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Ana Paula Rodrigues Do Nascimento - 2013 - Dissertação-1-64

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

ANA PAULA RODRIGUES DO NASCIMENTO

DA ‘QUEIXA’ AO FRACASSO ESCOLAR:


UM ESTUDO SOBRE A PREDOMINÂNCIA DO ENCAMINHAMENTO
DE MENINOS AOS SERVIÇOS DE PSICOLOGIA

GOIÂNIA
2013
1

ANA PAULA RODRIGUES DO NASCIMENTO

DA ‘QUEIXA’ AO FRACASSO ESCOLAR:


UM ESTUDO SOBRE A PREDOMINÂNCIA DO ENCAMINHAMENTO
DE MENINOS AOS SERVIÇOS DE PSICOLOGIA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Educação da Universidade
Federal de Goiás, como parte dos requisitos
para a obtenção do título de Mestre em
Educação.

Orientação: Profa. Dra. Susie Amâncio


Gonçalves de Roure.

GOIÂNIA
2013
2

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


GPT/BC/UFG

Nascimento, Ana Paula Rodrigues do.


N244d Da „queixa‟ ao fracasso escolar [manuscrito] : um
estudo sobre a predominância do encaminhamento de
meninos aos serviços de psicologia / Ana Paula Rodrigues
do Nascimento. - 2013.
103 f.

Orientadora: Profª. Drª. Susie Amâncio Gonçalves de


Roure.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de
Goiás, Faculdade de Educação, 2013.
Bibliografia.
Inclui apêndices.

1. Queixa escolar – Meninos – Atendimento


psicológico. 2. Fracasso escolar – Meninos. I. Título.

CDU: 37.091.8-055.1
3
4

À espiritualidade, ao amor e à amizade...


À minha mãe, Valdete Rodrigues.
5

AGRADECIMENTOS

A Deus, pelas dádivas concedidas e realizadas.


A Gustavo Plácido, pelo incentivo, pela força e por me permitir compartilhar os desafios da
trajetória do mestrado. Com o seu amor, serenizou tudo à minha volta.
A Gabriel Plácido, meu amado filho, pois, pelo simples fato de existir já se constituía meu
estímulo para eu prosseguir.
A toda a minha família, especialmente à minha mãe, Valdete Rodrigues, uma mulher forte e
batalhadora que sempre incentivou, apoiou e financiou meus estudos, e por tornar possível a
realização desse sonho.
À minha amiga e irmã de alma Valdirene, por todo carinho, apoio e cuidado dispensados, os
quais foram essenciais para a finalização do percurso do mestrado.
A Teresa Cristina, por me ajudar de forma ética e responsável a lidar com meus limites,
permitindo que a relação construída, em muitos momentos dessa caminhada, fosse a margem
que eu tanto precisava.
Aos companheiros de viagem da Casa do Nazareno e da Casa do Caminho do Nazareno, por
todas as vibrações e energias positivas.
À professora Dra. Susie Amâncio, pela confiança, respeito e generosidade demonstrada em
todos os momentos da orientação, o que foi primordial para meu crescimento pessoal e
profissional.
À professora Dra. Maria do Rosário e a professora Dra. Gina Faria, por todas as contribuições
dadas no exame de qualificação e na banca de defesa e que muito contribuiu para o
aprimoramento deste trabalho.
Aos professores Dr. João Oliveira, Dr. Jadir Moraes, Dr. José Adelson, e às professoras Dra.
Marília Gouveia e Dra. Maria do Rosário, pois, com suas disciplinas, colaboram com minha
formação, enriquecendo-me pessoal e profissionalmente.
À professora Dra. Raquel Maracaípe, por participar desse momento acadêmico tão importante
em minha vida.
À minha turma de mestrado, especialmente aos meus colegas Sander Sales e Renata Linhares,
por me possibilitarem compartilhar angústias, anseios e frustrações diante dos desafios que a
vida acadêmica impõe.
A todos os meninos com os quais trabalhei e trabalho profissionalmente, por despertaram, em
mim, as questões e os incômodos que constituíram a razão deste estudo.
6

O trabalho crítico é a resposta do intelectual ao saber


subjugado que acoberta ao invés de revelar. Mas é duvidosa a
produção crítica de quem assume a postura intelectualista de
criticar sem compromisso. Para ir além do modo capitalista de
pensar é necessário que a crítica seja incorporada à própria
ação do intelectual crítico.

(José de Souza Martins)


7

RESUMO

Com uma perspectiva crítica em psicologia e em educação, o objetivo deste estudo é conhecer
os aspectos envolvidos na predominância do encaminhamento de meninos com queixas
escolares para atendimento psicológico em clínicas-escola de psicologia e unidades de saúde
pública. Baseando-se na compreensão de que o fracasso escolar é um fenômeno socialmente
produzido, buscou-se refletir sobre os mecanismos que produzem as queixas escolares em
meninos, e como essas queixas, construídas no espaço escolar, se convertem em questões
intrínsecas, tornando o acompanhamento psicológico uma das vias de resolução para
problemas escolares. Para a investigação do objeto de estudo, adotou-se como metodologia a
pesquisa bibliográfica, por considerá-la essencial para desvelar o problema levantado.
Procedeu-se, então, a uma busca no banco de teses e dissertações Capes, na biblioteca
eletrônica SciELO, na biblioteca virtual em saúde (BVS) e nos periódicos eletrônicos em
psicologia (PePSIC), utilizando os seguintes descritores: “caracterização de clientela infantil
em clínicas-escola de psicologia”, “caracterização de clientela infantil em serviços de saúde
pública”, “queixa escolar de meninos”, “fracasso escolar de meninos”, “relação entre gênero e
educação”, “gênero e fracasso escolar de meninos”, “gênero e desempenho escolar”,
“predomínio de crianças do sexo masculino encaminhadas para clínicas-escola de psicologia
ou serviços de saúde pública”. Para o levantamento das informações, foram trabalhados dois
grupos de fontes bibliográficas: o primeiro grupo é constituído por estudos e pesquisas na área
da psicologia que investigaram a demanda infantil para acompanhamento psicológico em
clínicas-escola de psicologia e serviços de saúde pública; o segundo grupo constitui-sede
estudos e pesquisas da área da educação que investigaram o fracasso escolar de meninos. Com
a descrição e análise do corpus documental foi possível apreender alguns aspectos que
colaboram para a predominância de meninos com queixas escolares, o que permitiu o
questionamento de concepções que naturalizam os processos de desenvolvimento desses
meninos, bem como situar a temática proposta no contexto histórico-cultural das relações de
gênero.

Palavras-chave: Queixa escolar. Fracasso escolar. Meninos.


8

ABSTRACT

Based on a critical perspective in psychology and education, the aim of this study is to
understand the aspects involved on the prevalence of sending boys with learning complaints
for psychological care in school clinics of psychology and public health units. Knowing that
school failure is a phenomenon socially developed, this discussion seeks to reflect on the
mechanisms that produce learning complaints in boys and how these complaints, built in
school, become on intrinsic issues, making the psychological support one of the ways of
resolving for school problems. In order to investigate the aim study, bibliographical research
was used as methodology, considering it essential to uncover the problem raised by this
research. A seek in the thesis and dissertations from Capes, in the SciELO electronic library,
virtual library in health (BVS) and electronic journals in psychology (PEPSIC) was adopted,
using the following descriptors: “characterization of child clients in school clinics of
psychology”, “characterization of child clients in public health services”, boys scholastic
complaints”, “school failure of boys”, “relationship between gender and education”, “gender
and school failure of boys”, “gender and school performance”, “prevalence of male children
taken to school clinics of psychology or public health services”. Two groups of bibliographic
sources were used: the first group is constituted by studies and researches in psychology
which investigated the infant demand for psychological support in school clinics of
psychology and public health services; the second group consists of studies and researches in
the area of education that investigated the school failure of boys. From the description and
analysis of the literature corpus, it was possible to seize some aspects that contribute to the
prevalence of boys with school complaints, which allowed questioning conceptions that
naturalize their development processes and situate the theme proposed in historical and
cultural context of gender relations.
Keywords: School complaint. School failure. Boys.
9

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 10

CAPÍTULO I – ASPECTOS TEÓRICOS SOBRE QUEIXA E FRACASSO ESCOLAR ..... 16


1.1 Algumas considerações sobre o fracasso escolar ............................................................... 27

CAPÍTULO II – ESTUDOS DO CAMPO DA PSICOLOGIA SOBRE AS QUEIXAS


ESCOLARES DE MENINOS .................................................................................................. 37
2.1 Análise das produções científicas do campo da psicologia ................................................ 38

2.1.1 Grupo 1 – Produções científicas que não relacionam a queixa ao sexo ..................... 40

2.1.2 Grupo 2 – Produções científicas que relacionam a queixa ao sexo ............................ 53

CAPÍTULO III – ESTUDOS DO CAMPO DA EDUCAÇÃO SOBRE FRACASSO


ESCOLAR DE MENINOS ...................................................................................................... 64
3.1 Relação entre gênero e educação ........................................................................................ 65

3.2 Análise das produções científicas do campo da educação ................................................. 68

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 88

REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 93

APÊNDICES ............................................................................................................................ 98
10

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem como objetivo refletir sobre os determinantes que promovem o
deslocamento de meninos com problemas escolares para um consultório de psicologia clínica
localizado em uma clínica-escola de psicologia ou em um serviço de saúde pública. Esses
problemas que ocorrem no contexto escolar são designados pela literatura psicológica como
queixa escolar. Assim, na discussão do objeto de estudo, procurou-se conhecer os
mecanismos que produzem as queixas escolares em meninos, e como essas queixas,
construídas no espaço escolar, se convertem em questões intrínsecas a esses meninos, o que
torna o acompanhamento psicológico uma das vias de resolução para os problemas escolares.

O interesse em compreender as questões imbricadas e que se articulam nessa ação de


encaminhar meninos com queixas escolares para acompanhamento psicológico tem relação
direta com minha prática profissional. Desde que me formei em psicologia, sempre atendi
crianças e famílias de classes populares e trabalhei com e nas escolas e unidades de saúde
pública. Contextualizar minha prática profissional é importante para este estudo, pois a
reflexão sobre a cotidianidade de minha atuação foi que engendrou os caminhos de estudo e
de análise percorridos sobre o tema em questão.

Trabalho como psicóloga em um serviço de saúde pública, localizado em um


município do Estado de Goiás. A unidade presta atendimento à população nas várias
especialidades médicas, e conta, também, com serviços de psicologia, fonoaudiologia, terapia
ocupacional e fisioterapia. A população é encaminhada a essa unidade de saúde por meio das
unidades do Programa Saúde da Família (PSF), presentes em cada região desse município,
que atendem determinado número de famílias.

Com o encaminhamento do médico responsável pelo PSF, as crianças e adolescentes


chegam ao serviço de psicologia infantil da unidade de saúde onde trabalho, de modo que as
unidades escolares não têm acesso direto ao serviço de psicologia. Para que o atendimento
psicológico se efetive, é necessário que a família se dirija ao posto de saúde onde foi
cadastrada; que a criança ou o adolescente seja consultado pelo médico, que por sua vez, faça
um encaminhamento da criança ou do adolescente para o serviço de psicologia. Ressalte-se o
fato de que muitas famílias se dirigem aos postos de saúde à procura do encaminhamento para
o serviço de psicologia mediante exigência e solicitação da escola.
11

Observando cotidianamente essa realidade, um fenômeno verificado provocou-me


progressivo incômodo: o fato de a maior demanda do serviço de psicologia infantil ser
constituída por crianças e adolescentes com problemas em suas trajetórias escolares. Contudo,
o que considero ainda mais inquietante é que a predominância é de meninos.

Com base nesse pressuposto, ao propor uma reflexão sobre os fatores que determinam
a predominância de meninos encaminhados para acompanhamento psicológico, parto da
compreensão de que os percalços na trajetória escolar de meninos expressam uma das faces
do fenômeno social e político da produção do fracasso escolar. Respaldada pelos estudos
realizados em minha primeira especialização na área de psicologia escolar, posso, contudo,
observar que a predominância de meninos com queixa escolar apresenta-se como um
fenômeno a ser desvelado; um desafio a ser transposto na superação das insidiosas formas de
exclusão constantemente reinventadas na sociedade contemporânea.

Dessa forma, a construção do tema deste estudo passa pelo entendimento sobre o que
significa a queixa escolar dos meninos no âmbito da produção social do fracasso escolar,
conforme já apontava Patto (1999), circunscrevendo-a como um processo solidário às formas
de exclusão próprias do sistema econômico demarcado pela luta de classes. Interessa,
sobretudo, apropriar-se das reflexões e pesquisas que, no âmbito da psicologia e da educação,
se debruçam sobre os aspectos envolvidos no encaminhamento desses sujeitos aos serviços de
psicologia.

Na metodologia, foi adotada a pesquisa bibliográfica, de modo a orientar o percurso de


investigação e análise da problemática construída. Segundo Lima e Miotto (2007), esse tipo
de pesquisa “implica em um conjunto ordenado de procedimentos de busca de soluções,
atento ao objeto de estudo, e que, por isso, não deve ser aleatório” (p. 38).

Primeiramente, foi realizada uma pesquisa exploratória junto aos textos científicos
oriundos do banco de teses e dissertações Capes, da biblioteca eletrônica SciELO, da
biblioteca virtual em Saúde (BVS) e nos Periódicos Eletrônicos em Psicologia (PePSIC). O
objetivo foi verificar se esse fenômeno da predominância de meninos encaminhados para
acompanhamento psicológico com queixas escolares, tal como havia percebido na instituição
na qual trabalho, ocorreria também em outras instituições de saúde pública. Nesse primeiro
momento, a busca pelas produções científicas foi norteada pelo descritor geral:
“predominância de crianças do sexo masculino, com queixas escolares, encaminhadas para
acompanhamento psicológico”. Após leitura preliminar dos textos levantados nessa pesquisa
12

inicial, foi possível perceber que o fenômeno da predominância de meninos com queixas
relacionadas à sua escolarização era presente e muito recorrente em muitas instituições
brasileiras que possuem acompanhamento psicológico. Também foi possível verificar que
esse fenômeno era apontado em pesquisas com o objetivo de caracterizar a demanda infantil,
atendida por essas instituições, a saber: clínicas-escola de psicologia e serviços de saúde
pública.

No segundo momento da pesquisa, visando o aprofundamento da busca por produções


científicas disponíveis nos bancos de dados eletrônicos, foram utilizados os seguintes
descritores: “caracterização de clientela infantil em clínicas-escola de psicologia” e
“caracterização de clientela infantil em serviços de saúde pública”.

Para finalizar as pesquisas sobre produções científicas no campo da psicologia, foi


utilizado o descritor “queixa escolar em meninos” nos mesmos bancos de dados eletrônicos,
com o objetivo de verificar a ocorrência de estudos que aprofundassem nessa temática para se
compreender porque os meninos são mais encaminhados para acompanhamento psicológico.

Ao analisar a forma como os autores do campo da psicologia apresentam a


caracterização de clientela infantil, e como apontamos motivos que envolvem os
encaminhamentos de meninos com queixas escolares para acompanhamento psicológico,
pode-se constatar apenas uma parcela dos fatores relacionados à predominância dos
encaminhados de meninos, o que pressupunha a necessidade de se investigar outra perspectiva
do processo: no caso, as reflexões sobre esse tema no contexto da educação escolar.

Mediante essa necessidade, no terceiro momento, foi realizada outra busca por
produções científicas nessas mesmas bases eletrônicas de dados, inserindo o descritor
“escola”, com a finalidade de se saber se as pesquisas, cujo objeto de estudo é a escola, já
teriam apontado essa incidência de meninos com problemas em sua trajetória escolar.

Para tanto, tendo por base os estudos realizados no âmbito da psicologia escolar, foi
utilizado o termo “fracasso escolar em meninos” como descritor, pois a compreensão era de
que o desenvolvimento das discussões no campo da educação culmina na superação da
perspectiva de queixa escolar ou de dificuldade de aprendizagem em prol de uma visão mais
ampla e profunda dos determinantes desses processos. Ou seja, a queixa escolar e a
dificuldade de aprendizagem tornam-se expressões do fracasso escolar socialmente
produzido.

Ressalte-se que foi pela utilização do descritor “fracasso escolar em meninos”, na


13

pesquisa bibliográfica na área da educação, que me deparei com o conceito de gênero. Nesse
primeiro contato com as produções no campo da educação, pude perceber que a questão da
relação entre gênero e educação tem se apresentado como um foco recorrente dessa discussão
no meio educacional.

Dentre tais produções pode ser observada uma profusão de estudos e pesquisas com
perspectivas teóricas e metodológicas muito diversificadas. Foi possível observar também que
vários programas de pós-graduação1 apresentam essa linha de pesquisa ou contam com grupos
de estudo preocupados em entender as questões educacionais perpassadas pelas relações de
gênero.

Ressalta-se, também, que vários estudos norteiam-se por recortes distintos, que
enfatizam desde a educação infantil até o ensino médio, passando também pela educação de
jovens e adultos. Tais estudos articulam-se por objetivos diversos, dentre os quais, o de
compreender como as relações de gênero aparecem nos documentos oficiais que orientam as
políticas de educação no Brasil (VIANA; UNBEHAUM, 2004); de entender como as relações
de gênero e poder presentes nos processos de socialização das crianças da educação infantil
influenciam na normalização e no controle das expressões corporais de meninos e meninas
(VIANNA; FINCO, 2009); de refletir sobre a dimensão simbólica dos conteúdos de gênero
existentes em narrativas de jovens estudantes de um projeto de EJA (BRITO, 2009); ou,
ainda, de investigar a produção da masculinidade de jovens estudantes homossexuais do
ensino médio (RAMIRES NETO, 2006).

Ademais, os estudos sobre a relação de gênero e educação têm se voltado para as


relações de gênero e suas implicações no currículo, problematizando as formas pelas quais o
gênero aparece em materiais didáticos, como determinam normas disciplinares, práticas
discursivas e pedagógicas ou como as diferenças de gênero impactam o desempenho escolar
de meninos e meninas. A diversidade e complexidade com que a questão do gênero surge
nesses estudos demonstram a dificuldade em estabelecer um recorte capaz de atender à
pergunta fundamental do presente estudo.

