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Gente Pobre (Fiódor Dostoiévski)

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“Oh, estou farto desses contadores de história! Em
vez de escrever alguma coisa útil, agradável, prazerosa, mas
não, revolvem todos os podres da terra!... Pois eu os
proibiria de escrever! Ora, o que parece isso: a pessoa lê...
sem querer se pega pensando — e aí lhe vem à cabeça todo
tipo de disparate; palavra que os proibiria de escrever; no
fim das contas eu pura e simplesmente os proibiria.”

PRÍNCIPE V. F. ODÓIEVSKI
(Do conto “O morto vivo”, de 1839, de Vladímir
Odóievski (1804-1869). (N. da E.)
8 DE ABRIL
Minha inestimável Varvara Alieksiêievna!
Ontem fiquei feliz, desmedidamente feliz, feliz a mais não poder.
Ao menos uma vez na vida deu-me ouvidos, sua teimosa. À noitinha, por
volta das oito, acordo (como sabe, minha filha, gosto de tirar uma soneca de
uma horinha, duas, depois do trabalho), pego uma velinha e ponho-me a
arrumar os papéis, a afiar a pena; de repente levanto os olhos, por acaso —
palavra, de súbito meu coração começou a disparar! Afinal entendeu o que
eu mais desejava, o que mais desejava o meu coraçãozinho! Olho, uma
pontinha da cortininha de sua janela está arrebitada e presa ao vaso de
balsamina, tal como já lhe havia insinuado; por um momento me pareceu
que seu rostinho também surgira à janela e que de seu quartinho também
olhava para mim, que também estava pensando em mim. E como fiquei
desapontado, minha pombinha, por não poder discernir direito esse seu
rostinho gracioso! Houve um tempo em que eu também enxergava com
nitidez, minha filha. A velhice não é brincadeira, minha querida! Mas,
agora, é como se tudo se me turvasse diante dos olhos; um pouquinho que
trabalhe à noite, uma coisinha que escreva, pela manhã os olhos estão
vermelhos e tão lagrimejantes que chega a dar vergonha diante de
estranhos. Entretanto, em minha imaginação, estava com seu sorrisinho
radiante, anjinho, seu sorrisinho tão amável e afetuoso; e em meu coração
experimentei exatamente a mesma sensação de quando a beijei, Várienka
— está lembrada, anjinho? Sabe, minha pombinha, que me pareceu até que
me ameaçava daí com o dedinho? É verdade, sua travessa? Descreva-me
isso tudo sem falta com detalhes em sua carta.
E, então, que tal a nossa invençãozinha a respeito de sua cortininha,
Várienka? Fascinante, não é mesmo? Se me sento para trabalhar, se me
deito para dormir, se acordo, sei que daí também pensa em mim, que me
compreende e, além disso, se está com saúde e contente. Se baixa a cortina,
quer dizer — boa noite, Makar Alieksiêievitch, hora de dormir! Se a
levanta, quer dizer — bom dia, Makar Alieksiêievitch, como passou a noite,
ou: como vai de saúde, Makar Alieksiêievitch? Quanto a mim, graças ao
Criador, estou bem e com saúde! Está vendo, minha estrelinha, como isso
foi bem bolado; nem de cartas é preciso. Bem pensado, não é mesmo? E foi
uma invençãozinha minha! E, então, não sou bom para essas coisas,
Varvara Alieksiêievna?
Devo informá-la, Varvara Alieksiêievna, minha filha, de que esta
noite, contrariando as expectativas, dormi um sono só, o que me deixou
realmente satisfeito; embora num alojamento novo, de casa nova, é como se
a gente nunca fosse conseguir pegar no sono; fica sempre parecendo que há
algo errado! Levantei-me hoje como o falcão fulgente* — contente de dar
gosto! Que bela manhã está fazendo hoje, minha filha! Abriram aqui a
minha janelinha**; o solzinho está brilhante, os pássaros chilreiam, o ar
recende aromas primaveris, e toda a natureza se revivifica — bem, e todo o
resto também está em correspondência; tudo em ordem, à maneira
primaveril. Hoje até me entreguei a sonhos bem agradáveis, e meus sonhos
foram o tempo todo com você, Várienka. Comparei-a com um pássaro do
céu, criado para a alegria dos homens e adorno da natureza. E então pensei
que pessoas como nós, Várienka, que vivem sempre em meio a tribulações
e sobressaltos, também deveriam invejar a felicidade despreocupada e
inocente das aves do céu — bom, e todo o resto também assim, e por aí vai;
quer dizer, fiquei fazendo essas comparações vagas. Estou com um livro
aqui, Várienka, e nele também está tudo descrito desta mesma maneira e
com bastantes pormenores. Escrevo isso porque os sonhos costumam variar,
minha filha. Agora é primavera, por isso os pensamentos são sempre tão
agradáveis, aguçados, engenhosos, e os sonhos são ternos, sempre cor-de-
rosa. Foi por esse motivo que escrevi isso tudo; aliás, tirei isso tudo do
livro. Nele o autor exprime esse mesmo desejo em versos e escreve:
Por que não sou uma ave, uma ave de rapina?!

*Referência à história popular <span class="t2">Fínist: o


falcão fulgente</span>, de autoria anônima. (N. da T.)
**Com a chegada da primavera, os caixilhos e a vedação que
impedem a entrada de ar frio durante o inverno são retirados das
janelas, para que possam ser abertas. (N. da T.)

Etc. e tal. Há ainda vários pensamentos nele, mas não vem ao caso!
E por onde foi que andou hoje de manhã, Varvara Alieksiêievna? Ainda
nem havia me aprontado para ir à repartição e já esvoaçava do quarto e
atravessava o pátio toda contentinha, como um verdadeiro pássaro
primaveril. Como fiquei contente ao vê-la. Ah, Várienka, Várienka! Não
fique triste; não é com lágrimas que se remedia a dor; isso eu sei, minha
filha, sei por experiência própria. Agora está tão tranquila, até de saúde está
um pouco melhor. E como vai sua Fiódora? Ah, que mulher bondosa é essa!
Escreva-me, Várienka, dizendo como estão vivendo aí agora e se estão
satisfeitas com tudo. É verdade que Fiódora é um pouco rabugenta; mas não
faça caso disso, Várienka. Deus a proteja! Ela é tão boa.
Já lhe escrevi sobre nossa Teresa, que também é uma mulher boa e
fiel. Como já estava preocupado com nossas cartas! Como fazer para
entregá-las? E eis que, para nossa felicidade, Deus nos enviou Teresa. É
uma mulher boa, dócil e calada. Mas a nossa senhoria é simplesmente
impiedosa. Sobrecarrega-a de trabalho como se fosse um pano de chão.
Em que pardieiro vim eu parar, Varvara Alieksiêievna! Bem, é um
alojamento! É verdade que antes vivia como um surdo, bem sabe: em paz e
em silêncio; dava até para ouvir uma mosca voando, se acontecia de entrar
uma mosca no quarto. E aqui há barulho, gritaria, vozerio! Nem faz ideia de
como isso tudo aqui está arranjado. Imagine, por exemplo, um corredor
comprido, completamente escuro e sujo. Do lado direito a parede é
inteiriça, do lado esquerdo são portas e mais portas, todas enfileiradas,
exatamente como os quartos de hotel. E há quem alugue estes quartos, e são
todos quartos de solteiro; em um único vivem de duas a três pessoas. Nem
pergunte pelo regulamento — é a própria arca de Noé! De resto, parece que,
apesar de tudo, é uma gente boa, com instrução, culta. Há um funcionário
(de alguma seção literária aí), um homem lido: fala de Homero, de
Brambéus* e de vários escritores lá deles, fala sobre tudo — é um homem
inteligente! Moram dois oficiais que passam o tempo jogando cartas. Mora
um aspirante da marinha; mora um inglês, professor. Espere para ver, ainda
a farei se divertir, minha filha; na próxima carta vou descrevê-los de modo
satírico, isto é, tal como são, até nos menores detalhes. Nossa senhoria é
uma velhota muito pequena e pouca asseada — anda o dia todo de pantufas
e roupão e o dia todo só faz ralhar com Teresa. Eu moro na cozinha, ou eis
como seria muito mais correto dizer: contíguo à cozinha há um quarto (é
preciso dizer que temos uma cozinha limpa, clara e muito boa), não é um
quarto grande, é um cantinho bem modesto... isto é, melhor ainda seria
dizer, a cozinha é grande, com três janelas, e eu tenho um tabique paralelo à
parede transversal, de modo que é como se houvesse mais um quarto, um
quarto extranumerário; é bem espaçoso e confortável, tem janela e tudo —
em suma, tem todo o conforto. Bem, esse é o meu cantinho. E não vá
pensar, minha filha, que haja nisso alguma outra coisa, qualquer sentido
oculto; mas, ora, vai dizer, é uma cozinha! — isto é, na verdade, é nesse
quarto mesmo atrás do tabique que estou morando, mas isso não quer dizer
nada; por mim vou vivendo quieto, escondidinho, apartado de todos.
Coloquei aqui uma cama, uma mesa, uma cômoda, um par de cadeiras e
pendurei um ícone na parede. É verdade que há alojamentos até melhores
— talvez haja até muito melhores -, mas o mais importante mesmo é a
comodidade, já que estou neste apenas pela comodidade, e nem pense que
tenha sido por alguma outra coisa. Sua janelinha fica em frente, do outro
lado do pátio; e o pátio mesmo é estreitinho, dá para vê-la passar — pobre
de mim, me sinto bem mais feliz, além de ser mais barato. Aqui, nosso pior
quarto, com a alimentação, custa trinta e cinco rublos em notas**. Não é
para o meu bolso! Já meu alojamento me custa sete rublos em notas, mais
cinco rublos de prata pela comida: então são vinte e quatro rublos e
cinquenta copeques, enquanto antes pagava trinta exatos, mas em
compensação renunciava a muita coisa; chá nem sempre tomava, e agora
passei a economizar tanto para o chá como para o açúcar. Sabe de uma
coisa, minha querida?, é meio embaraçoso não tomar chá; aqui só tem gente
de recursos, de modo que é embaraçoso. É pelos outros que a gente o toma,
Várienka, para manter a aparência, por ser de bom tom; mas por mim tanto
faz, não sou caprichoso. Admita ainda que há de se trazer um dinheiro no
bolso (dinheiro para as despesas miúdas) — alguma coisa sempre é
necessária — um parzinho de botas, uma roupinha que seja -, será que sobra
muito? E nisso vai todo o meu ordenado. Eu mesmo não me queixo e estou
satisfeito. É o suficiente. Há alguns anos já que tem sido suficiente; há
também as gratificações. Bem, até logo, meu anjinho. Comprei aí um
parzinho de vasos de balsamina e gerânio — não foi caro. Mas talvez goste
também de resedá? Pois há também resedá, escreva-me; sabe, escreva
sempre com o máximo de detalhes que puder. Aliás, não fique imaginando
coisas e não se preocupe comigo, minha filha, por ter alugado semelhante
quarto. É verdade que fui levado pela comodidade, apenas a comodidade
me seduziu. É que eu, minha filha, estou juntando, guardando um dinheiro;
uns cobrinhos tenho. Não ligue para o fato de ser eu tão fracote a ponto de
parecer que uma mosca poderia me desmontar com uma asa. Não, minha
filha, no fundo não sou nenhum fracote, e tenho exatamente o tipo de
caráter que convém a um homem de alma firme e serena. Até logo, meu
anjinho! Escrevi-lhe tanto que por pouco não enchi duas folhas, e já passa
muito da hora de ir para o trabalho. Beijo-lhe os dedinhos, minha filha, e
continuo

seu devotadíssimo criado e fidelíssimo amigo


Makar Diévuchkin

P.S. Só lhe peço uma coisa: responda-me, meu anjinho, com as


menores minúcias. Envio-lhe junto, Várienka, uma librazinha*** de balas,
então saboreie-as e faça delas bom proveito, e mais: pelo amor de Deus, não
se preocupe comigo nem me guarde rancor. Bem, então até logo, minha
filha.

* Barão Brambéus, pseudônimo de O. Sienkóvski (1800-1858),


redator da revista <span class="t2">Bibliotieka dlia
Tchtiéniia</span>, cujos artigos e contos o tornaram ídolo do
público menos culto. (N. da E.)
** Papel-moeda que existia na Rússia desde 1769. Em 1830, um
rublo de papel, pelo câmbio oficial, equivalia a 27 copeques de
prata. (N. da E.)
Funt em russo. Medida de peso fora de uso na Rússia, que
equivale a 409,5 gramas. (N. da T.)

8 DE ABRIL
Prezado senhor Makar Alieksiêievitch!
Sabe que me vejo afinal forçada a me indispor de uma vez por todas
com o senhor? Juro-lhe, meu bom Makar Alieksiêievitch, que me chega a
ser penoso aceitar seus presentes. Sei o que lhe custam, sei quanta privação
e renúncia às coisas mais indispensáveis impõe a si próprio. Quantas vezes
lhe disse que não preciso de nada, de absolutamente nada; que não estou em
condições de lhe retribuir sequer os favores com que tem me cumulado até
agora? E para que preciso destes vasos? Bem, a balsamininha ainda vá lá,
mas para que o gerânio? Bastou-me dizer uma palavrinha por descuido,
como, por exemplo, sobre este gerânio, para que na mesma hora fosse
comprá-los; e diz que não é caro! Que encanto de flores! Escarlates com
cruzinhas. Onde foi que conseguiu um gerânio tão mimosinho? Coloquei-o
no peitoril da janela, no centro, no lugar mais visível; no chão vou colocar
um banco, e em cima do banco colocarei mais flores; espere só eu ficar
rica! Fiódora não se cansa de admirar; nosso quarto agora está um
verdadeiro paraíso — limpo, claro! Mas e as balas, para quê? Para dizer a
verdade, ainda agora adivinhei por sua carta que há algo de errado com o
senhor — paraíso, primavera, aromas que voam, passarinhos que chilreiam.
O que é isso, penso eu, não haverá aqui versos também? Pois é verdade,
Makar Alieksiêievitch, só faltaram uns versos em sua carta! Há de um tudo
aqui — sensações ternas, sonhos cor-de-rosa. Quanto à cortina, foi sem
pensar; pelo visto, ficou enroscada por acaso, quando mudei os vasos de
lugar; foi isso!
Ah, Makar Alieksiêievitch! Por mais que fale aqui, por mais que
faça cálculos de seus rendimentos para me enganar, para me mostrar que
gasta tudo inteira e unicamente consigo próprio, de mim não consegue
ocultar nem encobrir nada. É evidente que se priva do indispensável por
minha causa. O que lhe deu na cabeça, por exemplo, para alugar um
alojamento desses? Pois aí o aborrecem, perturbam; é apertado e incômodo
para o senhor. Sei que gosta de reclusão, e aí está cercado de todo tipo de
gente! Mas poderia viver muito melhor, a julgar por seu ordenado. Fiódora
diz que antes vivia muito melhor do que agora, que nem se compara. Será
possível que tenha passado sua vida inteira assim, na solidão, em meio a
privações, sem alegria, sem uma palavra amável, amiga, num canto alugado
em casa de gente estranha? Ah, meu bom amigo, que pena tenho do senhor!
Poupe ao menos a sua saúde, Makar Alieksiêievitch! Diz que está ficando
com a vista fraca, então não escreva à luz de velas; para que escrever?
Decerto que não precisa disso, seu zelo pelo trabalho é bem conhecido de
seus superiores.
Mais uma vez lhe imploro, não gaste tanto dinheiro comigo. Sei que
gosta de mim, mas o senhor mesmo não é rico... Também me levantei
alegre hoje. Estava me sentindo tão bem; Fiódora já estava trabalhando há
bastante tempo, conseguiu trabalho também para mim. Fiquei tão contente,
dei uma saída apenas para comprar seda e me pus a trabalhar. Passei a
manhã toda tão feliz, sentindo a alma tão leve! Mas agora voltaram-me os
pensamentos negros e tristes; sinto o coração confrangido.
Ah, o que vai ser de mim, qual será a minha sina! É duro viver
nessa incerteza, sem ter um futuro, sem poder sequer prever o que há de
acontecer comigo. Tenho até medo de olhar para trás. Há tanta miséria lá
que, só de lembrar, fico com o coração dilacerado. Hei de me queixar para
sempre das pessoas malvadas que destruíram a minha vida!
Está escurecendo. É hora de voltar ao trabalho. Gostaria de
escrever-lhe sobre muita coisa, mas não tenho tempo, o trabalho deve ficar
pronto no prazo. Preciso me apressar. De certo que as cartas são uma coisa
boa; elas deixam tudo menos chato. Mas por que nunca vem pessoalmente
nos visitar? Por que isso, Makar Alieksiêievitch? Pois agora mora perto, e
além do mais às vezes tem um tempo livre. Venha, por favor! Vi sua Teresa.
Ela parece tão doente; tive pena dela; dei-lhe vinte copeques. Ah, sim, já ia
me esquecendo: escreva-me tudo, sem falta, sobre o seu dia a dia, com o
máximo de detalhes. Que tipo de pessoas são essas que o cercam e se se dá
bem com elas. Quero muito saber sobre isso tudo. Olhe lá, escreva sem
falta! Hoje vou arrebitar um canto de propósito. Deite-se mais cedo; ontem
até a meia-noite vi luz em seu quarto. Então, até logo. Hoje me sinto
deprimida, aborrecida e triste! Parece que esse foi um dia daqueles! Até
logo.
Sua
Varvara Dobrosiólova

8 DE ABRIL
Prezada senhora
Varvara Alieksiêievna!
Sim, minha filha, é verdade, minha querida, parece que foi mesmo
um diazinho daqueles para a minha malfadada sorte. É verdade; divertiu-se
às minhas custas, um pobre velho, Varvara Alieksiêievna! Aliás, a culpa é
minha, toda minha! Quem mandou, na minha idade, com uns fiapos de
cabelos, me meter em namoricos e em equívocos... E lhe digo mais, minha
filha: o homem às vezes é um ser esquisito, muito esquisito. Ah, Deus meu!
às vezes se põe a falar cada coisa! E em que então não resulta, o que não
decorre disso! Não decorre absolutamente nada, mas resulta em cada
asneira que Deus me livre e guarde! Zangado, minha filha, não estou, mas
só de lembrar de tudo sinto um tremendo desgosto, desgosto por lhe ter
escrito de modo tão rebuscado e estúpido. Até mesmo para o serviço fui
hoje parecendo um janota; com o coração tão exultante! Sem quê nem por
quê, minha alma estava em festa; sentia-me feliz! Pus-me a cuidar dos
papéis com diligência — e o que resultou disso tudo! Depois, bastou lançar
um olhar à minha volta, para tudo ficar como antes — cinzento e escuro. As
mesmas manchas de tinta de sempre, as mesmas mesas e papéis de sempre,
e também eu era o mesmo de sempre; tudo permanecia exatamente do
mesmo jeito que era — então, o que foi que houve aqui para eu querer
montar justamente o Pégaso? De onde foi que saiu isso tudo? Só porque um
solzinho deu as caras e deixou o céu azulado! foi por isso? E que aromas
são estes, quando sob as janelas do nosso pátio acontece de um tudo! É
óbvio que tive essa impressão toda porque sou um tolo. Mas às vezes
acontece mesmo de a pessoa se deixar levar por seus próprios sentimentos a
ponto de se pôr a dizer disparates. Não é por outra coisa que isso se dá,
senão por um ardor estúpido e excessivo do coração. Para casa mesmo não
vim, me arrastei; sem mais nem menos começou a me doer a cabeça; e
parece que uma coisa sempre puxa outra. (Devo ter apanhado friagem nas
costas.) Com a chegada da primavera, fique mesmo alegre, feito um
completo idiota, e saí com um capote leve. E, quanto aos meus sentimentos,
engana-se, minha querida! Tomou essa minha efusão por um lado
completamente oposto. Era a afeição paternal que me movia, pura e
unicamente a afeição paternal, Varvara Alieksiêievna; já que ocupo em sua
vida o lugar de um verdadeiro pai, por sua amarga orfandade; digo isso
sinceramente, de todo coração, como um parente. Mas, seja lá como for,
ainda que distante, ainda que, como diz o ditado, de sétimo grau, de
qualquer modo sou seu parente, e agora seu parente mais próximo e
protetor; já que lá, onde tinha todo o direito de buscar proteção e refúgio, só
encontrou traição e ofensa. E, quanto aos versinhos, quero lhe dizer, minha
filha, que não fica bem na minha idade me pôr a treinar para compor versos.
Os versos são uma tolice! Hoje em dia, nas escolas, por causa dos
versinhos, chegam até a açoitar a meninada... isso é que é, minha querida.
Que história é essa a respeito de conforto, tranquilidade e todas
essas outras coisas que me escreve, Varvara Alieksiêievna? Minha filha,
não sou rabugento nem exigente, nunca vivi melhor do que agora; então por
que haveria de me tornar caprichoso na velhice? Estou bem-alimentado,
vestido, calçado; e, além do mais, onde havia de enfiar meus caprichos?
Não sou de família de condes! Meu pai não possuía nenhum título de
nobreza e, com toda a família que tinha, seus rendimentos eram mais
modestos que os meus. Não sou nenhum melindroso! Aliás, se é para dizer
a verdade, pois saiba que em meu antigo alojamento tudo era
incomparavelmente melhor; era mais espaçoso, minha filha. Claro que meu
alojamento de agora também é bom, em certo sentido é até mais alegre e, se
quer saber, mais diversificado, não tenho nada a dizer contra ele, mas ainda
sinto falta do antigo. Nós, os velhos, isto é, as pessoas com mais idade, nos
acostumamos às coisas antigas como se fossem um ente querido. Aquele
alojamentozinho era bem pequeno, sabe; as paredes eram... mas para que
falar disso! — as paredes eram como qualquer parede, não é essa a questão,
mas é que essas recordações todas do meu passado me enchem de
nostalgia... É uma coisa estranha — penosa, mas é como se as recordações
fossem agradáveis. Até as coisas ruins, que por vezes me aborreciam, no
entanto, nas recordações parece que se purificam do mal e se apresentam de
um ângulo atraente à minha imaginação. Vivíamos sossegados, Várienka;
eu e minha falecida senhoria, já velhinha. E é dessa minha velha que agora
me lembro com um sentimento de tristeza! Era uma boa mulher e não
cobrava caro pelo quarto. Estava sempre tricotando mantas de retalhos
diferentes com agulhas de tricô de um archin de comprimento; essa era a
sua única ocupação. Até a luz nós partilhávamos, de modo que
trabalhávamos à mesma mesa. Ela tinha uma netinha, Macha — me lembro
dela ainda criança -, a menina deve ter agora uns treze anos. Era tão levada,
alegre, fazia-nos rir o tempo todo; e era assim que vivíamos os três. Durante
os longos serões de inverno, costumamos nos sentar a uma mesa redonda,
tomar nosso chá, e depois nos pôr a trabalhar. E a velha, para entreter a
Macha e para que a travessa não faça folia, se põe a contar histórias. E que
histórias! Não só uma criança, até uma pessoa sensata, inteligente, se deixa
enredar. E como! eu mesmo acendo meu cachimbinho e me deixo enredar
de tal modo que me esqueço completamente do trabalho. E a própria
criança, a nossa traquinas, fica pensativa; escora a bochechinha rosada na
mãozinha, abre sua linda boquinha e, se a história inspira um pouco de
medo, então vai se agarrando toda à velha. Para nós, então, que prazer era
olhar para ela; nem reparamos que a velinha está derretendo, nem
percebemos que a nevasca às vezes recrudesce do lado de fora e varre a
tempestade de neve. Conseguíamos viver bem, Várienka; e olha que
vivemos juntos por quase vinte anos. Mas o que estou aqui tagarelando!
Talvez esse tipo de assunto não lhe agrade, e além disso não é tão fácil
assim para mim ficar lembrando, sobretudo agora, à hora do crepúsculo.
Teresa está ocupada com alguma coisa, estou com dor de cabeça e também
com um pouco de dor nas costas, e além do mais com uns pensamentos tão
estranhos, que é como se também eles me doessem, me sinto triste hoje,
Várienka! Mas o que escreve aqui, minha querida? Como posso eu ir visitá-
la? Minha pombinha, o que diriam as pessoas? Pois para isso será preciso
atravessar o pátio, todo mundo ia notar e começar a nos fazer perguntas —
iam logo correr rumores, mexericos, haveriam de dar um outro sentido à
coisa. Não, meu anjinho, é melhor que a veja amanhã na missa da noite;
será mais sensato e menos prejudicial para nós dois. E não me leve a mal,
minha filha, por lhe escrever uma carta dessas; ao relê-la vejo que está tudo
tão incoerente. Sou um homem velho, Várienka, sem estudos, quando era
jovem não aprendi direito, e agora, mesmo que recomeçasse a estudar, não
me entraria nada na cabeça. Reconheço, minha filha, que não sou nenhum
mestre da descrição, e sei, sem ninguém precisar apontar e ficar rindo, que,
se quisesse escrever alguma coisa mais complicada, sairia uma porção de
disparates. Eu a vi hoje à janela, quando baixava a cortina. Até logo, até
logo, e que o Senhor a proteja! Até logo, Varvara Alieksiêievna.
Seu amigo desinteressado
Makar Diévuchkin
P. S. Eu, minha querida, é que não vou escrever sátira sobre
ninguém agora. Estou velho e cansado, Varvara Alieksiêievna, minha filha,
para ficar mostrando os dentes à toa! Também haveriam de rir de mim,
como diz o ditado russo: quem, diz ele, a outro a cova cava, é que... vai para
lá.
9 DE ABRIL
Prezado senhor
Makar Alieksiêievitch!
Ora, Makar Alieksiêievitch, meu amigo e benfeitor, deveria se
envergonhar por se deixar afligir assim e vir com lamúrias. Sentiu-se
mesmo ofendido? Ah, sou muitas vezes imprudente, mas não achei que
pudesse tomar minhas palavras como uma brincadeira mordaz. Tenha a
certeza de que jamais me atreveria a brincar com a sua idade e o seu caráter.
Isso tudo aconteceu por causa de minha leviandade e, mais ainda, porque
me sinto terrivelmente entediada — o que não faz uma pessoa por tédio?
Até achei que o senhor mesmo em sua carta estivesse querendo brincar.
Fiquei muito triste quando vi que estava descontente comigo. Não, meu
bom amigo e benfeitor, estaria enganado se achasse que posso ser insensível
e ingrata. Em meu coração, sei dar valor a tudo o que fez por mim, ao
defender-me de pessoas más, de suas perseguições e de seu ódio. Hei de
pedir eternamente a Deus pelo senhor, e se minhas preces chegarem a Deus
e o céu as atender, então o senhor há de ser feliz. Sinto-me bastante
adoentada hoje. Tenho febre e calafrios alternadamente. Fiódora está muito
preocupada comigo. É inútil envergonhar-se de vir à nossa casa, Makar
Alieksiêievitch. O que têm os outros a ver com isso? É nosso conhecido e
pronto!... Até logo, Makar Alieksiêievitch. Não tenho mais nada para
escrever agora, e além do mais não consigo: estou muito indisposta. Peço-
lhe uma vez mais que não se zangue comigo e tenha a certeza de meu
constante respeito e de minha afeição,
com o que, tenho a honra de permanecer sua
mais devotada e submissa criada
Varvara Dobrosiólova
12 DE ABRIL

Minha estimada senhora


Varvara Alieksiêievna!
Ah, minha filha, o que se passa? Pois toda vez me deixa tão
assustado. Em cada carta lhe escrevo para se cuidar, para se agasalhar, para
não sair com mau tempo, para que seja prudente em tudo — mas de que
adianta, se não me dá ouvidos, meu anjinho. Ah, minha pombinha, parece
mesmo uma criança! E é tão fragilzinha, frágil como uma palha, bem o sei.
À mais leve brisa já fica doente. Então precisa se precaver, se cuidar, evitar
os perigos e não deixar seus amigos preocupados e tristes.
Exprime o desejo, minha filha, de saber em pormenores sobre
minha vidinha e sobre tudo o que me rodeia. É com alegria que me apresso
a cumprir seu desejo, minha querida. Começarei do princípio, minha filha:
para que haja mais ordem. Em primeiro lugar, em nosso prédio, na entrada
da frente, as escadas são bem passáveis; sobretudo a da entrada principal —
é limpa, iluminada, ampla, toda em ferro fundido e mogno. Em
compensação, nem pergunte pela dos fundos: é em espiral, úmida, suja, está
com os degraus estragados, e as paredes estão tão ensebadas que a mão da
gente gruda quando nos apoiamos nela. Em cada patamar há arcas, cadeiras
e armários quebrados, trapos pendurados, janelas com vidros quebrados; há
tinas com todo tipo de imundície, com sujeira, lixo, cascas de ovos, bexigas
de peixes; um mau-cheiro... resumindo, bom não é.
Já lhe descrevi a disposição dos quartos; não há o que dizer, é
verdade que é cômoda, mas dentro deles é meio abafado, isto é, não que
cheirem mal, mas é como se fosse um ar, se é que posso me exprimir assim,
meio podre, penetrante e adocicado. A primeira impressão é desfavorável,
mas isso não quer dizer nada, basta ficar uns dois minutos dentro de casa
que passa, e a gente nem percebe que passa completamente, porque parece
que a gente mesmo fica cheirando mal, a roupa fica com cheiro, as mãos
ficam com cheiro, tudo fica com cheiro — e a gente se acostuma. Até os
tentilhões, aqui em casa, morrem. O marinheiro, já é o quinto que compra
— não resistem ao nosso ar, e não tem jeito. Nossa cozinha é grande,
espaçosa e clara. É verdade que pela manhã fica um pouco enfumaçada,
quando fritam peixe ou carne, além do que entornam e derramam coisas por
todo lado, em compensação à tarde é um paraíso. Nos varais da nossa
cozinha tem sempre roupas brancas velhas estendidas; e como meu quarto
não fica longe, ou seja, é praticamente pegado à cozinha, o cheiro da roupa
me incomoda um pouco, mas não tem nada, com o passar do tempo a gente
se acostuma.
Logo de manhã cedo, Várienka, começa o rebuliço, é gente que
levanta, que anda, bate a porta — todos se levantam, uns porque precisam,
para ir ao trabalho, ou então por conta própria; começam todos a tomar o
chá. Os samovares são da senhoria, a maior parte, e são poucos, de modo
que nos mantemos todos em fila; e se alguém fica fora da fila com sua
chaleira, na mesma hora leva um banho na cabeça. Foi o que me aconteceu
na primeira vez, e... aliás, sobre isso há muito o que escrever! Foi aí que
fiquei conhecendo a todos. O primeiro que conheci foi o aspirante a
marinheiro, uma pessoa sincera, contou-me toda a sua história: sobre seu
paizinho, sobre sua mãezinha, sua irmãzinha, casada com um assessor de
Tula, e sobre a cidade de Krónschtadt (Cidade portuária, situada a cerca de
40 km de Petersburgo, fundada por Pedro I em 1703 como fortaleza para a
defesa da capital russa a partir do mar. (N. da T.). Prometeu-me que seria
meu protetor em tudo e na mesma hora me convidou para um chá em seu
quarto. Fui procurá-lo naquele mesmo quarto em que costumam jogar
cartas. Ali me ofereceram chá e queriam de todo modo que eu jogasse com
eles um jogo de azar. Se estavam rindo de mim ou não, não sei; mas eles
mesmos passaram a noite toda jogando, e quando entrei também já estavam
jogando. Havia giz, cartas e tanta fumaça no quarto todo, que comia o olho
da gente. No jogo não entrei, e na hora me fizeram uma observação de que
gosto é de filosofar. Depois ninguém mais sequer falou comigo durante o
tempo todo; e eu, para dizer a verdade, fiquei contente com isso. Já não vou
lá; é só azar, puro azar! No quarto do funcionário da área de literatura
também costuma haver reuniões à noite. Mas lá é tudo mais agradável,
modesto, inocente e delicado; tudo com um ar de refinamento.
E digo-lhe ainda, de passagem, Várienka, que nossa senhoria é uma
mulher repugnante, e, além disso, uma verdadeira bruxa. Pois bem, o que
ela é, na verdade? Magra como um frango mirrado e depenado. Os serviçais
da casa são ao todo dois: Teresa e Faldoni*, criado da senhoria. Não sei,
talvez até tenha um outro nome, só que ele atende também por este; é assim
que todos o chamam. Ele é ruivo, um tipo finlandês, zarolho, de nariz
arrebitado, um grosseirão: vive insultando a Teresa, só falta de atracarem.
De um modo geral, não posso dizer que viver aqui seja uma maravilha... Se
ao menos todos fossem para a cama e dormissem à noite — mas isso nunca
acontece. Há sempre os que se sentam em algum lugar para jogar, e às
vezes fazem cada coisa, que dá vergonha de contar. Agora, de qualquer
maneira, já até me acostumei, mas me espanta que pessoas com família
possam viver numa Sodoma dessas. Há uma família inteira de indigentes
que aluga um quarto da nossa senhoria, só que não junto dos outros quartos,
mas do outro lado, num canto separado. Que gente pacífica! Da parte deles
não se ouve nada. Vivem num quartinho que dividem com tabique. Ele é
um funcionário desempregado, há uns sete anos foi afastado do trabalho por
algum motivo. Seu sobrenome é Gorchkov; é um homem baixinho e bem
grisalho; anda com uma roupa tão surrada e ensebada que dá pena de ver;
muito pior que a minha! É de dar lástima, e tão enfermiço (encontramo-nos
às vezes no corredor); tremem-lhe os joelhos, tremem-lhe as mãos, a cabeça
treme, se de alguma doença ou do quê, só Deus sabe. É acanhado, tem
medo de todo mundo, anda como que se ocultando; às vezes também sou
tímido, mas este é ainda pior. Sua família consiste em sua mulher e três
filhos. O mais velho, um menino, é ver o pai, também é mirrado como ele.
A mulher já foi bem bonita, e ainda se nota; coitada, anda nuns trajes tão
deploráveis. Ouvi dizer que estão devendo para a senhoria; ela com eles não
é lá muito carinhosa. Ouvi dizer também que o próprio Gorchkov teve umas
contrariedades, pelas quais foi afastado do emprego... ele tem um processo
judicial ou está sendo processado, alguma coisa do gênero, ou então está
sob investigação, algo assim — a verdade mesmo não sei lhe dizer. Senhor,
meu Deus, como são pobres! No quarto deles é sempre um silêncio, um
sossego, como se não vivesse ninguém ali. Não se ouve nem as crianças. As
crianças nunca foram vistas brincando e se divertindo, e isto já é um mau
sinal. Aconteceu-me uma vez de passar diante da porta deles à noite; nessa
hora, a casa estava toda em silêncio, o que não é habitual; ouço soluços,
depois sussurros, depois soluços de novo, como se alguém estivesse
chorando, e tão baixinho, de modo tão lastimável, que me partiu o coração,
e depois passei a noite toda sem conseguir parar de pensar nessas pobres
criaturas, de modo que me foi difícil pegar no sono.
* Personagens do romance sentimental Lettres de deux amants
habitants de Lyon, do escritor N. G. Léonard (1744-1793). (N. da
T.)

Bem, até logo, Várienka, minha inestimável amiguinha! Descrevi-


lhe tudo o melhor que pude. Hoje, não parei de pensar em você o dia todo.
Sinto o coração apertado por sua causa, minha querida. Pois bem sei,
alminha, que não tem um casaco quente. Estou farto dessas primaveras
petersburguesas, do vento, das chuvinhas misturadas com neve — isso é a
morte para mim, Várienka! As mudanças de temperatura são tão bruscas
que valha-nos Deus! Não repare na escrita, alminha; não tenho estilo,
Várienka, não tenho nenhum estilo. Se tivesse ao menos um pouco! Escrevo
o me vem à mente, apenas para distraí-la com alguma coisa. Pois se tivesse
estudado um pouco que fosse, a coisa seria diferente; mas com o que havia
eu de estudar? nem que fosse um estudo de meia pataca.

Seu eterno e fiel amigo


Makar Diévuchkin
25 DE ABRIL
Prezado senhor
Makar Alieksiêievitch!
Hoje encontrei minha prima Sacha! Que horror! Também acabará se
perdendo, coitada! Ouvi dizer ainda, por vias indiretas, que Anna
Fiódorovna está tratando de averiguar tudo a meu respeito. Pelo visto, ela
nunca deixará de me perseguir. Diz que quer me perdoar, esquecer todo o
passado e que ela mesma virá sem falta fazer-me uma visita. Diz que o
senhor não é absolutamente meu parente, que minha parente mais próxima
é ela, que o senhor não tem nenhum direito de se intrometer em nossas
relações familiares e que é uma vergonha e uma indecência para mim viver
de sua caridade e ser sustentada pelo senhor... diz que me esqueci de seu
pão e de seu sal, que ela, provavelmente, livrou a mim e à mãezinha de
morrermos de fome, que nos deu de comer e por mais de dois anos e meio
gastou dinheiro conosco, e que, acima disso tudo, nos perdoou a dívida.
Não poupou nem mesmo a mãezinha! Se a pobre mãezinha soubesse o que
fizeram comigo! Deus é testemunha!... Anna Fiódorovna diz que eu, por
minha própria estupidez, não soube agarrar a felicidade, que ela mesma me
conduzirá à felicidade, que de resto não tem culpa de nada, e que eu própria
não soube defender minha honra, e talvez nem quisesse. E quem então é o
culpado disso, Deus do céu?! Diz que o senhor Bíkov estava inteiramente
em seu direito e que não podia mesmo se casar com qualquer uma que...
mas para que escrever sobre isso?! É cruel ouvir uma mentira dessas, Makar
Alieksiêievitch! Não sei o que se passa comigo agora. Tremo, choro,
soluço; levei duas horas para lhe escrever esta carta. Achei que ele fosse ao
menos reconhecer sua culpa para comigo; mas eis que agora me vem com
isso! Pelo amor de Deus, não se aflija, meu único benfeitor! Fiódora
exagera tudo: não estou doente. Apenas apanhei um leve resfriado ontem,
quando fui ao cemitério de Vólkovo assistir à missa pela alma da mãezinha.
Por que não foi comigo? eu lhe pedi tanto. Ah, mãezinha, minha pobre
mãezinha, se você pudesse se levantar do caixão, se soubesse, se visse o
que fizeram comigo!...
V. D.
20 DE MAIO
Várienka, minha pombinha!
Mando-lhe um pouco de uvas, alminha; dizem que é bom para a
convalescença, e além disso o doutor as recomenda para matar a sede, então
são apenas para a sede mesmo. Queria um ramo de rosinhas, minha filha;
pois estou lhe enviando um. Está com apetite, alminha? — isso é o mais
importante. Aliás, graças a Deus que tudo passou e acabou e que nosso
infortúnio também está chegando ao fim. Temos de dar graças aos céus! E,
no que diz respeito aos livros, até agora não pude consegui-los em lugar
nenhum. Dizem que há aqui um livro bom e escrito num estilo bastante
elevado; dizem que é bom, eu mesmo não o li, mas aqui o elogiam muito.
Eu o pedi para mim, prometeram encaminhá-lo. A questão é se vai mesmo
lê-lo. Tenho cá para mim que a esse respeito é uma pessoa caprichosa; é
difícil satisfazer seu gosto, já a conheço, minha pombinha; com certeza, só
quer saber de coisas poéticas, de suspiros, de amores — está bem, arranjarei
versos também, arranjarei de tudo; há lá um caderninho copiado.
Quanto a mim, estou bem. Por isso, minha filha, não se preocupe
comigo, por favor. Quanto ao que Fiódora foi lhe contar sobre mim, isso
tudo não passa de uma tolice; diga-lhe que ela mentiu, diga-lhe isso sem
falta, a essa mexeriqueira!... Não vendi meu uniforme novo coisa nenhuma.
E por quê, julgue por si mesma, por que havia de vendê-lo? Pois dizem que
vai sair para mim uma gratificação de quarenta rublos de prata, então por
que havia de vendê-lo? Não se preocupe, minha filha; ela é desconfiada,
essa Fiódora, é muito desconfiada. Vamos começar uma vida nova, minha
pombinha! Só é preciso, anjinho, que fique boa, pelo amor de Deus, fique
boa, não deixe esse velho amargurado. Quem foi que lhe disse que
emagreci? É uma calúnia, outra calúnia! Estou com saúde e engordei tanto
que chego a me envergonhar, estou saciado e satisfeito; só falta que fique
boa! Bem, até logo, meu anjinho, beijo-lhe todos os dedinhos e continuo

seu eterno e constante


Makar Diévuchkin
P. S. Ah, alminha, por que tornou a escrever isso?... que
extravagância é essa sua! e como poderia eu visitá-la com tanta frequência,
minha filha, como? eu lhe pergunto. Só se for aproveitando a escuridão da
noite; e, além disso, noite mesmo agora já quase nem há, nessa época do
ano*. Ainda assim, minha filha, anjinho, quase não a deixei durante todo o
tempo em que esteve doente, o tempo em que esteve inconsciente; e ainda
agora nem eu mesmo sei como conseguiu fazer todas essas coisas; e é
verdade também que depois parei de ir; já que as pessoas começaram a
mostrar curiosidade e a especular. Mesmo sem isso já estão urdindo certos
mexericos. Confio na Teresa; ela não é tagarela; mas, ainda assim, julgue
por si mesma, minha filha, o que vai ser quando souberem de tudo sobre
nós. O que vão pensar e o que vão dizer então? Por isso, minha filha,
fortaleça o seu coraçãozinho e espere um pouco até ficar boa; depois
daremos um jeito de nos encontrarmos em algum lugar, fora de casa.

