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Ana Paula Rodrigues Do Nascimento - 2013 - Dissertação-1-64
Ana Paula Rodrigues Do Nascimento - 2013 - Dissertação-1-64
Ana Paula Rodrigues Do Nascimento - 2013 - Dissertação-1-64
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
GOIÂNIA
2013
1
GOIÂNIA
2013
2
CDU: 37.091.8-055.1
3
4
AGRADECIMENTOS
RESUMO
Com uma perspectiva crítica em psicologia e em educação, o objetivo deste estudo é conhecer
os aspectos envolvidos na predominância do encaminhamento de meninos com queixas
escolares para atendimento psicológico em clínicas-escola de psicologia e unidades de saúde
pública. Baseando-se na compreensão de que o fracasso escolar é um fenômeno socialmente
produzido, buscou-se refletir sobre os mecanismos que produzem as queixas escolares em
meninos, e como essas queixas, construídas no espaço escolar, se convertem em questões
intrínsecas, tornando o acompanhamento psicológico uma das vias de resolução para
problemas escolares. Para a investigação do objeto de estudo, adotou-se como metodologia a
pesquisa bibliográfica, por considerá-la essencial para desvelar o problema levantado.
Procedeu-se, então, a uma busca no banco de teses e dissertações Capes, na biblioteca
eletrônica SciELO, na biblioteca virtual em saúde (BVS) e nos periódicos eletrônicos em
psicologia (PePSIC), utilizando os seguintes descritores: “caracterização de clientela infantil
em clínicas-escola de psicologia”, “caracterização de clientela infantil em serviços de saúde
pública”, “queixa escolar de meninos”, “fracasso escolar de meninos”, “relação entre gênero e
educação”, “gênero e fracasso escolar de meninos”, “gênero e desempenho escolar”,
“predomínio de crianças do sexo masculino encaminhadas para clínicas-escola de psicologia
ou serviços de saúde pública”. Para o levantamento das informações, foram trabalhados dois
grupos de fontes bibliográficas: o primeiro grupo é constituído por estudos e pesquisas na área
da psicologia que investigaram a demanda infantil para acompanhamento psicológico em
clínicas-escola de psicologia e serviços de saúde pública; o segundo grupo constitui-sede
estudos e pesquisas da área da educação que investigaram o fracasso escolar de meninos. Com
a descrição e análise do corpus documental foi possível apreender alguns aspectos que
colaboram para a predominância de meninos com queixas escolares, o que permitiu o
questionamento de concepções que naturalizam os processos de desenvolvimento desses
meninos, bem como situar a temática proposta no contexto histórico-cultural das relações de
gênero.
ABSTRACT
Based on a critical perspective in psychology and education, the aim of this study is to
understand the aspects involved on the prevalence of sending boys with learning complaints
for psychological care in school clinics of psychology and public health units. Knowing that
school failure is a phenomenon socially developed, this discussion seeks to reflect on the
mechanisms that produce learning complaints in boys and how these complaints, built in
school, become on intrinsic issues, making the psychological support one of the ways of
resolving for school problems. In order to investigate the aim study, bibliographical research
was used as methodology, considering it essential to uncover the problem raised by this
research. A seek in the thesis and dissertations from Capes, in the SciELO electronic library,
virtual library in health (BVS) and electronic journals in psychology (PEPSIC) was adopted,
using the following descriptors: “characterization of child clients in school clinics of
psychology”, “characterization of child clients in public health services”, boys scholastic
complaints”, “school failure of boys”, “relationship between gender and education”, “gender
and school failure of boys”, “gender and school performance”, “prevalence of male children
taken to school clinics of psychology or public health services”. Two groups of bibliographic
sources were used: the first group is constituted by studies and researches in psychology
which investigated the infant demand for psychological support in school clinics of
psychology and public health services; the second group consists of studies and researches in
the area of education that investigated the school failure of boys. From the description and
analysis of the literature corpus, it was possible to seize some aspects that contribute to the
prevalence of boys with school complaints, which allowed questioning conceptions that
naturalize their development processes and situate the theme proposed in historical and
cultural context of gender relations.
Keywords: School complaint. School failure. Boys.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 10
2.1.1 Grupo 1 – Produções científicas que não relacionam a queixa ao sexo ..................... 40
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 93
APÊNDICES ............................................................................................................................ 98
10
INTRODUÇÃO
O presente estudo tem como objetivo refletir sobre os determinantes que promovem o
deslocamento de meninos com problemas escolares para um consultório de psicologia clínica
localizado em uma clínica-escola de psicologia ou em um serviço de saúde pública. Esses
problemas que ocorrem no contexto escolar são designados pela literatura psicológica como
queixa escolar. Assim, na discussão do objeto de estudo, procurou-se conhecer os
mecanismos que produzem as queixas escolares em meninos, e como essas queixas,
construídas no espaço escolar, se convertem em questões intrínsecas a esses meninos, o que
torna o acompanhamento psicológico uma das vias de resolução para os problemas escolares.
Com base nesse pressuposto, ao propor uma reflexão sobre os fatores que determinam
a predominância de meninos encaminhados para acompanhamento psicológico, parto da
compreensão de que os percalços na trajetória escolar de meninos expressam uma das faces
do fenômeno social e político da produção do fracasso escolar. Respaldada pelos estudos
realizados em minha primeira especialização na área de psicologia escolar, posso, contudo,
observar que a predominância de meninos com queixa escolar apresenta-se como um
fenômeno a ser desvelado; um desafio a ser transposto na superação das insidiosas formas de
exclusão constantemente reinventadas na sociedade contemporânea.
Dessa forma, a construção do tema deste estudo passa pelo entendimento sobre o que
significa a queixa escolar dos meninos no âmbito da produção social do fracasso escolar,
conforme já apontava Patto (1999), circunscrevendo-a como um processo solidário às formas
de exclusão próprias do sistema econômico demarcado pela luta de classes. Interessa,
sobretudo, apropriar-se das reflexões e pesquisas que, no âmbito da psicologia e da educação,
se debruçam sobre os aspectos envolvidos no encaminhamento desses sujeitos aos serviços de
psicologia.
