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Artigo Liberdade e Perfeição em Spinoza

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Ca dernos E spi nosa nos

número especial sobre Maquiavel e Espinosa

estudos sobre o século xvii


n. 32 jan-jun 2015 issn 1413-6651
imagem escultura de Maquiavel em mármore, 1845, autoria Lorenzo
Bartolini, presente na Galleria degli Uffizi em Florença.
LIBERDADE COMO EXPRESSÃO DE
PERFEIÇÃO EM SPINOZA

José Fernando da Silva1

Pós-doutorando de Filosofia, unicamp, Campinas, Brasil

bandolim.fernando@gmail.com

resumo O artigo examina a concepção spinozista de liberdade. Ele


mostra que ela é inseparável das noções de realidade e perfeição. Pri-
meiro, o artigo examina a concepção de essência que a obra de Spinoza
propõe. Em seguida, ele mostra o sentido que Spinoza atribui à noção
de perfeição e seu vínculo interno com a noção de realidade. Na con-
clusão, mostra como a liberdade humana é expressão da plenitude da
realidade e perfeição do indivíduo.

palavras-chave liberdade, realidade, essência, perfeição, existência.

1  Bolsista Fapesp.

José Fernando da Silva p. 99-115 99


apresentação

Para Spinoza, “servidão” designa a impotência humana em do-


minar seus afetos, e “liberdade” expressa a maestria em dominá-los. Li-
berdade, portanto, não remete a um exercício promovido por uma (su-
posta) faculdade da alma (a vontade), em busca de algo que lhe falta,
pois tal concepção assumiria a impotência como um estado natural do
homem. Para Spinoza, ao contrário, a noção de liberdade encontra-se
vinculada com a plena afirmação da potência humana. Contrariando a
tradição da metafísica judaico-cristã, ele propõe que se pense a liberdade
como coincidente com a plena afirmação da potência para existir de
um indivíduo. O indivíduo livre é aquele capaz de realizar atividades
isentas de quaisquer constrangimentos. A liberdade é, desse ponto de
vista, a plena expressão da natureza interna que determina a existência
do indivíduo.

A ideia spinozista de liberdade ainda soa estranha em nosso


mundo. Ainda hoje, muitos concebem a liberdade como um exercício
promovido pela vontade. Liberdade é, nesse sentido, livre-arbítrio. Essa
imagem2 se mostra presente nos mais variados contextos de nossa coti-
dianidade, em particular nos diversos segmentos religiosos que tendem

2  Em Spinoza, um conhecimento imaginativo é aferido do primeiro gênero de co-


nhecimento, em que a alma se fixa, apressadamente, naquilo que o corpo foi ou vem
sendo afetado. Tudo que se consegue nesse patamar é formular uma ideia parcial da
coisa. É nessa esfera do conhecimento que se produz o erro. O conhecimento imagi-
nativo muitas vezes se sedimenta, cristaliza e ganha proporções de pedra irremovível,
de tal sorte que aqueles que vivenciam esse conhecimento não conseguem sequer
vislumbrar um entendimento distinto da realidade relativamente ao que esta ideia
inadequada engendra. Muitas das superstições judaicas que o jovem Spinoza teve que
enfrentar até ser excomungado se enquadram nesse cenário. Também a noção de li-
vre-arbítrio traz essa força negativa, cuja sedimentação aparenta ter a força de uma
necessidade, ou seja, de algo que não somos capazes de pensar de modo distinto.

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a identificá-la como uma graça divina, concedida ao homem como pos-
sibilidade de escolha. Apesar de ser concebida como uma dádiva dada
por Deus ao homem, ela é, no entanto, vista como a causa da tendência
humana ao erro e ao pecado. A ideia da liberdade como livre-arbítrio
também se encontra soberana nas acaloradas discussões dos meios de
comunicação de massa durante o período que precede eleições para os
diferentes quadros políticos de um Estado, momento em que prevalece
a crença de que a liberdade entendida como livre-arbítrio fornece a es-
sência do regime democrático, nesse contexto reduzido à possibilidade
do exercício da liberdade da escolha de candidatos.

