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Apolônio Díscolo - Intro

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LALLOT, Jean. Introduction. In: Apollonius Dyscole, De la construction (Syntaxe).

Paris:
Vrin, 1997, p. 10-84.

Fundamentos filosóficos e teóricos

1. Apolônio Díscolo (séc. II d.C., floruit c. 130 d.C.): δύσκολος – referência ao seu método
“difícil de ensinar/aprender o grego”. Referências biográficas a Apolônio (GG 2.3.11).
Autorreferências na obra de Apolônio: S. 1.1; Conj. 213.1. Referências ao
ensino/aprendizagem e à sala de aula: S. 1.37, 46, 49, 52, 93, 111; 2.32; 3.26, 57, 152,
180. Blank (1993): obra se destinava a alunos mais avançados. Trifão (séc. I a.C.):
gramático mais citado na obra de Apolônio, mas cronologia impede ter sido o “mestre”
de Apolônio. A obra de Apolônio testemunha alto grau de maturidade da disciplina
gramatical no período alexandrino (séc. II d.C.), compreendendo uma dimensão
filológica e filosófica.

2. Análise “filologica”: exame exegético, estético e crítico dos monumentos da tradição


literária, especialmente homérica (prática, ademais, praticada desde a época homérica,
pelos rapsodos, mas sistematizada/aprofundada/teorizada pelos gramáticos
alexandrinos). Questões filológicas: qual é a pronúncia correta dos hexâmetros
arcaicos? Quais variantes morfológicas eleger para a reconstituição do texto
(considerando o aspecto polidialetal dos textos homéricos)? Qual o significado dos
hapax e das palavras raras (γλῶσσαι)? Que atitude tomar diante das contradições e
passagens consideradas indignas a Homero? E quanto aos versos e poemas apócrifos?
São questões não somente com consequências estéticas/artísticas, mas também
éticas/pedagógicas (Homero como modelo da virtude no mundo antigo). A perspectiva
filológica consistia, portanto, em duas atividades principais: 1. exploração rigorosa dos
textos literários gregos e, como um dos instrumentos para essa atividade, 2. a descrição
da língua grega e de seu funcionamento (outros instrumentos: edição dos textos,
esclarecimento histórico e mitológico, interpretação e explicação).

3. Fontes filológicas: Aristarco (séc. II a.C.), auge da gramática filológica (sua obra
consiste basicamente em comentários, ὑπομνήματα); Apolônio é o auge da gramática
«técnica». Difícil de reconstituir a linha de desenvolvimento do pensamento gramatical
entre Aristarco e Apolônio. Uma lista de nomes pode ser encontrada em Egger (1854).
Filólogos mais citados por Apolônio: Zenódoto (15 vezes) e Aristarco (25 vezes), autores
dos séculos III-II a.C. A análise de Homero em Apolônio remonta às análises de Aristarco,
que é, todavia, retomada criticamente. Trifão (séc. I a.C.): 40 referências em Apolônio,
o primeiro grande τεχνικός citado por Apolônio, cuja obra, entretanto, nos chegou
senão indireta (Velsen, 1853, 138 fragmentos de Trifão). Outros gramáticos “técnicos”
citados por Apolônio: Habrão (21 frag. Bernd, 1915) e Heráclide de Mileto. A gramática
após Aristarco foi caracterizada por esses dois componentes (filológico e técnico),
embora cada um tenha sido desenvolvido de forma mais ou menos especializada por
gramáticos diferentes, embora não se tratassem de atividades separadas, mas solidárias
entre si. Apolônio é, sobretudo, um τεχνικός: seu objetivo principal é a elaboração de
um discurso teórico rigoroso e de um corpo de regras coerente que permite uma
descrição racional dos fatos linguísticos observados (nos textos). Porém, a “teoria
linguística” não é um fim em si mesma (S. 1.1), mas a explicação de textos (90% das
citações é Homero).