* Fim de maio, em Petersburgo, é a época das noites brancas. (N.


da T.)
1º DE JUNHO
Amabilíssimo Makar Alieksiêievitch!
Queria tanto fazer alguma coisa para lhe agradar e lhe dar prazer,
por toda a sua dedicação, por todo o amor e pelos sacrifícios que faz por
mim, que por tédio me decidi afinal a remexer em minha cômoda e procurar
meu caderno, que lhe envio agora. Comecei a escrevê-lo num período ainda
feliz de minha vida. Tantas vezes indagou com interesse sobre a minha
vidinha de antes, sobre a mãezinha, sobre o Pokróvski, sobre minha estadia
na casa de Anna Fiódorovna e, por fim, sobre minhas recentes desditas,
exprimindo com tanta ansiedade seu desejo de ler este caderno, onde, sabe
Deus por quê, inventei de anotar certos momentos de minha vida, que não
tenho dúvida de que lhe proporcionarei grande prazer enviando-o ao senhor.
Senti-me meio triste ao reler isto. Tenho a impressão de ter ficado duas
vezes mais velha desde que escrevi a última linha destas anotações. Isso
tudo foi escrito em diferentes períodos. Até logo, Makar Alieksiêievitch!
Tenho sentido um tédio terrível e muitas vezes sofro de insônia. Que
convalescença mais enfadonha!
V. D.
I

Tinha apenas catorze anos quando o paizinho morreu. Minha


infância foi a época mais feliz da minha vida. Não foi aqui que ela teve
início, mas num lugar bem distante, numa província, num cafundó. O
paizinho era administrador de uma enorme propriedade do príncipe P-i, na
província de T. Morávamos numa das aldeias do príncipe e levávamos uma
vida tranquila, isolada e feliz... De pequena eu era tão travessa; não fazia
outra coisa, às vezes, senão correr pelos campos, pelos bosques, pelo
jardim, e ninguém quase se preocupava comigo. O paizinho estava sempre
ocupado com o seu trabalho, a mãezinha se dedicava à lida da casa; não me
ensinavam nada, e eu estava contente com isso. Por vezes, logo de manhã
bem cedo, corro para o lago ou para o bosque, ou então para o prado ou ao
encontro dos ceifeiros — e pouco me importa se o sol está escaldante ou se
me afasto muito do povoado sem saber onde estou, se me encho de
arranhões nos arbustos, se rasgo a roupa — e depois em casa ralhem
comigo, pois pouco me importa.
E acho que teria sido muito feliz se me tivesse tocado morar no
mesmo lugar, sem ter de sair do campo, ainda que por toda a minha vida.
Entretanto, ainda criança fui obrigada a deixar meus lugares queridos. Tinha
apenas doze anos ainda quando nos mudamos para Petersburgo. Ah, com
que tristeza me lembro de nossos melancólicos preparativos! Como chorei
ao me despedir de tudo o que me era tão caro. Lembro-me de que me atirei
ao pescoço do paizinho e, com lágrimas nos olhos, lhe implorei para
ficarmos ainda que um pouquinho mais no campo. O paizinho se pôs a
gritar comigo, a mãezinha chorava; dizia que era preciso, que os negócios o
exigiam. O velho príncipe P-i havia falecido. Os herdeiros demitiram o
paizinho do serviço. O paizinho tinha algum dinheiro investido em mãos de
particulares em Petersburgo. Na esperança de endireitar sua situação, ele
achou que sua presença aqui era imprescindível. Tudo isso eu soube depois
pela mãezinha. Aqui nos instalamos no lado Petersburguês* e ficamos
morando no mesmo lugar até o falecimento do paizinho.

* Subúrbio de São Petersburgo. (N. da T.)


Como foi difícil habituar-me à nova vida! Chegamos a Petersburgo
no outono. Quando deixamos o campo, o dia estava tão claro, quente,
brilhante; a lida na roça estava chegando ao fim; as medas enormes de
cereais já estavam amontoadas nas eiras cobertas e bandos estridentes de
pássaros iam se aglomerando; estava tudo tão claro e alegre, enquanto aqui,
à nossa entrada na cidade, nos deparamos com chuva, lama, com a escarcha
podre do outono, o mau tempo e uma multidão de rostos novos,
desconhecidos, todos hostis, aborrecidos, zangados! Instalamo-nos como
foi possível. Lembro-me de que estavam todos tão azafamados, o tempo
todo preocupados com a arrumação da nova casa. O paizinho não parava
em casa nunca, a mãezinha não tinha um minuto de sossego — esqueceram-
se completamente de mim. Senti-me triste ao me levantar de manhã após a
primeira noite em nossa nova casa. Nossas janelas davam para uma cerca
amarela. A rua estava sempre enlameada. Os transeuntes eram raros, e
todos muito agasalhados, todos sentiam muito frio.
E em nossa casa reinavam o tédio e um aborrecimento terrível por
dias inteiros. Quase não tínhamos parentes e conhecidos próximos. Com
Anna Fiódorovna o paizinho não se dava. (Ele tinha uma dívida com ela.)
Vinham pessoas à nossa casa, a negócios, com bastante frequência.
Geralmente discutiam, faziam barulho, gritavam. Após cada visita o
paizinho ficava tão descontente e zangado; às vezes passava horas a fio
andando de um canto para outro, carrancudo, sem abrir a boca para falar
com ninguém. Nessas horas a mãezinha nem se atrevia a falar com ele e
ficava calada. Eu me sentava em algum cantinho com um livro — quieta,
em silêncio, sem ousar me mexer.
Passados três meses desde nossa chegada a Petersburgo, mandaram-
me para um internato. No início, que tristeza sentia no meio de gente
estranha! Era tudo tão frio e hostil — as preceptoras eram tão gritonas, as
meninas tão zombeteiras, e eu tão arisca. Tudo rigoroso! Tinha hora
marcada para tudo, a mesa era coletiva, e os professores, enfadonhos — no
início, isso tudo foi um tormento para mim, uma tortura. Nem dormir
conseguia lá. Por vezes passo a noite inteira chorando, uma noite
interminável, enfadonha e fria. À tarde todas costumam estudar ou repassar
as lições; eu me sento sozinha com minhas conversações e os vocabulários
em francês, sem ousar me mexer, mas não paro de pensar no nosso canto
familiar, no paizinho, na mãezinha, na minha velha ama, nas suas
histórias... ah, me invade uma tristeza! Fico me lembrando com tanto prazer
até das coisinhas mais insignificantes de casa. Fico pensando, pensando:
que bom seria estar em casa agora! Estaria sentada na nossa pequena sala,
ao lado do samovar, todos nós juntos; seria tudo tão bom, acolhedor e
familiar. Com que força, com que ardor, penso, havia agora de abraçar a
mãezinha! Fico pensando, pensando tanto, que começo a chorar baixinho de
saudade, reprimindo as lágrimas no peito, e o vocabulário não me entra na
cabeça. Como não aprendo a lição para o dia seguinte, sonho a noite inteira
com a professora, com a madame, com as meninas; durante a noite toda
repito as lições em sonho, mas no dia seguinte não sei nada. Põem-me de
joelhos e me dão apenas um prato à refeição. Eu vivia tão triste e chateada.
No início todas as meninas zombavam de mim, me provocavam, faziam
com que me confundisse quando ia responder às questões da lição, me
beliscavam quando íamos em fila almoçar ou tomar chá, queixavam-se de
mim à preceptora sem nenhuma razão. Em compensação, que paraíso era
quando minha ama vinha às vezes me buscar aos sábados à tarde. Como
abraço então a minha velhinha, esfuziante de alegria! Ela se põe a me vestir,
a me agasalhar, mas no caminho mal consegue me acompanhar, não paro de
tagarelar e de lhe contar coisas. Chego em casa alegre, contente, abraço a
todos com força, como que após dez anos de separação. Começam as
explicações, as conversas, as histórias, cumprimento a todos, rio, dou
gargalhadas, corro, pulo. Com o paizinho as conversas se tornam sérias,
sobre ciências, os professores, a língua francesa, a gramática de Lhomond*
— e ficamos todos tão contentes e satisfeitos. Ainda hoje, a simples
recordação desses momentos me deixa feliz. Fazia todo o esforço possível
para estudar e contentar o paizinho. Via que sacrificava seus últimos
recursos comigo, quando sabe Deus o que ele próprio fazia para se virar. A
cada dia se tornava mais e mais soturno, insatisfeito e zangado; ficou com
um temperamento terrível: os negócios não iam bem e tinha um monte de
dívidas. A mãezinha às vezes tinha medo até de chorar, tinha medo de
pronunciar uma simples palavra e deixar o paizinho zangado; ela acabou
ficando doente; foi emagrecendo, emagrecendo, e começou a ficar com uma
tosse feia. Às vezes venho do internato e só encontro rostos tão tristes; a
mãezinha chorando em silêncio e o paizinho irritado. Começariam as
reprimendas e recriminações. O paizinho se poria a dizer que não lhe
proporciono nenhuma alegria, nenhum consolo; que por minha causa eles se
privam dos últimos recursos e eu até agora não falo francês; em suma,
descarregava todos os seus fracassos, todas as suas desditas, tudo, sempre
em cima de mim e da mãezinha. Mas como era possível martirizar assim
minha pobre mãezinha? Às vezes, quando olhava para ela, me partia o
coração: estava com as faces cavadas, os olhos caídos e uma cor tísica no
rosto. Sempre sobrava mais para mim do que para todos. Tudo começava
sempre por alguma ninharia, mas, depois, só Deus sabe a que ponto
chegava; muitas vezes eu nem entendia do que se tratava. Tinha de pagar
por tudo!... Uma hora é a língua francesa, outra hora porque porque eu sou
uma completa imbecil, ou então é a inspetora do nosso internato que é uma
mulher estúpida e negligente; que não se preocupa com nossa moral; que o
paizinho até agora não conseguiu encontrar para si um trabalho, e que a
gramática de Lhomond não vale nada, enquanto a de Zapolski é muito
melhor; que estavam jogando tanto dinheiro fora comigo a troco de nada;
que eu, pelo visto, era insensível, de pedra — resumindo, pobre de mim,
que me esforçava tanto para decorar os diálogos e o vocabulário, mas
levava a culpa de tudo, era responsável por tudo! E, isso, não porque o
paizinho não gostasse de mim, absolutamente: por mim e pela mãezinha ele
daria a vida. Mas, o que fazer?, era o seu temperamento.

Charles François Lhomond (1727-1794): humanista,


pedagogo e gramático francês. (N. da T.)

As preocupações, os desgostos e a falta de sorte levaram o pobre


paizinho ao limite do esgotamento: tornou-se desconfiado e bilioso; muitas
vezes ficava à beira do desespero, começou a descuidar da saúde, apanhou
um resfriado e, de repente, adoeceu, seu sofrimento não durou muito tempo
e faleceu de maneira tão repentina, tão súbita, que todas nós, por alguns
dias, ficamos aturdidas com o choque. A mãezinha estava como que
entorpecida; cheguei a temer por seu juízo. Mal o paizinho faleceu, os
credores começaram a surgir à nossa porta como se irrompessem em bando
da terra. Entregamos até o que não tínhamos. Nossa casinha no lado
Petersburguês, que o paizinho comprara meio ano após nossa mudança para
Petersburgo, também foi vendida. Não sei o que foi feito do resto, mas nós
mesmas ficamos sem um teto, sem um abrigo, sem ter o que comer. A
mãezinha sofria de uma doença que a ia consumindo, não conseguíamos
nos sustentar, não tínhamos como nos alimentar, esperava-nos o
perecimento. Tinha acabado de fazer catorze anos na época. Foi aí que
Anna Fiódorovna veio nos visitar. Ela ficou falando que era proprietária de
terras e que tinha um grau de parentesco próximo conosco. A mãezinha
também dizia que ela era nossa parente, mas muito distante. Enquanto o
paizinho era vivo, ela nunca viera nos visitar. Apareceu com lágrimas nos
olhos, falando que sentia muito por nós; que se condoía de nossa situação
funesta, acrescentou que o paizinho mesmo era o culpado: que ele vivia
acima de suas posses, que havia ido muito além do que podia e confiado
demais em sua capacidade. Manifestou o desejo de nos conhecer melhor e
propôs que esquecêssemos as nossas discórdias; e quando a mãezinha lhe
declarou que nunca sentira antipatia por ela, então derramou umas lágrimas,
levou a mãezinha à igreja e encomendou uma missa à alma do pombinho
(foi assim que se referiu ao paizinho). Depois disso se reconciliou
solenemente com a mãezinha.
Após demorados preâmbulos e advertências, pintando com cores
fortes nossa situação funesta, a orfandade e o desamparo, Anna Fiódorovna
nos convidou, como ela mesma se exprimiu, a nos abrigarmos em sua casa.
A mãezinha agradeceu, mas demorou para se decidir; e uma vez que não
havia nada a fazer e proceder de outro modo era absolutamente impossível,
então acabou por anunciar a Anna Fiódorovna que aceitávamos sua oferta
com gratidão. Como me lembro agora da manhã em que nos mudamos do
lado petersburguês para a Vassílievski Óstrov*.
Era uma manhã de outono clara, seca e gelada. A mãezinha
chorava; eu estava muito triste; uma angústia terrível e indescritível
oprimia-me o peito e afligia-me a alma. Foi uma época difícil.

*Ilha de Vassíli, a maior do rio Nieva. (N. da T.).


II

De início, enquanto nós, isto é, a mãezinha e eu, ainda não


havíamos nos habituado à nossa nova moradia, sentíamo-nos como que
assustadas e aterrorizadas na casa de Anna Fiódorovna. Anna Fiódorovna
morava em casa própria, na Sexta Linha*. Na casa havia ao todo cinco
aposentos. Três deles eram ocupados por Anna Fiódorovna e minha prima
Sacha, que era criada por ela — uma criança, orfãzinha de pai e mãe.
Depois vinha o nosso quarto, e, por fim, no último quarto, ao lado do nosso,
estava instalado um estudante pobre, Pokróvski, pensionista de Anna
Fiódorovna. Anna Fiódorovna vivia muito bem, com mais luxo do que se
podia supor; mas sua situação financeira era um mistério, assim como as
suas ocupações. Andava sempre azafamada, sempre preocupada, saía tanto
a pé como de condução várias vezes ao dia, mas o que fazia, com o que se
preocupava e por que se preocupava, isso não consegui de maneira alguma
adivinhar. Tinha muitos conhecidos e de todo tipo. Chegavam visitas o
tempo todo, e só Deus sabe que tipo de gente, sempre por algum negócio e
por pouco tempo. A mãezinha sempre me levava para o nosso quarto, por
vezes ao simples toque da campainha. Anna Fiódorovna ficava muito
zangada com a mãezinha por causa disso e não parava de repetir que
éramos orgulhosas demais, e o orgulho não condizia com nossa situação, do
que havíamos ainda de nos orgulhar, e não se calava por horas a fio. Eu, na
época, não compreendia essas repreensões a respeito do nosso orgulho; até
porque só agora soube, ou pelo menos posso adivinhar, por que a mãezinha
não se decidia a ir morar na casa de Anna Fiódorovna. Ela era uma mulher
má; não parava de nos atormentar. Por que nos convidou para ir morar com
ela, para mim, até hoje é um mistério.

*As ruas perpendiculares ao Nievá na Vassílievski Óstrov se


chamam Linhas. (N. da T.)

No início era bastante carinhosa conosco — só depois, ao perceber


que estávamos absolutamente desamparadas e que não tínhamos para onde
ir, é que revelou plenamente o seu verdadeiro caráter. Posteriormente se
tornou muito carinhosa comigo, carinhosa a um ponto que chegava a ser
meio grosseiro, que beirava a lisonja, mas antes disso também eu tive de me
armar de paciência junto com a mãezinha. Censurava-nos a todo instante;
não fazia outra coisa senão repetir que estava nos fazendo um favor.
Apresentava-nos às pessoas estranhas como suas parentes pobres, uma
viúva e uma órfã desamparadas que ela, por caridade, por amor cristão,
abrigara em sua casa. À mesa, seguia com os olhos cada porção que
pegávamos, e se não comíamos, então a história recomeçava: dizia que
desdenhamos; queiram me desculpar, se a comida não é boa o suficiente
para satisfazê-las; que na nossa casa devia ser ainda melhor. A todo instante
injuriava o paizinho: dizia que queria ser melhor que os outros, mas se deu
mal; dizia que atirou a mulher com uma filha ao mundo, e que se não fosse
aparecer uma parente caridosa, uma alma cristã e piedosa, então elas,
talvez, sabe Deus, acabassem por morrer de fome no meio da rua. De tudo
ela falava! Ouvi-la não era mais angustiante do que repugnante. A
mãezinha chorava o tempo todo; sua saúde piorava a cada dia, estava
visivelmente definhando, entretanto ela e eu trabalhávamos da manhã à
noite, arranjamos um trabalho de costura por encomenda, o que não
agradava nada a Anna Fiódorovna; a toda hora dizia que a casa dela não era
ateliê de moda. Mas tínhamos de nos vestir, tínhamos de poupar para
alguma despesa imprevista, tínhamos necessariamente de ter o nosso
dinheiro. De todo modo, estávamos amealhando, na esperança de que com
o tempo nos fosse possível mudar para algum lugar. Mas a mãezinha perdeu
o que lhe restava de saúde no trabalho: foi ficando cada dia mais fraca. A
doença, como um verme, roía-lhe visivelmente a vida, deixando-a à beira
do caixão. Eu via tudo, sentia tudo e tudo padecia; tudo isso acontecia
diante dos meus olhos!
Os dias iam passando, um após o outro, e cada dia era igual ao
anterior. Levávamos uma vida silenciosa, como se não vivêssemos na
cidade. Anna Fiódorovna aos poucos foi abrandando, à medida que por si
mesma foi se dando conta plenamente de seu domínio. Ademais, nunca
ninguém havia sequer pensado em contradizê-la. Em nosso quarto,
estávamos separadas de sua metade da casa por um corredor, e ao nosso
lado, como já mencionei, vivia Pokróvski. Ele dava aulas de francês,
alemão, história e geografia para Sacha — de todas as ciências, como dizia
Anna Fiódorovna, e em troca recebia dela alojamento e alimentação; Sacha
era uma menina muito esperta, ainda que irrequieta e travessa; tinha na
época uns treze anos. Anna Fiódorovna observou à mãezinha que não seria
mal se eu também começasse a estudar, visto que no internato não chegara a
compreender os estudos. A mãezinha concordou com prazer e, durante um
ano inteiro, tive aulas com Pokróvski junto com Sacha.
Pokróvski era um jovem pobre, muito pobre; sua saúde não lhe
permitia assistir regularmente às aulas; de maneira que era meramente por
hábito que em casa o chamávamos de estudante. Levava uma vida modesta,
pacífica e tranquila, tanto que sequer dava para ouvi-lo do nosso quarto.
Tinha uma aparência muito estranha; tinha um modo tão desajeitado de
andar, um modo tão esquisito de falar e um modo igualmente desajeitado de
cumprimentar as pessoas que, no início, não conseguia sequer olhar para ele
sem rir. Sacha vivia lhe pregando peças, sobretudo quando nos dava aulas.
E ele, ainda por cima, tinha um temperamento irritadiço, se zangava à toa,
por qualquer coisinha ficava fora de si, gritava conosco, fazia queixas de
nós e muitas vezes saía furioso para o seu quarto, sem terminar a aula. Em
seu quarto mesmo passava dias inteiros debruçado sobre os livros. Ele tinha
muitos livros, e só livros raros e bem valiosos. Dava aulas em um outro
lugar também e recebia uma remuneração, de maneira que, mal ganhava um
dinheirinho, ia na mesma hora comprar livros.
Com o passar do tempo fui conhecendo-o melhor, mais
intimamente. Era a mais bondosa, a mais digna, a melhor de todas as
pessoas que havia tido a oportunidade de encontrar. A mãezinha tinha
grande respeito por ele. Depois ficou sendo também o meu melhor amigo
— depois da mãezinha, claro.
De início eu, já mocinha feita, me juntava à Sacha em suas
travessuras, e às vezes passávamos horas a fio quebrando a cabeça para
encontrar um meio de irritá-lo e fazê-lo perder a paciência. Seu jeito de
ficar bravo era cômico demais, o que para nós era a maior diversão. (Sinto
vergonha até de me lembrar disso.) Certa vez o provocamos tanto que
esteve a ponto de chorar, e eu o ouvi claramente sussurrar: “Crianças más”.
Fiquei de repente desconcertada. Comecei a sentir vergonha, amargura e
pena dele. Lembro-me de que fiquei vermelha até as orelhas e, quase com
lágrimas nos olhos, pus-me a lhe pedir para se acalmar e não se ofender
com as nossas brincadeiras estúpidas, mas ele fechou o livro e, sem
terminar a aula, foi para o quarto. Passei o dia todo atormentada pelo
remorso. A ideia de que nós, umas crianças, com nossa crueldade, o
havíamos feito chorar, era-me insuportável. Quer dizer então que estávamos
esperando as suas lágrimas. Quer dizer que era o que queríamos; quer dizer
que havíamos conseguido esgotar-lhe a paciência; que havíamos levado o
infeliz, coitado, a se lembrar à força de sua sorte cruel! O desgosto, a
tristeza e o arrependimento não me deixaram dormir a noite inteira. Dizem
que o arrependimento alivia a alma — ao contrário. Não sei como foi que o
amor-próprio se misturou à minha amargura. Não queria que ele me visse
como uma criança. Na época já estava com quinze anos.
Desse dia em diante comecei a torturar minha imaginação, criando
mil planos para fazer com que Pokróvski de repente mudasse de opinião a
meu respeito. Mas às vezes era tímida e acanhada; e na situação em que me
encontrava não conseguia me decidir por nada, limitava-me apenas a sonhar
(e Deus sabe que sonhos!). Parei de fazer brincadeiras com Sacha; ele parou
de se zangar conosco; mas para o meu amor-próprio isso era pouco.
Agora quero dizer algumas palavras sobre a pessoa mais estranha,
mais curiosa e mais patética de todas as que já me aconteceu encontrar. O
motivo por que falo dele agora, justamente nesse ponto das minhas
anotações, é que até essa época mesmo quase não lhe tinha prestado
nenhuma atenção — de forma que tudo o que se referia a Pokróvski de
repente adquiriu um interesse especial para mim!
De vez em quando aparecia lá em casa um velho sujo, malvestido,
baixinho, de cabelos grisalhos, desajeitado, acanhado, resumindo: estranho
como ele só. À primeira vista podia-se pensar que alguma coisa o deixava
como que acanhado, como se tivesse vergonha de si próprio. Por isso ficava
sempre meio encolhido, fazia uns trejeitos; por suas maneiras e pelos
trejeitos podia-se concluir, quase sem medo de errar, que não estava em seu
juízo perfeito. Vem às vezes à nossa casa, fica parado à entrada, atrás da
porta de vidro, sem se atrever a entrar. Se alguém de nós passa por perto —
eu, a Sacha ou algum criado que ele sabia ser mais bondoso com ele -,
começa então a acenar no mesmo instante, a chamar a atenção para si, a
fazer vários sinais, e apenas quando acenamos para ele com a cabeça,
chamando-o — sinal convencionado de que não havia ninguém estranho, de
que podia entrar quando quisesse -, só então o velhinho abria a porta
devagarinho, sorria satisfeito, esfregava as mãos de contentamento e ia, na
pontinha dos pés, direto para o quarto de Pokróvski. Este era o pai dele.
Mais tarde vim a conhecer em detalhes a história deste pobre velho.
Houve uma época em que foi funcionário de uma repartição, mas não tinha
a menor capacidade e ocupava o pior cargo, o mais rebaixado no serviço.
Quando morreu sua primeira mulher (a mãe do estudante Pokróvski), ele
inventou de se casar pela segunda vez e se casou com a filha de um
comerciante. Com a chegada da nova esposa em casa tudo virou de pernas
para o ar; ela não deixava ninguém em paz; tinha a todos nas mãos. O
estudante Pokróvski ainda era uma criança de uns dez anos na época. A
madrasta tomou ódio por ele. Mas o destino foi favorável ao pequeno
Pokróvski. O proprietário de terras Bíkov, que conhecia o funcionário
Pokróvski e que já havia sido uma vez seu benfeitor, pegou a criança sob
sua proteção e a colocou em uma escola. Interessou-se por ele porque
conhecia sua finada mãe, que ainda mocinha havia sido favorecida por
Anna Fiódorovna e por ela dada em casamento ao funcionário Pokróvski. O
senhor Bíkov, conhecido e amigo íntimo de Anna Fiódorovna, movido pela
generosidade, deu à noiva cinco mil rublos de dote. Aonde foi parar esse
dinheiro — não se sabe. Foi Anna Fiódorovna que me contou tudo isso; o
estudante Pokróvski mesmo nunca gostou de falar dos assuntos de sua
família. Dizem que sua mãe era muito bonita, e acho estranho que tenha se
casado tão mal, com um homem tão insignificante... Ela morreu bem jovem
ainda, uns quatro anos depois do casamento.
Da escola o jovem Pokróvski ingressou num liceu e depois na
universidade. Também aí o senhor Bíkov, que vinha com bastante
frequência a Petersburgo, não o deixou sem sua proteção. Devido à sua
saúde precária, Pokróvski não pôde prosseguir com os estudos na
universidade. O senhor Bíkov o apresentou a Anna Fiódorovna,
recomendou-o pessoalmente, e desse modo o jovem Pokróvski foi recebido
com a condição de, a troco do pão, ensinar a Sacha tudo o que era
necessário.
O velho Pokróvski mesmo, amargurado com as crueldades de sua
mulher, entregou-se a um vício nefasto, estava quase sempre bêbado. A
mulher batia nele, relegou-o a viver na cozinha e o degradou a tal ponto que
ele acabou por se acostumar com as surras e os maus-tratos sem se queixar.
Ele não era ainda muito velho, mas, devido aos maus hábitos, quase perdeu
o juízo. O único indício de sentimento humano nobre que havia nele era seu
amor ilimitado pelo filho. Diziam que o jovem Pokróvski se parecia com
sua falecida mãe como duas gotas d’água. Não seria a recordação da
bondade de sua primeira mulher que gerava no coração desse pobre velho
arruinado um amor tão infinito por ele? O velho nem conseguia mais falar
de nada, senão do filho, e o visitava regularmente duas vezes por semana.
Só não ousava vir com mais frequência porque o jovem Pokróvski não
conseguia tolerar as visitas paternas. De todos os seus defeitos, o primeiro e
maior, indiscutivelmente, era o desrespeito pelo pai. Também, pudera, o
velho às vezes era a criatura mais intolerável do mundo. Em primeiro lugar,
era terrivelmente curioso, em segundo lugar, com suas conversas e
indagações, as mais triviais e descabidas, ficava a todo instante estorvando
os estudos do filho, e, por último, às vezes aparecia em estado de completa
embriaguez. Aos poucos o filho foi ensinando o velho a abandonar os
vícios, a curiosidade, a tagarelice constante, e finalmente chegou a um
ponto em que este o ouvia em tudo, como a um oráculo, e não se atrevia a
abrir a boca sem sua permissão.
O pobre velho não cabia em si de contente e não se cansava de
admirar seu Piétienka* (como ele chamava o filho). Quando vinha visitá-lo,
tinha quase sempre um ar preocupado e tímido, certamente por não saber
como o filho havia de recebê-lo, geralmente demorava para se decidir a
entrar, e se calhava de eu aparecer ali, então passava uns vinte minutos só
interrogando — e então, como está o Piétienka? está bem de saúde? está
bem-disposto, está ocupado com alguma coisa importante? O que
exatamente está fazendo? Está escrevendo ou está ocupado com algum
pensamento? Depois que eu o tivesse animado e tranquilizado bastante,
então o velho finalmente se decidia a entrar e abria a porta devagarinho,
com muito cuidado, enfiava primeiro a cabeça e, se via que o filho não
havia se zangado e lhe acenava com a cabeça, então entrava de mansinho
no quarto, tirava o capote, o chapéu, que ele trazia sempre amassado,
esburacado, com as abas despregadas — pendurava tudo num gancho, fazia
tudo em silêncio, sem nenhum ruído; depois se sentava com cuidado em
alguma cadeira e não tirava mais os olhos do filho, seguia cada um de seus
movimentos, tentando adivinhar o estado de ânimo de seu Piétienka. Se
acontecia de o filho estar levemente indisposto e o velho reparar nisso,
então no mesmo instante se levantava do lugar e explicava, dizia: “só entrei
por um instante, Piétienka. É que eu andei muito, passei aqui perto e entrei
para descansar”. E depois, silenciosa e resignadamente, pegava seu
capotinho e seu chapeuzinho, tornava a abrir a porta devagarinho e saía,
sorrindo a custo, para reprimir na alma a amargura acumulada e não
demonstrá-la ao filho.

*Diminutivo de Piótr. (N. da T.)


