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Revista Eletrônica IAT - A Pedagogia Histórico-Crítica

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A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA COMO FUNDAMENTO DA CONSTRUÇÃO


CURRICULAR DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL TÉCNICA INTEGRADA AO
ENSINO MÉDIO

Rosane de Abreu Farias1

Resumo
O presente estudo configurou-se na retomada teórica de conceitos importantes da Pedagogia
Histórico-Crítica como fundamento para a elaboração curricular que se proponha a integrar educação
profissional técnica de nível médio ao ensino médio. Portanto, foram utilizados autores que trabalham
com ambas as temáticas buscando sua interseção enquanto fundamentos teóricos: Saviani (2013) na
perspectiva dos príncipios filosóficos e epistemológicos para a referida integração; e Ramos (2014) no
embasamento para a construção curricular coletiva, que efetivamente seja realizada tendo o trabalho
como Princípio educativo em sua dimensão histórica e ontológica.

Palavras-chave: Currículo Integrado. Educação Profissional. Ensino Médio Integrado

Introdução

A proposta de um currículo integrado configura na atualidade uma diversidade


de ideias advindas das muitas perspectivas de crítica à rigidez escolar materializada
no currículo humanista clássico.
O conceito de currículo apresenta tradicionalmente a definição de um
documento prescritivo daquilo que deve ser realizado pela escola enquanto
processo de ensino-aprendizagem. Desta forma, materializa-se como seleção
arbitrária de determinados conhecimentos em detrimento de outros. "O currículo é
sempre resultado de uma seleção: de um universo mais amplo de conhecimentos e
saberes seleciona-se aquela parte que vai constituir, precisamente, o currículo."
(SILVA, 1999, p. 15)
O currículo enquanto campo de estudos, pesquisas e análises, ou seja de
teorização, foi constituído no momento de universalização da escolarização. Ainda
que seja reconhecida como um direito para todos, a educação não precisa ser a
mesma para todos. Nesta perspectiva, críticas ao currículo humanista clássico
surgem, assim como propostas alternativas ao mesmo.

1 Doutoranda em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Supervisora Educacional da Fundação de Apoio à Escola Técnica do Governo do Estado do Rio de Janeiro.
<ro.afarias@gmail.com> O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
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Inaugurou-se, assim, a preocupação formal com a educação que a classe


trabalhadora deveria receber; surgiram as questões: qual seria mais adequada?
Qual promoveria desenvolvimento econômico e individual? Qual valorizaria seus
interesses? De que forma deveria ser realizada? E essas são questões presentes
sempre que se pensa em currículo, e nas palavras de Silva, "as teorias do currículo
estão ativamente envolvidas na atividade de garantir o consenso, de obter
hegemonia." (SILVA, 1999, p. 16)
Neste texto pretende realizar uma retomada da construção conceitual de uma
Pedagogia Histórico-Crítica como possibilidade de materialização de uma proposta
de currículo para a Educação Profissional Técnica Integrada ao Ensino Médio.

De que possibilidade de currículo integrado estamos falando?

A percepção sócio-histórica da sociedade brasileira, marcada pelas


desigualdades sociais resultados de seus longos anos de economia escravocrata, a
associação da burguesia nacional, de forma subordinada, a burguesia internacional
(FERNDANDES, 2009), e o desenvolvimento econômico seguindo padrões de
"modernização do arcaico" (OLIVEIRA, 2013) demonstram o desafio em que se
constitui a construção de uma concepção de educação comprometida com as
necessidades da classe trabalhadora. Desta forma, a integração da educação
profissional técnica de nível médio ao ensino médio insere-se nessa perspectiva de
materialização do princípio ético-político com esta classe. A discussão que se segue
é pertinente enquanto sinalizadora da possibilidade de construção de uma proposta
político-pedagógica que supere dialeticamente as necessidades da realidade
brasileira, à medida que a formação profissional no ensino médio deixe de ser uma
imposição dessa realidade concreta de uma sociedade marcada pela desigualdade.
Assim, a proposta seria compreendê-la como uma nova concepção de
educação para a classe trabalhadora, na qual a formação humana integral constituir-
se-ia no princípio filosófico de formação omnilateral tendo o trabalho como principio
educativo em seu duplo sentido: ontológico e histórico; a indissociabilidade entre
educação profissional e ensino médio materializa o princípio ético-político da

