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Da Misoginia À Metáfora Das Camadas

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Da misoginia à metáfora das camadas

Introdução

No mudo todo “surgem” produções culturais que abordam a situação da mulher: no


mundo eslavo, por exemplo, começamos a ter contato com obras de reconhecidas
escritoras, como Ludmila Ulytskaia, que tem um tratamento muito especial para a
situação da mulher comum russa, ou ainda a laureada com o Prêmio Nobel Svetlana
Alexijevich, que escreveu um contundente livro sobre a situação na mulher na guerra, A
guerra não tem rosto de mulher. No mundo árabe, a despeito de uma imensa dificuldade
de publicações de livros sobre a condição da mulher, temos o trabalho corajoso e
pioneiro de Nawal el Saadawi, que escreveu um requintado livro em que ficção e
reportagem dão-se as mãos (Woman at point zero). Ao falar de uma presidiária, ela trata
de todo um mundo de injustiças sofrido por mulheres árabes e não árabes no mundo de
maioria islâmica. Na África, temos Paulina Chiziane, que, com seu Niketche, constrói
uma realidade quase inverossímil sobre a situação da mulher moçambicana, dizendo-se
uma contadora de histórias e não uma romancista. No mundo caribenho, Françoise Ega
(Cartas a uma negra) faz eco a Maria Carolina de Jesus, a escritora brasileira, para
quem escreveu cartas que nunca foram enviadas, mas com quem divide um mundo de
injustiças e subalternidade. E haverá escritoras mais famosas, como Margaret Atwood,
ou menos famosas, menos desejadas pelo mercado editorial, que terão a mulher, a
situação da mulher, como objeto de investigação intelectual e artística.

Caberia uma explicação às aspas colocadas no verbo “surgir” da primeira linha. Em


verdade, elas não surgem; elas sempre existiram. O que ocorre, aqui, no Caribe, na
África, no sudoeste asiático ou nos países ricos (do Norte Global ou de países que estão
no Sul Global, mas que fazem parte da lista de países mais ricos do planeta) é a
dificuldade que há de tais produtos culturais conseguirem chegar ao grande mercado.
Ou são editoras grandes que acabam cedendo espaço em sua grade geralmente
masculina – e branca – ou são editoras menores que escolhem publicar obras de
escritoras mulheres, justamente pela falta de espaço que há no mercado, sofrendo todas
as dificuldades possíveis, da edição à presença nas estantes de grandes livrarias ou sites
de vendas. Haveria falta de interesse no mercado sobre as discussões feministas (ou
produzidas “por mulheres”)? Não. A pergunta é retórica. A própria fama alcançada por
outras produções culturais, como é o caso das séries, hoje tão acessíveis em serviços de
streaming, explica o interesse do mercado na abordagem sobre a situação da mulher:
são exemplos disso Alias Grace, que trata diretamente da situação da mulher ou ainda
Sense8, que tem com um dos assuntos a situação das mulheres, incluindo as mulheres
trans.

Mas então o que haveria, ou melhor, o que explicaria a falta de produtos culturais sobre
a mulher, produzido por mulheres e, sem esgotar a questão, para mulheres? Trata-se de
três situações diferentes, mas não excludentes. A falta de publicações de/sobre/para
mulheres (e também o modo como se dão, quando existem, o que vem a ser outra
questão, principalmente no caso de “para mulheres”) no mercado editorial é apenas um
dos inúmeros sintomas que desenham uma triste realidade para a situação da mulher. O
mercado editorial espelha a dilatada realidade social em que a mulher é presente (como
produtora ou consumidora), mas não tem voz ativa. E tal situação é ainda mais grave
para determinadas mulheres, como se verá em seguida.

Veja-se a representação da mulher na mídia e como os discursos feministas/sobre o


feminino são escamoteados e vendidos distorcidos em novelas, em propagandas, no
cinema, em programas de auditório, na vida política, no mundo jurídico, no universo
médico, dentro e fora das universidades, etc. Como não seria possível listar todas as
situações aqui, partamos de uma pesquisa feita pela pesquisadora Juliana Bertholdi
sobre a situação das mulheres nas empresas transnacionais: a autora mostra como a ação
das empresas estrangeiras, em vez de auxiliar na luta pela igualdade entre homens e
mulheres, agrava a situação de países periféricos, como os da América Latina. A par
com isso, está a total e absoluta falta de programas governamentais que amparem a
mulher trabalhadora (BERTHOLDI, 2021). Quando há programas específicos, eles não
são elaborados de acordo com as diferenças entre as mulheres, são genéricos no tocante
à expressão “da mulher” e ainda são mais perversos quanto à situação da mulher
preta/negra, da mulher indígena, da mulher quilombola, da mulher portadora de
deficiência e da mulher LBTI. Ou seja, a situação é muito mais grave do que discutir
uma questão genérica; a questão é discutir, problematizar e encontrar saídas para a
diversidade do “ser mulher”.

