o caixa-
preta rem etia à parte da “ caixa-preta” : o funcionalism o
definido dessa form a falhava em expor em termos mate­
riais o que há, nos diferentes estados físicos, que fornece
aos fenômenos m ateriais diferentes as mesmas relações
causais. Como ocorre que essas estruturas físicas tão
diferentes sejam causalmente equivalentes?
A HISTORIA RECENTE DO MATERIALISMO 67

VI. Inteligência a rtific ia l fo rte

Neste ponto ocorreu um dos mais empolgantes


avanços de toda a história de dois m il anos do m aterialis­
mo. A ciência da inteligência a rtific ia l em desenvolvi­
mento forneceu uma resposta a essa questão: estruturas
m ateriais diferentes podem ser mentalm ente equivalen­
tes se forem execuções em máquinas diferentes do
mesmo programa de computador. De fato, dada esta res­
posta, podemos ver que a mente realmente é um progra­
ma de com putador, e o cérebro é apenas uma dentro da
ilim ita d a série de hardwares de computador (ou “ wetwa-
res” )* que podem ter uma mente. A mente está para o
cérebro como o program a está para o hardware (John-
son-Laird, 1988). A inteligência a rtific ia l e o funciona­
lism o fundiram -se, e um dos aspectos mais chocantes
desta união fo i a constatação de que alguém pode ser um
m aterialista consumado em relação à mente e ainda acre­
ditar, com Descartes, que na verdade o cérebro não tem
im portância para a mente. Porque a mente é um progra­
ma de computador, e porque um programa pode ser exe­
cutado em todo e qualquer equipamento (contanto que o
equipamento seja potente e estável o bastante para exe­
cutar os passos do program a), os aspectos específica­
mente mentais da mente podem ser especificados, estu­
dados e entendidos sem o conhecimento de como o cére-

* “ Wetwares” fo i mantido no original para que o le ito r possa esta­


belecer um paralelo com “ hardwares” , que aparece um pouco antes. Há
ai um jogo de palavras: “ wetwares” remeteria a algo como “ meios úm i­
dos” , em referência ao “ meio úmido” em que está envolto e que constitui o
cérebro. (N. do T.)
68 A REDESCOBERTA DA MENTE

bro trabalha. Mesmo sendo um materialista, você não pre­


cisa estudar o cérebro para estudar a mente.
Esta idéia fez surgir a nova discip lin a da “ ciência
cognitiva” . Terei mais a dizer sobre esta mais adiante (nos
capítulos 7, 9 e 10); a esta altura, estou apenas registran­
do a história recente do m aterialism o. Tanto a discip lin a
da inteligência a rtific ia l quanto a teoria filo só fica do fu n ­
cionalism o convergiram na idéia de que a mente era sim ­
plesmente um programa de computador. B atizei esta con­
cepção como “ inteligência a rtificia l forte” (Searle, 1980a),
e ela também fo i chamada de “ funcionalism o de com pu­
tador” (Dennett, 1978).
As objeções à IA forte parecem-me e x ib ir a mesma
m istura de objeções de senso comum e objeções mais ou
menos técnicas que encontramos nos outros casos. As
dificuldades técnicas e as objeções à inteligência a rtifi­
cial, tanto na sua versão forte quanto na fraca, são nume­
rosas e complexas. Não tentarei resumi-las. Em geral,
todas têm relação com determinadas dificuldades em pro­
gramar computadores de uma maneira que os capacitaria
a satisfazer o teste de Turing. Dentro do campo próprio da
IA , sempre houve dificuldades como o “ problema de fra ­
me” e a incapacidade de obter exposições adequadas do
“ raciocínio não-m onotônico” , que espelharia o comporta­
mento humano real. De fora do campo da IA , houve obje­
ções como aquelas de H ubert Dreyfus (1972), no sentido
de que o modo como trabalha a mente humana é bem
diferente da maneira como opera um computador.
A objeção de senso com um à IA forte era sim ples­
mente que o m odelo com putacional da mente deixava de
lado as características cruciais da mente, tais como cons-
A HISTÓRIA RECENTE DO MATERIALISMO 69

ciência e intencionalidade. Creio que o argum ento mais


conhecido contra a IA forte fo i meu argumento da sala
chinesa (Searle, 1980a), que demonstrava que um siste­
ma podia d e fin ir um program a de modo a fom ecer urna
simulação perfeita de alguma capacidade cognitiva huma­
na, como a capacidade de entender chinês, mesmo que
esse sistema não tivesse absolutamente nenhuma com ­
preensão do chinês. Basta im aginar que alguém que não
entende nada de chinês seja trancado numa sala com uma
porção de símbolos chineses e um programa de computa­
dor para responder perguntas em chinês. O input para o
sistema consiste em símbolos chineses em form a de per­
guntas; o output do sistema consiste em sím bolos chine­
ses em resposta às perguntas. Podíamos supor que, de tão
bom o programa, as respostas às perguntas fossem ind is­
tinguíveis daquelas de alguém que tivesse o chinês por
língua materna. Mas, não obstante, nem a pessoa que está
dentro da sala nem nenhuma outra parte do sistema en­
tende literalm ente chinês; e, porque o com putador p ro ­
gramado não tem nada que esse sistema não tenha, o
computador programado, como computador, também
não entende chinês. Porque o programa é puramente fo r­
mal ou sintático, e porque mentes têm conteúdos mentais
ou semânticos, qualquer tentativa de produzir uma mente
apenas com programas de com putador deixa de lado as
características essenciais da mente.
A lém do behaviorismo, das teorias de identidade tipo,
teorias de identidade ocorrência, funcionalism o e IA fo r­
te, houve outras teorias na filo s o fia da mente dentro da
tradição m aterialista geral. Uma destas, que rem onta ao
início da década de 1960, no trabalho de Paul Feyera-
70 A REDESCOBERTA DA MENTE

bend (1963) e R ichard R orty (1965), fo i recentemente


revivida em diferentes form as por autores como P. M .
Churchland (1981) e S. Stich (1983). É a concepção de que
os estados mentais não existem de modo algum. Esta con­
cepção é chamada de “ m aterialism o e lim in a tivo ” , e é
para ele que me vo lto agora.

VIL M aterialism o elim inativo

Em sua versão mais sofisticada, o m aterialism o e li­


m inativo argumenta como segue: nossas crenças de sen­
so comum sobre a mente constituem uma espécie de teoria
p rim itiva , uma “ psicologia popular” . Mas, como ocorre
com qualquer teoria, as entidades postuladas pela teoria
podem ser justificadas somente na medida em que a teo­
ria seja verdadeira. A ssim como o m alogro da teoria da
combustão do flo g isto elim inou qualquer ju s tific a tiv a
para se acreditar na existência do flo g isto , assim o fra ­
casso da psicologia popúlar elim ina o fundamento lógico
das entidades da psicologia popular. Assim , se resulta
que a psicologia popular é falsa, então não teríamos ju s ­
tific a tiv a para acreditar na existência de crenças, desejos,
esperanças, medos etc. De acordo com os m aterialistas
elim inativos, parece m uito provável que a psicologia po­
pular term inará por mostrar-se falsa. Parece provável que
uma “ ciência co gn itiva madura” v irá dem onstrar que a
m aioria de nossas crenças de senso comum sobre estados
mentais são completamente injustificadas. Esta conclu­
são teria a conseqüência de que as entidades que sempre
supusemos existir, nossas entidades mentais ordinárias,
A HISTÓRIA RECENTE DO MATERIALISMO 71

não existem na verdade. E, portanto, finalm ente temos


uma teoria da mente que simplesmente elim ina a mente.
Daí a expressão “ m aterialism o e lim in a tivo ” .
U m argumento paralelo, utilizado em fa vo r do “ ma­
terialism o e lim in a tivo ” , parece-me tão surpreendente­
mente m im que temo não estar compreendendo-o bem. Tão
fielm ente quanto sou capaz de expor, aí vai ele:

Imagine que tivéssemos uma ciência perfeita da neu-


robiologia. Imagine que tivéssemos uma teoria que real­
mente explicasse como o cérebro trabalha. Tal teoria co­
briria o mesmo domínio que a psicologia popular, mas seria
muito mais poderosa. Além disso, parece muito imprová­
vel que nossos conceitos ordinários da psicologia popu­
lar, como crença e desejo, esperança, medo, depressão,
euforia, dor etc., igualassem exatamente, ou mesmo remo­
tamente, a taxonomia fornecida por nossa suposta perfei­
ta ciência da neurobiologia. Provavelmente, nessa neuro-
biologia não haveria lugar para expressões como “ cren­
ça” , “ medo” , “ esperança” e “ desejo” , e uma redução branda
desses pretensos fenômenos não seria possível.

Esta é a premissa. A q u i está a conclusão:

Portanto, as entidades aparentemente especificadas


pelas expressões da psicologia popular, por crenças, espe­
ranças, medos, desejos etc., na verdade não existem.

Para ver realmente o quão ru im é esse argumento, basta


imaginarmos um argumento paralelo da física:
72 A REDESCOBERTA DA MENTE

Considere nossa atual ciência da física teórica. Te­


mos aqui uma teoria que explica como funciona a realida­
de física e que, por todos os critérios usuais, é extrema­
mente superior às nossas teorias de senso comum. A teoria
física cobre o mesmo campo que nossas teorias de senso
comum sobre tacos de golfe, raquetes de tênis, caminho­
netes Chevrolet e casas de campo de vários pisos. Além
disso, nossos conceitos físicos populares correntes, como
“ taco de golfe” , “ raquete de tênis” , “ caminhonete Che­
vrolet” e “ casa de campo de vários pisos” , não igualam
exatamente, ou mesmo remotamente, a taxonomia da físi­
ca teórica. Na física teórica, simplesmente não há utilida­
de teórica para nenhuma dessas expressões, e reduções de
tipo brando desses fenômenos não são possíveis. O modo
como uma física ideal - na verdade, o modo como nossa
física real - classifica a realidade é realmente bem dife­
rente do modo como nossa física popular ordinária classi­
fica a realidade.

Portanto, casas de campo de vários pisos, raquetes


de tênis, tacos de golfe, caminhonetes Chevrolet etc., na
verdade não existem. ,

Não encontrei esse erro discutido na literatura. Pode ser


que, de tão flagrante, tenha sido simplesmente ignorado.
Assenta sobre a premissa obviamente falsa de que, para
qualquer teoria em pírica e correspondente taxonom ia, a
não ser que haja uma redução tip o -tip o das entidades
classificadas às entidades de teorias superiores da ciência
básica, as entidades não existem . Se você tem alguma
dúvida de que esta premissa é falsa, experimente-a, a p li­
cando-a a qualquer coisa que vê ao seu redor - ou a você
mesmo10!
,r

A HISTORIA RECENTE DO MATERIALISMO 73

Com o m aterialism o e lim in a tivo , urna vez mais,


encontramos o mesmo padrão de objeções técnicas e de
senso comum que verificam os anteriorm ente. As obje­
ções técnicas têm a ver com o fato de que a psicologia
popular, se é uma teoria, não é, contudo, um projeto de
pesquisa. Não é, em si, um campo riv a l da pesquisa cien­
tífica , e, na verdade, os m aterialistas elim inativos que
atacam a psicologia popular, segundo seus críticos, são
quase sempre injustos. De acordo com seus defensores,
no fim das contas a psicologia popular não é uma teoria
tão ruim ; m uitos de seus princípios centrais são bastante
passíveis de mostrar-se verdadeiros. A objeção de senso
comum ao m aterialism o e lim in a tivo é, simplesmente, a
de que parece ser louco. Parece loucura afirm ar que nun­
ca senti sede ou desejo, que nunca tiv e uma dor, que
nunca tive realmente uma crença, ou que minhas crenças
e desejos não desempenham nenhum papel em meu com ­
portamento. A o contrário das teorias m aterialistas ante­
riores, o m aterialism o e lim in a tivo nem deixa a mente
tanto de lado; ele nega, de in ício , a existência de qual­
quer coisa que se possa deixar de lado. Quando confron­
tados com a objeção de que o m aterialism o e lim in a tivo
parece insensato demais para merecer um exame sério,
seus defensores quase invariavelm ente recorrem ao es­
tratagema da era-heróica-da-ciência (P. S. Churchland,
1987). Isto é, eles declaram que renunciar à crença de
que temos crença é análogo a abandonar a crenças numa
terra plana ou em pores-do-sol, por exemplo.
Vale a pena salientar, em toda esta discussão, que
uma determinada assim etria paradoxal surgiu na história
do m aterialism o. As teorias de identidade tip o -tip o ante-
74 A REDESCOBERTA DA MENTE

riores argumentavam que podíamos nos liv ra r de estados


mentais cartesianos e m isteriosos porque tais estados não
eram nada mais que estados físicos (nada “ além de” es­
tados físicos); e defendiam isto com base na assunção de
que se poderia m ostrar que tipos de estados mentais se­
ria m idênticos a tipos de estados físicos, que obteríamos
uma correspondência entre as asserções da neurobiologia
e nossas noções convencionais, como a dor e a crença. Já
no caso do m aterialism o e lim in a tivo , o que se considera
como a ju stifica tiva da elim inação desses estados mentais
em favor de uma neurobiologia perfeita é exatamente o
pretenso fracasso de qualquer correspondência semelhan­
te. Os m aterialistas anteriores argumentavam que não
existem coisas como fenômenos mentais isolados, porque
os fenômenos mentais são idênticos a estados cerebrais.
Os m aterialistas mais recentes afirm am que não existem
coisas como fenômenos mentais isolados porque não são
idênticos a estados cerebràis. Considero esse exemplo
bastante esclarecedor, e o que ele revela é uma ânsia de
livrar-se dos fenômenos mentais a qualquer custo.

V III. N aturalizando o conteúdo

Depois de m eio século desse padrão recorrente em


debates sobre o m aterialism o, alguém podia supor que os
m aterialistas e os dualistas pensassem que há algo de er­
rado com os termos do debate. Até agora, porém, a indução
não parece ter ocorrido a nenhum dos lados. Enquanto
escrevo isto, o mesmo padrão está sendo repetido em ten­
tativas atuais de “ naturalizar” o conteúdo intencional.
A HISTÓRIA RECENTE DO MATERIALISMO 75

Estrategicamente, a idéia é desvincular o problem a


da consciência do problem a da íntencionalidade. Talvez,
alguém poderia adm itir, a consciência seja irre d u tíve l-
mente m ental e, portanto, não sujeita a tratamento cientí­
fico , mas pode ser que a consciência não tenha m uita
im portância, de qualquer maneira, e possamos sobreviver
sem ela. Precisamos apenas naturalizar a intencionalida-
de, sendo que “ naturalizar a Íntencionalidade” sig n ifica
explicá-la totalm ente em termos de - reduzi-la a - fenô­
menos físicos, não-mentais. O funcionalism o fo i uma
dessas tentativas de naturalizar o conteúdo intencional, e
tem sido revitalizado através de sua associação a teorias
causais extem alistas de referência. A idéia por trás de
tais concepções é a de que o conteúdo semântico, isto é,
os significados, não podem estar inteiram ente nas nossas
cabeças porque o que há em nossas cabeças é insuficien­
te para determ inar como a linguagem se relaciona com a
realidade. A lé m do que há em nossas cabeças, o “ conteú­
do restrito” , precisamos de um conjunto de relações cau­
sais físicas reais com os objetos do m undo, precisamos
do “ conteúdo am plo” . Estas concepções foram o rig in a l­
mente desenvolvidas em tom o de questões de filo s o fia
da linguagem (Putnam, 1975b), mas é fá c il ver como se
estendem a conteúdos mentais em geral. Se o significado
da sentença “ a água é úm ida” não pode ser explicado em
termos do que está dentro das cabeças daqueles que falam
o português, então a crença de que a água é úm ida tam ­
bém não é, exclusivamente, uma questão daquilo que está
em suas cabeças. Idealmente, seria preferível uma e x p li­
cação do conteúdo intencional form ulada exclusivamente
em termos de relações causais entre pessoas, por um lado,
e objetos e estados de coisas no mundo, por outro.
76 A REDESCOBERTA DA MENTE

U m adversário da tentativa causal extem alista de


naturalizar o conteúdo, e, acredito, uma explicação ainda
menos plausível, é a idéia de que os conteúdos intencio­
nais podem ser individualizados por sua função teleoló-
gica, biológica, darw iniana. Por exem plo, meus desejos
terão um conteúdo com referência a água ou alim ento se
trabalharem para ajudar-m e a obter água ou alim ento
(M illik a n , 1984).
A té aqui, nenhuma tentativa de naturalizar o conteú­
do produziu uma explicação (análise, redução) do con­
teúdo intencional que seja mesmo remotamente plausí­
vel. Considere a mais sim ples espécie de crença. Por
exem plo, acredito que Flaubert fo i um rom ancista m e­
lh o r que Balzac. Ora, com que se pareceria uma análise
daquele conteúdo, form ulada em termos de causação f í ­
sica bruta ou da seleção natural darw iniana, sem usar
nenhum term o mental? Não deveria ser surpresa para
ninguém o fato de que essas tentativas sequer chegaram
a ser postas em ação.
M ais uma vez, tais concepções naturalizadas do
conteúdo estão sujeitas tanto a objeções técnicas quanto
a objeções de senso comum. O mais famoso dos proble­
mas técnicos talvez seja a questão da disjunção (Fodor,
1987). Se um determ inado conceito é causado por uma
determinada espécie de objeto, então como explicam os
os casos de identidade equivocada? Se “ cavalo” é causado
por cavalos ou por vacas que sejam erroneamente id e n ti­
ficadas como cavalos, então teremos que afirm ar que a
análise de “ cavalo” é d isjuntiva, que sign ifica ou cavalo
ou determinadas espécies de vacas?
A HISTORIA RECENTE DO MATERIALISMO 11

Enquanto escrevo isto, explicações naturalísticas


(extem alistas, causais) do conteúdo estão em plena voga.
Todas elas fracassarão por razões que, espero, agora
sejam óbvias. Deixarão de lado a subjetividade do con­
teúdo m ental. Por m eio de objeções técnicas haverá con-
tra-exem plos, como os casos de disjunção, e os contra-
exemplos serão recebidos com a rtifício s - relações no-
m ológicas e contrafactuais, ou coisa que o valha, eu i.
poderia predizer - mas o m áxim o que você poderia espe­
rar dos a rtifício s, mesmo que fossem bem-sucedidos em
bloquear os contra-exem plos, seria um paralelism o entre
o resultado do a rtifício e intuições sobre o conteúdo men­
tal. A inda assim, você não a ting iria a essência do conteú­
do mental.
Não sei se alguém já form ulou a óbvia objeção de
senso comum ao projeto de naturalizar o conteúdo inten­
cional, mas, a p a rtir da discussão toda, espero que fique
claro qual será ela. N o caso de ninguém ter ainda form u­
lado esta objeção, aqui va i ela: qualquer tentativa de
reduzir a intencionalidade a algo não-mental sempre fra ­
cassará por deixar de lado a intencionalidade. Suponha,
por exem plo, que você concebeu uma perfeita explica­
ção extem alista causai da crença de que a água é úmida.
Esta explicação é dada pela exposição de um conjunto de
relações causais no qual um sistema representa a água e a
umidade, e essas relações são inteiram ente especificadas
sem nenhum componente m ental. O problem a é óbvio:
um sistema poderia ter todas essas relações e, ainda as­
sim, não a d m itir que a água é úmida. Esta é apenas uma
extensão do argumento da sala chinesa, mas a m oral para
a qual chama a atenção é geral: você não pode reduzir o
78 A REDESCOBERTA DA MENTE

conteúdo intencional (ou dores, ou qua lid ) a algo d ife ­


rente, porque, se pudesse, seriam uma outra coisa, e não
são uma outra coisa. O oposto do meu ponto de vista é
exposto m uito sucintamente por Fodor: “ Se a contigüida-
de é real, tem que ser realmente uma outra coisa” (1987,
p. 97). Pelo contrário, a contigüidade (i.e., inten cion ali-
dade) é real, e não é algo diferente.
Um sintoma de que algo está radicalmente errado com
o projeto é o fato de as noções intencionais serem ineren­
temente norm ativas. Elas estabelecem padrões de verda­
de, racionalidade, consistência etc., e não há form a de
esses padrões poderem ser intrínsecos a um sistema que
consista inteíram ente de relações causais não-intencio-
nais, cegas, brutas. Não há componente norm ativo para a
causação da bola de bilhar. As tentativas biológicas dar-
winianas de naturalizar o conteúdo tentam escapar a esse
problem a apelando para o que eles supõem seja o caráter
norm ativo e inerentemente teleológico da evolução b io ­
lógica. M as isto é u m ^ rro m uito grave. Não há nada de
norm ativo ou teleológico na evolução darwiniana. Na
verdade, a p rin cip a l contribuição de D arw in fo i precisa­
mente e lim in a r o propósito e a teleologia da evolução e
colocar em seu lugar form as de seleção puramente natu­
rais. A exposição de D arw in demonstra que a aparente
teleologia dos processos biológicos é uma ilusão.
É uma simples extensão desse discernim ento salien­
tar que noções como “ propósito” nunca são intrínsecas a
organismos biológicos (a não ser que, logicam ente, estes
próprios organismos tenham estados e processos in te n ­
cionais conscientes). E mesmo noções como “ função b io ­
lógica” são sempre tomadas relativas a um observador
A HISTÓRIA RECENTE DO MATERIALISMO 79

que a trib ui um va lo r norm ativo aos processos causais.


Não há diferença fa c tu a l no coração que corresponda à
diferença entre dizer:

1.0 coração causa o bombeamento do sangue.

e dizer:

2. A função do coração é bombear sangue.

Mas 2 a trib ui um status norm ativo aos fatos causais


puramente físicos do coração, e o faz por causa de nosso
interesse na relação desse fato com todos os outros fatos,
como nosso interesse na sobrevivência. E m resumo, os
mecanismos darw inianos e até mesmo as funções b io ló ­
gicas em si são inteiram ente desprovidos de propósito ou
teleologia. Todas as características teleológicas estão in ­
teiramente na mente do observador11.

IX. A m oral até aqui

Até aqui neste capítulo, meu objetivo fo i ilustrar um


padrão recorrente na história do m aterialism o. Esse pa­
drão assume form a gráfica na tabela 2.1. Tenho-me ocu­
pado menos com a defesa ou a refutação do m aterialism o
do que com o exame de suas vicissitudes diante de deter­
minados fatos de senso comum acerca da mente, como o
fato de que a m aioria de nós somos, na m aior parte de
nossas vidas, conscientes. O que encontramos na história
do m aterialism o é a tensão recorrente entre a ânsia de
apresentar uma explicação da realidade que deixe de
lado qualquer referência às características especiais do
dental, como consciência e subjetividade, e, ao mesmo
80 A REDESCOBERTA D A MENTE

tem po, e xp lica r nossas “ in tu içõ e s” sobre a mente. Sem


dúvid a, é im p o ssível fa zer essas duas coisas. Dessa fo r ­
ma, há um a série de tentativas, quase de caráter n e u ró ti­
co, de e nco brir o fa to de que algum elem ento c ru c ia l dos
estados m entais está sendo deixado de lado. E, quando se
salienta que algum a verdade ó b via está sendo reje itad a
pela filo s o fia m a te ria lista , os defensores dessa concep­
ção quase in va ria ve lm e n te lançam m ão de determ inadas
estratégias retóricas concebidas de m odo a dem onstrar
que o m aterialism o tem que estar correto, e que o filó s o ­
fo que faz objeções ao m ate ria lism o deve estar endossan­
do algum a versão de dualism o, m isticism o , do m is te rio ­
so ou de tendências a n ticie n tífica s em geral. M as a m o ti­
vação inconsciente para tudo isso, a m otivação que de
certa fo rm a nunca chega à superfície, é a hipótese de que
o m ate ria lism o é necessariam ente in co m p a tíve l com a
realidade e a eficácia causai da consciência, da s u b je tiv i­
dade etc. Isto é, a hipótese básica p o r trás do m a te ria lis ­
m o é fundam entalm ente a hipótese cartesiana de que m a­
te ria lism o im p lic a antim entalism o, e m entalism o im p lic a
antim aterialism o. *
H á algo profundam ente deprim ente nesta h istó ria to ­
da, porque, na verdade, parece com pletam ente sem senti­
do e desnecessária. E totalm ente fundam entada na falsa
suposição de que a concepção da realidade com o in te ira ­
m ente fís ic a é in co m p a tíve l com a concepção de que o
m undo realm ente contém estados conscientes subjetivos
(“ qualitativos” , “ privados” , “ sensíveis” , “ im ateriais” “ não-
físico s” ), com o pensam entos e sentim entos.
O aspecto sin g u la r de toda essa discussão é que o
m a te ria lism o herda a p io r suposição do dualism o. A o
a h is t o r ia r e c e n t e d o m a t e r ia l is m o 81

Tabela 2.1
O padrão geral exibido pelo m aterialism o recente.

Teoria Objeções de Objeções


senso comum técnicas

Behaviorismo Deixa de lado a mente: obje­ 1. Circular; necessita de de­


lógico ções do superespartano/supe- sejos para explicar crenças e
rator vice-versa
2. Não satisfaz as condições
hipotéticas
3. Deixa de lado a causação

Teoria de Deixa de lado a mente: ou en­ 1. Chauvinismo neurônico


identidade tipo tão leva ao dualismo de pro­ 2. Lei de Leibniz
priedades 3. Não explica as proprieda­
des mentais
4. Argumentos modais

Teoria Deixa de lado a mente: au­ Não identifica as caracterís­


de identidade sência de qualia ticas mentais de conteúdo
ocorrência mental

Funcionalismo Deixa de lado a mente: au­ Relação entre estrutura e fun­


caixa-preta sência de qualia e inversão ção não é explicada
de espectro

IA forte Deixa de lado a mente: sala A cognição humana é não-


(funcionalismo chinesa representativa e portanto não-
da máquina computacional
de Turing)

Materialismo Nega a existência da mente: Defesa da psicologia po­


eliminativo injusto para com a psicolo­ pular
(rejeição da gia popular
psicologia
popular)

Naturalização da Deixa de lado a intenciona­ Problema da disjunção


intencionalidade lidade
82 A REDESCOBERTA DA MENTE

negar a asserção dualista de que há dois tipos de substân­


cias no m undo, ou ao negar a asserção do dualism o de
propriedades de que há duas espécies de propriedades no
mundo, o m aterialism o inadvertidam ente aceita as cate­
gorias e o vocabulário do dualism o. A ceita os termos nos
quais Descartes estabeleceu o debate. A ceita, em resu­
m o, a idéia de que o vocabulário do m ental e do físico,
do m aterial e do im aterial, da mente e do corpo é perfei-
tamente apropriado da form a como está definido. A ceita
a idéia de que, se acreditamos que existe consciencia, es­
tamos aceitando o dualism o. A q u ilo de que estou convic­
to - como fic a óbvio a p a rtir de toda essa discussão - é
que o vocabulario, e as categorias associadas, são a fonte
de nossas dificuldades filosó fica s m ais profundas. E n­
quanto usamos palavras como “ m aterialism o” , somos qua­
se invariavelm ente forçados a supor que elas sugerem
algo incom patível com o m entalism o ingênuo. Tenho in ­
sistido em que, neste caso, tanto a honra quanto o inte-
resse cabem no mesmo saco. A lguém pode ser um
“ m aterialista consumado” e, ao mesmo tempo, não negar
de nenhuma m aneira a existência de fenômenos mentais
(subjetivos, internos, intrínsecos, freqüentemente cons­
cientes). Entretanto, já que a form a como u tiliz o esses
termos está em absoluta oposição a mais de trezentos
anos de tradição filo s ó fic a , provavelm ente seria m elhor
abandonar todo esse vocabulário.
Se tivéssemos de descrever a mais profunda m otiva­
ção do m aterialism o, poderíamos dizer que é sim ples­
mente um h orro r à consciência. Mas deveria ser assim?
Por que deveriam os m aterialistas temer a consciência?
Por que os materialistas não admitem de bom grado a cons-
A HISTÓRIA RECENTE DO MATERIALISMO 83

ciência como simplesmente mais uma propriedade mate­


ria l entre outras? A lguns, de fato, como A rm strong e
Dennett, afirm am fazer isto. Mas fazem -no redefinindo
“ consciência” a fim de negar a característica central da
consciência, a saber, sua qualidade subjetiva. A razão
mais profunda para o medo da consciência é que a cons­
ciência tem a característica essencialmente apavorante
da subjetividade. Os m aterialistas são relutantes em acei­
tar essa característica porque acreditam que aceitar a
existência da consciência subjetiva seria incom patível
com sua concepção de como o m undo deve ser. M uitos
pensam que, dadas as descobertas das ciências físicas,
uma concepção da realidade que negue a existência da
subjetividade é a única que se possa ter. M ais uma vez,
como ocorre com a “ consciência” , uma maneira de
enfrentar efetivam ente o problema é re d e fin ir “ su b je tivi­
dade” de modo a que não mais signifique subjetividade,
mas algo objetivo (por exemplo, ver Lycan, 1990a).
A credito que tudo isso eqüivalha a um erro m uito
grande, e nos capítulos 4, 5 e 6 exam inarei, algo detalha­
damente, o caráter e o status ontológico da consciência.

X. Os ídolos da trib o

A firm e i anteriorm ente, neste capítulo, que explica­


ria por que uma determinada pergunta que soava natural
era na verdade incoerente. A pergunta é: como partículas
não-inteligentes de m atéria produzem inteligência? D e­
veríamos prim eiram ente observar a form a da pergunta.
Por que não fazemos a pergunta mais tradicional: como
84 A REDESCOBERTA DA MENTE

partículas inconscientes de m atéria produzem consciên­


cia? Esta questão parece-me perfeitam ente coerente. É
uma pergunta sobre como o cérebro trabalha para causar
estados mentais conscientes mesmo que os neurônios
individuais (ou sinapses ou receptores) no cérebro não
sejam eles mesmos conscientes. N o período atual, po­
rém, relutam os em fazer a pergunta dessa form a porque
não temos critérios “ objetivos” de consciência. A cons­
ciência tem uma ontologia subjetiva não-suprim ível, e
assim consideramos mais cie n tífico reform ular a pergun­
ta como se ela fosse sobre a inteligência, porque acha­
mos que para a inteligência temos critérios impessoais,
objetivos. Mas então deparamos imediatamente com uma
dificuldade. Se, p or “ inteligência” , queremos dizer qual­
quer coisa que satisfaça o critério de inteligência objetivo,
de terceira pessoa, então a pergunta contém uma pressu­
posição falsa. Porque, se a inteligência fo r definida beha-
vioristicam ente, então simplesmente não é o caso de os
neurônios não serem inteligentes. Os neurônios, como
quase tudo o mais no m undo, comportam-se dentro de
determinados padrões regulares e previsíveis. A lé m do
mais, considerados sob determ inado ângulo, os neurô­
nios executam um “ processamento de inform ações” ex­
tremamente sofisticado. Eles assim ilam um rico conjun­
to de sinais de outros neurônios nas suas sinapses dendrí-
ticas; processam essas informações em seus organismos*
e enviam inform ações através de suas sinapses axonais

* No original, somae (pl. de soma). O termo remete a todas as


partes componentes de um organismo, com exceção das células ger­
minativas. (N. do R.)
A HISTORIA RECENTE DO MATERIALISMO 85

para outros neurônios. Se a inteligência deve ser definida


behavioristicam ente, então os neurônios são suficiente­
mente inteligentes pelos padrões de qualquer pessoa. Em
resumo, se nossos critérios de inteligência são in te ira ­
mente objetivos e de terceira pessoa - e todo o problema
de fazer a pergunta dessa form a era arranjar algo que
satisfizesse essas condições então a pergunta contém
uma pressuposição que em seus próprios termos é falsa.
A pergunta pressupõe falsamente que as partículas não
satisfazem os critérios de inteligência.
A resposta à pergunta, não surpreendentemente,
herda a mesma ambigüidade. Há dois conjuntos diferen­
tes de critérios para aplicar à expressão “ comportamento
inteligente” . U m desses conjuntos consiste em critérios de
terceira pessoa, ou “ objetivos” , que não são necessaria­
mente de nenhum interesse psicológico. Mas o outro con­
junto de critérios é essencialmente mental, e envolve o
ponto de vista de prim eira pessoa. No segundo conjunto
de critérios, “ comportamento inteligente” envolve raciocí­
nio, e o raciocínio é essencialmente um processo mental.
Ora, se adotarmos os critérios de terceira pessoa para o
comportamento inteligente, então logicamente os compu­
tadores - para não m encionar calculadoras de bolso, car­
ros, escavadeiras mecânicas, termostatos e, na verdade,
praticamente tudo no mundo - enquadram-se no com por­
tamento inteligente. Se somos coerentes na adoção do
teste de Turing ou de algum outro critério “ objetivo” para o
comportamento inteligente, então as respostas a questões
como: “ Podem partículas não-inteligentes de matéria pro­
duzir comportamento inteligente?” , e mesmo: “ Como, exa­
tamente, elas fazem isto?” , são ridiculamente óbvias. Q ual-
86 A REDESCOBERTA DA MENTE

quer termostato, calculadora de bolso ou queda-d’água


produz “ comportamento inteligente” , e sabemos, em cada
caso, como isto funciona. Certos artefatos são projetados
para comportar-se como se fossem inteligentes, e, já que
tudo segue as leis da natureza, então tudo pertencerá a al­
guma classe na qual se comporta como se fosse inteligen­
te. Contudo, este sentido de “ comportamento inteligente”
não tem relevância psicológica alguma.
Em resumo, tendemos a perceber tanto a pergunta
quanto a resposta como que oscilando entre dois pólos
diferentes: (a) como partículas inconscientes de matéria
produzem consciência? (uma pergunta perfeitamente ade­
quada cuja resposta é: em virtude de características neu-
robiológicas específicas - embora amplamente desconhe­
cidas - do cérebro); e (b) como partículas “ não-inteligen-
tes” (pelos critérios de prim eira ou terceira pessoa?) de
matéria produzem comportamento “ inteligente” (pelos c ri­
térios de prim eira ou terceira pessoa?)? Mas, na medida
em que fixam os como critérios de inteligência os critérios
de terceira pessoa, a pergünta contém uma pressuposição
falsa, e isto está oculto para nós porque tendemos a apreen­
der a pergunta de acordo com a interpretação (a).
a p ê n d ic e

HÁ ALG U M PROBLEMA COM


A PSICOLOGIA POPULAR?

O objetivo do capítulo 2 não era tanto apresentar m i­


nhas próprias concepções, mas descrever a h istória con­
temporânea de uma tradição filosófica. Quero agora expor
algumas de minhas próprias concepções sobre a chama­
da Psicologia Popular (PP), porque não creio que tenham
sido apresentadas na literatura até aqui. As discussões
clássicas, tanto pró quanto contra (Churchland, 1981;
Stich, 1983; Horgan e W oodward, 1985; e Fodor 1986),
têm ocorrido dentro da tradição.
Enunciarei a argumentação passo a passo, através de
uma série de teses e contestações.

Tese: A PP é uma tese em pírica como qualquer outra, e,


como tal, está sujeita a confirm ação ou não-confirm ação
empírica.

Contestação: As capacidades efetivas que as pessoas têm


para enfrentar a si mesmas e a outras não estão, na m aior
parte, em form a proposicional. São, na m inha opinião,
88 A REDESCOBERTA DA MENTE

capacidades de Background. Por exemplo, o modo como


reagimos a expressões faciais, o que consideramos natural
no comportamento e, até mesmo, como entendemos expres­
sões vocais são em grande parte questões de experiência,
não teorias. Você deturpa essas capacidades se pensa nelas
como teorias. Ver, no capítulo 8, mais sobre isto.

Tese: Mesmo assim, você poderia enunciar correlativos


ou princípios teóricos subjacentes a essas capacidades.
Isto constituiria uma psicologia popular e será falso, com
toda probabilidade, já que as teorias populares são geral­
mente falsas.

Contestação: Você pode, com alguma distorção, form ular


um analogismo teórico para uma habilidade prática. Mas
seria assombroso se estes fossem falsos em termos gerais.
N aquilo que realmente im porta, onde há algo em jogo, as
teorias populares têm que ser em geral verdadeiras, ou não
teríamos sobrevivido. A física popular pode estar errada
em questões periféricas, como o movimento dos corpos ce­
lestes e a origem do mundo, porque isto não im porta muito.
Mas, quando o caso é de que maneira seu corpo se move se
você pula de um penhasco, ou o que acontece se uma enor­
me pedra cai sobre você, conviria que as teorias populares
estivessem corretas, ou não teríamos sobrevivido.

Tese: Então, toma-se uma questão específica da ciência


cognitiva (CC) decidir quais teses da PP são verdadeiras,
e quais de seus compromissos ontológicos são ju s tific a ­
dos. Por exem plo, a PP postula crenças e desejos para
explicar o comportamento, mas, se resulta que a explica­
ção da CC para o com portam ento é incom patível com
isto, então crenças e desejos não existem.
A h is t ó r ia r e c e n t e d o m a t e r ia l is m o 89

C o n te s ta ç ã o : Praticamente tudo está errado nessa asser­


ção. Prim eiram ente, não p o s tu la m o s crenças e desejos
para explicar nada. Apenas experimentamos crenças e
desejos conscientes. Considere os exemplos da vida real.
O dia está quente, e você está dirigin do uma caminhone­
te p ic k u p no deserto próxim o a Phoenix. Sem ar-condi-
cionado. Você não se lem bra de quando esteve com tanta
sede, e deseja tão ardentemente uma cerveja gelada que
poderia gritar. Ora, onde está a “ postulação” de um desejo?
Desejos conscientes são experimentados. Não são postu­
lados mais do que dores conscientes.
Em segundo lugar, crenças e desejos algumas vezes
causam ações, mas não há nenhuma ligação essencial. A
m aioria das crenças e desejos nunca resulta em ações.
Por exem plo, creio que o Sol está a 149,5 m ilhões de
quilôm etros de distância, e gostaria de ser um b ilio n á rio .
Quais de minhas ações esta crença e este desejo e x p li­
cam? Que se eu quiser com prar uma passagem para o Sol
estarei certo de adquirir uma passagem de 149,5 m ilhões
de quilôm etros? Que, na próxim a vez que alguém me der
um bilhão, não o recusarei?

Tese: Mesmo assim, postuladas ou não, é im provável que


haja uma redução branda das entidades da PP à ciência
mais básica da neurobiologia; assim, parece que a e lim i­
nação é a única alternativa.

Contestação: Já a firm e i o quão ruim é esse argumento.


Em sua m aior parte, os tipos de entidades reais, desde
casas de campo de vários pisos a reuniões sociais, de taxas
de juros a jogos de futebol, não sofrem uma redução
branda às entidades de qualquer teoria fundam ental. Por
90 A REDESCOBERTA DA MENTE

que deveriam? Im agino que tenho uma “ teoria” das reu­


niões sociais - pelo menos tanto quanto tenho uma teoria
de “ psicologia popular” - e as reuniões sociais segura­
mente consistem em m ovim entos de moléculas; mas m i­
nha teoria das reuniões sociais não é, nem de longe, uma
teoria tão boa quanto m inha teoria de física molecular, e
não há nenhuma redução de tipo de reuniões sociais à ta­
xonomía da física. Ainda assim, porém, as reuniões sociais
realmente existem. A questão da redutibilidade de tais en­
tidades é irrelevante para a questão de sua existência.
Por que alguém com eteria um erro tão flagrante?
Isto é, por que alguém suporia que a “ redução branda” de
crenças e desejos à neurobiologia é mesmo relevante
para a existência de crenças e desejos? A resposta é que
eles estão traçando uma analogia falsa com a história de
certas divisões da física. Churchland acredita que, na
teoria da psicologia popular, “ crença” e “ desejo” têm o
mesmo status que “ flo g is to ” e “ flu id o ca lórico” tinham
na física. Mas a analogia sucumbe de todas as maneiras:
crenças e desejos, ao contrário de flo gisto e flu id o ca ló ri­
co, não foram postulados como parte de alguma teoria
especial; foram efetivam ente experimentados como parte
de nossa vida m ental. Sua existência não é mais subordi­
nada à teoria do que o é a existência de casas de campo,
reuniões sociais, jogos de fu te bo l, taxas de juros ou me­
sas e cadeiras. Sempre podemos expor nossas crenças de
senso comum sobre coisas em form a de uma “ teoria” , mas
a existência dos fenômenos é anterior à teoria. M ais uma
vez, sempre pense em casos reais. M inha teoria sobre
reuniões sociais abrangeria coisas como o fato de que
grandes reuniões sociais talvez sejam mais barulhentas
A HISTÓRIA r e c e n t e d o m a t e r ia l is m o 91

que as pequenas, e m inha teoria de casas de campo in ­


clu iria a asserção de que elas tendem a propagar-se mais
do que a m aioria dos outros tipos de casas. Tais “ teorias”
são sem dúvida irrem ediavelm ente inadequadas, e as en­
tidades não sofrem redução branda à física, onde tenho
teorias m uito melhores para descrever os mesmos fenô­
menos. Mas o que tudo isso tem a ver com a existência
de casas de campo de vários pisos? Nada. De m odo se­
melhante, a inadequabilidade da psicologia de senso co­
mum e o fracasso da taxonom ía de senso comum em
igualar a taxonom ía da ciência do cérebro (isto é o que
significa o fracasso da “ redução branda” ) não têm nada a
ver com a existência de crenças e desejos. Num a palavra,
as crenças e casas de campo de vários pisos são to ta l­
mente diferentes do flo g isto porque sua ontologia não é
dependente da veracidade de uma teoria especial, e sua
írredutibilidade a uma ciência mais básica é irrelevante
para sua existência.

Tese: Sim , mas o que você está dizendo incorre em p e ti­


ção de princípio. Você está apenas dizendo que crenças e
desejos, como reuniões sociais e casas de campo de vá­
rios pisos, não são entidades teóricas - sua base com pro­
batoria não provém de alguma teoria. Mas não é este,
precisamente, um dos pontos em debate?

Contestação: Considero óbvio que crenças e desejos são


experimentados como tais, e que não são seguramente
postulados” para explicar o comportamento, porque não
sao postulados de modo algum . Entretanto, mesmo as
entidades teóricas” em geral não obtêm sua le g itim id a ­
de a p a rtir da redutibilidade. Considere a economia. Ta-
92 A REDESCOBERTA DA M ENTE

xas de juros, demanda efetiva, tendência m arginal ao con­


sumo - tudo isso é m encionado na economia m atem áti­
ca. Mas nenhum dos tipos de entidades em questão sofre
uma redução branda à física ou à neurobiologia, por
exemplo. Uma vez mais, por que deveriam?
De qualquer maneira, a redutibilidade é uma exigên­
cia incom preensível para a ontologia, pois classicamente
uma form a de dem onstrar que uma entidade realmente
não existe tem sido reduzi-la a algo diferente. Assim ,
pores-do-sol são redutíveis a m ovim entos planetários no
sistema solar, os quais demonstraram que, como tra d icio ­
nalm ente concebidos, os pores-do-sol não existem . A
impressão de o sol estar se pondo é causada por algo
diferente, isto é, a rotação da Terra relativam ente ao Sol.

Tese: Contudo, é possível relacionar bastantes a firm a­


ções da psicologia popular e ve rifica r que m uitas delas
são duvidosas.

Contestação: Se você observar as listas efetivam ente


apresentadas, verá qüe algo suspeito está acontecendo.
Se eu fosse lis ta r algumas proposições da PP, arrolaria
coisas como:

1. Em geral, crenças podem ser ou verdadeiras ou


falsas.
2. Às vezes as pessoas ficam com fome, e, quando
estão com fome, freqüentemente querem comer algo.
3. As dores são muitas vezes desagradáveis. Por esta
razão, as pessoas freqüentemente tentam evitá-las.

É d ifíc il im aginar que tip o de comprovação em píri­


ca poderia refutar essas proposições. A razão é que, numa
A HISTORIA RECENTE DO MATERIALISMO 93

interpretação natural, elas não são hipóteses empíricas,


ou não meramente hipóteses empíricas. Assemelham-se
mais a princípios constitutivos dos fenômenos em ques­
tão. A proposição 1, por exemplo, é mais parecida com a
“ hipótese” de que um touchdow n* no futebol americano
conta seis pontos. Se alguém lhe disser que um estudo
científico provou que os touchdowns efetivam ente valem
só 5,999999999 pontos, você não terá dúvida de que esse
alguém está gravemente confuso. E parte da corrente
definição do touchdown que ele vale seis pontos. Po­
demos alterar a definição, mas não descobrir um fato d i­
ferente. Da mesma maneira, é parte da definição de
“ crença” que as crenças são candidatas à verdade ou fa l­
sidade. Não poderíamos “ descobrir” que crenças não são
suscetíveis de ser verdadeiras ou falsas.
Se você observar listas de candidatos que têm sido
apresentadas como “ le is” da PP, notará que ou tendem a
ser obviamente falsas ao prim eiro olhar, ou são p rin c í­
pios constitutivos. Por exem plo, Churchland (1981) rela­
ciona o princípio de que, “ salvo confusão, distração etc.” ,
quem quer que acredite que p , e se p então q , acredita
que q (Lycan, 1990b, p. 209). Como um candidato a uma
crença de senso comum, isto é literalm ente inacreditável.
Se fosse verdadeiro, então demonstrar teoremas não
seria mais d ifíc il do que exam inar as crenças de alguém
(sem “ confusão, distração etc.” ). É m uito fá c il refutar a
PP se você afirm a, de saída, que ela consiste em tais
princípios falsos.

* Lance em que a bola é lançada ao solo atrás


time adversário. (N. do R.)
94 A REDESCOBERTA DA MENTE

U m candidato a um princípio constitutivo é o exem­


p lo de Churchland de que qualquer um que tem medo de
p deseja que o caso seja de que não p . Como você procu­
raria comprovações em píricas de que isto é falso? Isto é
parte da definição de “ medo” . Assim , o erro mais grave
não é somente supor que a PP seja uma teoria, mas que
todas as proposições da teoria sejam hipóteses empíricas.
Já que são constitutivas, não em píricas, a única
m aneira de dem onstrar que são falsas seria m ostrar que
elas não têm campo de aplicação. Por exem plo, os “ p rin ­
cípios constitutivos” da fe itiç a ria não se aplicam a nada
porque não existe fe itice ira alguma. Mas você não pode­
ria demonstrar que os desejos e as dores conscientes não
existem da mesma maneira como pode m ostrar que as
feiticeiras não existem , porque os prim eiros são expe­
riências conscientes, e você não pode fazer a distinção
usual entre realidade e aparência no caso de experiências
conscientes (mais sobre isto no capítulo 3).
M uitas crenças psicológicas de senso com um já
tiveram sua falsidade demonstrada e, sem dúvida, o
mesmo acontecerá com outras. Considere um exem plo
espetacular: o bom senso nos d iz que nossas dores estão
localizadas no espaço físico dentro de nossos corpos,
que, por exemplo, uma dor no pé está literalm ente dentro
da área do pé. Mas agora sabemos que isto é falso. O
cérebro form a uma imagem do corpo, e as dores, como
todas as sensações corporais, são partes da imagem do
corpo. A dor no pé está literalm ente no espaço físico do cé­
rebro.
Dessa form a, o bom senso estava redondamente en­
ganado em relação a alguns aspectos da localização de
A HISTÓRIA RECENTE DO MATERIALISMO 95

dores no espaço físico. Contudo, mesmo um erro tão gra­


ve não demonstra - e não poderia demonstrar - que as dores
não existem. O que é provável que realmente ocorra, e na
verdade está ocorrendo, é que o senso comum será com ­
plementado pelo conhecim ento cie n tífico adicional. Por
exemplo, hoje reconhecemos distinções entre memórias
a longo e a curto prazo, e entre estas e memórias icô n i-
cas, e essas distinções são o resultado de pesquisas neu-
robiológicas.
CAPÍTULO 3
ROMPENDO O DOMÍNIO: CÉREBROS
DE SILICIO, ROBÔS CONSCIENTES
E OUTRAS MENTES

A visão do mundo como completamente objetivo tem


um domínio m uito poderoso sobre nós, embora seja
incompatível com os fatos mais óbvios de nossas expe­
riências. Como o quadro é falso, temos que ser capazes
de romper o domínio. Não conheço nenhuma maneira
fácil de fazer isto. Um dos muitos objetivos deste livro ,
entretanto, é começar a tarefa. Neste capítulo, quero des­
crever alguns experimentos de pensamento que irão
desafiar a exatidão do quadro. Inicialm ente, o objetivo
dos experimentos de pensamento é contestar a concep­
ção de que o mental tem alguma ligação interna importan­
te com o comportamento.
Para começar a m inar as bases de toda essa forma de
raciocínio, quero examinar algumas das relações entre
consciência, comportamento e cérebro. A m aior parte da
discussão envolverá fenômenos mentais conscientes;
contudo, deixar de lado o inconsciente neste ponto não é
uma lim itação tão grande, porque, como demonstrarei
detalhadamente no capítulo 7, não temos nenhuma noção
98 A REDESCOBERTA DA MENTE

de um estado m ental inconsciente, a não ser em termos


derivados de estados conscientes. Para começar a argu­
mentação, empregarei um experim ento de pensamento
que u tiliz e i alhures (Searle, 1982). Este Gedankenexperi-
ment é uma velha anedota digna de nota na filo s o fia , e
não sei quem fo i o p rim eiro a usá-lo. Tenho-o u tiliza do
em conferências já há vários anos, e suponho que a qual­
quer um que re flita sobre esses tópicos por certo ocorre­
rá, eventualmente, algo de parecido com essas idéias.

/. Cérebros de silício

Eis aqui como se desenvolve o Gedankenexperiment.


Im agine que seu cérebro comece a degenerar-se de tal
form a que, aos poucos, você va i ficando cego. Im agine
que os médicos, desesperados, ansiosos por a liv ia r seu
sofrim ento, experim entem qualquer método para recupe­
rar sua visão. Como ú ltim o recurso, tentam im plantar
circuitos integrados de s ilíc io dentro de seu córtex
visual. Suponha que, para seu assombro e também deles,
os circuitos integrados de s ilíc io devolvam sua visão a
seu estado normal. Agora imagine que, para sua m aior
depressão, seu cérebro continue a degenerar-se, e que os
médicos continuem a im plantar mais circuitos integrados
de silício. Você já pode perceber aonde o experim ento de
pensamento vai dar: no fin a l, podemos im aginar que seu
cérebro estará inteiram ente substituído por circuitos inte­
grados de silício; que, ao balançar a cabeça, você poderá
o u vir os circuitos integrados chocalhando por todos os
lados dentro de seu crânio. Em ta l situação, haveria
ROMPENDO O D O M ÍN IO : CÉREBROS DE SILÍCIO 99

diversas possibilidades. U m a possibilidade lógica, que


não deve ser excluída com base apenas em quaisquer
premissas a p r io r i, é seguramente esta: você continua a
ter todas as classes de pensamentos, experiências, lem ­
branças etc. que tinha anteriorm ente; a seqüência de sua
vida m ental mantém-se inalterada. Neste caso, estamos
supondo que os circuitos integrados de s ilíc io têm o
poder não somente de reproduzir suas funções de input e
output, mas também de reproduzir os fenômenos m en­
tais, conscientes ou não, que são normalmente responsá­
veis por suas funções de input e output.
Apresso-me a acrescentar que não penso de modo
algum que ta l fato seja nem sequer remotamente possível
na prática. Considero em piricam ente absurdo supor que
pudéssemos reproduzir inteiram ente as capacidades cau­
sais de neurônios em silício . Mas esta é uma asserção
empírica de m inha parte. Não se trata de algo que pudés­
semos estabelecer a p rio ri. Assim , o experim ento de
pensamento permanece vá lid o como um enunciado de
possibilidade lógica ou conceituai.
Mas agora im aginem os algumas variações no expe­
rim ento de pensamento. Um a segunda possibilidade, que
também não deve ser excluída sob premissa alguma a
p rio ri, é esta: à m edida que o s ilício é progressivamente
im plantado dentro de seu cérebro em degeneração, você
nota que a área de sua experiência consciente está se
reduzindo, mas que isso não apresenta nenhum efeito em
seu comportamento exterior. Você percebe, para seu com ­
pleto espanto, que está realmente perdendo o controle de
seu comportamento exterior. Nota, por exemplo, que, quan­
do os médicos testam sua visão, ouve-os dizer: “ Estamos
100 A REDESCOBERTA DA MENTE

exibindo um objeto verm elho na sua frente; por favor,


diga-nos o que vê.” Você quer gritar: “ Não enxergo nada.
Estou ficando totalm ente cego” , mas ouve sua voz dizer,
de uma maneira que lhe foge completamente ao controle:
“ Vejo um objeto verm elho na m inha frente.” Se leva r­
mos este experim ento de pensamento ao extrem o, obte­
remos um resultado m uito mais deprim ente do que o do
p rim eiro . Você im agina que sua experiência consciente
se reduz lentamente a nada, enquanto seu comportamen­
to externamente observável permanece o mesmo.
Nesses experim entos de pensamento, é im portante
que você sempre os considere a p a rtir do ponto de vista
de prim eira pessoa. Pergunte a você mesmo: “ Como isto
seria se estivesse acontecendo com igo?” , e verá que,
para você, é perfeitam ente concebível im aginar que seu
com portam ento e xterior permanece o mesmo, mas que
seus processos conscientes internos de raciocínio gra­
dualmente se reduzem a zero. Do lado de fora, parece
aos observadores que você está absolutamente bem, mas
por dentro você está m orrendo aos poucos. Neste caso,
estamos im aginando uma situação em que você acaba
ficando m entalm ente m orto, em que você não tem ne­
nhum tip o de vida m ental consciente, mas seu comporta­
mento externamente observável permanece o mesmo.
Nesse experim ento de pensamento, também é
im portante lem brar nossa estipulação de que você está se
tom ando inconsciente, mas que seu comportamento se
mantém inalterado. Àqueles que estão desorientados
sobre como ta l coisa é possível, perm itam -nos sim ples­
mente lem brar: até onde sabemos, a base da consciência
está em determinadas regiões específicas do cérebro,
ROMPENDO O D O M IN IO : CEREBROS D E S ILIC IO ¿ ¿j

como, talvez, a form ação reticular. E podemos s


neste caso, que essas regiões estejam se deteriorando aos
poucos, a ponto de não haver consciência no sistema. Mas
suponhamos, além disso, que os circuitos integrados de
silício sejam capazes de reproduzir as funções de input e
output de todo o sistema nervoso central, mesmo que não
haja consciência remanescente no que sobrou do sistema.
Agora, considere uma terceira variação. Neste caso,
imaginamos que a progressiva im plantação dos circuitos
integrados de s ilíc io não produz nenhuma alteração em
sua vida m ental, mas você está cada vez mais incapaz de
colocar em ação seus pensamentos, sentimentos e inten­
ções. Neste caso, im aginam os que seus pensamentos,
sentimentos, experiências, lembranças etc. permanecem
intactos, mas seu com portam ento e xterior observável
lentamente se reduz à total paralisia. Conseqüentemente,
você padece de paralisia total, mesmo que sua vida men­
tal esteja inalterada. Assim , neste caso, é possível que
você ouvisse os médicos dizendo:

Os circuitos integrados de silício são capazes de man­


ter a batida do coração, a respiração e outros processos
vitais, mas o paciente está obviamente com morte cere­
bral. Podíamos muito bem desligar o sistema, porque o
paciente não tem mesmo vida mental.

Então, neste caso, você saberia que eles estão totalm ente
enganados. Isto é, você quer berrar:

Não, estou ainda consciente] Percebo tudo o que


acontece ao meu redor. Apenas não consigo fazer ne­
nhum movimento físico. Fiquei totalmente paralisado.
102 A REDESCOBERTA DA MENTE

A finalidade dessas três variações do experim ento


de pensamento é ilu stra r as relações causais entre pro­
cessos cerebrais, processos mentais e comportamento
externamente observável. N o prim eiro caso, supusemos
que os circuitos integrados de silício tinham capacidades
causais equivalentes às capacidades do cérebro, e assim
imaginamos que eles causaram tanto os estados mentais
quanto o comportamento que os processos cerebrais nor­
malmente provocam . Em circunstâncias norm ais, tais
estados mentais m ediavam o relacionam ento entre os
estímulos de input e o comportamento de output.
N o segundo caso, imaginamos que a relação media­
dora entre a mente e os padrões de comportamento estava
rom pida. Neste caso, os circuitos integrados de silício
não reproduziam as capacidades causais do cérebro de
modo a produzir estados mentais conscientes, mas ape­
nas reproduziam determinadas funções de input e output
do cérebro. A vida m ental consciente fundam ental fo i
suprimida.
N o terceiro caso, supusemos uma situação em que o
agente tinha a mesma vida m ental de antes, mas, neste
caso, os fenômenos mentais não tinham expressão com-
portam ental. Na verdade, para conceber este caso não
precisaríamos nem sequer ter im aginado os circuitos
integrados de silício . Teria sido m uito fá c il im aginar uma
pessoa com os nervos motores cortados de tal maneira
que ficasse totalm ente paralisada, enquanto a consciên­
cia e outros fenômenos mentais permaneceriam inaltera­
dos. A lg o parecido com isto existe na realidade clínica.
Pacientes que sofrem da síndrome de G u illa in -B a rré f i ­
cam completamente paralisados, mas, ao mesmo tempo,
totalm ente conscientes.
ROMPENDO O D O M ÍN IO : CÉREBROS DE SILÍCIO 103

Qual é o significado filo s ó fic o desses três experi­


mentos de pensamento? Parece-me que há m uitas lições
a serem aprendidas. A mais im portante é que eles ilu s ­
tram algo sobre a relação entre mente e comportamento.
Qual é, exatamente, a im portância do com portam ento
para o conceito de mente? Ontologicamente falando, com­
portam ento, papel fu n c io n a l e relações causais são irre ­
levantes p a ra a existência de fenômenos mentais cons­
cientes. Epistemicamente, de fato aprendemos acerca dos
estados mentais conscientes de outras pessoas, e o faze­
mos em p arte a p a rtir de seu comportamento. C ausal­
mente, a consciência serve para m ediar as relações cau­
sais entre os estím ulos de input e o com portam ento de
output; e, a p a rtir de um ponto de vista evolutivo, a mente
consciente opera causalmente para controlar o com porta­
mento. O ntologicam ente falando, porém, os fenômenos
em questão podem e xistir por completo e ter todas as suas
propriedades essenciais, independentemente de qualquer
resposta comportamental.
A m aioria dos filósofos que tenho criticado aceitaria
as duas proposições seguintes:

1. Os cérebros causam fenômenos mentais conscientes.


2. Há alguma espécie de conexão conceituai ou lógi­
ca entre os fenômenos mentais conscientes e o comporta­
mento exterior.

Mas o que os experimentos de pensamento ilustram


e que essas duas proposições não se sustentam consisten­
temente frente a uma terceira:
104 A REDESCOBERTA DA MENTE

3. A capacidade do cérebro de causar consciência é


conceitualmente distinta de sua capacidade de causar
comportamento motor. Um sistema poderia ter consciência
sem comportamento, e comportamento sem consciência.

Mas, dada a verdade de 1 e 3, temos de abandonar 2.


Assim , o prim eiro ponto a ser derivado de nossos experi­
mentos de pensamento é aquilo que poderíamos chamar
de “ princípio da independência de consciência e com por­
tam ento” . N a situação número dois, im aginam os a c ir­
cunstância na qual o com portam ento estava inalterado,
mas os estados mentais desapareciam; portanto, o com ­
portam ento não é uma condição suficiente para os fenô­
menos mentais. N a situação número três, supusemos a
circunstância na qual os fenômenos mentais estavam
presentes, mas o comportamento desaparecia; portanto, o
com portam ento também não é uma condição necessária
para a presença do mental.
D ois outros pontos são ilustrados pelos experim en­
tos de pensamento. P rim eiro, a ontologia do m ental é
essencialmente uma ontologia de prim eira pessoa. Esta é
apenas uma m aneira im aginosa de dizer que todo estado
m ental tem que ser um estado m ental de alguém . Os es­
tados mentais só existem como fenômenos subjetivos, de
prim eira pessoa. E o outro ponto relacionado a esse é
que, epistemicamente falando, o ponto de vista de prim ei­
ra pessoa é bastante diferente do ponto de vista de terceira
pessoa. E bastante fá c il im aginar casos, como aqueles
ilustrados pelos nossos experimentos de pensamento, em
que a p a rtir de um ponto de vista de terceira pessoa a l­
guém não fosse capaz de dizer se eu tive, afinal, quaisquer
ROMPENDO O D O M ÍN IO : CÉREBROS DE SILÍCIO 105

estados mentais. Esse alguém podia até pensar que eu


fosse inconsciente, e, ainda, podia dar-se o caso de que
eu fosse completamente consciente. A p a rtir do ponto de
vista de prim eira pessoa, não há dúvida de que sou cons­
ciente, mesmo que se confirmasse que os testes de tercei­
ra pessoa não fossem exeqüíveis.