Mas quando acontecia, às vezes, de o filho receber bem o pai, aí o
velho não cabia em si de contente. A satisfação lhe transparecia no rosto,
nos gestos e nos movimentos. Se o filho conversava com ele, então, o velho
se soerguia um pouco da cadeira e respondia baixinho, quase com
reverência e quase sempre se esforçando para empregar as expressões mais
refinadas, isto é, as mais cômicas. Mas ele não tinha o dom da palavra:
sempre se atrapalhava e ficava com medo, de modo que não sabia onde
enfiar as mãos, onde se enfiar, e depois passava ainda um bom tempo
sussurrando com seus botões a resposta, como que querendo se corrigir.
Mas se conseguia responder bem, então o velho se aprumava, ajeitava o
colete, a gravata, a casaca, e assumia um ar de grande dignidade. Às vezes
se animava de tal maneira e levava sua ousadia a tal ponto que se levantava
da cadeira devagar, ia até a prateleira de livros, pegava um livro qualquer e
ali mesmo chegava a ler alguma coisa, fosse de que livro fosse. Fazia tudo
isso com um ar de pretensa naturalidade e uma presença de espírito
simulada, como se sempre tivesse tido essa capacidade de dispor assim dos
livros do filho, como se o carinho do filho fosse uma coisa nada rara para
ele. Mas uma vez me aconteceu de ver como o pobrezinho ficou assustado
quando Pokróvski lhe pediu para não tocar nos livros. Ele ficou todo
atrapalhado e, na afobação, colocou o livro de ponta-cabeça, depois quis se
corrigir, voltou e o colocou com a lombada para dentro, sorriu, ficou
vermelho, sem saber como reparar seu crime. Com seus conselhos,
Pokróvski foi aos poucos ensinando o velho a abandonar os maus costumes,
e, ao vê-lo sóbrio umas três vezes seguidas, então na visita seguinte, na hora
da despedida, dava-lhe uma moeda de vinte e cinco copeques, de cinquenta,
ou mais. Comprava-lhe às vezes um par de botas, uma gravata ou um
coletinho. Em compensação, com a roupa nova, o velho ficava orgulhoso
como um galo. Às vezes dava uma passada em nosso quarto. Para mim e
Sacha, trazia galinhos de pão de mel, maçãs, e conversava conosco sobre
Piétienka. Pedia-nos para estudar com atenção, para sermos obedientes,
falava que Piétienka era um bom filho, um filho exemplar e, além do mais,
um filho culto. Nessa hora ele costumava piscar para nós o olho esquerdo
de um jeito tão cômico e fazer umas caretas tão engraçadas, que não
conseguíamos conter o riso e caíamos na gargalhada, com toda a
sinceridade. A mãezinha gostava muito dele. Mas o velho odiava Anna
Fiódorovna, ainda que diante dela ficasse mais quieto que a água e menor
que a grama.
Logo deixei de ter aulas com Pokróvski. Ele continuava a me ver
como uma criança, uma menininha travessa, tal como a Sacha. Isso me
magoava muito, porque estava fazendo um grande esforço para reparar meu
comportamento anterior. Mas ele não me notava. Isso me irritava cada vez
mais. Quase nunca falava com Pokróvski fora das aulas, mas, também, nem
era capaz de falar. Ficava corada, me atrapalhava toda e depois ia chorar de
desgosto em algum cantinho.
Não sei como isso tudo teria terminado se uma estranha
circunstância não tivesse contribuído para a nossa aproximação. Numa
noite em que a mãezinha estava conversando com Anna Fiódorovna, entrei
sorrateiramente no quarto de Pokróvski. Sabia que ele não estava em casa e,
sinceramente, não sei de onde tirei a ideia de entrar em seu quarto. Até o
momento nunca havia dado sequer uma espiada nele, embora vivêssemos
lado a lado havia já mais de um ano. Dessa vez meu coração batia com
tanta força, mas com tanta força, como se quisesse saltar do peito. Olhei em
redor com uma curiosidade particular. O quarto de Pokróvski estava
arrumado de maneira bem pobre; com muito pouca ordem. Tinha cinco
prateleiras compridas de livros pregadas nas paredes. Em cima da mesa e
das cadeiras havia papéis. Livros e papéis! Ocorreu-me um pensamento
estranho e, ao mesmo tempo, um sentimento desagradável de despeito se
apoderou de mim. Pareceu-me que minha amizade e meu coração amoroso
eram muito pouco para ele. Ele era culto, enquanto eu era uma estúpida que
não sabia nada, não havia lido nada, um livro sequer... Olhei então com
inveja para as prateleiras compridas, abarrotadas de livros. Um despeito,
uma angústia e uma espécie de raiva tomaram conta de mim. Desejei, e ali
mesmo tomei a decisão de ler os seus livros, todos, do primeiro ao último, e
o mais rápido possível. Não sei, pensava, pode ser que, depois de aprender
tudo o que ele sabe, serei mais digna de sua amizade. Corri à primeira
prateleira; sem pensar, sem hesitar, peguei o primeiro volume, velho e
empoeirado, que me caiu às mãos e, enrubescendo, empalidecendo,
tremendo de medo e de emoção, levei para o meu quarto o livro furtado,
decidida a lê-lo durante a noite, à luz do candeeiro de cabeceira, quando a
mãezinha adormecesse.
Mas qual não foi a minha decepção quando, ao chegar ao nosso
quarto, abri depressa o livro e vi que era uma obra em latim, velha, meio
deteriorada, toda carcomida por traças. Sem perder tempo, voltei. E quando
já estava para recolocar o livro na prateleira, ouvi barulho no corredor e uns
passos que se aproximavam. Comecei a me apressar e a agir com rapidez,
mas aquele livro intragável havia sido colocado tão espremido numa fileira
que, quando o tirei, todos os outros se espalharam por si mesmos e se
juntaram de tal maneira que agora não havia mais sobrado lugar para o
antigo companheiro deles. Faltava-me força para enfiar o livro. Entretanto,
empurrei os livros o mais que pude. O prego enferrujado que sustentava a
prateleira e que parecia estar de propósito esperando justamente esse
momento para quebrar — quebrou. Uma ponta da prateleira veio abaixo. Os
livros se espalharam pelo chão, fazendo um grande ruído. A porta se abriu e
Pokróvski entrou no quarto.
Devo observar que ele não podia suportar quando alguém metia o
nariz em seus domínios. Coitado daquele que tocasse em seus livros!
Imagine só o pavor que senti quando os livros, grandes, pequenos, de todos
os formatos possíveis, de todos os tamanhos e espessuras possíveis,
começaram a se precipitar da estante e a voar e saltar para debaixo da mesa,
das cadeiras, pelo quarto todo. Minha vontade era fugir, mas era tarde. “É o
fim, penso, é o fim. Estou perdida, não tenho saída! Fico fazendo
estrepolias e travessuras como uma menininha de dez anos; sou uma
meninota estúpida! Sou uma grande imbecil!!” Pokróvski ficou
terrivelmente zangado. “Muito bem, era só o que faltava! — começou a
gritar — Não tem vergonha de se comportar assim!... Será que nunca vai
tomar juízo?” E ele mesmo pôs-se a pegar os livros. Ia me inclinando para
ajudá-lo. “Não é preciso, não é preciso — gritou ele. — Faria melhor se não
viesse aqui, onde não é chamada.” Mas, de resto, um pouco amolecido por
minha atitude submissa, continuou já num tom mais baixo, e odioso, de
orientação, aproveitando-se de seu direito ainda recente de professor: “Será
que nunca vai tomar juízo, nunca vai cair em si? Pois olhe para si mesma, já
não é mais uma criança, não é nenhuma garotinha, pois já está com quinze
anos!”. E nessa hora, querendo provavelmente se certificar de que era
mesmo verdade que eu já não era uma criança, lançou-me um olhar e
enrubesceu até as orelhas. Eu não entendia; continuei diante dele, olhando-o
atônita, com os olhos bem abertos. Ele se levantou, se aproximou de mim
com um ar desconcertado, terrivelmente perturbado, e começou a dizer
algo, parece que se desculpava por alguma coisa, talvez por apenas então
ter percebido que eu era uma moça feita. Finalmente entendi. Não lembro o
que deu em mim na hora; fiquei perturbada, embaraçada e, ainda mais
enrubescida que Pokróvski, tapei os olhos com as mãos e fugi do quarto.
Não sabia o que me restava fazer, onde me meter de vergonha. O
fato é que me havia pego em seu quarto! Por três dias inteiros não fui capaz
de olhar para ele. Ruborizava até às lágrimas. Os mais estranhos
pensamentos, uns pensamentos ridículos, não me saíam da cabeça. Um
deles, o mais extravagante, é que queria ir até o seu quarto e explicar-me
com ele, confessar-lhe tudo, contar-lhe tudo com franqueza, e assegurar-lhe
de que havia procedido não como uma menininha estúpida, mas com a
melhor das intenções. Já estava completamente decidida a ir, mas graças a
Deus faltou-me coragem. Fico imaginando o que eu ia fazer! Ainda hoje
sinto vergonha só de me lembrar disso tudo.
Alguns dias depois a mãezinha de súbito ficou gravemente doente.
Havia já dois dias que não se levantava da cama e na terceira noite estava
febril e delirando. Já havia passado uma noite sem dormir, cuidando da
mãezinha, sentada à cabeceira de sua cama para lhe dar de beber e os
remédios na hora marcada. Na segunda noite, estava completamente
exausta. De vez em quando o sono se apoderava de mim, os olhos iam-se-
me turvando, a cabeça começava a girar, estava prestes a cair de cansaço a
qualquer momento, mas os fracos gemidos de minha mãe me despertavam,
eu me sobressaltava, despertava por um instante e, em seguida, tornava a
ser vencida pela sonolência. Eu me atormentava. Não sei — não consigo
me recordar -, mas um sonho terrível, uma visão pavorosa tomou conta de
minha mente transtornada no momento extenuante da luta do sono com a
vigília. Despertei apavorada. No quarto estava escuro, a lamparina estava se
apagando e faixas de luz ora inundavam, de repente, todo o quarto, ora
tremeluziam na parede, ora se extinguiam por completo. Por alguma razão,
comecei a sentir medo, sentia-me tomada por uma espécie de pavor; minha
imaginação estava abalada pelo sonho terrível; a angústia oprimia-me o
peito... Levantei-me da cadeira de um salto e sem querer dei um grito,
levada por um sentimento torturante e terrivelmente penoso. Nessa hora a
porta se abriu e Pokróvski entrou no nosso quarto.
Só lembro que voltei a mim em seus braços. Ele me sentou com
cuidado na poltrona, deu-me um copo d’água e crivou-me de perguntas.
Não me lembro do que lhe respondia. “Está doente, você mesma está muito
doente — disse-me ele, pegando minha mão -, está com febre, está se
acabando, não está poupando a própria saúde; acalme-se, deite-se e durma.
Eu a acordo daqui a duas horas, acalme-se um pouco... Deite-se, então,
deite-se” — continuou ele, sem me deixar pronunciar uma palavra sequer
em objeção. O cansaço havia me tirado as últimas forças. Meus olhos iam
se fechando de fraqueza. Recostei-me na poltrona com a intenção de dormir
não mais que meia hora. Pokróvski acordou-me apenas quando chegou a
hora de dar o remédio à mãezinha.
Na noite seguinte, por volta de onze horas, quando, depois de ter
descansado um pouco durante o dia, me preparava para tornar a me sentar
na poltrona junto à cabeceira da cama da mãezinha, com a firme intenção
de, dessa vez, não adormecer, Pokróvski bateu à porta de nosso quarto.
Abri. “É cansativo ficar sozinha — disse-me ele -, trouxe-lhe este livro,
pegue-o; assim não se sentirá tão cansada.” Eu o peguei; não lembro que
livro era; é pouco provável que tenha chegado a abri-lo então, embora não
tenha dormido a noite toda. Uma estranha agitação interior não me deixava
dormir; não conseguia permanecer no mesmo lugar; muitas vezes me
levantava da poltrona e começava a andar pelo quarto. Uma espécie de
satisfação interior transbordava de todo o meu ser. Estava tão contente com
a atenção de Pokróvski! Orgulhava-me da sua preocupação e dos seus
cuidados para comigo. Passei a noite inteira pensando e sonhando.
Pokróvski não tornou a aparecer; e eu sabia que ele não viria e fazia
previsões para a próxima noite.
Na noite seguinte, quando todos em casa já haviam se deitado,
Pokróvski abriu a porta de seu quarto e, da soleira, começou a conversar
comigo. Não me lembro agora de uma só palavra do que dissemos um ao
outro; lembro-me apenas de que me senti acanhada, embaraçada, aborrecida
comigo mesma, e de que esperava com impaciência o fim da conversa,
embora eu própria a tivesse desejado com todas as minhas forças, tivesse
sonhado com ela o dia todo e preparado minhas perguntas e respostas...
Desde essa noite começou a nascer a nossa amizade. Durante o período da
doença da mãezinha, todas as noites passávamos algumas horas juntos. Aos
poucos fui vencendo a minha timidez, se bem que após cada conversa nossa
sempre achava alguma coisa ainda para me decepcionar comigo mesma.
Entretanto, era com uma alegria secreta e uma satisfação orgulhosa que
percebia que, por minha causa, ele se esquecia dos seus livros intragáveis.
Certa vez, por acaso, por brincadeira, a conversa recaiu sobre a queda deles
da prateleira. Foi um momento estranho, acho que fui franca e sincera
demais; sentia-me arrebatada por um ardor, por uma exaltação estranha, e
confessei-lhe tudo... que eu queria estudar, saber algo, que me sentia
aborrecida por me considerarem uma menininha, uma criança... Repito que
me encontrava num estado de espírito muito estranho; tinha o coração
enternecido, os olhos marejados de lágrimas — não escondi nada e contei-
lhe tudo, tudo — sobre minha amizade por ele, sobre o desejo de amá-lo, de
viver unida a ele pelo coração, de confortá-lo, de acalmá-lo. Ele me fitou de
um jeito estranho, como que desconcertado, surpreso, e não me disse uma
palavra. De repente comecei a sentir uma tristeza e uma dor terrível. Achei
que não me compreendia e que, talvez, estivesse rindo de mim. De repente
comecei a chorar e a soluçar como uma criança, sem conseguir me conter;
tive uma espécie de ataque. Ele pegou-me nas mãos, beijou-as e,
estreitando-as contra o seu peito, ficou tentando me tranquilizar, me
consolar; estava profundamente comovido; não me lembro do que me disse,
só sei que eu chorava, ria, tornava a chorar e enrubescia, sem conseguir
pronunciar uma palavra, de contentamento. Aliás, a despeito da emoção que
sentia, percebi que Pokróvski, apesar disso, continuava um tanto perturbado
e constrangido. Parece que não se cansava de admirar meu enlevo, meu
arrebatamento e uma amizade tão súbita, ardorosa e ardente. Talvez tenha
sentido apenas curiosidade no início; depois foi perdendo suas reservas e,
com o mesmo sentimento simples e direto que eu, aceitou minha afeição
por ele, minhas palavras afáveis, minha atenção, e correspondia a tudo com
a mesma atenção, de modo igualmente amigável e afável, como um amigo
sincero, como um verdadeiro irmão. Sentia-me tão bem e com o coração tão
aquecido!... Não dissimulei nem ocultei nada; ele via tudo isso e a cada dia
se afeiçoava mais a mim. É verdade que não me lembro, mas do que não
falávamos nós nestas horas torturantes, e ao mesmo tempo doces, de nossos
encontros noturnos, à luz bruxuleante da lamparina e quase colados ao leito
de minha pobre mãezinha doente?... De tudo o que vinha à mente, de tudo o
que era arrancado do coração e que queria ser dito — e éramos quase
felizes... Ah, foi um tempo triste e feliz — tudo junto; ainda agora me sinto
alegre e triste ao recordá-lo. As recordações, sejam alegres ou amargas, são
sempre um suplício; pelo menos para mim é assim; mas também esse
suplício é doce. E quando o coração fica oprimido, dolorido, atormentado e
triste, então a recordação o refresca e vivifica, como as gotas de orvalho
numa tarde úmida que, depois de um dia quente, refrescam e revivificam a
pobre florzinha murcha, crestada pelo calor do dia.
A mãezinha estava convalescendo, mas eu ainda continuava a velar
à cabeceira de sua cama. Pokróvski sempre me emprestava um livro; de
início eu lia para não adormecer, depois com mais atenção, depois com
avidez; de repente foi se abrindo diante de mim um mundo de coisas novas,
que até então ignorava e desconhecia. Novos pensamentos e novas
impressões afluíam de uma só vez, numa torrente caudalosa, ao meu
coração. E quanto mais inquietação, quanto mais perturbação e esforço me
custava a acolhida dessas novas impressões, mais caras elas me eram, mais
docemente abalavam toda a minha alma. De repente elas foram se
aglomerando em meu coração, de uma só vez, sem lhe dar descanso. Um
estranho caos começou a sublevar todo o meu ser. Mas essa violência
espiritual não foi capaz, não teve forças para me transtornar por completo.
Eu era sonhadora demais, e isso me salvou.
Quando a mãezinha ficou melhor, cessaram nossos encontros
noturnos e nossas longas conversas; às vezes conseguíamos trocar algumas
palavras, em geral triviais e insignificantes, mas eu senti prazer em
conceder a tudo um significado próprio, uma apreciação própria especial e
subentendida. Minha vida estava completa, eu estava feliz e tranquila,
serenamente feliz. E assim se passaram algumas semanas...
Uma vez o velho Pokróvski veio nos ver. Ficou conversando
conosco bastante tempo, e estava alegre, bondoso e falante como nunca; ria,
gracejava ao seu modo e, por fim, revelando o segredo de seu entusiasmo,
comunicou-nos que Piétienka faria aniversário daí a uma semana
exatamente, e que nessa ocasião ele viria ver o filho sem falta; que vestiria
um colete novo e que a mulher tinha prometido lhe comprar um novo par de
botas. Resumindo, o velho estava imensamente feliz e tagarelava sobre tudo
o que lhe vinha à cabeça.
O aniversário dele! Esse aniversário não me deu sossego nem de dia
nem de noite. Estava terminantemente decidida a lembrar a Pokróvski a
minha amizade e dar-lhe um presente. Mas o quê? Acabei tendo a ideia de
lhe dar livros. Sabia que ele gostaria de ter as obras completas de Púchkin, a
última edição, e decidi comprar o Púchkin*. De dinheiro meu mesmo tinha
uns trinta rublos, ganhos com trabalhos de costura. Esse dinheiro estava
reservado para um vestido novo. Mandei imediatamente nossa cozinheira, a
velha Matriona, saber quanto custava todo o Púchkin. Que infelicidade! O
preço de todos os onze volumes, incluindo o custo da encadernação, era de
pelo menos sessenta rublos. Onde havia de arranjar esse dinheiro? Fiquei
pensando, pensando, sem saber que decisão tomar. Pedir à mãezinha não
queria. Claro que a mãezinha teria me ajudado sem pestanejar; mas nesse
caso todos em casa iam ficar sabendo do nosso presente; e além disso o
presente se transformaria numa forma de recompensa, de pagamento pelo
ano inteiro de trabalho de Pokróvski. Minha vontade era presenteá-lo
sozinha, escondida de todos. Já por sua dedicação a mim, queria ser-lhe
eternamente devedora, sem qualquer espécie de pagamento que fosse, a não
ser a minha amizade. Acabei inventando um jeito de sair do apuro.

*Publicada em São Petersburgo de 1838 a 1841. (N. da T.)

Sabia que nos alfarrabistas do Gostíni Dvor* é possível comprar


livros até pela metade do preço, é só regatear, e muitas vezes com pouco
uso e quase completamente novos. Contava ir sem falta ao Gostíni Dvor. E
foi o que aconteceu; no dia seguinte mesmo surgiu uma urgência tanto de
nossa parte como da parte de Anna Fiódorovna. A mãezinha não se sentia
muito bem e Anna Fiódorovna, muito a propósito, estava com um pouco de
preguiça, de modo que lhes tocou encarregar-me de todas as incumbências,
e saí junto com Matriona.
Por sorte, encontrei o Púchkin bem rapidamente e numa
encadernação bem bonita. Comecei a regatear. De início pediram mais do
que custava nas livrarias, mas, aliás a muito custo, depois de sair e voltar
várias vezes, acabei levando o comerciante a um ponto que ele abaixou o
preço e limitou suas exigências a apenas dez rublos de prata. Como foi
divertido regatear!... A pobre Matriona não conseguia entender o que se
passava comigo e a troco de que eu tinha inventado de comprar tantos
livros. Mas que horror! Todo o meu capital era de trinta rublos em notas, e o
comerciante não concordava de maneira alguma em deixar por menos.
Comecei finalmente a lhe suplicar e, de tanto implorar, acabei conseguindo.
Ele fez um abatimento, mas de apenas dois rublos e meio, e jurou que só
estava fazendo esse abatimento por mim, por ser eu tão boa moça, que para
outra pessoa não baixaria por nada. Faltavam dois rublos e meio! Estava
prestes a começar a chorar de desgosto. Mas uma circunstância
absolutamente inesperada veio remediar meu desespero.

* Prédio de uma galeria comercial em arcadas na Avenida


Niévski. (N. da T.)
Acabava de ver o velho Pokróvski em outra banca de livros, perto
de mim. Estava rodeado por quatro ou cinco livreiros; eles, decididamente,
o estavam fazendo perder a cabeça e deixando-o completamente fatigado.
Cada um lhe oferecia a sua mercadoria, e o que lhe ofereciam, e o que
queria ele comprar! O pobre velho estava como que encurralado no meio
deles, sem saber o que pegar daquilo que lhe ofereciam. Aproximei-me dele
e perguntei-lhe o que estava fazendo ali. O velho ficou muito contente em
me ver; ele tinha loucura por mim, talvez não menos do que por Piétienka.
“Olha só, estou comprando livros, Varvara Alieksiêievna — respondeu-me
ele -, estou comprando livros para Piétienka. Pois o dia de seu aniversário
está chegando e ele gosta de livros, então estou aqui comprando uns para
ele...” O velho já tinha sempre um jeito cômico de se exprimir, mas agora,
ainda por cima, estava completamente atordoado. Do que quer que fosse
que perguntasse o preço, era sempre um rublo de prata, dois rublos, três
rublos de prata; já dos livros grandes sequer perguntava o preço, mas
mesmo assim lançava uns olhares de cobiça para eles, virava suas folhinhas
com os dedos, virava e revirava-os nas mãos e os recolocava no lugar.
“Não, não, é caro — dizia à meia-voz -, mas talvez aqui haja alguma coisa”
— e nisso recomeçava a folhear uns caderninhos fininhos, umas coletâneas
de canções, uns almanaques; tudo coisinha barata. “Mas para que o senhor
está comprando essas coisas — perguntei-lhe eu -, isso tudo é uma grande
bobagem.” “Oh, não — respondeu-me ele -, não, dê só uma olhada, que
livros bons há aqui; há uns livros muito, muito bons!” E arrastou as últimas
palavras meio cantando, e de modo tão lastimoso, que tive a impressão de
que estava prestes a chorar de desgosto porque os livrinhos bons são caros e
de que no mesmo instante uma lagrimazinha rolaria de suas faces pálidas
em seu nariz vermelho. Perguntei-lhe se tinha muito dinheiro. “Aqui está —
nisso o pobrezinho tirou todo o seu dinheiro, que estava enrolado num
papelzinho de jornal imundo -, tenho uma moedinha de cinquenta copeques,
duas moedinhas de vinte copeques e vinte copeques em cobre.” Eu o
arrastei imediatamente para o meu livreiro. “Veja, todos estes onze livros
juntos custam trinta e dois rublos e cinquenta copeques; eu tenho trinta;
acrescente dois rublos e meio e nós compramos todos estes livros e o
presenteamos juntos.” O velho ficou louco de alegria, despejou todo o seu
dinheiro, e o livreiro o carregou com toda a nossa biblioteca. O meu velhote
pôs livros em todos os bolsos, debaixo dos braços, juntou-os com as duas
mãos e levou tudo para a sua casa, dando-me sua palavra de que traria todos
os livros no dia seguinte, em surdina, para a minha casa.
No dia seguinte o velho veio ver o filho, passou uma horinha com
ele, como de costume, depois deu uma passada em nosso quarto e se sentou
ao meu lado com um ar comicamente enigmático. Primeiro com um sorriso,
esfregando as mãos pela satisfação orgulhosa de estar de posse de um
segredo, comunicou-me que os livros todos haviam sido trazidos à nossa
casa sem que ninguém percebesse e estavam num cantinho da cozinha sob a
proteção de Matriona. Depois a conversa passou naturalmente para a data
esperada; em seguida o velho se pôs a falar de como daríamos o nosso
presente e, quanto mais se aprofundava no assunto, quanto mais falava dele,
mais evidente ia se tornando para mim que alguma coisa lhe ia na alma, a
qual ele não conseguia, não ousava e tinha até medo de exprimir. Fiquei
esperando calada. A alegria secreta, a satisfação secreta que eu até então
havia facilmente lido em suas maneiras estranhas, em suas caretas,
piscadelas com o olho esquerdo, tinham desaparecido. A cada momento ia
ficando mais e mais inquieto e melancólico, até que não pôde mais se
conter.
“Ouça — começou timidamente, à meia-voz — ouça, Varvara
Alieksiêievna... sabe o que é, Varvara Alieksiêievna?... — O velho estava
terrivelmente embaraçado. — Veja: quando chegar o dia do aniversário
dele, pegue dez livros e dê a ele pessoalmente de presente, isto é, por si
mesma, em seu próprio nome; já eu pegarei o décimo primeiro apenas e
também lhe darei por mim mesmo, isto é, em meu próprio nome. Desse
modo, está vendo... terá o que lhe dar de presente e eu terei o que lhe dar de
presente; os dois teremos o que lhe dar de presente.” — Nessa hora o velho
se atrapalhou e se calou. Olhei para ele; estava esperando o meu veredito
com uma expectativa tímida. — “Mas por que o senhor não quer que lhe
demos juntos o presente, Zakhar Pietróvitch?” — “Por nada, Varvara
Alieksiêievna, é por isso... é que eu, uma coisa dessas...” — resumindo, o
velho ficou embaraçado, rubro, com a frase entalada, sem conseguir sair do
lugar.
— Está vendo — explicou-se ele, finalmente -, sabe, Varvara
Alieksiêievna, às vezes faço das minhas... isto é, quero lhe informar que
vivo aprontando das minhas, quase sempre apronto, estou habituado a
coisas que não são boas... isto é, sabe como é quando acontece de estar bem
frio no pátio, então às vezes acontecem umas coisas desagradáveis, ou se
fico lá de algum modo deprimido, ou se alguma coisa ruim acontece, de
modo que às vezes não me contenho e apronto das minhas, e às vezes bebo
demais. Isso desagrada muito ao Pietrucha. E então ele fica zangado, sabe,
Varvara Alieksiêievna, ralha comigo e começa a me pregar lições de moral.
De modo que gostaria agora de lhe demonstrar eu mesmo, com o meu
presente, que estou começando a me emendar e a me comportar bem. Que
economizei para lhe comprar um livro, que economizei por muito tempo,
porque dinheiro mesmo quase nunca tenho, a não ser quando acontece de
Pietrucha me dar algum. E ele sabe disso. Portanto, há de ver o emprego
que dou ao meu dinheiro e saber que faço isso tudo unicamente por ele.
Senti tanta pena do velho. Pus-me a pensar por um momento. O
velho deitou-me um olhar preocupado. “Pois ouça, Zakhar Pietróvitch —
disse-lhe eu -, dê-lhe o senhor de presente todos eles!” — “Todos, como?
isto é, os livros todos?...” — “Isso mesmo, os livros todos.” — “E da minha
parte?” — “Da sua parte.” — “Apenas da minha parte? isto é, em meu
próprio nome?” — “Isso mesmo, em seu próprio nome...” Achei que havia
explicado bem claramente, mas o velho demorou muito para conseguir me
entender.
“Está bem — dizia ele, pensativo -, está bem! isso será muito bom,
isso seria bom demais, mas e quanto a si mesma, Varvara Alieksiêievna?”
— “Bem, eu não darei nada.” — “Como! — gritou o velho, que quase
levou um susto — então não vai dar nenhum presente ao Piétienka, então
não quer dar nenhum presente a ele?” O velho se assustou; nesse momento
ele parecia pronto a desistir de sua proposta, para que eu também pudesse
dar um presente ao seu filho. Era um bom sujeito esse velho! Assegurei-lhe
que ficaria feliz em lhe dar um presente, mas que não queria privá-lo desse
prazer. “Se o seu filho ficar satisfeito — acrescentei eu — e o senhor ficar
feliz, então também ficarei feliz, porque no fundo de meu coração vou
sentir como se de fato também lhe tivesse dado um presente.” Com isso o
velho se tranquilizou completamente. Ele passou ainda duas horas conosco,
mas durante esse tempo todo não conseguia parar quieto na cadeira,
levantava-se, fazia barulho, brincava, divertia-se com Sacha, beijava-me
furtivamente, beliscava-me a mão e, escondido, fazia caretas por detrás de
Anna Fiódorovna. Anna Fiódorovna acabou por expulsá-lo de casa.
Resumindo, o velho não cabia em si de contente, talvez como nunca
estivera em sua vida.
No grande dia ele apareceu às onze horas em ponto, veio direto da
missa, com a casaca decentemente cerzida e, realmente, com um colete
novo e botas novas. Em cada mão tinha um pacote de livros. Sentamo-nos
todos então na sala de Anna Fiódorovna para tomarmos o café (era
domingo). Parece-me que o velho começou dizendo que Púchkin era um
poeta muito bom; depois, perdendo o fio da meada e se atrapalhando todo,
de súbito mudou de assunto, começou a dizer que um homem precisa se
comportar bem e que, se não se comporta bem, então significa que está
sendo indulgente consigo mesmo; que os maus hábitos acabam com a vida
de um homem e o levam à perdição; chegou a enumerar alguns exemplos
nocivos de intemperança e concluiu com o fato de que desde algum tempo
havia se emendado por completo e que agora se comportava de maneira
exemplar. Que mesmo antes sentia que os sermões do filho eram justos, que
vinha sentindo isso e que foi adicionando tudo no coração, mas que agora
começara a se abster também na prática. Como prova disso, oferecia os
livros comprados com o dinheiro juntado por ele ao longo de muito tempo.
Eu não conseguia conter as lágrimas e o riso ao ouvir o pobre
velho; sabia mentir bem em caso de necessidade! Os livros foram levados
para o quarto de Pokróvski e colocados na prateleira. Pokróvski adivinhou
de imediato a verdade. O velho foi convidado para o almoço. Nesse dia
estávamos todos muito alegres. Depois do almoço jogamos cartas e
prendas; Sacha se divertia, e eu não lhe ficava atrás. Pokróvski estava
atencioso comigo e ficou tentando encontrar uma ocasião para
conversarmos a sós, mas eu não me rendi. Este foi o melhor dia daqueles
quatro anos inteiros de minha vida.
Mas agora vêm só recordações tristes, penosas; tem início a novela
sobre os meus dias negros. Talvez seja por isso que minha pena começa a se
mover mais devagar, como se se recusasse a continuar a escrever. Talvez
seja por isso que tenho passado com tanto entusiasmo e tanto amor para a
minha memória até os pormenores mais insignificantes de minha
insignificante vidinha nos meus dias felizes. Esses dias duraram tão pouco;
foram substituídos pelo desgosto, um desgosto amargo, que só Deus sabe
quando terá fim.
Minha desdita começou com a doença e a morte de Pokróvski.
Ele adoeceu dois meses depois dos acontecimentos que acabo de
descrever. Nesses dois meses, batalhou incansavelmente por um meio de
subsistência, já que até então não tinha uma situação definida. Como todo
tuberculoso, até o último momento, nunca perdeu a esperança de viver
ainda muito tempo. Havia-lhe aparecido um emprego de professor não sei
onde; mas ele tinha aversão por essa profissão. E trabalhar no serviço
público, por razões de saúde, ele não podia. E além disso seria preciso
esperar muito tempo pelo pagamento do primeiro salário. Resumindo,
Pokróvski via apenas fracasso por todo lado; estava ficando intratável. Sua
saúde ia de mal a pior; ele não se dava conta disso. Chegou o outono. Saía
todos os dias com seu capotezinho leve para correr atrás de seus assuntos,
para pedir e implorar um emprego em algum lugar — o que, em seu íntimo,
era um tormento; andava debaixo de chuva, ficava todo ensopado, com os
pés molhados, e acabou caindo de cama, de onde não se levantou mais...
Faleceu em fins de outubro, no auge do outono.
Durante todo o período de sua doença, quase não deixei seu quarto,
ficava cuidando dele e servindo-o. Passei muitas noites inteiras em claro.
Era raro estar consciente; estava sempre delirando; falava sabe Deus do
quê: de seu emprego, de seus livros, de mim, do pai... e foi aí que ouvi
muita coisa sobre circunstâncias de sua vida que antes não sabia e das quais
nem mesmo suspeitava. Nos primeiros tempos de sua doença, todos em
casa olhavam para mim de um jeito estranho; Anna Fiódorovna abanava a
cabeça. Mas eu encarava a todos de frente e deixaram de censurar meu
interesse por Pokróvski — pelo menos a mãezinha.
Às vezes Pokróvski me reconhecia, mas isso era raro. Ficou quase o
tempo todo inconsciente. Às vezes passava noites inteiras falando com
alguém, com palavras vagas e ininteligíveis, e sua voz rouca repercutia em
seu quarto apertado de um modo abafado, como que de dentro de um
caixão; nesses momentos eu ficava apavorada. Sobretudo na última noite,
estava como que frenético; eram terríveis o seu sofrimento, a sua angústia;
seus gemidos dilaceravam-me a alma. Todos lá em casa estavam assustados.
Anna Fiódorovna só fazia rezar para que Deus o levasse o mais depressa
possível. Chamaram o médico. O médico disse que o doente não passaria da
manhã seguinte.
O velho Pokróvski passou a noite inteira no corredor, bem à porta
do quarto do filho; estenderam ali uma esteira para ele. A todo instante
entrava no quarto; dava medo de vê-lo. Estava tão mortificado pela dor que
parecia completamente insensível e apalermado. O medo lhe fazia tremer a
cabeça. Ele mesmo tremia todo e não parava de murmurar algo para si
próprio, de raciocinar com seus botões sobre alguma coisa. Achei que ele ia
enlouquecer de amargura.
Antes do amanhecer, exaurido pela dor da alma, o velho adormeceu
como um morto em sua esteira. Aí pelas oito horas o filho entrou em
agonia; fui acordar o pai. Pokróvski estava plenamente lúcido e se despediu
de todos nós. Que coisa estranha! Eu não conseguia chorar. Mas estava com
o coração dilacerado.
Porém, o que me torturou e martirizou mais do que tudo foram seus
derradeiros instantes. Com a língua entorpecida, passou muito tempo
pedindo-me algo e eu não conseguia compreender nenhuma de suas
palavras. Confrangia-me o coração de dor! Passou uma hora inteira
inquieto, o tempo todo angustiado por alguma coisa, esforçando-se para
fazer um sinal com as mãos frias, depois recomeçou a pedir queixosamente,
com uma voz rouca e surda; mas suas palavras eram sons desconexos, e eu
de novo não conseguia entender nada. Levava todo o pessoal de casa para
perto dele, dava-lhe de beber; mas ele só fazia balançar a cabeça com
tristeza. Por fim entendi o que queria. Pedia-me para levantar a cortina e
abrir os contraventos. Sua vontade, certamente, era de ver o dia, a luz
divina, o sol, pela última vez. Abri a cortina; mas o dia que despontava
estava tão triste e melancólico como a pobre vida do moribundo, que se
extinguia. Não havia sol. As nuvens cobriam o céu com uma névoa espessa;
ele estava tão chuvoso, sombrio e melancólico. Uma chuvinha fina
tamborilava nos vidros da janela e banhava-os com jatos de uma água fria e
suja; tudo estava embaciado e escuro. Os raios do dia pálido penetravam
tenuamente no quarto e mal conseguiam competir com a luz trêmula da
lamparina acesa diante do ícone. O moribundo fitou-me com imensa tristeza
e balançou a cabeça. Um minuto depois estava morto.
A própria Anna Fiódorovna se encarregou do funeral. Foi comprado
um caixão muito simples e contratado um carroceiro. Para cobrir as
despesas, Anna Fiódorovna se apossou de todos os livros e de todas as
coisas do falecido. O velho discutiu com ela, fez barulho, tirou dela quantos
livros pôde, encheu todos os seus bolsos com eles, colocou-os no chapéu,
onde pôde, carregou-os todos os três dias e não os largou nem mesmo na
hora de ir para a igreja. Durante estes dias todos ele parecia estar
desmemoriado, como que abobalhado, e passou o tempo todo atarefado em
volta do caixão, cuidando de tudo com um estranho desvelo: ora
recompondo a coroinha no falecido, ora acendendo e retirando velas. Via-se
que não conseguia concentrar os pensamentos em nada. Nem a mãezinha
nem Anna Fiódorovna foram à igreja para a missa de corpo presente. A
mãezinha estava doente, e Anna Fiódorovna, embora tivesse se aprontado
toda, brigou com o velho Pokróvski e ficou em casa. O velho e eu fomos os
únicos presentes. Na hora da missa fui acometida por uma sensação de
medo — como se fosse um pressentimento do futuro. Mal conseguia me
aguentar de pé na igreja. Finalmente o caixão foi fechado, pregado,
colocado na carroça e levado. Eu o acompanhei somente até o fim da rua. O
cocheiro saiu a trote. O velho corria atrás dele chorando alto; um pranto
trêmulo e entrecortado, por causa da corrida. O infeliz perdeu o chapéu e
nem se deteve para apanhá-lo. Ficou com a cabeça molhada de chuva;
levantara uma ventania; a escarcha fustigava-lhe o rosto, partindo-o todo. O
velho parecia não se dar conta do mau tempo e corria em pranto de um lado
para o outro da carroça. As abas de seu decrépito sobretudo esvoaçavam
como asas ao vento. De todos os seus bolsos assomavam livros; em sua
mão havia um livro enorme, que estreitava fortemente contra o peito. Os
transeuntes tiravam o chapéu e faziam o sinal da cruz. Outros paravam
assombrados, para ver o pobre velho. A todo instante lhe caíam livros dos
bolsos na lama. As pessoas o paravam, para apontar-lhe os livros perdidos;
ele os apanhava e se punha de novo a correr no encalço do caixão. Na
esquina, uma velha mendiga juntou-se a ele para acompanhar o caixão. A
carroça de repente dobrou a esquina e desapareceu de minha vista. Voltei
para casa. Atirei-me nos braços da mãezinha num estado de angústia
terrível. Eu a estreitava fortemente em meus braços e a beijava, soluçando,
estreitava-me a ela com medo, como se quisesse prender com meu abraço o
meu último amigo e não entregá-lo à morte... Mas a morte já rondava a
pobre mãezinha!
11 DE JUNHO
Como lhe sou grata pelo passeio de ontem às ilhas, Makar Alieksiêievitch! Que
lugar fresco e gostoso, e quanto verde há ali! Havia tanto tempo já que não via o verde;
quando estava doente, ficava sempre achando que ia morrer e dava minha morte como
certa; então julgue por si mesmo como não me senti, a sensação que experimentei
ontem! Não se zangue comigo por ter ficado tão triste ontem; estava me sentindo muito
bem, muito leve, mas é sempre assim, em meus melhores momentos, não sei por quê,
sempre me sinto triste. Quanto ao meu choro, isso não foi nada; nem eu mesmo sei por
que estou sempre chorando. Sinto uma sensação de dor e uma irritabilidade; minhas
impressões são mórbidas. O céu límpido e pálido, o pôr do sol, a calmaria do fim de
tarde — tudo isso — nem eu mesma sei — mas ontem estava como que predisposta a
acolher todas as impressões de maneira dolorosa e torturante, de modo que estava com o
coração transbordando e a alma pedindo lágrimas. Mas por que lhe escrevo estas coisas?
Isto tudo se revela muito penoso para o meu coração, porém mais penoso ainda é contar.
Mas o senhor talvez me compreenda. É triste e cômico ao mesmo tempo! É verdade, o
senhor é um homem tão bondoso, Makar Alieksiêievitch! Ontem fitava-me de um jeito
nos olhos, como que querendo ler neles o que eu estava sentindo, e mostrava-se
encantado com meu enlevo. Se olhava para um arbustozinho, uma alameda, uma faixa
de água que fosse, lá estava o senhor; punha-se de tal modo diante de mim, todo
garboso, e olhando-me o tempo todo nos olhos, como se estivesse me mostrando seus
próprios domínios. Isso é uma prova de que tem um bom coração, Makar
Alieksiêievitch. E é por isso mesmo que lhe quero bem. Então, até logo. Hoje estou
outra vez adoentada; ontem molhei os pés e por isso peguei um resfriado; Fiódorovna
também está meio adoentada, de modo que fomos as duas pegas. Não se esqueça de
mim, venha me visitar mais vezes.
S
ua
V. D.
12 DE JUNHO
Varvara Alieksiêievna, minha pombinha!
E eu que achava, minha filha, que me descreveria todo o dia de
ontem em verdadeiros versos, mas só lhe saiu ao todo uma folhinha
simples. Se digo isso é porque, embora tenha me escrito pouco em sua
folhinha, em compensação descreveu com doçura e muitíssimo bem. Tanto
a natureza, como os vários cenários do campo e todo o resto sobre
sentimentos — em suma, descreveu tudo isso muito bem. Já eu não tenho
esse talento. Mesmo que escrevinhasse dez páginas, vê lá se ia sair alguma
coisa, não ia conseguir descrever nada. Já tentei. Escreve-me, minha
querida, que sou um homem bom, complacente, incapaz de prejudicar o
próximo, e que sei perceber a bondade do Senhor manifesta na natureza, e
por fim cumula-me com muitos outros elogios. Tudo isso é verdade, minha
filha, tudo isso é a mais pura verdade; sou realmente assim como diz, e eu
mesmo sei disso; mas, ao ler essas coisas que escreve, fico com o coração
involuntariamente enternecido, e aí sou acometido por divagações penosas
de todo tipo. Mas agora ouça-me, minha filha, tenho uma coisa para lhe
contar, minha querida.
Começarei pela época em que tinha ainda dezessete aninhos,
quando me apresentei no serviço, e olha que logo vou para trinta anos de
carreira. E não é por dizer, mas realmente gastei muitas fardas; tornei-me
homem, tomei juízo, vi muita gente; vivi, posso dizer que vivi nesse
mundo, tanto que uma vez até quiseram recomendar-me para receber uma
condecoração. Pode não acreditar, mas garanto-lhe que não estou mentindo.
O fato, minha filha, é que uma gente má se intrometeu nisso tudo. Mas
quero lhe dizer, minha querida, que, embora seja uma pessoa ignorante,
estúpida talvez, tenho coração, como qualquer outra pessoa. Pois quer saber
o que fez comigo, Várienka, esse homem maldoso? Dá até vergonha de
dizer o que fez; há de me perguntar — por que é que ele fez isso? Por ser eu
pacífico, por ser eu calado, por eu ser bom! Não era do agrado deles, e
então se puseram a implicar comigo. No início tudo começou com: “o
senhor isso, Makar Alieksiêievitch, o senhor aquilo”; e depois passaram
para: “a Makar Alieksiêievitch, nem perguntem”. E agora, conclusão, “mas
é claro que foi Makar Alieksiêievitch!”. Aí está, minha filha, como as
coisas foram acontecendo: tudo recaía sobre Makar Alieksiêievitch; e tanto
fizeram que conseguiram transformar Makar Alieksiêievitch numa espécie
de piada em todo o nosso departamento. E, como se não bastasse a piada,
quase fizeram de meu nome um palavrão — pegaram para falar até das
minhas botas, da minha farda, dos meus cabelos, da minha aparência: nada
era do gosto deles, tudo tinha de ser refeito! E olha que isso tudo se repete
todo santo dia, desde tempos imemoriais. Eu me acostumei, porque me
acostumo com tudo, porque sou um homem pacífico, porque sou um
homem sem importância; e, no entanto, para que isso tudo? Fiz algum mal a
alguém? Puxei o tapete de alguém, ou algo assim? Difamei alguém junto
aos superiores? Pedi concessões a mais? Levantei alguma calúnia contra
alguém, eu pergunto? Estaria cometendo um pecado se pensasse uma coisa
dessas, minha filha! Eu lá sou homem de fazer esse tipo de coisa? Olha bem
para mim, minha querida, acha que tenho capacidade suficiente para a
perfídia e a vaidade? Que Deus me perdoe, mas por que tinha de cair tanta
desgraça sobre mim? Sei que me considera uma pessoa digna, minha filha,
e no entanto é incomparavelmente melhor do que eles todos. Pois qual é a
maior virtude cívica? Um dia desses, Evstáfi Ivánovitch mostrava numa
conversa particular que a mais importante virtude cívica é saber fazer
dinheiro. Eles falavam por brincadeira (eu sei que era por brincadeira), mas,
moral da história, não se deve ser um fardo para ninguém; mas eu não sou
um fardo para ninguém! Tenho meu próprio pedaço de pão; é verdade que é
um pedaço de pão simples, às vezes chega a ser pão seco; mas é ganho com
trabalho, consumido de modo legal e irrepreensível. E o que mais posso
fazer?! Pois eu mesmo sei que não é grande coisa o que faço, que é copiar;
mas assim mesmo me orgulho disso: trabalho, derramo meu suor. E o que
há de mais no fato de eu copiar? Será que é pecado copiar? “Ele, dizem, faz
cópias!” “Essa ratazana, dizem, é funcionário, faz cópias!” E o que há de
desonesto nisso? A escrita é tão nítida, bonita, dá gosto de ver, e Sua
Excelência está satisfeita; sou eu que copio os documentos mais
importantes para eles. Bom, estilo não tenho, e eu mesmo sei que não tenho
o maldito; e foi por isso que não subi no emprego, e mesmo agora, minha
querida, escrevo-lhe com simplicidade, sem pompa, da maneira como o
pensamento se forma em meu coração... Sei de tudo isso; e, entretanto, se
todo mundo se pusesse a escrever, então quem é que havia de copiar? Essa é
a pergunta que lhe faço e peço que me responda, minha filha. Pois agora me
dou conta de que sou necessário, de que sou indispensável e de que não se
deve desorientar uma pessoa com disparates. Pois bem, que seja uma
ratazana, já que encontraram semelhança! Mas essa ratazana é necessária,
essa ratazana é útil, a essa ratazana se agarram, e dão prêmio a essa ratazana
-, aí está, que tipo de ratazana é esta! Aliás, chega desse assunto, minha
querida; nem era disso que queria falar, mas aí me exaltei um pouco. De
qualquer forma, é agradável fazer justiça a si mesmo de vez em quando. Até
logo, minha querida, minha pombinha, meu anjo consolador. Darei uma
passada em sua casa sem falta, passarei para visitá-la, minha estrelinha. E
enquanto isso procure não se aborrecer. Vou levar-lhe um livro. Então até
logo, Várienka.
Seu cordial amigo
Makar Diévuchkin
20 DE JUNHO
Prezado senhor Makar Alieksiêievitch!
Escrevo-lhe às pressas, estou sem tempo, tenho de terminar um
trabalho dentro do prazo. Trata-se do seguinte: é possível fazer uma boa
compra. Fiódora diz que tem um conhecido que pôs à venda uma farda
completa, praticamente novinha em folha, a roupa de baixo, um colete, um
boné e, dizem, tudo muito barato; de modo que devia comprá-la. Afinal,
agora não está passando necessidades, e além do mais tem dinheiro; o
senhor mesmo diz que tem. Basta, por favor, não seja avarento, porque isso
tudo são coisas necessárias. Olhe bem para si mesmo, para os trajes velhos
com que anda. São de dar vergonha! estão cheios de remendos. Novos o
senhor não tem; isso eu sei, embora assegure que tem. Sabe Deus onde foi
que se desfez deles. Pois então ouça-me e compre-os, por favor. Faça isso
por mim; se gosta de mim, então compre-os.
Mandou-me roupas brancas de presente; mas ouça-me, Makar
Alieksiêievitch, desse jeito há de ficar sem recursos. Não é brincadeira o
que tem despendido comigo — é uma quantia espantosa! Ah, como gosta
de esbanjar! E não tenho necessidade; essas coisas todas eram
perfeitamente dispensáveis. Eu sei, estou certa de que gosta de mim;
palavra, é desnecessário lembrar-me disso com presentes; e me é penoso
recebê-los do senhor; sei o que lhe custam. De uma vez por todas — basta;
está me ouvindo? Eu lhe peço, eu lhe imploro. Pede-me, Makar
Alieksiêievitch, para mandar a continuação de minhas anotações; gostaria
que eu as terminasse. Nem sei como consegui escrever isso que escrevi!
Mas não tenho ânimo agora para falar do meu passado; não quero nem
mesmo pensar nele; começo a ter medo dessas recordações. E o mais
penoso para mim é falar de minha pobre mãezinha, que deixou a pobre filha
nas garras daqueles monstros; a simples lembrança me faz sangrar o
coração. Isso tudo ainda é tão recente; nem tive tempo de cair em mim,
quanto mais de me tranquilizar, embora já tenha passado mais de um ano.
Mas o senhor sabe de tudo.
Já lhe falei das ideias que Anna Fiódorovna anda tendo; diz que sou
ingrata e rejeita qualquer acusação sobre a sua associação com o senhor
Bíkov! Está me chamando para ir morar com ela; diz que estou vivendo de
esmolas e que enveredei por um mau caminho. Diz que, se eu voltar para a
sua casa, então se encarrega de arranjar tudo com o senhor Bíkov e o obriga
a reparar todo o mal que me fez. Diz que o senhor Bíkov quer me dar um
dote. Deus me livre! Estou bem aqui com o senhor e ao lado de minha
bondosa Fiódora, que, com a afeição que tem por mim, lembra minha
falecida ama. Embora seja um parente afastado, o senhor, no entanto, me
protege com seu nome. Quanto a eles, não sei; quero esquecê-los, se puder.
O que mais querem de mim? Fiódora diz que isso não passa de mexerico,
que acabarão por me deixar em paz. Queira Deus!
V. D.
21 DE JUNHO
Minha filha, minha pombinha!
Quero escrever, mas não sei por onde começar. Pois veja que
estranho é isso, minha filha, de estarmos vivendo assim agora. Falo isso
porque nunca havia tido dias tão alegres em minha vida. É como se o
Senhor me tivesse abençoado com uma casinha e uma família! Minha linda
criancinha! que conversa é essa sobre aquelas quatro camisinhas que lhe
mandei? Pois tinha necessidade delas — eu o soube por Fiódora. E além
disso, minha filha, para mim é um felicidade especial poder satisfazâ-la; é
esse o meu único prazer, e não se oponha, minha filha; não me magoe e não
me contrarie. Nunca me havia acontecido nada igual, minha filha. Pois
agora me lancei ao mundo. Em primeiro lugar, estou vivendo com o dobro
de intensidade, porque também está morando bem perto de mim e para a
minha alegria; em segundo lugar, um inquilino, meu vizinho, Rataziáiev, o
mesmo funcionário em cujo quarto acontecem os serões literários,
convidou-me hoje para um chá. Hoje haverá reunião; vamos ler literatura.
Veja como estamos agora, minha filha — aí está! Bem, até logo. Só escrevi
isso tudo por escrever, sem nenhuma intenção aparente e unicamente para
lhe informar sobre o meu bem-estar. Mandou-me dizer pela Teresa,
alminha, que precisa de seda de cor para os bordados; eu comprarei, minha
filha, eu comprarei, comprarei a seda também. Amanhã mesmo terei o
prazer de satisfazê-la completamente. Já sei até onde encontrar. E agora
continuo
seu amigo sincero,
Makar Diévuchkin
22 DE JUNHO
Prezada senhora Varvara Alieksiêievna!
Informo-lhe, minha querida, de que em nosso apartamento
aconteceu um episódio lastimável, verdadeiramente digno de compaixão.
Hoje, por volta das cinco horas da manhã, morreu um filho pequeno de
Gorchkov. Só não sei do quê, se foi escarlatina ou o quê, só Deus sabe! Fiz
uma visita a esses Gorchkov. Nossa, minha filha, que pobreza a deles! E
que desordem! Mas, também, não é de admirar: a família toda vive em um
único cômodo, que só está dividido por uns biombozinhos por decoro. Já
está lá o caixãozinho — é um caixão simplesinho, mas bem bonitinho;
compraram pronto, o menino tinha uns nove anos; dizem que prometia
muito. Dá pena olhar para eles, Várienka! A mãe não chora, mas está numa
tristeza, coitada! Talvez fique mais fácil para eles, com uma boca a menos
para alimentar; mas ainda lhes ficam duas crianças, um menino de peito e
uma menina pequena, de uns seis anos, não mais. Na verdade, que gosto há
de se ter na vida quando se vê uma criança sofrendo, e ainda por cima o
próprio filhinho, sem ter com que socorrê-lo? O pai está sentado numa
cadeira quebrada, com sua casaca velha e ensebada. Lágrimas correm-lhe
pelas faces, e talvez nem seja pelo sofrimento que seus olhos estão
supurando, mas apenas por hábito. Que estranho é! Quando alguém vai
falar com ele, fica todo vermelho, atrapalhado, sem saber o que responder.
A menina pequena, a filhinha, está apoiada no caixão, de pé, e tão triste e
pensativa, coitadinha! Como não gosto, Várienka, minha filha, quando vejo
uma criança pensativa; é uma coisa desagradável de ver! No chão, ao lado
dela, tem uma boneca de pano — mas ela não está brincando; fica com o
dedinho na boca; está quieta — nem se mexe. É triste, não é, Várienka?
Makar Diévuchkin
25 DE JUNHO
Amabilíssimo Makar Alieksiêievitch! Envio-lhe de volta o seu
livro. Que livreco imprestável este! — não dá nem para pôr as mãos nele.
De onde o senhor desencantou essa preciosidade? Mas, brincadeiras à parte,
será possível que goste desse tipo de livro, Makar Alieksiêievitch?
Prometeram-me arranjar alguma coisa para ler por esses dias. Também os
compartilharei com o senhor, se quiser. Mas agora até logo. Palavra, não
tenho tempo para escrever mais.
V. D.
26 DE JUNHO
Encantadora Várienka! Acontece que eu realmente não li esse
livreco, minha filha. A verdade é que dei uma folheada por alto, vejo que é
um disparate, escrito unicamente para distrair, para fazer as pessoas rirem;
bom, penso, ele deve ser mesmo engraçado; quem sabe a Várienka goste; e
então o peguei para lhe enviar.
Mas, olha, Rataziáiev prometeu emprestar-me algo de
verdadeiramente literário para ler, e então também terá uns livros, minha
filha. Esse Rataziáiev entende disso, é um sabichão; ele mesmo escreve, e
como escreve! Tem a pena bem aparada e esbanja estilo; ou seja, é assim
com cada palavra — na mais trivial, e, mais ainda, na palavra mais comum,
mais vulgar, que eventualmente eu mesmo digo a Faldoni ou a Teresa, até aí
ele tem estilo. Tenho frequentado seus serões também. Ficamos fumando,
enquanto ele lê para nós, lê por umas cinco horas, e nós só ouvimos. Não é
nem literatura, é algo apetitoso! Que encanto, são flores, verdadeiras flores;
com cada página se poderia fazer um buquê! É tão gentil, bondoso e afável.
E o que sou eu perto dele, o quê? Nada. É um homem de boa reputação, e
eu sou o quê? Simplesmente — não existo, no entanto, também comigo é
benevolente. Estou lhe fazendo algumas cópias. Só não vá pensar Várienka,
que tem alguma maracutaia nisso, que é só por isso que ele é benevolente
comigo, porque tenho feito cópias para ele. Não acredite nesses mexericos,
minha filha, não acredite nesses mexericos infames. Não, faço isso por
minha livre e espontânea vontade, para agradá-lo, e se ele é benevolente
comigo, então isso é porque ele quer me agradar. Eu sei perceber a
delicadeza de uma atitude, minha filha. É um homem bom, muito bom, e
um escritor incomparável.
A literatura é uma coisa boa, Várienka, muito boa; disso me inteirei
anteontem através deles. É algo profundo! É algo que edifica e fortalece o
coração das pessoas, e há muito mais coisa, ainda escrita, sobre tudo isso
num livro lá que eles têm. Muito bem escrito! A literatura é um quadro, ou
seja, em certo sentido um quadro e um espelho; é a expressão da paixão,
uma crítica tão fina, um ensinamento edificante e um documento. Isso tudo
eu fui pegando em companhia deles. Digo-lhe sinceramente, minha filha,
que posso sentar entre eles, ficar ouvindo (e posso até me pôr a fumar
cachimbo, como eles fazem) — mas, assim que começam a altercar, a
discutir sobre vários assuntos, nessa hora então eu simplesmente boio, nessa
hora, minha filha, a pessoas como nós resta puramente ceder o passo. Nisso
sou simplesmente um basbaque, me revelo um basbaque, tenho vergonha de
mim mesmo; de modo que posso ficar a noite inteira como que procurando
ainda que uma palavrinha para meter no assunto geral, mas essa palavrinha
parece que de propósito não existe. E a gente lamenta por si mesmo,
Várienka, por não ser assim como eles; é o que diz o ditado — cresceu, mas
inteligência não adquiriu. E o que faço eu agora no meu tempo livre?
Estúpido que sou, durmo. Pois, em vez dessas sonecas inúteis, poderia
dedicar-me a algo agradável, poderia, por exemplo, sentar e me pôr a
escrever. Seria útil para mim e bom para os outros. É isso mesmo, minha
filha, precisa ver o que eles ganham com isso, que Deus os perdoe! Veja
Rataziáiev mesmo — quanto ele cobra! O que é para ele escrever uma
folha? Há dias em que chega a escrever cinco, e diz que cobra trezentos
rublos por folha. Escreve lá uma anedotazinha qualquer ou algum caso
curioso — são quinhentos, a pessoa dê ou não, por mais que se estrebuche,
se quiser é assim! se não, da próxima vez são mil que vamos embolsar! Que
tal, Varvara Alieksiêievna? Quer mais? Ele tem lá um caderninho de
poesias, e só poesias bem pequenas — está pedindo sete mil por ele,
imagine, minha filha, sete mil. Pois isso é como uma propriedade, um
prédio de aluguel. Diz que lhe oferecem cinco mil, mas ele não aceita. Eu
tento chamá-lo à razão, digo — aceite, meu filho, os cinco mil deles, e eles
que se danem — pois cinco mil é muito dinheiro! Não, diz, vão ter de dar
sete, os malandros. É mesmo bem esperto!
E já que toquei no assunto, minha filha, então vou copiar-lhe um
pedacinho das Paixões italianas. É assim que se chama uma obra dele. Pois
leia, Várienka, e julgue por si mesma:
“... Vladímir estremeceu, em seu íntimo borbulhavam furiosamente
as paixões, e o sangue ferveu...
— Condessa — exclamou ele -, condessa! Sabe a senhora quão
terrível é essa paixão e quão ilimitada é essa loucura? Não, meus sonhos
não me enganaram! Amo, amo com arrebatamento, com fúria e com
loucura! Todo o sangue de seu marido não chegaria para aplacar o
arrebatamento furioso e borbulhante de minha alma! Esses obstáculos
miseráveis não deterão o fogo infernal e dilacerante que sulca meu peito
extenuado. Oh, Zinaída, Zinaída!
— Vladímir — sussurrou a condessa fora de si, reclinando-se sobre
o ombro dele.
— Zinaída! — gritou Smiélski, em êxtase.
De seu peito evaporou-se um suspiro. O incêndio irrompeu em
chamas vivas no altar do amor e sulcou o peito dos desgraçados sofredores.
— Vladímir!, sussurrava em êxtase a condessa. Arfava-lhe o peito,
enrubesciam-se-lhe as faces, os olhos brilhavam...
Um novo e terrível matrimônio fora consumado!
Meia hora depois o velho conde entrou no boudoir de sua esposa.
— Mas, alminha, por que é que não mandou preparar o samovar
para o nosso querido hóspede? — disse ele, afagando o rosto da esposa.”
E agora eu lhe pergunto, minha filha, depois disso — o que acha? É
verdade que é um pouquinho livre, isso nem se discute, mas em
compensação é bom. Que é bom, não dá para negar! E agora, se me
permite, copio-lhe ainda um fragmentozinho da novela Iermák e Ziuliêika*.