4. Teoria da linguagem e Filosofia da linguagem. Com a tarefa de descrever a língua, a


gramática técnica se apoiou em uma tradição filosófica plurissecular (dos pré-socráticos
à logica estoica). Pilares filosóficos: a língua como instrumento semiótico; 2. a língua
como estrutura organizada e lógica (teoria de suas partes e de sua sintaxe). Estudos
fundamentais: Lersch (1838-1841), R.T. Schmidt (1839); Steinhal (1890-1891); Pohlenz
(1939); Mette (1952); Barwick (1957); Pinborg (1975); Baratin & Desbordes (1981); Blank
(1982); Frede (1987), Baratin (1989b, c, d; 1991); Sluiter (1990); Ildefonse (1997).

5. Língua como instrumento semiótico: a língua é um instrumento de significação


complexo – uma forma material (fônica/gráfica), variável segundo os tempos/lugares –
permite veicular (isto é, passar de um falante a um ouvinte) um sentido imaterial, o qual,
ele mesmo, está em relação com um certo estado de coisas sensorialmente e
materialmente disponível aos sujeitos da linguagem (que pode ser um estado interior –
afecções, πάθη; ou um estado exterior, as coisas, πράγματα). Discussão fortemente
articulada com a tradição filológica precedente, desde Platão (R. 392c), passando por
Aristóteles (Rhet. 1403b15) aos estoicos (DL 7.62).

6. Forma e conteúdo. Oposição entre o dizível como conteúdo (ἁ λεκτέον, λόγος,


διάνοια, σημαινόμενον, λεκτόν) e forma (ὁς λεκτέον, λέξις, φωνή, σημαῖνον). A unidade
central é a palavra, que possui 1. propriedades “semânticas”, a saber: sentido (ἔννοια,
ἐμφασις), significado (σημαινόμενον ou δηλούμενον), valor (δύναμις), conotação
(παρέμφασις), conteúdo do pensamento (νοητόν). O uso da palavra noetón retrito às
reflexões preliminares (S. 1.2) e 2. propriedades “formais” (morfológicas e fonológicas),
a saber: a forma vocal “genérica” (φωνή, προφορά, σχῆμα), ou especificada
funcionalmente (σχηματισμός, χαρακτήρ). Consequências dessa oposição para 1. a
análise da língua em suas partes em ordens hierarquizadas; 2. fornece ao gramático o
quadro de sua análise: sentido/forma; 3. permite estabelecer fronteiras entre “variação
linguística funcional” (flexão, derivação, que afeta forma e sentido) e “variação
linguística patológica” (que afeta apenas a forma).

7. Sentido e referência. Não há diferença conceitual ou terminológica entre referência


e sentido (diferença, contudo, em certo grau no Perì Herm.: φωναί, σύμβολα, σημεῖα; e
nos estoicos, Sexto Empírico, Adv. math. 8, 11-12). Ex. S. 3.59, o termo πρόσωπον
(pessoa), confusão entre os domínios linguístico e extralinguístico. Sinonímia entre
σημαίνειν e δηλοῦν (S. 3.112; A. 17,27). Ὑποκείμενον tem sentido diferente do
aristotélico, faz referência ao ‘referente’ (extralinguístico dos substantivos); os
‘extralinguísticos dos verbos’ são expressos pelas expressões: πράγμα, πράξις, διάθεσις.
Ver estudo de Van Ophuisen (1993).

8. Língua como estrutura lógica hierarquizada. O λόγος é uma reunião hierarquizada de


elementos (στοιχεῖα): S. 1.1. Conceito que decorre de reflexões já em Platão (Crat. 424;
Soph. 262c); Aristóteles (Poet. 20) – termos com significado e sem significado (mini-
teoria do enunciado mínimo, termos conectivos, σύνδεσμος, ἄρθρα): «dogma dos
gramáticos», S. 1.14. Arist. Herm.: nomes complexos (συμπεπλεγμένα), como κάλλιπος.
Teoria das partes do discurso (μέρη τοῦ λόγοῦ - termo ausente em Platão, aparece em
Arist., Herm. 16b27. Os gramáticos “herdam”a teoria dos filósofos lógicos (bem
desenvolvida pelos estoicos) e a desenvolve, discute, amplia.