II. Robôs conscientes

Quero apresentar um segundo experim ento de pen­


samento para reforçar as conclusões fornecidas pelo p ri­
meiro. O objetivo deste, como no caso do prim eiro, é usar
nossas intuições para tentar in d u zir uma separação entre
estados mentais e comportamento. Suponha que esteja­
mos projetando robôs para trabalhar numa linha de p ro ­
dução. Im agine que nossos robôs realmente sejam ru d i­
mentares demais e tendam a fazer uma trapalhada dos
elementos mais sutis de sua tarefa. Mas im agine que co­
nheçamos o suficiente sobre as características eletroquí-
micas da consciência humana para saber como produzir
robôs que tenham um n ível bastante baixo de consciên­
cia, e que, assim, possamos projetar e fabricar robôs cons­
cientes. Suponha, além disso, que esses robôs conscien­
tes sejam capazes de fazer discrim inações que robôs in ­
conscientes não poderiam fazer, e que, assim, façam um
trabalho m elhor na linha de produção. H á algo incoeren­
te acima? Tenho que dizer que, de acordo com minhas “ in ­
tuições” , está perfeitam ente coerente. É claro que se trata
de ficção cien tífica , mas então m uitos dos mais im por-
106 A REDESCOBERTA DA MENTE

tantes experimentos de pensamento na filo so fia e na ciên­


cia são precisamente ficção científica.
Mas agora im agine uma lam entável característica
adicional de nossos robôs conscientes: suponha que sejam
absolutamente desditosos. Urna vez mais, podemos supor
que nossa n eurofisiologia nos é suficiente para estabele­
cer que eles são extremamente infelizes. A gora im agine
que demos ao nosso grupo de pesquisa de robótica a
seguinte tarefa: projetar um robo que tenha a capacidade
de fazer as mesmas discrim inações que os robôs cons­
cientes, mas que sejam totalm ente inconscientes. Pode­
mos então deixar que os robôs infelizes se aposentem e
possam ter uma velhice mais hedonicamente satisfatória.
Isto parece-me um projeto de pesquisa bem definido; e
podemos supor que, operacionalm ente falando, nossos
cientistas tentem projetar um robô com um “ hardw are”
que eles saibam que não vai causar ou sustentar a cons­
ciência, mas que terá as mesmas funções de input e out­
p u t do robô que tem um “ hardw are” que efetivam ente
causa e sustenta a consciência. Podíamos então supor
que eles fossem bem-sucedidos, que construíssem um robô
que seja totalm ente inconsciente, mas que tenha faculda­
des comportamentais e aptidões absolutamente idênticas
àquelas do robô consciente.
O objetivo deste experim ento, como o dos anterio­
res, é m ostrar que, no que d iz respeito à ontologia da
consciência, o comportamento é simplesmente irrelevan­
te. Poderíamos te r comportamentos idênticos em dois
sistemas diferentes, um dos quais consciente, e o outro
totalm ente inconsciente.
ROMPENDO O D O M ÍN IO : CÉREBROS DE SILÍCIO 107

III. E m pirism o e o “problem a de outras mentes”

M uitos filó so fo s inclinados ao em pirism o ficarão


angustiados com esses dois experimentos de pensamen­
to, sobretudo com o prim eiro. Parecerá a eles que estou
afirm ando a existência de fatos em píricos nos estados
mentais de um sistema que não sejam verificá veis por
nenhum método em pírico. Sua concepção dos meios
empíricos para a verificação da existência de fatos men­
tais repousa inteiram ente na pressuposição de testemu­
nho com portam ental. A creditam eles que a única prova
que temos para a trib u ir estados mentais a outros sistemas
é o comportamento desses sistemas.
Nesta seção, quero dar continuidade à discussão do
problema de outras mentes que fo i iniciada no capítulo 1.
Parte de meu objetivo será mostrar que não há nada de
incoerente ou objetável nas implicações epistêmicas dos
dois experimentos de pensamento que acabei de descrever,
mas meu objetivo prim eiro será dar uma explicação do
fundamento “ em pírico” que temos para supor que outras
pessoas e animais superiores tenham fenômenos mentais
conscientes mais ou menos como os nossos próprios.
Vale a pena enfatizar, no in ício da discussão, que na
história da filo s o fia em pírica e da filo s o fia da mente há
uma ambigüidade sistemática no emprego da palavra “ em­
pírico” , uma ambigüidade entre um sentido ontológico e
um sentido epistêmico. Quando as pessoas falam de fatos
empíricos, algumas vezes querem dizer fatos reais, con­
tingentes do m undo, em oposição a, digamos, fatos da
matemática ou da lógica. Mas por vezes, quando as pes­
soas falam de fatos em píricos, querem dizer fatos que
108 A REDESCOBERTA DA MENTE

sejam verificáveis por métodos de terceira pessoa, isto é,


por “ fatos em píricos” e “ métodos em píricos” querem d i­
zer fatos e métodos que sejam acessíveis a todos os
observadores competentes. Então essa am bigüidade sis­
tem ática no emprego da palavra “ em pírico” sugere algo
que é certamente falso: que todos os fatos em píricos, no
sentido ontológico de serem fatos do m undo, são ig u a l­
mente acessíveis epistemicamente a todos os observado­
res competentes. Sabemos, de m odo independente, que
isto é falso. Há m uitos fatos em píricos que não são igual­
mente acessíveis a todos os observadores. Os parágrafos
anteriores forneceram -nos alguns experimentos de pen­
samento concebidos para m ostrar isso, mas efetivam ente
dispomos de dados em píricos que sugerem exatamente o
mesmo resultado.
Considere o exem plo seguinte1. Podemos, com algu­
ma dificuldade, im aginar como seria ser um pássaro voan­
do. D igo “ com alguma dificu lda d e ” porque, logicam en­
te, a tentação é sempre im aginar como seria p a ra nós se
estivéssemos voando, e não, estritamente falando, como é
para um pássaro estar voando. H oje, porém , algumas
pesquisas recentes nos dizem que há alguns pássaros que
navegam através da detecção do campo m agnético da
Terra. Suponhamos que, do mesmo modo como o pássa­
ro tem uma experiência consciente de bater suas asas ou
sentir o vento exercendo pressão em sua cabeça e seu
corpo, também tenha uma experiência consciente da sen­
sação do magnetismo oscilando através de seu corpo.
Ora, qual é a sensação de uma onda de magnetismo? Nes­
te caso, não tenho a m enor idéia do que seja esta sensa­
ção para um pássaro, ou, a propósito disso, do que seja
ROMPENDO O D O M ÍNIO : CÉREBROS DE SILÍCIO 109

para um ser humano sentir uma onda de magnetism o do


campo m agnético da Terra. Este é, presumo, um fato
em pírico, quer os pássaros que navegam pela detecção
do campo m agnético efetivam ente tenham uma expe­
riência consciente da detecção do campo magnético, quer
não a tenham. Contudo, o caráter qualitativo preciso des­
se fato em pírico não é acessível a form as padrões de tes­
tes em píricos. E, na verdade, por que deveriam ser? Por
que deveríamos a d m itir que todos os fatos no mundo
sejam igualm ente acessíveis a testes padrões, objetivos,
de terceira pessoa? Se você reflete sobre isto, a suposi­
ção é obviamente falsa.
A firm e i que esse resultado não é tão deprimente quan­
to poderia parecer. E a razão é simples. Embora em al­
guns casos não tenhamos acesso apropriado a determina­
dos fatos em píricos por causa de sua subjetividade in trín ­
seca, em geral temos métodos indiretos de a tin g ir os mes­
mos fatos empíricos. Considere o seguinte exemplo. Estou
completamente convencido de que meu cachorro, assim
como outros animais superiores, tem estados mentais cons­
cientes, tais como experiências visuais, sensações de dor
e sensações de sede e fome, e de calor e frio . Ora, por que
estou tão convencido disto? A resposta padrão é: por
causa do comportamento do cachorro, porque através da
observação de seu comportamento deduzo que tem esta­
dos mentais como os meus próprios. Penso que esta respos­
ta está errada. Não é meramente porque o cachorro se
comporta de uma m aneira que é peculiar à existência de
estados mentais conscientes, mas também porque posso
ver que o fundamento causai do comportamento na fisio -
l°g ia do cachorro é relevantemente parecido com o meu
110 A REDESCOBERTA DA MENTE

próprio. Não é apenas que o cachorro tenha uma estrutu­


ra como a m inha, e que tenha um com portam ento inter-
pretável de form as análogas à m aneira como interpreto
o meu próprio. M as, mais exatamente, é na combinação
desses dois fatos que posso perceber que o com porta­
mento é apropriado, e que tem a causação apropriada na
fis io lo g ia subjacente. Posso ver, por exem plo, que estas
são as orelhas do cachorro; isto é sua pele, estes são seus
olhos; que, se você belisca sua pele, obtém um com por­
tamento apropriado como resposta a um beliscão na
pele; se g rita em seu ouvido, obtém um com portam ento
apropriado como resposta a um g rito no ouvido.
É im portante enfatizar que não preciso ter uma teo­
ria fis io ló g ic a e anatôm ica im aginosa ou sofisticada
sobre a estrutura de cachorros, mas uma anatom ia e f i ­
siologia sim ples, por assim dizer, “ populares” - a capa­
cidade de reconhecer a estrutura da pele, olhos, dentes,
pêlos, focinho etc. e a capacidade de supor que o papel
causai que estes desempenham em suas experiências é
relevantemente parecido com o papel causal que tais
características desempenham nas nossas próprias expe­
riências. N a verdade, mesmo o descrever determinadas
estruturas como “ olhos” ou “ orelhas” já im p lica que
estamos atribuindo a elas funções e capacidades causais
sim ilares aos nossos próprios olhos e orelhas. Em resu­
mo, embora eu não tenha acesso direto à consciência do
cachorro, parece-me um fato em pírico bem evidenciado
que cachorros sejam conscientes, e isto é atestado por
um in d ício bastante categórico. Não tenho nada pareci­
do com esse grau de confiança quando é o caso de ani­
mais m uito mais abaixo na escala filogenética. Não
ROMPENDO O D O M ÍN IO : CÉREBROS DE SILÍCIO 111

tenho idéia se pulgas, gafanhotos, caranguejos e lesmas


são conscientes. Parece-me que posso, de modo plausível,
deixar tais questões para os neurofisiologistas. Mas que
espécie de evidências buscariam os neurofisiologistas?
A qui está, parece-me, outro experim ento de pensamento
que poderíamos perfeitam ente imaginar.
Suponha que tivéssemos uma descrição do funda­
mento neurofisiológico da consciência nos seres hum a­
nos. Suponha que tivéssemos causas bastante precisas,
neurofisiologicam ente isoláveis, de consciência em seres
humanos, tais que a presença dos fenômenos neurofisio-
lógicos relevantes fosse tanto necessária quanto suficien­
te para a consciência. Se você tivesse isto, seria cons­
ciente; se você o perdesse, tom ar-se-ia inconsciente.
Agora im agine que alguns animais tenham este fenôm e­
no, denom inem o-lo “ x ” para abreviar, e que outros não o
tenham. Suponha que se descobrisse que x ocorresse em
todos aqueles animais, tais como nós mesmos, macacos,
cães etc., em relação aos quais nos sentimos com pleta­
mente seguros de que sejam conscientes com base na sua
fisiologia ordinária, e que x fosse totalm ente ausente em
animais como as amebas, em relação aos quais não nos
sentimos inclinados a a trib u ir nenhuma consciência.
Suponha, ainda, que a remoção de x da n eurofisiologia
de qualquer ser humano imediatamente produzisse in ­
consciência, e que sua reintrodução produzisse consciên­
cia. Em tal caso, parece-me que poderíamos a dm itir plau­
sivamente que a presença de x desempenhasse um papel
causai crucial na produção da consciência, e que essa
descoberta nos h a b ilita ria a d ecidir casos duvidosos de
animais que tivessem ou carecessem de estados mentais.
112 A REDESCOBERTA DA MENTE

Se serpentes tivessem x , e ácaros carecessem dele, então


poderíamos sensatamente deduzir que ácaros agissem
através de simples tropism os, e que serpentes tivessem
consciência no mesmo sentido em que a temos nós, cães
e babuínos.
Não suponho, nem sequer por um m om ento, que a
neurofisiologia da consciência seja tão simples assim.
Parece-me m uito mais provável que encontraremos uma
grande variedade de form as de neurofisiologias da cons­
ciência e que, em qualquer situação experim ental real,
buscaríamos indícios independentes da existência de tro ­
pismos do tip o mecânico para explicar comportamentos
aparentemente direcionados a um objetivo em organis­
mos que não tivessem consciência. O propósito do
exemplo é simplesmente m ostrar que podemos ter m éto­
dos indiretos de um tip o o bjetivo, de terceira pessoa,
em pírico, para chegar a fenômenos em píricos que sejam
intrínsecamente subjetivos e, conseqüentemente, inaces­
síveis a testes diretos de terceira pessoa.
Não se deve pensar, porém, que exista algo de in fe ­
rio r ou im perfeito nos métodos em píricos de terceira pes­
soa para descobrir esses fatos empíricos subjetivos de p ri­
m eira pessoa. Os métodos se fundamentam num princípio
prático que empregamos alhures na ciência e no dia-a-
dia: mesmas causas-mesmos efeitos, e causas semelhan-
tes-efeitos semelhantes. Podemos perceber prontamente,
no caso de outros seres humanos, que os fundamentos
causais de suas experiências são virtualm ente idênticos
aos fundamentos causais de nossas experiências. E por
isto que, na vida real, não há “ problem a de outras men­
tes” . Os animais fornecem um bom exem plo de verifica-
ROMPENDO O D O M ÍN IO : CÉREBROS DE SILÍCIO 113

ção desse p rincípio porque, logicamente, não têm uma


fisiología idêntica à nossa, mas são semelhantes em deter­
minados aspectos importantes. Têm olhos, orelhas, nariz,
boca etc. Por este m otivo, realmente não duvidamos de
que tenham as experiências que acompanham essas diver­
sas espécies de aparatos. Até agora, todas essas considera­
ções são pré-científicas. Mas vamos supor que pudésse­
mos identificar, para os casos humanos, causas precisas de
consciência, e então pudéssemos descobrir exatamente as
mesmas causas em outros animais. Sendo assim, parece-
me que teríamos estabelecido bastante conclusivamente
que outras espécies têm exatamente o mesmo tip o de
consciência que temos, porque podemos presum ir que as
mesmas causas produzem os mesmos efeitos. Isto não
seria apenas uma especulação absurda, porque teríamos
m uito boas razões para supor que essas causas produzi­
riam os mesmos efeitos em outras espécies.
Na prática efetiva, livro s didáticos de neurofisiologia
costumam relatar, por exemplo, de que form a a percepção
de cores do gato é semelhante à humana e, ao mesmo
tempo, diferente dela e até de outros anim ais. Que irres­
ponsabilidade surpreendente! Como poderiam os autores
alegar terem resolvido tão facilm ente o problema de outra
mente, do gato? A resposta é que o problema para a visão
do gato é solucionado a p a rtir do momento em que sabe­
mos exatamente de que form a o aparelho visual do gato é
semelhante ao nosso e de outras espécies e, ao mesmo
tempo, diferente de ambos2.
Quando compreendemos o fundamento causai da a tri­
buição de estados mentais a outros anim ais, diversos
problemas céticos tradicionais sobre “ outras mentes”
114 A REDESCOBERTA DA MENTE

têm uma fá c il solução. Considere o famoso problem a da


inversão do espectro que m encionei no capítulo 2. Fre­
qüentemente se d iz que, até onde sabemos, urna parte da
população podia ter uma ta l inversão de verm elho/verde
que, embora essas pessoas fizessem as mesmas d is c rim i­
nações comportamentais que o resto de nós, as experiên-
cias efetivas que elas têm quando vêem verde, e que cha­
mam de “ ver verde” , são experiências que chamaríamos,
se as tivéssemos, de “ ver verm elho” , e vice-versa. Mas
agora considere: suponha que efetivam ente descobrísse­
mos que, de fato, uma parte da população tem os recep­
tores de verde e verm elho invertidos de tal form a, e tão
associada ao resto de seu aparelho visual, que tivéssemos
uma evidência n eurofisiológica irre sistível de que, em ­
bora suas discrim inações molares fossem as mesmas que
as nossas, essas pessoas efetivam ente tivessem experiên­
cias diferentes fundamentando-as. Isto não seria um p ro ­
blem a no ceticism o filo s ó fic o , mas uma hipótese neuro­
fisio ló g ica bem definida. Mas então, se não há tal porção
da população, se todas as pessoas não-cegas para as cores
têm os mesmos trilh o s de percepção de verm elho/verde,
temos um sólido testemunho em pírico de que as coisas
parecem às outras pessoas da mesma maneira que pare­
cem a nós. Um a nuvem de ceticism o filo s ó fic o se con­
densa numa gota de neurociência.
Note que essa solução para o “ problem a de outras
mentes” , que empregamos na ciência e na vida diária,
fom ece-nos condições suficientes, mas não necessárias,
para a correta atribuição de fenômenos mentais a outros
seres. Como sugeri anteriorm ente neste capítulo, precisa­
ríamos de uma teoria neurobiológica da consciência m ui-
ROMPENDO O D O M ÍN IO : CÉREBROS DE SILÍCIO 115

to mais rica do que qualquer coisa que podemos hoje im a­


ginar para supor que poderíamos isolar condições neces­
sárias de consciência. Estou bastante seguro de que a
mesa à m inha frente, o com putador que uso diariam ente,
a caneta-tinteiro com que escrevo e o gravador para o qual
dito são com pletam ente inconscientes, mas, logicam en­
te, não posso p ro v a r que são inconscientes, e nem pode
fazê-lo nenhuma outra pessoa.

IV. Resumo

Neste capítulo, tive até agora dois objetivos: p rim e i­


ro, tentei provar que, no que diz respeito à ontologia da
mente, o com portam ento é simplesmente irrelevante. É
claro que na vida real nosso com portam ento é crucial
para nossa própria existência, mas, quando estamos exa­
minando a existência de nossos estados mentais enquan­
to estados m entais, o com portam ento correlativo não é
necessário nem suficiente para sua existência. Em segun­
do lugar, tentei começar a rom per o dom ínio de trezentos
anos de discussões epistem ológicas do “ problem a de
outras mentes” , de acordo com o qual o comportamento
é o fundamento exclusivo a p a rtir do qual sabemos da
existência de outras mentes. Isto me parece obviamente
falso. E somente por causa da conexão entre o com porta­
mento e a estrutura causai de outros organismos que o
comportamento é, de qualquer modo, relevante para a des­
coberta de estados mentais nos outros.
Um detalhe fin a l é igualm ente im portante: exceto
quando se filo so fa , não há realmente nenhum “ proble-
116 A REDESCOBERTA DA MENTE

ma” em relação a outras mentes, porque não sustentamos


uma “ hipótese” , “ crença” ou “ suposição” de que outras pes-
soas sejam conscientes, e de que cadeiras, mesas, compu­
tadores e carros não sejam conscientes. A o contrário, te­
mos determinadas maneiras de nos com portar advindas
do Background, determinadas capacidades possibilitadas
pelo Background, e essas são constitutivas de nossas rela-

ções com a consciência de outras pessoas. E típico da filo ­


sofia que questões céticas freqüentemente surjam quando
elementos do Background são tratados como se fossem
hipóteses que têm que ser justificadas. Não defendo uma
“ hipótese” de que meu cachorro ou meu chefe de departa­
mento seja consciente e, conseqüentemente, a questão não
aparece, exceto no debate filosófico.

V Intencionalidade intrínseca, “ como-se” e derivada

Antes de prosseguir, preciso intro du zir algumas dis­


tinções simples que estavam im plícitas naquilo que disse
até agora, mas que é necessário tom ar explícitas para o
que vem a seguir. Para intro du zir estas distinções, consi­
deremos as semelhanças e diferenças entre as diversas
espécies de condições de verdade de sentenças que empre­
gamos para a trib u ir fenômenos mentais intencionais.
Considere as semelhanças e diferenças entre o seguinte:

1. Estou com sede agora, realmente com sede, por­


que não tive nada para beber o dia todo.
2. Meu gramado está com sede, realmente com sede,
porque não fo i regado durante uma semana.
ROMPENDO O D O M ÍN IO : CÉREBROS DE SILÍCIO 117

3. Em francês, “f ai grand soif ” significa “ estou com


muita sede” .

A prim eira dessas sentenças é u tilizada literalm ente


para alguém a trib u ir um estado mental real, intencional,
a si mesmo. Se em ito essa sentença, fazendo um enun­
ciado verdadeiro, então há em m im uma sensação cons­
ciente de sede que tom a esse enunciado verdadeiro. Essa
sensação tem intencionalidade porque envolve um dese­
jo de beber. Mas a segunda sentença é bem diferente. A
sentença 2 é empregada apenas m etaforicam ente, ou
figurativam ente, para a trib u ir sede ao meu gramado.
Meu gramado, carecendo de água, está numa situação na
qual eu estaria com sede, então figurativam ente o descre­
vo como-se estivesse com sede. Por analogia, e sem ne­
nhum prejuízo, posso dizer que o gramado está com sede
mesmo que não suponha sequer por um momento que ele
esteja literalm ente com sede. A terceira sentença é seme­
lhante à prim eira no sentido de que literalm ente a trib ui
intencionalidade, mas é semelhante à segunda e diferente
da prim eira no sentido de que a intencionalidade descrita
não é intrínseca ao sistema.
A prim eira espécie de atribuição a trib u i intenciona­
lidade intrínseca. Se tal enunciado é verdadeiro, tem que
haver realmente um estado intencional no objeto da a tri­
buição. A segunda sentença não a trib ui nenhum tip o de
intencionalidade, intrínseca ou de outro tip o ; só é usada
para falar fig u ra tiva ou m etaforicam ente. Portanto, d ire i
que a “ intencionalidade” na atribuição é meramente como-
se> e não intrínseca. Para evitar confusão, é im portante
enfatizar que intencionalidade como-se não é um tip o de
118 A REDESCOBERTA DA MENTE

intencionalidade; mais propriam ente, um sistema que


tem intencionalidade como-se é com o-se-tivesse-inten-
cionalidade. N o terceiro caso, literalm ente atribuo inten­
cionalidade à sentença em francês, isto é, a sentença em
francês sign ifica literalm ente o que afirm o que significa.
Mas a intencionalidade na sentença em francês não é
intrínseca àquela sentença particular construída m era­
mente como um objeto sintático. Aquela mesma seqüên­
cia podia ter significado algo m uito diferente, ou absolu­
tamente nada. Falantes de francês podem empregá-la
para e xp rim ir sua intencionalidade. O significado lin -
güístico é uma form a real de intencionalidade, mas não é
intencionalidade intrínseca. E derivado da in te n cio n a li­
dade intrínseca daqueles que usam a língua.
Podemos resum ir esses pontos da seguinte form a:
intencionalidade intrínseca é um fenômeno que seres hu­
manos e determinados outros animais têm como parte de
sua natureza biológica. Não é uma questão de como são
tratados, ou como se concebem a si mesmos, ou de que
•T /

form a preferem descrever-se a si mesmos. E simplesmen­


te um fato evidente em tais animais que, por exemplo,
algumas vezes fiquem com sede ou fom e, vejam coisas,
temam coisas etc. Todas as expressões em itá lico nas fra­
ses anteriores são empregadas para indicar estados inten­
cionais intrínsecos. E m uito conveniente usar o jargão da
intencionalidade para fa lar sobre sistemas que não a têm,
mas que se com portam como se tivessem. D igo, sobre
meu termostato, que ele percebe mudanças na temperatu­
ra; digo, sobre meu carburador, que ele sabe quando enri­
quecer a m istura; e digo, sobre meu computador, que sua
m em ória é m aior do que a m em ória do com putador que
ROMPENDO O D O M ÍN IO : CÉREBROS DE SILÍCIO 119

eu tinha no ano passado. Todas essas atribuições são per-


feitamente inofensivas, e sem dúvida acabarão produzin­
do novos significados litera is quando as metáforas se to r­
narem mortas. Mas é im portante enfatizar que essas a tri­
buições são psicologicam ente irrelevantes, porque não
im plicam a presença de nenhum fenômeno m ental. A
intencionalidade exposta em todos esses casos é pura­
mente como-se.
Os casos do terceiro tip o tornam-se interessantes
pelo fato de que, de fato, m uitas vezes literalm ente dota­
mos fenômenos não-mentais de propriedades intencio­
nais. Não há nada de m etafórico ou como-se em dizer
que determinadas sentenças significam determinadas co i­
sas, ou que determinados mapas são corretas representa­
ções de o Estado da C alifó rn ia, ou que determinados re­
tratos são retratos de W inston C hurchill. Estas formas de
intencionalidade são reais, mas são derivadas da inten­
cionalidade de agentes humanos.
Venho usando a term inologia “ intrínseco” por mais
de uma década (ver Searle, 1980b), mas ela está sujeita a
certos m al-entendidos persistentes. N a fala coloquial,
“ intrínseco” é freqüentemente oposto a “ relacionai” .
Assim, a Lua intrínsecamente tem uma massa, mas não é
■ • /
intrínsecamente um satélite. E um satélite somente em
relação à Terra. Neste sentido de intrínseco, as pessoas
que acreditam em estados intencionais com “ conteúdo
amplo” , isto é, conteúdo que envolve essencialmente
relações com objetos fora da mente, seriam forçadas a
negar que tais estados intencionais sejam intrínsecos, por­
que são relacionais. Não creio na existência de conteúdo
amplo (ver Searle, 1983, cap. 7), e, portanto, o problem a
120 A REDESCOBERTA DA MENTE

não se coloca para m im . As distinções que estou fazendo


agora são independentes da controvérsia sobre conteúdo
amplo e restrito. Assim , estou apenas especificando que,
por “ intencionalidade intrínseca” , quero dizer a coisa real
em oposição à mera aparência da coisa (como-se), e em
oposição a formas derivadas de intencionalidade, como
sentenças, imagens etc. Você não tem que aceitar minhas
objeções ao conteúdo amplo para a d m itir as distinções
que estou tentando fazer.
U m outro m al-entendido - espantoso para m im - é
supor que, ao chamar casos da coisa real de “ intrínse­
cos” , eu esteja insinuando que sejam de algum modo
m isteriosos, inefáveis e além do alcance da interpretação
filo s ó fic a ou do estudo cien tífico . Mas isto é absurdo.
Exatamente neste instante, tenho m uitos estados inten­
cionais intrínsecos; por exem plo, um im pulso de ir ao
banheiro, um forte desejo de uma cerveja gelada e uma
experiência visual de uma porção de barcos no lago.
Todos são estados intencionais intrínsecos, no sentido
que lhes dou, o que significa exatamente que são a coisa
real e não apenas algo mais ou menos como a coisa real
(como-se), ou algo que seja o resultado dos empregos da
coisa por outro alguém, ou de suas atitudes em relação a
ela (derivados)3.
Tenho visto tentativas de negar essas distinções, mas
é m uito d ifíc il levar essas negações a sério. Se você pensa
que não há diferenças baseadas em princípios, podia con­
siderar o seguinte trecho do periódico Pharm acology:

Assim que o alimento passa o esfíncter cricofaríngeo,


seu movimento é quase inteiramente involuntário, salvo
ROMPENDO O D O M ÍN IO : CÉREBROS DE SILÍCIO 121

pela expulsão final das fezes durante a defecação. O apare­


lho gastrintestinal é um órgão altamente inteligente que
percebe não somente a presença de alimento no lúmen,
mas também sua composição química, quantidade e visco­
sidade, e ajusta o ritmo de propulsão e mistura através da
produção de padrões apropriados de contrações. Devido à
sua capacidade altamente desenvolvida de tomar decisões,
a parede do intestino, composta pelas camadas de múscu­
los lisos, as estruturas nervosas e as células parácrino-
endócrinas, é muitas vezes chamada de cérebro intestinal.
(Sama e Otterson, 1988; os itálicos são meus)4.

Este é, claramente, um caso de intencionalidade co-


mo-se no “ cérebro in te stin a l” . Alguém acredita que não
haja diferença de princípios entre o cérebro intestinal e o
cérebro propriam ente dito? O uvi dizer que ambos os ca­
sos são idênticos; que é tudo uma questão de adotar uma
“ postura intencional” em relação ao sistema. M as tente,
na vida real, supor que a “ percepção” e a “ capacidade de
tomar decisões” do cérebro intestinal não sejam diferen­
tes daquelas do cérebro real.
Este exem plo revela, entre outras coisas, que qual­
quer tentativa de rejeitar a distinção entre intencionalida­
de intrínseca e como-se enfrenta uma reductio ad absur-
dum geral. Se você rejeita a distinção, resulta que tudo
no universo tem intencionalidade. Tudo no universo segue
leis da natureza e, p or esta razão, tudo se com porta den­
tro de um determ inado grau de regularidade, e por esta
razão tudo se com porta como-se estivesse seguindo uma
regra, tentando executar um determinado projeto, atuan­
do de conform idade com determinados desejos etc. Por
exemplo, suponha que eu deixe cair uma pedra. A pedra
122 A REDESCOBERTA DA MENTE

tenta chegar ao centro da Terra, porque quer chegar ao


centro da Terra, e fazendo assim segue a regra S = 1/2 g f\
Em resumo, o preço de reje itar a distinção entre intencio-
nalidade intrínseca e como-se é o absurdo, porque torna
m ental tudo no universo.
Sem dúvida, há casos m arginais. Sobre gafanhotos
ou pulgas, por exem plo, podemos não estar bem seguros
do que dizer. E, sem dúvida, mesmo em alguns casos
humanos podíamos fic a r confusos quanto a se devería­
mos tom ar a atribuição de intencionalidade literalm ente
ou metaforicamente. Mas os casos m arginais não alteram
a distinção entre o tip o de fatos correspondentes a a tri­
buições de intencionalidade intrínseca e aqueles que cor­
respondem a atribuições como-se m etafóricas de inten­
cionalidade. Não há nada de nocivo, enganoso ou filo s o ­
ficam ente equivocado nas atribuições como-se m etafóri­
cas. O único engano é tomá-las literalm ente.
Espero que essas distinções que estive fazendo sejam
dolorosamente óbvias. Entretanto, tenho que relatar, das
frentes de combate por assim dizer, que o desprezo por
essas distinções simples está na base de alguns dos m aio­
res erros na vida intelectual contemporânea. U m exem­
p lo comum de equívoco é supor que, porque podemos
fazer atribuições como-se de intencionalidade a sistemas
que não têm intencionalidade intrínseca, de uma form a
ou de outra descobrimos a natureza da intencionalidade5.
C A P ÍT U LO 4
CONSCIÊNCIA E SEU LUGAR
n a natureza

I. Consciência e a visão de mundo “ cie n tífica ”

Como acontece com a m aioria das palavras, não é


possível dar uma definição de “ consciência” em termos
de condições necessárias e suficientes, nem é possível
defini-la à moda aristotélica, via gênero e diferença. E n­
tretanto, embora não possamos dar uma definição lite ra l
não-circular, ainda assim considero essencial dizer o que
quero sign ificar com essa noção, porque ela é freqüente-
mente confundida com diversas outras. Por exem plo, por
razões tanto de etim ologia quanto de costume, “ consciên­
cia” é m uitas vezes confundida com “ conscienciosida-
de” *, “ autoconsciência” e “ cognição” .

* No original, “ consciousness” e “ conscience” . Em termos gerais,


0 Primeiro termo remete à qualidade ou ao estado de estarmos conscientes
algo que nos é intrínseco ou extrínseco (“class consciousness” ); o segundo
diz respeito à consciência da qualidade moral de nossa conduta ou nossas
ititenções (“ a guilty conscience” ). (N. do R.)
124 A REDESCOBERTA DA MENTE

O que quero dizer por “ consciência” * pode ser m e­


lh o r ilustrado por exemplos. Quando acordo de um sono
sem sonhos, entro num estado de consciência, um estado
que permanece enquanto estiver acordado. Quando vou
dorm ir, ou sou colocado sob uma anestesia geral, ou m or­
ro , meus estados conscientes cessam. Se durante o sono
tenho sonhos, tom o-m e consciente, embora form as o n íri­
cas de consciência sejam geralmente de um n íve l m uito
mais baixo de intensidade e vivide z do que a consciência
desperta ordinária. A consciência pode variar em grau mes­
m o durante as horas em que estamos acordados, como,
por exemplo, quando passamos do estado bem desperto e
alerta para a sonolência e o entorpecimento, ou simples­
mente para o enfado e a desatenção. Algum as pessoas in-
troduzem substâncias químicas em seus cérebros com o
propósito de produzir estados alterados de consciência,
mas mesmo sem assistência quím ica é possível, na vida
norm al, distinguir diferentes graus e formas de consciên­
cia. A consciência é um interruptor liga/desliga: um siste­
ma é consciente ou não. Mas, uma vez consciente, o sistema
é um reostato: existem diferentes graus de consciência.
U m sinônimo aproximado para “ consciência” , na m i­
nha opinião, é “ ciência” * * , mas não penso que sejam
exatamente equivalentes em significado, porque o termo
“ ciência” é mais intim am ente ligado a cognição, a co­
nhecimento, do que o é a noção geral de consciência. Além
do mais, parece possível que pudéssemos levar em conta

* “ C onsciousness (N. do R.)


* * ‘ A w a re n e s s A tradução (“ ciência” ) tem, aqui, o sentido apro
ximado de “ conhecimento” . (N. do R.)
CONSCIÊNCIA E SEU LUGAR NA NATUREZA 125

casos nos quais alguém esteja ciente de algo inconscien­


temente (cf. W eiskrantz et a l., 1974). Também vale a
pena enfatizar que, até agora, na m inha descrição de
consciência não há nada que im plique autaconsciência.
M ais adiante (no capítulo 6) d iscu tire i a conexão entre
consciência e autoconsciência.
A lguns filó so fo s (e.g., B lo ck, “ Tw o Concepts o f
Consciousness” ) declaram que há um sentido dessa pala­
vra que não im p lica nenhuma sensibilidade*, um sentido
no qual um completo zum bi poderia ser “ consciente” . Não
sei de nenhum sentido semelhante, mas em todo caso
esse não é o sentido em que estou usando a palavra.
Os estados conscientes sempre têm um conteúdo.
Ninguém nunca pode ser somente consciente; ao contrá­
rio, quando alguém é consciente tem que haver uma res­
posta à pergunta: “ De que esse alguém é consciente?” Mas
o “ de” de “ consciente de” nem sempre é o “ de” de inten-
cionalidade. Se estou consciente de uma batida na porta,
meu estado consciente é intencional, porque faz referên­
cia a algo além disto mesmo, a batida na porta. Se estou
consciente de uma dor, a dor não é intencional, porque
não representa nada além dela mesma1.
O o bjetivo p rin cip a l deste capítulo é situar a cons­
ciência dentro de nossa concepção “ cie n tífica ” geral de
mundo. A razão para enfatizar a consciência numa e xp li­
cação da mente é que ela é a noção m ental central. De
uma maneira ou de outra, todas as outras noções mentais
~ como intencionalidade, subjetividade, causação men-

* “ Sentience” , ou seja, “ condição ou caráter de senciente” , “ per-


ceptibilidade” . (N. do R.)
126 A REDESCOBERTA DA MENTE

tal, inteligência etc. - só podem ser plenamente com ­


preendidas como mentais p or m eio de suas relações com
a consciência (mais sobre isto no capítulo 7). Porque em
qualquer ponto dado de nossas vidas despertas somente
uma dim inuta fração de nossos estados mentais é cons­
ciente, pode parecer paradoxal considerar a consciência
como a noção m ental central, mas, no decorrer deste l i ­
vro, pretendo tentar esclarecer a aparência de paradoxo.
Assim que tiverm os situado o lugar da consciência em
nossa visão de mundo global, poderemos perceber que as
teorias m aterialistas da mente que debatemos no capítulo
2 são mesmo tão profundam ente anticientíficas quanto o
dualism o que eles pensavam estar atacando.
Descobrirem os que, quando tentamos expor os fa ­
tos, a pressão sobre as categorias e term inologia trad icio ­
nais toma-se quase insuportável, e elas começam a rachar
sob a tensão. O que vou dizer soará quase autocontradi-
tó rio : de um lado, afirm arei que a consciência é apenas
uma característica b io ló g ica ordinária do m undo, mas
tentarei também m ostrar p or que consideramos quase
literalm ente inconcebível que seja assim.
Nossa visão de mundo contemporânea começou a se
desenvolver no século X V II, e seu desenvolvim ento vem
prosseguindo até o fin a l do século X X . H istoricam ente,
uma das chaves para esse desenvolvim ento fo i a exclu­
são da consciência do objeto da ciência por Descartes,
G alileu e outros no século X V II. Na concepção cartesia­
na, as ciências naturais verdadeiras excluíam a “ mente” ,
res cogitans, e ocupavam-se apenas da “ m atéria” , res
extensa. A separação entre mente e m atéria fo i uma fe r­
ramenta heurística ú til no século X V II, uma ferramenta
CONSCIÊNCIA E SEU LUGAR NA NATUREZA 127

que fa c ilito u m uito do progresso que ocorreu nas ciên­


cias. Entretanto, a separação é filosoficam ente confusa,
e, até o século X X , tinha-se tomado um poderoso obstá­
culo para uma compreensão cie n tífica do lugar da cons­
ciência dentro do mundo físico. U m dos principais obje­
tivos deste liv ro é tentar rem over esse obstáculo, trazer a
consciência de vo lta ao objeto da ciência como um fenô­
meno bio lóg ico semelhante a qualquer outro. Para fazer
isto, precisamos contestar as objeções dualistas dos car­
tesianos contemporâneos.
Subentende-se que nossa visão de m undo “ científica”
é extremamente com plexa e in c lu i todas as nossas teorias
geralmente aceitas sobre que espécie de lugar é o univer­
so e como ele funciona. In c lu i, por assim dizer, teorias
que abrangem desde a mecânica quântica e a teoria da
relatividade até a teoria das placas tectónicas da geologia
e a teoria do D N A da transmissão hereditária. A tu a l­
mente, por exemplo, in clu i uma crença em buracos negros,
a teoria de doenças causadas por m icróbios e a explica­
ção heliocéntrica do sistema solar. Alguns aspectos desta
visão de mundo são bastante incertos, outros claramente
demonstrados. Pelo menos dois aspectos dela são tão fu n ­
damentais e tão bem estabelecidos a ponto de não mais
poderem ser ignorados por cidadãos razoavelmente bem
instruídos de nossa época; na verdade, são em grande
parte constitutivos da moderna visão de mundo. São eles
a ateoria
✓ atôm ica da m atéria e a teoria evolutiva da b io lo -
gia. E claro que, como qualquer outra teoria, é possível
que sejam refutadas por investigações posteriores; hoje,
porém, a evidência é tão esmagadora que simplesmente
uao se prestam a questionamentos; para situar a cons-
128 A REDESCOBERTA DA MENTE

ciência dentro de nossa compreensão do m undo, temos


que situá-la em relação a essas duas teorias.
Segundo a teoria atôm ica da m atéria, o universo con­
siste inteiram ente em fenômenos físicos extremamente
pequenos que consideramos conveniente, embora não com ­
pletamente exato, chamar de “ partículas” . Todas as enti­
dades de dimensões grandes e médias no universo, como
planetas, galáxias, carros e sobretudos, são constituídas
de entidades menores que são, p or sua vez, feitas de e n ti­
dades ainda menores, até que finalm ente atinjam os o
n íve l de m oléculas, elas mesmas compostas de átomos,
eles mesmos compostos de partículas subatômicas. Exem ­
plos de partículas são elétrons, átomos de hidrogênio e
m oléculas de água. Como estes exemplos ilustram , p artí­
culas maiores são constituídas de partículas menores; e
há, contudo, m uita incerteza e discussão sobre a id e n tifi­
cação das menores partículas in d ivisíve is. Ficam os um
tanto embaraçados ao usar a palavra “ partícula” por pelo
menos dois m otivos. P rim eiro, parece mais preciso des­
crever as mais básicas dessas entidades como pontos de
massa/energia, e não como entidades espaciais contínuas.
E segundo, mais radicalm ente, de acordo com a m ecâni­
ca quântica, enquanto elas não estão sendo medidas e
enquanto nelas não se interfere de alguma form a, as
“ partículas” , como os elétrons, comportam-se mais como
ondas do que como partículas. Todavia, por conveniên­
cia, vou persistir na palavra “ partícula” .
As partículas, como nossos exemplos anteriores
ilustraram , estão organizadas em sistemas maiores. Seria
com plicado tentar d e fin ir a noção de um sistema, mas a
idéia in tu itiv a simples é que sistemas são conjuntos de
CONSCIÊNCIA E SEU LUGAR NA NATUREZA 129

partículas em que os lim ite s espaço-temporais são fix a ­


dos por relações causais. Assim , uma gota de chuva é um
sistema, mas uma geleira também é. Bebês, elefantes e
cadeias de montanhas também são exem plos de siste-
mas. E óbvio, a p a rtir desses exemplos, que sistemas
podem conter subsistemas.
Fundam ental para o aparato explanatório da teoria
atômica não é somente a idéia de que grandes sistemas
são constituídos de sistemas pequenos, mas que m uitos
aspectos dos grandes podem ser causalmente explicados
pelo com portam ento dos pequenos. Esta concepção de
explanação oferece-nos a possibilidade, na verdade a ne­
cessidade, de que m uitas espécies de macrofenômenos
sejam explicáveis em termos de m icrofenôm enos. E isto,
por sua vez, tem como conseqüência que haverá diferen­
tes níveis de explanação do mesmo fenôm eno, depen­
dendo de se vamos da esquerda para a d ire ita de macro
para macro ou m icro para m icro, ou de baixo para cim a
de m icro para m acro. Podemos ilu stra r esses níveis com
um exem plo sim ples. Suponha que eu queira explicar
por que a água dessa chaleira está fervendo. Um a explica­
ção, a explicação esquerda-direita m acro-m acro, seria
que coloquei a chaleira no fogão e acendi a chama sob
ela. Chamo esta explanação de “ esquerda-direita” porque
se refere a um evento anterior para explicar um evento
posterior2, e chamo-a de “ m acro-m acro” porque tanto o
que explica quanto o que é explicado está no nível macro.
Uma outra interpretação - de baixo para cim a e m icro-
macro - seria que a água está fervendo porque a energia
cinética transm itida pela oxidação de hidrocarbonetos
Para as m oléculas de H 20 fez com que estas se moves-
130 A REDESCOBERTA DA MENTE

sem tão rapidamente que a pressão interna dos m ovim en­


tos da m olécula nivelou-se à pressão externa do ar, cuja
pressão, por sua vez, é explicada pelo m ovim ento das
m oléculas pelas quais o ar exterior é composto. Chamo
esta explanação de “ de baixo para cim a m icro-m acro”
porque explica as características e o com portam ento de
fenômenos de superfície, ou macrofenômenos, em te r­
mos de m icrofenôm enos de nível inferior. Não pretendo
sugerir que esses sejam os únicos níveis de explanação
possíveis. Há, ainda, interpretações esquerda-direita
m icro-m icro, e mais subdivisões podem ser feitas dentro
de cada nível m icro ou macro.
Essa, então, é uma das principais lições da teoria
atômica: muitas características de coisas grandes são ex­
plicadas pelo com portam ento de coisas pequenas. Con­
sideramos a teoria de doenças causadas por m icróbios ou
a teoria do D N A de transmissão genética como im p o r­
tantes avanços precisamente porque se encaixam nesse
m odelo. Se alguém Concebesse uma explicação de doen­
ças em termos do m ovim ento dos planetas, nunca a acei­
taríamos como uma explanação com pleta, mesmo se
funcionasse para diagnósticos e curas, até que compreen­
dêssemos de que form a as macrocausas e os m acroefei-
tos no n ível dos planetas e sintomas eram baseados em
estruturas causais de baixo para cim a m icro-m acro.
A essas noções elementares da teoria atôm ica acres­
centemos agora os princípios da b io log ia evolutiva.
Durante longos períodos de tempo, determinados tipos
de sistemas vivos evoluem de determinadas maneiras
m uito especiais. Em nossa pequena Terra, os tipos de sis­
temas em questão invariavelm ente contêm m oléculas de
CONSCIÊNCIA E SEU LUGAR NA NATUREZA 131

base carbono e fazem uso extensivo de hidrogênio, n itro ­


gênio e oxigênio. As formas nas quais evoluem são com-
plicadas, mas o procedim ento básico é que casos ocorrên­
cia dos tipos causam o aparecimento de ocorrências se­
melhantes. Assim , depois que as ocorrências originais são
destruídas, o tip o ou padrão que exem plificam continua
em outras ocorrências, e continua a ser reproduzido en­
quanto as gerações subseqüentes de ocorrências produ­
zem ainda outras ocorrências. Variações nas característi­
cas superficiais, fenotipos, das ocorrências, dão a essas
ocorrências maiores ou menores chances de sobrevivên­
cia, relativam ente aos ambientes específicos em que se
encontram. Aquelas ocorrências que têm uma m aior pro­
babilidade de sobrevivência em relação ao seu ambiente
terão, portanto, uma m aior probabilidade de produzir mais
ocorrências semelhantes a si próprias, ocorrências com o
mesmo genotipo. E assim a espécie evolui.
Parte do apelo intelectual da teoria da evolução, en­
quanto complem entada pela genética m endeliana e do
D N A , vem do fato de concordar com o m odelo explana-
torio que derivamos da teoria atômica. Particularm ente, a
fundamentação dos mecanismos genéticos na bio log ia
m olecular leva em conta os diferentes níveis de explana­
ção dos fenômenos biológicos correspondentes aos d ife ­
rentes níveis de explanação que temos para os fenôm e­
nos físicos. N a b io lo g ia evolutiva, há característicamente
dois níveis de explanação: um nível “ fu n cio n a r’, em que
explicamos a sobrevivência das espécies em termos de
“ adequação abrangente” , que depende das particularida­
des fenotípicas possuídas pelos membros da espécie, e
um nível “ causal” , em que explicamos os mecanismos cau-
132 A REDESCOBERTA DA MENTE

sais através dos quais as particularidades em questão efe­


tivam ente relacionam o organismo ao ambiente. Pode­
mos ilustra r isto com um exem plo simples. Por que plan­
tas verdes vira m suas folhas na direção do sol? A e x p li­
cação funcional3: esta particularidade tem va lo r de sobre­
vivência. Através do aumento da capacidade da planta de
realizar fotossíntese, cresce a capacidade da planta de so­
breviver e reproduzir-se. A planta não se volta para o sol
para sobreviver; antes, a planta tende a sobreviver p o r­
que é predisposta a voltar-se para o sol de qualquer je ito .
A explicação causal: a estrutura bioquím ica da planta,
conform e o que é estabelecido por sua constituição gené­
tica, faz com que ela secrete o horm ônio de crescimento
auxina, e as variadas concentrações de auxina, por sua
vez, fazem com que as folhas se voltem para a direção da
fonte de luz.
Se você põe esses dois níveis de explicação lado a
lado, obtém o seguinte resultado: porque o fenotipo, por
ser produzido pela interação do genotipo com o ambien­
te, tem valor de sobrêvivência relativamente ao ambiente, o
genotipo sobrevive e se reproduz. Tais são, de modo bem
resumido, os mecanismos de seleção natural.
Os produtos do processo evolu tivo, os organismos,
são constituídos de subsistemas chamados “ células” , e
alguns desses organismos desenvolvem subsistemas de
células nervosas, que consideramos como “ sistemas ner­
vosos” . A lém disso, e este é o ponto crucial, alguns siste­
mas nervosos extremamente complexos são capazes de
causar e sustentar estados e processos conscientes.
Especificam ente, determinados grandes conjuntos de cé­
lulas nervosas, isto é, cérebros, causam e sustentam esta-
CONSCIÊNCIA E SEU LUGAR NA NATUREZA 133

dos e processos conscientes. Não conhecemos o detalhe


de como cérebros causam consciência, mas sabemos que
isto de fato ocorre em cérebros humanos e temos indícios
esmagadores de que também ocorra nos cérebros de m u i­
tas espécies de anim ais (G riffin , 1981). Não sabemos,
atualmente, até onde a consciência se estende para baixo
na escala evolutiva.
A idéia de que seres humanos e outros animais supe­
riores são parte da ordem b iológica como quaisquer ou­
tros organismos é básica para nossa visão de mundo. Os
seres humanos são contínuos com o resto da natureza.
Mas, sendo assim, as características biologicam ente es­
pecíficas desses animais - como o fato de possuírem um
rico sistema de consciência, bem como sua m aior in te li­
gência, sua aptidão para a linguagem , sua aptidão para
discrim inações de percepções extremamente sutis, sua
aptidão para pensamento racional etc. - são fenômenos
biológicos como quaisquer outros fenômenos biológicos.
Além disso, essas características são todas fenotipos. São
o resultado de evolução biológica tanto quanto qualquer
outro fenotipo. Consciência, em resumo, é uma caracterís­
tica bio lóg ica de cérebros de seres humanos e determ i­
nados anim ais. E causada p o r processos neurobiológi-
cos, e é tanto uma parte da ordem biológica natural quan­
to quaisquer outras características b iológicas, como a
fotossíntese, a digestão ou a m itose. Este p rin cíp io é o
prim eiro estágio para a compreensão do lugar da cons­
ciência dentro de nossa visão de mundo4. Até o momen­
to, a tese deste capítulo fo i que assim que você percebe
que as teorias atôm ica e evolutiva são fundamentais para
a visão de m undo cie n tífica contemporânea, a consciên-
134 A REDESCOBERTA DA MENTE

cía faz sentido naturalm ente, como uma particularidade


fenotípica evoluída de determinados tipos de organismos
com sistemas nervosos altamente desenvolvidos. Não
estou interessado, neste capítulo, em defender essa visão
de mundo. Na verdade, m uitos pensadores cujas opiniões
respeito, mais notavelm ente W ittgenstein, consideram-
na, em graus variados, repulsiva, degradante e repugnan­
te. Parece-lhes não deixar nenhum espaço - ou, quando
m uito, um espaço secundário - para religião, arte, m is ti­
cism o e valores “ espirituais” em geral. Mas, gostem ou
não, é a visão de mundo que temos. Dado o que sabemos
sobre as particularidades do mundo - sobre coisas como a
posição dos elementos na tabela periódica, o número de
cromossomos nas células de espécies diferentes e a natu­
reza da ligação quím ica - , essa visão de mundo não é
uma opção. Não está simplesmente disponível para qual­
quer um, jun to com uma porção de concepções de mundo
rivais. Nosso problem a não é que tenhamos fracassado de
alguma form a em apresentar uma prova convincente da
existência de Deus, ou que a hipótese de uma vida após
a m orte permaneça envolta em m uita dúvida; na verda­
de, trata-se de que, em nossas reflexões mais profundas,
não podemos levar a sério tais crenças. Quando nos
deparamos com pessoas que afirm am acreditar em tais
coisas, podemos invejá-las pelo conforto e segurança
que declaram derivar dessas crenças, mas no fundo con­
tinuam os convencidos de que ou eles não tomaram
conhecim ento das novidades, ou estão nas garras da fé.
Continuam os convencidos de que, de algum m odo, eles
devem d iv id ir suas mentes em com partim entos isolados
para crer em tais coisas. Quando palestrei sobre o pro-
CONSCIÊNCIA E SEU LUGAR NA NATUREZA 135

blem a m ente-corpo na ín d ia e diversos membros de meu


público asseveraram que minhas concepções deveriam
estar erradas, porque pessoalmente eles tinham existido
em suas vidas anteriores como rãs ou elefantes etc., não
pensei: “ Eis aqui um in d ício para um a visão de mundo
alternativa” , ou mesmo: “ Quem sabe... talvez estejam cer­
tos.” E m inha insensibilidade era m uito mais do que me­
ro provincianism o cultural: dado o que sei sobre como o
mundo funciona, não poderia considerar suas concep­
ções como candidatas sérias à verdade.
E, uma vez que você aceite nossa visão de mundo, o
único obstáculo para co nfe rir à consciência seu status de
característica b io ló g ica de organismos é o antiquado
pressuposto dualista/m aterialista de que o caráter “ men­
ta l” da consciência torna im possível, para ela, ser uma
propriedade “ física ” .
Eu apenas debati a relação da consciência com siste­
mas vivos tendo por base o carbono do gênero que temos
em nossa Terra, mas, logicam ente, não podemos e xclu ir
a possibilidade de que a consciência possa ter evoluído
em outros planetas de outros sistemas solares, em outras
partes do universo. Dadas as dimensões ilim itadas do
universo, seria estatisticamente espantoso se fôssemos os
únicos portadores de consciência nele. A lé m disso, não
queremos e xclu ir a possibilidade de que a consciência
tenha se desenvolvido em sistemas que não tenham por
base o carbono, mas que se u tilize m de algum tip o de
química completamente diferente. Por tudo que sabemos
boje, é possível que não houvesse nenhum obstáculo teó­
rico ao desenvolvim ento de consciência em sistemas
constituídos de elementos diferentes. Estamos atualmen-
136 A REDESCOBERTA DA MENTE

te m uito longe de ter uma teoria adequada da neurofisio-


logia da consciência; mas, até que a tenhamos, temos que
manter uma mente aberta sobre seus fundamentos q uím i­
cos possíveis. M eu próprio palpite seria que a neurobio-
logia da consciência deve provavelm ente se revelar pelo
menos tão restrita quanto, digamos, a bioquím ica da d i­
gestão. Há diferentes variedades de digestão, mas nem
tudo pode ser digerido por tudo. E, de maneira semelhan­
te, parece-me provável que venhamos a descobrir que,
embora possa haver variedades bioquim icam ente d ife ­
rentes de consciência, nada resulta.
A lém disso, porque a consciência é inteiram ente cau­
sada pelo com portam ento de fenômenos biológicos de
nível in fe rio r, em prin cípio seria possível produzi-la a rti­
ficialm ente através da reprodução das capacidades cau­
sais do cérebro em condições de laboratório. Sabemos
que m uitos fenômenos biológicos foram gerados a rtifi­
cialm ente. Podemos sintetizar determinados compostos
orgânicos e até produza* a rtificia lm e n te determinados
processos biológicos, como a fotossíntese. Se podemos
produzir a fotossíntese artificialm ente, por que não tam ­
bém a consciência? N o caso da fotossíntese, a form a a rti­
fic ia l do fenôm eno fo i produzida através da reprodução
dos processos quím icos no laboratório. De modo seme­
lhante, se fôssemos produzir consciência artificialm ente,
a maneira natural de agir seria tentar reproduzir o funda­
m ento neurobiológico e fetivo que tem a consciência em
organismos como nós próprios. Porque atualmente não
sabemos exatamente qual é esse fundamento neurobioló­
gico, as perspectivas para ta l “ inteligência a rtific ia l” são
m uito remotas. A lé m disso, como sugeri anteriormente,
CONSCIÊNCIA E SEU LUGAR NA NATUREZA 137

podia ser possível produzir consciência u tiliza nd o algu­


ma espécie de quím ica completamente diferente da que
nossos cérebros usam. Entretanto, uma coisa que sabe­
mos antes mesmo de começarmos a investigação é que
qualquer sistema capaz de causar consciência tem que
ser capaz de reproduzir as capacidades causais do cére­
bro. Se, por exem plo, isso fo r conseguido com circuitos
integrados de s ilíc io em lugar de neurônios, tem que ser
porque a quím ica dos circuitos integrados de s ilíc io é
capaz de reproduzir as capacidades causais específicas
dos neurônios para causar consciência. É uma conseqüên­
cia lógica triv ia l do fato de cérebros causarem consciên­
cia que qualquer outro sistema capaz de causar consciência,
porém usando mecanismos completamente diferentes, te­
ria que ter ao menos o potencial equivalente ao do cérebro
para fazer isto. (Compare: aviões não têm que ter penas pa­
ra voar, mas têm realmente que com partilhar com os pás­
saros a capacidade causai de vencer a força da gravidade
na atmosfera terrestre.)
Para resum ir: nossa imagem do m undo, embora ex­
tremamente com plicada em detalhe, fornece uma e x p li­
cação bastante simples do modo de existência da cons­
ciência. De acordo com a teoria atôm ica, o universo é
constituído de partículas. Essas partículas estão organi­
zadas em sistemas. A lguns desses sistemas são vivos, e
esses tipos de sistemas vivos evoluíram por longos perío­
dos de tempo. Entre eles, alguns desenvolveram cérebros
que são capazes de causar e sustentar consciência. Cons­
ciência é, assim, uma característica biológica de determ i­
nados organismos exatamente no mesmo sentido de “ b io ­
lógico” em que fotossíntese, m itose, digestão e reprodu­
j o são características biológicas de organismos.
138 A REDESCOBERTA DA MENTE

Tentei descrever a posição da consciência em nossa


visão de mundo global em termos m uito simples, porque
quero que pareça absolutamente óbvia. Qualquer um que
tenha tid o ao menos um pouco de instrução “ cie n tífica ”
depois de 1920, mais ou menos, não deveria achar abso­
lutam ente nada de incerto ou controverso no que acabei
de dizer. Vale a pena enfatizar também que tudo isso fo i
dito sem nenhuma das categorias cartesianas tra d icio ­
nais. Não houve nenhuma questão de dualism o, m onis­
mo, m aterialism o ou qualquer coisa do tipo. A lém disso,
não houve nenhuma questão de “ naturalização da cons­
ciência” ; esta já é completamente natural. A consciência,
repetindo, é um fenôm eno b io ló g ico natural. A exclusão
da consciência do mundo natural fo i um a rtifíc io heurís­
tico ú til no século X V II, porque perm itiu aos cientistas
concentrar-se nos fenômenos que eram mensuráveis, ob­
jetivo s e sem propósito, isto é, livres de intencionalidade.
Mas a exclusão fo i baseada num erro. F o i baseada na
falsa crença de que a consciência não é parte do mundo
natural. Essa simples falsidade, mais do que qualquer
outra coisa, mais até do que a absoluta dificuldade de
estudar a consciência com nossas ferramentas científicas
disponíveis, im pediu-nos de chegar a uma compreensão
da consciência.

II. Subjetividade

Os estados e processos mentais conscientes têm uma


característica especial, não encontrada em outros feno-

menos naturais, a saber, a subjetividade. E esta caracte-


CONSCIÊNCIA E SEU LUGAR NA NATUREZA 139

rística da consciência que torna seu estudo tão teim osa­


mente desafiador aos métodos convencionais da pesqui­
sa biológica e psicológica, e mais confuso para a análise
filo só fica . Há diversos sentidos diferentes de “ su b je tivi­
dade” , nenhum deles inteiram ente claro, e preciso dizer
algo pelo menos para aclarar o sentido em que estou de­
clarando que a consciência é subjetiva.
M uitas vezes falam os de juízos “ subjetivos” quando
queremos dizer que sua verdade ou falsidade não pode
ser estabelecida “ objetivam ente” , porque verdade ou fa l­
sidade não é uma simples questão de fato, mas depende
de determinadas atitudes, sentimentos e pontos de vista
dos autores e ouvintes do juízo. Um exemplo de tal ju ízo
podia ser: “ Van Gogh é um artista m elhor que M atisse.”
Neste sentido de subjetividade, contrastamos tais juízos
subjetivos com juízos completamente objetivos, como
este: “ M atisse viveu em N ice durante o ano de 1917.”
Para tais juízos objetivos, podemos v e rific a r que espé­
cies de fatos no mundo os tom am verdadeiros ou falsos,
independentemente das atitudes e sentimentos de qual­
quer pessoa em relação a eles.
Então este sentido em que fa lo de juízos “ objetivos”
e “ subjetivos” não é o sentido de “ subjetivo” em que es­
tou falando da consciência como subjetiva. N o sentido
em que estou usando aqui o term o, “ subjetivo” refere-se
a uma categoria ontológica, não a um m odo epistêm ico.
Considere, por exem plo, a afirmação: “ Agora tenho uma
dor na parte in fe rio r das minhas costas.” Essa afirm ação
e completamente objetiva no sentido de que é tomada ver­
dadeira pela existência de um fato real, e não é depen­
dente de nenhuma posição, atitude ou opinião de obser-
140 A REDESCOBERTA DA MENTE

vadores. Entretanto, o próprio fenômeno, a propria dor


real, tem um modo subjetivo de existência, e é neste sen­
tid o em que estou dizendo que a consciência é subjetiva.
O que mais podemos dizer sobre esse modo subjeti­
vo de existência? Bem, p rim eiro é essencial perceber que
em conseqüência de sua‘subjetividade, a dor não é aces­
sível igualm ente a qualquer observador. Sua existência,
poderíamos dizer, é uma existência de prim eira pessoa.
Para ser uma dor, ela tem que ser dor de alguém ; e isto
num sentido m uito mais fo rte do que o sentido em que
uma perna tem que ser a perna de alguém, por exemplo.
Transplantes de perna são possíveis; neste sentido, trans­
plantes de dor, não. E o que é verdadeiro em relação a
dores é verdadeiro em relação a estados conscientes em
geral. Todo estado consciente é sempre estado consciente
de alguém. E, da mesma form a como tenho uma relação
especial com meus estados conscientes, que não é como
m inha relação com os estados conscientes de outras pes­
soas, assim estas, por sua vez, têm uma relação com seus
estados conscientes que não é com o m inha relação com
seus estados conscientes5. A subjetividade tem a conse­
qüência adicional de todas as minhas form as conscientes
de intencionalidade que me fornecem inform ação sobre
o mundo independentemente de m im mesmo serem sem­
pre de um ponto de vista especial. O mundo mesmo não
tem ponto de vista, mas meu acesso ao mundo através de
meus estados conscientes se dá sempre em perspectiva,
sempre a p a rtir de meu ponto de vista.
Seria d ifíc il agravar os efeitos desastrosos que o fra­
casso em se chegar a um acordo sobre a subjetividade da
consciência provocou na obra da filo s o fia e psicologia
CONSCIÊNCIA E SEU LUGAR NA NATUREZA 141

do ú ltim o m eio século. De form as que não são de modo


algum óbvias na aparência, m uito da falência da m aioria
dos trabalhos na filo s o fia da mente e grande parte da este­
rilidade da psicologia acadêmica nos últim os cinqüenta
anos, ao longo de toda m inha vida intelectual, vieram da
falha persistente em reconhecer e submeter-se ao fato de
que a ontologia do m ental é uma ontologia irre du tivel-
mente de prim eira pessoa. Há razões m uito profundas, m u i­
tas delas embutidas em nossa história inconsciente, pelas
quais achamos d ifíc il, se não im possível, aceitar a idéia
de que o mundo real, o mundo descrito pela física, q uím i­
ca e biologia, contém um elemento subjetivo in e lim in á -
vel. Como poderia ser assim? Como é possível obtermos
uma imagem de mundo coerente se o mundo contém es­
sas entidades conscientes misteriosas? Não obstante, to ­
dos sabemos que somos conscientes na m aior parte de
nossas vidas, e que as outras pessoas à nossa vo lta são
conscientes. E, a menos que estejamos cegos por má filo ­
sofia ou algumas form as de psicologia acadêmica, na ver­
dade não temos nenhuma dúvida de que cães, gatos, ma­
cacos e crianças pequenas são conscientes, e de que sua
consciência é tão subjetiva quanto a nossa própria.
Tentemos, assim, descrever um pouco mais detalha­
damente a imagem do m undo que contém subjetividade
como um elemento de fundação, e então tentemos expor
algumas das dificuldades que temos em nos submeter a
essa imagem de mundo. Se consideramos que o mundo é
constituído de partículas, e que estas partículas estão o r­
ganizadas em sistemas, e que alguns destes sistemas são
Slstemas biológicos, e que alguns destes sistemas b io ló ­
gicos são conscientes, e que a consciência é essencial-
142 A REDESCOBERTA DA MENTE

mente subjetiva - então o que é que nos pedem que ima~


ginemos quando im aginam os a subjetividade da cons-
ciência? A fin a l de contas, todas aquelas outras coisas que
imaginamos - partículas, sistemas, organismos etc. -
eram completamente objetivas. Como conseqüência, são
acessíveis igualm ente a todos os observadores compe­
tentes. Assim , o que é que nos pedem que imaginemos se
estamos prestes a jo g a r dentro deste cadinho m etafísico
algo que é irredutivelm ente subjetivo?
Efetivam ente, o que nos pedem que “ im aginem os” é
simplesmente o m undo que sabemos que existe. Sei, por
exem plo, que estou agora consciente, e que este estado
consciente em que estou tem a subjetividade a que estive
me referindo, e sei que um número m uito grande de ou­
tros organismos como o meu são igualm ente conscientes
e têm estados subjetivos semelhantes. Então, por que
parece que nos estou convidando a im aginar alguma co i­
sa que é d ifíc il, ou contra-intuitivo de alguma form a, quan­
do tudo que estdu fazendo é nos lem brar de fatos que
estão bem à nossa frente desde o princípio? Parte - mas
somente parte - da resposta tem a ver com o fato de que,
bastante ingenuamente, reco rri à palavra “ observador”
no parágrafo anterior. Quando somos solicitados a com­
por uma visão de mundo ou uma imagem de mundo, nós
a compomos de acordo com o m odelo da visão. Ten­
demos, literalm ente, a form ar uma imagem da realidade
como se ela consistisse em porções de m atéria muito
pequenas, “ as partículas” , e então as imaginamos organi­
zadas em sistemas, novamente com aspectos visíveis com­
pactos. Mas, quando visualizamos o mundo com este olho
interno, não podemos enxergar a consciência. Na verda-
CONSCIÊNCIA E SEU LUGAR NA NATUREZA 143

de, é justam ente a subjetividade da consciência que a to r­


na in visíve l de uma form a decisiva. Se tentamos esboçar
uma imagem da consciência de alguém, acabamos sim ­
plesmente p o r desenhar a outra pessoa (talvez com um
balão saindo da cabeça dela). Se tentamos desenhar nossa
p ró p ria consciência, acabamos desenhando o que quer
que seja de que estejamos conscientes. Se a consciência é a
base epistêmica fundamental para atingir a realidade, não
podemos atingir a realidade da consciência daquela manei­
ra. (Formulação alternativa: não podemos atingir a realida­
de da consciência da form a que, utilizando a consciência,
podemos atingir a realidade de outros fenômenos.)