Primeiramente, foi realizada uma pesquisa exploratória junto aos textos científicos
oriundos do banco de teses e dissertações Capes, da biblioteca eletrônica SciELO, da
biblioteca virtual em Saúde (BVS) e nos Periódicos Eletrônicos em Psicologia (PePSIC). O
objetivo foi verificar se esse fenômeno da predominância de meninos encaminhados para
acompanhamento psicológico com queixas escolares, tal como havia percebido na instituição
na qual trabalho, ocorreria também em outras instituições de saúde pública. Nesse primeiro
momento, a busca pelas produções científicas foi norteada pelo descritor geral:
“predominância de crianças do sexo masculino, com queixas escolares, encaminhadas para
acompanhamento psicológico”. Após leitura preliminar dos textos levantados nessa pesquisa
12
inicial, foi possível perceber que o fenômeno da predominância de meninos com queixas
relacionadas à sua escolarização era presente e muito recorrente em muitas instituições
brasileiras que possuem acompanhamento psicológico. Também foi possível verificar que
esse fenômeno era apontado em pesquisas com o objetivo de caracterizar a demanda infantil,
atendida por essas instituições, a saber: clínicas-escola de psicologia e serviços de saúde
pública.
Mediante essa necessidade, no terceiro momento, foi realizada outra busca por
produções científicas nessas mesmas bases eletrônicas de dados, inserindo o descritor
“escola”, com a finalidade de se saber se as pesquisas, cujo objeto de estudo é a escola, já
teriam apontado essa incidência de meninos com problemas em sua trajetória escolar.
Para tanto, tendo por base os estudos realizados no âmbito da psicologia escolar, foi
utilizado o termo “fracasso escolar em meninos” como descritor, pois a compreensão era de
que o desenvolvimento das discussões no campo da educação culmina na superação da
perspectiva de queixa escolar ou de dificuldade de aprendizagem em prol de uma visão mais
ampla e profunda dos determinantes desses processos. Ou seja, a queixa escolar e a
dificuldade de aprendizagem tornam-se expressões do fracasso escolar socialmente
produzido.
pesquisa bibliográfica na área da educação, que me deparei com o conceito de gênero. Nesse
primeiro contato com as produções no campo da educação, pude perceber que a questão da
relação entre gênero e educação tem se apresentado como um foco recorrente dessa discussão
no meio educacional.
Dentre tais produções pode ser observada uma profusão de estudos e pesquisas com
perspectivas teóricas e metodológicas muito diversificadas. Foi possível observar também que
vários programas de pós-graduação1 apresentam essa linha de pesquisa ou contam com grupos
de estudo preocupados em entender as questões educacionais perpassadas pelas relações de
gênero.
Ressalta-se, também, que vários estudos norteiam-se por recortes distintos, que
enfatizam desde a educação infantil até o ensino médio, passando também pela educação de
jovens e adultos. Tais estudos articulam-se por objetivos diversos, dentre os quais, o de
compreender como as relações de gênero aparecem nos documentos oficiais que orientam as
políticas de educação no Brasil (VIANA; UNBEHAUM, 2004); de entender como as relações
de gênero e poder presentes nos processos de socialização das crianças da educação infantil
influenciam na normalização e no controle das expressões corporais de meninos e meninas
(VIANNA; FINCO, 2009); de refletir sobre a dimensão simbólica dos conteúdos de gênero
existentes em narrativas de jovens estudantes de um projeto de EJA (BRITO, 2009); ou,
ainda, de investigar a produção da masculinidade de jovens estudantes homossexuais do
ensino médio (RAMIRES NETO, 2006).
Diante desse vasto campo de estudos e pesquisas sobre a relação gênero e educação,
foi necessário estabelecer, como recorte, a escolha por artigos que apresentam articulação
entre gênero e os mecanismos presentes no fenômeno relacionado ao predomínio de meninos
1
É o caso, por exemplo, do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), da Universidade de São Paulo
(USP), e do grupo de estudo Gênero, Sexualidade e Educação Formal, também da USP, pois a maioria das
pesquisas selecionadas para serem relatadas no terceiro capítulo pertence a essa instituição.
14
2
Tiballi (1998), em sua tese de doutorado, evidenciou que muitas pesquisas brasileiras sobre o tema do fracasso
escolar não se preocupa com a delimitação conceitual desse fenômeno, de modo que “reprovação, repetência,
evasão, dificuldade de aprendizagem, insucesso escolar, são algumas das expressões utilizadas, quase sempre
como sinônimos de fracasso escolar, desconsiderando as diferentes significações pedagógicas que cada um
desses termos contém” (p. 40).
15
Convém ressaltar que, eleger a criança, – principalmente os meninos – como foco das
reflexões desse trabalho, pode parecer uma contradição quando a intenção é combater as
análises individualizantes que nos conduzem a uma postura psicologista diante de fenômenos
produzidos na realidade. Entretanto, mais do que ater-se à compreensão dos percalços na
escolarização dos meninos, com o pressuposto de que a infância, concebida como um
fenômeno, determinado histórica e socialmente, faz-se necessário desvelar uma das faces
pelas quais a exclusão se reproduz.
O terceiro capítulo aponta quem são os meninos que fracassam na escola e apresenta a
análise sobre os estudos e pesquisas do campo da educação que tiveram como foco essa
temática. O objetivo é contribuir para a compreensão sobre esse fenômeno, a partir do
contexto escolar. Por último, são apresentadas as considerações sobre o estudo.
16
CAPÍTULO I
De acordo com Souza (1997), a realidade da educação escolar brasileira se reflete nos
serviços de atendimento psicológico oferecidos à população em clínicas-escola de psicologia
e serviços de saúde pública, o que evidencia historicamente que uma das maneiras
encontradas para se resolver problemas comportamentais e de aprendizagem que emergem
das trajetórias escolares de alunos e alunas é o encaminhamento para acompanhamento
psicológico.
A literatura sobre esse fenômeno revela que as queixas escolares são as responsáveis
pelo alto índice de encaminhamento de crianças e adolescentes para acompanhamento
psicológico em clínicas-escola de psicologia e serviços de saúde pública, demonstrando,
também, que a predominância de meninos encaminhados é recorrente nas publicações desde a
década de 1960 (BUENO; MORAIS; URBINATTI, 2000; CABRAL; SAWAYA, 2001;
SCORTEGANA; LEVANDOWSKI, 2004; BRAGA; MORAIS, 2007; SAVALHIA, 2007;
MERG, 2008, BOAZ, 2009).
Com essa definição apresentada por Souza (2000), torna-se necessário destacar a
17
Dessa forma, como um fenômeno social e coletivo, a queixa escolar somente pode ser
compreendida a partir das relações sociais que a criança estabelece dialeticamente com a
escola e a sociedade. São essas relações sociais que fornecem a materialidade para se
compreender os modos de ser, de agir, de pensar e de se relacionar, das crianças.
[...] se atrás das funções psicológicas estão geneticamente as relações das pessoas,
então: 1) é ridículo procurar centros especiais para as funções psicológicas
superiores ou funções supremas no córtex (partes frontais – Pavlov); 2) deve
explicá-las não como ligações internas orgânicas (regulação), mas de fora, através de
estímulos; 3) elas não são estruturas naturais, mas construções; 4) o princípio básico
do trabalho das funções psíquicas superiores (da personalidade) é social do tipo
interação das funções, que tomou o lugar da interação das pessoas (VIGOTSKI,
2000, p. 27).