Este breve texto mostra algumas possibilidades de se problematizar a questão,


mostrando ferramentas de discussão possíveis. Está dividido em três partes: a
introdução, encerrada aqui, uma breve abordagem sobre o sentido de “naturalidade” no
que tange à questões da mulher e, por fim, a apresentação do raciocínio de Florencia
Luna.

Sobre o natural e o cotidiano

Bourdieu, no já clássico A dominação masculina, perguntava-se no preâmbulo como


determinadas situações podem ser consideradas “aceitáveis” ou “até mesmo naturais”,
sendo que “cinco minutos de circulação automobilísticas ao redor da Praça da Bastilha”
já mostrariam diversos absurdos (BOURDIEU, 2012, p.7). Ele não falava de um passeio
de carro por uma cidade norte-africana e sim da capital da França. De lá para cá, houve
avanços consideráveis nessa crítica, e autoras do mundo todo investigam em seus
respectivos universos o porquê de ainda a situação da mulher, na maioria dos lugares,
ser tida como natural e aceitável, mesmo quando ela é morta por um companheiro que
terá todo o amparo da estrutura masculinista da justiça, da imprensa, de partidos
políticos, da igreja.

Hoje, autoras como Silvia Federici demonstraram, “a partir de uma análise histórica,
que a discriminação contra a mulher na sociedade capitalista não é legado de um mundo
pré-moderno, mas sim uma formação do capitalismo”. Indo muito mais além, a
pesquisadora afirma que tal formação foi “construída sobre diferenças sociais existentes
para cumprir novas funções sociais” (FEDERICI, 2017, p.11). Tal estudo, na esteira dos
discursos e teorias da Nova História, ecoa trabalhos anteriores (ou coetâneos), como os
de Natalie Zemon Davis, em que a historiada demostra que mulheres donas de negócios
e condutoras de seu destino, no meio de uma sociedade patriarcal, existem há séculos.
Veja-se o caso de Glikl bas Judah Leib, que em pleno século XVII europeu, assumiu os
negócios da família e cuidou de uma extensa prole (DAVIS, 1997, p. 15 – 64). Esta,
demostra a ancestralidade da situação da mulher como protagonista de sua vida (sim,
com diferenças brutais de temporalidade) e aquela como o mundo moderno carregou
junto “novas funções sociais para as já existentes.

Como a teoria da História já mostrou, a escrita da História “incorporou” corpo e mentes


de mulheres. A todo tempo, vemos “resgates” de mulheres esquecidas na História, seja
uma matemática da Antiguidade, como Hypatia de Alexandria, seja uma doutora da
Igreja Católica Romana, como Hildegarda, ou ainda uma poeta como Faltonia Proba.
Aqui caberia uma menção ao levantamento ao modo de um dicionário – e verbetes – de
Marcos Roberto Nunes Costa e Rafael Pereira Costa, em que mostram quantas mulheres
ficaram à margem das pesquisas dos historiadores e historiadoras, da Antiguidade tardia
à Renascença. Trata-se de Mulheres intelectuais na Idade Média: entre a medicina, a
história, a poesia, a dramaturgia, a filosofia, a teologia e a mística. Algo muito similar
e ainda no mesmo terreno ocorre na crítica das artes plásticas, quando se trata de uma
pintora como Sofonisba Anguissola, por exemplo, que tem sido bastante citada como
exemplo de mulher que ficou à margem da História. Tais levantamentos são
indiscutivelmente importantes. O problema é quando caem na grande rede do
capitalismo tardio e se transformam em produtos de consumo, tornando-se elementos
exóticos, sexualizados ou explorados, simplesmente, pela superfície. Na grande batalha
discursiva social, algumas mulheres “resgatadas” da História tornam-se personagens de
filmes, romances e até propagandas, dentro de um cenário em que o empoderamento é
apenas mais um penduricalho brilhante das deturpações do mercado, no
neocolonialismo e do neoliberalismo.

