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Gente Pobre (Fiódor Dostoiévski)
Gente Pobre (Fiódor Dostoiévski)
Gente Pobre (Fiódor Dostoiévski)
PRÍNCIPE V. F. ODÓIEVSKI
(Do conto “O morto vivo”, de 1839, de Vladímir
Odóievski (1804-1869). (N. da E.)
8 DE ABRIL
Minha inestimável Varvara Alieksiêievna!
Ontem fiquei feliz, desmedidamente feliz, feliz a mais não poder.
Ao menos uma vez na vida deu-me ouvidos, sua teimosa. À noitinha, por
volta das oito, acordo (como sabe, minha filha, gosto de tirar uma soneca de
uma horinha, duas, depois do trabalho), pego uma velinha e ponho-me a
arrumar os papéis, a afiar a pena; de repente levanto os olhos, por acaso —
palavra, de súbito meu coração começou a disparar! Afinal entendeu o que
eu mais desejava, o que mais desejava o meu coraçãozinho! Olho, uma
pontinha da cortininha de sua janela está arrebitada e presa ao vaso de
balsamina, tal como já lhe havia insinuado; por um momento me pareceu
que seu rostinho também surgira à janela e que de seu quartinho também
olhava para mim, que também estava pensando em mim. E como fiquei
desapontado, minha pombinha, por não poder discernir direito esse seu
rostinho gracioso! Houve um tempo em que eu também enxergava com
nitidez, minha filha. A velhice não é brincadeira, minha querida! Mas,
agora, é como se tudo se me turvasse diante dos olhos; um pouquinho que
trabalhe à noite, uma coisinha que escreva, pela manhã os olhos estão
vermelhos e tão lagrimejantes que chega a dar vergonha diante de
estranhos. Entretanto, em minha imaginação, estava com seu sorrisinho
radiante, anjinho, seu sorrisinho tão amável e afetuoso; e em meu coração
experimentei exatamente a mesma sensação de quando a beijei, Várienka
— está lembrada, anjinho? Sabe, minha pombinha, que me pareceu até que
me ameaçava daí com o dedinho? É verdade, sua travessa? Descreva-me
isso tudo sem falta com detalhes em sua carta.
E, então, que tal a nossa invençãozinha a respeito de sua cortininha,
Várienka? Fascinante, não é mesmo? Se me sento para trabalhar, se me
deito para dormir, se acordo, sei que daí também pensa em mim, que me
compreende e, além disso, se está com saúde e contente. Se baixa a cortina,
quer dizer — boa noite, Makar Alieksiêievitch, hora de dormir! Se a
levanta, quer dizer — bom dia, Makar Alieksiêievitch, como passou a noite,
ou: como vai de saúde, Makar Alieksiêievitch? Quanto a mim, graças ao
Criador, estou bem e com saúde! Está vendo, minha estrelinha, como isso
foi bem bolado; nem de cartas é preciso. Bem pensado, não é mesmo? E foi
uma invençãozinha minha! E, então, não sou bom para essas coisas,
Varvara Alieksiêievna?
Devo informá-la, Varvara Alieksiêievna, minha filha, de que esta
noite, contrariando as expectativas, dormi um sono só, o que me deixou
realmente satisfeito; embora num alojamento novo, de casa nova, é como se
a gente nunca fosse conseguir pegar no sono; fica sempre parecendo que há
algo errado! Levantei-me hoje como o falcão fulgente* — contente de dar
gosto! Que bela manhã está fazendo hoje, minha filha! Abriram aqui a
minha janelinha**; o solzinho está brilhante, os pássaros chilreiam, o ar
recende aromas primaveris, e toda a natureza se revivifica — bem, e todo o
resto também está em correspondência; tudo em ordem, à maneira
primaveril. Hoje até me entreguei a sonhos bem agradáveis, e meus sonhos
foram o tempo todo com você, Várienka. Comparei-a com um pássaro do
céu, criado para a alegria dos homens e adorno da natureza. E então pensei
que pessoas como nós, Várienka, que vivem sempre em meio a tribulações
e sobressaltos, também deveriam invejar a felicidade despreocupada e
inocente das aves do céu — bom, e todo o resto também assim, e por aí vai;
quer dizer, fiquei fazendo essas comparações vagas. Estou com um livro
aqui, Várienka, e nele também está tudo descrito desta mesma maneira e
com bastantes pormenores. Escrevo isso porque os sonhos costumam variar,
minha filha. Agora é primavera, por isso os pensamentos são sempre tão
agradáveis, aguçados, engenhosos, e os sonhos são ternos, sempre cor-de-
rosa. Foi por esse motivo que escrevi isso tudo; aliás, tirei isso tudo do
livro. Nele o autor exprime esse mesmo desejo em versos e escreve:
Por que não sou uma ave, uma ave de rapina?!
Etc. e tal. Há ainda vários pensamentos nele, mas não vem ao caso!
E por onde foi que andou hoje de manhã, Varvara Alieksiêievna? Ainda
nem havia me aprontado para ir à repartição e já esvoaçava do quarto e
atravessava o pátio toda contentinha, como um verdadeiro pássaro
primaveril. Como fiquei contente ao vê-la. Ah, Várienka, Várienka! Não
fique triste; não é com lágrimas que se remedia a dor; isso eu sei, minha
filha, sei por experiência própria. Agora está tão tranquila, até de saúde está
um pouco melhor. E como vai sua Fiódora? Ah, que mulher bondosa é essa!
Escreva-me, Várienka, dizendo como estão vivendo aí agora e se estão
satisfeitas com tudo. É verdade que Fiódora é um pouco rabugenta; mas não
faça caso disso, Várienka. Deus a proteja! Ela é tão boa.
Já lhe escrevi sobre nossa Teresa, que também é uma mulher boa e
fiel. Como já estava preocupado com nossas cartas! Como fazer para
entregá-las? E eis que, para nossa felicidade, Deus nos enviou Teresa. É
uma mulher boa, dócil e calada. Mas a nossa senhoria é simplesmente
impiedosa. Sobrecarrega-a de trabalho como se fosse um pano de chão.
Em que pardieiro vim eu parar, Varvara Alieksiêievna! Bem, é um
alojamento! É verdade que antes vivia como um surdo, bem sabe: em paz e
em silêncio; dava até para ouvir uma mosca voando, se acontecia de entrar
uma mosca no quarto. E aqui há barulho, gritaria, vozerio! Nem faz ideia de
como isso tudo aqui está arranjado. Imagine, por exemplo, um corredor
comprido, completamente escuro e sujo. Do lado direito a parede é
inteiriça, do lado esquerdo são portas e mais portas, todas enfileiradas,
exatamente como os quartos de hotel. E há quem alugue estes quartos, e são
todos quartos de solteiro; em um único vivem de duas a três pessoas. Nem
pergunte pelo regulamento — é a própria arca de Noé! De resto, parece que,
apesar de tudo, é uma gente boa, com instrução, culta. Há um funcionário
(de alguma seção literária aí), um homem lido: fala de Homero, de
Brambéus* e de vários escritores lá deles, fala sobre tudo — é um homem
inteligente! Moram dois oficiais que passam o tempo jogando cartas. Mora
um aspirante da marinha; mora um inglês, professor. Espere para ver, ainda
a farei se divertir, minha filha; na próxima carta vou descrevê-los de modo
satírico, isto é, tal como são, até nos menores detalhes. Nossa senhoria é
uma velhota muito pequena e pouca asseada — anda o dia todo de pantufas
e roupão e o dia todo só faz ralhar com Teresa. Eu moro na cozinha, ou eis
como seria muito mais correto dizer: contíguo à cozinha há um quarto (é
preciso dizer que temos uma cozinha limpa, clara e muito boa), não é um
quarto grande, é um cantinho bem modesto... isto é, melhor ainda seria
dizer, a cozinha é grande, com três janelas, e eu tenho um tabique paralelo à
parede transversal, de modo que é como se houvesse mais um quarto, um
quarto extranumerário; é bem espaçoso e confortável, tem janela e tudo —
em suma, tem todo o conforto. Bem, esse é o meu cantinho. E não vá
pensar, minha filha, que haja nisso alguma outra coisa, qualquer sentido
oculto; mas, ora, vai dizer, é uma cozinha! — isto é, na verdade, é nesse
quarto mesmo atrás do tabique que estou morando, mas isso não quer dizer
nada; por mim vou vivendo quieto, escondidinho, apartado de todos.
Coloquei aqui uma cama, uma mesa, uma cômoda, um par de cadeiras e
pendurei um ícone na parede. É verdade que há alojamentos até melhores
— talvez haja até muito melhores -, mas o mais importante mesmo é a
comodidade, já que estou neste apenas pela comodidade, e nem pense que
tenha sido por alguma outra coisa. Sua janelinha fica em frente, do outro
lado do pátio; e o pátio mesmo é estreitinho, dá para vê-la passar — pobre
de mim, me sinto bem mais feliz, além de ser mais barato. Aqui, nosso pior
quarto, com a alimentação, custa trinta e cinco rublos em notas**. Não é
para o meu bolso! Já meu alojamento me custa sete rublos em notas, mais
cinco rublos de prata pela comida: então são vinte e quatro rublos e
cinquenta copeques, enquanto antes pagava trinta exatos, mas em
compensação renunciava a muita coisa; chá nem sempre tomava, e agora
passei a economizar tanto para o chá como para o açúcar. Sabe de uma
coisa, minha querida?, é meio embaraçoso não tomar chá; aqui só tem gente
de recursos, de modo que é embaraçoso. É pelos outros que a gente o toma,
Várienka, para manter a aparência, por ser de bom tom; mas por mim tanto
faz, não sou caprichoso. Admita ainda que há de se trazer um dinheiro no
bolso (dinheiro para as despesas miúdas) — alguma coisa sempre é
necessária — um parzinho de botas, uma roupinha que seja -, será que sobra
muito? E nisso vai todo o meu ordenado. Eu mesmo não me queixo e estou
satisfeito. É o suficiente. Há alguns anos já que tem sido suficiente; há
também as gratificações. Bem, até logo, meu anjinho. Comprei aí um
parzinho de vasos de balsamina e gerânio — não foi caro. Mas talvez goste
também de resedá? Pois há também resedá, escreva-me; sabe, escreva
sempre com o máximo de detalhes que puder. Aliás, não fique imaginando
coisas e não se preocupe comigo, minha filha, por ter alugado semelhante
quarto. É verdade que fui levado pela comodidade, apenas a comodidade
me seduziu. É que eu, minha filha, estou juntando, guardando um dinheiro;
uns cobrinhos tenho. Não ligue para o fato de ser eu tão fracote a ponto de
parecer que uma mosca poderia me desmontar com uma asa. Não, minha
filha, no fundo não sou nenhum fracote, e tenho exatamente o tipo de
caráter que convém a um homem de alma firme e serena. Até logo, meu
anjinho! Escrevi-lhe tanto que por pouco não enchi duas folhas, e já passa
muito da hora de ir para o trabalho. Beijo-lhe os dedinhos, minha filha, e
continuo
8 DE ABRIL
Prezado senhor Makar Alieksiêievitch!
Sabe que me vejo afinal forçada a me indispor de uma vez por todas
com o senhor? Juro-lhe, meu bom Makar Alieksiêievitch, que me chega a
ser penoso aceitar seus presentes. Sei o que lhe custam, sei quanta privação
e renúncia às coisas mais indispensáveis impõe a si próprio. Quantas vezes
lhe disse que não preciso de nada, de absolutamente nada; que não estou em
condições de lhe retribuir sequer os favores com que tem me cumulado até
agora? E para que preciso destes vasos? Bem, a balsamininha ainda vá lá,
mas para que o gerânio? Bastou-me dizer uma palavrinha por descuido,
como, por exemplo, sobre este gerânio, para que na mesma hora fosse
comprá-los; e diz que não é caro! Que encanto de flores! Escarlates com
cruzinhas. Onde foi que conseguiu um gerânio tão mimosinho? Coloquei-o
no peitoril da janela, no centro, no lugar mais visível; no chão vou colocar
um banco, e em cima do banco colocarei mais flores; espere só eu ficar
rica! Fiódora não se cansa de admirar; nosso quarto agora está um
verdadeiro paraíso — limpo, claro! Mas e as balas, para quê? Para dizer a
verdade, ainda agora adivinhei por sua carta que há algo de errado com o
senhor — paraíso, primavera, aromas que voam, passarinhos que chilreiam.
O que é isso, penso eu, não haverá aqui versos também? Pois é verdade,
Makar Alieksiêievitch, só faltaram uns versos em sua carta! Há de um tudo
aqui — sensações ternas, sonhos cor-de-rosa. Quanto à cortina, foi sem
pensar; pelo visto, ficou enroscada por acaso, quando mudei os vasos de
lugar; foi isso!
Ah, Makar Alieksiêievitch! Por mais que fale aqui, por mais que
faça cálculos de seus rendimentos para me enganar, para me mostrar que
gasta tudo inteira e unicamente consigo próprio, de mim não consegue
ocultar nem encobrir nada. É evidente que se priva do indispensável por
minha causa. O que lhe deu na cabeça, por exemplo, para alugar um
alojamento desses? Pois aí o aborrecem, perturbam; é apertado e incômodo
para o senhor. Sei que gosta de reclusão, e aí está cercado de todo tipo de
gente! Mas poderia viver muito melhor, a julgar por seu ordenado. Fiódora
diz que antes vivia muito melhor do que agora, que nem se compara. Será
possível que tenha passado sua vida inteira assim, na solidão, em meio a
privações, sem alegria, sem uma palavra amável, amiga, num canto alugado
em casa de gente estranha? Ah, meu bom amigo, que pena tenho do senhor!
Poupe ao menos a sua saúde, Makar Alieksiêievitch! Diz que está ficando
com a vista fraca, então não escreva à luz de velas; para que escrever?
Decerto que não precisa disso, seu zelo pelo trabalho é bem conhecido de
seus superiores.
Mais uma vez lhe imploro, não gaste tanto dinheiro comigo. Sei que
gosta de mim, mas o senhor mesmo não é rico... Também me levantei
alegre hoje. Estava me sentindo tão bem; Fiódora já estava trabalhando há
bastante tempo, conseguiu trabalho também para mim. Fiquei tão contente,
dei uma saída apenas para comprar seda e me pus a trabalhar. Passei a
manhã toda tão feliz, sentindo a alma tão leve! Mas agora voltaram-me os
pensamentos negros e tristes; sinto o coração confrangido.
Ah, o que vai ser de mim, qual será a minha sina! É duro viver
nessa incerteza, sem ter um futuro, sem poder sequer prever o que há de
acontecer comigo. Tenho até medo de olhar para trás. Há tanta miséria lá
que, só de lembrar, fico com o coração dilacerado. Hei de me queixar para
sempre das pessoas malvadas que destruíram a minha vida!
Está escurecendo. É hora de voltar ao trabalho. Gostaria de
escrever-lhe sobre muita coisa, mas não tenho tempo, o trabalho deve ficar
pronto no prazo. Preciso me apressar. De certo que as cartas são uma coisa
boa; elas deixam tudo menos chato. Mas por que nunca vem pessoalmente
nos visitar? Por que isso, Makar Alieksiêievitch? Pois agora mora perto, e
além do mais às vezes tem um tempo livre. Venha, por favor! Vi sua Teresa.
