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Willy-Paredes-Soares - Religião e Retórica em de Natura Deorum de Cícero

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Ijniversidade Federal da Paraíba

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas

Programa de Pós-Graduação em Letras

Willy Paredes Soares

RELIGIÃO E RETÓNTC.I EM DE NATURA DEORUM,DE CÍCERO

João Pessoa

Março de 2014
Universidade Federal da Paraíba
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas
Programa de Pós-Graduação em Letras

RELIGIÃO E RETÓRICA EM DE NATURA DEORUM, DE CÍCERO

Willy Paredes Soares

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras da Universidade
Federal da Paraíba, como requisito final
para a obtenção do título de Doutor em
Letras, na área de Literatura e Cultura,
orientada pelo Prof. Dr. Milton Marques
Junior.

João Pessoa
Março de 2014
Catalogação na publicação
Seção de Catalogação e Classificação

S676r Soares , Willy Paredes.


Religião e retórica em de Natura Deorum de Cícero /
Willy Paredes Soares. - João Pessoa, 2014.
212 f.

Orientação: Milton Marques Junior.


Tese (Doutorado) - UFPB/CCHLA.

1. Literatura e Cultura. 2. Elementos retóricos -


Cícero. 3. Diálogo filosófico - De Natura Deorum. 4.
Religião romana arcaica. 5. Ciência retórica -
antiguidade clássica. I. Marques Junior, Milton. II.
Título.

UFPB/BC
Willy Paredes Soares

RELIGIÃO E RETORICA EM DE NATUR,A DEORT]M,DE CÍCERO

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. ANDERSON DARC FERREIRA (UFPB - externo ao programa)

Prof. Dr. HERMES ORÍCENE,S DUARTE VIEIRA (UFPB - externo ao programa)

Prof. Dr. JOSE AMARANTE SANTOS SOBRINHO (UFBA - externo à instituição)

Prof. Dr. JOSE RODRIGUES SEABRA FII,HO ([JSP - externo à instituição)

,)utfra
Prof. Dr. MILTON MARQ OR (UFPB - orientador)

Prof. Dru. ALCIONE LUCENA DE ALBERTIM (UFPB - suplente)

ruVINO ALVES MAIA JUNIOR (UFPB - suplente)


À memória de meu pai Paulo Eriberto Magalhães Soares.
Agradecimentos

Ao mestre e amigo, Prof. Dr. Milton Marques Júnior, pela partilha de conhecimento e pela
dedicação;

Aos mestres e amigos, Hermes, Marco e Anderson, pelas valorosas orientações;

À minha mãe Vilma Paredes Soares e ao meu filho Gabriel Santos Paredes, fontes
inesgotáveis de inspiração.
Resumo

A presente tese busca analisar coerentemente tanto os princípios da religião romana


vigente no séc. I a.C, quanto os elementos retóricos usados pelo orador romano Cícero
na elaboração dos três liwos, guô constituem o seu diálogo filosófico De Natura
Deorum. O orador toma por base, ao longo de sua obra, conhecimentos obtidos dos
principais filósofos greco-latinos no que tange à estética retórico-filosófica, sobretudo
na fundamentação de sua teoria acerca das divindades que, mesmo na Antiguidade
Clássica, gerava tamanha discrepânciâ de pensamento. A tese consta de três capítulos,
aos quais se somam introdução e conclusão; no primeiro, apresentar-se-á um panorama
da religião romana desde os primórdios da fundação mítica de Roma até a segunda
metade do séc. I a.C, período em que a obra está inserida, possibilitando assim uma
ampla compreensão de ritos e de locais sagrados nos sete primeiros séculos da fundação
de Roma; no segundo capítulo, apresentar-se-ão conceitos sobre a ciência retórica na
Antiguidade Clássica, seus principais componentes, proposição e organização
discursiva, atributos do orador, a estruturação retórica do primeiro livro do De Natura
Deorum, observando-se os ideais da escola epicurista; no terceiro capítulo, apresentar-
se-ão as partes do sistema retórico utilizados pelo orador nos livros dois e três do De
Natura Deorum, observando os ideais das escolas filosóficas estoica e acadêmica,
respectivamente.

Palavras-chave: Retórica antiga, religião romana, deuses, mitologia, filosofia antiga.


Sumário

Introdução..................................................................................................................................7

I. A Religião Romana Arcaica...............................................................................................11

1. A Religião no Período Monárquico......................................................................................12


2. A Religião no Período Republicano......................................................................................36
3. O Culto dos Deuses Romanos: Sacra Priuata et Sacra Publica..........................................50
4. Locais Sagrados: Loca Sacra................................................................................................55

II. Estruturação Retórica do De Natura Deorum.................................................................61

1. Proposição e Organização do Diálogo em De Natura Deorum............................................62


2. Retórica e Dialética...............................................................................................................68
3. Discurso Retórico: Atributos do Orador...............................................................................85
3.1. Retórica: Partes Constituintes do Discurso........................................................................91
4. Estruturação Retórica do De Natura Deorum, Livro I..........................................................93
4.1. Exordium............................................................................................................................93
4.2. Narratio............................................................................................................................103
4.3. Preparação à confutatio de Cota.......................................................................................115
4.4. Confutatio de Cota...........................................................................................................117

III. Estruturação Retórica do De Natura Deorum, Livros II e III....................................123

1. Estruturação Retórica do De Natura Deorum, Livro II......................................................124


1.1. Exordium..........................................................................................................................125
1.2. Narratio............................................................................................................................127
2. Estruturação Retórica do De Natura Deorum, Livro III.....................................................146
2.1. Apresentação do discurso de Cota...................................................................................147
2.2. Confutatio de Cota...........................................................................................................154

Conclusão...............................................................................................................................178
Apêndice
Apresentação da Tradução e Notas para um Estudo Filológico do De Natura Deorum........181

Anexo
Imagens...................................................................................................................................198

Referências Bibliográficas....................................................................................................207
Introdução

O presente trabalho visa a um estudo pertinente dos três Livros que compõem o
discurso filosófico De Natura Deorum, “Sobre a Natureza dos Deuses”, do orador e filósofo
latino Cícero. A análise se baseará fundamentalmente em conceitos acerca da Religião
romana, nos fundamentos sobre Retórica e Dialética, vigentes no séc. I a.C., período em que o
discurso foi escrito, e em conceitos de escritores, de filósofos e de poetas que tenham ou
vivido no mesmo período, ou buscado explicações sobre os fenômenos religiosos vigentes na
Antiguidade Clássica, sobretudo no séc. I a.C.
São fenômenos religiosos em que se baseia quase a totalidade das relações sociais que
vigoravam na época de Cícero, o último século da República romana, em que muitas das
relações religiosas praticadas eram criticadas pelos principais filósofos romanos que, por sua
vez, buscavam explicações racionais para a realização de cultos, de rituais, de preces, etc., que
eram destinadas aos deuses.
Visando uma abordagem plausível sobre o conceito de deuses desenvolvido pelo
orador e filósofo romano Cícero, em sua obra De Natura Deorum, primeiramente se
estabelecerá uma cronologia, desde os primórdios da civilização romana e sua Monarquia até
os anos finais da República romana, período em que se insere o texto analisado.
Com referência às origens da civilização romana e seus cultos religiosos, deve-se
compreender que fontes escritas são escassas e precisa-se recorrer a autores que comentaram
mais tardiamente os cultos religiosos romanos, como Tito Lívio, Sêneca, Aulo Gélio,
Horácio, Santo Agostinho, entre outros. Sendo assim, para uma melhor compreensão das
origens religiosas de Roma, é necessário fazer uso do legado que chegou até os nossos dias:
fontes literárias, religiosas, históricas, filosóficas, com o intuito de sintetizar conceitos acerca
da evolução de pensamento do homem romano que, desde os primórdios, está inserido em
tamanha atmosfera religiosa, seja esta surgida da tentativa de explicações de fenômenos
naturais, como se observa em suas origens, seja pela absorção de costumes estrangeiros
provenientes das mais diversas conquistas territoriais e, até mesmo, de uma ampla
colonização literária grega, durante período republicano, em que os autores latinos tomavam
os gregos como modelo de excelência de composição.
Desde as origens, observa-se um cenário propício ao desenvolvimento religioso em
Roma, pois a própria fundação da cidade está calcada nesses elementos. São cultos em honra
aos deuses, ritos religiosos para a construção de templos, observação da natureza para buscar
7
se entender quais os melhores dias para a execução dos ritos apropriados e até mesmo a
observação do voo dos pássaros, na tentativa de se compreender o que os deuses tentavam
expressar. São essas observações que garantem, por exemplo, a Rômulo a fundação da cidade
de Roma que surge de constatações religiosas que se estendem por toda a tradição romana.
No Período Monárquico, observa-se que os sacerdotes procuravam prender os ânimos
das pessoas à religião, em uma espécie de domínio de pensamento que garantia aos sacerdotes
a manutenção de interesses sociais e de preservação ideológica, assim os cultos aos deuses
eram realizados cotidianamente, mesmo sem uma devida compreensão por parte dos cidadãos
romanos da Monarquia. Ainda nesse período, após mais de 200 anos da fundação de Roma, é
observado o início da representação dos deuses por meio de simulacros, fato que garantiu à
religião romana arcaica traços mais concretos, pois os deuses passavam de forças naturais a
reproduções rústicas, geralmente na forma de estátuas, que aproximavam os seres divinos da
humanidade.
Além da representação por meio de simulacros também se verificam, na Monarquia,
traços religiosos que podem ser chamados de humanização dos deuses, pois muitos deles
passaram a designar atividades humanas, geralmente agrícolas, como Arator, Redarator,
Messor, etc., fato que também garantiu a proximidade e a expansão dos conceitos religiosos
entre os romanos.
A aproximação conceitual entre deuses e homens, principalmente no âmbito das
atividades cotidianas, era tamanha que, nos anos finais do Período Monárquico, houve a
multiplicação do número de deuses e uma confusão generalizada a respeito de suas ações,
surgiu mais de um Júpiter, fazendo com que este deus ganhasse lugar de destaque em relação
a Jano.
Mesmo com a mudança de regime político, o número de deuses continuaram a crescer
também na República, devido à expansão das relações comerciais internas e externas, os
deuses passaram a ser associados a elementos materiais, como as moedas, não estavam mais
vinculados apenas a ações ou a fenômenos naturais. Com o contato por motivos comerciais
com outros povos, os romanos passaram a adotar os ritos e cultos dos povos estrangeiros,
assim os cultos dos romanos passaram por modificações significativas, afastando-se um
pouco dos que eram praticados na Monarquia. É também na República que os deuses passam
a ser representados por estátuas nos templos, fato que se preservou pelos séculos vindouros e
influenciou bastante as doutrinas religiosas que surgiriam posteriormente.

8
Com a fusão dos elementos religiosos estrangeiros aos ritos romanos, houve
transformações significativas na Religião, como o abandono de cultos, que eram praticados na
Monarquia e no início da República, pelo simples fato da não compreensão por parte dos
romanos, bem como a ausência de sacerdotes capacitados para a sua realização.
Associados a conceitos cronológicos da Religião romana, é necessária também certa
compreensão dos lugares onde os cultos eram realizados, pois durante a Monarquia os cultos
eram realizados pelo Estado, sacra publica, após a expansão através das conquistas de outros
territórios e pela influência religiosa dos povos conquistados os cultos também passaram a ser
praticados por particulares, sacra priuata.
Também se faz necessário, para se analisar uma obra que versa De Natura Deorum,
“Sobre a Natureza dos Deuses”, o entendimento do vocabulário empregado na nomeação dos
ritos, dos sacerdotes, dos locais sagrados, como religio, pontifex, fas, nefas, aedis, lares,
penus, sacrum, sanctum, entre outros, que serão devidamente explicados no capítulo I.
Após o estabelecimento de concepções religiosas na Roma, da Monarquia aos anos
finais da República, analisar-se-á o método retórico utilizado pelo autor Cícero, em De Natura
Deorum. A análise retórica não se apresentará desvinculada das concepções religiosas nem de
teorias filosóficas ainda vigentes na época em que o autor escreve a obra, sobretudo os
conceitos desenvolvidos pelas escolas epicurista e estoica, na época de Cícero, cujas teorias
são recorrentes no diálogo.
Sabendo disso, precisam-se estabelecer os fundamentos da Retórica e da Dialética, que
já se encontram bastante distantes do que se entende atualmente, para uma melhor
compreensão da estruturação discursiva adotada por Cícero, em De Natura Deorum, pois se
percebe que não há por parte do autor interesse de se apresentar uma resolução para as
dúvidas correntes acerca do conceito de divindade.
Também analisar-se-á se Cícero usa dos fundamentos aristotélicos sobre Retórica e
Dialética, sobretudo os vigentes na Retórica e nos Tópicos, a fim de garantir ao seu discurso
filosófico a apresentação das mais variadas teorias sobre os deuses romanos, principalmente
os conceitos das três escolas filosóficas mais difundidas entre os romanos, epicurista, estoica e
acadêmica, que estão presentes sucessivamente nos três Livros que compõem a obra.
Assim, os capítulos II e III versarão sobre conceitos de Retórica e Dialética que
nortearão a análise retórica do diálogo filosófico De Natura Deorum, de Cícero. Apresentarão
a seguinte ordem de abordagem temática, sucessivamente: no capítulo II, proposição e
organização do diálogo em De Natura Deorum; conceituação de Retórica e Dialética;

9
apresentação do discurso retórico e os principais atributos do orador; partes constituintes do
discurso retórico; estruturação retórica do De Natura Deorum, Livro I; no capítulo III,
estruturação retórica do De Natura Deorum, Livros II e III.
Vale salientar que o diálogo é composto pelo discurso de três personagens que
representam escolas filosóficas distintas. São eles: o epicurista Veleio, que profere seu
discurso no início do Livro I; o acadêmico Cota, que profere seu discurso no final do Livro I e
ao longo do Livro III; o estoico Balbo, que profere seu discurso ao longo do Livro II.
A partir de tal estruturação Retórica dos três Livros que compõem o De Natura
Deorum, buscar-se-á se o autor Cícero, considerado o modelo de orador romano e retórico por
excelência, consegue a aplicação de teorias retóricas tão apreciadas por ele em livros que
versam sobre o assunto, os quais compõem a maior parte de sua produção intelectual, e se em
um Livro, que versa sobre as principais correntes filosóficas romanas, ele é capaz de ser
eloquente e persuasivo a ponto de garantir ao seu partidário Cota uma exímia argumentação
que se sobreponha às dos demais personagens, Veleio e Balbo.
Além de se verificar a aplicação de teorias retóricas no De Natura Deorum, também se
buscará a comprovação de que Cícero não faz uso de uma estrutura retórica adequada e não
atinge o objetivo anunciado no início do Livro I, ou seja, o de levar a obscuridade sobre todos
os conceitos que envolvem os deuses. Diante de tal demonstração, buscar-se-á a comprovação
da tese de que o discurso retórico, sendo utilizado meramente como elemento de estruturação
discursiva, não é capaz de atingir o seu objetivo, ou seja, o convencimento por meio da
argumentação.
No intuito de não incorrer em equívocos provenientes de traduções em línguas
modernas do De Natura Deorum, realizou-se a tradução de todos os trechos presentes no
trabalho; ainda está incluída em Apêndice a apresentação da tradução integral do texto e as
notas para um possível estudo filológico do De Natura Deorum. As variantes dos textos
utilizados aparecem devidamente indicadas nas notas ao longo do trabalho.

10
I. A Religião Romana Arcaica

No presente capítulo, apresentam-se conceitos relevantes para o entendimento da


Religião em Roma, desde sua fundação até os últimos anos da sua República. Conceitos
relativos aos cultos, ritos, sacerdotes, deuses cultuados, locais em que era praticada a Religião
e os principais termos do vocabulário religioso.
A estruturação dos conceitos religiosos em ordem cronológica fornece noções
importantes para o entendimento da Religião romana e as transformações sofridas por ela, o
que garante melhor compreensão do diálogo De Natura Deorum, dá explicações que auxiliam
no entendimento sobre as divindades romanas e elucidam a atmosfera em que está inserido
Cícero ao escrever o De Natura Deorum, que muitas vezes apresenta concepções acerca das
divindades distorcidos propositalmente pelo autor, mesmo que tal distorção seja proferida
pelos personagens que fazem parte do diálogo.
Os conceitos sobre a Religião romana serão apresentados na seguinte ordem: a
Religião no Período Monárquico; a Religião no Período Republicano; o culto dos deuses
romanos: Sacra Priuata et Sacra Publica; e os locais sagrados, Loca Sacra.

11
1. A Religião no Período Monárquico

Sabe-se que a Religião sofrera várias transformações até que chegasse a se constituir
como é mais comumente conhecida, através dos escritos histórico-literários, sobretudo dos
autores que estão inseridos no período áureo da literatura latina.
Nossa investigação acerca das transformações religiosas leva em consideração a sua
ordem cronológica de acontecimentos, pois isso garante uma melhor compreensão dos
fenômenos religiosos vigentes na época em que Cícero escreve seu diálogo De Natura
Deorum, possibilita uma explicitação antecipada de tais fenômenos religiosos e evita
explicações de termos isolados que são necessários para a análise do De Natura Deorum.
Assim, será demonstrada, primeiramente, a religião que era praticada no Período
Monárquico romano,753 a.C. - 509 a.C., seus principais deuses, cultos, sacerdotes, seu
envolvimento com as questões políticas, através dos escritos de comentadores que estão
inseridos em períodos posteriores. Em seguida, será abordada a religião no Período
Republicano, estabelecendo-se as devidas comparações com o Período Monárquico a fim de
perceber quais as principais alterações que influenciaram as concepções religiosas do homem
romano inserido no séc. I a.C.
A tentativa de reconstituição cronológica da trajetória religiosa romana é certamente
árdua, principalmente no que se refere às práticas religiosas concernentes a períodos
anteriores ao século I a.C., considerado como época áurea da literatura latina, que deixou
grande legado literário, devido à conservação de grande número de obras de diversos autores.
No entanto, deve ser considerada a afirmação de Jean-Pierre Vernant sobre a religião
grega que, neste aspecto, coaduna-se à religião arcaica romana:

Da mesma maneira, um grego do século V talvez conheça menos coisas


sobre as origens de Hermes que um especialista contemporâneo; isso não o
impede de crer no deus Hermes, de sentir a presença do deus em
determinadas circunstâncias. (Mito e Sociedade na Grécia Antiga, p. 90)

Há entre as origens romanas e os primórdios de sua organização social, que data de


meados do séc. VIII a.C., e o seu relato escrito considerado pela crítica como o mais antigo,
ou seja, a tradução da Odisseia por Liuius Andronicus, aproximadamente em 240 a.C., cerca
de cinco séculos que podem ser chamados de obscuros, no que se refere a documentos
escritos que poderiam garantir o esclarecimento de muitos aspectos referentes aos ritos, aos
12
cultos religiosos e principalmente ao momento em que a religião grega, através de sua forte
tradição mitológica, passou a influenciar o pensamento da arcaica civilização romana.
Historicamente, podem-se fazer comparações entre essas duas civilizações, no âmbito
da ausência de material, de manuscritos capazes de elucidar principalmente a transição de
comportamentos religiosos e a influência recebida de outros povos primitivos.
Na Grécia, esse período se verifica entre o séc. XII a.C., em que havia o uso da escrita
denominada Linear B, e o séc. VIII a.C., com a reutilização da escrita nos poemas homéricos,
ou seja, são aproximadamente quatro séculos sem registro escrito. Em Roma, o período - em
que há poucos ou quase uma total ausência de manuscritos - estende-se de 753 a.C., data que
marca a sua fundação mítica, e aproximadamente 240 a.C., marco inicial da literatura latina
com a Odissia, de Liuius Andronicus.
A própria origem de Roma é abordada com certa ausência de especificidades e
combina elementos míticos, históricos e principalmente religiosos. Rômulo e Remo teriam
recebido autorização de seu avô Numitor para fundar uma cidade às margens do Lácio, onde
eles teriam sido criados por uma loba ou Fauna e por Acca Larentia. Os reis de Alba Longa
eram soberanos que tinham o privilégio de interrogar os auspícios para conhecer as vontades
dos deuses. Conforme indicam os versos de Virgílio:

ipse Quirinali lituo paruaque sedebat


succinctus trabea laeuaque ancile gerebat
Picus (Eneida, VII, v.187-9)

O próprio Pico mostrava-se com o escudo1 na mão esquerda e,


Vestido com a curta trabea2, estava sentado com o lituus de Quirino.

Nesses relatos, é observado o espírito religioso do povo que habitava Roma antes
mesmo de sua fundação, Pico, o rei mítico do Lácio, que governava os aborígenes, primeira
população de Roma, é caracterizado por Virgílio usando instrumentos que se preservariam e
fariam parte da própria tradição religiosa romana, principalmente o lituus, “bastão”, usado nos
rituais religiosos que se fundamentariam sobretudo na Roma arcaica, e o ancile, “escudo”,
que tem, desde suas primeiras referências históricas, atributos divinos e religiosos,

1
O escudo (ancile), segundo Tito Lívio, teria caído do céu, caelestiaque arma, quae ancilia appellantur (Ab
Vrbe Condita, I, 20), armas celestes, que são chamadas de escudos.
2
Espécie de toga de cor púrpura usada pelos reis.
13
caelestiaque arma, “armas celestes”, não só por terem características divinas mas também por
terem, segundo Tito Lívio, caído do céu e que garantiriam aos romanos arcaicos uma proteção
divina.
Lendariamente Rômulo e Remo, autorizados por Numitor, observaram os voos dos
pássaros para saber onde a cidade poderia ser fundada de acordo com o desejo divino.
Rômulo teria subido o monte Palatino; Remo, o Monte Aventino, de onde teriam observado
os auspícios divinos para a fundação da urbs3. Conforme afirma Ovídio:

“Nil opus est” dixit “certamine” Romulus “ullo;


magna fides auium est: experiamur aues.”
res placet: alter init nemorosi saxa Palati;
alter Auentinum mane cacumen init.
sex Remus, hic uolucres bis sex uidet ordine; pacto
statur, et arbitrium Romulus urbis habet. (Fasti, IV, 813-818)

“Não é necessária” – disse Rômulo – “alguma disputa;


Grande é a fides das aves. Recorramos às aves.”
É agradável o fato: um vai ao rochedo do nemoroso Palatino;
Outro vai pela manhã ao cume do Aventino.
Remo vê seis (pássaros), Rômulo vê duas vezes seis que voam em fila;
Mantém-se (o fato) pelo pacto, e Rômulo tem a sentença da cidade.

Tentando evitar desavenças, certamine ullo, com seu irmão, Rômulo decide consultar
a vontade divina sobre a fundação da cidade através dos auspícios, magna fides auium est,
demonstrando não só a pietas para com os deuses mas também o espírito religioso em que
estava envolvido o primitivo povo da Roma arcaica. Como os auspícios divinos foram
favoráveis a Rômulo, já que os pássaros, que voaram sobre o seu monte, apresentaram um
número duas vezes maior, uolucres bis sex, do que os que voaram sobre o monte de seu
irmão, sex Remus uidet, Rômulo deveria fundar a cidade, arbitrium Romulus urbis habet,
segundo a vontade dos deuses.
Divergindo da tradição literária latina, porém embasado nas palavras de Jean-Pierre
Vernant de que um especialista contemporâneo possa conhecer mais sobre a Antiguidade do
que uma pessoa em que na época tenha vivido, Andrea Carandini afirma que Rômulo teria
subido primeiramente ao monte Aventino, somente em um segundo momento teria subido ao
Palatino; Remo, porém, apenas teria subido ao Monte Murco, de onde teriam observado os

3
Verificar a imagem I. Todas as imagens, que constam no Anexo, foram retiradas de CARANDINI, Andrea.
Roma: Il Primo Giorno, 2007, exceto as devidamente especificadas.