Diante desse vasto campo de estudos e pesquisas sobre a relação gênero e educação,
foi necessário estabelecer, como recorte, a escolha por artigos que apresentam articulação
entre gênero e os mecanismos presentes no fenômeno relacionado ao predomínio de meninos

1
É o caso, por exemplo, do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), da Universidade de São Paulo
(USP), e do grupo de estudo Gênero, Sexualidade e Educação Formal, também da USP, pois a maioria das
pesquisas selecionadas para serem relatadas no terceiro capítulo pertence a essa instituição.
14

com queixas escolares encaminhados para acompanhamento psicológico em clínicas-escolas


de psicologia e serviços de saúde pública.

Dessa forma, ao recorrer aos estudos da área da educação, na tentativa de apreender os


elementos que podem suscitar a necessidade de refletir sobre o tema deste estudo, optei por
selecionar, como descritor de busca para o delineamento da pesquisa bibliográfica, o termo
“fracasso escolar de meninos”, conforme anteriormente explicado. A escolha foi baseada no
entendimento de que tal fracasso apresenta-se, também, sob a forma de repetência, evasão
escolar ou dificuldades de aprendizagem, como se observa nas queixas que chegam aos
serviços de psicologia.2

Com a leitura exploratória do material bibliográfico levantado no campo da educação,


outros descritores foram utilizados, com base nessa primeira leitura, para aprofundar na
seleção das produções científicas como fontes que pudessem colaborar para o entendimento
do objeto de estudo. Os descritores utilizados foram: “relação entre gênero e fracasso escolar
de meninos” e “a relação entre gênero e desempenho escolar”. O mapeamento das produções
foi realizado nas mesmas bibliotecas eletrônicas citadas anteriormente.

O corpus documental selecionado na pesquisa refere-se às produções cujo objetivo é


investigar os motivos que corroboram para que os meninos possuam trajetórias escolares mais
longas e acidentadas, atravessadas por pausas e recomeços. Ainda, em relação a esse material,
é importante ressaltar outro critério adotado para a seleção das produções: os estudos que
priorizaram a realização da pesquisa na primeira fase do ensino fundamental. Esse recorte
busca relacionar a faixa etária dos meninos encaminhados para acompanhamento psicológico,
demonstrada pelas pesquisas sobre caracterização de clientela infantil.

Assim, a construção, a análise e a reflexão sobre o objeto de pesquisa foram tecidas


com base nos estudos sobre caracterização de clientela infantil em clínicas-escola de
psicologia e serviços de saúde pública e de estudos no campo da educação que enfocam a
relação entre fracasso escolar e gênero. Para tanto, foram priorizadas as produções científicas
referentes ao período compreendido ente os anos 2000 e o primeiro semestre de 2012. Em
suma, os descritores utilizados para a busca dos estudos e pesquisas referentes ao tema
proposto para o presente estudo foram os seguintes: “caracterização de clientela infantil em

2
Tiballi (1998), em sua tese de doutorado, evidenciou que muitas pesquisas brasileiras sobre o tema do fracasso
escolar não se preocupa com a delimitação conceitual desse fenômeno, de modo que “reprovação, repetência,
evasão, dificuldade de aprendizagem, insucesso escolar, são algumas das expressões utilizadas, quase sempre
como sinônimos de fracasso escolar, desconsiderando as diferentes significações pedagógicas que cada um
desses termos contém” (p. 40).
15

clínicas-escola de psicologia”, “caracterização de clientela infantil em serviços de saúde


pública; queixa escolar de meninos”, “fracasso escolar de meninos”, “relação entre gênero e
educação; gênero e fracasso escolar de meninos”, “gênero e desempenho escolar” e
“predomínio de crianças do sexo masculino encaminhadas para clínicas-escola de psicologia
ou serviços de saúde pública”.

Convém ressaltar que, eleger a criança, – principalmente os meninos – como foco das
reflexões desse trabalho, pode parecer uma contradição quando a intenção é combater as
análises individualizantes que nos conduzem a uma postura psicologista diante de fenômenos
produzidos na realidade. Entretanto, mais do que ater-se à compreensão dos percalços na
escolarização dos meninos, com o pressuposto de que a infância, concebida como um
fenômeno, determinado histórica e socialmente, faz-se necessário desvelar uma das faces
pelas quais a exclusão se reproduz.

Visando uma melhor apresentação das discussões inerentes ao objeto de estudo, e os


resultados da investigação oriunda da pesquisa bibliográfica em produções científicas no
campo da psicologia e da educação, a presente dissertação foi organizada em três capítulos.

O primeiro capítulo, intitulado “Aspectos teóricos sobre queixa e fracasso escolar”,


apresenta um delineamento sobre a perspectiva com a qual se buscou analisar o tema
proposto. O objetivo foi tentar contextualizar a discussão sobre o conceito de queixa escolar,
bem como, suas implicações na produção do fracasso escolar. Teve como base o diálogo entre
a perspectiva histórico-cultural de Vigotski e a discussão de Patto (1999), dentre outros
autores, sobre a produção do fracasso escolar no Brasil, o que permitiu refletir sobre os
processos pelos quais fenômenos construídos socialmente e culturalmente se convertam em
aspectos individuais e intrínsecos da criança.

O segundo capítulo apresenta a análise do corpus documental bibliográfico da área da


psicologia sobre caracterização de demanda infantil e retrata as queixas escolares de meninos
e possíveis explicações que os estudos e pesquisas selecionados tecem sobre esse fenômeno
da predominância de meninos com queixas escolares encaminhados para acompanhamento
psicológico.

O terceiro capítulo aponta quem são os meninos que fracassam na escola e apresenta a
análise sobre os estudos e pesquisas do campo da educação que tiveram como foco essa
temática. O objetivo é contribuir para a compreensão sobre esse fenômeno, a partir do
contexto escolar. Por último, são apresentadas as considerações sobre o estudo.
16

CAPÍTULO I

ASPECTOS TEÓRICOS SOBRE QUEIXA


E FRACASSO ESCOLAR

Do mesmo modo que a vida de uma sociedade não representa


um único e uniforme todo, e a sociedade ela mesma é
subdividida em diferentes classes, assim também, não pode ser
dito que a composição das personalidades humanas representa
algo homogêneo e uniforme em um dado período histórico, e a
psicologia tem que levar em conta o fato básico que a tese
geral que foi formulada agora mesmo, só pode ter uma
conclusão direta, confirmar o caráter de classe, natureza de
classe e distinções de classe que são responsáveis pela
formação de tipos humanos. As várias contradições internas
que são encontradas nos diferentes sistemas sociais encontram
sua expressão tanto no tipo de personalidade quanto na
estrutura da psicologia humana naquele período histórico.
(Lev Semionovitch Vigotski)

De acordo com Souza (1997), a realidade da educação escolar brasileira se reflete nos
serviços de atendimento psicológico oferecidos à população em clínicas-escola de psicologia
e serviços de saúde pública, o que evidencia historicamente que uma das maneiras
encontradas para se resolver problemas comportamentais e de aprendizagem que emergem
das trajetórias escolares de alunos e alunas é o encaminhamento para acompanhamento
psicológico.

A literatura sobre esse fenômeno revela que as queixas escolares são as responsáveis
pelo alto índice de encaminhamento de crianças e adolescentes para acompanhamento
psicológico em clínicas-escola de psicologia e serviços de saúde pública, demonstrando,
também, que a predominância de meninos encaminhados é recorrente nas publicações desde a
década de 1960 (BUENO; MORAIS; URBINATTI, 2000; CABRAL; SAWAYA, 2001;
SCORTEGANA; LEVANDOWSKI, 2004; BRAGA; MORAIS, 2007; SAVALHIA, 2007;
MERG, 2008, BOAZ, 2009).

Esses problemas de aprendizagem e de comportamento originados na escola e


relatados nos processos de encaminhamentos de crianças e adolescentes ou nas entrevistas de
triagem com os pais e descrições de prontuários psicológicos são denominados, pelos
psicólogos, de queixa escolar (SOUZA, 2000).

Com essa definição apresentada por Souza (2000), torna-se necessário destacar a
17

perspectiva em que se propõe a compreender a queixa escolar de meninos. Entende-se que a


queixa escolar é uma produção social e coletiva, regulada pelos sentidos e significados
atribuídos ao modo de ser das crianças, pelos agentes envolvidos na escolarização delas.

Dessa forma, como um fenômeno social e coletivo, a queixa escolar somente pode ser
compreendida a partir das relações sociais que a criança estabelece dialeticamente com a
escola e a sociedade. São essas relações sociais que fornecem a materialidade para se
compreender os modos de ser, de agir, de pensar e de se relacionar, das crianças.

Compreender a queixa escolar nessa perspectiva crítica em psicologia é, de acordo


com Meira (2003), entender que “a relação entre o homem e a sociedade é mediação
recíproca, o que significa que os fenômenos psicológicos só podem ser devidamente
apreendidos em seu caráter histórico e social” (p. 19). Assim, com base na autora, defende-se
o caráter mediado e sócio-histórico dos processos psíquicos. Essa concepção da origem social
e cultural do psiquismo humano constitui um axioma fundamental da teoria histórico-cultural,
que tem como um dos seus principais representantes o psicólogo Lev Semionovitch Vigotski.

Vigotski (1998) considerava que as origens das funções psicológicas superiores,


funções tipicamente humanas, deveriam ser buscadas nas relações do humano com as
condições materiais da vida social. Nesse sentido, a sociedade, a cultura e a história são
entendidas como componentes fundamentais da constituição do psiquismo humano.

As funções psicológicas superiores, segundo Vigotski (1998), são o resultado de “uma


operação que,inicialmente, representa uma atividade externa é reconstruída e começa a
ocorrer internamente” (p. 75), o que para esse autor significa que

um processo interpessoal é transformado num processo intrapessoal. Todas as


funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro, no nível
social, e depois, no nível individual; primeiro, entre as pessoas (interpsicológica), e,
depois, no interior da criança (intrapsicológica). Isso se aplica para a atenção
voluntária, para a memória lógica e para a formação de conceitos. Todas as funções
psicológicas originam-se de relações reais entre indivíduos humanos (VIGOTSKI,
1998, p. 75 – itálicos do autor).

Ainda segundo esse autor, o processo de internalização das “atividades socialmente


enraizadas e historicamente desenvolvidas constitui o aspecto da psicologia
caracteristicamente humana; é a base do salto quantitativo da psicologia animal para a
psicologia humana (VIGOTSKI, 1998, p. 76).
18

Isso implica considerar que,

[...] se atrás das funções psicológicas estão geneticamente as relações das pessoas,
então: 1) é ridículo procurar centros especiais para as funções psicológicas
superiores ou funções supremas no córtex (partes frontais – Pavlov); 2) deve
explicá-las não como ligações internas orgânicas (regulação), mas de fora, através de
estímulos; 3) elas não são estruturas naturais, mas construções; 4) o princípio básico
do trabalho das funções psíquicas superiores (da personalidade) é social do tipo
interação das funções, que tomou o lugar da interação das pessoas (VIGOTSKI,
2000, p. 27).

Com base nessas ponderações do autor, depreende-se que esse pensador não deixa de
considerar os aspectos orgânicos, biológicos e maturacionais no processo de desenvolvimento
dos indivíduos, pois ele não defende uma concepção polarizada ou fragmentada de ser
humano, sem negar esses aspectos sobrepondo os sociais e culturais. Pelo contrário, a
concepção de ser humano que norteia as ideias desse psicólogo russo procura romper com o
dualismo, posto historicamente na relação entre ser humano, natureza e cultura.

Segundo Vigotski (1998), duas linhas qualitativamente diferentes podem ser


distinguidas no processo de desenvolvimento humano (filogênese e a ontogênese): “de um
lado os processos elementares que são de origem biológica; de outro, as funções psicológicas
superiores, de origem sociocultural. A história do comportamento da criança nasce do
entrelaçamento dessas duas linhas” (p. 61).

Ao estudar esses argumentos apresentados por Vigotski sobre a relação entre o social,
o cultural e o biológico que as funções elementares ou biológicas e funções superiores ou
culturais encerram, Pino (2000) considera que esse pensador

[...] não está seguindo, como o fazem outros autores, a via do dualismo. Muito pelo
contrário, ele está propondo a via de sua superação. As funções biológicas não
desaparecem com a emergência das culturais, mas adquirem uma nova forma de
existência: elas são incorporadas na história humana. Afirmar que o
desenvolvimento humano é cultural equivale, portanto a dizer que é histórico, ou
seja, traduz o longo processo de transformação que o homem opera na natureza e
nele mesmo como parte dessa natureza (p. 51).

Mediante essas ideias sobre o desenvolvimento humano, Vigotski buscava a superação


de vertentes da psicologia defensoras da ideia de que o comportamento social é consequência
do individual, ou de que o indivíduo recebe passivamente as influências do ambiente social.
Conforme ressaltado por Meira (2007),

tanto as vertentes subjetivistas quanto as objetivistas deveriam ser superadas. O


subjetivismo por analisar os fenômenos psicológicos como criações subjetivas e
independentes do homem e o objetivismo por entendê-los como mero reflexo do
19

mundo exterior. Tratava-se de compreender a determinação sócio-histórica do


psiquismo de forma não mecânica e reducionista, rompendo com as falsas
dicotomias capazes de produzir tanto teorias que transformam as contradições
sociais em problemas psicológicos, quanto teorias que se limitam a um enfoque
estritamente sociopolítico que reduz todos os problemas ao conhecimento e à crítica
das relações sociais. Era preciso considerar as complexas relações entre a base
material da sociedade e a superestrutura sem perder o objeto específico da
Psicologia (p. 42).

Nessa perspectiva, segundo a concepção de Vigotski (2000), pode-se compreender o


ser humano como um “conjunto de relações sociais, encarnado no indivíduo (funções
psicológicas, construídas pela estrutura social)” (p. 33), e que cada tempo histórico constrói
formas de sociabilidade que constituem a matéria-prima do psiquismo humano. Portanto, para
Vigotski (2000), o individual e o pessoal constituem uma forma de sociabilidade.

Assim, os processos que envolvem o desenvolvimento dos meninos são forjados nas
relações construídas histórica e culturalmente, as quais fornecem a materialidade para a
constituição de um determinado modo de ser menino e regulam padrões comportamentais, de
linguagem e de cognição.

Nesse sentido, entende-se que os mecanismos que engendram as queixas escolares, e


os seus fenômenos psicológicos, possuem uma base material e concreta, determinada por
vários fatores os quais se vinculam: história, política, economia, cultura e que não estarão
imunes ao controle de produção e reprodução que o sistema capitalista opera.

Essa questão é de suma importância para se refletir sobre o modo como os seres
humanos são constituídos e como se organizam em sociedade. Sociedade regida por um
sistema fornecedor da materialidade e que estrutura as instituições e as relações construídas na
condição de seres humanos,bem como os discursos, valores, crenças e ideias, o saber
científico ou senso comum produzidos, e que, muitas vezes, norteiam a vida cotidiana e as
práticas profissionais.

De acordo com o entendimento de Martins (1978), o modo capitalista de produção é


também o modo capitalista de pensar, o qual se expressa da seguinte forma:

[...] enquanto modo de produção de ideias, marca tanto o senso comum quanto o
conhecimento científico. Define a produção das diferentes modalidades de ideias
necessárias à produção das mercadorias nas condições da exploração capitalista, da
coisificação das relações sociais e da desumanização do homem. Não se refere
estritamente ao modo como pensa o capitalista, mas ao modo de pensar necessário à
reprodução do capitalismo, à reelaboração das suas bases de sustentação –
ideológicas e sociais (p. XI).
20

Refletir sobre esse modo capitalista de pensar é fundamental para se compreender os


mecanismos envolvidos na predominância de meninos com queixa escolar encaminhados para
acompanhamento psicológico.

Sabe-se que a psicologia constitui, historicamente, um importante campo do saber


científico que detém o poder de tornar legítimos os mecanismos de nomeação e
responsabilização do fracasso escolar, ao se colocar no espaço social como uma ciência
vigilante sobre os processos que envolvem o desenvolvimento infantil.

Dessa forma, no âmbito das áreas de conhecimento que se voltam à educação, a


psicologia é a ciência que, em sua base teórica e metodológica, institui normas, tempos,
espaços, modos de se relacionar coletivamente e individualmente, determinando formas de
sociabilidades condizentes com o modo operante do sistema capitalista. Portanto, a ciência
psicológica é doadora de sentido sobre os processos de desenvolvimento humano, porque
detém conhecimentos ditos científicos sobre o mesmo.

Com base na concepção de Souza (2008), de que “o poder, nas sociedades complexas
contemporâneas, não se faz tão somente pelo controle dos meios de produção, mas também
pelo controle da produção de sentidos” (p. 41), pode-se depreender que a psicologia é
preponderante em definir os sentidos da subjetividade. É o caso, por exemplo, do significado
de ser menino.

Por esses pressupostos, pode-se dizer que não existe possibilidade de desarticular a
complexa trama que envolve a constituição da subjetividade humana (desenvolvida a partir da
das relações subjetivas) que se constrói na sociedade capitalista de produção, do fenômeno
que, no presente estudo, é designado queixa escolar.

Dessa forma, o que se identifica como queixa escolar é um fenômeno que se mostra
apenas na aparência. Aparência que esconde as contradições e tensões envolvidas nos
mecanismos de sua produção, bem como a fragmentação e o reducionismo dos processos
psicológicos, pois se colocam em polos opostos (por exemplo, o que é interno e externo; o
que é natural e social; o que é psíquico e biológico), como aspectos que fazem parte da
constituição do desenvolvimento humano. Essa questão sugere a necessidade de se pensar que
os fenômenos considerados psicológicos não podem ser compreendidos de forma deslocada
da sociedade na qual fazem parte.
21

No entendimento de Bock (2001),

[...] falar da subjetividade humana é falar da objetividade em que vivem os homens.


