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Coisas do Gênero é licenciada

sob uma Licença Creative Commons

Pela Família, por Deus, e pelo Fim da Corrupção: a utilização do


discurso religioso no debate político brasileiro

For the Family, for God, and for the End of Corruption: the use of religious speech in the Brazilian
political debate

Bianca Strücker*
Noli Bernardo Hahn**

Resumo: Pretende‐se, neste artigo, abordar aspectos teóricos e práticos que norteiam a
utilização da religião como ferramenta política no Brasil, além de refletir acerca do Estado Laico
frente a constantes referências a credos religiosos no âmbito legislativo e nas arenas públicas de
debate político. Como ponto de partida, o título faz referência a uma série de justificativas
utilizadas na votação do impeachment de Dilma Rousseff em 2016, sem adentrar no mérito da
legitimidade do processo, mas para verificar a relevância que a moral e discursos religiosos
ocupam no espaço público. Para abordar esta relevância do discurso moral e religioso, a
abordagem hermenêutica é a que se sobrepõe nesta pesquisa. Como resultado da investigação,
procura-se demonstrar que os representantes no cenário político têm reagido ao avanço da
institucionalidade democrática e dos direitos sociais, utilizando-se do discurso religioso para
justificar uma série de retrocessos em demandas que soam urgentes, no que tange ao direito de
família, da igualdade de gênero, dentre outros, em especial no contexto histórico brasileiro, em
que a corrupção aparece como grande desafio e desperta revolta dos cidadãos.

Palavras-chave: Religião. Política. Família. Gênero. Estado Laico.

Abstract: The purpose of this article is to discuss theoretical and practical aspects that guide the
use of religion as a political tool in Brazil, as well as to reflect on the Lay State against constant
references to religious creeds in the legislative sphere and in the public arenas of political debate.
As a starting point, the title refers to a series of justifications used in Dilma Rousseff's

* Acadêmica do Curso de Doutorado em Direito do Programa de Pós-Graduação em Direito da


Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI, pesquisadora bolsista da
CAPES, advogada. E-mail: biancastrucker@hotmail.com
** Pós-Doutorando na Faculdades EST, São Leopoldo/RS. Doutor em Ciências da Religião, Ciências
Sociais e Religião, pela UMESP. Graduado em Filosofia e Teologia. Possui formação também em
Direito. Professor Tempo Integral da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões
(URI), Campus de Santo Ângelo/RS. Integra o Corpo Docente do Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu – Mestrado e Doutorado em Direito. Lidera junto com o prof. Dr. André Leonardo Copetti Santos o
grupo de pesquisa “Novos Direitos em Sociedades Complexas”, registrado junto ao CNPq. Pesquisa
temas inter-relacionando Direito, Cultura e Religião. E-mail: nolihahn@santoangelo.uri.br
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impeachment vote in 2016, without going into the merits of the legitimacy of the process, but to
verify the relevance that moral and religious discourses occupy in public space. To address this
relevance of moral and religious discourse, the hermeneutical approach is the one that overlaps in
this research. As a result of the research, it tries to demonstrate that the representatives in the
political scene have reacted to the advance of the democratic institutionality and the social rights,
using the religious discourse to justify a series of setbacks in demands that sound urgent, as far as
the right family, gender equality, among others, especially in the Brazilian historical context, where
corruption appears as a great challenge and awakens the citizens' revolt.

Keywords: Religion. Politics. Family. Gender. Laic State.

Considerações iniciais

A pesquisa tem por escopo desenvolver uma discussão acerca da utilização do discurso
religioso nas arenas políticas, que vem sendo cada vez mais utilizadas, embora o Estado seja
formalmente laico. Para debater a relevância do discurso moral e religioso, a abordagem
hermenêutica é a que se sobrepõe nesta pesquisa. Como resultado da investigação, procura-se
demonstrar que os representantes no cenário político têm reagido ao avanço da institucionalidade
democrática e dos direitos sociais, utilizando-se do discurso religioso para justificar uma série de
retrocessos em demandas que soam urgentes, no que tange ao direito de família, da igualdade de
gênero, dentre outros, em especial no contexto histórico brasileiro, em que a corrupção aparece
como grande desafio e desperta revolta dos cidadãos.

Logo, num primeiro momento, discutem-se categorias como laicidade e secularização,


como forma de compreender a relação entre Estado e religião, e sua influência nas abordagens
modernas de discursos que interligam estas instituições. Neste sentido, demonstra-se significativo
traçar conceituações, pois o Brasil autoproclama-se laico, porém, cada vez mais notória é a
influência da religião no espaço público, em especial quando se discutem famílias, gênero, e
proteção dos direitos de minorias.

Como exemplo da utilização do discurso religioso nas arenas públicas, abordaram-se os


argumentos pronunciados durante a votação pelo impeachment da então presidente do Brasil,
Dilma Rousseff. Na ocasião, o discurso religioso, e de ordem moral, esteve presente em grande
parte das justificativas do voto. Reitera-se a desconexão deste argumento com o objetivo político-
partidário. Por fim, se buscou compreender como o discurso contra a corrupção está sendo
utilizado como forma de manipulação das massas, e se há relação com o discurso religioso.