14
auspícios divinos para a fundação da urbs4. Os ritos preliminares ocorreram em localidades
rurais próximas ao monte Palatino.
Neste momento teria sido criado o que poderíamos chamar de primeiro templo
romano5, delimitado por nove pedras que demarcavam seus limites, conforme afirma Andrea
Carandini:

Para interrogar a vontade dos deuses e receber as bênçãos que implicavam


mudanças irreversíveis de status, precisava criar um recinto de cerca de dez
metros de cada lado, marcados por nove colunas inscritas (templum), das
quais aquela a nordeste – em que se lia a inscrição bene iuuante aue –
indicava o voo dos pássaros mais favoráveis.6

Apesar de divergir de Ovídio quanto ao monte subido por Remo para verificação dos
auspícios favoráveis, pode-se observar nas palavras de Andrea Carandini a importância da
religião para o homem primitivo romano, principalmente no que se refere à construção do
templo que demonstra as primeiras manifestações e consolidação da religião romana.
No primeiro templo primitivo, o áugure, sacerdote que interpretava o voo dos
pássaros, situava-se, no sentido oeste-leste, no meio desse templo, onde estava o monte
Albano. O áugure movimentava no ar o seu lituus7, no espaço delimitado pelas colunas e caso
os pássaros voassem no sentido noroeste, acreditava-se que os deuses haviam concedido que
determinado fato fosse realizado.
Os estudos arqueológicos de Andrea Carandini demonstram que a Roma primitiva,
entre os anos de 900 a.C. e 650 a.C., situa-se basicamente em uma região quadrada8, que tem
por limite a Curiae Veteres, a Porta Romanula, o Sacelum Martis et Opis e a Ara Consi,
região denominada pelo arqueólogo de “Roma Quadrata”. Entre os anos de 750 a.C. e 650
a.C., ao lado da rústica habitação9 de Rômulo estava situado o sacellum, “pequeno santuário”,
de Marte e de Ops. As duas construções foram instaladas onde anteriormente, entre os anos de
900 a.C. e 750 a.C., havia uma única e mais ampla construção10 que seria o correspondente

4
Imagem II.
5
Idem.
6
“Per interrogare la volontà degli dei e ottenerne benedizioni che comportavano mutamenti irreversibili de status
bisognava creare un recinto di una decina di metri per lato, segnato da nove cippi iscritti (templum), di cui quello
a nord-est – su cui si leggeva la scritta bene iuuante aue – indicava il volo degli uccelli più favorevole.” (Roma -
Il primo giorno, p. 39)
7
Imagens III e IV.
8
Imagem V.
9
Imagem VI.
10
Idem.
15
arqueológico do tugurium, “habitação, choupana”, de Acca Larentia e de Faustulus, pastor
que encontrou e criou Rômulo e Remo. O segundo templo romano construído ficava no lado
ocidental do monte Palatino: “Depois de ter sacrificado, o rei vai provavelmente ao centro do
lado ocidental do Palatino e ali cria um novo templum para observar os pássaros.”11
Primeiramente, Rômulo definiu os limites entre os montes propícios para a observação
dos augúrios, os quais foram observados em primeiro momento na sua subida ao monte
Aventino, segundo Adrea Carandini, para ser escolhido rei ou fundador da cidade. Somente
em um segundo momento em que a “Roma Quadrata” começava a ser habitada e consagrada
aos deuses com a construção de templos, o Palatino teve o seu templo, igualando-se aos
demais montes da urbs que estava em processo de fundação.
Para cumprir o ritual de fundação da urbs, Rômulo se dirige ao noroeste do monte
Palatino, onde estava localizado o santuário de Acca Larentia, em posição inversa na “Roma
Quadrata” de Alba Longa, situada no ângulo oposto12. Andrea Carandini afirma que no rito
de fundação da cidade, Rômulo se vestia à maneira dos habitantes do Gábio, cinctus Gabinus:
“Aqui o rei, trajando uma toga à maneira dos Gábios, que lhe cobria a cabeça (cinctus
Gabinus), dá início ao rito etrusco de sulcus primigenius13, apenas aprendido com os
sacerdotes etruscos convocados.”14
No rito aprendido com os etruscos, Rômulo realiza o sulcus primigenius ao redor dos
limites da urbs15 que estava sendo fundada, usava um julgum, “arado”, de bronze puxado por
uma vaca e por um touro16.
Os estudos arqueológicos vêm auxiliar na tentativa de resgate dos costumes religiosos
dos romanos primitivos, porém a insuficiência de documentos escritos, a obscuridade de
informações, a distância temporal entre os cultos mais antigos e o autor, que primeiramente os
tenha comentado, e o sigilo de algumas práticas religiosas dificultam uma descrição objetiva
da religião arcaica romana.
Tito Lívio (50 a.C. - 17 d.C) comentara a dificuldade em explicitar muitos fatos
históricos e também religiosos, já que vários documentos e comentários de pontífices, que

11
“Dopo aver sacrificato, Il re si reca verosimilmente al centro del lato occidentale del Palatino e qui crea un
secondo templum per osservare gli uccelli.” (Roma - Il Primo Giorno, p.44)
12
Imagem VII.
13
Primeiro ato de arar a terra.
14
“Qui Il re, indossata una toga alla maniera di Gabii che gli copriva Il capo (cinctus Gabinus), dà inizio al rito
etrusco de sulcus primigenius, appena appreso dai sacerdoti etruschi convocati.” (Roma - Il Primo Giorno,
p.49)
15
Imagem V.
16
Imagem VIII.
16
poderiam conduzir a muitos esclarecimentos, haviam sido destruídos antes mesmo que autor
tivesse podido consultá-los quando escrevia, entre 27 e 25 a.C., sua obra Ab Vrbe Condita
sobre a história romana, como se observa em:

Hi ex interregno cum extemplo magistratum inissent, nulla de re prius quam


de religionibus senatum consuluere. in primis foedera ac leges - erant autem
eae duodecim tabulae et quaedam regiae leges - conquiri, quae comparerent,
iusserunt; alia ex eis edita etiam in uolgus: quae autem ad sacra pertinebant a
pontificibus maxime ut religione obstrictos haberent multitudinis animos
suppressa. (Ab Vrbe Condita, VI, 9-10)

Como estes17 tivessem começado a magistratura logo depois do interregno18,


(não) consultaram o Senado sobre nada antes que (consultassem) sobre as
(questões) religiosas. Primeiramente foram procurados cuidadosamente
tratados de paz e leis – porém havia aquelas Doze Tábuas e algumas leis
régias – que ordenaram ser recolhidas e que estabeleceram outras ordens
daquelas em direção ao povo: as que, porém, referiam-se às (coisas)
sagradas foram suprimidas sobretudo pelos pontífices a fim de que os
ânimos das pessoas estivessem fortemente presos à religião19.

A perda de manuscritos ocasionou inúmeras lacunas para o estudo da religião arcaica


romana, porém, como assinala Tito Lívio, muitas informações foram propositalmente
ocultadas com o objetivo de manipular a população, impelindo no povo certo receio em
relação aos cultos religiosos.
Pode-se afirmar certamente que a palavra religião, religio, para os romanos possui
caráter bastante específico, pois determina obrigações que devem ser cumpridas em relação
aos deuses. Impelir esse sentimento na população garante aos governantes um meio poderoso
de conseguir manipulá-la, já que os ritos religiosos não tinham sido estabelecidos por um
profeta ou por um poeta, como havia acontecido com os gregos, mas pelos chefes do estado
romano.
As palavras de Tito Lívio são de suma importância para o entendimento da
manipulação informativa, elas tornam-se mais claras em nulla de re prius quam de
religionibus senatum consuluere, “(não) consultaram o Senado sobre nada antes que
(consultassem) sobre as (questões) religiosas”, que mostram dois momentos distintos acerca
do saber religioso, pois indica que aqueles que não faziam parte da magistratura ou que não
ocupavam altos cargos religiosos não tinham acesso ao que realmente se referem os cultos.

17
O pronome hi, estes, faz referência a Públio Cornélio Cipião e Marco Fúrio Camilo.
18
Interregnum é o espaço decorrente entre dois reinados.
19
Todas as traduções apresentadas no presente trabalho são de nossa autoria, salvo as especificadas.
17
Públio Cornélio Cipião e Marco Fúrio Camilo parecem, segundo o texto, que não
tinham acesso a informações importantes sobre o funcionamento da religião, por isso buscam
no início de sua magistratura, magistratum inissent, verificar primeiramente as coisas
religiosas, consuluere de religionibus, e apenas posteriormente consultar o estado, senatum
consuluere, sobre as decisões que deveriam ser tomadas por eles.
A busca de ambos os magistrados conduz à descoberta de leis régias e das Doze
Tábuas que, no texto, não fica claro se já tinham sido organizadas, erant autem eae duodecim
tabulae et quaedam regiae leges, “porém havia aquelas Doze Tábuas e algumas leis régias”.
Essas leis foram ordenadas, porém o verbo usado por Tito Lívio pode conduzir a outras
possibilidades de entedimento, conquiro pode significar “procurar com empenho ou
cuidadosamente, ajuntar, reunir”, tanto conduz à ideia de que as leis já tinham sido ordenadas
em um único documento quanto à ideia de que foram retiradas de vários documentos e
ordenadas pelos magistrados.
A maior relevância para os estudos sobre a religião se apresenta em quae autem ad
sacra pertinebant a pontificibus maxime ut religione obstrictos haberent multitudinis animos
suppressa, “as que, porém, referiam-se às (coisas) sagradas foram suprimidas sobretudo pelos
pontífices a fim de que os ânimos das pessoas estivessem fortemente presos à religião”, pois
as verdadeiras referências não eram permitidas ao povo de um modo geral para que esse povo
sempre fosse conduzido por uma religião que era de interesse basicamente das classes
dominantes e que provavelmente detinham o verdadeiro significado dos cultos e ritos
religiosos.
A construção usada por Tito Lívio apresenta caráter bem particular e representativo
que garante ao seu texto um valor crítico das práticas dominantes. O uso do particípio do
verbo supprimo, em suppressa, poderia ter um valor bem mais intrínseco, já que pode
também significar “afundar, enterrar fazendo pressão, fazer desaparecer”, o que demonstra a
possibilidade de que muitos documentos ligados às origens da religião romana foram
propositalmente apagados, suprimidos ou mesmo enterrados sob forte pressão principalmente
daquelas classes que detinham o poder e queria preservá-lo com uso de conhecimentos
religiosos que fossem de seu interesse direto.
Mesmo com a manipulação de informações relevantes sobre a religião, seus cultos
permaneceram e muitas vezes se confundiam com a vida cotidiana e com a própria história da
civilização romana, como observa Georges Dumézil:

18
A religião é sempre, em qualquer lugar, coisa atual e ativa; seus ritos são
diária ou anualmente celebrados, seus conceitos e seus deuses intervêm na
rotina dos tempos calmos como no ardor dos tempos de crise.20

A religião modera os ânimos durante todo tempo, nas guerras, nas atividades diárias,
nos dias escolhidos para a colheita; havia sempre a consulta a um especialista em religião, um
sacerdote, que definia qual seria a melhor escolha em caso de uma decisão difícil em qualquer
esfera da sociedade. As informações que não eram divulgadas ao povo em geral conduziram a
religião a manter sua própria lógica interna e, de certo modo, também sua autonomia. Apesar
de fazer parte da vida cotidiana de todas as camadas da população, tal preservação não expôs
a religião a muitos eventos profanos.
Por um lado, a manutenção de informações sigilosas pelos sacerdotes e poucos
membros do estado preservaram em sua essência o verdadeiro sentido dos cultos religiosos;
por outro, tal manutenção não forneceu possibilidades ao povo de ter conhecimento sobre os
ritos que tanto influenciavam o seu cotidiano, já que, segundo os romanos, os deuses
intervinham tanto nos tempos de paz quanto nos tempos de guerra ou de crise de qualquer
natureza.
Os elementos religiosos eram tão inerentes à vida romana que a medida de tempo, que
era utilizada e chegava a todos sem distinção de classes ou função ocupada, foi inicialmente
baseada em aspectos religiosos, pois os pontífices confeccionaram o calendário tendo em vista
a observação da natureza. Essa concepção temporal atingia a todos, pois muita superstição se
vinculava também à medida de tempo, conforme aponta Dionísio de Halicarnassus:

(Antiquitates Romanae, VIII, 55)

Em relação à lua nova que os Helenos (chamam) de primeiro dia do mês, os


Romanos chamam de Kalendas.

A relação de observação das fases da lua para a definição e estabelecimento das partes
que compõem o mês, ou mais propriamente o mês lunar, tem direta ligação com o
conhecimento da natureza e do movimento dos corpos celestes, consequentemente da religião

20
“La religion est toujours, en tout lieu, chose actuelle et active; ses rites sont journellement ou annuellement
célébrés, ses concepts et ses dieux interviennent dans la routine des temps calmes comme dans la fièvre des
temps de crise.” (La Religon Romaine Archaïque, p.31).

19
e dos cultos religiosos. A lua era observada pelo pontífice menor que determinava a sua
primeira fase, que os helenos chamavam de , os romanos de , em
latim Kalendae, em seguida o rei determinava os resultados da observação do pontífice, o
povo era convocado e se estabelecia em quais dias se dariam as nonae21 e os idus. Conforme
afirma T. Mommsen:

Primitivamente o pontífice menor era encarregado de observar a primeira


fase da lua; o rei proclamava o resultado de suas observações; ele convocava
o povo sobre o Capitólio diante da Curia Calabra, oferecia um sacrifício a
Juno Lucina e anunciava a chegada do primeiro quarto para o quinto ou o
sétimo dia, de acordo com a dimensão do crescimento da lua22.

Novamente se verifica a determinação de todas as camadas sociais pela religião, o


pontífice como observador e intérprete dos fenômenos naturais e divinos, o rei como
representante maior do estado e que devia determinar o que havia sido verificado pelo
representante religioso. Por sua vez as determinações religiosas eram seguidas por todos os
membros da sociedade: sacerdotes, reis, camponeses, soldados, artesãos. Diante de tais
observações, não se poderia esquecer o culto aos deuses, que possibilitavam o entendimento
da natureza ou mesmo enviavam suas mensagens através do membro responsável por
estabelecer o elo entre o mundo terreno e o divino: o pontífice. Sobre isso Tito Lívio afirma:

Idem nefastos dies fastosque fecit quia aliquando nihil cum populo agi utile
futurum erat. (Ab Vrbe Condita, I, 19, 7)

O mesmo criou os dias nefastos e fastos porque algumas vezes era útil nada
vir a ser tratado com o povo.

Essas práticas fazem parte da cultura romana desde os mais remotos tempos em que a
religião, o estado, a história e os mitos das lendas romanas estavam tão intimamente ligados
que dificilmente se conseguia delimitar quais eram suas áreas de atuação especificamente.

21
O termo nonaeera empregado, pois das nonae para os idus havia um espaço de nove dias. Sendo assim, nos
meses em que as nonae determinavam o 7º dia de cada mês, os idus marcavam o 15º dia. Nos meses de abril,
junho, setembro e novembro, as nonae determinavam o 5º dia, e os idus o 13º dia.
22
“Primitivement le pontifex minor était chargé d‟observer la première phase de la lune; le Rex proclamait le
résultat de ses observations; il convoquait le peuple sur le Capitole devant la Curia Calabra, offrait un sacrifice à
Juno Lucina et annonçait l‟arrivée du premier quartier pour le cinquième ou le septième jour, suivant la
dimension du croissant de la lune.” (Les Cultes Chez les Romains, p. 338)

20
Desde a Roma arcaica, segundo Tito Lívio, fatos históricos se confundiram com os mitos e as
fábulas criadas pelos poetas, transmitidas ao longo dos tempos, conforme se observa na lenda
de Numa Pompílio, sucessor de Rômulo, como rei de Roma. Numa Pompílio que primeiro
estabelecera os dias denominados de fas, ou seja, “aqueles em que há a expressão da ordem
divina ou aqueles em que algo é permitido pelos deuses”, dias em que, segundo o direito, o
pretor tomava suas decisões judiciais, usando de expressões como do, dico, addico,
“concedo”, “digo”, “consinto”; por sua vez, os dias denominados de nefas eram “aqueles em
que algo era contrário às leis divinas, às leis da religião”, dias em que havia o culto dos deuses
infernais e que eram impróprios para os afazeres terrestres.
Pode-se verificar a influência desses dias criados por Numa Pompílio, nos quais não se
devia tratar de qualquer que fosse o assunto, passar ao longo da história. Conforme atestam
textos de escritores latinos mais recentes, Ovídio (43 - 18 a.C.) e Varrão (116 - 27 a.C.) fazem
referência a eles em seus escritos:

Dies fasti, per quos praetoribus omnia uerba sine piaculo licet fari[...]
Contrarii horum uocantur dies nefasti, per quos dies nefas fari praetorem
“do”, “dico”, “addico”; itaque non potest agi. (De Lingua Latina, VI, 4)

Dias fastos durante os quais é permitido aos pretores profetizar todas as


palavras sem impiedade[...] o contrário destes são chamados os dias nefastos
durante os quais (não é permitido) o pretor profetizar “concedo”, “digo”,
“consinto”; assim não pode se dizer.

Ille nefastus erit, per quem tria uerba silentur:


Fastus erit, per quem licebit agi. (Fasti, I, 46-7)

Aquele será nefasto durante o qual as três palavras se silenciam:


Será fasto durante o qual é permitido ser dito.

Vale salientar que, mesmo com o distanciamento das épocas em que viveram o
personagem histórico referenciado por Tito Lívio, neste caso Numa Pompílio, que seria o
criador dos dias nefas e fas, e os autores Varrão e Ovídio, os conceitos atribuídos a esses dias
permaneceram devido a suas atribuições religiosas. Tito Lívio se refere à invenção desses
dias, afirmando que eles foram criados ainda na Roma arcaica. Uma explicação plausível para
isso é apresentada. O autor afirma que após o reinado de Numa, ele tratou de estabelecer
tratados de paz com os povos vizinhos e para que eles não fossem violados, idem nefastos
dies fastosque fecit, objetivando impelir o temor dos deuses naqueles povos bárbaros e rudes.

21
Apesar do distanciamento temporal de mais de cinco séculos que separa os autores
Tito Lívio e Ovídio dos atos religiosos da Roma arcaica, Georges Dumézil afirma que a perda
de manuscrito do início da civilização romana e a ausência de fontes informativas seguras,
que datem dos primórdios da civilização romana, não são fatores determinantes que
conduzam a não compreensão da religião durante a Monarquia romana. Para Dumézil:

Em nenhum momento da história, nós lemos que um destes sacerdotes tenha


sido encarregado de fazer, a partir de tal data, outra coisa senão o que fazia
desde o início[...] Hoje nós sabemos quanto é recente nossa tradição sobre
Roma. Sim, mas que importa, se, no último século da República, os homens
da arte repetiam ainda fielmente as palavras e os gestos dos tempos reais?23

Se os sacerdotes desde os primórdios estiveram encarregados das mesmas funções que


sempre exerceram desde o início da religião romana, não se mostra problemático o uso de
textos de autores do séc. I a.C. ou mesmo de épocas mais recentes, como os escritos de Santo
Agostinho, acerca das características dos ritos religiosos romanos. Mesmo que seja recente
nossa tradição sobre a religião romana, se as palavras e gestos usados durante os cultos se
conservaram, esses autores da nossa recente tradição devem ser considerados autoridades,
pois são as únicas fontes conservadas das épocas mais remotas.
Na Roma arcaica e também em outras sociedades, estabelecer as relações sociais e de
bom convívio entre os cidadãos de uma mesma cidade ou mesmo de povos vizinhos pode ser
considerada uma função básica atribuída à religião, mesmo que certos contratos sociais de
civilidade sejam estabelecidos através da superstição religiosa e do medo associado a essas
práticas.
Nos primeiros séculos da história romana, o culto aos deuses era proveniente de uma
evolução consciente que fixava as leis e os caracteres recebidos dos primeiros reis, nessa
época o culto romano diferia do praticado pelos gregos, já que os romanos não representavam
os deuses por meio de estátuas ou simulacros. São quase dois séculos para que os romanos
começassem a representar os seus deuses à semelhança dos gregos, isto é, por meio de suas
imagens, conforme as palavras de Varrão apud Santo Agostinho:

23
“A aucun moment de l‟histoire, nous lisons qu‟un de ces prêtres ait été charge de faire, à partir de telle date,
autre chose que ce qu‟il faisait depuis le début [...] Aujourd‟hui nous savons combien est récent notre tradition
sur Rome. Oui, mais qu‟importe, si, au dernier siècle de la République, les hommes de l‟art répétaient encore
fidèlement les mots et les gestes des temps royaux?” (La Religon Romaine Archaïque, p. 98-103)
22
(Varro) dicit etiam antiquos Romanos plus annos centum e septuaginta deos
sine simulacro coluisse. (De Ciuitate Dei, IV, 31)

Varrão diz também (que) os antigos romanos têm cultuado os deuses sem
simulacros mais de cento e setenta anos.

Partindo do princípio de que os deuses na Roma arcaica não são representados por
simulacros, coluisse sine simulacro, “têm cultuado os deuses sem simulacros”, podem ser
estabelecidas as devidas comparações com a religião grega, pois partem de princípios
evolutivos semelhantes. Como se pode observar na Teogonia, de Hesíodo (v. 116-122), os
gregos não costumavam apresentar os deuses primordiais Caos, Terra, Tártaro e Eros
personificados, diferentemente do que acontecia com os demais deuses, principalmente com
aqueles que se destacaram após a organização do cosmos por Zeus.
Desse modo pode-se observar um princípio de semelhança entre as duas culturas.
Somente após a estruturação do cosmos, mesmo considerando as referências poéticas, os
deuses passam a ser representados semelhantemente aos seres humanos, uma vez que a forma
humana era entendida como mais desenvolvida e completa, em se estabelecendo as devidas
comparações com os animais, desprovidos de razão.
Partindo de tal princípio e de tal semelhança, a religião romana parece seguir os
mesmos passos da grega, pois os deuses inicialmente não eram personificados, eram
entendidos como forças naturais. Somente com a evolução religiosa e o contato com a cultura
grega houve a necessidade de representá-los em formas mais concretas, personificados.
Apesar de o momento a que se refere Santo Agostinho cronologicamente estar
bastante distante do mito explicativo da origem e organização cósmica sugerido por Hesíodo,
o seu caráter evolutivo é bastante semelhante. Os romanos aproximadamente entre os
primeiros anos de monarquia, 753 a.C. e 583 a.C., não representaram seus deuses
personificados e os gregos, segundo a explicação mítica de Hesíodo, também não
personificavam os seus deuses primordiais. Essa comparação conduz a uma forma mais
rústica do princípio religioso em que há apenas a associação dos deuses com as forças
primitivas da natureza, ou seja, as divindades eram apenas abstrações sem uma representação
física, nem mesmo havia a associação divina com a forma humana, que seria considerada a
mais bela e perfeita das formas e que conduziria a grandes desavenças filosóficas durante o
século I a.C., em Roma. A representação primitiva, de certa forma, em seu mais alto grau de
abstração, garantia aos cultos dos deuses mais pureza representativa.
23
A respeito de tal ausência de representação divina, Georges Dumézil faz indagações:

Por que os primeiros romanos não representavam Marte nem mesmo outros
deuses? Seguindo Varrão, percebemos, é apenas falta de maturidade artística
(...) por reverência, pelo sentimento de que toda representação e também
todo “encerramento em um templo” seria um aprisionamento. Pode ser
enfim por eles não sentirem necessidade: não é necessário colocar como
equivalências necessárias e recíprocas, “personalidade = contorno”,
“antropomorfismo = figuração”.24

Seria pouco plausível considerar apenas a afirmação de que a ausência de


representação artística das coisas divinas era falta de maturidade no âmbito da arte,
evidentemente que não permaneceram muitos artefatos que a pudessem comprovar, apenas
alguns bastante rústicos, porém é mais aceitável a segunda afirmação de que toda
representação artística seria um aprisionamento, fato que corrobora as palavras de Varrão, a
religião romana arcaica estava mais preocupada com a natureza e com o entendimento de seus
elementos do que com a mera representação em simulacros de suas forças naturais, de seus
deuses. Isso demonstra que a observação da natureza pelos antigos era acentuada e revela
modificações religiosas no decorrer da história romana a partir do momento em que os deuses
passam a ser representados por ícones que se assemelham à figura humana ou mesmo à figura
de animais.
Com as representações que aconteceriam após os dois primeiros séculos da história
romana, os deuses deixam de ter caráter meramente abstrato e o distanciamento entre deuses e
seres humanos diminui, garantindo aqueles, por meio de seus simulacros, teor mais concreto.
Por um lado tornavam-se menos abstratos os cultos religiosos, já que as forças naturais e seus
representantes passaram a ser vistos em forma de simulacros; por outro lado, os deuses
passaram a fazer parte do cotidiano dos romanos, estavam mais próximos e por isso, segundo
as crenças populares, também passaram a agir como os seres humanos, sentiam ódio, amor,
rancor, medo e todos os demais sentimentos típicos da humanidade. Nesse momento os
deuses passaram a se relacionar com os humanos em atos de tamanha intimidade que geraram
vários semideuses, filhos de deuses com humanos.

24
“Pourquoi les premiers Romains ne figuraient-ils pas Mars, ni d‟ailleurs d‟autres dieux? Suivant Varron, on l‟a
vu, c‟est seulement faute de maturité artistique (...) par révérence, par le sentiment que tout représentation, et
aussi toute “mise en temple”, serait un emprisonnement. Ce peut être enfin parce qu‟ils n‟en éprouvaient pas le
besoin: il ne faut pas poser, comme des équivalences nécessaires et réciproques, “personnalité = contour”,
“antropomorphisme = figuration”.”(La Religon Romaine Archaïque, p. 44-45)

24
Apesar dos primitivismos religiosos da época arcaica romana e de suas concepções
que se distanciavam daquelas presentes em Roma no séc. I a.C., os ritos religiosos primitivos
eram bastante complexos, apenas os instrumentos usados neles eram simples, fato que reforça
a afirmação de Georges Dumézil a respeito da falta de maturidade artística dos romanos.
Cícero afirma a respeito dos ritos religiosos na Roma arcaica:

Sacrorum autem ipsorum diligentiam difficilem, apparatum perfacilem esse


uoluit: nam quae perdiscenda quaeque obseruanda essent, multa constituit,
sed ea sine impensa. (De Re Publica, II, 14, 27)

Porém das próprias coisas sagradas decidiu (que) a aplicação fosse difícil, o
instrumento fosse muito simples, pois aquelas coisas devem ser aprendidas
por inteiro, cada uma deve ser observada, instituiu muitas (coisas), mas
aquelas sem instrumentos.