A compreensão do „mundo interno‟ exige a compreensão do mundo externo, pois
são dois aspectos de um mesmo movimento, de um processo no qual o homem atua
e constrói/modifica o mundo e este, por sua vez, propicia os elementos para a
constituição psicológica do homem (p. 22).

Há outro ponto importante para se refletir nessa discussão: se as funções psicológicas


superiores envolvidas no processo de aprendizagem decorrem, do ponto de vista vigotskiano,
de uma relação social entre pessoas, é preciso considerar que os processos que envolvem a
escolarização de crianças e adolescentes são tecidos nas relações e interações entre escola,
família e sociedade, dentro de um contexto real, concreto e contraditório, como é a sala de
aula.

Com base nesses pressupostos, pode-se afirmar uma mudança de paradigma na


compreensão das queixas escolares. Ao invés de analisar os problemas de aprendizagem ou
comportamentais, passa-se a analisar o processo de escolarização dos alunos e alunas, ou seja,
sua trajetória escolar. A esse respeito, Zago (2000) tece o seguinte comentário:

[...] nos apoiamos na compreensão dos destinos escolares, sejam eles de fracasso ou de
sucesso, produzidos de forma dialética e complexa, no quadro de uma configuração de
fatores em interdependência, o que significa adotar uma posição contrária à lógica de causa
e efeito. Este procedimento permite observar, além das variáveis clássicas (como renda,
ocupação, escolaridade dos pais), outros elementos mediadores do curso escolar: as
trajetórias sociais, sabendo que essas produzem diferenças na experiência de vida e visão de
mundo; os significados e as práticas de escolarização, entre outros fatores centrais e
periféricos às questões escolares (p. 20).

Nesse sentido, é necessário considerar algumas questões pertinentes: a queixa escolar


propriamente dita, os bastidores de produção desta queixa, e a relação desses fenômenos com
o fracasso escolar. Ao problematizar a queixa escolar; como essa queixa é construída; e sua
relação com os mecanismos que produzem o fracasso escolar, pode-se afirmar que “a prática
de encaminhamento de crianças com problemas de aprendizagem e comportamento para
psicólogos se ancora em uma série de práticas paralelas” (MACHADO; SOUZA, 1997, p.
37), o que inclui práticas sociais, culturais e escolares, que serão discutidas mais adiante.

Essas considerações são importantes, pois os estudos sobre as queixas escolares


envolvem algumas tensões, embates e contradições, sobretudo no âmbito da própria
22

psicologia, especificamente entre a psicologia clínica e a psicologia escolar3, cujo fator,


segundo Souza (2000), é o “hiato existente entre os vários avanços teóricos e metodológicos
na área de psicologia escolar em relação às explicações do fracasso escolar e as concepções e
práticas difundidas na formação em Psicologia Clínica” (p. 108).
Ainda de acordo com a autora, esse hiato evidencia que, embora a psicologia,

[...] tenha ampliado o seu ângulo de visão da intra e da intersubjetividade, pela


consideração de seus determinantes sócio-históricos, a presença das novas
concepções da queixa escolar é engolida por uma leitura psicologizante e em muitos
casos patologizante dos processos de escolarização (SOUZA, 2000, p. 120).

Para desvelar essas contradições que permeiam o entendimento sobre as queixas


escolares, é necessário contextualizar as práticas sociais, culturais e escolares que subsidiam o
encaminhamento de meninos com essas queixas para acompanhamento psicológico. Entre as
práticas mais recorrentes que permeiam esse fenômeno, podem ser citadas: a) uso
indiscriminado dos testes psicológicos sem a devida reflexão sobre determinantes sociais,
políticos e culturais envolvidos no processo de escolarização das crianças; b) os professores
acreditam que os problemas escolares são intrínsecos à criança e/ou responsabilizam à
família, ou às condições sociais e materiais que essa criança vivencia etc.) a exigência de um
laudo psicológico para que a criança tenha acesso a algum tipo de acompanhamento
pedagógico4 (MACHADO; SOUZA, 1997; SOUZA, 2007).

Essa contextualização traz, para o cerne da discussão, a relação de cumplicidade


ideológica5 que se estabeleceu historicamente entre a psicologia e a educação. Refletir sobre
essa relação de cumplicidade ideológica existente entre ambas as áreas do saber requer a
necessidade de “analisar por que a psicologia se tornou necessária para a educação e como a
psicologia respondeu às demandas que lhe foram feitas” (BOCK, 2003, p. 79).

3
O objetivo de tencionar essas duas áreas neste estudo é refletir sobre as contradições históricas que elas
carregam em relação às intervenções junto aos problemas escolares.
4
A exigência desse laudo psicológico se dava na época das salas especiais. Atualmente, na educação inclusiva,
essa exigência é feita para avaliar o tipo de necessidade educacional especial que a criança possui.
5
De acordo com Chauí (2001), ideologia é “um conjunto lógico, sistemático, e coerente de representações
(ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que
devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como
devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações) e
prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros
de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais,
sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes a partir de divisões na esfera da produção.
Pelo contrário a função da ideologia é a de apagar as diferenças como de classes e fornecer aos membros da
sociedade o sentimento da identidade social, encontrando certos referenciais identificadores de todos e para
todos, como, por exemplo, a Humanidade, a Liberdade, a Igualdade, a Nação, ou o Estado” (p. 108).
23

Bock (2003) destaca que uma das repostas da psicologia, como ciência, às demandas
realizadas pela educação tem relação com a produção de conhecimentos sobre o
desenvolvimento infantil. Antes, era necessário conhecer a criança, seu desenvolvimento, sua
inteligência, seus afetos, sua sociabilidade, saberes estes, tidos como necessários à prática
pedagógica. Essa necessidade de se conhecer a criança e seu desenvolvimento como um
respaldo à prática pedagógica é um princípio escolanovista que criticava o modelo tradicional
de educação (PATTO, 1999; BOCK, 2003).

São nesses saberes psicológicos, protegidos pelo status de cientificidade, que a relação
de cumplicidade ideológica entre a psicologia e a educação se materializa (BOCK, 2003;
PATTO, 2006). Esses conhecimentos são apropriados pela escola para responder aos desafios
que a prática pedagógica enfrenta em seu cotidiano. Entre esses desafios está a complexidade
do fenômeno da não aprendizagem escolar. E quando o assunto é a chamada “dificuldade de
aprendizagem”, a ciência psicológica, mais especificamente, a prática da avaliação
psicológica e da psicologia clínica, aparece, no ideário educacional, como um importante
instrumento de “revelação” sobre os motivos que levam as crianças ou os adolescentes a não
obterem índices satisfatórios em sua aprendizagem.

Segundo Patto (2000), “encaminhar para diagnóstico os alunos que não correspondem
às expectativas de rendimento e de comportamento que vigoram nas escolas é um anseio de
professores, técnicos e administradores escolares que um crescente número de psicólogos tem
ajudado a realizar” (p.65). Dessa forma, pode-se dizer que um conhecimento se torna
ideológico quando cumpre a função de dificultar “a atitude reflexiva que estranha o que é tido
como dado, pois naturalizam relações de poder construídas historicamente” (PATTO, 2006, p.
13). A força do discurso ideológico reside exatamente no fato de que, para se tornar legítimo
e verdadeiro, deve-se omitir sua finalidade.

Esse discurso ideológico que envolve os saberes psicológicos “aplicados” à prática


pedagógica culmina na transformação do que se produz coletiva e dialeticamente na relação
entre indivíduo, escola e sociedade em questões individuais, abstratas e a-históricas. Por essa
razão, pode ocorrer o risco de os conceitos e as abordagens teóricas e metodológicas,
utilizadas na investigação dos fenômenos postos na realidade concreta (que, neste caso, é a
queixa escolar) não serem desvelados e passarem a dissimular os mecanismos de seu
engendramento, permitindo que as desigualdades sociais sejam convertidas em desigualdades
escolares.
24

Dessa forma, o discurso ideológico se torna em um discurso que adquire status de


verdade absoluta, pois ampara-se em mundo que, segundo Patto (2006), “cultua a
cientificidade como uma única forma válida de produção do saber” (p. 14). E os que
produzem esses discursos são considerados os únicos que possuem a autorização, a
competência e a legitimidade para fazê-lo.

Segundo o entendimento de Patto (2006), o discurso competente produz, por


complementariedade, os incompetentes, que são definidos pela autora como aqueles que não
possuem autoridade para falar.

É assim que se garante, no plano das ideias, a reprodução de um estado de coisas


injusto que só interessa a quem se beneficia dele. Os produtores e/ou porta-vozes da
ideologia falam sobre os oprimidos e, assim, silenciam a fala dos oprimidos, uma
forma poderosa de exercício de poder (PATTO, 2006, p. 15).

Com base nesse entendimento, pode-se dizer que, ao se refletir sobre os mecanismos
envolvidos no encaminhamento de meninos com queixas escolares para acompanhamento
psicológico,é possível levantar indícios de que o que autoriza esse encaminhamento é a
apropriação de determinados conhecimentos psicológicos isolada dos condicionantes sócio-
históricos que subsidiam as concepções dos professores, gestores e coordenadores sobre o que
é ser menino, bem como as expectativas comportamentais que encontram respaldo social para
efetivar esse encaminhamento.

Outro aspecto a ser considerado é o embate que o estudo das queixas escolares
provoca no campo da psicologia com relação às questões éticas que envolvem o atendimento
de crianças e adolescentes com queixas escolares. Isso pode ocorrer principalmente, em
virtude das críticas realizadas aos atendimentos clínicos numa perspectiva adaptacionista da
criança à escola, o que reflete uma subordinação das práticas psicológicas aos princípios
neoliberais6 e evidencia que essa prática é utilizada, ainda, como instrumento que visa a
sujeição das crianças à estrutura de dominação capitalista imposta às instituições sociais.

Apesar de não se ter a intenção, com esta pesquisa, de adentrar nessa arena de
conflitos relacionados à problemática de ser ou não um retrocesso na prática profissional
clínica de psicologia do atendimento às demandas escolares, buscou-se, no entanto, refletir
6
Neoliberalismo pode ser definido como um conjunto de ideias políticas e econômicas que preconiza uma
participação mínima do Estado na economia, e se caracteriza pela política de privatização, ênfase na
globalização, incentivo ao aumento da produção, entre outras. Na psicologia, essa doutrina apresenta como
consequência uma ênfase no individualismo, na naturalização e fragmentação dos fenômenos psicológicos e uma
formação profissional centrada no tecnicismo e na especialização dos saberes que atendam às demandas do
mercado e que possam colaborar para a justificação das desigualdades sociais que esse sistema provoca.
25

sobre a mesma inquietação de Souza (2010), representada pela seguinte explanação:

[...] quando o psicólogo recebe uma queixa escolar, esta se constitui em um


fragmento de uma complexa rede de relações sociais com as quais ele terá que
trabalhar a partir do seu campo de conhecimento. O psiquismo é um dos aspectos
constitutivos do processo de escolarização e ao elegê-lo como aspecto central de sua
análise, o psicólogo ou qualquer outro profissional incorrerá no erro de desprezar
inúmeras outras situações que, segundo várias pesquisas na área educacional
apresentam, são constitutivas de ações realizadas pelas crianças e de reações a
determinados contextos extremamente hostis. E mais do que isso, explicitará o fato
de que o profissional desconhece o que se passa na escola, não tendo dimensão de
que o fracasso ou o sucesso no processo de aprendizagem escolar é muito menos
determinado por questões individuais do que por mecanismos institucionais e
políticos (p. 60).

Portanto, torna-se necessário tencionar a relação psicologia-educação acerca do lugar


em que o conhecimento psicológico vem ocupando na prática pedagógica. Tencionara relação
entre psicologia e educação é direcionar o olhar para as determinações políticas e sociais que
engendraram os saberes e as práticas construídas por essas duas áreas do conhecimento no
contexto histórico de formação da sociedade capitalista, o que conduz a uma reflexão sobre as
explicações hegemônicas acerca do fracasso escolar.

1.1 Algumas considerações sobre o fracasso escolar

No âmbito das ciências humanas, particularmente no campo da psicologia e da


educação, o tema do fracasso escolar7 tem se apresentado como um dos fenômenos mais
pesquisados no Brasil, ainda que, na atualidade, permaneça reiteradamente como um dos
desafios a serem superados na construção de uma escola pública democrática, que seja capaz
de favorecer condições de inclusão de todas as crianças numa sociedade cada vez mais
competitiva e desigual.

Adentrar na temática do fracasso escolar, na tentativa de tentar compreendê-lo, não é


tarefa fácil. Primeiramente, o fracasso na aprendizagem escolar é determinado por parâmetros
circunscritos à organização e à seriação e avaliação do conhecimento a ser transmitido e
trabalhado pela, e na escola.

A escola é composta por pessoas reais e concretas que refletem as contradições e


tensões da realidade social, e que são responsáveis pelo fazer pedagógico: os professores, os

7
Não constitui objetivo neste estudo traçar com profundidade, a partir de uma perspectiva histórica, as raízes das
explicações hegemônicas acerca do fracasso escolar, mas, trazer alguns elementos importantes que podem
contribuir no dimensionamento do tema que se pretende desenvolver.
26

gestores, os coordenadores e os alunos. De modo atravessado estão: as relações e interações


escolares; as famílias dos alunos; a formação dos docentes; a estrutura física da escola; o
planejamento didático, curricular e pedagógico; a política educacional; as exigências
burocráticas e administrativas dos órgãos que regulam e controlam a escola.

Para destrinchar um pouco mais esse contexto escolar, com o intuito de se refletir
sobre o fenômeno do fracasso escolar, é necessário considerar que a escola não existe no
vácuo.Na realidade, ela se constitui historicamente como uma das instituições mais
importantes em nossa sociedade, com objetivos e finalidades específicas. Dessa forma, a
escola está inserida numa sociedade regida por leis, regras, princípios econômicos e políticos,
e composta por outras instâncias sociais, como a família, o trabalho, a saúde, entre outras.

Por ser o fracasso escolar um fenômeno complexo e multideterminado, e


principalmente, por ser algo que incomoda e que fere um dos princípios fundamentais do
modo capitalista de pensar (que é a igualdade de oportunidades), vários eixos de explicações
foram construídos historicamente para dar conta das causas desse fracasso, bem como de sua
superação.

Entretanto, se por um lado, o fracasso escolar constitui um fator estatístico


irrecusável, por outro, a interpretação desse fato, bem como sua persistência no
debate sobre a escola pública, contêm uma dimensão valorativa cuja significação
política e pedagógica não foram suficientemente explicadas (TIBALLI, 1998, p. 12).

De modo geral, desde a década de 1980, as pesquisas produzidas sobre fracasso


escolar8 revelam uma trama complexa e arbitrária que aponta a psicologização9 e
patologização10 da aprendizagem; a culpabilização, ora da criança e de sua família pelo
fracasso escolar, ora do professor, por problemas relacionados à sua formação e à técnica
utilizada em sala de aula;a naturalização dos processos de desenvolvimento das funções
mentais superiores. Esses estudos possibilitam dizer que a escola se constitui uma instituição
que tem contribuído historicamente para produzir e reproduzir as desigualdades sociais,
tornando-as naturais, legítimas e justificáveis.

8
A produção de pesquisas, no Brasil, sobre fracasso escolar é vasta não somente pela quantidade que priorizam
essa temática, mas pela diversidade teórica e metodológica que esses estudos adotam. Para efeito deste trabalho,
foram utilizados os seguintes autores para subsidiar a discussão sobre a temática do fracasso escolar: Patto
(1999, 2000, 2007); Tiballi (1998); Angelucci et al. (2004); Faria (2008).
9
Psicologização pode ser compreendido como uma “tendência a tomar a dimensão psíquica como algo que
antecede o social e a ele se sobrepõe” (PATTO, 1999, p. 23).
10
Patologização é a ênfase das explicações sobre o fracasso escolar reduzida a saberes médicos e higienistas (ver
Patto, 1999).
27

Dessa forma, pode-se dizer que há uma conformação com as explicações para o
fracasso escolar que se ancoram em fatores individuais, sejam eles de natureza biológica,
familiar, psicológica, emocional ou cultural. Outra explicação diz respeito aos fatores intra-
escolares, que se concentram na formação docente e na metodologia utilizada; na
precariedade da escola pública e na lógica excludente da educação escolar. Há, ainda, a
explicação de que o fenômeno do fracasso escolar é uma questão política e que, portanto,
deve ser analisada como um aspecto que é constitutivo de uma sociedade classista e
excludente (PATTO, 1999; ANGELUCCI et al., 2004).

Convém ressaltar que cada um desses discursos produzidos sobre o fracasso na


escolarização tem determinantes e compromissos políticos e ideológicos que se encontram
diretamente relacionados com o momento histórico em que foram formulados, e que trazem
em sua composição as contradições inerentes à realidade social.

Apesar de ter sido publicado há mais de duas décadas, a obra de Patto (1999)
intitulada “A produção do fracasso escolar – histórias de submissão e rebeldia” é uma
importante lente para se entender os labirintos conceituais, teóricos e metodológicos que,
muitas vezes, tal como se mostram as explicações sobre o fracasso escolar na atualidade.

Patto (1999), na primeira parte da sua obra, traça o percurso histórico e social das
ideias psicológicas e pedagógicas que subsidiam as práticas discursivas e não discursivas,
lançando luz sobre os processos responsáveis por produzirem os “fracassados”, que, nesse
caso, eram os alunos e alunas membros das classes trabalhadoras e rurais que passaram a ter
acesso à escola pública.

Ao finalizar a primeira parte do livro, Patto (1999) elucida três afirmações11 que ainda
se encontram diluídas nos estudos contemporâneos acerca do fracasso escolar: i) “as
dificuldades da criança pobre decorrem de sua condição de vida” (p. 155); ii) “a escola
pública é uma escola adequada às crianças de classe média e o professor tende a agir, em sala
de aula, tendo em mente um aluno ideal” (p. 157); iii) “os professores não entendem ou
discriminam seus alunos de classe baixa por terem pouca sensibilidade e grande falta de
conhecimento dos padrões culturais dos alunos pobres, em função de sua condição de classe
média” (p. 160).