*Iermák: chefe cossaco, herói de canções populares, morto em


batalha com Kutchum em 1585. (N. da T.)

Imagine, minha filha, que o cossaco Iermák, o terrível conquistador


selvagem da Sibéria, enamora-se de Ziuliêika, filha do tsar siberiano
Kutchum, e a captura, fazendo-a cativa. O acontecimento se passa
justamente na época de Ivan, o Terrível, como pode ver. Eis uma conversa
entre Iermák e Ziuliêika:
“— Você me ama, Ziuliêika! Oh, repete-o, repete-o!...
— Eu te amo, Iermák — sussurrou Ziuliêika.
— Agradeço ao céu e à terra! sou feliz!... Concedeste-me tudo, tudo
aquilo com que desde os anos de adolescência ansiava meu espírito agitado.
Eis para onde me conduzia minha estrela guia; foi então por isso que me
trouxestes até aqui, para além do Cinturão de Pedra! Hei de mostrar a todo
o mundo a minha Ziuliêika, e os homens, esses monstros raivosos, não
ousarão acusar-me. Oh, se eles pudessem entender os sofrimentos secretos
de sua alma terna, se fossem capazes de ver um poema inteiro numa única
lagrimazinha de minha Ziuliêika! Oh, deixa-me enxugar essa lagrimazinha
com meus beijos, deixe-me beber essa lagrimazinha celestial... etérea!
— Iermák — disse Ziuliêika -, o mundo é mau, os homens são
injustos! Hão de nos perseguir e de nos condenar, meu querido Iermák! O
que uma pobre moça, que cresceu em meio às neves nativas da Sibéria, na
iurta de seu pai, há de fazer em seu mundo frio, gelado, desalmado, cheio
de amor-próprio? Os homens não serão capazes de compreender-me, meu
amado, meu adorado!
— Então o sabre cossaco há de se erguer sobre eles e silvar —
gritou Iermák, revirando os olhos como um selvagem.”
Imagine agora o estado de Iermák, Várienka, ao ficar sabendo que
sua Ziuliêika fora degolada. O velho cego Kutchum, aproveitando a
ausência de Iermák, penetrou em sua tenda na escuridão da noite e
esfaqueou a filha, desejando assim assestar um golpe mortal em Iermák,
que o privara do cetro e da coroa.
“— Como é bom friccionar o ferro na pedra! — gritou Iermák com
uma fúria selvagem, afiando sua faca de Damasco sobre a pedra do xamã.
— Preciso de sangue, do sangue deles! Eles têm de ser serrados, serrados,
serrados!!!”
E depois disso tudo, Iermák, sem ânimo para prosseguir vivendo
sem sua Ziuliêika, atira-se no Irtich, e com isso termina tudo.
Bem, este, por exemplo, é um trechinho pequeno, num gênero de
descrição cômica, escrito expressamente para fazer rir:
“Então não conhece Ivan Prokófievitch Jioltopuz? Pois é aquele
mesmo que mordeu a perna de Prokófi Ivánovitch. Ivan Prokófievitch é um
homem de caráter rude, mas, em compensação, de virtudes raras; o oposto
de Prokófi Ivánovitch, que gosta muitíssimo de nabo com mel. E quando
ainda estava fazendo amizade com Pelaguiêia Antônovna... E sabe quem é
Pelaguiêia Antônovna? Bem, é aquela que sempre veste a saia do avesso.”
É mesmo engraçadíssimo, Várienka, simplesmente engraçadíssimo!
Rolamos de rir, quando ele leu isso para nós. Do jeito que é, que Deus o
perdoe! Aliás, minha filha, mesmo que seja uma coisa meio alambicada e
até jocosa demais, em compensação é inocente, não tem uma pontinha
sequer de livre-pensamento e de ideias liberais. É preciso observar, minha
filha, que a conduta de Rataziáiev é impecável, e por isso é um escritor
excelente, não é como os outros escritores.
E sabe que, de fato, às vezes me passa mesmo pela cabeça a ideia
de que, se me pusesse a escrever alguma coisa, o que então havia de ser?
Suponhamos por exemplo que, de repente, sem mais nem menos, fosse
publicado um livro com o título Poesias de Makar Diévuchkin! O que teria
a dizer sobre isso, meu anjinho? O que ia lhe parecer e o que ia pensar
disso? Quanto a mim, minha filha, devo dizer que, assim que esse meu livro
fosse publicado, então eu, decididamente, não me atreveria a aparecer na
Niévski*. Pois como havia de ser quando um qualquer dissesse que é
Diévuchkin, o escritor de literatura e poeta, em pessoa, que está passando, e
dissessem é Diévuchkin mesmo, em pessoa! O que é que eu, então, por
exemplo, haveria de fazer com as minhas botas? É que elas, digo-lhe de
passagem, minha filha, estão quase sempre cheias de remendos, e as solas
também, para dizer a verdade, às vezes se despregam de modo bem
indecoroso. O que havia de acontecer quando todos soubessem que as botas
do escritor Diévuchkin têm remendos! E se alguma condessa-duquesa,
então, ficasse sabendo, o que iria dizer, alminha? Ela mesma pode ser que
nem reparasse; já que, suponho eu, condessas não se preocupam com botas,
e ainda mais as botas de um funcionário (mesmo porque há botas e botas).
Além do que, já lhe teriam contado tudo; meus próprios companheiros
haveriam de me trair. Rataziáiev mesmo seria o primeiro a me trair; ele
frequenta a casa da condessa V. regularmente; diz até que a visita toda vez
que passa por ali, sem cerimônias. Diz que ela é um encanto, uma
verdadeira dama literária. É um espertalhão esse Rataziáiev!

*Principal avenida de Petersburgo. (N. da T.)

Mas, enfim, chega desse assunto; pois escrevo isso tudo assim só
por brincadeira, meu anjinho, para entretê-la. Até logo, minha pombinha!
Escrevinhei muita coisa aqui, mas isso, no fundo, é porque hoje estou muito
bem-disposto. Hoje almoçamos todos juntos no quarto de Rataziáiev (são
uns pândegos, minha filha!), e puseram na roda um licor que... mas para
que lhe contar sobre isso! Ora, veja lá, não vá se pôr a pensar coisas de
mim, Várienka. Pois foi só isso. Hei de enviar-lhe um livro sem falta...
Estão passando aqui, de mão em mão, uma obra de Paul de Kock*, mas às
suas, minha filha, Paul de Kock não chega... Não e não! Paul de Kock não é
para a senhorita. Dizem que ele, minha filha, tem provocado em todos os
críticos de Petersburgo uma nobre indignação. Mando-lhe uma libra de
balinhas, compradas especialmente para você. Coma, alminha, e a cada
balinha lembre-se de mim. Mas não morda as balas, é melhor chupá-las,
senão vão doer-lhe os dentes. Mas talvez goste também de frutas
cristalizadas? Escreva dizendo. Então, até logo, até logo. Fique com Deus,
minha pombinha. Permanecerei para sempre
seu fidelíssimo amigo,
Makar Diévuchkin

* Popular romancista francês (1793-1871) cujas obras a crítica


reacionária russa dos anos 1840 considerava imorais. (N. da E.)
27 DE JUNHO
Prezado senhor
Makar Alieksiêievitch!

Fiódora diz que, se eu quiser, há algumas pessoas que com prazer poderiam se
interessar pela minha situação e conseguir para mim uma boa colocação como
preceptora numa certa casa. O que acha, meu amigo — devo aceitar ou não? E depois, é
claro que deixaria então de ser-lhe um peso, e além disso o emprego parece ser
vantajoso; mas, por outro lado, parece terrível ter de ir para a casa de estranhos. Trata-se
de uns proprietários rurais. Se começarem a tirar informações a meu respeito, se
começarem a me interrogar, a ter curiosidade — o que hei então de lhes dizer? E, além
do mais, sou uma pessoa tão arredia e insociável; gosto de me estabelecer no cantinho
que me é familiar por muito tempo. O lugar ao qual estamos habituados parece sempre
melhor: ainda que seja uma vida difícil, mesmo assim é melhor. E, além do mais, tem a
partida, e, ainda por cima, sabe Deus qual será o serviço; pode ser que me ponham
simplesmente para cuidar das crianças. E é uma gente que está trocando de preceptora
pela terceira vez em dois anos. Aconselhe-me, então, Makar Alieksiêievitch, pelo amor
de Deus, devo ir ou não? Mas por que o senhor mesmo nunca vem me visitar? é tão raro
dar as caras. Só nos vemos praticamente aos domingos na missa. É tão pouco sociável!
É igualzinho a mim! Pudera, sou praticamente sua parenta. Não gosta de mim, Makar
Alieksiêievitch, e às vezes acontece de me sentir muito triste sozinha. Tem dias,
sobretudo ao anoitecer, em que fico sozinha, completamente só. Quando Fiódora sai
para ir a algum lugar. Então sento e me ponho a pensar — a me lembrar de tudo o que
passou, das alegrias e das tristezas -, tudo me vem diante dos olhos, tudo muito
rapidamente, como se saísse de um nevoeiro. Surgem rostos familiares (começo a ver
tudo como se fosse ao vivo) — é minha mãezinha que vejo com mais frequência...
Tenho cada sonho! Sinto que minha saúde está abalada; estou tão fraca; hoje mesmo,
quando me levantava da cama de manhã, me senti mal; e, ainda por cima, ando com
uma tosse tão feia! Sei que vou morrer em breve, eu sinto isso. Haverá quem faça o meu
enterro? Haverá quem acompanhe o meu caixão? Haverá quem chore por mim?... E se
me acontecer de morrer num lugar estranho, em casa de estranhos, num canto alheio!...
Meu Deus, como é penoso viver, Makar Alieksiêievitch! Por que, meu amigo, vive me
empanturrando de balas? É sério, não sei de onde tira tanto dinheiro. Ah, meu amigo,
guarde o dinheiro, pelo amor de Deus, guarde-o. Fiódora está vendendo um tapete que
bordei, vão dar cinquenta rublos em notas por ele. Isso é muito bom: eu achava que
seria menos. Darei três rublos a Fiódora e farei um vestidinho para mim, bem simples e
quentinho. Para o senhor farei um colete, eu mesma o farei e escolherei um bom tecido.
Fiódora arranjou-me um livro — os Contos de Biélkin*, que lhe estou enviando,
caso queira ler. Só lhe peço, por favor, que não o suje nem o retenha por muito tempo: o
livro é emprestado; é uma obra de Púchkin. Há dois anos li estas novelas com a
mãezinha, e agora me senti tão triste ao relê-las. Se tiver alguns livros à mão, mande-os
para mim — mas apenas no caso de não tê-los pego de Rataziáiev. Ele certamente daria
obras suas, se é que publicou alguma coisa. Como pode gostar do que ele escreve,
Makar Alieksiêievitch? É um verdadeiro disparate... Bem, até logo! como tagarelei!
Quando estou triste, gosto de tagarelar, seja lá sobre o que for. É um remédio: sinto um
alívio imediato, especialmente se digo tudo o que me vai no coração. Até logo, até logo,
meu amigo!
S
ua
V. D.

* Contos do finado Ivan Pirtróvitch Biélkin (1831), de A. S. Púchkin. (N. da


T.)
28 DE JUNHO
Varvara Alieksiêievna, minha filha!

Pare de se atormentar! Devia se envergonhar disso! Pois então


chega, meu anjinho; como puderam lhe passar pela cabeça semelhantes
pensamentos? Não está doente, alminha, não está absolutamente doente,
está desabrochando, juro que está desabrochando; anda um pouquinho
pálida, mas mesmo assim está desabrochando. E que sonhos são esses que
anda tendo, e essas visões! É vergonhoso, minha pombinha, basta; devia
ignorar sonhos como esses, simplesmente ignorar. Por que é que eu durmo
bem? Por que é que nada acontece comigo? Olhe bem para mim, minha
filha. Vivo sossegado, durmo tranquilamente, estou cheio de saúde, em
plena forma, dá gosto de ver. Basta, basta, alminha, é vergonhoso! Tem de
se emendar. Conheço bem a sua cabecinha, minha filha, qualquer coisa que
acontece, já começa a sonhar e a se angustiar. Acabe com isso, alminha,
faça-o por mim. Ir trabalhar para alguém? — nunca! Não, não e não! Como
pôde lhe ocorrer uma ideias dessas, o que foi que lhe deu? E ainda por cima
tem a partida! Por nada, minha filha, haveria de consentir com isso, me
armaria com todas as minhas forças contra essa sua intenção. Vendo meu
casaco velho e passo a andar pelas ruas só de camisa, mas passar
necessidade conosco não vai. Não, Várienka, não, como eu a conheço! Isso
é capricho, puro capricho! E o certo é que a única culpada disso tudo é
Fiódora: é evidente que essa paspalhona ficou lhe enfiando essas ideias na
cabeça. E não vá acreditar nela, minha filha. Pois, decerto, ainda não sabe
de tudo, alminha?... Ela é uma paspalhona, ranzinza e rabugenta; até de seu
finado marido deu cabo. Ou, talvez, ela a tenha aborrecido de algum modo?
Não, não, minha filha, por nada! Eu mesmo, como haveria de ficar, o que
me restaria fazer? Não, Várienka, meu anjo, tire isso da sua cabecinha. O
que lhe falta conosco? Só a alegria sem fim que nos proporciona, gosta de
nós — então procure viver aí com tranquilidade, costure ou leia, ou então
não costure — tanto faz, contanto que fique conosco. Pois julgue por si
mesma, o que é que vai parecer isso então?... Está bem, arranjo-lhe uns
livros e depois tornamos a sair para passear em algum lugar. Mas chega,
minha filha, chega, tome juízo e não diga disparates por causa de uma
tolice! Irei visitá-las, e muito em breve, mas para isso aceite a minha
confissão sincera e sem rodeios: não está certo, alminha, não está nada
certo! É verdade que sou um homem sem estudo e eu mesmo sei que não
tenho estudo, que meus estudos são de meia pataca, mas não é isso o que
quero dar a entender, não se trata de mim, é em favor de Rataziáiev que
intercedo, em seu favor. Ele escreve bem, e, de mais a mais, escreve muito,
muito bem. Não concordo com a sua opinião e de modo algum posso
concordar. A escrita é floreada, entrecortada, com figuras, tem várias ideias;
é muito boa! Talvez o tenha lido sem sentimento, Várienka, ou talvez
estivesse indisposta quando o leu, zangada com Fiódora por alguma coisa,
ou com alguma coisa que não deu certo. Não, leia-o com sentimento, mais
propriamente quando se encontrar bem-disposta e contente, quando, por
exemplo, estiver com uma balinha na boca — aí é que deve lê-lo. Eu não
discuto (e quem está dizendo o contrário?) que há escritores até melhores
que Rataziáiev, e até muito melhores, mas eles são bons e Rataziáiev
também é bom; eles escrevem bem, mas ele também escreve bem. Ele é um
caso à parte, tem um jeito próprio de escrever, e faz muito bem em escrever.
Bem, até logo, minha filha; não posso continuar escrevendo, preciso me
apressar, tenho coisas para fazer. Veja bem, minha filha, minha estrelinha,
acalme-se, e que o Senhor esteja consigo, e eu continuo
seu fiel amigo,
Makar Diévuchkin
P. S. Obrigado pelo livro, minha querida, vou ler o Púchkin
também; e hoje, ao entardecer, irei vê-la sem falta.
1º DE JULHO
Meu querido Makar Alieksiêievitch!
Não, meu amigo, não, isso não é vida. Pensei bastante e acho que
faço muito mal em recusar uma colocação tão vantajosa. Lá ao menos terei
um ganha-pão garantido; hei de me esforçar, de merecer o carinho dessa
gente estranha, tentarei até mudar meu temperamento, se for preciso. É
claro que é doloroso, que é penoso viver entre pessoas estranhas, procurar
favores de estranhos, ocultar os sentimentos e constranger a si próprio, mas
Deus há de me ajudar. Não se pode mesmo passar a vida toda isolada das
pessoas. Coisas semelhantes já aconteceram comigo. Lembro-me de
quando, em outros tempos, ainda pequena, frequentava o internato. Durante
o domingo todo, em casa, brinco, pulo e às vezes a mãezinha ralha comigo
— mas não importa, sinto alegria no coração e a alma serena. Começa a se
aproximar a tarde, uma tristeza mortal se apossa de mim, às nove horas terei
de ir para o internato. E lá tudo é estranho, frio, severo, e às segundas-feiras
as preceptoras são tão bravas, que às vezes sinto um aperto no peito, tenho
vontade de chorar; vou para um cantinho e choro sozinha, escondendo as
lágrimas — ou haviam de dizer que era preguiçosa; mas acontece que não é
porque tenho de estudar que choro, absolutamente. Mas, e daí? eu me
acostumei, e depois, quando saía do internato, chorava do mesmo jeito, ao
me despedir de minhas amiguinhas. Sei que faço mal em viver como um
peso para vocês dois. Esse pensamento é uma tortura para mim. Digo-lhe
tudo isso francamente porque me acostumei a ser franca com o senhor.
Então não vejo que Fiódora levanta todos os dias de manhã cedinho, vai
logo para o tanque e trabalha até tarde da noite? — e ossos velhos gostam
de repouso. Então não vejo que é por minha causa que fica sem recursos,
que põe de lado até o último copeque para depois gastar comigo? e sem ter
recursos para isso, meu amigo! Escreve que venderia até a última coisa que
tivesse, mas não me deixaria passar necessidades. Eu acredito, meu amigo,
acredito em seu bom coração — mas isso é o que diz agora. Agora está com
um dinheiro, recebeu uma gratificação inesperada, mas e depois, o que vai
acontecer depois? O senhor mesmo sabe que ando sempre doente; não
posso trabalhar como o senhor, embora para a minha alma fosse uma
alegria, e além disso nem sempre aparece trabalho. O que me resta fazer?
Exaurir-me de angústia, ao olhar para vocês dois, meus amigos. Em que
lhes posso eu ser ao menos minimamente útil? E por que haveria de lhe ser
tão indispensável, meu amigo? O que lhe fiz eu de bom? Apenas afeiçoei-
me ao senhor com toda a minha alma, quero-o muito e sinceramente, de
todo o coração — mas, que destino amargo o meu! — sei amar e posso
amar, mas é só, não me é dado fazer o bem nem pagar-lhe pelos benefícios
que me faz. Não tente mais me deter, pense e dê-me sua opinião final. Fico
à espera
qu
em o ama
V. D.
1º DE JULHO
Disparate, Várienka, isso é um disparate, puro disparate! É só
deixá-la à vontade, e o que não mete de coisas nessa sua cabecinha. Isso
não está certo, aquilo também não está certo! Mas agora eu vejo que isso
tudo é um disparate. O que é que lhe falta conosco, minha filha, diga-me
apenas isso! É querida por nós e nos quer bem, estamos todos contentes e
felizes — o que quer mais? E o que há de fazer em meio a gente estranha?
Pois é evidente que ainda não sabe o que é uma pessoa estranha. Não,
queira então perguntar a mim e eu lhe direi o que é uma pessoa estranha.
Essa eu conheço, minha filha, conheço bem; aconteceu-me de comer do seu
pão. Ela é má, Várienka, má, e tão má que seu coraçãozinho não irá
aguentar, de tanto que será martirizada com recriminações, censuras e
olhares malévolos. Conosco está bem e aquecida — como se estivesse
abrigada em um ninho. E, além disso, nos deixaria como que sem cabeça. O
que havíamos nós de fazer em sua ausência; e eu, um velho, vou fazer o
quê, então? Não nos é necessária? Não serve para nada? Como é que não
serve para nada? Não, minha filha, pois pense por si mesma, como é que
não serve para nada? Para mim serve muito, Várienka. Tem uma influência
muito benéfica... Agora mesmo, penso em você e me sinto feliz... Tem vez
que lhe escrevo uma carta e exponho nela todos os meus sentimentos, em
troca recebo uma resposta sua em pormenores. Comprei-lhe uma porção de
roupinhas, mandei fazer-lhe um chapeuzinho, vez por outra me incumbe de
alguma coisa, até da incumbência eu... Ora, como é que não serve para
nada? E, além disso, o que hei de fazer sozinho na velhice, para que hei de
servir? Talvez nem tenha pensado nisso, Várienka; pois pense justamente
nisso — pense só, para que há de servir ele sem mim? Estou acostumado a
tê-la por perto, minha querida. Do contrário, o que há de resultar disso? Vou
para o Nievá1 e encerro o caso. É isso mesmo o que acabaria acontecendo,
Várienka; o que mais me restaria a fazer com sua ausência? Ah, Várienka,
alminha! Pelo visto, está querendo que um carroceiro me carregue para o
Volkovo; que uma velhota mendiga qualquer acompanhe sozinha o meu
caixão arrastando os pés, que me cubram de terra e depois saiam, deixando-
me lá sozinho. É pecado, minha filha, é pecado! Juro que é pecado!
Devolvo-lhe o seu livro, Várienka, minha amiguinha, e se quer minha
opinião, minha amiguinha, a respeito do seu livro, o que tenho a dizer é que
nunca em minha vida me aconteceu de ler um livro tão bom. E agora me
pergunto, minha filha, como foi que eu, Deus me perdoe, pude viver até
agora de maneira tão estúpida? O que estava fazendo? De que mato venho
eu? Pois não sei mesmo nada, minha filha, não sei nada de nada!
absolutamente nada! Digo-lhe sem malícia, Várienka — eu sou um homem
sem estudo; li pouco até hoje, li muito pouco, quase nada, aliás: li Retrato
de um homem2, uma obra inteligente; li O menino que tocava várias
músicas em campainhas3. Conta a história de um menino que cresceu na
pobreza mas que, ao encontrar os pais, de músico ambulante se torna um
conde famoso, e “Os grous de Íbico”4 — e isso é tudo, nunca li mais nada.
Agora li “O chefe da estação”5 aqui nesse seu livro; e uma coisa lhe digo,
minha filha, acontece mesmo de a pessoa viver sem saber que ali, do lado
dela, tem um livro no qual toda a sua vida está exposta como os dedos da
mão. E coisas que antes, por si mesma, não havia sido capaz de adivinhar;
aí, assim que começa a ler num livro desses, já por si mesma vai aos poucos
recordando, descobrindo e adivinhando tudo. E, por fim, mais um motivo
para ter gostado do seu livro: há obras que, por mais que a gente leia e
releia, às vezes, por mais que quebre a cabeça — são tão astuciosas que é
como se não a entendêssemos. Eu, por exemplo, sou um bronco, sou bronco
por natureza, de modo que não posso ler obras demasiado importantes; mas
essa a gente lê e é como se a gente mesmo a tivesse escrito, para dar um
exemplo, é exatamente como se a pessoa pegasse o próprio coração, seja lá
ele como for, o virasse do avesso para os outros verem, e aí descrevesse
tudo em pormenores — é exatamente assim! E é uma coisa tão simples,
meu Deus; a tal ponto! que, realmente, eu também teria escrito do mesmo
jeito; e por que não havia de escrever? Pois sinto a mesma coisa,
exatamente como está no livro, e, mais ainda, tem vez que eu mesmo me
encontro em situações parecidas, por exemplo, com a desse coitado do
Samson Virin6. E, além disso, quantos Samsons Vírins não andam entre nós
mesmos, e todos igualmente uns pobres-diabos amorosos? E que bem
descrito está tudo! Por pouco não chorei, minha filha, ao ler que se entregou
à bebida, o infeliz, tanto que não só perdeu a memória como se tornou uma
pessoa amarga, que passa o dia inteiro dormindo sob um casaco de pele de
ovelha e afogando o desgosto com ponche, que chora queixosamente e
limpa os olhos com a aba suja do seu casaco, ao se lembrar de sua ovelha
tresmalhada, sua filhinha Dúniacha7! Não, isso é natural! Pois leia então;
isso é natural! Isso é real! Eu mesmo vi isso — eu mesmo convivo com isso
tudo; veja a própria Teresa — para que ir mais longe! — e ainda que fosse o
nosso pobre funcionário — pois ele pode ser esse mesmo Samson Vírin, só
que com outro nome, Gorchkov. Esse é um caso comum, minha filha, pode
acontecer comigo e até consigo. E um conde que mora na Niévski ou na
Marginal, também ele poderá passar por isso, só vai parecer diferente
porque eles fazem as coisas do jeito deles, de acordo com o bom-tom, mas
também ele poderá experimentar a mesma coisa, tudo pode acontecer,
também comigo isso pode acontecer. É assim mesmo que as coisas são,
minha filha, e no entanto quer se apartar de nós; pois o vício, Várienka,
pode me pegar. E pode causar tanto a minha como a sua própria perdição.
Ah, minha estrelinha, pelo amor de Deus, tire esses pensamentos
voluntariosos todos de sua cabecinha e não me torture inutilmente. E como,
meu filhote de passarinho implume, fragilzinho, como é que fará para
ganhar sozinha o próprio sustento, para se proteger da perdição, para se
defender das pessoas malvadas?! Basta, Várienka, tome juízo; não dê
ouvidos a conversas e a conselhos insensatos, e torne a ler o seu livro, leia
com atenção: isso lhe será útil.

1 Livro de A. I. Galitch (1783-1848), publicado em São


Petersburgo em 1834. (N. da E.)
2 Rio que atravessa Petersburgo. (N. da T.)
3 Romance do escritor francês Ducray-Duminil (1761-1819)
(N. da E.)
4 Balada de Schiller (1797), com tradução de Jukóvski. (N. da
E.)
5 Um dos Contos de Biélkin, de Púchkin. (N. da T.)
6 Personagem de “O chefe da estação”, de Púchkin. (N. da T.)
7 Diminutivo do nome Avdótia. (N. da T.)

Falei sobre “O chefe da estação” com Rataziáiev. Ele me disse que


isso tudo está ultrapassado e que agora só saem livros com ilustrações e
descrições diversas*; eu, para dizer a verdade, não entendi muito bem o que
ele quis dizer com isso. Concluiu dizendo que Púchkin é bom, que
enalteceu a santa Rússia, e falou ainda uma porção de coisas sobre ele.
Realmente, é muito bom, Várienka, muito bom mesmo; pois torne a ler esse
livro com atenção, siga os meus conselhos e faça este velho feliz com sua
obediência. E então o próprio Senhor há de recompensá-la, minha querida,
com certeza há de recompensá-la.
Seu amigo sincero
Makar Diévuchkin

*A década de 1840 foi uma época de ampla divulgação na


Rússia do “ensaio fisiológico”. Semelhantes ensaios (“descrições”)
vinham geralmente acompanhados de representações de gravuras
(figuras) que correspondiam a “tipos”, isto é, representantes das
diversas classes e profissões. (N. da T.)
6 DE JULHO
Prezado senhor Makar Alieksiêievitch!
Fiódora trouxe-me hoje quinze rublos de prata. Coitada, como ficou
feliz, quando lhe dei três rublos! Escrevo-lhe às pressas.Estou agora
cortando o seu colete — que encanto é o tecido — amarelinho com
florzinhas. Envio-lhe um livro, há várias novelas aqui; li algumas delas; leia
uma que se chama “O capote”*. Quer me convencer a irmos ao teatro; será
que isso não sairá caro? Só se for em algum lugar na galeria. Faz muito
tempo já que não vou ao teatro, para dizer a verdade, nem lembro quanto. O
que me preocupa é se esse capricho não vai sair caro. Fiódora só faz abanar
a cabeça. Ela diz que o senhor não está absolutamente vivendo de acordo
com suas posses; e, além do mais, eu mesma percebo isso; só comigo, o
tanto que já gastou. Veja lá, meu amigo, se não ficará em dificuldades.
Fiódora falou-me também de certos rumores — que o senhor, parece, teve
uma discussão com a sua senhoria por não lhe ter pago um dinheiro; temo
muito pelo senhor. Bem, até logo, estou com pressa. Tenho um pequeno
trabalho; estou trocando as fitas de um chapéu.
V. D.
P. S. Sabe, se formos ao teatro, então usarei meu chapéu novo e
uma mantilha preta nos ombros. O que acha, ficará bom?

* Famoso conto de Gógol. (N. da T.)