A afirmação de Cícero reforça o pensamento de Georges Dumézil de que a arte na


Roma arcaica era precária, sem grandes representações, de instrumentos muito simples,
apparatum perfacilem, porém os cultos eram muito complexos, de difícil aplicação,
diligentiam difficilem, fatores que garantiam aos sacerdotes a completa manipulação dos ritos
religiosos e também a preservação dos ideais dos reis, já que nesse momento religião e estado
estavam intimamente ligados na conservação tanto dos ritos religiosos quanto na manipulação
do povo, que não tinha acesso ao manuseio dos cultos.
É importante observar que os cultos na Roma arcaica não reverenciavam ou
invocavam apenas um único deus em cada ritual, era comum a reverência e a invocação
coletiva dos deuses por parte dos sacerdotes, quer fosse um ritual de prece quer fosse de
sacrifício aos deuses. Ato semelhante é realizado por Virgílio (70 – 19 a.C.), apesar de ser um
poeta do séc. I a.C., no proêmio de seu poema Geórgicas, após fazer a dedicatória a Mecenas
e anunciar os temas que serão abordados pelo poema. O poeta realiza, entre os versos 1 e 42, a
invocação dos deuses do céu, da terra e do mar que protegem os pastores e os camponeses,
respectivamente, Liber e Ceres (v.7), Acheloias (v.9), Neptunus (v.14), Minerua (v.18),
Siluanus (v.20) e Tethys (v.31).
O ato de invocação coletiva de Virgílio muito tem de semelhante com as práticas
religiosas do período arcaico romano, o problema maior é aquele a que se refere Cícero,
diligentiam difficilem, pois pouco se sabe sobre os rituais profanos da Antiguidade, haja vista

25
que a maior parte dos manuscritos não se conservou e muitas das inferências são feitas por
analogia com os rituais realizados no período clássico romano.
Theodor Mommsen menciona uma lista com doze deuses que estão associados à
simples personificação dos atos realizados pelos homens e que raramente são citados pelos
escritores do período clássico. Esses deuses revelam certo grau de primitivismo da religião
romana arcaica em que se tentava compreender a natureza e suas forças sem preocupação com
sua representação por meio de simulacros. Segundo Mommsen:

Estes são Veruactor para o primeiro trabalho dado ao terreno, Redarator


para o segundo trabalho, Imporcitor para percorrer o traço do arado, Insitor
para fazer a semeadura, Arator para o novo trabalho, Occator para o cultivo,
Sarritor para cavar com a enxada, Subruncinator para livrar o cultivo de más
ervas, Messor para a colheita, Conuector para juntar a colheita, Conditor
para reintroduzi-la, Promitor para retirá-la do celeiro.25

Esses deuses, reafirma T. Mommsen, seriam a simples personificação dos atos que
eles representavam e estavam tão presentes na mente romana arcaica que posteriormente
passaram a nomear os profissionais responsáveis por seu desempenho, e não as divindades.
Redarator passou a ser o camponês que arava novamente o campo; arator, o lavrador;
occator, o gradador; sarritor, o sachador; messor, o que colhe os frutos; conditor, o que faz
algo; promitor, o que faz brotar. Era a ação praticada pelos camponeses que os nomeava, ação
em primeiro lugar atribuída aos deuses, apenas realizadas com sua concessão, mas que
posteriormente passou a nomear o próprio ato realizado, ganhando conotação mais humana e
se distanciando da divina26.
O distanciamento e as novas atribuições das palavras podem estar associados às novas
concepções religiosas desenvolvidas pelos romanos a partir da instituição da República, entre
507 e 27 a.C., período em que os deuses já seriam representados por simulacros e em que a
cultura romana sofreu bastante influência da grega. Se houve a desvinculação dessas palavras
da força divina, haveria a necessidade de que existisse a invenção ou substituição dessas
forças, então os deuses ganharam novas e mais concretas representações, muitos deles, por
exemplo, que estavam ligados ao cultivo da terra, foram substituídos ou associados a Ceres.
25
“Ce sont Veruactor pour le premier labour donné à la friche, Redarator pour le deuxième labor, Imporcitor
pour traverser les sillons, Insitor pour faire les semailles, Abarator pour le nouveau labour, Occator pour le
hersage, Sarritor pour houer, Subruncinator pour le sarclage, Messor pour la moisson, Conuector pour
rassembler la récolte, Conditor pour la rentrer, Promitor pour la retirer des greniers.” (Les Cultes Chez les
Romains, p. 11)
26
A relação de tais deuses se encontra em Le Culte Chez les Romains, p.11.
26
Na Roma arcaica, além dos deuses que se associavam às atividades com a terra, havia
muitos outros deuses que os romanos acreditavam estarem ligados às mais diversas atividades
ou fases da vida humana. Servindo-se dos poucos textos conservados, Theodor Mommsen
classifica esses deuses, ligando-os às diversas fases da vida, em sete grupos. A partir dos
comentários de autores do período clássico, podem-se estabelecer comparações a fim de se ter
uma ideia de qual seria o pensamento dos romanos arcaicos sobre as forças da natureza e as
atribuições dos deuses na Antiguidade.
O primeiro grupo é o dos deuses que se relacionam com o desenvolvimento do homem
desde a sua concepção até o seu nascimento: Janus Consiuius; Saturnus; Liber et Libera;
Fluonia, Alimonia; Nona; Decima; Partula; Vitumnus; Sentinus. O segundo grupo é o dos
deuses que concedem o nascimento: Juno Lucina et Diespiter que permitem o nascimento da
criança; Candelifera que conduz a vela até o parto; Carmentes; Prorsa et Postuerta; Egeria;
Numeria. O terceiro são as divindades invocadas após o nascimento: Intercidona; Deuerra;
Pilumnus Picumnus; Opis; Deus Vagitanus; Cunina; Rumina; Nundina; Geneta Mana que
protege contra a morte aqueles que nascem em casa; Fata Scribunda que fixam o destino do
nascido. O quarto grupo é o dos deuses da primeira infância: Potina et Educa que ensinam a
criança a comer e a beber; Cuba que protege a criança transportada da cama; Ossipago;
Carna que fortalece a pele; Leuana que apoia sobre a terra; Statanus; Statilinus; Statina que
ensina a criança a ficar em pé; Abeona et Adeona que ensinam seus primeiros passos; Farinus
et Fabulinus que ensinam a falar. O quinto grupo é composto pelos deuses da adolescência:
Iterduca et Domiduca que acompanham os adolescentes quando eles saem; Mens; Deus
Catius pater; Consus et Sentia que lhes dão inteligência; Diuus Volumna; Diua Volumna aut
Voleta; Stimula; Diua Peta que lhes dão a vontade; Praestana aut Praestitia; Pollentia;
Agonius; Peragenor; Agenoria; Strenia que lhes dão força; Numeria et Camena que lhes
ensinam a contar e a cantar; Minerua que fortalece sua memória; Pauentia aut Pauentina que
afasta o medo; Venilia que lhes dá esperança; Volupia; Lubentina aut Lubia et Liburnus que
procuram as alegrias da juventude; Juuentas et Fortuna barbata que protegem os adultos. O
sexto grupo é dos deuses do casamento: Juno iuga; Deus Jugatinus; Domiducus; Domitius;
Manturna; Unxia; Cinxia; Virginiensis dea; Mutunus Tutunus. O sétimo grupo é composto
pelas divindades protetoras das diversas fases da vida: Tutanus et Tutilina que são invocados
em momentos de aflição; Viriplaca que reconcilia os esposos; Orbona a quem os órfãos
fazem suas preces; Caeculus, o deus dos cegos; Viduus que separa a alma do corpo e a quem

27
se implora quando se está em situação que pode levar à morte; Libitina et Nenia que são as
deusas da morte.
Theodor Mommsen organiza os deuses seguindo o ciclo da vida humana desde a sua
concepção até a morte, além disso, muitas palavras que eram usadas pelos romanos para
nomeá-los tinham significado intrínseco com a ação desempenhada pelo deus: Diespiter é
composto de dies, “dia”, acrescido de piter > pater, “pai”, o que concede a luz do dia, ou seja,
o nascimento; Candelifera composto de candela, “vela”, acrescido de fero, “conduzir, levar”,
isto é, a que ilumina para o nascimento; Fata Scribunda composto de fata < fatum, “destino”,
acrescido de scribunda < scribo, “marcar, assinalar”, ou seja, a que assinala o destino;
Abeona composto de ab, preposição que indica afastamento, acrescido de eo, “ir, andar”, ou
seja, o oposto de Adeona, pois uma ensina o caminho de ida e a outra o de volta; Iterduca
composto de iter, “caminho”, acrescido de duco, “levar, conduzir”, juntamente com
Domiduca composto de domus, “casa”, acrescido de duco ensinam o caminho de volta para a
casa.
Essa ligação da ação com a palavra atribuída ao deus pode ser considerada um dos
fatores que fazia com que os romanos arcaicos não representassem as suas divindades por
meios físicos, pois consideravam a ação divina bem mais ampla do que sua mera
representação, garantindo ao deus um campo de atuação que não se restringia apenas ao
templo ou a cidade em que estivesse inserido, como se acreditava no Período Clássico.
Havia vários deuses associados às mais diversas atividades da vida humana,
divindades arcaicas que são pouco mencionadas, no séc. I a.C., ou que caíram no completo
esquecimento dos romanos. Mommsen se refere a alguns: Tutanus e Tutilina que são
invocados em momentos de aflição; Viriplaca que reconcilia os casais; Caeculus que é o deus
dos cegos; Viduus que separa a alma do corpo, a quem se implora quando há proximidade da
morte; Libitina e Nenia que são as deusas da morte.
Com a economia basicamente baseada na atividade agrícola, não seria de se admirar
que houvesse um grande número de deuses protetores da terra e de seu cultivo, geralmente,
começado por Janus. Os deuses vinculados à agricultura desempenhavam funções bem
específicas: Sator era o deus da plantação; Seia, deusa da terra semeada; Segeia, deusa das
plantações; Proserpina, deusa das plantas germinadas; Nodutus estabelecia a germinação;
Volutina estabelecia a precipitação das vagens; Patelana fazia aparecer as vagens e brotar as
espigas; Hostilina fazia crescer os novos frutos; Flora, deusa das pradarias, que fazia florescer
os grãos; Lactans que vertia os frutos e os fazia se esconder; Lacturnus que protegia os trigos

28
recém-gerados; Matuta que os tornava maduros; Rucina que os sachava e os tirava da terra;
Messia, deusa da colheita; Terensis que protegia os frutos debulhados; Picumnus, Pilumnus,
Stercutius, Sterquilinius, Spiniensis que erradicavam as dificuldades.
Assim como o campo e as atividades desenvolvidas nele, as partes das casas romanas
e os ambientes públicos também tinham suas divindades específicas que garantiam a proteção
dos lugares. Santo Agostinho afirma:

Tres deos isti posuerunt. Forculum foribus, Cardeam cardini, Limentium


limini. Ita non poterat Forculus simul et cardinem limenque seruare. (De
Ciuitate Dei, IV, 8)

Esses estabeleceram três deuses: Forculus para as portas da casa, Cardea


para o eixo, Limentius para a soleira da porta. Assim não poderia ao mesmo
tempo Forculus guardar o eixo da porta e a soleira da porta.

As palavras de Santo Agostinho exemplificam bem o sentimento religioso do romano


arcaico que atribuía funções específicas a cada divindade, apesar de Forculus, Cardea e
Limentius terem a mesma função, ou seja, garantir a proteção da casa, essa proteção estava
vinculada apenas a partes bastante específicas, o que garantia a preservação na memória da
população a respeito da existência de muitos deuses, fato que, com a evolução da civilização e
da religião romanas, gradativamente vai se perdendo, fazendo com que muitos desses deuses
fossem esquecidos. Assim não seria inexplicável a diminuição no número de deuses entre os
romanos, pois muitas vezes houve a associação dessa multiplicidade de deuses e de suas
funções a uma única divindade, que, por sua vez, prevaleceu sobre as demais e manteve a
preservação de sua memória entre os romanos.
Os espaços que rodeavam as casas e muitos objetos também estavam sob a proteção
dos deuses: Rusina protegia o campo, rus; Jugatinus protegia o jugo que atrelava os cavalos,
juga; Collatina protegia as colinas, colles; Vallonia guardava os vales, ualles. Alguns
garantiam a preservação de localidades específicas como o monte Vaticano, Vaticanus mons,
que era guardado por Vaticanus e o monte Aventino, Auentinus mons, que era protegido por
Auentinus.
Há de se observar que os primitivos romanos por vezes confundiam os dons divinos
com os próprios deuses, o que conduz ao pensamento de que, quando eles não descobriam os
nomes dos deuses que atuavam em determinada situação, atribuíam-lhes o próprio nome das
coisas, tal atribuição geralmente se dava através do processo de derivação das palavras,

29
conforme se verifica em Bellona < bellum (guerra), Cunina < cuna (berço), Segetia < seges
(seara), Bubona < bos (boi), Pomona < poma (fruto).
As palavras que nomeiam todos esses deuses, assim como muitos daqueles que
garantiam o desenvolvimento da criança e a conduziam até a fase adulta, possuem o mesmo
radical dos lugares ou dos objetos nomeados. Entende-se, então, que a religiosidade romana
arcaica não estava delimitada apenas a alguns locais específicos em que se realizavam os
cultos, também não se restringia a alguns instrumentos usados nos ritos religiosos, fato que
pode explicar a utilização da mesma raiz da palavra atribuída à divindade, ao lugar e ao objeto
protegido pelo deus: Rusina e rus; Jugatinus e juga; Collatina e colles; Vallonia e ualles; os
respectivos homônimos Vaticanus mons e Vaticanus; Auentinus mons e Auentinus.
Também atribuíam sem qualquer alteração da palavra o nome da coisa às seguintes
divindades: Pecunia, deusa que concedia os bens (pecunia); Virtus, deusa que concedia a
virtude (uirtus); Honor, deusa que dava a honra (honor); Concordia, deusa que permitia a
concórdia (concordia); Victoria, deusa que concedia a vitória (uictoria). Verifica-se assim
tamanha confusão em se fazer a distinção entre a divindade e o dom por ela concedido:

Ita, inquiunt, cum Felicitas dea dicitur, non ipsa quae datur, sed numen illud
adtenditur a quo felicitas datur. (De Ciuitate Dei, IV, 24)

Assim, dizem, quando se diz (que) a Felicidade (é) uma deusa, não (é) a
própria felicidade que é concedida, mas aquela divindade por quem a
felicidade é concedida.

Assim divindade e atribuição divina eram constantemente confundidas sem que houvesse
clareza distintiva entre o ser e a ação produzida. Isto promovia na Roma arcaica certamente
dois aspectos distintos: em primeiro lugar a preservação da pureza do culto, devido à ausência
da representação das divindades por meio de simulacros; em segundo lugar, uma possível
confusão generalizada entre os deuses e os dons por eles concedidos.
Apesar da existência de muitos deuses com funções particulares, as súplicas lhes eram
atribuídas com especificidade e indicação de seus poderes, o que, segundo as crenças
romanas, garantia a atenção por parte da divindade invocada. Se não houvesse certeza sobre
qual deus se deveria invocar para a realização de determinada ação, fazia-se uso de uma
fórmula geral, conforme atesta Sérvio:

Jupiter omnipotens uel quo alio nomine appellari uolueris. (Ad Aeneidem,
VI, 166)
30
Júpiter todo poderoso ou por qual outro nome desejares ser chamado.

Essa invocação generalizada pode ser considerada uma das causas do desaparecimento, na
tradição romana, sobretudo no período clássico da literatura romana, de muitas divindades
que faziam parte da cultura arcaica, porém só com o advento da República, entre 507 a. C e
27 a.C., a figura de Júpiter passa a se destacar através do uso da expressão invocatória Jupiter
omnipotens, atribuindo a este deus uma espécie de incorporação de muitos outros que foram
paulatinamente esquecidos.
Tal fato fez com que a figura de Júpiter se sobressaísse em relação à figura de Jano,
sobretudo posteriormente quando a literatura latina passou a sofrer influência da grega em que
a figura de Ju(piter) era constantemente exaltada, venerada, nomeada por

Hesíodo27 como , “pai dos deuses e dos homens”, devido a seus


feitos em relação à organização do Cosmos e seus atributos guerreiros; além de ser o deus
disseminador, o que espalha o sêmem. Por isso, Vergílio faz uso de expressões como diuum
pater atque hominum rex28, “pai dos deuses e rei dos homens”, hominum sator atque
deorum29, “semeador dos homens e dos deuses”, pater summus30, “sumo pai”, pater
omnipotens31, “pai onipotente” e Jupiter omnipotens32, “Júpiter onipotente”, que seriam meras
traduções das expressões usadas por Hesíodo.
Por outro lado, a unificação de várias divindades na figura de Júpiter fazia com que ele
fosse invocado por uma multiplicidade de epítetos em diferentes lugares da Roma arcaica.
Conforme verifica T. Mommsen33, havia um Jupiter Libertas, um Jupiter Juuentus, um
Jupiter Fulgur, um Jupiter Pecunia, um Jupiter Lapis, um Jupiter Liber. Certamente esses
qualificativos atribuídos a Júpiter estavam associados a sua capacidade no desempenho de
várias funções. Primeiramente, era uma forma de especificar o seu poder de realização
verificado no adjetivo omnipotens, observado por Sérvio; em segundo lugar determinava as
funções que anteriormente eram realizadas por outras divindades arcaicas.
Apuleio menciona alguns dos qualificativos de Júpiter, garantindo ao deus uma
infinidade de funções naturais e guerreiras:

27
Teogonia, v. 542 e v.643.
28
Eneida, I, v. 65.
29
Idem, I, v. 254.
30
Ibidem, I, v.665.
31
Ibidem, I, v.60; III, v.251.
32
Ibidem, II, v.689.
33
Le culte chez les romains, p.27.
31
Fulgurator et Tonitrualis et Fulminator etiam Imbricitor et item Serenator, et
plures eum Frugiferum uocant, multi urbis Custodem, alii Hospitalem,
Amicalem, et omnium officiorum nominibus appellant. Est Militaris et
Triumphator et Propagator, Tropaeophorus. (De Mundo, XXXVII)

Fulgurator tanto Tonitrualis quanto Fulminator também Imbricitor,e além


disso Serenator, muitos também o chamam de Frugiferum, muitos (o
chamam) de Protetor da cidade, outros (chamam) de Hospitaleiro, de
Amigável, e por muitos nomes de todos os ofícios. É Guerreiro tanto
Triunfador quanto Conquistador, Vencedor34.

A respeito dos nomes recebidos por Júpiter, Santo Agostinho comenta que o deus era
em si mesmo um conjunto de vários deuses, devido aos múltiplos poderes a ele associados:

Dixerunt eum Victorem, Inuictum, Opitulum, Inpulsorem, Statorem,


Centumpedam, Supinalem, Tigillum, Almum, Ruminum, et alia quae
persequi longum est. (De Ciuitate Dei, VII, 11)

Chamaram-no Victor, Inuictus, Opitulus, Inpulsor, Stator, Centumpedam,


Supinalis, Tigillus, Almus, Ruminus35 e outros (nomes) que é longo de se
prosseguir.

Essa infinidade de qualificativos fazia com que o deus certamente fosse lembrado
constantemente por seus feitos grandiosos e por seus atributos que poderiam beneficiar aquele
que os invocasse. A atribuição do epíteto dependeria da situação em que se encontrava a
pessoa que o invocava. Se se encontrasse em situação adversa causada por forças naturais,
invocaria certamente o Jupiter Fulgurator, ou o Tonitrualis, ou o Fulminator, ou o Imbricitor,
ou o Serenator, ou o Frugiferum; se se encontrasse em situação de guerra, certamente
invocaria o Jupiter Militaris, Triumphator, Propagator, Tropaeophorus, Victor, Inuictus,
Opitulus, Inpulsor e Stator.
Santo Agostinho especifica os vários atributos de Júpiter gerados pelas várias ações
capazes de serem realizadas pelo deus as quais estão presentes em seus qualificativos, criados
pelos processos de derivação e de composição: Fulgurator < fulgor, “relâmpago”; Tonitrualis
<tonitrus, “trovão”; Fulminator <fulmen, “raio”; Imbricitor < imbricus,“de chuva, chuvoso”;

34
Fulgurator é o que lança relâmpagos; Tonitrualis e Fulminator, os que lançam raios; Imbricitor, o que faz
chover; Serenator, o que acalma; Frugiferum, o que gera frutos, o fértil, o fecundo; Tropaeophorus, o que traz o
troféu, o vencedor.
35
Respectivamente, Vencedor, Invencível, Auxiliador, Instigador, Mantenedor, De cem pés, Destruidor,
Sustentador, Alimentador, Nutridor.
32
Serenator <serenatus, “que torna tranquilo”; Frugiferum < frux mais fero, “gerador de
frutos”.
No entanto, o destaque recebido por Júpiter em ser o primeiro entre os deuses imortais
não se daria no Período Arcaico romano, entre 753 a.C. e 509 a.C., mas durante o regime
republicano, sobretudo porque Roma sofreria grande influência da cultura grega. No início da
República romana, o primeiro entre os deuses ainda era Jano, conforme observa Macróbio:

Saliorum quoque antiquissimis carminibus deorum deus canitur[...] patrem


inuocamus quasi deorum deum. (Saturnais I, 9, 14; I, 9, 16)

O deus dos deuses é cantado também nos antiquíssimos cantos dos Sálios36
[...] Invocamos o deus como se fosse o pai dos deuses.

É importante observar que, apesar de Macróbio ser um comentador tardio nascido no


séc. IV d.C, seus comentários sobre os costumes dos primeiros romanos são bastante
relevantes, incluindo em seu texto uma construção tipicamente grega retirada de Hesíodo,
, correspondendo em latim a pater deorum deus. Tal comparação conduz a uma
equiparação de tratamento entre o pai dos deuses, pater deorum, dos latinos, que durante todo
o Período Monárquico e início do Republicano foi Jano, e o pai dos deuses, ,
dos gregos que sempre fora Zeus.
Um pouco antes do início da República romana, além de existir uma hierarquia entre
os deuses, no que tange ao grau de importância, existia também uma hierarquia entre os
sacerdotes responsáveis pela realização dos rituais religiosos. A relevância sacerdotal
apresentava-se, respectivamente, da seguinte maneira: em primeiro lugar estava o Rex,
seguido do Flamen Dialis, Flamen Martialis, Flamen Quirinalis37 e por último o Pontifex
Maximus. Entre os deuses, o lugar de maior relevância era ocupado por Jano, seguido por
Júpiter, em terceiro lugar estava Marte que era seguido por Quirino.
A hierarquia divina foi alterada ainda na Roma arcaica, no Período Monárquico,
época em que houve a fusão entre os Ramnes, que ocupavam o monte Palatino, e os Sabinos,
que ocupavam o monte Quirinal. A união entre esses dois povos conduziu à mistura dos ritos,
dos sacerdotes, dos deuses, porém a superioridade dos Ramnes se sobressaiu, impondo sua
hierarquia sacerdotal, conforme afirma T. Mommsen:

36
Salii eram os antigos sacerdotes de Marte.
37
Flamen era o sacerdote que se consagrava a uma divindade particular. Flamen Dialis, Flamen Martialis,
Flamen Quirinalis, respectivamente, sacerdote de Júpiter, sacerdote de Marte, sacerdote de Quirino.
33
Já esta primeira mistura das duas raças parece ter tido uma influência capital
sobre as transformações da religião dos Ramnes. Marte e Quirino nos
aparecem desde então como os representantes políticos das duas raças,
Júpiter como o protetor de toda a nação; enfim Jano que era outrora o
primeiro dos deuses para os Ramnes, cai pouco a pouco no esquecimento38.

A mistura entre as duas raças ocasionou mudanças significativas, sobretudo em


relação à religião dos Ramnes e em relação à modificação da hierarquia religiosa romana
primitiva. A partir desse momento, Júpiter passaria a desempenhar um papel singular e a se
sobressair sobre a figura de Jano. Quais seriam as causas de tal mudança hierárquica divina?
Por que deste momento em diante Júpiter passaria a Pater deorum, fato que lhe atribuiria
tantos epítetos?
A causa de alteração hierárquica dos deuses, nos dizeres de Santo Agostinho, foi
explicada por Varrão:

Hoc nobis uir39 ille acutissimus doctissimusque respondeat. “Quoniam penes


Ianum, inquit, sunt prima, penes Iouem summa”. (De Ciuitate Dei, VII, 9)

Então aquele homem tão douto e tão astuto responda-nos: “porque nas mãos
de Jano, diz ele, estão as primeiras (coisas), nas mãos de Júpiter estão as
últimas.

Por ter nas mãos as coisas últimas, penes Iouem summa, Júpiter passou a ser mais
reverenciado do que Jano que tinha em mãos as coisas primeiras, penes Ianum sunt prima.
Não se trata unicamente de uma relação sequencial de fatos e referências, mas de uma
representação valorativa dos romanos primitivos que são explicitados por Varrão. A Júpiter
associavam as soluções, as superações, as vitórias em vários aspectos da vida, desse modo
Júpiter passou a ser o primeiro entre os deuses romanos, superando em todos os aspectos os
atributos dos demais deuses. Jano era entendido como a causa, o que propiciava o início da
ação, porém o desenlace das causas, a superação dos desafios iniciais eram garantidos por
Júpiter, fatos que lhe propiciaram os mais variados epítetos.

38
“Déjà ce premier mélange des deux races parait avoir eu une influence capitale sur les transformations de la
religion de Ramnes. Mars et Quirinus nous apparaissent depuis lors comme les représentants politiques des deux
races, Jupiter comme le protecteur suprême de toute la nation; enfin Janus qui était autrefois le premier des
dieux pour les Ramnes, tombe peu à peu dans l‟oubli.” (Les Cultes Chez les Romains, p.35)
39
Vir refere-se a Varrão.
34
A observação dos fatos relacionados à Religio romana e o acompanhamento de sua
progressão conológica, nos primeiros séculos da formação de Roma, 753 a.C. - 509 a.C., são
bastante relevantes para que se possa compreender com mais coerência as transformações por
que passaram as práticas religiosas desde a fundação da cidade de Roma até o início do
Período Republicano, que será explicitado a seguir.
No que se refere ao entendimento da análise da obra De Natura Deorum, de Cícero,
tais explicitações religiosas garantirão a antecipação de esclarecimentos que serão necessários
para a entendimento do diálogo filosófico acerca da natureza dos deuses. Fazendo com que
não sejam necessários parênteses explicativos sobre cada elemento religioso que se apresenta
ao longo do Livro.