Outras áreas do saber, principalmente no tão próximo de nós século XX, incorporaram
corpo e mentes femininas/de mulheres: a Linguística, por exemplo, passou a fazer
recortes em que a mulher (num sentido mais figurado do que qualquer outro, sem
grandes diferenciações transversais) passou a ser um elemento de recorte de pesquisa.
Pensemos no caso da Sociolinguística, em que “gênero” (ainda que num sentido
binomial, homem x mulher) se tornou um recorte de suma importância, afinal o modo
como homens e mulheres utilizam a língua não é o mesmo. Ainda na Linguística, área
recentes do saber linguístico, como a AD – Análise do discurso, investigam o
discurso/fala/lugar de fala da mulher através de uma perspectiva que dá as mãos à teoria
da História, à Sociologia, às áreas “psi”. Não obstante o esforço hercúleo e erudito dessa
jovem área, ainda é esnobada por muitas outras, e isso ocorre mesmo dentro da
academia, local em que diferentes saberes deveriam ser bem-vindos. Na Medicina,
houve avanços no estudo da situação da mulher, com toda uma taxonomia (em sentido
foucaultiano) particular para as “questões femininas”, “questões da mulher”, “medicina
voltada para o corpo da mulher”. No Direito, houve avanços significativos, como no
caso brasileiro em que o feminicídio se tornou uma tipificação criminal e não um
homicídio comum, embora ainda haja terreno a ser conquistado, uma vez que o Direito
pode pregar algo e não o seguir na prática, se as investigações, o processo, o
julgamento, a pena e o cumprimento dessas não estiverem à altura do texto legal, caso
em que o texto legal será apenas um texto que maquia a realidade sensível das mulheres,
restando um monte de tinta sobre papel branco. E outros exemplos caberiam aqui: a
Economia, os estudos da religião, as pesquisas científicas das áreas exatas, as áreas de
gestão. Convém anotar algo extremamente importante: nenhuma dessas áreas é
estanque, pois de um modo ou de outro elas dialogam, mesmo que atravessando pontes
muito frágeis para que toquem os dedos.

Mas talvez nenhuma outra área do saber como a sociologia tenha trazido tanta luz sobre
a situação das mulheres. Falamos em Sociologia como uma área do saber que caberia
numa definição estreita, mas não. A Sociologia, seria melhor dizer, em todas as suas
vertentes, a política, a feminista, a dos estudos queer, a urbana, a rural, a marxista, a
psicanalítica. É dessas áreas que nos chegam vozes que discutem a situação da mulher
numa frente muito ampla, é dessa área que temos vozes do mundo todo, sejam já as
pesquisadoras mais conhecidas e divulgadas, como Judith Butler, quanto pensadoras já
conhecidas no exterior e que ganham traduções cada vez mais bem cuidadas e
divulgadas no Brasil, como Françoise Vergès, sejam aquelas que ainda esperam pela
divulgação maior do seu trabalho em português, como Florencia Luna e Oyèrónkẹ
Oyěwùmí. Mas aí chegamos a uma curva muito fechada e perigosa: tantas áreas e tantas
situações do saber trazem as discussões de que precisamos, sem as quais não há avanços
(políticos, jurídicos, artísticos, etc.), porém, o modo como o mercado as recebe falseia,
muitas vezes, a verdadeira situação da mulher, apontando situações em que as respostas
aparentam ser plausíveis, fáticas, tangíveis. Ver, por exemplo, mulheres dirigindo trens
imensos ou caminhões em atividades extrativistas, numa matéria de jornal televisivo,
pode trazer uma sensação de igualdade, empoderamento e inclusão. Não é falso, frise-
se: mulheres demoraram séculos ou décadas para terem o direito de um trabalho
considerado “masculino”. No entanto, essas imagens tão amadas por editores de grandes
jornais televisivos mascaram realidades pavorosas da mulher trabalhadora num universo
dominado por homens: o salário mais baixo, a violência sexual, moral e simbólica, a
falta de uma política trabalhista que lhes dê apoio e amparo do caso de gravidezes e
situações de saúde da mulher, etc. Ver mulheres dirigindo grandes produções fílmicas
não lhes dá o lugar merecido no panteão dos vitoriosos. Para não colocarmos tudo em
termos financeiros – embora o valor recebido por mulheres diretoras e atrizes seja
menor que o dos homens, com raríssimas exceções, e isso é um problema, sim –, temos
as premiações, os títulos, o respeito social e assim por diante, e temos ainda o terreno,
ainda dominado pelo poder machista, masculinista, androcêntrico, que dificulta
sobremaneira abordagens feitas por mulheres, sobre mulheres e para mulheres. Basta
olhar para as listas de premiações que inundam a internet para vermos o quão distante as
mulheres estão em relação aos homens. Se isso ocorre numa indústria poderosa de
países do Norte Global, e se isso continua ocorrendo em grandes empresas, e se isso
ocorre em países ditos democráticos, em “Estados democráticos de Direito” ricos, a
situação em países periféricos e mesmo nas margens das grandes cidades dos países
ricos, para as mulheres subalternizadas, é algo desesperador. E tal situação ecoa e se faz
sentir nas câmaras de vereadores, nas cadeiras dos deputados estaduais e federais, no
senado e nos comandos de países mundo afora, com exceções a contar nos dedos. O
Brasil, por exemplo, teve apenas uma mulher presidente – e ela foi deposta.