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formação por reconhecer a necessidade da classe trabalhadora prover suas


necessidades; a indissociabilidade entre conhecimentos gerais e específicos; entre
conhecimentos científicos, culturais e ético-políticos, constituir-se-ia no princípio
epistemológico de seleção do conhecimento; e por fim o princípio pedagógico que se
materializa na organização curricular e na transmissão desses conhecimentos.
A partir desses princípios sistematizados por Ramos (2014), a autora sintetiza
que o princípio filosófico é orientado pela "filosofia da práxis" como concepção de
mundo, concretizada na forma de se interrogar e conhecer a realidade, a qual se
revela, epistemologicamente, no método materialista histórico-dialético. Ela
argumenta, então, que o sentido pedagógico encontra sua referência na "pedagogia
histórico-crítica", cujo principal representante é Dermeval Saviani. Este a partir da
categoria “modo de produção", tem como pressuposto que "as mudanças das
formas de produção da existência humana foram gerando historicamente novas
formas de educação, as quais, por sua vez, exerceram influxo sobre o processo de
transformação do modo de produção correspondente." (SAVIANI, 2013, p. 02)
Saviani (2013) destaca que a pedagogia histórico-crítica surge na década de
1980 como uma necessidade dos educadores brasileiros de superarem tanto os
limites das pedagogias não-críticas como das teorias crítico-reprodutivistas,
conseguindo razoável difusão enquanto proposta pedagógica nesta década. Porém,
na década de 1990, com o advento do neoliberalismo e suas reformas estruturais
em diversas áreas, entre elas a educacional, esta proposta foi tomada como forma
de resistência. O não cumprimento das promessas educacionais expressas por esta
fase, provomeu uma retormada das perspectivas críticas e da pedagogia histórico-
crítica como proposta.
Partindo da categoria marxista de trabalho enquanto processo de produção
da existência humana realizado por meio de uma ação intencional de transformação
da natureza, e processo por meio do qual, além de produzir sua subsistência o
homem produz conhecimento sobre a natureza e em relação com outros homens,
Saviani (2013) afirma que "a educação é um fenômeno próprio dos seres humanos
[e isto] significa afirmar que ela é, ao mesmo tempo, uma exigência do e para o
processo de trabalho, bem como é, ela própria, um processo de trabalho." (SAVIANI,
2013, p.11)
Desta forma, a categoria modo de produção expressa três facetas de um
mesmo processo: a primeira produção é a de bens materiais necessários à
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subsistência humana, a segunda produção é a de conhecimentos sobre a natureza


que é construída visando o aperfeiçoamento constante da primeira faceta, e a
terceira produção são as de valores para a convivência social com outros homens
que realizam o mesmo processo e sua representação simbólica. Deste processo,
resultam assim duas formas de trabalho: o material que é explícito pelo bem
palpável, materializado; e o não-material que é expresso pelo saber construído no e
pelo processo, ou seja, a ciência e a cultura.
Nesta perspectiva, a educação pode ser considerada um trabalho não
material uma vez que ela materializa o ato de transmissão de um conhecimento, seja
ele científico ou cultural, em uma forma de relação social determinada marcada pela
não separação do produto do trabalho de seu ato de produção. Ou seja, o produto
não se separa do produtor no momento de seu consumo, no ato de educar a
transmissão do conhecimento é produzida e ao mesmo tempo consumida em uma
relação social (produzida por quem ensina e consumida por quem aprende). Para
Saviani (2013) essa é a definição da natureza da educação.
A partir desta natureza, a educação tem seu ponto de especificidade na
seleção e validação do produto (conhecimento) que deve ser transmitido. Saviani
(2013) destaca que do trabalho não-material produzido (da ciência e da cultura), a
especificidade da educação é a preocupação com a seleção do que é necessário ao
homem assimilar a fim de produzir sua existência naturalizando tais elementos como
uma segunda natureza, ou seja, selecionar o conhecimento que é imprescindível ao
homem para produzir-se homem. Ele exemplifica com o ato de ler e escrever: o
código escrito em si é uma produção humana exterior ao ser, porém é necessário às
relações humanas ao ponto de ser inconcebível, ou desumano, não propiciar seu
aprendizado. Assim, "o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e
intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida
histórica e coletivamente pelo conjunto de homens." (SAVIANI, 2013, p. 13)
Resume-se a natureza da educação em um trabalho não-material cujo ato de
produção não dissocia-se do ato de consumo, e sua especificidade em seleção
daquilo que é produzido coletivamente e de necessária transmição às gerações
futuras. Desta forma, o objeto da pedagogia entendida como ciência da educação
configura-se "de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser
assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos

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e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas


para atingir esse objetivo." (SAVIANI, 2013, p. 13)
Destacando que a educação não se restringe ao ato ensinar, porém que
ensinar é uma particularidade da natureza própria do fenômeno educativo, e que o
mesmo ao ser institucionalizado pela escola reflete uma identidade própria, Saviani
destaca que "a escola configura uma situação privilegiada, a partir da qual se pode
detectar a dimensão pedagógica que subsiste no interior da prática social global"
(SAVIANI, 2013, p. 13). Pode-se perceber, assim, a constituição do campo de
estudo do currículo: a seleção de conhecimentos e suas formas de transmissão.
Assim, Saviani (2013) defende que a escola é a instituição social cuja tarefa
principal é a transmissão do saber elaborado bem como de seus fundamentos, ou
seja, do conhecimento sistematizado. Sua crítica às novas formas de currículo
centrado no interesse dos alunos, na resolução de problemas por eles escolhidos ou
em aspectos da prática social dissociados de seus fundamentos, tendem a
descaracterizar o trabalho escolar, a ampliar-se de tal maneira o conceito de
currículo que se deixa de lado a tarefa principal da escola, definida por ele como a
atividade nuclear da escola, razão de sua existência.

Ora, a opinião, o conhecimento que produz palpites, não justifica a


existência da escola. Do mesmo modo, a sabedoria baseada na
experiência de vida dispensa e até mesmo desdenha a experiência
escolar, o que, inclusive, chegou a cristalizar-se em ditos populares
como "mais vale a prática do que a gramática" e "as crianças aprendem
apesar da escola". É a exigência de apropriação do conhecimento
sistematizado por parte das novas gerações que torna necessária a
existência escolar. (SAVIANI, 2013, p. 14)

Apesar de parecer saudosismo à pedagogia tradicional, Saviani (2013)


argumenta que não é disso que se trata. Ressalta que a crítica realizada ao
mecanicismo e ao esvaziamento de sentido na transmissão de conhecimentos
realizada pela respectiva pedagogia foi justa e necessária, porém a negação da
transmissão de conhecimento sistematizado em prol da criatividade e da liberdade
de escolha dos alunos também nega o que é essencial da natureza escolar. Ou, em
suas palavras: "clássico na escola é a transmissão-assimilação do saber
sistematizado." (SAVIANI, 2013, p. 17)
Desta forma, o autor sinaliza que essa finalidade da escola determina a
metodologia e organiza os processos de ensino-aprendizagem que serão adotados.
Assim resgata o princípio gramsciano de escola unitária pelo qual, na organização
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da escola, associada à maturidade psicológica do educando, haveria um primeiro


momento de formação que, com base dogmática e disciplinadora, visaria construir
os fundamentos científicos e culturais, assim como desenvolver o método e a
disciplina para os estudos; este seria propiciador do segundo momento de formação,
o desenvolvimento ativo e criativo com bases autônomas de estudo, seja acadêmico
ou profissional. (GRAMSCI, 1968)
Com base nessa ideia, Saviani defende que "é preciso entender que o
automatismo é condição da liberdade e que não é possível ser criativo sem dominar
determinados mecanismos." (SAVIANI, 2013, p. 17).
E completa,