9. Acidentes: caso, número, gênero, tempo, modalidade, diátese. Caso (πτῶσις): Arist.
Herm., Anal. Pr., Top., Poet.: forma básica do nome (“nominativo”) vs. formas oblíquas.
Distinção entre palavras casuais e não casuais (πτωτικόν|ἄπτωτον) tem papel central na
sintaxe de Apolônio, pois permite a partição do discurso em constituintes diferenciados
funcionalmente na sintaxe (S. 3.13-18), e a distribuição das formas em relação ao verbo
(“sintaxe dos verbos”) (S. 3.147-190). Apolônio reconhece ainda a existência de uma
sintaxe estoica (3.187). Gênero (γένος) e número (ἀριθμός): noções reconhecidas na
morfologia dos determinantes desde Arist. (Poet. 1457a20; 1458a8ss) e os estoicos (DL
7.58), põem em evidência a arbitrariedade do signo linguístico (não correspondência ao
nível da linguagem e dos referentes externos). Tempo (χρόνος): acidente verbal por
excelência (distinção entre nomes e verbos) – Arist. Herm. 16b6; Poet. 1457a14.
Terminologia dos tempos verbais elaborada pelos estoicos. Modalidades do enunciado
(assertivo, jussivo, precativo, interrogativo), já presente no sofista Protágoras (cf. Arist.
Poet. 1456b15), nos estoicos (DL 7.66). Proposição assertiva (Arist. λόγος ἀποφαντικός;
estoicos: ἀξίωμα). A reflexão morfológica e semântica sobre a modalidade verbal se
enraíza nessa primeiras concepções filosóficas. Diátese (= disposição, «voz»). Arist. Cat.
2-3, «agir», «sofrer», «postura, posição em que», sugerem as distinções entre voz ativa,
passiva e média (media tantum uerba). Em Aristóteles não há exame das consequências
linguísticas dessas noções. Estoicos (DL 7.64-65), predicados transitivos-ativos (ὀρθός),
transitivos-passivos (ὕπτια), intransitivos (“neutros”, ὀυδέτερα), reflexivos
(“antipassivos” - ἀντιπεποθόντα). Os gramáticos retomam tais distinções para
correlacioná-las com a morfologia (S. 3.147-157).

10. Determinação e enunciado completo. O fenômeno tem precedente também na


filosofia estoica (Brunschwig, 1984). Apolônio é continuidade dessa tradição, Pron. 6.30;
S. 1 e 2. Oposição entre a 1a/2a pessoas e a 3a pessoa (indeterminação constitutiva,
precisando de artigos e determinantes). Teoria da frase completa: tributária das
distinções estoicas entre enunciado simples (ἀξιώματα ἁπλα) e complexo (ἀξιώματα
ὀυχ ἁπλα). Diógenes da Magnésia (DL 7.71-73): tipos de juízo: juízo conectado
(συννημμένον: se p, q); juízo subconectado (παρασυνημμένον: posto p, q); juízo duplo
(συμπεπλεγμένον: p e q), juízo disjunto (διεζευγμένον: p ou q); juízo causal (ἀιτιώδες,
porque p, q), juízo “explicitando o mais” (διασαφοῦν τὸ μάλλον: mais p que q), juízo
“explicitando o menos” (διασαφοῦν τὸ ἧττον: menos p que q) – A preocupação dos
lógicos era estabelecer as condições de verdade de um enunciado. Os estoicos
descreveram também as conjunções que permitiam produzir articulações desses juízos
complexos, o tratado Das conjunções, de Apolônio é resultado dessas reflexões.

11. Há continuidade ou ruptura entre as reflexões lógicas e a gramática alexandrina?


Resposta matizada. A gramática alexandrina se afasta da lógica na medida em que
preserva uma forte preocupação filológica (aspecto “editorial”, a “tirania da escrita” que
orienta as escolhas temáticas e gera uma ênfase no significante, como por ex. as
reflexões sobre a construção das preposições no livro 4). Mas não há propriamente uma
ruptura com a lógica: mantém-se a “teoria estoica dos significados” (Fredde, 1987) e os
elementos da “gramática estoica” (Blank, 1982). O estudo de Sluiter (1990) mostra que
não há homogeineidade entre Apolônio e a tradição estoica e que há um conflito entre
duas tradições (filosófica e filológica). Apolônio foi um gramático cujo trabalho se
baseou em informação filosófica.