Pensemos que, sem o avanço dos grandes e sérios estudos sobre a situação das
mulheres, a situação seria muito pior. Sem a luta de entidades feministas, o Direito
ainda apoiaria homens que matam as esposas “em defesa da honra”. No entanto, há
muito território a ser vencido, numa luta desigual, sem paridade de armas, e ainda
agravada muitíssimo com o avanço dos discursos fascistas que vemos pipocar em
diversas partes do Globo, em especial no Brasil. De nada, ou muito pouco, adianta o
estudo de campo, de observação, intuitivo, se a mulher continua objeto sexual,
chamariz, ou subalternizada na mídia, no cinema, na televisão e hoje na internet. A
pesquisadora bell hooks, por exemplo, mostra como imensa parte dos expectadores
compra gato por lebre no tocante à representação da mulher. Ela cita o estudo de Gail
Faurshou, chamado A moda e a lógica cultural da pós-modernidade, em que a autora
demonstra o que ocorre com o corpo feminino negro, em particular:

[tal] mudança cultural possibilita que os corpos das mulheres negras sejam
representados em certos domínios do “belo” onde eles já tiveram sua entrada recusada,
como nas revistas sofisticadas de moda. Reinseridos como espetáculo, mais uma vez em
exibição, os corpos das mulheres negras aparecem nessas revistas, não como registro da
beleza da pele escura (...) mas para chamar a atenção para outras preocupações. Eles
parecem representar uma antiestética, que zomba da verdadeira ideia de beleza.
(HOOKS, 2019, p. 145).
E a preocupação é a venda de outros produtos, inclusive não direcionados à comunidade
negra. Marcas grandes e pequenas utilizam-se do mesmo artifício, colocando em suas
pautas questões de verdadeira e suma importância, mas ali, de modo equivocado, por
vezes cruel. Longe de minimizar o sofrimento da população negra, algo similar ocorre
com as mulheres de forma geral, que ganham protagonismo em novelas, filmes,
seriados, romances, peças de teatro, exposições artísticas, mas basta um mero olhar para
o modo como são representadas, as listas de artistas nos museus e galerias de arte, a
construção de personagem em novelas e seriados, etc., para a constatação irrefutável: ali
há um ser que não é real em hipótese alguma – é a leitura do ser mulher, feita por
homens ou mulheres em completa dissonância com as grandes causas e a real situação
da mulher no mundo. Um terrível e banal exemplo disso tudo é a nudez feminina, que
continua um produto caro ao mercado.