Com base nessas ponderações do autor, depreende-se que esse pensador não deixa de
considerar os aspectos orgânicos, biológicos e maturacionais no processo de desenvolvimento
dos indivíduos, pois ele não defende uma concepção polarizada ou fragmentada de ser
humano, sem negar esses aspectos sobrepondo os sociais e culturais. Pelo contrário, a
concepção de ser humano que norteia as ideias desse psicólogo russo procura romper com o
dualismo, posto historicamente na relação entre ser humano, natureza e cultura.
Ao estudar esses argumentos apresentados por Vigotski sobre a relação entre o social,
o cultural e o biológico que as funções elementares ou biológicas e funções superiores ou
culturais encerram, Pino (2000) considera que esse pensador
[...] não está seguindo, como o fazem outros autores, a via do dualismo. Muito pelo
contrário, ele está propondo a via de sua superação. As funções biológicas não
desaparecem com a emergência das culturais, mas adquirem uma nova forma de
existência: elas são incorporadas na história humana. Afirmar que o
desenvolvimento humano é cultural equivale, portanto a dizer que é histórico, ou
seja, traduz o longo processo de transformação que o homem opera na natureza e
nele mesmo como parte dessa natureza (p. 51).
Assim, os processos que envolvem o desenvolvimento dos meninos são forjados nas
relações construídas histórica e culturalmente, as quais fornecem a materialidade para a
constituição de um determinado modo de ser menino e regulam padrões comportamentais, de
linguagem e de cognição.
Essa questão é de suma importância para se refletir sobre o modo como os seres
humanos são constituídos e como se organizam em sociedade. Sociedade regida por um
sistema fornecedor da materialidade e que estrutura as instituições e as relações construídas na
condição de seres humanos,bem como os discursos, valores, crenças e ideias, o saber
científico ou senso comum produzidos, e que, muitas vezes, norteiam a vida cotidiana e as
práticas profissionais.
[...] enquanto modo de produção de ideias, marca tanto o senso comum quanto o
conhecimento científico. Define a produção das diferentes modalidades de ideias
necessárias à produção das mercadorias nas condições da exploração capitalista, da
coisificação das relações sociais e da desumanização do homem. Não se refere
estritamente ao modo como pensa o capitalista, mas ao modo de pensar necessário à
reprodução do capitalismo, à reelaboração das suas bases de sustentação –
ideológicas e sociais (p. XI).
20
Com base na concepção de Souza (2008), de que “o poder, nas sociedades complexas
contemporâneas, não se faz tão somente pelo controle dos meios de produção, mas também
pelo controle da produção de sentidos” (p. 41), pode-se depreender que a psicologia é
preponderante em definir os sentidos da subjetividade. É o caso, por exemplo, do significado
de ser menino.
Por esses pressupostos, pode-se dizer que não existe possibilidade de desarticular a
complexa trama que envolve a constituição da subjetividade humana (desenvolvida a partir da
das relações subjetivas) que se constrói na sociedade capitalista de produção, do fenômeno
que, no presente estudo, é designado queixa escolar.
Dessa forma, o que se identifica como queixa escolar é um fenômeno que se mostra
apenas na aparência. Aparência que esconde as contradições e tensões envolvidas nos
mecanismos de sua produção, bem como a fragmentação e o reducionismo dos processos
psicológicos, pois se colocam em polos opostos (por exemplo, o que é interno e externo; o
que é natural e social; o que é psíquico e biológico), como aspectos que fazem parte da
constituição do desenvolvimento humano. Essa questão sugere a necessidade de se pensar que
os fenômenos considerados psicológicos não podem ser compreendidos de forma deslocada
da sociedade na qual fazem parte.
21
[...] nos apoiamos na compreensão dos destinos escolares, sejam eles de fracasso ou de
sucesso, produzidos de forma dialética e complexa, no quadro de uma configuração de
fatores em interdependência, o que significa adotar uma posição contrária à lógica de causa
e efeito. Este procedimento permite observar, além das variáveis clássicas (como renda,
ocupação, escolaridade dos pais), outros elementos mediadores do curso escolar: as
trajetórias sociais, sabendo que essas produzem diferenças na experiência de vida e visão de
mundo; os significados e as práticas de escolarização, entre outros fatores centrais e
periféricos às questões escolares (p. 20).
3
O objetivo de tencionar essas duas áreas neste estudo é refletir sobre as contradições históricas que elas
carregam em relação às intervenções junto aos problemas escolares.
4
A exigência desse laudo psicológico se dava na época das salas especiais. Atualmente, na educação inclusiva,
essa exigência é feita para avaliar o tipo de necessidade educacional especial que a criança possui.
5
De acordo com Chauí (2001), ideologia é “um conjunto lógico, sistemático, e coerente de representações
(ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que
devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como
devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações) e
prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros
de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais,
sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes a partir de divisões na esfera da produção.
Pelo contrário a função da ideologia é a de apagar as diferenças como de classes e fornecer aos membros da
sociedade o sentimento da identidade social, encontrando certos referenciais identificadores de todos e para
todos, como, por exemplo, a Humanidade, a Liberdade, a Igualdade, a Nação, ou o Estado” (p. 108).
23
Bock (2003) destaca que uma das repostas da psicologia, como ciência, às demandas
realizadas pela educação tem relação com a produção de conhecimentos sobre o
desenvolvimento infantil. Antes, era necessário conhecer a criança, seu desenvolvimento, sua
inteligência, seus afetos, sua sociabilidade, saberes estes, tidos como necessários à prática
pedagógica. Essa necessidade de se conhecer a criança e seu desenvolvimento como um
respaldo à prática pedagógica é um princípio escolanovista que criticava o modelo tradicional
de educação (PATTO, 1999; BOCK, 2003).
São nesses saberes psicológicos, protegidos pelo status de cientificidade, que a relação
de cumplicidade ideológica entre a psicologia e a educação se materializa (BOCK, 2003;
PATTO, 2006). Esses conhecimentos são apropriados pela escola para responder aos desafios
que a prática pedagógica enfrenta em seu cotidiano. Entre esses desafios está a complexidade
do fenômeno da não aprendizagem escolar. E quando o assunto é a chamada “dificuldade de
aprendizagem”, a ciência psicológica, mais especificamente, a prática da avaliação
psicológica e da psicologia clínica, aparece, no ideário educacional, como um importante
instrumento de “revelação” sobre os motivos que levam as crianças ou os adolescentes a não
obterem índices satisfatórios em sua aprendizagem.