Laicidade e secularização

Existe uma confusão entre os conceitos de laicidade e secularização. Muitos tratam


ambos como termos sinônimos, que supostamente fariam referência a um mesmo fenômeno

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histórico e social, porém, a laicidade e a secularização são processos sociais distintos. Para
melhor compreende-los, é necessário traçar uma definição mais detalhada acerca dos conceitos,
afim de compreender como o Brasil se comporta na relação entre Estado e religião.

A secularização é um conceito multifacetado, onde sob a ótica da história, o termo se


relaciona com o Direito Canônico, com a passagem de um religioso regular ao estado secular. O
conceito também se vinculava ao ato de expropriação das propriedades da Igreja Católica.
Conforme Marramao: “[...] os neologismos séculariser (1586) e sécularization (1567) estiveram
relacionados ao lento e tormentoso processo de afirmação de uma jurisdição secular - isto é laica,
estatal - sobre amplos setores da vida social [...]”1, que até então estavam sob domínio da Igreja.

A secularização, do ponto de vista histórico-social, está profundamente relacionada com


o avanço da modernidade. O direito, a arte, a cultura, a filosofia, a educação, dentre outros
campos da vida moderna, se baseiam em valores seculares, isto é, não religiosos. As bases
filosóficas da modernidade ocidental demonstram uma visão de mundo e do homem
dessacralizadora, profana, que contrasta com o universo permeado de forças mágicas, divinas
das sociedades primitivas. O desenvolvimento da ciência e do racionalismo faz com que as
concepções pautadas na religião acerca do homem e do mundo vão progressivamente recuando.

O declínio da religião marca a ascensão da secularização, de modo que a religião no


mundo moderno perde força e autoridade sobre a vida privada e cotidiana2. A secularização é um
processo “pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das
instituições e símbolos religiosos.”3 Segundo Berger, a secularização desponta historicamente
com a retirada das igrejas cristãs, no mundo ocidental, de áreas que até então estavam sob seu
controle ou influência, provocando a separação da Igreja e do Estado e a expropriação das terras
da Igreja, por exemplo.

A secularização marca um processo através do qual pensamento, práticas e instituições


religiosas perdem significação social, de modo que os valores que regem as sociedades
modernas deixam de observar preceitos religiosos, os quais já não são a base da organização
social. Este processo traz uma série de importantes consequências sociais, e uma das mais
relevantes é perda do monopólio religioso da Igreja Católica, que conduziu a liberdade religiosa e
a abertura ao pluralismo religioso.

A teoria da secularização vem sofrendo fortes críticas diante do surgimento de novos


movimentos religiosos, do revigoramento dos fundamentalismos religiosos e da crescente

1 MARRAMAO, Giacomo. Céu e terra: genealogia da secularização. 1. ed. São Paulo: Unesp, 1995.
2 PIERUCCI, Antônio Flávio. Reencantamento e dessecularização: a propósito do autoengano em
sociologia da religião. São Paulo: Novos Estudos Cebrap, 1997, p. 99-117.
3 BERGER, Peter L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo:
Paulinas, 1985.
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penetração do religioso no espaço público, os quais temem um retorno do sagrado, um


reencantamento do mundo, um processo de dessecularização global4. Porém, conforme Gellner:

[...] em termos gerais, a tese da secularização mantém-se, de fato, firme. Alguns


regimes políticos estão abertamente associados a ideologias secularistas e anti-
religiosas, enquanto outros estão oficialmente desvinculados da religião,
praticando o secularismo mais por defeito do que por afirmação ativa. No entanto,
poucos são os Estados formalmente ligados à religião e, se o estão, trata-se de
uma ligação frágil que é levada muito a sério. A observância e a prática religiosa
são reduzidas e os seus eventuais níveis elevados ficam a dever-se, com
freqüência, ao cariz eminentemente social e não transcendente dos conteúdos
religiosos. A doutrina formal é, por isso, ignorada, sendo a participação encarada
como uma celebração da comunidade e não como convicção. Os assuntos
religiosos raramente merecem destaque.5

Por outro lado, a expressão laicidade deriva do termo laico, leigo. Etimologicamente, laico
se origina do grego primitivo laós, que significa povo ou gente do povo. De laós deriva a palavra
grega laikós de onde surgiu o termo latino laicus. Os termos laico, leigo exprimem uma oposição
ao religioso, àquilo que é clerical6. A laicidade é, sobretudo, um fenômeno político e não um
problema religioso, isto é, ela deriva do Estado e não da religião. É o Estado que se afirma e, em
alguns casos, impõe a laicidade7.

A laicidade, pode ser compreendida como a exclusão ou ausência da religião da esfera


pública, denotando a neutralidade do Estado em matéria religiosa. Esta neutralidade pode se
apresentar como a exclusão da religião do Estado e da esfera pública, ou à imparcialidade do
Estado com respeito às religiões, o que resulta na necessidade do Estado em tratar com
igualdade todas as religiões. A laicidade não pode ser confundida com liberdade, pluralismo ou
tolerância religiosa, que são apenas consequências da laicidade.

