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A Docência Na Educação Infantil Como Ato
A Docência Na Educação Infantil Como Ato
A Docência Na Educação Infantil Como Ato
Este artigo é um recorte de uma pesquisa de doutorado que teve por objetivo central discutir a
docência na educação infantil em uma perspectiva dialógica. Desta forma, utilizamos a
abordagem italiana e brasileira da Pedagogia da Infância e o aporte teórico histórico e cultural
de Vigotski e Bakhtin, como elementos metodológicos que fundamentaram nossas reflexões e
elaborações acerca da docência na educação infantil como ato pedagógico. Os resultados
apresentados se referem aos elementos constitutivos da prática pedagógica, visando
problematizar a centralidade da documentação pedagógica como esfera fundamental na
constituição da docência com as crianças de zero a três anos. O planejamento, a observação, o
registro e a avaliação são apresentados como instrumentos de aporte à prática pedagógica, de
modo dialético, assim inter-relacionados. O debate apresentado sobre a produção e organização
da documentação pedagógica sinaliza a necessidade de o/a professor/a de educação infantil ter,
antes de tudo, clara intencionalidade pedagógica, associada ao conhecimento científico na área.
Conhecimento este que permita conhecer das potencialidades das crianças em aprender,
apresentando-lhes propostas que atendam suas necessidades e interesses. A participação efetiva
delas nas propostas organizadas, deve ir além do momento da execução, mas também no
momento das escolhas do que pode ser feito para e com elas. Os resultados indicaram, também,
a importância da observação atenciosa às crianças, empreendimento que exige escuta e
sensibilidade do/a professor/a. Por fim, debatemos sobre a avaliação como meio de oferecer
visibilidade à especificidade da docência na educação infantil e como recurso promotor de
novas formas de atuação docente a partir do que se conhece das crianças por aquilo que elas
fazem.
Introdução
1
Doutora em Educação PPGE UFSC e Supervisora Escolar na Rede Municipal de Ensino de Florianópolis,
josalazardecastro@gmail.com
ISSN 2176-1396
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2
Partindo dos pressupostos filosóficos de Bakhtin (2010), discutimos a docência na educação infantil como ato
pedagógico, a partir do conceito de ato social. O ato não é pré-determinado, mas sim pré-organizado como
atividade mental, e se estabelece no momento da própria realização, na interação com a vida, com os sujeitos que
escutam, observam, respondem e completam os sentidos vivenciados em cada acontecimento. Para maior
aprofundamento da temática, ver Castro (2016).
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A observação e o planejamento
compreende que a linguagem oral não é determinante no processo inicial de interação entre elas
(ROCHA, 2008).
A observação atenciosa pode ser compreendida como instrumento que “ensina a ver”,
que fornece às professoras os “instrumentos óticos para prestar atenção e colher fenômenos
particulares3” naquilo que fazem as crianças, possibilitando assim a compreensão de suas
próprias práticas (BONDIOLI, 2007, p. 15). Isto demanda ao professor
Uma observação com mais foco, voltada à criança, ao seu fazer, às suas
comunicações; voltada ao contexto, e isto é, às situações propostas que a
criança tem e as quais ela reage; e para si mesmo; as reações que o
comportamento da criança tem sobre o adulto, reações que são compreendidas
e governadas.4 (BONDIOLI e FERRARI, 2004, p. 17).
Na direção do que apresenta a autora sobre o planejamento como atitude crítica diante
do trabalho docente, acrescentamos que o ato de planejar, na perspectiva do que é relevante
para as crianças, é também atitude responsiva, na qual gradualmente assume-se consciência de
que aquilo que se está projetando se refere ao outro. É uma resposta ativa e responsável ao
3
“strumenti “ottici” per prestare attenzione e cogliere fenomeni particolari”
4
un’osservazione con più fuochi, verso il bambino, il suo fare, le sue comunicazioni; verso il contesto, e cioè le
situazioni che al bambino vengono proposte e verso cui egli reagisce; e verso se stessi, sulle reazioni che il
comportamento del bambino ha sull’adulto, reazioni che vanno comprese e governate.
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modo como concebe-se a relação com as crianças no espaço da Educação Infantil. Essa
concepção requer postura ética e estética, pois não existe um dever estético ou científico sem
um dever ético e político que o acompanhe (Bakhtin, 2010). Existe uma integração entre esses
deveres, imbricados mutuamente no ato pedagógico, reverberados nos procedimentos
constitutivos do ser professor/a. Incluem-se nesses procedimentos o planejar, cuidadosamente
pensado, sistematizado e organizado em sintonia com os sujeitos principais dessa rede
relacional, as crianças.