a liberdade só se dá porque tais aspectos [os mecanismos próprios do


conhecimento] foram apropriados, dominados e internalizados,
passando, em consequência, a operar no interior de nossa própria
estrutura orgânica. Poder-se-ia dizer que o que ocorre, nesse caso, é
uma superação no sentido dialético da palavra. Os aspectos mecânicos
foram negados por incorporação e não por exclusão. Foram superados
porque negados enquanto externos e afirmados como elementos
internos. (SAVIANI, 2013, p. 18)

O que Saviani sintetiza (2013) em suas colocações é que a principal


preocupação da pedagogia se constitui exatamente na forma como o saber
sistematizado será transmitido às novas gerações permitindo-lhes adquirir o método
propiciador da produção de novos saberes. Para demonstrar seu ponto de vista, o
autor compara a questão do conhecimento para o cientista e para o professor: para
o primeiro, ele afirma que descobrir novos conhecimentos é seu objetivo principal em
sua área de atuação; enquanto que para o segundo, o crescimento intelectual de
seus alunos é seu objetivo principal, sendo o conhecimento um instrumento para
esse crescimento. Ou seja, a principal questão da pedagogia é transformar em saber
escolar o saber elaborado (ciência ou cultura) socialmente, sua preocupação é "o
processo por meio do qual se selecionam, do conjunto do saber sistematizado, os
elementos relevantes para o crescimento intelectual dos alunos e organizam-se
esses elementos numa forma, numa sequência tal que possibilite sua assimilação."
(SAVIANI, 2013, p. 65)
Desta forma, distinguindo produção de saber de elaboração de saber, o
referido autor destaca que a importância da escola está em fornecer o acesso e
domínio dos instrumentos de sistematização e elaboração do saber, permitindo
assim a socialização do saber elaborado, uma vez que este é uma força produtiva (e
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atualmente um meio de produção) que quando restrita a um grupo enquanto


propriedade privada, impede que os trabalhadores que contribuem para a produção
desse saber por meio de sua atividade prática real possam ascender ao nível de sua
elaboração. O acesso a esses instrumentos permitiria também aos trabalhadores o
desenvolvimento de sua consciência crítica.
Em relação ao saber elaborado, o autor faz duas distinções importantes:
primeiro que o saber é socialmente produzido, o que implica afirmar que o saber
está em constante processo de elaboração, logo ele não é um conhecimento
acabado e simplesmente transmitido, mas pressupõe-se que o que já foi elaborado
precisa ser transmitido a fim de que a partir dele se possa realizar transformações e
superações. Segundo, que a dicotomia saber popular e saber erudito pressupõe
uma polarização de saberes que deve ser superada, uma vez que associar a
primeira à libertação e a segunda à dominação desconsidera que ambas são
produções sociais históricas e que é o acesso a esta produção histórica da
humanidade que de fato promove a libertação e põe fim à distinção. Assim o autor
defende,

a cultura popular, do ponto de vista escolar, é de maior importância


enquanto ponto de partida. Não é porém, a cultura popular que vai
definir o ponto de chegada do trabalho pedagógico nas escolas. (...) O
povo precisa da escola para ter acesso ao saber erudito, ao saber
sistematizado e, em consequência, para expressar de forma elaborada
os conteúdos da cultura popular que correspondem aos seus interesses.
(SAVIANI, 2013, p. 69-70)