A primeira afirmação de que as dificuldades de aprendizagem escolar da criança


11
Essas três afirmações têm sua base na teoria da diferença e da deficiência cultural. Para aprofundar no que seja
essa teoria e suas consequências na produção de preconceitos e estereótipos sobre as crianças pobres (ver Patto,
1999).
28

pobre decorrem de suas condições de vida encontra respaldo no que se designa como
diferenças individuais, sejam elas provenientes de aspectos biológicos, psicológicos,
familiares ou culturais.

Quando a situação de fracasso na escola ou na sociedade é individualizada e


explicada em termos de traços ou características de cada qual, aquilo que nesta
sociedade é universal, ou seja, a exploração econômica que produz condições de
vida incompatíveis com o desempenho bem-sucedido, é transferido para o plano
particular (PATTO, 1999, p. 156 – itálicos da autora).

Essa afirmação de que as crianças oriundas dos segmentos mais pobres não aprendem
na escola por conta de suas deficiências, sejam elas de ordem biológicas, psíquicas ou
culturais, abrem brechas para explicações pautadas por princípios fundados no psicologismo e
na patologização da aprendizagem, que, conforme discutido anteriormente, culpabiliza ora a
criança, ora sua família, pelo fracasso na escolarização e naturalizam os processos de
desenvolvimento das funções mentais superiores. A esse respeito, Souza (2010) ressalta:

A análise do fracasso escolar tem como um de seus principais argumentos, o fato de


que os problemas de aprendizagem incidem maciçamente sobre as crianças de
classes populares e é sobre elas que durante décadas recaem as explicações a
respeito dos chamados problemas de aprendizagem: ou porque apresentam
problemas psicológicos, ou biológicos, ou orgânicos ou mais recentemente,
socioculturais; bem como analisando o caráter ideológico e repleto de equívocos
presentes nessas explicações, resultado de concepções preconceituosas a respeito do
pobre e da pobreza no Brasil (SOUZA, 2010, p. 59).

Angelucci et al. (2004), em um estudo do tipo “estado da arte da pesquisa” sobre


fracasso escolar no período 1991-2002, evidenciaram uma reincidência de estudos acerca
desse fenômeno com os quais se defende uma concepção de fracasso escolar reduzida a
fenômenos de natureza psicológica. Essas autoras mostraram que explicações dessa natureza
ainda não foram superadas e que “a força da redução psicológica na explicação do insucesso
escolar [...], ao passar por sucessivos renascimentos, mostra o poder de convencimento que
tem as concepções que não vão além do senso comum” (ANGELUCCI et al., 2004, p. 63).

De fato, essa redução psicológica tem o seu poder de convencimento, pois é amparada
por ideias como aptidões naturais e diferenças individuais. Tais ideias se apresentam como
conceitos cientificamente neutros e desprovidos de compromissos políticos e econômicos que
se enraizaram nos discursos oficiais de psicólogos e educadores. E esses conceitos favorecem
o obscurecimento das profundas desigualdades sociais que as crianças e adolescentes de
classes trabalhadoras vivenciam em sua cotidianidade e que estão presentes na produção do
fracasso escolar.
29

Dessa forma, retomar a discussão das diferenças individuais é trazer novamente ao


debate o modo dominante de pensar as dificuldades de aprendizagem, sobretudo de alunos e
alunas de escolas públicas, pois, é sobre esses sujeitos que recai, historicamente, a
“fatalidade” do fracasso escolar. De acordo com Patto (2000), essa atribuição do fracasso
escolar às crianças e adolescentes de escolas públicas se fundamenta numa visão
preconceituosa sobre a desqualificação dos mais pobres.

Esse preconceito, historicamente enraizado no imaginário coletivo e social da


sociedade brasileira, faz com que agentes escolares, envolvidos no processo de escolarização
das crianças e dos adolescentes, se conformem à visão de que a “marginalidade social é
expressão de deficiências biopsicólogicas individuais” e ignorem a dimensão política,
econômica, social e cultural das diferenças individuais (PATTO, 1999, 2000).

Em outra publicação, Patto (2007) também ressalta esse modo dominante de pensar as
dificuldades que as crianças e os adolescentes que estudam em escolas públicas atravessam
em seus percursos escolares. Esse discurso dominante é atravessado pelo seguinte
entendimento:

[...] os pobres são menos capazes, mais ignorantes, mais propensos à delinquência –
seja por motivos constitucionais seja por deficiências no ambiente familiar, lido em
chave moralista – motivo pelo qual, no discurso oficial, uma das concepções mais
pregnantes da função social da escola, ao longo da história do pensamento
educacional brasileiro, é, explícita ou implicitamente, a de prevenção da
criminalidade, o que praticamente anula a escola como instituição que tem o dever
de garantir o direito de todos ao letramento e ao saber (PATTO, 2007, p. 245).

No âmbito da discussão sobre a reposição de princípios individualistas no


entendimento do fracasso escolar, existem referências às implicações culturais, sociais, e
econômicas que podem estar permeando esse fenômeno. Contudo, há uma redução dessas
questões e os condicionantes estruturais que estão postos na sociedade capitalista e que
promovem a exclusão dos mais desfavorecidos socialmente e culturalmente são ignorados.

O que se sobressai nas explicações das trajetórias escolares malsucedidas é a ênfase de


que os problemas individuais são decorrentes do que alguns profissionais da psicologia e da
educação nomeiam como distúrbios emocionais, culturais, sociais ou familiares. Segundo
Angelucci et al. (2004), é a partir dessa compreensão sobre o fracasso escolar que vai se
estabelecer uma relação direta entre desempenho escolar e saúde mental.

A problematização da relação entre desempenho escolar e saúde mental é de suma


importância nos dias atuais, pois se pode observar que uma das consequências perversas das
30

explicações pautadas por princípios individualizantes é o retorno, também, à patologia, para


justificar a não aprendizagem escolar.

Tal retorno se fundamenta em concepções orgânicas e biológicas sobre o


funcionamento e desenvolvimento do psiquismo, e conta, na atualidade, com o apoio de
diagnósticos neurológicos e psiquiátricos subsidiados por exames de ressonância magnética e
mapeamentos cerebrais. A finalidade desses exames é procurar, nas áreas cerebrais das
crianças e dos adolescentes, as causas do fracasso na escolarização, produzindo um fenômeno
que não é novo na realidade educacional brasileira, mas que, atualmente, atinge níveis
preocupantes, como é o caso da medicalização12. Sobre esse retorno à patologia nas
explicações dos problemas escolares, Souza (2010) apresenta a seguinte explicação:

A criança com dificuldade em leitura e escrita é diagnosticada, procuram-se as


causas, apresenta-se o diagnóstico e em seguida a medicação ou o acompanhamento
terapêutico. E o que é mais perverso nesses processos, sob o nosso ponto de vista, é
que os defensores das explicações organicistas apresentam a patologização da
criança que não aprende ou não se comporta na escola, como um direito. Utilizam a
mesma lógica que se faz presente para as modalidades de doença para o processo de
aprendizagem. Dizem aqueles que defendem a medicação do aprender que é um
direito da criança ser medicada, ser atendida e ser diagnosticada. Os defensores das
explicações organicistas no campo da educação afirmam que é um direito da família
saber o problema que esta criança tem e mais do que isso, que cabe ao Estado
brasileiro arcar com as despesas do diagnóstico, do tratamento e da medicação
(SOUZA, 2010, p. 64).

A segunda e terceira afirmação feita por Patto (1999) de que a escola pública é uma
instituição adequada às crianças de classe média, de que os professores desconhecem os
padrões culturais dos alunos pobres e que tendem a agir conforme o modelo de aluno ideal
fundamenta-se no que se convencionou a chamar de diferenças culturais.

Estudos baseados na concepção de que o fracasso escolar é decorrente do abismo


cultural existente entre a escola e seus alunos, reforçam a ideia de que a escola pública seria
inadequada para crianças oriundas das classes trabalhadoras. De fato, pois, ela “estaria
falhando ao tentar ensinar, com os mesmos métodos e os mesmos conteúdos, crianças
culturalmente deficientes ou diferentes” (PATTO, 1999, p. 128).

Assim, para adequar a escola à demanda que atende, seria necessário efetivar

12
Segundo Collares e Moysés (1994), “o termo medicalização refere-se ao processo de transformar questões não
médicas, eminentemente de origem social e políticas em questões médicas, isto é, tentar encontrar no campo
médico as causas e soluções para problemas desta natureza. A medicalização ocorre segundo uma concepção de
ciência médica que discute o processo saúde e doença como centrado no indivíduo, privilegiando a abordagem
biológica, organicista. Daí as questões medicalizadas serem apresentadas como problemas individuais, perdendo
sua determinação coletiva” (p. 25).
31

mudanças na gestão escolar e nas práticas pedagógicas e curriculares voltadas aos interesses,
necessidades e cultura dos alunos e alunas.
De acordo com Patto (1999),

Este diagnóstico, segundo o qual a escola pública primária 13 seria o palco de um


desencontro cultural, generalizou-se nos meios acadêmicos e técnicos, dando
margem a todo tipo de reflexões e propostas, desde a defesa da tese do caráter
intocável da cultura popular, até a sorte de mal-entendidos na feitura de cartilhas
regionais e, certamente, na elaboração de guias curriculares (p. 129).

Nesse sentido, se por um lado, as explicações acerca do fracasso escolar que se


respaldam em fatores relativos às diferenças individuais vêem, na criança, as causas do
malogro; por outro, as explicações sobre o fracasso escolar, referentes à sua relação com a
cultura, veicula a escola como a responsável por produzir os “fracassados”. Esses dois eixos
de explicações, embora dissonantes quanto às origens do fracasso escolar e quanto às suas
teorias e métodos utilizados para pesquisar esse fenômeno, convivem lado a lado em muitos
estudos sobre o tema em questão.

Essa ambiguidade nos estudos sobre o fracasso escolar foi detectada na pesquisa
realizada por Patto (1999), que acabou por denunciar que os discursos acerca dessa
problemática encontravam-se fraturados. A fratura no discurso se revela ao afirmar que o
ensino da escola pública é ineficiente, o que gera uma impossibilidade de motivar os alunos e
alunas para aprendizagem e, no mesmo compasso, atribuir a esses mesmos alunos e alunas o
seu desinteresse na aprendizagem, seja ele, de origem biológica, psicológica ou cultural, por
uma escola que já foi qualificada como insuficiente para esses sujeitos. Assim,

Diagnósticos da precariedade da escola pública de primeiro grau continuam a


conviver, muitas vezes no mesmo texto, com a afirmação de que, devido
principalmente a influências externas à escola, as crianças pobres são portadoras de
dificuldades escolares que lhe são inerentes (PATTO, 1999, 155).

Em relação ao estudo de Faria (2008), o objetivo foi estudar as concepções de fracasso


escolar disseminadas pelo periódico “Cadernos de Pesquisa”, referentes às publicações no
período 1971-2006. Ao ler a tese da autora, pode-se perceber que muito do que se produz de
discursos sobre o fracasso escolar carregam, ainda, as contradições elucidadas por Patto
(1999). Dessa forma, Faria (2008) assinala que o debate em torno da produção do fracasso
escolar, no que se refere às diferenças culturais, coloca a escola no centro de um embate entre

13
Atualmente, não existe mais essa denominação da escola pública, pois passou a designar-se escola pública de
ensino fundamental.
32

o conhecimento e o reconhecimento da realidade cultural dos alunos e alunas de classes


trabalhadoras.

O conhecimento da cultura e o reconhecimento da cultura do aluno, de sua família e


de sua comunidade expressam dois ciclos de explicações do fracasso escolar,
mutuamente referenciados. Expressam uma mesma problemática, qual seja, as
discussões acerca das possibilidades ou dos limites da escola para superar o fracasso
escolar por meio da vinculação da cultura da escola à cultura do aluno (FARIA,
2008, p. 36).

Nesse sentido, a autora apresenta dois ciclos14 de explicações sobre o fracasso escolar
expressos nos artigos oriundos do periódico “Cadernos de Pesquisa”: o ciclo do conhecimento
do aluno, que se refere a estudos que entendem o fracasso escolar a partir do enfoque centrado
da marginalidade cultural, e outro ciclo que abarca o reconhecimento do aluno, que se refere a
estudos que compreendem o fracasso escolar a partir do enfoque da diversidade cultural.

O ciclo do conhecimento do aluno, relacionado a estudos e pesquisas que se embasam


na perspectiva da marginalidade cultural, busca dois eixos de explicações para o fracasso
escolar: uma vertente de estudos propositivos15, que se amparam em questões
psicopedagógicas na explicação do insucesso escolar, e outra vertente de estudos críticos que
buscam explicações para o fracasso escolar de cunho mais sociológico.

A vertente de estudos propositivos delimitada pelas explicações psicopedagógicas


acerca do fracasso escolar, segundo os artigos analisados por Faria (2008), teria o seguinte
objetivo:

[...] descrever o modo como a cultura da criança marginalizada interferiria em seu


baixo rendimento escolar. Trata-se de um objetivo de diagnosticar, por meio de
pesquisas experimentais e estudos de correlação, os fatores ambientais que causam o
fracasso escolar e controlá-los. Identifica-se aqui o viés comportamental desses
estudos, preconizando-se que, ao promover o desaparecimento das condições
ambientais que gerariam o fracasso escolar, a associação entre grupo social
„desfavorecido‟ e rendimento escolar deficiente enfraquecer-se-ia (p. 45).

Já os estudos críticos16, pesquisados por Faria (2008), incorporam uma crítica às teses

14
É importante ressaltar que as ideias que permeiam as explicações para esses dois ciclos do fracasso escolar
têm relação com o contexto político e econômico em que foram historicamente construídos. As teses que
fundamentam a explicações do enfoque da marginalidade cultural referem-se às décadas de 1970 e 1980. E as
explicações do ciclo da diversidade cultural começam a aparecer na literatura educacional a partir dos anos de
1990.
15
Faria (2008) aponta que os estudos propositivos publicados no periódico “Cadernos de Pesquisa” foram
coordenados por Ana Maria Poppovic.
16
Faria (2008) ressalta que os estudos críticos foram influenciados por algumas obras como: SNYDERS,
33

defendidas pelos estudos propositivos por expressarem “uma concepção de escola funcional à
sociedade vigente, cujo objetivo seria educar a criança marginalizada de forma a prepará-la
para uma sociedade competitiva e implacável” (p. 50). Dessa forma, as contradições de classe,
inerentes à sociedade capitalista, seriam apaziguadas, conforme já apontara Patto (1999).

Assim, de acordo com Faria (2008), esses estudos críticos17 encontraram dificuldades
em avançar na compreensão do fracasso escolar na sua relação com cultura, a escola e a
sociedade. Para a autora,

[...] o que prevalece no conjunto dos artigos críticos é a mesma concepção de cultura
concernente aos estudos propositivos da marginalidade cultural: uma concepção
antropológica de cultura, compreendida como expressão de hábitos, costumes e
tradições de um grupo ou classe social (FARIA 2008, p. 61).

Nessa perspectiva, Faria (2008) ainda ressalta uma importante observação: “no âmbito
do enfoque da marginalidade cultural em suas abordagens propositivas e críticas, a escola é o
locus de produção do fracasso escolar, permanecendo a tese do fracasso da escola como a
chave desses estudos e pesquisas” (p. 61).

O segundo ciclo do fracasso escolar, analisado por Faria (2008), em sua tese de
doutorado, se refere ao enfoque da diversidade cultural. A ideia de se compreender, no campo
educacional, as diferenças de desempenho escolar a partir do enfoque das chamadas
diversidades culturais, propiciou o estudo do fracasso escolar em várias perspectivas, entre
elas, a do gênero18.

A autora observou, ainda, no conjunto de artigos selecionados para sua pesquisa que, a
partir dos anos de 1990, ocorreu uma mudança em relação à discussão sobre o fracasso
escolar. A ideia que começa a ser disseminada é de que a educação, particularmente a
educação escolar, passa a ser um importante veículo de promoção do reconhecimento das

Georges. Escola, classe e luta de classes. São Paulo: Centauro, 2005; BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-
Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008 e também
em autores que tiveram trabalhos publicados no referido periódico: Zaia Brandão, Demerval Saviani e outros.
17
Faria (2008) afirma que somente dois artigos selecionados para a pesquisa conseguem abranger a discussão do
fracasso escolar na relação com a cultura, a escola e a sociedade, sem que reduza o conceito de cultura a uma
abordagem estritamente antropológica. Trata-se dos seguintes artigos: SAVIANE, Demerval. As teorias da
educação e o problema da marginalidade na América Latina. Cadernos de Pesquisa, n. 42, p. 121-133, 1982;
PATTO, Maria Helena de Souza. A criança marginalizada para os piagetianos brasileiros: deficiente ou não?
Cadernos de Pesquisa, n. 49, p. 3-11, 1984.
18
O estudo da relação entre gênero e educação começa a aparecer com mais frequência a partir dos anos de
1990. No entanto, existem alguns trabalhos tanto no campo da educação, que desde a década de 1960
evidenciam as diferenças de desempenhos escolares para meninos e meninas, como no campo da psicologia, que
também apontam que os meninos são os mais encaminhados para acompanhamento psicológico com problemas
na escola.
34

chamadas diversidades culturais, sejam elas de raça, etnia, classe ou gênero.

A reflexão sobre esse ciclo de explicação para o fracasso escolar, embasado no


enfoque das diversidades culturais, é importante, pois, sobre esse conceito se estrutura a
política educacional na atualidade e as exigências que se fazem à escola, como função,
estrutura e organização.

Nessa mesma perspectiva, Faria (2008) identificou, nas publicações do referido


periódico, dois eixos que abordam a questão da diversidade cultural:

[...] um primeiro conjunto de artigos, em que os autores tratam as diretrizes


educacionais mais amplas, envolvendo as discussões em torno da reforma
educacional tanto no Brasil, como no restante da América Latina; e um segundo
grupo, cujos autores, situando a discussão no âmbito da escola, evidenciam as ações
que poderiam levar a superação do fracasso escolar, considerando seus currículos e
as novas formas de organizar os tempos e espaços escolares (p. 64).