Ela parece tão doente; tive pena dela; dei-lhe vinte copeques. Ah, sim, já ia
me esquecendo: escreva-me tudo, sem falta, sobre o seu dia a dia, com o
máximo de detalhes. Que tipo de pessoas são essas que o cercam e se se dá
bem com elas. Quero muito saber sobre isso tudo. Olhe lá, escreva sem
falta! Hoje vou arrebitar um canto de propósito. Deite-se mais cedo; ontem
até a meia-noite vi luz em seu quarto. Então, até logo. Hoje me sinto
deprimida, aborrecida e triste! Parece que esse foi um dia daqueles! Até
logo.
Sua
Varvara Dobrosiólova
8 DE ABRIL
Prezada senhora
Varvara Alieksiêievna!
Sim, minha filha, é verdade, minha querida, parece que foi mesmo
um diazinho daqueles para a minha malfadada sorte. É verdade; divertiu-se
às minhas custas, um pobre velho, Varvara Alieksiêievna! Aliás, a culpa é
minha, toda minha! Quem mandou, na minha idade, com uns fiapos de
cabelos, me meter em namoricos e em equívocos... E lhe digo mais, minha
filha: o homem às vezes é um ser esquisito, muito esquisito. Ah, Deus meu!
às vezes se põe a falar cada coisa! E em que então não resulta, o que não
decorre disso! Não decorre absolutamente nada, mas resulta em cada
asneira que Deus me livre e guarde! Zangado, minha filha, não estou, mas
só de lembrar de tudo sinto um tremendo desgosto, desgosto por lhe ter
escrito de modo tão rebuscado e estúpido. Até mesmo para o serviço fui
hoje parecendo um janota; com o coração tão exultante! Sem quê nem por
quê, minha alma estava em festa; sentia-me feliz! Pus-me a cuidar dos
papéis com diligência — e o que resultou disso tudo! Depois, bastou lançar
um olhar à minha volta, para tudo ficar como antes — cinzento e escuro. As
mesmas manchas de tinta de sempre, as mesmas mesas e papéis de sempre,
e também eu era o mesmo de sempre; tudo permanecia exatamente do
mesmo jeito que era — então, o que foi que houve aqui para eu querer
montar justamente o Pégaso? De onde foi que saiu isso tudo? Só porque um
solzinho deu as caras e deixou o céu azulado! foi por isso? E que aromas
são estes, quando sob as janelas do nosso pátio acontece de um tudo! É
óbvio que tive essa impressão toda porque sou um tolo. Mas às vezes
acontece mesmo de a pessoa se deixar levar por seus próprios sentimentos a
ponto de se pôr a dizer disparates. Não é por outra coisa que isso se dá,
senão por um ardor estúpido e excessivo do coração. Para casa mesmo não
vim, me arrastei; sem mais nem menos começou a me doer a cabeça; e
parece que uma coisa sempre puxa outra. (Devo ter apanhado friagem nas
costas.) Com a chegada da primavera, fique mesmo alegre, feito um
completo idiota, e saí com um capote leve. E, quanto aos meus sentimentos,
engana-se, minha querida! Tomou essa minha efusão por um lado
completamente oposto. Era a afeição paternal que me movia, pura e
unicamente a afeição paternal, Varvara Alieksiêievna; já que ocupo em sua
vida o lugar de um verdadeiro pai, por sua amarga orfandade; digo isso
sinceramente, de todo coração, como um parente. Mas, seja lá como for,
ainda que distante, ainda que, como diz o ditado, de sétimo grau, de
qualquer modo sou seu parente, e agora seu parente mais próximo e
protetor; já que lá, onde tinha todo o direito de buscar proteção e refúgio, só
encontrou traição e ofensa. E, quanto aos versinhos, quero lhe dizer, minha
filha, que não fica bem na minha idade me pôr a treinar para compor versos.
Os versos são uma tolice! Hoje em dia, nas escolas, por causa dos
versinhos, chegam até a açoitar a meninada... isso é que é, minha querida.
Que história é essa a respeito de conforto, tranquilidade e todas
essas outras coisas que me escreve, Varvara Alieksiêievna? Minha filha,
não sou rabugento nem exigente, nunca vivi melhor do que agora; então por
que haveria de me tornar caprichoso na velhice? Estou bem-alimentado,
vestido, calçado; e, além do mais, onde havia de enfiar meus caprichos?
Não sou de família de condes! Meu pai não possuía nenhum título de
nobreza e, com toda a família que tinha, seus rendimentos eram mais
modestos que os meus. Não sou nenhum melindroso! Aliás, se é para dizer
a verdade, pois saiba que em meu antigo alojamento tudo era
incomparavelmente melhor; era mais espaçoso, minha filha. Claro que meu
alojamento de agora também é bom, em certo sentido é até mais alegre e, se
quer saber, mais diversificado, não tenho nada a dizer contra ele, mas ainda
sinto falta do antigo. Nós, os velhos, isto é, as pessoas com mais idade, nos
acostumamos às coisas antigas como se fossem um ente querido. Aquele
alojamentozinho era bem pequeno, sabe; as paredes eram... mas para que
falar disso! — as paredes eram como qualquer parede, não é essa a questão,
mas é que essas recordações todas do meu passado me enchem de
nostalgia... É uma coisa estranha — penosa, mas é como se as recordações
fossem agradáveis. Até as coisas ruins, que por vezes me aborreciam, no
entanto, nas recordações parece que se purificam do mal e se apresentam de
um ângulo atraente à minha imaginação. Vivíamos sossegados, Várienka;
eu e minha falecida senhoria, já velhinha. E é dessa minha velha que agora
me lembro com um sentimento de tristeza! Era uma boa mulher e não
cobrava caro pelo quarto. Estava sempre tricotando mantas de retalhos
diferentes com agulhas de tricô de um archin de comprimento; essa era a
sua única ocupação. Até a luz nós partilhávamos, de modo que
trabalhávamos à mesma mesa. Ela tinha uma netinha, Macha — me lembro
dela ainda criança -, a menina deve ter agora uns treze anos. Era tão levada,
alegre, fazia-nos rir o tempo todo; e era assim que vivíamos os três. Durante
os longos serões de inverno, costumamos nos sentar a uma mesa redonda,
tomar nosso chá, e depois nos pôr a trabalhar. E a velha, para entreter a
Macha e para que a travessa não faça folia, se põe a contar histórias. E que
histórias! Não só uma criança, até uma pessoa sensata, inteligente, se deixa
enredar. E como! eu mesmo acendo meu cachimbinho e me deixo enredar
de tal modo que me esqueço completamente do trabalho. E a própria
criança, a nossa traquinas, fica pensativa; escora a bochechinha rosada na
mãozinha, abre sua linda boquinha e, se a história inspira um pouco de
medo, então vai se agarrando toda à velha. Para nós, então, que prazer era
olhar para ela; nem reparamos que a velinha está derretendo, nem
percebemos que a nevasca às vezes recrudesce do lado de fora e varre a
tempestade de neve. Conseguíamos viver bem, Várienka; e olha que
vivemos juntos por quase vinte anos. Mas o que estou aqui tagarelando!
Talvez esse tipo de assunto não lhe agrade, e além disso não é tão fácil
assim para mim ficar lembrando, sobretudo agora, à hora do crepúsculo.
Teresa está ocupada com alguma coisa, estou com dor de cabeça e também
com um pouco de dor nas costas, e além do mais com uns pensamentos tão
estranhos, que é como se também eles me doessem, me sinto triste hoje,
Várienka! Mas o que escreve aqui, minha querida? Como posso eu ir visitá-
la? Minha pombinha, o que diriam as pessoas? Pois para isso será preciso
atravessar o pátio, todo mundo ia notar e começar a nos fazer perguntas —
iam logo correr rumores, mexericos, haveriam de dar um outro sentido à
coisa. Não, meu anjinho, é melhor que a veja amanhã na missa da noite;
será mais sensato e menos prejudicial para nós dois. E não me leve a mal,
minha filha, por lhe escrever uma carta dessas; ao relê-la vejo que está tudo
tão incoerente. Sou um homem velho, Várienka, sem estudos, quando era
jovem não aprendi direito, e agora, mesmo que recomeçasse a estudar, não
me entraria nada na cabeça. Reconheço, minha filha, que não sou nenhum
mestre da descrição, e sei, sem ninguém precisar apontar e ficar rindo, que,
se quisesse escrever alguma coisa mais complicada, sairia uma porção de
disparates. Eu a vi hoje à janela, quando baixava a cortina. Até logo, até
logo, e que o Senhor a proteja! Até logo, Varvara Alieksiêievna.
Seu amigo desinteressado
Makar Diévuchkin
P. S. Eu, minha querida, é que não vou escrever sátira sobre
ninguém agora. Estou velho e cansado, Varvara Alieksiêievna, minha filha,
para ficar mostrando os dentes à toa! Também haveriam de rir de mim,
como diz o ditado russo: quem, diz ele, a outro a cova cava, é que... vai para
lá.
9 DE ABRIL
Prezado senhor
Makar Alieksiêievitch!
Ora, Makar Alieksiêievitch, meu amigo e benfeitor, deveria se
envergonhar por se deixar afligir assim e vir com lamúrias. Sentiu-se
mesmo ofendido? Ah, sou muitas vezes imprudente, mas não achei que
pudesse tomar minhas palavras como uma brincadeira mordaz. Tenha a
certeza de que jamais me atreveria a brincar com a sua idade e o seu caráter.
Isso tudo aconteceu por causa de minha leviandade e, mais ainda, porque
me sinto terrivelmente entediada — o que não faz uma pessoa por tédio?
Até achei que o senhor mesmo em sua carta estivesse querendo brincar.
Fiquei muito triste quando vi que estava descontente comigo. Não, meu
bom amigo e benfeitor, estaria enganado se achasse que posso ser insensível
e ingrata. Em meu coração, sei dar valor a tudo o que fez por mim, ao
defender-me de pessoas más, de suas perseguições e de seu ódio. Hei de
pedir eternamente a Deus pelo senhor, e se minhas preces chegarem a Deus
e o céu as atender, então o senhor há de ser feliz. Sinto-me bastante
adoentada hoje. Tenho febre e calafrios alternadamente. Fiódora está muito
preocupada comigo. É inútil envergonhar-se de vir à nossa casa, Makar
Alieksiêievitch. O que têm os outros a ver com isso? É nosso conhecido e
pronto!... Até logo, Makar Alieksiêievitch. Não tenho mais nada para
escrever agora, e além do mais não consigo: estou muito indisposta. Peço-
lhe uma vez mais que não se zangue comigo e tenha a certeza de meu
constante respeito e de minha afeição,
com o que, tenho a honra de permanecer sua
mais devotada e submissa criada
Varvara Dobrosiólova
12 DE ABRIL
Mas, enfim, chega desse assunto; pois escrevo isso tudo assim só
por brincadeira, meu anjinho, para entretê-la. Até logo, minha pombinha!
Escrevinhei muita coisa aqui, mas isso, no fundo, é porque hoje estou muito
bem-disposto. Hoje almoçamos todos juntos no quarto de Rataziáiev (são
uns pândegos, minha filha!), e puseram na roda um licor que... mas para
que lhe contar sobre isso! Ora, veja lá, não vá se pôr a pensar coisas de
mim, Várienka. Pois foi só isso. Hei de enviar-lhe um livro sem falta...
Estão passando aqui, de mão em mão, uma obra de Paul de Kock*, mas às
suas, minha filha, Paul de Kock não chega... Não e não! Paul de Kock não é
para a senhorita. Dizem que ele, minha filha, tem provocado em todos os
críticos de Petersburgo uma nobre indignação. Mando-lhe uma libra de
balinhas, compradas especialmente para você. Coma, alminha, e a cada
balinha lembre-se de mim. Mas não morda as balas, é melhor chupá-las,
senão vão doer-lhe os dentes. Mas talvez goste também de frutas
cristalizadas? Escreva dizendo. Então, até logo, até logo. Fique com Deus,
minha pombinha. Permanecerei para sempre
seu fidelíssimo amigo,
Makar Diévuchkin
Fiódora diz que, se eu quiser, há algumas pessoas que com prazer poderiam se
interessar pela minha situação e conseguir para mim uma boa colocação como
preceptora numa certa casa. O que acha, meu amigo — devo aceitar ou não? E depois, é
claro que deixaria então de ser-lhe um peso, e além disso o emprego parece ser
vantajoso; mas, por outro lado, parece terrível ter de ir para a casa de estranhos. Trata-se
de uns proprietários rurais. Se começarem a tirar informações a meu respeito, se
começarem a me interrogar, a ter curiosidade — o que hei então de lhes dizer? E, além
do mais, sou uma pessoa tão arredia e insociável; gosto de me estabelecer no cantinho
que me é familiar por muito tempo. O lugar ao qual estamos habituados parece sempre
melhor: ainda que seja uma vida difícil, mesmo assim é melhor. E, além do mais, tem a
partida, e, ainda por cima, sabe Deus qual será o serviço; pode ser que me ponham
simplesmente para cuidar das crianças. E é uma gente que está trocando de preceptora
pela terceira vez em dois anos. Aconselhe-me, então, Makar Alieksiêievitch, pelo amor
de Deus, devo ir ou não? Mas por que o senhor mesmo nunca vem me visitar? é tão raro
dar as caras. Só nos vemos praticamente aos domingos na missa. É tão pouco sociável!
É igualzinho a mim! Pudera, sou praticamente sua parenta. Não gosta de mim, Makar
Alieksiêievitch, e às vezes acontece de me sentir muito triste sozinha. Tem dias,
sobretudo ao anoitecer, em que fico sozinha, completamente só. Quando Fiódora sai
para ir a algum lugar. Então sento e me ponho a pensar — a me lembrar de tudo o que
passou, das alegrias e das tristezas -, tudo me vem diante dos olhos, tudo muito
rapidamente, como se saísse de um nevoeiro. Surgem rostos familiares (começo a ver
tudo como se fosse ao vivo) — é minha mãezinha que vejo com mais frequência...
Tenho cada sonho! Sinto que minha saúde está abalada; estou tão fraca; hoje mesmo,
quando me levantava da cama de manhã, me senti mal; e, ainda por cima, ando com
uma tosse tão feia! Sei que vou morrer em breve, eu sinto isso. Haverá quem faça o meu
enterro? Haverá quem acompanhe o meu caixão? Haverá quem chore por mim?... E se
me acontecer de morrer num lugar estranho, em casa de estranhos, num canto alheio!...
Meu Deus, como é penoso viver, Makar Alieksiêievitch! Por que, meu amigo, vive me
empanturrando de balas? É sério, não sei de onde tira tanto dinheiro. Ah, meu amigo,
guarde o dinheiro, pelo amor de Deus, guarde-o. Fiódora está vendendo um tapete que
bordei, vão dar cinquenta rublos em notas por ele. Isso é muito bom: eu achava que
seria menos. Darei três rublos a Fiódora e farei um vestidinho para mim, bem simples e
quentinho. Para o senhor farei um colete, eu mesma o farei e escolherei um bom tecido.
Fiódora arranjou-me um livro — os Contos de Biélkin*, que lhe estou enviando,
caso queira ler. Só lhe peço, por favor, que não o suje nem o retenha por muito tempo: o
livro é emprestado; é uma obra de Púchkin. Há dois anos li estas novelas com a
mãezinha, e agora me senti tão triste ao relê-las. Se tiver alguns livros à mão, mande-os
para mim — mas apenas no caso de não tê-los pego de Rataziáiev. Ele certamente daria
obras suas, se é que publicou alguma coisa. Como pode gostar do que ele escreve,
Makar Alieksiêievitch? É um verdadeiro disparate... Bem, até logo! como tagarelei!