Ao desconsiderar-se essa função da escola em fornecer o acesso ao saber


elaborado, defendendo-se que a cultura popular é que deve ser transmitida na
escola, transmite-se aos trabalhadores aquilo que ele já possui, e assim, ao negar-
lhe o acesso à cultura erudita, dominada pela classe dominante, nega-lhe a
possibilidade de também dominar tal cultura de modo que deixe de ser um elemento
de distinção de classes.
Explicitadas as considerações de Saviani (2013) sobre a natureza e
especificidade da educação, sobre a tarefa principal da educação escolar e sobre a
preocupação central da pedagogia, e considerando que a pedagogia trata das
formas, dos processos e dos métodos, seu desafio constitui-se exatamente na
articulação da dimensão teórica com a prática no sentido de torná-las indissociáveis.
Neste sentido, Saviani afirma que "a pedagogia histórico-crítica [...] considera que a

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teoria tem seu fundamento, o seu critério de verdade e a sua finalidade na prática."
(SAVIANI, 2013, p. 91) E destaca que, se no âmbito da materialidade da teoria há
entraves que prejudicam seu avanço, ao mesmo tempo possibilita-se a
compreensão desses e o desenvolvimento de mecanismos de transformação dos
mesmos.
De forma geral, o referido autor enuncia três desafios à materialidade da ação
pedagógica brasileira: a ausência de um sistema de educação nacional, a
contradição entre as formulações teóricas críticas e a estrutura organizacional da
educação já existente, e por último, e talvez mais grave, a descontinuidade das
políticas educacionais. Dado que o primeiro e o último desafio localizam-se com
maior preponderância no âmbito das políticas públicas para a educação,
localizaremos maior enfoque no segundo desafio por este apresentar maior
centralidade nas atividades cotidianas da escola e do currículo.
Nesta perspectiva, Saviani destaca que enfrentamos "o problema relativo ao
descompasso entre o teor da proposta, em sua formulação teórica, e o modo como
se concebe e se executa o processo de implantação." (SAVIANI, 2013, p. 99) ou
seja, ainda que teoricamente a proposta seja crítica aos determinantes sociais, o
processo de implantação coloca aos docentes a necessidade e o desafio de pensar
em novas formas de organização de seu trabalho, de sua ação pedagógica, a fim de
promover a mobilização e desenvolvimento de mecanismos de resistência aos
mesmos. Para tal, "a forma de implantação envolve a problemática organizacional
que, por sua vez, tem a ver com a questão da ligação entre teoria e prática que nós,
educadores, teimosamente tendemos a compreender como polos separados."
(SAVIANI, 2013, p. 99)
Ao separar-se teoria e prática, há a tendência a valorização de um ou outro
na forma como a ação pedagógica será organizada. Assim, se por um lado se critica
a pedagogia tradicional por se centrar na teoria, por outro, as tendências
progressistas centraram-se na valorização da prática, da experiência. Saviani (2013)
exemplifica com a organização da sala de aula, como a concepção de educação
materializa-se: em uma sala de aula tradicional, cuja centralidade está na figura do
professor e o objetivo é a transmissão do conhecimento, a organização se dá em
carteiras enfileiradas tendo o quadro negro e a mesa do professor à frente e nenhum
estímulo visual que não seja aquele exposto no quadro, de modo que toda atenção
dos alunos deve estar nesta exposição; em uma sala de aula progressista, cuja
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centralidade está na figura do aluno, em seus interesses e nas experiências que


podem levá-lo a construir seus conhecimentos, a organização das carteiras se dá de
acordo com o tipo de experiência que será desenvolvida, há exposição de assuntos
e trabalhos dos alunos pelas paredes, e interação constante entre os alunos.
O autor, então, adverte:

quando se quer mudar o ensino, guiando-se por uma outra teoria, não
basta formular o projeto pedagógico e difundi-lo para o corpo docente,
os alunos e, mesmo, para toda comunidade escolar, esperando que eles
passem a se orientar por essa nova proposta. É preciso levar em conta
a prática das escolas que, organizadas de acordo com a teoria anterior,
operam como um determinante da própria consciência dos agentes,
opondo, portanto, uma resistência material à tentativa de transformação
alimentada por uma nova teoria. (SAVIANI, 2013, p.102)