Pode haver liberdade, pluralismo e tolerância religiosa sem que haja laicidade, como já
ocorreu no Brasil com a Constituição Imperial de 18248, que garantia o direito à liberdade religiosa
a outras religiões além do catolicismo, independentemente da união entre Estado e Igreja
Católica, que era a religião oficial do império. A laicização e a secularização não ocorrem de forma

4 RANQUETAT JR., Cesar. Laicidade, laicismo e secularização: definindo e esclarecendo conceitos.


Revista Sociais e Humanas, vol. 21. no. 1, p. 67-75, 2008. Disponível em:
<https://periodicos.ufsm.br/sociaisehumanas/article/view/773/532>. Acesso em: 23 set. 2017.
5 GELLNER, Ernest. Pós-modernismo, razão e religião. 1. ed. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.
6 CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares: secularização, laicidade e religião civil. 1. ed. Coimbra:
Almedina, 2006.
7 BRACHO, Carmen Vallarino. Laicidad y estado moderno: definiciones y processos. Cuestiones Politicas,
vol. 21. no. 34, pp. 157-173, 2005. Disponível em:
<http://produccioncientificaluz.org/index.php/cuestiones/article/view/14412/14389>. Acesso em: 10 out.
2017.
8 Importante frisar que a liberdade, pluralismo ou tolerância religiosa previstos na Constituição de 1824
eram limitadas. O artigo 5º assegurava que: “A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a
Religião do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular
em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo.” BRASIL. Constituição de 1824.
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idêntica e única nos mais diversos países. Em cada local, existe um conjunto de características
sociais e culturais que possibilitam formas variadas de laicidade e secularização.

Conforme Blancarte9, o termo laicidade foi utilizado pela primeira vez no século XIX, em
um voto que o conselho geral de Seine na França, que deliberou favoravelmente ao ensino laico,
não confessional e sem instrução religiosa. Para o autor, a laicidade pode ser definida: “Como un
régimen social de convivencia, cuyas instituciones políticas estan legitimadas principalmente por
la soberania popular, y no por elementos religiosos. Por eso, el Estado laico surge realmente
cuando el origem de esta soberania ya no es sagrada sino popular.”10

Tradicionalmente, não nos referimos ao Brasil como Estado laico, entretanto, desde
189011, o Brasil assim é classificado. Pode parecer inusitado que depois de mais de cem anos,
haja a necessidade de lembrar que o Brasil é laico, e de haver a necessidade de se pleitear por
um Estado que verdadeiramente promova debates no âmbito público, sem pautar-se em
determinados credos.

Um Estado laico confere garantias não apenas para as pessoas que não têm religião,
mas, principalmente, para aquelas que têm religião, que no Brasil, são cada vez mais
diversificadas. A diversidade religiosa por dogmas, crenças, tradições, entidades religiosas
(santos, santas, anjos, demônios, divindades, deuses e deusas) só é verdadeiramente respeitada
se o Estado for laico, pois neste caso não há uma imposição de Estado em uma área que diz
respeito ao íntimo de cada indivíduo.

O caráter laico do Estado tem estado presente nas discussões nacionais desde o início
do regime republicano no Brasil. Ainda que nem sempre de forma evidente, a relevância da
laicidade do Estado vem ganhando maior visibilidade, sobretudo nas últimas décadas, figurando,
por vezes, o centro do debate político. Exemplo são as discussões acerca do ensino religioso nas
escolas públicas12, a descriminalização do aborto, dentre outros direitos reprodutivos, questões de
gênero, temas que têm mobilizado e dividido a opinião pública e diferentes setores do Estado.

Durante toda a história posterior, a Igreja discutirá o pensamento laico, ora maçom, ora
liberal, ora positivista, sobre a manutenção pública da fé como símbolo de poder. A existência de

9 BLANCARTE, Roberto. Popular Religion, Catholicism and Socioreligious Dissent. International Sociology.
Latin America: Facing the Modernity Paradigm, vol. 15, no. 4, 2000.
10 BLANCARTE, 2000, p. 6.
11 O Brasil torna-se laico com o advento do Decreto nº 119-A, de 17 de janeiro de 1890, que além de
extinguir o padroado de todas as instituições, recursos e prerrogativas, instituindo um Estado laico,
garante a liberdade religiosa de culto, porém liberdade igualitária para todos os credos. BRASIL. Decreto
nº 119-A, de 17 de janeiro de 1890.
12 Em setembro de 2017 o Supremo Tribunal Federal julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)
4439, na qual a Procuradoria-Geral da República (PGR) questionava o modelo de ensino religioso nas
escolas da rede pública de ensino do país. Por maioria dos votos (6 x 5), os ministros entenderam que o
ensino religioso nas escolas públicas brasileiras pode ter natureza confessional, ou seja, vinculado às
diversas religiões.
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uma palavra, de um gesto, de uma imagem posta em lugar visível (como a figura do crucificado
nos tribunais) representava para ela a certeza de que ainda não tinha sido reduzida à
particularidade, exigida pelo discurso leigo e racionalista13.

A permanência dos crucifixos em diversas repartições públicas é um dos sinais de que


embora a laicidade está formalizada há anos no Brasil, ainda se enfrenta forte resistência por
parte de instituições religiosas e da população, em compreender que a retirada de elementos
religiosos do espaço público, não representa uma negação à fé, mas, a preservação neutra de um
espaço que é público e de todos. Embora se diga que a mera presença destes símbolos não
afronta a laicidade do Estado, por não impor a religião representada ao sujeito que a vê, estes
símbolos provam que o Estado ainda se vincula a determinadas religiões14.