E im portante examinar isto em detalhe e bastante de­


vagar, e não simplesmente passar correndo, do modo
habitual; assim, perm itam -m e passar por esse ponto passo
a passo, em prim eira marcha. Se tento observar a cons­
ciência de outro, o que observo não é sua subjetividade,
mas simplesmente seu comportamento consciente, sua
estrutura, e as relações causais entre estrutura e comporta­
mento. A lém disso, observo as relações causais entre
estrutura e comportamento, de um lado, e, de outro, entre o
ambiente que se choca com ele e contra o qual, por sua
vez, ele se choca. Desta form a, não há maneira em que eu
possa examinar a consciência de outra pessoa de tal m o­
do; antes, o que observo é a pessoa e seu comportamento
e as relações entre ela, o comportamento, a estrutura e o
ambiente. Bem, que dizer de meus próprios eventos in te r­
nos? Não posso observá-los? A ocorrência mesma da
subjetividade, que estamos tentando observar, tom a tal
observação impossível. Por quê? Porque, onde está envol-
Vlda a subjetividade consciente, não há distinção entre a
144 A REDESCOBERTA DA MENTE

observação e a coisa observada, entre a percepção e o


objeto percebido. O m odelo da visão funciona com a pres­
suposição de que há uma distinção entre a coisa vista e a
visão desta coisa. M as, no caso da “ introspecção” , não
há simplesmente nenhuma maneira de fazer ta l separa­
ção. Qualquer introspecção que eu tenha de meu próprio
estado consciente é, ela mesma, esse estado consciente.
Isto não quer dizer que meus fenômenos mentais cons­
cientes não apareçam em m uitos níveis e variações dife ­
rentes - teremos ocasião de exam inar alguns deles em
detalhe mais adiante - , quer dizer, apenas, que o modelo
padrão de observação simplesmente não funciona para a
subjetividade consciente. Não funciona para a consciên­
cia de outras pessoas e não funciona para a própria cons­
ciência de alguém. Por esta razão, a idéia de que pudesse
haver um método especial de investigar a consciência, a
saber, a “ introspecção” , a qual se supõe ser um tip o de
observação interna, estava fadada ao fracasso desde o
p rin cíp io , e não é surpreendente que a psicologia intros­
pectiva tenha malogrado.
Achamos d ifíc il aprender a aceitar a subjetividade,
não somente porque fom os educados numa ideologia que
d iz que, em ú ltim a análise, a realidade tem que ser com­
pletamente objetiva, mas porque nossa idéia de uma rea­
lidade objetivam ente observável pressupõe uma noção
de observação que é, ela mesma, inelim inavelm ente sub­
je tiva , e que não pode ela mesma tom ar-se o objeto de
observação de um modo que os objetos e estados de coi­
sas existentes objetivam ente no mundo podem. Não há,
em resumo, nenhuma m aneira de form arm os uma ima­
gem da subjetividade como parte de nossa visão de mun-
CONSCIÊNCIA E SEU LUGAR NA NATUREZA 145

do, porque, por assim dizer, a subjetividade em questão é


a imaginação. A solução não é tentar desenvolver um
modo especial de imaginação, um tipo de superintrospec-
ção, mas, antes, parar completamente de im aginar neste
ponto, e apenas reconhecer os fatos. Os fatos são que os
processos biológicos produzem fenômenos mentais cons­
cientes, e estes são irredutivelm ente subjetivos.
Para descrever determinados aspectos da su b je tivi­
dade, os filó so fo s inventaram uma outra m etáfora que
me parece ainda mais confusa do que a m etáfora de
senso com um da introspecção: o “ acesso p rivile g ia d o ” .
Somos tentados a substituir a m etáfora visua l de intros­
pecção pela m etáfora espacial do acesso p rivile g ia d o ,
um m odelo que sugere que a consciência é como uma
sala p riva tiva dentro da qual somente nós podemos
entrar. Somente eu posso penetrar no espaço de m inha
própria consciência. M as esta metáfora também não fu n ­
ciona, porque, para haver algo a que tenha acesso p riv ile ­
giado, eu teria que ser diferente do espaço no qual pene­
tro. Contudo, da mesma form a como a m etáfora da
introspecção sucum biu quando a única coisa a ser obser­
vada era a própria observação, assim a m etáfora de um
espaço interno p riva tivo sucumbe quando compreende­
mos que não há nada semelhante a um espaço no qual eu
possa entrar, porque não posso fazer as necessárias d is­
tinções entre os três elementos: eu mesmo, o ato de
entrar e o espaço no qual se espera que eu penetre.
Podíamos resum ir esses pontos dizendo que nosso
m°delo moderno de realidade e da relação entre realida­
de e observação não pode acomodar o fenômeno da sub­
jetividade. O m odelo é aquele em que observadores obje-
146 A REDESCOBERTA DA MENTE

tivos (no sentido epistêm ico) observam uma realidade


objetivam ente (no sentido ontológico) existente. Mas não
há como, neste m odelo, observar o próprio ato da obser­
vação. Porque o ato de observação é o acesso subjetivo
(sentido ontológico) à realidade objetiva. Embora eu pos­
sa facilm ente observar uma outra pessoa, não posso ob­
servar a subjetividade dele ou dela. E, p io r ainda, não pos­
so observar m inha própria subjetividade, pois qualquer
observação que pudesse me interessar fazer é, ela mesma,
aquilo que se esperava que fosse observado. Toda a idéia
de haver uma observação da realidade é precisamente a
idéia de representações (ontologicam ente) subjetivas da
realidade. A ontologia da observação - por ser oposta à
sua epistem ologia - é precisamente a ontologia da subje­
tividade. Observação é sempre observação de alguém; é
em geral consciente; sempre se dá a p a rtir de um ponto de
vista; tem uma impressão subjetiva etc.
Quero esclarecer exatamente o que estou dizendo e
o que não estou dizendo. Não estou sustentando a confu­
sa tese antiquada no sentido de que há um paradoxo auto-
referencial envolvido no estudo da subjetividade. Tais
paradoxos absolutamente não me preocupam. Podemos
usar o olho para estudar o olho, o cérebro para estudar o
cérebro, a consciência para estudar a consciência, a lin ­
guagem para estudar a linguagem , a observação para es­
tudar a observação e a subjetividade para estudar a subje­
tividade. Não há problem a algum em nenhum desses
casos. O problem a é que, por causa da ontologia da sub­
jetividade, nossos modelos de “ estudo” , modelos que con­
fia m na distinção entre observação e coisa observada,
não funcionam para a subjetividade em si.
CONSCIÊNCIA E SEU LUGAR NA NATUREZA 147

Há um sentido, então, no qual consideramos d ifíc il


conceber a subjetividade. Dado nosso conceito de como a
realidade deve ser e de com o seria decifrar essa realida­
de, parece-nos inconcebível que houvesse qualquer coisa
irredutivelm ente subjetiva no universo. Não obstante,
todos sabemos que a subjetividade existe.
Espero que agora possamos enxergar um pouco
mais claramente o que acontece se tentamos descrever o
universo deixando de lado a subjetividade. Suponha que
insistamos em dar uma explicação do mundo que seja
completamente objetiva, não somente no sentido epistê-
mico de que suas afirm ações sejam independentemente
verificáveis, mas no sentido ontológico de que os fenô­
menos que descreve tenham uma existência independen­
te de qualquer form a de subjetividade. Uma vez que
você adote esta estratégia (a p rin cip a l estratégia na filo ­
sofia da mente dos últim os cinqüenta anos), toma-se
então impossível descrever a consciência, porque fica lite ­
ralmente im possível reconhecer a subjetividade da cons­
ciência. Os exemplos disso são realmente numerosos
demais para que os mencionemos aqui, mas citarei dois
autores que tratam explicitam ente do problema da cons­
ciência. Arm strong (1980) tácitamente elim ina a subjetivi­
dade, tratando a consciência simplesmente como uma
capacidade de fazer discriminações sobre os estados inter­
nos próprios de uma pessoa, e Changeux, o neurobiologis-
ta francês, define a consciência meramente como um “ sis­
tema regulador global que trata de objetos mentais e de
computações que usam estes objetos” (1985, p. 145). As
duas descrições pressupõem uma concepção de realidade
de terceira pessoa, uma concepção de uma realidade que
148 A REDESCOBERTA DA MENTE

não é apenas epistemicamente objetiva, mas também


ontologicam ente objetiva; e ta l realidade não tem lugar
para a consciência, pois não tem lugar para a subjetivida­
de ontológica.

III. Consciência e o problem a mente-corpo

A firm e i repetidamente que penso que o problem a


mente-corpo tem uma solução bastante simples, pelo me­
nos em linhas gerais amplas, e que os únicos obstáculos
para que tenhamos uma com pleta compreensão das rela­
ções m ente-corpo são nosso preconceito filo s ó fic o em
supor que o m ental e o físico são dois reinos distintos, e
nossa ignorância das operações do cérebro. Se tivésse­
mos uma ciência do cérebro adequada, uma descrição do
cérebro que fornecesse explicações causais da consciên­
cia em todas as suas form as e variações, e se superásse­
mos nossos erros conceituais, não restaria nenhum pro­
blem a m ente-corpo. Entretanto, a possibilidade de qual­
quer solução para o problem a m ente-corpo fo i vigorosa­
mente desafiada ao longo dos anos pelos escritos de Tho­
mas Nagel (1974, 1986). Ele argumenta o seguinte: no
presente, simplesmente não temos o aparato conceituai
nem sequer para conceber uma solução para o problema
mente-corpo. Isto pelo seguinte m otivo: as explicações
causais nas ciências naturais têm uma espécie de necessi­
dade causai. Entendemos, por exem plo, como o compor­
tamento de moléculas de H 20 faz com que a água esteja
numa form a líquida, porque percebemos que a liquidez é
uma conseqüência necessária do comportamento molecular.
CONSCIÊNCIA E SEU LUGAR NA NATUREZA 149

A teoria m olecular faz mais que m ostrar que sistemas de


moléculas de H 20 estarão líquidas sob determinadas con­
dições; mais exatamente, mostra por que o sistema tem
que estar numa form a líquida. Supondo que entendamos
a física em questão, é inconcebível que as m oléculas se
comportassem daquela m aneira e a água não estivesse
num estado líquido. Em resumo, Nagel argumenta que as
explicações na ciência im plicam necessidade, e a neces­
sidade im p lica inconceptibilidade do oposto.
Então, diz N agel, não podemos obter esse tip o de
necessidade para a relação entre m atéria e consciência.
Nenhuma descrição possível do comportamento neurôni-
co explicaria por que, dado esse com portam ento, temos
que estar, por exem plo, com dor. Nenhuma descrição
poderia explicar por que a dor fo i a conseqüência neces­
sária de certos tipos de descargas neurônicas. A prova de
que a descrição não nos fornece necessidade causai é que
podemos sempre conceber o oposto. Podemos sempre con­
ceber um estado de coisas no qual a neu ro fisiolo gia se
comporte de qualquer m aneira que você queira especifi­
car, mas no qual, mesmo assim, o sistema não esteja com
dor. Se a explanação científica conveniente im plica neces­
sidade, e necessidade im plica inconceptibilidade do opos-
to, então, por contraposição, a conceptibilidade do oposto
im plica que não tenhamos necessidade, o que, por sua
vez, im p lica que não tenhamos uma explanação. A con­
clusão desesperadora de Nagel é que precisaríamos de um
importante exame de nosso aparato conceituai se tivésse­
mos que ser algum dia capazes de resolver o problem a
mente-corpo.
150 A REDESCOBERTA DA MENTE

Não estou convencido p or esta argumentação. P ri­


m eiro, deveríamos notar que nem todas as explanações
na ciência têm o gênero de necessidade que encontramos
na relação entre o m ovim ento de m oléculas e a liquidez.
Por exem plo, a le i do inverso do quadrado é uma descri­
ção da gravidade, mas não mostra por que os corpos têm
que te r atração gravitacional. Em segundo lugar, a apa­
rente “ necessidade” de qualquer explicação científica pode
ser meramente uma função do fato de que consideramos
a explicação tão convincente que não podemos, por
exem plo, conceber as m oléculas se m ovim entando de
um modo particular e a H 20 não sendo líquida. Um a pes­
soa na Antiguidade ou na Idade M édia podia não ter con­
siderado a explicação uma questão de “ necessidade” . O
“ m istério” da consciência hoje é aproximadamente da
mesma espécie que o m istério da vida antes do desenvol­
vim ento da bio log ia m olecular ou o m istério do eletro-
magnetismo antes das equações de C lerk-M axw ell. Parece
m isterioso porque não sabemos como o sistema de neu-
rofisiologia/consciência funciona, e um conhecimento ade­
quado de como ele funciona e lim inaria o m istério. Além
disso, a afirm ação de que poderíamos sempre conceber a
possibilidade de que determinados estados cerebrais po­
dem não causar os estados conscientes apropriados podia
simplesmente estar subordinada à nossa ignorância sobre
como o cérebro funciona. Dado um completo entendimen­
to do cérebro, parece-me provável que consideraríamos
óbvio que, se o cérebro estivesse em um determinado ti­
po de estado, teria que ser consciente. Repare que já acei­
tamos essa form a de necessidade causai de estados cons­
cientes para fenômenos visíveis em geral. Por exemplo, se
CONSCIÊNCIA E SEU LUGAR NA NATUREZA 151

vejo um homem gritando com seu pé preso numa prensa


de perfuração, então sei que o homem deve estar com uma
dor terrível. Para m im é inconcebível, em certo sentido, que
um ser humano norm al estivesse em tal situação e não
sentisse uma dor terrível. As causas físicas tom am neces­
sária a dor.
Entretanto, admitamos a parte essencial da exposi­
ção de Nagel para a finalidade de argumentação. Nada se
deduz acerca de como o m undo realmente funciona. A
lim itação para que Nagel chama a atenção é apenas uma
lim itação de nossas capacidades de concepção. M esmo
adm itindo que ele esteja certo, o que sua argumentação
mostra é somente que, no caso das relações entre fenô­
menos m ateriais e fenômenos m ateriais, podemos subje­
tivamente form ar uma imagem de ambos os lados da
relação; mas, no caso das relações entre fenômenos mate­
riais e fenômenos mentais, um lado da relação já é subje­
tivo, e, portanto, não podemos conceber sua relação com
os fenômenos m ateriais da maneira que podemos conce­
ber as relações entre liquidez e m ovim ento de m oléculas,
por exemplo. A argumentação de Nagel, em resumo,
mostra somente que não podemos arrancar a subjetivida­
de de nossa consciência para perceber sua necessária
relação com seu fundam ento m aterial. Formamos uma
imagem de necessidade baseada na nossa subjetividade,
mas não podemos dessa m aneira form ar uma imagem da
necessidade da relação entre a subjetividade e os fenô­
menos neurofisiológicos, porque já estamos na su b je tivi­
dade, e a concepção da relação e xig iria que saíssemos
^ la . (Se a solidez fosse consciente, iria parecer-lhe m is­
terioso que fosse causada por m ovim entos vibratórios
152 A REDESCOBERTA DA MENTE

das moléculas em estruturas cristalinas, mas mesmo assim


esses movimentos explicam a solidez.)
Você pode avaliar esta objeção a Nagel se im aginar
outras maneiras de detectar relações causalmente neces­
sárias. Suponha que Deus ou uma m áquina pudessem
simplesmente detectar relações causalmente necessárias;
então, para Deus ou a m áquina não haveria nenhuma d i­
ferença entre form as de necessidade m atéria/m atéria e
form as de necessidade matéria/m ente. A lé m disso, mes­
mo se adm itirm os que não podemos conceber ambos os
lados da relação, no caso da consciência e do cérebro, de
uma m aneira que nos perm ita conceber ambos os lados
da relação entre liq u id e z e m ovim ento, poderíamos, to ­
davia, chegar às relações causais envolvidas na produção
da consciência por meios indiretos. Suponha que efetiva­
mente tivéssemos uma descrição dos processos neurofi-
siológicos do cérebro que causam consciência. Não é de
todo im possível qqe conseguíssemos tal descrição, por­
que os testes usuais para relações causais podem ser apli­
cados às relações do cérebro/consciência da mesma
form a que podem ser aplicados a quaisquer fenômenos
naturais. O conhecim ento das relações causais law like
nos fornecerá toda a necessidade causal de que precisa­
mos. Na verdade, já dispomos dos rudim entos de tais
relações law like. Com o m encionei no capítulo 3, os
livro s didáticos padrões de n eurofisiologia costumam
explicar, por exem plo, as semelhanças e diferenças entre
o m odo como os gatos e os seres humanos vêem as coi­
sas. Não há nenhuma dúvida de que determinados tipos
de semelhanças e diferenças neurofisiológicas são cau­
salmente suficientes para determinados tipos de seme-
CONSCIÊNCIA E SEU LUGAR NA NATUREZA 153

lhanças e diferenças em experiências visuais. A lé m d is­


so, podemos e irem os decompor a grande questão -
como o cérebro causa consciência? - em uma porção de
questões menores (por exem plo: como a cocaína produz
determinadas experiências características?). E as respos­
tas detalhadas que estamos começando a dar (por exem­
plo: a cocaína obstrui a capacidade de determinados re ­
ceptores sinápticos de reabsorver a norepinefrina) já
levam em consideração as inferências características que
acompanham a necessidade causal (por exem plo: se você
eleva a dose de cocaína, intensifica o efeito). Concluo que
Nagel não demonstrou que o problem a m ente-corpo seja
insolúvel, mesmo dentro de nosso aparato conceituai e
nossa visão de mundo correntes.
C olin M cG inn (1991) leva o argumento de Nagel
um passo adiante, e defende que é im possível, em p rin c i­
pio, que fôssemos algum dia capazes de conhecer a solu­
ção do problem a m ente-corpo. Seu argumento va i além
do de Nagel e envolve assunções que Nagel não estabe­
lece, ao menos não de form a explícita. Porque as assun­
ções de M cG inn são vastamente compartilhadas na tra d i­
ção filo só fica do dualism o, e porque neste liv ro estou -
entre outras coisas - tentando superar essas assunções,
vou apresentá-las explicitam ente e tentar demonstrar que
são falsas. M cG inn admite que:

1. Consciência é uma espécie de “ coisa” 6.


2. Esta coisa é conhecida pela “ faculdade da intros-
pecção” . Consciência é o “ objeto” da faculdade introspec-
bva, da mesma forma como o mundo físico é o objeto da
faculdade de percepção (pp. 14 ss. e 61 ss.).
154 A REDESCOBERTA DA MENTE

É um a conseqüência de 1 e 2, em bora eu não esteja


certo se M c G in n a aprova, que a consciencia, com o ta l,
com o conhecida pela introspecção, não é espacial; em
contraste com o m undo fís ic o , o qual, com o ta l, com o
conhecido pela percepção, é espacial.

3. Para que tenhamos uma compreensão das relações


mente-corpo, teríamos que entender “ o elo” entre cons­
ciência e o cérebro (passim).

M c G in n não d u vid a de que haja um ta l “ e lo ” , mas


acredita que seja im possível para nós, em p rin cíp io , com -
preendê-lo. E le d iz, u tiliz a n d o o term o de K a n t, que para
nós a relação é “ num enal” . E im possível, para nós, enten­
der esse e lo e, portanto, im p o ssível entender as relações
m ente-corpo. M c G in n crê que o elo é proporcionado por
um a estrutura o cu lta de consciência que é inacessível à
introspecção.
Essas três assunções são cartesianas, e a “ solução”
proposta é um a solução ao e stilo cartesiano (com a des­
vantagem a d icio n a l de que a estrutura o cu lta da cons­
ciê n cia é in co g n o scíve l em p rin c íp io . P elo menos, a
glândula p in e a l era in te lig ív e l!). E ntretanto, com o no
caso da glâ n du la p in e a l, a solução não é nenhum a solu­
ção. Se você precisa de um elo entre a consciência e o
cérebro, então você precisa de um elo entre a estrutura
o culta da consciência e o cérebro. A postulação de uma
estrutura o cu lta - m esm o se fosse in te lig ív e l - não nos
leva a lu g a r nenhum .
O verdadeiro p roblem a é com as três assunções; na
verdade, acredito que elas inco rpo ra m a m a io ria dos
CONSCIÊNCIA E SEU LUGAR NA NATUREZA 155

erros do dua lism o tra d ic io n a l ao lo n g o dos ú ltim o s tre ­


zentos anos. E specificam ente:

1. A consciência não é uma “ coisa” ; é uma caracte­


rística ou propriedade do cérebro no sentido em que, por
exemplo, a liquidez é uma característica da água.
2. A consciência não é conhecida pela introspecção de
uma forma análoga à que os objetos no mundo são conhe­
cidos pela percepção. Desenvolvo este assunto no próximo
capítulo, e já comecei a discuti-lo neste; portanto, vou
apresentá-lo aqui de forma muito simples: o modelo de
“ (in)speção intro” , isto é, o modelo de uma inspeção inter­
na, requer a distinção entre o ato de inspecionar e o objeto
inspecionado, e não podemos fazer nenhuma distinção
semelhante para a consciência. A doutrina da introspecção
é um bom exemplo do que Wittgenstein chama de enfeiti-
çamento de nossa inteligência por meio da linguagem.
Além disso, uma vez que você se livra da idéia de que
a consciência é uma coisa que é o “ objeto” da introspecção,
é fá cil perceber que é espacial, porque está localizada no
cérebro. Não estamos cientes, na experiência consciente,
nem da localização espacial nem das dimensões de nossa
experiência consciente, mas por que deveríamos? Entender
qual é exatamente a localização da experiência consciente
em nossos cérebros é uma questão neurofisiológica extre­
mamente complicada, e que estamos muito longe de resol­
ver. Ao que nos é dado supor, poderia estar distribuída por
porções muito vastas do cérebro.
3. Não há nenhum “ elo” entre a consciência e o cére­
bro, assim como nenhum elo entre a liquidez da água e as
moléculas de H 20 . Se a consciência é uma característica
de alto nível do cérebro, então não pode haver nenhuma
dúvida sobre a existência de um elo entre a característica
e o sistema do qual esta é uma característica.
156 A REDESCOBERTA DA MENTE

IV. Consciência e vantagem seletiva

M inha abordagem da filo so fia da mente, o naturalis­


mo biológico, é às vezes confrontada com o seguinte desa­
fio : se é possível im aginar o mesmo comportamento, ou
um comportamento semelhante, sendo produzido por um
zum bi inconsciente, então por que, afinal, a evolução pro­
duziu consciência? Na verdade, isto é muitas vezes apre­
sentado a fim de sugerir que talvez a consciência nem se­
quer exista. Logicamente, não vou tentar demonstrar a
existência da consciência. Se uma pessoa não é consciente,
não há como eu possa demonstrar a existência da consciên­
cia para ela; se é consciente, é m uito mais inconcebível que
ela pudesse duvidar seriamente de que fosse consciente.
Não digo que não existam pessoas filosoficam ente tão con­
fusas que afirm em duvidar de que sejam conscientes, mas
acho realmente d ifíc il levar tais afirmações m uito a sério.
A o responder à pergunta sobre o papel evolutivo da
consciência, quero rejeitar o pressuposto im p lícito de que
cada traço biologicam ente herdado tenha que proporcio­
nar alguma vantagem evolutiva ao organismo. Isto me
parece um darw inism o excessivamente grosseiro, e hoje
temos todo tip o de boas razões para abandoná-lo. Se fosse
verdadeiro que cada predisposição inata de um organismo
fosse o resultado de alguma pressão seletiva, então eu teria
que concluir que meu cachorro fo i selecionado para correr
atrás de bolas de tênis. Ele tem paixão por correr atrás de
bolas de tênis, e obviamente não se trata de algo que tenha
aprendido, mas isto não é m otivo para supor que deva
conter alguma decisão biológica. Ou, de form a mais dire­
ta, a paixão que seres humanos têm por esquiar na neve,
CONSCIENCIA E SEU LUGAR NA NATUREZA 157

creio eu, tem um fundamento biológico que não é o resul­


tado de aprendizado ou condicionamento. A difusão do
esqui fo i simplesmente fenomenal; e os sacrifícios que as
pessoas estão dispostas a fazer em termos de dinheiro,
conforto e tempo para fica r poucas horas numa rampa de
esqui é, ao menos, um ind ício bastante forte de que elas
obtêm disto prazeres que são inerentes à sua natureza bio­
lógica. Mas, simplesmente, não é o caso de que fôssemos
selecionados através da evolução para nossa predileção
por esquiar na neve7.
Com essas ressalvas, podemos ainda fazer a pergunta:
“ Qual é a vantagem evolutiva da consciência?” E a respos­
ta é que a consciência faz toda espécie de coisas. Para
começar, há todo tipo de formas de consciência, como v i­
são, audição, paladar, olfato, sede, dores, cócegas, ânsias e
ações voluntárias. Em segundo lugar, dentro de cada uma
dessas áreas pode haver uma variedade de funções desem­
penhadas pelas form as conscientes dessas diferentes mo­
dalidades. Entretanto, falando em termos mais gerais, pa­
rece claro que a consciência serve para organizar um de­
terminado conjunto de relações tanto entre o organismo e
seu ambiente quanto entre o organismo e seus próprios
estados. E, novamente falando em termos m uito gerais, a
forma de organização podia ser descrita como “ represen­
tação” . Através das modalidades sensoriais, por exemplo,
o organismo obtém informações conscientes sobre o esta­
do do mundo. Ouve sons nos seus arredores; vê objetos e
estados de coisas em seu campo de visão, percebe odores
específicos de aspectos distintos de seu ambiente etc.
Além de sua experiência sensorial consciente, o organis-
mo terá também, característicamente, experiências de
158 A REDESCOBERTA DA MENTE

ação. Irá correr, andar, comer, lu ta r etc. Essas form as de


consciencia não têm, basicamente, o propósito de obter
informações sobre o mundo; antes, são casos em que a
consciência perm ite ao organismo agir sobre o mundo,
produzir efeitos no mundo. Falando novamente bem gros­
so modo - e discutirem os essas questões em termos mais
precisos mais adiante podemos dizer que na percepção
consciente o organismo tem representações causadas por
estados de coisas no mundo, e, no caso de ações intencio­
nais, o organismo provoca estados de coisas no mundo
através de suas representações conscientes.
Se esta hipótese está correta, podemos fazer uma
afirm ação geral sobre a vantagem seletiva da consciên­
cia: a consciência nos dá poderes de discrim inação muito
maiores do que teriam os mecanismos inconscientes.
Os estudos de caso de Penfield (1975) confirm am isto.
Alguns dos pacientes de Penfield sofriam de uma forma
de epilepsia conhecida como p e tit m al. Em alguns destes
casos, o ataque epiléptico deixava o paciente totalmente
inconsciente, ainda que este continuasse a e x ib ir o que
seria norm alm ente chamado de comportamento dirigido
a um objetivo. A q u i estão alguns exemplos:

Um paciente, a quem chamarei A, era um dedicado


estudante de piano e sujeito a automatismos do tipo deno­
minado petit mal. Era propenso a fazer uma ligeira inter­
rupção na sua prática, que sua mãe reconhecia como o
início de uma “ ausência” . Então, ele continuaria a tocar
por um tempo com destreza considerável. O paciente B
era sujeito a automatismo epiléptico que começava com
derrame no lóbulo temporal. Algumas vezes, o ataque so
brevinha enquanto ele estava andando para casa, vindo
CONSCIÊNCIA E SEU LUGAR NA NATUREZA 159

trabalho. Ele continuava a andar e a ziguezaguear pelas


ruas movimentadas no seu caminho para casa. Podia dar-
se conta mais tarde de que tinha tido um ataque porque
havia uma lacuna na sua memória relativa a uma parte do
caminho, como da avenida X até a rua Y. Se o paciente C
estava dirigindo um carro, continuaria a dirigir, embora
descobrisse mais tarde que tinha atravessado um ou mais
sinais fechados (p. 39).

Em todos esses casos, temos form as complexas de


comportamento aparentemente d irig id o a um objetivo
sem nenhuma consciência. Então por que todo com por­
tamento não poderia ser como esse? O que a consciência
acrescenta? Repare que, nos casos, os pacientes estavam
executando tipos de ações que eram habituais, rotineiras
e memorizadas. H avia, presum ivelm ente, trilhas neurais
bem estabelecidas no cérebro do homem, corresponden­
tes ao seu conhecimento do cam inho de casa, e, de modo
semelhante, o pianista presum ivelm ente tinha o conheci­
mento de como tocar a composição m usical específica
gravado em trilhas neurais no seu cérebro. O com porta­
mento com plexo pode ser pré-program ado na estrutura
do cérebro, pelo menos até onde sabemos algo sobre como
o cérebro funciona em tais casos. Aparentemente, uma
Vez iniciada, a atividade pode seguir seu curso mesmo
durante um ataque de p e tit mal. N o entanto, o com porta­
mento consciente norm al, humano, tem um grau de fle x i­
bilidade e criatividade que está ausente nos casos de
Penfield do m otorista inconsciente e do pianista incons-
Clente. A consciência adiciona capacidades de d iscrim i-
nação e fle xib ilid a d e mesmo a atividades rotineiras me-
m°rizadas.
160 A REDESCOBERTA DA MENTE

Aparentemente, é apenas um fato da b io lo g ia que


organismos dotados de consciência tenham, em geral,
poderes m uito maiores de discrim inação do que aqueles
que não a têm. Os tropism os vegetais, por exem plo, que
são sensíveis à lu z, são m uito menos capazes de fazer
discrim inações sutis e m uito menos flexíveis do que, por
exem plo, o aparelho visual humano. A hipótese que es­
tou propondo, então, é que uma das vantagens evolutivas
conferidas a nós pela consciência é a fle xib ilid a d e , sensi­
bilidade e criatividade m uito maiores que derivam os do
fato de sermos conscientes.
As tradições behaviorista e m ecanicista que herda­
mos nos cegam para esses fatos; na verdade, tom am im ­
possível até propor as questões de form a apropriada, por­
que buscam constantemente formas de explanação que
tratam o m ental-neurofisiológico como algo que mera­
mente proporciona um mecanismo de input e output, uma
função que faz a passagem de estímulos de input a com­
portamentos de output. Os próprios termos em que as
questões são propostas tom am im possível a introdução
de tópicos que são cruciais para a compreensão da cons­
ciência, como a criatividade, por exemplo.
C A P ÍT U LO 5
r e d u c io n is m o e a
IR R ED U TIBILID AD E
DA CONSCIÊNCIA

A concepção da relação entre mente e corpo que es­


tive apresentando é às vezes denominada “ reducionista” ,
outras vezes “ anti-reducionista” . É freqüentemente deno­
minada “ emergentismo” , e em geral vista como urna forma
de “ superveniência” . Não estou seguro de que qualquer
uma dessas atribuições seja de algum m odo clara, mas
muitas questões envolvem esses termos m isteriosos, e
neste capítulo explorarei algumas delas.

P Propriedades emergentes

Suponha que eu tenha um sistema, S, constituído de


elementos a, b, c... Por exemplo, S podia ser uma pedra e
os elementos podiam ser moléculas. Em geral, haverá
características de S que não são, ou não necessariamente, ca­
racterísticas de a, b, c... Por exemplo, S podia pesar cinco
quilos, mas as moléculas individualm ente não pesam cin-
c° quilos. Chamemos tais características de “ característi-
162 A REDESCOBERTA DA MENTE

cas do sistema” . A form a e o peso da pedra são caracterís­


ticas do sistema. Algum as características do sistema po­
dem ser deduzidas ou concebidas ou calculadas a p a rtir
das características de a, b, c... simplesmente a p a rtir da
maneira em que estes estão combinados e dispostos (e às
vezes a p a rtir de suas relações com o resto do ambiente).
Exem plos disto seriam form a, peso e velocidade. Mas
algumas outras características do sistema não podem ser
concebidas meramente a p a rtir da composição dos ele­
mentos e relações ambientais; têm que ser explicadas em
termos das interações causais entre os elementos. Vamos
chamar estas de “ características do sistema causalmente
emergentes” . Solidez, liquidez e transparência são exem­
plos de características do sistema causalmente em er­
gentes.
Em face dessas definições, a consciência é uma pro-
a
priedade causalmente emergente de sistemas. E uma carac­
terística emergente de determinados sistemas de neurônios
da mesma form a que^solidez e liqu id e z são característi­
cas emergentes de sistemas de moléculas. A existência da
consciência pode ser explicada pelas interações causais
entre elementos do cérebro no nível m icro, mas a cons­
ciência em si não pode ser deduzida ou presumida a par­
tir da mera estrutura física dos neurônios, sem alguma*
descrição adicional das relações causais entre eles.
Esta concepção de emergência causai, denominemo-
la “ emergente 1” , tem que ser distinguida de uma concep­
ção m uito mais ousada, denom inem o-la “ emergente 2”
Um a característica C é emergente 2 sse C é emergente 1,
e C tem capacidades causais que não podem ser explica­
das pelas interações causais de a, b, c... Se a consciência
REDUCIONISMO E a IRREDUT1BJLIDADE DA CONSCIÊNCIA 163

fosse emergente 2, então a consciência poderia causar


coisas que não poderiam ser explicadas pelo com porta­
mento causai dos neurônios. A idéia ingênua, aqui, é que
a consciência brota do comportamento dos neurônios no
cérebro, mas depois de brotar tem vida própria.
D everia ter ficado evidente com base no capítulo an­
terior que, na m inha opinião, a consciência é emergente 1,
mas não emergente 2. De fato, não posso pensar em algo
que seja emergente 2, e parece im provável que sejamos
capazes de descobrir quaisquer características que sejam
emergentes 2, porque a existência de quaisquer caracte­
rísticas semelhantes pareceria vio la r até o mais fraco
princípio da transitividade da causação.

II. Reducionismo

Em sua m aioria, as discussões do reducionism o são


extremamente confusas. O reducionismo como um ideal
parece ter sido uma característica da filo so fia positivista da
ciência, uma filo so fia hoje desacreditada em m uitos aspec­
tos. Entretanto, discussões do reducionismo ainda sobrevi­
vem, e a intuição básica que subjaz ao conceito de reducio­
nismo parece ser a idéia de que fosse possível demonstrar
que determinadas coisas são nada exceto alguns outros
tipos de coisas. O reducionismo, então, leva a uma form a
peculiar da relação de identidade que podíamos também
chamar de relação “ nada-exceto” : em geral, A ’s podem ser
reduzidos a B *s sse A ’s são nada exceto B ’s.
Entretanto, mesmo dentro da relação nada-exceto,
as pessoas querem dizer tantas coisas diferentes com a
164 A REDESCOBERTA DA MENTE

noção de “ redução” que precisamos começar por fazer


diversas distinções. Já de início, é importante deixar claro
de que tip o são os relata da relação. Qual se supõe que
seja seu dom ínio: objetos, propriedades, teorias, ou o quê?
Percebo pelo menos cinco sentidos diferentes de “ redu­
ção” - ou talvez deveria dizer cinco tipos diferentes de
redução - na literatura teórica, e quero mencionar cada um
deles de modo que possamos observar quais são relevan­
tes para nossa discussão do problema mente-corpo.

1. Redução ontológica
A mais im portante form a de redução é a redução
ontológica. É a form a na qual se pode demonstrar que
objetos de determinados tipos consistem em nada exce­
to objetos de outros tipos. Por exemplo, pode-se demons­
trar que cadeiras são nada exceto coleções de moléculas.
Esta form a é claramente im portante na história da ciên­
cia. Por exem plo, pode-se demonstrar que objetos mate­
ria is em geral são nada exceto coleções de moléculas,
pode-se demonstrar qu£ genes consistem em nada exceto
m oléculas de D N A . Parece-me que esta form a de redu­
ção é aquilo a que estão visando as outras formas.

2. Redução ontológica de propriedades


Esta é uma form a de redução ontológica, mas diz
respeito a propriedades. Por exem plo, o calor (de um
gás) é nada exceto a energia cinética média dos m ovi­
mentos das m oléculas. As reduções de propriedades no
caso de propriedades correspondentes a termos teóricos,
como “ calor” , “ luz” etc., são freqüentemente um resulta­
do de reduções teóricas.
RED UCIONISMO E AIRREDVTIBILIDADE DA CONSCIÊNCIA 165

3. Redução teórica
Reduções teóricas são as favoritas de teóricos na lite ­
ratura, mas me parecem bastante raras na prática efetiva da
ciência, e talvez não seja surpreendente que a mesma meia
dúzia de exemplos seja repetidamente dada nos livro s didá­
ticos padrões. D o ponto de vista da explanação científica,
as reduções teóricas são interessantes sobretudo se nos per­
mitem realizar reduções ontológicas. De qualquer maneira,
a redução teórica é basicamente uma relação entre teorias,
em que as leis da teoria reduzida podem (mais ou menos)
ser deduzidas a partir das leis da teoria redutora. Isto de­
monstra que a teoria reduzida é nada exceto um caso espe­
cial da teoria redutora. O exemplo clássico que se costuma
apresentar em livros didáticos é a redução das leis dos
gases às leis da termodinâmica estatística.

4. Redução lógica ou d efin icio n al


Esta form a de redução já fo i uma grande favorita
entre
/ os filósofos, mas saiu de moda nas últim as décadas.
E uma relação entre palavras e sentenças, em que palavras
e sentenças referentes a um tipo de entidade podem ser
traduzidas sem nenhum resíduo naquelas que se referem a
um outro tipo de entidade. Por exemplo, sentenças sobre o
bombeiro padrão em Berkeley são redutíveis a sentenças
sobre bombeiros individuais específicos em Berkeley;
sentenças sobre números, de acordo com uma teoria, po­
dem ser traduzidas em, e portanto são redutíveis a, senten­
ças sobre séries. Já que as palavras e sentenças são redutí­
veis logicamente ou definicionalm ente, as entidades cor­
respondentes a que se referem as palavras e sentenças são
ortológicam ente redutíveis. Por exemplo, números são
nada exceto conjuntos de conjuntos.
166 A REDESCOBERTA DA MENTE

5. Redução causal
Esta é uma relação entre quaisquer dois tipos de co i­
sas que possam ter capacidades causais, em que se
demonstra que a existência e, a fo r tio r i, as capacidades
causais da entidade reduzida são inteiram ente explicá­
veis em termos das faculdades causais dos fenômenos
redutores. Assim , por exem plo, alguns objetos são s ó li­
dos, e isto tem conseqüências causais; objetos sólidos
são im penetráveis por outros objetos, são resistentes a
pressão etc. M as essas capacidades causais podem ser
explicadas causalmente pelas capacidades causais de
m ovim entos vibratórios das moléculas em estruturas em
agregados.
Ora, quando as concepções em que tenho insistido são
acusadas de serem reducionistas - ou às vezes insuficiente­
mente reducionistas - , quais desses vários sentidos efeti­
vamente os acusadores têm em mente? Penso que redução
teórica e redução lógica não são os intencionados. Aparen­
temente, a questão é se o reducionismo causai de minha
concepção induz - ou fracassa em induzir - à redução onto-
lógica. Sustento uma visão de relações mente/cérebro que é
uma forma de redução causai, conforme defini a noção: ca­
racterísticas mentais são causadas por processos neurobio-
lógicos. Isto im plica redução ontológica?
Geralmente, na h istória da ciência, as reduções cau­
sais bem-sucedidas tendem a levar a reduções ontológi-
cas. Porque, onde temos uma redução causai bem-sucedi­
da, simplesmente redefinim os a expressão que denota os
fenômenos reduzidos de ta l form a que os fenômenos em
questão possam então ser identificados com suas causas.
Assim , por exemplo, termos relativos a cores foram uma
r e d ü c io n is m o e a ir r e d u t ib il id a d e d a c o n s c iê n c ia 167

vez (tácitam ente) definidos em termos da experiência


subjetiva de quem percebe as cores; por exem plo, “ ver­
m elho” fo i d efinido ostensivamente através do ato de
apontar para exemplos, e então o verm elho real fo i d e fi­
nido como o que quer que parecesse verm elho para ob­
servadores “ norm ais” sob condições “ norm ais” . Mas, uma
vez que tenhamos uma redução causai de fenômenos
cromáticos a reflectâncias de luz, então, segundo m uitos
pensadores, toma-se possível re d e fin ir expressões re la ti­
vas a cores em termos de reflectâncias de luz. Assim ,
cortamos e elim inam os da cor “ real” a experiência subje­ ■

tiva da cor. A cor real sofreu uma redução ontológica de


propriedades a reflectâncias de luz. Observações seme­ p
tiu,
lhantes poderiam ser feitas sobre a redução de calor a
£iri¡i
m ovim ento m olecular, a redução de solidez a m ovim en­
^ ■ -ií
tos m oleculares em estruturas em agregados e a redução
de som a ondas propagadas no ar. Em cada caso, a redu­ UJt
ção causal leva naturalm ente a uma redução ontológica
através de uma redefinição da expressão que designa o
O
fenômeno reduzido. Assim , para continuar com o exem­ i. b
plo do “ verm elho” , uma vez que saibamos que experiên­ .r;V;á
iílw t

cias cromáticas são causadas por uma determinada espé­ ULÜ


td )i
cie de emissão de fótons, então redefinim os a palavra em
termos das características específicas da emissão de fó ­ tü
tons. “ Vermelho” , segundo alguns teóricos, agora se refe­
re a emissões de fótons de 600 nanômetros. Assim , segue-
se trivialm ente que a cor vermelha é nada exceto emissões
de fótons de 600 nanômetros.
O princípio geral em tais casos parece ser este: quan­
do se percebe que uma propriedade é emergente 1, auto­
maticamente obtemos uma redução causal, e esta leva a
168 A REDESCOBERTA DA MENTE

uma redução ontológica, por redefinição se necessário. A


tendência geral em reduções ontológicas que têm um
fundamento cien tífico é em direção a uma m aior genera­
lidade, objetividade e redefinição em termos de causação
subjacente.
Até aqui tudo bem. Agora, porém, aproxímamo-nos
de uma assimetria aparentemente chocante. Quando che­
gamos à consciência, não podemos realizar a redução
ontológica. Consciência é uma propriedade causalmente
emergente do comportamento de neurônios, e, portanto, a
consciência é causalmente redutível aos processos do
cérebro. Porém - e isto é o que parece tão chocante
mesmo uma ciência perfeita do cérebro não levaria a uma
redução ontológica da consciência da form a que nossa
ciência atual pode reduzir calor, solidez, cor ou som, Para
muitas pessoas cujas opiniões eu respeito, parece que a
irredutibilidade da consciência é uma razão prim ária pela
qual o problem a m ente-corpo continua a parecer tão in­
tratável. Os dualistas consideram a irredutibilidade da
consciência como prova incontroversa da verdade do
dualismo. Os m aterialistas insistem em que a consciência
tem que ser redutível à realidade m aterial, e que o preço
da negação da redutibilidade da consciência seria o aban­
dono de nossa visão de mundo científica global.
D iscutirei sucintamente duas questões: primeiro,
quero m ostrar por que a consciência é irredutível e, em
segundo lugar, mostrar por que não faz absolutamente ne­
nhuma diferença para nossa visão de mundo científica que
ela seja irredutível. Isto não nos obriga a aceitar o dualis­
mo de propriedades ou qualquer coisa do tipo. É uma con­
seqüência triv ia l de determinados fenômenos mais gerais.
r e d u c io n is m o e a ir r e d u t ib il id a d e d a c o n s c iê n c ia 169

111. P o r que a consciência é uma característica


irre du tíve l da realidade fís ic a

Há um argumento padrão para demonstrar que a


consciência não é redutível da mesma form a que calor
etc. De diferentes maneiras o argumento aparece no tra­
balho de Thomas N agel (1974), Saul K rip ke (1971) e
Frank Jackson (1982). C reio que o argumento é decisivo,
embora seja freqüentemente m al interpretado ao ser trata­
do como meramente epistêm ico, e não ontológico. Às
vezes é tratado como um argumento epistêmico, no senti­
do de que, por exem plo, o conhecimento objetivo, do tipo
terceira pessoa, que possivelm ente podíamos ter da neu-
rofisiologia de um m orcego não in clu iria , contudo, a
experiência subjetiva, de prim eira pessoa, relativa a como
é ser um morcego. Mas, para nossas finalidades presen­
tes, a parte essencial do argumento é ontológica, e não
epistêmica. E uma questão relativa a quais características
reais existem no mundo, e não, a não ser secundariamen­
te, sobre como conhecemos essas características.
Eis aqui como se desenrola: considere quais fatos no
mundo fazem com que você esteja agora em um determ i­
nado estado consciente, como com dor, por exem plo.
Que fato no mundo corresponde ao enunciado verdadei-
ro: “ Estou neste m om ento com dor” ? Ingenuamente,
parece haver pelo menos dois tipos de fatos. P rim eiro, e
mais im portante, há o fato de que você está neste m o-
^ento tendo determinadas sensações conscientes desa­
gradáveis, e está experimentando essas sensações a p a rtir
Seü Ponto de vista de prim eira pessoa, subjetivo. São
eSsas Sensações que são constitutivas de sua presente dor.
170 A REDESCOBERTA DA MENTE

Mas a dor é também causada por determinados processos


neurofisiológicos subjacentes que consistem, em grande
parte, de disposições de descarga de neurônios dentro do
tálam o e outras regiões de seu cérebro. Agora, suponha
que tentássemos reduzir a sensação de dor subjetiva, cons-
ciente, de p rim e ira pessoa, às disposições de descargas
neurônicas objetivas, de terceira pessoa. Suponha que
tentássemos dizer que a dor é na verdade “ nada exceto”
as disposições de descargas de neurônios. Bem , se ten­
tássemos uma ta l redução ontológica, as características
essenciais da dor seriam deixadas de lado. Nenhuma des­
crição dos fatos de terceira pessoa, objetivos, fis io ló g i­
cos com unicariam o caráter subjetivo, de prim eira pes­
soa, da dor, simplesmente porque as características de
prim eira pessoa são diferentes das características de ter­
ceira pessoa. Nagel expõe essa questão contrastando a
objetividade das características de terceira pessoa com as
características como-elas~são dos estados subjetivos de
consciência. Jackson apresenta a mesma questão cha­
mando a atenção para o fato de que alguém que tivesse
um com pleto conhecim ento da n eurofisiologia de um
fenômeno m ental como a dor, por exem plo, ainda assim
não saberia o que é uma dor caso não soubesse como é a
sensação da dor. K rip ke sustenta o mesmo ponto essen­
cial quando diz que as dores não poderiam ser idênticas a
estados neurofisiológicos como descargas neurônicas no
tálam o e em outros pontos, porque qualquer identidade
semelhante teria que ser necessária, pois ambos os lados
da afirmação de identidade são designadores rígidos, e, nao
obstante, sabemos que a identidade não poderia ser neces­
sária1. Esse fato tem conseqüências epistêmicas óbvias.
REDUCIONISMO E A 1RREDUTIBILIDADE DA CONSCIÊNCIA 171

meu conhecimento de que estou com dor tem uma espécie


de fundamento diferente daquele do meu conhecimento de
que você está com dor. Contudo, o detalhe anti-reducio-
nista do argumento é ontológico, e não epistêmico.
Chega do argumento anti-reducionista. É rid ic u la ­
mente simples e absolutamente decisivo. Uma enorme
quantidade de tin ta fo i gasta na tentativa de contestá-lo,
mas as contestações não passam de tin ta jogada fora.
Para m uitas pessoas, porém , parece que um ta l argumen­
to nos deixa num beco sem saída. Para elas, parece que,
se aceitássemos esse argumento, teríamos abandonado
nossa visão de mundo cien tífica e adotado o dualism o de
propriedades. N a verdade, perguntariam elas, o que é o
dualismo de propriedade senão a concepção de que há
propriedades mentais irredutíveis? Com efeito, Nagel
não aceita o dualism o de propriedades e Jackson não
rejeita o fisicalism o precisamente por causa desse argu­
mento? E qual é a finalidade do reducionism o cie n tífico
se ele pára justam ente na porta de entrada da mente? Por
essa razão, volto-m e agora para o ponto p rin cip a l dessa
discussão.

IV. Por que a irre d u tib ilid a d e da consciência


não tem conseqüências profundas

Para entender completamente por que razão a cons-


Clencia é irre du tíve l, temos que considerar um pouco
mais detalhadamente o m odelo de redução que encontra-
mos Pa**a propriedades perceptíveis como calor, som,
Cor’ s°bdez, liq u id e z etc., e temos que m ostrar como a
172 A REDESCOBERTA DA MENTE

tentativa de reduzir a consciência difere dos outros


casos. Em todos os casos, a redução ontológica tinha por
base uma redução causai anterior. Descobrimos que uma
característica su perficial de um fenôm eno era causada
pelo com portam ento dos elementos de uma m icroestru-
tura subjacente. Isto é verdadeiro tanto nos casos em que
o fenômeno reduzido era uma questão de aparências sub­
jetivas, como as “ qualidades secundárias” de calor ou
cor, e nos casos das “ qualidades prim árias” , como a soli­
dez, em que havia não só um elemento de aparência sub­
je tiv a (coisas sólidas parecem sólidas), mas também
m uitas características independentes de aparências sub­
jetivas (coisas sólidas, e.g., são resistentes à pressão e
im penetráveis p or outros objetos sólidos). Mas em cada
caso, tanto para as qualidades prim árias como para as
secundárias, o propósito da redução era suprim ir as carac­
terísticas superficiais e re d e fin ir a noção o rig in a l em ter­
mos das causas que produzem essas características super­
ficiais.
Assim , onde a’ característica superficial é uma apa­
rência subjetiva, redefinim os a noção orig in a l de modo a
e xclu ir a aparência de sua definição. Por exem plo, pré-
teoricam ente nossa noção de calor tem algo a ver com
temperaturas percebidas: outras coisas sendo iguais, quen­
te é o que sentimos como quente, e frio é o que sentimos
como frio . O mesmo acontece com as cores: vermelho e
o que parece verm elho para observadores normais sob
condições norm ais. M as, quando temos uma teoria sobre
o que causa esses e outros fenômenos, descobrimos que
são m ovim entos m oleculares causando sensações de
calor e frio (bem como outros fenômenos, como aumen-
r e d u c io n is m o e a ir r e d u t ib il id a d e d a c o n s c iê n c ia 173

tos de pressão), e reflectâncias de luz causando experiên­


cias visuais de determinados tipos (como também outros
fenômenos, como oscilações de medidores de luz). Então
redefinimos calor e cor em termos das causas subjacentes
não apenas das experiências subjetivas, mas também dos
outros fenômenos superficiais. E, na redefinição, e lim i­
namos qualquer referência aos aspectos subjetivos e
outros efeitos superficiais das causas subjacentes. C alor
“ real” é então definido em termos da energia cinética dos
movimentos m oleculares, e a sensação subjetiva de calor
que temos quando tocamos um objeto quente é então tra­
tada como apenas um aspecto subjetivo causado pelo
calor, como um efeito do calor. Não é mais parte do calor
efetivo. Uma distinção semelhante é feita entre cor real e
a experiência subjetiva da cor. O mesmo m odelo fu n cio ­
na para as qualidades prim árias: a solidez é definida em
termos dos m ovim entos vibratórios de m oléculas em
estruturas em agregados, e características objetivas,
independentes de observadores, como a im penetrabilida-
de por outros objetos, são então vistas como efeitos
superficiais da realidade subjacente. Tais redefinições
são realizadas suprim indo-se todos os aspectos superfi­
ciais do fenômeno, quer subjetivos quer objetivos, e con­
siderando-os como efeitos da coisa real.
Mas agora repare: o padrão efetivo dos fatos no mun­
do que correspondem a enunciados sobre formas particula­
res de calor, como as temperaturas específicas, é bastante
semelhante ao padrão de fatos no mundo que correspon­
dem a enunciados sobre formas particulares de consciên-
Cla’ como a dor. Se então digo: “ Está quente neste quar-
>quais são os fatos? Bem, prim eiro, há um conjunto de
174 A REDESCOBERTA DA MENTE

fatos “ físicos” envolvendo o m ovim ento de moléculas, e,


em segundo lugar, há um conjunto de fatos “ mentais”
envolvendo m inha experiência subjetiva de calor, confor­
me causada pelo im pacto das moléculas do ar em m ovi­
mento sobre meu sistema nervoso. O mesmo acontece
com a dor. Se agora digo: “ Estou com dor” , quais são os
fatos? Bem, prim eiro, há um conjunto de fatos “ físicos”
envolvendo meu tálam o e outras regiões do cérebro, e,
em segundo lugar, há uma série de fatos “ mentais” envol­
vendo m inha experiência subjetiva da dor. Portanto, por
que consideramos o calor redutível e a dor irredutível? A
resposta é que o que nos interessa acerca do calor não é o
aspecto subjetivo, mas as causas físicas subjacentes. Uma
vez que consigamos uma redução causai, simplesmente
redefinim os a noção para que nos seja possível obter uma
redução ontológica. U m a vez que você conheça todos os
fatos sobre o calor - fatos sobre m ovim entos de molécu-
ias, impacto sobre terminações nervosas sensitivas, sensa­
ções subjetivas etc. a redução do calor a movimentos de
moléculas não envolve nenhum fa to novo. Isto é simples­
mente uma conseqüência triv ia l da redefinição. Não des­
cobrimos prim eiro todos os fatos para depois descobrir­
mos um fato novo, o fato de que o calor é redutível; na
verdade, simplesmente redefinim os o calor de modo que a
redução resulte da definição. Porém esta redefinição não
elim ina, nem fo i concebida de modo a elim inar, as expe­
riências subjetivas de calor (ou cor etc.) do mundo. Elas
existem como sempre existiram .
Podíamos não ter fe ito a redefinição. O bispo Ber­
keley, por exem plo, recusava-se a aceitar tais redefini­
ções. Mas é fá c il perceber por que é racional fazer tais
REDUClONISM0 E AIRREDUTIBIUDADE DA CONSCIÊNCIA 175

redefinições e aceitar suas conseqüências: para obtermos


m aior compreensão e controle da realidade, queremos sa­
ber como ela funciona causalmente, e queremos que nos­
sos conceitos se ajustem à natureza como suas junções
causais. Simplesmente redefinim os fenômenos com ca­
racterísticas superficiais em termos das causas subjacen­
tes. Parece então uma nova descoberta que o calor seja
nada exceto a energia cinética média do m ovim ento m o­
lecular, e que, se todas as experiências subjetivas desapa­
recessem do mundo, o calor real ainda assim permaneceria.
Mas isto não é uma nova descoberta, é uma conseqüência
triv ia l de uma nova definição. Tais reduções não demons­
tram que calor, solidez etc. não existam realmente do
modo que, por exem plo, novos conhecimentos mostra­
ram que sereias e unicórnios não existem.
Não poderíamos dizer a mesma coisa sobre a cons­
ciência? N o caso da consciência, efetivam ente temos a
distinção entre os processos “ físicos” e as experiências
“ mentais” subjetivas; portanto, por que a consciência
não pode ser redefinida em termos dos processos neuro-
fisiológicos da mesma m aneira que redefinim os o calor
em termos de processos físicos subjacentes? Bem , lo g i­
camente, poderíamos fazer a redefinição caso insistísse­
mos nisso. Poderíamos simplesmente d e fin ir, p or exem­
plo, “ dor” como padrões de atividade neurônica que cau­
sam sensações subjetivas de dor. E, se ta l redefinição
ocorresse, teríamos chegado à mesma espécie de redução
Pafa a dor à qual chegamos para o calor. Mas, lógica-
mente, a redução da dor à sua realidade física ainda deixa
a experiência subjetiva da dor não-reduzida, exatamente
c°nio a redução do calor deixou a experiência subjetiva
176 A REDESCOBERTA DA MENTE

do calor não-reduzida. Parte da finalidade das reduções


era e lim inar as experiências subjetivas e excluí-las da
definição dos fenômenos reais, que são então definidos
em termos daquelas características que mais nos interes­
sam. Porém, nos casos em que os fenômenos que mais
nos interessam são as próprias experiências subjetivas,
não há como e lim in a r nada. N o caso do calor, parte da
finalidade da redução consistia em d istin g u ir entre a apa­
rência subjetiva, de um lado, e a realidade física subja­
cente, de outro. Na verdade, é uma característica geral de
tais reduções que o fenômeno seja definido em termos da
“ realidade” e não em termos da “ aparência” . Mas não
podemos fazer esse tip o de distinção aparência-realidade
para a consciência, porque consciência consiste nas pró­
prias aparências. Onde a aparência está envolvida, não
podemos fa ze r a distinção aparência-realidade porque a
aparência é a realidade.
Para nossos objetivos presentes, podemos resum ir
esta questão dizendo que a consciência não é redutível da
m aneira que outros fenômenos são redutíveis, não por­
que o m odelo de fatos no mundo real énvolva algo de
especial, mas porque a redução de outros fenômenos de­
pende em parte da distinção entre “ realidade física obje­
tiva” , de um lado, e meras “ aparências subjetivas” , de
outro; e da elim inação da aparência dos fenômenos que
foram reduzidos. Mas, no caso da consciência, sua reali­
dade é a aparência; portanto, a finalidade da redução
seria esquecida se tentássemos suprim ir a aparência e
simplesmente d e fin ir a consciência em termos da reali­
dade física subjacente. Em geral, o padrão de nossas
reduções fundamenta-se na rejeição da base subjetiva
REDUCIONISMO E AIRREDUTIBILIDADE DA CONSCIÊNCIA 111

epistêm ica em troca da presença de uma propriedade


como parte do componente básico dessa propriedade.
Aprendemos sobre calor ou luz através da sensação ou
da visão, mas então definim os o fenômeno de uma
m aneira que é independente da epistem ología. A cons­
ciência é uma exceção a este m odelo por uma razão tr i­
vial. O m otivo, repetindo, é que as reduções que deixam
de lado as bases epistêmicas, as aparências, não podem
funcionar no caso das próprias bases epistêmicas. Em
tais casos, a aparência é a realidade.
Isso demonstra, porém, que a irredutibilidade da cons­ nJ
ciência é uma conseqüência triv ia l da pragmática de nos­
sos métodos de definição. U m resultado triv ia l como esse
só tem conseqüências trivia is. Não tem conseqüências 0U 6
metafísicas profundas para a unidade de nossa visão cientí­ «.to;:
fic a g lo b a l do m undo. Não dem onstra que a consciên­
cia não seja parte do aparato fundamental da realidade, ou
1:.:?
que não possa ser um objeto de investigação científica,
ou que não possa ser encaixada em nossa concepção física 'll-w
t. ■'"*}
global do universo; mostra apenas que, da maneira como o
decidimos executar reduções, a consciência, por definição, ■MU
está excluída de um determinado m odelo de redução. A Íi:. r.J I

consciência é incapaz de ser redutível, não por causa de


alguma característica misteriosa, mas simplesmente porque,
por definição, fica fora do modelo de redução que escolhe­
mos usar por razões pragmáticas. Pré-teoricamente, a
consciência, como a solidez, é uma característica superfi­
cial de determinados sistemas físicos. Mas, diferentemen­
te da solidez, a consciência não pode ser redefinida em ter­
mos de uma m icroestrutura subjacente, e as características
superficiais, então, não podem ser tratadas com o meros
178 A REDESCOBERTA DA MENTE

efeitos da consciência real sem que se perca o objetivo


de ter o conceito de consciência em prim eiro lugar.
Até aqui, a argumentação deste capítulo fo i conduzi­
da, por assim dizer, a partir do ponto de vista do materia­
lista. Podemos resumir a questão que venho sustentando
da seguinte forma: o contraste entre a redutibilidade de
calor, cor, solidez etc., de um lado, e a jrredutibilidade de es­
tados conscientes, de outro, não reflete nenhuma distin­
ção na estrutura da realidade, mas uma distinção em nos­
sos métodos de definição. A partir do ponto de vista do
dualista de propriedades, poderíamos colocar a mesma
questão do seguinte modo: o contraste aparente entre a
irredutibilidade da consciência e a redutibilidade de cor,
calor, solidez etc. na verdade era apenas aparente. Na
verdade, não eliminamos a subjetividade do vermelho,
por exemplo, quando reduzimos o vermelho a reflectân-
cias de luz; simplesmente paramos de denominar “ ver­
melha” a parte subjetiva. Não eliminamos nenhum fenô­
meno subjetivo com essas “ reduções” ; simplesmente
paramos de chamá-los por seus nomes antigos. Quer con­
sideremos a irredutibilidade a partir do ponto de vista
materialista, quer do ponto de vista dualista, ainda conti­
nuamos com um universo que contém um componente
físico irredutivelm ente subjetivo como componente da
realidade física.
Para concluir esta parte da discussão, quero deixar
claro o que estou dizendo e o que não estou dizendo. Não
estou dizendo que a consciência não seja um estranho e
maravilhoso fenômeno. Penso, ao contrário, que temos
que ficar assombrados pelo fato de que processos evolu­
tivos produziram sistemas nervosos capazes de causar t
REDUClONISMO E A IRREDUTIBILIDADE DA CONSCIÊNCIA 179

sustentar estados conscientes subjetivos. Como observei


no capítulo 4, a consciência é tão empíricamente m iste­
riosa para nós hoje como era o eletromagnetismo ante­
riormente, quando as pessoas pensavam que o universo
tinha que operar inteiramente sob princípios newtonia-
nos. Mas estou dizendo que, uma vez que a existência da
consciência (subjetiva, qualitativa) é adm itida (e nenhu­
ma pessoa sensata pode negar sua existência, embora
muitos pretextem fazê-lo), então não há nada de estra­
nho, maravilhoso ou misterioso acerca de sua irre d u tib i­
lidade. Dada sua existência, sua irredutibilidade é uma
conseqüência triv ia l de nossos métodos de definição.
Sua irredutibilidade não tem nenhuma conseqüência
científica imprópria. Além disso, quando falo da irreduti­
bilidade da consciência, estou falando de sua irre d u tib ili­
dade de acordo com modelos padrões de redução. N in ­
guém pode deixar de considerar, a p rio ri, a possibilidade
de uma revolução intelectual importante que nos daria
uma nova - e atualmente inim aginável - concepção de
redução, segundo a qual a consciência seria redutível.