Quando estou triste, gosto de tagarelar, seja lá sobre o que for. É um remédio: sinto um
alívio imediato, especialmente se digo tudo o que me vai no coração. Até logo, até logo,
meu amigo!
S
ua
V. D.
Apresso-me a lhe devolver seu livro, que recebi no dia 6 deste mês,
e apresso-me, ao mesmo tempo, nesta minha carta, a dar-lhe algumas
explicações. Fez mal, minha filha, fez mal em me colocar em tal extremo.
Permita-me, minha filha: qualquer condição que caiba ao homem é
determinada pelo Todo Poderoso. A um foi determinado usar dragonas de
general, a outro, a servir como conselheiro titular**, a este a mandar, àquele
a obedecer, submisso e amedrontado. Isso já é calculado de acordo com a
capacidade da pessoa; esta tem capacidade para uma coisa, enquanto
aquela, para outra, e as capacidades são concedidas pelo próprio Deus. Já
tenho por volta de trinta anos de serviço; meu trabalho é irrepreensível, meu
comportamento é sóbrio e nunca incorri em qualquer desordem. Como
cidadão considero-me, de acordo com a minha própria consciência, alguém
que possui seus defeitos e, ao mesmo tempo, virtudes. Sou respeitado pelos
chefes e Sua Excelência mesma está satisfeita comigo; e embora até hoje
ainda não me tenha dado mostras particulares de bem-querência, no entanto
sei que está satisfeita. Cheguei à idade dos cabelos brancos; não sei o que é
cometer um pecado grave. É claro, quem não tem pequenos pecados?
Pecador, qualquer um é, até mesmo você é pecadora, minha filha! Porém,
nunca fui repreendido por maiores contravenções e por insubordinação,
para desse modo me opor a algum regulamento, ou por violar a ordem
pública, nunca fui repreendido por isso, isso nunca aconteceu. Já estive até
para receber uma condecoração — mas para que isso agora! Devia ter
consciência disso tudo, minha filha, ele** também devia sabê-lo; já que se
pôs a descrever, então deveria saber tudo. Não, nunca julguei que fosse
capaz disso, minha filha; não mesmo, Várienka! Pois era justamente de
você que não esperava uma coisa dessas.
Como! Quer dizer então que, depois disso, você não pode sequer
viver resignadamente, no próprio cantinho — seja ele como for -, viver sem
turvar a água, como diz o ditado, sem perturbar ninguém, conhecendo
apenas a si próprio e o temor a Deus, para não vir a ser perturbado também,
para que não se enfiem também em seu cubículo para espiar o que você faz,
quer dizer, como você é no sossego da sua privacidade, se, por exemplo,
tem um bom colete, se tem a devida roupa íntima; se tem botas e com o que
estão pregadas; o que você come, o que você bebe, o que você copia?... E,
além do mais, o que é que tem que eu, minha filha, nem que seja onde a
calçada é ruinzinha, passe às vezes na pontinha dos pés para poupar a bota!
Para que escrever sobre o outro que, por exemplo, vez por outra ele passa
por necessidades, não toma chá? Como se todo mundo tivesse a obrigação
de tomar chá! E por acaso fico eu olhando para a boca de cada um, para ver
o que está mastigando? Quem foi que eu ofendi a tal ponto? Não, minha
filha, para que ofender os outros quando não estão perturbando! Veja,
Varvara Alieksiêievna, vou dar um exemplo, veja o que isso significa: você
trabalha, trabalha, com todo zelo e aplicação — ora! — e o próprio chefe o
respeita (seja lá como for, mas o respeita) — mas eis que vem alguém e
bem debaixo do seu nariz, sem qualquer motivo aparente, sem mais nem
menos, lhe arma uma pasquinada. É claro, é verdade que vez por outra você
manda coser algo novo para si mesmo — fica alegre, não dorme, de tanta
alegria, calça a bota nova, por exemplo, com tal voluptuosidade -, isso é
verdade, já experimentei essa sensação, porque é agradável ver nossos pés
com uma bota fina, elegante — isso está descrito com fidelidade! Mas
mesmo assim, sinceramente, me admira muito que esse Fiódor
Fiódorovitch* tenha deixado passar inadvertidamente um livro desses e não
tenha se defendido. É verdade que ele é um alto funcionário ainda jovem e
por vezes gosta de gritar, mas e por que não havia de gritar? E por que não
havia de ralhar, se com o nosso pessoal há a necessidade de ralhar? Bem,
convenhamos então, por exemplo, que para manter o tom seja necessário
ralhar — para manter o tom também é permitido -, é preciso que nos
habituemos; é preciso que haja medo; porque — isso aqui entre nós,
Várienka — o nosso pessoal não faz nada se não lhe metem medo, qualquer
um faz de um tudo para apenas constar em algum emprego, para poder
dizer, trabalho nisso, naquilo, mas do serviço, mesmo, quer distância e se
esquiva. Mas assim como há diversas graduações e cada graduação exige
um tipo de admoestação que lhe corresponda perfeitamente, então é natural
que depois disso também o tom da admoestação tenha graduações variadas
— é a ordem natural das coisas! Pois é nisso mesmo que se assenta o
mundo, minha filha, em cada um de nós dar o tom para o outro, em cada um
de nós poder ralhar com o outro. Sem essa precaução não haveria ordem
natural nem o mundo se manteria. O que realmente me admira é que Fiódor
Fiódorovitch tenha deixado uma ofensa dessas passar inadvertidamente!
E para que escrever essas coisas? Para que serve isso? Será que por
isso algum leitor vai me fazer um capote? Ou me comprar um novo par de
botas? Não, Várienka, vai terminar de ler e ainda exigir continuação. Às
vezes você se esconde, se esconde, oculta-se naquilo que não domina, tem
medo por vezes de mostrar o nariz seja onde for, porque teme os mexericos,
porque, de tudo o que há no mundo, de tudo lhe armam uma pasquinada, e
eis que toda a sua vida civil e familiar anda pela literatura, tudo impresso,
lido, ridicularizado, bisbilhotado! E com isso nem na rua você pode mais se
mostrar; pois aqui isso tudo está tão bem demonstrado que, agora, pode-se
reconhecer um dos nossos só pelo andar. Se ao menos no final que fosse ele
tivesse corrigido, suavizado alguma coisa, se tivesse posto, por exemplo —
ainda que depois daquele ponto em que despejam papeizinhos na cabeça
dele — que, afinal, apesar disso tudo, ele era um bom cidadão, virtuoso,
que não merecia semelhante tratamento por parte dos companheiros, que
era obediente aos superiores (nesse ponto ele podia dar um exemplo
qualquer), que não desejava mal a ninguém, que acreditava em Deus e que
sua morte (se ele queria necessariamente que ele morresse) fora lamentada.
Melhor mesmo seria não deixá-lo morrer, pobrezinho, e fazer as coisas de
maneira que encontrassem o capote, que aquele general, ao se inteirar
melhor dos pormenores acerca de suas virtudes, o transferisse para a sua
repartição, elevasse a sua graduação e lhe desse um bom ordenado, de
modo que veja só como ficariam as coisas: o mal seria castigado, a virtude
triunfaria, e os companheiros todos da repartição ficariam sem nada. Eu,
por exemplo, teria feito assim; mas, como está, o que é que tem de especial
nisso, o que há de bom nisso? Não passa de um exemplo trivial, banal, da
vida cotidiana. Mas como teve a coragem, minha querida, de me mandar
um livro desses? Pois é um livro mal-intencionado, Várienka; isso é
simplesmente inverossímil, porque não pode sequer ser possível que haja
um funcionário assim. E, mais, depois de ler uma coisa dessas, é o caso de
dar queixa, Várienka, e queixa formal.
28 DE JULHO
Ah, Várienka, Várienka! Pois dessa vez a culpa é justamente sua, e
há de pesar na sua consciência. Com essa sua cartinha, deixou-me
desorientado, desconcertado, e só agora que estou com tempo pude penetrar
fundo em meu coração e ver que eu tinha razão, tinha toda razão. Não é ao
meu escândalo que me refiro (deixe-o para lá, minha filha, deixe-o para lá),
mas ao fato de amá-la, e amá-la não foi de modo algum uma insensatez da
minha parte. Não sabe de nada, minha filha; e olha que se ao menos
soubesse o motivo disso tudo, por que devo amá-la, então não diria isso.
Fala isso tudo assim apenas com a razão, mas estou convencido de que não
é nada disso o que lhe vai no coração.
Minha filha, nem eu mesmo sei, não me lembro bem de todo o que
se passou entre os oficiais e eu. Precisa ver, meu anjinho, que até aquele dia
eu andava na mais terrível aflição. Imagine que já fazia um mês inteiro, por
assim dizer, que estava resistindo por um fio. A situação era crítica ao
extremo. E era de você, justamente, que a escondia, aqui em casa também,
mas a minha senhoria fez barulho e rebuliço. Por mim, não teria
importância. Essa imprestável que berrasse à vontade, pois uma coisa é a
vergonha, outra coisa é que ela, sabe Deus como, soube da nossa ligação e
se pôs a gritar cada coisa a nosso respeito, para toda a casa ouvir, que fiquei
aturdido e tapei o ouvido. Acontece que os outros não taparam e, muito pelo
contrário, deram ouvidos a ela. E agora, minha filha, não sei onde me meter,
não sei...
E aí, está, meu anjinho, foi isso tudo, esse montão de desgraças de
todo tipo que, definitivamente, acabaram de vez comigo. De repente ouço
umas coisas estranhas da boca da Fiódora, que em sua casa havia aparecido
um aventureiro indigno e insultado-a com uma proposta indigna; que ele a
ofendeu, e ofendeu profundamente, julgo por mim, minha filha, porque
também me senti profundamente ofendido. E foi aí, meu anjinho, que perdi
as estribeiras, foi aí que fiquei desnorteado, completamente perdido. Saí
correndo numa fúria sem precedentes, Várienka, amiga minha, quis ir atrás
dele, do ofensor; nem mesmo sabia o que queria fazer, porque não admito,
meu anjinho, que a ofendam! Pois bem, foi triste! e na hora a chuva, a lama,
me fizeram sentir uma imensa tristeza!... Até pensei em voltar... Foi aí que
me perdi, minha filha. Encontrei Emieliá, Emielián Ilitch, um funcionário,
isto é, ele foi funcionário, mas agora não é mais funcionário, porque foi
despedido da nossa repartição. Nem sei o que faz agora, de alguma maneira
se vira; e então saímos juntos. Nisso, Várienka — bem, mas para que falar
disso, o que pode haver de divertido em ler sobre o infortúnio do seu amigo,
sobre as suas desgraças e sobre a história das tentações que sofreu? No
terceiro dia, à tarde, esse Emielián me instigou e eu fui com ele à casa desse
oficial. Seu endereço, pedi ao nosso porteiro. Se quer saber a verdade,
minha filha, fazia tempo que estava de olho nesse espertalhão; costumava
segui-lo ainda quando alugava um quarto em nossa casa. E só agora vejo
que o que fiz foi indecente, porque não estava com um aspecto normal
quando fui anunciado a ele. E, para dizer a verdade, Várienka, não me
lembro de nada; lembro apenas que em sua casa havia muitos oficiais — ou
era eu que via tudo duplicado, sabe Deus. Também não lembro do que
disse, tudo o que sei é que, em minha nobre indignação, falei muito. Bem,
foi a essa altura que me expulsaram, foi a essa altura que me atiraram
escada abaixo, quer dizer, não que tenham chegado a me atirar, apenas
deram-me um empurrão. Como voltei para casa, Várienka, já sabe; e isso é
tudo. É claro que me comprometi e que a minha reputação sofreu com isso,
mas ninguém sabe de nada, nenhum estranho sabe o que aconteceu,
ninguém, além de você, sabe; então, nesse caso, é como se não tivesse
acontecido nada. Talvez seja isso mesmo, Várienka, o que acha? O que sei
ao certo é que no ano passado em nossa casa, Aksiênti Ossípovitch teve
uma audácia desse mesmo tipo contra a pessoa de Piótr Pietróvitch, mas em
segredo, ele fez isso em segredo. Ele o fez entrar no quarto do guarda, isso
tudo eu vi por uma frestinha; e ali deu as ordens que tinha de dar, mas de
maneira distinta, porque, além de mim, ninguém viu nada; e eu não fiz
nada, isto é, quero dizer, não me pus a anunciar a ninguém. E mais, depois
disso Piótr Pietróvitch e Aksiênti Ossípovitch ficaram de bem. Piótr
Pietróvitch, como sabe, é um homem tão vaidoso que ele mesmo não disse
nada a ninguém, de modo que agora eles não só se cumprimentam como
apertam as mãos. Não estou contestando, Várienka, e nem me atrevo a
contestá-la, que me rebaixei demais e, o que é pior, que caí em meu próprio
conceito, mas decerto que isso já estava escrito desde que nasci, decerto que
esse era o meu destino — e do destino não se foge, como bem sabe. Pois
aqui está a explicação pormenorizada dos meus infortúnios e das minhas
desditas. Aqui está tudo, Várienka, tal como se passou naquela hora, e que
nem vale a pena ler. Estou um pouco adoentado, minha filha, e incapaz de
qualquer gracejo. Pelo que agora lhe testemunho meu afeto, meu amor e
meu respeito e permaneço, minha prezada senhora Varvara Alieksiêievna,
seu mais submisso criado
Makar Diévuchkin
29 DE JULHO
Prezado senhor
Makar Alieksiêievitch!
Li as suas duas cartas e estou pasma! Ouça, meu amigo, ou está me
escondendo alguma coisa, e contou-me apenas parte de todas as suas
desventuras, ou... de fato, Makar Alieksiêievitch, as suas cartas ainda dão
sinais de certa perturbação... Venha visitar-me, pelo amor de Deus, venha
hoje; e, ouça, como já sabe, venha sem rodeios, para almoçar conosco. Nem
sei ainda como está a sua situação aí e como se arranjou com a sua
senhoria. Não escreveu nada sobre isso e parece que se cala de propósito.
Então até logo, meu amigo; passe sem falta em nossa casa hoje; e o melhor
a fazer seria vir sempre almoçar conosco. A Fiódora cozinha muito bem.
Até logo.
Sua
Varvara
Dobrosiólova
1º DE AGOSTO
Varvara Alieksiêievna, minha filha!