Algumas categorias do pensamento são um problema sem pacificação. Sabemos disso,


precisamos lidar com isso e encontrar respostas para crises desse tipo, principalmente
quando não temos (ainda) vocabulário próprio para discutir um tema. Sloterdjik parte do
princípio que lidamos com “sociedade”, por exemplo, como lidamos com um elemento
mítico. Ele adjetivou o vocábulo “sociedade” como algo “supeito”, mas lembra que
“sociedade” também é um “animal fantástico e real” (SLOTERDIJK, 2017, p. 13 – 14).
Então, caberia esta colocação antes de fecharmos este trecho com o pensamento da
pesquisadora húngara, de linha lukacsiana, Agner Heller. Em O Cotidiano e a História,
Heller conceitua “cotidiano”, “preconceito”, “indivíduo” e “comunidade”. Dando ênfase
ao conceito de “preconceito”, aqui, e fazendo uma ponte possível com o raciocínio de
Bourdieu citado acima, Heller, critica o que chama de “uma categoria do pensamento e
do comportamento cotidiano” (HELLER, 1992, p. 43), o preconceito. A pesquisadora
intui que a ultragenerização é inevitável na vida cotidiana, uma vez que não nos
empenhamos em analisar todas as atividades cotidianas baseados em conceitos fundados
cientificamente:

[...] o grau de ultragenerização sem sempre é o mesmo. A rigidez das formas de


pensamento e comportamento cotidianos é apenas relativa, ou seja, pode se modificar
lentamente na atividade permanente e, com efeito, geralmente se modifica. Toda
generalização é um juízo provisório ou uma regra provisória de comportamento:
provisória porque se antecipa à atividade possível e nem sempre, muito pelo contrário,
encontra confirmação no infinito processo da prática. (HELLER, 2017, p. 44). [grifo da
autora]

O indivíduo que vive nessa sociedade, de conceito provisório também, passa por
processos facilitadores, muitas vezes mediados pela mídia, pelo ensino formal, pelas
igrejas, pelo contato cotidiano com o outro, pelas leituras – e hoje pela incalculável
quantidade de informações a que pode acessar de onde estiver, bastando um telefone
móvel e uma rede. Ele “aceita” como “natural” e “cotidiana” a violência contra a
mulher, o que aparece na língua (de forma “natural”, em piadas, brincadeiras,
abordagens de teor sexual), toques, no dia a dia e, em outras esferas, na violência física
e moral, na diferença salarial, no rebaixamento, no mansplaining, nas ofensas de
trânsito, no silenciar político, etc.

Então até aqui temos: a) uma sociedade em que muitas vezes o horror é algo natural
(Bourdieu); b) uma sociedade de sentido provisório, pois a palavra em si, embora
precisemos dela, não comporta a complexidade de seu todo (Sloderdijk); c) a
falsidade/equívoco na utilização das questões de mulheres (negras, em particular para
hooks, mas, por extenção, das brancas, indígenas, quilombolas, portadoras de
deficiência, LGBTI, solteiras, dentre outras) pela grande mídia; d) a vivência de
processos facilitadores que permitem uma ultragenerização, que torna nossas atividades
“naturais” e sem “investigação mais profunda” (Heller). Deveríamos somar a esses
pontos, o pensamento de Federici e o de Françoise Vergès: a situação da mulher é grave
no capitalismo tardio e no universo (neo)colonial ainda pior.

A teoria das camadas e um conceito para vulnerabilidade

Diante desse quadro: a) do avanço das pesquisas e das lutas contrárias a esses avanços,
como o aumento de partidos políticos de extrema direita; b) a situação de falsidade que
ocorre com a representatividade, o empoderamento e a inclusão, quando o mercado
comum ao capitalismo tardio se apodera de discursos de luta para transformá-los em
produto; c) do cenário de franco crescimento de discursos e práticas conservadoras,
como o caso das igrejas neopentecostais; d) dos novos estudos de transversalidade e
intersecção; e) das próprias lutas internas no interior de uma vasta rede de saberes sobre
o “ser mulher”; f) do perigo da generalização quando usamos vocábulos de acepção
muito vaga ou extensa, como “sociedade”, trazemos aqui o pensamento de Florencia
Luna. Dentre tantos, um possível.