V Superveniência

Nos últimos anos houve uma porção de difíceis avan­


ços acerca de uma relação entre propriedades denomina­
da “ superveniência” (e.g., K im , 1979, 1982; Haugeland,
1982). Freqüentemente se diz, em discussões na filosofia
da mente, que o mental é superveniente em relação ao
físico. Intuitivam ente, o que se quer dizer com esta a fir­
mação é que estados mentais são totalmente dependentes
180 A REDESCOBERTA DA MENTE

de estados neurofisiológicos correspondentes, no sentido


de que uma diferença nos estados mentais envolvería
necessariamente uma diferença correspondente nos esta­
dos neurofisiológicos. Se, p or exem plo, vou de um esta­
do de estar com sede a um estado de não mais estar com
sede, então tem que ter havido alguma mudança em
meus estados cerebrais correspondente à alteração em
meus estados mentais.
N a descrição que venho propondo, estados mentais
são supervenientes em relação a estados n e u ro fisio ló g i­
cos no seguinte aspecto: causas neurofisiológicas de tipo
idêntico teriam efeitos m entalísticos de tip o idêntico.
Assim , tom ando o famoso exem plo do cérebro-dentro-
da-cuba, se você tivesse dois cérebros que fossem tip o-
idênticos até a ú ltim a m olécula, então a base causai do
mental garantiria que tivessem os mesmos fenômenos men­
tais. Nesta caracterização da relação de superveniência,
a superveniência do mental em relação ao físico é determi­
nada pelo fato de que estados físicos são causalmente sufi­
cientes, embora não necessariamente causalmente neces­
sários, para os estados m entais correspondentes. Esta é
apenas outra form a de a firm ar que, no que diz respeito a
esta definição de superveniência, identidade de neurofi-
siologia garante identidade de m entalidade; contudo,
identidade de m entalidade não garante identidade de
neurofisiologia.
Vale a pena enfatizar que esta espécie de superve­
niencia é superveniência causai. As discussões de super­
veniência foram originalm ente introduzidas em conexão
com a ética, e a noção em questão não era uma noçao
causal. Nos prim eiros escritos de M oore (1922) e Hare
REDUCIONISMO E A ¡RREDUTIBILIDADE DA CONSCIÊNCIA 181

(1952), a idéia era que propriedades morais são superve­


nientes em relação a propriedades naturais, que dois
objetos não podem d ife rir unicamente com respeito a sua
excelência, por exem plo. Se um objeto é m elhor que um
segundo, tem que haver alguma outra característica em
virtude da qual o prim eiro é m elhor que o segundo. Mas
esta noção de superveniência m oral não é uma noção
causai. Isto é, as características de um objeto que o fazem
bom não causam que ele seja bom, mas antes constituem
sua excelência. M as, no caso da superveniência men-
te/cérebro, os fenômenos neurais causam os fenômenos
mentais.
Portanto, há pelo menos duas noções de superve­
niência: uma noção co nstitutiva e uma noção causai.
Creio que somente a noção causai é im portante para as
discussões do problem a mente-corpo. Neste aspecto, m i­
nha descrição difere das descrições usuais da superve­
niência do m ental em relação ao físico. Assim , K im
(1979, especialmente pp. 45 ss.) declara que não devería­
mos considerar como causal a relação de eventos neurais
com seus eventos mentais supervenientes, e, na verdade,
declara que eventos mentais supervenientes não têm
nenhum status causal separado de sua superveniência em
relação a eventos neurofisiológicos que têm “ uma função
causai mais direta” . “ Se isto fo r epifenom enalism o, tire ­
mos o m áxim o proveito dele” , diz animadamente (p. 47).
Discordo de ambas as asserções. Parece-me óbvio, a
Partir de tudo o que sabemos sobre o cérebro, que os fe ­
nómenos mentais macro são causados unicam ente por
fenômenos m icro de n íve l in fe rio r. Não há nada de m is­
erioso com tal causação de baixo para cim a; é bastante
182 A REDESCOBERTA DA MENTE

comum no mundo físico. A lém disso, o fato de as carac­


terísticas mentais serem supervenientes em relação a
características nem ónicas de modo algum d im in u i sua
eficácia causal. A solidez do pistão é causalmente super­
veniente em relação a sua estrutura m olecular, mas isto
não torna a solidez epifenom enal; e, do mesmo modo, a
superveniência causai de m inha presente dor nas costas
em relação a eventos m icro no meu cérebro não tom a a
dor epifenomenal.
M inha conclusão é que, quando você reconhece a
existência de form as de causação de baixo para cima,
m icro para m acro, a noção de superveniência deixa de
ter qualquer função na filo s o fia . As características fo r­
mais da relação já estão presentes na suficiência causai
das formas de causação m icro-m acro. E a analogia com a
ética é somente uma fonte de confusão. A relação de
características mentais m acro do cérebro com suas carac­
terísticas neurônicas m icro é totalm ente diferente da
relação de excelência com características de tom ar bom,
e m isturá-las leva à confusão. Como diz W ittgenstein em
algum lugar: “ Se você em brulha tipos diferentes de ape­
trechos em bastante papel de em brulho, pode fazer com
que todos pareçam ter o mesmo form ato.”
C A P ÍT U LO 6
A ESTRUTURA D A CONSCIÊNCIA:
U M A INTRODUÇÃO

A > 's \0 1
SS1

Fiz, de passagem, diversas asserções sobre a nature­


za da consciência, e agora é hora de ensaiar uma descri­
ção mais geral. Tal tarefa pode parecer tanto im possivel­
mente d ifíc il como ridiculam ente fá c il. D ifíc il porque,
afinal de contas, não é a história de nossa consciência a
história de toda a nossa vida? E fá c il porque, a final, não
estamos mais próxim os da consciência do que de qual­
quer outra coisa? Segundo a tradição cartesiana, temos
conhecimento im ediato e seguro de nossos próprios esta­
dos conscientes, portanto o trabalho deve ser fá c il. Mas
não é. Por exemplo, acho fá c il descrever os objetos sobre
a mesa à m inha frente, mas como, separadamente e além
disso, poderia descrever m inha experiência consciente
desses objetos?
Dois tópicos são cruciais para a consciência, mas
terei pouco a dizer sobre eles porque ainda não os com ­
preendo suficientem ente bem. O p rim eiro é a tem porali-
dade. Desde Kant, estamos cientes de uma assim etria no
m°do como a consciência se relaciona com o espaço e
184 A REDESCOBERTA DA MENTE

com o tempo. Em bora experimentemos objetos e eventos


tanto espacialmente extensivos como de duração tem po­
ra l, nossa consciência em si não é experim entada como
espacial, embora seja experim entada como tem poral­
mente extensiva. N a verdade, as metáforas espaciais para
a descrição do tempo parecem, da mesma form a, pratica­
mente inevitáveis para a consciência, como quando fa la ­
mos, por exem plo, do “ flu x o da consciência” . Sabida­
mente, o tem po fenom enológico não corresponde exa­
tamente ao tempo real, mas não sei como explicar o caráter
sistemático das disparidades1.
O segundo tópico negligenciado é a sociedade. Es­
tou convencido de que a categoria de “ outras pessoas” de­
sempenha um papel especial na estrutura de nossas ex­
periências conscientes, um papel diferente daquele de obje­
tos e estados de coisas; e acredito que essa capacidade de
a trib u ir um status especial a outros lo c i de consciência é
tanto biologicam ente fundamentada como uma pressu­
posição de Background para todas as form as de intencio-
nalidade coletiva (Searle, 1990). Mas ainda não sei como
demonstrar essas asserções, nem como analisar a estrutu­
ra do elemento social na consciência ind ivid u al.

L Uma dúzia de características estruturais

N o que se segue, tentarei descrever características es­


truturais globais da consciência norm al, de todo dia. M ui­
tas vezes, o argumento que empregarei para identificar
uma característica é a ausência da característica em fo r­
mas patológicas.
A ESTRUTURA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTRODUÇÃO 185

1. M odalidades fin ita s


A consciência humana é manifestada num número
estritam ente lim ita d o de modalidades. A lé m dos cinco
sentidos de visão, tato, olfato, paladar e audição, e o
sexto, o “ sentido de e q u ilíb rio ” , há também sensações
corporais (“ propriocepção” ) e o flu x o de pensamento,
por sensações corporais, quero dizer não apenas sensa­
ções físicas óbvias, como dores, mas também m inha
ciência sensoria, por exem plo, da posição de meus bra­
ços e pernas ou da sensibilidade em meu jo e lh o d ire ito .
0 flu xo de pensamento contém não somente palavras e
imagens, tanto visuais como em outra form a, mas tam ­
bém outros elementos, os quais não são nem verbais nem
imagísticos. Por exem plo, um pensamento às vezes ocor­
re a alguém subitamente, “ num lam pejo” , numa form a
que não se dá nem em palavras nem em imagens. A lém
disso, o flu xo de pensamento, na form a como estou
empregando esta expressão, in c lu i sentimentos, como
aqueles geralmente chamados de “ emoções” . Por exem­
plo, no flu x o de pensamento eu poderia sentir uma onda
repentina de raiva, ou um desejo de bater em alguém, ou
uma forte ânsia por um copo d ’ água.
A p r io r i, não há nenhuma razão pela qual a cons­
ciência deveria restringir-se a essas form as. Parece sim ­
plesmente ser um fa to da história evolutiva humana que
essas sejam as form as que nossa espécie desenvolveu.
Há bons indícios de que algumas outras espécies tenham
outras modalidades sensorias. A visão é especialmente
importante nos seres humanos, e, de acordo com algu­
mas descrições neurofisiológicas, mais da metade de
n°sso córtex é dedicado a funções visuais.
186 A REDESCOBERTA DA MENTE

Um a outra característica geral de toda m odalidade é


que ela pode ocorrer sob o aspecto de agradável ou desa­
gradável, e a maneira em que é agradável/desagradável é
em geral específica da modalidade. Por exemplo, odores
agradáveis não são agradáveis da form a que pensamentos
agradáveis são agradáveis, mesmo pensamentos agradá­
veis sobre odores agradáveis. Freqüentemente, mas nem
sempre, o aspecto prazer/desprazer de modalidades cons­
cientes está associado a uma form a de intencionalidade.
Assim , no caso de experiências visuais, em geral o que é
agradável ou desagradável é a intencionalidade intrínseca
às experiências visuais, e não seus aspectos puramente
sensoriais. Consideramos desagradável ver algo repug­
nante, como um homem vom itando; e consideramos agra­
dável ver algo m agnífico, como as estrelas numa noite
clara. Em cada caso, porém, a fonte do caráter agradável
ou desagradável é mais do que os aspectos puramente
visuais da cena. Este nem sempre é o caso no tocante às
sensações corporais. A dor pode ser simplesmente experi­
mentada como dolorida, sem nenhuma intencionalidade
correlata. Entretanto, o desagrado da dor varia de acordo
com certos gêneros de intencionalidade associada. Se
acreditamos que a dor está sendo in flig id a injustificada­
mente, esta é mais desagradável do que se acreditamos
que esteja sendo in flig id a , por exem plo, como parte de
um tratamento m édico necessário. Os orgasmos são
igualm ente m atizados pela intencionalidade. Podíamos
facilm ente im aginar um orgasmo ocorrendo sem ne­
nhum pensamento erótico - suponha, por exem plo, que
fosse induzido por m eios elétricos - , mas, em geral, o
prazer de um orgasmo está relacionado intrínsecamente
A ESTRUTURA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTRODUÇÃO 187

à sua intencionalidade, ainda que orgasmos sejam sensa­


ções corporais. Nesta seção, estou interessado somente
no prazer/desprazer de cada modalidade. D iscu tire i o
prazer/desprazer de estados conscientes completos como
a característica núm ero 12.

2. Unidade
E característico de estados conscientes não-patológi-
cos que se apresentem a nós como parte de uma seqüên­
cia unificada. Não tenho exatamente uma experiência de
uma dor de dente e também uma experiência visual do
sofá que está situado a poucos metros de m im , e de rosas
que se projetam de um vaso à m inha direita, do modo
como visto por acaso uma camisa listrada ao mesmo
tempo em que visto meias azul-escuras. A diferença cru­
cial é esta: tenho minhas experiências da rosa, do sofá e
da dor de dente inteiram ente como experiências que são
parte de um único e mesmo evento consciente. A unidade
existe em pelo menos duas dimensões, as quais, persistin­
do nas metáforas espaciais, chamarei de “ horizontal” e
“ vertical” . Unidade horizontal é a organização de expe­
riências conscientes por curtos períodos de tempo. Por
exemplo, quando fa lo ou penso uma sentença, mesmo
uma sentença longa, m inha ciência da parte in ic ia l daqui­
lo que disse ou pensei continua mesmo quando esta parte
não está mais sendo pensada ou falada. Esse tip o de
memória icônica é essencial para a unidade da consciên-
Cla>e talvez até a m em ória de curta duração seja essen-
cial. Unidade ve rtica l é uma questão de estar ciente
simultaneamente de todas as diversas características de
qualquer estado consciente, conform e ilustrado por meu
188 A REDESCOBERTA DA MENTE

exemplo do sofá, da dor de dente e da rosa. Temos pouca


compreensão de como o cérebro leva a cabo essa unida-
de. Em neurofisiologia, ela é denominada “ o problem a
da junção” , e K ant denom inou o mesmo fenôm eno “ a
unidade transcendental de apercepção” .
Sem essas duas características - a unidade horizontal
do presente recordado2 e a unidade vertical da junção dos
elementos dentro de uma coluna unificada - não podería­
mos compreender o sentido norm al de nossas experiên­
cias. Isto é ilustrado pelas várias formas de patologia, tais
como os fenômenos de cérebro fragmentado (Gazzaniga,
1970) e a síndrome de Korsakov (Sacks, 1985).

3. Intencionalidade
A m aior parte da consciência, mas não toda, é inten­
cional. Posso, por exem plo, simplesmente estar num
estado de espírito de depressão ou exultação sem estar
deprim ido ou exultante por qualquer coisa em particular.
Nesses casos, meu hum or, como ta l, não é intencional.
Mas geralmente, eñi qualquer estado consciente, o esta­
do é d irig id o a uma coisa ou outra, ainda que a coisa à qual
é d irig id o não exista, e nesse sentido ele tem intenciona­
lidade. Em um núm ero m uito grande de casos, a cons­
ciência é verdadeiramente consciência de algo, e o “ de”
em “ consciência de” é o “ de” de intencionalidade.
A razão por que achamos d ifíc il d istin g u ir entre
m inha descrição dos objetos sobre a mesa e m inha des­
crição de m inha experiência dos objetos é que as caracte­
rísticas dos objetos são precisamente as condições de
satisfação de minhas experiências conscientes deles. As­
sim , o vocabulário que u tiliz o para descrever a mesa -
A ESTRUTURA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTRODUÇÃO 189

“ há uma lum inária à direita e um vaso à esquerda e uma


pequena estátua no centro” - é precisamente aquele que
u tiliz o para descrever minhas experiências visuais cons­
cientes da mesa. Para descrever as experiências tenho
que dizer, por exem plo: “ Parece-me, visualm ente, que há
uma lum iná ria à direita, um vaso à esquerda e uma
pequena estátua no centro.”
M inhas experiências conscientes, ao contrário dos
objetos das experiências, são sempre em perspectiva. São
sempre a p a rtir de um ponto de vista. Mas os objetos em
si não têm ponto de vista. Perspectiva e ponto de vista são
mais óbvios para a visão, mas certamente são também
características de nossas outras experiências sensoriais.
Se toco a mesa, experim ento-a apenas sob determinados
aspectos e a p a rtir de uma certa posição espacial. Se ouço
um som, ouço-o unicamente de uma certa direção e ouço
determinados aspectos dele. E assim por diante.
Observar o caráter perspectivo da experiência cons­
ciente é um bom modo de lembrarmos a nós mesmos que
toda intencionalidade é aspectual. Ver um objeto a partir
de um ponto de vista, por exemplo, é vê-lo sob determina­
dos aspectos e não outros. Neste sentido, todo ato de ver é
“ ver como” . E o que vale para a visão vale para todas as
formas de intencionalidade, conscientes e inconscientes.
Todas as representações representam seus objetos, ou
outras condições de satisfação, sob aspectos. Todo estado
intencional tem o que chamo de uma form a aspectual.

4- Sensação subjetiva
A discussão de intencionalidade naturalmente nos re­
bote à impressão subjetiva de nossos estados conscientes.
190 A REDESCOBERTA DA MENTE

Tive ocasião, em capítulos anteriores, de d iscutir a subje­


tividade com certa riqueza de detalhes, e, portanto, não
repetirei o assunto aqui. Basta dizer que a subjetividade
necessariamente envolve o aspecto sentir-se-como de es­
tados conscientes. Assim , por exemplo, posso especular
plausivelm ente sobre como é sentir-se como um golfinho
e nadar por toda parte o dia inteiro, brincando no oceano,
porque adm ito que golfinhos têm experiências conscien­
tes. Nesse sentido, porém , não posso especular sobre
como é sentir-se como uma telha pregada num telhado
por anos a fio , porque no sentido em que estamos empre­
gando essa expressão não há absolutamente nada pareci­
do com o sentir-se como um a telha, porque telhas não
são conscientes.
Como salientei anteriorm ente, a subjetividade é res­
ponsável, mais do que qualquer outra coisa, pelo emba­
raço filo s ó fic o concernente à consciência.

5. A conexão entre consciência e intencionalidade


Espero que a m aior parte do que a firm e i até aqui
pareça evidente. Agora, quero fazer uma asserção muito
forte, uma asserção que não com provarei totalm ente até
o próxim o capítulo. A asserção é esta: somente um ser
que pudesse ter estados intencionais conscientes poderia
ter estados intencionais de algum m odo, e todo estado
intencional inconsciente é pelo menos potericialmente
consciente. Esta tese tem conseqüências enormes para o
estudo da mente. Im plica , por exem plo, que qualquer
discussão de intencionalidade que deixe de lado a ques­
tão da consciência será incom pleta. E possível descrever
a estrutura lógica de fenômenos intencionais sem discutir
A ESTRUTURA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTRODUÇÃO 191

a consciência - na verdade, na m aioria dos casos, fiz isso


em In te n tio n a lity (Searle, 1983), mas há uma conexão
conceituai entre consciência e intencionalidade que tem
como conseqüência uma teoria com pleta da intencionali­
dade e xig ir uma descrição da consciência.

6 . A estrutura fig u ra -fu n d o , gestáltica,


da experiência consciente
É um ponto fa m ilia r da psicologia da G estalt que
nossas experiências perceptivas se apresentem a nós
como uma imagem contra um pano de fundo. Por exem­
plo, se vejo o suéter sobre a mesa à m inha frente, vejo o
suéter contra o pano de fundo da mesa. Se vejo a mesa,
vejo-a contra o pano de fundo do chão. Se vejo o chão, ve-
jo-o contra o pano de fundo de toda a sala, até que fin a l­
mente atinjam os os lim ite s de meu campo visual. Mas o
que é característico da percepção parece ser característi­
co da consciência em geral: aquilo tudo em que eu foca­
lize m inha atenção estará contra um pano de fundo que
não é o centro da atenção; e, quanto m aior o campo de
interesse da atenção, mais rapidamente atingim os os
lim ites de m inha consciência em que o pano de fundo
serão simplesmente as condições de lim ite s que d iscu ti­
rei mais adiante, como a característica número 10.
Relacionado à estrutura figura-fundo das experiên­
cias conscientes está o fato de que nossas percepções
üonnais são sempre estruturadas; que percebo não so­
mente formas indiferenciadas, mas que minhas percep-
Ç°es são organizadas em objetos e características de
objetos. Isto tem a conseqüência de que todo ato (no r­
mal) de ver é ver como, todo o ato (norm al) de perceber é
192 A REDESCOBERTA DA MENTE

perceber como, e, na verdade, toda consciência é cons­


ciência de algo como ta l e tal.
H á aqui dois aspectos diferentes, mas relacionados.
U m é a estrutura figura-fundo da percepção e da cons­
ciência em geral, e o segundo é a organização de nossas
experiências conscientes perceptivas e outras. A estrutu­
ra figura-fundo é um caso especial, embora difundido, da
característica mais geral da estruturalidade. U m outro
aspecto relacionado, que discutirei sucintamente como a
característica núm ero 10, são as condições gerais de
lim ite s que parecem aplicáveis a absolutamente qualquer
estado consciente.

7. O aspecto da fa m ilia rid a d e


Dadas a temporalidade, sociabilidade, unidade, inten-
cionalidade, subjetividade e estruturalidade da consciên­
cia, parece-me que a característica mais difundida de esta­
dos conscientes de percepção ordinários, não-patológicos,
é o que chamarei de “ aspecto de fam iliaridade” . Como to­
da intencionalidade consciente é aspectual (característica
3), e porque formas não-patológicas de consciência são
estruturadas ou organizadas (característica 6), a posse pré­
via de um aparato suficiente para gerar consciência orga­
nizada e aspectual garante automaticamente que as carac­
terísticas aspectuais da experiência consciente e as estrutu­
ras e organização de consciência ocorrentes sejam mais ou
menos fam iliares, em moldes que agora tentarei explicar.
Podemos compreender m elhor o aspecto de fam iliari­
dade contrastando m inha descrição com a de Wittgenstein.
W ittgenstein pergunta-nos (1953) se quando entro no meu
quarto experim ento um “ ato de reconhecimento” , e lem-
A ESTRUTURA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTRODUÇÃO 193

bra-nos de que não há realmente ta l ato. C reio que ele


esteja certo sobre isto. Não obstante, quando entro no
meu quarto, ele efetivamente parece-me fa m ilia r. Você
pode perceber isto se im aginar que algo estivesse ra d i­
calmente estranho, se houvesse um grande elefante no
centro do quarto, ou se o teto tivesse desabado, ou a l­
guém tivesse posto a li um m óvel completamente diferen­
te, p or exem plo. M as, no caso norm al do cotidiano, o
quarto me parece fa m iliar. Ora, o que é verdadeiro na m i­
nha experiência em relação ao quarto, sugiro, é em m aior
ou m enor grau verdadeiro nas minhas experiências em
relação ao mundo. Quando caminho pela rua, esses obje­
tos me são fam iliares como casas, e esses outros objetos
me são fam iliares como pessoas. Experim ento as árvo­
res, a calçada e as ruas como parte do que é fa m ilia r. E,
mesmo quando estou numa cidade estranha e fic o im ­
pressionado pela excentricidade das roupas das pessoas
ou pela singularidade da arquitetura de suas habitações,
há todavia o aspecto de fam iliaridade. Essas ainda são
pessoas; aquelas ainda são habitações; ainda sou um ser
corporificado, com um senso consciente de meu próprio
peso, um senso das forças da gravidade agindo em m im e
em outros objetos; tenho um senso in te rio r de minhas
partes corporais e suas posições. M ais im portante que
ludo, talvez, tenho um senso intem o do que é sentir-se
como eu, um sentimento de m im mesmo3.
Penetrar esse aspecto de fam iliaridade exige um
esforço intelectual. Assim , por exemplo, os pintores sur­
realistas retratam paisagens em que não há nenhum obje-
1° fam iliar. M esm o em tais casos, porém , ainda temos
Uru senso de objetos num ambiente, de um horizonte da
194 A REDESCOBERTA DA MENTE

Terra, da atração gravitacional dos objetos para a Terra,


da luz vinda de uma fonte, de um ponto de vista a partir
do qual o quadro é pintado, de nós próprios olhando para
a tela - e todos esses sensos são partes do aspecto de
fam iliaridade de nossa consciência. O reló gio murcho
ainda é um relógio, a m ulher de três cabeças ainda é uma
m ulher. E esse aspecto de fam iliaridade - mais do que,
por exem plo, a previsibilidade in d u tiva - que evita que
os estados conscientes sejam a “ viçosa confusão m urm u­
rante” descrita por W illia m James.
Venho usando deliberadamente a expressão “ aspec­
to de fam iliaridade” , em vez da mais coloquial “ sensação
de fam iliaridade” , porque quero enfatizar que o fenôme­
no que estou discutindo não é uma sensação isolada.
Quando vejo meus sapatos, por exem plo, não tenho a
experiência visual dos sapatos e a sensação de fa m ilia ri­
dade separadamente, mas antes vejo os sapatos sim ulta­
neamente como sapatos e como meus. O aspecto de
fam iliaridade não é uma experiência isolada, e é por isso
que W ittgenstein está acerto ao dizer que não há nenhum
ato de reconhecim ento quando vejo meu quarto. Não
obstante, ele efetivam ente me parece meu quarto, e real­
mente o percebo sob este aspecto de fam iliaridade.
O aspecto de fam iliaridade aparece em graus varia­
dos; é um fenôm eno escalar. N o topo da escala de fam i­
liaridade estão os objetos, cenas, pessoas e visões de
m inha vida cotidiana, ordinária. M ais abaixo estão cenas
estranhas nas quais objetos e pessoas são, não obstante,
facilm ente reconhecíveis e categorizáveis por m im . A in ­
da mais abaixo estão cenas em que encontro pouco que
seja reconhecível ou categorizável. Estas são as espécies
A ESTRUTURA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTRODUÇÃO 195

de cenas retratadas por pintores surrealistas. E possível


im aginar um caso lim ite no qual absolutamente nada
fosse percebido como fa m ilia r, no qual nada fosse reco­
nhecível e categorizável, nem mesmo como objetos, em
que mesmo meu p ró prio corpo não fosse mais categori­
zável como meu, ou nem sequer como um corpo. U m
caso semelhante seria patológico ao extrem o. Formas
menos extremas de patologia ocorrem quando cenas
fam iliares subitamente perdem sua fam iliaridade - quan­
do, por exem plo, em estados de desespero neurótico,
uma pessoa olha fixam ente para a textura da m adeira na
mesa e fic a totalm ente absorta nela, como se nunca tives­
se visto ta l coisa antes,
É o aspecto de fam iliaridade que tom a possível gran­
de parte da organização e ordem de minhas experiências
conscientes. A inda que eu encontre um elefante no meu
quarto ou um teto desabado, todavia o objeto ainda me é
fa m ilia r como um elefante, ou um teto desabado, e o
quarto como meu quarto. Os psicólogos têm m uitos in d í­
cios para dem onstrar que a percepção é uma função da
expectativa (e . g Postman, Bruner e W alk, 1951). U m
corolário natural dessa asserção é que a organização da
percepção só é possível adm itindo um conjunto de cate­
gorias que identifiquem entidades dentro do fam iliar.
Penso que a característica da experiência a que estou
aludindo será reconhecível por qualquer um que re flita
sobre ela, mas descrever a estrutura da intencionalidade
envolvida é positivam ente complicado. Objetos e estados
de coisas são experimentados por m im como fam iliares,
mas em geral a fam iliaridade não é uma condição isolada
de satisfação. A o contrário, a consciência envolve cate-
196 A REDESCOBERTA DA MENTE

gorização - vejo coisas, por exem plo, como árvores, pes­


soas, casas, carros etc. - , mas as categorias têm que exis­
tir antes da experiência, porque são condições de possi­
bilidade de ter precisamente essas experiências. Para en­
xergar isto como um pato ou um coelho, tenho que ter as
categorias “ pato” ou “ coelho” antes da percepção. Assim,
a percepção estará sob o aspecto de fam iliaridade, por­
que as categorias que a tom am possível são, elas mes­
mas, categorias fam iliares. O argumento, em poucas pa­
lavras, é; todo ato de percepção é perceber como e, de
modo mais geral, toda consciência de é consciência como.
Para ser consciente de algo, você tem que ser consciente
dele como algo (novamente, salvo patologia etc.), mas
perceber como, e outras formas de consciência como, re­
querem categorias. Contudo, as categorias preexistentes
im plicam fam iliaridade anterior com as categorias, e
disso decorre que as percepções estão sob o aspecto do
fa m ilia r. P o rta n to , essas categorias são coerentes entre
s i: estruturalidade, percepção como, a fo rm a aspectual
de toda intencionalidaãe, categorias e o aspecto de fa m i­
liaridade. Experiências conscientes apresentam-se a nós
como estruturadas, essas estruturas perm item -nos per­
ceber coisas sob aspectos, mas esses aspectos estão
sujeitos ao dom ínio, p o r nossa parte, de um conjunto de
categorias, e essas categorias, sendo fa m ilia re s, perm i­
tem-nos, em graus variados, assim ila r nossas experiên­
cias, p o r mais o rig in a is que sejam, ao fa m ilia r.
Não estou aqui apresentando o argumento falaz de
que, porque experim entamos sob aspectos fam iliares,
experimentamos por conseqüência um aspecto de fam i­
liaridade. Esta não é absolutamente a questão. A questão,
A ESTRUTURA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTRODUÇÃO 197

antes, é que form as não-patológicas de consciência têm


de fato um aspecto de fam iliaridade; e isto é explicado
pelo fato de que temos capacidades de Background, neu-
robiologicam ente concretizadas, de gerar experiências
que sejam não somente estruturadas como também as-
pectuais, em que estruturas e aspectos específicos são
mais ou menos fam iliares. As capacidades em questão
não são parte da consciência, mas sim parte do Back­
ground (mais sobre o Background no capítulo 8).

5. Transbordamento
Estados conscientes em geral referem-se a algo mais
que seu conteúdo im ediato. Denom ino este fenômeno
“ transbordamento” . Considere um tipo extrem o de caso.
Sally olha para Sam e repentinamente tem uma idéia num
lampejo: “ E isso m esm o!” Caso solicitada a relatar o pen­
samento, podia começar assim: “ Bem, subitamente com ­
preendi que nos últim os dezoito meses estive perdendo
meu tempo num relacionamento com alguém que é total­
mente inadequado para m im , que, quaisquer que fossem
seus outros m éritos, m inha relação com Sam era baseada
numa premissa falsa de m inha parte. Repentinamente
ocorreu-me que não poderia nunca ter um relacionamento
duradouro com o chefe de um bando de m otoqueiros
como os H e ll’s Angels, porque...” E por aí afora.
Em tal caso, o conteúdo im ediato tende a extravasar,
a associar-se a outros pensamentos que de certo modo
eram parte do conteúdo, mas que de outro não eram.
Embora isto seja ilustrado m elhor com um caso extremo
como esse, creio que o fenômeno é geral. Por exem plo,
enquanto olho agora pela janela para as árvores e o lago,
198 A REDESCOBERTA DA MENTE

caso solicitado a descrever o que vejo, a resposta teria


uma extensibilidade ilim ita d a . Não vejo essas árvores
apenas como árvores, mas como pinheiros, como seme­
lhantes aos pinheiros da C alifo rn ia, mas sob certos as­
pectos diferentes, como semelhantes sob esses aspectos,
mas diferentes sob aqueles etc.

9. O centro e a p e rife ria


Dentro do campo da consciência, precisamos fazer
distinção entre as coisas que estão no centro de nossa
atenção e as que estão na periferia. Somos conscientes de
um número m uito grande de coisas a que não estamos
atentos ou sobre as quais não estamos focalizando nossa
atenção. Por exem plo, até este momento venho concen­
trando m inha atenção no problem a filo s ó fic o da descri­
ção da consciência, e não estive prestando atenção algu­
ma à sensação da cadeira contra minhas costas, ao aperto
de meus sapatos ou à leve dor de cabeça que tenho por
ter bebido vinho demais ontem à noite. Todavia, todos
esses fenômenos são parte de m inha sensibilidade cons­
ciente. Na linguagem coloquial, freqüentemente falamos
de tais características de nossa vida consciente como sendo
inconscientes, mas é um erro dizer que, p or exemplo,
sou inconsciente da sensação de m inha camisa contra m i­
nha pele no sentido em que sou inconsciente do cresci­
mento de minhas unhas dos dedos dos pés. Em resumo,
precisamos d istin g u ir a distinção consciente/inconscien-
te da distinção centro de atenção/periferia.
Considere outro exemplo. Quando d irig ia para o meu
escritório hoje, a m aior parte de m inha atenção estava em
pensamentos filosó fico s. Entretanto, não é correto dizer
A ESTRUTURA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTRODUÇÃO 199

que d irig i inconscientemente. A direção inconsciente te­


ria levado a um acidente autom obilístico. Eu estava
consciente durante todo o trajeto, mas o centro de meu
interesse não eram o trá fico e o itine rário ; eram, antes, os
pensamentos sobre problemas filo só fico s. Este exem plo
esclarece que é essencial fazer a distinção entre níveis
diferentes de atenção dentro de estados conscientes. Quan­
do d irig ia para o escritório esta manhã, meu n íve l mais
alto de atenção estava voltado para as questões filo s ó fi­
cas que estão me preocupando. N um n íve l in fe rio r de
atenção, mas ainda um n ível que pode literalm ente ser
descrito como atenção, estava prestando atenção ao ato
de d irig ir. E, na verdade, ocasionalmente aconteceriam
coisas que e xigiriam m inha to ta l atenção, coisas tais que
eu pararía de pensar sobre filo s o fia e concentraria toda
minha atenção no cam inho. A lém desses dois níveis de
atenção, havia também m uitas coisas de que estava p eri­
féricamente cônscio, mas que não estavam em nenhum
lugar próxim o do centro de m inha atenção. Estas in c lu i­
riam coisas como as árvores e casas ao lado do caminho
enquanto eu passava, a sensação do encosto do banco do
carro contra m inhas costas e do volante em minhas
mãos, e a música tocando no rádio do carro.

E im portante tentar deixar claras essas distinções


porque a tentação é m uitas vezes dizer que m uitas coisas
que estão na p eriferia de nossa consciência são verdadei­
ramente inconscientes. E isto está errado. D reyfus (1991)
freqüentemente cita o exem plo de Heidegger do m artelar
do carpinteiro habilidoso. O carpinteiro, enquanto crava
° s pregos, pode estar pensando em sua namorada ou no
almoço, e não concentrando toda sua atenção no ato de
200 A REDESCOBERTA DA MENTE

martelar. A inda assim, porém, é totalm ente errado in s i­


nuar que esteja inconsciente do ato de martelar. A não ser
que seja um com pleto zum bi ou uma máquina incons­
ciente, ele está inteiram ente consciente da sua ação de
martelar, embora isto não esteja no centro de sua atenção.
W illia m James form ulou uma le i da qual é proveito­
so nos lem brarm os, e expressou-a assim: “ A consciência
vai-se embora de onde não é necessária.” C reio que ela é
m elhor exprim ida desta form a: “ A atenção vai-se embo­
ra de onde não é necessária.” Quando, por exem plo,
calço meus sapatos pela prim eira vez, o aperto e a sensa­
ção dos sapatos estão no centro da m inha consciência;
ou, quando sento numa cadeira, a sensação da cadeira
está no centro da m inha consciência. Mas esses enfoques
realmente não são necessários para perm itir-m e enfrentar
o mundo, e pouco depois as características dos sapatos e
da cadeira se retiram para a periferia da m inha consciên­
cia; não estão mais no centro. Se um prego perfura meu
sapato ou se caio da cadeira, então tais experiências se
deslocam para o centro da m inha consciência. A credito
que a questão de James é sobre o centro e a p eriferia da
consciência, mais do que sobre a consciência como tal.

10. Condições de lim ites


Durante a reflexão sobre o presente, não tive em
nenhum momento pensamento algum relativo a onde
estou localizado, qual é o dia do mês, qual é a época do
ano, há quanto tempo tom ei café da manhã, quais são meu
nome e passado, de que país sou cidadão, e assim Por
diante. Não obstante, parece-me que tudo isso é parte da
situação, parte da localização espaço-temporal-sócio-bio-
A ESTRUTURA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTRODUÇÃO 201

lógica de meus estados conscientes atuais. Qualquer esta­


do de consciência é desse modo característicamente loca­
lizado. Mas a localização em si pode não ser, de modo a l­
gum, o objeto da consciência, nem sequer na periferia.
Uma form a de observar a difusibilidade do lim ite da
consciência é em casos de sua interrupção. Há, por exem­
plo, um sentimento de desorientação que toma conta de
nós quando subitamente somos incapazes de recordar em
que mês estamos, ou onde estamos, ou qual é a hora do dia.

11. H um or
M encionei anteriorm ente que m uitas vezes temos
disposições de ânimo que não são em si intencionais, ape­
sar de conscientes. Posso estar em um estado de espírito
eufórico ou deprim ido, com um hum or alegre ou abatido,
e esses não precisam ser conscientemente voltados a ne­
nhuma condição de satisfação intencional. Por si mesmo,
um estado de espírito nunca constitui todo o conteúdo de um
estado consciente. Antes, o hum or fornece a tonalidade ou
cor que caracteriza o conjunto de um estado consciente
ou uma seqüência de estados conscientes.
Sempre estamos com algum tip o de humor? A res­
posta depende de quão amplamente queremos d e fin ir a
noção de humor. Certamente nem sempre estamos com
um hum or que tenha um nome num idiom a como o inglês.
Agora, nem estou especialmente eufórico nem especial­
mente deprim ido; nem estou extasiado, nem em desespe­
ro; na verdade, nem estou simplesmente entediado.
Contudo, parece-me que há o que alguém poderia deno-
minar uma “ tonalidade” para minhas experiências pre-
sentes. E isto me parece convenientemente assim ilável à
20 2 A REDESCOBERTA DA MENTE

noção geral de humor. O fato de que minhas experiências


presentes tenham uma tonalidade um tanto neutra não
significa que não tenham absolutamente nenhuma to na li­
dade. É uma característica dos humores permear todas as
nossas experiências conscientes. Para o homem que está
eufórico, a visão da árvore, da paisagem e do céu é uma
fonte de grande alegria; para o homem desesperado, exa­
tamente a mesma visão produz somente mais depressão.
Parece-me característico da vida consciente humana nor­
m al que estejamos sempre com algum humor, e que este
hum or permeie todas as nossas form as conscientes de
intencionalidade, embora em si não seja, ou não precise
ser em si, intencional.
Nada tom a alguém mais ciente da difusib ilida d e do
hum or do que uma mudança dramática. Quando nosso
estado de espírito norm al é radicalm ente alterado, quer
para cim a quer para baixo, quer para uma euforia inespe­
rada quer para uma depressão, subitamente nos tomamos
cientes do fato de que estamos sempre com algum humor,
e que nosso hum or perm eia nossos estados conscientes.
Para m uitas pessoas, ai de nós, a depressão é m uito mais
comum do que a euforia.
M eu palpite é que obteremos uma boa descrição
neurobiológica do hum or m uito mais facilm ente do que,
digamos, das emoções. Humores são difusos, são bastan­
te simples, sobretudo porque não têm nenhuma intencio­
nalidade essencial, e parece que deve até haver uma ex­
plicação bioquím ica de alguns humores. Já temos drogas
que são usadas para suavizar a depressão clínica.
A ESTRUTURA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTRODUÇÃO 203

12. A dimensão prazer!desprazer


Lem bre-se de que estamos considerando o todo de
um estado consciente, uma fa tia do flu x o da consciência
grande o bastante para possuir a unidade e coerência que
estou tentando descrever. N o caso de ta l pedaço, parece-
me que há sempre uma dimensão de prazer e desprazer.
Alguém sempre pode fazer pelo menos algumas pergun­
tas no inventário que abrange: “ F oi ou não dive rtido ? ” ,
“ Você apreciou ou não?” , “ Você estava com dor, exaspe­
rado, incom odado, entretido, entediado, extasiado, nau­
seado, aborrecido, entusiasmado, apavorado, irrita do ,
encantado, fe liz , in fe liz etc.?” A lém disso, dentro da
dimensão prazer/desprazer há m uitas subdimensões. É
possível, embora excêntrico, estar entediado durante o
êxtase sexual e exultante durante a dor física. D a mesma
forma que com o humor, temos que evitar o erro de supor
que as posições interm ediárias (e portanto sem nome) na
escala não estejam de m odo algum na escala.

II. Três erros tradicionais

Volto-m e agora para três teses sobre estados cons­


cientes, as quais, embora bem amplamente aceitas, pare­
cem-me, numa interpretação natural, falsas. São elas:

1. Todos os estados conscientes são autoconscíentes.


2. A consciência é conhecida através de uma facul­
dade especial de introspecção.
3. O conhecimento de nossos estados conscientes é
incorrigível. Não podemos estar equivocados sobre tais
questões.
204 A REDESCOBERTA DA MENTE

Consideremos cada uma separadamente;

1 , Autoconsciência
V

A s vezes argumenta-se4 que todo estado de cons­


ciência é também um estado de autoconsciência; que é
característico de estados mentais conscientes que sejam,
por assim dizer, conscientes deles mesmos. Não estou
bem certo do que fazer desta afirm ação, mas desconfio
de que, se a exam inarm os, descobriremos que ou é tr i­
vialm ente verdadeira ou simplesmente falsa.
Para começar, precisamos d istin g u ir a noção não-
problem ática ordinária de autoconsciência da noção filo ­
sófica técnica. No sentido ordinário, há claramente estados
de consciência nos quais estou consciente de m inha pró­
p ria pessoa, talvez, mas não necessariamente consciente
de meus próprios estados conscientes. Podemos ilustrar
esses pontos com exemplos.
P rim eiro, suponha que eu esteja sentado num restau­
rante comendo um bife. No sentido ordinário, não estaria
característicamente uwfoconsciente de modo algum. Po­
dia estar consciente de que o b ife é gostoso, o vinho com
que o estou regando é m uito novo, as batatas estão cozi­
das demais etc. Mas não há nenhuma autoconsciência.
Segundo, suponha que de repente eu note que todos,
no restaurante, estão me olhando espantados. Eu podia
perguntar a m im mesmo por que estariam boquiabertos
daquele je ito , até descobrir que, num acesso de distração,
eu tinha esquecido de vestir minhas calças. Estou senta­
do a li de cuecas. Tal circunstância podia produzir sensa­
ções que descreveríamos norm alm ente como “ autocons­
ciência aguda” . Estou ciente de m inha própria pessoa e
A ESTRUTURA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTRODUÇÃO 205

do efeito que estou provocando nos outros. Mesmo aqui,


porém , m inha autoconsciência não é d irig id a aos meus
próprios estados conscientes.
Terceiro, im agine que eu esteja agora no restaurante
completamente vestido, e de repente concentre toda minha
atenção nas experiências conscientes que estou tendo no
restaurante, saboreando a refeição e bebendo o vinho. De
súbito, p or exem plo, parece-me que estive indesculpa­
velm ente me refestelando numa espécie de auto-indul-
gência hiperestética por ter investido tanto tempo, esfor­
ço e dinheiro para assegurar-me essas experiências gas­
tronômicas. Subitamente, isso tudo parece de trop.
Este também parece um caso de autoconsciência no
sentido ordinário, mas difere do segundo porque a auto­
consciência é d irig id a aos estados de consciência do p ró ­
prio agente, e não à sua persona pública.
Então, no sentido ordinário de autoconsciência, con­
form e exem plificado pelos casos dois e três, sim ples­
mente parece falso que todo caso de consciência seja um
caso de autoconsciência. N o sentido ordinário, autocons­
ciência é uma form a extremamente sofisticada de sensi­
bilidade, e provavelm ente possuída somente por seres
humanos e, talvez, por um número reduzido de outras
espécies.
O brigatoriam ente, portanto, a afirm ação de que toda
consciência envolve autoconsciência é proposta num
sentido técnico. Q ual é esse sentido? Vim os, em nossa
discussão da distinção entre o centro e a periferia, que
podemos sempre deslocar nossa atenção dos objetos no
centro da consciência para aqueles na periferia, de form a
que o que era anteriorm ente periférico toma-se central.
206 A REDESCOBERTA DA MENTE

De modo semelhante, parece que podemos sempre des­


locar nossa atenção do objeto da experiência consciente
para a experiência em si. Podemos sempre, por exemplo,
fazer a mudança operada pelos pintores impressionistas.
Os pintores im pressionistas produziram uma revolução
na pintura através do deslocamento de sua atenção do
objeto para a experiência visual real que tinham quando
olhavam para o objeto. Este é um caso de autoconsciên-
cia do caráter das experiências. Parece-me que podería­
mos obter um sentido de “ autoconsciência” em que seja
trivialm ente verdadeiro que qualquer estado consciente é
autoconsciente: em qualquer estado consciente, podemos
deslocar nossa atenção para o estado em si. Posso centrar
m inha atenção, por exem plo, não na cena à m inha frente,
mas na experiência de meu ato de ver esta mesma cena.
E porque a possibilidade desse deslocamento de atenção
estava presente no próprio estado, podemos dizer, neste
sentido técnico extremamente especial, que todo estado
consciente é autoconsciente.
D uvido m uito, porém , que este seja o sentido tencio-
nado por aqueles que declaram que toda consciência é
autoconsciência. Exceto nesse sentido extremamente es­
pecial, parece simplesmente falso fazer essa afirmação.

2. Introspecção
Os estados mentais conscientes são conhecidos por
uma capacidade especial, a capacidade para a introspec­
ção? Em capítulos anteriores, tentei lançar dúvida sobre
esta concepção, que é predominante tanto na filosofia
quanto no senso comum. Como no caso da autoconscien-
cia, há não somente uma noção técnica, mas também uma
A ESTRUTURA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTRODUÇÃO 207

noção de senso comum de introspecção. No sentido o rd i­


nário, m uitas vezes praticam os'a introspecção em nossos
próprios estados conscientes. Suponha, por exem plo, que
Sally queira saber se deveria ou não casar-se com Jimmy,
que acabou de pedi-la em casamento. Bem, uma de suas
ações podia ser o exame sensato e cuidadoso de seus sen­
timentos. E, em linguagem ordinária, chamaríamos isto
de uma form a de introspecção. Ela faz a si mesma pergun­
tas como: “ Será que realmente o amo, e, se sim , quanto?” ,
“ Quais são meus sentimentos mais profundos em relação
a ele?” etc. O problem a, creio eu, não é com o emprego
comum da noção de introspecção, mas com nosso im p u l­
so, como filósofos, de tom ar a m etáfora literalm ente. A
metáfora sugere que temos uma capacidade de examinar
nossos próprios estados conscientes, uma capacidade que
se modela pela visão. Mas este m odelo ou analogia é
seguramente falso. N o caso da visão, temos uma clara
distinção entre o objeto visto e a experiência visual que o
perceptor tem quando percebe o objeto. No entanto, não
podemos fazer essa distinção para o ato da introspecção
de nossos próprios estados mentais conscientes. Quando
Sally volta sua atenção para dentro de si para fazer a in ­
trospecção de seus sentimentos mais profundos em rela­
ção a Jimm y, não pode dar um passo para trás para obter
uma boa visão e d irig ir seu olhar ao objeto independente­
mente existente de seus sentimentos por Jimmy. Em resu­
mo, se por “ introspecção” queremos dizer meramente
refletir sobre nossos próprios estados mentais, então não
há nenhuma objeção à introspecção. Isto acontece o
tempo todo, e é crucial para qualquer form a de autoco-
uhecimento. Mas, se por “ introspecção” queremos dizer
208 A REDESCOBERTA DA MENTE

uma capacidade especial, exatamente como a visão, so­


mente menos colorida, que temos para (iri)specionar in ­
tro , então me parece que não existe tal capacidade. Não
poderia existir, porque o m odelo de inspeção in tro exige
uma distinção entre o objeto inspecionado e a sua inspe­
ção, e não podemos fazer essa distinção no caso de esta­
dos conscientes. Podemos d irig ir um estado mental a outro;
podemos pensar sobre nossos pensamentos e sentim en­
tos; e podemos ter sentimentos sobre nossos pensamentos
e sentimentos; mas nada disso envolve uma faculdade
especial de introspecção.

3. In c o rrig ib ilid a d e
M uitas vezes se d iz que não podemos estar equivo­
cados sobre os conteúdos de nossas próprias mentes. Na
concepção cartesiana tradicional da mente, os relatos de
prim eira pessoa de estados mentais são de algum modo
incorrigíveis. De acordo com esta concepção, temos um
certo tip o de autoridade de p rim e ira pessoa em relatos
sobre nossos estados mentais. Tem-se sustentado, até,
que essa in co rrig ib ilid a d e é um sinal seguro de que algo
é m ental (R orty, 1970). Contudo, se você reflete sobre
isso por um m om ento, a afirm ação de incorrigibilidade
parece obviamente falsa. Considere S ally e Jimm y. Mais
tarde, S a lly podia chegar a dar-se conta de que estava
completamente equivocada quando pensou estar apaixo­
nada por Jim m y; que o sentimento fora atribuído incorre­
tamente; era, na realidade, somente uma form a de amor
passageiro. E alguém que a conhecesse bem podia saber,
desde o in ício , que ela estava enganada.
A ESTRUTURA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTRODUÇÃO 209

Dados tais fatos, por que alguém pensaria ser im pos­


sível para uma pessoa estar enganada sobre os conteúdos
de seus próprios estados mentais? Em prim eiro lugar, por
que, de qualquer m odo, alguém suporia que fossem
“ incorrigíveis” ? Talvez a resposta tenha a ver com o con­
fu n d ir a ontologia subjetiva do m ental com a certeza
/
epistêmica. E realm ente o caso de que estados mentais
conscientes têm uma ontologia subjetiva, conform e repe­
ti várias vezes no decorrer deste liv ro . C ontudo, do fato
da ontologia subjetiva não se infere que uma pessoa não
possa estar equivocada sobre seus estados mentais. Tudo
o que se infere é que os m odelos padrões de equívocos,
modelos baseados na distinção aparência-realidade, não
funcionam no caso da existência ou caracterização de es­
tados mentais. Mas essas não são as únicas form as possí­
veis de se estar equivocado sobre um fenômeno. Todos
sabemos, a p a rtir de nossas próprias experiências, que
freqüentemente acontece que alguma outra pessoa esteja
numa posição m elhor que a nossa para determ inar, por
exemplo, se de fato estamos ou não com ciúmes, irados
ou nos sentindo generosos. É certo que o modo como me
situo em relação a meus estados mentais, e, portanto, o
modo como me situo em relação a meus relatos de meus
estados mentais, é diferente do modo como outras pes­
soas se situam em relação a meus estados mentais. E isto
afeta o status de seus relatos a respeito de meus estados
mentais. Não obstante, seus relatos podem ser mais acura­
dos do que os meus.
Em que sentido exatamente se espera que eu tenha
autoridade de prim eira pessoa sobre os conteúdos de
minha própria mente, e por quê? W ittgenstein, em P h i-
210 A REDESCOBERTA DA MENTE

losophical Investigations (1953), fez uma corajosa tenta­


tiva de elim inar a idéia de que deveríamos considerar
minhas emissões mentais de prim eira pessoa como rela-
tos ou descrições sob quaisquer circunstâncias. Se pu­
déssemos, conform e W ittgenstein sugeriu, considerá-las
antes como expressões (Aeusserungen), então não seriam
relatos ou descrições de modo algum, e portanto não ha­
veria nenhuma disputa sobre autoridade alguma. Quando
simplesmente g rito de dor, não há nenhuma questão de
autoridade, porque meu comportamento relativo à dor fo i
simplesmente uma reação espontânea causada pela dor, e
não qualquer tipo de afirm ação. Se m inha afirmação “ es­
tou com dor” pudesse, de m odo sim ilar, ser tratada como
uma espécie de g rito ritualizado, uma form a convencio­
nada de comportamento correspondente à dor, então não
haveria nenhuma dúvida sobre m inha autoridade. Creio
que é líc ito dizer que a solução tentada por W ittgenstein
para esse problema fracassou. Existem , de fato, alguns
casos em que nosso comportamento verbal a propósito de
nossos estados mentais § mais naturalmente considerado
uma form a de expressão do fenômeno mental do que uma
descrição dele (e . g aü), mas ainda existem m uitos casos
nos quais estamos tentando dar um relato ou descrição
cuidadosa de nosso estado m ental, e não somente dar
expressão a este estado. Ora, que espécie de “ autoridade”
uma pessoa tem em tais elocuções, e por quê?
Penso que a maneira de alcançar o que é especial em
relatos de prim eira pessoa é perguntar por que não pen­
samos que temos a mesma autoridade especial sobre
objetos e estados de coisas no m undo diferentes de nos­
sos estados mentais. A razão é que, em nossos relatos do
A ESTRUTURA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTRODUÇÃO 211

mundo em geral, há uma distinção entre como as coisas


parecem a nós e como elas realmente são. Pode parecer a
m im que haja um homem escondendo-se nos arbustos do
lado de fora da m inha janela, quando na realidade a
impressão era causada simplesmente pela disposição pe­
culiar de luz e sombra na m oita de arbustos. Porém, no
caso de como as coisas parecem a m im , não há distinção
realidade/aparência a ser feita. Realmente, parece-me que
há um homem escondido nos arbustos. Nos casos em que
estados mentais intencionais estão envolvidos, os p ró ­
prios estados são constitutivos da aparência. Em resumo,
a origem de nossa convicção de uma autoridade de p ri­
m eira pessoa especial assenta simplesmente no fato de
que não podemos fazer a convencional distinção realida­
de/aparência para as próprias aparências. Isto nos deixa
com duas dúvidas. Prim eiro, como é possível que possa­
mos estar equivocados sobre nossos próprios estados
mentais? Qual, p or assim dizer, é a fo rm a do equívoco
que cometemos, se este não é a mesma coisa que os equí­
vocos aparência/realidade que cometemos em relação ao
mundo em geral? E, segundo, já que as aparências são
elas mesmas parte da realidade, por que não deveríamos
ser capazes de fazer a distinção realidade/aparência no
caso das aparências? Podemos começar a responder a
prim eira pergunta se explorarm os algumas das maneiras
como uma pessoa pode estar enganada sobre se está ou
não, por exem plo, zangada. Deixando de lado a questão
de erros puramente lingüísticos - isto é, deixando de lado
Cas°s nos quais um homem pensa, por exem plo, que a
Palavra “ zangado” sig n ifica fe liz alguns casos típicos
em que uma pessoa fornece descrições errôneas de seus
212 A REDESCOBERTA DA MENTE

próprios fenômenos m entais são auto-ilusão, interpreta­


ção errônea e desatenção. Considerarei cada um por vez.
Parece bastante fá c il “ provar” a im possibilidade de
auto-ilusão, mas a auto-ilusão é um fenômeno psicológi­
co disseminado, e portanto tem que haver algo errado
com a prova. A prova se desenvolve da seguinte m anei­
ra: a fim de que x ilu d a y 9 x tem que ter uma crença de
que p e tem que tentar com êxito in d u zir em y a crença de
que não p . Mas, no caso em que x é idêntico a y, parece
que x teria que produzir em si mesmo a crença autocon-
trad itó ria de que p e não p. E isto parece im possível.
Contudo, sabemos que a auto-ilusão é possível. Sem
dúvida existem m uitas form as de auto-ilusão, mas, em
uma form a m uito com um , o agente tem um m otivo ou
razão para não a d m itir para si mesmo que está em um
determinado estado m ental. Ele pode estar envergonhado
do fato de estar zangado, ou de odiar uma certa pessoa
ou uma determinada classe de pessoas. Em tais casos, o
agente apenas resiste conscientemente a pensar sobre
alguns de seus estados psicológicos. Quando a lem bran­
ça desses estados se m anifesta, ele imediatamente pensa
no estado oposto em que, de fato, desejaria estar. Su­
ponha que ele odeie os membros de um grupo m inoritá­
rio , mas que esteja envergonhado desse preconceito e
conscientemente deseje que não tivesse tal ódio. Quando
confrontado com a evidência de seu preconceito, simples­
mente recusa-se a adm iti-lo, e, na verdade, nega-o veemen­
te e sinceramente. O agente tem um ódio ju n to com um
desejo de não ter esse ódio, isto é, uma form a de vergo­
nha desse ódio. Para co n cilia r esses dois, o agente evita
conscientemente pensar sobre seu ódio, e assim é since-
A ESTRUTURA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTRODUÇÃO 213

ramente capaz de recusar-se a adm itir a existência do mes­


mo quando confrontado com a evidência. Esta é, segura­
mente, uma form a comum de auto-ilusão.
Um a segunda form a de “ equívoco” que uma pessoa
pode cometer em relação a seus próprios fenômenos men­
tais é a interpretação errônea. Por exem plo, no calor de
uma paixão um homem pode pensar que esteja amando,
na verdade pensar m uito sinceramente que esteja aman­
do, mas mais tarde chegar a compreender que, na ocasião,
apenas interpretara erroneamente seus sentimentos. C ru­
cial para este tip o de caso é o funcionam ento da Rede e
do Background. Da mesma form a como uma pessoa pode
interpretar erroneamente um texto, não conseguindo per­
ceber como os seus elementos se relacionam entre si, e
não conseguindo entender a ação das circunstâncias de
Background em que o texto fo i produzido, assim uma
pessoa pode interpretar erroneamente seus próprios esta­
dos intencionais ao não conseguir perceber suas inter-
relações e situá-los corretamente em relação ao Back­
ground de capacidades mentais não-representativas. Em
tais casos, não temos o m odelo epistêmico tradicional de
fazer inferências incorretas com base em evidência insu­
ficiente. Não é uma questão de chegar da aparência à rea­
lidade, mas, antes, de colocar uma peça num quebra-
cabeça relativam ente a um m ilhão de outras peças.
U m ú ltim o caso, e realmente óbvio, de “ equívoco”
sobre os estados mentais próprios de uma pessoa é a sim ­
ples desatenção. N a correria absolutamente caótica da
vida, m uitas vezes não prestamos m uita atenção a nossos
estados conscientes. Por exem plo, uma p o lítica famosa
recentemente anunciou na im prensa que esteve equivo-
21 4 A REDESCOBERTA DA MENTE

cada em pensar que era sim pática aos democratas. Sem


que ela percebesse, suas simpatias se haviam transferido
para os republicanos. O que temos, no seu caso, é uma
com pleta Rede de intencionalidade - coisas como atitu-
des em relação à legislação, sim patia por certos grupos
políticos e hostilidade contra outros, reações a determ i­
nados incidentes em p o lítica externa etc. e essa Rede
alterou-se sem que ela tomasse consciência disso. Em
tais casos, nossos equívocos são uma questão do foco da
atenção, e não da tradicional distinção entre aparência e
realidade.

III. Conclusão

A cre dito que ao menos dois, e talvez todos os três


equívocos tenham uma origem comum no cartesianismo.
Os filó so fo s na tradição cartesiana em epistemología
queriam que a consciência fornecesse uma base para todo
conhecim ento. M as, para que a consciência nos dê uma
certa base para o conhecim ento, temos que ter prim eiro
um certo conhecim ento dos estados conscientes; daí a
doutrina da in co rrig ib ilid a d e . Para conhecer a consciên­
cia com segurança, temos que conhecê-la por meio de
alguma faculdade especial que nos dê acesso direto a ela;
daí a doutrina da introspecção. E - embora eu esteja
menos seguro sobre isto enquanto um diagnóstico histó­
rico se o ego deve ser a fonte de todo conhecimento e
significado, e estes devem estar fundamentados em sua
própria consciência, então é natural crer que existe uma
conexão necessária entre consciência e autoconsciência,
daí a doutrina da autoconsciência.
A ESTRUTURA DA CONSCIÊNCIA: UMA INTRODUÇÃO 215

Em todo o caso, diversos ataques recentes à cons­


ciência, como o de Dennett (1991), por exem plo, são ba­
seados na assunção incorreta de que, se pudermos de­
m onstrar que há algo errado com a doutrina da in c o rrig i-
bilidade ou introspecção, teremos demonstrado que há
algo errado com a consciência. M as nada poderia estar
mais longe da verdade. In co rrig ib ilid a d e e introspecção
não têm nada a ver com as características essenciais da
consciência. São apenas elementos de teorias filosóficas
equivocadas sobre ela.
C A P ÍT U LO 7
O INCONSCIENTE E SUA RELAÇÃO
COM A CONSCIÊNCIA

DE JEsUs*o t

F A FI
Í5 ? ° A V IT Ó R '^

O objetivo deste capítulo é explicar as relações entre


estados mentais inconscientes e a consciência. A força
explanatória da noção do inconsciente é tão grande que
não podemos fica r sem ela, mas a noção está longe de ser
clara. Essa fa lta de clareza provocou algumas conse­
qüências lamentáveis, como veremos. Também vou dizer
algo sobre a concepção freudiana da relação entre cons­
ciência e o inconsciente, que acredito que, na base, é in ­
coerente. Vou empregar amplamente as distinções entre
epistemologia, causação e ontologia que apresentei no
capítulo 1.