Está contente, minha filha, por Deus lhe ter propiciado uma
oportunidade de, por sua vez, poder pagar o bem com o bem e agradecer-
me. Acredito nisso, Várienka, e acredito na bondade de seu coraçãozinho
angelical, e não falo para censurá-la, no entanto, não me acuse, como o fez,
de na minha velhice ter ficado confuso. Bem, se houve esse pecado, o que
se há de fazer! — a questão é que ouvir isso justamente de você, minha
amiguinha, me custa tanto! Mas não se zangue comigo, por dizer estas
coisas; fico com o peito apertado, minha filha. Gente pobre é caprichosa —
e é assim por disposição da natureza. Mesmo antes eu o sentia, e agora
comecei a sentir ainda mais. Ele, o homem pobre, é exigente; até para esse
mundo de Deus ele tem outra maneira de olhar, olha de soslaio para cada
transeunte, lança a seu redor um olhar confuso e fica atento a cada palavra
que ouve — não é dele que estão falando ali, diz? O que estão comentando,
como pode ser tão feioso? o que é que ele, precisamente, sente? e, por
exemplo, como será ele desse ponto de vista, como será daquele ponto de
vista? E todo mundo sabe, Várienka, que uma pessoa pobre é pior que um
trapo e não é digna de nenhum respeito da parte de ninguém, seja lá o que
for que escrevam! eles mesmos, esses escrevinhadores, podem escrever o
que for! — para o pobre vai ficar tudo como sempre foi. E por que vai ficar
na mesma? Porque num homem pobre, na opinião deles, tudo deve estar
virado do avesso; porque ele não deve ter nada de secreto, nenhuma vaidade
que seja, de jeito nenhum! Emiliá estava me dizendo outro dia que não sei
onde fizeram uma subscrição para ele, de modo que a cada dez copeques
arrecadados lhe faziam uma espécie de inspeção oficial. Eles achavam que
estavam lhe dando suas moedas de dez copeques de graça — mas, não: eles
estavam pagando para que lhes fosse exibido um homem pobre. Hoje em
dia, minha filha, até mesmo a caridade é feita de um modo esquisito... mas
talvez tenha sido sempre assim, quem é que sabe! Das duas, uma — ou não
sabem como fazê-lo, ou então são verdadeiros mestres nessa arte. Talvez
não soubessem disso, mas é como lhe digo! Em outros assuntos não nos
metemos, mas neste somos notórios! E por que é que um homem pobre
conhece isso tudo e ainda pensa nessas coisas todas? Ora, por quê? — por
experiência! Porque ele sabe, por exemplo, que o senhor ao seu lado está
indo para um restaurante em algum lugar e pensando com os seus botões: e
esse funcionário miserável, vai comer o quê hoje? porque eu vou comer
papillotes sauté, enquanto ele provavelmente vai comer mingau sem
manteiga. E o que ele tem com isso, se eu comer mingau sem manteiga? Há
homens assim, Várienka, e como há, que só pensam nessas coisas. E eles
vão andando, os pasquineiros indecentes, e olhando, por exemplo, se você
pisa na calçada de pedra com o pé inteiro ou com uma pontinha; olha lá,
dizem eles, o funcionário tal, conselheiro titular do departamento tal, com
os dedos nus saindo para fora da bota, e olha como os cotovelos estão
puídos — e depois ainda descrevem isso tudo lá do jeito deles e publicam
esse lixo... E é da sua conta se o meu cotovelo está puído? E se me perdoa a
palavra grosseira, Várienka, então eu lhe direi que um homem pobre, nesse
sentido, sente o mesmo pudor que você, para dar um exemplo, um pudor
virginal. Pois você não se poria — perdoe a palavra grosseira — a despir-se
diante de todo mundo; é precisamente disso que o homem pobre não gosta,
que fiquem bisbilhotando em seu cubículo, que digam como é a sua vida
familiar — aí é que está. E que motivo tinha então para me ofender,
Várienka, juntando-se aos meus detratores para atentar contra a honra e a
vaidade de um homem honesto!
E hoje na repartição fiquei sentado como um ursinho, como um
pardal depenado, quase me consumindo de vergonha de mim mesmo. Tive
vergonha, Várienka! É natural mesmo que você se sinta acanhado quando a
roupa deixa à mostra seus cotovelos nus e está com os botões pendendo da
linha. E em minha mesa estava tudo tão desarrumado, como se fosse de
propósito! Sem querer, você perde o ânimo. O que se há de fazer?... o
próprio Stiepan Kárlovitch se pôs a falar comigo hoje sobre um assunto,
ficou falando, falando, e depois, como que por descuido, acrescentou: “Ah,
Makar Alieksiêievitch, meu amigo, o senhor!” — nem terminou de falar o
que estava pensando, mas eu mesmo adivinhei tudo, e corei tanto que até
minha careca ficou vermelha. No fundo, isso não é nada, mas de qualquer
modo é inquietante, leva a reflexões penosas. Será que vieram a saber de
alguma coisa? Deus nos livre de virem a saber de algo! Confesso-lhe que
suspeito de uma pessoinha, e tenho fortes suspeitas. Pois esses maledicentes
não ligam para nada! traem! entregam toda a sua vida privada por uma
ninharia; para eles não existe nada de sagrado!
Já sei quem foi o autor dessa obra: foi obra de Rataziáiev. Ele tem
um conhecido no nosso departamento e, certamente, no meio da conversa,
como quem não quer nada, entregou-lhe tudo com acréscimos; ou talvez
tenha contado tudo em seu próprio departamento, e aí a história se arrastou
para o nosso. Mas no nosso alojamento todos sem exceção sabem de tudo e
apontam o dedo para a sua janela, Várienka; e bem sei que apontam. E
assim que saí ontem para ir almoçar em sua casa todos assomaram à janela,
e a senhoria disse, olha lá, o diabo se meteu com uma criança, e depois
ainda a chamou por um nome indecente. Mas nada disso se compara com a
intenção infame de Rataziáiev de nos inserir a ambos em sua literatura e nos
descrever numa sátira refinada; ele próprio disse isso, e alguns bons
companheiros de repartição vieram me relatar. Não consigo sequer pensar
em nada, minha filha, e não sei o que decidir. É preciso reconhecer que
provocamos a ira de Deus Nosso Senhor, meu anjinho! Queria mandar-me
um livro, minha filha, para me distrair. E livro para quê, minha filha! O que
é o livro? É uma invenção sobre as pessoas. Até o romance é um disparate,
e escrito para um disparate, só para que as pessoas ociosas possam ler:
acredite em mim, minha filha, acredite em minha experiência de muitos
anos. E olha lá, se vierem atordoá-la com um tal de Shakespeare, dizendo,
está vendo, na literatura há Shakespeare — pois saiba que Shakespeare
também é um disparate, tudo isso é puro disparate, e tudo feito unicamente
para pasquinada!
Se
u
Makar Diévuchkin
2 DE AGOSTO
Prezado senhor Makar Alieksiêievitch!
Não se preocupe com nada; se Deus, Nosso Senhor, quiser, tudo há de se
ajeitar. Fiódora arranjou um montão de trabalho para ela e para mim, e fomos
logo pondo mãos à obra, bem contentes. Talvez possamos reparar toda a
situação. Ela desconfia de que os meus últimos contratempos todos são do
conhecimento de Anna Fiódorovna; mas agora, para mim, tanto faz. Hoje, de
certo modo, me sinto imensamente feliz. O senhor está querendo pedir dinheiro
emprestado — que Deus o livre de uma coisa dessas! depois, quando for preciso
devolver, será um sofrimento sem fim. O melhor que tem a fazer é conviver mais
conosco, vir nos ver com mais frequência e não dar atenção a sua senhoria.
Quanto a seus outros inimigos e detratores, estou certa de que está se torturando
com suspeitas infundadas, Makar Alieksiêievitch! Preste atenção, pois lhe disse
da última vez que tem um estilo extremamente irregular. Bem, adeus, até logo.
Espero-o sem falta.
S
ua
V
. D.
3 DE AGOSTO
Varvara Alieksiêievna, meu anjinho!
4 DE AGOSTO
Varvara Alieksiêievna, minha pombinha!
São esses golpes inesperados todos que me deixam transtornado!
São essas calamidades terríveis que me mortificam a alma! Como se não
bastasse, essa escória de bajuladores de todo tipo e de velhotes
imprestáveis, meu anjinho, quer conduzi-la a um leito de dor, e, mais ainda
— esses bajuladores querem acabar também comigo. E acabarão, juro que
acabarão! Pois, agora mesmo, prefiro a morte a deixar de socorrê-la! Se não
a socorro, isso, sim, há de ser para mim a morte, Várienka, isso seria pura e
simplesmente a morte para mim, e se a socorro, então voará para longe de
mim, como o passarinho do ninho, que esses mochos, essas aves de rapina
se juntaram para crivar de bicadas. É isso justamente o que me atormenta,
minha filha. E, além do mais, Várienka, como pode ser tão cruel! Como
pode ser? É atormentada, ofendida, meu passarinho, e, embora esteja
sofrendo, se aflige por ter de me incomodar, e ainda por cima promete
trabalhar para pagar a dívida, ou seja, isso é o mesmo que dizer que, com
sua saúde fragilzinha, se mataria para socorrer-me no prazo. Pois então,
Várienka, pense bem no que fala! Para que vai costurar, para que vai
trabalhar, torturar sua pobre cabecinha com preocupações, estragar seus
lindos olhinhos e arruinar sua saúde? Ah, Várienka, Várienka, está vendo,
minha pombinha, eu não sirvo para nada, eu mesmo sei que não sirvo para
nada, mas vou fazer tudo para ser útil! Farei de um tudo, eu mesmo hei de
arranjar trabalho por fora, vou fazer cópias de todo tipo para vários
literatos, irei até eles, irei por conta própria e me grudarei ao trabalho;
porque eles, minha filha, procuram bons copistas, eu sei que procuram, mas
deixar que se extenue não vou, não deixarei que leve adiante uma intenção
tão nociva. Farei o empréstimo, meu anjinho, preferiria morrer a não fazê-
lo. Escreve ainda, meu anjinho, para não me espantar com os juros, e não
me espantarei mesmo, minha filha, não me espantarei, não há nada no
mundo agora que possa me assustar. Pedirei quarenta rublos em notas; nem
é muito, Várienka, o que lhe parece? Acha possível que na primeira
conversa me confiem quarenta rublos de crédito? isto é, o que quero dizer é
se sou capaz de inspirar confiança e credibilidade à primeira vista. Pela
fisionomia mesmo, à primeira vista, acha possível que façam a meu respeito
um julgamento favorável? Pelo que lembra, anjinho, será que sou capaz de
convencer alguém? O que realmente lhe parece? Sabe que sinto um medo
doentio — verdadeiramente doentio! Dos quarenta rublos, vinte e cinco
ficarão a seu dispor, Várienka; dois rublos serão para a minha senhoria e o
resto será destinado a despesas pessoais. Está vendo, à senhoria mesmo
seria o caso de dar mais, seria até necessário; mas considere a situação de
conjunto, minha filha, calcule bem todas as minhas necessidades, e então
verá que não tenho como lhe dar mais, portanto, nem vale a pena falar
disso, e é melhor nem lembrar. Com um rublo de prata compro um par de
botas; nem sei se vou ser capaz de aparecer amanhã no trabalho com estas
velhas. Um lenço de pescoço também seria imprescindível, já que o velho
logo vai completar um ano; mas já que me prometeu cortar não apenas um
lenço com também um peitilho de seu avental velho, então sobre o lenço
nem vou mais pensar. De modo que botas e lenço já tenho. E agora os
botões, minha amiguinha! Pois há de concordar, minha pequena, que não
posso ficar sem botões de maneira alguma; e da minha sobrecasaca já
caíram quase a metade! Tremo só de pensar que Sua Excelência pode
reparar nesse desleixo e dizer... e o que haveria de dizer! Eu, minha filha,
nem sequer ouviria o que dissesse; já que morreria, e morreria no lugar
mesmo, literalmente, só de pensar, pegaria e morreria de vergonha! Oh,
minha filha! De modo que, depois de satisfeitas essas necessidades, restarão
três rublos; e eles serão para a sobrevivência e para meia libra de tabaco;
porque eu, meu anjinho, sem tabaco não consigo viver. E já é o nono dia
que não ponho o cachimbo na boca. Para dizer a verdade, poderia comprar e
não lhe dizer nada, mas tenho vergonha. Enquanto está aí, em desgraça,
privando-se até do essencial, estou eu aqui me esbaldando com todo tipo de
prazeres; e é por isso que lhe digo isso tudo, para não ser martirizado pelo
remorso. Confesso-lhe francamente, Várienka, que minha situação agora é
crítica ao extremo, isto é, definitivamente, nunca me havia acontecido nada
semelhante. A senhoria me despreza, ninguém tem respeito por mim; estou
na mais terrível penúria, com dívidas; e no serviço, onde antes mesmo os
colegas funcionários não eram flor que se cheire comigo — agora, então,
minha filha, nem vale a pena falar. Eu oculto, oculto tudo escrupulosamente
de todos, eu próprio me oculto, e no serviço mesmo só entro sempre de
modo furtivo, depois de me esquivar de todos. É a única pessoa a quem
encontro ânimo de confessar isso... Mas e se ele não emprestar? Oh, não,
Várienka, é melhor nem pensar nisso e não ficar mortificando a alma
antecipadamente com semelhantes pensamentos. Se lhe escrevo isso é para
preveni-la, para que não fique pensando nisso e se martirizando com maus
pensamentos. Ah, meu Deus, o que haveria de lhe acontecer então! Mas é
verdade também que nesse caso não teria de se mudar desse apartamento e
eu a teria perto de mim — não é verdade, eu nem voltaria então,
simplesmente sumiria para algum lugar, desapareceria. Bem, já lhe escrevi
muito, e ainda preciso me barbear, para ficar mais bem-apessoado, com boa
presença se consegue sempre mais. Bem, que Deus nos ajude! Vou rezar um
pouco e, depois, pôr-me a caminho!
M. Diévuchkin
5 DE AGOSTO
Amabilíssimo Makar Alieksiêievitch!
Se ao menos não se desesperasse! Já bastam as amarguras que
temos. Envio-lhe trinta copeques de prata; mais não posso de jeito nenhum.
Compre o que lhe for mais necessário para poder passar pelo menos até
amanhã. A nós mesmas não sobrou quase nada, e amanhã nem sei como vai
ser. Que tristeza, Makar Alieksiêievitch! De resto, não fique triste, se não
deu certo, então o que se há de fazer? Fiódora diz até que ainda não é o fim,
que podemos permanecer neste apartamento por mais algum tempo, que, se
tivéssemos nos mudado, ainda assim não ganharíamos muito com isso, pois,
se quiserem, nos encontrarão em qualquer parte. De qualquer modo, fica
cada vez pior continuar aqui agora. Se não fosse triste, escrever-lhe-ia sobre
um certo assunto.
Que caráter estranho o seu, Makar Alieksiêievitch! Toma tudo
muito a peito; por causa disso, será sempre o mais infeliz dos homens.
Estou lendo todas as suas cartas com atenção e vejo que em cada uma delas
se atormenta e se preocupa comigo como nunca se preocupou consigo
mesmo. Qualquer um diria, sem dúvida, que tem um bom coração, mas eu
digo que ele é excessivamente bom. Dou-lhe um conselho de amiga, Makar
Alieksiêievitch. Sou-lhe muito grata, mas muito grata mesmo, por tudo o
que fez por mim, sinto isso tudo profundamente; pois então avalie como me
sinto em ver que mesmo agora, depois de todos os nossos infortúnios, dos
quais fui involuntariamente a causadora, que mesmo agora vive apenas para
o que eu vivo: para as minhas alegrias, para as minhas tristezas, pelo meu
coração! Se for tomar tão a peito a dor alheia e se compadecer de tudo tão
profundamente, então realmente tem motivo para ser o mais infeliz dos
homens. Hoje, quando veio visitar-me após o serviço, espantei-me ao vê-lo.
Estava tão pálido, assustado, desesperado: estava lívido — e tudo porque
tinha medo de me contar sobre seu fracasso, com receio de me causar um
desgosto, de me assustar, mas foi só ver que estava me contendo para não
rir para sentir um alívio no coração. Makar Alieksiêievitch! não se
amargure, não se desespere, seja mais sensato — eu lhe peço, eu lhe
imploro isso. Vamos, vai ver que tudo há de ficar bem, tudo há de mudar
para melhor; senão lhe será muito penoso viver eternamente melancólico e
sofrendo pela dor alheia. Até logo, meu amigo, eu lhe imploro, não se
preocupe demais comigo.
V. D.
5 DE AGOSTO
Várienka, minha pombinha!