Assim definida, a liberdade é delineada como uma propriedade


da alma que permite ao homem agir no mundo a partir de suas delibe-
rações. Ela é assumida como exercício de escolhas por parte da vontade,
fator que consolida a independência humana para dizer sim ou não,
avançar ou recuar, aceitar ou recusar. Sob esse prisma, a liberdade da
vontade não apenas distingue o ser humano de todos os animais que,
lembremos, são concebidos como seres movidos apenas pelo instinto,
mas também o distingue dos diversos e variados tipos de autômatos e
máquinas que ele próprio constrói.

Eis dois pontos importantes que a imagem da liberdade como


livre-arbítrio subsome: primeiro, a existência de uma hierarquização ab-
soluta da realidade, concepção que invariavelmente coloca o ser huma-
no como o ente mais elevado e sofisticado que subsiste dentro de uma
ampla e variada classificação e categorização criada por Deus; segundo, a
soberania do contingente, responsável por forjar um cenário constituído

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fundamentalmente sobre relações externas3, instituindo assim o império
da metafísica do possível4.

Esses dois pontos permitem entender as circunstâncias que fazem


as ideias de Spinoza soarem ainda em nossos dias de modo tão avesso a
católicos e protestantes, judeus e muçulmanos, e, numa perspectiva filo-
sófica, a pensadores kantianos5. A imanência radical do sistema spinozista
dispensa noções como transcendência, criação, categoria, contingência,

3  No final do século xix e início do século xx, Bertrand Russell travou um intenso
debate com o hegeliano H. F. Bradley a respeito das expressões “relações internas” e
“relações externas”. As expressões designavam, respectivamente, o vínculo de neces-
sidade que perpassa toda e qualquer relação, por oposição a relações plurais norteadas
pela contingência. Na ocasião, Russell cunhou o termo “relações externas” para sa-
lientar a pluralidade e contingência da realidade, por oposição ao monismo de Bladley
que configurava a realidade sob o prisma de uma necessidade interna que culminava
num modelo de Absoluto que Russell se negava aceitar (Cf. russell, 1980, cap. vii).
4  Marilena Chauí designa com a expressão “metafísica do possível” a visão de mun-
do edificada pela tradição teológica judaico-cristã que, partindo da imagem de Deus
como pessoa transcendente, “dotada de vontade onipotente e entendimento onisciente
criadora de todas as coisas a partir do nada, legisladora e monarca do universo” (chaui,
2009, p. 61). Segundo essa imagem, essa pessoa é capaz de revogar arbitrariamente as
leis universais que ele próprio criou, e é responsável por uma complexa teleologia que
orienta a parte substancial da moralidade ocidental e a concepção de realidade que
domina o espírito do homem ocidental.
5  Difícil se conceber um autor mais antagônico ao pensamento spinozista que Kant.
Para que se perceba isso, basta que se formule a seguinte questão: como Spinoza, caso
estivesse vivo no século XVIII, reagiria à proposta de um tribunal dirigido pela razão
com o objetivo de julgar a própria razão? Essencialmente sistemático e finalista, o
pensamento kantiano se funda sobre a prática de separar pares conceituais (necessida-
de/liberdade, natureza/homem, condicionado/incondicionado, fenômeno/númeno,
lei interna/lei externa, etc.) com o objetivo de demonstrar que o homem é um ser
incondicionado. É pouco provável que Spinoza nutrisse qualquer espécie de simpatia
por uma filosofia que, rotulando-se de revolucionária (copernicana), se pauta numa
concepção de liberdade como exercício da (boa) vontade, uma noção de dignidade
que sublima o homem e o retira de sua existência efetiva, e que propõe uma ética
universal que reproduz a velha confusão (judaico-cristã) a respeito do significado do
termo “lei”.