35
2. A Religião no Período Republicano

Durante a República, 507 a.C. - 27 a.C., o número de deuses romanos continuou a


crescer, devido à associação das divindades com as atividades comerciais desenvolvidas nessa
época. A sociedade romana arcaica do Período Monárquico com suas atividades basicamente
ligadas à agricultura e à relação de troca de produtos agrários dava lugar a relações comerciais
mais sofisticadas, pois os romanos passaram a produzir e utilizar moedas para facilitar suas
transações comerciais.
Primeiramente produziram as moedas de cobre e as consagraram ao deus Aesculanus;
em seguida, confeccionaram as de prata, consagrando-as ao deus Argentinus; depois,
produziram as de ouro, mas não as consagraram a um deus específico, conforme relata Santo
Agostinho:

Nam ideo patrem Argentini Aesculanum posuerunt, quia prius aerea pecunia
in usu esse coepit, post argentea. Miror autem, quod Argentinus non genuit
Aurinum, quia et aurea subsecuta est. (De Ciuitate Dei, IV, 21)

Pois por causa disto puseram Aesculanus como pai de Argentinus, porque
primeiramente a moeda de bronze começou a ser usada, depois a de prata.
Porém me admiro, porque Argentinus não gerou Aurinus, pois (a moeda) de
ouro veio em seguida40.

Observam-se dois aspectos religiosos importantes nos dizeres de Santo Agostinho:


primeiramente, novas relações no consentimento de novas divindades, a partir de
instrumentos originados no Período Republicano, pecunia aerea et argentea et aurea, que
basicamente se diferenciam do Período Monárquico em que as divindades estavam mais
relacionadas às ações e aos elementos naturais; em segundo lugar, essa nova forma de
consentimento de divindades não se manifesta de modo contínuo, o que pode ser atribuído a
mudanças no pensamento religioso tanto no final da Monarquia, quanto nos primeiros séculos
que constituíram a República.
Através dessas referências, percebem-se modificações nos modelos de criação divina
que se estendem até meados da República, pois a concepção de deuses que se associavam à
matéria, nesse caso pecunia, está ligada ao período final da Monarquia. Sucessivamente são
observadas alterações no pensamento religioso romano, no início da República os deuses

40
Segundo T. Mommsen, as moedas de prata foram utilizadas entre os anos de 485 a.C. e 269 a.C., e a utilização
das de ouro se estendeu até o ano 217 a.C..

36
ainda se vinculam à matéria, Aesculanus deus da moeda de cobre, Argentinus deus da moeda
de prata, porém como marca dessa ruptura de pensamento, não havia o deus da moeda de
ouro, Aurinus.
Tais evoluções no conceito de divindades não fizeram com que o número delas
estagnasse ou diminuísse, havia a preservação do pensamento arcaico, pois os romanos
respeitavam mesmo os deuses que julgavam desconhecidos, respeitavam as divindades dos
povos dominados, muitas vezes absorvendo os seus cultos. Em caso de não saberem a que
deus ou deusa deviam endereçar as preces, faziam uso de fórmulas gerais que, de acordo com
suas crenças, garantiriam o apoio das divindades ainda que fossem desconhecidas e que não
tivessem sido nomeadas até o momento. Algumas dessas fórmulas foram atestadas por Varrão
e por Tito Lívio, respectivamente:

Sic uerba concipito: si deus si deusa es, quoium illud sacrum est, uti tibi ius
siet porco piaculo facere. (De Agri Cultura, CXXXIX)

Assim empregarás as palavras: se (és) deus, se és deusa, dos quais aquilo é


sagrado, para que haja justiça para ti em se fazer o sacrifício suíno.

Diui, quorum est potestas nostrorum hostiumque. (Ab Vrbe Condita, VIII,
9)

Deuses cujo poder é dos nossos e dos estrangeiros.

Através dessas relações se conservou e aumentou o número de deuses durante a


República. Havia muito ainda por conhecer, deuses e deusas ainda não nomeados, conforme
se verifica na fórmula si deus si deusa, de Varrão, porém os sacrifícios e ritos conhecidos
eram também direcionados a esses deuses, quer fossem romanos, diui nostrorum, quer fossem
estrangeiros, diui hostium. Além dessas formas de invocação que muito se assemelham à
usada por Sérvio em relação a Júpiter, Jupiter omnipotens uel quo alio nomine appellari
uolueris, quando não se sabia a que deus invocar, existiam outras usadas durante a República,
como assinala Macróbio:

Siue femina siue mas est[...] siue quo alio nomine fas est nominare.
(Saturnais, III, 8,3; III, 9, 10)

Ou se (é) fêmea ou se é macho [...] ou por qual outro nome é permitido


nomear.

37
A invocação, principalmente na expressão siue femina siue mas est, de modo
generalizado no que se refere aos deuses estrangeiros basicamente são determinadas pela
ausência de conhecimento dos ritos e da religião dos povos dominados pelos romanos, porém
havia grande respeito pelos deuses estrangeiros, já que os povos dominados podiam preservar
seus costumes religiosos e continuar cultuando seus deuses desde que não perturbassem a
ordem pública.
Outro fator responsável pelo aumento do número dos deuses em Roma foi a
preservação dos cultos e dos deuses estrangeiros, isso fez com que os romanos adotassem os
deuses das cidades conquistadas e construíssem templos em homenagem aos deuses
estrangeiros. Os romanos preservavam as sacra, “coisas sagradas” dos povos dominados,
segundo Tito Lívio:

Mos uetustus erat Romanis, cum quo nec foedere nec aequis legibus
iungeretur amicitia, non prius imperio in eum tanquam pacatum uti, quam
omnia diuina humanaque dedisset. (Ab Vrbe Condita, XXVIII, 34)

Era costume antigo dos romanos com o qual a amizade (não) se unia nem
por pacto nem por justas leis, primeiramente (se sucediam) pelo poder, como
não se utilizasse daquela paz até que tivesse dado todas (coisas) divinas e
humanas.

Havia a preservação das sacra estrangeiras e os dizeres de Tito Lívio omnia diuina
humanaque dedisset não significavam a eliminação das coisas divinas e das humanas, muito
pelo contrário, significavam sua preservação, pois a partir daquele momento em que os
vencidos entregavam suas sacra, mesmo que por imposição e supremacia de poder, prius
imperio, os romanos lhes garantiam a preservação da ordem interna e da paz, uti pacatum.
Esses fatos fizeram com que o número de deuses romanos aumentasse consideravelmente.
Porém deve ser observado que o culto dos deuses estrangeiros era realizado no interior
dos lares, não eram realizados publicamente. A realização de ritos públicos para os deuses
estrangeiros era permitida somente após longo período, depois que esses deuses fossem
aceitos na ciuitas romana. Em relação aos cultos nas cidades dominadas, havia sua
preservação pelos romanos, porém os cultos eram realizados por pontífices romanos.
Apesar de todo contato com os deuses dos povos vizinhos e com os povos dominados,
quer pela condução de suas sacra para Roma, quer pela execução de seus cultos pelos
pontífices, as maiores transformações na religião romana foram ocasionadas pela influência
do contato com a cultura grega, principalmente no que se refere às relações comerciais, a

38
partir desse momento os deuses passaram a ser representados em Roma nos moldes gregos,
ou seja, através de formas humanas, deixando de ser representados por formas simbólicas.
Através da fala de Mânlio Capitolino41, pode-se perceber que nos primeiros anos da
República os romanos já tinham instituído os templos dos deuses e, consequentemente, suas
representações físicas, de acordo com Tito Lívio:

Arreptus a uiatore “Iuppiter” inquit, “optime maxime Iunoque Regina ac


Minerua ceterique di deaeque, qui Capitolium arcemque incolitis”. (Ab
Vrbe Condita, VI, 16)

Detido pelo viajante, “grande e excelente Júpiter” - diz - “Juno Rainha e


Minerva, e todos os outros deuses e deusas, que habitais o Capitólio e a
cidadela”.

A invocação feita por Mânlio Capitolino configura bem a instituição e a representação


física divinas, nos dizeres de Tito Lívio, que são percebidas pelo uso de verbo incolo,
“habitar, residir em algum lugar”, neste caso no Capitólio e na parte alta, na cidadela,
Capitolium arcemque incolitis, “habitais o Capitólio e a cidadela”. Assim se verifica a
presença dos templos dos deuses e as alterações causadas pelo contato com o povo grego, que
foi o maior influenciador das mudanças nas relações religiosas da Roma Republicana. Essa
influência foi responsável pelas primeiras aparições de estátuas nos templos romanos,
conforme afirma Sérvio:

In Capitolio omnium deorum simulacra colebantur. (Ad Aeneidem, II, 319)

No Capitólio as representações de todos os deuses eram cultuadas.

Vale salientar que simulacra ou sua forma singular simulacrum possui vários
sinônimos, “imagem, representação, imitação, reprodução”. O verbo usado por Sérvio
também é de fundamental importância para o entendimento desse período da religião romana,
colo, aqui na sua forma passiva colebantur pode significar “cultuar”, conforme se sugeriu na
tradução, mas ainda “habitar, morar, proteger”. Então se pode afirmar certamente que as
representações físicas, simulacra, dos deuses eram cultuadas, colebantur, tanto
simbolicamente, no que se refere à força natural representada pela divindade, quanto

41
Personagem histórica, que em 390 a.C., manteve a posse do Capitólio e lutou contra os gauleses.

39
materialmente, no que tange à estátua situada no interior do templo em que se encontrava o
deus.
Além dessas modificações nas relações religiosas romanas, a cultura grega introduziu
outras modificações no que se refere ao culto de simulacros que representavam os próprios
deuses. Neste caso, pode-se citar o ritual de lectisternium em que se colocavam as estátuas
representativas dos deuses sobre um leito para lhes oferecer um banquete, é exatamente o que
significam as palavras que compõem lectisternium, que é formada pela palavra de lectus,
“leito”, acrescido do verbo sterno, “deitar”.
Uma das primeiras manifestações do lectisternium data do início da República.
Olectisternium teria sido realizado após a consulta dos livros sibilinos, conforme afirma Tito
Lívio:

Libri Sibyllini ex senatus consulto aditi sunt. Duumuiri sacris faciundis,


lectisternio tunc primum in urbe Romana facto, per dies octo Apollinem
Latonamque et Dianam, Herculem, Mercurium atque Neptunum tribus quam
amplissime tum apparari poterant stratis lectis placauere. (Ab Vrbe
Condita, V, 13, 5-6)

Os livros Sibilinos foram consultados a partir de decisão do senado. Os


Duúnviros, havendo de ser realizados os ritos sagrados, tendo sido então
feito pela primeira vez na cidade romana o lectisternium, por oito dias
puderam então ser preparados tão magnificamente, aplacaram Apolo, Latona
e Diana, Hércules, Mercúrio e além disso Netuno, nos leitos estendidos em
três.

É importante observar que Tito Lívio faz uso, primeiramente, da palavra lectisternio, o
que demonstra a fusão dos radicais das palavras que o compõem e, posteriormente, de seus
radicais separadamente, no particípio passado de sterno acrescido de lectis. Isso dispensa uma
explicação mais detalhada ao romano do que seria o lectisternium, já que tal explicação não é
dada no trecho supracitado, o que conduz ao pensamento de que não houvesse a necessidade
de um esclarecimento, pois a palavra latina usada traduzia bem a concepção grega de como se
procedia tal ritual, mesmo nesse caso em que o ritual foi realizado uma das primeiras vezes.
O contato com a cultura grega modificou bastante as relações religiosas em Roma,
principalmente no que se refere ao culto dos deuses estrangeiros, que conservavam suas
sacra, mas que tinham os ritos efetuados no interior dos lares. A partir da inserção do
lectisternium, as práticas religiosas se modificaram acentuadamente e a religião romana
gradativamente foi se modificando, conforme Tito Lívio:

40
Tanta religio, et ea magna ex parte externa, ciuitatem incessit ut aut homines
aut dei repente alii uiderentur facti. (Ab Vrbe Condita, XXV, 1, 14-16)

Uma tamanha religião, e aquela grande (parte) proveniente da parte


estrangeira, invadiu a cidade de modo que ou os homens ou os deuses
pareciam de repente feitos por outras (religiões).

As práticas religiosas, principalmente as estrangeiras, ex parte externa, a partir do


referido momento, passaram a ser realizadas publicamente e o que relata Tito Lívio acerca da
produção de outros deuses, alii uiderentur facti, na verdade se refere à aparição pública das
sacra dos povos vencidos que eram conduzidas para Roma após estes serem subjugados.
Devido a esses fatos, certamente houve fusão entre os elementos religiosos estrangeiros e
romanos, e modificações em seus rituais, também houve a ampliação no número de deuses e o
aumento no grau de importância dos deuses estrangeiros.
Em meados do séc. III a.C., após o acesso dos plebeus ao consulado, alterações
consideráveis ocorreram nas relações entre os deuses e os homens as quais anteriormente
eram apenas exercidas pelos patrícios. O principal fato se sucedeu durante o consulado de
Marco Valério, no início de séc. III a.C., em que os plebeus adquiriram direito de
desempenhar o sacerdócio e de realizar cultos religiosos. A esse respeito afirma Tito Lívio:

Rogationem ergo promulgarunt ut, cum quattuor augures, quattuor pontifices


ea tempestate essent placeretque augeri sacerdotum numerum, quattuor
pontifices, quinque augures, de plebe omnes, adlegerentur[...] ut tres
antiquae tribus, Ramnes, Titienses, Luceres, suum quaeque augurem
habeant. (Ab Vrbe Condita, X, 6, 12-19)

Então promulgaram um projeto de lei para que existissem naquele momento


quatro pontífices e quatro áugures e agradasse ser aumentado o número de
sacerdotes; (para que) admitissem quatro pontífices e cinco áugures, todos
provenientes da plebe[...] para que as três tribos antigas Ramnes, Ticienses,
Lucerenses, tenham cada uma seu áugure.

Com tal promulgação do projeto de lei, rogationem ergo promulgarunt, as três tribos
primitivas que compunham o povo romano passaram a ser mais representativas
religiosamente, pois se acrescentaram cinco aos quatro sacerdotes primitivos. Isso aconteceu
para que as três tribos antigas Ramnes, Tities e Luceres tivessem cada uma seu áugure, ut tres
antiquae tribus, Ramnes, Titienses, Luceres, suum quaeque augurem habeant, “para que as
três tribos antigas Ramnes, Ticienses, Lucerenses, tenham cada uma seu áugure”, garantindo

41
maior independência na realização de seus cultos e a diminuição da subordinação dos ritos
religiosos realizados pelos patrícios.
Em meados do séc. III a.C. a religião romana basicamente assume rumos divergentes
dos séculos anteriores, principalmente por influência dos escritos filosóficos gregos que
criticavam com vigor as ideias religiosas, transmitidas pelos poetas, principalmente as de
Homero, o qual, nos dizeres de Platão42, distorcia a verdadeira concepção divina que deveria
ser transmitida aos cidadãos.
Além da mudança de pensamento romano que foi produzida pelas concepções
filosóficas gregas, começava a surgir em Roma uma ruptura entre o Estado e a Religião que
entre os primórdios da civilização romana estavam intimamente relacionados. Sobre esses
fatos, T. Mommsen afirma:

O estudo da filosofia grega conduziu os espíritos desenvolvidos a uma crítica


aprofundada do sistema religioso e constatou-se que este sistema não podia
satisfazer às necessidades do pensamento mais esclarecido. Aconteceu uma
grande mudança no Estado: a política e a religião tinham sido até então
estreitamente ligadas, mas nesse momento, a política passou ao primeiro
plano e a religião não teve mais que uma situação apagada43.

As afirmações de T. Mommsen são observadas na crítica acentuada dos escritos


filosóficos gregos que começavam a produzir dúvidas acerca dos cultos e dos ritos oferecidos
aos deuses que, tanto na cultura grega quanto na romana, quase sempre em nada divergiam
dos costumes e hábitos humanos. A crítica produzida pela filosofia grega, já que em Roma os
estudos filosóficos surgiriam apenas nas últimas quatro décadas da República, observava que
as diferenças entre os deuses e os homens se relacionavam basicamente aos poderes atribuídos
às divindades os quais deveriam ser temidos pelos humanos.
Tais críticas aparecem muito bem fundamentadas na República, livro III, de Platão,
que analisa algumas características, que não seriam consideradas nobres, e que foram
atribuídas aos deuses por Homero, considerado maior poeta da literatura grega. Os principais
atributos humanos a que Homero vinculava suas divindades eram medo, lamentações,

42
República, III e X.
43
“L‟étude de la philosophie grecque conduisit les esprits cultivés à une critique approfondie du système
religieux et il se trouva que ce système ne pouvait suffire aux besoins de la pensée plus éclairée. Il se fit un grand
chegement dans l‟Etat; la politique et la religion avaient été jusq‟alors étroitement liées; mais à ce moment, la
politique passa au premier plan et la religion n‟eut plus qu‟une situation efface”. (Les Cultes Chez les Romains,
p. 69)

42
fraquezas, riso, mentiras. Atitudes que não seriam dignas nem mesmo a um cidadão da
república platônica.
No referido trecho da Repúbica44, Platão critica as atitudes de Zeus ao ver Sarpédon
que, segundo o deus, é , sendo subjugado por Pátroclo,

. A atitude de Zeus se agrava, quando ele precisa ser aconselhado


45
por Hera, sua esposa e irmã, , a não interferir nas ações da guerra,
pois aquilo poderia fazer com que outros deuses também se achassem no direito de intervir,
arrebatando os seus heróis preferidos ou punindo aqueles que não lhes fossem queridos.
Há em relação às atitudes de Zeus várias possibilidades interpretativas, todas de
âmbito negativo. Em não sabendo qual atitude tomar, o deus contraria os próprios atributos
que lhes são inerentes, como a inteligência e a astúcia, adquiridos através de seu casamento
46
com Métis, , “Zeus, rei dos

deuses, teve por primeira esposa Métis”, depois a manteve dentro de si mesmo,
47
, “com palavras astuciosas depositou-(a) no seu ventre”.

Se o deus conduz dentro de si a própria inteligência, , como se verifica em

Hesíodo, mostram-se inadequados os versos de Homero, que ousa imitar Zeus,

, como desprovido de inteligência, sendo aconselhado por sua esposa Hera.


Mostram-se negativas também as ideias de que Zeus, o deus supremo, seja
aconselhado por uma deusa, em uma sociedade puramente patriarcal, em que as mulheres
desempenham basicamente a função de hospedeiras dos filhos, tal fato seria extremamente
inaceitável, como demonstra Platão.
Além disso, uma maior caracterização humana de Zeus aparece no uso da expressão
interjetiva , “ai de mim”, nas palavras de Homero , que
demonstram sofrimento do deus e inversão de caráter: em vez de um herói se lamentar por
não ter a ajuda do deus, o próprio deus se lamenta pelas adversidades sofridas pelo herói.
As críticas platônicas48 das atitudes divinas continuam ao afirmar que os deuses não
devem ser imitados desta forma, Platão condena os versos homéricos,

44
República, 388c-d.
45
Ilíada, XVI, v.432.
46
Teogonia, v. 866.
47
Idem, v.890.
48
República, 389a.
43
, “então nem mesmo aceitaremos estes
(versos) de Homero sobre os deuses”, alegando que não são dignos de servirem como
representação dos deuses, sobretudo porque os poemas homéricos eram usados para educar as
crianças gregas. Não deveriam ser aceitos, , “não se aceitará”, pois
distorceriam a concepção que os cidadãos teriam dos deuses e em nada contribuiriam para a
formação dos cidadãos da República, que teria por conceito fundamental a justiça.
As ideias difundidas pelos gregos, através de seu aguçado espírito crítico no que se
refere às coisas divinas, em muito influenciaram o modo como os romanos se relacionavam
com a Religião, com os deuses, com a realização dos ritos, sobretudo no século I a.C., época
da apogeu dos escritos filosóficos latinos. Esse fato pode ser observado nos comentários de
Cícero sobre a filosofia:

In eo autem, quod in opinione positum est, huiusmodi sunt probabilia[...]


eos, qui philosophiae dent operam, non arbitrari deos esse. (De Inuentione,
I, 46)

Porém sobre aquilo em que na opinião há um lugar, desta maneira há


(coisas) prováveis[...] aqueles que concedam obra de filosofia, julgam (que)
os deuses não existem.

Nesse trecho o orador e filósofo parece apresentar duas ideias que são opostas,
marcadas por huiusmodi sunt probabilia e non arbitrari deos esse, “desta maneira há (coisas)
prováveis” e “julgam (que) os deuses não existem”, porém se observadas atentamente, é
notório o grau de incerteza atribuído às coisas religiosas, mesmo para aqueles que têm opinião
estabelecida, as coisas não se relevam com objetividade, são apenas prováveis, probabilia, e
para aqueles que se dedicam a um estudo assíduo, como os filósofos, as coisas divinas não
apresentam maior clareza, ou melhor, parecem ser cada vez mais obscuras non arbitrari deos
esse.
Certamente tais ideais foram retirados por Cícero dos escritos gregos, já que o filósofo
latino recebera educação na Grécia, e conduz ao pensamento de que a influência grega de
submeter várias crenças religiosas à obscuridade permaneceu no espírito romano até à época
áurea da literatura latina, ideias que geraram incredulidade até mesmo no espírito daqueles
que não tinham acesso aos textos gregos, ou seja, na classe da população menos favorecida de
Roma.

44
Além da acentuada crítica filosófica principalmente através dos escritos platônicos, a
Religião sofreu grandes transformações com o seu afastamento dos poderes estatais, apesar de
estarem tão intimamente ligados desde os primórdios da civilização romana. De meados do
séc. III a.C. até o séc. I a.C., os poderes desempenhados pelo Estado aumentaram
gradativamente, em proporções inversas aos desempenhados pela Religião.
A partir desse período, os representantes do Estado, como senadores e cônsules,
passaram a desempenhar papéis antes apenas exercidos pelos sacerdotes, aglutinando poderes
estatais e religiosos, como afirma Cícero:

Itaque ego ipse pontifex, qui caerimonias religionesque publicas sanctissime


tuendas arbitror, is hoc, quod primum est, esse deos persuaderi mihi non
opinione solum, sed etiam ad ueritatem plane uelim. (De Natura Deorum, I,
61)

Assim, eu mesmo pontífice, que julgo que as cerimônias e religiões públicas


devam ser defendidas santissimamente, queria com aquelas coisas ser
persuadido nisto, que é o principal: os deuses existirem, não só em minha
opinião, mas também claramente segundo a verdade.

O próprio Cícero, a partir de 76 a.C., ocupara vários cargos ligados ao Estado,


respectivamente, quaestor49, em 76 a.C.; aedilis50, em 70 a.C.; praetor51, em 67 a.C.; consul52,
em 64 a.C.; senator53, em 63 a.C., ano em que foi descoberta pelo orador a conjuração de
Catilina, motivo pelo qual, segundo Grimal (1997, p.156), Cícero recebe dos senadores o
título de senatus consultum ultimum, com o qual receberia a missão de defender a República
por todos os meios. Este episódio foi escrito pelo autor em um dos seus mais conhecidos
discursos, denominado de In L. Catilinam, com o objetivo de servir como exemplo para todos
aqueles que pretendessem ir de encontro aos interesses da República romana, o que ainda o
fez ser chamado de pater patriae.
Além de todos os cargos políticos ocupados por Cícero, ele ainda recebeu o título de
áugure, em 53 a.C., sendo capaz de interpretar os anúncios dos deuses através dos auspicium,
“auspícios”, que designavam, originalmente, a interpretação dos voos das aves, termo
proveniente da associação de auis, “ave”, e de specio < spicio, “ver, olhar”, que
posteriormente passou a representar a observação dos fenômenos naturais de um modo geral.

49
Questor é o magistrado romano incumbido da gerência das contas do tesouro.
50
Edil é um magistrado romano, responsável pelas construções, mercados.
51
Pretor é magistrado supremo.
52
Cônsul é o primeiro magistrado romano.
53
Senador.
45
No referido trecho54, observa-se a mesma fusão de funções estatais e religiosas, desta
vez presente na figura do personagem do diálogo Gaius Aurelius Cotta, representante dos
ideais da Nova Academia. Dentre os três personagens, Gaius Velleius, Quintus Lucilius
Balbus e Gaius Aurelius Cotta, que dialogam em De Natura Deorum, Cota é o único que tem
lugar na história romana, nascera em 124 a.C., era de opinião conservadora moderada,
desejava o apaziguamento das desavenças civis e procurava medidas conciliatórias entre os
cidadãos. Fora condenado ao exílio em 90 a.C., em virtude da lei Varia de maiestate como
suspeito de complacência com os revoltosos que refutavam o título de cidadão romano.
Voltaria do exílio apenas em 82 a.C. Cota também obteve o título de pontífice, itaque ego
ipse pontifex, qui caerimonias religionesque publicas sanctissime tuendas arbitror, “Assim,
eu mesmo pontífice, que julgo que as cerimônias e religiões públicas devam ser defendidas
santissimamente”, pouco depois de seu retorno e chegou ao consulado em 75 a.C.
A fusão entre as funções estatais e religiosas prejudicou sobretudo a Religião, pois
Roma tornou-se suscetível à invasão da religião estrangeira, já que os representantes
religiosos, no séc. I a.C., estavam mais envolvidos com as questões políticas e pareciam
entender cada vez menos da arte dos pontífices e da doutrina dos auspícios.
Apesar de Cícero ter recebido o título de áugure, em 53 a.C., e de valer-se do pontífice
Cota, um único personagem da história romana, para garantir os seus interesses no diálogo De
Natura Deorum, esses títulos religiosos são acentuadamente criticados pelo orador, como se
percebe em:

Retinetur autem et ad opinionem uulgi et ad magnas utilitates rei publicae


mos, religio, disciplina, ius augurium, collegii auctoritas. (De Diuinatione,
II, 70)

Porém o uso, a religião, a disciplina, o direito dos augúrios, a autoridade dos


colégios (sacerdotais) se contém tanto para a opinião do povo quanto para o
grande proveito da república.