Compreender o planejamento pedagógico como atitude responsiva requer que se
compreenda qual é o papel do ser professor/a na Educação Infantil. Esse papel é permeado pela
apropriação da intencionalidade docente e pela responsabilidade das escolhas, sobre o que fazer,
tendo em vista as prioridades de cada grupo, sem perder de vista o quê de processo brincante,
lúdico, revelam-se nas ações das crianças.
É necessário pensar sobre o que poderia ser feito para promover-se essas potencialidades
que as crianças possuem, sem atropelar seus tempos próprios de ser e estar bebê/criança no
coletivo da Educação Infantil. Isto implica, fundamentalmente, assumir posições, entendendo,
antes de tudo, o que é pedagógico (OSTETTO, 2000). Posturas que possam levar à reflexão de
que o ato de trocar a fralda, de auxiliar no banheiro e na alimentação das crianças precisam ser
planejados, escritos sistematicamente, propostos com delicadeza, observados e refletidos, são
caminhos para tornar esses momentos os mais pedagógicos possíveis.
Neste movimento e na retomada do agir, a reflexão pode ser suscitada de forma mais
aprofundada, levando as professoras a replanejar os próximos momentos de forma diferente e
melhor ou, às vezes, simplesmente refinando o já proposto, repetindo o ato, visando realizá-lo
com mais qualidade. Entendendo que qualidade significa ter em conta que a forma como
realizamos dada proposta com uma criança, com outra, talvez precise ser diferente.
Assumir a cotidianidade de fazeres, na Educação Infantil, como ato pedagógico,
possibilita compreender que as posições assumidas “adquirem sua validade no interior de uma
unidade estética, científica, sociológica; enquanto adquirem o dever na unidade de minha vida
singular e responsável” (BAKHTIN, 2010, p. 47). Isto é, os princípios da política, da ética e da
estética reverberam em todas as atitudes docentes, e esse conjunto exige uma complexidade de
conhecimentos, além de uma clareza de intencionalidades. Significa saber como fazer em
consonância com as diferentes manifestações das crianças.
Compreendemos que observar para refletir e planejar e executar e observar para refletir
são exercícios dialéticos, não ocorrem em linearidade. São práticas que elevam “o modo de
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contexto social e cultural dos sujeitos partícipes das instituições educativas (BARACHO, 2011;
MARQUES, 2010; MORO e SOUZA, 2014; NEVES e MORO, 2013; SIMIANO, 2015;
ZURAWSKI, 2009).
O documento Indicadores de Qualidade na Educação Infantil (BRASIL, 2009b) é
criado com o objetivo de instrumentar as instituições de Educação Infantil, para que realizem
seus próprios processos de avaliação (autoavaliação). Este instrumento viria como um auxílio
na consolidação e qualificação do trabalho coletivo, abrangendo também as famílias durante o
processo.
Já as DCNEI definem que “as instituições de Educação Infantil devem criar
procedimentos para acompanhamento do trabalho pedagógico e para a avaliação do
desenvolvimento das crianças, sem objetivo de seleção, promoção ou classificação” (BRASIL,
2009a, p. 29). Essa redação vem ao encontro do que já determinava a LDBEN 9394 (BRASIL,
1996). Todavia nas DCNEI são elencadas indicações de como o processo avaliativo deve
ocorrer, ou seja, pautado em quais estratégias metodológicas. É ressaltada a importância da
observação atenta às crianças, às transitoriedades e às continuidades dos processos de
aprendizagem delas. Também é apontada a necessidade de elaboração de formas de
documentação, com possibilidade de interação entre as famílias e os profissionais da Educação
Infantil, que venham a acompanhar as crianças em anos sucessivos (BRASIL, 2009a).
A avaliação seria, ainda, voltada aos “processos de desenvolvimento e aprendizagem da
criança na Educação Infantil”, com atenção a não retenção das crianças em grupos específicos
ou em relação ao ensino fundamental, uma vez que não é classificatória (BRASIL, 2009a, p.