Segundo Patto (2000), “encaminhar para diagnóstico os alunos que não correspondem
às expectativas de rendimento e de comportamento que vigoram nas escolas é um anseio de
professores, técnicos e administradores escolares que um crescente número de psicólogos tem
ajudado a realizar” (p.65). Dessa forma, pode-se dizer que um conhecimento se torna
ideológico quando cumpre a função de dificultar “a atitude reflexiva que estranha o que é tido
como dado, pois naturalizam relações de poder construídas historicamente” (PATTO, 2006, p.
13). A força do discurso ideológico reside exatamente no fato de que, para se tornar legítimo
e verdadeiro, deve-se omitir sua finalidade.
Com base nesse entendimento, pode-se dizer que, ao se refletir sobre os mecanismos
envolvidos no encaminhamento de meninos com queixas escolares para acompanhamento
psicológico,é possível levantar indícios de que o que autoriza esse encaminhamento é a
apropriação de determinados conhecimentos psicológicos isolada dos condicionantes sócio-
históricos que subsidiam as concepções dos professores, gestores e coordenadores sobre o que
é ser menino, bem como as expectativas comportamentais que encontram respaldo social para
efetivar esse encaminhamento.
Outro aspecto a ser considerado é o embate que o estudo das queixas escolares
provoca no campo da psicologia com relação às questões éticas que envolvem o atendimento
de crianças e adolescentes com queixas escolares. Isso pode ocorrer principalmente, em
virtude das críticas realizadas aos atendimentos clínicos numa perspectiva adaptacionista da
criança à escola, o que reflete uma subordinação das práticas psicológicas aos princípios
neoliberais6 e evidencia que essa prática é utilizada, ainda, como instrumento que visa a
sujeição das crianças à estrutura de dominação capitalista imposta às instituições sociais.
Apesar de não se ter a intenção, com esta pesquisa, de adentrar nessa arena de
conflitos relacionados à problemática de ser ou não um retrocesso na prática profissional
clínica de psicologia do atendimento às demandas escolares, buscou-se, no entanto, refletir
6
Neoliberalismo pode ser definido como um conjunto de ideias políticas e econômicas que preconiza uma
participação mínima do Estado na economia, e se caracteriza pela política de privatização, ênfase na
globalização, incentivo ao aumento da produção, entre outras. Na psicologia, essa doutrina apresenta como
consequência uma ênfase no individualismo, na naturalização e fragmentação dos fenômenos psicológicos e uma
formação profissional centrada no tecnicismo e na especialização dos saberes que atendam às demandas do
mercado e que possam colaborar para a justificação das desigualdades sociais que esse sistema provoca.
25
7
Não constitui objetivo neste estudo traçar com profundidade, a partir de uma perspectiva histórica, as raízes das
explicações hegemônicas acerca do fracasso escolar, mas, trazer alguns elementos importantes que podem
contribuir no dimensionamento do tema que se pretende desenvolver.
26
Para destrinchar um pouco mais esse contexto escolar, com o intuito de se refletir
sobre o fenômeno do fracasso escolar, é necessário considerar que a escola não existe no
vácuo.Na realidade, ela se constitui historicamente como uma das instituições mais
importantes em nossa sociedade, com objetivos e finalidades específicas. Dessa forma, a
escola está inserida numa sociedade regida por leis, regras, princípios econômicos e políticos,
e composta por outras instâncias sociais, como a família, o trabalho, a saúde, entre outras.
8
A produção de pesquisas, no Brasil, sobre fracasso escolar é vasta não somente pela quantidade que priorizam
essa temática, mas pela diversidade teórica e metodológica que esses estudos adotam. Para efeito deste trabalho,
foram utilizados os seguintes autores para subsidiar a discussão sobre a temática do fracasso escolar: Patto
(1999, 2000, 2007); Tiballi (1998); Angelucci et al. (2004); Faria (2008).
9
Psicologização pode ser compreendido como uma “tendência a tomar a dimensão psíquica como algo que
antecede o social e a ele se sobrepõe” (PATTO, 1999, p. 23).
10
Patologização é a ênfase das explicações sobre o fracasso escolar reduzida a saberes médicos e higienistas (ver
Patto, 1999).
27
Dessa forma, pode-se dizer que há uma conformação com as explicações para o
fracasso escolar que se ancoram em fatores individuais, sejam eles de natureza biológica,
familiar, psicológica, emocional ou cultural. Outra explicação diz respeito aos fatores intra-
escolares, que se concentram na formação docente e na metodologia utilizada; na
precariedade da escola pública e na lógica excludente da educação escolar. Há, ainda, a
explicação de que o fenômeno do fracasso escolar é uma questão política e que, portanto,
deve ser analisada como um aspecto que é constitutivo de uma sociedade classista e
excludente (PATTO, 1999; ANGELUCCI et al., 2004).
Apesar de ter sido publicado há mais de duas décadas, a obra de Patto (1999)
intitulada “A produção do fracasso escolar – histórias de submissão e rebeldia” é uma
importante lente para se entender os labirintos conceituais, teóricos e metodológicos que,
muitas vezes, tal como se mostram as explicações sobre o fracasso escolar na atualidade.
Patto (1999), na primeira parte da sua obra, traça o percurso histórico e social das
ideias psicológicas e pedagógicas que subsidiam as práticas discursivas e não discursivas,
lançando luz sobre os processos responsáveis por produzirem os “fracassados”, que, nesse
caso, eram os alunos e alunas membros das classes trabalhadoras e rurais que passaram a ter
acesso à escola pública.
Ao finalizar a primeira parte do livro, Patto (1999) elucida três afirmações11 que ainda
se encontram diluídas nos estudos contemporâneos acerca do fracasso escolar: i) “as
dificuldades da criança pobre decorrem de sua condição de vida” (p. 155); ii) “a escola
pública é uma escola adequada às crianças de classe média e o professor tende a agir, em sala
de aula, tendo em mente um aluno ideal” (p. 157); iii) “os professores não entendem ou
discriminam seus alunos de classe baixa por terem pouca sensibilidade e grande falta de
conhecimento dos padrões culturais dos alunos pobres, em função de sua condição de classe
média” (p. 160).
pobre decorrem de suas condições de vida encontra respaldo no que se designa como
diferenças individuais, sejam elas provenientes de aspectos biológicos, psicológicos,
familiares ou culturais.