Através de tais palavras, Cícero afirma que todos os domínios ligados à Religião
romana sofreram com a aglutinação dos poderes estatais e religiosos. Não era apenas o povo
que desconhecia, como observara Tito Lívio55 acerca de períodos mais remotos, o mos, “uso”,
a religio, “religião”, a disciplina, “disciplina”, o ius augurium, “direito dos augúrios” e

54
De Natura Deorum, I, 61.
55
Ab Vrbe Condita, I, 19; VI, 9-10.
46
acollegio auctoritas, “autoridade dos colégios sacerdotais”, mas também os que ocupavam
cargos importantes no estado responsáveis pela preservação e manutenção da Religião.
Todas as mudanças na Religião, que pareciam não trazer proveito algum nem para a
população nem para a República, et ad opinionem uulgi et ad magnas utilitates rei publicae,
“tanto para a opinião do povo quanto para o grande proveito da república”, conduziram a
outros fatores importantes para o entendimento das transformações religiosas sobretudo no
período clássico. Muitos cultos foram abandonados, pois a grande maioria da população não
os entendia, também não havia sacerdotes para sua realização. Devido a esses fatores muitos
templos religiosos ficaram vazios, restando-lhes apenas as ruínas, conforme observa Horácio:

Delicta maiorum inmeritus lues,


Romane, donec templa refeceris
Aedisque labentis deorum et
Foeda nigro simulacra fumo. (Odes, III, 6, v.1-4)

Expiarás, inocente, os delitos dos antepassados,


Romano, até que os templos e as moradas
Em ruínas dos deuses e os simulacros sujos
Por negra fumaça tenhas refeito.

Os versos de Horácio exemplificam bem as mudanças de concepção acerca do culto


religioso, eles afirmam que haverá grande punição àqueles que continuarem desprezando os
templos e as moradas dos deuses, templa aedisque deorum, que se encontravam em ruínas,
labentis, e que estavam juntamente com os seus simulacros sujos por negra fumaça, foeda
nigro simulacra fumo.
Esse recorte demonstra basicamente a imagem do distanciamento religioso dos
romanos, sobretudo em 27 a.C., época em que Augusto empreendera o início da restauração
dos templos romanos, logo após a sua vitória em Ácio. O vocativo usado pelo poeta, romane,
apesar de ter sido empregado no singular, carrega múltiplos significados, podendo significar
uma alusão direta ao primeiro imperador romano Júlio César, que empreendera a reconstrução
dos templos, e de modo mais abrangente uma invocação direta a todos os romanos a fim de
que fossem preservados os costumes dos antepassados, maiorum, evitando assim punições
provenientes dos deuses.
Os costumes dos antepassados, nesses versos de Horácio, mostram-se claramente
corrompidos. Os romanos de 27 a.C. parecem que não são mais os mesmos que deram a
grandeza ao Império, pois se observa a degradação dos vínculos familiares, principalmente no

47
uso de aedis, traduzido por “moradas”, mas que também pode significar “lareira”, “lugar onde
se faz o fogo”. Fogo este que desempenhava papel muito importante no mundo greco-latino,
como afirma Fustel de Coulanges:

A casa do grego e do romano obrigava um altar; sobre esse altar devia haver
sempre um pouco de cinza e carvões acesos. Era obrigação sagrada, para o
chefe de cada casa, manter o fogo dia e noite. Infeliz da casa onde se
apagasse! Cada noite cobriam-se de cinza os carvões, para impedir que se
consumissem por completo; pela manhã, o primeiro cuidado era reavivar o
fogo, e alimentá-lo com ramos. (A Cidade Antiga, p. 49)

A crítica de Horácio vai de encontro aos costumes explicados por Fustel de Coulanges,
pois a preservação e culto do fogo sagrado, conservado nos altares de cada casa e
constantemente alimentado pelo chefe da família, era tido como rito de obrigação sagrada.
Essa prática religiosa estava tão intimamente relacionada à vida social que a expressão
extinção da família e do fogo eram consideradas sinônimas. Não se podia usar qualquer
madeira para a alimentação desse fogo, alguns tipos eram considerados impiedade, também
não se devia praticar atos que fossem considerados impiedosos na presença da chama divina.
Em face de sua divindade, o fogo sagrado era adorado e cultuado, várias ofertas lhe
eram feitas: vinho, incenso, flores. Os antigos pediam-lhe proteção como se solicitassem a um
deus, para se conseguir os mais variados objetos do desejo: felicidade, saúde, prosperidade.
No entanto, Horácio critica os romanos que não preservavam tal costume, verificando que o
Império poderia sofrer punições divinas se não desse continuidade aos hábitos cultivados
pelos antepassados desde a fundação de Roma.
Não é de se admirar que com o abandono dos templos e dos cultos religiosos, mesmo
aqueles praticados nos interiores dos lares, como o rito do fogo, os deuses romanos caíssem
no esquecimento do povo, ou fossem substituídos pelos deuses gregos, ou fizessem parte de
tradições incertas, que mais conduziam a dúvidas sobre as potências divinas do que a certezas
dessas potências. A respeito dessa miscigenação informativa sobre os deuses nos últimos anos
de República, Cícero escreve:

Principio Ioues tres numerant ii, qui theologi nominantur, ex quibus primum
et secundum natos in Arcadia; alterum patre Aethere, ex quo etiam
Proserpinam natam ferunt et Liberum, alterum patre Caelo, qui genuisse
Minervam dicitur, quam principem et inuentricem belli ferunt; tertium
Cretensem Saturni filium; cuius in illa insula sepulcrum ostenditur. (De
Natura Deorum, III, 53)

48
Primeiramente aqueles que são chamados de teólogos enumeram três
Jupíteres: o primeiro e o segundo deles nascidos na Arcádia; um de pai Éter,
do qual dizem (ter) nascido Prosérpina e Líbero; outro de pai Céu, que se diz
ter gerado Minerva, que dizem como chefe e criadora da guerra; o terceiro
(é) de Creta, filho de Saturno cujo sepulcro se mostra naquela ilha.

Se Júpiter era o primeiro na hierarquia das divindades romanas desde o final da


Monarquia, e mesmo assim havia essa falta de definição acerca de sua figura, fazendo com
que Cícero apresentasse três Jupíteres, Ioues tres, um cujo pai seria Éter, alterum patre
Aethere, outro cujo pai seria Céu, alterum patre Caelo, o terceiro cretense e filho de saturno,
tertium Cretensem Saturni filium, isso demonstra a falta de certezas sobre as divindades, não
apenas por parte do povo em geral, mas pela depreciação que a religião sofrera nos últimos
anos da República, sobretudo quando os representantes do estado começaram a colocar
interesses políticos acima dos religiosos. Os sacerdotes já não exerciam papéis tão
importantes nas decisões do estado, e os estudiosos da religião pareciam não ter conhecimento
sobre o objeto de seu estudo, tanto que Cícero afirma ii, qui theologi nominantur, “aqueles
que são chamados de teólogos” e não aqueles que são teólogos, o que põe em xeque tais
afirmações sobre os deuses, ou mesmo suas origens.
É nessa atmosfera de incertezas sobre os deuses que está inserida a Roma do final do
período republicano. Uma sociedade que sofrera bastantes modificações no âmbito religioso,
geradas pela inserção de culturas estrangeiras, principalmente da grega, e por uma crítica
acentuada por parte de seus cidadãos mais ilustres – filósofos, oradores, políticos,
historiadores – que percebiam que os cultos religiosos não se baseavam mais na tradição, já
bastante corrompida, sobretudo nos anos finais da República romana, por interesses pessoais e
políticos.
Tendo sido elucidados os principais elementos da Religio romana no Período
Repúblicano para que não seja necessária a explicação à medida que forem surgindo na
análise do diálogo De Natura Deorum, é necessário que sejam explicitados, como se fará a
seguir, os locais em que eram praticados os cultos aos deuses.

49
3. O Culto dos Deuses Romanos: Sacra Priuata et Sacra Publica

Nos primeiros anos da Monarquia, as práticas religiosas eram basicamente realizadas


pelo estado, quer por interesse em preservar os conhecimentos religiosos que lhes eram
propícios, quer pela manipulação do povo que se dava através desses cultos. Com a influência
da religião estrangeira a partir das conquistas romanas, com a permissão por parte do estado
da realização dos cultos privados, o culto romano passou a ser realizado basicamente em duas
esferas, podendo ser dividido em duas grandes classes, conforme as afirmações de Cícero e de
Tito Lívio, respectivamente:

Et sacra priuata coluerunt et publicis sacerdotiis praefuerunt. (De Domo


Sua, 105)

Tanto as coisas sagradas particulares cultuaram quanto estiveram à frente


dos sacerdotes públicos.

An gentilicia sacra ne in bello quidem intermitti, publica sacra et Romanos


deos etiam in pace deseri placet? (Ab Vrbe Condita, V, 52, 9-10)

Por acaso para que nem mesmo na guerra as coisas sagradas familiares
sejam interrompidas, é agradável (que) as coisas sagradas públicas e os
deuses romanos também sejam abandonados na paz?

As sacra, “coisas sagradas”, apresentavam-se divididas em sacra priuata, “coisas


sagradas particulares”, e sacra publica, “coisas sagradas públicas”, estas eram celebradas em
função do povo pelos sacerdotes, ou pelos magistrados, ou mesmo por particulares que
realizavam os cultos diante de uma pequena parcela da população. Por sua vez as sacra
priuata eram celebradas por simples particulares ou pela família no âmbito de seus lares, em
cultos mais reservados.
Basicamente as práticas religiosas das sacra priuata estavam ligadas ao culto dos
deuses Penates e dos deuses Lares. Os Penates eram os deuses protetores do penitus, “que se
encontra no fundo, no interior”, ou seja, como o próprio adjetivo indica esses deuses
garantiam a proteção do interior das casas romanas; segundo Cícero a palavra Penates era
proveniente de penus, uma vez que está em todas as coisas que nutrem os seres humanos, por
isso devem ser cultuados:

50
Nec longe absunt ab hac ui di Penates, siue a penu ducto nomine (est enim
omne quo uescuntur homines penus) siue ab eo quod penitus insident; ex
quo etiam penetrales a poetis uocantur. (De Natura Deorum, II, 68)

Não se afastam muito daquela força os deuses Penates, tendo o nome trazido
ou de penus (pois penus é tudo por que os homens são nutridos), ou disto,
porque estão postos profundamente; a partir disto também são chamados
pelos poetas de penetrales.

Com a comparação entre as palavras Penates, penus, penitus e penetrales, verifica-se a


proximidade semântica existente entre elas, pois traduzem acertadamente o conceito e a
importância que os deuses Penates tinham para o homem romano da República. A
aproximação semântica é evidente, penus é “a dispensa, os víveres, o que enche as mesas de
comida”, penitus é “o que se encontra no fundo, o que vai até o fundo, o interior”, penetrales
é “o que está colocado no lugar mais íntimo da casa, o interior, o secreto”, por sua vez os
Penates são os cultos realizados nos interiores das casas, sacra priuata. Observa-se também
com tal comparação, por um lado a tendência de objetividade e concretude dada à religião
pelos romanos, que associavam os cultos no interior das casas aos objetos e os haveres
contidos nela; por outro a crença em seus deuses protetores, já que estes, no pensamento
romano, garantiam os subsídios necessários para a sustentação da vida no interior dos lares.
Segundo T. Mommsen o lugar em que estava situado o penus foi modificado com o
tempo no interior da casa, localizava-se ao lado do átrio e passou a se situar na parte de trás da
casa: “O penus se encontrava nas velhas casas romanas ao lado do átrio, mais tarde foi
colocado na parte de trás da casa, na penetrale domus, também os antigos associavam a
palavra penates àquelas de penus e de penetrale.”56.
No interior da casa romana havia um altar com formato de um pequeno templo e era
utilizado para o culto das sacra priuata. Pode-se ter uma concepção de como era esse
templo57 em formato reduzido a partir daqueles que foram encontrados nas casas de Pompeia,
no final da República.
Ainda em relação aos ritos das sacra priuata, os romanos acreditavam que as almas
dos mortos continuavam a viver no mundo inferior na qualidade de deuses, que eram
denominados de dii manes, “deuses manes”, conforme indica Macróbio:

56
“Le penus se trouvait dans les vieilles maisons romaines à cote de l‟atrium; plus tard il fut placé sur le derrière
de la maison, dans le penetrale domus; aussi les anciens réunissent-ils le mot de pénates à ceux de penus e de
penetrale.”. (Les Cultes Chez les Romains, p. 147)
57
Ver imagens III, IV, IX e X.

51
Mane autem dictum, aut quod ab inferioribus locis, id est a Manibus,
exordium lucis emergat, aut, quod uerius mihi uidetur, ab omine boni
nominis. (Saturnalia, I, 3)

Mas é dito manhã, ou porque o princípio de luz surja dos locais inferiores,
isto é, dos Manes, ou (surja) do presságio de bom nome, o que me parece
mais verdadeiro.

A ideia a que estavam associados os deuses manes era inteiramente positiva,


confundido-se a própria palavra mane, “manhã”, com esses deuses manibus, “manes”, aos
quais também se associavam por eufemismo omine boni nominis, “presságio de bom nome”,
capazes de dar proteção às casas dos romanos e gerar o princípio de luz, exordium lucis
emergat. Considerando os manes no âmbito mais abrangente, os romanos cultuavam os
deuses Lares que, segundo Jacqueline Champeaux, eram os antepassados divinizados:

Os Lares são, como às vezes se diz, ancestrais divinizados: eles são os


protetores de uma área, de uma propriedade. Seus olhos estão voltados para
o mundo exterior: velam sobre a casa em um sentido amplo, incluindo os
escravos, numa propriedade agrícola, bairros e as encruzilhadas, estão
presentes nas cidades e nos campos.58

Os deuses manes e os deuses Lares eram cultuados e respeitados pelos romanos, pois
ambos tinham basicamente as mesmas funções. Os manes seriam a representação das almas
dos mortos, considerados como criaturas sagradas, e segundo o pensamento antigo, cada
morto era um deus, reverenciados e cultuados como seres divinos. Por sua vez os deuses
Lares são os protetores não apenas da casa, mas de uma área, de uma propriedade,
responsáveis por vigiar a moradia e tudo o que nela continha, como os escravos e até mesmo
os caminhos por que a moradia era cruzada.
Muitas vezes os deuses Lares eram confundidos, por processo metonímico, devido ao
uso do mesmo radical, com o próprio lar, ou com a lareira, ou até mesmo com o lararium,
“capela para os deuses lares”. Fato que se verificava porque tanto o lar, quanto a lareira, como
o lararium, seriam responsáveis pela proteção dos membros da família, proteção essa que não
seria permitida sem o culto dos deuses Lares.
Havia nas sacra priuata a realização das cerimônias ou cultos domésticos
cotidianamente, com os ritos habituais dos Penates nos interiores das casas romanas, e em

58
I Lari sono, come talvolta è stato detto, antenati divinizzati: sono i protettori di uno spazio, di uma proprietà. Il
loro sguardo è rivolto al mondo esterno: vegliano sulla casa in senso lato, compresi gli schiavi, sulla proprietà
agrícola, sula quartieri e i crocevia, sono presenti nella città e nei campi. (La Religione dei Romani, p.106)
52
situações especiais a realização dos ritos em datas específicas com o intuito, por exemplo, de
verificar a presença dos deuses protetores do lar, conforme relata Sérvio:

Apud Romanos etiam cena edita sublatisque mensis primis silentium fieri
solebat, quoad ea quae de cena libata fuerant ad focum ferrentur et in ignem
darentur, ac puer deos propitios nuntiasset, ut diis honor haberetur tacendo
[lacuna no texto] que nos cum intercessit inter cenandum, Graeci quoque
dicunt. (Ad Aeneidem, I, 730)

Entre os Romanos também durante a ceia (que era) comida e à primeira


mesa (que era) posta costumava-se fazer silêncio, enquanto aquelas (coisas)
que foram da ceia oferecida aos deuses se levavam ao altar e eram oferecidas
ao fogo, e a criança anunciaria os deuses favoráveis, para que a honra se
mantivesse aos deuses, calando-se [lacuna no texto] Como nos intercedesse,
durante a ceia, também os gregos chamam de presença dos deuses.

A verificação da presença dos deuses, , como denominavam os


gregos, era um ritual realizado entre os romanos, apud Romanos, habitual e cotidiano.
Também seguia todo um rito respeitoso por se acreditar que as divindades estariam presentes
no lar, por isso havia todo um procedimento de realização que era repetido no interior da casa,
era também oferecida ao fogo do altar a comida da ceia, ad focum ferrentur.
Faz-se necessária uma comparação entre o substantivo focum e o ignem utilizados por
Sérvio para explicitação do ritual da presença divina para um melhor entendimento de tal
prática religiosa. Ignem, “fogo”, representa apenas uma chama, o próprio fogo que queima,
enquanto focum representa “o fogo do altar”, “a morada dos deuses”, “os Lares e os Penates”,
“a morada e a habitação”. Associado a um vocabulário específico utilizado, conforme
demonstra Sérvio, havia todo um caráter de respeito, verificado na representação de vários
elementos, como o oferecimento dos alimentos da ceia, cena edita, e o anúncio dos deuses por
uma criança que participava do culto, ac puer deos propitios nuntiasset. Fato esse que poderia
garantir a preservação dessa prática religiosa por gerações, já que as crianças faziam parte de
sua realização.
Além dos cultos de verificação da presença divina por muitos
outros motivos os romanos ofereciam honras aos deuses Lares, por exemplo, no aniversário
do pater familias, em honra aos mortos da família, no casamento de um filho, no retorno de
viagem de um membro da família. Diante de todas esses manifestações normalmente os lares
eram ornados com flores, ofereciam-se comidas, vinho, em alguns casos realizavam-se
sacrifícios de animais sobretudo de porcos, conforme indica Horácio:

53
Caelo supinas si tuleris manus
Nascente luna, rustica Phidyle
Si ture placaris et horna
Fruge Lares auidaque porca (Odes, III, 23, 1-4)

Se tu inclinas,levas as mãos ao céu


À lua nascente, ó rústica Fídile,
Se com incenso acalmas os Lares
Com o grão deste e com a ávida porca.

Há a especificação do período em que se realizava o culto dos deuses Lares, através das
palavras usadas por Horácio, mesmo que conotativamente, o autor dá evidências de que
geralmente esses cultos eram realizados nas Calendas de cada mês, através da expressão
nascente luna, que pode ser entendida como o primeiro dia do mês. Há ainda a explicitação
daquilo que era usado nesses cultos, como o ture, “incenso” e também de alguns alimentos
que eram destinados aos deuses Lares, como horna fruge, “o grão deste ano”, ou mesmo o
sacrifício de animais auida porca, “ávida porca”, que seriam responsáveis pelo placaris
Lares, ou seja, pelo apaziguamento dos deuses Lares.
Após a exposição dos principais elementos vinculados às sacra priuata e publica , faz-
se necessária uma descrição de locais em que eram realizados os rituais religiosos para que
haja as devidas associações entre o ritual, seja público ou privado, e seu local específico de
realização. Isso garantirá, quando for indispensável, a retomada de certos termos utilizados -
locais ou rituais - que são necessários para a análise do diálogo De Natura Deorum, de
Cícero.

54
4. Locais Sagrados: Loca Sacra

No âmbito das sacra publica, “coisas sagradas públicas”, é necessário haver a


explicitação de alguns pontos determinantes para o seu entendimento, como os locais onde
eram realizados cultos e o vocabulário empregado para a designação desses locais.
Geralmente se entende por sagrado o lugar onde se realizavam as sacra publica,
porém os dizeres de Macróbio tentam especificar e, basicamente, diferenciar a terminologia
que era usada na religião romana, como sacrum, sanctum e religiosum:

Et quia inter decreta pontificum hoc maxime quaeritur, quid sacrum, quid
profanum, quid sanctum, quid religiosum[...] Sacrum est, ut Trebatius libro
primo de religionibus refert, quicquid est quod deorum habetur[...] Profanum
omnes paene consentiunt id esse quod extra fanaticam causam sit, quasi
porro a fano et a religione secretum[...] Sanctum est, ut idem Trebatius libro
decimo Religionum refert, interdum idem quod sacrum idemque quod
religiosum, interdum aliud, hoc est nec sacrum nec religiosum, est[...]
Seruius Sulpicius religionem esse dictam tradidit quae propter sanctitatem
aliquam remota ac seposita a nobis sit. (Saturnais, III, 3, 1-8)

E também entre as doutrinas dos pontífices busca-se sobretudo isto: o que (é)
sagrado, o que (é) profano, o que (é) santo, o que (é) religioso[...] Sagrado é,
como se refere Trebácio no primeiro livro sobre (as coisas) religiosas,
alguma coisa que pertence aos deuses[...] Todos estão quase de acordo (que)
profano é aquilo que esteja fora de uma razão inspirada, de modo que além
disso (esteja fora) do lugar sagrado e da religião particular[...] Santo é, como
o mesmo Trebácio se refere no livro décimo da Religião, algumas vezes o
mesmo que o sagrado e o mesmo que o religioso, outras vezes é diferente,
isto é, nem sagrado nem religioso[...] Sérvio Sulpício disse (que) a religião
tem sido nomeada (assim), a qual por causa de certo caráter sagrado tenha
sido afastada e separada de nós.

Pode-se entender pela determinação de que sacrum est quicquid est quod deorum habetur
todos os elementos físicos que se destinam aos deuses, como o altar, o templo e tudo que é
utilizado durante o culto, ou seja, certo objeto pode se tornar sacrum caso seja determinado
pelas sacra publica, geralmente por decisão de uma lei.
Parece que Macróbio não consegue discernir o que seja sactum para a religião romana,
ao afirmar que sanctum est interdum idem quod sacrum idemque quod religiosum, “algumas
vezes o mesmo que o sagrado e o mesmo que o religioso”, sobretudo quando faz uso da
expressão interdum aliud, “outras vezes diferente”, podendo não ser o sanctum o que havia
sido afirmado anteriormente nec sacrum nec religiosum, “nem sacrado nem profano”.
55
Necessariamente não significa que o autor não saiba o que seja o sanctum, apenas
tenta explicitar que o sanctum é algo que não pertence nem a um deus, como se observa em
relação ao sacrum, nem pertence ao homem, mas que tenha sido considerado, geralmente por
determinação legal, inviolável.
Por sua vez, nas palavras do autor, religio, “religião”, ou o religioso é assim nomeada
porque remota ac seposita a nobis sit, “tenha sido afastada e separada de nós”, ou seja, é
aquilo que é protegido por sua própria natureza, sem que tenha sido verificado por
determinação de uma lei, ou por qualquer que seja a intervenção humana, é religiosa por seu
próprio caráter.
A ideia atribuída ao religioso é oposta a de profanum, pois este, extra fanaticam
causam sit, “está fora de uma razão inspirada”. O adjetivo fanaticam é proveniente de fanum,
“lugar sagrado”, e pode também significar “entusiasmado”, que, por sua vez, provém do
adjetivo grego , ou seja, “o que tem o deus no interior”. Como a sociedade romana
desde a origem é basicamente regida pela religião, o religioso determina todas as atividades
sociais. O conceito de religioso concebido por Macróbio é o mesmo verificado por Georges
Dumézil59 em que é afirmado que a religião e suas concepções de sacrum, sanctum estão
sempre em todos os lugares, são sempre atuais e ativos, seus ritos são celebrados tanto em
tempo de guerra quanto em tempo de paz.
Nas sacra publica, inicialmente os locais que não tinham sido consagrados de acordo
com os ritos da religião romana não podiam ser considerados loca sacra, “locais sagrados”. T.
Mommsen divide-os em cinco categorias específicas:

Os túmulos, sepulcra, monumenta[...] Les sacella para o culto particular dos


deuses[...] Os locais atingidos por raio[...] Certo número de lugares que
lembravam os infortúnios públicos ou os prodígios ocorridos há bastante
tempo[...] Os lugares que serviam ao culto na província.60

Alguns desses loca sacra inicialmente não foram considerados sagrados, pois em
tempos mais remotos não tinham sido consagrados publicamente, muitos deles sofriam com
espoliações e com o desrespeito através da retirada de objetos desses locais, posteriormente

59
La Religion Romaine Archaïque, p. 31.
60
“Les tombeaux, sepulcra, monumenta[...] Les sacella pour le culte privé des dieux[...] Les places frappées par
la foudre[...] Un certain nombre de lieux qui rappelaient des malheurs publics ou des prodiges survenus depuis
longtemps[...] Les lieux qui servaient au culte en province”. (Les Cultes Chez les Romains, p.176-177)

56
leis estabeleceram que lugares, como os túmulos e os sepulcros, mesmo tendo sido
consagrados apenas em caráter privado, se tornassem publicamente loca sacra. Outros locais,
mesmo não tendo sido consagrados de acordo com os ritos religiosos romanos, como os que
estavam localizados nas províncias, também eram respeitados e considerados como loca
sacra.
Macróbio indica com mais especificidade como um local deveria ser classificado
como loca sacra:

Nomina etiam sacrorum locorum sub congrua proprietate proferre


pontificalis obseruatio est. (Saturnais, III, 4, 1)

Os nomes dos locais sagrados e também (sua) observação deve ser declarado
conforme a observação dos pontífices.