Está bem, meu anjinho, está bem! Chegou à conclusão de que não
faz mal que eu não tenha arranjado o dinheiro. Então está bem, isso me
tranquiliza e me deixa feliz. Estou até contente em saber que não vai
abandonar este velho e permanecer neste apartamento. E se é para falar
tudo, pois saiba que fiquei com o coração repleto de alegria quando vi quão
bem falou de mim em sua carta e os elogios que dedicou aos meus
sentimentos. Não é por orgulho que digo isso, mas porque vejo como gosta
de mim, ao se preocupar tanto com o meu coração. Ora, está bem; para que
ficar falando agora justamente do meu coração! O coração é como é; e, no
entanto, minha filha, ordena-me que não seja pusilânime. Sim, meu anjinho,
talvez eu próprio ache que ela não é necessária, essa pusilanimidade; mas,
diante disso tudo, julgue por si mesma, minha filha, que botas hei de calçar
amanhã para ir para o serviço? Aí é que está, minha filha; pois semelhante
pensamento pode aniquilar um homem, aniquilar completamente. Mas o
principal, minha querida, é que não é por mim que me aflijo, nem é por
mim que sofro; por mim tanto faz, mesmo que tivesse de andar num frio de
rachar sem capote e sem botas, eu aguentaria, suportaria tudo, para mim é
indiferente; sou um homem simples, sem importância — mas o que vão
dizer os outros? O que vão dizer os meus detratores, essas más línguas
todas, quando aparecer sem capote? Pois é para os outros que vestimos
capote, e mesmo as botas, talvez seja para eles que as calçamos. As botas
nesse caso, minha filha, meu benzinho, são-me necessárias para manter a
honra e o bom nome; com as botas furadas, perde-se tanto um quanto o
outro — acredite, minha filha, acredite na minha experiência de muitos
anos; ouça a mim, um velho que conhece o mundo e as pessoas, e não a
esses escrevinhadores e rabiscadores quaisquer.
Mas ainda nem lhe contei em detalhes, minha filha, como as coisas
realmente aconteceram hoje, o que passei hoje. Passei por tanta coisa, e o
peso que suportei na alma, numa única manhã, outro não suportaria num
ano inteiro. Eis como tudo aconteceu: em primeiro lugar, saí de manhã bem
cedinho para apanhá-lo em casa e ainda poder chegar a tempo no serviço.
Chovia tanto hoje, era tanta lama! Eu, minha estrelinha, agasalhei-me bem
com o capote e fui andando, o tempo todo pensando: “Senhor!, dizia
comigo, perdoe os meus pecados e fazei com que se cumpram os meus
desejos”. Passei perto da igreja de -skoi, fiz o sinal da cruz e arrependi-me
de todos os meus pecados, mas me lembrei de que era indigno de querer me
entender com o Senhor Nosso Deus. Fiquei ensimesmado, sem a menor
vontade de olhar para nada; e fui andando assim, sem atentar no caminho.
As ruas estavam desertas e só encontrava pessoas ocupadas, preocupadas, o
que não é de admirar: quem havia de sair para passear àquela hora da
manhã e com um tempo daqueles? Topei com um grupo de operários sujos;
eles me empurraram, os insolentes! A timidez tomou conta de mim, foi
horrível, para dizer a verdade, não queria mais nem pensar em dinheiro —
fui andando ao acaso, ao deus-dará! Bem junto à ponte Voskriessiénski
descolou-me a sola da bota, de modo que nem mesmo sei como continuei a
andar. Nisso topei com nosso escrivão Ermoláiev, que se esticou todo,
parou e ficou me seguindo com os olhos, como quem pede para a vodca;
pois, sim, meu amigo, pensei eu, para a vodca, que vodca o quê! Sentia-me
terrivelmente cansado, parei por um momento, descansei um pouco e
continuei a me arrastar. Pus-me então de propósito a olhar para tudo em
meu redor, queria agarrar-me a algo, ainda que fosse a pensamentos, para
tentar me distrair, para ganhar alento: mas não — não consegui me agarrar a
nada, a um pensamento sequer, e, para cúmulo, estava tão enlameado que
cheguei a sentir vergonha de mim mesmo. Por fim vi ao longe uma casa de
madeira, amarela, com um mezanino do tipo belvedere — aí está, penso eu,
pois é esta mesmo a casa de Márkov — tal como me disse Emielián
Ivánovitch. (Esse Márkov, minha filha, é o tal que empresta dinheiro a
juros.) Mas nisso fiquei tão confuso que, mesmo sabendo que era a casa de
Márkov, ainda assim perguntei ao guarda-cancela: de quem é aquela casa,
meu amigo? O guarda, um grosseirão, diz a contragosto, como se estivesse
zangado com alguém, diz por entre dentes — é isso mesmo, é a casa de
Márkov. Esses guarda-cancelas são todos uns insensíveis — mas o que me
importa o guarda? Entretanto, era como se tudo contribuísse para a
impressão má e desagradável, em suma, uma coisa sempre puxa outra; de
tudo depreendemos algo que se assemelha à nossa situação, e é sempre
assim que acontece. Fiquei dando voltas pela rua e passei três vezes perto
da tal casa, e quanto mais ando, pior fica — não, penso eu, não vai
emprestar, não vai emprestar mesmo! sou um desconhecido, e o meu caso é
um caso delicado, e, além do mais, pelo aspecto não convenço — então,
penso, que seja como o destino quiser; só para não me arrepender mais
tarde, pois não hão de me comer por tentar — e então abri o portão da casa.
Nisso aconteceu outra desgraça: um cãozinho vira-lata, estúpido e nojento
grudou em mim, começou a latir como um louco! Mas são sempre
incidentes ínfimos e ignóbeis como esse, minha filha, que acabam por
desconcertar a pessoa, enchendo-a de timidez e aniquilando todas as
resoluções que havia tomado anteriormente; de modo que, ao entrar na casa,
mais morto do que vivo, caí direto numa nova desgraça; na escuridão, sem
enxergar o que havia embaixo do umbral, ao pisar, esbarrei numa mulher,
acontece que a mulher estava passando o leite do tarro de ordenhar para o
jarro e derramou todo o leite. A imbecil da mulher se pôs a gritar com uma
voz esganiçada e a papaguear — a dizer, onde pensa que vai, criatura, o que
você está querendo? e ainda saiu amaldiçoando todos os diabos. Se faço
essa observação, minha filha, é porque sempre me acontecem coisas
semelhantes em situações desse gênero; parece que essa é a minha sina;
sempre hei de me deparar com algum imprevisto. Por causa do barulho
apareceu a senhoria, uma bruxa velha finlandesa, e me dirigi imediatamente
a ela — é aqui, digo, que mora Márkov? Não, diz; parando e medindo-me
bem com os olhos. “E o que o senhor quer com ele?” Ponho-me a explicar-
lhe, digo que etc. e tal, Emielián Ivánovitch — bem, e todo o resto -, digo
que vim a negócio. A velha chamou a filha — apareceu também a filha,
uma menina já crescida, descalça -, “vá chamar o seu pai; ele está lá em
cima com os inquilinos — faça o favor, senhor”. Entrei. A sala era razoável,
com quadros pendurados nas paredes , só retratos de generais, um divã, uma
mesa redonda, uns vasos de resedá e balsamina — me ponho a matutar,
matutar, não seria melhor ir embora enquanto é tempo, pelo meu bem, ir ou
não ir? e, juro, minha filha, que a minha vontade era fugir dali! É melhor
voltar amanhã, pensei; o tempo também vai estar melhor, e ganho algumas
horas — hoje até o leite derramei, e esses generais estão com cara de
zangados... Já ia me dirigir para a porta, mas justamente aí ele entrou —
nada de especial, grisalho, com uns olhinhos furtivos e um roupão sebento
amarrado com um cinto de corda. Pôs-se a par do que se tratava, e eu lhe
dizendo, é assim e assim, foi Emielián Ivánovitch — uns quarenta rublos,
digo; a questão é que — mas nem terminei de falar. Percebi pelos seus
olhos que era uma causa perdida. “Não, que questão o quê, diz, não tenho
dinheiro; e que penhor tem o senhor, tem algum, o que é?” Tinha começado
a explicar, a dizer que penhor não tenho, mas que foi Emielián Ivánovitch
— enfim, dou-lhe as explicações necessárias. Depois de ouvir tudo — não,
diz, que Emielián Ivánovitch que nada! não tenho dinheiro. Então, penso
eu, se é assim, que seja; já sabia disso, já pressentia — sabe, Várienka, teria
sido melhor se o chão tivesse se aberto sob os meus pés; senti frio, os pés se
enregelaram, e um calafrio percorreu-me a espinha. Fico olhando para ele e
ele olhando para mim, só faltou me dizer: dê o fora, amigo, você não tem
nada a fazer aqui — pois olha que, se isso me tivesse acontecido em outras
circunstâncias, teria morrido de vergonha. Mas para que o senhor tem
necessidade de dinheiro? (E veja a pergunta que me fez, minha filha!) Já ia
abrir a boca, só para não ficar ali parado à toa, mas ele nem quis mais ouvir,
disse — não, não tenho dinheiro; senão, diz, emprestaria com gosto. Tentei
lhe mostrar, dizer que só precisava de um pouquinho, que estava lhe
dizendo que devolveria, que lhe devolverei no prazo, e que devolveria ainda
antes do prazo, ele que cobrasse os juros que quisesse, e jurava por Deus
que lhe devolveria. Nesse instante, minha filha, mencionei o seu nome,
lembrei todos os seus infortúnios e suas necessidades, e mencionei também
a sua moedinha de cinquenta copeques — não mesmo, diz, que juros o quê,
se ao menos fosse com penhor! Do contrário, não tenho dinheiro, Deus é
testemunha de que não tenho; senão emprestaria com gosto — e ainda
jurava, o bandido!
Depois disso, minha querida, nem me lembro de como saí dali, de
como atravessei o Víborgskaia, de como fui parar na ponte Voskriessiénski,
estava terrivelmente cansado, parecendo um autômato, tiritando de frio, e só
consegui chegar no serviço às dez horas. Tinha vontade de dar uma limpada
na minha roupa enlameada, mas o Snieguirióv, o guarda, disse que não
podia, você vai estragar a escova, diz ele, e a escova, senhor, é propriedade
do Estado. É assim que me tratam agora, minha filha, de modo que até para
estes senhores devo ser pior que um trapo no qual limpam os pés. Sabe o
que acaba comigo, Várienka? Não é o dinheiro, são essas atribulações
cotidianas todas, são essas zombarias, esses cochichos, esses risinhos todos
que acabam comigo. Sua Excelência, de algum modo, pode casualmente se
dirigir a mim — ah, minha filha, já se foram meus tempos dourados! Hoje
reli todas as suas cartas; que tristeza, minha filha! Até logo, querida, que
Deus a proteja!
M. Diévuchkin
P. S. Que amargura a minha, Várienka, queria descrever-lhe tudo
meio em tom de brincadeira, só que, pelo jeito, não o consegui, esse tom de
brincadeira. Queria agradá-la. Irei vê-la, minha filha, irei vê-la sem falta,
amanhã mesmo.
11 DE AGOSTO
Varvara Alieksiêievna! minha filha, minha pombinha! Estou
perdido, estamos ambos perdidos, os dois juntos, irremediavelmente
perdidos. A minha reputação, a minha dignidade... tudo perdido! Minha
vida está destruída, a sua também está destruída, minha filha, junto com a
minha, a sua e a minha, estão irremediavelmente destruídas! E fui eu, fui eu
quem a levou à perdição! Sou perseguido, desprezado e ridicularizado,
minha filha, e a senhoria começou simplesmente a ralhar comigo; hoje
ficou gritando, passou-me uma escaldada e colocou-me abaixo de um cisco.
E à noite, no quarto de Rataziáiev, um deles se pôs a ler em voz alta o
rascunho de uma carta que lhe havia escrito e caiu de meu bolso sem que
me desse conta. Minha filha, como caçoaram! Ficavam nos dando apelidos
e não paravam de rir, os traidores! Entrei lá e acusei Rataziáiev de perfídia;
disse-lhe que era um traidor! E Rataziáiev respondeu-me que traidor era eu,
que me dedico a várias conquistas; diz ele — o senhor tem se ocultado de
nós, o senhor, diz, é um Lovelace*; e agora todos me chamam de Lovelace,
e outro nome não tenho! Está ouvindo, meu anjinho, está ouvindo — agora
eles sabem de tudo, estão a par de tudo, e sabem também sobre você, minha
querida, e sobre tudo o que lhe diz respeito, sabem de tudo. E mais! até
Faldoni se passou para o lado deles e está em conivência com eles; hoje
mandei-o à salsicharia, assim, para comprar algo; não vai e pronto, estou
ocupado, diz ele! “Mas é sua obrigação” — digo-lhe eu. “Não mesmo, diz-
me ele, não sou obrigado, o senhor não paga o dinheiro da minha patroa,
portanto, também não lhe devo obrigação.” Não pude suportar os insultos
dele, esse mujique analfabeto, disse-lhe então que era um imbecil; e ele a
mim — “ouvi isso de um imbecil”. Achei que me tivesse dito tal grosseria
por estar embriagado, e então digo — ora, você está bêbado, seu mujique
palerma! e ele a mim: “Foi o senhor que me serviu? Se tivesse como curar a
própria ressaca; o senhor próprio anda mendigando moedinhas de dez
copeques a uma dessas” — e acrescentou: “— ora, e ainda diz ser um
cavalheiro!”. Veja, minha filha, a que ponto chegaram as coisas! É uma
vergonha, Várienka, viver assim! como se fosse um pária qualquer; pior que
um vagabundo sem passaporte. Que calamidade terrível! — estou perdido,
simplesmente perdido! irremediavelmente perdido.
M. D.
(Personagem libertino do romance epistolar Clarissa (1748), do
escritor inglês Samuel Richardson. (N. da T.)
13 DE AGOSTO
Amabilíssimo Makar Alieksiêievitch! Só caem desgraças sobre nós,
uma atrás da outra, eu mesma já nem sei o que fazer! O que há de ser do
senhor agora?, as esperanças em mim não são das melhores; hoje queimei a
mão esquerda com o ferro; deixei-o cair por descuido e acabei me
queimando e me machucando, tudo ao mesmo tempo. Não tenho como
trabalhar, e Fiódora está adoentada já há três dias. Que aflição torturante!
Envio-lhe trinta copeques de prata; esse é praticamente nosso último
dinheiro, e Deus é testemunha de como gostaria de poder ajudá-lo nesse
momento de dificuldade. Tenho vontade de chorar de desgosto! Até logo,
meu amigo! Traria-me grande consolo se viesse nos visitar hoje.
V. D.
14 DE AGOSTO
Makar Alieksiêievitch! O que lhe aconteceu? Não tem temor a
Deus, decerto! O senhor vai, simplesmente, me fazer enlouquecer. Será que
não se envergonha? Está se arruinando, pense só na sua reputação! É um
homem honesto, nobre, digno — pois, então, o que fará quando todos
souberem o que anda fazendo? Simplesmente, há de morrer de vergonha!
Ou será que não tem pena dos seus cabelos brancos? Então não tem temor a
Deus? Fiódora disse que agora já não tornará a ajudá-lo, e eu mesma não
lhe darei mais dinheiro. A que ponto me levou, Makar Alieksiêievitch!