Desta forma, percebe-se que o Documento Base para integração da


Educação Profissional ao Ensino Médio (BRASIL, 2007) constitui-se em uma
formulação que considera os aspectos filosóficos, por meio da colocação do
horizonte utópico da politecnia, ao mesmo tempo que reconhece as mediações
sócio-históricas da sociedade brasileira, seus reflexos na organização escolar e seus
limites, colocando-se assim como uma "travessia", uma possibilidade de mobilização
da ação pedagógica na perspectiva da transformação social. Reconhece-se,
portanto, que,

a educação é, sim, determinada pela sociedade, mas que essa


determinação é relativa e na forma da ação recíproca - o que significa
que o determinado também reage sobre o determinante.
Consequentemente, a educação também interfere sobre a sociedade,
podendo contribuir para a sua própria transformação. (SAVIANI, 2013,
p. 80)

É nessa perspectiva que Ramos (2014) contribui para uma sistematização do


processo de elaboração curricular integrada, partindo do trabalho enquanto princípio
educativo, que concebe o desenvolvimento do conhecimento a partir das relações
que o homem estabelece com a natureza (no sentido de adaptá-la a si) e com os
outros homens; da filosofia da práxis enquanto princípio filosófico e epistemológico,
que concebe

o real como um todo estruturado (e que, portanto, não é caótico), que se


desenvolve (por não ser imutável nem dado uma vez por todas) e que
se cria permanentemente (e, por isso, não é um todo perfeito e acabado
no seu conjunto e não é mutável apenas em suas partes isoladas)
(RAMOS, 2014, p. 211).

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e da pedagogia histórico-crítica como princípio pedagógico "que tem a


categoria modo de produção como fundamento e sentido da educação." (RAMOS,
2014, p. 208)
O processo de elaboração de um currículo integrado constituir-se-ia como um
trabalho coletivo de acordo com o seguinte movimento:

problematizar fenômenos - fatos e situações significativas e relevantes


para compreendermos o mundo em que vivemos, bem como processos
tecnológicos da área profissional para a qual se pretende formar -, como
objetos de conhecimento, buscando compreendê-los em múltiplas
perspectivas (tecnológica, econômica, histórica, ambiental, social,
cultural, etc.); explicitar teorias e conceitos fundamentais para a
compreensão do(s) objeto(s) estudado(s) nas múltiplas perspectivas em
que foram problematizadas e localizá-los nos respectivos campos da
ciência (áreas do conhecimento, disciplinas científicas e/ou
profissionais), identificando suas relações com outros conceitos do
mesmo campo (disciplinariedade) e de campos distintos do saber
(interdisciplinariedade); situar os conceitos como conhecimentos de
formação geral e específica, tendo como referência a base científica
dos conceitos e sua apropriação tecnológica, social e cultural; a partir
dessa localização e das múltiplas relações, organizar os componentes
curriculares e as práticas pedagógicas, visando corresponder, nas
escolhas, nas relações e nas realizações, ao pressuposto da totalidade
do real como síntese de múltiplas determinações. (RAMOS, 2014, p.
214, grifos nossos)

Desta forma, para a autora a proposta é que o currículo se organize a partir


de situações de aprendizagem definidas pela equipe pedagógica; tais situações
seriam resultado da problematização do processo de produção em múltiplas
perspectivas e a partir destas perspectivas seriam selecionados os conceitos e
conhecimentos necessários para a compreensão desses processos: aqueles que
são fundamentais de cada área do conhecimento e aqueles que transitam por
diversas áreas de conhecimento, estabelecendo-se assim tanto a prática disciplinar
específica quanto a interdisciplinar, tanto a formação geral quanto a específica.
Ela considera também que a definição de tempos e espaços escolares não
poderia ser realizada de forma rígida, pois haveria a necessidade de se defini-los na
forma que melhor atendesse ao desenvolvimento do processo de ensino-
aprendizagem dos conceitos e conhecimentos, da mesma forma como aconteceria
com o processo de avaliação. Este, tomado em sentido formativo, seria centrado na
percepção daquilo que já foi assimilado e do que ainda necessita-se assimilar. Em
suas palavras, "prioridades podem ser conferidas aos respectivos tempos e
atividades, sem que, entretanto, isso signifique hierarquizar disciplinas e conteúdos
sob o julgamento de seu valor para a formação." (RAMOS, 2014, p. 216)
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Percebe-se assim, o desafio a ser materializado pelas redes escolares que