Por outro lado, constituiria uma laicidade agressiva, se o Estado proibisse o culto, credo,
ou existência de religiões, mesmo que fora do âmbito estatal. Um exemplo foi o comunismo
conforme assevera o sociólogo espanhol Millán Arroyo:

El laicismo europeo fue un laicismo beligerante antireligioso, o cuando menos


anticlerical, y acabo desarollando uma vision del mundo alternativa, que entró em
competencia directa con la visión religiosa del mundo. Su máxima expresión
histórica fue la ideologia comunista, que impacto sobre todo a los territorios dónde
el comunismo se impuso como forma politica.15

Compreender as categorias laicidade e secularização tornam-se indispensáveis para


debater a utilização da religião no espaço público, bem como pontuar limitações do Estado
influenciar ou se impor frente à liberdade de credo. Igualmente, quando compreendemos a
laicidade como uma garantia, um princípio, que mantem o Estado de forma neutra frete a religião,
nos faz refletir acerca das invasões da religião no espaço público e coletivo.

Estado laico e a utilização do discurso religioso no debate político brasileiro

A Declaração Universal dos Direitos Humanos16 trata especificamente sobre o direito ao


credo. Um aspecto relevante do debate refere-se ao que é proclamado no artigo 18 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos (DUDH), no qual se preconiza o direito "à liberdade de

13 ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico. 1. ed. São Paulo: Kairós,
1979.
14 Em 2007, O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) indeferiu o pedido de retirar os símbolos religiosos das
dependências do Judiciário, concluindo o julgamento de quatro pedidos de providência (1344, 1345,
1346 e 1362) que questionavam a presença de crucifixos em dependências de órgãos do Judiciário.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2013.
15 ARROYO, Millán. La fuerza de la religión y la secularización en Europa. Inglesia Viva, no. 224, p. 99-106,
oct./dic. 2005, Disponível em: <http://eprints.ucm.es/5864/1/224-32-ANALISIS.pdf>. Acesso em: 24 set.
2017.
16 ONU, Organização das Nações Unidas. Universal Declaration of Human Rights. Versão original em
inglês. Promulgada em 10 dez. 1948. Disponível em <www.un.org/Overview/rights.html>. Aceso em: 14
set. 2017.
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pensamento, consciência e religião."17 Já o artigo 27 da DUDH estabelece o direito de todos de


"participar do progresso científico e de seus benefícios."18 Uma temática que é abordada em toda
a Declaração é o que se encontra expressamente no artigo 2º: “Toda pessoa tem capacidade para
gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer
espécie, seja raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem
nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.”19

O Estado laico mostra-se indispensável para evitar que articulações políticas impeçam a
plena liberdade de pensamento, de consciência e de religião, como proclamado no artigo 18 da
DUDH, que é fundamental à discussão acerca da liberdade religiosa, o qual profere:

Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este


direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de
manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela
observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular. 20

Cada indivíduo deve conservar a possibilidade de decisão em esferas íntimas, para que
possa livremente decidir sobre temas que guardem relação exclusivamente com sua esfera de
responsabilidade, em nada dizendo respeito a outrem. Contudo, esse mesmo direito à liberdade
de manifestação no espaço público, individual ou coletivamente, a ninguém autoriza impor sua
própria crença aos demais. Nenhuma crença, assim, pode definir e determinar a esfera pública,
nem pode tornar obrigatórios os seus valores e determinações para a vida em sociedade.

Nenhum grupo pode tornar seus dogmas parte integrante das leis civis, válidas para
todos — indispensável para um Estado laico. É que a imposição de um grupo representaria, em si,
restrição às demais crenças e pessoas, configurando a tirania de uns sobre outros, ainda que se
apresentasse argumentos para tentar justificar semelhante dominação, pois esse argumento já
viria imbuído das motivações, conceitos e valores daquele dado grupo, desconsiderando os
demais. Daí a relevância do caráter laico do Estado. Ao tratar do tema do Estado laico, Celso
Lafer identifica preliminarmente a existência de um "espírito laico" que caracteriza a modernidade:

[…] é um modo de pensar que confia o destino da esfera secular dos homens à
razão crítica e ao debate e não aos impulsos da fé e às asserções de verdades
reveladas. Isto não significa desconsiderar o valor e a relevância de uma fé
autêntica, mas atribui à livre consciência do indivíduo a adesão, ou não, a uma
religião.21

O século XX foi marcado por fatos que já alertavam sobre a necessidade de tolerância e
laicidade estatal, onde sua negação trouxe desastrosas consequências. As experiências

17 ONU, 1948.
18 ONU, 1948.
19 ONU, 1948.
20 ONU, 1948.
21 LAFER, Celso. Estado laico. In: O Estado de S. Paulo, 20 mai. 2007, p. 1-2.
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totalitárias vividas pela humanidade no século XX ostentaram o horror da ação fundada no


tratamento de seres humanos como descartáveis22. Um Estado laico representa o resultado de
uma luta política e social para a construção de uma democracia.