Decerto pensa que pouco me importa que se comporte tão mal; ainda não
sabe o que tenho suportado por sua causa! Não posso sequer passar pelas
nossas escadas: todos me olham, me apontam com o dedo, e dizem coisas
terríveis; dizem-me na cara que ando metida com um bêbado. Como me é
penoso ouvir isso! Quando o trazem carregado para casa, todos os
inquilinos apontam para o senhor com desprezo: olha lá, dizem, trouxeram
aquele funcionário carregado. Eu mesma não me aguento mais de vergonha
pelo senhor. Juro que me mudo daqui. Vou para qualquer lugar trabalhar
como arrumadeira, lavadeira, mas aqui não fico. Pedi-lhe para dar uma
passada aqui em casa e não passou. Parece que meus pedidos e minhas
lágrimas nada significam para o senhor, Makar Alieksiêievitch! E onde foi
que arranjou dinheiro? Pelo amor do Nosso Criador, tome cuidado. Pois
está se arruinando, e se arruinando por nada! E a vergonha, e a tamanha
desonra! Ontem sua senhoria nem sequer o deixou entrar, o senhor pousou
no abrigo: estou a par de tudo. Se soubesse como me foi penoso ouvir isso.
Venha nos visitar, há de se alegrar conosco; vamos ler juntos e recordar o
passado. Fiódora nos contará sobre suas peregrinações por lugares santos.
Por mim, meu pombinho, não destrua a sua vida e também a minha. Pois é
para o senhor unicamente que vivo, para o senhor, e permanecerei com o
senhor. E é assim que se comporta agora? Seja nobre e firme em suas
provações; lembre-se de que pobreza não é defeito. Então por que se
desesperar: isso tudo é passageiro! Se Deus quiser — tudo há de se arranjar,
é só o senhor agora começar a se conter. Estou lhe enviando vinte copeques,
compre tabaco ou o que lhe apetecer, mas, pelo amor de Deus, não os gaste
com coisas nefastas. Venha nos visitar, venha sem falta. Talvez volte a
sentir vergonha, como antes; mas não se envergonhe: esta é uma falsa
vergonha. Basta que traga um arrependimento sincero. Tenha fé em Deus.
Ele há de fazer com que tudo se arranje para melhor.
V. D.
19 DE AGOSTO
Varvara Alieksiêievna, minha filha!
Sinto-me envergonhado, Varvara Alieksiêievna, minha estrelinha,
estou morto de vergonha. Se bem que, o que há nisso de tão especial, minha
filha? Por que então não dar um pouco de alegria ao meu coração? E nesse
caso já nem estou pensando em minhas solas, porque a sola é uma tolice, e
permanecerá sempre uma simples sola, vulgar e suja. Mesmo as botas
também são uma tolice! Os sábios gregos mesmo andavam muitas vezes
sem botas, então por que justamente nós aqui havemos de nos desfazer em
cuidados com um objeto tão indigno? Então por que hão de me ofender, de
me desprezar, num caso desses? Ah, minha filha, minha filha, encontrou
assunto para escrever! E, para Fiódora, diga-lhe que é uma mulher
rabugenta, irrequieta, desvairada e, ainda por cima, estúpida,
indescritivelmente estúpida! Quanto aos meus cabelos brancos, também
sobre isso está enganada, minha querida, porque não sou absolutamente tão
velho quanto pensa. Emieliá lhe manda lembranças. Diz em sua carta que
chora e se sente amargurada, e eu lhe digo que também eu choro e me sinto
amargurado. Para encerrar, desejo-lhe muita saúde e bem-estar, e continuo,
meu anjinho, o seu amigo de sempre.
Makar Diévuchkin
21 DE AGOSTO
Minha prezada senhora e querida amiga
Varvara Alieksiêievna!
Sinto-me culpado, sinto que cometi uma falta para com você, mas
na minha opinião não há nenhuma vantagem nisso, minha filha, no fato de
sentir isso, diga lá o que disser. Antes ainda de cometer a minha
contravenção já sentia isso tudo, mas, também, havia perdido o ânimo, e o
havia perdido por ter consciência da minha culpa. Minha filha, não sou um
homem mau nem duro de coração; e, no entanto, para dilacerar seu
coraçãozinho, minha pombinha, seria preciso ser nada mais nada menos que
um tigre sedento de sangue, e eu, o que tenho, é um coração de cordeiro, e
como sabe não tenho inclinações à sede de sangue; consequentemente, meu
anjinho, não sou de todo culpado por minha contravenção, assim como
também não o são o meu coração e os meus pensamentos; e, se é assim,
nem eu mesmo sei de quem é a culpa. É uma coisa tão obscura, minha filha!
Enviou-me trinta copeques de prata e depois enviou-me mais vinte; partiu-
me o coração olhar para o seu dinheirinho de orfãzinha. Com a mãozinha
queimada e a ponto de passar fome, escreve-me, no entanto, para comprar
tabaco. Ora, como havia eu de proceder num caso desses? Havia,
simplesmente, sem remorsos na consciência, como um bandido, de pôr-me
a roubá-la, a roubar uma orfãzinha? Foi aí que perdi o ânimo, minha filha,
quer dizer, a princípio, ao sentir sem querer que não presto para nada e que
eu mesmo talvez seja pouca coisa melhor que a sola do meu sapato,
considerei indecoroso tomar-me por qualquer coisa de significativo, e, ao
contrário, eu próprio passei a me considerar um tanto inconveniente e, em
certa medida, indecoroso. Bem, e uma vez que havia perdido o respeito por
mim mesmo, me entregado à negação de minhas qualidades boas e da
minha dignidade, veio também a queda! Isso já estava determinado assim
pelo destino, e disso não tenho culpa. Primeiro saí de casa apenas para
tomar um pouco de ar. E aí as coisas foram acontecendo uma atrás da outra:
o dia estava tão lacrimoso, um tempo frio, chovia, e foi aí que surgiu
Emieliá. Ele, Várienka, já penhorou tudo o que possuía, tudo o que tinha foi
para penhor, e quando o encontrei, já fazia dois dias inteiros que não punha
sequer uma gota de orvalho de papoula na boca, de modo que já estava
querendo penhorar algo que não se pode penhorar de forma alguma, porque
não existem penhores dessa natureza. Pois bem, Várienka, cedi mais por
compaixão humana do que propriamente por gosto. E foi assim que esse
pecado foi cometido, minha filha! Como choramos os dois juntos!
Lembramos de você. Ele é uma boa pessoa, é um homem muito bondoso e
bastante sensível. Eu mesmo, minha filha, sinto isso tudo; e é porque
comigo também acontece a mesma coisa que sinto isso muito intensamente.
Sei o quanto lhe sou devedor, minha pombinha! Ao conhecê-la, em
primeiro lugar, comecei a me conhecer melhor e comecei a amá-la; até
então, meu anjinho, eu era solitário, era como se estivesse dormindo nesse
mundo, ao invés de viver. Eles, os meus detratores, diziam que até mesmo o
meu aspecto era indecente, e me desprezavam, então, passei a me desprezar
também; diziam que eu era um bronco, e eu achava mesmo que era um
bronco, e quando você apareceu para mim, iluminou toda a minha vida
sombria, iluminou-me até o coração e a alma, e eu encontrei paz de espírito,
compreendi que não era pior que os outros; que apenas não sou brilhante
em coisa alguma, não tenho polimento, não tenho estilo, mas que ainda
assim sou um homem, que, por meu coração e por meus sentimentos, eu
sou um homem. Mas agora, ao me sentir perseguido pelo destino,
humilhado por ele, entreguei-me à negação de minha própria dignidade,
estava descorçoado da minha pobreza, perdi até o ânimo. E agora que já
sabe de tudo, minha filha, eu lhe suplico, com lágrimas, para que não me
pergunte mais sobre esse assunto, já que ele me dilacera o coração, além de
ser-me amargo e penoso.
Apresento-lhe, minha filha, os meus cumprimentos e continuo seu
fiel
Makar Diévuchkin
3 DE SETEMBRO
Não cheguei a terminar a última carta, Makar Alieksiêievitch,
porque para mim estava sendo penoso escrever. Há momentos às vezes em
que me sinto feliz por estar sozinha, por poder ficar triste sozinha, sentir
saudades sozinha, sem ter de partilhá-los, e estes momentos começam a se
tornar cada vez mais frequentes. Em minhas recordações há algo que me é
tão inexplicável que, sem que me dê conta, absorve-me com tal força, a
ponto de deixar-me horas a fio insensível a tudo o que me rodeia, esquecida
de tudo, de todo o presente. E não há na minha vida atual uma só
impressão, seja agradável, penosa ou triste, que não me recorde de algo
semelhante do meu passado, e, na maioria das vezes, da infância, da minha
infância dourada! Mas, passados esses momentos, começo a sentir sempre
um grande pesar. Sinto-me mais fraca, esgotada por minha natureza
sonhadora, mas mesmo sem isso minha saúde piora a cada dia.
Porém, a manhã fresca, clara e brilhante de hoje, como poucas no
outono daqui, trouxe-me de volta à vida e eu a saudei com alegria. Pois é, já
estamos no outono! Como eu gostava do outono no campo! Era ainda uma
criança nessa época, mas já sentia muita coisa. Gostava mais das tardes do
que das manhãs de outono. Lembro-me de que a dois passos da nossa casa
havia um lago, ao sopé de uma montanha. Esse lago — parece-me que o
estou vendo agora — é um lago tão largo, claro e puro como um cristal! Se
calha de a tarde estar calma — o lago fica sereno; nas árvores que crescem
na margem, nem uma folha se mexe, a água imóvel parece um espelho. O
frescor! o frio! O orvalho caindo na relva, as luzes acesas nas isbás perto da
margem, o rebanho sendo conduzido — nessa hora escapo de casa às
escondidas, para ver o meu lago, e às vezes fico contemplando-o tão
absorta. À beira da água, um feixe de ramos secos arde na fogueira dos
pescadores, e sua luz se derrama pela água até bem longe. O céu é tão frio e
azul, todo dividido no horizonte por faixas vermelhas, ígneas, e essas faixas
se tornam cada vez mais pálidas; a lua aparece; o ar é tão sonoro que, se um
pássaro assustado levanta voo, se um junco começa a sussurrar sob a brisa
suave ou um peixe chapinha na água — pode-se ouvir tudo. Da água azul
sobe um vapor branco, fino e transparente. O horizonte escurece; tudo
parece mergulhar na névoa, mas de perto é tudo tão nitidamente torneado,
como que talhado a cinzel — o barco, a margem, as ilhas; um barril lançado
à margem e esquecido balouça na água de modo quase imperceptível, um
ramo de salgueiro com as folhas amareladas se emaranham nos juncos —
uma gaivota atrasada levanta voo, ora mergulha na água fria, ora torna a
desaparecer na névoa. Eu não me cansava de ver, de ouvir — sentia-me
maravilhosamente bem! E ainda era uma criança, criança pequena!...
Como eu gostava do outono — do outono tardio, quando já estão
segando o trigo e a lida está chegando ao fim, quando vão começar os
serões nas isbás e todos já estão à espera do inverno. Tudo nessa época se
torna mais sorumbático, o céu se cobre de nuvens, folhas amarelas
estendem-se pelos atalhos nos confins do bosque desnudo, e o bosque fica
azul, enegrece — sobretudo ao cair da tarde, quando desce uma névoa
úmida, e as árvores parecem surgir momentaneamente da névoa como
gigantes, como fantasmas terríveis e monstruosos. Quando a gente se atrasa
no passeio, fica para trás, apartada dos outros, e tem de voltar sozinha e
apertar o passo — é horrível! Eu mesma tremo como uma folha; e agora,
penso, e se olhar e aparecer alguém terrível por detrás daquele oco da
árvore? enquanto isso o vento passa zunindo pelo bosque, começa a
farfalhar, a rugir, a silvar, a uivar tão lastimosamente, a arrancar nuvens de
folhas dos ramos mirrados, fazendo-as redemoinhar no ar; e atrás delas
passa um bando comprido, largo e ruidoso de pássaros com gritos
selvagens, estridentes, que enegrece o céu, deixando-o todo encoberto por
eles. O medo cresce e, nisso, é como se começasse a ouvir alguém — a voz
de alguém, como se alguém estivesse sussurrando: “Corra, filha, corra, não
se atrase; de um momento para outro vão acontecer coisas medonhas aqui,
corra, filha!” — uma sensação de horror trespassa-me o coração, e eu corro,
corro tanto que chego a ficar sem respiração. Chego em casa ofegante; em
casa há barulho, alegria; o trabalho será distribuído entre todas nós, as
crianças: descascar ervilhas ou sementes de papoula. A lenha úmida crepita
no fogão; contente, a mãezinha cuida do nosso trabalho alegre; a velha ama
Uliana conta-nos coisas sobre os tempos antigos ou causos terríveis sobre
feiticeiros e mortos. Nós, as crianças, apertamo-nos uma amiga na outra,
todas com um sorriso nos lábios. E eis que de repente nos calamos todas ao
mesmo tempo... escuta! um barulho! parece que estão batendo à porta! Não
é nada; é o ruído da roca da velha Frólovna; o que rimos! Mas depois, à
noite, não conseguimos dormir, de medo; temos sonhos tão terríveis. Às
vezes acordo e fico tremendo debaixo do cobertor até amanhecer, não me
atrevo sequer a me mexer. Mas de manhã acordo fresca como uma
florzinha. Olho pela janela: o campo estava todo crestado pela geada; a
escarcha fina de outono pendia dos ramos nus; o lago estava coberto de
gelo, fino como uma folha de papel; um vapor branco se levanta sobre o
lago; os passarinhos gritam alegremente. O sol ilumina tudo em volta com
seus raios brilhantes, e os raios partem o gelo fino como se fosse vidro. Há
luz, claridade, alegria! No fogão, o fogo torna a crepitar; sentamo-nos todos
junto do samovar, e o nosso cão preto, Polkan, tiritante do frio da noite,
espreita-nos através da janela, abanando o rabo para nos saudar. Um
mujique montado em seu cavalinho bem-disposto passa próximo da janela
em direção do bosque, vai em busca de lenha. Estamos todos tão satisfeitos
e tão alegres!... Ah, que infância dourada foi a minha!...
Agora estou eu aqui chorando, feito criança, levada por minhas
recordações. As lembranças são tão vivas, mas tão vivas, todo o passado
surgiu diante de mim com tanta nitidez que o presente me parece tão turvo e
obscuro... Que fim terá isso, qual será o fim disso tudo? Sabe de uma coisa?
tenho uma espécie de pressentimento, de convicção, de que vou morrer
neste outono. Estou muito, muito doente. Estou sempre achando que vou
morrer, mas, apesar de tudo, não queria morrer assim — deitar nessa terra
daqui. Talvez torne a cair de cama, como aconteceu na primavera e nem
consegui ainda me recuperar. Agora mesmo me sinto muito mal. Fiódora
passará o dia todo fora hoje e eu vou ficar sozinha. De uns tempos para cá
comecei a sentir medo de ficar sozinha; tenho sempre a sensação de que há
uma outra pessoa no quarto comigo, de que alguém fala comigo; sobretudo
quando me entrego a algum pensamento, e depois de súbito caio em mim e
fico apavorada. Aí está o porquê de lhe ter escrito uma carta tão longa;
quando estou escrevendo, isso passa. Até logo: termino a carta porque não
tenho nem papel nem tempo. Do dinheiro que recebi pelos meus vestidos e
pelo chapéu restou-me apenas um rublo de prata. O senhor deu à senhoria
dois rublos de prata; fez muito bem; ela agora vai ficar calada por alguém
tempo.