^ O inconsciente

As gerações passadas - anteriores ao século X X ,


8WSS0 modo - consideravam a noção de consciência
nao-problemática e a noção da mente inconsciente enig-
matica, talvez até mesmo autocontraditória. Nós inverte-
218 A REDESCOBERTA DA MENTE

mos os papéis. Depois de Freud, rotineiram ente recorre­


mos a fenômenos mentais inconscientes para explicar os
seres humanos, e consideramos a noção de consciência
enigmática, e talvez até não-científica. Essa mudança na
ênfase explanatória assumiu form as diferentes, mas a
tendência geral na ciência cognitiva tem sido erguer uma
barreira entre os processos mentais subjetivos, conscien­
tes, que não são considerados como um objeto digno de
investigação científica, e aqueles processos que são con­
siderados como o tema genuíno da ciência cognitiva - e
que, portanto, têm que ser objetivos. A tese geral é que
os processos mentais inconscientes são mais importantes
que os conscientes. Talvez a afirm ação mais fo rte esteja
na declaração de Lashley: “ Nenhuma atividade da mente
é jam ais consciente” (itálicos de L a s h le y )O u tra versão
radical desse enfoque deve ser encontrada na declaração
de Ray Jackendoff (1987) de que, na realidade, há duas
“ noções de mente” , a “ mente com putacional” e a “ mente
fenom enológica” .
A credito que, a despeito de nossa complacência ao
usar o conceito do inconsciente, não temos uma noção
nítida de estados mentais inconscientes, e m inha prim ei­
ra tarefa dentro do esclarecim ento é e xplicar as relações
entre o inconsciente e a consciência. A afirm ação que
fa re i pode ser apresentada em uma frase: a noção de um
estado mental inconsciente im plica acessibilidade ã cons­
ciência. Não temos nenhuma noção do inconsciente, a
não ser como aquilo que é potencialm ente consciente.
Nossa noção pré-teórica, ingênua, de um estado mental
inconsciente é a idéia de um estado mental consciente
menos a consciência. Mas o que exatamente isto signifies
O INCONSCIENTE E SUA RELAÇÃO COM A CONSCIÊNCIA 219

Como poderíamos subtrair a consciência de um estado


mental e ainda resultar um estado m entall Desde Freud,
ficam os tão acostumados a fa la r sobre estados mentais
inconscientes que perdemos de vista o fato de que a res­
posta a essa questão não é absolutamente óbvia. Não
obstante, é n ítid o que realmente pensamos no incons­
ciente com base no m odelo do consciente. Nossa idéia de
um estado inconsciente é a idéia de um estado m ental
que apenas acontece de ser inconsciente neste momento;
contudo, ainda assim o compreendemos com base no m o­
delo de um estado consciente, no sentido de que o consi­
deramos como sendo exatamente igual a um estado cons­
ciente e como um estado que, em certo sentido, poderia
ter sido consciente. Isto é nitidam ente correto, por exem­
plo, em Freud, cujas noções tanto daquilo que denomina
estados “ pré-conscientes” como “ inconscientes” são fo r­
madas com base num m odelo bastante simples de esta­
dos conscientes (Freud, 1949, esp. pp. 19-25). N a sua
forma mais ingênua, nossa imagem é algo parecido com
isto: estados mentais inconscientes na mente são como
peixes mergulhados no mar. Os peixes que não podemos
ver abaixo da superfície têm exatamente o mesmo aspec­
to que têm quando emergem. Os peixes não têm seu
aspecto alterado quando debaixo d ’água. Uma outra com ­
paração: estados mentais inconscientes são como objetos
armazenados no sótão escuro da mente. Estes objetos con­
servam suas form as o tempo todo, mesmo quando você
não pode vê-los. Somos tentados a r ir desses modelos
mgênuos, mas creio que algo semelhante a essas im a-
§ens subjaz a nossa concepção de estados mentais in ­
conscientes, e é im portante tentar perceber o que está
correto e o que está errado nessa concepção.
220 A REDESCOBERTA DA MENTE

Como m encionei antes, tem havido nas ultim as dé­


cadas um esforço regularm ente sistem ático para separar
a consciência da intencionalidade. A conexão entre as
duas está sendo gradualmente esquecida, não apenas na
ciência cognitiva, mas igualm ente na ling üística e filo so ­
fia . C reio que a m otivação subjacente - e talvez incons­
ciente - para essa ânsia de separar a intencionalidade da
consciência está no fato de não sabermos como explicar
a consciência, e de desejarmos obter uma teoria da mente
que não seja desacreditada pelo fato de carecer de uma
teoria da consciência. A idéia é tratar a intencionalidade
“ objetivam ente” , tratá-la como se as características sub­
jetivas da consciência realmente não tivessem im portân­
cia para ela. Por exem plo, m uitos funcionalistas reconhe­
cerão que o funcionalism o não pode “ lid a r” com a cons­
ciência (isto é chamado de problema de q u a lia ; ver capí­
tu lo 2), mas eles crêem que esta questão não tem impor­
tância para suas descrições de crença, desejo etc., porque
esses estados intencionais não têm nenhum quale, não
têm qualidades conscientes especiais. Eles podem ser
tratados como se fossem completamente independentes
da consciência. De m aneira sim ilar, tanto a idéia de
alguns lingüistas de que há regras de sintaxe que são psi­
cologicam ente reais, mas totalm ente inacessíveis à cons­
ciência, como a idéia de alguns psicólogos de que ha
inferências complexas na percepção que são processos
psicológicos inferenciais genuínos, mas inacessíveis a
consciência, im plicam uma separação entre intencionah-
dade e consciência. A idéia, em ambos os casos, não e
que haja fenômenos mentais que simplesmente acont^
cem de ser inconscientes, mas que, por alguma razao,
o INCONSCIENTE E SUA RELAÇÃO COM A CONSCIÊNCIA 221

certa form a, são em p rin c íp io inacessíveis à consciência.


Não são o tip o de coisa que poderia ser ou poderia ter
sido em algum momento consciente.
Penso que esses desenvolvim entos recentes estão
equivocados. Por razões profundas, nossa noção de um
estado m ental inconsciente é parasita em relação a nossa
noção de um estado consciente. Logicam ente, em qual­
quer momento dado uma pessoa pode estar inconsciente;
pode estar adormecida, em coma etc., e, logicam ente,
muitos estados mentais não são nunca trazidos à cons­
ciência. E, sem dúvida, há m uitos que não poderiam ser
trazidos à consciência por uma razão ou outra - podem
ser dolorosos demais e, portanto, por demais reprim idos
para que pensemos neles, por exemplo. Todavia, nem todo
estado de um agente é um estado m ental, e nem sequer
todo estado do cérebro que atua essencialmente na produ­
ção de fenômenos mentais é, ele mesmo, um fenômeno
mental. Então, o que toma algo mental quando não é cons­
ciente? Para um estado ser um estado m ental, e, a fo rtio ri,
para ser um estado m ental intencional, determinadas con­
dições têm que ser preenchidas. Quais são elas?
Para analisar essas questões, consideremos prim eiro
os casos que são nitidam ente m entais, embora incons­
cientes, e contrastemo-los com casos que são “ inconscien­
tes” porque não são absolutamente mentais. Considere a
diferença, por exem plo, entre m inha crença (quando não
estou pensando sobre isto) de que a Torre E iffe l está em
^ aris e a m ielinização dos axônios em meu sistema ner-
v°so central. Há um sentido em que ambas são incons­
cientes, Porém, há uma grande diferença entre elas no sen-
0 de que os estados estruturais de meus axônios não
222 A REDESCOBERTA DA MENTE

poderiam ser em si estados conscientes, porque não há


nada m ental neles. Em nome desse argumento, adm ito
que a m ielinização atua essencialmente na produção de
meus estados m entais, mas, ainda que os axônios m ie li-
nizados fossem, eles mesmos, objetos de experiências,
mesmo que eu pudesse sentir interiorm ente o estado das
bainhas de m ielina, ainda assim as estruturas reais não
são, em si, estados m entais. Nem toda característica in ­
consciente de meu cérebro que (com o a m ielinização)
atua essencialmente em m inha vida m ental é, em si, uma
característica m ental. Mas a crença de que a Torre E iffe l
está em Paris é um estado m ental genuíno, mesmo que
seja um estado m ental que na m aior parte do tempo não
está presente para a consciência. A q u i estão, portanto, dois
estados em m im , m inha crença e m inha m ielinização
axônica: ambos têm algo a ver com meu cérebro, e ne­
nhum é consciente. Mas somente um é m ental, e precisa­
mos deixar claro o que o tom a m ental e a conexão entre
essa característica - qualquer que seja - e a consciência.
Justamente para m anter n ítid a essa distinção, proponho,
neste capítulo, chamar de “ não conscientes” fenômenos
como a m ielinização, que não estão de modo algum na
área de interesse m ental, e de “ inconscientes” fenômenos
como os estados mentais em que não estou pensando, ou
que reprim i.
Em nossa concepção de intencionalidade há pelo
menos duas restrições que qualquer teoria do inconscien­
te tem que ser capaz de explicar: prim eiro, deve ser
capaz de ju s tific a r a distinção entre os fenômenos que
são genuinamente intencionais e aqueles que, em alguns
aspectos, comportam-se como se fossem, mas na realída
o INCONSCIENTE E SUA RELAÇÃO COM A CONSCIÊNCIA 223

de não são. Esta é a distinção que discuti no fin a l do ca­


p ítulo 3, entre form as de intencionalidade intrínsecas e
como-se2. E, segundo, deve ser capaz de e xplicar o fato
de que os estados intencionais representam suas condi­
ções de satisfação somente sob determinados aspectos, e
que esses aspectos têm que ter im portância para o agen­
te. M inha crença inconsciente de que a Torre E iffe l está
em Paris satisfaz estas duas condições. O fato de eu ter esta
crença é uma questão de intencionalidade intrínseca, e
não uma questão daquilo que qualquer outra pessoa re ­
solva dizer sobre m im , ou de como eu me com porte, ou
de que tip o de atitude alguém pudesse adotar em relação
a m im . E a crença de que a Torre E iffe l está em Paris re­
presenta sua condição de satisfação sob determinados as-

pectos, e não outros. E, por exem plo, d istinta da crença


de que a mais alta estrutura de ferro erguida na França
antes de 1900 está localizada na capital francesa, mesmo
admitindo que a Torre E iffe l é idêntica à mais alta estru­
tura de fe rro erguida na França antes de 1900, e que Paris
é idêntica à capital francesa. Podíamos dizer que todo
estado intencional tem uma determinada fo rm a aspec­
tual, e que essa form a aspectual é parte de sua identida­
de, parte daquilo que o tom a o estado que é.

tf. O argumento em fa v o r do p rin cíp io da conexão

Essas duas características - o fato de que um estado


mtencional inconsciente tem que, não obstante, ser in ­
trínsecamente m ental, e o fato de que tem que ter uma
determinada form a aspectual - têm conseqüências im -
224 A REDESCOBERTA DA MENTE

portantes para nossa concepção do inconsciente. Elas for­


necerão a base de um argumento para demonstrar que com­
preendemos a noção de um estado mental inconsciente
somente como um conteúdo possível da consciência, so­
mente como a espécie de coisa que, embora não consciente,
e talvez impossível de trazer para a consciência por várias
razões, todavia é a espécie de coisa que poderia ser ou po­
deria ter sido consciente. Esta idéia, a de que todos os esta­
dos intencionais inconscientes são em princípio acessíveis
à consciência, denomino o “ princípio da conexão” , e agora
vou explicar mais detalhadamente o argumento em defesa
dele. A bem da clareza, vou numerar os passos principais
do argumento, embora não pretenda sugerir que o argu­
mento é uma simples dedução de axiomas.

1. H á uma distinção entre intencionalidade intrínse­


ca e intencionalidade como-se; apenas a intencionalida­
de intrínseca é genuinamente m ental. Argum entei, com
certa riqueza de detalhes, em defesa desta distinção bas­
tante óbvia tanto neste liv ro como nos escritos mencio­
nados previam ente, e, portanto, não repetirei os argu­
mentos aqui. A cre dito que a distinção é correta e que o
preço de abandoná-la seria que tudo tom ar-se-ia mental,
porque, relativam ente a um propósito qualquer, tudo
pode ser tratado como se fosse m ental. Por exemplo, a
água correndo m orro abaixo pode ser descrita como se
tivesse intencionalidade: tenta chegar ao pé do morro
engenhosamente buscando o caminho de menor resisten­
cia, faz processamento de inform ações, calcula o tama­
nho de rochas, o ângulo de declive, a atração da gravida­
de etc. Mas, se a água é m ental, então tudo é mental.
o INCONSCIENTE E SUA RELAÇÃO COM A CONSCIÊNCIA 225

2. Estados intencionais inconscientes são in trín se ­


cos. Quando digo de alguém que está adorm ecido que
ele acredita que George Bush é presidente dos Estados
Unidos, ou quando digo de alguém que está desperto que
ele tem um odio inconsciente mas reprim ido de seu pai,
estou falando bastante literalm ente. Não há nada m etafó­
rico ou como-se nessas atribuições. A tribuições do in ­
consciente perdem sua força explanatória se não as toma­
mos literalm ente.

3. Estados intencionais intrínsecos, quer conscientes


quer inconscientes, sempre têm form as aspectuais. Venho
usando o term o da arte, “ form a aspectual” , para designar
uma característica universal da intencionalidade. Isto po­
de ser explicado da seguinte form a: quando percebemos
qualquer coisa ou pensamos sobre qualquer coisa, sem­
pre fazemos isso sob alguns aspectos, deixando outros de
lado. Essas características aspectuais são essenciais para
o estado intencional; são parte daquilo que o tom a o esta­
do mental que é. A form a aspectual é mais óbvia no caso
de percepções conscientes: considere o ato de enxergar
um carro, por exem plo. Quando você vê um carro, não é
meramente uma questão de um objeto sendo registrado
por seu aparato perceptivo; mais exatamente, você e fe ti­
vamente tem uma experiência consciente do objeto a par­
tir de um determinado ponto de vista e com determinadas
características. Você enxerga o carro como tendo um de­
terminado form ato, como tendo uma determinada cor
etc. E o que é verdadeiro sobre percepções conscientes é
geralmente verdadeiro sobre estados intencionais. U m
homem pode acreditar, por exemplo, que a estrela no céu
226 A REDESCOBERTA DA MENTE

é a Estrela da M anhã sem acreditar que é a Estrela Ves­


pertina. U m homem pode, por exemplo, querer beber um
copo d ’ água sem querer beber um copo de H 20 . Há um
número indefinidam ente grande de descrições corretas da
Estrela Vespertina e de um copo de água, mas acredita-se
em algo em relação a elas, ou deseja-se algo delas so­
mente sob determinados aspectos, e não sob outros. Toda
crença e todo desejo, e na verdade todo fenômeno inten­
cional, tem uma form a aspectual.
Repare, além disso, que a form a aspectual tem que
im portar para o agente. É, por exemplo, a p a rtir do ponto
de vista do agente que ele pode querer água sem querer
H 20 . N o caso de pensamentos conscientes, o modo em
que a form a aspectual tem im portância é que ela consti­
tu i a maneira em que o agente pensa sobre ou experim en­
ta um assunto: eu posso pensar sobre m inha sede por um
gole de água sem pensar absolutamente sobre sua com­
posição quím ica. Posso pensar nela como água sem pen­
sar nela como H 20 . *
É razoavelmente claro como isto funciona no caso
de pensamentos e experiências conscientes, mas como
funciona no caso de estados mentais inconscientes? Uma
maneira de abordar nossa questão é perguntar que fato de
um estado m ental inconsciente faz com que ele tenha a
form a aspectual particular que tem, isto é, que fato acer­
ca dele tom a-o o estado m ental que é.

4. A característica aspectual não pode ser minuciosa


ou completamente caracterizada apenas em termos de
predicados de terceira pessoa, comportamentais, ou mesmo
neurofisiológicos. Nenhum destes é suficiente p a ra fo rn e -
o INCONSCIENTE E SUA RELAÇÃO COM A CONSCIÊNCIA 227

cer uma descrição m inuciosa da form a aspectual A e vi­


dência comportamental relativa à existência de estados
mentais, incluindo até a evidência relativa à causação do
comportamento de uma pessoa, não im porta quão comple­
ta, sempre deixa o caráter aspectual de estados intencio­
nais indeterminado. Haverá sempre um abismo inferencial
entre os m otivos comportamentais epistêmicos para a pre­
sença do aspecto e a ontologia do aspecto mesmo.
Uma pessoa pode na verdade exibir o comportamento
de quem quer água, mas qualquer comportamento de quem
quer água será também o comportamento de quem quer
H 20 . Assim , não há como o comportamento, construído
sem referência a um componente mental, possa constituir
querer água de preferência a querer H 20 . Note que não
basta sugerir que podíamos conseguir que a pessoa respon­
desse afirmativamente à pergunta “ Você quer água?” e ne­
gativamente à pergunta “ Você quer H 20 ? ” , porque as res­
postas afirm ativa e negativa são, elas mesmas, insuficien­
tes para determinar a form a aspectual sob a qual a pessoa
interpreta a pergunta e a resposta. Não há como, apenas a
partir do comportamento, determinar se a pessoa quer dizer
com “ H20 ” o que eu quero dizer com “ H 20 ” , e se a pessoa
quer dizer com “ água” o que quero dizer com “ água” . Ne­
nhuma soma de fatos comportamentais constitui o fato de
que a pessoa representa o que quer sob um aspecto e não
sob outro. Isto não é uma questão epistêmica.

E igualm ente verdadeiro, embora menos óbvio, que


nenhuma soma de fatos neurofisiológicos submetidos a
descrições neurofisiológicas constitui fatos aspectuais.
Mesmo que tivéssemos uma ciência perfeita do cérebro,
e ainda que ta l ciência perfeita do cérebro nos perm itisse
228 A REDESCOBERTA DA MENTE

colocar nosso cerebroscópio no crânio da pessoa e perce­


ber que ela queria água, mas não H 20 , ainda assim have­
ria uma inferência - ainda teríamos que ter alguma conexão
law like que nos habilitasse a in fe rir, a p a rtir de nossas
observações da arquitetura neural e das descargas neurô-
nicas, que eram realizações do desejo de água, e não do
desejo de H 20 .
Porque os fatos neurofisiológicos são sempre cau­
salmente suficientes para qualquer conjunto de fatos men­
tais3, alguém dotado de conhecimento causai perfeito po­
dia ser capaz de fazer a inferência a p a rtir do neurofisio-
lóg ico para o intencional pelo menos naqueles poucos
casos em que há uma conexão law like entre os fatos es­
pecificados em termos neurais e os fatos especificados
em termos intencionais. Mas, mesmo nesses casos, se é
que existem , há contudo uma inferência, e a especifica­
ção do neurofisiológico em termos neurofisiológicos não
é ainda uma especificação do intencional.

5. Porém a ontologia de estados mentais inconscien


tes, durante o tempo em que são inconscientes, consiste
inteiram ente na existência de fenômenos puram ente neu­
rofisiológicos. Im agine que um homem esteja num perfei­
to sono sem sonhos. Ora, enquanto está em tal estado é
correto dizer que ele tem m uitos estados mentais incons­
cientes. Por exem plo, ele acredita que Denver é a capital
do Colorado, W ashington é a capital dos Estados Unidos
etc. Mas qual fa to sobre ele fa z com que ele tenha estas
crenças inconscientes? Bem, os únicos fatos que pode­
riam e xistir enquanto ele está completamente inconscien­
te são fatos neurofisiológicos. As únicas coisas aconte-
O INCONSCIENTE E SUA RELAÇÃO COM A CONSCIÊNCIA 22 9

cendo em seu cérebro inconsciente são seqüências de


eventos neurofisiológicos ocorrendo em arquiteturas neu-
roniais. D urante o tempo em que os estados estão to ta l­
mente inconscientes, não há simplesmente nada lá, exce­
to estados e processos neurofisiológicos.
Mas agora parece que temos uma contradição: a on­
tologia da intencionalidade inconsciente consiste in te ira ­
mente em fenômenos neurofisiológicos, objetivos, de ter­
ceira pessoa, mas ainda assim os estados têm uma form a
aspectual que não pode ser constituída p or tais fatos, por­
que não há nenhuma form a aspectual no nível de neurô­
nios e sinapses.
Creio que há apenas uma solução para esse enigma.
A contradição aparente é resolvida mostrando-se que:

6. A noção de um estado intencional inconsciente é a


noção de um estado que é um pensamento ou experiência
consciente possível. Há uma profusão de fenômenos men­
tais inconscientes, mas, na medida em que são genuina­
mente intencionais, têm que preservar, em certo sentido,
sua form a aspectual mesmo quando inconscientes, porém
o único sentido que podemos dar à noção de que eles pre­
servam sua form a aspectual quando inconscientes é que
eles são conteúdos possíveis da consciência.
Esta é nossa prim eira conclusão essencial. Mas essa
resposta à nossa prim eira pergunta imediatamente dá o ri­
gem a uma outra questão: o que se quer dizer por “ pos­
sível” nas duas sentenças precedentes? A fin a l, podia ser
completamente im possível para o estado ocorrer cons­
cientemente, por causa de lesão cerebral, repressão ou
outras causas. Então, em que sentido exatamente esse
230 A REDESCOBERTA DA MENTE

estado tem que ser um conteúdo possível de um pensa­


mento ou experiência? Esta questão leva à nossa conclu­
são seguinte, que é na verdade uma explanação adicional
do passo 6, e é subentendida pelo 5 e pelo 6 conjunta­
mente:

7. A ontologia do inconsciente consiste em caracte­


rísticas objetivas do cérebro capazes de causar pensa­
mentos conscientes subjetivos. Quando descrevemos algo
como um estado intencional inconsciente, estamos carac­
terizando uma ontologia objetiva em virtude de sua ca­
pacidade causai de produzir consciência. Porém, a exis­
tência dessas características causais é com patível com o
fato de que, em qualquer caso dado, suas capacidades cau­
sais podem ser bloqueadas por algumas outras causas inter-
ferentes, como repressão psicológica ou lesão cerebral, por
exemplo.
A possibilidade de interferência por várias formas de
patologia não altera o fato de que qualquer estado inten­
cional inconsciente é a espécie de coisa que é, em princí­
pio, acessível à consriência. Pode ser inconsciente não
somente no sentido de que não acontece de ser consciente
neste momento, mas também no sentido de que, por uma
razão ou outra, o agente simplesmente não poderia trazê-
lo à consciência, porém tem que ser a espécie de coisa
que pode ser trazida à consciência porque sua ontologia é
aquela de uma neurofisiologia caracterizada em termos
de sua capacidade de causar consciência.
Paradoxalmente, o m entalism o ingênuo de minha
concepção da mente leva a um tip o de análise da disposi­
ção de fenômenos mentais inconscientes; só que não é
O INCONSCIENTE E SUA RELAÇÃO COM A CONSCIÊNCIA 231

uma disposição para “ com portam ento” , mas uma “ dispo­


sição” - se é que esta é realmente a palavra certa - para
pensamentos conscientes, inclusive pensamentos cons­
cientes manifestados em comportamento. Isto é parado­
xal, até irônico, porque a noção de uma descrição da dis­
posição do m ental fo i introduzida precisamente para nos
livrarm os do apelo à consciência; e estou, na prática, ten­
tando v ira r essa tradição de ponta-cabeça, demonstrando
que crenças inconscientes são na verdade estados de dis­
posição do cérebro, mas que são disposições para produ­
z ir pensamentos conscientes e comportamento conscien­
te. Esta espécie de atribuição de disposição de capacida­
des causais nos é bem fa m ilia r de acordo com o senso co­
mum. Quando, por exem plo, dizemos de uma substância
que ela é alvejante ou venenosa, estamos atribuindo a
uma ontologia quím ica uma capacidade de disposição
causal para produzir determinados efeitos. D a mesma
form a, quando dizemos do homem que está inconsciente
que ele acredita que Bush é presidente, estamos a trib uin ­
do a uma ontologia neurobiológica a capacidade de d is­
posição causai para produzir determinados efeitos, a sa­
ber, pensamentos conscientes com formas aspectuais espe­
cíficas. O conceito de intencionalidade inconsciente é,
por conseguinte, aquele de uma latência relativam ente a
sua m anifestação na consciência.
Para resumir: o argumento a favor do princípio de co­
nexão era algo com plexo, mas sua força im pulsora sub­
jacente era bastante simples. Simplesmente pergunte a
você mesmo qual fato no mundo se espera que corres­
ponda a suas afirm ações. Quando você faz uma a firm a ­
ção sobre intencionalidade inconsciente não há nenhum
232 A REDESCOBERTA DA MENTE

fato que se relacione com o caso, exceto fatos neurofisio-


lógicos. Não há nada mais lá, salvo estados e processos
neurofisiológicos descritíveis em termos n e u ro fisioló gi-
cos. Mas os estados intencionais, conscientes ou incons­
cientes, têm form as aspectuais, e não há nenhuma form a
aspectual no n iv e l dos neurônios. Portanto, o único fato
acerca das estruturas neurofisiológicas que corresponde
à atribuição de form a aspectual intrínseca é o fato de que
o sistema tem a capacidade causal de produzir estados e
processos conscientes em que essas form as aspectuais
específicas são manifestas.
O quadro global que se apresenta é este. Não há
nada acontecendo em meu cérebro a não ser processos
neurofisiológicos, alguns conscientes, alguns inconscien­
tes. Dentre os processos neurofisiológicos inconscientes,
alguns são mentais, outros não. A diferença entre eles
não está na consciência, porque, por hipótese, nenhum é
consciente; a diferença é que os processos mentais são
candidatos à consciência, porque são capazes de causar
estados conscientes. M as isso é tudo. Toda m inha vida
m ental está alojada no cérebro. Mas o que, no meu cére­
bro, é m inha “ vida m en ta r5? Somente duas coisas: esta­
dos conscientes e aqueles estados e processos neurofisio­
lógicos que - dadas as circunstâncias apropriadas - são
capazes de gerar estados conscientes. Denominemos
esses estados que são em prin cípio acessíveis à consciên­
cia “ superficialm ente inconscientes” , e aqueles inacessí­
veis mesmo em p rin cíp io “ profundam ente inconscien­
tes” . A p rin cip a l conclusão deste capítulo até aqui é que
não há nenhum estado intencional profundam ente in ­
consciente.
O INCONSCIENTE E SUA RELAÇÃO COMA CONSCIÊNCIA 233

H I. Duas objeções ao p rin c íp io de conexão

Quero d iscu tir duas objeções. A prim eira concebi eu


mesmo, embora diversas outras pessoas4 também tenham
me fornecido versões diferentes dela; a segunda é devida
a Ned B lock.
Prim eira objeção: suponha que tivéssemos uma ciên­
cia perfeita do cérebro. Suponha, por exem plo, que p u ­
déssemos pôr nosso cerebroscópio no crânio de alguém e
perceber que ele desejava água. A gora suponha que a
configuração “ quero-água” no cérebro fosse universal.
Pessoas querem água se têm esta configuração. Isto é uma
total fantasia de ficção científica, logicam ente, mas va­
mos fazer de conta. A gora, suponhamos que encontrás­
semos uma subseção da população que tivesse exata­
mente aquela configuração, mas que não pudesse, “ em
p rin cípio ” , trazer desejo algum de água à consciência.
Obrigam-se ao com portam ento de quem demanda água,
mas “ em p rin cíp io ” são incapazes de tomar-se conscien­
tes do desejo de água. Não há nada de patológico com
eles; essa é justam ente a form a como seus cérebros são
construídos. Ora, se isso é possível - e por que não? - ,
então encontramos um contra-exemplo para o princípio de
conexão, porque encontramos um exem plo de um desejo
inconsciente de água que é, em princípio, im possível tra­
zer à consciência.
O exem plo agrada-me, mas não penso que seja um
contra-exem plo. Característicamente, nas ciências d e fi­
nimos fenômenos superficiais em termos de suas m icro-
causas; podemos d e fin ir cores em termos de com prim en­
tos de ondas de um determinado número de nanômetros,
234 A REDESCOBERTA DA MENTE

por exem plo. Se tivéssemos uma ciência perfeita do


cérebro do tip o idealizado, poderíamos certamente iden­
tific a r estados mentais p or suas microcausas na neurofi-
siologia do cérebro. Porém - e este é o ponto crucial - a
redefinição funciona como uma identificação de um fe ­
nômeno mental inconsciente somente na medida em que
continuamos supondo que a neurofisiologia inconsciente
está ainda, por assim dizer, localizando o fenômeno men­
tal consciente correto através da form a aspectual correta.
Portanto, a dificuldade é com o uso da expressão “ em
prin cípio ” . N o caso im aginado, a neurofisiologia “ quero-
água” é na verdade incapaz de causar a experiência cons­
ciente. F oi somente com base nessa suposição que, em
prim eiro lugar, fomentam os o exem plo. Os casos que
imaginamos são meramente casos em que há um b lo ­
queio de alguma espécie. São semelhantes aos exemplos
de “ visão cega” de W eiskrantz, mas sem a patologia. Po­
rém não há nada “ em p rin c íp io ” inacessível à consciên­
cia nos fenômenos em questão, e é por isso que esse não
é um contra-exem plo para o p rin cíp io de conexão.
Segunda objeção: o argumento tem a conseqüência
de que não poderia haver um zum bi intencional to ta l­
mente inconsciente. Mas p or que não poderia haver? Se
tal coisa é possível - e por que não? então o princípio
de conexão acarreta uma proposição falsa, e é portanto
falso.
Efetivam ente, não poderia haver um zum bi intencio­
nal, e o famoso argumento de Quine para a indetermina-
bilidade da tradução (Q uine, 1960, cap. 2) inadvertida­
mente proporcionou-nos a prova: para um zum bi, ao
contrário de um agente consciente, simplesmente não ha
O INCONSCIENTE E SUA RELAÇÃO COM A CONSCIÊNCIA 235

nenhum fato de im portância no que diz respeito exata­


mente às formas aspectuais que seus pretensos estados
intencionais têm. Suponha que construamos um zum bi
“ que demanda água” . Ora, qual fato sobre o zum bi faz
com que seja o caso de que ele, ela ou isto está deman­
dando a substância sob o aspecto “ água” , e não sob o as­
pecto “ H 20 ” ? Note que não seria suficiente, para respon­
der a esta questão, dizer que poderíamos program ar o
zum bi para dizer: “ Eu com certeza realmente quero água,
mas não quero nenhuma H 20 ” , porque isto apenas faz a
questão recuar um passo: qual fato sobre o zum bi faz com
que seja o caso de que por “ água” ele queira dizer o que
queremos dizer por “ água” , e que por “ H 20 ” ele queira
dizer o que queremos dizer por “ H 20 ” ? E, mesmo que
tomemos mais com plexo seu comportamento para tentar
responder a essa questão, haverá sempre maneiras alter­
nativas de interpretar seu comportamento verbal que
sejam consistentes com todos os fatos do comportamento
verbal, mas isso confere atribuições inconsistentes de sig­
nificado e intencionalidade ao zum bi. E, como Quine
demonstrou árdua e detalhadamente, o problem a não é
que não poderíamos saber com certeza que o zum bi que­
ria dizer, por exem plo, “ coelho” em oposição a “ estágio
na história da vida de um coelho” , ou “ água” em oposição
a “ H 20 ” , mas que não há absolutamente nenhum fato de
significância que o zum bi exprimisse. Mas onde não há
nenhum fato de im portância sobre form a aspectual, não
há nenhuma form a aspectual, e onde não há nenhuma
form a aspectual, não há nenhuma intencionalidade.
Quine, podíamos dizer, tem uma teoria de significado
apropriada para zumbis com comportamento verbal. Mas
236 A REDESCOBERTA DA MENTE

não somos zum bis, e nossas emissões - às vezes, ao me­


nos - realmente têm significados determinados com fo r­
mas aspectuais determinadas, exatamente como nossos
estados intencionais freqüentemente têm conteúdos in ­
tencionais determinados com form as aspectuais determ i­
nadas (Searle, 1987). Tudo isso, porém, pressupõe cons­
ciência.

IV. P oderia haver dores inconscientes?

Quero ilustrar o p rin cíp io de conexão, ademais, im a­


ginando um caso no qual teríamos uma aplicação para a
noção de “ dor inconsciente” . Em geral não pensamos em
dores inconscientes, e m uitas pessoas, creio eu, aceita­
riam a noção cartesiana de que, para algo ser dor genuí­
na, tem que ser consciente. Mas penso que é fá c il evocar
intuições contrárias. Considere o seguinte: é uma ocor­
rência m uito com um n<3 caso de pessoas que sofrem de
dores crônicas, digamos dores crônicas nas costas, que
em decorrência delas às vezes fique d ifíc il adormecer. E
na verdade, depois que já adormeceram, às vezes há oca­
siões, durante a noite, em que seu estado de saúde precá­
rio fa z com que elas acordem. Ora, como descreveremos
precisamente esses casos? Em consideração a esse exem­
plo, estamos adm itindo que os pacientes estão totalmente
inconscientes durante o sono; não têm nenhuma cons­
ciência de dor alguma. Será que devemos dizer, então,
que durante o sono realmente não havia nenhuma dor,
mas que a dor começou quando eles acordaram e que
foram acordados por processos neurofisiológicos que
O INCONSCIENTE E SUA RELAÇÃO COM A CONSCIÊNCIA 237

norm alm ente causariam dor, mas não provocaram dor


porque no m om ento estavam adormecidos? Ou será que
devemos dizer, por outro lado, que a dor, isto é, a dor em
si, persistiu tanto antes, durante, como depois de seu pe­
ríodo de sono, mas que eles não estavam conscientemente
cientes da dor enquanto estavam adormecidos? M inhas
intuições consideram a segunda exatamente tão natural,
na verdade provavelm ente mais natural, que a prim eira.
Entretanto, o im portante é perceber que não há nenhuma
questão substantiva envolvida. Estamos simplesmente
adotando um vocabulário alternativo para descrever o
mesmo conjunto de fatos. Mas agora considere o segun­
do vocabulário: através dele, dizemos que a dor estava
durante algum tem po consciente, depois estava incons­
ciente, depois estava consciente de novo. Mesma dor, es­
tados de consciência diferentes. Podíamos aumentar nosso
im pulso para fa la r desse modo se descobríssemos que,
embora completamente inconsciente, a pessoa fazia m o­
vim entos corporais durante o sono que serviam para pro­
teger a parte dolorida de seu corpo.
Então, qual é exatamente a ontologia da dor quando
ela é completamente inconsciente? A resposta me parece
bastante óbvia. O que nos predispõe a dizer que a dor
continuou a existir, ainda que inconsciente, é que havia
um processo n e u ro fisioló gico subjacente capaz de gerar
um estado consciente e capaz de gerar comportamento
apropriado em alguém que tivesse esse estado conscien­
te. E no exem plo, conform e exposto, fo i isso exatamente
0 que aconteceu.
Mas ora, se estou certo disso, fic a d ifíc il perceber
como poderia haver qualquer substância concreta nas
238 A REDESCOBERTA DA MENTE

antigas controvérsias entre freudianos e seus adversários


sobre a existência ou não de estados mentais inconscien­
tes. Se vocês concordam com meu argumento até agora,
então sou incapaz de perceber como isso poderia ser
m uito diferente de uma questão puramente te rm in o ló g i­
ca, diferente apenas em com plexidade da controvérsia
sobre a existência de dores inconscientes conform e aca­
bei de descrever. U m lado insistia em que realmente há
estados mentais inconscientes; o outro insistia em que, se
fossem realmente m entais, pois bem, então tinham que
ser conscientes. Mas que fatos no mundo se espera que
correspondam a essas duas afirmações diferentes?
A evidência que os freudianos aduziram envolvia
histórias, com portam ento e anuências conscientes cau­
sais por parte do agente - todas as quais pareciam so­
mente interpretáveis sob o pressuposto de um estado
m ental inconsciente, que era exatamente como um esta­
do consciente, salvo por ser inconsciente. Considere uma
espécie típica de caso. A um homem sob hipnose é incu­
tida uma sugestão pós-hipnótica no sentido de que ele
deve engatinhar de um lado para o outro pelo chão antes
de sair do transe hipnótico. Depois, quando consciente,
ele dá alguma justifica çã o completamente estranha, mas
aparentemente racional, para seu comportamento. D iz,
por exem plo: “ C reio que posso ter perdido meu relógio
em algum canto desta sala” , e então continua a engati­
nhar pelo chão. Então supomos, com boas razões, creio
eu, que ele está inconscientemente obedecendo à ordem,
que inconscientem ente pretende engatinhar pelo chão
porque fo i isto que lhe ordenou o hipnotizador, e que a
razão que ele apresenta para seu com portam ento não e,
de modo algum , a razão real.
O INCONSCIENTE E SUA RELAÇÃO COM A CONSCIÊNCIA 239

Porém, adm itindo-se que ele esteja totalm ente in ­


consciente de seus m otivos reais, qual se supõe que seja,
aí mesmo, a ontologia do inconsciente? Repetindo nossa
questão anterior, que fa to corresponde à atribuição do
estado m ental inconsciente no período em que o agente
está atuando por uma razão da qual é totalm ente incons­
ciente? Se, de fato, o estado é totalm ente inconsciente,
então os únicos fatos são a existência de estados neurofi-
siológicos capazes de ocasionar pensamentos conscien­
tes e o tip o de com portam ento apropriado a alguém que
tenha esses pensamentos.
As vezes pode haver várias etapas inferenciais entre
o estado m ental inconsciente latente e a intencionalidade
consciente m anifesta. Assim , dizem -nos que o adoles­
cente que se revo lta contra a autoridade da escola é in ­
conscientemente m otivado pelo ódio a seu pai. A escola
sim boliza o pai. M as uma vez mais, da mesma form a que
tivem os que perguntar no caso da hipnose, qual se supõe
que seja a ontologia do inconsciente quando inconscien­
te? E neste caso, como no caso da hipnose, a atribuição
de uma form a aspectual específica ao inconsciente tem
que im p lica r que haja, na neurofisiologia, uma capacida­
de de produzir um pensamento consciente com essa
mesma form a aspectual.
Um a vez que você veja que a descrição de um esta­
do m ental como “ inconsciente” é a descrição de uma on­
tologia n eurofisiológica em termos de sua capacidade
causai de produzir pensamentos e com portam ento cons­
cientes, então parece que não poderia haver nenhuma
substância fatual na questão ontológica: existem real­
mente estados mentais inconscientes? Tudo o que esta
240 A REDESCOBERTA DA MENTE

questão pode sig n ifica r é: ha estados neurofisiológicos


não-conscientes do cérebro capazes de ocasionar pensa­
mentos conscientes e os tipos de comportamento apro­
priados para que alguém tenha esses pensamentos? L o ­
gicamente, nenhum lado pensou na questão dessa form a,
mas talvez parte da intensidade da discussão derivasse
do fato de que o que parecia uma questão ontológica
direta - existem estados inconscientes? - não era real­
mente uma questão ontológica de modo algum.
Se estou certo acerca disso, então os antigos argu­
mentos freudianos - envolvendo toda a evidência advin­
da do hipnotism o, das neuroses etc. - não são tanto con­
clusivos ou inconclusivos quanto fatualm ente vazios. A
questão não é menos im portante por ser conceituai ou
term inológica, mas deveríamos compreender que não é
uma questão fatual sobre a existência de entidades men­
tais que não são nem fisiológicas nem conscientes.

V. Freud e o inconsciente

Quero co n clu ir este capítulo comparando minha


concepção do inconsciente e sua relação com a consciên­
cia com a de Freud. N a m inha concepção, dentro de nos­
sos crânios há uma massa de neurônios engastada em
células neurogliais, e algumas vezes este sistema vasto e
intricado é consciente. A consciência é causada pelo com­
portam ento de elementos de n ível in fe rio r, presum ivel­
mente em níveis neuroniais, sináptícos e colunares, e
como ta l é uma característica de n ível superior do siste­
ma como um todo. Não pretendo dizer que haja qualquer
O INCONSCIENTE E SUA RELAÇÃO COM A CONSCIÊNCIA 241

coisa simples acerca de consciência ou neurofisiologia.


Ambas me parecem imensamente complexas, e a cons­
ciência em p a rticu la r aparece, como vim os, numa varie­
dade de m odalidades: percepção, emoção, pensamento,
dores etc. Porém, na m inha opinião, isto é tudo que acon­
tece dentro do cérebro: processos neurofisiológicos e cons­
ciência. Na minha descrição, falar sobre a mente inconscien­
te é meramente fa la r sobre as capacidades causais da
n eurofisiologia para causar estados conscientes e com ­
portam ento consciente.
Basta da m inha concepção. Que me dizem de Freud?
Onde vejo atribuições corretas de vida m ental incons­
ciente como correspondentes a uma ontologia n e u ro fi-
siológica objetiva, mas descrita em termos de sua capaci­
dade de causar fenômenos mentais subjetivos conscien­
tes, Freud5vê essas atribuições como correspondentes a es­
tados m entais existindo neste m om ento e loca l como
estados mentais. Isto é, Freud crê que nossos estados men­
tais inconscientes existam tanto como inconscientes quanto
como estados intencionais intrínsecos ocorrentes mesmo
quando inconscientes. Sua ontologia é aquela do m en­
ta l, mesmo quando são inconscientes. Pode ele tom ar tal
quadro coerente? A q u i está o que d iz: todos os estados
mentais são “ inconscientes em si mesmos” . E trazê-los
para a consciência é simplesmente como perceber um
objeto (1915, reed. 1959, vo l. 4, esp. pp. 104 ss.). P or­
tanto, a distinção entre estados mentais conscientes e
inconscientes não é a distinção entre duas espécies de
estados mentais, ou mesmo uma distinção entre dois
modos diferentes de existência de estados m entais, mas,
antes, todos os estados mentais são realmente incons-
24 2 A REDESCOBERTA DA MENTE

cientes em si mesmos (an sich), e o que denominamos


“ consciência” é apenas um modo de percepção de estados
que são inconscientes em seu modo de existência. É
como se. os estados mentais inconscientes realmente fos­
sem como m óveis no sótão da mente, e, para trazê-los à
consciência, subíssemos ao sótão e fizéssemos b rilh a r a
lanterna de nossa percepção sobre eles. D a mesma form a
como os m óveis “ em si mesmos” são invisíveis, assim os
estados mentais “ em si mesmos” são inconscientes.
É possível que eu esteja fazendo uma interpretação
equivocada de Freud, mas não posso encontrar ou inven­
tar uma interpretação coerente de sua teoria. M esmo que
deixemos de lado os estados conscientes de percepção e
nos restrinjam os aos estados intencionais proposicionais,
como crenças e desejos, parece-me que a teoria é incoe­
rente em pelo menos dois aspectos. P rim eiro, não posso
tom ar sua explicação da ontologia do inconsciente com ­
patível com o que sabemos a respeito do cérebro; e, em
segundo lugar, não posso fo rm u la r uma versão coerente
da analogia entre percepção e consciência.
A q u i está a prim eira dificuldade: suponha que eu
tenha uma série de estados mentais inconscientes. Quan­
do estou completamente inconsciente, as únicas coisas
acontecendo em meu cérebro são processos neurofisioló-
gicos ocorrendo em arquiteturas neuroniais específicas.
Portanto, que fato acerca desses processos e arquiteturas
neurofisiológicos se supõe constitui sua condição de es­
tados mentais inconscientes? Observe as características
que os estados mentais inconscientes têm que ter en-
quanto estados mentais. P rim eiro, têm que ter forma
aspectual; e, segundo, em certo sentido têm que ser “ sub-
O INCONSCIENTE E SUA RELAÇÃO COM A CONSCIÊNCIA 243
A

je tivo s” , porque são estados mentais meus. E fá c il perce­


ber como essas condições são satisfeitas no caso de esta­
dos conscientes - tais estados são experimentados como
A

tendo form a aspectual. E mais d ifíc il, mas ainda assim


possível, perceber como são satisfeitas no caso de esta­
dos inconscientes se pensarmos na ontologia do incons­
ciente da maneira que sugeri - como uma neurofisiologia
ocorrente capaz de causar estados e eventos conscientes.
Porém como pode a neurofisiologia não-consciente ter
form a aspectual e subjetividade exatamente nesse m o ­
mento e local? A neurofisiologia realmente admite níveis
diferentes de descrição, mas nenhum destes níveis neu-
rofisio ló g ico s objetivos de descrição - que vão da m i-
croanatomia da fissura sináptica até grandes órgãos v is í­
veis, como o hipocam po - é um nível de form a aspectual
ou subjetividade.
Freud aparentemente pensa que, além de quaisquer
que sejam as características neurofisiológicas que meu
cérebro tenha, há também algum n íve l de descrição no
qual meus estados mentais conscientes, embora com ple­
tamente inconscientes, têm todas e cada uma das caracte­
rísticas de meus estados mentais conscientes, inclusive
intencionalidade e subjetividade. O inconsciente tem
tudo que o consciente tem, à exceção apenas da cons­
ciência. Mas ele não deixou claro que eventos poderiam
estar ocorrendo no cérebro, além dos eventos neurofisio-
lógicos, para co n stitu ir a subjetividade e intencionalida­
de inconscientes.
A evidência que Freud nos fornece para a existência
do inconsciente é, invariavelm ente, que o paciente se en­
gaja num com portam ento que é como-se tivesse um de-
24 4 A REDESCOBERTA DA MENTE

term inado estado m ental, mas, porque sabemos indepen-


dentemente que o paciente não tem nenhum estado men­
tal consciente semelhante, Freud postula um estado mental
inconsciente como a causa do comportamento. U m ve ri-
ficacionista teria que dizer que o único sentido que há
para a postulação é que o paciente se com porta de tais e
tais maneiras, e que tal com portam ento seria norm al­
mente causado p or um estado consciente. Mas Freud não
é um verificacionista. Ele acredita que, causando o com ­
portam ento, a li existe alguma coisa que não é somente
neurofisiológica, mas que tampouco é consciente. Não
posso tom ar isso consistente com o que sabemos sobre o
cérebro, e é d ifíc il interpretá-lo, a menos que implicasse
dualism o, como se Freud postulasse uma classe de fenô­
menos mentais não-neurofisiológicos; e, assim, isso pa­
rece co nstitu ir um abandono do projeto antigo de Freud
de uma psicologia cien tífica (1895).
Que dizer da analogia entre consciência e percep­
ção? Uma vez que adotemos a visão de que estados men­
tais são tanto mentais em si mesmos como inconscientes
em si mesmos, então não é fá c il explicar como a cons­
ciência se encaixa dentro desse quadro. E como se a visão
de que os estados mentais são inconscientes em si mes­
mos tivesse a conseqüência de que a consciência fosse
totalm ente extrínseca, e não uma parte essencial de qual­
quer estado ou evento consciente. Parece-me que Freud
aceita essa conseqüência, e a analogia entre consciência
e percepção é uma form a de tentar encaixar a consciên­
cia dentro desse quadro, dada a conseqüência de que a
consciência é uma característica não-essencial, extrínse­
ca, de qualquer estado consciente. Desde que a teoria do
O INCONSCIENTE E SUA RELAÇÃO COM A CONSCIÊNCIA 245

inconsciente seja decifrada, a analogia com a percepção


parece inevitável. Para explicar a ocorrência da cons­
ciência juntam ente com a teoria do inconsciente, somos
forçados a postular que a consciência é uma espécie de
percepção de estados e eventos que, em sua natureza
intrínseca, são inconscientes.
Mas essa solução nos leva da frig id e ira para o fogo.
Como vim os em nossa discussão da introspecção, o mode­
lo de percepção funciona sob o pressuposto de que há uma
distinção entre o objeto percebido e o ato de percepção.
Freud precisa deste pressuposto para explicar a conse­
qüência de que a consciência é extrínseca, de que, por
exemplo, este mesmo pensamento consciente de ocorrên­
cia poderia ter existido sem consciência. Tentemos tom ar
a analogia a sério. Suponha que eu veja uma bicicleta. Em
tal situação perceptiva há uma distinção entre o objeto
percebido e o ato de percepção. Se retiro daí a percepção,
fico com uma bicicleta; se retiro daí a bicicleta, fic o com
uma percepção que não tem nenhum objeto, por exemplo
uma alucinação. Mas são precisamente essas distinções
que não podemos fazer no caso do pensamento conscien­
te. Se tento retirar o ato consciente de pensar desse pensa­
mento ocorrência, digamos, de que Bush é presidente, não
me resta nada. Se tento extrair o caso ocorrência do pensa­
mento do ato consciente de pensar nele, não consigo sub­
trair nada daí. A distinção entre o ato de perceber e o obje­
to percebido não se aplica a pensamentos conscientes.
A lém do m ais, parece que chegamos a um regresso
vicioso se sustentarmos que o fenômeno de trazer esta­
dos inconscientes à consciência consiste em perceber
previamente fenômenos mentais inconscientes que, em si
246 A REDESCOBERTA DA MENTE

mesmos, são inconscientes. Em vista disso, surge então a


pergunta: que dizer do ato de percepção - ele é um fenô­
meno mental? Se sim, tem que ser “ em si mesmo” incons­
ciente, e pareceria que, para tomar-me consciente desse
ato, precisaria de algum ato de nível superior de percep­
ção de meu ato de percepção. Não estou seguro quanto a
isto, mas parece que a argumentação ameaça um regresso
in fin ito .
Uma últim a dificuldade com essa analogia perceptiva
é a seguinte: a percepção atua sob o pressuposto de que o
objeto percebido exerce um impacto causai sobre meu sis­
tema nervoso, o qual causa m inha experiência dele; portan­
to, quando toco algo ou sinto algo, o objeto da percepção
causa uma determinada experiência. Mas como poderia
isto v ir a funcionar no caso em que o objeto percebido é,
ele mesmo, uma experiência inconsciente?
Resum indo, parece-me que há duas objeções à des­
crição freudiana: uma, que não temos uma noção clara
de como se espera que a ontologia do inconsciente cor­
responda à ontologia da neurofisiologia. A segunda, que
não temos uma noção clara de como aplicar a analogia
perceptiva à relação entre consciência e inconsciência; e
pareceríamos chegar ao absurdo e a um regresso in fin ito
se tentássemos levá-la a sério.

VI. Restos do inconsciente

O que sobra do inconsciente? Disse antes que nossa


noção pré-teórica ingênua do inconsciente era como as
noções de peixes no m ar ou m óveis no sótão escuro da
o INCONSCIENTE E SUA RELAÇÃO COM A CONSCIÊNCIA 247

mente. Elas mantêm suas formas mesmo quando incons­


cientes. Agora, porém, podemos perceber que essas im a­
gens são inadequadas em princípio, porque têm por base
a idéia de uma realidade m ental constante que aparece e
depois desaparece. Mas a crença submersa, diferente­
mente dos peixes submersos, não pode manter sua form a
consciente quando inconsciente, pois a única realidade
ocorrente dessa form a é a form a de pensamentos cons­
cientes. A imagem ingênua de estados inconscientes con­
funde a capacidade causai de causar um estado intencio­
nal consciente com o próprio estado consciente, isto é,
A

confunde a latência com sua manifestação. E como se


pensássemos que o frasco de veneno na prateleira tivesse
que estar envenenando alguma coisa o tempo todo para
ser realmente venenoso. Repetindo, a ontologia do in ­
consciente é estritam ente a ontologia de uma neurofisio-
logia capaz de gerar o consciente.
A conclusão fin a l que quero e xtrair dessa discussão
é que não temos nenhuma noção unificada do incons­
ciente. Há pelo menos quatro noções diferentes.
Prim eiro, há atribuições m etafóricas como-se de in-
tencionalidade ao cérebro, as quais não devem ser tom a­
das literalm ente. Por exem plo, podíamos dizer que a
medula quer manter-nos vivos, e por isso nos mantém
respirando mesmo enquanto estamos adormecidos.
Segundo, há casos freudianos de desejos, crenças
etc. superficialm ente inconscientes. É m elhor considerá-
los como casos de consciência reprim ida, porque estão
sempre borbulhando para a superfície, embora freqüen­
temente numa form a disfarçada. Em seu comportamento
lógico, a noção freudiana do inconsciente é bem diferen-
248 A REDESCOBERTA DA MENTE

te da noção da ciência cognitiva no aspecto crucial de que


os estados mentais inconscientes freudianos são poten­
cialm ente conscientes.
Terceiro, há os casos (relativam ente) não-problemá-
ticos de fenômenos mentais superficialm ente inconscien­
tes que simplesmente não form am o conteúdo de minha
consciência em nenhum ponto dado no tempo. Por conse­
guinte, a m aior parte de minhas crenças, desejos, preocu­
pações e memórias não estão presentes à m inha consciên­
cia em nenhum momento dado, como o presente. Não
obstante, são todos potencialm ente conscientes no senti­
do em que expliquei (se o compreendo corretamente,
esses são o que Freud denotava por “ pré-conscientes” , em
oposição aos “ inconscientes” [(Freud, 1949)].
Quarto, supõe-se que haja uma classe de fenômenos
intencionais mentais profundam ente inconscientes que
não são apenas inconscientes, mas, em princípio, inaces­
síveis à consciência. Estes, como argumentei, não exis­
tem. Não somente não há nenhuma evidência de sua exis­
tência, como também a postulação de sua existência viola
uma imposição lógica na noção de intencionalidade.
C A P ÍT U L O 8
CONSCIÊNCIA, INTENCIO NALIDADE
E O “ BACKGROUND”

I. Introdução ao “Background”

O objetivo deste capítulo é explicar a relação entre


consciência e intencionalidade, de um lado, e, de outro,
as capacidades, aptidões e know-how geral que p o ssib ili­
tam que nossos estados mentais atuem. C oletivam ente,
dou a essas capacidades etc. o nome de “ o Background” ,
com um “ B ” m aiúsculo para tom ar claro que emprego a
palavra como um term o técnico. Já que minhas concep­
ções do Background evoluíram em alguns aspectos im ­
portantes desde que escrevi In te n tio n a lity (1983), e x p li­
carei também as mudanças e a m otivação para elas.
No in íc io da década de 1970, comecei a investigar
os fenômenos que posteriormente vim a denom inar “ o
Background” e a desenvolver uma tese que denom ino “ a
hipótese do B a c k g ro u n d A tese era originalm ente uma
afirmação sobre significado lite ra l (Searle, 1978), mas
creio que o que se aplica a significado lite ra l também se
aplica a significado intencional do falante e, na verdade,
250 A REDESCOBERTA DA MENTE

a todas as form as de intencionalidade, quer lingüísticas


quer não-lingüísticas. A tese do Background é simples-
mente esta: os fenômenos intencionais como sig n ifica ­
dos, entendimentos, interpretações, crenças, desejos e
experiências só funcionam dentro de um conjunto de
capacidades de Background que não são, elas mesmas,
intencionais. O utro modo de apresentar esta tese é dizer
que toda representação, seja em linguagem , pensamento
ou experiência, somente obtém êxito no ato de represen­
tar dado um conjunto de capacidades não-representativas.
Em meu jargão técnico, os fenômenos intencionais só de­
term inam condições de satisfação relativam ente a um
conjunto de capacidades que não são, elas mesmas, in ­
tencionais. Assim , o mesmo estado intencional pode deter­
m inar condições de satisfação diferentes, dadas diferentes
capacidades de Background, e um estado intencional não
determinará nenhuma condição de satisfação a menos que
seja empregado relativam ente a um Background apro­
priado.
Para desenvolver mais essa tese, preciso repetir uma
distinção que fiz antes, entre o Background e a Rede. E
em geral im possível para os estados intencionais deter­
m inar condições de satisfação isoladamente. Para ter
uma crença ou desejo, tenho que ter uma completa Rede
de outras crenças e desejos. Assim , por exemplo, se ago­
ra quero comer uma boa refeição num restaurante da re­
gião, tenho que ter um grande número de outras crenças
e desejos, como as crenças de que há restaurantes na v i­
zinhança, que restaurantes são o tip o de estabelecimento
onde se servem refeições, que refeições são o tipo de
coisas que podem ser compradas e comidas dentro de
CONSCIÊNCIA, INTENCIONALIDADE E O “BACKGROUND” 251

restaurantes em determinadas horas do dia p or determina­


das quantias de dinheiro, e assim por diante, mais ou me­
nos indefinidam ente. Entretanto, o problem a é este: mes­
mo se eu tivesse a paciência de relacionar todas as outras
crenças e desejos que contribuem para constituir a Rede
que dá sentido ao meu desejo de comer uma boa refeição
em um restaurante, ainda fica ria com o problem a que me
fo i colocado por meu desejo inicial, a saber, que o conteúdo
da intencionalidade não é, por assim dizer, auto-interpre­
tativo. É ainda sujeito a uma série ind e finid a de aplica­
ções diferentes. N o que diz respeito ao conteúdo inten ­
cional efetivo de meu desejo, é possível ter este mesmo
conteúdo e, todavia, aplicá-lo a um número indefinido de
formas diferentes e inconsistentes. O que exatamente
constitui o ato de comer, o que constitui uma refeição, o
que constitui um restaurante? Todas estas noções são sus­
cetíveis de interpretações diferentes, e essas interpreta­
ções não são determinadas pelo conteúdo do estado inten­
cional isoladamente. A lém da Rede, precisamos postular
um Background de capacidades que não sejam, elas mes­
mas, parte dessa Rede. Ou, mais exatamente, a Rede toda
tem necessidade de um Background, porque os elementos
da Rede não são auto-interpretativos ou auto-aplicáveis.
A tese do Background (na qual estou agora incluindo
a afirm ação sobre a Rede) constitui um a asserção m uito
forte. Envolve pelo menos o seguinte:

1. Os estados intencionais não atuam de modo autô­


nomo. Não determ inam condições de satisfação isolada­
mente.
2. Todo estado intencional requer para seu funciona­
mento uma Rede de outros estados intencionais. As con-
252 A REDESCOBERTA DA MENTE

dições de satisfação só são determinadas relativam ente à


Rede.
3. Mesmo a Rede não é suficiente. A Rede somente
atua relativamente a um conjunto de capacidades de Back­
ground.
4. Essas capacidades não são e não podem ser trata­
das como outros estados intencionais ou como parte do
conteúdo de qualquer estado intencional específico.
5. O mesmo conteúdo intencional pode determ inar
diferentes condições de satisfação (como, por exemplo,
condições de verdade) relativamente a diferentes Back­
grounds, e relativam ente a certos Backgrounds não deter­
m ina absolutamente nada.

Para conceber o Background de maneira simples, con­


sidere o exem plo de W ittgenstein do quadro do homem
caminhando para cima. Poderia ser interpretado como
um homem deslizando para trás, descendo. Nada de in ­
trínseco ao quadro, mesmo analisado como uma repre­
sentação pictórica de um homem naquela posição, impõe
a interpretação que consideramos natural. A idéia do
Background é que o que vale para o quadro vale para a
intencionalidade em geral.
Nos últim os cem anos, aproximadamente, a espécie
de fenômenos que chamo de “ B a c k g r o u n d ” fo i reconhe­
cida por um grande número de filósofos diferentes com
compromissos bastante diferentes. Nietzsche não é, segu­
ramente, o prim eiro a ter reconhecido o fenômeno, mas é
um dos mais cientes de sua contingência: o B a c k g ro u n d
não tem que ser da maneira que é. Não há provas no sen­
tido de que o B a c k g r o u n d que temos seja o que devemos
ter por necessidade. A obra posterior de W ittgenstein e,
CONSCIÊNCIA, 1NTENC10NALIDADE E 0 “BACKGROUND ” 253

em grande parte, sobre o B ackground\ Entre os autores


contemporâneos, parece-me que a noção de habitus de
Bourdieu (1990) é estreitamente aparentada à m inha noção
do Background.
Neste capítulo, vou prim eiro esboçar uma argumen­
tação para a tese do Background, e assim tentar ju s tific a r
a postulação de fenômenos de Background como uma
categoria independente para a investigação. Segundo, vou
apresentar novamente a tese do Background, à luz da dis­
cussão das relações entre consciência, o inconsciente e
intencionalidade apresentadas no capítulo 7. Em terceiro
lugar, debaterei diversas im plicações da tese do B ack­
ground; e, em particular, tentarei escapar aos variados
m al-entendidos e às concepções errôneas que me pare­
cem ter sido geradas por um conhecim ento do Back­
ground. Em quarto lugar, in icia re i uma descrição geral
do Background.