Entretanto, a influência das posições hegemônicas das instituições religiosas está


presente no cotidiano social, e desempenha um papel importante na construção do senso comum.
É preciso pensar sobre a dimensão cultural da ideia de laicidade, no Brasil, por exemplo, a Igreja
Católica é uma das instituições que contribuiu para a formação de uma sociedade hierárquica,
autoritária e intolerante com a liberdade de religião. Portanto, a tentativa de destruição da
diversidade religiosa é parte do processo de colonização. A intolerância ao que é diverso, do
ponto de vista religioso, é parte da nossa colonização, a qual se estendeu ao campo da cultura
como um todo, criando justamente um conflito entre as culturas dos diferentes povos e a cultura
hegemônica do colonizador, totalmente apoiada na ordem religiosa como campo de legitimação.

Os movimentos sociais representam forças políticas, mas frente ao fator econômico e ao


poder das igrejas cristãs, há evidentemente um desiquilíbrio de forças. Atualmente, diversos
segmentos da sociedade perceberam que a principal forma de acesso a conquista de direitos se
dá através da votação de leis, as quais podem afetar um grande número de pessoas, ainda que
estas não concordem com aquilo que a lei prevê. Assim, a disputa por espaço no meio legislativo
ou executivo, expôs a forte influência que a religião ainda ocupa dentro do Estado.

Cada vez mais, igrejas têm se unido com o objetivo de preencher cadeiras no legislativo,
pois se percebeu que embora o Estado seja laico, não há um efetivo controle desta laicidade,
sobretudo dentro do Congresso Nacional. Frequentemente, em meio a votações das mais
variadas matérias, deputados utilizam-se de argumentos religiosos, fazem orações, e expressam
claramente suas motivações religiosas. Assim, as religiões utilizam-se dos mecanismos legais
para garantir ideais que são exclusivamente de cunho sacro, no ambiente público.

Neste sentido, há uma disputa legislativa no que tange a família, visto que até hoje não
há legislação que contemple o casamento civil de homossexuais. Para garantir tal direito, o CNJ,
através da resolução 17523, determina que Cartórios de Registro Civil, dentre outras autoridades,
não possam negar-se a habilitar, e posteriormente casar pessoas do mesmo sexo. Note-se que o
mecanismo legal que regulamenta o casamento civil LGBTI não é Lei, mas uma resolução, de
maneira que ainda hoje o Brasil não tem lei que permita o casamento civil de pessoas do mesmo
sexo.

22 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. 3. reimpr. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
23 Publicada em maio de 2013, a resolução prevê que “Art. 1º É vedada às autoridades competentes a
recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento
entre pessoas de mesmo sexo.”
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Não obstante, em setembro de 2015, em Comissão Especial na Câmara dos Deputados


aprovou o Projeto de Lei 6583/2013, conhecido por Estatuto da Família. O projeto prevê, em seu
artigo segundo: “Para os fins desta Lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a
partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou
ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.”24

O Estatuto da Família representa imensurável retrocesso jurídico e social, ao grifar que


só se define como família aquela formada por um homem e uma mulher. Projetos de Lei como
este reforçam a presença do Estado dentro da casa do povo, tendo em vista que os argumentos
que buscam suprimir direitos LGBTIs, ou não os conferir, são pautados em discursos moralistas,
ou religiosos. Assim, o meio político tornou-se ambiente de propagação de ideais sacros.
Infelizmente, se espalha uma ideia de que garantir direitos básicos, que cidadãos heterossexuais
já têm, seria um privilégio, não configurando uma equiparação de direitos, na ânsia pela
igualdade25.

Andrielly F. R. Tiradentes elaborou tabela que relaciona parlamentares vinculados a


alguma religião, e palavras-chave utilizadas em seus votos, em pareceres elaborados acerca do
Projeto de Lei 1.151/1995, que visava regulamentar o casamento civil de pessoas do mesmo
sexo, os quais notadamente buscavam a manutenção da “família tradicional”, ou seja, famílias
monogâmicas e heterossexuais26.

24 BRASIL. Congresso Nacional. Projeto de Lei PL 6583/2013. Dispõe sobre o Estatuto da Família e dá
outras providências. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1159761>. Acesso em: 29
set. 2017. (grifo do autor)
25 Em reportagem do jornal O Globo, o Deputado Anderson Ferreira, autor do PL que cria o Estatuto da
Família, afirmou que “Não pode um único movimento querer prevalecer. Uma coisa é lutar por direitos
outra é buscar privilégios. O movimento LGBT não diferencia direito de privilégio. Não pode alterar o que
está na Constituição. Não pode uma minoria ditar regra para a maioria e nem querer privilégios.” O
GLOBO, 2015.
26 TIRADENTES, Andrielly Francine Rocha. Direito, religião e orientação sexual: os paradoxos ao
reconhecimento da família homoafetiva. [Dissertação de Mestrado]. Pouso Alegre: Faculdade de Direito
do Sul de Minas, 2016. Disponível em:
<https://www.fdsm.edu.br/mestrado/arquivos/dissertacoes/2016/18.pdf>. Acesso em: 13 jul. 2017.
Coisas do Gênero | São Leopoldo | v. 5 n. 1 | p. 56-72 | Jan.- Jun. 2019
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Pareceres analisados27 e vinculação religiosa

Vinculação
Deputado Palavras-chave
religiosa

Salvador Zimbaldi Renovação União homossexual. Desmoralização família.


(PSDB) Carismática Aberração.

Severino Cavalcanti Renovação União homossexual. Atentado lei divina. Afronta


(PPB) Carismática do Estado a Deus. Legalização do pecado.