A teórica argentina escreveu um texto em que traz o conceito de uma “metáfora das
camadas”, em que investiga a noção de vulnerabilidade. Primeiramente, Luna faz um
levantamento de como o conceito surge em inúmeras pesquisas: i) como um contra-
senso: caso se categorizem todos os indivíduos como vulneráveis, como serão
escolhidos aqueles que realmente estão em situação de vulnerabilidade? Todos somos
vulneráveis em um momento ou outro da vida, mas há diferentes tipos de
vulnerabilidade e diferentes momentos de vulnerabilidade; ii) como compaixão:
adjetivar indivíduos como vulneráveis é um caminho para considerá-los dignos de pena
(aqui cabeira uma observação, por exemplo, sobre o como a televisão, quer em seus
produtos jornalísticos, quer em produtos “de diversão”, romantiza a pobreza, a
subalternidade, o periférico, e, em muitas situações, as causas LGBTI, as causas
feministas, as pautas da negritude/branquitude); iii) o estereótipo: certa crítica que lida
com a vulnerabilidade aponta que o adjetivo, em vez de promover igualdade, carrega o
risco de apontar o indivíduo como um sujeito “etiquetado”, o que seria algo negativo, e
isso ocorre com o morador da favela, o encarcerado, as mulheres trans do mercado
sexual, os indivíduos em situação de trabalho análogo à escravidão; iv) a proteção
insuficiente: que ocorre quando o indivíduo é considerado vulnerável, mas não se
encontram respostas para seus problemas, e isso ocorre na Medicina e no Direito, a
escolha de quem deve receber auxílio e nas escolhas complexas de bolsas de estudo, etc.
(LUNA, 2008).

Veja-se: todas essas realidades são possíveis. Não são excludentes ou includentes;
podem ser coexistentes, mas requerem uma abordagem mais profunda. Podemos dizer
que a mulher é um sujeito social em constante estado de vulnerabilidade. Na rua, corre
mais riscos que os homens; no trabalho, ganha menos e está sem situação de
desvantagem; não encontra espaço nas igrejas (com exceções talvez nas religiões de
matriz africana), no esporte (onde recebem menos aportes financeiro e menos apoio, e
ainda correm o risco de serem sexualizadas), e mesmo no meio acadêmico, onde, por
certa lógica, deveria haver mais liberdade e receptividade; e assim é no meio jurídico
(bastando-se, por exemplo, verificar o número de desembargadoras no Brasil frente ao
número de homens desembargadores, e julgadores monocráticos, e ministros do
Supremo), no meio médico, no meio de pesquisa, etc. Ou seja, onde há o ser mulher, há
o sujeito vulnerável.

No entanto, assim como o termo “sociedade” não define cada indivíduo (acima, citamos
o comentário de Sloterdjik) em suas particulares, o termo “ser mulher” também não. Há
mulheres negras, mulheres indígenas, mulheres lésbicas, mulheres quilombolas, assim
como há mulheres em situação de rua e ricas mulheres que sofrem violência física,
moral, financeira. Há mulheres arrimo de família em todas as classes, mas as mulheres
arrimo de família que moram em periferias sofrem mais com a violência da polícia, a
violência das milícias e a violência das próprias condições de moradia. Então, como
equacionar isso tudo e encontrar respostas para diferentes situações de vulnerabilidade?
Pensar que as vulnerabilidades são coexistentes e possíveis, como camadas (capas), que
podem ser vistas, analisadas, retiradas uma a uma, traz certo conforto teórico assim
como para uma prática de ações. Não se propõe comparações que a nada levam, como
dizer que uma mulher trans seria considerada menos ou mais vulnerável que outras
mulheres (embora saibamos os riscos que as mulhres trans correm todos os dias de sua
vida), ou que as mulheres não cis seriam menos ou mais vulneráveis que outras
mulheres, que as mulheres negras seriam mais ou menos vulneráveis que outras, mas
que há diferenças entre ser uma mulher branca e ser uma mulher negra, ser cis ou não,
ser trans ou não, ser da periferia das cidades ou dos centros, pertencer a um grupo
religoso ou não, e assim por diante. A metáfora das camadas permite uma intersecção
interessante e ainda a possibilidade de, no caso de ajuda (financeira, psicológica,
jurídica), que as camadas sejam removidas uma a uma. Ela permite, sem o jogo falso da
pena, da compaixão, investigar as reais situações de vida de cada mulher.

Não se trata, portanto, nem de rotular, etiquetar, enxergar o outro com compaixão ou,
ainda, e o que é mais grave, transformar todos os indivíduos como seres idênticos,
enfrentando os mesmos problemas. Investigar as camadas possibilita ações (legais,
médicas, de auxílio emergencial) em níveis distintos e éticos.