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hierarquia e finalidade. Prescinde também da construção de modelos
racionais e idealizados do ser humano. Sem ser determinista no sentido
vulgar, Spinoza constrói um pensamento absolutamente afirmativo, cuja
Substância que a tudo subsome de modo harmonioso e amoroso (spi-
noza, 2008, ev, pp. 35-37) exclui logicamente toda e qualquer partição
real, da mesma maneira que exclui qualquer modalidade hierarquizante
que tenda a conceber a vida como algo sempre dependente e submetida
aos desígnios de um patamar externo idealizado.

Ora, a imagem da liberdade como livre-arbítrio já subsiste em


Aristóteles quando este diferencia os campos da necessidade, da contin-
gência e da possibilidade. No entanto, a Holanda de Spinoza é calvinista,
e Calvino apreendeu a concepção da liberdade como livre-arbítrio das
obras de Santo Agostinho. É a filosofia de Agostinho que influencia e
perpassa a grande substancialidade das Institutas de Calvino. Criado por
Deus a partir do nada, e tendo sido presenteado com uma vontade livre
que o diferencia de todo restante da criação, o homem pode com essa
faculdade da vontade tanto se dirigir para o Soberano Bem quanto pode
escolher caminhar em direção aos bens secundários.

Spinoza denuncia que essa concepção pensa a liberdade como


algo que produz sempre resultados absolutamente contingenciais e ex-
ternos ao indivíduo. Além disso, essa imagem encerra a caracterização da
essência humana como algo que nunca é pleno. Necessariamente caren-
te, o homem sempre busca por intermédio de sua vontade agregar o que
lhe dê sentido. Além disso, não se deve esquecer que a metafísica judai-
co-cristã revela incessantemente um pessimismo contumaz em relação
à vida, assumindo quase que invariavelmente que a liberdade enquanto
presente outorgado por Deus ao homem é responsável por conduzi-lo
através de suas escolhas a ações que geram imperfeições. Estas, por seu

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turno, acabam por afastar o homem de Deus, mergulhando-o numa vida
direcionada ao erro e pelo erro. Da ótica dessa teologia, portanto, po-
dendo escolher entre a via de Deus e a via do pecado, o homem quase
que invariavelmente escolhe a via do pecado, se permitindo seduzir pela
concupiscência e pela ignorância. Segundo essa imagem do ser humano,
a liberdade é a fonte de toda imperfeição no homem, e dela apenas se
escapa devido a uma graça que Deus concede individualmente a alguns
homens.

Contrastando com essa visão de mundo, a filosofia de Spinoza é


absolutamente afirmativa, por isso em seu pensamento a liberdade hu-
mana não é atributo de uma faculdade da alma, mas é a expressão efetiva
daquilo que existe. Em outras palavras, a liberdade é a efetividade de
atividades sem constrangimentos por parte do homem, algo que, nesse
sentido, constitui-se como pura expressão de sua potência de viver. A
liberdade, consequentemente, é a expressão da perfeição atual de um
indivíduo. Assim, em contraposição à metafísica judaico-cristã, Spino-
za assume a liberdade como expressão da realidade humana, ou seja,
como o que mostra que à essência humana nada falta e que ela, quando
se efetiva, se constitui como a atualidade de sua perfeição. Além disso,
não se trata de buscar a Deus, ou seja, de optar por ações que levem o
homem em direção a outro ser, mas trata-se de realizar um movimento
promovido pela via do conhecimento que permita viver plenamente
consigo mesmo, algo que já significa edificar uma vida em Deus, isto é,
em consonância com a Natureza de um modo não fragmentado.