Essa afirmação de que as crianças oriundas dos segmentos mais pobres não aprendem
na escola por conta de suas deficiências, sejam elas de ordem biológicas, psíquicas ou
culturais, abrem brechas para explicações pautadas por princípios fundados no psicologismo e
na patologização da aprendizagem, que, conforme discutido anteriormente, culpabiliza ora a
criança, ora sua família, pelo fracasso na escolarização e naturalizam os processos de
desenvolvimento das funções mentais superiores. A esse respeito, Souza (2010) ressalta:
De fato, essa redução psicológica tem o seu poder de convencimento, pois é amparada
por ideias como aptidões naturais e diferenças individuais. Tais ideias se apresentam como
conceitos cientificamente neutros e desprovidos de compromissos políticos e econômicos que
se enraizaram nos discursos oficiais de psicólogos e educadores. E esses conceitos favorecem
o obscurecimento das profundas desigualdades sociais que as crianças e adolescentes de
classes trabalhadoras vivenciam em sua cotidianidade e que estão presentes na produção do
fracasso escolar.
29
Em outra publicação, Patto (2007) também ressalta esse modo dominante de pensar as
dificuldades que as crianças e os adolescentes que estudam em escolas públicas atravessam
em seus percursos escolares. Esse discurso dominante é atravessado pelo seguinte
entendimento:
[...] os pobres são menos capazes, mais ignorantes, mais propensos à delinquência –
seja por motivos constitucionais seja por deficiências no ambiente familiar, lido em
chave moralista – motivo pelo qual, no discurso oficial, uma das concepções mais
pregnantes da função social da escola, ao longo da história do pensamento
educacional brasileiro, é, explícita ou implicitamente, a de prevenção da
criminalidade, o que praticamente anula a escola como instituição que tem o dever
de garantir o direito de todos ao letramento e ao saber (PATTO, 2007, p. 245).
A segunda e terceira afirmação feita por Patto (1999) de que a escola pública é uma
instituição adequada às crianças de classe média, de que os professores desconhecem os
padrões culturais dos alunos pobres e que tendem a agir conforme o modelo de aluno ideal
fundamenta-se no que se convencionou a chamar de diferenças culturais.
Assim, para adequar a escola à demanda que atende, seria necessário efetivar
12
Segundo Collares e Moysés (1994), “o termo medicalização refere-se ao processo de transformar questões não
médicas, eminentemente de origem social e políticas em questões médicas, isto é, tentar encontrar no campo
médico as causas e soluções para problemas desta natureza. A medicalização ocorre segundo uma concepção de
ciência médica que discute o processo saúde e doença como centrado no indivíduo, privilegiando a abordagem
biológica, organicista. Daí as questões medicalizadas serem apresentadas como problemas individuais, perdendo
sua determinação coletiva” (p. 25).
31
mudanças na gestão escolar e nas práticas pedagógicas e curriculares voltadas aos interesses,
necessidades e cultura dos alunos e alunas.
De acordo com Patto (1999),
Essa ambiguidade nos estudos sobre o fracasso escolar foi detectada na pesquisa
realizada por Patto (1999), que acabou por denunciar que os discursos acerca dessa
problemática encontravam-se fraturados. A fratura no discurso se revela ao afirmar que o
ensino da escola pública é ineficiente, o que gera uma impossibilidade de motivar os alunos e
alunas para aprendizagem e, no mesmo compasso, atribuir a esses mesmos alunos e alunas o
seu desinteresse na aprendizagem, seja ele, de origem biológica, psicológica ou cultural, por
uma escola que já foi qualificada como insuficiente para esses sujeitos. Assim,
13
Atualmente, não existe mais essa denominação da escola pública, pois passou a designar-se escola pública de
ensino fundamental.
32
Nesse sentido, a autora apresenta dois ciclos14 de explicações sobre o fracasso escolar
expressos nos artigos oriundos do periódico “Cadernos de Pesquisa”: o ciclo do conhecimento
do aluno, que se refere a estudos que entendem o fracasso escolar a partir do enfoque centrado
da marginalidade cultural, e outro ciclo que abarca o reconhecimento do aluno, que se refere a
estudos que compreendem o fracasso escolar a partir do enfoque da diversidade cultural.
Já os estudos críticos16, pesquisados por Faria (2008), incorporam uma crítica às teses
14
É importante ressaltar que as ideias que permeiam as explicações para esses dois ciclos do fracasso escolar
têm relação com o contexto político e econômico em que foram historicamente construídos. As teses que
fundamentam a explicações do enfoque da marginalidade cultural referem-se às décadas de 1970 e 1980. E as
explicações do ciclo da diversidade cultural começam a aparecer na literatura educacional a partir dos anos de
1990.
15
Faria (2008) aponta que os estudos propositivos publicados no periódico “Cadernos de Pesquisa” foram
coordenados por Ana Maria Poppovic.
16
Faria (2008) ressalta que os estudos críticos foram influenciados por algumas obras como: SNYDERS,
33
defendidas pelos estudos propositivos por expressarem “uma concepção de escola funcional à
sociedade vigente, cujo objetivo seria educar a criança marginalizada de forma a prepará-la
para uma sociedade competitiva e implacável” (p. 50). Dessa forma, as contradições de classe,
inerentes à sociedade capitalista, seriam apaziguadas, conforme já apontara Patto (1999).
Assim, de acordo com Faria (2008), esses estudos críticos17 encontraram dificuldades
em avançar na compreensão do fracasso escolar na sua relação com cultura, a escola e a
sociedade. Para a autora,
[...] o que prevalece no conjunto dos artigos críticos é a mesma concepção de cultura
concernente aos estudos propositivos da marginalidade cultural: uma concepção
antropológica de cultura, compreendida como expressão de hábitos, costumes e
tradições de um grupo ou classe social (FARIA 2008, p. 61).
Nessa perspectiva, Faria (2008) ainda ressalta uma importante observação: “no âmbito
do enfoque da marginalidade cultural em suas abordagens propositivas e críticas, a escola é o
locus de produção do fracasso escolar, permanecendo a tese do fracasso da escola como a
chave desses estudos e pesquisas” (p. 61).
O segundo ciclo do fracasso escolar, analisado por Faria (2008), em sua tese de
doutorado, se refere ao enfoque da diversidade cultural. A ideia de se compreender, no campo
educacional, as diferenças de desempenho escolar a partir do enfoque das chamadas
diversidades culturais, propiciou o estudo do fracasso escolar em várias perspectivas, entre
elas, a do gênero18.
A autora observou, ainda, no conjunto de artigos selecionados para sua pesquisa que, a
partir dos anos de 1990, ocorreu uma mudança em relação à discussão sobre o fracasso
escolar. A ideia que começa a ser disseminada é de que a educação, particularmente a
educação escolar, passa a ser um importante veículo de promoção do reconhecimento das
Georges. Escola, classe e luta de classes. São Paulo: Centauro, 2005; BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-
Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008 e também
em autores que tiveram trabalhos publicados no referido periódico: Zaia Brandão, Demerval Saviani e outros.