7 DE JULHO
Prezada senhora Varvara Alieksiêievna!
... Pois bem, ainda a respeito de ontem. Sim, minha filha, houve um
tempo em que também eu fazia as minhas loucuras. Apaixonei-me por
aquela atriz, fiquei perdido de amor; mas isso ainda não foi nada; o mais
estranho é que quase não a via absolutamente, no teatro estivera uma única
vez, e a despeito disso tudo me apaixonei. Morava então de parede-meia
com cinco rapazes, uma gente jovem, fogueteira. Juntei-me a eles, foi sem
querer que me juntei, embora tivesse sempre mantido deles o
distanciamento conveniente. Mas, para não lhes ficar atrás, eu mesmo lhes
fazia coro em tudo. As coisas que diziam daquela atriz! Toda noite, sempre
que havia espetáculo, ia a turma toda — para as coisas necessárias eles
nunca tinham um tostão sequer -, ia a turma toda para o teatro, para as
galerias, e olha que não param de aplaudir, de chamar essa atriz — ficam
simplesmente possuídos! Depois não me deixavam dormir; passavam a
noite toda falando dela, cada um deles a chamava de a sua Glacha, todos
apaixonados por ela, pela mesma pessoa, todos com o mesmo canário no
coração. Acabaram por contagiar também a mim, indefeso; eu ainda era
mocinho na época. Nem mesmo sei como fui parar com eles no teatro, nas
galerias, no quarto andar. Ver, mesmo, só via uma beiradinha de cortina,
mas em compensação ouvia tudo. A atriz tinha uma vozinha realmente
linda — sonora, melíflua, de rouxinol! Aplaudíamos até nos doerem as
mãos, sem parar de gritar — resumindo, por pouco não vieram atrás de nós,
e, realmente, um deles foi até posto para fora. Ao chegar em casa, pus-me a
andar como que embriagado! No bolso, só me restara um simples rublo, e
até o pagamento tinha ainda uns bons dez dias. E o que acha que fiz, minha
filha? No dia seguinte, antes de ir para o serviço, virei em direção à
perfumaria de um francês e comprei dele perfumes e um sabonete
perfumado com todo o capital — nem eu mesmo sei, para que comprei isso
tudo então? E, além do mais, não almocei em casa, fiquei o tempo todo
rondando sua janela. Ela morava na Niévski, num terceiro andar. Fui para
casa, descansei lá uma horinha e tornei a ir para a Niévski, só para passar
perto de sua janelinha. Passei um mês e meio andando para lá e para cá,
arrastando-lhe asas; contratava cocheiros de carros de praça a todo
momento e não parava de passar perto de sua janela; fiquei completamente
extenuado, endividado, até que de repente deixei de amá-la: estava farto!
Pois veja a que estado uma atriz pode levar um homem decente, minha
filha! Pudera, na época eu era mocinho, muito mocinho!...
M. D.
8 DE JULHO
Minha prezada senhora
Varvara Alieksiêievna!

Apresso-me a lhe devolver seu livro, que recebi no dia 6 deste mês,
e apresso-me, ao mesmo tempo, nesta minha carta, a dar-lhe algumas
explicações. Fez mal, minha filha, fez mal em me colocar em tal extremo.
Permita-me, minha filha: qualquer condição que caiba ao homem é
determinada pelo Todo Poderoso. A um foi determinado usar dragonas de
general, a outro, a servir como conselheiro titular**, a este a mandar, àquele
a obedecer, submisso e amedrontado. Isso já é calculado de acordo com a
capacidade da pessoa; esta tem capacidade para uma coisa, enquanto
aquela, para outra, e as capacidades são concedidas pelo próprio Deus. Já
tenho por volta de trinta anos de serviço; meu trabalho é irrepreensível, meu
comportamento é sóbrio e nunca incorri em qualquer desordem. Como
cidadão considero-me, de acordo com a minha própria consciência, alguém
que possui seus defeitos e, ao mesmo tempo, virtudes. Sou respeitado pelos
chefes e Sua Excelência mesma está satisfeita comigo; e embora até hoje
ainda não me tenha dado mostras particulares de bem-querência, no entanto
sei que está satisfeita. Cheguei à idade dos cabelos brancos; não sei o que é
cometer um pecado grave. É claro, quem não tem pequenos pecados?
Pecador, qualquer um é, até mesmo você é pecadora, minha filha! Porém,
nunca fui repreendido por maiores contravenções e por insubordinação,
para desse modo me opor a algum regulamento, ou por violar a ordem
pública, nunca fui repreendido por isso, isso nunca aconteceu. Já estive até
para receber uma condecoração — mas para que isso agora! Devia ter
consciência disso tudo, minha filha, ele** também devia sabê-lo; já que se
pôs a descrever, então deveria saber tudo. Não, nunca julguei que fosse
capaz disso, minha filha; não mesmo, Várienka! Pois era justamente de
você que não esperava uma coisa dessas.

* Referência ao personagem de “O capote”, de Gógol, que é


conselheiro titular, o nono dos catorze graus hierárquicos de
classificação dos funcionários russos da época. (N. da T.)
** O “ele” se refere a Gógol. (N. da T.)

Como! Quer dizer então que, depois disso, você não pode sequer
viver resignadamente, no próprio cantinho — seja ele como for -, viver sem
turvar a água, como diz o ditado, sem perturbar ninguém, conhecendo
apenas a si próprio e o temor a Deus, para não vir a ser perturbado também,
para que não se enfiem também em seu cubículo para espiar o que você faz,
quer dizer, como você é no sossego da sua privacidade, se, por exemplo,
tem um bom colete, se tem a devida roupa íntima; se tem botas e com o que
estão pregadas; o que você come, o que você bebe, o que você copia?... E,
além do mais, o que é que tem que eu, minha filha, nem que seja onde a
calçada é ruinzinha, passe às vezes na pontinha dos pés para poupar a bota!
Para que escrever sobre o outro que, por exemplo, vez por outra ele passa
por necessidades, não toma chá? Como se todo mundo tivesse a obrigação
de tomar chá! E por acaso fico eu olhando para a boca de cada um, para ver
o que está mastigando? Quem foi que eu ofendi a tal ponto? Não, minha
filha, para que ofender os outros quando não estão perturbando! Veja,
Varvara Alieksiêievna, vou dar um exemplo, veja o que isso significa: você
trabalha, trabalha, com todo zelo e aplicação — ora! — e o próprio chefe o
respeita (seja lá como for, mas o respeita) — mas eis que vem alguém e
bem debaixo do seu nariz, sem qualquer motivo aparente, sem mais nem
menos, lhe arma uma pasquinada. É claro, é verdade que vez por outra você
manda coser algo novo para si mesmo — fica alegre, não dorme, de tanta
alegria, calça a bota nova, por exemplo, com tal voluptuosidade -, isso é
verdade, já experimentei essa sensação, porque é agradável ver nossos pés
com uma bota fina, elegante — isso está descrito com fidelidade! Mas
mesmo assim, sinceramente, me admira muito que esse Fiódor
Fiódorovitch* tenha deixado passar inadvertidamente um livro desses e não
tenha se defendido. É verdade que ele é um alto funcionário ainda jovem e
por vezes gosta de gritar, mas e por que não havia de gritar? E por que não
havia de ralhar, se com o nosso pessoal há a necessidade de ralhar? Bem,
convenhamos então, por exemplo, que para manter o tom seja necessário
ralhar — para manter o tom também é permitido -, é preciso que nos
habituemos; é preciso que haja medo; porque — isso aqui entre nós,
Várienka — o nosso pessoal não faz nada se não lhe metem medo, qualquer
um faz de um tudo para apenas constar em algum emprego, para poder
dizer, trabalho nisso, naquilo, mas do serviço, mesmo, quer distância e se
esquiva. Mas assim como há diversas graduações e cada graduação exige
um tipo de admoestação que lhe corresponda perfeitamente, então é natural
que depois disso também o tom da admoestação tenha graduações variadas
— é a ordem natural das coisas! Pois é nisso mesmo que se assenta o
mundo, minha filha, em cada um de nós dar o tom para o outro, em cada um
de nós poder ralhar com o outro. Sem essa precaução não haveria ordem
natural nem o mundo se manteria. O que realmente me admira é que Fiódor
Fiódorovitch tenha deixado uma ofensa dessas passar inadvertidamente!

* Trata-se de uma das personagens de “O capote”. (N. da T.)

E para que escrever essas coisas? Para que serve isso? Será que por
isso algum leitor vai me fazer um capote? Ou me comprar um novo par de
botas? Não, Várienka, vai terminar de ler e ainda exigir continuação. Às
vezes você se esconde, se esconde, oculta-se naquilo que não domina, tem
medo por vezes de mostrar o nariz seja onde for, porque teme os mexericos,
porque, de tudo o que há no mundo, de tudo lhe armam uma pasquinada, e
eis que toda a sua vida civil e familiar anda pela literatura, tudo impresso,
lido, ridicularizado, bisbilhotado! E com isso nem na rua você pode mais se
mostrar; pois aqui isso tudo está tão bem demonstrado que, agora, pode-se
reconhecer um dos nossos só pelo andar. Se ao menos no final que fosse ele
tivesse corrigido, suavizado alguma coisa, se tivesse posto, por exemplo —
ainda que depois daquele ponto em que despejam papeizinhos na cabeça
dele — que, afinal, apesar disso tudo, ele era um bom cidadão, virtuoso,
que não merecia semelhante tratamento por parte dos companheiros, que
era obediente aos superiores (nesse ponto ele podia dar um exemplo
qualquer), que não desejava mal a ninguém, que acreditava em Deus e que
sua morte (se ele queria necessariamente que ele morresse) fora lamentada.
Melhor mesmo seria não deixá-lo morrer, pobrezinho, e fazer as coisas de
maneira que encontrassem o capote, que aquele general, ao se inteirar
melhor dos pormenores acerca de suas virtudes, o transferisse para a sua
repartição, elevasse a sua graduação e lhe desse um bom ordenado, de
modo que veja só como ficariam as coisas: o mal seria castigado, a virtude
triunfaria, e os companheiros todos da repartição ficariam sem nada. Eu,
por exemplo, teria feito assim; mas, como está, o que é que tem de especial
nisso, o que há de bom nisso? Não passa de um exemplo trivial, banal, da
vida cotidiana. Mas como teve a coragem, minha querida, de me mandar
um livro desses? Pois é um livro mal-intencionado, Várienka; isso é
simplesmente inverossímil, porque não pode sequer ser possível que haja
um funcionário assim. E, mais, depois de ler uma coisa dessas, é o caso de
dar queixa, Várienka, e queixa formal.

Seu mais submisso criado


Makar Diévuchkin
27 DE JULHO
Prezado senhor Makar Alieksiêievitch!
Os últimos acontecimentos e suas cartas deixaram-me assustada e
pasma, fiquei perplexa, mas o que me contou Fiódora elucida tudo. Que
motivo havia para se desesperar tanto e cair de repente nesse abismo em
que caiu, Makar Alieksiêievitch? Suas explicações não me satisfizeram
absolutamente. Vê agora como eu tinha razão quando insistia em aceitar
aquele emprego tão vantajoso que me propunham? Além disso, estou
seriamente assustada com minha mais recente aventura. O senhor diz que o
amor que tem por mim o obrigava a ocultar-me muita coisa. Na época
mesmo eu já percebia que lhe era muito devedora, quando me assegurava
que gastava comigo somente o dinheiro que tinha de reserva, que, como
dizia, deixava em sua casa de penhores para o caso de uma eventualidade.
Mas agora que soube que não tinha nenhum dinheiro absolutamente, que,
ao saber por acaso da minha situação de pobreza e se comover com ela
decidira despender comigo seu ordenado, tomando-o adiantado, e que
vendeu inclusive a sua roupa, quando fiquei doente — agora que descobri
essas coisas todas vejo-me numa situação tão torturante que ainda nem sei o
que pensar e como encarar tudo isso. Ah, Makar Alieksiêievitch! devia ter
se limitado aos primeiros auxílios, inspirados pela compaixão e pelo amor
de parente, e não ficar esbanjando dinheiro posteriormente em coisas
desnecessárias. O senhor traiu nossa amizade, Makar Alieksiêievitch, por
não ter sido sincero comigo, e agora, ao ver que gastou seus últimos
recursos com roupas, balas e livros para mim, com teatro — por tudo isso
agora estou pagando caro com o remorso por minha leviandade
imperdoável (já que aceitava tudo sem me preocupar), e tudo aquilo com o
que quis me proporcionar prazer converteu-se agora em desgosto para mim
e por si mesmo não deixou nada além de um remorso inútil. Reparei em sua
tristeza nos últimos tempos, e embora eu mesma estivesse com um
pressentimento triste, o que aconteceu agora sequer me passava pela
cabeça. Pois como pôde perder o ânimo a esse ponto, Makar
Alieksiêievitch! E o que hão de pensar agora do senhor, o que hão de dizer
todos os que o conhecem? O senhor, a quem eu e todo mundo respeitava
pela bondade de sua alma, por sua modéstia e sensatez, caiu de repente num
vício tão abominável que, segundo parece, nunca havia sido notado antes.
Nem sei o que senti quando Fiódora contou-me que o encontraram na rua
embriagado e que fora levado para casa pela polícia! Fiquei petrificada de
assombro, embora já esperasse algo de extraordinário, já que fazia quatro
dias que estava sumido. Mas o senhor já pensou, Makar Alieksiêievitch, o
que hão de dizer os seus chefes quando souberem o verdadeiro motivo de
suas faltas? Diz que todos riem do senhor; que todos ficaram sabendo de
nossa ligação, e que seus vizinhos mencionam também a mim em suas
zombarias. Não se preocupe com isso, Makar Alieksiêievitch, e, pelo amor
de Deus, acalme-se. Assusta-me também a sua história com esses oficiais,
ouvi alguma coisa por alto sobre ela. Quero que me explique bem, o que
significa isso tudo? Escreve que tinha receio de se abrir comigo, que temia
perder minha amizade com sua confissão, que estava desesperado, sem
saber como me ajudar em minha doença, que vendera tudo para me
sustentar e não me deixar ir para o hospital, que se endividou o quanto pôde
e que tem tido aborrecimentos com a sua senhoria todos os dias — no
entanto, ao esconder de mim tudo isso, optou pela pior escolha. Mas agora
estou a par de tudo. Sentia vergonha de me obrigar a reconhecer que era a
causa de seu infortúnio, só que agora causou-me duas vezes mais desgosto
com seu comportamento. Tudo isso me deixou pasma, Makar
Alieksiêievitch. Ah, meu amigo! A infelicidade é uma doença contagiosa.
Os pobres e os desgraçados devem se afastar uns dos outros, para não se
contagiarem ainda mais. Acarretei-lhe infelicidades que o senhor nunca
antes, em sua vida modesta e solitária, havia experimentado.
Escreva-me agora contando com franqueza tudo o que lhe
aconteceu e como se atreveu a agir assim. Tranquilize-me, se for possível.
Não é o amor-próprio que me obriga a falar agora de minha tranquilidade,
mas minha amizade e meu amor pelo senhor, que nada poderá afugentar do
meu coração. Até logo, Makar Alieksiêievitch. Aguardo com impaciência a
sua resposta. O senhor chegou a pensar mal de mim, Makar Alieksiêievitch.
De quem o ama de todo coração
Varvara Dobrosiólova
28 DE JULHO
Minha inestimável Varvara Alieksiêievna!
Bem, agora que tudo já passou e as coisas aos poucos estão
voltando ao que eram antes, então veja o que vou lhe dizer, minha filha:
está preocupada com o que hão de pensar de mim, ao que me apresso a
informá-la, Varvara Alieksiêievna, que minha vaidade é o que tenho de
mais caro. E por isso, ao colocá-la a par das minhas desgraças e de todas
estas confusões, quero que saiba que nenhum dos chefes sabe de nada
ainda, nem há de saber, de modo que todos eles hão de nutrir por mim o
respeito de antes. Temo apenas uma coisa: temo os mexericos. Aqui em
casa a senhoria grita, mas agora que lhe paguei parte da dívida, com a ajuda
de seus dez rublos, limita-se a resmungar, e mais nada. Quanto aos outros,
também não há problema; contanto que não lhes peça dinheiro emprestado,
não há problema. E para concluir minhas explicações lhe direi, minha filha,
que considero o seu respeito por mim superior a tudo nesse mundo e com
ele me consolo agora por meus desvarios temporários. Graças a Deus que o
primeiro impacto e os primeiros transes já passaram e que não encarou isso
de maneira a me considerar um amigo pérfido e egoísta por tê-la prendido
aqui a mim e enganado-a, por não ter forças para me separar de você e amá-
la como o meu anjinho. Voltei a trabalhar com zelo e a cumprir bem as
minhas obrigações. Evstáfi Ivánovitch não disse uma palavra ontem,
quando passei ao seu lado. Não vou lhe esconder, minha filha, que as
minhas dívidas e o péssimo estado do meu guarda-roupa estão me
consumindo, mas isso também não tem importância, e quanto a isso
também lhe imploro — não se desespere, minha filha. Manda-me mais uma
moeda de cinquenta copeques, Várienka, e essa moeda traspassou-me o
coração. Veja no que deu isso! quer dizer, não sou eu, este velho imbecil, a
ajudá-la, meu anjinho, mas você, minha pobre orfãzinha, a mim! A Fiódora
fez muito bem em arranjar dinheiro. Eu, por enquanto, minha filha, não
tenho qualquer esperança de receber nada, mas, assim que renascer alguma
esperança, então tornarei a lhe escrever tudo em pormenores. Mas são os
mexericos que me preocupam mais do que tudo, os mexericos. Até logo,
meu anjinho. Beijo-lhe a mãozinha e suplico-lhe que fique boa. Não
escrevo com mais detalhes porque tenho pressa de ir para o trabalho, já que,
com esforço e zelo, quero redimir toda a minha culpa de negligência no
serviço; já a continuação da narrativa, sobre todos os incidentes e a aventura
com os oficiais, adio até a noite.
De quem a respeita e a ama de coração
Makar Diévuchkin

28 DE JULHO
Ah, Várienka, Várienka! Pois dessa vez a culpa é justamente sua, e
há de pesar na sua consciência. Com essa sua cartinha, deixou-me
desorientado, desconcertado, e só agora que estou com tempo pude penetrar
fundo em meu coração e ver que eu tinha razão, tinha toda razão. Não é ao
meu escândalo que me refiro (deixe-o para lá, minha filha, deixe-o para lá),
mas ao fato de amá-la, e amá-la não foi de modo algum uma insensatez da
minha parte. Não sabe de nada, minha filha; e olha que se ao menos
soubesse o motivo disso tudo, por que devo amá-la, então não diria isso.
Fala isso tudo assim apenas com a razão, mas estou convencido de que não
é nada disso o que lhe vai no coração.
Minha filha, nem eu mesmo sei, não me lembro bem de todo o que
se passou entre os oficiais e eu. Precisa ver, meu anjinho, que até aquele dia
eu andava na mais terrível aflição. Imagine que já fazia um mês inteiro, por
assim dizer, que estava resistindo por um fio. A situação era crítica ao
extremo. E era de você, justamente, que a escondia, aqui em casa também,
mas a minha senhoria fez barulho e rebuliço. Por mim, não teria
importância. Essa imprestável que berrasse à vontade, pois uma coisa é a
vergonha, outra coisa é que ela, sabe Deus como, soube da nossa ligação e
se pôs a gritar cada coisa a nosso respeito, para toda a casa ouvir, que fiquei
aturdido e tapei o ouvido. Acontece que os outros não taparam e, muito pelo
contrário, deram ouvidos a ela. E agora, minha filha, não sei onde me meter,
não sei...
E aí, está, meu anjinho, foi isso tudo, esse montão de desgraças de
todo tipo que, definitivamente, acabaram de vez comigo. De repente ouço
umas coisas estranhas da boca da Fiódora, que em sua casa havia aparecido
um aventureiro indigno e insultado-a com uma proposta indigna; que ele a
ofendeu, e ofendeu profundamente, julgo por mim, minha filha, porque
também me senti profundamente ofendido. E foi aí, meu anjinho, que perdi
as estribeiras, foi aí que fiquei desnorteado, completamente perdido. Saí
correndo numa fúria sem precedentes, Várienka, amiga minha, quis ir atrás
dele, do ofensor; nem mesmo sabia o que queria fazer, porque não admito,
meu anjinho, que a ofendam! Pois bem, foi triste! e na hora a chuva, a lama,
me fizeram sentir uma imensa tristeza!... Até pensei em voltar... Foi aí que
me perdi, minha filha. Encontrei Emieliá, Emielián Ilitch, um funcionário,
isto é, ele foi funcionário, mas agora não é mais funcionário, porque foi
despedido da nossa repartição. Nem sei o que faz agora, de alguma maneira
se vira; e então saímos juntos. Nisso, Várienka — bem, mas para que falar
disso, o que pode haver de divertido em ler sobre o infortúnio do seu amigo,
sobre as suas desgraças e sobre a história das tentações que sofreu? No
terceiro dia, à tarde, esse Emielián me instigou e eu fui com ele à casa desse
oficial. Seu endereço, pedi ao nosso porteiro. Se quer saber a verdade,
minha filha, fazia tempo que estava de olho nesse espertalhão; costumava
segui-lo ainda quando alugava um quarto em nossa casa. E só agora vejo
que o que fiz foi indecente, porque não estava com um aspecto normal
quando fui anunciado a ele. E, para dizer a verdade, Várienka, não me
lembro de nada; lembro apenas que em sua casa havia muitos oficiais — ou
era eu que via tudo duplicado, sabe Deus. Também não lembro do que
disse, tudo o que sei é que, em minha nobre indignação, falei muito. Bem,
foi a essa altura que me expulsaram, foi a essa altura que me atiraram
escada abaixo, quer dizer, não que tenham chegado a me atirar, apenas
deram-me um empurrão. Como voltei para casa, Várienka, já sabe; e isso é
tudo. É claro que me comprometi e que a minha reputação sofreu com isso,
mas ninguém sabe de nada, nenhum estranho sabe o que aconteceu,
ninguém, além de você, sabe; então, nesse caso, é como se não tivesse
acontecido nada. Talvez seja isso mesmo, Várienka, o que acha? O que sei
ao certo é que no ano passado em nossa casa, Aksiênti Ossípovitch teve
uma audácia desse mesmo tipo contra a pessoa de Piótr Pietróvitch, mas em
segredo, ele fez isso em segredo. Ele o fez entrar no quarto do guarda, isso
tudo eu vi por uma frestinha; e ali deu as ordens que tinha de dar, mas de
maneira distinta, porque, além de mim, ninguém viu nada; e eu não fiz
nada, isto é, quero dizer, não me pus a anunciar a ninguém. E mais, depois
disso Piótr Pietróvitch e Aksiênti Ossípovitch ficaram de bem. Piótr
Pietróvitch, como sabe, é um homem tão vaidoso que ele mesmo não disse
nada a ninguém, de modo que agora eles não só se cumprimentam como
apertam as mãos. Não estou contestando, Várienka, e nem me atrevo a
contestá-la, que me rebaixei demais e, o que é pior, que caí em meu próprio
conceito, mas decerto que isso já estava escrito desde que nasci, decerto que
esse era o meu destino — e do destino não se foge, como bem sabe. Pois
aqui está a explicação pormenorizada dos meus infortúnios e das minhas
desditas. Aqui está tudo, Várienka, tal como se passou naquela hora, e que
nem vale a pena ler. Estou um pouco adoentado, minha filha, e incapaz de
qualquer gracejo. Pelo que agora lhe testemunho meu afeto, meu amor e
meu respeito e permaneço, minha prezada senhora Varvara Alieksiêievna,
seu mais submisso criado
Makar Diévuchkin
29 DE JULHO
Prezado senhor
Makar Alieksiêievitch!
Li as suas duas cartas e estou pasma! Ouça, meu amigo, ou está me
escondendo alguma coisa, e contou-me apenas parte de todas as suas
desventuras, ou... de fato, Makar Alieksiêievitch, as suas cartas ainda dão
sinais de certa perturbação... Venha visitar-me, pelo amor de Deus, venha
hoje; e, ouça, como já sabe, venha sem rodeios, para almoçar conosco. Nem
sei ainda como está a sua situação aí e como se arranjou com a sua
senhoria. Não escreveu nada sobre isso e parece que se cala de propósito.
Então até logo, meu amigo; passe sem falta em nossa casa hoje; e o melhor
a fazer seria vir sempre almoçar conosco. A Fiódora cozinha muito bem.
Até logo.
Sua
Varvara
Dobrosiólova
1º DE AGOSTO
Varvara Alieksiêievna, minha filha!
Está contente, minha filha, por Deus lhe ter propiciado uma
oportunidade de, por sua vez, poder pagar o bem com o bem e agradecer-
me. Acredito nisso, Várienka, e acredito na bondade de seu coraçãozinho
angelical, e não falo para censurá-la, no entanto, não me acuse, como o fez,
de na minha velhice ter ficado confuso. Bem, se houve esse pecado, o que
se há de fazer! — a questão é que ouvir isso justamente de você, minha
amiguinha, me custa tanto! Mas não se zangue comigo, por dizer estas
coisas; fico com o peito apertado, minha filha. Gente pobre é caprichosa —
e é assim por disposição da natureza. Mesmo antes eu o sentia, e agora
comecei a sentir ainda mais. Ele, o homem pobre, é exigente; até para esse
mundo de Deus ele tem outra maneira de olhar, olha de soslaio para cada
transeunte, lança a seu redor um olhar confuso e fica atento a cada palavra
que ouve — não é dele que estão falando ali, diz? O que estão comentando,
como pode ser tão feioso? o que é que ele, precisamente, sente? e, por
exemplo, como será ele desse ponto de vista, como será daquele ponto de
vista? E todo mundo sabe, Várienka, que uma pessoa pobre é pior que um
trapo e não é digna de nenhum respeito da parte de ninguém, seja lá o que
for que escrevam! eles mesmos, esses escrevinhadores, podem escrever o
que for! — para o pobre vai ficar tudo como sempre foi. E por que vai ficar
na mesma? Porque num homem pobre, na opinião deles, tudo deve estar
virado do avesso; porque ele não deve ter nada de secreto, nenhuma vaidade
que seja, de jeito nenhum! Emiliá estava me dizendo outro dia que não sei
onde fizeram uma subscrição para ele, de modo que a cada dez copeques
arrecadados lhe faziam uma espécie de inspeção oficial. Eles achavam que
estavam lhe dando suas moedas de dez copeques de graça — mas, não: eles
estavam pagando para que lhes fosse exibido um homem pobre. Hoje em
dia, minha filha, até mesmo a caridade é feita de um modo esquisito... mas
talvez tenha sido sempre assim, quem é que sabe! Das duas, uma — ou não
sabem como fazê-lo, ou então são verdadeiros mestres nessa arte. Talvez
não soubessem disso, mas é como lhe digo! Em outros assuntos não nos
metemos, mas neste somos notórios! E por que é que um homem pobre
conhece isso tudo e ainda pensa nessas coisas todas? Ora, por quê? — por
experiência! Porque ele sabe, por exemplo, que o senhor ao seu lado está
indo para um restaurante em algum lugar e pensando com os seus botões: e
esse funcionário miserável, vai comer o quê hoje? porque eu vou comer
papillotes sauté, enquanto ele provavelmente vai comer mingau sem
manteiga. E o que ele tem com isso, se eu comer mingau sem manteiga? Há
homens assim, Várienka, e como há, que só pensam nessas coisas. E eles
vão andando, os pasquineiros indecentes, e olhando, por exemplo, se você
pisa na calçada de pedra com o pé inteiro ou com uma pontinha; olha lá,
dizem eles, o funcionário tal, conselheiro titular do departamento tal, com
os dedos nus saindo para fora da bota, e olha como os cotovelos estão
puídos — e depois ainda descrevem isso tudo lá do jeito deles e publicam
esse lixo... E é da sua conta se o meu cotovelo está puído? E se me perdoa a
palavra grosseira, Várienka, então eu lhe direi que um homem pobre, nesse
sentido, sente o mesmo pudor que você, para dar um exemplo, um pudor
virginal. Pois você não se poria — perdoe a palavra grosseira — a despir-se
diante de todo mundo; é precisamente disso que o homem pobre não gosta,
que fiquem bisbilhotando em seu cubículo, que digam como é a sua vida
familiar — aí é que está. E que motivo tinha então para me ofender,
Várienka, juntando-se aos meus detratores para atentar contra a honra e a
vaidade de um homem honesto!
E hoje na repartição fiquei sentado como um ursinho, como um
pardal depenado, quase me consumindo de vergonha de mim mesmo. Tive
vergonha, Várienka! É natural mesmo que você se sinta acanhado quando a
roupa deixa à mostra seus cotovelos nus e está com os botões pendendo da
linha. E em minha mesa estava tudo tão desarrumado, como se fosse de
propósito! Sem querer, você perde o ânimo. O que se há de fazer?... o
próprio Stiepan Kárlovitch se pôs a falar comigo hoje sobre um assunto,
ficou falando, falando, e depois, como que por descuido, acrescentou: “Ah,
Makar Alieksiêievitch, meu amigo, o senhor!” — nem terminou de falar o
que estava pensando, mas eu mesmo adivinhei tudo, e corei tanto que até
minha careca ficou vermelha. No fundo, isso não é nada, mas de qualquer
modo é inquietante, leva a reflexões penosas. Será que vieram a saber de
alguma coisa? Deus nos livre de virem a saber de algo! Confesso-lhe que
suspeito de uma pessoinha, e tenho fortes suspeitas. Pois esses maledicentes
não ligam para nada! traem! entregam toda a sua vida privada por uma
ninharia; para eles não existe nada de sagrado!
Já sei quem foi o autor dessa obra: foi obra de Rataziáiev. Ele tem
um conhecido no nosso departamento e, certamente, no meio da conversa,
como quem não quer nada, entregou-lhe tudo com acréscimos; ou talvez
tenha contado tudo em seu próprio departamento, e aí a história se arrastou
para o nosso. Mas no nosso alojamento todos sem exceção sabem de tudo e
apontam o dedo para a sua janela, Várienka; e bem sei que apontam. E
assim que saí ontem para ir almoçar em sua casa todos assomaram à janela,
e a senhoria disse, olha lá, o diabo se meteu com uma criança, e depois
ainda a chamou por um nome indecente. Mas nada disso se compara com a
intenção infame de Rataziáiev de nos inserir a ambos em sua literatura e nos
descrever numa sátira refinada; ele próprio disse isso, e alguns bons
companheiros de repartição vieram me relatar. Não consigo sequer pensar
em nada, minha filha, e não sei o que decidir. É preciso reconhecer que
provocamos a ira de Deus Nosso Senhor, meu anjinho! Queria mandar-me
um livro, minha filha, para me distrair. E livro para quê, minha filha! O que
é o livro? É uma invenção sobre as pessoas. Até o romance é um disparate,
e escrito para um disparate, só para que as pessoas ociosas possam ler:
acredite em mim, minha filha, acredite em minha experiência de muitos
anos. E olha lá, se vierem atordoá-la com um tal de Shakespeare, dizendo,
está vendo, na literatura há Shakespeare — pois saiba que Shakespeare
também é um disparate, tudo isso é puro disparate, e tudo feito unicamente
para pasquinada!
Se
u
Makar Diévuchkin
2 DE AGOSTO
Prezado senhor Makar Alieksiêievitch!
Não se preocupe com nada; se Deus, Nosso Senhor, quiser, tudo há de se
ajeitar. Fiódora arranjou um montão de trabalho para ela e para mim, e fomos
logo pondo mãos à obra, bem contentes. Talvez possamos reparar toda a
situação. Ela desconfia de que os meus últimos contratempos todos são do
conhecimento de Anna Fiódorovna; mas agora, para mim, tanto faz. Hoje, de
certo modo, me sinto imensamente feliz. O senhor está querendo pedir dinheiro
emprestado — que Deus o livre de uma coisa dessas! depois, quando for preciso
devolver, será um sofrimento sem fim. O melhor que tem a fazer é conviver mais
conosco, vir nos ver com mais frequência e não dar atenção a sua senhoria.
Quanto a seus outros inimigos e detratores, estou certa de que está se torturando
com suspeitas infundadas, Makar Alieksiêievitch! Preste atenção, pois lhe disse
da última vez que tem um estilo extremamente irregular. Bem, adeus, até logo.
Espero-o sem falta.
S
ua
V
. D.
3 DE AGOSTO
Varvara Alieksiêievna, meu anjinho!

Apresso-me a comunicar-lhe, minha estrelinha, que surgiu uma


esperança. Mas se me permite, minha filha — escreve-me, anjinho, para
não contrair empréstimo? Minha pombinha, é impossível passar sem eles;
se para o meu lado as coisas vão mal, o que dirá para o seu, pode ser que de
repente aconteça algo! é tão fraquinha; estou lhe escrevendo justamente
porque é necessário pegar um empréstimo sem falta. Sendo assim, continuo.
Pois saiba, Varvara Alieksiêievna, que meu lugar na repartição é ao
lado de Emielián Ivánovitch. Este não é aquele mesmo Emielián que
conhece. Este, assim como eu, é conselheiro titular e, de todo o nosso
departamento, os dois somos praticamente os funcionários mais antigos. É
uma alma boa, uma alma desinteressada, mas é meio taciturno, e tem
sempre o olhar de um verdadeiro urso. Em compensação é experiente, de
sua pena sai uma letra inglesa autêntica, e se quer que diga toda a verdade,
para escrever não me fica atrás — é um homem digno! Nunca entramos em
intimidades, limitamo-nos ao de costume: bom dia, até logo, mas se me
calha, às vezes, de precisar de um canivete, peço-lhe — digo, Emielián
Ivánovitch, dê-me o seu canivete, resumindo, não passa do que requer a
convivência. E eis que hoje vem me dizer: Makar Alieksiêievitch, por que
está tão pensativo? Vejo que é um homem que deseja o meu bem, então me
abri com ele — disse, por isso assim, Emielián Ivánovitch, quer dizer, não
disse tudo, e, além do mais, Deus me livre, não diria nunca, porque não
tenho coragem de dizê-lo, mas em algumas coisas me abri com ele, disse
que estava apertado, e assim por diante. “Pois deveria, meu amigo — diz
Emielián Ivánovitch -, pegar emprestado, ainda que fosse de Piótr
Pietróvitch, ele dá dinheiro a juros; eu mesmo peguei um empréstimo; e
cobra juros decentes — não são onerosos.” E aí, Várienka, meu
coraçãozinho começou a palpitar. Fiquei pensando, pensando, quem sabe o
Senhor não toca a alma dele, do benfeitor Piótr Pietróvitch, e ele me faz um
empréstimo. E já me pus a calcular que pagaria a senhoria e ainda a
ajudaria, além de consertar toda a minha roupa, que está uma vergonha; só
de me sentar à minha mesa chego a ter arrepios, e ainda mais porque esses
nossos zombeteiros ficam caçoando, que Deus lhes perdoe! E tem também
Sua Excelência, que às vezes passa perto da nossa mesa; e Deus me livre de
me lançarem um olhar e repararem na indecência da minha roupa! Mas para
eles o mais importante é a limpeza e o asseio. Eles mesmos talvez nem me
dissessem nada, eu é que havia de morrer de vergonha — e é o que vai
acontecer? Foi por isso que, depois de tomar coragem e meter minha
vergonha no meu bolso furado, fui procurar Piótr Pietróvitch cheio de
esperança e mais morto do que vivo de apreensão — tudo junto. Pois bem,
Várienka, isso tudo deu em nada! Ele estava ocupado com alguma coisa,
falando com Fiedóssiei Ivánovitch. Cheguei ao lado dele, puxei-o pela
manga, e disse — Piótr Pietróvitch, mas Piótr Pietróvitch! Ele se voltou, eu
continuo, e vou dizendo — coisa e tal, uns trinta rublos etc. Ele, de início,
não compreendeu, mas depois, quando lhe expliquei tudo, então pôs-se a rir,
mais nada, ficou calado. Tornei a lhe fazer o mesmo pedido. E ele então me
perguntou — o senhor tem algum penhor? E mergulhou em sua papelada,
continuando a escrever sem sequer olhar para mim. Fiquei um pouco
perplexo. Não, Piótr Pietróvitch, digo eu, não tenho penhor, e me pus a
explicar-lhe — digo que assim que receber o ordenado então lhe devolverei,
devolverei sem falta, a primeira coisa que hei de fazer será honrar a dívida.
Nisso alguém o chamou, eu o esperei, ele voltou e pôs-se a afiar a pena,
como se não reparasse em mim. Mas eu insisto — e então, Piótr Pietróvitch,
não tem um jeito? Ele se mantém calado, como se não estivesse ouvindo, eu
esperei, esperei, e, aí, pensei, vou tentar pela última vez, e puxei-o pela
manga. Ele não deu um pio sequer, afiou a pena e se pôs a escrever; então
fui embora. Está vendo, minha filha, eles devem ser todos homens decentes,
mas são orgulhosos, muito orgulhosos — e eu, sou o quê? O que somos
para eles, Várienka? Foi por isso que lhe escrevi isso tudo. Emielián
Ivánovitch também desatou a rir, abanando a cabeça, em compensação me
deu esperanças, é um homem bom. Prometeu recomendar-me a uma pessoa,
pessoa essa, Várienka, que mora nos lados de Víborgskaia* e também dá
dinheiro a juros, é um funcionário de 14ª graduação. Emielián Ivánovitch
diz que esse certamente me emprestará; amanhã, meu anjinho, vou lá — e
então? O que acha? Pois será uma desgraça se não fizer um empréstimo! A
senhoria está a ponto de me expulsar do alojamento e não concorda em me
servir o almoço. Além disso, minhas botas estão ruins demais, minha filha,
nem botões tenho... e quanta coisa mais não tenho! e se algum dos chefes
repara nessa indecência? Que desgraça, Várienka, uma verdadeira desgraça!
Makar Diévuchkin

* Bairro fabril de Petersburgo. (N. da T.)


4 DE AGOSTO
Querido Makar Alieksiêievitch!
Pelo amor de Deus, Makar Alieksiêievitch, pegue algum dinheiro
emprestado o mais depressa possível; por nada no mundo lhe pediria ainda
nas atuais circunstâncias, mas se soubesse em que situação me encontro!
Nesse apartamento não podemos ficar de jeito nenhum. Aconteceu-me uma
coisa terrivelmente desagradável, não faz ideia de como estou abalada e
aflita! Imagine, meu amigo: hoje de manhã entrou aqui um desconhecido,
um senhor de idade, quase um velho, com condecorações. Fiquei
assombrada, sem entender o que ele queria conosco. Fiódora havia saído
nessa hora para ir à venda. Ele começou a me interrogar: como vivo, o que
faço, e, sem esperar resposta, comunicou-me que é tio daquele oficial; que
está muito aborrecido com o sobrinho, por sua conduta incorreta, por ter ele
nos difamado em todo o prédio; disse que seu sobrinho é um moleque,
leviano, e que está pronto a tomar-me sob sua proteção; aconselhou-me a
não dar crédito aos jovens, acrescentou que sentia por mim a compaixão de
um pai e que estava pronto a me ajudar em tudo. Enrubesci toda, sem
sequer saber o que pensar, mas não me apressei a agradecer. Ele pegou
minha mão à força, deu-me umas palmadinhas nas faces, disse que eu era
muito bonita e que estava muitíssimo satisfeito por eu ter covinhas nas
faces (só Deus sabe o que dizia!”, e, por fim, quis me beijar, dizendo que já
era velho (ele era tão abominável!). Nisso entro Fiódora. Ele ficou um
pouco atrapalhado e recomeçou a dizer que sentia respeito por mim, por
minha modéstia, minha boa conduta, e que desejava muito que não me
esquivasse dele. Em seguida chamou Fiódora de lado, com um pretexto
estranho, e quis dar-lhe uma certa quantia em dinheiro. Fiódora,
evidentemente, não aceitou. Por fim, preparando-se para ir embora, tornou a
repetir todas as suas asseverações, disse que tornaria a vir me visitar e que
traria para mim uns brincos (ele mesmo parecia muito perturbado);
aconselhou-me a mudar de apartamento e recomendou-me um apartamento
excelente, que ele tinha em vista e que não me custaria nada; disse que
havia gostado muito de mim, por eu ser uma moça honesta e sensata,
aconselhou-me a tomar cuidado com os jovens libertinos, anunciou que
conhecia Anna Fiódorovna, e que Anna Fiódorovna o havia encarregado de
me dizer que ela própria viria fazer-me uma visita. Foi então que
compreendi tudo. Não sei o que aconteceu comigo; é a primeira vez em
minha vida que passo por semelhante situação; fiquei fora de mim; deixei-o
completamente envergonhado. Fiódora ajudou-me e praticamente o
expulsou do apartamento. Concluímos que isso tudo fora obra de Anna
Fiódorovna: de outro modo, como poderia ele saber de nós?
Dirijo-me agora ao senhor, Makar Alieksiêievitch, e imploro-lhe
ajuda. Não me deixe, pelo amor de Deus, nessa situação! Faça um
empréstimo, por favor, arranje pelo menos algum dinheiro, não temos meios
para nos mudarmos de apartamento, e permanecer aqui já não podemos de
modo algum: é o que Fiódora também aconselha. Precisamos de pelo
menos vinte e cinco rublos; eu lhe devolverei este dinheiro; hei de ganhá-lo;
Fiódora está para me arranjar mais trabalho por esses dias, de modo que, se
lhe forem fixados juros altos, não se preocupe com isso e concorde com
tudo. Eu lhe devolverei tudo, mas, pelo amor de Deus, não deixe de me
socorrer. Custa-me muito incomodá-lo nas atuais circunstâncias, mas o
senhor é a minha única esperança! Até logo, Makar Alieksiêievitch, pense
em mim, e que Deus o ajude!
V. D.