Com o objetivo de delinear a concepção de liberdade de Spi-


noza, obedecemos ao seguinte roteiro: primeiro, examino a concepção
spinozista da essência humana. A imagem da liberdade como livre-esco-
lha repousa sobre certa concepção de homem, por isso inicio o artigo

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contrapondo-lhe a visão spinozista de essência humana. Em seguida,
mostro como Spinoza estabelece um vínculo interno entre realidade
e perfeição, elo que tem na liberdade aquilo que o expressa de modo
pleno.

i.

Toda essência é afirmação de uma potência de agir.Toda essência


afirma a potência para existir de algo, defininindo-o ou estabelecendo
as condições que lhe permitem perseverar na existência. Toda essência
está vinculada, portanto, a uma existência em ato, ou seja, uma existência
fundamentalmente marcada pela ação. Portanto, Spinoza não identifica
as noções de “essência” e “universal”. À época de Spinoza, prevalecia
uma ampla tradição que dava ao universal o papel de determinação
do ser de uma singularidade. Diferentemente dessa tendência, Spinoza
edifica um pensamento que sustenta que toda essência é necessaria-
mente singular. Noções gerais não designam essências de singularidades
(spinoza, 2008, eii, p37). Essa concepção spinozista decorre do vínculo
interno que o pensador holandês propõe entre a essência e a existência
de cada coisa singular.

A essência, ou aquilo que define o ser de uma singularidade, está


diretamente vinculada com a existência daquilo que ela determina ou
define. São inseparáveis. A relação interna ou necessária entre essência
e existência se dá de duas maneiras distintas. A primeira e mais funda-
mental é a que encontramos em Deus. Na Substância absolutamente
infinita e eterna encontramos uma identidade entre as noções de essência
e existência. A necessidade de sua (infinita) existência coincide com a
natureza de seu ser (spinoza, 2008, ei, d1). A segunda maneira de rea-
lização dessa relação se dá no âmbito de todo o restante de coisas que

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existem, ou seja, os modos da Natureza Naturada. Nos modos finitos não
se dá uma relação de identidade entre a essência e a existência, mas tão
somente uma relação de inseparabilidade: “digo que pertence à essência
de uma coisa aquilo que, quando dado, necessariamente a coisa é posta, e
que quando retirado, a coisa é necessariamente anulada” (spinoza, 2008,
eii, d 2).

Ao contrário da essência de Deus, que não é alterada pela infi-


nidade de afecções que produz, a essência de um modo finito é afetada
pelas afecções do ente cuja existência ela determina, podendo aumentar
ou diminuir sua potência em decorrência do tipo de afetividade que
constitui a existência da coisa. Em último caso, as afecções da coisa a
conduzem ao seu próprio desaparecimento. No nível modal da onto-
logia spinozista lidamos com entes que estão necessariamente envoltos
pela noção de alteridade: a essência e a existência de uma coisa singular
não apenas dependem da Substância, que é causa eficiente imanente de
tudo que subsiste, mas também de outras coisas singulares que a afetam e
que ela afeta, ou seja, indivíduos dos quais a coisa participa ou que dela
participam. Nas palavras de Alexandre Matheron: “os indivíduos singu-
lares não podem existir senão em comunidade, sob a forma de partes de
um universo infinito, no seio do qual tudo age sobre tudo progressiva-
mente” (matheron, 1986, p. 19).

A alteridade ou interdependência trespassa tudo que existe no


âmbito modal. Um modo finito é, ao mesmo tempo, uma reunião deter-
minada de corpos, isto é, um conjunto de corpos reunidos que seguem
uma ordem ou determinação, e também uma parte de um indivíduo, ou
seja, um corpo entre diversos corpos que atuam unidos dentro de um
indivíduo mais complexo que os envolve. Os corpos afetam e são afe-