A observação e declaração dos loca sacra por parte de pontífices nem sempre eram
seguidas pelos romanos, conforme se observa nos dizeres de T. Mommsen em relação aos
lugares localizados nas províncias, que não tinham sido declarados loca sacra pelos
pontífices, nem mesmo realizavam igualmente os ritos romanos.
Declara ainda Macróbio (Saturnais, III, 4, 1- 7,8) os locais que com maior frequência
eram considerados loca sacra pelos romanos: aedes, templum, fanum, delubrum, lucus,
aediculum e sacellum. Alguns desses lugares nomeavam os próprios recintos, outros davam
nome às localidades em que eles estavam inseridos. Constantemente havia genaralizações e os
recintos eram confundidos com as localidades em que estavam situados, havendo uma espécie
de troca recíproca em sua nomenclatura.
Geralmente se faziam distinções entre os nomes dados aos lugares dos cultos e dos
ritos: o aedes, o aediculum e o sacellum designavam inicialmente um tipo de edificação ou
pequeno santuário; o templum, o delubrum e o fanum eram mais utilizados para determinar
um recinto sagrado ou santuário; por sua vez, o lucus indicava um lugar bastante específico
que podia ficar dentro de um santuário ou à sua margem.
A origem de alguns desses termos é muito próxima, o que era um dos fatores que
proporcionava certa confusão no uso de uma nomenclatura mais específica pelos romanos,
impossibilitando assim sua distinção. O aedes podia significar “o lugar onde se fazia o fogo”,
“a lareira”, porém também indicava “a morada dos deuses”, já que, segundo Fustel de

57
Coulanges61, a casa do grego e do romano abrigava um altar em que devia sempre haver
carvões acesos, conservando assim o fogo sagrado, que garantia a preservação da vida na
casa, em muitas vezes se confundiam o fogo aceso e a própria vida da família que era
responsável por sua conservação, ou seja, se havia vida no interior da casa, o fogo deveria ser
mantido aceso.
De aedes derivou “casa”, “construção em geral”, já que em muitas das casas havia
imagens dos deuses que eram cultuados em seu interior. Como aedes, pouco a pouco, passou
a designar habitação de um modo generalizado, fazia-se comumente uso do adjetivo sacer,
“sagrado”, ou seja, aedes sacra, que deferenciava o lugar sagrado de uma habitação comum.
Por extensão aedes também derivou templum e muitas vezes os romanos usavam esses termos
indistintamente, porém havia inicialmente diferenciações relacionadas a esses locais, como
indica Aulo Gélio:

Inter quae id quoque scriptum reliquit non omnes aedes sacras templa esse ac
ne aedem quidemVestae templum esse. (Noites Áticas, XIV, 7, 7)

Entre as quais62, deixou escrito também isto: nem todas aedes sacras são
templa e nem mesmo a aedem de Vesta é um templum.

O templum, diferentemente da aedes, era um espaço delimitado por um áugure,


ritualmente inaugurado, conforme descreve Andrea Carandini63, e também no templum se
tomavam augúrios e presságios, não era apenas um espaço consagrado a uma divindade, como
a aedes. Desse modo pode-se estabelecer uma distinção entre os dois lugares destinados ao
culto dos deuses, aedes e templum, este era ritualmente inaugurado enquanto aquele não o era.
O substantivo aediculum é diminutivo de aedes, por esta razão podem-se fazer várias
atribuições a este tipo de edificação. O aediculum em geral era uma pequena edificação,
algumas vezes se tratava apenas de um pequeno templo ou de uma capela situado no interior
do recinto.
Atribuição semelhante à de aediculum possui sacellum, que é o diminutivo de sacer.
Sacellum é, pois, “um pequeno santuário”, que pode conter um altar. Aulo Gélio dá
explicações mais específicas a respeito de sacellum:

61
A Cidade Antiga, p.49.
62
Cartas de Varrão a Opiniano. (Noites Áticas, XIV,7, 3).
63
Roma: Il Primo Giorno, p.39.
58
Nam in libro de religionibus secundo: “sacellum est” “inquit” “locus paruus
deo sacratus cum ara. “Deinde addit uerba haec:” “Sacellum” ex duobus
uerbis arbitror compositum “sacri” et “cellae”, quasi “sacra cella”. (Noites
Áticas, VII, 12, 5)

Pois no segundo livro sobre a religião, diz64: “sacellum é um pequeno local


sagrado com um altar para o deus.” Em seguida acrescenta estas palavras:
“Sacellum” penso (que seja) composto de duas palavras, de “sacer” e de
“cella”, da mesma forma que “sacra cella”.

Valendo-se do comentário etimológico de Aulo Gélio, sacellum não seria apenas um


local com um altar consagrado a um deus, locus paruus deo sacratus cum ara, mas também o
composto de cella que pode ser traduzido por “pequeno compartimento, quarto pequeno,
capela, santuário”, acrescido de sacer, “sagrado”. Trata-se então de um lugar sagrado de
reduzidas dimensões, parecendo se tratar de um lugar de culto ao ar livre, muito semelhante
aos primeiros santuários romanos.
Por sua vez, delubrum era um lugar coberto situado à frente do templum, que era
destinado ao culto de muitos deuses e que tinha um teto por que a água escorria, conforme
descreve Sérvio:

Delubrum dicitur quod uno tecto plura conplectitur numina, quia uno tecto
diluitur, ut est Capitolium, in quo est Minerua, Iuppiter, Iuno. Alii, ut
Cincius, dicunt, delubrum esse locum ante templum, ubi aqua currit, a
diluendo. (Ad Aeneidem, II, 225-226)

Diz-se delubrum o que contém um teto para vários deuses, porque (a água)
se dissipa no teto, como é o Capitólio, no qual está Minerva, Júpiter, Juno.
Outros, como Cíncio, dizem (que) o delubrum é um local diante do templo,
onde a água corre para se dissipar.

Desse modo pode-se entender por delubrum uma parte do santuário que era coberto,
uno tecto conplectitur, por onde escorria a água, ubi aqua currit, e que era destinado não
apenas a um deus específico, mas a vários deuses, como Minerua, Iuppiter, Iuno, situado à
frente do templo, ante templum.
Etimologicamente, delubrum pode ser considerado como derivado do verbo diluere,
“dissolver, dissipar”, o qual pode também significar “purificar-se com água”, usado duas
vezes no trecho de Sérvio, diluitur e diluendo. Assim ao delubrum se associava a ideia da
purificação que se realizava através da água antes da entrada no templo.

64
Trebácio.
59
Lucus, “bosque sagrado”, que tem como característica um conjunto de grandes árvores
que impossibilitam a visão do céu e a entrada dos raios solares. Era um lugar em que
predominavam o silêncio e a sombra, proporcionando, segundo os romanos, um sentimento
da presença divina, conforme afirma Cícero:

Est enim quaedam opinione species deorum in oculis, non solum in


mentibus. Eandemque rationem luci habent in agris. (De Legibus, II, 26-27)

Pois há em certa opinião uma imagem dos deuses nos (nossos) olhos, não
apenas nos (nossos) espíritos, os luci têm aquela mesma disposição nos
campos.

Os luci possuíam um caráter sagrado intrínseco, produzido pela sua capacidade de


gerar não apenas ao espírito humano, non solum in mentibus, mas também aos seus olhos, in
oculis, uma possível visão da divindade, species deorum. Por tal caráter divino, o lucus não
tinha a necessidade de inauguração por parte de um áugure, como acontecia com o templum,
pois os romanos acreditavam que o lucus era a própria morada da divindade.
Tanto os locais, em que eram realizadas as práticas religiosas, quanto seus rituais,
como os sacerdotes envolvidos nesses ritos são de suma importância para o entendimento das
transformações sofridas pela Religio romana desde a fundação da cidade de Roma, no início
do Período monárquico, até o final do Período Republicano, momento em que está inserido o
diálogo filosófico De Natura Deorum, de Cícero, que será analisado à luz das categorias
retóricas vigentes na Antiguidade Clássica.
Analisar um diálogo que versa sobre a natureza dos deuses sem o auxílio explicativo
da Religio, que teve seus principais elementos esclarecidos neste capítulo, seria desconsiderar
o espírito religioso em que está inserido o homem romano da época de Cícero, ou seja, o final
do século I a.C.
A exposição e as explicações acerca da Religio romana expostas neste capítulo
nortearão, quando necessário, a análise dos aspectos religiosos dos três Livros que compõem
o discurso filosófico De Natura Deorum, “Sobre a Natureza dos Deuses”. Vale salientar que
os capítulos seguintes versarão sobre Retórica e Dialética, e sua aplicabilidade conceitual em
De Natura Deorum.

60
II. Estruturação Retórica do De Natura Deorum

Os dois seguintes capítulos versarão sobre conceitos de Retórica e Dialética que


nortearão a análise do diálogo filosófico De Natura Deorum, de Cícero. Apresentarão a
seguinte ordem de abordagem temática: proposição e organização do diálogo em De Natura
Deorum; conceituação de Retórica e Dialética; elementos constituintes do discurso retórico e
os atributos do orador; as partes constituintes do discurso; estruturação retórica do De Natura
Deorum, Livro I; estruturação retórica do De Natura Deorum, Livro II; e estruturação retórica
do De Natura Deorum, Livro III.
A partir de tal estruturação Retórica do De Natura Deorum, buscar-se-á se o autor
Cícero, considerado o modelo de orador romano e retórico por excelência, consegue a
aplicação de teorias retóricas tão apreciadas por ele em seus livros que versam sobre o
assunto, os quais compõem a maior parte de sua produção intelectual, e se em um livro, que
versa sobre as principais correntes filosóficas romanas, é capaz de ser eloquente como sugere
que seja um bom orador.

61
1. Proposição e Organização do Diálogo em De Natura Deorum

Entre os anos 44 e 45 a.C., Cícero produzira os seus principais escritos filosóficos,


como De Natura Deorum, De Finibus, Tusculanae Disputationes e De Officiis. Há causas
relevantes para que autor enfatize os escritos filosóficos em detrimento dos retóricos.
Primeiramente, o fator político é de suma importância para o seu envolvimento na tentativa de
desenvolver obras de conteúdo filosófico que se equiparassem às gregas, pois com a
decadência da República romana, após a vitória de César sobre Pompeu, em 48 a.C., o autor
perdera sua influência como grande orador, sendo assim centralizou suas atividades
intelectuais no campo literário-filosófico; por outro lado, no âmbito pessoal o período também
exerceu grande influência no autor, sobretudo após a morte de sua filha Túlia, em 45 a.C.,
como o próprio Cícero comenta em passagens de obras diferentes, mas que datam do mesmo
ano, respectivamente, Academici e De Natura Deorum :

Nunc uero et fortunae grauissimo percussus uulnere et administratione rei


publicae liberatus doloris medicinam a philosophia peto et otii oblectationem
hanc honestissimam iudico. (Academici, I, 11)

Mas agora tanto ferido por uma gravíssima aflição da sorte, quanto desligado
da administração da coisa pública, procuro a partir da filosofia um alívio à
dor, e julgo louvabilíssima esta distração do ócio.

Hortata etiam est, ut me ad haec conferrem, animi aegritudo fortunae magna


et graui commota iniuria; cuius si maiorem aliquam leuationem reperire
potuissem, non ad hanc potissimum confugissem. Ea uero ipsa nulla ratione
melius frui potui, quam si me non modo ad legendos libros, sed etiam ad
totam philosophiam pertractandam dedissem. (De Natura Deorum, I, 9)

Também (me) conduziu e sacudiu, de modo que me trouxesse até aqui, uma
angústia da alma, e uma injúria grande, e uma grave fortuna, da qual, se
tivesse (eu) podido encontrar algum consolo maior, não tivesse (me)
refugiado, sobretudo na filosofia. Disto mesmo, verdadeiramente, por
nenhuma razão, pude usufruir melhor do que se me tivesse dado não só a ler
livros, mas também a ler com cuidado toda a filosofia.

A morte da filha Túlia - que é traduzida nos trechos por fortunae grauissimo uulnere
“uma gravíssima aflição da sorte” e animi aegritudo fortunae magna et graui commota
iniuria “uma angústia da alma, e uma injúria grande, e uma grave fortuna” - parece ter
influenciado mais o autor a escrever sobre filosofia, até mesmo por tentar buscar explicações
para questões mais relacionadas ao âmago da natureza, quer seja esta das coisas, dos animais,
dos seres humanos ou até mesmo dos deuses.
62
Cícero, sendo atingido por animi aegritudo fortunae magna et graui commota iniuria,
“uma angústia da alma, e uma injúria grande, e uma grave fortuna”, busca seu consolo nas
leituras principalmente a philosophia “a partir da filosofia” nos livros, non modo ad legendos
libros, sed etiam ad totam philosophiam pertractandam, “não só a ler livros, mas também a
ler com cuidado toda a filosofia”.
Uma leitura que produziria questionamentos proveitosos, já que não seria realizada
apenas objetivando a resolução de problemas pessoais, mas com o intuito de verificar o que
havia de incoerente nas principais correntes filosóficas, sobretudo gregas. Sendo assim, pode-
se relacionar a expressão philosophiam pertractandam, “com cuidado a filosofia”, a um
estudo mais aprofundado de filosofia, já que o verbo pertracto possui vários significados, ou
seja, “manejar longamente ou com cuidado, examinar minuciosamente, estudar a fundo,
aprofundar”.
Desse modo, o autor não sugere apenas, no De Natura Deorum, um questionamento
sobre as principais correntes filosóficas gregas, mas uma tentativa de verificação de ideias que
ainda poderiam ser consideradas coerentes em Roma, no séc. I a.C. Esta busca por tais
conceitos, principalmente de questões relativas às divindades, faz surgir indagações sobre a
natureza dos deuses e ainda sobre os mais diversos elementos que os envolvem, como os ritos
religiosos, os pensamentos dos principais filósofos gregos sobre as divindades, a forma
divina, a composição de seus corpos, a sua relação com a eternidade, o seu surgimento, a sua
existência, os mundos que eles habitam, a sua relação com os seres humanos.
Com uma temática que envolve não só verificação de conceitos gregos, mas também
a sua permanência em uma tradição que, naquele momento já perdurara por mais de cinco
séculos, nada mais oportuno para Cícero do que o uso de uma estrutura tipicamente grega, ou
seja, o diálogo platônico.
Sendo assim, ele estrutura o seu tratado filosófico De Natura Deorum em três Livros,
em que se pode observar uma sucessão de quatro monólogos extensos acerca das mais
variadas concepções sobre os deuses, abordadas pelas mais difundidas escolas filosóficas
gregas entre os romanos, no séc. I a.C., como se verifica em:

Offendi eum sedentem in exedra et cum C. Velleio senatore disputantem, ad


quem tum Epicurei primas ex nostris hominibus deferebant. Aderat etiam Q.
Lucilius Balbus, qui tantos progressus habebat in Stoicis, ut cum
excellentibus in eo genere Graecis compararetur[...] Tres enim trium
disciplinarum principes conuenistis. (De Natura Deorum, I, 15-16)

63
Encontrei-o65 sentado na exedra, discutindo com o senador C. Veleio que
então os epicuristas declaravam como primeiro dos nossos homens. Estava
presente também Q. Lucílio Balbo, que havia realizado tantos progressos
nos estoicos que era comparado com os excelentíssimos gregos naquele
gênero[...] Juntaste, pois, os três principais homens das três disciplinas.

O diálogo possibilitará a exposição das ideias das três principais correntes filosóficas,
representadas pelos seus principais expoentes na época, como observa o próprio Cícero, Cota
é o responsável por esta ilustre reunião: Tres enim trium disciplinarum principes conuenistis,
“Juntaste, pois, os três principais homens das três disciplinas”.
A sequência discursiva se apresenta na mesma ordem de apresentação dos
personagens pelo autor, ou seja, cum C. Velleio senatore disputantem, “discutindo com o
senador C. Veleio”, em que o verbo disputo se refere ao personagem Cota, e aderat etiam Q.
Lucilius Balbus, qui tantos progressus habebat in Stoicis, “estava presente também Q. Lucílio
Balbo, que havia realizado tantos progressos nos estoicos”.
Dessa forma, o primeiro discurso é proferido pelo personagem Veleio, ad quem tum
Epicurei primas ex nostris hominibus deferebant, “que então os epicuristas declaravam como
primeiro dos nossos homens”, ou seja, o representante da escola epicurista, marcado pela
tentativa de o personagem enumerar os ideais de Epicuro sobre a natureza dos deuses.

Tum Velleius fidenter sane, ut solent isti, nihil tam uerens, quam ne dubitare
aliqua de re uideretur, tamquam modo ex deorum concilio et ex Epicuri
intermundiis descendisset, inquit. (De Natura Deorum, I, 18)

Então Veleio sabiamente com audácia como estão habituados esses, tanto
não temendo nada, quanto não parecesse duvidar sobre coisa alguma, assim
como há pouco tivesse descido do concílio dos deuses e dos intermundos de
Epicuro, disse.

A apresentação do personagem Veleio, bem como diversas passagens de seu discurso,


é marcada pela ironia ciceroniana, pois Veleio é exposto como o que não tem dúvida alguma
sobre a teoria que vai ser apresentada, ne dubitare aliqua de re uideretur, “quanto não
parecesse duvidar sobre coisa alguma”, assim como modo ex deorum concilio et ex Epicuri
intermundiis descendisset, “assim como há pouco tivesse descido do concílio dos deuses e dos
intermundos de Epicuro”.

65
O pronome refere-se a Cota.

64
Pela sequência discursiva, sucede-se ao pronunciamento de Veleio o discurso do
personagem Cota, partidário da Academia, o qual realiza críticas às ideias levantadas por
Veleio e, em seguida, constrói sua argumentação acerca dos deuses sob a ótica acadêmica,
vejamos:

Tum Cotta comiter, ut solebat, inquit[...] Mihi enim non tam facile in
mentem uenire solet, quare uerum sit aliquid, quam quare falsum. (De
Natura Deorum, I, 57)

Então Cota magnificamente, como estava habituado, disse[...] A mim, pois,


não costuma chegar à mente facilmente tanto por qual razão algo seja
verdadeiro do que por qual razão seja falso.

Sendo a ironia um atributo central dos acadêmicos, Cota refere-se ao discurso proferido por
Veleio primeiramente dando uma impressão de que iria elogiá-lo por suas sábias palavras, por
ter encontrado argumentos que se aproximavam da verdade, quare uerum sit aliquid, “pois
algo seja verdadeiro”, porém a partir do período seguinte, Cota se dedicaria a demonstrar por
quais motivos o que parecia verdadeiro, seria, na verdade, falsum, “falso”.
Aos dois discursos, que são proferidos no primeiro Livro, segue-se o do estoico
Balbo, que tenta abordar a temática sugerida munido dos ensinamentos da escola estoica, no
decorrer de todo o segundo livro. Inicialmente Balbo elucida em quantas partes os estoicos
dividem a questão sobre os deuses:

Tum Balbus: “Geram tibi morem et agam, quam breuissume potero; etenim
conuictis Epicuri erroribus longa de mea disputatione detracta oratio est.
Omnino diuidunt nostri totam istam de dis inmortalibus quaestionem in
partis quattuor”. (De Natura Deorum, II, 3)

Então Balbo disse: “Mostrarei e te66 levarei a maneira o mais breve que
puder, pois com os erros refutados de Epicuro, há um discurso tirado de uma
longa discussão minha. Os nossos separam toda essa questão sobre os deuses
imortais inteiramente em quatro partes”.

Ao discurso de Balbo, apenas aparentemente Cícero demonstra dar maior credibilidade.


Apesar de afirmar que abordará o assunto quam breuissume potero, “o mais breve que puder”,
Balbo faz seu pronunciamento, compondo o mais longo dos três Livros que compõem o De
Natura Deorum, porém afirma que os estoicos Omnino diuidunt totam istam de dis

66
O pronome refere-se a Cota.

65
inmortalibus quaestionem in partis quattuor, “separam toda essa questão sobre os deuses
imortais inteiramente em quatro partes”.
Apenas quatro partes que precisam ser explicadas em numerosas linhas, que versam
sobre o culto dos deuses, a organização do universo e do mundo, a mente que governa o
universo, os elementos que o compõem, os princípios que regem a natureza, o movimento dos
planetas, a forma dos deuses, as partes do corpo humano e suas funções, a importância dos
animais para o homem.
Os elementos constituintes da ampla argumentação de Balbo são retomados por Cota,
quando lhe são convenientes, ao intervir pela segunda vez, no terceiro Livro. Cota retoma os
princípios da explicação sugerida por Balbo, principalmente com o intuito de refutá-los, à
medida que necessita de exemplos ou argumentos contrários que comprovem a sua tese. Inicia
seu discurso ironicamente adridens, ou seja, “sorrindo”:

Tum adridens Cotta “Sero”, inquit, “mihi, Balbe, praecipis, quid defendam.
Ego enim te disputante, quid contra dicerem, mecum ipse meditabar neque
tam refellendi tui causa quam ea, quae minus intellegebam, requirendi”. (De
Natura Deorum, III, 1)

Então Cota, sorrindo, disse: “(é) tarde para mim, Balbo, (que tu
compreendas) o que (eu) tenha defendido. Eu mesmo, pois, (enquanto) tu
argumentavas, refletia comigo sobre o mesmo (assunto), o que dissesse
contra, e não tanto por causa (de) te refutar, mas (para) procurar aquelas
(coisas) que eu menos entendesse”.

Com esta estruturação do diálogo, o autor pretende garantir os interesses acadêmicos,


mostrando-se partidário da Academia, principalmente, por revelar certo ceticismo em relação
à temática abordada, propondo uma discussão que parece, em seu início, tentar esclarecer
questões ambíguas sobre os deuses, mas que se mostra, ao longo da obra, acentuar mais as
dúvidas vigentes.
Uma das possíveis causas para a acentuação das dúvidas do De Natura Deorum,
“Sobre a Natureza dos Deuses”, ocorre devido à própria estruturação do Livro usada pelo
autor, já que ele garante ao acadêmico Cota posição privilegiada para a exposição de seus
argumentos: sempre sucede, nunca é sucedido.
Tal fato conduz a acreditar que o autor não deseja que o personagem representante da
Academia seja refutado. Associado à posição do discurso de Cota está o espaço a ele
concedido, que ocupa, considerando-se toda a obra, cerca de quarenta por cento do diálogo,
que é finalizado com os ideais de Cícero.
66
Exposta a proposição do Livro De Natura Deorum, o seguinte item versará sobre os
principais conceitos de Retórica e Dialética, considerando sobretudo os fundamentos gregos
observados nos escritos aristotélicos, também serão utilizados para tal fundamentação os
escritos de Cícero sobre Retórica em suas obras de oratória67.

67
Tanto as obras de Cícero quanto as de Aristóteles serão devidamente referenciadas à medida que forem
citadas.

67
2. Retórica e Dialética

A estruturação de uma obra calcada em elementos retóricos requer uma delineação dos
possíveis limites existentes entre a Retórica e a Dialética, pois é comum que elas sejam
abordadas indistintamente, ora sendo tratadas como ciências, ora como partes que se
complementam, formando um todo indissociável, capazes de garantir ao orador, quando
usadas devidamente, os recursos necessários para afirmar seus argumentos de modo
satisfatório.
A respeito da Retórica, é necessário o estabelecimento de seus principais fundamentos,
da definição de seus limites como prática discursiva, de suas origens, a fim de que a Retórica
não seja confundida com um discurso pouco significativo, no qual não há um fim a ser
alcançado.
Sendo assim, deve-se evidenciar que o orador possui um importante papel social para
a Antiguidade Clássica e o discurso retórico daquela época não deve ser confundido com
qualquer outro de época recente. Tais afirmações se relacionam diretamente com as
considerações de Cícero68, em que é examinada a origem da chamada eloquência, porém o
autor não define se a eloquência é ars, “arte”, que corresponderia ao termo grego ,

“arte, técnica”; se ela é exercitatio, “exercício”, correspondente ao termo grego ,


“prática, exercício”; ou se a eloquência é natura, “caráter ou estado natural”, que corresponde
ao termo grego , “maneira de ser, estado natural”. Esta ausência de uma objetiva
definição acerca da eloquência remete a uma remota discussão da Antiguidade sobre a origem
da Retórica, apesar de esta nascer e se desenrolar geralmente por motivos de interesse social.
Uma tese recorrente no pensamento ciceroniano era a do homem que sendo eloquente
e possuindo a uirtus, tinha a capacidade de organizar e fundar cidades, daí seu importante
papel social, conforme afirma o próprio Cícero:

Ac si uolumus huius rei, quae uocatur eloquentia, siue artis siue studii siue
exercitationis cuiusdam siue facultatis ab natura profectae considerare
principium, reperiemus id ex honestissimis causis natum atque optimis
rationibus profectum.
Nam fuit quoddam tempus, cum in agris homines passim bestiarum modo
uagabantur et sibi uictu fero vitam propagabant nec ratione animi quicquam,
sed pleraque uiribus corporis administrabant, nondum diuinae religionis, non
humani officii ratio colebatur, nemo nuptias uiderat legitimas, non certos

68
De Inuentione, I, 2.

68
quisquam aspexerat liberos, non, ius aequabile quid utilitatis haberet,
acceperat. Ita propter errorem atque inscientiam caeca ac temeraria
dominatrix animi cupiditas ad se explendam uiribus corporis abutebatur,
perniciosissimis satellitibus.
Quo tempore quidam magnus uidelicet uir et sapiens cognouit, quae materia
esset et quanta ad maximas res opportunitas in animis inesset hominum, si
quis eam posset elicere et praecipiendo meliorem reddere; qui dispersos
homines in agros et in tectis siluestribus abditos ratione quadam conpulit
unum in locum et congregauit et eos in unam quamque rem inducens utilem
atque honestam. (De Inuentione, I, 2)

E por outro lado, se desejamos observar a origem desta coisa, que é


denominada eloquência, ou se a origem da arte, ou do estudo, ou mesmo da
reflexão, de certo modo, ou ainda da força a partir do princípio dos feitos,
encontrá-la-emos desde as causas mais dignas, e por outro lado, o progresso
desde as melhores causas.
Realmente, houve certo tempo em que os homens desordenadamente
vagavam à maneira dos animais nos campos e viviam de alimento selvagem,
porém a maior parte servia à força do corpo. Ainda não havia o culto aos
deuses, a relação de respeito mútuo não era respeitada, ninguém tinha visto
casamentos legítimos, filhos certos, nem conhecia a justiça igualitária dos
proveitos, tampouco a tinha aceitado. Desse modo, entretanto, ao lado do
erro e da ignorância, o desejo do ânimo, senhor cego e audacioso, abusava
das companheiras perniciosas para se satisfazer pela força física.
É por isso que, neste tempo, um homem sem dúvida superior e sábio
reconheceu se pudesse realizá-la e transmiti-la para instruir da melhor forma,
a qualidade fosse a matéria que existiria para grandes feitos. Ele reuniu e
congregou, até certo ponto, os homens dispersos pelos campos e nas selvas
escondidas, através do argumento, em um só lugar e por uma atividade
louvável e digna que induz, inicialmente, ao lado da inexperiência que
exclama.