Têm-se, assim, dois tipos de ações que visam à superação do fracasso escolar no
marco das diversidades culturais: i) ações estabelecidas pelas diretrizes oficiais, e ii) ações
voltadas para a organização de tempo, espaço, currículo, gestão e práticas pedagógicas, com
vistas a construir uma cultura de sucesso escolar.

Nessa reflexão sobre a relação entre a produção do fracasso escolar e a cultura, tendo
como expressão as diferenças de classe, gênero, raça e etnia, chama à atenção os discursos
construídos sobre o papel transformador e, em alguns momentos, redentor da escola,
principalmente nas atuais políticas educacionais19, no contexto do reconhecimento das
chamadas diversidades culturais.

Miranda (2005), ao discutir sobre as mudanças formais, objetivas e técnicas que essas
políticas acarretam no contexto escolar, destaca a necessidade de se refletir sobre a
racionalidade, que está na base dessas reformas e que se encontram intrínsecas a essas
políticas públicas. Para a autora, essa racionalidade engendra uma nova concepção de
educação das massas e transforma a escola, constituída sob o princípio iluminista de
conhecimento, nunca consolidado plenamente para os filhos das classes trabalhadoras, – mas
que para as elites continuou a reproduzir as contradições da sociedade burguesa – em uma
escola regulada pelo princípio da socialidade20.

19
Referente à organização da escola em ciclos, às políticas de educação inclusiva e a escola de tempo integral,
discussão presente nos textos de Miranda (2005) e Libâneo (2012).
20
A autora emprega o termo socialidade “para ressaltar que a escola organizada em ciclos se situa como um
tempo/espaço destinado à convivência de aluno, a experiência de socialidade, distinguindo-se dos conceitos de
35

Acerca dessa questão, a autora enfatiza:

O importante é que os alunos permaneçam na escola, disponham de tempo e de


espaço para que possam desfrutar o que ela possa lhes oferecer, inclusive
oportunidades de adquirir conhecimento, mas não apenas isso ou não
fundamentalmente isso: que eles possam viver ali uma experiência de cidadania, de
convivência, de formação de valores sociais (MIRANDA, 2005, p. 642).

A reflexão proposta por Miranda (2005), sobre a necessidade de se conceber a escola


no contexto das atuais reformas da educação pública, é de suma importância para se
compreender a sutileza dos mecanismos que produzem o fracasso escolar de alunos de escolas
públicas na atualidade. Ao aprofundar na discussão sobre o debate, e embate, que essas
reformas provocam no campo da educação, a autora traz, em perspectiva, a mudança do foco
e do papel da escola pública. E considera uma importante problematização ao se designar,
para a escola, a responsabilidade de organizar um tempo e um espaço em prol da convivência
dos alunos, para que possam ter uma experiência de socialidade. Sobre esse fato, adverte:

De imediato, essa política tem o efeito de produzir um alívio nas taxas oficiais de
fluxo escolar. Há, ainda, de se aguardar os efeitos de um complicador que virá a
seguir sob a forma de avaliação institucional: as mesmas agências que exigem
correção do fluxo a qualquer preço instauram procedimentos de avaliação que irão
„corrigir as distorções do sistema‟, propondo mecanismos ainda mais sofisticados e
eficientes de discriminação e exclusão dos que escaparam do princípio do
conhecimento (e de seu viés excludente) lá na escola, mas terão que se defrontar
com ele quando for a hora de se instalar no tempo e espaço em sua vida adulta e
profissional (MIRANDA, 2005, p. 649).

Libâneo (2012) corrobora com as reflexões realizadas pela autora, quando explicita
que, ao se conceber a escola a partir do viés da socialidade, a educação brasileira apresenta
duas tendências: uma escola para ricos, constituída pelo princípio do conhecimento e uma
escola de acolhimento social para os pobres.
Essa tendência tem relação direta com a influência de pressupostos economicistas,
defendidos pela política neoliberal, e que foram definidos, pelas políticas mundiais, para os
países pobres por meio dos organismos internacionais que visam reduzir a concepção que se
tem de educação. Para isso, adotaram os seguintes parâmetros:

a) de educação para todos, para educação dos mais pobres; b) de necessidades


básicas, para necessidades mínimas; c) da atenção à aprendizagem, para a melhoria e
a avaliação dos resultados do rendimento escolar; d) da melhoria das condições de
aprendizagem para a melhoria das condições internas da instituição escolar
(organização escolar) (TORRRES, 2001 apud LIBÂNEO, 2013, p. 18).

socialização e de desenvolvimento da sociabilidade tratados pela sociologia e pela psicologia” (MIRANDA,


2005, p. 641).
36

Assim, observa-se uma reposição do preconceito e da discriminação em relação aos


alunos de classes trabalhadoras, mas, agora, com uma nova roupagem discursiva: a
escolarização dos filhos de trabalhadores se dá em nome do desenvolvimento econômico que,
para permanecer intocado no que tange ao aprofundamento das desigualdades sociais,
necessita reduzir a pobreza nos chamados países em desenvolvimento e incluir os pobres na
chamada reestruturação produtiva do capital21. Afinal de contas, pobre também é consumidor.

Eis que as vítimas dessas políticas aparentemente humanistas são os alunos, os


pobres, as famílias marginalizadas, os professores. O que lhes foi oferecido foi uma
escola sem conteúdo e com um arremedo de acolhimento social e socialização,
inclusive na escola de tempo integral. O que se anunciou como novo padrão de
qualidade transformou-se num arremedo de qualidade, pois esconde mecanismos
internos de exclusão ao longo do processo de escolarização, antecipadores da
exclusão social (LIBÂNEO, 2013, p. 24).

Desse modo, pode se afirmar, então, que os mecanismos postos na sociedade


brasileira, que articulam os processos de inclusão e exclusão e que se encontram camuflados
em produções sociais como é o caso do fracasso escolar permanecem intocados. Segundo a
percepção de Faria (2008):

Parecem estar em curso novos processos de obscurecimento das desigualdades


sociais e de reposição do fracasso escolar em patamares mais sutis à medida em que
são enfatizados os relacionamentos interpessoais, a tolerância, a solidariedade, os
direitos humanos, sem, no entanto, uma correspondente crítica aos processos
históricos que os engendram (p. 93).

Apesar de todas as contradições e tensões desveladas por esses estudos inerentes à


escola, se expressa nesses discursos, formulados sobre a escola pública, uma naturalização
dos problemas vivenciados em seu cotidiano, que pode ser observada na incoerência entre as
propostas de reformas e o que é efetivamente realizado na prática escolar.

É no bojo dessas contradições expostas neste capítulo que se buscará apreender os


mecanismos envolvidos na predominância de meninos com queixas escolares encaminhados
para acompanhamento psicológico em clínicas-escola de psicologia e serviços de saúde
pública.

21
De acordo com Cruz (2009), “esse processo se materializa no encolhimento do espaço público e no
alongamento do espaço privado sob os imperativos da nova forma de acumulação de capital, conhecida como
neoliberalismo. Uma das consequências dessa situação é transformação de direitos econômicos e sociais em
serviços definidos pela lógica de mercado e pela transformação do cidadão em consumidor” (p. 68).
37

CAPÍTULO II

ESTUDOS DO CAMPO DA PSICOLOGIA


SOBRE AS QUEIXAS ESCOLARES DE MENINOS

Pessoas são pessoas através de outras pessoas.


(Ditado Xhosa – língua materna de Nelson Mandela).

Sabe-se que, historicamente, a prática do acompanhamento psicológico tem sido uma


das soluções encontradas pela escola para tentar resolver problemas referentes à escolarização
de crianças e adolescentes.

Há toda uma crítica formulada, com base em estudos tanto do campo da psicologia
como do campo da educação, sobre a naturalização dos problemas que envolvem e encobrem
a queixa escolar e que dissimulam os mecanismos históricos, sociais, culturais e políticos os
quais permeiam o fenômeno do fracasso escolar. Apesar disso, os profissionais envolvidos na
prática pedagógica e na prática psicológica não conseguem ir além do reducionismo
psicologista e individualista que cerceia os motivos que produzem o deslocamento da criança
com problemas em sua trajetória escolar da sala de aula para um consultório de psicologia.

No primeiro capítulo, com base na concepção de Vigotski e na exposição de diversos


autores, defendeu-se que a queixa escolar é um fenômeno produzido social e coletivamente a
partir das relações e interações que a criança estabelece entre a família, a escola e a sociedade.
Dessa forma, compreende-se que a queixa escolar não se constrói num vácuo, apartada dos
determinantes históricos, políticos e culturais que regulam nossa vida em sociedade.

Nesse sentido, ao descrever as fontes bibliográficas do campo da psicologia


selecionadas para reflexão acerca da temática, o grande desafio é não cair nas armadilhas
postas pelo psicologismo. Essa tendência de tomar o psicológico como algo inato, intrínseco
do ser humano, que em muitas análises de profissionais da psicologia chega a anteceder o que
é histórico e o que social, se naturalizou no âmbito da educação e da psicologia.

Como exemplo dessa naturalização, vale apontar a informação de Miranda (2008)


sobre “o incremento de livros pseudocientíficos de auto-ajuda nas prateleiras de „psicologia‟
38

das livrarias, grande parte deles direcionada a pais e professores” (p. 21).

Assim, diante do desafio de encarar as contradições e tensões envolvidas na temática


deste estudo, busca-se apreender, nos discursos inscritos na área da psicologia, os contornos e
contextos que podem estar presentes na predominância de meninos com queixas escolares
encaminhados para acompanhamento psicológico, podendo ou não estar presentes na
produção do fracasso escolar dessas crianças.

2.1 Análise das produções científicas do campo da psicologia

As produções científicas do campo da psicologia, selecionadas para o estudo do tema


proposto, foram utilizadas com o objetivo de sistematização dos argumentos que subsidiam a
problemática da predominância de queixa escolar em meninos. A expectativa era de que
pudessem fornecer elementos para se compreender como o fracasso escolar de meninos tem
sido discutido nesses estudos e de que os aspectos apresentados pudessem possibilitar a
compreensão dos sentidos norteadores da prática de encaminhar meninos com problemas
escolares para acompanhamento psicológico.

Esse grupo de referência, constituído por essas produções, foi importante, pois fornece
elementos que ajudam a entender como a queixa escolar se apresenta nos estudos e pesquisas
em psicologia em relação à demanda infantil em clínicas-escola de psicologia e serviço de
saúde pública, e também a compreender como essas queixas, muitas vezes,
descontextualizada das condições materiais e objetivas que a produziram, se evidenciam.

Na pesquisa foram selecionadas dezoito produções que tratam da caracterização de


clientela infantil em clínicas-escola de psicologia e serviços de saúde pública. A opção pela
seleção de produções com essa temática se justifica pelo fato de fornecerem informações que
atestam a predominância de meninos encaminhados para acompanhamento psicológico, e
também informações sobre a idade e as queixas que motivaram a procura por atendimento.

Foram priorizados os estudos que investigaram a demanda infantil em clínicas-escola


de psicologia e serviços de saúde pública, pois, ao se realizar a revisão de literatura
evidenciou-se que essas instituições atendem, preferencialmente, a meninos oriundos de
escolas públicas. Outro aspecto importante é que as famílias procuram essas instituições por
se caracterizarem como espaços que atendem segmentos populares da sociedade.

Löhr e Silvares (2006), ao traçarem um perfil das clínicas-escola de psicologia, vistas


39

como centros formadores para a prática clínica do psicólogo, apontam duas concepções que,
historicamente, permearam as funções atribuídas a essa instituição:

As clínicas-escolas, vinculadas às faculdades de psicologia, ofereciam às


comunidades locais serviços psicológicos seguindo o modelo clínico individual,
como na prática médica, o que pode ter contribuído para a cristalização da
representação social do psicólogo como psicoterapeuta, ao mesmo tempo em que
consolidou junto à comunidade à concepção das clínicas-escola de psicologia como
possibilidade de acesso à psicoterapia por parte das camadas pobres da sociedade (p.
12).

Vale ressaltar que outros estudos também abordam essa condição histórica a clínica-
escola de Psicologia atender a população de classes economicamente desfavorecidas
(ROMARO; CAPITÃO, 2003; SILVARES et al., 2006; CAMPEZATTO; NUNES, 2007).

A partir da leitura e análise do material selecionado, procedeu-se a um levantamento


das informações relacionadas à problematização do objeto deste estudo: incidência de
meninos encaminhados, faixa etária, escolaridade, origem do encaminhamento e também os
prováveis fatores discutidos sobre essa predominância de meninos indicados para
acompanhamento psicológico.

Foi a partir dessas informações que se procurou apreender os mecanismos que


autorizam a expressiva quantidade de meninos, com problemas escolares, encaminhados para
acompanhamento psicológico.

Outro aspecto considerado é o fato de que grande parte das pesquisas, no conjunto das
produções selecionadas, apresenta limitações quanto à padronização de registros por parte das
clínicas-escola de psicologia e unidades de saúde pública.

Pode-se dizer que, a falta de padronização das informações por parte dos estudos sobre
caracterização de demanda infantil para acompanhamento psicológico revela o fato de que
uma informação, apontada em uma pesquisa, não é relatada em outra. Exemplo da falta de
uniformidade, nesses estudos é a descrição da relação entre sexo e queixa. Ressalte-se que,
apesar dos dezoito estudos afirmarem a predominância de meninos encaminhados para
acompanhamento psicológico, apenas seis deles descrevem a relação da queixa, que motivou
a procura por atendimento psicológico, com o sexo da criança.

Vale destacar que esses estudos sobre caracterização de demanda infantil não
problematizam o conceito de gênero e suas implicações teóricas e metodológicas ao analisar
as diferenças de desempenho escolar entre meninos e meninas. Os estudos aqui analisados
40

tratam as diferenças entre meninos e meninas a partir da categoria sexo, mas apenas como
variável quantitativa.

Com base nas distintas características das informações descritas nos trabalhos, e para
uma melhor sistematização do relato das fontes, optou-se por dividir as dezoito pesquisas em
dois grupos. Como critério de divisão, utilizou-se a informação da relação entre queixa e sexo.
Esse critério foi adotado porque a problemática do gênero se configura como um dos aspectos
centrais desse estudo.

2.1.1 Grupo 1 – Produções científicas que não relacionam a queixa ao sexo

O primeiro grupo das produções selecionadas para uma primeira aproximação do


objeto de estudo é constituído por doze produções (apêndice 1) que discutem sobre a demanda
infantil para acompanhamento psicológico e analisa o predomínio de meninos encaminhados,
mas não relaciona às queixas ao sexo da criança. Somente dois trabalhos, mesmo não
estabelecendo essa relação, argumentam prováveis aspectos presentes no fenômeno da
predominância de meninos. Os outros dez trabalhos apontam, de modo geral, justificativas
importantes que, embora, não sejam generificadas, oferecem indícios sobre os prováveis
fatores que permeiam as explicações sobre o alto índice da demanda infantil, principalmente a
masculina.

Assim, acerca dessas primeiras doze publicações, é importante ressaltar que, ao


discorrer sobre as queixas motivadoras do encaminhamento para acompanhamento
psicológico, essas mesmas queixas são descritas para meninos e meninas, sendo destacadas as
mais frequentes.

Foi possível verificar que as categorizações das queixas não seguem um padrão, são
baseadas em critérios e fontes diversas, nomeando, muitas vezes, o mesmo comportamento,
mas com palavras diferentes. Alguns trabalhos buscam relacionar o sexo da criança à idade; já
outros não relacionam. Outra informação importante obtida com as análises é que nem todas
as pesquisas apontam quem encaminhou, ou quem solicitou o acompanhamento psicológico
para a criança.

É importante ressaltar que alguns estudos sobre caracterização de clientela infantil


foram descartados por não apresentarem a categorização das queixas de forma mais
sistematizada, conforme os critérios adotados, neste estudo, para o recorte das informações a
41

serem analisadas. Para esse primeiro tópico, foram selecionados onze artigos e um capítulo de
livro sugerido nas referências bibliográficas da dissertação de mestrado de BOAZ (2009).

A pesquisa realizada por Romaro e Capitão (2003) investigou a demanda infantil de


uma clínica-escola de psicologia da Universidade de São Francisco, em São Paulo. Os dados
sociodemográficos foram obtidos nos roteiros de entrevista no momento da triagem e das
análises dos prontuários dos pacientes, no período 1995-2000. De acordo com as informações
obtidas nesses documentos, as autoras observaram a existência de uma média de 4,95 queixas
para cada criança. Os autores relatam o predomínio de crianças do sexo masculino, na faixa
etária dos cinco aos catorze anos, e apontam que,dos cinco aos nove anos, as queixas estariam
relacionadas ao momento de entrada da criança na escola e as exigências da alfabetização; e
que, dos dez aos catorze anos, as queixas indicariam dificuldades no período da pré-
adolescência e início da adolescência.

No estudo de Romaro e Capitão (2003), a categorização das queixas foi baseada em


Barbosa (1992). As três principais queixas relatadas foram assim descritas: dificuldades
escolares (mau comportamento, mau desempenho, resistência em ir à escola);
relacionamento interpessoal (desobediência/teimosia, egoísmo, alto nível de exigência,
falsidade, fechado/tímido/quieto, problema de interação com os colegas, comportamento
solitário, sensível/mimado); comportamento agressivo (agressividade/brigas,
comportamento descuidado, rebeldia, revolta, reclama de tudo, gosto por coisas violentas).

Não foi identificado, no estudo de Romaro e Capitão (2003), descrição das origens dos
encaminhamentos das crianças e dos adolescentes. Na discussão sobre o perfil da demanda
infantil, os autores baseiam-se em outras pesquisas sobre caracterização de clientela em
clínicas-escola.

Scortegagna e Levandowski (2004) analisaram os encaminhamentos de crianças com


queixa escolar realizados pelas escolas municipais de Caxias do Sul (RS), ao Serviço de
Psicologia do Programa Vinculação, projeto da Secretaria Municipal de Educação de Caxias
do Sul. Os dados sociodemográficos foram obtidos nos encaminhamentos de crianças para
acompanhamento psicológico que estavam na fila de espera, nos período 2002-2003.