União homossexual. Não procriação.


Nilson Gibson (PTB) -
Disseminação de doenças. Morte.

Osmânio Pereira Renovação União homossexual. Tradição cristã brasileira.


(PSDB) Carismática Violação.

Lídia Quinan Igreja Presbiteriana União homossexual. Abominação. Não


(PMDB) do Brasil permissibilidade bíblica.

União homossexual. Legalização costumes


Lael Varella (PFL) Igreja Católica depravados. Leis humanas atentatórias à lei
divina. Legalização do pecado.

União homossexual. Impossibilidade jurídica.


Philemon Rodrigues
- Literalidade Constituição. Alteração por emenda
(PTB)
constitucional.

Fonte: Andrielly Tiradentes.28

Repetidamente, o pano de fundo do discurso do parlamentar não destoa das doutrinas


cristãs. Em manifestação contra o casamento igualitário, nota-se com clareza o fundamento de tal
posicionamento, o que torna evidente a utilização do espaço público para manutenção e
preservação de questões de ordem religiosa. A análise dos discursos dos parlamentares
analisados chama atenção pelos argumentos de cunho religioso. Dos sete pareceres expostos,
seis negaram a possibilidade de famílias homossexuais, devido a noções religiosas.

Embora o objetivo central do projeto aborde a regulamentação de questões patrimoniais


advindas de um relacionamento, a leitura que os deputados deram à questão exacerbou essa
esfera. Estava-se diante da regulamentação de uma união que não compactuava com os
requisitos esculpidos na ideia tradicional de família, o que poderia ser o início da quebra de um
paradigma que há tanto perdurou através dos discursos dominantes. Trazendo questões de
ordem religiosa para o debate político, há uma contribuição para a manutenção da “ordem natural”

27 Os pareceres analisados ao decorrer do texto foram retirados do Diário da Câmara de Deputados, e


foram proferidos em seções de grande expediente, conforme referência indicada em cada menção.
CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1997.
28 TIRADENTES, 2016, p. 81-82.
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das relações, e consequentemente, para a aceitação de um único tipo de núcleo familiar, aquele
formado através da união entre homem e mulher29.

Acerca do Projeto de Lei 6583/2013, Tiradentes afere que se percebe a intenção em se


definir o conceito de família para efeitos de lei. Porém, as propostas oscilam entre os dois
extremos: de um lado, a restrição conceitual que acaba por propiciar exclusão; e de outro, a
pretensa flexibilidade que pode levar a níveis satisfatórios de inclusão. Da discussão política
emergem variados posicionamentos, dentre os quais se destacam os de cunho religioso atrelados
à concepção tradicional de família. No âmbito social, nota-se o constante afastamento da
concepção de família tradicional, isto é, a formada por homem, mulher e filhos30.

Para comprovar a força política da bancada religiosa, demonstra-se a vinculação religiosa


dos membros da Comissão Especial que aprovou o projeto.

Membros da Comissão Especial (Projeto 6583/2013)

Antônio Bulhões (PRB) Igreja Universal do Reino de Deus (bispo). Membro da Frente
Igreja Metodista (membro). Parlamentar Evangélica.

Áureo Ribeiro (SD) Membro da Frente Parlamentar Evangélica.

Bacelar (PTN) -

Igreja Assembleia de Deus (membro). Membro da Frente


Carlos Andrade (PHS)
Parlamentar Evangélica.

Conceição Sampaio (PP) -

Renovação Carismática Católica (membro). Membro da Frente


Diego Garcia (PHS)
Parlamentar Mista Católica Apostólica Romana.

Assembleia de Deus (pastor). Membro da Frente Parlamentar


João Campos (PRB)
Evangélica

Lúcio Mosquini (PMDB) -

Marcelo Aguiar (DEM) Cantor gospel. Assembleia de Deus (membro)

Assembleia de Deus (membro). Membro da Frente Parlamentar


Marcos Rogério (DEM)
Evangélica

Missionário José Olímpio Igreja Mundial do Poder de Deus (membro). Membro da Frente
(DEM) Parlamentar Evangélica.

Assembleia de Deus (membro). Membro da Frente Parlamentar


Pastor Eurico (PHS)
Evangélica.

Pastor Marco Feliciano Assembleia de Deus Catedral do Avivamento (presidente e


(PSC) pastor). Membro da Frente Parlamentar Evangélica.

29 TIRADENTES, 2016.
30 TIRADENTES, 2016.
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Membro da Frente Parlamentar Mista Católica Apostólica


Rôney Nemer (PP)
Romana.

Assembleia de Deus (pastor). Membro da Frente Parlamentar


Silas Câmara (PRB)
Evangélica.

Sóstenes Cavalcante Assembleia de Deus (sacerdote). Membro da Frente Parlamentar


(DEM) Evangélica.

Assembleia de Deus (membro). Membro da Frente Parlamentar


Anderson Ferreira (PR)
Evangélica.

Érika Kokay (PT) -

Renovação Carismática Católica (membro). Membro da Frente


Eros Biondini (PROS)
Parlamentar Mista Católica Apostólica Romana.

Jô Moraes (PC do B) -

Maria do Rosário (PT) -

Assembleia de Deus (Ministro do Evangelho). Membro da Frente


Paulo Freire (PR)
Parlamentar Evangélica.