12. Correção linguística. Diversas formas de lidar com a correção na tradição filosófica.
Platão (Eut. 277e, Crat. 384b), Pródico (cf. Arist. Ref. Soph. 173b17; Poet. 1456b15 –
corrigir o gênero de certas palavras gregas, censura a Homero por ter se dirigido às
musas no imperativo e não no optativo). Século V a.C. Heródoto (termos βαρβαρίζειν
σολοικίζειν vs. ἑλληνίζειν). Definição de hellenismós em Diocles (DL 7.59) e enunciação
das virtudes e vícios da linguagem.

Arquitetura do Perì Syntáxeos

13. Livro 1. Prolegômenos que justifica o projeto epistemológico da obra (1-36).


Construção dos artigos: artigos prepositivos (37-141) e artigos «pospositivos» (i.e.
relativos) (142-147). Ênfase nas condições de emprego dos artigos; os artigos
pospositivos são estudados em contraste com os prepositivos. A proposta
epistemológica: centralidade do par nome-verbo para a sintaxe (em função do qual
todas as demais partes da oração são tratadas).

14. Livro 2. Construção dos pronomes. Características morfológicas, semânticas e


funcionais (1-27). Problemas/especificidades: a substituição dos nomes (μετάληψις, 28-
29), a razão de ser dos pronomes (40-47), sua função em relação aos verbos (48-56),
características de seus acentos (formas ortotônicas e enclíticas, 57-102), formas
ambíguas de genitivo (103-132), formas compostas dos reflexivos (133-160), paradigma
defectivo dos derivados em -δαπός (i.e. uma particularidade da combinatória, 161-170).
O livro 2 põe em evidência a natureza dupla do pronome (substituto do nome e
constituinte de uma construção verbal), a organização da matéria é mais livre.

15. Livro 3. Primeira parte sobre as causas da incongruência (uma teoria do solecismo
1-53); segunda parte sobre os verbos (54-190). A perspectiva teórica da incongruência
(do solecismo) é a contribuição teórica mais importante (permite ultrapassar a simples
intuição e acumulação de exemplos para elaborar uma teoria racional dos desvios
gramaticais, mostrando os limites dessa incorreção) e, a contrario, estabelecendo
também os fundamentos da correção sintática. O estudo dos verbos é dividida em duas
partes (o modo - ἔγκλισις: infinitivo, indicativo, optativo, imperativo e subjuntivo – 55-
146) e a diátese (διάθεσις): caso direto (147-157) e oblíquos (158-190). O verbo é
tomado, em coerência com o projeto da sintaxe apoloniana, como o centro organizador
das relações com seus entornos. Apolônio trata somente de dois acidentes (modo e voz),
dando pouca atenção à noção de tempo verbal.

16. Livro 4 (incompleto): trata das preposições (tanto as que são propriamente ditas
preposições, quanto as enclíticas que foram compostos). Trata da combinatória das
preposições com as demais partes do discurso. Conjectura-se que a parte perdida do
livro 4 tratasse, na sequência, dos advérbios e das conjunções (embora Apolônio tenha
um tratado específico sobre as Conjunções, remissões internas a esse tratado no
passado indica que se trata de obra anterior e remissões aos advérbios e às conjunções
no futuro indicam que teriam sido também tratadas na obra). O tratado “Dos advérbios”
(201-210 Schneider) é consensualmente considerado parte do Perì Syntáxeos, motivo
pelo qual vem, habitualmente, anexado ao livro 4.