4 DE AGOSTO
Varvara Alieksiêievna, minha pombinha!
São esses golpes inesperados todos que me deixam transtornado!
São essas calamidades terríveis que me mortificam a alma! Como se não
bastasse, essa escória de bajuladores de todo tipo e de velhotes
imprestáveis, meu anjinho, quer conduzi-la a um leito de dor, e, mais ainda
— esses bajuladores querem acabar também comigo. E acabarão, juro que
acabarão! Pois, agora mesmo, prefiro a morte a deixar de socorrê-la! Se não
a socorro, isso, sim, há de ser para mim a morte, Várienka, isso seria pura e
simplesmente a morte para mim, e se a socorro, então voará para longe de
mim, como o passarinho do ninho, que esses mochos, essas aves de rapina
se juntaram para crivar de bicadas. É isso justamente o que me atormenta,
minha filha. E, além do mais, Várienka, como pode ser tão cruel! Como
pode ser? É atormentada, ofendida, meu passarinho, e, embora esteja
sofrendo, se aflige por ter de me incomodar, e ainda por cima promete
trabalhar para pagar a dívida, ou seja, isso é o mesmo que dizer que, com
sua saúde fragilzinha, se mataria para socorrer-me no prazo. Pois então,
Várienka, pense bem no que fala! Para que vai costurar, para que vai
trabalhar, torturar sua pobre cabecinha com preocupações, estragar seus
lindos olhinhos e arruinar sua saúde? Ah, Várienka, Várienka, está vendo,
minha pombinha, eu não sirvo para nada, eu mesmo sei que não sirvo para
nada, mas vou fazer tudo para ser útil! Farei de um tudo, eu mesmo hei de
arranjar trabalho por fora, vou fazer cópias de todo tipo para vários
literatos, irei até eles, irei por conta própria e me grudarei ao trabalho;
porque eles, minha filha, procuram bons copistas, eu sei que procuram, mas
deixar que se extenue não vou, não deixarei que leve adiante uma intenção
tão nociva. Farei o empréstimo, meu anjinho, preferiria morrer a não fazê-
lo. Escreve ainda, meu anjinho, para não me espantar com os juros, e não
me espantarei mesmo, minha filha, não me espantarei, não há nada no
mundo agora que possa me assustar. Pedirei quarenta rublos em notas; nem
é muito, Várienka, o que lhe parece? Acha possível que na primeira
conversa me confiem quarenta rublos de crédito? isto é, o que quero dizer é
se sou capaz de inspirar confiança e credibilidade à primeira vista. Pela
fisionomia mesmo, à primeira vista, acha possível que façam a meu respeito
um julgamento favorável? Pelo que lembra, anjinho, será que sou capaz de
convencer alguém? O que realmente lhe parece? Sabe que sinto um medo
doentio — verdadeiramente doentio! Dos quarenta rublos, vinte e cinco
ficarão a seu dispor, Várienka; dois rublos serão para a minha senhoria e o
resto será destinado a despesas pessoais. Está vendo, à senhoria mesmo
seria o caso de dar mais, seria até necessário; mas considere a situação de
conjunto, minha filha, calcule bem todas as minhas necessidades, e então
verá que não tenho como lhe dar mais, portanto, nem vale a pena falar
disso, e é melhor nem lembrar. Com um rublo de prata compro um par de
botas; nem sei se vou ser capaz de aparecer amanhã no trabalho com estas
velhas. Um lenço de pescoço também seria imprescindível, já que o velho
logo vai completar um ano; mas já que me prometeu cortar não apenas um
lenço com também um peitilho de seu avental velho, então sobre o lenço
nem vou mais pensar. De modo que botas e lenço já tenho. E agora os
botões, minha amiguinha! Pois há de concordar, minha pequena, que não
posso ficar sem botões de maneira alguma; e da minha sobrecasaca já
caíram quase a metade! Tremo só de pensar que Sua Excelência pode
reparar nesse desleixo e dizer... e o que haveria de dizer! Eu, minha filha,
nem sequer ouviria o que dissesse; já que morreria, e morreria no lugar
mesmo, literalmente, só de pensar, pegaria e morreria de vergonha! Oh,
minha filha! De modo que, depois de satisfeitas essas necessidades, restarão
três rublos; e eles serão para a sobrevivência e para meia libra de tabaco;
porque eu, meu anjinho, sem tabaco não consigo viver. E já é o nono dia
que não ponho o cachimbo na boca. Para dizer a verdade, poderia comprar e
não lhe dizer nada, mas tenho vergonha. Enquanto está aí, em desgraça,
privando-se até do essencial, estou eu aqui me esbaldando com todo tipo de
prazeres; e é por isso que lhe digo isso tudo, para não ser martirizado pelo
remorso. Confesso-lhe francamente, Várienka, que minha situação agora é
crítica ao extremo, isto é, definitivamente, nunca me havia acontecido nada
semelhante. A senhoria me despreza, ninguém tem respeito por mim; estou
na mais terrível penúria, com dívidas; e no serviço, onde antes mesmo os
colegas funcionários não eram flor que se cheire comigo — agora, então,
minha filha, nem vale a pena falar. Eu oculto, oculto tudo escrupulosamente
de todos, eu próprio me oculto, e no serviço mesmo só entro sempre de
modo furtivo, depois de me esquivar de todos. É a única pessoa a quem
encontro ânimo de confessar isso... Mas e se ele não emprestar? Oh, não,
Várienka, é melhor nem pensar nisso e não ficar mortificando a alma
antecipadamente com semelhantes pensamentos. Se lhe escrevo isso é para
preveni-la, para que não fique pensando nisso e se martirizando com maus
pensamentos. Ah, meu Deus, o que haveria de lhe acontecer então! Mas é
verdade também que nesse caso não teria de se mudar desse apartamento e
eu a teria perto de mim — não é verdade, eu nem voltaria então,
simplesmente sumiria para algum lugar, desapareceria. Bem, já lhe escrevi
muito, e ainda preciso me barbear, para ficar mais bem-apessoado, com boa
presença se consegue sempre mais. Bem, que Deus nos ajude! Vou rezar um
pouco e, depois, pôr-me a caminho!
M. Diévuchkin
5 DE AGOSTO
Amabilíssimo Makar Alieksiêievitch!
Se ao menos não se desesperasse! Já bastam as amarguras que
temos. Envio-lhe trinta copeques de prata; mais não posso de jeito nenhum.
Compre o que lhe for mais necessário para poder passar pelo menos até
amanhã. A nós mesmas não sobrou quase nada, e amanhã nem sei como vai
ser. Que tristeza, Makar Alieksiêievitch! De resto, não fique triste, se não
deu certo, então o que se há de fazer? Fiódora diz até que ainda não é o fim,
que podemos permanecer neste apartamento por mais algum tempo, que, se
tivéssemos nos mudado, ainda assim não ganharíamos muito com isso, pois,
se quiserem, nos encontrarão em qualquer parte. De qualquer modo, fica
cada vez pior continuar aqui agora. Se não fosse triste, escrever-lhe-ia sobre
um certo assunto.
Que caráter estranho o seu, Makar Alieksiêievitch! Toma tudo
muito a peito; por causa disso, será sempre o mais infeliz dos homens.
Estou lendo todas as suas cartas com atenção e vejo que em cada uma delas
se atormenta e se preocupa comigo como nunca se preocupou consigo
mesmo. Qualquer um diria, sem dúvida, que tem um bom coração, mas eu
digo que ele é excessivamente bom. Dou-lhe um conselho de amiga, Makar
Alieksiêievitch. Sou-lhe muito grata, mas muito grata mesmo, por tudo o
que fez por mim, sinto isso tudo profundamente; pois então avalie como me
sinto em ver que mesmo agora, depois de todos os nossos infortúnios, dos
quais fui involuntariamente a causadora, que mesmo agora vive apenas para
o que eu vivo: para as minhas alegrias, para as minhas tristezas, pelo meu
coração! Se for tomar tão a peito a dor alheia e se compadecer de tudo tão
profundamente, então realmente tem motivo para ser o mais infeliz dos
homens. Hoje, quando veio visitar-me após o serviço, espantei-me ao vê-lo.
Estava tão pálido, assustado, desesperado: estava lívido — e tudo porque
tinha medo de me contar sobre seu fracasso, com receio de me causar um
desgosto, de me assustar, mas foi só ver que estava me contendo para não
rir para sentir um alívio no coração. Makar Alieksiêievitch! não se
amargure, não se desespere, seja mais sensato — eu lhe peço, eu lhe
imploro isso. Vamos, vai ver que tudo há de ficar bem, tudo há de mudar
para melhor; senão lhe será muito penoso viver eternamente melancólico e
sofrendo pela dor alheia. Até logo, meu amigo, eu lhe imploro, não se
preocupe demais comigo.
V. D.

5 DE AGOSTO
Várienka, minha pombinha!
Está bem, meu anjinho, está bem! Chegou à conclusão de que não
faz mal que eu não tenha arranjado o dinheiro. Então está bem, isso me
tranquiliza e me deixa feliz. Estou até contente em saber que não vai
abandonar este velho e permanecer neste apartamento. E se é para falar
tudo, pois saiba que fiquei com o coração repleto de alegria quando vi quão
bem falou de mim em sua carta e os elogios que dedicou aos meus
sentimentos. Não é por orgulho que digo isso, mas porque vejo como gosta
de mim, ao se preocupar tanto com o meu coração. Ora, está bem; para que
ficar falando agora justamente do meu coração! O coração é como é; e, no
entanto, minha filha, ordena-me que não seja pusilânime. Sim, meu anjinho,
talvez eu próprio ache que ela não é necessária, essa pusilanimidade; mas,
diante disso tudo, julgue por si mesma, minha filha, que botas hei de calçar
amanhã para ir para o serviço? Aí é que está, minha filha; pois semelhante
pensamento pode aniquilar um homem, aniquilar completamente. Mas o
principal, minha querida, é que não é por mim que me aflijo, nem é por
mim que sofro; por mim tanto faz, mesmo que tivesse de andar num frio de
rachar sem capote e sem botas, eu aguentaria, suportaria tudo, para mim é
indiferente; sou um homem simples, sem importância — mas o que vão
dizer os outros? O que vão dizer os meus detratores, essas más línguas
todas, quando aparecer sem capote? Pois é para os outros que vestimos
capote, e mesmo as botas, talvez seja para eles que as calçamos. As botas
nesse caso, minha filha, meu benzinho, são-me necessárias para manter a
honra e o bom nome; com as botas furadas, perde-se tanto um quanto o
outro — acredite, minha filha, acredite na minha experiência de muitos
anos; ouça a mim, um velho que conhece o mundo e as pessoas, e não a
esses escrevinhadores e rabiscadores quaisquer.
Mas ainda nem lhe contei em detalhes, minha filha, como as coisas
realmente aconteceram hoje, o que passei hoje. Passei por tanta coisa, e o
peso que suportei na alma, numa única manhã, outro não suportaria num
ano inteiro. Eis como tudo aconteceu: em primeiro lugar, saí de manhã bem
cedinho para apanhá-lo em casa e ainda poder chegar a tempo no serviço.
Chovia tanto hoje, era tanta lama! Eu, minha estrelinha, agasalhei-me bem
com o capote e fui andando, o tempo todo pensando: “Senhor!, dizia
comigo, perdoe os meus pecados e fazei com que se cumpram os meus
desejos”. Passei perto da igreja de -skoi, fiz o sinal da cruz e arrependi-me
de todos os meus pecados, mas me lembrei de que era indigno de querer me
entender com o Senhor Nosso Deus. Fiquei ensimesmado, sem a menor
vontade de olhar para nada; e fui andando assim, sem atentar no caminho.
As ruas estavam desertas e só encontrava pessoas ocupadas, preocupadas, o
que não é de admirar: quem havia de sair para passear àquela hora da
manhã e com um tempo daqueles? Topei com um grupo de operários sujos;
eles me empurraram, os insolentes! A timidez tomou conta de mim, foi
horrível, para dizer a verdade, não queria mais nem pensar em dinheiro —
fui andando ao acaso, ao deus-dará! Bem junto à ponte Voskriessiénski
descolou-me a sola da bota, de modo que nem mesmo sei como continuei a
andar. Nisso topei com nosso escrivão Ermoláiev, que se esticou todo,
parou e ficou me seguindo com os olhos, como quem pede para a vodca;
pois, sim, meu amigo, pensei eu, para a vodca, que vodca o quê! Sentia-me
terrivelmente cansado, parei por um momento, descansei um pouco e
continuei a me arrastar. Pus-me então de propósito a olhar para tudo em
meu redor, queria agarrar-me a algo, ainda que fosse a pensamentos, para
tentar me distrair, para ganhar alento: mas não — não consegui me agarrar a
nada, a um pensamento sequer, e, para cúmulo, estava tão enlameado que
cheguei a sentir vergonha de mim mesmo. Por fim vi ao longe uma casa de
madeira, amarela, com um mezanino do tipo belvedere — aí está, penso eu,
pois é esta mesmo a casa de Márkov — tal como me disse Emielián
Ivánovitch. (Esse Márkov, minha filha, é o tal que empresta dinheiro a
juros.) Mas nisso fiquei tão confuso que, mesmo sabendo que era a casa de
Márkov, ainda assim perguntei ao guarda-cancela: de quem é aquela casa,
meu amigo? O guarda, um grosseirão, diz a contragosto, como se estivesse
zangado com alguém, diz por entre dentes — é isso mesmo, é a casa de
Márkov. Esses guarda-cancelas são todos uns insensíveis — mas o que me
importa o guarda? Entretanto, era como se tudo contribuísse para a
impressão má e desagradável, em suma, uma coisa sempre puxa outra; de
tudo depreendemos algo que se assemelha à nossa situação, e é sempre
assim que acontece. Fiquei dando voltas pela rua e passei três vezes perto
da tal casa, e quanto mais ando, pior fica — não, penso eu, não vai
emprestar, não vai emprestar mesmo! sou um desconhecido, e o meu caso é
um caso delicado, e, além do mais, pelo aspecto não convenço — então,
penso, que seja como o destino quiser; só para não me arrepender mais
tarde, pois não hão de me comer por tentar — e então abri o portão da casa.
Nisso aconteceu outra desgraça: um cãozinho vira-lata, estúpido e nojento
grudou em mim, começou a latir como um louco! Mas são sempre
incidentes ínfimos e ignóbeis como esse, minha filha, que acabam por
desconcertar a pessoa, enchendo-a de timidez e aniquilando todas as
resoluções que havia tomado anteriormente; de modo que, ao entrar na casa,
mais morto do que vivo, caí direto numa nova desgraça; na escuridão, sem
enxergar o que havia embaixo do umbral, ao pisar, esbarrei numa mulher,
acontece que a mulher estava passando o leite do tarro de ordenhar para o
jarro e derramou todo o leite. A imbecil da mulher se pôs a gritar com uma
voz esganiçada e a papaguear — a dizer, onde pensa que vai, criatura, o que
você está querendo? e ainda saiu amaldiçoando todos os diabos. Se faço
essa observação, minha filha, é porque sempre me acontecem coisas
semelhantes em situações desse gênero; parece que essa é a minha sina;
sempre hei de me deparar com algum imprevisto. Por causa do barulho
apareceu a senhoria, uma bruxa velha finlandesa, e me dirigi imediatamente
a ela — é aqui, digo, que mora Márkov? Não, diz; parando e medindo-me
bem com os olhos. “E o que o senhor quer com ele?” Ponho-me a explicar-
lhe, digo que etc. e tal, Emielián Ivánovitch — bem, e todo o resto -, digo
que vim a negócio. A velha chamou a filha — apareceu também a filha,
uma menina já crescida, descalça -, “vá chamar o seu pai; ele está lá em
cima com os inquilinos — faça o favor, senhor”. Entrei. A sala era razoável,
com quadros pendurados nas paredes , só retratos de generais, um divã, uma
mesa redonda, uns vasos de resedá e balsamina — me ponho a matutar,
matutar, não seria melhor ir embora enquanto é tempo, pelo meu bem, ir ou
não ir? e, juro, minha filha, que a minha vontade era fugir dali! É melhor
voltar amanhã, pensei; o tempo também vai estar melhor, e ganho algumas
horas — hoje até o leite derramei, e esses generais estão com cara de
zangados... Já ia me dirigir para a porta, mas justamente aí ele entrou —
nada de especial, grisalho, com uns olhinhos furtivos e um roupão sebento
amarrado com um cinto de corda. Pôs-se a par do que se tratava, e eu lhe
dizendo, é assim e assim, foi Emielián Ivánovitch — uns quarenta rublos,
digo; a questão é que — mas nem terminei de falar. Percebi pelos seus
olhos que era uma causa perdida. “Não, que questão o quê, diz, não tenho
dinheiro; e que penhor tem o senhor, tem algum, o que é?” Tinha começado
a explicar, a dizer que penhor não tenho, mas que foi Emielián Ivánovitch
— enfim, dou-lhe as explicações necessárias. Depois de ouvir tudo — não,
diz, que Emielián Ivánovitch que nada! não tenho dinheiro. Então, penso
eu, se é assim, que seja; já sabia disso, já pressentia — sabe, Várienka, teria
sido melhor se o chão tivesse se aberto sob os meus pés; senti frio, os pés se
enregelaram, e um calafrio percorreu-me a espinha. Fico olhando para ele e
ele olhando para mim, só faltou me dizer: dê o fora, amigo, você não tem
nada a fazer aqui — pois olha que, se isso me tivesse acontecido em outras
circunstâncias, teria morrido de vergonha. Mas para que o senhor tem
necessidade de dinheiro? (E veja a pergunta que me fez, minha filha!) Já ia
abrir a boca, só para não ficar ali parado à toa, mas ele nem quis mais ouvir,
disse — não, não tenho dinheiro; senão, diz, emprestaria com gosto. Tentei
lhe mostrar, dizer que só precisava de um pouquinho, que estava lhe
dizendo que devolveria, que lhe devolverei no prazo, e que devolveria ainda
antes do prazo, ele que cobrasse os juros que quisesse, e jurava por Deus
que lhe devolveria. Nesse instante, minha filha, mencionei o seu nome,
lembrei todos os seus infortúnios e suas necessidades, e mencionei também
a sua moedinha de cinquenta copeques — não mesmo, diz, que juros o quê,
se ao menos fosse com penhor! Do contrário, não tenho dinheiro, Deus é
testemunha de que não tenho; senão emprestaria com gosto — e ainda
jurava, o bandido!
Depois disso, minha querida, nem me lembro de como saí dali, de
como atravessei o Víborgskaia, de como fui parar na ponte Voskriessiénski,
estava terrivelmente cansado, parecendo um autômato, tiritando de frio, e só
consegui chegar no serviço às dez horas. Tinha vontade de dar uma limpada
na minha roupa enlameada, mas o Snieguirióv, o guarda, disse que não
podia, você vai estragar a escova, diz ele, e a escova, senhor, é propriedade
do Estado. É assim que me tratam agora, minha filha, de modo que até para
estes senhores devo ser pior que um trapo no qual limpam os pés. Sabe o
que acaba comigo, Várienka? Não é o dinheiro, são essas atribulações
cotidianas todas, são essas zombarias, esses cochichos, esses risinhos todos
que acabam comigo. Sua Excelência, de algum modo, pode casualmente se
dirigir a mim — ah, minha filha, já se foram meus tempos dourados! Hoje
reli todas as suas cartas; que tristeza, minha filha! Até logo, querida, que
Deus a proteja!
M. Diévuchkin
P. S. Que amargura a minha, Várienka, queria descrever-lhe tudo
meio em tom de brincadeira, só que, pelo jeito, não o consegui, esse tom de
brincadeira. Queria agradá-la. Irei vê-la, minha filha, irei vê-la sem falta,
amanhã mesmo.
11 DE AGOSTO
Varvara Alieksiêievna! minha filha, minha pombinha! Estou
perdido, estamos ambos perdidos, os dois juntos, irremediavelmente
perdidos. A minha reputação, a minha dignidade... tudo perdido! Minha
vida está destruída, a sua também está destruída, minha filha, junto com a
minha, a sua e a minha, estão irremediavelmente destruídas! E fui eu, fui eu
quem a levou à perdição! Sou perseguido, desprezado e ridicularizado,
minha filha, e a senhoria começou simplesmente a ralhar comigo; hoje
ficou gritando, passou-me uma escaldada e colocou-me abaixo de um cisco.
E à noite, no quarto de Rataziáiev, um deles se pôs a ler em voz alta o
rascunho de uma carta que lhe havia escrito e caiu de meu bolso sem que
me desse conta. Minha filha, como caçoaram! Ficavam nos dando apelidos
e não paravam de rir, os traidores! Entrei lá e acusei Rataziáiev de perfídia;
disse-lhe que era um traidor! E Rataziáiev respondeu-me que traidor era eu,
que me dedico a várias conquistas; diz ele — o senhor tem se ocultado de
nós, o senhor, diz, é um Lovelace*; e agora todos me chamam de Lovelace,
e outro nome não tenho! Está ouvindo, meu anjinho, está ouvindo — agora
eles sabem de tudo, estão a par de tudo, e sabem também sobre você, minha
querida, e sobre tudo o que lhe diz respeito, sabem de tudo. E mais! até
Faldoni se passou para o lado deles e está em conivência com eles; hoje
mandei-o à salsicharia, assim, para comprar algo; não vai e pronto, estou
ocupado, diz ele! “Mas é sua obrigação” — digo-lhe eu. “Não mesmo, diz-
me ele, não sou obrigado, o senhor não paga o dinheiro da minha patroa,
portanto, também não lhe devo obrigação.” Não pude suportar os insultos
dele, esse mujique analfabeto, disse-lhe então que era um imbecil; e ele a
mim — “ouvi isso de um imbecil”. Achei que me tivesse dito tal grosseria
por estar embriagado, e então digo — ora, você está bêbado, seu mujique
palerma! e ele a mim: “Foi o senhor que me serviu? Se tivesse como curar a
própria ressaca; o senhor próprio anda mendigando moedinhas de dez
copeques a uma dessas” — e acrescentou: “— ora, e ainda diz ser um
cavalheiro!”. Veja, minha filha, a que ponto chegaram as coisas! É uma
vergonha, Várienka, viver assim! como se fosse um pária qualquer; pior que
um vagabundo sem passaporte. Que calamidade terrível! — estou perdido,
simplesmente perdido! irremediavelmente perdido.
M. D.
(Personagem libertino do romance epistolar Clarissa (1748), do
escritor inglês Samuel Richardson. (N. da T.)
13 DE AGOSTO
Amabilíssimo Makar Alieksiêievitch! Só caem desgraças sobre nós,
uma atrás da outra, eu mesma já nem sei o que fazer! O que há de ser do
senhor agora?, as esperanças em mim não são das melhores; hoje queimei a
mão esquerda com o ferro; deixei-o cair por descuido e acabei me
queimando e me machucando, tudo ao mesmo tempo. Não tenho como
trabalhar, e Fiódora está adoentada já há três dias. Que aflição torturante!
Envio-lhe trinta copeques de prata; esse é praticamente nosso último
dinheiro, e Deus é testemunha de como gostaria de poder ajudá-lo nesse
momento de dificuldade. Tenho vontade de chorar de desgosto! Até logo,
meu amigo! Traria-me grande consolo se viesse nos visitar hoje.
V. D.
14 DE AGOSTO
Makar Alieksiêievitch! O que lhe aconteceu? Não tem temor a
Deus, decerto! O senhor vai, simplesmente, me fazer enlouquecer. Será que
não se envergonha? Está se arruinando, pense só na sua reputação! É um
homem honesto, nobre, digno — pois, então, o que fará quando todos
souberem o que anda fazendo? Simplesmente, há de morrer de vergonha!
Ou será que não tem pena dos seus cabelos brancos? Então não tem temor a
Deus? Fiódora disse que agora já não tornará a ajudá-lo, e eu mesma não
lhe darei mais dinheiro. A que ponto me levou, Makar Alieksiêievitch!
Decerto pensa que pouco me importa que se comporte tão mal; ainda não
sabe o que tenho suportado por sua causa! Não posso sequer passar pelas
nossas escadas: todos me olham, me apontam com o dedo, e dizem coisas
terríveis; dizem-me na cara que ando metida com um bêbado. Como me é
penoso ouvir isso! Quando o trazem carregado para casa, todos os
inquilinos apontam para o senhor com desprezo: olha lá, dizem, trouxeram
aquele funcionário carregado. Eu mesma não me aguento mais de vergonha
pelo senhor. Juro que me mudo daqui. Vou para qualquer lugar trabalhar
como arrumadeira, lavadeira, mas aqui não fico. Pedi-lhe para dar uma
passada aqui em casa e não passou. Parece que meus pedidos e minhas
lágrimas nada significam para o senhor, Makar Alieksiêievitch! E onde foi
que arranjou dinheiro? Pelo amor do Nosso Criador, tome cuidado. Pois
está se arruinando, e se arruinando por nada! E a vergonha, e a tamanha
desonra! Ontem sua senhoria nem sequer o deixou entrar, o senhor pousou
no abrigo: estou a par de tudo. Se soubesse como me foi penoso ouvir isso.
Venha nos visitar, há de se alegrar conosco; vamos ler juntos e recordar o
passado. Fiódora nos contará sobre suas peregrinações por lugares santos.
Por mim, meu pombinho, não destrua a sua vida e também a minha. Pois é
para o senhor unicamente que vivo, para o senhor, e permanecerei com o
senhor. E é assim que se comporta agora? Seja nobre e firme em suas
provações; lembre-se de que pobreza não é defeito. Então por que se
desesperar: isso tudo é passageiro! Se Deus quiser — tudo há de se arranjar,
é só o senhor agora começar a se conter. Estou lhe enviando vinte copeques,
compre tabaco ou o que lhe apetecer, mas, pelo amor de Deus, não os gaste
com coisas nefastas. Venha nos visitar, venha sem falta. Talvez volte a
sentir vergonha, como antes; mas não se envergonhe: esta é uma falsa
vergonha. Basta que traga um arrependimento sincero. Tenha fé em Deus.
Ele há de fazer com que tudo se arranje para melhor.
V. D.
19 DE AGOSTO
Varvara Alieksiêievna, minha filha!
Sinto-me envergonhado, Varvara Alieksiêievna, minha estrelinha,
estou morto de vergonha. Se bem que, o que há nisso de tão especial, minha
filha? Por que então não dar um pouco de alegria ao meu coração? E nesse
caso já nem estou pensando em minhas solas, porque a sola é uma tolice, e
permanecerá sempre uma simples sola, vulgar e suja. Mesmo as botas
também são uma tolice! Os sábios gregos mesmo andavam muitas vezes
sem botas, então por que justamente nós aqui havemos de nos desfazer em
cuidados com um objeto tão indigno? Então por que hão de me ofender, de
me desprezar, num caso desses? Ah, minha filha, minha filha, encontrou
assunto para escrever! E, para Fiódora, diga-lhe que é uma mulher
rabugenta, irrequieta, desvairada e, ainda por cima, estúpida,
indescritivelmente estúpida! Quanto aos meus cabelos brancos, também
sobre isso está enganada, minha querida, porque não sou absolutamente tão
velho quanto pensa. Emieliá lhe manda lembranças. Diz em sua carta que
chora e se sente amargurada, e eu lhe digo que também eu choro e me sinto
amargurado. Para encerrar, desejo-lhe muita saúde e bem-estar, e continuo,
meu anjinho, o seu amigo de sempre.
Makar Diévuchkin
21 DE AGOSTO
Minha prezada senhora e querida amiga
Varvara Alieksiêievna!
Sinto-me culpado, sinto que cometi uma falta para com você, mas
na minha opinião não há nenhuma vantagem nisso, minha filha, no fato de
sentir isso, diga lá o que disser. Antes ainda de cometer a minha
contravenção já sentia isso tudo, mas, também, havia perdido o ânimo, e o
havia perdido por ter consciência da minha culpa. Minha filha, não sou um
homem mau nem duro de coração; e, no entanto, para dilacerar seu
coraçãozinho, minha pombinha, seria preciso ser nada mais nada menos que
um tigre sedento de sangue, e eu, o que tenho, é um coração de cordeiro, e
como sabe não tenho inclinações à sede de sangue; consequentemente, meu
anjinho, não sou de todo culpado por minha contravenção, assim como
também não o são o meu coração e os meus pensamentos; e, se é assim,
nem eu mesmo sei de quem é a culpa. É uma coisa tão obscura, minha filha!
Enviou-me trinta copeques de prata e depois enviou-me mais vinte; partiu-
me o coração olhar para o seu dinheirinho de orfãzinha. Com a mãozinha
queimada e a ponto de passar fome, escreve-me, no entanto, para comprar
tabaco. Ora, como havia eu de proceder num caso desses? Havia,
simplesmente, sem remorsos na consciência, como um bandido, de pôr-me
a roubá-la, a roubar uma orfãzinha? Foi aí que perdi o ânimo, minha filha,
quer dizer, a princípio, ao sentir sem querer que não presto para nada e que
eu mesmo talvez seja pouca coisa melhor que a sola do meu sapato,
considerei indecoroso tomar-me por qualquer coisa de significativo, e, ao
contrário, eu próprio passei a me considerar um tanto inconveniente e, em
certa medida, indecoroso. Bem, e uma vez que havia perdido o respeito por
mim mesmo, me entregado à negação de minhas qualidades boas e da
minha dignidade, veio também a queda! Isso já estava determinado assim
pelo destino, e disso não tenho culpa. Primeiro saí de casa apenas para
tomar um pouco de ar. E aí as coisas foram acontecendo uma atrás da outra:
o dia estava tão lacrimoso, um tempo frio, chovia, e foi aí que surgiu
Emieliá. Ele, Várienka, já penhorou tudo o que possuía, tudo o que tinha foi
para penhor, e quando o encontrei, já fazia dois dias inteiros que não punha
sequer uma gota de orvalho de papoula na boca, de modo que já estava
querendo penhorar algo que não se pode penhorar de forma alguma, porque
não existem penhores dessa natureza. Pois bem, Várienka, cedi mais por
compaixão humana do que propriamente por gosto. E foi assim que esse
pecado foi cometido, minha filha! Como choramos os dois juntos!
Lembramos de você. Ele é uma boa pessoa, é um homem muito bondoso e
bastante sensível. Eu mesmo, minha filha, sinto isso tudo; e é porque
comigo também acontece a mesma coisa que sinto isso muito intensamente.
Sei o quanto lhe sou devedor, minha pombinha! Ao conhecê-la, em
primeiro lugar, comecei a me conhecer melhor e comecei a amá-la; até
então, meu anjinho, eu era solitário, era como se estivesse dormindo nesse
mundo, ao invés de viver. Eles, os meus detratores, diziam que até mesmo o
meu aspecto era indecente, e me desprezavam, então, passei a me desprezar
também; diziam que eu era um bronco, e eu achava mesmo que era um
bronco, e quando você apareceu para mim, iluminou toda a minha vida
sombria, iluminou-me até o coração e a alma, e eu encontrei paz de espírito,
compreendi que não era pior que os outros; que apenas não sou brilhante
em coisa alguma, não tenho polimento, não tenho estilo, mas que ainda
assim sou um homem, que, por meu coração e por meus sentimentos, eu
sou um homem. Mas agora, ao me sentir perseguido pelo destino,
humilhado por ele, entreguei-me à negação de minha própria dignidade,
estava descorçoado da minha pobreza, perdi até o ânimo. E agora que já
sabe de tudo, minha filha, eu lhe suplico, com lágrimas, para que não me
pergunte mais sobre esse assunto, já que ele me dilacera o coração, além de
ser-me amargo e penoso.
Apresento-lhe, minha filha, os meus cumprimentos e continuo seu
fiel
Makar Diévuchkin
3 DE SETEMBRO
Não cheguei a terminar a última carta, Makar Alieksiêievitch,
porque para mim estava sendo penoso escrever. Há momentos às vezes em
que me sinto feliz por estar sozinha, por poder ficar triste sozinha, sentir
saudades sozinha, sem ter de partilhá-los, e estes momentos começam a se
tornar cada vez mais frequentes. Em minhas recordações há algo que me é
tão inexplicável que, sem que me dê conta, absorve-me com tal força, a
ponto de deixar-me horas a fio insensível a tudo o que me rodeia, esquecida
de tudo, de todo o presente. E não há na minha vida atual uma só
impressão, seja agradável, penosa ou triste, que não me recorde de algo
semelhante do meu passado, e, na maioria das vezes, da infância, da minha
infância dourada! Mas, passados esses momentos, começo a sentir sempre
um grande pesar. Sinto-me mais fraca, esgotada por minha natureza
sonhadora, mas mesmo sem isso minha saúde piora a cada dia.
Porém, a manhã fresca, clara e brilhante de hoje, como poucas no
outono daqui, trouxe-me de volta à vida e eu a saudei com alegria. Pois é, já
estamos no outono! Como eu gostava do outono no campo! Era ainda uma
criança nessa época, mas já sentia muita coisa. Gostava mais das tardes do
que das manhãs de outono. Lembro-me de que a dois passos da nossa casa
havia um lago, ao sopé de uma montanha. Esse lago — parece-me que o
estou vendo agora — é um lago tão largo, claro e puro como um cristal! Se
calha de a tarde estar calma — o lago fica sereno; nas árvores que crescem
na margem, nem uma folha se mexe, a água imóvel parece um espelho. O
frescor! o frio! O orvalho caindo na relva, as luzes acesas nas isbás perto da
margem, o rebanho sendo conduzido — nessa hora escapo de casa às
escondidas, para ver o meu lago, e às vezes fico contemplando-o tão
absorta. À beira da água, um feixe de ramos secos arde na fogueira dos
pescadores, e sua luz se derrama pela água até bem longe. O céu é tão frio e
azul, todo dividido no horizonte por faixas vermelhas, ígneas, e essas faixas
se tornam cada vez mais pálidas; a lua aparece; o ar é tão sonoro que, se um
pássaro assustado levanta voo, se um junco começa a sussurrar sob a brisa
suave ou um peixe chapinha na água — pode-se ouvir tudo. Da água azul
sobe um vapor branco, fino e transparente. O horizonte escurece; tudo
parece mergulhar na névoa, mas de perto é tudo tão nitidamente torneado,
como que talhado a cinzel — o barco, a margem, as ilhas; um barril lançado
à margem e esquecido balouça na água de modo quase imperceptível, um
ramo de salgueiro com as folhas amareladas se emaranham nos juncos —
uma gaivota atrasada levanta voo, ora mergulha na água fria, ora torna a
desaparecer na névoa. Eu não me cansava de ver, de ouvir — sentia-me
maravilhosamente bem! E ainda era uma criança, criança pequena!...
Como eu gostava do outono — do outono tardio, quando já estão
segando o trigo e a lida está chegando ao fim, quando vão começar os
serões nas isbás e todos já estão à espera do inverno. Tudo nessa época se
torna mais sorumbático, o céu se cobre de nuvens, folhas amarelas
estendem-se pelos atalhos nos confins do bosque desnudo, e o bosque fica
azul, enegrece — sobretudo ao cair da tarde, quando desce uma névoa
úmida, e as árvores parecem surgir momentaneamente da névoa como
gigantes, como fantasmas terríveis e monstruosos. Quando a gente se atrasa
no passeio, fica para trás, apartada dos outros, e tem de voltar sozinha e
apertar o passo — é horrível! Eu mesma tremo como uma folha; e agora,
penso, e se olhar e aparecer alguém terrível por detrás daquele oco da
árvore? enquanto isso o vento passa zunindo pelo bosque, começa a
farfalhar, a rugir, a silvar, a uivar tão lastimosamente, a arrancar nuvens de
folhas dos ramos mirrados, fazendo-as redemoinhar no ar; e atrás delas
passa um bando comprido, largo e ruidoso de pássaros com gritos
selvagens, estridentes, que enegrece o céu, deixando-o todo encoberto por
eles. O medo cresce e, nisso, é como se começasse a ouvir alguém — a voz
de alguém, como se alguém estivesse sussurrando: “Corra, filha, corra, não
se atrase; de um momento para outro vão acontecer coisas medonhas aqui,
corra, filha!” — uma sensação de horror trespassa-me o coração, e eu corro,
corro tanto que chego a ficar sem respiração. Chego em casa ofegante; em
casa há barulho, alegria; o trabalho será distribuído entre todas nós, as
crianças: descascar ervilhas ou sementes de papoula. A lenha úmida crepita
no fogão; contente, a mãezinha cuida do nosso trabalho alegre; a velha ama
Uliana conta-nos coisas sobre os tempos antigos ou causos terríveis sobre
feiticeiros e mortos. Nós, as crianças, apertamo-nos uma amiga na outra,
todas com um sorriso nos lábios. E eis que de repente nos calamos todas ao
mesmo tempo... escuta! um barulho! parece que estão batendo à porta! Não
é nada; é o ruído da roca da velha Frólovna; o que rimos! Mas depois, à
noite, não conseguimos dormir, de medo; temos sonhos tão terríveis. Às
vezes acordo e fico tremendo debaixo do cobertor até amanhecer, não me
atrevo sequer a me mexer. Mas de manhã acordo fresca como uma
florzinha. Olho pela janela: o campo estava todo crestado pela geada; a
escarcha fina de outono pendia dos ramos nus; o lago estava coberto de
gelo, fino como uma folha de papel; um vapor branco se levanta sobre o
lago; os passarinhos gritam alegremente. O sol ilumina tudo em volta com
seus raios brilhantes, e os raios partem o gelo fino como se fosse vidro. Há
luz, claridade, alegria! No fogão, o fogo torna a crepitar; sentamo-nos todos
junto do samovar, e o nosso cão preto, Polkan, tiritante do frio da noite,
espreita-nos através da janela, abanando o rabo para nos saudar. Um
mujique montado em seu cavalinho bem-disposto passa próximo da janela
em direção do bosque, vai em busca de lenha. Estamos todos tão satisfeitos
e tão alegres!... Ah, que infância dourada foi a minha!...
Agora estou eu aqui chorando, feito criança, levada por minhas
recordações. As lembranças são tão vivas, mas tão vivas, todo o passado
surgiu diante de mim com tanta nitidez que o presente me parece tão turvo e
obscuro... Que fim terá isso, qual será o fim disso tudo? Sabe de uma coisa?
tenho uma espécie de pressentimento, de convicção, de que vou morrer
neste outono. Estou muito, muito doente. Estou sempre achando que vou
morrer, mas, apesar de tudo, não queria morrer assim — deitar nessa terra
daqui. Talvez torne a cair de cama, como aconteceu na primavera e nem
consegui ainda me recuperar. Agora mesmo me sinto muito mal. Fiódora
passará o dia todo fora hoje e eu vou ficar sozinha. De uns tempos para cá
comecei a sentir medo de ficar sozinha; tenho sempre a sensação de que há
uma outra pessoa no quarto comigo, de que alguém fala comigo; sobretudo
quando me entrego a algum pensamento, e depois de súbito caio em mim e
fico apavorada. Aí está o porquê de lhe ter escrito uma carta tão longa;
quando estou escrevendo, isso passa. Até logo: termino a carta porque não
tenho nem papel nem tempo. Do dinheiro que recebi pelos meus vestidos e
pelo chapéu restou-me apenas um rublo de prata. O senhor deu à senhoria
dois rublos de prata; fez muito bem; ela agora vai ficar calada por alguém
tempo.
Dê um jeito de melhorar o seu vestuário. Até logo; estou tão
cansada, não compreendo por que fico assim tão fraca; o menor esforço me
deixa esgotada. Se me aparecer trabalho, como vou trabalhar? É isso que
me mata.
V. D.
5 DE SETEMBRO
Várienka, minha pombinha!
Foram tantas as sensações que experimentei hoje, meu anjinho. Em
primeiro lugar, senti dor de cabeça o dia todo. Saí para tomar um pouco de
ar e dar uma volta pelo Fontanka. Estava uma tarde tão escura e úmida. Esta
época é assim — às cinco horas já começa a anoitecer! Não estava
chovendo, mas em compensação havia neblina, o que às vezes é pior que
uma boa chuva. Faixas compridas e largas de nuvens passavam pelo céu.
Era um não acabar mais de gente andando pelas margens, e uma gente que
parecia estar de propósito com rostos tão assustadores, desalentados, eram
mujiques bêbados, umas finlandesas de nariz arrebitado com botas e cabeça
descoberta, operários, cocheiros, funcionários como eu a serviço; uns
meninos, um aprendiz de serralheiro qualquer de avental listrado,
macilento, mirrado, com a cara respingada de graxa e com cadeados na
mão; um soldado reformado de estatura colossal — este era o tipo de
público. A essa hora, por certo, o público nem poderia ser outro. O
Fontanka é um canal navegável! São barcas que não acabam mais, nem dá
para entender como podem caber todas ali. Nas pontes ficam sentadas umas
mulheres com pães de mel molhados e maçãs podres, e umas mulheres
sempre sujas, molhadas. É entediante passear no Fontanka! Sob os pés o
granito molhado, dos lados prédios altos, escuros, cobertos de fuligem; é
nevoeiro sob os pés, nevoeiro sobre a cabeça. A tarde estava tão escura e
tristonha hoje.
Quando virei para a rua Gorókhovaia já havia escurecido
completamente e o gás começava a ser acendido. Havia um bom tempo que
não ia à Gorókhovaia — por falta de oportunidade. É uma rua barulhenta!
Que luxo são as vendas, as lojas; tudo aceso e brilhando tanto, os tecidos, as
flores atrás das vitrines, os chapeuzinhos com fitas de todo tipo. Pode-se
pensar que isso tudo está exposto assim para enfeitar — mas não: pois há
pessoas que compram isso tudo e presenteiam suas esposas. É uma rua
magnífica! Muitos padeiros alemães vivem na Gorókhovaia; também
devem ser gente muito abastada. É tanta carruagem que passa a todo
instante, como o pavimento suporta isso tudo? São carruagens tão
esplêndidas, os vidros são como espelhos, por dentro é tudo de veludo e
seda; os lacaios dos fidalgos usam dragonas e espadas. Fiquei espiando para
dentro de todas as carruagens, só há damas nelas, tão enfeitadas, talvez
sejam até princesas e condessas. Decerto era a hora em que todas correm
para os bailes e serões. Deve ser curioso ver de perto uma princesa, ou
mesmo uma dama ilustre; deve ser muito bom; eu nunca vi; a não ser assim,
como agora, espiando para dentro da carruagem. Lembrei-me logo de você.
Ah, minha pombinha, minha querida! Agora, quando me lembro de você,
fico com o coração apertado! Por que tem de ser tão infeliz, Várienka? Meu
anjinho! em que é pior do que elas todas? Para mim é tão boa, maravilhosa
e culta, por que tinha de lhe caber então um destino tão cruel? Por que isso
acontece sempre assim, de modo que uma pessoa boa vive em desolação,
enquanto a outra qualquer é a própria felicidade que vem lhe assediar? Eu
sei, eu sei, minha filha, que não se deve pensar assim, que isso é livre-
pensamento; mas, sinceramente, para dizer a verdade verdadeira, por que
para um a gralha do destino grasna a felicidade ainda no ventre materno,
enquanto outro sai do internato direto para esse mundo de Deus? E olha que
acontece também com frequência de um Ivánuchka* bobão alcançar essa
felicidade. Você, Ivánuchka bobão, diz a sorte, meta a mão nos sacos de
dinheiro dos seus avós, beba, coma e divirta-se; mas você, seu isso e mais
aquilo, contente-se em lamber os beiços; você, diz, é isso o que merece,
meu amigo, com você é assim! É pecado, minha filha, é pecado pensar uma
coisa dessas, mas, nesse caso, é o pecado que nos penetra na alma quase
sem querer. Se também pudesse andar numa carruagem como essas, minha
querida, minha estrela. Seriam os generais a captar o seu olhar benévolo —
e não gente como nós; andaria vestida com seda e ouro, e não com
vestidinhos velhos de algodão. Não estaria magrinha e mirradinha como
agora, mas como uma figurinha de açúcar, toda fresquinha, roliça e rosada.
E eu então já me daria por feliz só de poder vê-la da rua através da janela
nitidamente iluminada, mesmo que distinguisse apenas a sua sombra; só de
pensar que ali estaria feliz e contente, meu lindo passarinho, também eu me
alegraria. Mas o que acontece agora? Como se não bastasse que pessoas
más lhe tenham estragado a vida, qualquer calhorda, vadio a ofende. Porque
a casaca lhe assenta como uma luva, porque o lornhão com que o
desavergonhado a olha é de ouro, faz o que bem entende, e você ainda tem
de ouvir com resignação as palavras indecentes dele! Basta, não é,
pombinha? E por que as coisas têm de ser assim? Porque é órfã, porque é
indefesa, porque não tem um amigo forte, que lhe possa dar um amparo
decente? Pois que tipo de homem é esse, que tipo de gente é essa, a quem
não custa nada ofender uma órfã? Isso é lixo, não é gente, é simplesmente
lixo; são apenas enumerados como gente, mas na verdade não o são, e disso
estou certo. É isso o que essa gente é! Mas, na minha opinião, minha
querida, aquele tocador de realejo que encontrei hoje na Gorókhovaia
inspira muito mais respeito do que eles. Embora ande o dia todo e se
esfalfe, à espera de um tostão furado, imprestável para o seu sustento, em
compensação é senhor de si mesmo e garante o próprio sustento. Não quer
pedir esmolas, em compensação trabalha para o prazer das pessoas, como
uma máquina de engrenagem — aí está, diz ele, com o que lhes posso
proporcionar prazer. É pobre, é verdade que é pobre, sempre foi pobre
assim; mas em compensação é um pobre honrado; pode estar cansado,
transido de frio, mas está sempre trabalhando, embora à sua maneira, mas
ainda assim trabalha. E há muita gente honesta, minha filha, que pode
ganhar pouco, na medida da utilidade de seu trabalho, mas não se verga a
ninguém, nem vai pedir pão a ninguém. Pois também sou exatamente
assim, como esse tocador de realejo, quer dizer, eu não sou assim, não sou
absolutamente como ele, mas num certo sentido, no que se refere à
distinção, à nobreza sou exatamente assim, como ele, trabalho na medida
das minhas forças, faço o que posso, por assim dizer. Mais não posso fazer;
e se não posso, então, paciência.