Evandro Gussi (PV) Membro da Frente Parlamentar Evangélica.

Renovação Carismática Católica (membro). Membro da Frente


Flavinho (PSB)
Parlamentar Mista Católica Apostólica Romana.

Assembleia de Deus (membro). Membro da Frente Parlamentar


Geovania de Sá (PSDB)
Evangélica.

Rogério Marinho (PSDB) -

Glauber Braga (PSOL) -

Fonte: Andrielly Tiradentes.31

Observe-se que dos 27 parlamentares participantes da Comissão Especial, 19 possuem


ligação com entidades religiosas, de modo que se intensifica uma visão reducionista, onde a
proteção estatal é devida ao casal heterossexual por motivos de ordem moral-religiosa, seja a
possibilidade natural de reprodução, o sexo, a heteronormatividade, dentre outros. Há um desejo
de manutenção da entidade familiar fechada, imutável no tempo, independente das novas
concepções e desejos conclamados pela sociedade.

Reforçar a estrutura familiar do tipo forte e autoritária, significa não só a normatização de


um modelo tradicional, mas também subsistem os papéis sociais dos gêneros, dotados de certos
padrões morais, patriarcais e ressignificantes da concepção de ser homem – ser mulher, das
tradições cristãs. Entretanto, não se pode admitir que em decorrência de argumentos de estreita
ligação a credos, direitos possam ser afastados das pessoas. Não se pode admitir que a

31 TIRADENTES, 2016, p. 104-107.


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orientação sexual seja condicionante de direitos civis, principalmente quanto essa negativa parte
de pressupostos subjetivos, como são os da esfera religiosa. O rompimento efetivo entre Estado e
religião mostra-se como uma medida benéfica e pertinente; principalmente, quando estão em jogo
direitos de minorias.

Acerca do fenômeno da corrupção, entendida como a venda por integrantes oficiais do


governo de propriedade do governo visando ganho pessoal, vem adquirindo cada vez mais
centralidade no debate especializado, nos noticiários brasileiros e também no senso comum.
Trinta anos atrás, a corrupção era apenas mencionada na literatura como um dado. Ressalta-se
que “a maioria dos economistas tendia a considerar que a corrupção é uma ‘graxa’ que lubrifica a
economia, uma acidentalidade pouco importante na ordem das coisas e para alguns benéfica para
a eficiência econômica.”32

Evidentemente, o combate à corrupção é fundamental para o fortalecimento de uma


democracia, bem como para o amadurecimento das instituições de controle, o que pode significar
uma politização da população, educando-a para a forma de ver a política. Entretanto, ao mesmo
tempo em que o Brasil avançou no combate à corrupção, percebe-se um crescimento da
utilização deste discurso como forma de alcançar massas.

Um exemplo desta utilização ocorreu durante a votação pelo impeachment da então


presidente do Brasil, Dilma Rousseff. Na ocasião, o discurso religioso e de ordem moral estiveram
presentes em grande parte das justificativas do voto. Reitera-se a desconexão deste argumento
com o objetivo político-partidário. Conforme matéria do site Congresso em Foco33, os deputados
citaram “deus” 59 vezes durante a votação. Por sua vez, a palavra “corrupção” foi citada 65 vezes,
ainda que diversos parlamentares que utilizaram do discurso do combate à corrupção sejam
investigados ou condenados por crimes contra o erário. Houve, ainda, 10 referências a
“evangélicos”, e 136 vezes a palavra família, as quais ocorreram durante homenagens a parentes
de deputados, ou fazendo menção a chamada família tradicional – branca, cristã, heterossexual,
classista.

Para o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), composto pela


Igreja Evangélica de Confissão Luterana, Episcopal Anglicana do Brasil, Metodista
e Católica, que havia se manifestado contra o impeachment, assim como a
Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ligada à Igreja Católica, as
menções não surpreenderam. A presidenta da entidade, a pastora Romi Bencke,

32 ABRAMO, Claudio Weber. Percepções pantanosas: a dificuldade de medir a corrupção. Novos estud. –
CEBRAP. [online]. No. 73, p .33-37, 2005. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002005000300003>. Acesso em: 20
out. 2018.
33 CONGRESSO EM FOCO. Deputados citaram “Deus” 59 vezes na votação do impeachment. Agencia
Brasil. 19 abr. 2016. Disponível em: <https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/deputados-
citaram-%E2%80%9Cdeus%E2%80%9D-59-vezes-na-votacao-do-impeachment/>. Acesso em: 15 set.
2018.
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disse que as citações distorcem o sentido das religiões. ‘Não concordamos com
essa relação complexa e complicada entre religião e política representativa’,
afirmou. Segundo Romi, uma das preocupações dos cristãos é com o uso da
religião para justificar posicionamento em questões controversas. A fé,
esclareceu, pode contribuir, com uma cultura de paz, com a promoção do
diálogo e com o fortalecimento das diversidades. Porém, advertiu, ‘Tem uma
faceta de perpetuar violência’, quando descontextualizada. ‘Infelizmente,
vimos que os parlamentares que se pronunciaram em nome de Deus, ao longo do
mandato, se manifestam contra mulheres, defendem a agenda do agronegócio e
assim por diante. Nos preocupa bastante o fato de Deus ser invocado na defesa
de pautas conservadoras – é ruim adjetivar, mas é a primeira palavra que me
ocorre – e de serem colocadas citações bíblicas descontextualizadas. Não
aceitamos isso e eu acho que é urgente refletir sobre o papel da religião na
sociedade.’34