II. Alguns argumentos em defesa


da hipótese do “ Background”

Em trabalhos anteriores (Searle, 1978, 1980c, 1983,


1990) apresentei argumentos para todas as cinco teses, e
não repetirei todos eles aqui. Entretanto, para dar uma
apreciação em defesa das teses que estou apresentando,
delinearei algumas das considerações que mais me im ­
pressionam. A m aneira mais simples de ver que a repre­
sentação pressupõe um Background de capacidades não-
representacionais consiste em exam inar o entendim ento
de sentenças. A vantagem de começar com sentenças é
254 A REDESCOBERTA DA MENTE

que elas são objetos sintáticos bem definidos, e as lições


a serem aprendidas com elas podem ser aplicadas generi­
camente a fenômenos intencionais. O tópico número 5
dá-nos o prim eiro passo da argumentação: o mesmo sig­
nificado lite ra l determ inará condições de satisfação dife ­
rentes, por exemplo condições de verdade diferentes,
relativamente a diferentes pressuposições de Background,
e alguns significados lite ra is não determinarão nenhuma
condição de verdade, por causa da ausência de pressupo­
sições de Background apropriadas. A lé m disso (tópico
4), essas pressuposições de Background não são e não
poderiam ser incluídas no significado lite ra l. Assim , por
exem plo, se você considera ocorrências do verbo “ cut”
(cortar), em sentenças como “ Sam cut the grass” (Sam
cortou a grama), “ S ally cut the cake” (S ally cortou o
bolo), “ B ill cut the clo th ” ( B ill cortou o tecido), “ I ju s t
cut my skin” (Acabei de cortar m inha pele), perceberá
que o verbo “ cut” (cortar) sig n ifica a mesma coisa em
todas. Isto é demonstrado, por exemplo, pelo fato de que
a redução da conjunção trabalha a favor das ocorrências
deste verbo, com estes objetos diretos. Por exemplo,
podemos dizer: “ G eneral E le c tric has invented a new
device that w ill cut grass, cut cakes, cut cloth, and cut
skin” (A General E le ctric inventou um novo aparelho
que corta grama, corta bolos, corta tecidos e corta pele).
Depois podemos simplesmente suprim ir as últim as três
ocorrências de “ cut” (cortar) e dizer: “ G eneral E lectric
has invented a new device that w ill cut grass, cake, cloth,
and skin” (A General E lectric inventou um aparelho que
corta grama, bolo, tecido e pele). Repare que, nestas ocor­
rências, o verbo “ cut” (cortar) difere de suas ocorrências
CONSCIÊNCIA, INTENCIONALIDADE E 0 “ BACKGROUND” 255

genuinamente m etafóricas. Se digo: “ S ally cut two clas­


ses last week” (S ally cabulou duas aulas na semana pas­
sada), “ The president cut the salaries o f the professors”
(O presidente cortou os salários dos professores) ou “ The
R aiders cut the roster to fo rty -fiv e ” (Os combatentes da
M arinha cortaram a escala de serviço para quarenta e
cinco), em todos os casos o verbo “ cut” (cortar) tem um
emprego não-literal. Novamente, a redução da conjunção
demonstra isso. Se digo “ G eneral E le ctric has invented a
device that w ill cut grass, cake, cloth, and skin” (A Ge­
neral E le ctric inventou um aparelho que corta grama,
bolo, tecido e a pele), e depois acrescento “ and salaries,
classes and rosters” (e salários, aulas e escalas de servi­
ço), o conjunto transform a-se numa piada de mau gosto.
Portanto, as emissões contêm a ocorrência lite ra l do
verbo “ cut” (cortar), mas esta palavra, em uma interpreta­
ção norm al, é interpretada diferentemente em cada frase.
Você pode também perceber isso se im aginar a versão
im perativa correspondente dessas emissões. Se digo “ cut
the grass” (corte a grama), e você sai correndo e crava
uma faca nela, ou se digo “ cut the cake” (corte o bolo), e
você corre para ele com um cortador de grama, há um
sentido perfeitam ente ordinário em que você não fez exa­
tamente o que lhe pedi que fizesse.
A lição a ser tirada desses exemplos é esta: a mesma
expressão lite ra l pode dar a mesma contribuição à emis­
são lite ra l de uma variedade de sentenças, e, ainda que
estas sentenças sejam compreendidas literalm ente - não
há nenhuma questão de m etáfora, ambigüidade, atos de
fala indiretos etc. - , a expressão será interpretada d ife ­
rentemente nas diferentes sentenças. Por quê? Porque
256 A REDESCOBERTA DA MENTE

cada sentença é interpretada contra um Background de


capacidades humanas (aptidões para dedicar-se a certas
práticas, know-how, maneiras de fazer as coisas etc.), e
estas capacidades determinarão interpretações diferentes,
embora o significado lite ra l da expressão permaneça
constante.
Agora, por que essa é uma conseqüência importante?
Bem, em nossas descrições padrões da linguagem , o sig­
nificado de uma sentença é uma função com posicional
dos significados de suas partes componentes e sua dispo­
sição sintática dentro da sentença. Assim , entendemos a
frase “ John loves M a ry” (John ama M ary) diferentemente
da maneira que entendemos a frase “ M a ry loves John”
(M ary ama John) precisamente por causa da aplicação da
composicionalidade. A lé m disso, somos de qualquer mo­
do capazes de compreender sentenças porque são com­
postas de elementos significativos, elementos cujos signi­
ficados são questões de convenção lingüística. Dessa forma,
o p rin cip io de com posicionalidade e a noção de significa­
do lite ra l são absolutamente essenciais para qualquer des­
crição coerente da linguagem . Entretanto, embora neces­
sários para uma descrição da linguagem , resulta que não
são suficientes. A lém disso, precisamos postular um Back­
ground não-representacional.
É tentador pensar que esse argumento se baseia em
ambigüidade, casos m arginais etc. Mas isto é um erro.
U m a vez que a com pleta clareza tenha sido atingida,
uma vez que todas as ambigüidades estruturais e lexicais
tenham sido rem ovidas, o problem a do Background ain­
da se m anifesta. Você pode perceber isto se observar que
esforços progressivos para a exatidão não são suficientes
CONSCIÊNCIA, INTENCIONALIDADE E O “BACKGROUND” 257

para rem over a necessidade do Background. Suponha


que eu entre no restaurante e peça uma refeição. Su­
ponha que eu diga, falando literalm ente: “ B rin g me a
steak w ith frie d potatoes” (Traga-me um b ife com bata­
tas frita s). A in da que a emissão seja significada e com ­
preendida literalm ente, o número de interpretações errô­
neas possíveis é rigorosam ente ilim ita d o . Conto com que
não entregarão a refeição em m inha casa, ou em meu
local de trabalho. D ou por certo que o b ife não estará
envolvido em concreto ou petrificado. Não será m etido
nos meus bolsos ou esparramado na m inha cabeça. Mas
nenhuma dessas assunções fo i tomada explícita na emis­
são lite ra l. A tentação é pensar que eu pudesse tom á-las
completamente explícitas simplesmente acrescentando-
as como restrições adicionais, deixando meu pedido o ri­
ginal mais preciso. Mas isto é também um erro. Prim eiro,
é um erro porque não há nenhum lim ite ao número de
acréscimos que eu teria que fazer ao pedido o rig in a l para
im pedir possíveis interpretações errôneas, e, segundo,
cada um dos acréscimos é, ele mesmo, suscetível de in ­
terpretações diferentes.
U m outro argumento em defesa do Background é
este: há sentenças perfeitam ente usuais em inglês e ou­
tros idiom as naturais que são não-interpretáveis. C om ­
preendemos todos os significados das palavras, mas não
compreendemos a sentença. Assim , por exem plo, se vo ­
cê ouve uma sentença: “ Sally cut the m ountain” (S ally
cortou a montanha), “ B ill cut the sun” (B ill cortou o sol),
“ Joe cut the lake” (Joe cortou o lago), ou “ Sam cut the
buildin g ” (Sam cortou o edifício ), ficará perplexo quanto
ao que estas sentenças poderiam significar. Se alguém dá
258 A REDESCOBERTA DA MENTE

a você uma ordem: “ Go cut that m ountain” (V á cortar


aquela m ontanha), você na verdade não saberia o que
fazer. Seria fá cil inventar um uso de Background que fix a ­
ria uma interpretação lite ra l de cada uma dessas senten­
ças, mas sem tal uso não sabemos como aplicar o sentido
lite ra l da sentença.
Há considerável reconhecim ento de problemas de
Background na lin g ü ística moderna (ver os artigos, em
D avis, 1991, de Robyn Carston e François Récanati, por
exem plo), mas as discussões que tenho visto somente to ­
cam a superfície do problem a. Por exem plo, uma discus­
são corrente diz respeito às relações entre o significado
lite ra l da sentença em itida, o conteúdo daquilo que diz o
falante e o que ele sugere através do ato de fazer a emis­
são. Assim , por exem plo, na sentença: “ / have had
breakfast” (Tom ei café da manhã), o significado lite ra l
da sentença não faz referência ao dia da emissão, mas
norm alm ente interpretaríam os esta emissão como se
transm itisse o conteúdo de que o falante tom ou café da
manhã hoje, isto ê, no dia da emissão. Assim , “ I have
had b re a kfa st’ (Tom ei café da manhã) contrasta com “ /
have been to Tibet” (Estive no Tibete), uma emissão que
não in fo rm a que estive no Tibete hoje. Ou considere
outra sentença m uito discutida: “ S ally gave John the key,
and he opened the door” (S ally deu a chave a John, e ele
abriu a porta). Uma emissão desta sentença normalmente
com unicaria que p rim e iro S ally deu a chave a John, e
posteriorm ente ele abriu a porta, e que ele abriu a porta
com a chave. Há m uita discussão acerca dos mecanismos
através dos quais este conteúdo adicional é transm itido,
dado o fato de não estar codificado no significado literal
CONSCIÊNCIA, INTENCIONALIDADE E 0 “BACKGROUND” 259

da sentença. A sugestão, certamente correta, é que o sig­


nificado da sentença, pelo menos até certo ponto, não
determina bem o que diz o falante quando emite a senten­
ça. Então, a asserção que estou fazendo é: o significado
da sentença radicalm ente não determ ina bem o conteúdo
do que é dito. Considere os exemplos que acabei de men­
cionar. Ninguém construiria “/ have had breakfast” * (Tomei
café da manhã) por analogia a “ I have had tw ins” (Tive
gêmeos). Isto é, dado nosso presente Background, n in ­
guém interpretaria a emissão de form a a significar “ I have
ju s t given b irth to breakfast” (Acabei de dar à luz o café
da manhã), mas note que não há absolutamente nada no
conteúdo semântico da sentença que impeça esta interpre­
tação, ou mesmo que obrigue à interpretação de que eu
*

comi o desjejum. E m uito fá cil, embora obsceno, im agi­


nar uma cultura em que as duas interpretações de “ I have
had...” sejam invertidas. Problemas semelhantes aparecem
para qualquer sentença. Considere: “ S ally gave John the
key, and he opened the door” (S ally deu a chave a John, e
ele abriu a porta). Não há absolutamente nada no conteú­
do semântico lite ra l da sentença que impeça a interpreta­
ção: “ John opened the door w ith the key by battering the
door down; the key was twenty fe e t long, made o f cast
iro n , and weighed two hundred pounds” (John abriu a

* N o o rig in a l, have had breakfast” e “ / have had tw ins” .


Dada a im possibilidade de m anter o paralelism o sem ântico que a lín ­
gua inglesa p e rm ite através do uso de um m esm o verbo C have” )
usado em contextos diferentes, o tradutor introduz um erro - “ T ive café
da manha” - com o o b je tivo de não com prom eter a clareza da argu­
mentação do autor. (N . do R.)
260 A REDESCOBERTA DA MENTE

porta com a chave derrubando a porta; a chave tinha vinte


pés de com prim ento, era fe ita de ferro fundido e pesava
duzentas libras). Nada que im peça a interpretação: “ John
opened the door w ith the key by sw allow ing both door
and key, and m oving the key into the lock by way o f the
p e rista ltic contraction o f his g u f (John abriu a porta com
a chave engolindo tanto a porta quanto a chave, e giran­
do a chave na fechadura através da contração peristáltica
de seu estômago). Logicam ente, tais interpretações se­
ria m malucas, mas não há nada no conteúdo semântico
da sentença, analisada isoladamente, que impeça essas
interpretações malucas.
Há alguma form a em que poderíamos explicar todas
essas intuições sem uma assunção tão extrema como a
tese do Background? Bem , façamos uma tentativa. Uma
idéia, devida a François Récanati2, é esta. Qualquer situa­
ção real com porta um número in fin ito de descrições ver­
dadeiras; portanto, qualquer representação lingüística
será sempre incom pleta. Se alguém “ corta” o bolo pas­
sando uma máquina de cortar grama sobre ele, é verda­
deiro dizer: “ Ele cortou o b o lo ” . Mas ficaríam os surpre­
sos ao ter este evento relatado através dessa sentença. Nos­
sa surpresa, porém, não tem nada a ver com semântica,
entendim ento etc. Simplesmente temos um conjunto de
expectativas indutivam ente fundamentadas, e o relato,
embora verdadeiro, era incom pleto por o m itir uma des­
crição de como o corte d ife ria da maneira que norm al­
mente esperaríamos.
Récanati diz-m e que não concorda com essa visão,
mas, por considerá-la im portante e desafiadora, quero
apreciá-la em m aior extensão. A sugestão é: o significa-
CONSCIÊNCIA, INTENCION ALIDADE E 0 “BACKGROUND” 261

do lite ra l determina condições de verdade isoladamente,


mas é acompanhado por um sistema de expectativas, e
este sistema trabalha lado a lado com o significado litera l.
O problem a real sugerido pelos exemplos é que, mesmo
que todas as ambigüidades genuínas tenham sido rem ovi­
das da sentença, ainda ficam os com a vagueza e a incom -
pletude. Palavras são inerentemente vagas, e descrições
são sempre incom pletas. Mas mais precisão e com pletu-
de são acrescentadas ao entendimento pelo fato de os sig­
nificados serem suplementados por um conjunto de
expectativas habituais. Portanto, não deveríamos dizer:

S ignificado lite ra l somente determ ina condições de


verdade relativam ente ao Background.

Antes, deveríamos dizer:

(Deixando de lado a indexicahdade e outras caracterís­


ticas dependentes de contexto) o significado literal determi­
na condições de verdade de modo absoluto e isoladamente.
Mas os significados literais são vagos, e as descrições lite ­
rais são sempre incompletas. M aior precisão e completude
são acrescentadas suplementando o significado lite ra l com
suposições e expectativas colaterais. Assim, por exemplo,
cortar é cortar como quer que você corte, mas espera-se que
a grama seja cortada de uma maneira, e o bolo de outra.
Portanto, se alguém diz: uGo cut that mountain” (Vá cortar
aquela montanha), a reação correta não é: “ / do not under­
stand” (Não compreendo). Logicamente você entende a
sentença em inglês! Antes, a reação correta é: “ H ow do you
want me to cut it? ” (Como você quer que eu a corte?)
262 A REDESCOBERTA DA MENTE

Creio que este é um argumento poderoso e atraente.


As contestações que eu fa ria a ele são duas. P rim eiro, se
a questão fosse de incom pletude, então em p rin cíp io de­
veríamos aproxim arm o-nos da completude acrescentan­
do mais sentenças. Mas não podemos. Como salientei
antes, toda sentença que acrescentamos é suscetível de
mais interpretações errôneas, a menos que determinada
pelo Background. Segundo, se você admite uma ruptura
radical entre significado lite ra l e “ suposições” colaterais,
então deveria ser capaz de aplicar o significado lite ra l,
não im portam quais as suposições. Mas não pode. Assim ,
por exemplo, a aplicação da palavra “ cw?” (cortar) proce­
de diante da pressuposição de que alguns objetos no
mundo são sólidos e admitem penetração através da pres­
são física de instrum entos. Sem esta suposição, não pos­
so interpretar a m aior parte das ocorrências de “ cu¿” (cor­
tar). Mas essa suposição não é parte do significado lite ­
ral. Se fosse, então a introdução de aparelhos cortantes a
laser teria envolvido uma alteração no significado da
palavra, e não envolveu. A lém disso, posso im aginar em­
pregos litera is de “ cmí” (cortar) num universo onde essa
suposição é falsa. A lguém pode im aginar um conjunto
de capacidades de Background em que “ cut the lake”
(cortar o lago) seja perfeitam ente claro.
C reio que se alguém fosse desenvolver esse argu­
mento totalm ente, poderia demonstrar que, se você pos­
tulasse uma ruptura total entre significado lite ra l e Back­
ground, obteria um ceticism o ao estilo de Kripke-W ittgen-
stein (K ripke, 1982), porque estaria então apto para dizer
qualquer coisa e sig n ifica r qualquer coisa3. Se você pro­
duz uma ruptura radical entre significado e Background,
CONSCIÊNCIA, 1NTENCI0NAL1DADE E 0 “BACKGROUND” 263

então onde o significado está envolvido qualquer coisa


vale; mas isto im p lica que a compreensão norm al só
ocorre relativam ente a um Background. Não estou, con­
tudo, tentando dem onstrar nenhuma tese geral acerca de
ceticism o semântico.
M inhas respostas a essa objeção são, prim eiram ente,
que a incom pletude não é o problem a, porque esforços
para com pletar a descrição não auxiliam . Em certo senti­
do, eles nem sequer se iniciam , porque cada sentença adi­
cional apenas acrescenta mais formas de incom pletude.
E, em segundo lugar, se você postula uma situação to ta l­
mente destituída de pressuposições de Background, não
pode fix a r nenhuma interpretação definida.
Um a segunda questão, também proposta por Réca-
nati, é esta: qual é o argumento para a generalização do
significado lite ra l para todas as formas de intencionalida-
de? O único “ argumento” que eu ofereceria é que é ú til ter
uma taxonom ia que apreenda nossa intuição de que há
uma aliança entre pensamento e significado. Por exem ­
plo, quero apreender nossa intuição ordinária de que o
homem que tem a crença de que S ally cortou o bolo tem
uma crença com exatamente o mesmo conteúdo proposi-
cional que a asserção lite ra l “ S ally cut the cake” (S ally
cortou o bolo). Porque estamos aplicando os termos téc­
nicos “ Background” e “ intencionalidade” , o emprego or­
dinário não resolverá a questão. Mas, se você usar a no­
ção de conteúdo intencional de uma m aneira tal que o
significado lite ra l seja uma expressão de conteúdo inten­
cional, então segue-se que as restrições de Background
aplicam -se igualm ente a ambos. Posso im aginar outras
taxonomias, mas essa parece funcionar m elhor.
264 A REDESCOBERTA DA MENTE

Uma boa m aneira de observar o Background é em


casos de interrupção: um exemplo ilustrará isto. U m filó ­
sofo visitante veio a Berkeley e assistiu a alguns seminá­
rios sobre o Background. Não ficou convencido pelos
argumentos. Um dia ocorreu um pequeno terremoto. Isto
convenceu-o porque, como me contou posteriormente, não
tinha, antes daquele momento, tido uma crença ou uma
convicção ou uma hipótese de que a terra não se move;
simplesmente dava isto por certo. A questão é que “ dar
algo por certo” não necessita designar um estado intencio­
nal idêntico ao ato de acreditar ou form ular hipóteses.
U m passo crucial na compreensão do Background é
perceber que alguém pode estar comprometido com a ver­
dade de uma proposição sem ter absolutamente nenhum
estado intencional com aquela proposição como conteú­
do4. Posso, por exemplo, estar com prom etido com a pro­
posição de que objetos são sólidos, sem de nenhum modo,
im p lícita ou explicitam ente, ter qualquer crença ou con­
vicção neste sentido. Bem, qual é o senso de comprom is­
so envolvido? Pelolnenos este: não posso, coerentemente
com meu comportamento, negar essa proposição. Não
posso, enquanto sentado nesta cadeira, apoiado nesta
escrivaninha, e com meus pés firmados neste chão, negar
consistentemente que objetos são sólidos, porque meu com-

portamento pressupõe a solidez desses objetos. E neste


sentido que meu comportamento intencional, uma mani­
festação de minhas capacidades de Background, compro­
mete-me com a proposição de que os objetos são sólidos,
ainda que eu não tenha form ado nenhuma crença concer­
nente à solidez dos objetos.
CONSCIÊNCIA, INTENCION ALIDADE E O “ BACKGROUND ” 265

A lé m do mais, é im portante perceber que o Back­


ground envolve não apenas tais problemas relativam ente
sofisticados, como a interpretação de sentenças, mas ca­
racterísticas fundam entais como aquelas que constituem
a base form al de toda a linguagem . Por exem plo, adm iti­
mos o fato de que nossa presente utilização da linguagem
id e n tifica ocorrências fonéticas e grafêmicas do mesmo
tipo sintático, em virtude de form as fonéticas e grafêm i­
cas, mas é im portante perceber que isto é uma prática
contingente baseada em capacidades de Background con­
tingentes. Em lugar de uma linguagem na qual a seqüên­
cia “ França” , “ França” , “ França” envolva três ocorrências
diferentes da mesma unidade sintática, poderíamos fa c il­
mente im aginar uma linguagem na qual significados não
se prendam a um tip o identificado fonética ou grafem ica-
mente, mas à seqüência num érica de eventos ocorrência
do tipo. Assim , por exem plo, na prim eira vez em uma
dissertação a inscrição “ França” podia ser usada para
id e n tifica r a França, mas na segunda vez indica a In ­
glaterra, na terceira vez a Alem anha etc. A unidade sintá­
tica, aqui, não é uma palavra no sentido tradicional, mas
uma seqüência de inscrições ocorrências. O mesmo
aconteceria com os sistemas de oposição de que os estru-
turalistas tanto gostavam: os sistemas de oposição quente
e frio , N orte e Sul, macho e fêmea, vida e morte, Leste e
Oeste, alto e baixo, etc. são todos fundamentados no
Background. Não há nada inevitável no ato de aceitar
essas oposições. A lguém poderia im aginar facilm ente
seres para quem o Leste fosse naturalm ente oposto ao
Sul , para quem fosse in in te lig íve l opor Leste a Oeste.
266 A REDESCOBERTA DA MENTE

I I I . A Rede é p arte do “ Background”

Tentarei agora expor exatamente de que form a m i­


nha presente concepção da relação entre consciência,
inconsciência e intencionalidade, conform e apresentada
no capítulo anterior, produz uma m odificação - e, espe­
ro, um m elhoram ento - em m inha concepção anterior do
Background. Em m inha visão anterior, considerava a
mente como algo que contivesse um inventário de esta­
dos mentais. Em qualquer momento dado, alguns destes
estão conscientes, e outros, inconscientes. Por exemplo,
eu podia conscientemente pensar que Bush fosse presi­
dente, ou podia inconscientem ente ter esta crença, um
evento ocorrência desta mesma crença, mesmo quando es­
tivesse profundam ente adorm ecido. Mas a consciência
não era essencial para os fenômenos mentais, nem sequer
para experiências perceptivas, como os experimentos de
W eiskrantz parecem demonstrar.
Nessa concepção, alguns fenômenos que poderiam
ser expressos como crenças parecem descritos de manei­
ra não natural se apresentados assim. Na verdade, real­
mente tenho uma crença inconsciente de que George
Bush é presidente quando não estou pensando sobre isto,
mas parece que não tenho, desta maneira, uma crença
inconsciente de que, por exem plo, objetos são sólidos.
Simplesmente com porto-m e de m aneira ta l que tenho
por certa a solidez de objetos. A solidez de objetos é par­
te de minhas pressuposições de Background; não é um
fenômeno intencional de modo algum , a não ser que se
tom e tal como parte de alguma investigação teórica, por
exemplo.
CONSCIÊNCIA, INTENCIONALIDADE E O “ BACKGROUND” 26 7

Porém, esta form a de considerar as questões apre­


senta algumas dificuldades para m im . Q ual é o funda­
mento da distinção entre o Background e a Rede? Bem,
incorrendo em petição de p rin cípio , posso dizer que o
Background consiste em fenômenos que não são estados
intencionais, e que a Rede é uma rede de intencionalida-
de; mas exatamente de que form a se supõe que esta dis­
tinção seja delineada, se nos asseguram, por exem plo,
que m inha crença inconsciente de que Bush é presidente
é parte da Rede e que m inha pressuposição de que obje­
tos são sólidos é parte do Background? Que dizer da cren­
ça de que George Bush veste roupas de baixo ou de que
ele tem duas orelhas? São estas também parte de m inha
Rede inconsciente? Estamos cometendo um erro ao p ro ­
por a questão dessa form a. E isto deve estar óbvio para
nós. De acordo com a visão de que a mente contém um
inventário de estados mentais, tem que haver um erro de
categoria na tentativa de fix a r um lim ite entre Rede e
Background, porque o Background consiste em um con­
junto de capacidades, e a Rede não é absolutamente uma
questão de capacidades, mas de estados intencionais.
Penso então que o verdadeiro erro era supor que há
um inventário de estados mentais, alguns conscientes,
alguns inconscientes. Tanto a linguagem como a cultura
tendem a im por-nos este quadro. Consideramos a memó­
ria como um armazém de proposições e imagens, como
uma espécie de grande biblioteca ou arquivo de represen­
tações. Mas deveríamos pensar na m em ória antes como
um mecanismo para a geração da perform ance geral,
inclusive pensamentos e ações conscientes, baseada na
experiência passada. A tese do Background tem que ser
268 A REDESCOBERTA DA MENTE

reescrita para fica r liv re da pressuposição da mente como


uma coleção ou um inventário de fenômenos mentais,
porque a única realidade ocorrente do m ental enquanto
m ental é a consciência.
A crença numa realidade ocorrente que consiste em
estados mentais inconscientes, e que é distinta de capaci­
dades de Background, é uma ilusão em grande parte fu n ­
damentada na gram ática de nossa linguagem . Mesmo
quando Jones está adormecido, dizemos que ele acredita
que Bush é presidente e que conhece as regras da gramá­
tica do francês. Portanto pensamos que, repousando lá
em seu cérebro, dorm indo também, estão sua crença de
que Bush é presidente e seu conhecimento de francês. Na
realidade, porém, tudo que seu cérebro contém é um con­
ju n to de estruturas neurônicas cujas atividades são hoje
amplamente desconhecidas, que lhe permitem pensar e agir
quando ele se predispõe a fazer tais coisas. Entre muitas
outras coisas, elas o habilitam a pensar que Bush é presi­
dente e a fa lar francês.
A m elhor m aneira de considerar essas questões é
esta: em meu cérebro há uma enorme e com plexa massa
de neurônios encaixada em células neurogliais. Às vezes,
o com portam ento dos elementos desta massa complexa
causa estados conscientes, inclusive aqueles estados cons­
cientes que são partes de ações humanas. Os estados
conscientes têm todas as cores e variedades que consti­
tuem nossas vidas despertas. N o nível do m ental, porém,
esses são todos os fatos. O que acontece no cérebro, fora
a consciência, tem uma realidade ocorrente que é neuro-
fisio ló g ica antes que psicológica. Quando falamos de
estados inconscientes, estamos falando das capacidades
CONSCIÊNCIA, INTENCIONALIDADE E 0 "BACKGROUND” 269

do cérebro para gerar consciência. A lé m disso, algumas


capacidades do cérebro não geram consciência, mas an­
tes trabalham para estabelecer a aplicação dos estados
conscientes. P ossibilitam -m e andar, correr, escrever, fa ­
la r etc.
Dado este quadro, como explicam os todas aquelas
intuições que nos levaram à tese o rig in a l do Background
e à distinção entre Background e Rede? Segundo a des­
crição que apresentei no ú ltim o capítulo, quando descre­
vemos um hom em que tem uma crença inconsciente,
estamos descrevendo uma n eurofisiologia ocorrente em
termos de sua capacidade disposicional de causar pensa­
mentos e com portam ento conscientes. Mas, se isto está
correto, então parece seguir-se que a Rede de intenciona-
lidade inconsciente é parte do Background. A ontologia
ocorrente daquelas porções da Rede que são inconscien­
tes é aquela de uma capacidade neurofisiológica, mas o
Background consiste inteiram ente em tais capacidades.
A té aqui tudo bem. A questão de como fazer a distin­
ção entre Rede e Background desaparece, porque a Rede
é aquela parte do Background que descrevemos em ter­
mos de sua capacidade para causar intencionalidade cons­
ciente. Porém ainda não estamos livres da confusão, por­
que permanecemos com o problema: o que deve ser fe ito
da afirm ação de que a intencionalidade atua em face de
um conjunto de capacidades não-intencionais? Por que a
capacidade de gerar a crença de que Bush é presidente
deve ser tratada de algum modo diferente da capacidade
de gerar a crença de que objetos são sólidos, por exemplo?
E devemos nós fazer a distinção entre o funcionam ento
de intencionalidade inconsciente e capacidades não-inten-
270 A REDESCOBERTA DA MENTE

donáis? Parece que trocamos o problem a de fazer a dis­


tinção entre Rede e Background pelo problem a de d istin ­
g u ir o intencional do não-intencional dentro das capaci­
dades de Background.
Portanto, precisamos fazer mais algumas distinções:

1. Precisamos fazer a distinção entre o que está no


centro de nossa atenção consciente a partir da periferia, das
condições de lim ites e da posição de nossas experiências
conscientes, conforme descrito no capítulo 6. Em certo
sentido, esta é uma distinção entre prim eiro plano e plano
de fundo, mas não é a que nos está interessando agora.
2. Precisamos disting uir dentro dos fenômenos men­
tais o representacional do não-representacional. Porque a
intencionalidade é definida em termos de representação,
qual é o papel, se é que há, do não-representacional no
funcionam ento da intencionalidade?
3. Precisamos d istin g u ir as capacidades de suas
manifestações. Uma de nossas questões é: quais das capa­
cidades do cérebro deveriam ser consideradas como capaci­
dades de Background'?
4. Precisamos distinguir aquilo de que nos estamos ocu­
pando efetivamente daquilo que estamos dando por certo.

Essas distinções cruzam-se mutuamente. Tendo em


mente essas distinções, e na suposição de que abandona­
mos a concepção da mente como um inventário, parece-me
que deveríamos reapresentar a hipótese do B a c k g r o u n d
da seguinte form a:

Toda intencionalidade consciente - todo pensamen­


to, percepção, compreensão etc. - só determina condições
de satisfação relativam ente a um conjunto de capacidades
CONSCIÊNCIA, INTENCIONALIDADE E 0 “ BACKGROUND” 271

que não são e não poderiam ser parte desse mesmo estado
consciente. Por si só, o conteúdo efetivo é insuficiente para
determinar as condições de satisfação.

D o insight o rig in a l de que os estados intencionais


exigem um Background não-intencional, isto permanece:
ainda que você entenda todos os conteúdos da mente
como um conjunto de regras, pensamentos, crenças etc.
conscientes, ainda requer um conjunto de capacidades de
Background para sua interpretação. Isto é rejeitado: não
há nenhuma realidade ocorrente para uma Rede incons­
ciente de intencionalidade, uma Rede que holisticam ente
sustenta seus membros, mas que requer m ais suporte de
um Background. Em lugar de dizermos “ para ter uma cren­
ça, alguém tem que ter uma porção de outras crenças” ,
deveríamos dizer “ para ter um pensamento consciente,
alguém tem que ter a capacidade de gerar uma porção de
outros pensamentos conscientes. E todos esses pensa­
mentos conscientes requerem capacidades para sua a p li­
cação” .
Ora, dentro desse conjunto de capacidades haverá
algumas que uma pessoa adquiriu em form a de regras,
fatos etc., aprendidos conscientemente. Por exemplo, ensi­
naram-me as regras de beisebol, a norm a de que nos
E U A d irigim os no lado d ire ito da pista, e o fato de que
George W ashington fo i o prim eiro presidente. Não me
ensinaram nenhuma regra para andar, nem me ensinaram
que objetos são sólidos. A intuição o rig in a l de que há
uma distinção entre Rede e Background deriva desse
fato. Algum as de nossas capacidades nos perm item fo r­
m ular e aplicar regras, princípios, crenças etc. em nossas
272 A REDESCOBERTA DA MENTE

atividades conscientes. A inda assim, porém, estas preci­


sam de capacidades de Background para sua aplicação.
Se alguém começa a pensar sobre a solidez dos
objetos, então pode form ar uma crença consciente de que
os objetos são sólidos. Um a crença na solidez de objetos
toma-se então uma crença como qualquer outra, só que
m uito mais geral.
De nossas cinco teses originais, agora temos a seguin­
te relação revista:

1. Os estados intencionais não atuam de modo autô­


nomo. Não determ inam suas condições de satisfação in ­
dependentemente.
2. Todo estado intencional exige para seu funciona­
mento um conjunto de capacidades de Background. As
condições de satisfação só são determinadas relativam en­
te a essas capacidades.
3. Entre essas capacidades estarão algumas que são
capazes de gerar outços estados conscientes. As condi­
ções 1 e 2 aplicam-se a esses outros.
4. O mesmo tipo de conteúdo intencional pode deter­
m inar diferentes condições de satisfação quando é mani­
festo em diferentes ocorrências conscientes, relativamente a
diferentes capacidades de Background e, relativam ente
a alguns Backgrounds, não determina absolutamente nada.

TV. Interpretações errôneas comuns do “Background”

Há m uitas maneiras de interpretar erroneamente a


im portância da hipótese do Background, e quero afastá-
las agora. Prim eiram ente, m uitos filósofos que se tornam
CONSCIÊNCIA, INTENCIONALIDADE E 0 “ BACKGROUND” 273

cientes do Background ficam extremamente desconcerta­


dos com ele. Subitamente parece-lhes que significado,
intencionalidade, racionalidade etc., são de algum modo
postos em perigo se sua aplicação depende de fatos b io ­
lógicos e culturais contingentemente existentes acerca de
seres humanos. Há uma sensação de pânico que se apos­
sa de um determinado gênero de sensibilidade filo só fica
quando reconhece que o projeto de assentar inten cion ali­
dade e racionalidade em algum fundam ento puro, em
algum conjunto de verdades necessárias e indubitáveis,
está, em prin cípio , equivocado. Parece mesmo a algumas
pessoas que é im possível ter uma teoria do Background,
porque o Background é a precondição de toda teoria e,
em alguns casos extremos, chega mesmo a parecer que
qualquer teoria é im possível, porque a teoria depende
daquilo que parece ser as areias movediças de pressupo­
sições injustificáveis.
Contra essa visão, quero dizer que a descoberta do
Background mostra somente que uma determinada con­
cepção filo só fica estava equivocada. Não põe em perigo
nenhum aspecto de nossa vida cotidiana, inclusive nossa
vida cotidiana teórica. Isto é, não demonstra que significa­
do e intencionalidade sejam instáveis ou indeterminados,
que jam ais possamos nos fazer compreender, que a comu­
nicação é impossível ou está ameaçada; demonstra apenas
que tudo isso atua em face de um conjunto de capacidades
e práticas de Background contingentemente existentes.
Além do mais, a tese do Background não mostra que a teo-
rização seja impossível; ao contrário, o Background pare­
ce-me, ele mesmo, um te rritó rio excelente para a teoriza-
Ção, conforme espero que este capítulo ilustre.
274 A REDESCOBERTA DA MENTE

É também im portante salientar que o Background


não tem nenhuma im plicação m etafísica, já que é uma
característica de nossas representações da realidade, e
não uma característica da realidade representada. Alguns
consideram tentador pensar que, na hipótese do Back­
ground, de uma form a ou de outra a própria realidade
torna-se dependente do Background, e que, conseqüente­
mente, tem que resultar algum tip o de relativism o ou
idealism o. Mas isso é um erro. O mundo real não está
nem aí com o modo como o representamos, e, embora nos­
so sistema de representação requeira um conjunto não-
representativo de capacidades para funcionar, a realidade
que esse sistema costuma representar não é ela mesma
dependente dessas capacidades, ou, na verdade, de qual­
quer outra coisa. Em resumo, o Background não ameaça
nossa convicção de realism o externo, ou a concepção de
verdade como correspondência, ou a possibilidade de
clareza de comunicação, ou a possibilidade da lógica. No
entanto, realmente organiza todos esses fenômenos sob
um ângulo diferente, porque eles não podem prover de
justifica tiva s transcendentais nosso discurso. Antes, nos­
sa aceitação deles é uma pressuposição de Background
de discurso.
Um a interpretação errônea do B ackground, p a rti­
cularmente importante em teorias de interpretação textual,
é a suposição equivocada de que toda compreensão tem
que envolver algum ato de interpretação. A p a rtir do fato
de que, sempre que entendemos algo, entendemo-lo de
uma determinada m aneira e não de outras maneiras, e a
p a rtir do fato de que interpretações alternativas são sem­
pre possíveis, simplesmente não se segue que em todo
CONSCIÊNCIA, INTENCION ALIDADE E 0 “BACKGROUND” 275

discurso estejamos empenhados em constantes “ atos de


interpretação” . Nosso entendimento imediato, normal, ins­
tantâneo de emissões é sempre possível somente com re­
lação a um Background, mas disso não resulta que haja
algum passo lóg ico independente, algum ato isolado de
interpretação envolvido no entendim ento norm al. U m
equívoco semelhante é cometido naquelas teorias de cog-
nição que declaram que temos que ter feito uma inferência
no caso de sabermos, quando olhamos para um lado de
uma árvore, que a árvore tem um lado de trás. A o contrá­
rio , o que fazemos é simplesmente enxergar uma árvore
como uma árvore real. Poderíamos, sem dúvida, dado
um Background diferente, interpretar diferentemente nossa
percepção (e.g., enxergá-la como uma árvore bidim en­
sional de cenário teatral), mas, a p a rtir do fato de que in ­
terpretações alternativas são acessíveis a nós, não se se­
gue nem que as percepções ordinárias sempre envolvam
um ato de interpretação, nem que algum passo inferen-
cial seja dado, como um processo mental tem poral efetivo,
por m eio do qual possamos in fe rir dados não-percebidos
a p a rtir de dados percebidos.
O Background, enfaticamente, não é um sistema de
regras. Esta, parece-me, era a fragilidade da noção de fo r­
mação discursiva de Foucault (1972) e da anterior d is­
cussão de prática de Bourdieu em O utline o f a Theory o f
P ractice (1977). Am bos pensavam que as regras fossem
essenciais para as espécies de fenômenos que estou de­
batendo. Porém, é im portante perceber que regras só têm
aplicação relativam ente às capacidades de Background.
As regras não são auto-interpretativas e, em decorrência
276 A REDESCOBERTA DA MENTE

disso, requerem um Background para funcionar; não são,


elas mesmas, explanatórias ou constitutivas do Back­
ground.
A luz dessas considerações, algumas vezes parece que
o Background não pode ser representado ou tomado total­
mente explícito. Mas essa form ulação já contém um erro.
Quando dizemos isso, já temos um determinado modelo de
representação e explicitabilidade. A dificuldade é que o
y

modelo é simplesmente inaplicável ao Background. E ób­


vio que o Background pode ser representado. Lá vai; “ o
B ackground\ Esta expressão representa o Background, e
sem dúvida o Background pode ser tomado “ totalmente
explícito” através da utilização da mesma expressão - ou
escrevendo-se um liv ro sobre o Background.
A questão é que temos um modelo de e xplicitab ilid a ­
de para a representação de estados mentais que consiste
na criação de sentenças que têm o mesmo conteúdo inten­
cional que os estados representados. Posso tom ar a cren­
ça de que a água é úm ida totalm ente explícita ao dizer
que isto é a crença de que a água é úm ida, por exemplo.
Mas porque o Background não tem, dessa form a, nenhum
conteúdo intencional, não podemos representá-lo como se
consistisse em um conjunto de conteúdos intencionais.
Isto não significa que não possamos descrever o Back­
ground, ou que seu funcionam ento não seja analisável, ou
qualquer coisa do tip o . São precisamente os prim ordios
de uma análise do Background que estou tentando estabe­
lecer.
CONSCIÊNCIA, INTENCIONALIDADE E 0 "BACKGROUND " 277

U C aracterísticas adicionais do “ Background”

Podemos traçar uma geografia do Background? Po­


demos dar uma taxonom ía de seus componentes? Bem,
qualquer taxonom ía requer princípios de classificação.
A té que tenhamos uma noção clara de como o Back­
ground atua, não seremos capazes de elaborar uma taxo­
nom ía adequada. N o entanto, intuitivam ente podemos
in ic ia r a tarefa. Em In te n tio n a lity (Searle, 1983), demons­
tre i que precisamos, ao menos, das seguintes distinções:
uma distinção entre as características do Background que
são comuns a todos os seres humanos e aquelas que têm
a ver com práticas culturais, locais. Contraponho estas
duas como “ Background profundo” versus “ práticas lo ­
cais” . Diferenças de Backgrounds locais tom am d ifíc il a
tradução de uma língua para outra; a generalidade do
Background profundo toma-a possível, de qualquer modo.
Se você lê a descrição de um jan ta r festivo na casa dos
Guermantes em Proust, provavelm ente deve achar
alguns aspectos da descrição enigm áticos. Isto tem a ver
com diferenças de práticas culturais locais. Mas existem
certas coisas que você pode dar por certas. Por exemplo,
os participantes não comem enfiando a com ida em seus
ouvidos. Isto é uma questão de Background profundo.
Também fiz uma distinção entre saber como fazer coisas
e saber com o as coisas são. Grosso m odo, pretendeu-se
apreender nossa distinção tradicional entre o prático e o
teórico. Logicam ente, tanto a razão prática quanto a teó­
rica são dependentes do Background, portanto, o Back­
ground mesmo nem é prático nem teórico. Porém, ainda
assim precisamos fazer essa distinção. U m exem plo de
278 A REDESCOBERTA DA MENTE

como fazer coisas é como caminhar. Um exemplo de co­


mo as coisas são teria a ver com a permanência e estabili­
dade dos objetos que encontramos à nossa volta. É óbvio,
contudo, que ambos estão estreitamente ligados, porque
alguém não pode saber como fazer coisas sem ter por
certo como as coisas são. Não posso, por exemplo, “ sa­
ber como” rachar lenha sem ter por certo que machados
feitos de manteiga não vão resolver, e que machados fe i­
tos de água não são de modo algum machados.
Há certas leis de funcionamento do Background.
Algumas delas são:
1. Em geral, não há nenhuma ação sem percepção,
nenhuma percepção sem ação.
2. A intencionalidade ocorre num flu xo coordenado
de ação e percepção, e o “ Background’ é a condição de
possibilidade das form as assumidas pelo fluxo. Pense em
qualquer parcela normal de sua vida desperta: você está
saboreando uma refeição, dando um passeio no parque,
escrevendo uma carta, namorando ou dirigindo para o tra­
balho. Em cada caso, a condição de possibilidade da per­
formance é uma competência de Background subjacente.
O Background não apenas dá forma à aplicação do con­
teúdo intencional - o que conta como “ d irig ir para o tra­
balho” , por exemplo; mas, para começar, a existência do
conteúdo intencional requer as capacidades dt Background
- sem um aparato tremendo, você não pode nem sequer
ter a intencionalidade envolvida em “ d irig ir para o traba­
lho” , por exemplo.
3. A intencionalidade tende a erguer-se ao nível da
capacidade de “ Background” . Assim, por exemplo, o es­
quiador principiante pode precisar de uma intenção de
CONSCIÊNCIA, INTENCIONALIDADE E 0 “BACKGROUND” 279

lançar o peso na descida da pista de esqui, um esquiador


intermediário possui a habilidade que lhe possibilita ter a
intenção de “ vira r para a esquerda” , um esquiador real­
mente hábil pode simplesmente ter a intenção de “ es­
quiar nessa rampa” . Numa competição de esqui, por
exemplo, os preparadores tentarão criar um nível de in ­
tencionalidade que é essencial para vencer o torneio, mas
isto pressupõe um imenso suporte de capacidades de Back­
ground. Assim, o preparador pode instruir o esquiador:
“ Fique próxim o das balizas na série vertical de portões,
tome o portão vermelho antes da rampa inclinada na
pista interna” , e assim por diante. De modo semelhante,
quando estou falando inglês, não tenho a intenção de
fazer a concordância de substantivos no singular com
verbos no singular, ou de substantivos no plural com ver­
bos no plural - simplesmente falo.
4. Embora a intencionalidade suba ao nível da capa­
cidade de Background, ela abrange toda a extensão até a
base da capacidade. Esta é uma outra form a de dizer que
todas as ações secundárias voluntárias executadas no
escopo de uma ação intencional de nível superior são não
obstante intencionais. Assim, por exemplo, embora eu
não necessite de uma intenção separada para movimentar
meus braços e pernas quando esquió, ou para mover
minha boca quando falo, não obstante todos estes m ovi­
mentos são feitos intencionalmente.
O mesmo acontece com a percepção. Em geral, não
vejo no nível de fragmentos coloridos; vejo uma cam i­
nhonete Chevrolet com um pára-lama dianteiro enferru­
jado, ou vejo uma tela de Vermeer com uma mulher em
pé junto a uma janela, lendo uma carta, ao mesmo tempo
280 A REDESCOBERTA DA MENTE

que raios de luz entram pela janela e caem sobre sua


roupa, a carta e a mesa. Mas observe que, nesses casos,
embora a intencionalidade de minha percepção erga-se
ao nível de minha capacidade de Background (minha ca­
pacidade para reconhecer caminhonetes Chevrolet, Ver­
meers etc.), ainda assim os componentes de nível inferior
são também parte do conteúdo intencional; na verdade,
realmente vejo o azul da caminhonete e o marrom da mesa.
5. O “ Background” é manifesto apenas quando h
conteúdo intencional. Embora o Background em si não
seja intencional, qualquer manifestação do Background, se­
ja em ação, percepção etc., tem ela mesma que entrar em
ação sempre que houver alguma intencionalidade, cons­
ciente ou inconsciente. “ O Background” não designa
uma seqüência de eventos que possam simplesmente
ocorrer; mais exatamente, o Background consiste em ca­
pacidades mentais, disposições, atitudes, modos de com­
portamento, know-how, savoir f aire etc., todos os quais
só podem ser manifestos quando há alguns fenômenos
intencionais, como uma ação, uma percepção, um pensa­
mento etc., todos eles intencionais.
CAPÍTULO 9
A CRÍTICA DA RAZÃO COGNITIVA

I. Introdução: as vacilantes fundações


da ciência cognitiva

Por mais de uma década, na verdade desde os prim or­


dios da disciplina, fu i um “ cientista cognitivo” praticante.
Neste período, v i trabalhos e progressos muito valiosos no
ramo. Enquanto disciplina, porém, a ciência cognitiva
sofre do fato de que várias de suas mais caras hipóteses
fundamentais estão equivocadas. E possível fazer bom tra­
balho com base em hipóteses falsas, mas isto é mais d ifícil
do que precisa ser; e, neste capítulo, quero apresentar e
refutar algumas dessas falsas hipóteses. Elas derivam do
modelo de equívocos que descrevi nos capítulos 1 e 2.
Na ciência cognitiva, nem todos concordam com os
princípios fundamentais, mas há determinadas caracte­
rísticas gerais da corrente principal que merecem uma
exposição em separado. Se eu fosse um cientista cogniti­
vo da corrente principal, eis o que diria:
282 A REDESCOBERTA DA MENTE

Nem o estudo do cérebro como tal, nem o estudo da


consciência como tal é de muito interesse e importância
para a ciência cognitiva. Os mecanismos cognitivos que
estudamos são na verdade implementados no cérebro, e
alguns deles encontram uma expressão superficial na cons­
ciência, mas nosso interesse está no nível intermediário,
onde os processos cognitivos efetivos são inacessíveis à
consciência. Embora na realidade implementados no
cérebro, poderiam ter sido implementados em um número
indefinido de sistemas de hardware. Os cérebros estão aí,
mas não são essenciais. Os processos que explicam a cog-
nição são inconscientes não somente de fato, mas em
princípio. Por exemplo, as regras de Chomsky de gramá­
tica universal (1986), ou as regras de Man* da visão (1982),
ou a linguagem do pensamento de Fodor (1975) não são a
espécie de fenômenos que poderiam se tomar conscien­
tes. Além disso, esses processos são todos computacio­
nais. A assunção básica por trás da ciência cognitiva é
que o cérebro é um computador e os processos mentais
são computacionais.Tor esta razão, muitos de nós pen­
sam que a inteligência artificial (IA ) é o coração da ciên­
cia cognitiva. Há alguma controvérsia entre nós quanto
ao fato de o cérebro ser ou não um computador digital do
tipo antiquado de von Neumann, ou se é uma máquina
conexionista. Alguns de nós, com efeito, conseguem
colocar honra e interesse no mesmo saco neste ponto,
porque consideramos que os processos seriais no cérebro
são implementados por um sistema conexionista paralelo
(e.g., Hobbs, 1990). Mas praticamente todos nós concor­
damos com o seguinte: os processos mentais cognitivos
são inconscientes; são, na maioria dos casos, inconscien­
tes em princípio; e são computacionais.
A CRÍTICA DA RAZÃO COGNITIVA 283

D iscordo de quase todas as afirm ações substantivas


feitas no ú ltim o parágrafo, e já c ritiq u e i algumas delas
em capítulos anteriores, mais notavelm ente a afirm ação
de que há estados mentais que são profundam ente in ­
conscientes. O p rin cip a l objetivo deste capítulo é critica r
certos aspectos da alegação com putacional.
Penso que será mais fá c il explicar o que faz o p ro ­
grama de pesquisa parecer tão im plausível para m im se,
de im ediato, estabelecermos claramente a questão atra­
vés de um exem plo concreto: na IA , im portantes asser­
ções foram feitas em função de programas processados
no SO AR 1. Rigorosamente falando, o SO AR é um tip o
de arquitetura de com putador e não um programa, mas
os programas im plem entados no SO AR são considera­
dos exemplos promissores de IA . U m destes é incorpora­
do a um robô que pode m ovim entar blocos sob comando.
Assim , por exem plo, o robô responderá apropriadamente
ao comando “ pegue um bloco em form a de cubo e mova-
o três espaços para a esquerda” . Para fazer isto, ele tem
tanto sensores óticos quanto braços mecânicos, e o siste­
ma funciona porque im plem enta um conjunto de m ani­
pulações de sím bolos form ais que são conectados a
transdutores que recebem inputs dos sensores óticos e
enviam output aos mecanismos motores. Mas meu p ro ­
blema é: o que tudo isto tem a ver com o comportamento
humano real? Conhecemos, por exem plo, m uitos dos
detalhes sobre como um ser humano se com porta na vida
real. Prim eiram ente, tem que ser consciente. A lé m disso,
tem que o u vir e entender a ordem. Deve conscientemen­
te enxergar os blocos, deve d e cid ir cu m p rir o comando,
e então tem que executar a ação intencional vo lu n tá ria
284 A REDESCOBERTA DA MENTE

consciente de m over os blocos. Repare que todas essas


asserções suportam contrafactuais: por exem plo, sem
consciência, sem m ovim entação de blocos. Também sa­
bemos que toda essa coisa mental é causada pela neurofi-
siologia e nela realizada. Portanto, antes que, em qual­
quer caso, tomemos por m odelo o computador, sabemos
que há dois conjuntos de níveis: níveis mentais, m uitos
deles conscientes, e níveis neurofisiológicos.
Então, onde se espera que as manipulações de sím ­
bolos form ais se encaixem nesse quadro? Esta é uma
questão básica fundam ental na ciência cognitiva, mas
você se espantaria com a pouca atenção que lhe é dada.
A questão absolutamente crucial para qualquer m odelo
baseado em com putador é: “ Como, exatamente, o mode­
lo se relaciona com a realidade que está sendo m odela­
da?” Mas, a menos que você leia críticos céticos como o
presente autor, encontrará m uito pouca discussão sobre o
tema. A resposta geral, a qual se supõe que evita a
demanda por resppstas específicas mais detalhadas, é
que entre o n ível de intencionalidade no ser humano (que
N e w e ll [1982] denom ina “ o n íve l do conhecim ento” ) e
os diversos níveis neurofisiológicos há um nível interm e­
diário de m anipulação de símbolos form ais. Então nossa
pergunta, em piricam ente falando, é: o que isto possivel­
mente poderia significar?
Se você lê livro s sobre o cérebro (digamos, Shepherd,
1983; ou B loom e Lazerson, 1988), obtém uma determ i­
nada imagem do que acontece no cérebro. Se você então
se volta para livro s sobre computação (digamos, Boolos e
Jeffrey, 1989), obtém uma imagem da estrutura lógica da
teoria da computação. Se, depois, você consulta livros
A CRÍTICA DA RAZÃO COGNITIVA 285

sobre ciência cognitiva (digamos, Pylyshyn, 1984), eles


dizem que o que os livro s sobre o cérebro descrevem é
verdadeiramente a mesma coisa que o que os livro s sobre
computação estavam descrevendo. Filosoficam ente falan­
do, isto não me cheira bem, e eu aprendi, pelo menos no
in ício de uma investigação, a seguir meu próprio faro.

II. IA fo rte , IA fra c a e cognitivism o

A idéia básica do m odelo da mente baseado no com­


putador é que a mente é o programa, e o cérebro o hard­
ware de um sistema com putacional. U m slogan que sem­
pre vemos é: “ A mente está para o cérebro assim como o
programa está para o hardw are"2.
Iniciem os nossa investigação desta asserção d is c ri­
minando três perguntas:

1. O cérebro é um computador digital?


2. A mente é um programa de computador?
3. As operações do cérebro podem ser simuladas num
computador digital?

Neste capítulo, estarei me dedicando a 1, e não a 2 e


3. Em escritos anteriores (Searle, 1980a, 1980b e 1984b),
dei uma resposta negativa a 2. Porque os programas são
definidos puramente em termos form ais ou sintáticos, e
porque as mentes têm um conteúdo m ental intrínseco,
conclui-se imediatamente que, por si mesmo, o programa
não pode co nstitu ir a mente, A sintaxe form al do progra­
ma não garante por si só a presença de conteúdos men-
286 A REDESCOBERTA DA MENTE

tais. Dem onstrei isto uma década atrás no argumento da


sala chinesa (Searle, 1980a). Um computador, eu por exem­
plo , poderia executar os passos do programa por causa de
alguma capacidade m ental, como entender chinês, sem
entender uma palavra de chinês. O argumento baseia-se
na simples verdade lógica de que sintaxe não é o mesmo
que semântica, nem é, por si só, suficiente para ela.
Portanto, a resposta para a segunda pergunta é demonstra-
velmente “ não” .
A resposta para 3 parece-me da mesma form a de-
m onstravelmente “ sim ” , ao menos em uma interpretação
in tu itiv a . Isto é, intuitivam ente interpretada a pergunta
significa: há alguma descrição do cérebro tal que, basea­
do nesta descrição, você pudesse fazer uma simulação
com putacional das operações do cérebro? Porém, dada a
tese de Church de que qualquer coisa à qual possa ser
dada uma caracterização precisa o bastante como um con­
ju n to de passos pode ser sim ulada em um computador
d ig ita l, conclui-se trivia lm e nte que a pergunta tem uma
resposta afirm ativa. AsY>perações do cérebro podem ser
simuladas em um com putador d ig ita l no mesmo sentido
em que sistemas m eteorológicos, o comportamento do
mercado de valores de N ova York, ou a configuração de
vôos de linhas aéreas sobre a A m érica Latina também o
podem. Portanto, nossa pergunta não é: “ A mente é um
programa?” A resposta a isto é “ não” . Nem é: “ O cérebro
pode ser simulado?” A resposta a isto é “ sim ” . A pergunta
é: “ O cérebro é um computador digital?” E, para fins desta
discussão, estou tomando esta pergunta como equivalente
a: “ Os processos cerebrais são computacionais?”
A CRÍTICA DA RAZÃO COGNITIVA 287

Alguém podia pensar que esta pergunta perderia m ui­


to de seu interesse se a pergunta 2 recebesse uma resposta
negativa. Isto é, alguém podia supor que, a não ser que a
mente seja um programa, não há interesse na pergunta
sobre se o cérebro é um computador. Porém, este não é
realmente o caso. Mesmo para aqueles que concordam que
os programas, por si mesmos, não são constitutivos de
fenômenos mentais, há ainda uma questão importante:
admitindo-se que há mais na mente que as operações sintá­
ticas do computador digital, não obstante pode ser o caso
de que os estados mentais sejam pelo menos estados com­
putacionais, e os processos mentais sejam processos compu­
tacionais operando sobre a estrutura form al destes estados
mentais. Esta, com efeito, parece-me a posição assumida
por um número razoavelmente grande de pessoas.
Não estou dizendo que a concepção seja com pleta­
mente nítida, mas a idéia é mais ou menos assim: em
algum nível de descrição, os processos cerebrais são sin­
táticos; são, por assim dizer, “ sentenças dentro da cabe­
ça” . Estas não precisam ser sentenças em inglês ou c h i­
nês, mas talvez na “ linguagem do pensamento” (Fodor,
1975). Então, como quaisquer sentenças, elas têm uma
estrutura sintática e uma semântica ou significado, e o
problem a de sintaxe pode ser separado do problem a de
semântica. O problem a de semântica é: como essas sen­
tenças dentro da cabeça obtêm seus significados? Porém,
esta questão pode ser discutida independentemente da
pergunta: como o cérebro funciona no processamento des­
sas sentenças? Um a resposta típica para esta ú ltim a per­
gunta é; o cérebro funciona como um com putador d ig ita l
executando operações com putacionais sobre a estrutura
sintática de sentenças dentro da cabeça.
28 8 A REDESCOBERTA DA MENTE

Apenas para m anter a term inologia correta, chamo


de IA forte a concepção de que tudo que tem uma mente
é um programa, de IA fraca a concepção de que proces­
sos cerebrais (e processos mentais) podem ser simulados
computacionalmente, e de cognitivism o a visão de que o
cérebro é um com putador d ig ita l. Este capítulo é sobre
cognitivism o.

III . A h istó ria p rim o rd ia l

Forneci antes uma exposição pre lim ina r das hipóte­


ses da corrente p rin cip a l da ciência cognitiva, e agora
quero prosseguir, tentando expor tão solidamente quanto
possa por que razão o cognitivism o parecia intuitivam en­
te atraente. Há uma h istória sobre a relação entre in te li­
gência humana e computação que rem onta pelo menos
ao ensaio clássico de T uring (1950), e creio que este é o
alicerce da visão cognítivista. Vou denom iná-la a história
prim ordial.

Iniciamos com dois resultados dentro da lógica ma­


temática, a tese de Church-Turing e o teorema de Turing.
Para nossos propósitos, a tese de Church-Turing declara
que para qualquer algoritmo há alguma máquina de Turing
que pode executar este algoritmo. A tese de Turing diz
que há uma máquina de Turing universal que pode simu­
lar qualquer máquina de Turing. Então, se apresentamos
essas duas teses simultaneamente, temos a conseqüência
de que uma máquina de Turing universal pode executar
todo e qualquer algoritmo.
A CRÍTICA DA RAZÃO COGNITIVA 289

Mas, agora, por que esse resultado fo i tão em pol­


gante? Bem , o que fez com que ele provocasse calafrios
na espinha de toda uma geração de jovens estudiosos da
inteligência a rtific ia l fo i a seguinte cogitação: suponha
que o cérebro seja uma máquina de T uring universal.
Bem, haverá bons m otivos para supor que o cérebro
pudesse ser uma m áquina de T uring universal? C o n ti­
nuemos com a história prim ordial:

Está claro que pelo menos algumas aptidões mentais


humanas são algorítmicas. Por exemplo, posso conscien­
temente fazer divisão aritmética efetuando os passos de
um algoritmo para resolver problemas de divisão. Além
do mais, é uma conseqüência da tese de Church-Turing e do
teorema de Turing que qualquer coisa que um ser humano
pode fazer algorítmicamente pode ser feita em uma má­
quina de Turing universal. Posso implementar, por exem­
plo, exatamente o mesmo algoritmo que emprego para
divisão em um computador digital. Em tal caso, conforme
descrito por Turing (1950), tanto eu, o computador huma­
no, como o computador mecânico estamos implementan­
do o mesmo algoritmo. Estou efetuando-o consciente­
mente; o computador mecânico, não-conscientemente. En­
tão parece razoável supor que pudesse haver milhões de
outros processos mentais acontecendo não-consciente­
mente em meu cérebro que sejam também computacionais.
E, sendo assim, poderíamos descobrir como o cérebro
funciona simulando esses mesmos processos em um com­
putador digital. Assim como obtivemos uma simulação
em computador dos processos para efetuar divisão, da
mesma forma poderíamos obter uma simulação em com­
putador dos processos de compreensão da linguagem,
percepção visual, categorização etc.
290 A REDESCOBERTA DA MENTE

“ Mas que dizer da semântica? A fin a l de contas, pro­


gramas são puramente sintáticos.” A q u i, outro conjunto
de conseqüências lógico-m atem áticas entra em cena na
história prim ordial:

O desenvolvimento da teoria da prova mostrou que


dentro de determinados limites bem conhecidos as rela­
ções semânticas entre proposições podem ser totalmente
espelhadas pelas relações sintáticas entre as sentenças que
expressam essas proposições. Agora suponha que os con­
teúdos mentais dentro da cabeça sejam exprimidos sinta-
ticamente na cabeça; então, tudo de que precisaríamos
para explicar processos mentais seriam processos compu­
tacionais entre os elementos sintáticos dentro da cabeça.
Se compreendermos corretamente a teoria da prova, a se­
mântica tomará conta de si mesma; e é isto que fazem os
computadores: implementam a teoria da prova3.