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tados ininterruptamente por outros corpos. Basicamente, quando dife-
rentes corpos agem unidos promovendo a mesma ação, constituem um
indivíduo. Assim, para Spinoza, tudo que existe, existe em ato, mantendo
uma constante proporção de repouso e movimento (spinoza, 2008, eii,
p13, ax1), se distinguindo pelo tipo de movimento que promove e pela
maior ou menor velocidade que decorre de suas mudanças (spinoza,
2008, eii, p13, ax2). Cada coisa se constitui como uma unidade dinâmica,
podendo ocorrer que corpos se separem da unidade, ao mesmo tem-
po em que outros de mesma natureza se agreguem, contribuindo para
conservar a natureza do todo. Há em toda essa ciranda de corpos uma
identidade que permanece alheia às mudanças, condição que garante
que sempre se fala do mesmo ente, a despeito do intenso fluxo afetivo
que o constitui (spinoza, 2008, eii, p13, lema4). Esse quadro geral se
aplica perfeitamente a toda infinidade de coisas presentes no universo,
de galáxias e estrelas a joaninhas e galinhas d’angola. A interdependência
interna e externa é condição necessária para a existência de qualquer
indivíduo (spinoza, 2008, eiii, p4).

O que permanece alheio ao ininterrupto fluxo de afetividades


em que um indivíduo se insere é sua essência. Spinoza concebe a essên-
cia modal como um impulso, uma energia, uma força que a condiciona
a manter sua existência segundo esse viés que a conduz. Ela se expressa,
portanto, como um esforço contínuo para a vida. Cada coisa que existe
possui uma essência que se expressa de um modo absolutamente ímpar
e característico. No caso do ser humano, o esforço (conatus) ou impulso
para a vida é o desejo: “o desejo é a própria essência do homem, en-
quanto ela é concebida como determinada, em virtude de uma afecção
qualquer de si própria, a agir de alguma maneira” (spinoza, 2008, eiii,
definições dos afetos1).

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Um lembrete: para Spinoza toda essência é essência de um indi-
víduo. Quando se afirma que a essência humana é o desejo, não se está
afirmando que este se realiza como uma propriedade geral (e ideal) que
se mantém inalterável, independente do que ocorre com a existência
individual. Não. Se o desejo é o que determina o cerne da existência
de um ser humano, o é de modo inseparável da existência atual deste
indivíduo. Perguntar-se sobre o que é o desejo ou a essência de um ser
humano é se indagar sobre as afecções que ele vivencia, e como sua po-
tência para vida (seu conatus) aumenta ou diminui dentro desse fluxo de
afetos. Apesar disso, “uma essência modificada é ainda a mesma” (levy,
1998, p. 258).

O desejo enquanto traço definidor do homem apenas se efetiva


com a construção da individualidade ou existência em ato. Ele não é
algo que paira no limbo alheio aos afetos que constituem a existência
individual, mas é algo que influencia e é influenciado por essas afecções,
aumentando ou diminuindo em função do cerne dessas vivências. Um
ser humano é um complexo formado por muitas e heterogêneas partes
físicas que se inserem em muitas e variadas relações físicas, culturais,
sociais e políticas, sendo também ininterruptamente afetado por uma
infinidade de fatos da Natureza. Um ser humano se encontra, portanto,
ininterruptamente envolto num redemoinho de afecções de proporções
múltiplas. A complexa teia de afecções que contribui para a efetividade
da existência atual de um dado ser humano lhe confere uma essência
absolutamente única. Não há dois seres humanos com apetites e desejos
absolutamente iguais. Se o desejo é a essência do ser humano, ele o é
de um modo absolutamente ímpar e multifacetado em cada existência
humana que se dá em ato.

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Portanto, para Spinoza a essência subsiste no devir, ao mesmo
tempo em que determina e se alimenta da dinâmica e ininterrupta afe-
tividade. Ao longo de uma existência individual, as afecções que se suce-
dem fazem com que se abandonem certos desejos e apetites e que estes
sejam substituídos por outros. A essência enquanto esforço para perse-
verar na existência é esforço para sentir e viver afecções que produzam
alegria (spinoza, 2008, eiii, definição dos afetos 3), ao mesmo tempo
em que procura evitar aquelas afecções que produzem tristeza. Alegrias
aumentam a realidade, expandindo-a na direta proporção em que au-
mentam a potência humana de agir. Por outro lado, tristezas enfraque-
cem o ânimo, ou seja, diminuem a potência para existir, minguando as
dimensões da realidade que um ser humano se abre a experimentar.