Teoria da sintaxe: projeto epistemológico

17. O projeto epistemológico do Perì Synt.: é apresentado no prólogo (1.1), e na primeira


seção do livro 3 (“causas da incongruência”, 1-53). Especificidade do estudo: reflexão
sobre a composição/associação de elementos que leva à congruência da frase completa.
Construção/reunião (σύνταξις: reunião ordenada/organizada). Congruência
(καταλληλότης) da frase completa (ἀυτοτέλος λόγος). A completude (também
completude do “pensamento”, 1.2), engendra observações normativas: construções
congruentes, aceitáveis (εὐπαράδεκτοι; εὐέφικτοι) e incongruentes, inaceitáveis
(ἀκατάληλοι; ἀπαράδεκτοι; ἀνέφικτοι ). Dificuldade em definir a extensão do
“enunciado completo” (não há definição em Apolônio). Escólios da Tékhne: o que
exprime um pensamento completo (διάνοιαν αὐτοτελῆ δηλοῦσαν). Stephanos: onde se
coloca um ponto final, entonação final, tipicamente terminativa, assinala que o
enunciador considera o enunciado autossuficiente. Apolônio (3.18), não há enunciado
completo sem um verbo (exceto em vocativos): “deontologia da informação”:
curiosidade (informacional) mínima. Um nominativo ou um verbo transitivo requerem
um complemento (tem uma “ligação”), exigindo informações: quem? o quê?. Mínimo
porque dispensa outras perguntas informacionais (quando, onde). Leva em
consideração, portanto, dois extralinguísticos: πρᾶγμα / πράξις (a ação) e πρόσωπα (as
pessoas). Portanto, o sintaticista leva em consideração desde a ordem fonológica
intonacional até a completude semântica.

18. Congruência (καταλληλότης): conceito definidor da «correção», se materializa, em


geral, nas marcas morfológicas presentes nos grupos lexicais. Não há uma definição
precisa em Apolônio, a etimologia sugere: conveniência (κατ-) recíproca (-αλληλος). A
congruência não é propriamente (ou somente) uma concordância linguística, mas entre
conteúdos do pensamento (νοητά), logo, se trata de uma perspectiva “semântica”: a
frase bem construída é um agenciamento coerente desses conteúdos (perspectiva já
presente em Platão, Soph. 262) (cf. Blank, 1982, p. 30ss e Sluiter, 1990, cap. 2). Dois
princípios básicos: 1. o enunciado mínimo comporta um nome e um verbo (1.14); 2. a
frase transitiva um pronome oblíquo em face do nominativo (3.159ss). Princípios que
decorrem: 3. as marcas categoriais que remetem à um mesmo referente devem estar
coerentes entre elas (consistência com a realidade extralinguística /
correferencialidade), recebendo marcas flexionais (número, gênero, caso etc.)
correspondentes, “concordância” (3.14-16). A congruência é interna à frase
(exclusivamente linguística).

19. Coincidência (συνέμπτωσις): limites da congruência linguística. Discussão prévia se


termos usados na língua no masculino, por ex., fazendo referência a extralinguísticos
femininos correspondem incongruência referencial, embora haja congruência no
interior da linguagem (Sexto Empírico, Adv. gramm. 210; Apolônio, S. 3.8-10): para
Apolônio são construções congruentes (a congruência é interna à frase). Mas há casos
de variação das regras de congruência que, entretanto, não constituem casos de
incongruência: 1. palavras não flexionáveis que, ipso facto, são indiferentes à
concordância flexional (3.17-18); 2. palavras defectivas (não possuem todas as flexões,
ex. θεός, forma masc., também se refere a “deusa”). Trata-se do fenômeno da
“coincidência”, i.e. a anomalia de diferenciação formal que pode afetar
sistematicamente a língua (como os particípios que não têm pessoa) e formas isoladas,
que produzem casos de aparente incongruência (apenas formal, mas não semântica).
Não há incongruência quando a língua não dispõe de forma alternativa que possa ser
melhor (3.27-49).