29). No entanto, nesse documento não é feita menção à importância da documentação
pedagógica como forma de avaliar o próprio trabalho pedagógico. Seja o trabalho das
professoras, individualmente e em grupo (como recurso autoavaliativo), seja como meio de
registrar sistematicamente o vivido na instituição, buscando caminhos para qualificar o trabalho
coletivo, tendo como preocupação primeira a criança.
Consideramos importante ressaltar a necessidade e a relevância da observação das
professoras em relação às crianças. Isto pode qualificar a prática pedagógica, aproximando os
sentimentos e as emoções do adulto-professor e do grupo de crianças com quem atua. Segundo
Micarello, “o ato de observar requer uma atitude de acolhimento do adulto com relação às
formas peculiares pelas quais a criança se relaciona com o mundo e atribui sentido às suas
experiências” (2010, p. 4). Para tanto, é necessário haver critérios, organização e periodicidade
no processo de observar, interpretar e conhecer e registrar o que fazem as crianças.
1334
Ressaltamos que mesmo não sendo possível registrar e transformar em documento tudo
o que ocorre no cotidiano dos grupos de crianças na Educação Infantil, isso não significa
dispersar-se do que fazem as crianças. A observação constante e a reflexão sobre o observado
e o efetivamente vivido com e pela criança, a partir de registros, devem ser apropriadas como
intrínsecas ao ato pedagógico e como recurso elucidativo na qualificação do que é proposto,
como aponta Marques (2010). Para a autora, registro e documentação são processos inerentes
ao projeto pedagógico voltado para a infância, além de possibilitarem a constituição de memória
das experiências, contribuindo para a reflexão da prática realizada (MARQUES, 2010).
A documentação possibilita a restituição da memória dos acontecimentos vivenciados
na instituição, serve de instrumento para o grupo de trabalho elaborar e transformar em dados
culturais o que sucede no interior das instituições (CASTOLDI, 2010). Pela documentação, é
possível recuperar-se os percursos trilhados e as escolhas feitas em diferentes momentos do
cotidiano educativo, auxiliando-nos no processo de refletir sobre o modo como propomos e o
que e a quem estamos dirigindo nossas proposições. Nesse exercício, entramos em diálogo com
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nossas próprias elaborações e com as “respostas” que os sujeitos dessa relação dão ao que lhes
propiciamos. Dialogamos com a participação das crianças quando, ao retomar o registro do
vivido, conseguimos perceber quem foram os principais protagonistas das vivências: nós
adultos ou as crianças. É caminho para a reflexão crítica, atentando-nos aos significados que
atribuímos e consolidamos com nossas práticas pedagógicas.
Sobre o processo de documentação em Reggio Emilia, Baracho (2011) aborda a
proposta italiana para se pensar os aspectos inerentes à prática pedagógica em contextos
brasileiros, incluindo a avaliação como intrínseca a esse processo. Pautada nos princípios
reggimilianos, a autora destaca que,
[...] desde a mais tenra infância, nas suas interações sociais, as pessoas vão
somando impressões, gestos, antipatias, desejos, medos, etc., desenvolvendo
sentimentos e percepções cada vez mais diversificados e definidos, atribuindo
significados, construindo a sua identidade. (CRUZ, 2008, p.13)
Observar e tomar nota sobre o que as crianças estão fazendo possibilita-nos conhecê-las
no movimento de suas interações, tanto nas brincadeiras solitárias quanto com seus pares ou
com os adultos. Tomar nota significa registrar em um papel, em um pequeno bloco, o que a
criança faz que lhes chama tanto a atenção; em momento adequado, essas anotações podem ser
sistematizadas em cadernos, no computador ou em outros tipos de instrumentos. O importante
é capturar o acontecimento no próprio ato.
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Compreendemos ser necessário aprender com o tempo das coisas feitas pelas crianças,
nos colocando em “jogo” junto a elas, para capturar o que estão descobrindo, pensando e
sentindo. Hoyuelos (2013) relata que quando foi atelierista5 na Scuola Diana, em Reggio Emilia
(Itália), três crianças entre 18 e 22 meses estavam rabiscando, deixando marcas sobre uma folha
de papel. Nessa ocasião, uma das meninas põe uma folha sobre a cabeça, de modo ajustado,
contornando suas orelhas. Hoyuelos observou atentamente a pequenina e pensou que fosse um
disfarce, mas percebeu os dedos das suas mãos moverem-se lentamente, arranhando a superfície
do papel na altura do crânio. Sem entender o que aquela cena representava, fez o mesmo que a
menina de 20 meses e concluiu que ela “havia inventado uma caixa de ressonância, porque esse
arranhar rítmico em uma parte do papel provocava uma forma de eco sonoro que se percebia
transformado e ampliado nos ouvidos”6. O autor explica que, ao documentar a descoberta da
menina, mas sua também, pôde oferecer essa documentação à família da criança, valorizando
a inteligibilidade da pequena. Como afirma o autor, “a documentação desvelava o segredo de
suas possibilidades7” (HOYUELOS, 2013, p. 28).