De sua capacidade ou incapacidade para alimentar saudavelmen-


te as muitas partes de seu ser (órgãos físicos, complexidade psíquica,
racionalidade, e as múltiplas relações de que participa – familiares, cul-
turais e políticas −) decorre o incognoscível período da existência de
um homem. A ininterrupta e múltipla afetividade humana é o que torna
a duração de sua existência sujeita à sua capacidade de manter intactas
as determinações de sua existência. A duração indefinida que caracte-
riza a existência no âmbito modal do atributo Extensão difere da ideia
de uma existência eterna, uma vez que esta última expressa a identida-
de entre “existência” e “eternidade”, algo que se dá somente em Deus
(spinoza, 2008, ei, d8). Ao mesmo tempo, a duração indefinida afasta a
ideia de uma existência com um tempo determinado, pois o período de
uma existência singular depende da capacidade individual de uma coisa
preservar seu ser. É no âmbito da modalidade finita que ganham sentido

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noções como “passagem, mudança, subsistência, persistência, continua-
ção, perseverança” (levy, 1998, p. 269).

O entendimento torna possível à alma discernir sobre sua inter-


dependência afetiva, mostrando os traços gerais da realidade (o segundo
gênero de conhecimento) e, também, em um nível mais profundo (o
terceiro gênero de conhecimento), os traços constitutivos das muitas e
distintas singularidades com que um ser humano interage. “À medida
que a alma (mens) compreende as coisas como necessárias, ele tem um
maior poder sobre seus afetos e deles padece menos” (spinoza, 2008,
ev, p6). Ou seja, a expansão do conhecimento a respeito do mundo e
do lugar relativo que o indivíduo ocupa dentro da complexa teia de
afecções em que se insere possibilita ao indivíduo afastar os afetos que
causam dor e tristeza, incorporando à sua existência apenas aqueles afe-
tos que causam alegria. O conhecimento é fundamental, portanto, para
aumentar sua potência de existir e tornar mais indeterminada a duração
de sua existência. A alegria como instância que aumenta o impulso para
viver aumenta, portanto, a realidade ou essência de um indivíduo. Para
Spinoza, esse aumento de potência coincide com o aumento de sua
perfeição. Vejamos como Spinoza traça o sentido do termo “perfeição”
e sua relação de direta proporcionalidade com a realidade efetiva de um
indivíduo.

ii.

A metafísica judaico-cristã e também a tradição platônica (pen-


so em Platão, mas em especial na tradição neoplatônica) conceberam a
perfeição como sinônimo de idealização, na medida em que se delineia
como algo que subsiste distante da realidade material. No prefácio da
parte iv da Ética, Spinoza mostra que essa visão apenas expressa a ten-

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dência humana em estabelecer arbitrariamente modelos universais que
prescrevem fins aos homens e à Natureza. Cegos e movidos por supers-
tições e enganos, os homens desconhecem que a Natureza não age em
função de fins, e que o termo “perfeição” apenas designa algo universal
de um ponto vista funcional e relativo.