No referido estudo, os autores relatam e atestam o predomínio de crianças do sexo


masculino encaminhadas para acompanhamento psicológico, na faixa etária dos sete aos treze
(2ª série), e dos onze aos dezesseis anos (5ª série).

Para a análise da categorização das queixas, Scortegagna e Levandowski (2004)


42

basearam-se em Cabral e Sawaya (2001). As principais queixas descritas são: problemas de


aprendizagem (dificuldades de aprendizagem, dificuldades cognitivas, dificuldades na
leitura, dificuldades na escrita, dificuldades na resolução de cálculos, dificuldades na
alfabetização, dificuldade de compreensão, dificuldade na expressão oral e escrita, lentidão
para aprender, falta de atenção e concentração, esquecimento, problemas psicomotores);
problemas de comportamento (indisciplina, agressividade, hiperatividade, agitação, apatia,
cansaço, isolamento/introversão/introspecção, mentira, roubo, choro, dormir durante a aula,
absenteísmo, não realização das atividades propostas, desorganização, destruição do material
escolar, grito em sala de aula, enforcamento de animais); problemas emocionais
(inadaptação, insegurança, nervosismo/ansiedade, tristeza/depressão, autoestima baixa,
imaturidade, dependência, emotividade, labilidade emocional, inibição/vergonha/timidez,
chamar atenção, perfeccionismo, dificuldades afetivas, falta de interesse/desmotivação,
problemas de relacionamento com os professores, problemas de relacionamento com os
colegas).

Em relação às queixas referentes às dificuldades de aprendizagem, Scortegagna e


Levandowski (2004) apontam que as mais recorrentes eram a falta de atenção e concentração,
que podem estar relacionadas à queixa de hiperatividade presentes nos relatos de queixas
relacionadas ao comportamento. Nas queixas relacionadas a problemas de comportamento,
segundo as autoras, sendo agressividade o mais frequente.

O estudo de Scortegagna e Levandowski (2004) também evidencia o mesmo que


Romaro e Capitão (2003): o número de queixas é maior que o número de encaminhamentos,
de forma que cada criança encaminhada para acompanhamento psicológico possui uma
multiplicidade de queixas.

Scortegagna e Levandowski (2004) fundamentam a discussão em estudos realizados


sobre a queixa escolar na área de psicologia escolar e destacam algumas críticas importantes
com base nos estudos dessa área. Dentre elas, a ênfase das explicações psicológicas para os
problemas escolares, tendo em vista que a maioria das crianças encaminhadas encontra-se na
segunda série, no início do seu processo de alfabetização.

Essa informação remete à crença de que quando a criança manifesta problemas de


aprendizagem, o faz mediante problemas relacionados à questão emocional ou
comportamental. Segundo Scortegagna e Levandowski (2004), essa crença permanece
enraizada nas práticas de professores, e demonstra a “quantidade de informações que os
43

professores dispõem de seus alunos, às quais, por vezes, vão além daquelas necessárias para a
realização de um trabalho pedagógico adequado” (p. 145).

Em relação à predominância de encaminhamentos de crianças do sexo masculino para


acompanhamento psicológico, Scortegagna e Levandowski (2004) afirmam que os chamados
problemas de conduta são os responsáveis por essa incidência. Sobre esse fato, argumentam
que existem diferenças entre os sexos no que se refere às manifestações de problemas
emocionais e comportamentais no decorrer do processo de desenvolvimento. Por isso,
segundo Scortegagna e Levandowski (2004), é “imprescindível que se possa ter um
conhecimento prévio dos comportamentos esperados conforme o gênero da criança, para que
se possa compreender e avaliar os desvios de conduta da infância” (p.139).

Apesar de se respaldarem em estudos que criticam a psicologização da queixa escolar,


Scortegagna e Levandowski (2004) incorrem sobre o mesmo erro ao defenderem que é
preciso se ter um conhecimento prévio dos comportamentos esperados de acordo com o
gênero da criança e que, a partir desses conhecimentos, é possível compreender e avaliar os
desvios de conduta na infância. Essa concepção induz o leitor a pensar que existem padrões
fixos de masculinidade e feminilidade, conforme o gênero, e que a psicologia pode contribuir,
por meio de suas teorias, para delimitar o que é normal ou não no processo de
desenvolvimento de meninos e meninas.

O estudo de Vanni e Maggi (2005) buscou investigar a demanda atendida pela


psicologia em quatro unidades de saúde pública em Caxias do Sul22. Os dados
sociodemográficos foram obtidos nos arquivos de atendimento clínico psicológico, no período
2002-2004.

Os autores apontam a predominância de meninos na faixa etária dos seis aos onze
anos, incluindo meninos e meninas, pois não relacionam sexo à idade da criança. A maioria
dos encaminhamentos para acompanhamento psicológico provém das escolas públicas.

Vanni e Maggi (2005) basearam a categorização das queixas em Santos (1990). As


mais frequentes são: agressividade (entre as várias queixas associadas à agressividade foram
registradas nos prontuários muitas outras: hiperatividade, egoísta, irônico, impulsivo, rebelde,
ameaça, atitudes negativas, comportamento que não contribui para o andamento escolar, falta
de limites, não aceita limites, nervoso, indisciplinado, disperso, morde objetos, inconsequente,
agitado, não para sentado, destrói objetos e materiais, ciúme dos colegas, atuação, uso de

22
As autoras não identificam as unidades de saúde.
44

armas, fala em matar ou morrer, dificuldade em tolerar frustrações, instabilidade); depressão


(refere-se às dificuldades associadas, geralmente, à passividade, isolacionismo, não pede
ajuda, não deixa ser ajudado, não questiona, ansiedade, angústia, timidez, envergonhado,
quieto, mania de doença, fechado, dificuldade de entrosamento, retraído, não consegue
trabalhar em grupos, traumas com incêndio, pavor, medo, baixa autoestima, desligado,
realidade sem lógica, não convive com a realidade, triste, choroso, tem pesadelos, expressão
verbal dissociada, dificuldade em expressar sequência de ideias, pensamento confuso e
desorganizado, bloqueios, imaturidade, não conversa, dependência, insegurança, tentativa de
suicídio, ausência de prazer, sentimento obsessivo, delírios e alucinações); dificuldades
escolares (diz respeito a queixas escolares como: não reconhecer letras do alfabeto,
dificuldades na escrita/leitura, não faz trabalhos e atividades na escola, não estuda, dificuldade
em acompanhar conteúdos, resolver exercícios, interpretação, dificuldade de aprendizagem,
dificuldade em conservar e identificar objetos e nomes, acentuada defasagem no processo
educativo, dificuldade na fala e linguagem, repetência, dificuldade na coordenação ampla,
memorização, organização e raciocínio, falta muito às aulas, raciocínio lento,
desenvolvimento cognitivo lento, dificuldade para entender o que é solicitado).

A pesquisa realizada por Vanni e Maggi (2005) também demonstra a expressiva


quantidade de queixas que cada criança apresenta. Sobre esse fato, os autores chamam a
atenção para o uso indiscriminado dos testes psicológicos em comparação com outros
procedimentos importantes e relevantes para o acompanhamento psicológico.

A discussão apresentada por Vanni e Maggi (2005) fundamenta-se em outras


pesquisas sobre caracterização de clientela que procura atendimento psicológico. Apesar de
não relacionarem a queixa ao sexo, as autoras atribuem a predominância de meninos
encaminhados ao acompanhamento psicológico às queixas relacionadas à agressividade e à
ausência de limites. Acerca desse fato, construíram o seguinte argumento:

[...] frequência do sexo masculino é bastante alta em relação ao feminino, mais da


metade da população em todos os locais do SUS. É nesta idade que os meninos
começam a testar sua liderança no grupo, aprendendo papéis sociais. Além disso,
sabe-se que é na escola que as dificuldades aparecem, próprias da fase de
desenvolvimento de experimentar e testar comportamentos e limites (VANNI;
MAGGI, 2005, p. 302).

Prosseguindo com a análise desse primeiro grupo de produções selecionadas para


problematização das questões que envolvem a queixa escolar em meninos com o consequente
encaminhamento para acompanhamento psicológico, apresenta-se, então, o estudo realizado
45

por Melo e Perfeito (2006), cujo objetivo foi caracterizar a clientela infantil do Centro de
Psicologia Aplicada, da Faculdade de Psicologia, da Universidade Federal de Uberlândia
(UFU), Minas Gerais.

Os dados sociodemográficos, apresentados por Melo e Perfeito (2006), foram


extraídos dos prontuários da população infantil, no período 2000-2002. O estudo aponta o
predomínio de meninos encaminhados para acompanhamento psicológico na faixa etária dos
quatro aos dez anos. Nessa faixa etária estão incluídos meninos e meninas, pois as autoras não
relacionam sexo à idade das crianças. Conforme relatado pelas autoras, a procura por
acompanhamento psicológico para a criança foi feita pelos pais, depois pelo encaminhamento
dos médicos.

A categorização das queixas, realizada no estudo de Melo e Perfeito (2006) teve como
referência os fatores que incomodava os pais, ou o motivo que conduziu a criança para
atendimento psicológico. Com base nesse critério de categorização, as queixas mais
frequentes estão relacionadas a: comportamento (agitação, agressividade, arrancar cabelos,
assanhamento, birra, brigar em casa, comer demais, comportamentos regredidos, tais como,
chupar o dedo, chupeta e mamadeira, desobediência, falta de iniciativa, fugir de casa, fumar,
gagueira, hiperatividade, inquietude, irresponsabilidade, mentiras, morder, mudança de
comportamento, pirraça, problema de fala rebeldia, revolta, roer unhas, roubo, silêncio
prolongado, teimosia, uso de drogas ou suspeita); sintomas emocionais (angústia, ansiedade,
baixa autoestima, ciúme, dependência, depressão, dificuldade de ficar só, fobia,
impulsividade, inibição, insegurança, intolerância, introspecção, irritação, mau humor, medo,
nervosismo, pânico, sentimento de vazio, solidão, tristeza). As queixas escolares como
agressividade na escola, dificuldade escolar, expulso da escola, falta de interesse, matar aula,
queda do rendimento escolar, aparecem em terceiro lugar.

As discussões apresentadas por Melo e Perfeito (2006) baseiam-se nos estudos sobre
caracterização de clientela infantil. Já a explicação sobre a crescente procura por
acompanhamento psicológico infantil centra-se nas mudanças no âmbito familiar e nas novas
configurações em torno do papel de pai e do papel da mulher – no papel da família na
construção das dificuldades ou da saúde emocional da criança.

Segundo Melo e Perfeito (2006), observa-se, na contemporaneidade, um esvaziamento


das funções dos pais e uma delegação, cada vez mais precoce, das funções parentais para
instituições educacionais. Para as autoras, na atual configuração familiar, pode-se observar
46

um sentimento de impotência e incapacidade de pensar seus próprios filhos.

Observa-se que, se a educação e o cuidado dos filhos ficam a cargo de instituições


educacionais, a observação e a resolução de dificuldades e problemas com os filhos
também têm sido delegadas. Assim que identificam um problema com a criança,
seja ele comportamental, afetivo, somático sem causa orgânica, de desempenho
escolar ou de relacionamento, os pais, esvaziados de suas funções, deslocam-nas
para profissionais especializados, fazendo deles os depositários daquilo que, a
priori, lhes caberia pensar e resolver na relação com o filho (PERFEITO; MELO,
2006, p. 247).

O estudo de Rocha e Ferreira (2006) buscou investigar a demanda infantil de um


serviço de psicologia pediátrica em um hospital universitário. Os dados sociodemográficos
foram extraídos dos prontuários dos pacientes, no período 2002-2003.

As autoras apontam o predomínio de crianças do sexo masculino na faixa etária de um


a doze anos, com maior demanda entre os três e dez anos. Essas crianças são estudantes da
educação infantil e ensino fundamental. Os encaminhamentos são provenientes de outros
serviços dentro do hospital, das unidades de saúde, procura voluntária, e também de outras
instituições da comunidade.

Rocha e Ferreira (2006) classificaram as queixas utilizando termos que foram


relatados pelos cuidadores e estagiários ao descreverem o motivo do encaminhamento para
acompanhamento psicológico. As queixas mais frequentes são: dificuldades em habilidades
sociais (comportamentos opositores, impulsividade, rebeldia, desobediência, agressividade,
mentiras, não seguimento de regras, baixa tolerância à frustração, irritação, comportamentos
de birra, possessividade, brigas com pares/irmãos, roubo, fuga de casa, teimosia, ameaças e
comportamentos autolesivos, competitividade, timidez, medo e/ou fobias, ansiedade, tiques,
manias, cacoetes, isolamento, pouca interação social, passividade, nervosismo, sintomas
depressivos e comportamentos infantilizados); dificuldades escolares (problemas de
aprendizagem, desinteresse pelo estudo, baixo rendimento escolar, dificuldade de
atenção/concentração, agitação e hiperatividade em contexto escolar).

A discussão apresentada por Rocha e Ferreira (2006) fundamenta-se em estudos sobre


caracterização de clientela infantil. Apesar de não relacionarem sexo à queixa, as autoras
ressaltam a importância de se considerar a relação entre gênero e a faixa etária na
predominância de meninos encaminhados para acompanhamento psicológico, principalmente
no início da escolarização, período no qual a criança está se adaptando ao contexto escolar.

Além desse fator relacionado aos encaminhamentos de meninos para


47

acompanhamento psicológico, acerca da questão da incidência, Rocha e Ferreira (2006)


ressaltam:
Outra questão a ser considerada acerca do alto índice de meninos atendidos pode
estar relacionada a questões culturais, pois se observou uma maior permissividade
dos pais em relação a filhos do sexo masculino, conforme análise dos registros
obtidos nos protocolos de resumo dos atendimentos, favorecendo uma maior
frequência de comportamentos opositores e os relacionados à agressividade entre os
meninos (p. 43).

O estudo de Silvares et al. (2006) buscou investigar a demanda infantil em cinco


clínicas-escola de psicologia: Clínica Psicológica Durval Marcondes do IPUSP, Ambulatório
de Psicologia Infantil do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto,
Serviço de Psicologia Aplicada da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
Unidade de Saúde Mental Água Viva, ligado a Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia e
Clínica de Psicologia da Universidade Tuiuti do Paraná.

Baseando-se em estudos pioneiros e atuais sobre caracterização da demanda infantil


para acompanhamento psicológico, as autoras apontam que são observadas regularidades no
mesmo perfil de clientela infantil que coincide com a literatura internacional. Essas
regularidades são relatadas da seguinte forma:

1. Prevalência dos meninos sobre as meninas; 2. Idade escolar (6-10 anos) como a
mais frequente entre os clientes infantis; 3. Maior incidência de primogênito entre os
clientes e aqueles que são inscritos; 4. Alta incidência de distúrbios de aprendizagem
e do tipo internalizante, o que leva ao fracasso escolar; 5. Escola como uma das
principais fontes de encaminhamento das crianças (SILVARES et al., 2006, p. 60).

Assim, segunda as autoras, o perfil de clientela infantil não sofreu alterações


significativas no decorrer do tempo, incluindo o perfil socioeconômico: “a população que
busca os serviços tem baixo poder aquisitivo” (SILVARES, 2006, p. 60).

O instrumento utilizado para a caracterização da clientela nas instituições descritas


acima, foi a Lista de Verificação Comportamental para Crianças (CBCL)23, respondido por
um total de 100 (cem) pais ou responsáveis pelas crianças com na faixa etária dos 5 aos 10
anos no mesmo dia em que foram realizar a triagem para acompanhamento psicológico nessas
instituições.24

23
De acordo com Achenbach (1991 apud SILVARES et al., 2006, p. 60), “o CBCL tem como objetivo medir o
grau de competência social e os problemas comportamentais de uma criança ou adolescente de acordo com a
percepção de seus pais ou cuidadores”. Trata-se de um questionário que lista vários comportamentos e atribui,
para cada um deles, uma gradação de frequência que vai de “não ocorre” até “muito frequente”.
24
Não consta o ano em que foi realizado.
48

A pesquisa demonstrou a predominância de meninos com idade de oito e nove anos


incluindo meninos e meninas, pois as autoras não relacionam sexo à idade. A incidência de
queixas está relacionada ao desempenho escolar e a discussão dos resultados fundamentou-se
em estudos sobre caracterização de clientela em clínicas-escola de psicologia.
Silvares et al. (2006) argumentam que as crianças com problemas escolares,
encaminhadas para clínicas-escola, possuem mais problemas emocionais que as crianças
encaminhas por outros problemas. Para as autoras, “[...] é preciso que o atendimento
psicológico nessas instituições atenda essa forte demanda de sua população, focando mais na
questão do fracasso escolar sem perder de vista, entretanto, os aspectos sociais e emocionais
do problema” (SILVARES et al., 2006, p. 70).
O trabalho realizado por Campezatto e Nunes (2007) buscou conhecer a população
atendida em oito clínicas-escola de psicologia na região metropolitana de Porto Alegre.25 Os
dados sociodemográficos foram coletados por meio de um questionário respondido, em 2004,
pelos coordenadores das clínicas-escolas com questões sobre as características da população
atendida.

O estudo aponta o predomínio de crianças do sexo masculino encaminhadas para


acompanhamento psicológico na faixa etária dos seis aos dez anos. As autoras ressaltam que a
maioria dos encaminhamentos da população infantil é realizada pela escola.

A classificação das queixas realizada por Campezatto e Nunes (2007) teve como
critério o motivo da busca por atendimento psicológico. As queixas mais frequentes são:
dificuldade no comportamento afetivo (agressividade, ansiedade, isolamento social,
depressão, choro frequente, dependência e imaturidade, temores); dificuldades em processos
cognitivos (dificuldades de aprendizagem e dificuldade de comportamento relacionada ao
contexto escolar).

As discussões do estudo de Campezatto e Nunes (2007) fundamentaram-se, também,


nas pesquisas sobre caracterização de clientela infantil em clínicas-escola de psicologia.
Apesar de não relacionarem a queixa ao sexo, as autoras tecem algumas considerações sobre a
incidência de meninos. Destacam, também, que as crianças do sexo masculino são
encaminhadas para acompanhamento psicológico devido a dificuldades de aprendizagem e
comportamento.