Diminutivo depreciativo de Ivan. Referência a personagens dos


contos populares russos que, com suas artimanhas, sempre
conseguem o que desejam. (N. da T.)

Pus-me a falar desse tocador de realejo, minha filha, porque calhou-


me hoje de sentir em dobro a minha pobreza. Parei para ver o tocador de
realejo. Arrastavam-se-me à cabeça uns pensamentos — então eu parei,
para dissipá-los. Estávamos ali eu, uns cocheiros, uma jovenzinha e havia
ainda uma garota pequena, toda suja. O tocador de realejo se instalou
debaixo de uma janela. Noto a presença de um garotinho, um menino de
uns dez anos; era para ser bonitinho, se não fosse seu aspecto tão enfermiço
e mirrado, estava só com uma camisinha e alguma outra coisa mais,
praticamente descalço, ouve a música boquiaberto — o que é a infância!
olhava admirado como dançam as bonecas do alemão; as mãos e os pés
estão congelados, mas mordisca a pontinha da manga tiritando. Reparo que
tem nas mãos um papelzinho. Passou um senhor e atirou uma moedinha
pequena ao tocador de realejo; a moedinha foi cair precisamente numa
caixa com um cercadinho, na qual era exibido um francês que dançava com
as damas. Mal a moedinha tilintou, o meu menino estremeceu, olhou
timidamente em redor e, pelo visto, pensou que fora eu a dar o dinheiro.
Correu para mim, com as mãozinhas tremendo, a vozinha tremendo,
estendeu-me o papelzinho, e diz: é um bilhete! Desdobrei o papel — o que
já era de se esperar: dizia, meus benfeitores, uma mãe de três filhos está
morrendo, as crianças estão passando fome, então ajude-nos agora e assim,
quando morrer, não os esquecerei no outro mundo, meus benfeitores, por
não terem agora se esquecido de meus pequeninos. E daí, nada de mais; a
situação é clara, isso é uma coisa corriqueira, mas o que podia eu lhe dar? E
não lhe dei nada. Mas que pena me deu! Um menino palidozinho, azulado
de frio, talvez também faminto, e não está mentindo, realmente, não está
mentindo; conheço bem essas coisas. O mal está nessas mães desnaturadas
que não cuidam dos filhos e os mandam para a rua seminus com bilhetes
num frio desses. Talvez ela seja uma mulher estúpida, sem caráter; pode ser
até que não tenha ninguém para ajudá-la e tenha mesmo de ficar em casa,
com as pernas encolhidas e doente de verdade. Mas, assim mesmo, deveria
se dirigir ao devido lugar; mas, pensando bem, talvez seja simplesmente
uma vigarista, que envia uma criança faminta e mirrada de propósito, para
enganar as pessoas, e a leva a adoecer. E o que há de aprender o pobre
menino com uns bilhetes desses? Só hão de endurecer-lhe o coração; fica só
andando, correndo, pedindo. As pessoas passam, mas não têm tempo para
ele. Elas têm coração de pedra; suas palavras são cruéis. “Dá o fora!
desaparece! malandro!” É isso o que ele ouve de todos, seu coração de
criança vai endurecendo, e o menino assustado e palidozinho, como se fosse
um passarinho que caiu do ninhozinho destruído, treme de frio em vão. Tem
as mãos e os pés gelados, sua respiração é ofegante. Você olha, ei-lo já
tossindo; nem há muito o que esperar para que a doença, qual um réptil
imundo, se ponha a rastejar para o seu peito, e quando você olha, a morte já
paira sobre ele em algum canto fedorento, sem saída, sem socorro — e aí
está toda a sua vida! Há vidas que são assim mesmo! Oh, Várienka, que
martírio é ouvir um pelo amor de Deus e fazer de conta que não percebeu,
não dar nada, e dizer: “Que Deus lhe ajude”. Há certos pelo amor de Deus
que não nos comovem. (Há vários tipos de pelo amor de Deus, minha filha.)
Há um que é longo, esticado, habitual, decorado, de mendigo mesmo; a esse
ainda não é tão martirizante não dar esmola; esse é um mendigo inveterado,
de longa data, mendigo por ofício, esse está habituado, você pensa, ele
aguenta e sabe como aguentar. Mas há um pelo amor de Deus que é
insólito, rude, assustador — como um de hoje, quando fui pegar o bilhete
do menino, perto da cerca mesmo parou um homem, e não era para todos
que pedia, diz-me: “Meu senhor, dê-me uma moeda, pelo amor de Deus!”
— sua voz era tão entrecortada e rude que estremeci, tomado por um
sentimento terrível, mas não lhe dei a moeda: não tinha. E depois a gente
rica não gosta de ouvir os pobres se queixando da sua má sorte — dizem
que incomodam, que são impertinentes! A pobreza é sempre impertinente
mesmo — talvez porque seus gemidos famintos lhes perturbem o sono!
Devo confessar-lhe, minha querida, que comecei a descrever-lhe
isso tudo em parte para aliviar o coração, mas mais para lhe mostrar um
exemplo de como é bom o estilo das minhas composições. Pois com certeza
há de reconhecer por si mesma, minha filha, que de algum tempo para cá
meu estilo começou a se formar. Mas agora apoderou-se de mim uma
angústia tão grande que eu próprio comecei a sentir compaixão dos meus
pensamentos até o fundo da minha alma, embora eu mesmo saiba, minha
filha, que a compaixão não leva ninguém a nada, mas mesmo assim é uma
maneira de fazermos justiça a nós mesmos. E, realmente, minha querida,
muitas vezes a gente se destrói sem qualquer motivo, não dá um vintém por
si mesmo e se coloca abaixo de um caco qualquer. Mas se puder me
expressar com uma comparação, então, talvez isso aconteça porque eu
mesmo estou me sentindo intimidado e acuado, como deve ser o caso do
menino pobrezinho que me pediu uma esmolinha. Agora vou lhe falar,
digamos, alegoricamente, minha filha; então ouça-me bem: acontece-me às
vezes, minha querida, de manhã cedo, quando estou indo para o trabalho, de
contemplar a cidade, como ela acorda, levanta, fumega, ferve e faz ruídos
— e aí às vezes, diante de um tal espetáculo, você se deprecia, como se
tivesse levado um piparote de alguém no nariz curioso, e então larga mão de
tudo, baixa a crista e se arrasta pelo seu caminho, mais quieto que a água e
mais encolhido que a grama! Agora veja bem o que se passa nesses prédios
de aluguel grandes, enegrecidos e cobertos de fuligem, aprofunde-se bem
nisso e então julgue por si mesma se fui justo ao me colocar sem razão
abaixo de um caco, entrando numa confusão indigna. Repare, Várienka, que
estou falando alegoricamente, e não no sentido direto. Bem, vejamos, o que
se passa dentro desses prédios? Ali, em algum canto enfumaçado, num
cubículo úmido qualquer que por necessidade se chama de apartamento, um
artesão qualquer acaba de acordar; passou a noite toda sonhando, para dar
um exemplo, com as botas que ontem, por descuido, cortou demais, como
se a pessoa tivesse de sonhar justamente com uma porcaria dessas! Bem,
está certo que é um artesão, um sapateiro: é perdoável que só pense em seu
trabalho o tempo todo. Tem lá em casa os filhos que choram e a mulher
faminta; e não são apenas os sapateiros que às vezes se levantam assim,
minha querida. Isso não quer dizer nada, e nem valeria a pena escrever
sobre isso, no entanto olhe a circunstância que resulta disso, minha filha: ali
mesmo, naquele mesmo prédio, um andar acima ou abaixo, em salões
dourados, um senhor riquíssimo talvez tenha passado a noite sonhando com
as mesmas botas, isto é, botas de um outro tipo, de um outro modelo, mas
apesar de tudo botas; já que nesse sentido aqui por mim pressuposto, minha
filha, todos nós, minha querida, somos um pouco sapateiros. E isso não tem
nada de mais, o mal está em não haver ninguém junto desse senhor
riquíssimo, não haver uma única pessoa que lhe sussurre ao ouvido, que lhe
diga: “pare de pensar nisso, de pensar só em si mesmo, de viver só para si
mesmo, ora, você não é sapateiro, seus filhos estão com saúde e sua mulher
não precisa mendigar para comer; olha à sua volta, será que não encontrará
um objeto mais nobre do que suas botas para as suas preocupações?”. Era
isso o que queria lhe dizer alegoricamente, Várienka. Esse talvez seja um
pensamento avançado demais, minha querida, mas esse pensamento às
vezes me ocorre, às vezes ele vem e aí, sem querer, escapam-me do coração
palavras ardentes. E é por isso que não havia motivo para eu considerar que
não valho um vintém, ao me assustar com o barulho e o trovão! Para
concluir, minha filha, talvez ache que estou lhe dizendo uma calúnia, ou que
estou deprimido, ou que copiei isso de algum livro? Não, minha filha, não
se engane — não é isso: tenho nojo da calúnia, não estou deprimido nem
copiei nada de livro nenhum — aí é que está!
Cheguei em casa num estado de espírito deplorável, aqueci a água
de minha chaleira, sentei-me à mesa e me preparei para tomar um ou dois
copinhos de chazinho. De repente vejo Gorchkov, nosso inquilino pobre,
entrando em meu quarto. Já de manhã reparei que ele passou o tempo todo
rodeando os inquilinos e querendo se aproximar de mim. E, diga-se de
passagem, minha filha, a vidinha deles é incomparavelmente pior que a
minha. E como! a mulher, os filhos! De modo que, se eu fosse Gorchkov,
nem sei o que faria no lugar dele! Pois bem, meu Gorchkov entrou, faz uma
reverência, como sempre tem nas pestanas uma lagrimazinha remelenta,
arrasta os pés, mas ele mesmo não consegue dizer as palavras. Instalei-o
numa cadeira, por sinal quebrada, pois não havia outra. Ofereci-lhe um
chazinho. Ele pediu desculpas, ficou se desculpando, no entanto acabou
pegando um copo. Estava querendo tomá-lo sem açúcar e recomeçou a
pedir desculpas, quando me pus a convencê-lo de que era necessário
colocar açúcar, passou um tempo discutindo, recusando, até que colocou em
seu copo o menor torrãozinho e pôs-se a assegurar-me de que o chá estava
doce demais. Veja a que ponto de depreciação a miséria leva uma pessoa!
“Mas, e então, o que há, meu amigo?” — disse-lhe eu. “Sabe o que é, diz
ele, o senhor é o meu benfeitor, Makar Alieksiêievitch, tenha piedade,
preste uma ajuda a uma família infeliz; minha mulher e meus filhos não têm
o que comer; veja como é penoso para mim, o pai deles, dizer isso!”
Dispunha-me já a falar, mas ele me interrompeu: “Eu, aqui, diz ele, tenho
medo de todos, Makar Alieksiêievitch, quer dizer, não que tenha medo,
mas, sabe como é, vergonha; eles são uma gente orgulhosa e presunçosa.
Eu, diz, nem o teria incomodado, meu amigo e benfeitor: sei que o senhor
mesmo teve contratempos, sei que muito não pode dar, mas empreste-me
pelo menos alguma coisa; e atrevo-me a pedir-lhe, diz, porque conheço seu
bom coração, sei que o senhor próprio passou por necessidades e que até
agora está passando por provações — e que é por isso que seu coração sente
compaixão”. Para concluir, diz ele, perdoe o meu atrevimento e a minha
indecência, Makar Alieksiêievitch. E eu lhe respondo que o ajudaria de todo
coração, mas que não tenho nada, absolutamente nada. “Meu amigo, Makar
Alieksiêievitch, diz-me ele — não é muito o que lhe peço, mas sabe o que é
(nisso se fez todo rubro), minha mulher, diz, e meus filhos — estão com
fome — uns dez copeques que seja.” Bem, nessa altura, senti um aperto no
coração. A que ponto, penso, me passaram a perna! Tudo o que me havia
restado eram vinte copeques, e eu estava contando com eles: pensava gastá-
los amanhã com minhas necessidades mais extremas. “Não, meu pombinho,
não posso, sabe como é” — digo. “Meu amigo, Makar Alieksiêievitch, seja
o que for, pelo menos dez copequezinhos.” Eu então tirei da gaveta os meus
vinte copeques e entreguei a ele, minha filha, tudo por uma boa causa! Eh,
que miséria! Pusemo-nos a conversar: e como então o senhor, meu amigo,
que está passando tanta necessidade, e diante de tamanha penúria, aluga um
quarto de cinco rublos de prata?, pergunto-lhe. Explicou-me que alugara o
quarto havia seis meses e pago três meses adiantados; mas depois a situação
se complicou de tal modo que ficou sem saída, o coitado. Esperava que a
essa altura seu caso já estivesse resolvido. E seu caso é desagradável. Sabe
o que é, Várienka, está respondendo a um processo por alguma coisa. Está
em litígio com um comerciante que fez trapaças com o tesouro público; o
embuste foi descoberto, o comerciante foi processado, mas em sua trapaça
criminosa ele enredou também Gorchkov, que de alguma maneira está
relacionado com isso. Mas na verdade Gorchkov é culpado apenas por
negligência, por imprudência e por um descuido imperdoável no que se
refere aos interesses do tesouro público. O caso já dura vários anos: estão
sempre surgindo obstáculos de todo tipo contra Gorchkov. “Quanto à
desonestidade que me imputam — diz-me Gorchkov -, sou inocente, não
tenho culpa de nada, não tenho nenhuma culpa da trapaça nem do roubo.” O
caso comprometeu um pouco sua reputação; foi despedido do serviço e,
embora não tenham considerado grave a sua culpa, entretanto até a sua
completa absolvição não poderá obter do comerciante uma importância
significativa em dinheiro que lhe é devida e que está em litígio no tribunal.
Eu acredito nele, mas o tribunal não acredita em sua palavra; é um caso tão
complicado, está tudo tão enganchado numa tal trama que nem em cem
anos vai se desenredar. Mal ela começa a se desmaranhar um pouco, o
comerciante vem com mais e mais ganchinhos. Eu realmente me
compadeço por Gorchkov, minha querida, sinto muito por ele. O homem
está sem emprego; não é aceito em lugar nenhum, porque não confiam nele;
todas as suas reservas foram consumidas; e, ainda por cima, sem mais nem
menos, fora de qualquer propósito, nasceu-lhe mais um filho — é claro que
tiveram despesas; um filho adoeceu — mais despesas, morreu — mais
despesas; a mulher está doente; e ele sofre de uma doença crônica: em
suma, é sofrimento e mais sofrimento. Entretanto, diz que está esperando
por estes dias uma decisão favorável para o seu caso e que quanto a isso já
não tem nenhuma dúvida. Tenho pena, muita pena mesmo dele, minha
filha! Eu o cumulei de atenção. É um homem desnorteado, confuso; busca
proteção, e eu o cumulei de atenção. Bem, então até logo, minha filha, fica
com Deus e passe bem. Minha pombinha! Quando me lembro de você, é
como se colocasse um remédio em minha alma dolorida, e embora sofra por
você, mesmo esse sofrimento me faz feliz.
Seu verdadeiro amigo
Makar
Diévuchkin
9 DE SETEMBRO
Varvara Alieksiêievna, minha filha!
Escrevo-lhe ainda completamente fora de mim, todo abalado por
um acontecimento terrível. Minha cabeça ainda está rodando. Sinto que
tudo gira à minha volta. Ah, minha querida, o que tenho para lhe dizer
agora! Nem sequer pressentíamos uma coisa dessas. Ou, antes, não acredito
que não tivesse pressentido; eu pressentia isso tudo. Meu coração sentiu
isso tudo antecipadamente! Outro dia cheguei a sonhar com algo parecido.
Veja o que aconteceu! Vou lhe contar sem estilo, tal como o Senhor
me puser na alma. Fui hoje para o serviço. Chego, sento-me e ponho-me a
escrever. É preciso que saiba, minha filha, que ontem também fiquei
escrevendo. Pois bem, foi assim, ontem Timofiéi Ivánovitch chega para
mim e trata de encarregar-me pessoalmente de — aqui está, diz, um
documento importante e urgente. Faça uma cópia, Makar Alieksiêievitch,
diz ele, com urgência, com o máximo de cuidado e a mais limpa possível:
para ser assinada ainda hoje. É preciso que repare, meu anjinho, que no dia
de ontem eu não estava em meu estado normal, nem vontade tinha de olhar
para nada; estava tomado por uma tristez, uma melancolia! Sentia frio no
coração e apenas trevas na alma; na memória só tinha você, minha pobre
estrelinha. E foi assim que me pus a fazer a cópia; fiz uma cópia limpa, boa,
só não sei lhe dizer com exatidão se foi o próprio imundo a me confundir,
se foram os desígnios secretos do destino ou, simplesmente, saiu sem
nenhum sentido. Como ontem se atrasaram com este documento, só hoje o
entregaram a Sua Excelência para ser assinado. E hoje, como se nada
tivesse acontecido, apareci na hora de costume e me acomodo ao lado de
Emielián Ivánovitch. Devo adverti-la, querida, que de uns tempos para cá
comecei a ficar com vergonha e a sentir o dobro do escrúpulo de antes. Nos
últimos tempos nem mesmo olhava para ninguém. Mal ouço o ranger de
uma cadeira, já me sinto mais morto do que vivo. Exatamente como hoje,
estou sentado encolhido, quieto, como um ouriço, tanto que Iefim
Akímovitch (implicante como ele não há ninguém na face da Terra) disse
alto e bom som: por que o senhor, Makar Alieksiêievitch, diz ele, está
sentado tão u-u-u? e nisso fez um trejeito que todos os que estavam ao lado
dele e ao meu lado se esborracharam de rir, e, evidentemente, à minha
custa. E foram em frente, foram em frente. Tapei os ouvidos, semicerrei os
olhos e fico quieto, sem me mexer. Já é esse o meu costume; e dessa forma
param mais depressa. De súbito começo a ouvir um barulho, uma correria,
uma azáfama; ouço mas não acredito em meus ouvidos! estão me
chamando, exigindo a minha presença, estão chamando Diévuchkin. Meu
coração pôs-se a tremer no peito, e nem eu mesmo sei por que me assustei;
só sei que me assustei como nunca antes havia me assustado em minha
vida. Fiquei cravado à cadeira - e como se nada estivesse acontecendo,
como se não fosse comigo. Mas eis que recomeçaram, e cada vez mais
próximo. Depois já bem ao meu ouvido: diz, Diévuchkin! Diévuchkin!
Onde está o Diévuchkin? Levanto os olhos: diante de mim está Evstáfi
Ivánovitch; ele diz: “Makar Alieksiêievitch, apresente-se à Sua Excelência,
depressa! O senhor cometeu uma desgraça com aquele documento!”. Foi a
única coisa que disse, mas foi o bastante, não é verdade, minha filha, que
fora dito o bastante? Fiquei lívido, hirto, privado dos sentidos, e fui — é
verdade que fui mais morto do que vivo. Fizeram-me atravessar uma sala,
uma outra sala e uma terceira sala, até o gabinete — me apresentei! Um
relato exato do que pensava naquele momento não lhe posso fazer. Vejo Sua
Excelência de pé e eles todos à sua volta. Parece que nem sequer fiz
reverência; me esqueci. Estava tão perplexo que me tremiam não só os
lábios como me tremiam as pernas. E razão havia, minha filha. Em primeiro
lugar, a vergonha; lancei um olhar à direita, para o espelho, e com o que vi
lá tinha motivo, pura e simplesmente, para enlouquecer. Em segundo lugar,
sempre fiz tudo para que parecesse que não existo. De modo que é pouco
provável que Sua Excelência tivesse conhecimento de minha existência.
Talvez tivesse ouvido assim, de passagem, que em seu departamento tem
um Diévuchkin, mas sem nunca terem entrado em maiores detalhes.
Começou enfurecido: “Como pôde fazer isso, meu senhor? Para
onde olha o senhor? um documento importante, que tinha urgência, e o
senhor o estraga. Como o senhor me faz uma coisa dessas?” — nesse
momento Sua Excelência dirigiu-se a Evstáfi Ivánovitch. Ouço apenas os
sons das palavras chegando até mim: “Negligência! Imprudência! Pode nos
causar aborrecimentos!”. Ia abrir a boca para dizer algo. Quis pedir
desculpa e não consegui, fugir — não me atrevi, e nisto... nisto, minha filha,
aconteceu uma coisa que até agora mal consigo segurar a pena de vergonha.
O meu botão — o diabo que o carregue -, um botão que estava preso apenas
por um pedacinho de linha de súbito se desprendeu, caiu e pôs-se a saltar
(devo ter tocado nele sem querer), a tilintar, a rodar, e no fim das contas o
maldito foi parar aos pés de Sua Excelência, e isso tudo em meio a um
silêncio geral! E lá se foi toda a minha justificativa, toda a minha desculpa,
toda a resposta, tudo o que eu tencionava dizer a Sua Excelência! As
consequências foram terríveis! Sua Excelência imediatamente reparou em
meu aspecto e em meus trajes. Lembrei-me do que vira no espelho:
precipitei-me a apanhar o botão! Deu-me a louca! Abaixei-me, querendo
apanhar o botão — ele rola, gira, não consigo apanhá-lo em suma,
distingui-me também no que se refere à habilidade. Nisto sinto que minhas
últimas forças estão me abandonando e que tudo, tudo está perdido! Toda a
minha reputação estava perdida, era um homem completamente acabado! E
então, sem mais nem menos, Teresa e Faldoni começaram a ressoar em
meus dois ouvidos. Por fim apanhei o botão, levantei-me, estiquei-me e, se
não fosse um imbecil, teria ficado quieto, em posição de sentido! Mas não:
pus-me a querer fixar o botão na linha rompida, como se ele fosse colar; e
ainda por cima sorrio, e ainda por cima sorrio. Sua Excelência primeiro
virou-se para o lado, depois tornou a olhar para mim, ouço que diz a Evstáfi
Ivánovitch: “Como é possível?... olha para o aspecto dele!... como ele
está!... o que há com ele?...”. Ah, minha querida, o que há nisso — como
ele está? E, o que há com ele? Distingui-me! Ouço que Evstáfi Ivánovitch
diz: “Não é repreendido; nunca foi repreendido, é de conduta exemplar, o
ordenado é satisfatório, de acordo com o salário...” — “Então ajudem-no de
alguma maneira — diz Sua Excelência. — Podemos dar-lhe um
adiantamento...” — “Mas já pediu, dizem, aqui está por quanto tempo pediu
adiantado. Pelo jeito foram as circunstâncias, porque tem boa conduta e não
é repreendido, nunca foi repreendido”. Eu, meu anjinho, ardia, ardia no
fogo do inferno! Queria morrer! “Então, diz Sua Excelência em voz alta —
é preciso fazer outra cópia rapidamente; venha cá, Diévuchkin, torne a fazer
a cópia sem erros, e ouça...” Nisso Sua Excelência virou-se para os outros,
deu-lhes várias ordens e todos se dispersaram. Mal se dispersaram, Sua
Excelência tira apressadamente a carteira e, dela, uma nota de cem rublos.
“Veja — diz ele -, é o que posso fazer, considere-o como quiser...” e a
enfiou em minha mão. Eu, meu anjinho, estremeci, toda a minha alma ficou
transtornada; não sei o que aconteceu comigo; já ia agarrar sua mãozinha.
Mas ele enrubesceu todo, minha pombinha, e olha que não me afasto nem
um fiozinho de cabelo da verdade, minha querida: pegou em minha mão
indigna e a apertou, ainda assim pegou e apertou, como se fosse a de um
seu igual, como se fosse a de alguém como ele próprio, um general. “Pode
retirar-se, diz, com o que puder ajudar... Não cometa erros, porque agora
partilhamos a responsabilidade.”
Agora, minha filha, veja o que decidi: eu lhe peço, e também a
Fiódora, e se tivesse filhos também lhes ordenaria que rezassem a Deus.
Isto é, da seguinte maneira: que rezassem não pelo próprio pai mas que
rezassem por Sua Excelência todos os dias e para sempre! E digo mais,
minha filha, e o digo solenemente — ouça-me bem, minha filha -, juro que
por mais perdido que estivesse, por causa da minha mágoa espiritual dos
dias cruéis da nossa desdita, ao olhar para você, para a sua desgraça, e para
mim mesmo, para a minha humilhação e a minha inépcia, apesar disso tudo,
juro-lhe que os cem rublos não me são tão caros quanto o fato de Sua
Excelência em pessoa ter se dignado a apertar-me a mão indigna, a mim,
um pulha, um bêbado! Com isso ele restituiu-me a mim próprio. Com este
gesto, ressuscitou o meu espírito, tornou minha vida mais doce para sempre,
e estou firmemente convencido de que, por mais pecados que eu tenha aos
olhos do Todo-Poderoso, minhas preces pela felicidade e pela prosperidade
de Sua Excelência chegarão até seu trono!...
Minha filha! Encontro-me num estado de grande emoção, de grande
transtorno espiritual! Meu coração bate como se quisesse saltar-me do
peito. E parece que eu mesmo estou todo como que enfraquecido. Envio-lhe
quarenta e cinco rublos em nota, vinte estou dando à senhoria e trinta e
cinco deixo para mim: com vinte ponho a roupa em ordem e quinze deixo
para as despesas do dia a dia. E somente agora dou-me conta de como estas
impressões todas desta manhã abalaram toda a minha existência. Vou deitar-
me um pouco. Aliás, me sinto tranquilo, muito tranquilo. Apenas o coração
está transbordando, e, lá no fundo, dá para ouvir minha alma tremer,
palpitar e se agitar. Irei visitá-la, mas agora estou simplesmente embriagado
com todas estas sensações... Deus vê tudo, minha filha, minha inestimável
pombinha!
Seu digno amigo
Makar Diévuchkin
10 DE SETEMBRO
Meu amável Makar Alieksiêievitch!
Estou indescritivelmente contente com a sua felicidade e sei
apreciar as virtudes de seu chefe, meu amigo. Pois bem, agora poderá
descansar de suas amarguras! Mas, pelo amor de Deus, não volte a gastar
dinheiro com coisas inúteis. Procure viver tranquilo, com toda a modéstia
possível, e a partir de agora comece a pôr sempre de lado um dinheirinho
que seja, para que, numa hora de infelicidade, não torne a ser pego
desprevenido. Não se preocupe conosco, pelo amor de Deus. Fiódora e eu
vamos nos arranjando. Para que nos enviou tanto dinheiro, Makar
Alieksiêievitch? Não precisamos, absolutamente. Estamos satisfeitas com o
que temos. É verdade que em breve precisaremos de dinheiro para a nossa
mudança deste apartamento, mas Fiódora tem a esperança de receber de
uma certa pessoa uma dívida antiga, de muito tempo. Pensando bem, fico
com vinte rublos para o caso de alguma necessidade extrema. O resto
envio-lhe de volta. Poupe o dinheiro, por favor, Makar Alieksiêievitch. Até
logo, agora procure viver em paz, com saúde e alegria. Queria escrever-lhe
mais, mas sinto muito cansaço, ontem passei o dia todo sem me levantar da
cama. Fez bem em prometer vir nos visitar. Venha me ver, por favor, Makar
Alieksiêievitch.
V. D.
11 DE SETEMBRO
Minha encantadora Varvara Alieksiêievna!
Eu lhe imploro, minha querida, para que não se afaste de mim
agora, neste momento em que estou realmente feliz e satisfeito com tudo.
Minha pombinha! Não dê ouvido a Fiódora e farei tudo o que quiser; vou
me comportar bem, até por respeito à Sua Excelência; vou me comportar
bem e com distinção. Vamos voltar a escrever cartas felizes um ao outro,
confiar os nossos pensamentos um ao outro, as nossas alegrias, as nossas
preocupações, se houver preocupações; vamos viver juntos em harmonia e
felicidade. Havemos de nos dedicar à literatura... Meu anjinho! Tudo
mudou em meu destino, e mudou para melhor. A senhoria se tornou mais
tratável, Teresa mais inteligente, até mesmo Faldoni ficou mais ágil. Fiz as
pazes com Rataziáiev. A alegria levou-me a procurá-lo. Ele, na verdade, é
um bom rapaz, minha filha, e tudo o que diziam de ruim dele não passava
de absurdos. Descobri agora que foi tudo uma calúnia abominável. Ele
jamais chegou sequer a pensar em nos descrever: ele mesmo me disse isso.
Leu-me a sua nova obra. E o fato de me ter chamado então de Lovelace,
isso não tem nada de insultuoso nem é uma denominação indecente: ele me
explicou. Esta é uma palavra tirada de uma palavra estrangeira e significa
rapaz hábil, ou, para exprimi-lo de um modo mais bonito, mais literário,
significa rapaz — com quem não se brinca — é isso! não tem nada de mais.
Foi uma brincadeira inocente, meu anjinho. E eu, ignorante, estúpido, me
ofendi. Mas agora já lhe pedi desculpas... E o dia está tão maravilhoso hoje,
Várienka, está tão agradável. É verdade que de manhã caiu uma garoa fina,
peneirada. Mas não faz mal! Em compensação o ar ficou um pouquinho
mais fresco. Saí para comprar um par de botas e comprei um incrível. Dei
umas voltas pela Niévski. Li A Abelha*. Ah! já ia me esquecendo de contar
o mais importante!

* A revista reacionária A Abelha do Norte, editada por F. V.


Bulgárin (1789-1859). (N. da T.)