Dê um jeito de melhorar o seu vestuário. Até logo; estou tão
cansada, não compreendo por que fico assim tão fraca; o menor esforço me
deixa esgotada. Se me aparecer trabalho, como vou trabalhar? É isso que
me mata.
V. D.
5 DE SETEMBRO
Várienka, minha pombinha!
Foram tantas as sensações que experimentei hoje, meu anjinho. Em
primeiro lugar, senti dor de cabeça o dia todo. Saí para tomar um pouco de
ar e dar uma volta pelo Fontanka. Estava uma tarde tão escura e úmida. Esta
época é assim — às cinco horas já começa a anoitecer! Não estava
chovendo, mas em compensação havia neblina, o que às vezes é pior que
uma boa chuva. Faixas compridas e largas de nuvens passavam pelo céu.
Era um não acabar mais de gente andando pelas margens, e uma gente que
parecia estar de propósito com rostos tão assustadores, desalentados, eram
mujiques bêbados, umas finlandesas de nariz arrebitado com botas e cabeça
descoberta, operários, cocheiros, funcionários como eu a serviço; uns
meninos, um aprendiz de serralheiro qualquer de avental listrado,
macilento, mirrado, com a cara respingada de graxa e com cadeados na
mão; um soldado reformado de estatura colossal — este era o tipo de
público. A essa hora, por certo, o público nem poderia ser outro. O
Fontanka é um canal navegável! São barcas que não acabam mais, nem dá
para entender como podem caber todas ali. Nas pontes ficam sentadas umas
mulheres com pães de mel molhados e maçãs podres, e umas mulheres
sempre sujas, molhadas. É entediante passear no Fontanka! Sob os pés o
granito molhado, dos lados prédios altos, escuros, cobertos de fuligem; é
nevoeiro sob os pés, nevoeiro sobre a cabeça. A tarde estava tão escura e
tristonha hoje.
Quando virei para a rua Gorókhovaia já havia escurecido
completamente e o gás começava a ser acendido. Havia um bom tempo que
não ia à Gorókhovaia — por falta de oportunidade. É uma rua barulhenta!
Que luxo são as vendas, as lojas; tudo aceso e brilhando tanto, os tecidos, as
flores atrás das vitrines, os chapeuzinhos com fitas de todo tipo. Pode-se
pensar que isso tudo está exposto assim para enfeitar — mas não: pois há
pessoas que compram isso tudo e presenteiam suas esposas. É uma rua
magnífica! Muitos padeiros alemães vivem na Gorókhovaia; também
devem ser gente muito abastada. É tanta carruagem que passa a todo
instante, como o pavimento suporta isso tudo? São carruagens tão
esplêndidas, os vidros são como espelhos, por dentro é tudo de veludo e
seda; os lacaios dos fidalgos usam dragonas e espadas. Fiquei espiando para
dentro de todas as carruagens, só há damas nelas, tão enfeitadas, talvez
sejam até princesas e condessas. Decerto era a hora em que todas correm
para os bailes e serões. Deve ser curioso ver de perto uma princesa, ou
mesmo uma dama ilustre; deve ser muito bom; eu nunca vi; a não ser assim,
como agora, espiando para dentro da carruagem. Lembrei-me logo de você.
Ah, minha pombinha, minha querida! Agora, quando me lembro de você,
fico com o coração apertado! Por que tem de ser tão infeliz, Várienka? Meu
anjinho! em que é pior do que elas todas? Para mim é tão boa, maravilhosa
e culta, por que tinha de lhe caber então um destino tão cruel? Por que isso
acontece sempre assim, de modo que uma pessoa boa vive em desolação,
enquanto a outra qualquer é a própria felicidade que vem lhe assediar? Eu
sei, eu sei, minha filha, que não se deve pensar assim, que isso é livre-
pensamento; mas, sinceramente, para dizer a verdade verdadeira, por que
para um a gralha do destino grasna a felicidade ainda no ventre materno,
enquanto outro sai do internato direto para esse mundo de Deus? E olha que
acontece também com frequência de um Ivánuchka* bobão alcançar essa
felicidade. Você, Ivánuchka bobão, diz a sorte, meta a mão nos sacos de
dinheiro dos seus avós, beba, coma e divirta-se; mas você, seu isso e mais
aquilo, contente-se em lamber os beiços; você, diz, é isso o que merece,
meu amigo, com você é assim! É pecado, minha filha, é pecado pensar uma
coisa dessas, mas, nesse caso, é o pecado que nos penetra na alma quase
sem querer. Se também pudesse andar numa carruagem como essas, minha
querida, minha estrela. Seriam os generais a captar o seu olhar benévolo —
e não gente como nós; andaria vestida com seda e ouro, e não com
vestidinhos velhos de algodão. Não estaria magrinha e mirradinha como
agora, mas como uma figurinha de açúcar, toda fresquinha, roliça e rosada.
E eu então já me daria por feliz só de poder vê-la da rua através da janela
nitidamente iluminada, mesmo que distinguisse apenas a sua sombra; só de
pensar que ali estaria feliz e contente, meu lindo passarinho, também eu me
alegraria. Mas o que acontece agora? Como se não bastasse que pessoas
más lhe tenham estragado a vida, qualquer calhorda, vadio a ofende. Porque
a casaca lhe assenta como uma luva, porque o lornhão com que o
desavergonhado a olha é de ouro, faz o que bem entende, e você ainda tem
de ouvir com resignação as palavras indecentes dele! Basta, não é,
pombinha? E por que as coisas têm de ser assim? Porque é órfã, porque é
indefesa, porque não tem um amigo forte, que lhe possa dar um amparo
decente? Pois que tipo de homem é esse, que tipo de gente é essa, a quem
não custa nada ofender uma órfã? Isso é lixo, não é gente, é simplesmente
lixo; são apenas enumerados como gente, mas na verdade não o são, e disso
estou certo. É isso o que essa gente é! Mas, na minha opinião, minha
querida, aquele tocador de realejo que encontrei hoje na Gorókhovaia
inspira muito mais respeito do que eles. Embora ande o dia todo e se
esfalfe, à espera de um tostão furado, imprestável para o seu sustento, em
compensação é senhor de si mesmo e garante o próprio sustento. Não quer
pedir esmolas, em compensação trabalha para o prazer das pessoas, como
uma máquina de engrenagem — aí está, diz ele, com o que lhes posso
proporcionar prazer. É pobre, é verdade que é pobre, sempre foi pobre
assim; mas em compensação é um pobre honrado; pode estar cansado,
transido de frio, mas está sempre trabalhando, embora à sua maneira, mas
ainda assim trabalha. E há muita gente honesta, minha filha, que pode
ganhar pouco, na medida da utilidade de seu trabalho, mas não se verga a
ninguém, nem vai pedir pão a ninguém. Pois também sou exatamente
assim, como esse tocador de realejo, quer dizer, eu não sou assim, não sou
absolutamente como ele, mas num certo sentido, no que se refere à
distinção, à nobreza sou exatamente assim, como ele, trabalho na medida
das minhas forças, faço o que posso, por assim dizer. Mais não posso fazer;
e se não posso, então, paciência.
É o seguinte:
Hoje de manhã conversei com Emielián Ivánovitch e Aksiênti
Mikháilovitch sobre Sua Excelência. É verdade, Várienka, não foi apenas a
mim que ele tratou com tanta benevolência. Não fui o único a quem
beneficiou e a bondade de seu coração é conhecida de todos. Por toda parte
se cantam louvores em sua honra e se vertem lágrimas de gratidão por ele.
Educou em sua casa uma órfã. Dignou-se a arranjar tudo para ela: casou-a
com um homem conhecido, um funcionário que Sua Excelência tinha a seu
lado para os encargos especiais. Arranjou emprego para o filho de uma
viúva numa repartição e ainda fez muitas outras benfeitorias. Considerei
que era minha obrigação, minha filha, somar a isso também a minha
contribuição, e contei alto e bom som a todos o que Sua Excelência fez por
mim; contei-lhes tudo, sem esconder nada. Escondi a vergonha no bolso.
Que vergonha há nisso, o que é a vaidade diante de uma circunstância
dessas? E ainda disse, em voz alta — pelas nobres ações de Sua Excelência!
Falei com arrebatamento, falei com ardor, e sem enrubescer, ao contrário,
orgulhoso de poder contar uma coisa dessas. Contei-lhes tudo (apenas no
que se refere a você guardei um silêncio prudente, minha filha), mas sobre a
minha senhoria, sobre Faldoni, sobre Rataziáiev, as botas, Márkov — contei
tudo. Houve lá quem trocasse sorrisos, bem, é verdade que todos eles
trocaram sorrisos. Vai ver que acharam alguma coisa de engraçado no meu
aspecto, ou então foi por causa das minhas botas — por causa das botas,
justamente. Eles não poderiam ter feito isso com má intenção. Foi porque
são jovens, ou porque são gente rica, mas jamais poderiam ter rido do meu
discurso com uma má intenção, por maldade. Ou seja, fazer algo à custa de
Sua Excelência — isso eles não poderiam nunca fazer. Não é verdade,
Várienka?
E até agora ainda não consegui me refazer de todo, minha filha.
Essas ocorrências todas me deixaram tão transtornado! Tem lenha em casa,
Várienka? Não vá se resfriar; não é difícil pegar um resfriado. Oh, minha
filha, ainda me mata com seus pensamentos tristes. Rezo tanto a Deus,
como peço a Ele por você, minha filha! Por exemplo, será que tem meias de
lã, ou então alguma roupa assim mais quente? Veja lá, minha pombinha. Se
precisar de alguma coisa, então, pelo amor ao Criador, não ofenda este
velho. Deve recorrer logo a mim. Os tempos ruins agora ficaram para trás.
Quanto a mim, não se preocupe. À nossa frente há de ser tudo tão radiante!
Foi uma época triste, Várienka! Mas agora tanto faz, já passou! Os
anos vão passar e ainda havemos de suspirar por essa época. Lembro-me
dos meus anos de juventude. Formidáveis! Às vezes chegava a ficar sem
um copeque. Passava frio, fome, mas era alegre, e isso bastava. De manhã
podia dar uma volta pela Niévski, encontrar um rostinho bonitinho e ficar
feliz o resto do dia. Que época boa aquela, minha filha! É bom viver nesse
mundo, Várienka! Sobretudo em Petersburgo. Foi com lágrimas nos olhos
que me confessei ontem diante de Deus Nosso Senhor, para que o Senhor
perdoe todos os meus pecados dessa época triste: meu descontentamento,
meus pensamentos liberais, o escândalo e a exacerbação. Lembrei-me de
você com enternecimento em minha oração. Foi a única pessoa, meu
anjinho, a me encorajar, a única a me confortar, a advertir-me com bons
conselhos e instruções. Nunca poderei me esquecer disso, minha filha. Hoje
beijei todas as suas cartinhas, minha pombinha! Bem, até logo, minha filha.
Dizem que num lugar aqui perto há uma farda à venda. Pois vou dar uma
passada para ver. Então até logo, anjinho. Até logo.
Seu cordialmente devotado
Makar Diévuchkin
15 DE SETEMBRO
Excelentíssimo senhor
Makar Alieksiêievitch!
Estou muito abalada. Veja só o que nos aconteceu. Estou com um
pressentimento fatídico. Mas julgue por si mesmo, meu inestimável amigo:
o senhor Bíkov está em Petersburgo. Fiódora o encontrou. Ele estava num
carro aberto, mandou pará-lo, aproximou-se de Fiódora e começou a
perguntar-lhe onde morava. Ela, a princípio, não quis dizer. Depois ele
disse, sorridente, que sabia quem está morando com ela. (Pelo visto Anna
Fiódorovna lhe contou tudo.) A essa altura Fiódora não se conteve e ali
mesmo na rua começou a acusá-lo, a repreendê-lo, a dizer-lhe que era um
homem imoral, que era ele a causa de todas as minhas infelicidades. Ele
respondeu que, quando não se tem um vintém, então é óbvio que a pessoa é
infeliz. Fiódora lhe disse que eu teria podido ganhar a vida com meu
trabalho, que teria podido me casar, ou então ter buscado uma colocação em
algum lugar, mas que agora minha felicidade estava para sempre perdida, e
que além do mais estou doente e morrerei logo. Ao que ele observou que
ainda sou muito jovem, que ainda tenho a cabeça em fermentação e que
também as nossas virtudes se haviam extinguido (são palavras dele).
Fiódora e eu achávamos que ele não conhecia a nossa casa, mas eis que
ontem, mal saí para as compras no Gostíni Dvor, ele de repente entra em
nosso quarto; pelo jeito não queria me pegar em casa. Passou um longo
tempo interrogando Fiódora sobre o nosso dia a dia; examinou tudo em
casa, viu o meu trabalho, e por fim perguntou: “Quem é esse funcionário
conhecido de vocês?”. Nesse momento o senhor estava atravessando o
pátio; Fiódora o apontou para ele; ele olhou e sorriu; Fiódora suplicou-lhe
que fosse embora, disse-lhe que eu já estava doente por causa das minhas
amarguras e que não me seria nada agradável vê-lo aqui. Ele não
respondeu; disse que havia vindo à toa, porque não tinha nada a fazer, e
quis dar vinte e cinco rublos a Fiódora; ela, evidentemente, não aceitou. O
que teria significado isso? Para que terá ele vindo aqui? Não consigo
entender, como pode saber de tudo a nosso respeito? Perco-me em
conjecturas. Fiódora diz que Aksínia, uma cunhada dela que costuma nos
visitar, conhece a lavadeira Nastácia e que o primo de Nastácia é guarda no
mesmo departamento em que trabalha um conhecido do sobrinho de Anna
Fiódorovna, pois, então, será que os mexericos não se teriam arrastado de
alguma forma? Aliás, pode também muito bem ser que Fiódora esteja
enganada; não sabemos o que pensar. Será que ele tornará a voltar aqui? Só
de pensar já fico aterrorizada! Quando Fiódora me contou isso tudo ontem,
fiquei tão assustada que por pouco não desmaiei de medo. O que mais eles
querem? Eu agora não quero saber deles! Que assunto poderia ter ele para
tratar comigo, uma coitada! Ah, estou tão apavorada; não paro de pensar
que Bíkov pode entrar de um momento para outro. Que vai ser de mim? O
que mais me reserva o destino? Pelo amor de Deus, venha para cá agora
mesmo, Makar Alieksiêievitch. Venha, pelo amor de Deus, venha.
V. D.
18 DE SETEMBRO
Varvara Alieksiêievna, minha filha!
Hoje teve lugar em nosso apartamento um acontecimento
extremamente triste, absolutamente inexplicável e inesperado. Nosso pobre
Gorchkov (é preciso mencionar-lhe isto, minha filha) foi completamente
absolvido. A decisão já havia saído faz tempo, mas hoje ele foi ouvir a
resolução definitiva. O caso acabou portanto de maneira muito favorável a
ele. Havia lá uma acusação de negligência e imprudência contra ele — mas
foi completamente absolvido de tudo. O comerciante foi sentenciado a
pagar em seu benefício uma importância significativa em dinheiro, de modo
que até sua situação melhorou muito, além de ter se livrado de uma mancha
em sua honra, e tudo ficou melhor — ou seja, o resultado foi a mais
completa realização dos seus desejos. Hoje chegou em casa às três horas.
Estava lívido, branco como um pano, com os lábios tremendo, mas sorria
— abraçou a mulher, os filhos. Nós fomos todos em bando cumprimentá-lo.