As autoras relacionam essas dificuldades à faixa etária dos meninos, que corresponde

25
Não há identificação das instituições.
49

ao período de escolarização que tende a trazer maiores conflitos a essas crianças, e


argumentam que a entrada na escola pode produzir angústias e problemas de ajustamento
desses meninos, pois, “é sabido, ainda, que meninos tendem a ser menos contidos do que as
meninas ao expressar suas dificuldades por meio de comportamentos devido a motivos
culturais e sociais” (CAMPEZATTO; NUNES, 2007, p. 386).

O modo como as autoras relatam as dificuldades escolares que as crianças atravessam,


evidencia indícios de uma naturalização desses problemas, pois reduz as chamadas
dificuldades de aprendizagem a uma combinação de fatores externos e internos. Segundo
Campezatto e Nunes (2007),

é comum que as crianças enfrentem problemas diversos nos primeiros anos


escolares, por fatores de ordem interna e externa, capazes de interferirem na
aprendizagem e se constituírem em obstáculos à integração de funções como pensar,
sentir, falar e agir. Essas dificuldades tendem a aparecer como queixa de
dificuldades de aprendizagem [...] (p. 380).

O estudo de Nakamura et al. (2008)buscou investigar a demanda infantil do Serviço de


Psicologia Aplicada do curso de Psicologia, da Universidade Federal de Rondônia (UNIR).
Os dados para caracterização da clientela foram obtidos nas fichas de triagem e de prontuários
relacionados ao período 1996-2006.

O estudo evidenciou uma predominância de crianças do sexo masculino na faixa etária


dos cinco aos catorze anos. A maior demanda é de crianças na faixa dos cinco aos nove anos,
estudantes de escolas públicas dos anos iniciais do ensino fundamental, com renda familiar de
um a dois salários mínimos. Essa faixa etária é para meninos e meninas, pois a pesquisa não
relaciona sexo e idade.

A categorização das queixas foi baseada em Souza (1997). As mais frequentes foram
relacionadas a: problemas de aprendizagem (problema na leitura e escrita, quantificação,
problemas de aprendizagem vagamente descritos em que não são oferecidas informações
suficientes para a análise, problemas referentes ao ritmo de aprendizagem – por não
acompanhar os conteúdos ou os colegas, história de repetência e problemas com a lição de
casa); problemas de atitude (desobediência das regras da sala de aula, agressividade,
timidez, comportamento infantil ou imaturo, desatenção e desinteresse pelas tarefas,
nervosismo e irritação por medo de errar ou por difícil socialização; problemas de
relacionamento da criança em relação ao professor ou do professor em relação à criança;
50

outros problemas relacionados à aprendizagem, em que os pais não acreditam que haja algum
problema de aprendizagem com seu filho e solicitação específica para avaliação psicológica).

As discussões apresentadas por Nakamura et al. (2008) sobre a análise dos


prontuários,foram fundamentadas nos estudos da área de psicologia escolar que procuram
analisar, criticamente, o processo de produção da queixa escolar. Com a análise, as autoras
apontam duas questões importantes e recorrentes nos estudos acerca do fracasso escolar: a
primeira é que a culpa pelo insucesso escolar recai, em diferentes momentos, na própria
criança, na sua família ou no professor; a segunda é a ideia de “famílias desestruturadas”,
produzindo crianças desajustadas, o que pode acarretar “problemas de aprendizagem”.

O estudo de Moura et al. (2008) apresenta a caracterização da demanda infantil da


clínica-escola de psicologia de uma universidade pública do norte do Paraná, mais
especificamente do Programa de Orientação aos Pais, realizado pela clínica-escola. O
instrumento utilizado para realizar o levantamento da clientela infantil nas instituições foi
uma ficha de identificação da criança e o CBCL. Esse instrumento foi utilizado com um total
de 103 mães, cujos filhos estavam na faixa etária dos dois aos seis anos, considerando o
período 2004-2006.

As autoras também apontam a predominância de crianças do sexo masculino,


encaminhadas para acompanhamento psicológico na faixa etária de quatro a cinco que inclui
meninos e meninas, pois as autoras não relacionam o sexo à idade.

A classificação das queixas foi realizada com base nas categorias propostas pelo
CBCL. As mais frequentes foram sobre comportamentos externalizantes (agressividade,
hiperatividade, desobediência, baixo controle do impulso).

A discussão dos resultados apresentados por Moura et al. (2008) fundamenta-se na


literatura sobre caracterização da população infantil atendidas por clínicas-escola de
psicologia. Apesar de não relacionar diretamente queixa ao sexo, as autoras apontam que a
incidência de crianças do sexo masculino refere-se a “problemas prioritariamente
externalizantes, tais como, agressividade, hiperatividade, desobediência e baixo controle de
impulsos” (MOURA et al., 2008, p. 6).

O estudo de Cunha e Benetti (2009) buscou investigar a demanda infantil de uma


clínica-escola da região metropolitana de Porto Alegre. Os dados sociodemográficos foram
obtidos nos prontuários de pacientes, no período de 1999-2006.
51

A caracterização da clientela infantil desta instituição, feita por Cunha e Benetti


(2009), também evidenciou que são os meninos os mais encaminhados para acompanhamento
psicológico na faixa etária dos dois aos doze anos, com maior demanda na faixa etária dos
seis aos nove anos. As autoras apontam que a escola é a instituição que mais encaminha as
crianças na faixa etária dos seis aos nove anos.

Para a classificação das queixas, Cunha e Benetti (2009) realizaram uma adaptação do
roteiro de Campezatto (2006). As queixas mais frequentes são: problemas afetivos e de
comportamento (transtorno de conduta e emocionais e também as dificuldades de
relacionamento interpessoal); problemas relacionados à escola (problemas de aprendizagem,
dificuldades cognitivas e sofrimentos no ambiente escolar).

As discussões de Cunha e Benetti (2009) são fundamentadas nas pesquisas sobre


caracterização de clientela infantil em clínicas-escola. As autoras tecem alguns fatores
importantes sobre a predominância de encaminhamentos de crianças para acompanhamento
psicológico na faixa etária dos seis aos nove anos. Tais fatores são: dificuldades que os alunos
encontram para se adaptarem ao contexto escolar no início de sua escolarização; preocupação
que os professores e diretores têm em relação aos problemas emocionais das crianças
associados a famílias desestruturadas; ênfase nas questões sociais, culturais e econômicas
vinculadas à capacidade provedora de cuidado pelas famílias, escolas e comunidades
(CUNHA; BENETTI, 2009).

Delvan et al. (2010) realizou um estudo que teve por objetivos caracterizar o perfil da
população infantil que procurou atendimento no CAPSI e em uma Clínica-escola de
Psicologia da cidade de Itajaí, Santa Catarina. Os dados para caracterização de clientela
infantil foram obtidos nos prontuários dos pacientes atendidos no período 2002-2007.

Os resultados do estudo demonstram o predomínio de crianças do sexo masculino


encaminhados para acompanhamento psicológico, na faixa etária dos três aos dez anos, com
maior demanda entre sete a dez anos, cursando a primeira e segunda série. A pesquisa não
relaciona idade ao sexo, portanto, essa faixa etária é para meninos e meninas. As fontes de
encaminhamentos, neste estudo, foram de busca espontânea seguida de encaminhamentos
realizados pela escola.

A categorização das queixas foi baseada nas classificações diagnósticas do Manual


Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV-TR). Os transtornos mais
especificados foram o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade e comportamentos
52

disruptivos (transtorno de conduta, transtorno desafiador de oposição, transtorno de


comportamento disruptivo sem outra especificação). Os transtornos de aprendizagem foram
identificados como a terceira queixa mais frequente.

No estudo de Delvan et al. (2010), a discussão foi baseada em estudos epidemiológico


na área de saúde mental infantil, e, com relação à incidência de crianças e adolescentes em
serviços de saúde mental, argumenta:

Essa pesquisa vem fortalecer a necessidade de uma maior preocupação no


planejamento de políticas públicas para os problemas de saúde mental infanto-
juvenil, é de extrema urgência devido à crescente demanda da população em questão
para os serviços de saúde mental. Há também a necessidade de ações que busquem a
prevenção e a promoção da saúde mental e uma atenção maior para os transtornos
mentais já presentes nesta população para que possam ser tratados adequadamente
(DELVAN et al, 2010, p. 236).

Dentro desse primeiro grupo de produções está, também, o estudo de Rodrigues et al.
(2012),cujo objetivo foi caracterizar a demanda infantil encaminhada com queixa escolar para
o Centro de Psicologia Aplicada, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Para a
caracterização da clientela infantil, os autores analisaram os prontuários relacionados ao
período 1996-2009.

O estudo demonstra a predominância de crianças do sexo masculino na faixa etária


dos dois aos treze anos, sendo a maior demanda constituída por crianças na faixa dos sete aos
treze anos, estudantes das séries iniciais do ensino fundamental. As escolas foram
identificadas como as instituições que mais encaminham as crianças para acompanhamento
psicológico.

As autoras não apontam a fonte na qual se basearam para a classificação das queixas
escolares. Entretanto, ressaltam que as queixas mais frequentes foram categorizadas da
seguinte forma: ocorrência de problemas comportamentais e problemas de aprendizagem
(queixas de agressividade e dificuldades de aprendizagem isoladas; agitação e baixa
motivação para os estudos; ansiedade e/ou agitação associadas a dificuldades de
aprendizagem; indisciplina e dificuldade de aprendizagem; rebeldia; furtos; timidez e
dificuldades de aprendizagem; apatia); dificuldades de aprendizagem (dificuldades de
aprendizagem inespecíficas; lentidão; baixa motivação para os estudos; dificuldades de
socialização; problemas familiares; problema neurológico; gagueira), problemas
comportamentais (agressividade; agitação; disritmia; indisciplina; rebeldia; brigas; baixa
53

concentração/dispersão; ansiedade; apatia); problemas comportamentais (relacionados à


agressividade, à indisciplina e agitação, baixa concentração, dispersão, ansiedade e apatia).

A discussão apresentada no estudo de Rodrigues et al. (2012) foi fundamentada em


outros estudos sobre caracterização de clientela infantil da área da psicologia escolar e, de
modo análogo, aos outros autores analisados anteriormente, argumentam que,na faixa etária
em que crianças ingressam na escola, podem ocorrer problemas emocionais ou
comportamentais,que comprometem a adaptação delas frente às exigências impostas pelo
contexto escolar (RODRIGUES et al., 2012).

Pode-se observar, nesses primeiros estudos relatados no Grupo 1, uma tendência a


relacionar a idade em que a criança ingressa na escola e os possíveis problemas de adaptação
que podem surgir. Pela análise realizada pelos autores em alguns dos estudos, foi evidenciado
que os meninos apresentam maiores problemas para se adaptarem às exigências escolares.
Portanto, teriam maiores dificuldades em sua escolarização.

Contudo, essa relação não é problematizada dentro de um contexto histórico-cultural,


do qual se pode realizar uma análise crítica dos argumentos tecidos pelos autores. As
discussões apresentadas nesses estudos não mencionam as relações de poder que permeiam a
sociedade e que afeta profundamente as relações que se estabelecem no contexto escolar. Elas
também não apontam o quanto essas relações sociais de poder podem ser responsáveis pela
constituição dos modos de ser, de pensar e de agir desse menino.

Pela análise das produções é possível afirmar que, na maioria dos estudos, a escola não
é problematizada ou citada como um dos contextos do desenvolvimento humano influenciado
diretamente por ela. Influência permeada por conflitos, contradições e impossibilidades.

Assim, com base nesses estudos da psicologia, pode-se dizer que se tornou natural a
criança do sexo masculino vivenciar problemas escolares. Mas não em relação a todos os
meninos, pois os estudos evidenciam que se trata de meninos na faixa etária dos 6 aos 12 anos
e que estudam em escolas públicas. Alguns desses estudos chegam a relatar que as famílias
possuem nível socioeconômico desfavorável.

2.1.2 Grupo 2 – Produções científicas que relacionam a queixa ao sexo

O segundo grupo de produções científicas selecionadas constitui-se de seis estudos


(apêndice 2) que analisaram as demandas infantis em clínicas-escola de psicologia e serviços
54

de saúde pública. A diferença entre essas produções do Grupo 2 das outras produções
anteriormente apresentadas (Grupo 1) é que essas do segundo grupo relacionam diretamente
queixa ao sexo e apresentamos prováveis motivos da predominância de meninos com
problemas escolares encaminhados para acompanhamento psicológico. Para esse segundo
grupo de produções a serem analisadas, foram selecionados três artigos e três dissertações.

A primeira dissertação encontrada foi a de Boaz (2009), sendo utilizado o descritor


“predomínio de meninos com queixas escolares encaminhados para acompanhamento
psicológico”. Com a leitura das referências desse trabalho, foi possível selecionar as outras
duas dissertações.

O estudo de Gatti e Beres (2004) realizou o levantamento de queixas com o objetivo


de caracterizar a clientela atendida em uma clínica-escola de psicologia, vinculada a uma
universidade da cidade de São Paulo. Os dados sobre a clientela foram obtidos por meio das
fichas de inscrição e dos prontuários dos atendimentos realizados em 2003. Participaram da
pesquisa apenas os usuários da fila de espera para se submeterem ao procedimento de
psicodiagnóstico.

Os resultados da pesquisa apontam a predominância de meninos encaminhados para o


procedimento de psicodiagnóstico. Os autores não informam a origem dos encaminhamentos,
e nem relacionam a idade ao sexo, mas relatam que as crianças atendidas estão na faixa etária
dos quatro aos treze anos, cuja maioria está na faixa dos seis e treze anos.

As queixas mais frequentes relacionadas aos meninos dizem respeito a problemas de


aprendizagem e agressividade. A discussão dos resultados do estudo baseia-se nas pesquisas
sobre caracterização de clientela infantil. As autoras alegam que as dificuldades apresentadas
pelas crianças têm estreita relação com questões de caráter emocional, derivadas de problemas
no âmbito familiar.

Santos e Alonso (2004) investigaram as características da demanda infantil atendida


no ambulatório de saúde mental do Hospital Cristiano Machado, da cidade de Sabará, Minas
Gerais. Os dados da caracterização de clientela infantil foram obtidos nos formulários de
registro de demanda para atendimento psicológico, preenchidos durante a entrevista de
triagem. Os resultados desse levantamento evidenciaram que a incidência de meninos
encaminhados para acompanhamento psicológico encontra-se na faixa etária dos dois aos
doze anos, com demanda acentuada entre sete e nove anos, estudantes das séries iniciais do
55

ensino fundamental, principalmente do primeiro ano. Conforme ressaltado pelos autores, a


procura por atendimento psicológico provém das famílias e da escola.

Santos e Alonso (2004), que se basearam em Santos (1993) para classificarem as


queixas, apontaram que as mais frequentes em meninos são: comportamento afetivo-social
(agressividade, brigas, nervosismo, ansiedade, problemas de conduta, desinteresse pela escola,
choro frequente); problemas funcionais (agitação motora, enurese, encoprese, distúrbios do
sono, distúrbios da fala); problemas cognitivos (dificuldade de aprendizagem, baixo
rendimento escolar, dificuldade de atenção).

No estudo de Santos e Alonso (2004), a discussão é fundamentada em pesquisas sobre


a caracterização das demandas infantis para acompanhamento psicológico das quais os
autores ainda tecem argumentos importantes sobre a incidência de crianças encaminhadas
para acompanhamento psicológico.

Um dos argumentos apresentados pelos autores diz respeito à relação entre nível
socioeconômico e cultural das famílias e os problemas que a criança apresenta, tendo em vista
que as pessoas que utilizam o serviço público de saúde possuem baixo nível socioeconômico
e cultural. Para santos e Alonso (2004), esse é “um fator que se relaciona com a
disponibilidade de recursos de apoio ao desenvolvimento dos filhos, tais como, a oferta de
materiais educacionais, revistas, jornais, brinquedos e passeios familiares” (p. 37).

Nessa mesma linha de raciocínio, os autores, também argumentam sobre as famílias


das crianças, e buscam relacionar os níveis profissionais e a escolaridade com a procura por
atendimento psicológico da seguinte forma:

[...] pais com melhores níveis de escolaridade teriam melhor compressão dos
problemas dos filhos e pais com menor nível de conhecimento teriam mais
expectativas irreais em relação aos filhos, e consequentemente, seriam pais que
inscreveriam seus filhos em clínicas de psicologia, em decorrência errônea de uma
interpretação errônea sobre o comportamento deles (SANTOS; ALONSO, 2004, p.
37).

Outro argumento apresentado por esses autores na discussão dos resultados da


pesquisa refere-se à relação entre problemas de aprendizagem e dificuldades emocionais.
Segundo Santos e Alonso (2004),

Os problemas infantis, traduzidos nas queixas, aparecem no curso evolutivo de


maneira dinâmica, conjugando múltiplos fatores. Problemas funcionais podem
decorrer de experiências estressantes na escola, gerando ansiedade ou respostas
pouco adaptativas e dificuldades de aprendizagem podem resultar de pressões
emocionais no ambiente familiar (p. 39).
56

Já o estudo realizado por Santos (2006) apresenta o levantamento das características e


queixas comportamentais e emocionais mais frequentes da clientela infantil atendida pelo
Núcleo de Saúde Mental, ligado ao Centro de Saúde Escola, da Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto. Os dados para caracterização da clientela infantil foram obtidos junto aos
prontuários dos pacientes atendidos em 2003. Santos (2006) aponta a predominância de
meninos na faixa etária de seis a onze anos, estudantes das séries iniciais do ensino
fundamental; e destaca que as queixas de maior incidência nos meninos foram:
agressividade, dificuldades de aprendizagem, desinteresse pela escola, baixa tolerância à
frustração/dificuldade de controle de impulso, agitação, nervosismo/irritabilidade. A
pesquisa não informa a fonte na qual foi fundamentada a classificação das queixas.