17
Faria (2008) afirma que somente dois artigos selecionados para a pesquisa conseguem abranger a discussão do
fracasso escolar na relação com a cultura, a escola e a sociedade, sem que reduza o conceito de cultura a uma
abordagem estritamente antropológica. Trata-se dos seguintes artigos: SAVIANE, Demerval. As teorias da
educação e o problema da marginalidade na América Latina. Cadernos de Pesquisa, n. 42, p. 121-133, 1982;
PATTO, Maria Helena de Souza. A criança marginalizada para os piagetianos brasileiros: deficiente ou não?
Cadernos de Pesquisa, n. 49, p. 3-11, 1984.
18
O estudo da relação entre gênero e educação começa a aparecer com mais frequência a partir dos anos de
1990. No entanto, existem alguns trabalhos tanto no campo da educação, que desde a década de 1960
evidenciam as diferenças de desempenhos escolares para meninos e meninas, como no campo da psicologia, que
também apontam que os meninos são os mais encaminhados para acompanhamento psicológico com problemas
na escola.
34
Têm-se, assim, dois tipos de ações que visam à superação do fracasso escolar no
marco das diversidades culturais: i) ações estabelecidas pelas diretrizes oficiais, e ii) ações
voltadas para a organização de tempo, espaço, currículo, gestão e práticas pedagógicas, com
vistas a construir uma cultura de sucesso escolar.
Nessa reflexão sobre a relação entre a produção do fracasso escolar e a cultura, tendo
como expressão as diferenças de classe, gênero, raça e etnia, chama à atenção os discursos
construídos sobre o papel transformador e, em alguns momentos, redentor da escola,
principalmente nas atuais políticas educacionais19, no contexto do reconhecimento das
chamadas diversidades culturais.
Miranda (2005), ao discutir sobre as mudanças formais, objetivas e técnicas que essas
políticas acarretam no contexto escolar, destaca a necessidade de se refletir sobre a
racionalidade, que está na base dessas reformas e que se encontram intrínsecas a essas
políticas públicas. Para a autora, essa racionalidade engendra uma nova concepção de
educação das massas e transforma a escola, constituída sob o princípio iluminista de
conhecimento, nunca consolidado plenamente para os filhos das classes trabalhadoras, – mas
que para as elites continuou a reproduzir as contradições da sociedade burguesa – em uma
escola regulada pelo princípio da socialidade20.
19
Referente à organização da escola em ciclos, às políticas de educação inclusiva e a escola de tempo integral,
discussão presente nos textos de Miranda (2005) e Libâneo (2012).
20
A autora emprega o termo socialidade “para ressaltar que a escola organizada em ciclos se situa como um
tempo/espaço destinado à convivência de aluno, a experiência de socialidade, distinguindo-se dos conceitos de
35
De imediato, essa política tem o efeito de produzir um alívio nas taxas oficiais de
fluxo escolar. Há, ainda, de se aguardar os efeitos de um complicador que virá a
seguir sob a forma de avaliação institucional: as mesmas agências que exigem
correção do fluxo a qualquer preço instauram procedimentos de avaliação que irão
„corrigir as distorções do sistema‟, propondo mecanismos ainda mais sofisticados e
eficientes de discriminação e exclusão dos que escaparam do princípio do
conhecimento (e de seu viés excludente) lá na escola, mas terão que se defrontar
com ele quando for a hora de se instalar no tempo e espaço em sua vida adulta e
profissional (MIRANDA, 2005, p. 649).
Libâneo (2012) corrobora com as reflexões realizadas pela autora, quando explicita
que, ao se conceber a escola a partir do viés da socialidade, a educação brasileira apresenta
duas tendências: uma escola para ricos, constituída pelo princípio do conhecimento e uma
escola de acolhimento social para os pobres.
Essa tendência tem relação direta com a influência de pressupostos economicistas,
defendidos pela política neoliberal, e que foram definidos, pelas políticas mundiais, para os
países pobres por meio dos organismos internacionais que visam reduzir a concepção que se
tem de educação. Para isso, adotaram os seguintes parâmetros:
21
De acordo com Cruz (2009), “esse processo se materializa no encolhimento do espaço público e no
alongamento do espaço privado sob os imperativos da nova forma de acumulação de capital, conhecida como
neoliberalismo. Uma das consequências dessa situação é transformação de direitos econômicos e sociais em
serviços definidos pela lógica de mercado e pela transformação do cidadão em consumidor” (p. 68).
37
CAPÍTULO II
Há toda uma crítica formulada, com base em estudos tanto do campo da psicologia
como do campo da educação, sobre a naturalização dos problemas que envolvem e encobrem
a queixa escolar e que dissimulam os mecanismos históricos, sociais, culturais e políticos os
quais permeiam o fenômeno do fracasso escolar. Apesar disso, os profissionais envolvidos na
prática pedagógica e na prática psicológica não conseguem ir além do reducionismo
psicologista e individualista que cerceia os motivos que produzem o deslocamento da criança
com problemas em sua trajetória escolar da sala de aula para um consultório de psicologia.
das livrarias, grande parte deles direcionada a pais e professores” (p. 21).
Esse grupo de referência, constituído por essas produções, foi importante, pois fornece
elementos que ajudam a entender como a queixa escolar se apresenta nos estudos e pesquisas
em psicologia em relação à demanda infantil em clínicas-escola de psicologia e serviço de
saúde pública, e também a compreender como essas queixas, muitas vezes,
descontextualizada das condições materiais e objetivas que a produziram, se evidenciam.
como centros formadores para a prática clínica do psicólogo, apontam duas concepções que,
historicamente, permearam as funções atribuídas a essa instituição:
Vale ressaltar que outros estudos também abordam essa condição histórica a clínica-
escola de Psicologia atender a população de classes economicamente desfavorecidas
(ROMARO; CAPITÃO, 2003; SILVARES et al., 2006; CAMPEZATTO; NUNES, 2007).
Outro aspecto considerado é o fato de que grande parte das pesquisas, no conjunto das
produções selecionadas, apresenta limitações quanto à padronização de registros por parte das
clínicas-escola de psicologia e unidades de saúde pública.
Pode-se dizer que, a falta de padronização das informações por parte dos estudos sobre
caracterização de demanda infantil para acompanhamento psicológico revela o fato de que
uma informação, apontada em uma pesquisa, não é relatada em outra. Exemplo da falta de
uniformidade, nesses estudos é a descrição da relação entre sexo e queixa. Ressalte-se que,
apesar dos dezoito estudos afirmarem a predominância de meninos encaminhados para
acompanhamento psicológico, apenas seis deles descrevem a relação da queixa, que motivou
a procura por atendimento psicológico, com o sexo da criança.