20. Ordem e desordem do λόγος. Para Apolônio o enunciado ou a linguagem (λόγος) é


uma essência ordenada e atravessada por racionalidade. Ordem (τάξις) e regularidade
(ἀναλογία; ἀκολουθία) se revelam, entre outros fatos linguísticos, na existência de
paradigmas. Mas esse conceito teórico se confronta com o dado empírico da língua, seja
o uso linguístico corrente e coetâneo (συνήθεια; χρῆσις; τριβή; βίος), seja o testemunho
textual da tradição literária grega (ἡ παράδοσις τῶν ἑλλήνων). Confronto entre um
sistema homogêneo/regular e diversidade diacrônica (quase mil anos de tradição
literária), diatópica (os diferentes dialetos), transmissão dos textos (variantes nos
manuscritos) e de uso comum (variação social). Duas atitudes opostas: empirismo cético
(como o de Sexto Empírico, Contra os gramáticos – o que importa é o uso corrente da
linguagem, qualquer tentativa de sistematização racional, técnica deve ser desprezada)
e racionalismo (perspectiva de Apolônio, nuançada – o gramático não restringe a análise
somente à dimensão racional). Esse debate estava também em jogo na medicina antiga
(Galeno). Apolônio (1.60) advoga uma perspectiva mais complexa: leva em
consideração os princípios da regularidade linguística, o tradição do helenismo, i.e. o
uso dos autores; e o uso corrente da língua. Tanto para Sexto quanto para Apolônio, era
preciso saber distinguir o uso correto, grego, do uso incorreto, bárbaro (diferem,
entretanto, que critérios considerar). O valor da autoridade dos textos é também
relativizada, uma vez que eles próprios podem conter erros (seja incorreções, seja
variantes presentes na tradição manuscrita), daí a necessidade de uma norma
reguladora. Para além disso, Apolônio também admite a existência de diversidade e
variação linguística, especialmente no uso poético. Assim, há para Apolônio três níveis
de construções na língua: 1. construções regulares/congruentes; 2. Formas erradas,
vícios de linguagem, inaceitáveis, que não satisfazem aos princípios regulares; 3.
Variantes, formas alteradas, “figuras”, que são atestadas e aceitas no uso corrente.

21. Analogia e patologia da linguagem. Nenhuma língua é perfeitamente homogênea,


os gregos possuíam a consciência da diversidade linguística (sobretudo dialetal), podiam
compreender entre si os dialetos, mas sabiam da variação (regras de
“correspondência”entre formas). A “teoria da patologia linguística” decorre do termo
grego πάθος e do παθεῖν (passar por alterações, sofrer acidentes), empregado para se
referir a fenômenos de mudança linguística (sobretudo fonética) em Platão (Crat. 399b,
414c-d) e em Aristóteles (Poet. 1457b3, 1460b12) (cf. estudo de Wackernagel, 1876).
Enquanto em Aristóteles descreve-se um uso poético , nos gramáticos se leva em
consideração, sobretudo, variações dialetais. Perante tais formas «irracionais»,
Apolônio propõe seu estudo detalhado (como em: 2.74; 4.56-57, 74-77), o objetivo é
identificar os princípios racionais que explicam a mudança («regularizar a
irregularidade»), mostrando os argumentos: 1. não são fenômenos isolados, formam
um paradigma com outros fenômenos, o que se percebe pela analogia entre as
variações (4.77); 2. trocam uma regularidade (pertença a um paradigma) pelo
pertencimento a outro paradigma (4.76). No limite, cada uma dessas variações pode ser
compreendida com base nos fenômenos de adição, supressão, dissociação e
transposição (sobre isso, cf. Barwick, 1957; Desbordes, 1983; Ax, 1986b). Portanto, a
língua comporta regularidade em dois níveis: 1. no nível da congruência, a base do
enunciado; 2. no nível da patologia (ou variação): uma teoria da patologia linguística
explica as figuras. Esse (poderoso) instrumento permite explicar a língua, incluindo as
«faltas». As faltas linguísticas são explicadas seja por intermédio de uma teoria da
variação (como a teoria da afinidade de casos permite explicar o emprego de um caso
por outro, em certos contextos), seja pelo que se encontra no uso corrente ou literário
(o famoso nominativo no lugar de genitivo encontrado em Homero). Ainda que tais
figuras possam ser até mesmo mais recorrentes que a norma (o uso de artigos em
Homero, por exemplo, onde se esperaria sua ausência), ainda assim são construções
marginais na língua, em se considerando a expressão «natural» de base da língua. O uso
(literário ou corrente) está sempre em segundo lugar em relação à lógica (à «estrutura
subjacente e racional» da língua).