Temos, desse m odo, um program a de pesquisa bem


definido. Tentamos’descobrir os programas que são im ­
plementados no cérebro programando computadores para
im plem entar os mesmos programas. Fazemos isto, su­
cessivamente, conseguindo que o com putador mecânico
iguale o desempenho do com putador humano (i.e., passe
no teste de T uring) e então conseguindo que os p sicólo­
gos procurem evidências de que os processos internos
são os mesmos nos dois tipos de computador.
N o que se segue, gostaria que o le ito r mantivesse
essa história p rim o rd ia l em mente. Note especialmente o
contraste de T uring entre a implementação consciente do
programa pelo com putador humano e a implementação
não-consciente do programa, quer pelo cérebro, quer pe-
A CRÍTICA DA RAZÃO COGNITIVA 291

lo com putador mecânico. Observe também a idéia de


que poderíamos descobrir programas sendo rodados na
natureza, exatamente os mesmos programas que coloca­
mos em nossos computadores mecânicos.
Se alguém examina os livro s e artigos que sustentam
o cognitivism o, encontra determinadas assunções comuns,
freqüentemente não enunciadas, mas não obstante disse­
minadas.
P rim eiram ente, em geral se adm ite que a única a l­
ternativa à visão de que o cérebro é um com putador d ig i­
ta l é alguma form a de dualism o. D iscu ti as razões desse
im pulso no capítulo 2. Retoricamente falando, a idéia é in ­
tim id a r o leitor, fazendo com que ele pense que, a não ser
que aceite a idéia de que o cérebro é algum tip o de com ­
putador, está com prom etido com certas concepções anti­
científicas sobrenaturais.
Em segundo lugar, também se adm ite que a questão
sobre o fato de os processos cerebrais serem ou não com ­
putacionais é simplesmente uma questão em pírica e v i­
dente. Isto deve ser estabelecido por investigação factual,
da mesma form a que questões como o fato de o coração
ser uma bomba ou de as folhas verdes realizarem a fotos-
síntese foram estabelecidas como questões de fato. Não
há espaço para distinções lógicas pormenorizadas m uito
sutis ou para a análise conceituai, porque estamos falan­
do sobre casos de verdade científica indisputável. Na ver­
dade, penso que m uitas pessoas que trabalham neste
campo duvidariam que a questão que estou levantando
seja, de qualquer modo, uma questão filo s ó fic a apropria­
da. “ É o cérebro realmente um com putador d ig ita l? ” não
é uma questão filo só fica mais do que o é: “ O neurotrans-
292 A REDESCOBERTA DA MENTE

m issor em junções neuromusculares é realmente a acetil-


colina?”
A té pessoas indiferentes ao cognitivism o, como Pen­
rose (1989) e D reyfus (1972), parecem tratá-lo como um
assunto factual isento de ambigüidades. Eles não pare­
cem preocupados com a questão de que espécie de a fir­
mação podia ser esta de que estão duvidando. Mas estou
perplexo com a questão: que espécie de fato acerca do
cérebro poderia decretar ser ele um computador?
Em terceiro lugar, outra característica estilística des­
sa literatura é a precipitação, e às vezes até negligência,
com as quais se faz com que as questões fundamentais
sejam atenuadas. Quais são exatamente as características
cerebrais anatômicas e fisioló gica s que estão sendo d is­
cutidas? O que exatamente é um com putador d igital? E
de que form a se espera que se relacionem as respostas a
essas duas perguntas? O procedim ento usual nesses l i ­
vros e artigos é fazer jtlguns comentários sobre 0 ’s e l ’s,
dar um resumo popular da tese de C hurch-Turing e então
dar prosseguimento a coisas mais emocionantes, como
avanços e deficiências do computador. Para m inha sur­
presa, ao le r essa literatura descobri que parece haver um
hiato filo só fico peculiar. De um lado, temos um conjunto
m uito refinado de conseqüências matemáticas, variando
do teorema de T uring à tese de Church e à teoria da fu n ­
ção recursiva. D o outro, temos uma série impressionante
de dispositivos eletrônicos que utilizam os todo dia. Visto
que temos tal m atem ática avançada e tal eletrônica e fi­
ciente, adm itim os que, de algum m odo, alguém tem que
ter realizado o trabalho filo s ó fic o básico de fazer a cone­
xão entre a m atem ática e a eletrônica. Porém, até onde
A CRÍTICA DA RAZÃO COGNITIVA 293

posso assegurar, não é este o caso. Pelo contrário, estamos


numa situação peculiar em que há pouca concordância
teórica entre os profissionais a propósito de questões abso­
lutamente fundamentais: o que é exatamente um computa­
dor digital? O que é exatamente um símbolo? O que é exa­
tamente um algoritm o? O que é exatamente um processo
computacional? Exatamente sob que condições físicas
dois sistemas estão implementando o mesmo programa?

IV. A definição de computação

Como não há consenso universal sobre as questões


fundamentais, creio que é m elhor vo lta r às fontes, às de­
finições originais dadas por A la n Turing.
Segundo T uring, uma máquina de T uring pode exe­
cutar determinadas operações elementares: pode reescre­
ver um 0 na sua fita de gravação como um 1, pode rees­
crever um 1 na sua fita como um 0, pode deslocar a fita
uma casa para a esquerda, ou pode deslocar a fita uma

casa para a direita. E controlado por um programa de ins­


truções e cada instrução especifica uma condição e uma
ação a ser executada se a condição fo r satisfeita.
Essa é a definição padrão de computação, mas, to ­
mada literalm ente, é pelo menos um pouco enganadora.
Se você a brir seu com putador pessoal, é m uito im prová­
vel que encontre quaisquer 0 ’s e l ’s, ou mesmo uma fita.
Mas isto realmente não im porta para a definição. Para
descobrir se um objeto é realmente um com putador d ig i­
tal, resulta que efetivam ente não temos que procurar por
0 ’s e l ’s etc.; antes, simplesmente temos que procurar
294 A REDESCOBERTA DA MENTE

por algo que poderíamos tra ta r como ou contar como ou


que pudesse estar habituado a atuar como O’s e 1’s. A lém
disso, para tom ar a questão mais confusa, resulta que es­
sa m áquina poderia ser fe ita de quase qualquer coisa.
Como diz Johnson-Laird: “ Poderia ser fe ita de dentes de
engrenagem e alavancas, como urna calculadora m ecáni­
ca antiquada; poderia ser fe ita de um sistema h idráulico
através do qual a água circula; poderia ser fe ita de tran­
sistores impressos em um chip de s ilíc io através dos
quais a corrente elétrica flu i; poderia até ser executada
pelo cérebro. Cada um desses engenhos emprega um m eio
diferente para representar símbolos binários. As posições
dos dentes de engrenagem, a presença ou ausência de
água, o n ível da voltagem e talvez im pulsos nervosos”
(Johnson-Laird, 1988, p. 39).
Observações sim ilares são feitas pela m aioria das
pessoas que escrevem sobre este tópico. Por exem plo,
Ned B lo ck (1990) demonstra como podemos ter portas
elétricas em que o s *l’s e O’s sejam atribuídos a níveis de
voltagem de 4 volts e 7 volts, respectivamente. Assim ,
poderíamos pensar que deveríamos prosseguir e procurar
por níveis de voltagem . Mas B lo ck nos diz que 1 é ape­
nas “ convencionalm ente” atribuido a um determinado
nível de voltagem . A situação fic a mais confusa quando
ele nos inform a, além disso, que não necessitamos de
modo algum u tiliz a r eletricidade, mas que podemos u tili­
zar um elaborado sistema de gatos e ratos e queijo e
construir nossas portas de urna form a tal que o gato faça
força sobre a corda e estique-a para abrir urna porta, que
podemos também considerar como se fosse um 0 ou um 1*
O ponto p rincipal, como B lo ck preocupa-se em insistir, é
A CRÍTICA DA RAZÃO COGNITIVA 295

“ a irrelevância da concepção de hardw are para a descri­


ção com putacional, Essas portas funcionam de maneiras
diferentes, mas são, ainda assim, com putacionalm ente
equivalentes” (p. 260). N o mesmo estilo, P ylyshyn diz
que uma seqüência com putacional poderia ser realizada
por “ um grupo de pombos treinados para bicar como
uma máquina de T u rin g !” (1984, p. 57).
Mas então, se estamos tentando levar a sério a idéia
de que o cérebro é um com putador d ig ita l, obtemos o
resultado desconfortável de que poderíamos produzir um
sistema que faz precisamente o que o cérebro faz a p a rtir
de praticamente qualquer coisa. Com putacionalm ente fa­
lando, baseado nessa concepção, você pode construir um
“ cérebro” que funcione exatamente como o seu ou o meu a
p a rtir de gatos e ratos e queijo, ou alavancas, ou canos de
água, ou pombos, ou qualquer outra coisa, contanto que
os dois sistemas sejam, no sentido proposto p or B lock,
“ computacionalmente equivalentes” . Você simplesmente
precisaria de uma quantidade in críve l de gatos, ou pom ­
bos, ou canos de água, ou o que quer que fosse. Os p ro ­
ponentes do cognitivism o expõem esta conseqüência com
absoluto e escancarado prazer. Porém, creio que deveriam
estar inquietos em relação a isso, e vou tentar demonstrar
que essa é apenas a ponta de todo um iceberg de problemas.

V. P rim eira dificuldade: a sintaxe não é intrínseca ã física

Por que os defensores do com putacionalism o não es­


tão preocupados com as im plicações da m ú ltip la realiza-
bilidade? A resposta é que eles pensam que é típ ico de
29 6 A REDESCOBERTA DA MENTE

descrições funcionais que a mesma função adm ita m ú lti­


plas realizações. Neste aspecto, os computadores são exa­
tamente como carburadores e termostatos. Assim como
os carburadores podem ser feitos de bronze ou aço, os
computadores podem ser feitos de uma variedade in d e fi­
nida de elementos de hardw are.
Há, porém, uma diferença: as classes de carburadores
e termostatos são definidas em termos da produção de

determinados efeitos físicos. E por isto que, por exem ­
plo , ninguém d iz que você pode fazer carburadores de
pombos. M as a classe de computadores é definida sinta-
ticamente em termos da a trib uiçã o de 0 ’s e 1 ’s. A m ú lti­
pla realizabilidade é uma conseqüência não do fato de
que o mesmo efeito físico pode ser conseguido por subs­
tâncias físicas diferentes, mas de que as propriedades
relevantes são puramente sintáticas. A física é irrelevan­
te, exceto na m edida em que admite as atribuições de 0 ’s
e l ’se transições de estado entre estes.
Contudo, isto tem duas conseqüências que poderiam
ser desastrosas:

1. O mesmo princípio que implica m últipla realiza­


bilidade pareceria implicar realizabilidade universal. Se a
computação é definida em termos da atribuição de sinta­
xe, então tudo poderia ser um computador digital, porque
todo e qualquer objeto poderia ter atribuições sintáticas
feitas a ele. Você poderia descrever qualquer coisa em
termos deO’se l ’s.
2. Pior ainda, a sintaxe não é intrínseca à física. A
atribuição de propriedades sintáticas é sempre relativa a
um agente ou observador que trata determinados fenôme­
nos físicos como sintáticos.
A CRÍTICA DA RAZÃO COGNITIVA 297

Ora, exatamente por que essas conseqüências seriam


desastrosas?
Bem, queríamos saber como o cérebro funciona, es­
pecíficam ente como produz fenômenos mentais. E o uvir
como resposta que o cérebro é um com putador d ig ita l no
mesmo sentido em que estômago, fígado, coração, siste­
ma solar e o estado de Kansas são todos computadores d i­
gitais não responderia essa questão. O m odelo que tínha­
mos era que podíamos descobrir alguns fatos sobre a
operação do cérebro que dem onstrariam que ele é um
computador. Queríamos saber se não havia algum sentido
no qual os cérebros fossem intrínsecam ente computado­
res digitais, de certa form a como as folhas verdes intrínse­
camente realizam fotossíntese, ou os corações intrínseca­
mente bom beiam sangue. Não é uma questão de arbitra­
riamente ou “ convencionalmente” atribuirm os a palavra
“ bom ba” a corações ou “ fotossíntese” a folhas. H á uma
ocorrência efetiva do fato. E o que estamos perguntando
é: “ Há, dessa maneira, um fato sig n ifica tivo em cérebros
que os tom aria computadores d igitais?” Esta pergunta
não terá sido respondida se nos disserem: sim , cérebros
são computadores digitais porque tudo é um computador
digital.
Com base na definição didática padrão de computa­
ção, é d ifíc il perceber como evitar os seguintes resultados:

1. Para qualquer objeto há alguma descrição tal des­


te objeto que, sob esta descrição, o objeto seja um compu­
tador digital.
2. Para qualquer programa e para qualquer objeto su­
ficientemente complexo, há alguma descrição do objeto
298 A REDESCOBERTA DA MENTE

segundo a qual ele está implementando o programa. Assim,


por exemplo, a parede às minhas costas está agora mesmo
implementando o programa Wordstar, porque há algum pa­
drão de movimentos moleculares que é isomórfico em rela­
ção à estrutura formal do Wordstar. Mas, se a parede está
implementando o Wordstar, então, se for uma parede gran­
de o bastante, estará implementando qualquer programa,
inclusive qualquer programa implementado no cérebro.

Penso que a prin cip a l razão pela qual os proponentes


não percebem que a realizabilidade m últip la ou universal
é um problem a é que eles não a enxergam como uma con­
seqüência de uma questão m uito mais profunda, a saber,
que “ sintaxe” não é a denominação de uma característica
física, como massa ou gravidade. A o contrário, eles falam
de “ mecanismos sintáticos” e mesmo de “ mecanismos se­
m ânticos” como se tal tema fosse como aquele de m oto­
res a gasolina ou motores a diesel, como se fosse absolu­
tamente indiscutível considerar o cérebro ou qualquer
outra coisa como um mecanismo sintático.
Não penso quê o problem a da realizabilidade u n i­
versal seja grave. C reio que é possível e vitar a conse­
qüência da realizabilidade universal tom ando mais rig o ­
rosa nossa definição de computação. Certamente deve­
mos respeitar o fato de programadores e engenheiros
considerarem-na como uma peculiaridade das definições
originais de T uring, e não como uma característica real
da computação. Trabalhos não publicados de B rian Sm ith,
V inod Goel e John B a ta li sugerem, todos, que uma d e fi­
nição mais realista da computação enfatizará característi­
cas como as relações causais entre estados de programas,
program abilidade e controlabilidade do mecanismo e si-
A CRÍTICA DA RAZÃO COGNITIVA 299

tuação dentro do mundo real. Todas elas produzirão a


conseqüência de que o modelo não é suficiente. Tem que
haver uma estrutura causai suficiente para responder
pelos contrafactuais. Contudo, essas restrições adicionais
na definição de computação não auxilia m m uito na pre­
sente discussão porque o problem a realmente profundo é
que a sintaxe é essencialmente uma noção re la tiva ao
observador. A realizabilidade m últipla de processos com-
putacionalm ente equivalentes em meios físico s diferentes
é não apenas um sinal de que os processos são abstratos,
mas de que eles não são, de modo algum, intrínsecos ao
sistema. Eles dependem de uma interpretação exterior.
Estivemos procurando alguns fatos significativos que tor­
nariam computacionais os processos cerebrais; mas, dada
a maneira como definim os computação, não poderia haver
nunca nenhum fato significativo semelhante. Não pode­
mos, por outro lado, dizer que algo é um computador d ig i­
tal no caso de podermos atribuir a ele uma sintaxe, e então
supor que existe uma questão factual intrínseca ao seu
funcionam ento físico, quer um sistema natural como o
cérebro seja ou não um computador digital.
E, se a palavra “ sintaxe” parece enigm ática, a mes­
ma questão pode ser apresentada sem ela. Isto é, alguém
poderia afirm ar que as noções de “ sintaxe” e “ sím bolos”
são apenas um modo de dizer, e que aquilo em que esta­
mos verdadeiramente interessados é a existência de siste­
mas com fenômenos físicos discretos e transições de es­
tado entre eles. De acordo com esta concepção, não pre­
cisamos realmente de 0 ’s e l ’s; eles são apenas uma
form a conveniente de representação abreviada. Porém,
creio eu, essa mudança não ajuda m uito. U m estado fís i-
300 A REDESCOBERTA DA MENTE

co de um sistema é um estado computacional apenas rela­


tivam ente à atribuição a este estado de algum papel, fun­
ção ou interpretação com putacional. O mesmo problem a
surge sem 0 ’s e l ’s porque noções como computação,
algoritm o e program a não designam características fís i­
cas intrínsecas de sistemas. Estados computacionais não
são descobertos dentro da física; são atribuídos à física.
Este é um argumento diferente do argumento da sala
chinesa, e eu deveria ter percebido isto dez anos atrás,
mas não percebi. O argumento da sala chinesa m ostrou
que a semântica não é intrínseca à sintaxe. Não estou
sustentando a tese independente e diferente de que a sin­
taxe não seja intrínseca à física. Em função dos propósi­
tos do argumento o rig in a l, estava simplesmente assumin-
do que a caracterização sintática do com putador era não-
problem ática. Mas isto é um erro. Não há m eio pelo qual
você possa descobrir que algo é intrínsecam ente um
com putador d ig ita l, porque a caracterização dele como
um com putador d ig ita l é sempre relativa a um observa­
dor que a trib u i uma interpretação sintática às caracterís­
ticas puramente físicas do sistema. Quando aplicada à
hipótese da linguagem do pensamento, isso tem como
conseqüência que a tese é incoerente. Não há m eio pelo
qual você possa descobrir que, intrínsecamente, existem
sentenças desconhecidas na sua cabeça porque algo só é
uma sentença relativam ente a algum agente ou usuário
que a u tiliz a como uma sentença. Quando genericamente
aplicada ao m odelo com putacional, a caracterização de
um processo como com putacional é uma caracterização
de um sistema físico a p a rtir do exterior; e a identificação
do processo como com putacional não id e n tifica uma
A CRÍTICA DA RAZÃO COGNITIVA 301

característica intrínseca da física; é, essencialmente, uma


caracterização rela tiva ao observador.
Este ponto tem que ser compreendido de form a pre­
cisa. Não estou dizendo que, a p r io r i, existam lim ite s pa­
ra os modelos que pudéssemos descobrir na natureza.
Poderíamos sem dúvida descobrir um padrão de eventos
em meu cérebro que fosse isom órfico em relação à im ­
plementação do programa vi-e d ito r em meu computador.
Contudo, dizer que algo está funcionando como um pro­
cesso com putacional é dizer algo mais do que sim ples­
mente que o padrão de eventos físicos está ocorrendo.
Isso requer a atribuição de uma interpretação com puta­
cional por algum agente. Analogamente, poderíamos des­
co brir na natureza objetos que tivessem a mesma espécie
de form ato que cadeiras e que pudessem, portanto, ser
usados como cadeiras; porém não poderíamos descobrir
objetos na natureza que estivessem funcionando como
cadeiras, exceto em relação a alguns agentes que as con­
siderassem ou usassem como cadeiras.
Para compreender completamente esse argumento, é
essencial entender a distinção entre características do
mundo que são intrínsecas e características que são rela -
tivas ao observador. As expressões “ massa” , “ atração gra-
vitacional” e “ m olécula” designam características do m un­
do que são intrínsecas. Se todos os observadores e usuá­
rios deixarem de existir, o mundo ainda conterá massa,
atração gravitacional e moléculas. N o entanto, expres­
sões como “ belo dia para um piquenique” , “ banheira” e
“ cadeira” não designam características intrínsecas da rea­
lidade. Designam, antes, objetos através da especificação
de alguma característica que fo i atribuída a eles, alguma
302 A REDESCOBERTA DA MENTE

característica que é relativa a observadores e usuários. Se


nunca tivesse havido nenhum usuário ou observador, have­
ria ainda montanhas, moléculas, massas e atração gravita-
cional. Mas, se nunca tivesse havido nenhum usuário e
observador, não haveria características como ser um belo
dia para um piquenique, ou ser uma cadeira ou uma
banheira. A atribuição de características relativas ao obser­
vador a características intrínsecas do mundo não é arbi­
trária. Algum as características intrínsecas do mundo fa ci­
lita m seu emprego como cadeiras e banheiras, por exem­
plo. Mas a característica de ser uma cadeira ou uma
banheira ou um belo dia para um piquenique é uma carac­
terística que existe apenas relativam ente a usuários e
observadores. A tese que estou sustentando aqui, e a es­
sência deste argumento, é que, nas definições padrões de
computação, as características computacionais são re la ti­
vas ao observador. Não são intrínsecas. A té aqui, portan­
to, o argumento pode ser assim resumido:
O objetivo da ciência n a tu ra l ê descobrir e caracte­
riza r aspectos que são intrínsecos ao mundo natural. A tra ­
vés de suas p ró p ria s definições de computação e cogni-
çãüy não há m aneira de a ciência cognitiva com putacio­
nal v ir algum dia a ser uma ciência n a tu ra l, porque a
computação não é um aspecto intrínseco do mundo. É
atribuída relativam ente a observadores4.

VI. Segunda dificuldade: a fa lá c ia do homúnculo


é endêmica no cognitivism o

A té este ponto, parece que chegamos a um proble­


ma. A sintaxe não é parte da física. Isto tem a conseqüên-
A CRÍTICA DA RAZÃO COGNITIVA 303

cia de que, se a computação é defin ida sintaticam ente,


então nada é intrínsecamente um com putador d ig ita l u n i­
camente em virtud e de suas propriedades físicas. Há
alguma saída para esta dificuldade? Sim , há, e é uma
saída regularm ente u tiliza da na ciência cognitiva, mas é
pular da frig id e ira para o fogo. A m aior parte dos traba­
lhos que v i sobre a teoria com putacional da mente come-
te alguma variação da falácia do hom únculo. A idéia é
sempre tratar o cérebro como se houvesse algum agente
dentro dele, usando-o para efetuar computação. U m caso
típ ico é D avid M a rr (1982), que descreve o exercício da
visão como algo que, em sua origem , va i de um arranjo
visual bidim ensional na retina para uma descrição tr id i­
m ensional do m undo exterior como resposta do aparelho
visual. A dificuldade é: quem está lendo a descrição? Na
verdade, por todo o liv ro de M a rr e em outras obras pa­
drões sobre o assunto, parece que temos que recorrer a
um hom únculo dentro do sistema para tratar suas opera­
ções como genuinamente computacionais.
M uitos autores consideram que a falácia do homúncu­
lo não é realmente um problema porque, a exemplo de
Dennett (1978), acham que o homúnculo pode ser “ dispen­
sado” . A idéia é esta: porque as operações computacionais
do computador podem ser analisadas em unidades progres­
sivamente mais simples, até que eventualmente atinjamos
circuitos flip -flo p simples, configurações “ sim-não” , “ 1-0” ,
parece que os homúnculos de nível superior podem ser dis­
pensados a favor de homúnculos progressivamente mais
estúpidos, até que finalm ente alcancemos o nível básico de
um simples flip -flo p que não envolva absolutamente ne­
nhum homúnculo real. A idéia, em resumo, é que a decom­
posição recursiva elim inará os homúnculos.
304 A REDESCOBERTA DA MENTE

Dem orei m uito a entender o que essas pessoas esta-


vam pretendendo dizer; portanto, no caso de alguém
mais estar igualm ente perplexo, vou esclarecer um
exem plo em detalhes: suponha que tenhamos um com ­
putador que m u ltip liq u e seis vezes o ito para obter qua­
renta e oito. Então perguntamos: “ Como ele faz isto?”
Bem , a resposta podia ser que ele adiciona seis a si
mesmo sete vezes5. Porém, se você pergunta: “ Como ele
adiciona seis a si mesmo sete vezes?” , a resposta podia
ser que, prim eiram ente, converte todos os algarism os
em notação binária e, em segundo lugar, aplica um algo­
ritm o simples para trabalhar em notação binária até que
finalm ente cheguemos ao n íve l básico, no qual as únicas
instruções são do padrão: “ Escreva um 0, apague um 1.”
Assim , por exem plo, no n íve l mais alto, nosso hom ún­
culo inteligente d iz: “ Sei como m u ltip lic a r seis vezes
oito para obter quarenta e o ito .” Porém, no n ível im edia­
tamente inferior, ele é substituído por um homúnculo mais
estúpido que d iz: “ Não sei efetivam ente como fazer
m ultip lica ção , mas posso efetuar adição.” A b a ixo dele
estão alguns m ais estúpidos que dizem : “ Não sabemos
efetivam ente como efetuar adição ou m ultiplicação, mas
sabemos como converter decim ais em binários.” A baixo
desses estão hom únculos mais estúpidos que dizem:
“ Não sabemos nada sobre nenhuma dessas coisas, mas
sabemos como trabalhar com símbolos binários.” No
n ível básico está todo um grupo de hom únculos que
dizem simplesm ente: “ Zero um, zero um .” Todos os
níveis superiores se reduzem a este nível básico. Somente
o n íve l básico existe realmente; os níveis mais altos são
todos meramente como-se.
A CRÍTICA DA RAZÃO COGMTIVA 305

Diversos autores (e . g Haugeland, 1981; B lock, 1990)


delineiam esta característica quando dizem que o sistema
é um mecanism o sintático acionando um mecanismo
semântico. Mas temos ainda que enfrentar a questão que
tínham os antes: quais fatos intrínsecos ao sistema to r-
nam-no sintático? Quais fatos do n ível básico ou de qual­
quer outro n íve l transform am essas operações em 0 ’s e
1 ’s? Sem um hom únculo que se posicione exteriorm ente
à decomposição recursiva, não temos nem sequer uma
sintaxe com que operar. A tentativa de e lim inar a falácia
do hom únculo através da decomposição recursiva fracas­
sa, porque a única form a de tornar a sintaxe intrínseca à
física é colocar um hom únculo dentro da física.
Há um aspecto fascinante em tudo isso. Os co g n iti-
vistas adm item de bom grado que os níveis superiores da
computação, por exem plo, “ m u ltip liq u e 6 vezes 8” , são
relativos ao observador; não há nada aí que de fato cor­
responda diretamente a m ultiplicação; tudo está a crité rio
do hom únculo/observador. Mas eles desejam suspender
essa concessão nos níveis inferiores. O circu ito eletrôni­
co, adm item eles, realmente não m u ltip lic a 6 x 8 como
tal, mas na verdade realmente m anipula 0 ’s e l ’s, e estas
manipulações, por assim dizer, constituem a m u ltip lic a ­
ção. M as a d m itir que os níveis superiores da computação
não são intrínsecos à física já é a d m itir que os níveis
inferiores não são intrínsecos também. Portanto, a falácia
do hom únculo permanece ainda conosco.
N o caso de computadores reais, do tip o que você
compra na lo ja , não há questão de hom únculos, porque
cada usuário é o hom únculo em questão. M as, se deve­
nios supor que o cérebro é um com putador d ig ita l, nos
306 A REDESCOBERTA DA MENTE

defrontamos ainda com a questão: “ E quem é o usuário?”


Questões típicas de hom únculos na ciência cognitiva são
como as seguintes: “ Com o o aparelho visual com puta o
form ato a p a rtir da m atização; como computa a distância
do objeto a p a rtir do tamanho da imagem retiniana?”
Um a questão paralela seria: “ Como os pregos computam
a distância que devem percorrer na tábua a p a rtir do
im pacto do m artelo e da densidade da madeira?” E a res­
posta é a mesma em ambos os tipos de caso: se estamos
falando sobre como o sistema trabalha intrínsecamente,
nem pregos nem aparelhos visuais computam coisa algu­
ma. Nós, enquanto hom únculos exteriores, podíamos
descrevê-los com putacionalm ente, e é m uitas vezes ú til
fazer assim. Mas você não entende o ato de m artelar
supondo que pregos estejam de algum modo intrínseca­
mente im plem entando algoritm os correspondentes ao ato
de m artelar, e você não compreende a visão supondo que
o sistema esteja im plem entando, por exem plo, o form ato
a p a rtir de algoritm os correspondentes à matização.

V IL Terceira dificuldade: a sintaxe


não tem capacidades causais

Determinados tipos de explicações nas ciências natu­


rais especificam mecanismos que atuam causalmente na
produção dos fenômenos a serem explicados. Isto é espe­
cialmente comum nas ciências biológicas. Pense na teoria
da causação de doenças por m icróbios, na descrição da
fotossíntese, na teoria do D N A de características herda­
das e mesmo na teoria darwiníana da seleção natural. Em
A CRÍTICA DA RAZÃO COGNITIVA 307

cada caso, um mecanismo causal é especificado, e em ca­


da caso a especificação fornece uma explanação do out­
p u t do mecanismo. Se você volta e examina a historia p ri­
m ordial, parece claro que esta é a espécie de explanação
prom etida pelo cognitivism o. Supõe-se que os mecanis­
mos através dos quais os processos cerebrais produzem
cognição sejam computacionais, e através da especifica­
ção dos programas teremos especificado as causas da cog­
nição. Um a qualidade desse programa de pesquisa, fre ­
qüentemente comentada, é que não necessitamos conhecer
os detalhes do funcionam ento do cérebro para explicar a
cognição. Processos cerebrais proporcionam somente a
implementação em hardware dos programas cognitivos,
mas é no nível do programa que as explanações cognitivas
reais são dadas. De acordo com a descrição padrão, con­
form e apresentada por N ew ell (1982), por exemplo, há
três níveis de explanação - hardware, programa e inten-
cionalidade (N ew ell chama este ú ltim o nível de nível do
conhecimento) - e a contribuição especial da ciência cog­
nitiva é dada no nível do programa.
Porém, se o que disse até agora está correto, então
há algo duvidoso acerca de todo esse projeto. Eu costu­
mava acreditar que, enquanto descrição causal, a teoria
cognitivista era no m ínim o falsa, mas agora estou tendo
dificuldade para fo rm u la r uma versão dela que seja coe­
rente pelo menos a ponto em que pudesse ser, de qual­
quer modo, uma tese em pírica. A tese é que há m ilhões
de símbolos sendo m anipulados no cérebro, 0 ’s e l ’s
movendo-se através do cérebro à velocidade de um raio,
e invisíveis não apenas a olho nu, mas mesmo ao mais
Poderoso m icroscópio eletrônico, e são esses que causam
308 A REDESCOBERTA DA MENTE

a cognição. Porém, a dificuldade é que os 0 ’s e l ’s en­


quanto tais não têm capacidades causais porque nem
sequer existem, exceto aos olhos do observador. O progra­
ma implementado não tem capacidades causais outras que
aquelas do m eio implementante, porque o programa não
tem existência real, não tem ontologia, à exceção daquela
do m eio implementante. Fisicamente falando, não há tal
coisa como um “ nível de programa” isolado.
Você pode perceber isto se vo lta r à h istória p rim o r­
d ia l e lembrar-se da diferença entre o computador mecâ­
■j nico e o computador humano de Turing. N o computador
humano de T uring, realmente há um n ível de programa
..IIJ! intrínseco ao sistema, e ele está atuando causalmente
U 'j neste n ível para converter inputs em outputs. Isto ocorre
CO
porque o ser humano está conscientemente obedecendo
i.j
'"‘■MU
;; M.|t às regras para realizar uma determinada computação, e
isto explica causalmente sua atuação. Porém, quando
programamos o com putador mecânico para executar a
mesma computação’ a atribuição de uma interpretação
com putacional é então relativa a nós, os hom únculos ex­
teriores. Não há causação intencional intrínseca ao siste­
n.,;,
Ci ma. O com putador humano está conscientemente seguin­
do regras, e este fato explica seu com portam ento, mas o
com putador m ecânico não está literalm ente seguindo
nenhuma regra. É projetado para com portar-se exata­
mente como se estivesse obedecendo a regras; então, para
fin s práticos, com erciais, não im porta que não esteja efe­
tivam ente seguindo nenhuma regra. Não poderia estar
obedecendo a regras porque não há conteúdo intencional
intrínseco ao sistema que esteja atuando causalmente
para produzir o comportamento. Ora, o cognitivism o nos
A CRÍTICA DA RAZÃO COGNITIVA 309

diz que o cérebro funciona como o computador comercial,


e que isto causa a cognição. Porém, sem um homúnculo,
tanto o computador comercial como o cérebro têm somen­
te configurações, e as configurações não têm capacidades
causais além daquelas do meio implementante. Portanto,
parece que não há m eio pelo qual o cognitivism o pudesse
fornecer uma descrição causai da cognição.
Há um enigm a, no entanto, em m inha concepção.
Qualquer pessoa que trabalha com computadores ao me­
nos casualmente sabe que, na verdade, muitas vezes damos
realmente explanações causais que se valem do progra­
ma. Por exem plo, podemos dizer que quando bato nesta
tecla obtenho tais e tais resultados porque a m áquina está
im plem entando o program a v i e não o program a emacs;
e isto parece uma explanação causai ordinária. Portanto,
o enigma é: como conciliarm os o fato de a sintaxe, como
tal, não ter capacidades causais com o fato de que, e fe ti­
vamente, damos explanações causais que se valem de
programas? E, mais prementemente, será que esses tipos
de explanações forneceriam um m odelo apropriado para
o cognitivism o, será que resgatarão o cognitivism o? Po­
deríamos, por exem plo, resgatar a analogia com term os­
tatos ao salientarmos que, justam ente do m odo como a
noção “ term ostato” fig u ra em explanações causais inde­
pendentemente de qualquer referência à física de sua im ­
plementação, da mesma form a a noção “ programa” podia
ser explanatória ao mesmo tempo que igualm ente inde­
pendente da física?
Para analisar esse enigma, tentemos apresentar a ju s ­
tificação em favor do cognitivism o estendendo a história
prim ordial para m ostrar como os procedim entos investi-
310 A REDESCOBERTA DA MENTE

gativos cognitivistas atuam em métodos de pesquisa efe­


tivos. A idéia, tipicam ente, é program ar um computador
com ercial de form a que sim ule alguma capacidade cog­
n itiva , como visão ou linguagem . Então, se conseguimos
uma boa sim ulação, uma que nos dê ao menos equiva­
lência em relação a T uring, form ulam os a hipótese de
que o com putador cerebral está processando o mesmo
programa que o com putador com ercial, e, para ve rifica r
a hipótese, procuramos indícios psicológicos indiretos,
como tempos de reação. Portanto, parece que podemos
explicar causalmente o comportamento do computador
cerebral citando o programa, exatamente no mesmo sen­
tido em que podemos explicar o comportamento do com­
putador com ercial. O que há de errado com isto? Não soa
como um program a de pesquisa cie n tífica perfeitamente
legítim o? Sabemos que a conversão de input em output,
no computador com ercial, é explicada por um programa,
e que no cérebro encontramos o mesmo programa; por­
tanto temos uma explanação causai.
Duas coisas cTevem imediatamente inquietar-nos nesse
projeto. P rim eiro, nunca adm itiríam os esse modo de ex­
planação para nenhuma função do cérebro num caso em
que efetivam ente compreendêssemos como ele funciona­
ria no n ível neurobiológico. Segundo, não a adm itiría­
mos para outros tipos de sistemas que podemos sim ular
computacionalmente. Para ilustrar o prim eiro ponto, consi­
dere por exemplo a famosa descrição de “ O que o olho da
rã inform a sobre o cérebro da rã” (L e ttvin et ah, 1959, in
M cC ulloch, 1965). A descrição é dada inteiramente em
termos da anatomia e fisio lo g ia do sistema nervoso da ra.
Um trecho típico, escolhido ao acaso, vem narrado assim.
A CRÍTICA DA RAZÃO COGNITIVA 311

Detectores de contraste prolongado

Um axônio não-m ielinizado deste grupo não respon­


de quando a ilum inação geral é ligada ou desligada. Se a
extremidade pronunciada de um objeto tanto mais claro
ou mais escuro que o pano de fundo desloca-se para dentro
de seu campo e pára, ele descarrega prontamente e conti­
nua descarregando, não im porta qual o form ato da extre­
midade ou se o objeto é menor ou m aior do que o campo
receptivo (p. 239).

Nunca o uvi ninguém dizer que tudo isso é sim ples­


mente a im plem entação de hardw are, e que eles deve­
riam ter decifrado qual program a a rã estava im plem en­
tando. Não duvido que você pudesse fazer uma sim ula­
ção em com putador dos “ detectores de insetos” da rã.
Talvez alguém tenha fe ito isto. Porém, todos sabemos
que, uma vez que você compreenda como o aparelho v i­
sual da rã efetivamente fu ncio na , o “ n ível com putacio­
nal” é simplesmente irrelevante.
Para ilustra r a segunda inquietação, considere sim u­
lações de outros tipos de sistemas. Estou, por exem plo,
escrevendo estas palavras em uma m áquina que sim ula o
comportamento de uma máquina de escrever mecânica
antiquada6. Enquanto a simulação está em funcionam en­
to, o program a de edição de texto sim ula uma máquina
de escrever m elhor do que qualquer programa de IA que
conheço sim ula o cérebro. Porém, nenhuma pessoa sen­
sata vai pensar: “ Finalm ente compreendemos como as
máquinas de escrever funcionam ; são implementações
de programas de edição de texto.” Simplesmente não é o
caso, em geral, que simulações com putacionais propor­
cionem explanações causais dos fenômenos simulados.
31 2 A REDESCOBERTA DA MENTE

O que está acontecendo, então? Não supomos, em


geral, que as simulações computacionais de processos
cerebrais nos dêem alguma explanação no lugar de ou
além de explicações neurobiológicas sobre como o cére­
bro efetivam ente funciona. E em geral não usamos “ X é
uma simulação com putacional de F ” para designar uma
relação simétrica. Isto é, não supomos que, porque o com ­
putador sim ula uma máquina de escrever, então a m áqui­
na de escrever sim ula um computador. Não supomos que,
porque um programa m eteorológico sim ula um furacão,
logo a explanação causai do comportamento do furacão é
fornecida pelo programa. Então por que deveríamos abrir
uma exceção para esses postulados em que processos
cerebrais desconhecidos estão envolvidos? Há m otivos
satisfatórios quaisquer para abrir a exceção? E que espé­
cie de explanação causai é uma explanação que cita um
programa form al?
A q u i, creio eu, está a solução do nosso enigma.
Desde que você rem ova o hom únculo do sistema, você
fic a somente com um padrão de eventos ao qual alguém
de fora poderia a trib u ir uma interpretação com putacio­
nal. O único sentido em que a especificação do padrão
por si mesma fornece uma explanação causal é que, se
você sabe que um determ inado padrão existe num siste­
ma, sabe que uma ou outra causa é responsável pelo pa­
drão. Assim você pode, por exem plo, predizer estágios
posteriores a p a rtir de estágios anteriores. A lém disso, se
você já sabe que o sistema fo i programado por um ho­
m únculo exterior, pode dar explanações que façam refe­
rência à intencionalidade do hom únculo. Pode dizer, por
exem plo, que esta máquina se com porta desta form a por-
A CRÍTICA DA RAZÃO COGNITIVA 313

que está processando o v i. Isto é como explicar que este


liv ro in ic ia com as situações de fa m ilia s felizes e não
contém nenhum trecho longo sobre um grupo de irm ãos
porque é Anna K a ren ina , de Tolstói, e não Os irm ãos
Karam azov, de D ostoiévski. Mas você não pode explicar
um sistema físico como urna máquina de escrever ou um
cérebro apenas por id e n tifica r um padrão que ele com ­
p artilha com sua simulação com putacional, porque a
existência do padrão não explica como o sistema efetiva­
mente funciona como um sistema físico . N o caso da cog-
nição, o padrão é quando m uito um n íve l de abstração
alto demais para explicar tais eventos mentais (e portanto
físicos) concretos como a ocorrência de uma percepção
visual ou a compreensão de uma frase.
Em m inha opinião, não podemos explicar como
máquinas de escrever e furacões funcionam aludindo a
padrões form ais que com partilham com suas simulações
computacionais. Por que isto não é óbvio no caso do cé­
rebro?
Neste ponto, chegamos à segunda parte de nossa
solução do enigma. A o apresentar a ju stifica çã o para o
cognitivism o, estávamos supondo tácitam ente que o cé­
rebro podia estar im plem entando algoritm os para a cog-
nição, no mesmo sentido em que o com putador humano
de T uring e seu com putador mecânico im plem entam a l­
goritmos. Contudo, é exatamente esta suposição que vim os
ser equivocada. Para perceber isto, pergunte a você mes­
mo o que acontece quando um sistema im plem enta um
algoritm o. O com putador humano conscientemente exe­
cuta os passos do algoritm o, portanto o processo é tanto
causai como ló g ico : ló g ico porque o algoritm o fornece
31 4 A REDESCOBERTA DA MENTE

um conjunto de regras para a derivação dos sím bolos de


output a p a rtir dos símbolos de in p u t, e causal porque o
agente está fazendo um esforço consciente para executar
os passos. N o caso do computador mecánico, o conjunto
do sistema de funcionam ento in c lu i um hom únculo exte­
rio r, e, com o hom únculo, o sistema é tanto causal como
lógico: ló g ico porque o hom únculo dá uma interpretação
aos processos da m áquina, e causal porque o hardware
da máquina faz com que ela execute os processos. Porém
essas condições não podem ser satisfeitas pelas opera­
ções neurofisiológicas não-conscientes, brutas, cegas do
cérebro. N o com putador cerebral não há implementação
intencional consciente do algoritm o como há no com pu­
tador humano, mas tampouco pode haver qualquer im ­
plementação não-consciente como há no com putador
mecânico, porque isto requer um hom únculo exterior
para a trib u ir uma interpretação com putacional aos even­
tos físicos. O m áxim o que poderíamos encontrar no cére­
bro é um padrão de eventos que seja form alm ente sim ilar
ao program a im plem entado no com putador mecânico,
mas este padrão, como tal, não tem capacidades causais
que se considerem suas, e portanto não explica nada.
Em suma, o fato de a atribuição de sintaxe não iden­
tific a r capacidades causais adicionais é fa ta l para a
declaração de que programas proporcionam explanações
causais de cognição. Para analisar as conseqüências dis­
to, lembremo-nos daquilo com que se parecem efetiva­
mente as explanações cognitivistas. Explanações tais
como a descrição de Chomsky da sintaxe de línguas natu­
rais ou a explicação de M arr da visão começam pelo esta­
belecim ento de um conjunto de regras segundo as quais
A CRÍTICA DA RAZÃO COGNITIVA 315

um input sim bólico é convertido em um output sim b ó li­


co. N o caso de Chomsky, por exem plo, um único símbo­
lo input, S, é convertido em qualquer uma dentre um
núm ero potencialm ente in fin ito de sentenças através da
aplicação repetida de um conjunto de regras sintáticas.
N o caso de M arr, representações de um arranjo visual
bidim ensional são convertidas em “ descrições” tridim en­
sionais do mundo de acordo com determinados a lg o rit-
mos. A distinção tripa rtite de M a rr entre a tarefa compu­
tacional, a solução algorítm ica da tarefa e a im plem enta­
ção em hardware do algoritm o tornou-se (com o as dis­
tinções de N e w e ll) famosa como uma form ulação do
m odelo geral da explanação.
Se você interpreta essas explanações ingenuamente,
como eu, é m elhor pensar nelas enunciando que é exata­
mente como se um homem sozinho em um quarto esti­
vesse percorrendo um conjunto de passos de regras su­
cessivas para gerar sentenças em inglês ou descrições
3-D , como podia ser o caso. A gora, porém , perguntemos
quais fatos no mundo real se presume que correspondam
a essas explanações quando aplicadas ao cérebro. N o
caso de Chom sky, por exem plo, não se espera que pen­
semos que o agente execute conscientemente um con­
ju n to de repetidas aplicações de regras; nem se espera
que pensemos que ele esteja inconscientem ente encon­
trando, pela reflexão, seu cam inho através do conjunto
de regras. Antes, as regras são “ com putacionais” e o
cérebro está processando as computações. M as o que
isto significa? Bem , espera-se que pensemos que ele é
simplesm ente como um com putador com ercial. Supõe-
se que a espécie de coisa que corresponde à atribuição
316 A REDESCOBERTA DA MENTE

do mesmo conjunto de regras a um com putador com er­


cial corresponda à atribuição destas regras ao cérebro.
Porém, vim os que no com putador com ercial a atribuição
é fe ita relativam ente a um hom únculo que confere in te r­
pretações computacionais aos estados de hardware. Sem
o hom únculo, não há computação, apenas um circu ito
eletrônico. Portanto, como introduzim os a computação
no cérebro sem um hom únculo? A té onde sei, nem
Chomsky nem M a rr nunca consideraram a questão ou
nem sequer pensavam que houvesse uma questão seme­
lhante. Sem um hom únculo, porém, não há nenhum
poder explanatório para a postulação dos estados de pro­
grama. Há somente um mecanismo físico, o cérebro,
com seus diversos níveis de descrição causais físicos e
físicos/m entais reais.

Síntese da argumentação desta seção


A discussão nesta seção fo i mais p ro lixa do que eu
gostaria, mas creio quèTpossa ser rapidamente resumida
da seguinte form a:

O bjeção: O fato de explanações com putacionais serem


causais é simplesmente algo evidente. Por exemplo, com­
putadores pilotam aviões, e a explanação de como eles
fazem isto é dada em termos do programa. O que poderia
ser mais causal do que isto?

Contestação: O sentido em que o programa fornece uma


explanação causal é o seguinte. Há uma classe de equiva­
lência de sistemas físicos tal que os padrões nos sistemas
perm item que codifiquem os a inform ação em característi­
cas físicas intrínsecas do sistema, como níveis de volta-
A CRÍTICA DA RAZÃO COGNITIVA 317

gem, por exemplo. E esses padrões, juntamente com trans-


dutores nos term inais de input e output do sistema, possi­
bilitam -nos u tiliz a r qualquer m em bro dessa classe de
equivalência para p ilo ta r o avião. A universalidade dos
padrões fa c ilita as atribuições de interpretações com pu­
tacionais (não surpreendentemente, já que os padrões fo ­
ram comercialm ente projetados para esse propósito), mas
as interpretações são ainda não intrínsecas aos sistemas.
Na medida em que a explanação faz referência a um pro­
grama, ela requer um hom únculo.

Objeção: Sim , mas im agine que pudéssemos descobrir


tais padrões no cérebro? Tudo o que a ciência cognitiva
com putacional necessita é a ocorrência de tais padrões
intrínsecos.
A

Contestação: E claro que você pode descobrir tais pa­


drões. O cérebro tem mais padrões do que qualquer pes­
soa necessita. fcN o entanto, ainda que impuséssemos os
padrões através da determinação das conexões causais
apropriadas e dos conseqüentes contrafactuais, a desco­
berta do padrão ainda não explicaria o que estamos ten­
tando explicar. Não estamos tentando descobrir como
um hom únculo exterior poderia co nfe rir uma interpreta­
ção com putacional a processos cerebrais. Antes, estamos
tentando explicar a ocorrência de fenômenos biológicos
concretos, como a compreensão consciente de uma sen­
tença ou a experiência visual consciente de uma cena.
Esta explanação exige uma compreensão dos processos
físicos brutos que produzem os fenômenos.
318 A REDESCOBERTA DA MENTE

V III. Q uarta d ificu lda d e: o cérebro não realiza


processamento de informações

Nesta seção, volto-m e finalm ente para aquilo que


penso ser, sob certos aspectos, o tema central de tudo isso,
o tema do processamento de informações. M uitas pessoas
dentro do padrão científico da “ ciência cognitiva” consi­
derarão que m uito de m inha discussão é simplesmente
irrelevante, e argumentarão contra ela do seguinte modo:

Há uma diferença entre o cérebro e todos os outros


sistemas que você esteve descrevendo, e esta diferença
explica por que uma simulação com putacional, no caso
dos outros sistemas, é uma mera simulação, ao passo que
no caso do cérebro uma simulação com putacional é efe ti­
vamente reproduzir e não meramente uma modelização
das propriedades funcionais do cérebro. A razão é que o
cérebro, diferentemente desses outros sistemas, é um sis­
tema de processamento de informações. E este fato acerca
do cérebro é, em suas palavras, “ intrínseco” . É simples­
mente um fato da biologia que o cérebro atua no proces­
samento de inform ações, e, como podemos da mesma
form a processar as mesmas informações com putacional-
mente, os modelos com putacionais de processos cere­
brais têm um papel completamente diferente dos modelos
computacionais m eteorológicos, por exemplo.
Portanto, há um tema de pesquisa bem definido: os
procedimentos com putacionais através dos quais o cére­
bro processa informações são iguais aos procedimentos
através dos quais os computadores processam as mesmas
informações?
A CRÍTICA DA RAZÃO COGNITIVA 319

O que há pouco eu im aginava o u vir um oponente


dizer incorpora um dos piores equívocos na ciência cog­
n itiva . O equívoco é supor que, no sentido em que com ­
putadores são empregados para processar informações, os
cérebros igualm ente processam informações. Para perce­
ber que isto é um equívoco, contraste o que acontece no
computador com o que acontece no cérebro. N o caso do
computador, um agente exterior codifica algumas in fo r­
mações de uma form a que possa ser processada pelos c ir­
cuitos do computador. Isto é, ele fornece uma concepção
sintática das informações que o computador possa im ple­
mentar, por exemplo, em níveis diferentes de voltagem. O
computador então percorre uma série de etapas elétricas
que o agente exterior pode interpretar tanto sintática como
semánticamente, embora, logicamente, o hardware não
tenha sintaxe ou semântica intrínseca: fica tudo a critério
do observador. E a física não im porta, contanto apenas que
você possa fazer com que o computador implem ente o
algoritm o. Finalmente, um output é produzido na form a de
fenômenos físicos; por exemplo, uma impressão em papel,
que um observador pode interpretar como símbolos por
m eio de uma sintaxe e uma semântica.
Agora, porém , contraste isso com o cérebro. N o ca­
so do cérebro, nenhum dos processos neurobiológicos
relevantes é re la tivo ao observador (embora, logicam en­
te, como qualquer coisa, possam ser descritos a p a rtir de
um ponto de vista relativo ao observador), e a especifici­
dade da n eurofisiologia im porta desesperadamente. Para
tom ar clara essa diferença, desenvolvamos um exemplo.
Suponha que eu veja um carro vindo em m inha direção.
U m m odelo com putacional padrão de visão assim ilará
320 A REDESCOBERTA DA MENTE

inform ações sobre o arranjo visual em m inha retina e


subseqüentemente im p rim irá a sentença: “ Há um carro
vindo em m inha direção.” Mas não é isto o que acontece
na biologia efetiva. Na b iologia, uma série concreta e es­
pecífica de reações eletroquím icas é estabelecida pelo
ataque dos fótons contra as células fotorreceptoras de
m inha retina, e todo esse processo conseqüentemente re­
sulta em uma experiência visual concreta. A realidade
bio lóg ica não é aquela de um punhado de palavras ou
símbolos sendo produzidos pelo aparelho visual; antes, é
uma questão de um específico evento visual consciente
concreto - exatamente esta experiência visual. Este
evento visual concreto é tão específico e tão concreto
quanto um furacão ou a digestão de uma refeição.
Podemos, com o computador, cria r um m odelo de pro­
cessamento de inform ações desse evento ou de sua pro­
dução, da mesma form a como podemos cria r um modelo
de processamento de inform ações da m eteorologia, da
digestão ou de qualquer outro fenômeno, mas os fenôme­
nos mesmos não são em conseqüência disto sistemas de
processamento de inform ações.
Em resumo, o sentido de processamento de inform a­
ções que é usado na ciência co gn itiva é, quando m uito,
um n íve l m uito alto de abstração para apreender a re a li­
dade biológica concreta da intencionalidade intrínseca.
A “ inform ação” no cérebro é sempre específica para uma
a

ou outra m odalidade. E específica para pensamento, ou


visão, ou audição, ou tato, por exem plo. O nível de pro­
cessamento de inform ações descrito nos modelos com ­
putacionais de cognição da ciência cognitiva, por outro
lado, é simplesmente uma questão de obter uma série de
A CRÍTICA DA RAZÃO COGNITIVA 321

símbolos como output em resposta a uma série de símbo­


los como inp u t.
Ficam os cegos a essa diferença pelo fato de a sen­
tença “ Vejo um carro vindo em m inha direção” poder ser
usada para registrar tanto a intencionalidade visual como
o output de um m odelo com putacional de visão. Porém,
isto não deveria obscurecer o fato de que a experiência
visual é um evento consciente concreto, e é produzida no
cérebro por processos biológicos eletroquím icos especí­
ficos. C onfundir esses eventos e processos com m anipu­
lação fo rm a l de sím bolos é confundir a realidade com o
modelo. O resultado fin a l desta parte da discussão é que,
no sentido de “ inform ação” empregado na ciência cogni­
tiva, é simplesmente falso dizer que o cérebro é um d is­
positivo de processamento de informações.

IX . Síntese da argumentação

1. Segundo a definição didática padrão, a com puta­


ção é definida sintaticam ente em termos de m anipulação
de símbolos.
2. Mas sintaxe e símbolos não são definidos em ter­
mos da física. Em bora os sinais sim bólicos sejam sempre
ocorrências físicas, “ sím bolo” e “ sím bolo idê n tico ” não
são definidos em termos de características físicas. A sin­
taxe, em resumo, não é intrínseca à física.
3. Isto tem como conseqüência que a computação
não é encontrada na física, é atribuída a ela. D eterm i­
nados fenômenos físicos são empregados ou program a­
dos ou interpretados sintaticamente. Sintaxe e símbolos
são relativos ao observador.
322 A REDESCOBERTA DA MENTE

4. Deduz-se que você não poderia descobrir que o


cérebro ou qualquer outra coisa fosse intrinsecam ente
um com putador d ig ita l, embora pudesse co n fe rir uma
interpretação com putacional a ele, como poderia a qual­
quer outra coisa. A questão não é que a afirm ação: “ O
cérebro é um com putador d ig ita l” seja simplesmente fa l­
sa. M ais exatamente, ela não se eleva ao nível da falsida­
de. Não tem um sentido nítido. A pergunta: “ O cérebro é
um com putador d ig ita l? ” está m al definida. Se se per­
gunta: “ Podemos a trib u ir uma interpretação com putacio­
nal ao cérebro?” , a resposta é trivialm ente sim , porque
podemos a trib u ir uma interpretação com putacional a
qualquer coisa. Se se pergunta: “ Processos cerebrais são
intrinsecam ente com putacionais?” , a resposta é triv ia l­
mente não, porque nada é intrinsecamente computacional,
exceto, naturalm ente, agentes conscientes intencional­
mente efetuando computações.
5. Alguns sistemas físicos fa cilita m a utilização
com putacional m uito m ais que outros. E por isso que os
construím os, programamos e utilizam os. Em tais casos,
somos o hom únculo no sistema interpretando a física em
termos tanto sintáticos como semânticos.
6. Contudo, as explanações causais que então forne­
cemos não m encionam propriedades causais diferentes
da física da implem entação e da intencionalidade do ho­
múnculo.
7. A form a padrão, embora tácita, de livrar-se disso
é cometer a falácia do hom únculo. A falácia do hom ún­
culo é endêmica nos m odelos com putacionais de cogni-
ção, e não pode ser elim inada por argumentos clássicos
de decomposição recursiva. Eles são direcionados a uma
questão diferente.
A CRÍTICA DA RAZÃO COGNITIVA 323

8. Não podemos evitar as conseqüências preceden­


tes supondo que o cérebro esteja executando “ processa­
mento de inform ações” . O cérebro, no que diz respeito a
suas operações intrínsecas, não realiza nenhum processa­
mento de inform ações. É um órgão b io ló g ico específico
e seus processos neurobiológicos específicos causam
form as específicas de intencionalidade. N o cérebro, in ­
trinsecamente, há processos neurobiológicos, e às vezes
eles causam consciência. Mas isso é tudo. Todas as ou­
tras atribuições mentais são quer disposicionais, como
quando atribuím os estados inconscientes ao agente, quer
relativas ao observador, como quando atribuím os uma
interpretação com putacional a seus processos cerebrais.
C A P ÍT U LO 10
O ESTUDO PROPRIAMENTE DITO

I. Introdução: mente e natureza

Em qualquer liv ro sobre a filo s o fia da mente, o au­


tor, explícita ou im plicitam ente, tem uma visão global da
mente e de sua relação com o resto do mundo natural. O
le ito r que acompanhou m inha argumentação até agora
não terá dificuldade em reconhecer m inha visão. Vejo o
cérebro humano como um órgão como qualquer outro,
como um sistema b io lóg ico. Sua característica especial,
no que diz respeito à mente, a característica na qual d ife ­
re notavelmente de outros órgãos biológicos, é sua capa­
cidade de p ro du zir e sustentar toda a enorme m u ltip lic i­
dade de nossa consciência de vid a 1. Por consciência não
quero dizer a subjetividade passiva da tradição cartesia­
na, mas todas as form as de nossa vida consciente - desde
os famosos “ quatro f f ” de fig h tin g (lu ta ), fle e in g (fuga),
feeding (alim entação) e fo rn ic a tin g (fom icação)*, até d i-

* No original, “fo u rfs ” , ou seja: “fighting, fleeing, feeding, and fo r­


nicating” . (N. do R..)
326 A REDESCOBERTA DA MENTE

rig ir carros, escrever livro s e coçar nossas coceiras. To­


dos os processos que consideramos especialmente men­
tais - sejam eles percepção, aprendizado, inferência, to­
m ar decisões, resolver problemas, emoções etc. - são, de
uma form a ou de outra, crucialm ente relacionados à cons­
ciência. A lém disso, todas aquelas características im por­
tantes que os filósofos consideravam específicas da men­
te são igualm ente dependentes da consciência: su b je tivi­
dade, intencionalidade, racionalidade, livre -a rb ítrio (se é
que tal coisa existe) e causação mental. M ais do que qual­
quer outra coisa, é o desprezo pela consciência que e xpli­
ca tanta aridez e esterilidade na psicologia, na filo s o fia da
mente e na ciência cognitiva.
O estudo da mente é o estudo da consciência, exata-
mente no mesmo sentido em que a biologia é o estudo da
vida. Logicam ente, os biólogos não precisam estar cons­
tantemente ponderando sobre a vida, e na verdade a m aior
parte das obras sobre b io lo g ia não precisam nem sequer
fazer uso do conceito de vida. Entretanto, ninguém em
seu ju ízo perfeito nega que os fenômenos estudados em
b io log ia sejam form as de vida. Ora, de maneira seme­
lhante, o estudo da mente é o estudo da consciência,
embora possamos não fazer explícitam ente nenhuma
menção à consciência quando estamos realizando um
estudo de inferência, percepção, tomada de decisões,
solução de problemas, mem ória, atos de fala etc.
Ninguém pode nem deveria tentar predizer ou decre­
tar o futuro da pesquisa, seja em filo so fia , ciência ou
outras disciplinas. Novos conhecimentos vão nos sur­
preender, e uma das surpresas que deveríamos esperar é
que os avanços no conhecimento não nos fornecerão ape-
0 ESTUDO PROPRIAMENTE DITO 327

nas novas explanações, mas novas form as de explana­


ção. N o passado, por exem plo, a revolução darw iniana
produziu um novo tip o de explanação, e acredito que não
compreendemos totalm ente sua im portância para nossa
situação atual.
Neste capítulo fin a l, quero explorar algumas das
conseqüências da postura filosó fica geral que venho advo­
gando para o estudo da mente. Começo por uma discus­
são do p rin cíp io da conexão e suas im plicações.

II. A inversão da explanação

Creio que o princípio da conexão tem algumas con­


seqüências bastante notáveis. Dem onstrarei que muitas
de nossas explanações na ciência cognitiva carecem da
força explanatória que pensávamos que tinham . Para res­
gatar o que pode ser salvo delas, teremos que realizar, em
sua estrutura lógica, uma inversão análoga àquela que os
modelos darwinianos de explanação biológica impuseram
à p rim itiv a b iologia teleológica que precedeu D arw in.
Em nossos crânios há apenas o cérebro com toda a
sua complexidade, e a consciência com todo o seu co lo ri­
do e diversidade. O cérebro produz os estados conscien­
tes que estão ocorrendo em você e em m im neste exato
momento, e tem a capacidade de produzir m uitos outros
que não estão ocorrendo neste mesmo lapso de tempo.
Mas isto é tudo. N o que diz respeito à mente, este é o fim
da história. Há processos neurofisiológicos brutos, obscu­
ros, e há consciência, mas não há nada jn a is. Se estamos
procurando fenômenos que sejam intrínsecamente inten-
328 A REDESCOBERTA DA MENTE

cionais mas em prin cípio inacessíveis à consciência, não


há nada lá: nenhuma observância de regra, nenhum pro­
cessamento m ental de inform ações, nem inferências
inconscientes, nem modelos mentais, nem esboços o rig i-
nais, nem imagens em duas dimensões e meia, nem des­
crições tridim ensionais, nem linguagem do pensamento
e nem gramática universal. N o que se segue, demonstra­
re i que o argumento co g n itivista integral que postula
todos esses fenômenos mentais inacessíveis é baseado
numa concepção pré-darw iniana da função do cérebro.
Considere o caso das plantas e as conseqüências da
revolução darw iniana sobre o aparato explanatório que
utilizam os para explicar o comportamento vegetal. Antes
de D arw in, era comum antropom orfizar o comportamen­
to vegetal e dizer coisas como “ a planta vira suas folhas
para o sol para ajudar em sua sobrevivência” . A planta
“ quer” sobreviver e florescer, e “ para fazer isto” busca o
sol. Segundo esta concepção pré-darw iniana supunha-se
haver um nível de intencionalidade no comportamento da
planta. Este nível de suposta intencionalidade fo i então
substituído por outros dois níveis de explanação, um
nível de “ hardware” e um nível “ funcional” . No nível de
hardw are, descobrimos que os m ovim entos reais das fo ­
lhas da planta na busca do sol são causados pela secreção
de um horm ônio específico, auxina. Secreções variáveis
de auxina explicam o comportamento da planta, sem ne­
nhuma hipótese adicional de propósito, teleologia ou
intencionalidade. Observe, além disso, que esse compor­
tamento desempenha um papel crucial na sobrevivência
da planta; portanto, no nível funcional podemos dizer coi­
sas como “ o comportamento vegetal de busca da luz tra­
balha para auxilia r a planta a sobreviver e reproduzir-se” .
0 ESTUDO PROPRIAMENTE DITO 329

A explanação intencionalista o rig in a l do com porta­


mento vegetal m ostrou-se falsa, mas não era com pleta­
mente falsa. Se nos livram os da intencionalidade e in ve r­
temos a ordem da explanação, a afirm ação intencionalis­
ta surge como que tentando dizer algo verdadeiro. A fim
de que o que aconteceu fique absolutamente claro, quero
m ostrar como, ao substituir a explanação intencionalista
o rig in a l por uma combinação da explanação mecânica
baseada no hardw are e uma explanação fu n cio n a l, esta­
mos invertendo a estrutura explanatória da explanação
intencionalista orig in a l.

a. A explanação intencionalista original:


Porque quer sobreviver, a planta vira suas folhas na dire­
ção do sol.
ou
A fim de sobreviver, a planta vira suas folhas na direção do
sol.
b. A explanação mecânica baseada no hardware:
Secreções variáveis de auxina fazem com que as plantas
virem suas folhas para o sol.
c. A explanação funcional:
Plantas que viram suas folhas para o sol têm mais proba­
bilidade de sobreviver do que plantas que não fazem isto.