Para Cícero, a origem daquilo que é designado eloquência, quae uocatur eloquentia,
confunde-se com a própria origem do homem, daí a dificuldade de uma definição exata sobre
qual seria o marco inicial da Retórica. No entanto, deve-se observar que surge com o próprio
homem, que antes do estabelecimento das cidades, eram nômades, não tinham lugar definido,
homines passim bestiarum modo uagabantur, “os homens desordenadamente vagavam à
maneira dos animais”. O princípio de organização humana confunde-se com a do próprio
pensamento, configurado no orador que, através de meios persuasivos, reuniu-os mesmo antes
dos cultos aos deuses, nondum diuinae religionis, o que demonstra o grau de primitivismo do
discurso retórico e a importância do orador que foi capaz de organizar os mais ignorantes
seres, certamente ele deve ser considerado magnus uidelicet uir et sapiens, “um homem sem
dúvida superior e sábio”, como afirma Cícero.
Em se considerando a abordagem ciceroniana acerca da importância do orador, pode-
se afirmar que durante a fundação da cidade de Roma, houve utilização de recursos oratórios
69
capazes de reunir o povo na área determinada69 para o estabelecimento da cidade no momento
posterior à verificação dos auspícios favoráveis, conforme apresenta Ovídio:

“Nil opus est” dixit “certamine” Romulus “ullo;


magna fides auium est: experiamur aues.”
res placet: alter init nemorosi saxa Palati;
alter Auentinum mane cacumen init.
sex Remus, hic uolucres bis sex uidet ordine; pacto
statur, et arbitrium Romulus urbis habet. (Fasti, IV, 813-818)

“Não é necessária” – disse Rômulo – “alguma disputa;


Grande é a fides das aves. Recorramos às aves.”
É agradável o fato: um vai ao rochedo do nemoroso Palatino;
Outro vai pela manhã ao cume do Aventino.
Remo vê seis (pássaros), Rômulo vê duas vezes seis que voam em fila;
Mantém-se (o fato) pelo pacto, e Rômulo tem a sentença da cidade.

A organização da cidade liga-se à descoberta das qualidades que existiam nos homens,
à fides para com os deuses e também à capacidade de realização de grandes feitos, por um
indivíduo dotado de grande força de eloquência, único capaz de coordenar e de instruir em um
mesmo lugar indivíduos tão diversos e marcados pela falta de organização, que os escutavam
entusiasticamente devido a sua elaboração discursiva.
Esses princípios de organização conduzem à importância da Retórica Antiga cujo
nascimento se confunde com os primórdios da civilização, mas que se formou e se
desenvolveu, como arte capaz de convencer, basicamente nos séculos V e IV a.C.
A Retórica Antiga é denominada dessa forma apenas para diferenciá-la das outras dela
derivadas, a qual tem suas fontes primordiais em Aristóteles e, tradicionalmente, é definida
como teoria e prática do discurso retórico, que supõe um emissor, , que pronunciava
seu discurso diante de um receptor. Dante Tringali explicita o porquê da utilização do adjetivo
“Antiga” em referência à Retórica:

Por esse nome designamos a verdadeira Retórica, a Retórica grega e latina


documentada pelas obras de Aristóteles, Cícero, Quintiliano. Qualificá-la de
Antiga não implica reputá-la como velharia superada, pelo contrário, nunca
foi mais atual do que hoje. Na verdade, se adjetiva de “Antiga”

69
Os estudos arqueológicos de Andrea Carandini demonstram que a Roma primitiva, entre os anos de 900 a.C. e
650 a.C., situa-se basicamente em uma região quadrada, que tem por limite a Curiae Veteres, a Porta Romanula,
o Sacelum Martis et Opis e a Ara Consi, região denominada pelo arqueólogo de “Roma Quadrata”.

70
simplesmente porque nasceu e se formou na “Antiguidade Clássica”.
(Introdução à Retórica, p. 9)

A verdadeira Retórica ou a Retórica Antiga, como define Dante Tringali, é assim denominada
para diferenciá-la dos vários tipos de retórica surgidos depois da Antiguidade Clássica70.
Apesar de todo elo existente entre a Retórica e o discurso proferido pelo emissor e da
sua relação com o receptor, é necessária a compreensão de que nem todo texto pronunciado
diante de um espectador é considerado retórico, pois este tipo discursivo deve ser persuasivo e
dialético. Desse modo, ele trata sempre de uma questão discutível, controversa e provável, por
isso recebe tal denominação, não pretende chegar a um denominador comum, mas a
probabilidades, logo pode ser considerado uma abordagem sobre questões aceitáveis.
Formalmente, especifica-se por buscar persuadir a respeito de uma questão imprecisa,
plausível e discutível, tendo por diferencial, quando se refere ao discurso de um modo geral, a
finalidade persuasiva. Em consequência disso, tem-se por assimilação a probabilidade de
gerar outro discurso para que haja um confronto argumentativo.
Isso ocorre em razão de a matéria ser dialética, ou seja, um discurso gera outro
discurso em um ato potencial, sendo que este pode ser imediato, retardado ou ainda ficar em
aberto. Desse modo, a Retórica Antiga tenta explicar os problemas referentes à elaboração e
aos efeitos do discurso, tendo objetivos específicos: instruir a produção de discursos
persuasivos estruturados e bem elaborados.
Segundo Aristóteles, , “a Retórica”, é uma espécie de Dialética e não
constitui uma ciência particularmente, fundada em princípios próprios, no sentido restrito do
termo, usa das mesmas formas de faculdade que a Dialética, mesmo quando trata de um
assunto específico; a tentativa de julgar a Retórica ou a Dialética como ciências pode conduzir
à falha, ao obscurecimento de sua natureza real, pois estas são apenas faculdades mentais:

(Retórica, 1354a, 2-5)

70
Vários tipos de Retórica são apresentados por Dante Tringali (Introdução à Retórica, p.10), dentre elas a
Clássica, a Semiótica, a Nova e a Retórica das Figuras.

71
A retórica é o inverso da dialética; pois ambas são (coisas) comuns a
respeito de algo desse tipo, as quais estão nisto: reconhecer o meio de tudo e
que não está em nenhuma ciência, porque todos participam do meio dessas
duas, pois todos tentam até certo (ponto) tanto investigar, quanto sustentar
um argumento, como defender e acusar.

A metáfora utilizada por Aristóteles através do adjetivo , “antístrofe” para


designar a Retórica deve ser entendido como uma opinião contrária sobre o avesso, uma
contrapartida ou mesmo um movimento contrário, conforme indica , cujo

radical é proveniente do verbo , “tornar, retornar, girar” acrescido do prefixo ,


“contra, oposto”.
Assim pode-se estabelecer que a Retórica é como a Dialética, apresenta um saber
lógico-formal, que parece estar presente em todas as matérias, , e não fazer parte de

uma ciência em particular, , “que não está em


nenhuma ciência”.
Com tais afirmações, Aristóteles indica o que , “todos”, pretendem através da

Retórica: , “investigar e sustentar um argumento” como

também através dela , “defender e acusar”, sem que para


isso se utilize de um lugar comum, pois a Retórica pode participar dos mais diversos campos
do conhecimento.
Podem ser ainda verificadas atribuições contrárias e também atribuições semelhantes
na comparação metafórica aristotélica. Sobre o tal processo de identidade entre a Retórica e a
Dialética, Quintiliano afirma:

Nec potest ars non esse si est ars dialectice (quod fere constat), cum ab ea
specie magis quam genere differat. (Institutio Oratoria, II, 17, 42)

Nem pode não ser arte, já que a arte é dialeticamente (o que ordinariamente é
evidente), visto que diferira mais por aquela aparência do que pelo modo.

Assim a Retórica se utiliza do mesmo genere, “modo”, de fazer, da mesma maneira


que a Dialética, e parece diferir apenas aparentemente ab ea specie differat, “diferira por
aquela aparência”, pois se vale de um movimento contrário, chamado por Aristóteles de
.
72
Sobre o processo de oposição existente entre a Retórica e a Dialética, Cícero tenta
interpretar o termo , usado por Aristóteles, e afirma:

Aristoteles principio artis rhetoricae dicit illam artem quasi ex altera parte
respondere dialecticae, ut hoc uidelicet differant inter se quod haec ratio
dicendi latior sit, illa loquendi contractior. (Orator, XXXII, 114)

Aristóteles no início da arte retórica diz (que) aquela arte mais ou menos
corresponde à outra parte da dialética, de modo que é evidente que nisto
diferem entre si, por esta razão (a Retórica) deve-se dizer mais ampla, a
dialética deve-se dizer mais estreita.

A Retórica, no entendimento de Cícero, corresponde à outra parte que se afasta da Dialética,


pois ele faz o uso do verbo respondere, “corresponder”, e o associa à preposição que rege
ablativo ex, “saindo de, afastando-se, para fora de” em ex altera parte, que significa mais
precisamente “àquilo do que se afasta ou de onde tem partida a outra parte da dialética”, o que
conduz ao entendimento de que há divergência entre Retórica e Dialética, pois uidelicet
differant inter se, “é evidente que diferem entre si”, já que a Retórica dicendi latior sit, “deve-
se dizer mais ampla”, observação que retoma o ensinamento aristotélico

, “já que não está em nenhuma ciência em particular”, podendo


fazer parte de todas e, por isso, ter sido considerada mais ampla por Cícero. Por sua vez, a
Dialética loquendi contractior, “deve-se dizer mais estreita”, uma vez que parece se
configurar apenas como um movimento de oposição relacionado à Retórica, ou seja, seria
uma contra-argumentação, o que necessariamente não configura um objetivo específico ou a
chegada a um lugar comum.
Aristóteles, ao fazer considerações gerais sobre a Dialética, aponta quais seriam as
especificidades do método dialético no início dos Tópicos71, ele tece considerações sobre o
trabalho que será desenvolvido, ou seja, , “encontrar um método”, que

proporcione , “conjecturar sobre todas as

questões”. Para isso faz uso do verbo , “reunir pelo pensamento, concluir

premissas, deduzir”, em sua forma média , fato que indica que a


argumentação é efetuada visando o benefício daquele que a realiza, além disso o verbo
, possui o mesmo radical de , “silogismo”, que consiste em

71
Tópicos, 100a, 18-21.

73
um esquema estrutural de pensamentos principais com pensamentos argumentativos, que
comumente são usados na argumentação.
A partir desses comentários, pode-se entender que o trabalho a ser realizado nos
Tópicos certamente versa inicialmente sobre a Dialética, uma vez que o filósofo indica
claramente quais seriam as suas finalidades: além da possibilidade de

, “conjecturar sobre todas as questões”,

, “não dizer nada contrário” à argumentação, fazendo com que o argumento


utilizado se torne aceitável e dificulte sua contra-argumentação.
Desse modo, pode-se considerar que a Retórica não é apenas semelhante à Dialética,
mas se contrapõe a ela, já que a Dialética não pertence a nenhum gênero próprio e definido.
Mesmo assim no período clássico é evidente a sua utilidade, pois não tem por finalidade a
persuasão, mas objetiva o discernimento entre os meios persuasivos que devem ser utilizados
com maior pertinência em cada caso específico ou apenas, como sugere Aristóteles,

, propiciar uma discussão, , “a partir de coisas ilustres”.


Em De Natura Deorum, as relações entre a Retórica e a Dialética surgem desde as
primeiras linhas do diálogo, em que se pode perceber nitidamente que a intenção do autor ao
sugerir aos personagens uma explanação sobre a natureza dos deuses é a de,

, “propiciar uma discussão”, , “a partir de coisas ilustres”. Dessa


forma, Cícero poderia verificar a capacidade dialética de cada personagem acerca do assunto
abordado, conforme se percebe em:

Multis etiam sensi mirabile uideri eam nobis potissimum probatam esse
philosophiam, quae lucem eriperet et quasi noctem quandam rebus
offunderet, desertaeque disciplinae et iam pridem relictae patrocinium
necopinatum a nobis esse susceptum. (De Natura Deorum, I, 6)

Percebi também que para muitos parece admirável ter sido examinada por
nós, sobretudo, aquela filosofia, que retirava a luz e espalhava aparentemente
certa noite sobre as coisas, e ter sido sustentada por nós inesperadamente a
defesa de uma disciplina abandonada e há muito tempo desprezada.

A retirada da luz a que se refere Cícero é o método acadêmico, que, quasi noctem
quandam rebus offunderet, “espalhava aparentemente certa escuridão sobre as coisas”,
fazendo com que os personagens se confrontem e tentem garantir os ideais de suas escolas
filosóficas, servindo-se de argumentos mais amplos e que não pertencem a uma ciência

74
específica, nos moldes retóricos, e que, de acordo com Cícero dicendi latior sit, “deve-se
dizer mais ampla”; ou nos moldes dialéticos, em que os personagens baseariam seus
argumentos nos ensinamentos específicos de sua escola filosófica, garantindo a perpetuação
de seus ideais.
Como há muita discórdia de pensamento entre os principais pensadores que
escreveram sobre a natureza dos deuses, não há evidências iniciais em De Natura Deorum,
que a discussão garantiria o acesso a um lugar comum, um ponto de concordância entre os
pensamentos apresentados ou mesmo entre os personagens do discurso. Isso também se
percebe nas observações iniciais de Cícero, fato que conduz ainda mais ao pensamento de que
o diálogo é meramente dialético e que pretende observar a oposição de opiniões notáveis, de
argumentos e de contra-argumentos plausíveis dos ilustres representantes das escolas
filosóficas envolvidas.
Em muitas passagens do De Natura Deorum, a abordagem dialética é a causa e a
essência do diálogo, como afirma Cícero:

Nam et de figuris deorum et de locis atque sedibus et de actione72 uitae multa


dicuntur, deque is summa73 philosophorum dissensione certatur; quod uero
maxime rem causamque continet. (De Natura Deorum, I, 2)

Pois tanto sobre as aparências dos deuses, quanto sobre os lugares e as sedes,
como sobre o modo de vida muitas coisas são ditas, e sobre eles se discute
com a extrema discórdia dos filósofos, porque verdadeira e extremamente
contém a essência e a causa.

Tendo o autor evidenciado summa philosophorum dissensione, “a extrema discórdia


dos filósofos”, o que realmente se sabe dos deuses? São eles que governam a natureza desde o
início dos tempos? Ou, do contrário, há grande ignorância dos seres humanos em relação aos
imortais e realmente não se sabe qual sua relação com a natureza? Dialeticamente, Cícero
continua evidenciando:

Res enim nulla est, de qua tantopere non solum indocti, sed etiam docti
dissentiant; quorum opiniones cum tam uariae sint tamque inter se
dissidentes, alterum fieri profecto potest, ut earum nulla, alterum certe non
potest, ut plus una uera sit. (De Natura Deorum, I, 5)

72
: “et actione (...)”.
: “et actione (...)”.
73
: “deque his summa (...)”.
: “deque his summa (...)”.
75
De fato, nenhuma coisa há sobre a qual não apenas os ignorantes, mas
também os doutos tanto discordem, cujas opiniões como são tão variadas e
tão discordantes entre si, uma pode certamente ser considerada, como
nenhuma delas, outra certamente não pode, para que uma só seja verdadeira.

Deve ser considerada uma ou mais de uma opinião? A partir de tais indagações, o
autor estabelece um elo conceitual entre Retórica e Dialética basicamente nos moldes
aristotélicos, ou seja, uma é a , “antístrofe”, da outro. Sendo assim, os
argumentos que serão usados no decorrer da obra têm grande possibilidade de serem
estabelecidos como opiniões contrárias sobre o avesso, em articulações de argumentos e
contra-argumentos, em estilo retórico-dialético.
Para se obter maiores especificidades sobre Retórica, deve ser observado ainda que
Aristóteles distingue basicamente as suas três formas ou mais propriamente os três gêneros
retóricos. Ele demonstra as regras da , “eloquência judiciária”, que expõe o
caráter positivo ou negativo de uma ação no passado e que tem por finalidade o justo e o
injusto; da , “eloquência epidítica”, que põe em evidência o caráter
nobre ou vil de uma ação presente, tendo o fim no elogio ou na censura, no belo ou no feio,
podendo ser acrescentados a estes outros raciocínios acessórios; da

, “eloquência deliberativa”, que procura convencer por adotar alguma decisão futura,
que tem por finalidade o conveniente ou o prejudicial e revela a recomendação aconselhadora
ou dissuasória. Sobre as espécies de Retórica, Aristóteles afirma:

(Retórica, 1358a,36 - 1358b, 4)

As espécies de retórica são três em número, pois tão numerosos são os


ouvintes dos discursos que existem. Por que o discurso é composto de três
(elementos): do que fala, sobre o que se fala, para quem (se fala), mas a
realização (do discurso) é para esse, digo, o ouvinte.

As espécies de Retórica, , citadas por Aristóteles centram-se

nos três elementos, , essenciais do discurso, ou seja, , já que

76
este pressupõe , “o que fala”, o orador; , “sobre o que se fala”,

o assunto e , “para quem” se fala, ou seja, o ouvinte, de modo que esses três
elementos produzem a necessidade da existência de três formas de discursos retóricos:
, “gênero judiciário”; , “gênero demonstrativo e

, “gênero deliberativo”.
Seguindo a concepção de que a realização do discurso deve ter por objetivo o ouvinte,
o orador, para atingir seus fins, dispõe de meios que não se submetem propriamente a falar da
Retórica, tais como provas materiais, exemplos ou confissões. No entanto, ele deve saber
utilizar os meios técnicos, estruturar bem seu discurso e sua argumentação, que é bastante
importante para que se demonstre ou que se prove, levando assim à convicção. É nesta
ocasião que ele faz uso do , “entimema”, e do exemplo.
A Retórica não se dispõe normalmente do domínio de raciocínio específico ou de
alguma ciência, conforme Aristóteles, porém pode recorrer a raciocínios relevantes de uma
ciência específica, sobretudo à ética e à filosofia. Além disso, pode recorrer a outros meios
técnicos, visando, de uma parte, levar em conta o estado do ouvinte, , sua situação
psicológica, sua idade, a hierarquia social a que pertence; com o intuito de apresentar a este
espectador um julgamento provisório e que o conduza a formar uma ideia favorável sobre o
caráter do orador, , e, de outra parte, provocar no ouvinte a benevolência da

qual o orador necessita com o seu discurso, .


Outro recurso dialético de que se vale o orador em seu discurso é o meio técnico que o
permite fazer , “silogismos”, a partir de opiniões admissíveis sobre um tema
proposto, e também de contradizer uma afirmação que se quer defender.
Pode-se estabelecer o quadro formal da dialética, em seus princípios estruturais,
escolhendo um tema e fazendo com que dois ou mais protagonistas se confrontem através de
seus discursos, geralmente diante de outro que poderá ser o árbitro da situação.
Em De Natura Deorum, apesar de haver discursos de três personagens de escolas
filosóficas distintas, há confrontos diretos de pensamentos entre dois personagens por vez. O
personagem Cota, mesmo participando do diálogo, parece sintetizar bem o papel de árbitro da
situação, pois determina constantemente qual a ordem dos discursos, além de tecer críticas
acentuadas sobre eles. Como se observa:

77
Sed ante quam adgrediar ad ea, quae a te disputata sunt, de te ipso dicam,
quid sentiam[...] Ego autem, etsi uereor laudare praesentem, iudico tamen de
re obscura atque difficili a te dictum esse dilucide, neque sententiis solum
copiose, sed uerbis etiam ornatius, quam solent uestri. (De Natura Deorum,
I, 57-58)

Mas antes que fale sobre aquelas coisas que foram discutidas por ti, digo o
que penso sobre tu mesmo[...] Eu mesmo, porém, ainda que tema elogiar o
que se faz presente, julgo, todavia, que sobre o obscuro e difícil assunto por
ti tenha sido dito claramente, e não apenas com sentenças em abundância,
mas também com palavras mais ornadas do que costumam os vossos.

O papel de árbitro da situação desempenhado por Cota também pode ser observado
em:

A Balbo autem animaduertisti, credo, quam multa dicta sint quamque,


etiamsi minus uera, tamen apta inter se et cohaerentia. Itaque cogito, ut dixi,
non tam refellere eius orationem quam ea, quae minus intellexi, requirere[...]
Sed antequam de re, pauca de me. Non enim mediocriter moueor auctoritate
tua, Balbe, orationeque ea, quae me in perorando cohortabatur, ut
meminissem me et Cottam esse et pontificem (De Natura Deorum, III, 4-5)

Porém observaste, penso, quantas coisas tenham sido ditas por Balbo e
quantas, ainda que pouco verdadeiras, ligadas, porém, e com coerência entre
si. Desta maneira penso, como tenho dito, tanto em não refutar seu discurso,
mas em exigir aquelas coisas que tenha entendido menos[...] Mas antes que
(fale) sobre o argumento, (falarei) poucas coisas sobre mim. Pois não sou
muito comovido, Balbo, por tua autoridade e por aquele discurso que, ao
concluir, me encorajava, de modo que tivesse (me) recordado de (que) eu
sou tanto Cota, quanto um pontífice.

Nas considerações sobre o discurso do epicurista Veleio, apesar de tecer comentários


que exaltam a capacidade elucidativa de re obscura atque difficili, “sobre o obscuro e difícil
assunto”, Cota teme elogiar o que se faz presente, uereor laudare praesentem, pois identifica
em seus argumentos uerbis etiam ornatius, “palavras mais ornadas”, fato que põe em suspeita
a veracidade das abundantes sentenças usadas por Veleio para explicar o que os epicuristas
entendem sobre os deuses.
Da mesma forma que Cota questiona os argumentos de Veleio, também põe dúvidas
sobre as considerações estoicas usadas por Balbo em seu discurso sobre os deuses. À maneira
de um árbitro da situação, observa que as considerações etiamsi minus uera, “ainda que pouco
verdadeiras”, parecem tamen apta inter se et cohaerentia, “porém ligadas e com coerência
entre si”. Cota ainda desconsidera a apresentação inicial feita por Cícero do estoico Balbo qui

78
tantos progressus habebat in Stoicis, ut cum excellentibus in eo genere Graecis
compararetur74, “que havia (realizado) tamanhos progressos nos estoicos, de modo que fosse
comparado com os excelentíssimos gregos naquele gênero”, e sobrepõem sua autoridade,
afirmando ser et Cottam et pontificem, “tanto Cota, quanto um pontífice”.
A condição de pontífice ocupada por Cota parece garantir-lhe mais autoridade em
relação à temática abordada, uma vez que o termo pontifex, “pontífice”, é composto do
substantivo pons, “ponte”, associado ao verbo facio, “fazer”, que, por extensão, caracteriza
aquele que faz a ligação entre o céu e terra, sendo responsável pela jurisprudência religiosa,
tais como sacrifícios e cerimônias. Assim Cícero garante a defesa dos ideais acadêmicos, não
apenas situando o personagem Cota na posição de árbitro da situação, mas também
demonstrando que essa defesa seria realizada por um sacerdote. Fato que já havia sido
anunciado pelo próprio Cota, desde o seu primeiro pronunciamento, no Livro I, em que
iniciaria a refutação da doutrina epicurista, demonstrada por Veleio:

Itaque ego ipse pontifex, qui caerimonias religionesque publicas sanctissime


tuendas arbitror, is hoc, quod primum est. (De Natura Deorum, I, 61)

Assim, eu mesmo pontífice, que julgo que as cerimônias e religiões públicas


devam ser defendidas santissimamente, queria com aquelas coisas ser
persuadido nisto, que é o principal.

Utilizando-se do mesmo princípio, que lhe garantiria a autoridade temática, Cota


também inicia seu discurso, no Livro III, em que refuta os ideais do estoicismo, demonstrados
por Balbo, valendo-se de seu título de pontífice:

Non enim mediocriter moueor auctoritate tua, Balbe, orationeque ea, quae
me in perorando cohortabatur, ut meminissem me et Cottam esse et
pontificem; quod eo, credo, ualebat, ut opiniones, quas a maioribus
accepimus de dis immortalibus, sacra, caerimonias religionesque
defenderem. (De Natura Deorum, III, 5)

Pois não sou muito comovido, Balbo, por tua autoridade e por aquele
discurso que, ao concluir, me encorajava, de modo que tivesse (me)
recordado de (que) eu sou tanto Cota quanto um pontífice; o que, creio,
visava àquilo, de modo que (eu) defendesse as opiniões que dos
antepassados temos recebido sobre os deuses imortais.