22. A «ordem natural». A noção de adição explica boa parte das construções sintáticas,
como o exemplo da sintaxe das preposições, entre outros exemplos (2.94 n. 202; 3.39
n. 86). Vocabulário técnico da adição (associar, adicionar: prevérbio προσ-,
προσδιδόναι, προστιθέναι, πρόθεσις, προσγίνεσθαι). Pressupõe-se a ideia de uma
ordem linear “natural” ou lógica (τάξις) que preside a diversas construções dos verbos,
preposições, advérbios etc. (alguns exemplos: 1.93; 2.70; 1.135-136), e das construções
interoracionais - a prótase condicional deve vir antes da apódose (2.77); a causa antes
da consequência (Conj. 239.12). Trata-se de uma ordem “teórica”, da sequência normal
(τὸ ἑξῆς) que pode sempre ser alterada pelos fenômenos de transposição (μέθαθεσις),
como o hipérbato (ὑπερβατόν; ὑπερβιβάζεσθαι; ὑπερβιβασμός – 1.11, 113; 2.70, 77,
99; 3.87; 4. 14; A. 125.19. A ordem natural parece obedecer a um tipo de princípio de
“naturalidade semiótica”. A ordem linear é um “artefato metalinguístico”: definir a
posição teórica, canônica, regular, de uma palavra em relação a outra é, para Apolônio,
uma forma de indicar as relações que possuem entre si. A ordem teórica “natural” não
é necessariamente a mais usual, é possível mesmo que, na prática, a língua se manifeste
de forma mais figurada que na sua forma canônica (2. n. 140). O discurso teórico de
Apolônio busca, portanto, identificar uma regularidade que, entretanto, pode se
manifestar apenas subjacente.

23. “Relações sintáticas”. Estudo de Donnet (1967) e Egger (1854) acusavam Apolônio
de ser um gramático que estava preso à “sintaxe da palavra”, i.e. não percebia a
diferença entre classes de palavras (uma categoria morfológica) e funções sintáticas
(sujeito, complemento, atributo etc.). Bécares Botas (1987) critica a perspectiva
anacrônica desses estudos (de recriminar a perspectiva apoloniana por não fazer o que
se esperava na sintaxe moderna) mas, ao mesmo tempo, cai na mesma armadilha, mas
pelo extremo oposto – sugere a noção de “função sintática” em Apolônio, traduzindo
diferentes termos pela palavra função, tais como θέσις (“posição, lugar”), ἔννοια
(noção) e δύναμις (“valor, força”). Peca pelo oposto, ao represntar Apolônio como um
“funcionalista” avant la lettre. Não há em Apolônio um termo preciso para a noção de
relação (teria Apolônio essa intuição linguística? Impossível de saber pelos seus textos).
O que se encontra em sua gramática é a noção de uma palavra se posiciona antes ou
após este ou aquele termo, e que “vai com”, “combina com”, “se aplica a”, sendo que
essas possibilidades dependem das caraterísticas formais e semânticas das classes de
palavras, que possuem, cada uma propriedades sintáticas específicas (Ver estudo de Van
Ophuijsen, 1993). Portanto, descrever uma construção significa, para Apolônio, mostrar
como os significantes categoriais se combinam entre si para formar conjuntos coerentes
e consistentes do ponto de vista de seu significado (a formação correta: καθίστασθαι;
συνίστασθαι; συσταστός vs. formação incorreta: ἀσύσταστος; ἀκατάσταστος). A boa
construção repousa sobre a congruência em dois níveis: na adequação da combinatória
de determinadas classes de palavras entre si e na adequação de seus acidentes.

24. Vocabulário das relações sintáticas. Verbos compostos (um termo proposicional, que
indica diferentes tipos de relações + um radical verbal que indica uma noção). Termos
preposicionais: παρα- (ao lado de), συν- (com, junto a), ἐπι- (sobre), προσ- (em direção
a ou mais que), ἐν- (dentro de), ἀνα- (em referência a, retornando) δια- ou μετα- (além
de) etc. Radicais verbais (indicam processos/noções): “ser/estar” (-εῖναι; -γίνεσθαι)
“existir” (-ὑπάρχειν), “colocar(-se)” (-τίθεσθαι; -τιθέναι; -κεῖσθαι; -ίστασθαι), “ir” (-
ιέναι; -ελθεῖν; -χορεῖν; -τρέχειν); “levar-se” (-φέρεσθαι); ligar-se, associar-se (-
αρτᾶσθαι; -άπτεσθαι; -δεῖν; -πλέκεσθαι). O uso de um extensivo vocabulário para fazer
menção a diferentes relações indica que Apolônio não se preocupou em distinguir
diferentes tipos (nem mesmo em propor uma terminologia mais específica).