Vale destacar que esses estudos sobre caracterização de demanda infantil não
problematizam o conceito de gênero e suas implicações teóricas e metodológicas ao analisar
as diferenças de desempenho escolar entre meninos e meninas. Os estudos aqui analisados
40
tratam as diferenças entre meninos e meninas a partir da categoria sexo, mas apenas como
variável quantitativa.
Com base nas distintas características das informações descritas nos trabalhos, e para
uma melhor sistematização do relato das fontes, optou-se por dividir as dezoito pesquisas em
dois grupos. Como critério de divisão, utilizou-se a informação da relação entre queixa e sexo.
Esse critério foi adotado porque a problemática do gênero se configura como um dos aspectos
centrais desse estudo.
Foi possível verificar que as categorizações das queixas não seguem um padrão, são
baseadas em critérios e fontes diversas, nomeando, muitas vezes, o mesmo comportamento,
mas com palavras diferentes. Alguns trabalhos buscam relacionar o sexo da criança à idade; já
outros não relacionam. Outra informação importante obtida com as análises é que nem todas
as pesquisas apontam quem encaminhou, ou quem solicitou o acompanhamento psicológico
para a criança.
serem analisadas. Para esse primeiro tópico, foram selecionados onze artigos e um capítulo de
livro sugerido nas referências bibliográficas da dissertação de mestrado de BOAZ (2009).
Não foi identificado, no estudo de Romaro e Capitão (2003), descrição das origens dos
encaminhamentos das crianças e dos adolescentes. Na discussão sobre o perfil da demanda
infantil, os autores baseiam-se em outras pesquisas sobre caracterização de clientela em
clínicas-escola.
professores dispõem de seus alunos, às quais, por vezes, vão além daquelas necessárias para a
realização de um trabalho pedagógico adequado” (p. 145).
Os autores apontam a predominância de meninos na faixa etária dos seis aos onze
anos, incluindo meninos e meninas, pois não relacionam sexo à idade da criança. A maioria
dos encaminhamentos para acompanhamento psicológico provém das escolas públicas.
22
As autoras não identificam as unidades de saúde.
44
por Melo e Perfeito (2006), cujo objetivo foi caracterizar a clientela infantil do Centro de
Psicologia Aplicada, da Faculdade de Psicologia, da Universidade Federal de Uberlândia
(UFU), Minas Gerais.
A categorização das queixas, realizada no estudo de Melo e Perfeito (2006) teve como
referência os fatores que incomodava os pais, ou o motivo que conduziu a criança para
atendimento psicológico. Com base nesse critério de categorização, as queixas mais
frequentes estão relacionadas a: comportamento (agitação, agressividade, arrancar cabelos,
assanhamento, birra, brigar em casa, comer demais, comportamentos regredidos, tais como,
chupar o dedo, chupeta e mamadeira, desobediência, falta de iniciativa, fugir de casa, fumar,
gagueira, hiperatividade, inquietude, irresponsabilidade, mentiras, morder, mudança de
comportamento, pirraça, problema de fala rebeldia, revolta, roer unhas, roubo, silêncio
prolongado, teimosia, uso de drogas ou suspeita); sintomas emocionais (angústia, ansiedade,
baixa autoestima, ciúme, dependência, depressão, dificuldade de ficar só, fobia,
impulsividade, inibição, insegurança, intolerância, introspecção, irritação, mau humor, medo,
nervosismo, pânico, sentimento de vazio, solidão, tristeza). As queixas escolares como
agressividade na escola, dificuldade escolar, expulso da escola, falta de interesse, matar aula,
queda do rendimento escolar, aparecem em terceiro lugar.
As discussões apresentadas por Melo e Perfeito (2006) baseiam-se nos estudos sobre
caracterização de clientela infantil. Já a explicação sobre a crescente procura por
acompanhamento psicológico infantil centra-se nas mudanças no âmbito familiar e nas novas
configurações em torno do papel de pai e do papel da mulher – no papel da família na
construção das dificuldades ou da saúde emocional da criança.
1. Prevalência dos meninos sobre as meninas; 2. Idade escolar (6-10 anos) como a
mais frequente entre os clientes infantis; 3. Maior incidência de primogênito entre os
clientes e aqueles que são inscritos; 4. Alta incidência de distúrbios de aprendizagem
e do tipo internalizante, o que leva ao fracasso escolar; 5. Escola como uma das
principais fontes de encaminhamento das crianças (SILVARES et al., 2006, p. 60).
23
De acordo com Achenbach (1991 apud SILVARES et al., 2006, p. 60), “o CBCL tem como objetivo medir o
grau de competência social e os problemas comportamentais de uma criança ou adolescente de acordo com a
percepção de seus pais ou cuidadores”. Trata-se de um questionário que lista vários comportamentos e atribui,
para cada um deles, uma gradação de frequência que vai de “não ocorre” até “muito frequente”.
24
Não consta o ano em que foi realizado.
48
A classificação das queixas realizada por Campezatto e Nunes (2007) teve como
critério o motivo da busca por atendimento psicológico. As queixas mais frequentes são:
dificuldade no comportamento afetivo (agressividade, ansiedade, isolamento social,
depressão, choro frequente, dependência e imaturidade, temores); dificuldades em processos
cognitivos (dificuldades de aprendizagem e dificuldade de comportamento relacionada ao
contexto escolar).
As autoras relacionam essas dificuldades à faixa etária dos meninos, que corresponde
25
Não há identificação das instituições.
49
A categorização das queixas foi baseada em Souza (1997). As mais frequentes foram
relacionadas a: problemas de aprendizagem (problema na leitura e escrita, quantificação,
problemas de aprendizagem vagamente descritos em que não são oferecidas informações
suficientes para a análise, problemas referentes ao ritmo de aprendizagem – por não
acompanhar os conteúdos ou os colegas, história de repetência e problemas com a lição de
casa); problemas de atitude (desobediência das regras da sala de aula, agressividade,
timidez, comportamento infantil ou imaturo, desatenção e desinteresse pelas tarefas,
nervosismo e irritação por medo de errar ou por difícil socialização; problemas de
relacionamento da criança em relação ao professor ou do professor em relação à criança;
50
outros problemas relacionados à aprendizagem, em que os pais não acreditam que haja algum
problema de aprendizagem com seu filho e solicitação específica para avaliação psicológica).
A classificação das queixas foi realizada com base nas categorias propostas pelo
CBCL. As mais frequentes foram sobre comportamentos externalizantes (agressividade,
hiperatividade, desobediência, baixo controle do impulso).