Já nos anos 1970-80, uma a teórica canadense Dorothy Smith trazia à tona uma situação
que até então parecia nova: o fato de que grande parte das questões sobre a mulher não
levava em consideração a real situação da mulher, pois muito se pensava na mulher fora
de casa (trabalho, estudo, outros ambientes) mas não na mulher que tinha uma segunda
ou terceira jornada de trabalho. Por isso, a pesquisadora desenvolveu um estudo sobre o
papel da mulher “dentro de casa, como mãe e dona de casa”:

[…] eveloping a sociology for women/people starded with the idea of beginning in the
standpoint of a housewife and mother in the actualities of her everyday world and
anchoring an investigation of the social in concrete actualities of the everyday and of
everyday doings. (SMITH, 2007)
Talvez para os pesquisadores e pesquisadoras de hoje isso possa parecer óbvio em
demasia, mas, naquele momento, partir das experiências do cotidiano trouxe um outro
ponto de vista, a partir do qual (dentre tantas pensadoras e pensadores) foi possível
construir novos discursos e novas práticas.

Atualmente, os discursos decoloniais ou descoloniais ganham corpo e espaço nas


discussões acadêmicas (veja-se o exemplo de Lugones e outras tantas pensadores e
pensadores). Então, pensar a situação da mulher com “camadas de vulnerabilidade” é
mais uma possibilidade de encontrarmos respostas para a terrível situação da mulher no
mundo contemporâneo.

Conclusão
Lidar com palavras e conceitos é um dos grandes entraves dos estudos das áreas
humanas. Há não somente uma situação de uso vocabular no interior da língua, quando
se agrupam saberes numa franca categorização – e assim falamos em Sociologia, em
Antropologia, em História, em Linguística, sem perceber que tais áreas dialogam muito
mais que se afastam – como também um entrave quando a situação é de tradução de um
vocábulo, de um conceito. Desse modo, cabe perguntar se devemos usar “negro” ou
“preto” e se, ao usarmos tais especificadores linguísticos, não estaremos invadindo um
território do discurso, um lugar em que o uso é natural e um recurso não meramente
vocabular e sim político. Em outras situações, como citado acima, uma palavra de uso
tão comum como “sociedade” merece atenção, pois que relativa, quando pensamos na
própria diversidade, que é justamente uma das características das sociedades. E haverá
problemas desses teores nos estudos queer ou nos estudos indígenas, no Direito ou na
Filosofia.
A explicação anterior se deve ao fato de que, aqui, precisamos das palavras “mulher”,
“feminismo”, “feminista”, assim como das expressões “da mulher”, “da luta das
mulheres”, “dos direitos da mulher”. Como não existe em português um adjetivo como
“mulhérico/a”, precisamos contornar a situação para não cairmos na atração delicada do
uso de “feminino” ou “feminil” (palavra mais rara), muitas vezes sem o valor que as
demais expressões carregam no interior das lutas feministas. Florencia Luna trata da
questão da vulnerabilidade, num contexto mais amplo, o da ética da pesquisa. Levando
em conta todo o quadro que descrevemos nas duas primeiras partes deste texto, mas
tendo em mente que cada mulher é uma mulher diferente da outra, mesmo fazendo parte
de uma mesma sociedade ou de um grupo, acreditamos que a “metáfora das camadas”
pode ser um ferramenta bem eficaz na lida das complexidades da situação da mulher.
Como cada indivíduo tem sua trajetória, precisemos de ferramentas para lidar, de modo
ético, com as diferenças e as divergências entre os sujeitos.

Vivemos o capitalismo tardio, o neoliberalismo (e hoje já se fala em ordoliberalismo),


vivemos a pós-modernidade, o pós-humano, a hipermodernidade, o mundo líquido, o
antropoceno? Seja a abordagem que for, temos algo em comum: um mundo ainda
dominado pelo discurso masculinista, pelo eurocentrismo branco e pelo poder do
mercado. Encontrar respostas para essas dificuldades é dever de todo pesquisador e
pesquisadora. Atrair para o centro das pesquisas outros grupos – médicos, operadores do
direito, políticos, clérigos – é um dos nossos grandes desafios.

. BERTHOLDI, Juliana. Propostas de redação aos planos nacionais de ação latino-


americanos desde uma análise feminista. Dissertação: PUC-PR, 2021, 249 p.
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Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.
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Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
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São Paulo: Elefante, 2019.
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