25. Vocabulário das conexões. As uniões por intermédio de conjunções: vocabulário


preciso e herdado da lógica estoica, especializado, rigoroso e estável (verbo genérico:
συνδεῖν; substantivo: σύνδεσμος). Termos já atestados desde o século IV a.C. e
presente, com seus derivados nos estoicos. Vocabulário das conexões: entre sintagmas
(ἀποδίδοναι; ἀπόδοσις), ou «anáfora» (ἀναφέρειν; ἀναφορά; ἀναφορικός). Termos
mais flutuantes para se referir a conexões entre frases.

26. Relação de transitividade (a «passagem» da ação do termo nominativo para o seu


oblíquo na frase, intermediada pelo verbo: μεταβαίνειν, μετάβασις, μεταβιβάζειν). A
transitividade é a atividade ou ação (ἐνέργεια) que passa entre dois termos da diátese
(disposição), do caso direto ao caso oblíquo. Não há vocabulário preciso sobre as noções
de sujeito e predicado. Há passagens que permitem, contudo, sugerir que Apolônio
conhecesse tais noções (como 3.14), mas outras indicam que tinha essa noção (2.47).
De todo modo essa distinção não parecia ser relevante para o projeto sintático de
Apolônio.

27. Sintaxe dos enunciados complexos. Apolônio deve à tradição estoica tanto a atenção
sistemática que ele apresenta na análise de tais enunciados, tanto em questões de
ordem/congruência, quanto verdade, quanto também se limita às construções de
interesse da lógica, deixando escapar outras formas de construção complexa. Em suma,
o projeto da obra de Apolônio é uma “sintaxe das partes da oração”. O objetivo é
descrever a combinatória das formas lexicais a serviço de uma reunião de termos
significativos que mantém coerência semântica.
Questões filológicas e de tradução

28. Manuscritos e edições críticas. 17 manuscritos repertoriados em Uhlig (1910, p.


XXIII-LI), redigidos entre os séculos XI e XVI. 5 edições críticas: 1495 editio princeps
(Veneza, Aldo Manúcio); 1515 (Florença, Juntino); 1590 (Frankfurt, F. Sylburg com
tradução latina de F. Portus); 1817 (Berlim, I. Bekker); 1910 (Leipzig, G. Uhlig). Tradição
indireta: Prisciano, De constructione (Inst. gramm. 17-18). Dos manuscritos, os principais
são: A – mss. Paris. gr. 2548 (o mais antigo e mais completo). Em seguida: L – Laur. LX,
26 (séc. XIV); C – Paris. gr. 2549 (final do século XIII e início do XIV) e B – Paris. gr. 2547
(acabado em 1493, contestado por Maas 1911a, 1912. O manuscrito A é lacunar entre
25.6-91.6; os manuscritos LCB são lacunares em 191.4-246.3; L é lacunar ainda na
passagem que vai de 318.7 até o final (correspondente ao final de A); CB são lacunares
de 478.10 até o final (=A). Há consenso de que A, o mais completo, tenha sido a cópia
de um modelo helenístico , e recorrigido em A1 ou A2 (Maas, 1912; Uhlig, 1910). A edição
de Sylburg (1590) é herdeira da filologia italiana, com bom aparato crítico comparável
ao do século XIX e XX. As edições de Bekker e Uhlig possuem um recurso mais criterioso
à tradição manuscrita. As tradições modernas (Householder, 1981; Bécares Botas, 1987
e Lallot, 1997) se baseiam essencialmente em Uhlig, ainda que lhe façam adaptações.

29. O estilo do texto de Apolônio. Maas (1912, p. 14): der Krause Stil (“o estilo rude”),
diferente do que se esperaria de um texto técnico e, sobretudo, gramatical. Questiona-
se se não se trata de um estilo oral transposto para a escrita, apresentando as seguintes
características: 1. redundâncias que tornam o estilo confuso; 2. elipses exageradas que
tornam o texto opaco; 3. uso polissêmico ou pouco claro de termos técnicos; 4. confusão
entre nome e referência; 5. recurso a termos imprecisos, vagos, ambíguos; 6. redações
duplas, lapsos. Ao traduzir, atenção impõe-se para que, em busca de uma legibilidade
contemporânea, não se interprete demais o texto grego , “corrigindo” o autor.

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