decidam integrar a educação profissional ao ensino médio: como construir um
currículo de fato integrado com lógicas de organização e funcionamento tão
diversos? Como integrar teoria e prática a partir das lógicas disciplinares e
fragmentadas existentes hoje no interior da escola? Como tornar a construir uma
formação integral que conjugue a perspectiva de ser um ensino propedêutico ao
ensino superior e ao mesmo tempo permita o exercício do trabalho ao seu fim?
Essas são questões que desafiam a escola, enquanto instituição viva e dinâmica,
porque constituída de sujeitos sociais em constante prática, a buscar soluções na
própria materialidade do real.
Corroborando com Saviani (2013), essas questões retornam aos outros dois
desafios destacados pelo autor: para a política pública de formação para a classe
trabalhadora efetivar-se, materializada pela possibilidade de integração entre
educação profissional e educação básica, tornar-se-ia necessário que realmente
fosse assumida como uma prioridade governamental. Por outro lado, o próprio autor
destaca que a partir da constituição estrutural da sociedade brasileira, esta não é
uma opção:

Com efeito, socializar os meios de produção significa instaurar uma


sociedade socialista, com a consequente superação da divisão em
classes. Ora, considerando-se que o saber, que é objeto específico do
trabalho escolar, é um meio de produção, ele também é atravessado por
essa contradição. Consequentemente, a expansão da oferta de escolas
consistentes que atendam a toda a população significa que o saber
deixa de ser propriedade privada para ser socializado. Tal fenômeno
entra em contradição com os interesses atualmente dominantes. Daí a
tendência a secundarizar a escola, esvaziando-a de sua função
específica, que se liga à socialização do saber elaborado, convertendo-
a numa agência de assistência social, destinada a atenuar as
contradições da sociedade capitalista. (SAVIANI, 2013, p. 85)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No contexto atual, as políticas públicas para a educação defendem a


necessidade de um currículo cada vez mais integrado como forma de superar a
fragmentação disciplinar. Desta forma torna-se também importante compreender a
quais princípios sociais, filosóficos e políticos tal defesa está vinculada.

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Nesta perspectiva, não se trata de realizar uma discriminação sobre princípios


verdadeiros ou falsos, mas de demonstrar que cada um deles representa relações
sociais assimétricas de poder. Desvelar tais relações possibilita elaborar outras
propostas de organização curricular. Reconhecer que o cotidiano da escola, suas
relações interpessoais, também fazem parte deste currículo, permite refletir sobre a
função social da escola e de que forma cada um é também responsável por ela.
Desta forma, o presente estudo buscou contribuir para a reflexão do papel
importante que a organização curricular representa para a formação, mas sabendo-
se que um documento prescritivo, o qual muitas vezes é assumido como apenas
mais um, representa princípios sociais, filosóficos, epistemológicos e políticos que
são assumidos como princípios formativos das gerações futuras, produtores de
subjetividades, possibilidades de resistência e luta de classes.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação e da Cultura. Educação profissional técnica de


nível médio integrada ao ensino médio. 2007. (Documento Base)

FERNDANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na Améria


Latina. 4.ed. São Paulo: Global, 2009.

GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o estado moderno. 4.ed. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

______. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1968.

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica a razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo:


Boitempo, 2013.

RAMOS, Marise. Filosofia da práxis e práticas pedagógicas de formação de


trabalhadores. Trabalho & Educação, Belo Horizonte, v. 23, n.1, p. 207-218,
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SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11.ed.


Campinas: Autores Associados, 2013.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do


currículo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntca, 1999.

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