Spinoza vincula as noções de perfeição e imperfeição com as


noções de bem e mal, ou seja, “modos de pensar (modi cogitandi), isto é,
noções que temos o hábito de inventar (fingere), quando comparamos
entre si indivíduos da mesma espécie ou do mesmo gênero” (spinoza,
2008, eiv, pref., p. 264). A despeito dessas noções se prestarem à se-
dimentação de preconceitos e superstições, Spinoza assume que com
elas apreendemos racionalmente um modelo da natureza humana, de
modo que se pode “dizer que os homens são mais perfeitos ou mais
imperfeitos à medida que se aproximem mais ou menos desse modelo”
(spinoza, 2008, eiv, pref., p. 266). A identificação do par de noções bem
e mal com o par de noções perfeição e imperfeição torna os primeiros
termos de cada par critérios para determinar o maior grau de realidade
de um ente. Relativas ao contexto vivido por uma individualidade, as
primeiras noções de cada par estão vinculadas à determinação do que
se quer agregar ou afastar da existência. O ser humano sempre procura
reter em sua existência as coisas que avalia como boas, enquanto procura
se afastar das coisas avaliadas como más. Assim, segundo Spinoza, a partir
daquilo que se julga “bom”, tende-se também a qualificar algo como
“perfeito”. Essa relação de direta proporcionalidade também se mostra
presente entre os termos “mal” e “imperfeito”: essas noções balizam o
que o indivíduo não quer dentro das fronteiras do mundo que vivencia.

Do fato do bem e do mal serem critérios para aferir o grau de


perfeição ou imperfeição de um indivíduo, não se segue que uma es-

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sência ou forma se transforme em outra. O aumento de perfeição não
significa saltar de um patamar a outro, no sentido de se transformar em
algo distinto daquilo que se é. No prefácio da parte iv, Spinoza pergunta
o que pode significar que um cavalo se transforme em homem ou em
inseto, senão sua aniquilação? O aumento ou a diminuição da perfeição
de uma coisa nada mais é que o aumento ou a diminuição da expressão
de potência de agir, ou seja, da própria natureza da coisa (Cf. spinoza,
2008, eiv, pref., p. 266).

Spinoza, portanto, apresenta um modelo de natureza (humana)


quando aborda a noção de perfeição na quarta parte da Ética. O modelo
proposto se funda na identificação entre a essência de uma singulari-
dade e sua potência de agir (seu conatus), e também sobre a incessante
busca do indivíduo em intensificar essa potência. Funcional, a noção
de perfeição é um critério que indica o grau de efetividade atual de
uma dada essência. Relativamente ao ser humano, sua alma ao longo de
sua existência vai (ou não) adquirindo uma maestria que lhe possibilita
reconhecer o que efetiva e aumenta sua natureza ou essência. Quanto
mais efetiva e atuante sua natureza, mais perfeita é sua singularidade.
“Por perfeição e realidade compreendo o mesmo” (spinoza, 2008, eii,
d6, p. 80). Resumindo: a perfeição humana se realiza na identificação de
sua potência de agir com sua essência ou realidade, e na intensificação
desta potência de agir. Concebida como expressão de uma existência
regida “exclusivamente pela necessidade de sua natureza e que por si só
é determinada a agir” (spinoza, 2008, ei, d7, p. 12), a liberdade coincide
com a perfeição de realidade da singularidade.

Ocorre que, na parte v da Ética, Spinoza apresenta outra de-


finição de perfeição. O termo transforma-se de modelo da natureza
humana em posse plena de um modo de vida ou de existir. Ao invés

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de uma dinâmica da potência singular, ou seja, ao invés da potência de
um indivíduo ser o produto do grau de maestria que ele adquire sobre
a complexa teia de forças afetivas em que se insere, trata-se nesse mo-
mento de uma dotação. “Perfeição” passa a designar a atribuição de toda
potência possível à alma humana. O termo não se limita mais a apenas
expressar o teor do conjunto de atividades de uma singularidade, mas
passa a designar a posse de um estado por parte da alma. “Se a alegria
consiste em uma transição a uma perfeição maior, a beatitude, segura-
mente, deve consistir em que a própria alma está dotada da perfeição”
(spinoza, 2008, ev, p33, p. 398). Esta concepção de perfeição é alcançada
com o terceiro gênero do conhecimento.