Para a classificação das queixas, Cunha e Benetti (2009) realizaram uma adaptação do
roteiro de Campezatto (2006). As queixas mais frequentes são: problemas afetivos e de
comportamento (transtorno de conduta e emocionais e também as dificuldades de
relacionamento interpessoal); problemas relacionados à escola (problemas de aprendizagem,
dificuldades cognitivas e sofrimentos no ambiente escolar).
Delvan et al. (2010) realizou um estudo que teve por objetivos caracterizar o perfil da
população infantil que procurou atendimento no CAPSI e em uma Clínica-escola de
Psicologia da cidade de Itajaí, Santa Catarina. Os dados para caracterização de clientela
infantil foram obtidos nos prontuários dos pacientes atendidos no período 2002-2007.
Dentro desse primeiro grupo de produções está, também, o estudo de Rodrigues et al.
(2012),cujo objetivo foi caracterizar a demanda infantil encaminhada com queixa escolar para
o Centro de Psicologia Aplicada, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Para a
caracterização da clientela infantil, os autores analisaram os prontuários relacionados ao
período 1996-2009.
As autoras não apontam a fonte na qual se basearam para a classificação das queixas
escolares. Entretanto, ressaltam que as queixas mais frequentes foram categorizadas da
seguinte forma: ocorrência de problemas comportamentais e problemas de aprendizagem
(queixas de agressividade e dificuldades de aprendizagem isoladas; agitação e baixa
motivação para os estudos; ansiedade e/ou agitação associadas a dificuldades de
aprendizagem; indisciplina e dificuldade de aprendizagem; rebeldia; furtos; timidez e
dificuldades de aprendizagem; apatia); dificuldades de aprendizagem (dificuldades de
aprendizagem inespecíficas; lentidão; baixa motivação para os estudos; dificuldades de
socialização; problemas familiares; problema neurológico; gagueira), problemas
comportamentais (agressividade; agitação; disritmia; indisciplina; rebeldia; brigas; baixa
53
Pela análise das produções é possível afirmar que, na maioria dos estudos, a escola não
é problematizada ou citada como um dos contextos do desenvolvimento humano influenciado
diretamente por ela. Influência permeada por conflitos, contradições e impossibilidades.
Assim, com base nesses estudos da psicologia, pode-se dizer que se tornou natural a
criança do sexo masculino vivenciar problemas escolares. Mas não em relação a todos os
meninos, pois os estudos evidenciam que se trata de meninos na faixa etária dos 6 aos 12 anos
e que estudam em escolas públicas. Alguns desses estudos chegam a relatar que as famílias
possuem nível socioeconômico desfavorável.
de saúde pública. A diferença entre essas produções do Grupo 2 das outras produções
anteriormente apresentadas (Grupo 1) é que essas do segundo grupo relacionam diretamente
queixa ao sexo e apresentamos prováveis motivos da predominância de meninos com
problemas escolares encaminhados para acompanhamento psicológico. Para esse segundo
grupo de produções a serem analisadas, foram selecionados três artigos e três dissertações.
Um dos argumentos apresentados pelos autores diz respeito à relação entre nível
socioeconômico e cultural das famílias e os problemas que a criança apresenta, tendo em vista
que as pessoas que utilizam o serviço público de saúde possuem baixo nível socioeconômico
e cultural. Para santos e Alonso (2004), esse é “um fator que se relaciona com a
disponibilidade de recursos de apoio ao desenvolvimento dos filhos, tais como, a oferta de
materiais educacionais, revistas, jornais, brinquedos e passeios familiares” (p. 37).
[...] pais com melhores níveis de escolaridade teriam melhor compressão dos
problemas dos filhos e pais com menor nível de conhecimento teriam mais
expectativas irreais em relação aos filhos, e consequentemente, seriam pais que
inscreveriam seus filhos em clínicas de psicologia, em decorrência errônea de uma
interpretação errônea sobre o comportamento deles (SANTOS; ALONSO, 2004, p.
37).
A autora relata que as queixas mais frequentes nos meninos foram: dificuldades em
processos cognitivos (de aprendizagem, de atenção, de compreensão ou de memória) e
dificuldades no comportamento afetivo (agressividade, ansiedade, isolamento social,
depressão, choro frequente, dependência, imaturidade, temores). A pesquisa não informa a
fonte na qual foi baseada a classificação das queixas.
A análise de Merg (2008) sobre a demanda infantil evidencia que o perfil da clientela
atendida pelas clínicas-escolas, nos últimos trinta anos, permanece como o de meninos na
faixa etária dos seis aos dez anos encaminhados pela escola com queixas de agressividade e
problemas de aprendizagem.
58
A pesquisa empírica realizada por Merg (2008) investigou a clientela infantil em duas
clínicas-escola de psicologia: o Centro de Estudos Atendimento e Pesquisa da Infância e
Adolescência (CEPIA) e o Instituto de Psicanálise e Contemporaneidade (Contemporâneo)
ambas localizadas em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Essas instituições oferecem curso de
formação em nível de pós-graduação em psicoterapia psicanalítica e contam com um
ambulatório que atende à população.
Para classificar as queixas, Merg (2008) utilizou as categorias propostas pelo CBCL.
Segundo sua pesquisa, os meninos apresentam queixas mais frequentes de comportamento
agressivo, ansiedade/depressão, problemas de atenção, problemas de aprendizagem e
problemas de relacionamento.
Merg (2008) ressalta também que essas queixas coincidem com a entrada do menino
na escola e que esse fator “pode trazer grandes prejuízos na aprendizagem e no convívio
escolar. A transição escolar faz parte de um período de crise normativa da criança e é
considera um grande desafio ao seu desenvolvimento” (p. 60).
26
Os estudos da área da Psicologia Escolar sobre o processo de produção da queixa escolar, desde a década de
1980, apontam: quem são as crianças e adolescentes encaminhados, as queixas mais frequentes, as estratégias
mais utilizadas pelos psicólogos e os bastidores tanto do processo de escolarização como dos atendimentos
psicológicos realizados com esses essas crianças e adolescentes, bem como as implicações para a formação do
psicólogo que trabalha com esse tipo de demanda, numa perspectiva crítica em Psicologia.
61
A queixa escolar é uma produção social e coletiva, marcada também por diferenças de
62
gênero, que se revela nos discursos inerentes à expectativa comportamental para meninos e
meninas. Essas expectativas acabam funcionando como reguladoras dos padrões de
comportamento das crianças, delimitando o que é masculino e o que feminino. Assim, com
base nos estudos da psicologia sobre caracterização de demanda infantil tem-se um perfil
homogêneo e dominante sobre quem são esses meninos que fracassam na escola.