Na continuidade do que afirma Hoyuelos, compreendemos que o observar e registrar,
posteriormente documentando-se de forma melhor elaborada, é exercício de reflexão, caminho
para conhecer as crianças e conhecer nosso trabalho dedicado a elas. Sem dúvidas, é também
forma de legitimar que o transcorrido no interior dos contextos coletivos de Educação Infantil
é permeado por um trabalho amparado por bases teóricas e comprometido com o bem-estar
daqueles que dali participam. É estratégia para afirmarmos que, na Educação Infantil, não basta
haver saberes, é preciso também de formação sólida, inicial e continuada, para que, em debate,
possamos perceber a complexidade do que é realizado.
Reconhecemos que tanto as contribuições recentes dos estudos brasileiros como as
experiências italianas são importantes enquanto referenciais que indicam possibilidades, modos
de pensar e alternativas para agir. Como indicam Marques e Almeida (2011), em relação ao que
no Norte da Itália é realizado como proposta pedagógica, observar, registrar, avaliar e,
principalmente, documentar são assumidos como metodologia pedagógica. No entanto, não se
pode adotá-los como modelos descontextualizados da nossa realidade. Para as autoras, estas
5
Nas instituições de Educação Infantil em Reggio Emilia, no Centro-Norte da Itália, o atelierista é a figura que
acompanha as crianças nesta atividade de descoberta e frequentemente tem competências de natureza artística. É
responsável por um espaço organizado, chamado atelier, que tem por finalidade oferecer e promover às crianças o
contato com elementos diversos que propiciem a criação artística.
6
Había inventado una caja de ressonancia, porque esse arañar rítmico en una parte del papel provocaba una
forma de eco sonoro que se percibía transformado y ampliado en los dos oídos.
7
La documentación desvelaba el secreto de sus posibilidades.
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experiências podem ser vistas como mais um referencial para se pensar possibilidades de
atuação na Educação Infantil, porém assumidos diante da realidade social e cultural na qual
vivemos. É preciso contextualizar a origem histórica e as características de cada instituição e
região, bem como dos sujeitos que a compõem.
Contudo, compreendemos que a produção da documentação pedagógica, além de
proporcionar o encontro de professores e dos/as demais profissionais com suas próprias
intencionalidades, possibilita também o reconhecimento do papel de cada um na Educação
Infantil, ao mesmo tempo em que promove a qualidade e credibilidade no trabalho que é
desenvolvido nesses contextos, principalmente quando compartilhado com as famílias.
Considerações finais
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Para uma filosofia do ato responsável. Organizado por
Augusto Ponzio e Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGE/UFSCAR. Tradução
de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
______. Far finta insieme. Condizione, dinamiche, strategie. Quaderni Infanzia. Bergamo,
Itália: Junior S.R.L., 1993.
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CRUZ, Silvia Helena Vieira. A criança fala: a escuta das crianças em pesquisa. CRUZ, S. H.
V. (Org.). São Paulo: Cortez, 2008. p. 43-51.
HOYUELOS, Alfredo. Arte y creatividad em Reggio Emilia El papel de los talleres y sus
possibilidades en educación infantil. In VECCHI, Vea. Editora Morata. Madri, 2013.
ROCHA, Eloisa Acires Candal. Por que ouvir as crianças? Algumas questões para um debate
científico multidisciplinar. In: CRUZ, S. H. V. A criança fala: a escuta das crianças em
pesquisa. CRUZ, S. H. V. (org.). São Paulo: Cortez, 2008.
ZURAWSKI, Maria Paula Vignola. 2009. 159 f. Escrever sobre a própria prática: desafios
na formação do professor da primeira infância. Dissertação (Mestrado e Educação) -
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-01092009-160535/pt-br.php>.
Acesso em: 18 de agosto de 2015.