O indivíduo que conhece a natureza de cada coisa individual


com que mantém uma relação afetiva, algo que apenas o terceiro gêne-
ro de conhecimento pode proporcionar, alcança um entendimento de
como Deus é a causa de tudo que existe (spinoza, 2008, ev, p24). Com
isso, ele experimenta uma sensação de deleite, alcançando a virtude su-
prema, ou seja, ele compreende como as coisas se processam em Deus e,
assim compreende Deus (spinoza, 2008, ev, p27). Este indivíduo sente a
perfeição absoluta de Deus e sente o despertar de um amor intelectual
por Deus. Instaura-se uma perfeição maior que se exprime nas caracte-
rísticas positivas e efetivas do amor a Deus e a tudo que ele engendra.
Esse é um amor recíproco. “Deus ama a si mesmo com um amor inte-
lectual infinito” (spinoza, 2008, ev, p35). Portanto, Deus nutre um amor
infinito por tudo que produz e que se encontra subsumido em seus
infinitos Atributos. O indivíduo que alcança esse grau de compreensão
do divino, estado capaz de despertar esse amor intelectual, modifica sua
relação com tudo com que interage. A compreensão que a alma adquire
de tudo que está em Deus, algo que coincide com a posse da perfeição,

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leva o indivíduo a redescobrir todos os corpos com que mantém uma
relação afetiva. Tudo ganha matizes verdadeiros, permitindo-lhe uma
atitude de acolhimento e compreensão ativa, dessa forma expressando
um estado atual de plena positividade ou afirmação. Em outras palavras:
a alma alcança um estado de beatitude que se expressa sob a forma de
um amor incondicional a tudo que o rodeia: amor por Deus e, conse-
quentemente, por tudo que ele produz. O indivíduo que vive no Amor
de Deus, isto é, cuja potência se integra de modo pleno com a ideia ade-
quada que apreendeu de Deus, se apropria integralmente da eternidade
de sua natureza. Amplia-se sem proporções a afetividade do indivíduo, e
na direta proporção, sua realidade, perfeição e liberdade.

Concluindo: a alma deixa o patamar gradativo de dominação ou


submissão aos afetos, e passa a edificar uma existência plena de liberdade.
Essa é a liberdade do homem sábio, caracterizada, simultaneamente, pela
ausência de coação externa e pela pura expressão da perfeição de sua
realidade amorosa com e em Deus. A concepção spinozista de liberdade
traz de modo tácito um retorno por parte do pensador holandês ao pe-
ríodo helenístico. A figura do sábio grego (ataráxico e autárquico) ecoa
na Ética de Spinoza. No século xvii a filosofia está ganhando traços
essencialmente epistemológicos, e, contrariando essa tendência, Spinoza
insiste em perseverar na ética que funda e se nutre dos traços ontoló-
gicos da realidade. Acima de tudo, a concepção spinozista de liberdade
como expressão da perfeição e realidade do indivíduo mostra que uma
alma livre, uma alma que exerce plenamente sua livre necessidade, é
fundamentalmente uma alma naturante.

114 Cadernos Espinosanos São Paulo n.32 jan-jun 2015


FREEDOM AS AN EXPRESSION OF
PERFECTION IN SPINOZA

abstract The article examines Spinoza’s conception of freedom. It


shows that it is inseparable from the notions of reality and perfection.
First, the article examines the concept of essence proposed by Spinoza.
Then it shows the meaning given by Spinoza to the notion of perfec-
tion and its internal connection with the notion of reality. In conclu-
sion, it shows how human freedom is an expression of the fullness of
reality and perfection of the individual.

keywords freedom, reality, essence, perfection, existence.

referências bibliográficas
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(org). O mais potente dos afetos: Spinoza e Nietzsche. São Paulo: Martins
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spinoza, Benedictus de (2008). Ética. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica.

Recebido em 12/04/2015. Aceito em 26/04/2015.

José Fernando da Silva p. 99-115 115

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