Ele ficou realmente comovido com a nossa atitude. Cumprimentou-nos a
todos, apertando a mão de cada um de nós várias vezes. Pareceu-me até que
havia crescido, ficado mais ereto, e que já não trazia a lagrimazinha nos
olhos. Estava tão emocionado, coitado. Não conseguia permanecer dois
minutos no mesmo lugar; pegava tudo o que lhe caía às mãos e depois
tornava a largar, não parava de sorrir e de nos cumprimentar, sentava,
levantava, tornava a sentar, falava sabe Deus o quê — dizia: “A honra, a
minha honra, o meu bom nome, meus filhos” — e falava de um jeito!
começou até a chorar. A maioria de nós também derramou umas lágrimas.
Rataziáiev, pelo jeito, queria animá-lo, e disse: “O que é a honra, meu
amigo, quando não se tem o que comer; o dinheiro, meu amigo, o dinheiro é
mais importante, é por isso que deve agradecer a Deus!” — e ao dizê-lo
deu-lhe uma palmadinha no ombro. Pareceu-me que Gorchkov se ofendeu,
isto é, não que tenha manifestado claramente descontentamento, mas lançou
um olhar meio estranho para Rataziáiev e retirou a mão dele de seu ombro.
Antes isso não teria acontecido, minha filha! Aliás, o temperamento varia
muito de pessoa para pessoa, meu amorzinho. Eu, por exemplo, em meio a
tanta alegria, não me teria mostrado orgulhoso; é que às vezes, minha
querida, você manifesta uma reverência desnecessária e mesmo humilhação
simplesmente por uma espécie de acesso de bondade da alma e excesso de
suavidade do coração... mas, aliás, não é de mim que se trata! “É verdade,
diz ele, o dinheiro também é bom; graças a Deus, graças a Deus!” E depois,
durante todo o tempo que estivemos lá, ficou repetindo: “Graças a Deus,
graças a Deus!...”. Sua mulher encomendou um almoço mais requintado e
mais abundante. Foi a própria senhoria que o preparou para eles. No fundo,
nossa senhoria é uma boa pessoa. E até a hora do almoço Gorchkov não
conseguia parar sentado em lugar nenhum. Passava pelo quarto de todos,
convidado ou não. Vai entrando, sorri, senta-se numa cadeira, diz alguma
coisa, e às vezes nem diz nada — e vai embora. No quarto do aspirante da
Marinha chegou a pegar cartas nas mãos; fizeram-no até sentar-se para
jogar em quatro. Ele começou a jogar, ficou jogando um pouco, se
confundiu, fez uns absurdos com as cartas e, após três ou quatro lances,
parou de jogar. “Não, diz ele, não vim para isso, estava apenas dando uma
passada” — e saiu dali. Encontrou-me no corredor, pegou-me nas duas
mãos, fitou-me diretamente nos olhos, mas de um modo bem esquisito;
apertou-me a mão e se afastou, o tempo todo sorrindo, mas com um sorriso
tão deprimente e estranho, um sorriso de defunto. A mulher dele chorava de
alegria; havia tanta alegria no quarto deles, como em dia de festa.
Terminaram logo de almoçar. Depois do almoço chegou a dizer à mulher:
“Ouça, alminha, vou me deitar um pouco” — e foi para a cama. Chamou
sua filhinha, pôs a mão na cabecinha da criança e ficou durante muito
tempo acariciando-a. Depois se voltou de novo à mulher: “Mas e o
Piétienka? O nosso Piétia, diz ele, Piétienka?...” A mulher benzeu-se e
ainda respondeu que ele havia morrido. “Sim, sim, eu sei, sei de tudo.
Piétienka agora está no Reino dos Céus.” A mulher, ao perceber que não
estava em seu estado normal, que o acontecimento o havia transtornado por
completo, diz-lhe: “Deveria dormir, alminha”. “Sim, está bem, vou agora
mesmo... um pouquinho” — nisso ele se virou para o outro lado, ficou um
pouco deitado, depois tornou a se virar, queria dizer alguma coisa. A mulher
não entendeu e perguntou-lhe: “O que é, meu amigo?”. Mas ele não
respondeu. Ela esperou um pouco — bem, pensou, adormeceu, e saiu por
uma horinha para falar com a senhoria. Uma hora depois voltou — olha, o
marido ainda não acordou e está deitado tranquilamente, sem se mexer.
Achando que estivesse dormindo, sentou-se e pôs-se a fazer um trabalho.
Ela conta que ficou uma meia hora trabalhando e que estava tão absorta em
seus pensamentos que nem lembra o que pensava, diz apenas que até se
esquecera do marido. Mas de súbito uma sensação de inquietude a fez
voltar a si, e o que a surpreendeu mais do que tudo foi o silêncio sepulcral
que reinava no quarto. Ela olhou para a cama e viu que o marido continuava
a dormir na mesma posição. Então aproximou-se dele, arrancou-lhe de cima
o cobertor, olhou — estava já frio — havia morrido, minha filha, Gorchkov
estava morto, morreu de repente, como se tivesse sido atingido por um raio!
E do que morreu — só Deus sabe. Isso me deixou tão abalado, Várienka,
que até agora ainda não consegui recobrar os sentidos. Não dá para
acreditar numa coisa dessas, que um homem possa morrer assim, tão
simplesmente. Que pobre coitado, era um pobre-diabo esse Gorchkov! Ah,
é o destino, mas que destino o dele! A mulher está em prantos, apavorada.
A menina encafurnou-se num canto. No quarto deles está o maior rebuliço,
uma grande confusão; vão fazer a perícia médica... não saberia dizer-lhe
com certeza. Mas é uma pena, uma grande pena! É triste pensar que na
verdade você não sabe nem dia nem hora... Pode morrer assim, sem mais
nem menos...
Se
u
Makar Diévuchkin
19 DE SETEMBRO
Prezada senhora
Varvara Alieksiêievna!
23 DE SETEMBRO
Varvara Alieksiêievna, minha filha!
Apresso-me a responder-lhe, minha filha; apresso-me a comunicar-
lhe, minha filha, que estou perplexo. Isso tudo parece-me irreal... Ontem
sepultamos Gorchkov. Sim, é verdade, Várienka, é verdade; Bíkov
procedeu com nobreza; só que está vendo, minha querida, também está de
acordo. É claro que em tudo está a vontade divina; é verdade que isso deve
ser necessariamente assim, isto é, a vontade divina deve necessariamente
estar nisso; assim como é claro que a Providência do Criador Celeste é
bendita e insondável e os destinos também, eles também a mesma coisa.
Fiódora também compartilha de sua decisão. É claro que agora será feliz,
minha filha, viverá na abundância, minha pombinha, minha estrela, meu
anjinho — mas veja bem, Várienka, por que isso tem de ser assim tão
depressa?... Sim, os negócios... o senhor Bíkov tem negócios — é claro, e
quem não tem negócios? ele também pode tê-los... eu o vi, quando saía de
sua casa. É bem apessoado, um homem bem apessoado; um homem até
muito bem apessoado. Mas tem algo de errado nisso, não se trata
precisamente do fato de ser ele um homem bem apessoado, e além do mais
agora estou um pouco fora de mim. A questão é, como vamos agora
escrever cartas um ao outro? E eu, como é que eu vou ficar assim sozinho?
Eu, meu anjinho, só faço ponderar, estou ponderando tudo, como me
escreveu, pondero tudo em meu coração, todas as razões. Já havia
terminado de copiar vinte folhas quando tiveram lugar esses
acontecimentos! Minha filha, já que vai partir, precisa fazer uma porção de
compras, vários pares de sapatos, um vestidinho, e, aliás, conheço até uma
loja na Gorókhovaia; lembra-se de como ainda antes a descrevi toda? Não é
possível! Mas como, minha filha, o que está havendo! pois não pode partir
agora, é completamente impossível, não pode de maneira alguma. Pois tem
uma porção de compras a fazer, e também tem de arranjar uma carruagem.
Além disso, o tempo agora também está ruim; pois pense bem, chove a
cântaros, e uma chuva tão úmida, e, ainda por cima... ainda sentirá frio, meu
anjinho; seu coraçãozinho sentirá frio! Tem medo de gente estranha, mas
está partindo. E eu, com quem vou ficar aqui sozinho? É verdade que
Fiódora diz que uma grande felicidade a espera... acontece que ela é uma
mulher desvairada e só quer me destruir. Vai hoje à missa da tarde, minha
filha? Eu iria para vê-la. Uma coisa é verdade, minha filha, que é uma moça
culta, virtuosa e sensível, pois melhor seria que ele se casasse com a filha
do comerciante! O que acha, minha filha? melhor seria ele se casar com a
filha do comerciante! Assim que escurecer, minha Várienka, passo para vê-
la por uma horinha. Nessa época realmente escurece cedo, de modo que
irei. Minha filha, hoje irei vê-la por uma horinha sem falta. Agora está à
espera de Bíkov, mas assim que ele sair, então... Espere por mim, minha
filha, eu irei...
Makar Diévuchkin
27 DE SETEMBRO
Su
a
V. D.
P. S. Pelo amor de Deus, meu amigo, não se esqueça de nada do que acabo de
lhe dizer. Fico sempre com medo de que cometa algum engano. Guarde bem, com
ponto vazado, e não com ponto cheio.
V. D.
Prezada senhora
Varvara Alieksiêievna!
Makar Diévuchkin
28 DE SETEMBRO
Prezado senhor
Makar Alieksiêievitch!
Pelo amor de Deus, corra imediatamente ao joalheiro. Diga-lhe que
não é preciso fazer os brincos com pérolas e esmeraldas. O senhor Bíkov
diz que é luxo demais e custa os olhos da cara. Ele está zangado; diz que
isso está além de suas posses, que o estamos saqueando, e ontem disse que
se soubesse, se fizesse ideia das despesas, nem teria se metido nisso. Diz
que assim que nos casarmos partiremos imediatamente, que não haverá
convidados e que eu não espere que vá girar e dançar, pois para festas ainda
falta muito. É assim que fala! Mas Deus é testemunha de que não preciso de
nada disso. O próprio senhor Bíkov encomendou tudo. Nem me atrevo a
responder-lhe nada: ele é tão irascível. Que vai ser de mim?
V. D.
28 DE SETEMBRO
Minha pombinha, Varvara Alieksiêievna!
Eu — isto é, o joalheiro diz que está bem; mas eu queria primeiro
falar a meu respeito, que adoeci e não consigo me levantar da cama.
Justamente agora, num momento em que há tanto o que fazer e sou
necessário, fui apanhar um resfriado, o inimigo que o pegue! Comunico-lhe
ainda que, para cúmulo das minhas desgraças, Sua Excelência também
dignou-se a agir com severidade e gritou e ralhou muito com o Emielián
Ivánovitch, com isso acabou ficando extenuado, coitado. Veja que estou lhe
informando acerca de tudo. É verdade, queria lhe escrever mais alguma
coisa, mas receio importuná-la. É que eu, minha filha, sou um homem
estúpido, simples, escrevo o que me vem à cabeça, de maneira que, talvez,
veja nisso alguma coisa que... mas falar nisso para quê!
Se
u
Makar Diévuchkin
29 DE SETEMBRO
Varvara Alieksiêievna, minha querida!
Hoje vi Fiódora, minha pombinha. Ela diz que o seu casamento é
amanhã e que depois de amanhã partirá, que o senhor Bíkov já está
alugando os cavalos. Quanto à Sua Excelência, já lhe informei, minha filha.
E outra coisa: já verifiquei as contas da loja da Gorókhovaia; está tudo
certo, só que saiu muito caro. Mas por que razão o senhor Bíkov se zanga
com você? Bem, seja feliz, minha filha! Estou contente; e ficarei contente
se estiver feliz. Iria à igreja, minha filha, mas não posso, doem-me os rins.
Mas volto a insistir a respeito das nossas cartas: pois quem há de se
encarregar de entregá-las para nós, minha filha? Ah, sim! Sei que
beneficiou Fiódora, minha querida! Foi uma boa ação o que fez, minha
amiga, fez muito bem. Foi uma boa ação! O Senhor há de abençoá-la por
todas as suas boas ações. As boas ações não ficam sem recompensa, e a
virtude há de ser sempre coroada com a coroa da justiça divina, mais cedo
ou mais tarde. Minha filha! Gostaria de lhe escrever muita coisa, por mim
lhe escreveria a toda hora, a todo minuto, escreveria tudo! Ainda tenho
comigo um livrinho seu, os Contos de Biélkin, mas, sabe, minha filha, não o
tome de volta, deixe-o comigo de presente, minha pombinha. E não porque
queira tanto relê-lo. Mas como sabe por si própria, minha filha, vem aí o
inverno; as noites serão longas, será uma tristeza, e então poderei ler. Eu,
minha filha, me mudarei de meu apartamento para o seu antigo, Fiódora me
alugará um quarto. Desta mulher honesta agora não me separo por nada, e
além disso é tão trabalhadora. Ontem fiz uma inspeção detalhada em seu
quarto vazio. Lá, o seu bastidor, ainda com o bordado, permanece tal como
o deixou, intacto: está no cantinho. Examinei seu bordado. Ficaram ainda
aqui alguns retalhos. E a linha que começara a bobinar em uma cartinha
minha. Encontrei algumas folhinhas de papel sobre a mesinha, e numa folha
está escrito: “Prezado senhor Makar Alieksiêievitch, apresso-me” — e mais
nada. Pelo jeito alguém a interrompeu na parte mais interessante. No canto,
atrás do biombo, está a sua caminha... Minha pombinha!!! Bem, até breve,
até breve; pelo amor de Deus, responda a esta cartinha o mais depressa
possível.
Makar Diévuchkin
30 DE SETEMBRO
Tudo se cumpriu! Minha sorte está lançada, não sei qual, mas me
submeto à vontade do Senhor. Partimos amanhã. Despeço-me do senhor
pela última vez, meu inestimável amigo, meu benfeitor, meu querido! Não
se aflija por minha causa, viva feliz, lembre-se de mim, e que a bênção de
Deus recaia sobre o senhor! Vou me lembrar sempre do senhor em meus
pensamentos e em minhas orações. Eis que chegou ao fim esta época! Das
lembranças do passado, é pouco o que levo de agradável para a minha nova
vida; quanto mais preciosas forem as lembranças sobre o senhor, mais
precioso será o senhor para o meu coração. É meu único amigo; foi a única
pessoa que me amou aqui. Pois eu via tudo, eu sabia como o senhor me
amava! Ficava feliz com um sorriso meu, com uma linha de minhas cartas.
Terá de se desacostumar de mim agora. Como há de ficar sozinho aqui?
Com quem ficará aqui, meu bom, precioso e único amigo? Deixo-lhe o
livro, o bastidor e a carta iniciada; quando olhar para estas linhas que
comecei a escrever, leia todo o resto em pensamento, o que gostaria de
ouvir ou de ler de mim, tudo o que poderia lhe escrever; e o que não lhe
escreveria agora! Lembre-se da sua pobre Várienka, que o amou com todas
as forças. Todas as suas cartas ficaram na gaveta de cima da cômoda de
Fiódora. Escreve que está doente, mas o senhor Bíkov não me deixa sair
hoje para lugar nenhum. Hei de lhe escrever, meu amigo, eu prometo, mas
só Deus sabe o que pode acontecer. Então, despeçamo-nos agora para
sempre, meu amigo, meu pombinho, para sempre!... Oh, que abraço lhe
daria agora! Adeus, meu amigo, adeus, adeus. Viva feliz; tenha boa saúde.
Minhas orações serão eternamente para o senhor. Oh, como me sinto triste,
como sinto toda a minha alma oprimida. O senhor Bíkov está me
chamando. Com eterno amor
V.