É o seguinte:
Hoje de manhã conversei com Emielián Ivánovitch e Aksiênti
Mikháilovitch sobre Sua Excelência. É verdade, Várienka, não foi apenas a
mim que ele tratou com tanta benevolência. Não fui o único a quem
beneficiou e a bondade de seu coração é conhecida de todos. Por toda parte
se cantam louvores em sua honra e se vertem lágrimas de gratidão por ele.
Educou em sua casa uma órfã. Dignou-se a arranjar tudo para ela: casou-a
com um homem conhecido, um funcionário que Sua Excelência tinha a seu
lado para os encargos especiais. Arranjou emprego para o filho de uma
viúva numa repartição e ainda fez muitas outras benfeitorias. Considerei
que era minha obrigação, minha filha, somar a isso também a minha
contribuição, e contei alto e bom som a todos o que Sua Excelência fez por
mim; contei-lhes tudo, sem esconder nada. Escondi a vergonha no bolso.
Que vergonha há nisso, o que é a vaidade diante de uma circunstância
dessas? E ainda disse, em voz alta — pelas nobres ações de Sua Excelência!
Falei com arrebatamento, falei com ardor, e sem enrubescer, ao contrário,
orgulhoso de poder contar uma coisa dessas. Contei-lhes tudo (apenas no
que se refere a você guardei um silêncio prudente, minha filha), mas sobre a
minha senhoria, sobre Faldoni, sobre Rataziáiev, as botas, Márkov — contei
tudo. Houve lá quem trocasse sorrisos, bem, é verdade que todos eles
trocaram sorrisos. Vai ver que acharam alguma coisa de engraçado no meu
aspecto, ou então foi por causa das minhas botas — por causa das botas,
justamente. Eles não poderiam ter feito isso com má intenção. Foi porque
são jovens, ou porque são gente rica, mas jamais poderiam ter rido do meu
discurso com uma má intenção, por maldade. Ou seja, fazer algo à custa de
Sua Excelência — isso eles não poderiam nunca fazer. Não é verdade,
Várienka?
E até agora ainda não consegui me refazer de todo, minha filha.
Essas ocorrências todas me deixaram tão transtornado! Tem lenha em casa,
Várienka? Não vá se resfriar; não é difícil pegar um resfriado. Oh, minha
filha, ainda me mata com seus pensamentos tristes. Rezo tanto a Deus,
como peço a Ele por você, minha filha! Por exemplo, será que tem meias de
lã, ou então alguma roupa assim mais quente? Veja lá, minha pombinha. Se
precisar de alguma coisa, então, pelo amor ao Criador, não ofenda este
velho. Deve recorrer logo a mim. Os tempos ruins agora ficaram para trás.
Quanto a mim, não se preocupe. À nossa frente há de ser tudo tão radiante!
Foi uma época triste, Várienka! Mas agora tanto faz, já passou! Os
anos vão passar e ainda havemos de suspirar por essa época. Lembro-me
dos meus anos de juventude. Formidáveis! Às vezes chegava a ficar sem
um copeque. Passava frio, fome, mas era alegre, e isso bastava. De manhã
podia dar uma volta pela Niévski, encontrar um rostinho bonitinho e ficar
feliz o resto do dia. Que época boa aquela, minha filha! É bom viver nesse
mundo, Várienka! Sobretudo em Petersburgo. Foi com lágrimas nos olhos
que me confessei ontem diante de Deus Nosso Senhor, para que o Senhor
perdoe todos os meus pecados dessa época triste: meu descontentamento,
meus pensamentos liberais, o escândalo e a exacerbação. Lembrei-me de
você com enternecimento em minha oração. Foi a única pessoa, meu
anjinho, a me encorajar, a única a me confortar, a advertir-me com bons
conselhos e instruções. Nunca poderei me esquecer disso, minha filha. Hoje
beijei todas as suas cartinhas, minha pombinha! Bem, até logo, minha filha.
Dizem que num lugar aqui perto há uma farda à venda. Pois vou dar uma
passada para ver. Então até logo, anjinho. Até logo.
Seu cordialmente devotado
Makar Diévuchkin
15 DE SETEMBRO
Excelentíssimo senhor
Makar Alieksiêievitch!
Estou muito abalada. Veja só o que nos aconteceu. Estou com um
pressentimento fatídico. Mas julgue por si mesmo, meu inestimável amigo:
o senhor Bíkov está em Petersburgo. Fiódora o encontrou. Ele estava num
carro aberto, mandou pará-lo, aproximou-se de Fiódora e começou a
perguntar-lhe onde morava. Ela, a princípio, não quis dizer. Depois ele
disse, sorridente, que sabia quem está morando com ela. (Pelo visto Anna
Fiódorovna lhe contou tudo.) A essa altura Fiódora não se conteve e ali
mesmo na rua começou a acusá-lo, a repreendê-lo, a dizer-lhe que era um
homem imoral, que era ele a causa de todas as minhas infelicidades. Ele
respondeu que, quando não se tem um vintém, então é óbvio que a pessoa é
infeliz. Fiódora lhe disse que eu teria podido ganhar a vida com meu
trabalho, que teria podido me casar, ou então ter buscado uma colocação em
algum lugar, mas que agora minha felicidade estava para sempre perdida, e
que além do mais estou doente e morrerei logo. Ao que ele observou que
ainda sou muito jovem, que ainda tenho a cabeça em fermentação e que
também as nossas virtudes se haviam extinguido (são palavras dele).
Fiódora e eu achávamos que ele não conhecia a nossa casa, mas eis que
ontem, mal saí para as compras no Gostíni Dvor, ele de repente entra em
nosso quarto; pelo jeito não queria me pegar em casa. Passou um longo
tempo interrogando Fiódora sobre o nosso dia a dia; examinou tudo em
casa, viu o meu trabalho, e por fim perguntou: “Quem é esse funcionário
conhecido de vocês?”. Nesse momento o senhor estava atravessando o
pátio; Fiódora o apontou para ele; ele olhou e sorriu; Fiódora suplicou-lhe
que fosse embora, disse-lhe que eu já estava doente por causa das minhas
amarguras e que não me seria nada agradável vê-lo aqui. Ele não
respondeu; disse que havia vindo à toa, porque não tinha nada a fazer, e
quis dar vinte e cinco rublos a Fiódora; ela, evidentemente, não aceitou. O
que teria significado isso? Para que terá ele vindo aqui? Não consigo
entender, como pode saber de tudo a nosso respeito? Perco-me em
conjecturas. Fiódora diz que Aksínia, uma cunhada dela que costuma nos
visitar, conhece a lavadeira Nastácia e que o primo de Nastácia é guarda no
mesmo departamento em que trabalha um conhecido do sobrinho de Anna
Fiódorovna, pois, então, será que os mexericos não se teriam arrastado de
alguma forma? Aliás, pode também muito bem ser que Fiódora esteja
enganada; não sabemos o que pensar. Será que ele tornará a voltar aqui? Só
de pensar já fico aterrorizada! Quando Fiódora me contou isso tudo ontem,
fiquei tão assustada que por pouco não desmaiei de medo. O que mais eles
querem? Eu agora não quero saber deles! Que assunto poderia ter ele para
tratar comigo, uma coitada! Ah, estou tão apavorada; não paro de pensar
que Bíkov pode entrar de um momento para outro. Que vai ser de mim? O
que mais me reserva o destino? Pelo amor de Deus, venha para cá agora
mesmo, Makar Alieksiêievitch. Venha, pelo amor de Deus, venha.
V. D.
18 DE SETEMBRO
Varvara Alieksiêievna, minha filha!
Hoje teve lugar em nosso apartamento um acontecimento
extremamente triste, absolutamente inexplicável e inesperado. Nosso pobre
Gorchkov (é preciso mencionar-lhe isto, minha filha) foi completamente
absolvido. A decisão já havia saído faz tempo, mas hoje ele foi ouvir a
resolução definitiva. O caso acabou portanto de maneira muito favorável a
ele. Havia lá uma acusação de negligência e imprudência contra ele — mas
foi completamente absolvido de tudo. O comerciante foi sentenciado a
pagar em seu benefício uma importância significativa em dinheiro, de modo
que até sua situação melhorou muito, além de ter se livrado de uma mancha
em sua honra, e tudo ficou melhor — ou seja, o resultado foi a mais
completa realização dos seus desejos. Hoje chegou em casa às três horas.
Estava lívido, branco como um pano, com os lábios tremendo, mas sorria
— abraçou a mulher, os filhos. Nós fomos todos em bando cumprimentá-lo.
Ele ficou realmente comovido com a nossa atitude. Cumprimentou-nos a
todos, apertando a mão de cada um de nós várias vezes. Pareceu-me até que
havia crescido, ficado mais ereto, e que já não trazia a lagrimazinha nos
olhos. Estava tão emocionado, coitado. Não conseguia permanecer dois
minutos no mesmo lugar; pegava tudo o que lhe caía às mãos e depois
tornava a largar, não parava de sorrir e de nos cumprimentar, sentava,
levantava, tornava a sentar, falava sabe Deus o quê — dizia: “A honra, a
minha honra, o meu bom nome, meus filhos” — e falava de um jeito!
começou até a chorar. A maioria de nós também derramou umas lágrimas.
Rataziáiev, pelo jeito, queria animá-lo, e disse: “O que é a honra, meu
amigo, quando não se tem o que comer; o dinheiro, meu amigo, o dinheiro é
mais importante, é por isso que deve agradecer a Deus!” — e ao dizê-lo
deu-lhe uma palmadinha no ombro. Pareceu-me que Gorchkov se ofendeu,
isto é, não que tenha manifestado claramente descontentamento, mas lançou
um olhar meio estranho para Rataziáiev e retirou a mão dele de seu ombro.
Antes isso não teria acontecido, minha filha! Aliás, o temperamento varia
muito de pessoa para pessoa, meu amorzinho. Eu, por exemplo, em meio a
tanta alegria, não me teria mostrado orgulhoso; é que às vezes, minha
querida, você manifesta uma reverência desnecessária e mesmo humilhação
simplesmente por uma espécie de acesso de bondade da alma e excesso de
suavidade do coração... mas, aliás, não é de mim que se trata! “É verdade,
diz ele, o dinheiro também é bom; graças a Deus, graças a Deus!” E depois,
durante todo o tempo que estivemos lá, ficou repetindo: “Graças a Deus,
graças a Deus!...”. Sua mulher encomendou um almoço mais requintado e
mais abundante. Foi a própria senhoria que o preparou para eles. No fundo,
nossa senhoria é uma boa pessoa. E até a hora do almoço Gorchkov não
conseguia parar sentado em lugar nenhum. Passava pelo quarto de todos,
convidado ou não. Vai entrando, sorri, senta-se numa cadeira, diz alguma
coisa, e às vezes nem diz nada — e vai embora. No quarto do aspirante da
Marinha chegou a pegar cartas nas mãos; fizeram-no até sentar-se para
jogar em quatro. Ele começou a jogar, ficou jogando um pouco, se
confundiu, fez uns absurdos com as cartas e, após três ou quatro lances,
parou de jogar. “Não, diz ele, não vim para isso, estava apenas dando uma
passada” — e saiu dali. Encontrou-me no corredor, pegou-me nas duas
mãos, fitou-me diretamente nos olhos, mas de um modo bem esquisito;
apertou-me a mão e se afastou, o tempo todo sorrindo, mas com um sorriso
tão deprimente e estranho, um sorriso de defunto. A mulher dele chorava de
alegria; havia tanta alegria no quarto deles, como em dia de festa.
Terminaram logo de almoçar. Depois do almoço chegou a dizer à mulher:
“Ouça, alminha, vou me deitar um pouco” — e foi para a cama. Chamou
sua filhinha, pôs a mão na cabecinha da criança e ficou durante muito
tempo acariciando-a. Depois se voltou de novo à mulher: “Mas e o
Piétienka? O nosso Piétia, diz ele, Piétienka?...” A mulher benzeu-se e
ainda respondeu que ele havia morrido. “Sim, sim, eu sei, sei de tudo.
Piétienka agora está no Reino dos Céus.” A mulher, ao perceber que não
estava em seu estado normal, que o acontecimento o havia transtornado por
completo, diz-lhe: “Deveria dormir, alminha”. “Sim, está bem, vou agora
mesmo... um pouquinho” — nisso ele se virou para o outro lado, ficou um
pouco deitado, depois tornou a se virar, queria dizer alguma coisa. A mulher
não entendeu e perguntou-lhe: “O que é, meu amigo?”. Mas ele não
respondeu. Ela esperou um pouco — bem, pensou, adormeceu, e saiu por
uma horinha para falar com a senhoria. Uma hora depois voltou — olha, o
marido ainda não acordou e está deitado tranquilamente, sem se mexer.
Achando que estivesse dormindo, sentou-se e pôs-se a fazer um trabalho.
Ela conta que ficou uma meia hora trabalhando e que estava tão absorta em
seus pensamentos que nem lembra o que pensava, diz apenas que até se
esquecera do marido. Mas de súbito uma sensação de inquietude a fez
voltar a si, e o que a surpreendeu mais do que tudo foi o silêncio sepulcral
que reinava no quarto. Ela olhou para a cama e viu que o marido continuava
a dormir na mesma posição. Então aproximou-se dele, arrancou-lhe de cima
o cobertor, olhou — estava já frio — havia morrido, minha filha, Gorchkov
estava morto, morreu de repente, como se tivesse sido atingido por um raio!
E do que morreu — só Deus sabe. Isso me deixou tão abalado, Várienka,
que até agora ainda não consegui recobrar os sentidos. Não dá para
acreditar numa coisa dessas, que um homem possa morrer assim, tão
simplesmente. Que pobre coitado, era um pobre-diabo esse Gorchkov! Ah,
é o destino, mas que destino o dele! A mulher está em prantos, apavorada.
A menina encafurnou-se num canto. No quarto deles está o maior rebuliço,
uma grande confusão; vão fazer a perícia médica... não saberia dizer-lhe
com certeza. Mas é uma pena, uma grande pena! É triste pensar que na
verdade você não sabe nem dia nem hora... Pode morrer assim, sem mais
nem menos...
Se
u
Makar Diévuchkin
19 DE SETEMBRO

Prezada senhora
Varvara Alieksiêievna!

Apresso em comunicar-lhe, minha amiga, que Rataziáiev arranjou-


me trabalho com um autor. Veio vê-lo uma pessoa e trouxe-lhe um
manuscrito bem grosso — graças a Deus, é bastante trabalho. A única coisa
é que está escrito de modo tão ilegível que nem sei por onde começar;
exigem a máxima rapidez. Está todo escrito sobre coisas, que nem dá para
entender... Combinamos quarenta copeques a folha. Escrevo-lhe isso tudo,
minha querida, para que saiba que haverá um dinheiro extra. Bem, e agora
até logo, minha filha. Vou começar já a trabalhar.

Seu fiel amigo,


Makar Diévuchkin
23 DE SETEMBRO
Meu querido amigo
Makar Alieksiêievitch!
Já há três dias, meu amigo, que não lhe escrevo nada, no entanto
tenho tido muitas, muitas preocupações e inquietações.
Anteontem Bíkov esteve aqui. Eu estava sozinha, Fiódora havia
saído. Abri-lhe a porta e assustei-me ao vê-lo que não conseguia me mover
do lugar. Senti-me empalidecer. Ele entrou rindo alto, como de hábito,
pegou numa cadeira e sentou-se. Demorei a voltar a mim, por fim sentei-me
num canto com meu trabalho. Ele parou logo de rir. Pelo visto minha
aparência o deixara impressionado. Emagreci muito nos últimos tempos;
estou com as faces e os olhos cavados e estava branca como um lenço...
para quem me conheceu um ano atrás, dever ser realmente difícil
reconhecer-me. Fixou os olhos em mim por um longo tempo, e por fim
tornou a se alegrar. Disse qualquer coisa; não lembro o que lhe respondi, e
ele tornou a rir. Ficou aqui sentado durante uma hora; conversou bastante
tempo comigo; interrogou-me sobre algumas coisas. Por fim, antes de se
despedir, pegou-me na mão e disse (escrevo-lhe palavra por palavra):
“Varvara Alieksiêievna! Aqui entre nós, Anna Fiódorovna, sua parenta e
minha conhecida e amiga íntima, é uma mulher ignóbil. (E ainda a chamou
por um nome indecente.) Desencaminhou a sua priminha e arruinou
também a sua vida. De minha parte, nesse caso também me comportei
como um canalha, mas, enfim, isso são coisas da vida”. E soltou uma
gargalhada. Depois disse que não era mestre em falar com eloquência e que
o importante, o que era necessário explicar e sobre o que seu dever de
nobreza o obrigava a não silenciar, ele já explicara, e que, resumindo,
passava para o restante. E aí declarou que vinha pedir a minha mão, que
considera seu dever devolver-me a honra, que é rico e, após o casamento,
me levará para a sua propriedade de campo na estepe, e lá ele quer caçar
lebres; que em Petersburgo não volta nunca mais, porque se sente enojado
em Petersburgo, que aqui em Petersburgo, como ele mesmo se exprimiu, ele
tem um sobrinho imprestável, ao qual jurou deserdar, e que era sobretudo
por esta razão, isto é, por desejar ter herdeiros legítimos, que vinha pedir a
minha mão, e que este é o principal motivo de seu pedido de casamento.
Depois observou que estou vivendo na mais completa pobreza, que não é de
se admirar que esteja doente, vivendo numa choça dessas, predisse-me uma
morte iminente, se continuar assim por mais um mês que seja, disse que os
apartamentos em Petersburgo dão nojo, e por fim perguntou-me se não
estou precisando de alguma coisa.
Fiquei tão perplexa com sua proposta que comecei a chorar, nem eu
mesma sei por quê. Ele tomou as minhas lágrimas por gratidão e disse-me
que sempre esteve convencido de que eu era uma moça boa, sensível e
culta, mas, por outro lado, não se decidira a tomar esta medida senão após
informar-se minuciosamente sobre a minha conduta atual. E aí começou a
fazer perguntas sobre o senhor, disse que soube de tudo, que o senhor é um
homem de princípios nobres, e de sua parte não quer ficar em dívida com o
senhor, quer saber se ficaria satisfeito com quinhentos rublos como
pagamento por tudo o que fez por mim. Quando lhe expliquei que não se
paga com dinheiro o que o senhor fez por mim, então ele disse que era tudo
um disparate, coisas de romances, que ainda sou muito nova e leio muito
poesia, que os romances levam as jovens à perdição, que os livros só
servem para corromper a moral, e ele não pode suportar nenhum tipo de
livro; aconselhou-me a chegar à sua idade e então falar sobre as pessoas;
“Só então — acrescentou ele — é que poderá conhecer as pessoas”. Depois
disse-me para refletir bem sobre a sua proposta, que não lhe seria nada
agradável se eu desse um passo tão importante precipitadamente,
acrescentou que a precipitação e o arroubo levam a juventude inexperiente à
perdição, mas que deseja muito uma resposta favorável da minha parte,
caso contrário será obrigado a se casar em Moscou com a filha de um
comerciante, porque, diz ele, jurei deserdar o imprestável do meu sobrinho.
Contra a minha vontade, deixou quinhentos rublos sobre o bastidor, como
ele disse, para balas; disse que no campo ficarei gorda como uma panqueca,
que com ele vou rolar como queijo na manteiga, que agora está muito
ocupado, pois andou o dia todo tratando de seus negócios e, entre um
compromisso e outro, passou para me ver. E aí saiu. Passei muito tempo
pensando e repensando, torturei-me pensando, e por fim, meu amigo, tomei
uma decisão. Meu amigo, caso-me com ele, tenho de aceitar a sua proposta.
Se há alguém que pode me livrar de minha vergonha, restituir-me um nome
honrado, prevenir-me da pobreza, da privação e de infelicidades futuras,
esse alguém é ele, unicamente ele. Que mais posso esperar do futuro, o que
mais posso pedir ao destino? Fiódora diz que não se deve rejeitar a sorte;
ela diz — mas o que, nesse caso, se chama sorte? Eu, pelo menos, não vejo
outro caminho para mim, meu inestimável amigo. O que vou fazer?
Trabalho, mas com isso já acabei com a minha saúde; trabalhar
regularmente não posso. Servir a estranhos? — definharia de angústia, e
além do mais não satisfaria a ninguém. Sou doente por natureza e por isso
serei sempre um fardo na mão dos outros. É claro que mesmo agora não
estou indo para o paraíso, mas o que posso fazer, meu amigo, o que posso
fazer? Que escolha tenho eu?
Não lhe pedi conselhos. Queria refletir sozinha. A decisão que
acaba de ler é irreversível e vou anunciá-la a Bíkov sem demora, que além
do mais pressiona-me por uma decisão definitiva. Diz que seus negócios
não podem esperar, que tem de partir e não os pode adiar por ninharias. Só
Deus sabe se serei feliz, meu destino está em seu santo e insondável poder,
mas tomei minha decisão. Dizem que Bíkov é uma boa pessoa; ele há de me
respeitar; pode ser que eu também venha a respeitá-lo. Que mais posso
esperar de nosso casamento?
Estou lhe informando tudo, Makar Alieksiêievitch. E estou certa de
que compreenderá toda a minha angústia. Não tente dissuadir-me de minhas
intenções. Seus esforços seriam inúteis. Pondere bem em seu próprio
coração tudo o que me constrangeu a proceder assim. No início fiquei muito
aflita, mas agora estou mais tranquila. O que vem pela frente, não sei. O
que tiver de ser, será; seja o que Deus quiser!...
Bíkov chegou; deixo a carta inacabada. Ainda queria lhe dizer
muita coisa. Bíkov já está aqui!
V. D.

23 DE SETEMBRO
Varvara Alieksiêievna, minha filha!
Apresso-me a responder-lhe, minha filha; apresso-me a comunicar-
lhe, minha filha, que estou perplexo. Isso tudo parece-me irreal... Ontem
sepultamos Gorchkov. Sim, é verdade, Várienka, é verdade; Bíkov
procedeu com nobreza; só que está vendo, minha querida, também está de
acordo. É claro que em tudo está a vontade divina; é verdade que isso deve
ser necessariamente assim, isto é, a vontade divina deve necessariamente
estar nisso; assim como é claro que a Providência do Criador Celeste é
bendita e insondável e os destinos também, eles também a mesma coisa.
Fiódora também compartilha de sua decisão. É claro que agora será feliz,
minha filha, viverá na abundância, minha pombinha, minha estrela, meu
anjinho — mas veja bem, Várienka, por que isso tem de ser assim tão
depressa?... Sim, os negócios... o senhor Bíkov tem negócios — é claro, e
quem não tem negócios? ele também pode tê-los... eu o vi, quando saía de
sua casa. É bem apessoado, um homem bem apessoado; um homem até
muito bem apessoado. Mas tem algo de errado nisso, não se trata
precisamente do fato de ser ele um homem bem apessoado, e além do mais
agora estou um pouco fora de mim. A questão é, como vamos agora
escrever cartas um ao outro? E eu, como é que eu vou ficar assim sozinho?
Eu, meu anjinho, só faço ponderar, estou ponderando tudo, como me
escreveu, pondero tudo em meu coração, todas as razões. Já havia
terminado de copiar vinte folhas quando tiveram lugar esses
acontecimentos! Minha filha, já que vai partir, precisa fazer uma porção de
compras, vários pares de sapatos, um vestidinho, e, aliás, conheço até uma
loja na Gorókhovaia; lembra-se de como ainda antes a descrevi toda? Não é
possível! Mas como, minha filha, o que está havendo! pois não pode partir
agora, é completamente impossível, não pode de maneira alguma. Pois tem
uma porção de compras a fazer, e também tem de arranjar uma carruagem.
Além disso, o tempo agora também está ruim; pois pense bem, chove a
cântaros, e uma chuva tão úmida, e, ainda por cima... ainda sentirá frio, meu
anjinho; seu coraçãozinho sentirá frio! Tem medo de gente estranha, mas
está partindo. E eu, com quem vou ficar aqui sozinho? É verdade que
Fiódora diz que uma grande felicidade a espera... acontece que ela é uma
mulher desvairada e só quer me destruir. Vai hoje à missa da tarde, minha
filha? Eu iria para vê-la. Uma coisa é verdade, minha filha, que é uma moça
culta, virtuosa e sensível, pois melhor seria que ele se casasse com a filha
do comerciante! O que acha, minha filha? melhor seria ele se casar com a
filha do comerciante! Assim que escurecer, minha Várienka, passo para vê-
la por uma horinha. Nessa época realmente escurece cedo, de modo que
irei. Minha filha, hoje irei vê-la por uma horinha sem falta. Agora está à
espera de Bíkov, mas assim que ele sair, então... Espere por mim, minha
filha, eu irei...
Makar Diévuchkin
27 DE SETEMBRO

Meu amigo, Makar Alieksiêievitch!

O senhor Bíkov disse que preciso obrigatoriamente de três dúzias de camisas


de tecido holandês. Portanto é necessário encontrar costureiras de roupas brancas para
pelo menos duas dúzias, e temos muito pouco tempo. O senhor Bíkov está zangado, diz
que é estardalhaço demais com estes pedaços de pano. Nosso casamento será em cinco
dias, e no dia seguinte ao casamento partimos. O senhor Bíkov tem pressa, diz que não
é preciso perder muito tempo com bobagens. Com tantos afazeres, estou exausta e mal
posso manter-me de pé. Há um monte de coisas para fazer, mas a verdade é que melhor
seria se não houvesse nada disso. E mais: faltam-nos rendas de algodão e de seda, de
modo que é preciso comprar mais, porque o senhor Bíkov diz que não quer que sua
mulher ande como uma cozinheira; e diz que devo sem falta “pôr no chinelo as
mulheres dos outros proprietários todos”. É como ele próprio diz. Pois, então, Makar
Alieksiêievitch, dirija-se, por favor, à casa de madame Chifon, na Gorókhovaia, e peça-
lhe, em primeiro lugar, que nos mande umas costureiras, e, em segundo, que ela própria
também faça o favor de vir. Eu, hoje, estou doente. Nossa nova casa é tão fria e está
numa desordem terrível. A tia do senhor Bíkov está tão velha que mal consegue
respirar. Tenho medo que morra antes de nossa partida, mas o senhor Bíkov diz que não
é nada, que ela há de se restabelecer. Aqui em casa está tudo na mais completa
desordem. O senhor Bíkov não está morando conosco, por isso a criadagem toda
debanda, sabe Deus para onde. Às vezes só há a Fiódora para nos servir; e o camareiro
do senhor Bíkov, que cuida de tudo, está desaparecido já há três dias, não se sabe onde.
O senhor Bíkov passa por aqui todas as manhãs, sempre zangado, e ontem bateu no
administrador da casa, pelo que teve aborrecimentos com a polícia... Não havia
ninguém para levar-lhe esta carta. Envio-a pelo correio municipal. Ah, sim! já ia me
esquecendo do mais importante. Diga a madame Chifon que troque as rendas de seda
sem falta, conforme a amostra de ontem, e que ela venha pessoalmente mostrar-me a
nova escolha. E diga-lhe ainda que mudei de ideia a respeito do canezou*; que ele tem
de ser bordado em crochê. E mais: as iniciais nos lenços devem ser bordadas com
ponto vazado; está prestando atenção? com ponto vazado, e não com ponto cheio. Veja
bem, não vá se esquecer de que é com ponto vazado! Ah, estava me esquecendo de
outra coisa! Diga-lhe, pelo amor de Deus, para bordar as folhinhas na pelerine em
relevo, as gravinhas e os espinhos em cordão, e depois costurar a gola com renda de
algodão ou com falbalá. Transmita-lhe, por favor, Makar Alieksiêievitch.

Su
a
V. D.

P. S. Sinto-me tão envergonhada por incomodá-lo o tempo todo com minhas


incumbências. Anteontem mesmo passou a manhã toda correndo para mim. Mas o que
fazer? Aqui em casa não há nenhuma ordem, e eu mesma estou adoentada. Então não
se zangue comigo, Makar Alieksiêievitch. Que angústia! O que será disso tudo, meu
amigo, meu querido, meu bom Makar Alieksiêievitch? Chego a ter medo de pensar no
futuro. Estou cheia de pressentimentos e vivendo como que inebriada.

P. S. Pelo amor de Deus, meu amigo, não se esqueça de nada do que acabo de
lhe dizer. Fico sempre com medo de que cometa algum engano. Guarde bem, com
ponto vazado, e não com ponto cheio.

V. D.

* Do francês: corpete sem manga, de tecido transparente, que se traz como


adorno sobre o corpo do vestido. (N. da T.)
27 DE SETEMBRO

Prezada senhora
Varvara Alieksiêievna!

Executei suas incumbências todas com presteza. Madame Chifon


diz que ela própria já pensava bordar com ponto vazado; que é mais
conveniente, algo assim, já nem sei, não atinei muito bem. Escreveu-me
ainda sobre falbalá, pois ela falou também do falbalá. Só que eu, minha
filha, me esqueci também do que ela disse sobre o falbalá. Só lembro que
falou muito; que mulher desagradável! O que é isso? Mas ela própria lhe
contará tudo. Eu, minha filha, estou completamente exausto. Hoje nem fui
trabalhar. Mas não se desespere à toa, minha querida. Para a sua
tranquilidade, estou pronto a percorrer todas as lojas. Escreve que chega a
ter medo de pensar no futuro. Mas hoje, por volta das sete, ficará sabendo
de tudo. Madame Chifon irá pessoalmente à sua casa. Portanto, não se
desespere; tenha esperança, minha filha; quem sabe tudo se arranje para
melhor — isso mesmo. Estou com esse maldito falbalá na cabeça — ah,
esse falbalá, esse falbalá! Eu iria vê-la, anjinho, iria, iria sem falta; já
cheguei a me aproximar duas vezes do portão da casa de vocês. Mas tem
Bíkov, isto é, quero dizer, o senhor Bíkov está sempre tão zangado, é por
isso que não vou... o que se há de fazer!

Makar Diévuchkin
28 DE SETEMBRO
Prezado senhor
Makar Alieksiêievitch!
Pelo amor de Deus, corra imediatamente ao joalheiro. Diga-lhe que
não é preciso fazer os brincos com pérolas e esmeraldas. O senhor Bíkov
diz que é luxo demais e custa os olhos da cara. Ele está zangado; diz que
isso está além de suas posses, que o estamos saqueando, e ontem disse que
se soubesse, se fizesse ideia das despesas, nem teria se metido nisso. Diz
que assim que nos casarmos partiremos imediatamente, que não haverá
convidados e que eu não espere que vá girar e dançar, pois para festas ainda
falta muito. É assim que fala! Mas Deus é testemunha de que não preciso de
nada disso. O próprio senhor Bíkov encomendou tudo. Nem me atrevo a
responder-lhe nada: ele é tão irascível. Que vai ser de mim?
V. D.

28 DE SETEMBRO
Minha pombinha, Varvara Alieksiêievna!
Eu — isto é, o joalheiro diz que está bem; mas eu queria primeiro
falar a meu respeito, que adoeci e não consigo me levantar da cama.
Justamente agora, num momento em que há tanto o que fazer e sou
necessário, fui apanhar um resfriado, o inimigo que o pegue! Comunico-lhe
ainda que, para cúmulo das minhas desgraças, Sua Excelência também
dignou-se a agir com severidade e gritou e ralhou muito com o Emielián
Ivánovitch, com isso acabou ficando extenuado, coitado. Veja que estou lhe
informando acerca de tudo. É verdade, queria lhe escrever mais alguma
coisa, mas receio importuná-la. É que eu, minha filha, sou um homem
estúpido, simples, escrevo o que me vem à cabeça, de maneira que, talvez,
veja nisso alguma coisa que... mas falar nisso para quê!
Se
u
Makar Diévuchkin
29 DE SETEMBRO
Varvara Alieksiêievna, minha querida!
Hoje vi Fiódora, minha pombinha. Ela diz que o seu casamento é
amanhã e que depois de amanhã partirá, que o senhor Bíkov já está
alugando os cavalos. Quanto à Sua Excelência, já lhe informei, minha filha.
E outra coisa: já verifiquei as contas da loja da Gorókhovaia; está tudo
certo, só que saiu muito caro. Mas por que razão o senhor Bíkov se zanga
com você? Bem, seja feliz, minha filha! Estou contente; e ficarei contente
se estiver feliz. Iria à igreja, minha filha, mas não posso, doem-me os rins.
Mas volto a insistir a respeito das nossas cartas: pois quem há de se
encarregar de entregá-las para nós, minha filha? Ah, sim! Sei que
beneficiou Fiódora, minha querida! Foi uma boa ação o que fez, minha
amiga, fez muito bem. Foi uma boa ação! O Senhor há de abençoá-la por
todas as suas boas ações. As boas ações não ficam sem recompensa, e a
virtude há de ser sempre coroada com a coroa da justiça divina, mais cedo
ou mais tarde. Minha filha! Gostaria de lhe escrever muita coisa, por mim
lhe escreveria a toda hora, a todo minuto, escreveria tudo! Ainda tenho
comigo um livrinho seu, os Contos de Biélkin, mas, sabe, minha filha, não o
tome de volta, deixe-o comigo de presente, minha pombinha. E não porque
queira tanto relê-lo. Mas como sabe por si própria, minha filha, vem aí o
inverno; as noites serão longas, será uma tristeza, e então poderei ler. Eu,
minha filha, me mudarei de meu apartamento para o seu antigo, Fiódora me
alugará um quarto. Desta mulher honesta agora não me separo por nada, e
além disso é tão trabalhadora. Ontem fiz uma inspeção detalhada em seu
quarto vazio. Lá, o seu bastidor, ainda com o bordado, permanece tal como
o deixou, intacto: está no cantinho. Examinei seu bordado. Ficaram ainda
aqui alguns retalhos. E a linha que começara a bobinar em uma cartinha
minha. Encontrei algumas folhinhas de papel sobre a mesinha, e numa folha
está escrito: “Prezado senhor Makar Alieksiêievitch, apresso-me” — e mais
nada. Pelo jeito alguém a interrompeu na parte mais interessante. No canto,
atrás do biombo, está a sua caminha... Minha pombinha!!! Bem, até breve,
até breve; pelo amor de Deus, responda a esta cartinha o mais depressa
possível.
Makar Diévuchkin
30 DE SETEMBRO

Meu inestimável amigo Makar Alieksiêievitch!

Tudo se cumpriu! Minha sorte está lançada, não sei qual, mas me
submeto à vontade do Senhor. Partimos amanhã. Despeço-me do senhor
pela última vez, meu inestimável amigo, meu benfeitor, meu querido! Não
se aflija por minha causa, viva feliz, lembre-se de mim, e que a bênção de
Deus recaia sobre o senhor! Vou me lembrar sempre do senhor em meus
pensamentos e em minhas orações. Eis que chegou ao fim esta época! Das
lembranças do passado, é pouco o que levo de agradável para a minha nova
vida; quanto mais preciosas forem as lembranças sobre o senhor, mais
precioso será o senhor para o meu coração. É meu único amigo; foi a única
pessoa que me amou aqui. Pois eu via tudo, eu sabia como o senhor me
amava! Ficava feliz com um sorriso meu, com uma linha de minhas cartas.
Terá de se desacostumar de mim agora. Como há de ficar sozinho aqui?
Com quem ficará aqui, meu bom, precioso e único amigo? Deixo-lhe o
livro, o bastidor e a carta iniciada; quando olhar para estas linhas que
comecei a escrever, leia todo o resto em pensamento, o que gostaria de
ouvir ou de ler de mim, tudo o que poderia lhe escrever; e o que não lhe
escreveria agora! Lembre-se da sua pobre Várienka, que o amou com todas
as forças. Todas as suas cartas ficaram na gaveta de cima da cômoda de
Fiódora. Escreve que está doente, mas o senhor Bíkov não me deixa sair
hoje para lugar nenhum. Hei de lhe escrever, meu amigo, eu prometo, mas
só Deus sabe o que pode acontecer. Então, despeçamo-nos agora para
sempre, meu amigo, meu pombinho, para sempre!... Oh, que abraço lhe
daria agora! Adeus, meu amigo, adeus, adeus. Viva feliz; tenha boa saúde.
Minhas orações serão eternamente para o senhor. Oh, como me sinto triste,
como sinto toda a minha alma oprimida. O senhor Bíkov está me
chamando. Com eterno amor
V.

P. S. Minha alma está tão repleta, mas tão repleta de lágrimas


agora...
As lágrimas me sufocam, me dilaceram. Adeus.
Meu Deus, que tristeza!
Lembre-se, lembre-se da sua pobre Várienka!

Várienka, minha filha, minha pombinha, meu tesouro! Estão


levando-a embora, está partindo! Melhor seria agora que me arrancassem o
coração do peito! Como pode fazer isso? Chora, mas está partindo?! Acabo
de receber sua cartinha toda salpicada de lágrimas. Significa que não quer
ir; significa que a levam à força; significa que tem pena de mim, significa
que gosta de mim! E como é possível, com quem há de ficar agora? Lá o
seu coraçãozinho sentirá tristeza, náusea e frio. A saudade irá sugá-lo, a
tristeza o rasgará ao meio. Lá vai morrer, lá a enterrarão na terra úmida; não
haverá ninguém lá para chorar por você! O senhor Bíkov vai passar o tempo
caçando lebres... Ah, minha filha, minha filha! que decisão foi essa, como
pôde tomar uma medida dessas? O que foi fazer, o que fez consigo mesma!
Pois lá hão de levá-la para o caixão; lá vai deixá-la esgotada, anjinho.
Porque é frágil, minha filha, como uma peninha. E onde estava eu? Para
onde eu estava, estúpido, olhando feito um basbaque? Olho, a criança está
fazendo extravagância, simplesmente, a cabecinha da criancinha está
doendo! Devia, muito simplesmente... mas não, sou um toleirão mesmo,
não penso em nada, não vejo nada, como se tudo estivesse certo, como se
nada disso me dissesse respeito; e ainda me pus a correr atrás de falbalá!...
Não, Várienka, hei de me levantar; amanhã, talvez, já esteja restabelecido, e
então me levanto!... Eu, minha filha, vou me jogar debaixo das rodas; não a
deixarei ir embora. Não, o que está ocorrendo de fato? Com que direito
acontece uma coisa dessas? Partirei com você; se não me levar, hei de
correr atrás de sua carruagem, e vou correr até não poder mais, até que me
falte alento. E por acaso sabe o que há nesse lugar para onde está indo,
minha filha? Talvez não saiba, então pergunte a mim! Lá só há estepe,
minha querida, só estepe, a estepe nua; nua como a palma da minha mão!
Lá circulam mulheres insensíveis e mujiques ignorantes e bêbados. Lá
agora as folhas todas já caíram das árvores e só chove e faz frio — e é para
lá que está indo! Bem, o senhor Bíkov tem o que fazer lá: vai ficar com as
lebres; mas e você? Está querendo ser proprietária rural, minha filha? Mas,
meu querubim! Olhe para si mesma, acha que se parece com uma
proprietária rural? Como é possível uma coisa dessas, Várienka? Para quem
vou eu escrever cartas, minha filha? Aí está! Procure imaginar, minha filha
— pergunte a si mesma, a quem vai ele escrever cartas? A quem vou
chamar de minha filha; a quem vou chamar por um nome tão carinhoso?
Onde poderei encontrá-la depois, meu anjinho? Morrerei, Várienka, por
certo que morrerei; meu coração não poderá suportar tamanha infelicidade!
Eu a amei como à luz do dia, como se ama a uma filha legítima, amei tudo
em você, minha filha, minha querida! e não era senão por você, unicamente,
que vivia! Trabalhava, copiava documentos, andava, passeava e transmitia
todas as minhas observações para o papel em forma de cartas amigáveis, e
tudo, minha filha, porque vivia aqui perto, em frente. Talvez não soubesse
disso, mas era tudo exatamente assim! Pois ouça, minha filha, reflita bem,
minha linda pombinha encantadora, como é possível que esteja nos
deixando? Minha querida, não pode ir, é impossível; simplesmente, está
decidido, não há qualquer possibilidade! Além de tudo, está chovendo e é
fragilzinha, pode apanhar um resfriado. Sua carruagem vai ficar
encharcada; com certeza vai ficar encharcada. E, assim que transpuserem a
barreira da cidade, vai se quebrar; vai se quebrar de propósito. Porque aqui
em Petersburgo as carruagens são tão malfeitas! Conheço todos esses
carpinteiros de carruagens; o que conta, para eles, é o modelo, o que fazem
é fabricar lá um brinquedo qualquer, mas não são sólidas! eu lhe juro que
não são sólidas! Cairei de joelhos diante do senhor Bíkov, minha filha; hei
de demonstrar-lhe, de demonstrar-lhe tudo! E demonstre-lhe também,
minha filha; demonstre-lhe com a razão! Diga-lhe que ficará e que não pode
ir!... Ora, por que não foi se casar em Moscou com a filha do comerciante?
Ele que se casasse por lá com ela! Para ele a filha de um comerciante seria
muito mais apropriada; e isso eu sei por quê! E eu a teria mantido aqui
comigo. Para que precisa dele, minha filha, desse Bíkov? Por que ele de
repente lhe pareceu gentil? Talvez porque a tenha enchido de falbalá, talvez
tenha sido por isso! Mas o que significa esse falbalá? para que falbalá? Pois
isso, minha filha, não vale nada! O que se trata, aqui, é de uma vida
humana, já esse falbalá, minha filha, é um pedaço de pano; o falbalá, minha
filha, não passa de um pedacinho de pano. Eu mesmo, assim que receber o
ordenado, lhe comprarei uma porção de falbalá; hei de comprar uma
porção, minha filha; conheço até uma loja aqui; espere só até eu receber o
ordenado, Várienka, meu querubim! Ah, Senhor, Senhor! Quer dizer que
vai mesmo embora para as estepes com o senhor Bíkov, que vai para
sempre? Ah, minha filha!... Não, escreva-me mais uma vez, escreva-me
uma cartinha mais contando tudo, e quando for embora, então escreva-me
de lá uma carta. Senão, meu anjo celeste, esta será a última carta; e não
pode ser, de maneira alguma, que esta seja a última carta! Não mesmo, eu
vou escrever, e também há de escrever-me... Mesmo porque, agora estou até
começando a formar meu estilo... Ah, minha querida, o que interessa o
estilo? Pois agora já não sei nem o que estou escrevendo, não sei mesmo,
não sei de nada, nem sequer releio, nem corrijo o estilo, escrevo por
escrever, apenas para lhe escrever mais... Minha pombinha, minha querida,
minha filha!
Dostoiévski, F.
Gente pobre, 1ª Edição — 2009
(2ª Reimpressão — 2013),
São Paulo, Editora 34;
tradução direta do russo por
Fátima Bianchi
Revisado e adequado ao NAO por Joroncas

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