Na pesquisa dessa autora, a discussão é fundamentada nos estudos sobre


caracterização de clientela infantil e dados estatísticos da Organização Mundial de Saúde
(OMS) sobre saúde mental em crianças e adolescentes. Ao argumentar sobre as queixas
relacionadas aos meninos que motivam para acompanhamento psicológico, Santos (2006)
alega que esses “tendem a apresentar com maior frequência problemas de externalização, que
geram conflitos com o ambiente e, geralmente, são marcados por características de desafio,
impulsividade e desatenção” (p. 320).

As três produções científicas, relatadas a seguir, referem-se às dissertações de


mestrado de Savalhia (2007), Merg (2008) e a de Boaz (2009), vinculadas ao Programa de
Pós-Graduação em Psicologia, da Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Esses estudos
apresentam uma ampla revisão de literatura sobre a caracterização das demandas infantis para
acompanhamento psicológico e também informações sobre as queixas relacionadas aos
meninos. Além disso, evidenciam que, desde a década de 1980, os encaminhamentos para
acompanhamento psicológico é um mecanismo de resolutividade das queixas apresentadas no
contexto escolar que aparecem nas pesquisas sobre caracterização de demanda infantil para
acompanhamento psicológico.

A dissertação de Savalhia (2007) apresenta dois procedimentos de pesquisa: o


primeiro refere-se a uma revisão de literatura sobre os motivos de consulta de crianças em
clínicas-escola de psicologia no período 1998-2006 que demonstra a recorrência da alta
incidência de meninos com problemas de aprendizagem; o segundo procedimento refere-se a
uma pesquisa cujo objetivo foi investigar os motivos de consulta por parte de crianças
atendidas nas clínicas-escola de psicologia do Estado do Rio Grande do Sul. Os dados foram
57

coletados por meio de um questionário de caracterização de clientela enviado às instituições


com questões relacionadas à demanda infantil no ano de 2005.

Os resultados da pesquisa demonstraram a predominância de meninos encaminhados


para acompanhamento psicológico na faixa etária dos sete aos doze anos, com maior demanda
entre dez e doze anos. As escolas aparecem como a maior fonte de encaminhamento.

A autora relata que as queixas mais frequentes nos meninos foram: dificuldades em
processos cognitivos (de aprendizagem, de atenção, de compreensão ou de memória) e
dificuldades no comportamento afetivo (agressividade, ansiedade, isolamento social,
depressão, choro frequente, dependência, imaturidade, temores). A pesquisa não informa a
fonte na qual foi baseada a classificação das queixas.

Ressalte-se que a discussão é fundamentada em pesquisas sobre caracterização de


clientela infantil e estudos epidemiológicos sobre saúde mental infantil. Em seus argumentos
sobre a predominância de meninos encaminhados para acompanhamento psicológico com
problemas escolares, a autora centra-se nas justificativas de que os comportamentos desses
meninos produzem maiores impactos na escola em virtude de questões culturais e de
adaptação ao ambiente escolar, além de questões de origem emocional que são encobertas
pelas queixas escolares.
De acordo com a autora,

as questões culturais e de adaptação ao contexto escolar, podem ser levadas em


consideração com relação ao índice de meninos, podendo estar vinculadas ao
período de início da escolarização, em que a criança precisa ampliar seu ambiente
social e de interação com os outros (SAVALHIA, 2007, p. 50).

Em relação ao estudo de Merg (2008), a revisão de literatura apresenta as


características da clientela infantil em clínicas-escola de psicologia nos últimos trinta anos,
principalmente as queixas que motivam o encaminhamento para acompanhamento
psicológico.

A análise de Merg (2008) sobre a demanda infantil evidencia que o perfil da clientela
atendida pelas clínicas-escolas, nos últimos trinta anos, permanece como o de meninos na
faixa etária dos seis aos dez anos encaminhados pela escola com queixas de agressividade e
problemas de aprendizagem.
58

Com base nessa constatação, a autora argumenta:

[...] os meninos apresentam mais comportamentos externalizantes e as meninas mais


comportamentos internalizantes. Isso pode nos levar a pensar que a queixa do tipo
externalizante tende a ser mais “intolerante” tanto para a família como para a escola,
que é a que mais detecta o problema e encaminha para atendimento profilático. Os
problemas de comportamento externalizante, que se caracterizam por impulsividade,
agressividade, agitação, atitudes desafiadoras e anti-sociais, são muito preocupantes,
pois podem acarretar ou agravar problemas sociais. Muitas crianças usam desta
queixa para serem ouvidas, sendo que muitas vezes podem estar escondendo uma
depressão e o comportamento „anti-social‟ é a forma encontrada para ser escutada. A
falta de um diagnóstico correto também dificulta o tratamento e perpetua o
sofrimento da criança e de todos envolvidos (MERG, 2008, p. 34).

A pesquisa empírica realizada por Merg (2008) investigou a clientela infantil em duas
clínicas-escola de psicologia: o Centro de Estudos Atendimento e Pesquisa da Infância e
Adolescência (CEPIA) e o Instituto de Psicanálise e Contemporaneidade (Contemporâneo)
ambas localizadas em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Essas instituições oferecem curso de
formação em nível de pós-graduação em psicoterapia psicanalítica e contam com um
ambulatório que atende à população.

Os dados da caracterização da clientela infantil foram obtidos dos prontuários da


população de zero a doze anos atendida no período 1979-2007. A pesquisa demonstrou a
incidência de meninos na faixa etária dos sete aos nove anos das séries iniciais do ensino
fundamental. Na pesquisa, as escolas se apresentam como as instituições que mais
encaminham as crianças para acompanhamento psicológico.

Para classificar as queixas, Merg (2008) utilizou as categorias propostas pelo CBCL.
Segundo sua pesquisa, os meninos apresentam queixas mais frequentes de comportamento
agressivo, ansiedade/depressão, problemas de atenção, problemas de aprendizagem e
problemas de relacionamento.

A discussão dos resultados fundamenta-se nos estudos sobre caracterização de


clientela infantil, realizados nos últimos trinta anos. A pesquisa de Merg (2008) revela que as
queixas relacionadas a problemas de atenção e comportamento desafiador vêm aumentando
com o decorrer do tempo. Segundo a autora, fato permite observar que, na faixa etária dos
quatro aos seis anos, os meninos apresentaram mais queixas relacionadas a problemas de
atenção; entre os sete e nove anos, queixas relacionadas a problemas de atenção e
comportamento desafiador; e, entre dez e doze anos queixas relacionadas a problemas de
atenção.
59

Em relação ao fato de essas queixas de desatenção e comportamento desafiador serem


predominantemente decorrente de meninos, Merg (2008) ressalta que as diferenças entre
meninos e meninas sofrem interferência das determinações de gênero, que estão presentes
mesmo antes de a criança nascer. Segundo opinião da autora, a sociedade espera e estimula
que os homens sejam fortes, independentes, agressivos e dominantes.

Merg (2008) ressalta também que essas queixas coincidem com a entrada do menino
na escola e que esse fator “pode trazer grandes prejuízos na aprendizagem e no convívio
escolar. A transição escolar faz parte de um período de crise normativa da criança e é
considera um grande desafio ao seu desenvolvimento” (p. 60).

O estudo de Boaz (2009) também apresenta dois procedimentos de pesquisa: o


primeiro é a revisão de literatura, cujo objetivo foi caracterizar as queixas apresentadas por
meninos e meninas encaminhados a clínicas-escola brasileiras nas três últimas décadas. O
perfil de clientela infantil, nos últimos trinta anos em clínicas-escola brasileiras, abrange
predominantemente meninos, apresentando queixas relacionadas a problemas de
aprendizagem e comportamento agressivo; o segundo procedimento é a pesquisa de campo,
cujo objetivo foi realizar a caracterização das queixas de meninos e meninas atendidos em três
clínicas-escola de Porto Alegre, Rio Grande do Sul: Estudos Integrados de Psicoterapia de
Orientação Psicanalítica (ESIPP), Centro de Estudos Atendimento e Pesquisa da Infância e
Adolescência (CEPIA) e o Instituto de Psicanálise e Contemporaneidade (Contemporâneo).

Os dados para caracterização da clientela foram obtidos nas entrevistas de triagem e


nos prontuários das crianças atendidas no período 1980-2009. A pesquisa demonstra o
predomínio de meninos na faixa etária de um a doze anos.

Para categorizar as queixas levantadas, o estudo utilizou a CBCL. A pesquisa revela


que as queixas mais comuns em relação a meninos são comportamento agressivo e
problemas de atenção.

Boaz (2009) fundamenta seus argumentos sobre a predominância de meninos


encaminhados para acompanhamento psicológico com queixas relacionadas à agressividade e
a problemas de atenção na teoria psicanalítica; aponta que os meninos na faixa etária em que
são encaminhados estariam vivenciando o complexo de Édipo, que provoca sentimentos de
insegurança e tentativas de resolver os conflitos por meio da fantasia.
60

Quanto às queixas relacionadas a problemas de atenção, pode-se pensar que estão


associadas ao sexo masculino através de outras teorias psicanalíticas. Freud
(1924/1988) descreve o complexo de Édipo como sendo o fenômeno central do
desenvolvimento sexual da primeira infância: de forma resumida, no menino, ocorre
o enamoramento pela mãe, a qual é percebida como sendo exclusiva sua, enquanto
que o há um desejo de eliminar o pai dessa relação, o que gera o temor da castração.
Porém, esse fenômeno encaminhar-se-á à destruição por falta de sucesso. Dessa
forma, o complexo de Édipo representa o sentimento de exclusão e o final de um
estado de onipotência, marcando o sentimento de insegurança, a dificuldade em se
sentir no seu próprio lugar e a de se sentir seguro do amor dos pais (BOAZ, 2009,
s/p).

Essa análise de Boaz (2009) corrobora as constatações de Merg (2008) na explicação


sobre o envolvimento de fatores sociais, culturais e familiares relacionados às queixas de
agressividade e desatenção, ao argumentar que os meninos são criados e estimulados a serem
mais agressivos e agitados.

As informações relatadas nessas pesquisas no campo da psicologia, com suas


distinções e especificidades, apresentam-se, em comum, a psicologização do fracasso escolar.
Reduz-se todo o processo de escolarização, sua história, seus determinantes e suas relações a
um fenômeno que se evidencia pela aparência. Essa aparência se manifesta por meio do
comportamento inadequado e pela não aprendizagem dos conteúdos escolares, o que significa
que essas pesquisas carregam as contradições, tensões e embates revelados por Patto (1999)
em sua discussão sobre o fracasso escolar.

Esses estudos sobre caracterização de clientela infantil em clínicas-escola de


psicologia e serviços de saúde pública apresentados neste capítulo com o objetivo de se
problematizar o fracasso escolar em meninos evidenciam que os motivos que conduzem esses
sujeitos o acompanhamento psicológico são os problemas de aprendizagem (mais
especificamente a desatenção), e os problemas de comportamento (mais especificamente as
questões relacionadas à agressividade e agitação).

Pelos relatos das produções científicas no campo da psicologia, selecionadas para


discussão da temática proposta neste estudo, foi possível identificar que apenas três (o de
Scortegagna e Levandowki, 2004, o de Nakamura et al., 2008 e o de Rodrigues et al., 2012)
fazem menção aos estudos26 na área de psicologia escolar que procuraram compreender a
queixa escolar na sua complexa e multideterminada produção, indo além das categorizações

26
Os estudos da área da Psicologia Escolar sobre o processo de produção da queixa escolar, desde a década de
1980, apontam: quem são as crianças e adolescentes encaminhados, as queixas mais frequentes, as estratégias
mais utilizadas pelos psicólogos e os bastidores tanto do processo de escolarização como dos atendimentos
psicológicos realizados com esses essas crianças e adolescentes, bem como as implicações para a formação do
psicólogo que trabalha com esse tipo de demanda, numa perspectiva crítica em Psicologia.
61

abstratas e a-históricas apresentadas nas pesquisas sobre caracterização de demanda infantil


para acompanhamento psicológico.

No entanto, esses estudos encontraram dificuldades de superar análises psicologistas, o


que demonstra obstáculos impostos pela forma capitalista de pensar, que centra suas análises
tendo o indivíduo como ponto de partida e ponto de chegada, ocultando as condições
objetivas, materiais e históricas que formam o psiquismo humano.
De acordo com Dias (2008)

A adesão dos psicólogos a uma prática individualizante, em relação à queixa escolar,


reflete uma visão de mundo que explica a realidade a partir da cisão entre indivíduo
e sociedade. Isso pode permitir a compreensão dessa tendência de encaminhamentos
e atendimentos psicológicos de serem focados, apenas, naquele que apresenta
problemas de escolarização, explicando-o a partir de uma patologia, déficit ou
distúrbio, restringindo o mal-estar dos estudantes a uma forma definitiva e não
histórica (p. 32).

Assim, ao se falar em desatenção, inquietude e agressividade, reporta-se a aspectos


como dificuldade de não prestar atenção voluntariamente e dificuldade de organização e
planejamento, baseando-se numa ação intencional e voluntária sobre o a realidade, isto é,uma
ação menos impulsiva. Tais aspectos são tomados, muitas vezes, separados dos componentes
afetivos de nossa condição humana. Tudo isso são ações tipicamente humanas, denominadas
por Vigotski de funções psicológicas superiores.

Nessa perspectiva, ao contrário de enfocar os motivos que conduzem esses meninos a


se comportarem de forma desatenta, inquieta, agressiva e tantos outros adjetivos descritos
anteriormente no relato sobre as queixas que culminam no acompanhamento psicológico, é
necessário, de fato, refletir sobre a questão proposta por Vigotski (2000): “como o coletivo
cria nesta ou aquela criança as funções superiores?” (p. 29), pois, esse autor parte do
pressuposto de que a “função primeiro constrói-se no coletivo entre as crianças, – depois
constitui-se como função psicológica da personalidade” (VIGOTSKI,2000, p. 29).

Para Golder (2004 apud MEIRA, 2007, p. 48),

Embora cada sujeito possa atribuir significados à sua vida e ao mundo, a


individualidade e a subjetividade continuam ligadas à objetividade, ou seja, ao
contexto sócio-histórico, do que decorre que a individualidade do homem, que só
pode existir no social, é resultado de suas relações sociais e das formas a partir das
quais elas são elaboradas. Mesmo, em uma situação íntima o psiquismo continua
sendo social e está determinado socialmente.

A queixa escolar é uma produção social e coletiva, marcada também por diferenças de
62

gênero, que se revela nos discursos inerentes à expectativa comportamental para meninos e
meninas. Essas expectativas acabam funcionando como reguladoras dos padrões de
comportamento das crianças, delimitando o que é masculino e o que feminino. Assim, com
base nos estudos da psicologia sobre caracterização de demanda infantil tem-se um perfil
homogêneo e dominante sobre quem são esses meninos que fracassam na escola.

Ao considerar, a priori, os meninos como desatentos, agressivos, desinteressados,


agitados e tantas outras queixas mencionadas neste capítulo (por exemplo: egoísta, irônico,
inconsequente, dificuldade para entender o que é solicitado, choro frequente, irritabilidade,
imaturidade, dentre outras), inclusive sem a preocupação ética de como essas palavras podem
mediar o desenvolvimento da criança, na realidade está se produzindo e mantendo um
estereótipo. Contudo, Bosi (1992) alerta que “o estereótipo nos é transmitido com tal força e
autoridade que pode parecer um fato biológico” (p. 113).

Dessa forma, o estereótipo tende a simplificar a complexidade da constituição de um


determinado fenômeno, principalmente porque “recobrem os elementos contraditórios do real,
ignoram exceções e permanecem imunes à experiência” (BOSI, 1992, p. 114).

Outra questão que permeia as explicações sobre a incidência de crianças


predominantemente do sexo masculino, encaminhados para acompanhamento psicológico, diz
respeito à articulação entre os problemas que o aluno enfrenta na escola e as condições
materiais, físicas, psicológicas, sociais de sua família, o que permite refletir que a ideia de
família tradicional ainda se constitui um importante elemento na avaliação dos problemas
escolares que esses meninos enfrentam na escola. E muitos profissionais da área da psicologia
acabam por selar o destino desses meninos, tendo como pano de fundo a crença em uma
suposta “família desajustada”. Com base nessa questão, vale retomar, nesse momento, a
discussão feita no primeiro capítulo sobre desqualificação dos mais pobres na sociedade
brasileira, destacando as ponderações de Mello (1999 apud PATTO, 2000, p. 66):

Tarefa urgente nos cursos de Psicologia é não partir do pressuposto de que as


famílias pobres são indignas, denunciando e tentando reverter o abuso cometido
contra elas sempre que são transformadas em responsáveis pela violência, pela
criminalidade, e até, no extremo, pelos desajustes do país. É preciso dizer e tornar a
dizer que a famosa „família desorganizada ou desestruturada‟ é um estereótipo que
culpabiliza as vítimas. A aplicação indiscriminada de modelos familiares normativos
a grupos familiares que são divergentes podem causar muito mal, acentuando as
diferenças e transformando-as em estigmas. A mulher que cuida sozinha de seus
filhos não é um mostro. Ela e a criança são uma família. Um bom psicólogo deve
começar seu trabalho pelo respeito ao cliente e á sua dignidade. Respeitar significa
aplicar-se na compreensão das diversidades e no acatamento das divergências.
63

Com base nesses pressupostos, a problematização de todas essas queixas escolares de


meninos, bem como os perigos de reduzir questões sociais a características de idiossincrasias
desses meninos, que podem acarretar sérios danos à história escolar dos meninos, e inclusive
produzir uma trajetória de fracasso, sugere a necessidade de se refletir sobre a seguinte
questão: será que toda a queixa escolar implica em psicologização? Pode-se dizer que não.
No entanto, é necessário tencionar, investigar, refletir sobre todo o processo de
produção dessa queixa, principalmente na tentativa de contextualizá-la no marco da relação
entre o menino, a escola e a sociedade. Assim, o objetivo do próximo capítulo é verificar e
analisar, a partir do contexto escolar, os elementos que permeiam, constituem e interferem
para que meninos, vistos como agressivos, desatentos e inquietos, vivenciam mais problemas
em sua escolarização, como o fracasso escolar.

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