Conforme Leonardo Boff, o comportamento dos parlamentares foi “um espetáculo indigno
de pessoas decentes, de quem se esperaria um mínimo de seriedade.” Onde, “a grande maioria
se concentrou na corrupção e nos efeitos negativos da crise. Apostrofaram hipocritamente o
governo de corrupto, quando sabemos que um grande número de deputados está indiciado em
crimes de corrupção.”35

Importa notar que, em conjunto, emergiu novamente a velha campanha que reforçou o
golpe militar de 1964: as marchas da religião, da família, de Deus e contra a corrupção. Dezenas
de parlamentares da bancada evangélica têm claramente feito discursos de tom religioso,
invocando o nome de Deus, o respeito a uma chamada família tradicional, e para alcançar as
massas, o combate à corrupção.

[...] as teologias políticas progressistas têm partido da crítica da privatização


moderna da religião para desenvolver novas concepções de salvação e redenção
que podem servir de fundamento às lutas pela transformação social, pela justiça e
pela libertação. Para estas teologias a conversão a Deus implica uma conversão a
um próximo necessitado.36

O debate religioso pode e deve ser utilizado a fim de promover emancipação e educação
para os direitos humanos. Porém, o discurso religioso que majoritariamente tem ocupado o
cenário político é excludente, sexista, classista, racista, além de não respeitar os princípios
democráticos do Estado, como a laicidade. Ademais, percebe-se uma incoerência com os próprios
textos eclesiásticos, que diferentemente, defendem a defesa do pobre, da viúva, do estrangeiro e
do necessitado37.

34 CONGRESSO EM FOCO, 2016, s.p.


35 BOFF, Leonardo. O golpe da volta da religião, da família e de Deus contra a corrupção. In: O tempo. 22.
abr. 2016. Disponível em: <https://www.otempo.com.br/opini%C3%A3o/leonardo-boff/o-golpe-da-volta-
da-religi%C3%A3o-da-fam%C3%ADlia-e-de-deus-contra-a-corrup%C3%A7%C3%A3o-1.1283889>.
Acesso em: 16 set. 2018.
36 SANTOS, Boaventura de Souza. Se Deus fosse ativista dos direitos humanos. 2. Ed. São Paulo: 2014.
37 Referência a Zacarias 7:10, dentre outros textos Bíblicos que expressam esta corrente de pensamento.
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Considerações finais

O objetivo do trabalho foi investigar a utilização do discurso religioso no debate político


brasileiro. Percebeu-se que, ainda que o Estado seja formalmente laico, há um crescimento no
uso da religião e da fé como forma de alcançar massas. Como resultado da investigação,
demonstrou-se que os representantes no cenário político têm reagido ao avanço da
institucionalidade democrática e dos direitos sociais, utilizando-se do discurso religioso para
justificar uma série de retrocessos em demandas que soam urgentes, como o fortalecimento de
garantias destinadas a minorias. Neste sentido, abordou-se a intervenção religiosa na definição de
uma possível conceituação de família, tomando por suposto que a religião busca apresentar um
conceito fechado acerca de o que é família, não se abrindo para a pluralidade tão presente nos
dias atuais.

Num primeiro momento, foram analisadas categorias como laicidade e secularização,


como forma de compreender a relação entre Estado e religião, bem como sua influência nas
abordagens modernas de discursos que interligam estas instituições. Como exemplo da utilização
do discurso religioso nas arenas públicas, a votação pelo impeachment da então presidente do
Brasil, Dilma Rousseff, foi um marco, no que tange aos argumentos apresentados por uma
significativa parcela dos parlamentares. Por fim, se buscou compreender como o discurso contra a
corrupção está sendo utilizado como forma de manipulação das massas, e sua relação com o
discurso religioso.

Conclui-se que os discursos religiosos nas arenas políticas sequer têm sido utilizados em
caráter confessional, com a busca de evangelização e conversão de novos fiéis – embora o
Estado seja laico, formalmente. Tais discursos vêm sendo utilizados com propósito de dominação
de massas, ocultando seu verdadeiro escopo, que são interesses de poder, comerciais,
agropecuaristas, impedimento ao progresso de pautas pelos direitos de minorias etc.

O discurso religioso nas arenas políticas brasileiras se serve da baixa carga cultural e
educacional da população, na busca de criar falas que aproximem da crença das massas – cristã,
monogâmica, heterossexual, para ocultar todos os demais critérios de apoio a legislações que não
tem ligação com tais populações – em geral pobres, marginalizadas.

Já destacava Sérgio Buarque de Holanda que “a democracia no Brasil foi sempre um


lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la,
onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no
Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas.” 38 Ao contrário de caminharmos
em direção à superação destes desafios, o que se vislumbra é que a ordem democrática instituída

38 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. 28. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras,
2007.
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pela Constituição Federal de 1988 acirrou disputas político-ideológicas entre aqueles adeptos de
práticas progressistas e conservadoras, herdeiros das tradicionais elites que dominam o espaço
público, se aproveitando da democracia representativa nacional para alcançar o poder com
discursos eloquentes que comovem massas, e se perpetuar no poder.

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