Em (a) a form a da explanação é teleológica. A re­


presentação da finalidade, isto é, sobrevivência, fu n cio ­
na como a causa do comportamento, a saber, v ira r na d i­
reção do sol. Porém em (c) a teleologia é suprim ida e o
comportamento que agora, conform e (b), tem uma expla­
nação mecânica causa o fato bruto da sobrevivência, o
qual é agora não mais uma finalidade, mas apenas um
efeito que simplesmente ocorre.
330 A REDESCOBERTA DA MENTE

A lição que vou tira r posteriormente de toda essa dis­


cussão pode ser apresentada agora, pelo menos numa fo r­
ma prelim inar: no que diz respeito a processos não-cons-
cientes, estamos ainda antropom orfizando o cérebro da
mesma m aneira que estávamos antropom orfizando as
s

plantas antes da revolução de D a rw in . E fá c il perceber


por que cometemos o erro de antropom orfizar o cérebro
- afinal de contas, o cérebro é a sede do anthropos. Não
obstante, é um erro a trib u ir um ampio conjunto de fenó­
menos intencionais a um sistema no qual os requisitos
para esta atribuição estão sendo desrespeitados. D o mes­
mo modo que a planta não tem estados intencionais porque
não preenche as condições para ter estados intencionais,
assim aqueles processos cerebrais que são em princípio
inacessíveis à consciência não têm intencionalidade, por­
que não preenchem as condições para ter intencionalida­
de. Quando conferim os intencionalidade a processos no
cérebro que são em p rin cíp io inacessíveis à consciência,
o que dizemos é ou m etafórico - como no caso de a tri­
buições metafóricas de estados mentais à plantas - ou fa l­
so. Atribuições de intencionalidade a plantas seriam falsas
se as tomássemos literalm ente. Mas note que não são
completamente falsas; estão tentando dizer algo verda­
deiro, e para alcançar o que é verdadeiro nelas temos que
inverter m uitas das explanações da ciência cognitiva,
como fizem os na b io lo g ia vegetal.
Para form ular esta tese detalhadamente, teremos que
apreciar alguns casos específicos. Iniciarei com teorias da
percepção, e depois passarei para teorias da linguagem para
mostrar com o que poderia parecer uma ciência cognitiva
que respeitasse os fatos do cérebro e os fatos da consciência.
0 ESTUDO PROPRIAMENTE DITO 331

Irv in R ock conclui seu excelente liv ro sobre percep­


ção (Rock, 1984) com as seguintes observações: “ Embora
a percepção seja autônoma em relação a faculdades men­
tais superiores tais como são exibidas no pensamento
consciente e no uso do conhecimento consciente, susten­
taria ainda que é inteligente. A o q u a lifica r a percepção
como ‘inteligente’ , pretendo dizer que é baseada em pro­
cessos mentais semelhantes ao pensamento, como des­
crição, inferência e solução de problemas, embora esses
processos sejam rápidos, inconscientes e não-verbais. (...)
‘Inferência’ im p lica que determinadas propriedades per­
ceptivas são computadas a p a rtir de inform ações senso-
ria is dadas, através do uso de regras inconscientem ente
sabidas. Por exem plo, o tamanho percebido é in fe rid o a
p a rtir do ângulo visual do objeto, de sua distância perce­
bida e da le i da ótica geom étrica que relaciona o ângulo
visual à distância do objeto” (p. 234).
Mas então, a títu lo de exemplo, apliquemos esta tese
à explanação da ilusão de Ponzo.
332 A REDESCOBERTA DA MENTE

Embora as duas linhas paralelas sejam iguais em


comprim ento, a de cim a parece maior. Por quê? De acordo
com a explanação clássica, o agente está inconscientemen­
te seguindo duas regras e fazendo duas inferências incons­
cientes. A prim eira regra é que linhas convergentes de
baixo para cim a no campo visual sugerem distância m aior
na direção da convergência, e a segunda é que objetos que
ocupam porções iguais da imagem da retina variam em
tamanho percebido, dependendo da distância percebida a
partir do observador (le i de Emmert). Segundo esta e xpli­
cação, o agente inconscientemente infere que a linha para­
lela superior está mais longe por causa de sua posição em
relação às linhas convergentes, e, em segundo lugar, infere
que a linha de cim a é m aior porque está mais longe.
Portanto, há duas regras e duas inferências inconscientes,
das quais nenhuma operação é acessível à consciência nem
sequer em princípio. Deve-se salientar que esta explanação
é controversa, e que há muitas objeções a ela (ver Rock,
1984, pp. 156 ss.). I$as a questão aqui é que a fo rm a da
explanação não é contestada, e é isto o que estou contestan­
do agora. Estou interessado nesse tipo de explanação, não
apenas nos detalhes desse exemplo.
Não há m eio pelo qual esse tip o de explanação pos­
sa se tom ar com patível com o princípio da conexão. Você
pode perceber isto se perguntar a si mesmo: “ Que fatos
do cérebro se espera que correspondam à atribuição de
todos esses processos mentais inconscientes?” Sabemos
que há experiências visuais conscientes, e sabemos que
são causadas por processos cerebrais, mas onde se supõe
que esteja o nível m ental adicional neste caso? Na verda­
de, esse exem plo é de qualquer modo m uito d ifíc il de
O ESTUDO PROPRIAMENTE DITO 333

interpretar literalm ente sem um hom únculo: estamos


postulando operações lógicas executadas sobre imagens
retinianas, mas quem se presume estar executando estas
operações? Um a inspeção rigorosa revela que, em sua
form a mesma, essa explanação está antropom orfizando
os processos não-conscientes do cérebro da mesma m a­
neira que as explanações pré-darwinianas do com porta­
mento vegetal antropomorfizavam as operações não-cons­
cientes da planta.
O problem a não é, como às vezes se alega, que care­
çamos de evidência em pírica suficiente para a postulação
de processos mentais que sejam em p rin cíp io inacessí­
veis à consciência; antes, não está de modo algum claro
o que se supõe que a postulação signifique. Não pode­
mos tom á-la coerente com o que sabemos sobre a nature­
za de estados mentais e com o que sabemos sobre o fun­
cionamento do cérebro. Pensamos, em nossa patética igno­
rância do funcionam ento do cérebro, que algum dia uma
avançada ciência do cérebro situará todos esses proces­
sos inteligentes inconscientes para nós. Mas você tem
somente que im aginar os detalhes de uma ciência perfei­
ta do cérebro para perceber que, ainda que tivéssemos tal
ciência, não poderia haver nenhum lugar nela para a pos­
tulação de tais processos. Uma perfeita ciência do cére­
bro seria exposta em vocabulário n eurofisiológico (i.e.,
de “ hardw are” ). H averia diversos níveis de hardware de
descrição, e, do mesmo modo que com a planta, haveria
também níveis funcionais de descrição. Estes níveis fu n ­
cionais ide n tificariam aquelas características do hardw a­
re que consideramos interessantes da mesma form a que
nossas descrições funcionais da planta identificam aque-
h

334 A REDESCOBERTA DA MENTE

las operações de hardware pelas quais temos interesse.


Mas, exatamente como a planta nada sabe de sobrevi­
vência, assim as operações não-conscientes do cérebro
não sabem nada de inferência e obediência a regras, nem
de avaliações de tamanho e distância. A tribuím os estas
funções ao hardw are de acordo com nossos interesses,
< mas não há fatos mentais adicionais envolvidos nas a tri­
buições funcionais.
<,
A diferença crucial entre o cérebro, de um lado, e a
*■
planta, do outro, é esta: o cérebro tem um nível de descri­
ção intrínsecam ente m ental porque em qualquer ponto
dado está causando eventos conscientes reais, e é capaz
de causar eventos conscientes adicionais. Porque o cére­
ÜJ bro tem estados mentais tanto conscientes como incons­
cn
:S cientes, somos também inclinados a supor que no cére­
bro existam estados mentais intrínsecamente inacessíveis
à consciência. Mas esta tese é incom patível com o p rin ­
cípio da conexão, e precisamos fazer, aqui, a mesma
inversão da explanação que fizem os nas explanações do
com portam ento da planta. Em lugar de dizer: “ Percebe­
mos a linha de cim a como m aior porque estamos incons­
cientemente seguindo duas regras e fazendo duas in fe ­
rências ” , deveríamos dizer: “ Conscientemente percebe­
mos a linha de cim a como mais distante e m aior.” Ponto
fin a l. F im da versão intencionalista.
Da mesma form a que no caso da planta, há uma ver­
são funcional e uma versão mecânica (amplamente conhe­
cida) baseada no hardware. O cérebro funciona de tal
form a que as linhas convergentes no alto parecem estar
afastando-se de nós na direção da convergência, e os obje­
tos que produzem imagens retinianas de mesmo tamanho
0 ESTUDO PROPRIAMENTE DITO 335

parecerão d ife rir em tamanho se forem percebidos como


estando a distâncias diferentes de nós. Porém não há ne­
nhum conteúdo mental neste nível funcional. Em tais
casos, o sistema trabalha para causar determinados tipos
de intencionalidade consciente, mas a causação não é,
ela mesma, intencional. E a questão, repetindo, não é que
a atribuição de intencionalidade profundam ente incons­
ciente seja insuficientem ente sustentada por evidência
em pírica, mas que não se pode tom á-la coerente com o
que já sabemos ser o caso.
“ Bem ” , você podia dizer, “ a distinção não faz real­
mente m uita diferença para a ciência cognitiva. Con­
tinuamos a dizer o que sempre temos dito e a fazer o que
sempre temos fe ito ; simplesmente colocamos a palavra
‘fu n cio n a l’ no lugar da palavra ‘m ental’ nesses casos.
Esta é uma substituição que, de qualquer m aneira, m u i­
tos de nós vínhamos fazendo inconscientem ente, assim
como m uitos de nós tendemos a empregar essas palavras
de form a intercam biável.”
Penso que a afirm ação que estou fazendo tem real­
mente im plicações im portantes para a pesquisa na ciên­
cia cognitiva, porque ao inverterm os a ordem da expla­
nação obtemos uma exposição diferente das relações de
causa-e-efeito, e, ao fazê-lo, alteramos radicalm ente a es­
trutura da explanação psicológica. N o que se segue, tenho
dois objetivos: quero desenvolver a afirm ação in ic ia l de
que a ciência cognitiva requer uma inversão da explana­
ção comparável à inversão consumada pela b io lo g ia evo­
lutiva, e quero apresentar algumas das conseqüências
que esta inversão determ inaria na condução de nossa pes­
quisa.
33 6 A REDESCOBERTA DA MENTE

Creio que o erro persiste principalm ente porque, no


caso do cérebro, carecemos de explanações baseadas no
hardw are, do tipo da auxina. Quero explicar a inversão
num caso em que realmente temos algo como uma expla­
nação de hardw are. Quem quer que tenha visto vídeos
amadores film ados em um carro em m ovim ento fica im ­
pressionado pelo tanto que o mundo balança ao redor no
film e mais do que na vida real. Por qué? Im agine que
você está d irig in d o em urna estrada esburacada. Cons­
cientemente, você mantém os olhos fixo s na estrada e no
tráfego ainda que o carro e seus conteúdos, incluindo seu
corpo, estejam balançando para todos os lados. A lé m de
seus esforços conscientes para manter o olho na estrada,
algo mais está acontecendo inconscientemente: seus glo­
bos oculares estão incessantemente movendo-se dentro
de suas órbitas, de form a a p e rm itir que você continue a
focalizar a estrada. Você pode testar o experim ento agora
mesmo, simplesmente focalizando a página à sua frente
e sacudindo sua cabeça de um lado para o outro e para
cim a e para baixo.
N o caso do carro, é tentador pensar que estamos
obedecendo a uma regra inconsciente. Um a prim eira
aproximação desta regra seria: m ovim ente os globos
oculares nas órbitas relativam ente ao resto da cabeça de
form a a manter a visão focalizada no objeto pretendido.
Note que os prognósticos desta regra são não-triviais.
Uma outra form a de fazer isto teria sido manter os olhos
fixo s em suas órbitas e m over a cabeça, e realmente
alguns pássaros mantêm a estabilidade da retina desse
modo. (Se uma coruja pudesse d irig ir, teria que fazer
desta form a, já que suas órbitas são fixas.) Temos, por­
tanto, dois níveis de intencionalidade:
0 ESTUDO PROPRIAMENTE DITO 337

Uma intenção consciente: mantenha sua atenção v i­


sual na estrada.
Um a regra profundamente inconsciente: movim ente
os globos oculares em relação às órbitas de form a igual e
oposta aos m ovim entos da cabeça para manter a imagem
retiniana estável.

Neste caso o resultado é consciente, embora os meios


para a tin g i-lo sejam inconscientes. Porém, o aspecto in ­
consciente tem todos os sinais de comportamento in te li-
a
gente. E com plexo, versátil, direcionado a um objetivo,
envolve processamento de inform ações e tem uma capa­
cidade gerativa potencialm ente in fin ita . Isto é, o sistema
recebe informações sobre m ovim entos corporais e im p ri­
me instruções para movimentos dos globos oculares, sem
lim ite sobre o número de combinações possíveis de m ovi­
mentos dos globos oculares que o sistema pode gerar.
A lém disso, o sistema pode aprender porque a regra pode
ser sistematicamente m odificada através da colocação de
óculos de aumento ou de redução no agente. E, sem m uita
dificuldade, alguém poderia expor qualquer relato clássi­
co de ciência cognitiva sobre o comportamento incons­
ciente: um relato sobre processamento de inform ações, a
linguagem do pensamento e programas de computador,
apenas para cita r exemplos óbvios. A títu lo de exercício,
deixo a cargo do le ito r a form ulação da descrição segun­
do seu paradigma favorito da ciência cognitiva.
O problem a, porém, é que todas essas descrições são
falsas. O que efetivam ente acontece é que m ovim entos
de flu id o s nos canais sem icirculares do ouvido interno
acionam uma seqüência de descargas de neurônios que
338 A REDESCOBERTA DA MENTE

penetram no cérebro através do oitavo nervo craniano.


Esses sinais percorrem dois caminhos paralelos, um dos
quais pode “ aprender” , e o outro não. Os caminhos ficam
no pedúnculo cerebral e cerebelo, e convertem os inputs
iniciais para proporcionar “ comandos” de output motores,
via neurônios motores que fazem a conexão com os mús­
culos dos olhos e causam os movimentos do globo ocular.
Todo o sistema contém mecanismos dc feedback para cor­
reção de erros. É denominado reflexo ocular vestibular
(R O V )2. O mecanismo de hardware efetivo do R O V não
tem mais intencionalidade ou inteligência do que o m ovi­
mento das folhas das plantas devido à secreção de auxina.
A impressão de que há uma regra inconsciente sendo se­
guida, processamento inconsciente de informações, etc. é
uma ilusão de ótica. Todas as atribuições intencionais são
como-se. Portanto, aqui está de que form a ocorre a inver­
são da explanação. Em lugar de dizer:

Intencional: para m anter m inha imagem retiniana


estável, e assim aperfeiçoar m inha visão enquanto minha
cabeça está se m exelido, obedeço à regra profundamente
inconsciente do m ovim ento do globo ocular.

Deveríamos dizer:

Hardware: quando olho para um objeto enquanto m i­


nha cabeça está em m ovim ento, o mecanismo de hardwa­
re do R O V m ovim enta meus globos oculares.
Funcional: o funcionam ento do R O V mantém a im a­
gem retiniana estável, e isso aperfeiçoa m inha visão.
0 ESTUDO PROPRIAMENTE DITO 339

P or que esta mudança é tão im portante? Em expla­


nações científicas, estamos característicamente tentando
dizer exatamente o que causa o quê. Nos paradigmas tra ­
dicionais da ciência cognitiva, imagina-se haver uma cau­
sa m ental profundam ente inconsciente que se presume
produzir um efeito desejado, como apreciações perceptivas
ou sentenças gram aticais, por exemplo. Porém a inversão
elim ina completamente esta causa m ental. Não há nada
lá, exceto um mecanismo físico bruto que produz um
efeito físico bruto. Esses mecanismos e efeitos são des-
critíveis em níveis diferentes, nenhum dos quais é até
aqui m ental. O aparato do R O V trabalha para m elhorar a
eficiência visual, mas a única intencionalidade é a per­
cepção consciente do objeto. Todo o resto do trabalho é
realizado pelo mecanismo físico bruto do ROV. Portanto,
a inversão altera radicalm ente a ontologia da explanação
na ciência cognitiva, elim inando todo um nível de causas
psicológicas profundam ente inconscientes. O elemento
norm ativo que se supunha estar dentro do sistema em
virtude de seu conteúdo psicológico agora volta a entrar
em cena quando um agente consciente e xterior ao meca­
nismo fa z avaliações sobre seu funcionam ento. Para es­
clarecer este ú ltim o ponto, preciso dizer m ais sobre as
explanações funcionais.

III. A lógica de explanações fu ncio na is

Pode parecer que estou sugerindo que existam, de


form a não-problem ática, três níveis diferentes de expla­
nação - de hardware, funcional e intencional - , e que, on-
340 A REDESCOBERTA DA MENTE

de estão envolvidos processos profundam ente incons­


cientes, deveríamos simplesmente substituir a inten cio ­
nal pelas explanações de hardware e funcional. Na re a li­
dade, porém, a situação é um pouco mais com plicada.
Onde estão envolvidas explanações funcionais, a m etá­
fo ra dos níveis é um tanto enganadora, porque sugere
que haja um n ível funcional isolado diferente dos níveis
causais. Isto não é verdadeiro. O suposto “ nível funcionar’
não é um n ível separado de modo algum, mas tão-
somente um dos níveis causais descrito em termos de
nossos interesses. Onde artefatos e indivíduos biológicos
estão envolvidos, nossos interesses são tão óbvios que
podem parecer inevitáveis, e o nível funcional pode
parecer intrínseco ao sistema. A fin a l, quem poderia
negar, por exem plo, que o coração tem como função
bombear sangue? Porém lembre-se de que, quando dize­
mos que o coração tem como função bombear sangue, os
únicos fatos em questão são que o coração realmente
bombeia sangue; este fato é im portante para nós, e é cau­
salmente relacionado a m ilhões de outros fatos que tam ­
bém são importantes para nós, como o fato de que o bom-
beamento de sangue é necessário para que permaneçamos
vivos. Se a única coisa que nos interessasse sobre o cora­
ção fosse o fato de ele fazer um barulho palpitante ou de
exercer atração gravitacional sobre a Lua, teríamos uma
concepção completamente diferente de seu “ funcionamen­
to” , e correspondentemente, por exemplo, das doenças do
coração. Para expressar a questão claramente, além de
suas várias relações causais, o coração não tem nenhuma
função. Quando falamos de suas funções, estamos falando
sobre aquelas de suas relações causais às quais atribuímos
0 ESTUDO PROPRIAMENTE DITO 341

algum va lo r norm ativo. Portanto, a elim inação do nível


profundam ente inconsciente determ ina duas m o d ifica ­
ções im portantes: suprim e todo um n íve l de causação
psicológica e transfere o componente norm ativo do me­
canismo para a apreciação do observador do mecanismo.
Observe, por exem plo, o vocabulário norm ativo que L is-
berger u tiliz a para caracterizar a função do ROV: “ A fu n ­
ção do R O V é estabilizar as imagens retinianas através
da geração de m ovim entos oculares suaves que sejam
iguais e opostos a cada m ovim ento da cabeça” . A lém
disso, “ um R O V acurado é im portante porque precisa­
mos de imagens retinianas estáveis para uma boa visão”
(Lisberger, 1988, pp. 728-729).
O n ível intencional, por outro lado, difere de níveis
funcionais não-intencionais. Em bora ambos sejam cau­
sais, as características causais da intencionalidade in trín ­
seca com binam o causai com o norm ativo. Os fenôm e­
nos intencionais, como a observância de regras e a ação
segundo desejos e crenças, são genuinamente fenômenos
causais; mas, assim como os fenômenos intencionais, são
essencialmente relacionados a fenômenos norm ativos
como verdade e falsidade, sucesso e fracasso, consistência
e inconsistência, racionalidade, ilusão e condições de sa­
tisfação em geral3. Em resumo, as ocorrências efetivas de
intencionalidade contêm elementos norm ativos, mas, nos
casos que dizem respeito às explanações funcionais, os
únicos fa to s são fatos físicos brutos e cegos, e as únicas
normas estão em nós e existem somente segundo nosso
ponto de vista.
O abandono da crença em uma classe numerosa de
fenômenos mentais em p rincípio inacessíveis à consciên-
342 A REDESCOBERTA DA MENTE

cia resultaria, portanto, no tratamento do cérebro como


um órgão como outro qualquer. Como qualquer outro
órgão, o cérebro tem um n ível funcional - na verdade,
m uitos níveis funcionais - de descrição e, como qualquer
outro órgão, pode ser descrito como se estivesse fazendo
“ processamento de inform ações” e executando qualquer
número de programas de computador. Contudo, a carac­
terística verdadeiramente especial do cérebro, a caracte­
rística que o tom a o órgão do m ental, é sua capacidade
de causar e sustentar pensamentos, experiências, ações,
memórias etc., conscientes.
A noção de um processo m ental inconsciente e a no­
ção correlata dos princípios de processos mentais incons­
cientes são também fontes de confusão. Se pensarmos
em um processo consciente que seja “ puramente” m en­
tal, poderíamos pensar em algo como cantarolar uma me­
lodia silenciosamente para nós mesmos. A q u i há clara­
mente um processo, e este tem um conteúdo m ental. Po­
rém , há também um sentido de “ processo m ental” em
que este não sig n ifica “ processo com conteúdo m ental” ,
mas, mais exatamente, “ processo através do qual fenô­
menos mentais são relacionados” . Os processos, neste
segundo sentido, podem ou não ter um conteúdo mental.
Por exem plo, na obsoleta psicologia associacionista
supunha-se haver um processo p or m eio do qual a per­
cepção de A recorda-m e f i, e esse processo funciona se­
gundo o p rincípio da semelhança. Se vejo A, e A asseme­
lha-se a B, então terei uma propensão a form ar uma imagem
de B. Neste caso, o processo pelo qual passo da percepção
de A à imagem de B não envolve necessariamente, de
modo algum , nenhum conteúdo m ental adicional. Pm-
O ESTUDO PROPRIAMENTE DITO 343

sume-se haver um p rin cíp io segundo o qual o processo


funciona, a saber, a semelhança, mas a existência do pro­
cesso de acordo com o p rin cípio não im p lica que tenha
de haver qualquer conteúdo m ental adicional diferente
da percepção de A e da idéia de 6 , ou da idéia de B como
semelhante a A. Particularm ente, não im p lica que, quan­
do alguém veja A e lembre-se de B , siga a regra cujo con­
teúdo determina que se vejo A, e A parece-se com 5 , en­
tão devo pensar em B . Em resumo, um pro cesso a tra vé s
do q u a l conteúdos m entais são re la cio n a d o s não p re c is a ,
de m odo a lg u m , te r nenhum conteúdo m e n ta l além d a ­
quele dos m em bros da re la ç ã o ; ainda que, sem dúvida,
nossas conversas e idéias teóricas sobre aquele princípio
tenham um conteúdo referente ao p rin cípio . Esta d is tin ­
ção va i revelar-se im portante porque m uitas das discus­
sões na ciência cognitiva partem da afirm ação de que há
processos “ mentais” no sentido de causar fenômenos cons­
cientes (os processos do cérebro que produzem experiên­
cias visuais, por exem plo), para chegarem a afirm ar que
aqueles processos são processos mentais no sentido de
ter conteúdo, informação, inferência etc., mentais. Os pro­
cessos não-conscientes do cérebro que causam experiên­
cias visuais são seguramente mentais em um sentido,
mas não têm de modo algum conteúdo m ental, e portan­
to, neste sentido, não são processos mentais.
Para tom ar n ítida esta distinção, façamos a distinção
entre aqueles processos - o da observância de regras, por
exemplo - que têm um conteúdo m ental que atua causal­
mente na produção de comportamento, e aqueles proces­
sos que não têm um conteúdo m ental, mas que associam
conteúdos mentais a estímulos de in p u t , comportamento
344 A REDESCOBERTA DA MENTE

de o u tp u t e outros conteúdos mentais. Chamarei esta ú l­


tim a classe de “ padrões de associação” . Se, por exemplo,
quando como pizza demais tenho dor de estômago, há
claramente um padrão de associação, mas nenhuma obser­
vância de regra. Não obedeço à regra: quando você come
p iz z a demais, tem dor de estômago; simplesmente acon­
tece assim.

IV . A lg um a s conseqüências: g ra m á tic a u n iv e rs a l>


p a d rõ e s de associação e conexionism o

*
E característico das explanações intencionalistas do
com portam ento humano e anim al que p a d rõ e s de com ­
portam ento sejam explicados pelo fato de que o agente
tem uma representação desse mesmo padrão, ou uma re­
presentação logicam ente relacionada a esse mesmo pa­
drão em seu aparato intencional, e essa representação atua
causalmente na produção do padrão de comportamento.
Assim , dizemos que as pessoas na Grã-Bretanha dirigem
na esquerda porque seguem a regra: d irija na esquerda; e
que não dirigem na d ire ita porque seguem esta mesma
regra. O conteúdo intencional atua causalmente na p ro ­
dução do comportamento que representa. Há, de im edia­
to, duas restrições. P rim eiro, o conteúdo intencional da
regra não produz o com portam ento unicamente por si
mesmo. N inguém , por exem plo, sai d irig in d o sim ples­
mente para estar seguindo a regra, e ninguém fala somen­
te por amor à observância das regras do inglês. E, segun­
do, regras, princípios etc., podem ser inconscientes e, para
todos os propósitos práticos, são freqüentemente inaces-
o ESTUDO PROPRIAMENTE DITO 345

síveis à consciência, embora, como vim os, se é que real­


mente existem tais regras, tenham que ser, pelo menos
em prin cípio , acessíveis à consciência.
Um a estratégia típica na ciência co gn itiva tem sido
tentar descobrir padrões complexos como aqueles encon­
trados na percepção ou na linguagem , e então postular
combinações de representações mentais que expliquem o
padrão de m aneira apropriada. Onde não há represertfa-
ção consciente ou superficialm ente inconsciente, postu­
lamos uma representação mental profundam ente incons­
ciente. Epistem icam ente, a existência dos padrões é to ­
mada como evidência da existência das representações.
Causalmente, presume-se que a existência das represen­
tações explique a existência dos padrões. Porém, tanto a
afirm ação epistêm ica como a causai pressupõem que a
ontologia de regras profundam ente inconscientes esteja
perfeitam ente adequada na form a em que se encontra.
Tentei contestar a ontologia de regras profundam ente in ­
conscientes, e, se esta contestação fo r bem-sucedida, as
afirmações epistêmica e causai desmoronam juntas. Epis­
temicamente, tanto a planta como o R O V exibem pa­
drões sistemáticos, mas isto não fornece de modo algum
indícios da existência de regras profundam ente incons­
cientes - uma característica óbvia no caso da planta, me­
nos óbvia mas ainda verdadeira no caso da visão. Cau­
salmente, o padrão de comportamento desempenha um
papel funcional no comportamento global do sistema,
mas a representação do padrão em nossa teoria não iden­
tific a uma representação profundam ente inconsciente
que desempenhe um papel causai na produção do padrão
de comportamento, porque não há tal representação pro-
34 6 A REDESCOBERTA DA MENTE

fundamente inconsciente. M ais uma vez, isto é uma ca­


racterística óbvia no caso da planta, e menos óbvia, mas
ainda assim verdadeira, no caso da visão.
Agora, com esse aparato em mãos, voltem o-nos a
uma discussão do status das pretensas regras de gram áti­
ca universal. Concentro m inha atenção na gram ática u n i­
versal porque gramáticas de línguas particulares, como
francês ou inglês, seja o que fo r que contenham a mais,
obviamente contêm um grande número de regras que são
acessíveis à consciência. O argumento tradicional para a
existência da gram ática universal pode ser apresentado
de form a bastante simples: o fato de todas as crianças nor­
mais poderem rapidamente assim ilar a língua da com uni­
dade na qual são criadas, sem instrução especial e com
base em estímulos extremamente im perfeitos e degenera­
dos, e ainda de as crianças poderem aprender determina­
dos tipos de linguagens, como as que são exem plificadas
por linguagens humanas naturais, mas de não poderem
aprender todos os tipos de outros sistemas de linguagem
logicamente possíveis, fornece uma confirm ação esmaga­
dora de que, de algum modo desconhecido, toda criança
norm al contém em seu cérebro um dispositivo especial de
aquisição de linguagem (D A L ), e este d isp o sitivo de a q u i­
siçã o de ling ua ge m consiste, ao menos em p a rte , em uma
série de reg ras pro fun dam e nte inconscientes.
Com exceção da ú ltim a oração em itá lic o , concordo
inteiram ente com o argumento precedente em favor de
um “ dispositivo de aquisição de linguagem” . O único pro­
blema é com a postulação de regras profundamente in ­
conscientes. Essa postulação é incom patível com o p rin ­
cípio da conexão. Não é de surpreender que tenha havido
0 ESTUDO PROPRIAMENTE DITO 347

m uita discussão sobre as espécies de evidência que a l­


guém podia conseguir para a existência dessas regras. Es-
sas discussões são sempre inconclusivas, porque a h ip ó ­
tese não tem sentido.
Anos atrás, levantei dúvidas epistêmicas sobre a cren­
ça de Chom sky na atribuição de regras profundamente
inconscientes, e opinei que qualquer atribuição semelhan­
te e x ig iria evidência de que o conteúdo específico da
regra, seu form ato aspectual específico, estivesse desem­
penhando um papel causai na produção do comportamen­
to em questão (Searle, 1976). A leguei que simplesmente
predizer os padrões corretos não seria suficiente para jus­
tific a r a afirm ação de que estamos seguindo regras pro­
fundamente inconscientes; além disso, precisaríamos de
evidência de que a regra fosse “ causalmente eficiente” na
produção do padrão. Com certas restrições, Chomsky
aceita as condições. Já que estamos de acordo quanto a
estas condições, podia valer a pena detalhá-las:
1. O emprego da palavra “ regra” não é im portante.
O fenômeno em questão poderia ser um princípio, ou um
parâmetro, ou uma restrição, e por aí afora. A questão,
no entanto, é que ele está em um nível de intencionalida-
de intrínseca. Tanto para Chom sky como para m im , não
é meramente uma questão de o sistema comportar-se como
se estivesse seguindo uma regra. Tem que haver uma
diferença entre o papel das regras na faculdade da lin ­
guagem e, por exem plo, o papel das “ regras” no com por­
tamento de plantas e planetas.
2. “ Com portam ento” , igualm ente, não está em ques­
tão. Compreensão de sentenças, intuições de gram aticali-
dade e manifestações de competência ling üística em
i.

348 A REDESCOBERTA DA MENTE

geral são aquilo a que estamos nos referindo através do


emprego do termo sim plificado “ comportamento” . Não há
behaviorismo im plícito no uso deste termo, e nenhuma con­
fusão entre competência e performance.
3. Nenhum de nós supõe que todo comportament
(no sentido pertinente) é causado pelas regras (no sentido
pertinente). A questão, entretanto, é que, na m elhor ex­
planação causal dos fenômenos, as regras “ fazem parte”
(expressão de Chom sky) da teoria que proporciona a ex­
planação.
Então, com essas restrições em mente, qual era exa­
tamente a resposta de Chom sky à objeção?

Suponha que nosso modo de explanação e descrição


mais bem-sucedido atribua a Jones um estado in ic ia l e rea­
lizado, inclusive determinadas regras (princípios com pa­
râmetros especificados ou regras de outros tipos), e e xp li­
que o com portam ento de Jones nesses termos; isto é, as
regras form am uma paite central da m elhor explicação de
seu uso e compreensão da linguagem, e estão direta e cru­
cialm ente invocadas a explicá-la dentro da m elhor teoria
i 1*
' ; lL que possamos arquitetar. (...) Não posso perceber que
qualquer coisa esteja envolvida na atribuição de eficácia
causal a regras, afora a afirmação de que essas regras são
elementos constituintes dos estados postulados numa teo­
ria explanatória do comportamento e fazem parte de
nossa m elhor explicação deste comportamento (Chomsky,
1986, pp. 252-253).

Também a esse propósito, Chom sky cita ainda De-


mopoulos e M atthews (1983).
O ESTUDO PROPRIAMENTE DITO 349

Como observam Demopoulos e M atthews (1983), “ a


aparente indispensabilidade teórica de apelos a estados in ­
ternos caracterizados gramaticalmente na explanação do
comportamento lingüístico é seguramente a m elhor classe
de razão para a trib u ir a estes estados [e, podemos acres­
centar, a seus elementos constituintes relevantes] um pa­
pel causai na produção do com portam ento” (Chomsky,
1986, p. 257).

Portanto, a idéia é esta: a afirm ação de que as regras


são causalmente eficientes é ju stifica d a pelo fato de que
as regras são elementos constituintes dos estados postu­
lados pela m elhor teoria causai do comportamento. A
objeção que quero fazer a esta explicação deveria ser, en­
tretanto, óbvia: ao afirm ar que a “ m elhor teoria” requer a
postulação de regras profundam ente inconscientes de
gram ática universal, todos os três autores estão pressu­
pondo, em prim eiro lugar, que a postulação de tais regras
é perfeitam ente legítim a. Porém, uma vez que lancemos
dúvida sobre a legitim idade desta hipótese, então parece
que a “ m elhor teoria” poderia, exatamente do mesmo m o­
do, tratar a evidência como padrões de associação que
não são produzidos p or representações mentais que, de
certa form a, retratam estes padrões, mas são produzidos
por estruturas neurofisiológicas que não necessitam, de
modo algum , ter semelhança com os padrões. O hardw a­
re produz padrões de associação, no sentido definido
acima, mas os padrões de associação não desempenham
nenhum papel causai na produção dos padrões de com ­
portam ento - eles são precisamente estes padrões de
comportamento.
Específicam ente, a evidência para a gram ática u n i­
versal é explicada de form a m uito mais simples pela h i-
350 A REDESCOBERTA DA MENTE

pótese seguinte: há, na verdade, um dispositivo de aqui­


sição de linguagem inato nos cérebros humanos, e o D A L
im põe a form a de linguagens que os seres humanos po­
dem aprender. Há, portanto, um nível de hardware de ex­
planação em termos da estrutura do dispositivo, e há um
n íve l funcional de explanação que descreve quais tipos
de linguagens podem ser adquiridos pela criança com a
aplicação deste mecanismo. Nenhuma capacidade profé­
tica ou explanatória adicional é acrescentada ao afirm ar-
se que há, além disso, um nível de regras profundamente
inconscientes de gram ática universal; e, na verdade, ten­
te i insinuar que esta postulação é de qualquer m aneira in ­
coerente. Por exem plo, suponha que as crianças só pos­
sam aprender linguagens que contenham alguma p ro ­
priedade form al específica F . Então, isto é prova de que
o D A L tom a possível aprender linguagens F e im possí­
ve l aprender linguagens N ão-F. Mas isto é tudo. Não há
evidência adicional de que a criança tenha uma regra pro­
fundamente inconsciente: “ Aprenda linguagens F e não
aprenda linguagens N ão-F.” E, de qualquer maneira, não
fo i dado nenhum sentido a esta suposição.
A situação é exatamente análoga à seguinte: os seres
humanos só são capazes de perceber cores dentro de um
determinado intervalo do espectro. Sem treinam ento fo r­
m al, podem enxergar o azul e o verm elho, por exemplo,
mas não podem enxergar o infraverm elho ou o ultraviole­
ta. Temos aí uma evidência esmagadora de que eles têm
uma “ faculdade de visão” que impõe quais tipos de cores
podem perceber. Mas, então, isto ocorre porque estão se­
guindo as regras profundam ente inconscientes: “ Se e in ­
fraverm elho, não enxergue” , ou “ Se é azul, m uito bem,
0 ESTUDO PROPRIAMENTE DITO 351

enxergue” ? Que eu saiba, nenhuma argumentação fo i ja ­


mais apresentada para demonstrar que as regras de “ gra­
mática lingüística universal” têm qualquer status diferente
das regras de “ gram ática visual universal” . Então per­
gunte a si mesmo por que, exatamente, você está relutan­
te em dizer que existem tais regras de gram ática visual
universal? A fin a l de contas, a evidência é exatamente tão
boa quanto a evidência em favor das regras de gramática
ling üística universal, e, na verdade, é idêntica a ela em
termos de sua form a. A resposta, creio eu, é que é bastante
óbvio para nós, com base em tudo o mais que sabemos,
que não existe tal nível mental. H á simplesmente um me­
canismo de hardw are que funciona de uma determinada
form a, e não de outras. Estou insinuando, aqui, que não
há nenhuma diferença entre o status de gram ática visual
universal profundam ente inconsciente e gram ática lin ­
güística universal profundam ente inconsciente: ambas
são não-exis tentes.
N ote que, para salvar o paradigma da ciência cogni­
tiva, não é suficiente dizer que podemos simplesmente
decidir tratar a atribuição de regras e princípios como
intencionalidade como-se, porque os estados inten cio ­
nais como-se, não sendo reais, não têm nenhuma capaci­
dade causai. Não explicam nada. O problem a com a
intencionalidade como-se não é o de ser simplesmente
ubíqua - pois isto ela é - , porém sua identificação não
produz uma explanação causai - ela apenas reapresenta o
problem a que se espera que a atribuição de inten cion ali­
dade real resolva. Vejamos como esta questão se aplica
ao presente exemplo. Tentamos explicar os fatos da aqui­
sição de linguagem postulando regras de gram ática u n i-
352 A REDESCOBERTA DA MENTE

versal. Caso verdadeira, esta seria uma explanação cau­


sai genuína da aquisição de linguagem . Porém suponha
que abandonemos esta form a de explanação e digamos,
simplesmente, que a criança age como-se estivesse se­
guindo regras, mas logicam ente não esteja de fato fazen­
do tal coisa. Caso digamos isto, não temos mais uma ex­
planação. A causa fica então em aberto. Convertemos
uma explanação psicológica em n eurofisiologia especu­
lativa.
Se estou certo, estivemos cometendo alguns erros
chocantes. Por quê? C reio que, em parte, porque estáva-
mos supondo que, se o input do sistema é significante e o
output é significante, então todos os processos interm e­
diários têm que ser igualm ente significantes. E certa­
mente há m uitos processos significantes na cognição.
Mas, onde somos incapazes de encontrar processos cons­
cientes significantes, postulamos processos inconscientes
significantes, mesmo processos profundam ente incons­
cientes. E, quando desafiados, invocamos esse que é o
mais poderoso dos argumentos filo só fico s: “ O que mais
poderia ser?” , “ De que outra form a poderia funcionar?”
Regras profundam ente inconscientes satisfazem nossa
ânsia por significado e, além disso, que outra teoria há?
Qualquer teoria é m elhor que nenhuma, afinal. Uma vez
que cometamos esses erros, nossas teorias do profunda­
mente inconsciente permanecem insatisfatórias e em
aberto. Porém, é simplesmente falso assumir que a signi-
ficatividade do input e do output im plica um conjunto de
processos significativos interm ediários, e é uma violação
do princípio de conexão postular processos inconscientes
em princípio inacessíveis.
0 ESTUDO PROPRIAMENTE DITO 353

Um a das conseqüências inesperadas de toda essa


investigação é que cheguei, de modo totalm ente inadver­
tido, a uma justificação - se é que esta é a palavra certa -
do conexionism o. Entre seus outros m éritos, pelo menos
alguns modelos conexionistas m ostram como um siste­
ma poderia converter um input significante em um out­
p u t significante sem nenhuma regra, p rin cíp io , inferên­
cias ou outros tipos de fenômenos significantes interm e­
diários. Isto não quer dizer que os modelos conexionistas
existentes estejam corretos - talvez estejam todos erra­
dos. Mas quer dizer que não são todos obviamente falsos
ou incoerentes, a exemplo dos modelos cognitivistas tra­
dicionais, que viola m o prin cípio da conexão.

V. Conclusão

Apesar de nossa arrogância moderna sobre o quanto


sabemos, apesar da certeza e universalidade de nossa
ciência, no que d iz respeito à mente estamos característi­
camente confusos e em desacordo. Como os proverbiais
homens cegos e o elefante, agarramo-nos a alguma su­
posta característica e proclam am o-la a essência do men­
tal. “ Há sentenças invisíveis lá dentro!” (a linguagem do
pensamento). “ H á um programa de com putador lá den­
tro !” (cognitivism o). “ Há somente relações causais lá
dentro!” (funcionalism o). “ Não há nada lá dentro!” (e li-
m inacionism o). E assim por diante, de modo deprimente.
Não menos triste, deixamos nossos métodos de pes­
quisa d ita r o tema, em vez da discussão. Com o o bêbado
que perde as chaves do carro no m atagal escuro, mas
354 A REDESCOBERTA DA MENTE

procura por elas sob a luz da rua, “ porque a ilum inação é


m elhor aqui” , tentamos descobrir de que form a os seres
humanos poderiam assemelhar-se a nossos modelos com ­
putacionais, em vez de tentar decifrar como a mente hu­
mana consciente efetivamente funciona. Freqüentemente
perguntam-me: “ Mas como você poderia estudar a cons­
ciência científicamente? Como poderia haver uma te oriaT ’
Não acredito que haja um caminho simples ou único
para a redescoberta da mente. Algum as diretrizes ru d i­
mentares são:
Prim eiram ente, devemos parar de dizer coisas que
são obviam ente falsas. A aceitação sincera deste p rin c í­
pio poderia revolucionar o estudo da mente.
Em segundo lugar, devemos nos lem brar continua­
mente do que sabemos com certeza. Por exem plo, sabe­
mos com certeza que dentro de nossos crânios existe um
cérebro; algumas vezes este é consciente, e processos ce­
rebrais causam a consciência em todas as suas formas.
Em terceiro lugar, devemos perguntar a nós mes­
mos, continuam ente, quais fatos reais no m undo se pre­
sume que correspondam às afirmações que fazemos
sobre a mente. Não im porta se “ verdadeiro” significa
que corresponde aos fatos, porque “ corresponde aos
fatos” não sig n ifica corresponde aos fatos, e qualquer
d iscip lin a que vise a descrever como é o m undo visa a
esta correspondência. Se você faz esta pergunta conti­
nuamente a si mesmo, levando em conta a compreensão
de que o cérebro é a única coisa lá dentro, e que o cére­
bro causa consciência, creio que chegará aos resultados
que a ting i neste capítulo, e, na verdade, a m uitos dos
resultados a que cheguei neste liv ro .
0 ESTUDO PROPRIAMENTE DITO 355

Isto, porém , equivale apenas a dar o p rim e iro passo


no cam inho de vo lta para a mente. Um a quarta e ú ltim a
d ire triz é que precisamos redescobrir o caráter social da
mente.
NOTAS

C a pítulo 1

1. Ou, pelo menos, estão investigando as preliminares de


tais questões. É surpreendente o quão pouco da neurociência
contemporânea é dedicado à investigação, e.g., a neurofisiolo-
gia da consciência.
2. O mais conhecido expositor dessa concepção é Tho­
mas Nagel (1986), mas ver também C olin M cGinn (1991).
3. Ver, por exemplo, P. S. Churchland, 1987.
4. L im ita re i minha discussão a filósofos analíticos, mas,
aparentemente, a mesma espécie de im plausibilidade afeta a
chamada filo so fia continental. Segundo Dreyfus (1991), H ei­
degger e seus seguidores também duvidavam da importância
da consciência e da intencionalidade.
5. O mais conhecido expoente dessa concepção é Daniel
Dennett (1987).
6. Mas, para uma exposição pormenorizada, ver Georges
Rey (1983).
7. De maneiras diferentes, creio que isso é feito por Arm s­
trong (1968,1980) e Dennett (1991).
358 A REDESCOBERTA DA M ENTE

8. Outra form a de incredibilidade, mas proveniente de


uma motivação filosófica diferente, é a afirmação de que cada
um de nós tem ao nascer todos os conceitos exprim íveis em
quaisquer palavras de qualquer linguagem humana possível,
de modo que, por exemplo, o povo de Cro-Magnon tivesse os
conceitos expressos pela palavra “ carburador” ou pela expres­
são “ oscilógrafo de raios catódicos” . Esta concepção é susten­
tada de maneira mais famosa por Fodor (1975).
9. Howard Gardner, em seu resumo abrangente da ciência
cognitiva (1985), não in clu i um único capítulo - na verdade
nem um único verbete no índice remissivo - sobre a consciên­
cia. Evidentemente, a nova ciência da mente pode dispensar a
consciência.
10. Na minha concepção, um processo interno como sen­
tir uma dor, por exemplo, não “ tem necessidade” de nada. Por
que deveria?
11. De forma bastante peculiar, minhas concepções foram
caracterizadas de modo confiante, por alguns comentadores
como “ materialistas” , por alguns outros, com igual confiança, co­
mo “ dualistas” . Assim, por exemplo, U. T. Place escreve: Sear-
le “ expõe o ponto de vista m aterialista” (1988, p. 208), en­
quanto Stephen P. Stich escreve: “ Searle é um dualista de pro­
priedades” (1987, p. 133).
12. Uma tese intimamente afim é sustentada por Noam
Chomsky (1975).

C a p itu lo 2

1. Um bom exemplo é Richard Rorty (1979), que nos con­


vida a im aginar uma trib o que não diga “ estou com dor” , mas
antes “ minhas fibras C estão sendo estimuladas” . Bem, imagi­
nemos tal caso. Imagine uma tribo que se recuse a utilizar nos­
so vocabulário mentalístico. O que se deduz? Ou que seus
NOTAS 359

membros têm dores assim como nós, ou não têm. Se têm, en­
tão o fato de se recusarem a denominá-las dores não tem inte­
resse. Os fatos permanecem os mesmos, independentemente
de como nós ou eles optemos por descrevê-los. Caso, por outro
lado, eles realmente não tenham nenhum tipo de dor, então são
bem diferentes de nós e sua situação não tem aplicabilidade à
realidade de nossos fenômenos mentais.

2. E um fato interessante que em três livros recentes,


todos contendo a palavra “ consciência” no título - M a tte r and
Consciousness (1984), de Paul Churchland, Consciousness
and the C o m p u ta tio n a l M in d (1987), de Ray Jackendoff, e
Consciousness (1987), de W illia m Lycan haja pouco ou ne­
nhum empenho em fornecer qualquer explicação ou teoria da
consciência. A consciência não é um assunto tratado como um
tópico valioso em si mesmo, mas antes, simplesmente, como
um problema maçante para a filosofia materialista da mente.
3. Em sua crítica do livro Society o f M in d , de M arvin M ins­
ky, Bernard W illiam s (1987) escreve: “ O que está em questão
nesta pesquisa [de I. A .], em parte, é precisamente se sistemas in ­
teligentes podem ser compostos de matéria não-inteligente” .
4. Não conheço a origem desta expressão, mas é prova­
velmente derivada da caracterização de Watson por parte de
Ogden e Richards como “ simulando anestesia geral” (1926, p.
23 da edição de 1949).
5. M enciono esse tema das “ fibras C” com certo cons­
trangimento, porque toda a discussão está mal orientada. In-
dependentemente dos méritos ou deméritos do materialismo, é
inconcebível, por razões puramente neurofisiológicas, que as
fibras C devessem ser o local das sensações de dor. Fibras C
são um tipo de axônio que transmite determinados tipos de
sinais de dor de terminações nervosas periféricas para o siste­
ma nervoso central. Outros sinais de dor são transmitidos pelas
fibras A-Delta. As fibras C funcionam como trilhas para a con­
dução dos estímulos até o cérebro, onde a ação real tem lugar.
360 4 REDESCOBERTA DA MENTE

A té onde sabemos, os eventos neurofisiológicos responsáveis


p or sensações de dor ocorrem no tálamo, no sistema lím bico, no
córtex somato-sensorial e, possivelmente, em outras regiões tam­
bém. (V er qualquer liv ro didático clássico sobre esta questão.)
6. Neste capítulo, não estou interessado em defender m i­
nha solução para o problem a m ente-corpo, mas vale a pena
salientar que ela não está sujeita a essa objeção. Tanto K rip ke
como seus oponentes aceitam o vocabulário dualista com sua
oposição entre “ m ental” e “ fís ic o ” , que rejeito. Uma vez que
você rejeite esta oposição, então, na m inha opinião, meu estado
de dor presente é uma característica de n íve l superior de meu
cérebro. É, portanto, necessariamente idêntica a uma determ i­
nada característica de meu cérebro, a saber, ela mesma. Tam ­
bém, não é idêntica, necessariamente, a, nenhuma outra carac­
terística de meu cérebro, embora seja causada por determ ina-

dos eventos de nível in fe rio r em meu cérebro. E possível que


tais características pudessem ser causadas por outras espécies
de eventos e pudessem ser características de outros tipos de
sistemas. Portanto, não há conexão necessária entre dores e
cérebros. Tudo é o que é, e não uma outra coisa.
7. Por exem plo, M cG inn (1977). M cG inn defende o argu­
m ento de D avidson em fa vo r do “ m onism o anômalo” , que
tanto ele com o D avidson supõem ser uma versão da teoria da
identidade ocorrência.
8. Em homenagem ao filó s o fo britâ nico F. P. Ramsey
(1903-1930).
9. A te rm inologia de “ chauvinism o” e “ libe ra lism o ” fo i
introduzida por Ned B lo ck (1978).
10. O argumento é encontrado no trabalho de diversos f i ­
lósofos; por exemplo, Steven Schiffer (1987) e Paul Churchland.
Churchland dá uma exposição sucinta da premissa: “ Se você real­
mente perde a esperança em uma redução, então a eliminação
surge como a única alternativa coerente” (1988).
11. Terei mais a dizer sobre esses temas no capítulo 7.
NOTAS 361

C a p ítu lo 3

1. À m aneira do artigo de Thomas N agel, “ Como é ser


um morcego?” (1974).
2. Por exem plo: “ Como era de se esperar, as células cujos
campos receptivos são especificamente codificados para cores
têm sido observadas em vários animais, inclusive o macaco, o
cite lo e alguns peixes. Estes a n im a is, em c o n tra ste com o gato,
possuem excelente pe rcep ção de cores e um mecanismo neural
intrica do para o processamento de cores” (K u ffle r e N ich o lls,
1976, p. 25, itá lico s meus).
3. Para um exem plo desse m al-entendido, ver P. M . e P.
S. Churchland, 1983.
4. Sou grato a Dan Rudermann por chamar m inha atenção
para esse artigo.
5. V er, por exem plo, Dennett, 1987.

C a p ítu lo 4

1. Há um a restrição a esse ponto. O senso de localização


corporal realm ente tem intencionalidade, porque se refere a
urna parte do corpo. Esse aspecto da dor é intencional, porque
tem condições de satisfação. N o caso de um m em bro fantas­
ma, por exem plo, podemos estar equivocados, e a possibilida­
de de um equívoco é de qualquer m aneira um bom in d ício de
que o fenôm eno é intencional.
2. A m etáfora de “ esquerda-direita” deriva, logicam ente,
da convenção a rbitrária das línguas européias de escrever da
esquerda para a direita.
3. O term o “ funcional” é um tanto enganador porque o n í­
ve l funcional é também causal, mas é comum, na biologia, alu­
d ir aos dois tipos de explanação causal como “ fu n cio n a l” e
“ causal” . Com o quer que a descrevamos, a distinção é im por­
tante e faço mais uso dela no capítulo 10.
362 A REDESCOBERTA DA MENTE

4. Às vezes as pessoas se opõem aos meus pontos de vista


por causa de uma concepção equivocada das relações entre
causação e identidade. U . T. Place (1988), por exem plo, escre­
ve: “ Segundo Searle, estados m entais são tanto idênticos aos
estados correspondentes do cérebro quanto casualmente de­
pendentes deles. D igo que honra e interesse não cabem num só
saco. Ou estados m entais são idênticos a estados cerebrais ou
um é causalmente dependente do outro. Não podem ser ambos”
(p. 209).
Place está considerando casos como: “ Essas pegadas po­
dem ser causalmente dependentes dos sapatos do ladrão, mas
não podem igualm ente ser idênticas a estes sapatos.” Mas que
dizer disto: “ O estado líq u id o dessa água pode ser causalmente
dependente do com portam ento das m oléculas, e pode ser tam ­
bém uma característica do sistema constituído pelas moléculas” ?
Parece-me absolutamente óbvio que meu estado de consciên­
cia atual é causado pelo comportamento neuronal em meu cé­
rebro, e que este mesmo estado é simplesmente uma caracte­
rística de nível superior do cérebro. Se isto im porta em caberem
honra e interesse no mesmo saco, vamos colocá-los.
5. Isso não é um argumento a fa vor do “ acesso p riv ile g ia ­
do” , porque não há nenhum p riv ilé g io e nenhum acesso. M ais
adiante, neste capítulo, terei mais a dizer sobre este tópico.
6. “ Logicam ente, ‘ consciência5 é um termo recheio, como
é ‘m atéria5; e não vejo nada de errado, m etafisicam ente, em
reconhecer que consciência é uma espécie de coisa” (p. 60).
7. A explanação alternativa é que temos outros im pulsos
biológicos mais gerais que são satisfeitos por essas diversas
atividades. C onfronte com a distinção de E llio t Sober entre o
que é selecionado e o que é selecionado p a ra (1984, cap. 4).
NOTAS 363

C a p ítu lo 5

1. Para mais discussão sobre esse assunto, ver capítulo 2.

C a p ítu lo 6

1. M esm o questões obvias com o o fato de que “ o tempo


passa m ais devagar” quando estamos entediados parecem-me
requerer explanação. Por que o tempo deveria passar mais de­
vagar quando estamos entediados?
2. Essa expressão é devida a Edelman (1991).
3. H um e, a propósito, pensava que não poderia haver
nenhuma sensação semelhante, porque, se houvesse, teria que
executar m uita atividade epistêm ica e m etafísica que nenhuma
mera sensação poderia fazer. Penso, realmente, que todos te­
mos um senso característico de nossa própria pessoalidade, mas
isto é de pouco interesse epistêm ico ou m etafísico. Não garan­
te “ identidade pessoal” , “ a unidade do ego” ou qualquer coisa
semelhante. É simplesmente como, p or exem plo, parece-me a
m im ser eu.
4. E.g., D avid W o o d ru ff Sm ith (1986).

C a p ítu lo 7

1. Lashley, 1956. Não penso que Lashley pretenda isso


literalm ente. Penso que ele quer dize r que os processos pelos
quais são produzidas as diversas características de estados
conscientes nunca sejam conscientes. Contudo, até isto é um
exagero, e o fato de ele recorrer a esse tipo de hipérbole é reve­
lador do tema que estou tentando id e n tifica r.
2. V e r também Searle, 1980b, 1984b e, especialmente,
1984a.
364 A REDESCOBERTA DA M ENTE

3. Para esses propósitos, estou contrastando “ neurofisio­


lógico” e “ mental” , mas logicamente, na concepção das rela­
ções mente-corpo que estive expondo em todo este liv ro , o
mental é neurofisiológico num nivel superior. Contrasto men­
tal e neurofisiológico como alguém podia contrastar seres
humanos e animais, sem desse modo im plicar que a prim eira
classe não esteja incluída na segunda. Não há dualismo im p lí­
cito em minha utilização deste contraste.
4. Especificamente, D avid Armstrong, A lison G opnik e
Pat Hayes.
5. Para essa discussão, estou ignorando a distinção de
Freud entre pré-consciente e inconsciente. Para os presentes
propósitos, refiro-m e a ambos como “ inconsciente” .

Capítulo 8

1. Especialmente On Certainty (1969), que acredito ser


um dos melhores livros sobre o assunto.
2. Em discussão.
3. A resposta correta a esse estilo de ceticismo, creio eu, é
explicar o papel do Background no significado e na compreen­
são (Searle, não publicado).
4. Essa é uma mudança em relação à concepção que sus­
tentei em Searle, 1991. Fui convencido dessa questão por W illiam
Hirstein.

Capítulo 9

1. SOAR é um sistema desenvolvido por Alan Newell


seus colegas na Universidade Camegie M ellon. O nome é um
acrônimo para “ State, Operator, And ResulC [Estado, Operador
e Resultado]. Para uma explicação, ver W aldrop, 1988.
NOTAS 365

2. Essa visão é proclamada e defendida em um grande


número de livros e artigos, muitos dos quais parecem ter mais
ou menos o mesmo título, e.g.. Com puters and Thought (Fei-
genbaum e Feldman, orgs., 1963), Com puters and Thought
(Sharpies et a/., 1988), The Com puter and the M in d (Johnson-
Laird, 1988), C om putation and C ognition (Pylyshyn, 1984),
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te, “ Computing Machineiy and Intelligence” (Turing, 1950).
3. Todo esse programa de pesquisa fo i concisamente re­
sumido por Gabriel Segal (1991) do seguinte modo: “ A ciên­
cia cognitiva encara os processos cognitivos como computa­
ções no cérebro. E computação consiste na manipulação de peças
de sintaxe. O conteúdo dos objetos sintáticos, se é que há, é
irrelevante para o modo em que são processados. Portanto,
parece, o conteúdo pode figurar em explanações cognitivas so­
mente na medida em que diferenças no conteúdo redundem em
diferenças na sintaxe do cérebro” (p. 463).
4. Pylyshyn chega m uito perto de adm itir precisamente
esse ponto quando escreve: “ A resposta para a pergunta - que
computação está sendo executada? - exige discussão de esta­
dos computacionais semánticamente interpretados” (1984, p.
58). Realmente. E quem está fazendo a interpretação?
5. As pessoas às vezes dizem que seria preciso adicionar
seis a si mesmo o ito vezes. Isto, porém, é má aritmética. Seis
adicionado a si mesmo oito vezes é cinqüenta e quatro, porque
seis adicionado a si mesmo zero vezes é ainda seis. E espanto­
so o quão freqüentemente este erro é cometido.
6. O exemplo fo i sugerido por John Batali.

Capítulo 10

1. O cérebro tem também, logicamente, muitas outras ca­


racterísticas que nada têm a ver com a consciência. Por exem-
366 A REDESCOBERTA DA MENTE

pío, a medula regula a respiração mesmo quando o sistema


está totalm ente inconsciente.
2. Lisberger 1988, Lisberger e Pavelko 1988.
3. V er Searle 1983, especialmente o capítulo 5, para urna
discussão ampliada.
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Churchland, P. S., 73, 357n3,
Batali, J,, 298,365n6
361n3
Belarmino, 13
Berkeley, 174 Darwin, 78,327-8, 330
Block, N.,58-9, 65-6,125, Davidson, D., 360n7
233,294-5, 305, 360n9, Davis, S-, 258
365n2 Demopoulos, 348-9
Bloom, F. E.,284 Dennett, D. C , 68, 83,215,
Boolos, G. S., 284 303,357n5,357n7,361n5
Bourdieu, P., 253,275 Descartes, R., 26,49, 55,126
Bruner, J,, 195 Dreyfus, H. L., 68,199, 292,
Butler, 61 357n4
Carston, R., 258 Edelman, G. M., 363n2
Changeux, J. P., 147
Chisholm, R. M ., 53 Feigenbaum, E. A., 365n2
Chomsky, N., 41,282, 314-6, Feigl, H., 56
347-9, 358nl2 Feldman, J., 365n2
Church, 286,288-9,292 Feyerabend, P., 14,69
378 A REDESCOBERTA DA MENTE

Fodor, J., 58, 6 5,7 6 ,78 ,8 7 , Lashley, K., 218, 363nl


282,287, 357n8 Lazerson, A ., 284
Foucault, M ., 275 Leibniz, 59
Freud, S., 218-9, 240-5, 248 Lettvin, J. Y., 310
Lewis, D., 54, 63-4
Galileo, 13, 126
Lisberger, S. G., 341, 366n2
Gardner, H., 258n9
Lycan, W . G .,60, 83,93,
Gazzaniga, M . S., 188
359n2
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M insky, M . L ., 359n3
Haugeland, J., 179, 305
Moore, G. E., 180
Hayes, P., 364n4
Heidegger, M ., 199 Nagel, T., 148-9, 151-3,
Hempel, C. G., 52 169-71, 361nl
Hirstein, W ., 364n4 N ewell, A ., 284, 307,315,
Hobbs, J. R., 282 364nl
Horgan, T., 87 * N icholls, J. G., 361n2
Hume, D., 363n3 Nietzsche, F., 252

Jackendoff, R., 218, 359n2 Ogden, C. K ., 54, 359n4


Jackson, F., 169-71 Otterson, M . R , 121
James, W ., 194,200
Pavelko, T. A ., 366n3
Jeffrey, R. C., 284
Penfield, W ., 158-9
Johnson-Laird, P. N., 67,
Penrose, R., 292
294, 365n2
Place, U. T., 44, 5 5 ,3 5 8 n ll,
Kant, É .,2 9 ,154,183,188 362n4
K im , J., 179, 181 Postman, L., 195
Kripke, S. A ., 59, 61,169-70, Putnam, H., 55, 58,75
2 6 2 ,360n6 Pylyshyn, Z. W ., 285, 295,
K u ffle r, S. W ., 361n2 365n2, 365n4
ÍN D IC E ONOMÁSTICO 379

Quine, W . V. O., 16-7, 234-5 Sher, G., 60


Smart, J. J. C , 44-5, 55-7, 59
Ramsey, F. P., 63-4, 360n8
Smith, B., 298
Récanati, F., 258, 260, 263
Smith, D. W ., 363n4
Rey, G., 357n6
Sober, E., 362n7
Richards, I. A ., 54, 359n4
Stevenson, J. T., 56
Rock, L, 331-2
Stich, S. P., 14, 70, 87,
Rorty, R., 14, 70, 208, 358nl
3 5 8 n ll
Rudermann, D., 361n4
Strawson, 6
Ryle, G., 6, 52
Turing, A ., 36, 68, 85,
Sachs, 188
288-90, 292-3, 295, 308,
Sama, S. K ., 121
310, 365n2
Schaffer, J., 56, 59
Searle, J. R., 2, 3, 6, 17, 68-9, Waldrop, M . M ., 364nl
98,119,184, 191,236, W alk, R., 195
249, 253, 277, 285-6, 347, Watson, J. B., 51, 359n4
3 5 8 n ll, 363n2, 364n3, Weiskrantz, 125, 234, 266
364n4, 366n3 W illiam s, B., 359n3
Segal, G., 365n3 W ittgenstein, L ., 6, 21,134,
Schiffer, S. R., 360nl0 182, 192, 194, 209,210,
Sharpies, M , 365n2 252, 262
Shepherd, G. M ., 284 Woodward, J., 87

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