74
De Natura Deorum, I, 15.
79
Sendo assim, é de fundamental importância para a Retórica que os oradores
proponham sua tese e que se esforcem em fazer uso de meios plausíveis para garanti-la,
mesmo quando há um árbitro da situação, ou ainda personagem que desempenhe tal papel, o
orador deve propor sua tese, que um segundo se esforçará por refutar, estabelecendo uma tese
contrária à proposta pelo primeiro e assim sucessivamente. Caso o argumento inicial seja
positivo, o outro orador deve refutá-lo, se for negativo, deve tentar estabelecê-lo.
Nesses casos, um dos meios usados para a confirmação ou a dissuasão é o silogismo
válido, caso os argumentos sejam de valor negativo ou controverso, utiliza-se de raciocínios
inválidos. Este é um tipo de raciocínio sofístico que se atribui à vitória sobre um ponto
particular, porém as deduções silogísticas da dialética não se apoiam em premissas
verdadeiras, ao contrário, apoiam-se em opiniões notáveis, pois elas são aceitas pela maior
parte dos indivíduos ou pela maioria dos filósofos, logo, no método dialético, devem-se evitar
premissas paradoxais.
Aristóteles75 afirma que a dialética é composta por três funções: ,

“em relação ao exercício intelectual”; , “em relação aom contato com o

outro”; , “em relação ao conhecimento segundo


a filosofia”. A essas funções pode-se acrescentar uma quarta, associada aos primeiros
princípios científicos, que não se podem afirmar indissolúveis ou se provarem teoricamente, e
dos quais a dialética tem uma função examinadora.
Faz-se necessário então colocar à prova os princípios das ciências, examinando as
ideias admissíveis com o propósito de verificar seus princípios76, o que confere à Dialética um
lugar de destaque, e permite-lhe escapar de uma classificação científica, própria de cada
ciência, porém não lhe é conferido o estabelecimento de tais princípios. Efetivamente, não se
tem, para estabelecê-los, um processo rigoroso comparável à dedução.
O material sobre o qual se deve trabalhar, no conjunto das opiniões, deve ser bem
fundamentado. O confronto desses conceitos, sobretudo quando são diferentes ou
incompatíveis entre si, permite uma triagem eficaz entre o admissível e o improvável.
Sendo assim, pode-se utilizar como meio técnico outro instrumento retórico, ou seja, o
, “silogismo”, que consiste em um esquema estrutural de pensamentos
principais com pensamentos argumentativos. O silogismo usa de raciocínios estabelecidos em

75
Tópicos, 101a, 26-28.
76
epistemologicamente se relaciona com proposições que servem de premissa ao silogismo.
80
uma asserção considerada como válida , “a partir de premissas”,
assumidas como verdadeiras ou de natureza implicativa, ou seja, uma afirmação que necessita
de um vínculo lógico entre as premissas iniciais e a conclusão.
A respeito da constituição do silogismo, Aristóteles77 afirma que as premissas usadas
na argumentação são de suma importância

, “pois os argumentos surgem das premissas”, também nos argumentos

, “estão as questões propostas” ou mesmo os problemas ou o que se quer

estabelecer como objeto do discurso do orador, já que a palavra , no referido


trecho, pode significar tanto uma proposição discursiva, quanto o próprio problema a ser
discutido.
Pode-se definir mais especificamente o silogismo como um raciocínio, ou um conjunto
de ideias ou raciocínios, que parte de duas proposições, ou seja, , “das
premissas”. O silogismo tem um termo em comum, chamado de meio-termo e uma
proposição, chamada de conclusão, em que o meio-termo desaparece. Assim sendo, o
silogismo é composto de duas premissas: uma maior, outra menor, respectivamente, e de uma
conclusão. O silogismo consiste, segundo Lausberg78, na apresentação prévia de uma
finalidade a provar, ou seja, a propositio, “proposição”, como “Sócrates é mortal”; e nas
frases colocadas antes da conclusio, “conclusão”, denominadas premissas ou rationes.
A premissa maior, que é muitas vezes introduzida por uma partícula conclusiva, é a
prova, cujo sujeito é maior no seu grau de amplitude do que sujeito da propositio, como
“todos os homens são mortais”. A premissa menor, que é muitas vezes introduzida por uma
partícula adversativa, é uma prova, que demonstra o sujeito mais limitado no seu grau de
amplitude do que o sujeito da premissa maior, como “Sócrates é um homem”.
Por sua vez a conclusio, “conclusão”, acrescenta à proposição o arremate final para as
orações condicionais colocadas anteriormente, toma, preferencialmente, a forma de um
período, como “Sócrates é mortal”. Desse modo, tem-se a estrutura do silogismo, que
apresenta todas as partes, sucessivamente:

Se todos os homens são mortais


E se Sócrates é um homem,
Então Sócrates é mortal.

77
Tópicos, 101b, 15-18.
78
Elementos da Retórica Literária, p.219.
81
Aristóteles79 exemplifica mais especificamente o silogismo, através do ,
“gênero próprio”, que segue tradicionalmente a mesma estrutura lógica baseada em duas
premissas que resultam em uma finalidade a provar, ou seja, todo homem é apto à leitura e à
escrita, , o que o diferencia
dos demais animais e, sendo esta uma característica inerente ao homem, isto caracteriza o
gênero denominado por Aristóteles de próprio.
Desse modo as premissas correspondem, sucessivamente, aos dois primeiros períodos.
Sendo premissa maior: , “O

ser apto à leitura e à escrita (é) próprio do homem”; a premissa menor:

, “pois se (é) homem, é apto à leitura e à escrita”; e a

conclusão: , “e se é apto à
leitura e à escrita, é homem”.
Por vezes, os silogismos podem ser divididos, segundo Pierre Pellegrin80, em válidos e
não válidos, este último pode conter uma falha de raciocínio proveniente do seguinte
esquema: todo A é B, todo C é B, logo todo A ser C é inválido, pois não existe uma ligação
direta entre os termos, que precisam do intermédio de B para que se realize a união indireta,
sendo, portanto, falha e pouco persuasiva uma conclusão gerada sem o auxílio do termo
intermediário.
É exatamente pelo fato de fazer uso de um silogismo válido que Aristóteles usa nas
duas premissas e na conclusão o termo , “próprio, apto”, ou seja, este é o termo que
estabelece a ligação entre as partes do silogismo.
Além dos silogismos válidos e não válidos, há também os perfeitos e os imperfeitos,
este último pode precisar de proposições adicionais, que resultam, certamente, de proposições
situadas, mas que não figuram explicitamente nas premissas, dessa forma toda proposição é
um discurso que afirma ou nega algo ou alguma coisa, podendo ser universal, caso afirme ou
negue alguma coisa de um sujeito universal, por exemplo, “Todos os homens são mortais”.
Dos mesmos recursos argumentativos, utiliza-se o personagem Cota. Premissas que
possibilitam a estruturação argumentativa de seu discurso, permitindo-lhe tanto a confirmação
posterior de seus argumentos, quanto a desarticulação dos argumentos de Balbo. Tal

79
Tópicos, 102a, 19-22.
80
Le vocabulaire d’Aristote, p.52.
82
estruturação silogística, comparável à definida por Lausberg81, é facilmente identificável no
discurso de Cota:

Quod ratione utitur, id melius est quam id, quod ratione non utitur; nihil
autem mundo melius; ratione igitur mundus utitur[…] Quod litteratum est, id
est melius, quam quod non est litteratum; nihil autem mundo melius;
litteratus igitur est mundus. (De Natura Deorum, III, 22-23)

Aquilo que se serve da razão é melhor do que aquilo que não se serve da
razão, porém nada (é) melhor do que o mundo; então o mundo se serve da
razão[...] Aquele que é instruído é melhor do que aquele (que) não é
instruído, porém nada (é) melhor do que o mundo; então o mundo é
instruído.

Os silogismos empregados por Cota fazem uso das partes que os compõem
tradicionalmente, ou seja, a propositio, “proposição” ou premissa maior, que, neste caso,
seriam quod ratione utitur, id melius est quam id, quod ratione non utitur, “aquilo que se
serve da razão é melhor do que aquilo que não se serve da razão”, e quod litteratum est, id est
melius, quam quod non est litteratum, “aquele que é instruído é melhor do que aquele (que)
não é instruído”; a premissa menor ou meio-termo, idêntico aos dois silogismos, que é nihil
autem mundo melius, “porém nada (é) melhor do que o mundo”; a conclusio, “conclusão”,
respectivamente, ratione igitur mundus utitur, “então o mundo se serve da razão”, litteratus
igitur est mundus, “então o mundo é instruído”.
No entanto, deve-se observar que Cota recorre ao uso de silogismos ironicamente, já
que a conclusão a que chega de que “o mundo se serve da razão” e de que “o mundo é
instruído” não tem apenas a finalidade de comprovar os termos das premissas anteriores, mas
de retomar as ideias de Zenão, idealizada por Veleio, a fim de que Cota possa criticar com
maior amplitude os argumentos de Balbo. Cota se utiliza das ideias epicuristas de Veleio para
criticar os conceitos estoicos de Balbo e ainda utiliza a conclusão dos silogismos irônica e
amplamente, não determina os limites do que seja servir-se da razão e ser instruído, pois
acredita que se o mundo é instruído ao ponto de ser racional, então ele pode dominar qualquer
ciência em particular e ainda ser filósofo, como se verifica no trecho que segue os dois
silogismos:

81
Elementos da Retórica Literária, p.219.

83
Isto modo etiam disertus et quidem mathematicus, musicus, omni denique
doctrina eruditus, postremo philosophus erit mundus. (De Natura Deorum,
III, 23)

Deste modo o mundo será também eloquente e, certamente, matemático,


músico, enfim erudito em todas as doutrinas, por último será filósofo.

Ainda pode ser o silogismo estruturado em forma reduzida e não apresentar todas as
partes constituintes, sendo assim denominado de , “entimema”, conforme
evidencia Aristóteles82. Tal redução pode consistir na diminuição de amplitude, neste caso se
tem a conservação do pensamento principal e a limitação das rationes ou a supressão do
pensamento principal do silogismo, o que faz do uma ênfase de pensamento.
Diversas vezes, a redução se configura na carência da acuidade de provas ou mesmo na
volatilização da função da prova.
Sendo assim, para que seja considerado um , é importante que haja sua

demonstração, mesmo que de forma mais indireta, conforme aponta Aristóteles

, “salvou uns,
puniu outros, libertou os gregos”, uma vez que não há o uso nas premissas da mesma palavra
que serve como elo entre os termos e a conclusão. Porém se verifica a sua demonstração já
que cada um dos pensamentos presentes nas premissas

, “pois cada um destes (pontos) se fez ver a partir de outros”, é


constituído a partir de um anterior que se reúne ao posterior e origina outro.
Após o que foi exposto sobre Retórica e Dialética, é necessário que sejam
evidenciados os atributos que devem fazer parte de um orador, considerado exímio por
excelência, conforme demonstrará a seção a seguir. Tal caracterização do orador assistirá na
análise dos personagens envolvidos no diálogo De Natura Deorum, principalmente no que
tange à estrutura discursiva utilizado por cada um dos três participantes do diálogo.

82
Retórica, 1401a, 5-13.

84
3. Discurso Retórico: Atributos do Orador

O orador necessita não apenas de conhecimento em sua própria arte, mas é importante
que se expresse dentro de seus princípios, sendo, pois, também seu papel discorrer a respeito
das coisas sobre as quais os costumes e as leis o instruíram. Desse modo, deve conhecer as
partes de que é composto o discurso retórico, ou seja, aquele que é capaz de persuadir o
ouvinte e alcançar seu consentimento até onde lhe for possível. Sobre isso o autor de Retórica
a Herênio afirma:

Oportet igitur esse in oratore inuentionem, dispositionem, elocutionem,


memoriam, pronuntiationem. Inuentio est excogitatio rerum uerarum aut ueri
similium, quae causam probabilem reddant. Dispositio est ordo et distributio
rerum, quae demonstrat, quid quibus locis sit conlocandum. Elocutio est
idoneorum uerborum et sententiarum ad inuentionem adcommodatio.
Memoria est firma animi rerum et uerborum et dispositionis perceptio.
Pronuntiatio est uocis, uultus, gestus moderatio cum uenustate. (Retórica a
Herênio, I, 3)

Desse modo no orador deve haver invenção, disposição, elocução, memória,


pronunciação. Invenção é a imaginação das coisas verdadeiras ou verdades
similares, que tornem a causa possível. Disposição é a ordem e a distribuição
das coisas, que demonstra, o que deve ser colocado em cada lugar. Elocução
é a ordem das acomodações vocabulares e de sentenças cômodas à invenção.
Memória é a firme percepção, no ânimo, das coisas tanto das palavras
quanto das disposições. Pronunciação é a moderação com elegância de voz,
semblante e gesto.

Dessa forma, o orador oportet esse, “deve ter”, todos esses elementos de modo
adequado, com o intuito de manter com mais facilidade a atenção do ouvinte, pois a respeito
disso tanto Cícero83 quanto o autor de Retórica a Herênio concordam em dizer que o orador
deve se utilizar destes princípios da arte retórica, ou seja, inuentio, dispositio, elocutio,
memoria e pronuntiatio, “invenção, disposição, elocução, memória, pronunciação”, pois neles
se encontrarão os artifícios necessários a cada momento do discurso, desde o princípio da
organização do pensamento com excogitatio rerum uerarum aut ueri similium, “a imaginação
das coisas verdadeiras ou verdades similares” até o momento do discurso propriamente dito
através da uocis, uultus, gestus moderatio cum uenustate, “a moderação com elegância de
voz, semblante e gesto”.

83
Partes autem eae, quas plerique dixerunt, inuentio, dispositio, elocutio, memoria, pronuntiatio./ Porém
aqueles partes, que a maior parte afirmou, (são) invenção, disposição, elocução, memória, pronunciação. (De
Inuentione, I, 9)

85
Segundo o autor de Retórica a Herênio, a inuentio é quae causam probabilem reddant
que, “o que torna a causa possível”. Também na inuentio se encontram os pensamentos
adequados à matéria conforme o interesse do orador, permitindo-lhe um maior grau de
credibilidade, mesmo em situação adversa. Segundo Lausberg, a inuentio não é compreendida
como processo de criação, mas como recordação de pensamentos aptos para o discurso, os
quais já existem na semiconsciência do orador e precisam ser despertados por técnica
mnemônica e mantidos conscientes por meio de exercitação.
A dispositio est ordo et distributio rerum, “é a ordem e a distribuição das coisas” e
constitui-se da ordenação partidária favorável através da escolha dos pensamentos, das
formulações e das figuras utilizadas, é quid quibus locis sit conlocandum, “o que deve ser
colocado em cada lugar”. A dispositio está ligada a uma manifestação no interior do discurso
como princípio ordenador, que garante a integridade discursiva, capaz de realizar a sua função
exterior. Há uma escolha sobre o usus das partes e das formas linguísticas das quais dispõe o
orador na memoria, através de seu discernimento, o que orienta a totalidade do discurso.
Já a elocutio est idoneorum uerborum et sententiarum ad inuentionem adcommodatio,
“é a ordem das acomodações vocabulares e de sentenças cômodas à invenção”, ou seja, é a
expressão linguística dos pensamentos adequados e selecionados pela inuentio. A elocutio
depende diretamente da instrução de dois princípios: a ars bene loquendi, que se associa ao
sistema retórico e às suas regras enunciativas; e a ars bene dicendi ou puritas, correção
idiomática, que, segundo Aristóteles, é conseguida através de cinco elementos:

(Retórica,
1407a, 19-1407b, 10)

O discurso é construído, portanto, a partir disto: o princípio da elocução é


falar à maneira grega. Isto está em cinco (aspectos)[...] O primeiro (falar)
bem as ligações84; o segundo falar as palavras específicas e não as (palavras)
que são gerais; o terceiro, não (falar palavras) ambíguas[...] o quarto
distingue, como Protágoras, os gêneros das palavras em masculinos,

84
Conjunções e preposições.
86
femininos e neutros, pois é preciso relatar tudo corretamente[...] o quinto,
nomear corretamente múltiplos, poucos e o uno85.

As observações de Aristóteles demonstram o grau de elaboração discursiva entre os


gregos, pois falar bem é , “falar à maneira grega, falar grego”, fato indiscutível
também entre os maiores escritores latinos que tinham os gregos como exemplo de
composição a ser seguido. Sendo assim, para que o orador exercesse bem sua arte, ele não só
deveria ter inuention, dispositio, elocutio, memoria e pronuntiatio, “invenção, disposição,
elocução, memória, pronunciação”, mas também deveria ser um profundo conhecedor de sua
língua para que fizesse uso das flexões das palavras corretamente, de seus elementos coesivos
e de uma progressão discursiva pertinente.
A retomada do modelo grego, conforme oberva Horácio em Epistula ad Pisones86, é
entendida como o mais alto padrão discursivo, mesmo entre os latinos. Cícero em várias de
suas obras faz menção à tentativa de deixar um legado tão importante em latim,
principalmente no campo filosófico. Então, , “falar à maneira grega, falar grego”,
era entendido como falar corretamente, pois o modelo retórico seguido principalmente em
Roma era o proveniente da Grécia.
Seguindo essa concepção, Cícero entende que o orador perfeito tendo encontrado o
que dizer e em que ordem, ocupa-se em seguida em como irá realizar o discurso, devido à
maleabilidade da língua e suas infinitas flexões de gênero, número e caso. Alguns oradores
preferem a corrente e a facilidade das palavras, pondo a eloquência na rapidez do discurso,
outros preferem frases entrecortadas e separadas, com paradas e pausas. Porém, todos se
esforçam em fazer uso da ars bene loquendi e da ars bene dicendi.
No que se refere à memoria, pode-se dizer que o seu cultivo está diretamente ligado à
Retórica e depende das possibilidades de memorização que estão à disposição do orador, já
que ela est firma et uerborum et dispositionis perceptio, “é a firme percepção tanto das
palavras quanto das disposições”. A memoria é de suma importância, uma vez que na
Antiguidade vigorava a rígida regra de que o discurso deveria ser, sucessivamente, escrito,
memorizado e pronunciado; o que gerou proveitos incalculáveis, devido ao legado

85
Plural, dual e singular.
86
Vos exemplaria Graeca. Nocturna uersate manu, uersate diurna./ Vós retomai os exemplos gregos com mão
noturna, retomai com (mão) diurna. (Epistula ad Pisones, v.268-269)

87
remanescente da escrita. O exercício da memoria é também louvado por Platão87, ao afirmar
que o exercício apenas escrito dos discursos poderia prejudicar o exercício da mente, fazendo
com que as pessoas parecessem sábias por terem acesso a muitos textos escritos, mas que, na
verdade, esses textos as tornariam incapazes de acompanhar sabiamente o que eles ensinam,
por não haver um mínimo exercício necessário da memoria.
Por sua vez, na pronuntiatio a essência do discurso se completa em sua execução, já
que ele é uma prática significante e comunicativa que supõe um orador, o próprio discurso e
um auditório, em que os dois primeiros se correlacionam e um postula o outro, pois a arte
retórica é dominada pela ação.
A respeito do entusiasmo que sente pela ação, Cícero estima a ação como a finalidade
da tarefa retórica, afirma que a ação é uma espécie de elocução do corpo, já que está baseada
na voz e no movimento, pois a pronuntiatio est uocis, uultus, gestus moderatio cum uenustate,
“é a moderação com elegância de voz, semblante e gesto”. A imposição da voz é tão variável
quanto os sentimentos empregados em cada momento da elocução, sentimentos que são
provocados pela pronuntiatio.
Cícero define que o orador perfeito adota um determinado tom de voz, ou seja,
moderatio, “moderação”, segundo o sentimento que queira dar à impressão que o afeta e a
emoção que ambiciona provocar no ânimo dos ouvintes, associado a isso, tem-se o papel
importante da gesticulação. Cícero ainda relata que quando se perguntava a Demóstenes qual
era a parte principal da Retórica, este sempre respondia que em primeiro lugar estava a ação;
em segundo lugar, a ação; em terceiro lugar, a ação, conforme se verifica em:

Nam et infantes actionis dignitate eloquentiae saepe fructum tulerunt et


diserti deformitate agendi multi infantes putati sunt; ut iam non sine causa
Demosthenes tribuerit et primas et secundas et tertias actioni; si enim
eloquentia nulla sine hac, haec autem sine eloquentia tanta est, certe
plurimum in dicendo potest. (Orator, 56)

Realmente, os oradores sem eloquência conduziram o fruto da eloquência


muitas vezes na dignidade das ações e muitos oradores eloquentes foram
considerados, pela deformidade de agir, sem eloquência; de modo que, não
sem razão, Demóstenes atribuiu à ação o primeiro, o segundo e o terceiro
papel, pois se a eloquência não é nada sem a ação, esta, ao contrário, é tão
grande sem a eloquência, certamente muito mais é possível no falar.

87
Fedro, 275a-b.

88
Tendo Cícero se baseado na concepção de Retórica grega, nada mais conveniente do
que tomar um dos mais notáveis oradores gregos como exemplo para sustentação de seus
argumentos a respeito da pronuntiatio, pois logicamente que ela é a finalidade do princípio
retórico. Um discurso persuasivo torna-se mais convincente quando associado à ação, pois
sem esta multi infantes putati sunt sine eloquentia, “muitos oradores foram considerados sem
eloquência”.
Pode-se ainda afirmar que não é apenas a pronuntiatio que se baseia em exímios
exemplos, mas quase todos os princípios retórico-discursivos, que podem, segundo o autor de
Retórica a Herênio, ser alcançados a partir de três elementos:

Haec omnia tribus rebus adsequi poterimus: arte, imitatione, exercitatione.


Ars est praeceptio, quae dat certam uiam rationemque dicendi. Imitatio est,
qua inpellimur cum diligenti ratione ut aliquorum similes in dicendo
ualeamus esse. Exercitatione est adsiduus usus consuetudoque dicendi.
(Retórica a Herênio, I, 3)

Tudo isto poderemos alcançar por três meios: arte, imitação, exercício. A
arte é o ensinamento que dá o método preciso e a sistematização de dizer. A
imitação é o que nos instiga, com método diligente, para que desejemos ser
semelhantes a outros no dizer. O exercício é a assídua prática e o costume de
dizer.

Sendo assim os princípios retórico-discursivos podem ser alcançados, primeiramente,


através da arte, pois é ela quae dat certam uiam rationemque dicendi, “que dá o método e a
sistematização de dizer”, o que deve ser entendido mais especificamente como a
engenhosidade e a sistematização do discurso por parte do orador; segundo, assim como os
exemplos que devem ser seguidos na pronuntiatio, outros princípios retóricos também devem
ser calcados na imitatio, “imitação” pois faz com que aliquorum similes in dicendo ualeamus
esse, “desejemos ser semelhantes a outros no dizer”, desse modo os discursos dos oradores
mais célebres devem ser tomados como exemplos e também devem ser imitados, pois,
seguindo Aristóteles88, os homens são naturalmente inclinados à , ou seja, à imitatio,
“imitação”, pois sentem, desde à infância, prazer através da imitação e através dela se
regozijam; terceiro, o exercício produz a adsiduus usus consuetudoque, “a assídua prática e o

88
[...]
. /Pois o imitar é natural aos homens desde a infância[...] e com a imitação alegram-se
todos. (Poética, IV, 5-8)

89
costume”, ou seja, é através da prática e do costume dicendi que o orador aperfeiçoa seus
atributos oratórios.
Sendo assim, tendo o orador os atributos necessários para pronunciar um discurso
capaz de convencer, não apenas pela adequada disposição de ideias, mas também por
argumentos que garantam o convencimento do interlocutor, é necessário que seja preparada a
estruturação do discurso dentro dos preceitos da arte retórica. O discurso deve seguir uma boa
estruturação para atingir os seus fins, ou seja, a persuasão do interlocutor, a qual também é
conseguida através do uso de argumentos convincentes e bem colocados nas devidas seções
que compõem o discurso, como será demonstrado no item a seguir.

90
3.1. Retórica: Partes Constituintes do Discurso

De acordo com as orientações da Retórica, após a descoberta dos pontos a julgar e os


argumentos necessários à argumentação, devem-se ordenar as partes constituintes do discurso.
Por vezes, a estrutura do discurso não está nitidamente apresentada, devido ao grau de
subjetividade da escrita, mesmo em textos que versam sobre a organização retórico-
discursiva, como De Inuentione, de Cícero, que não expressa com clareza as partes
discursivas de que o orador deve se utilizar para organizar adequadamente seu discurso.
A sugestão a seguir para tal divisão do discurso retórico, usado na Antiguidade
Clássica como modelo exímio, foi estabelecida basicamente através da leitura de várias obras
de Cícero em que ele faz menção, mesmo que indiretamente, ao uso adequado das partes do
discurso, como De inuentione e Brutus, e da leitura de outros autores, como Aristóteles e o de
Retórica a Herênio.
Sendo assim, serão apresentadas as partes que compõem o discurso retórico clássico, à
medida que é verificada a sua aplicação, sobretudo com base na teoria discursiva ciceroniana,
nos três Livros que compõem o diálogo filosófico De Natura Deorum.
Comumente Cícero estabelece que as partes do discurso são seis: exórdio, narração,
divisão, demonstração, refutação e conclusão. A mesma concepção de divisão discursiva é
assumida pelo autor de Retórica a Herênio, ao afirmar:

Inuentio in sex partes orationis consumitur: in exordium, narrationem,


diuisionem, confirmationem, confutationem, conclusionem. Exordium est
principium orationis, per quod animus auditoris constituitur ad audiendum.
Narratio est rerum gestarum aut proinde ut gestarum expositio. Diuisio est,
per quam aperimus, quid conueniat, quid in controuersia sit, et per quam
exponimus, quibus de rebus simus acturi. Confirmatio est nostrorum
argumentorum expositio cum adserueratione. Confutatio est contrariorum
locorum dissolutio. Conclusio est artificiosus orationis terminus. (Retórica a
Herênio, I, 4)

A invenção é empregada nas seis partes do discurso: no exórdio, na


narração, na divisão, na confirmação, na refutação, na conclusão. O exórdio
é o início do discurso, através do qual se constitui o ânimo do ouvinte a
ouvir. A narração é a exposição das coisas que ocorreram ou, por
conseguinte, como ocorreu. A divisão é (o meio) pelo qual esclarecemos o
que convém, o que está em controvérsia, e pelo qual expomos sobre as
coisas que iremos falar. A confirmação é a exposição dos nossos argumentos
com segurança. A refutação é a destruição das provas contrárias. A
conclusão é término, segundo os princípios da arte, do discurso.

91
Pode-se então verificar que as partes de que são constituídos os discursos, apesar de
toda influência grega, diferem ao menos na nomenclatura das sugeridas por Aristóteles, que
divide, em sua Retórica, o discurso em apenas cinco partes, denominando-as de

e , “Proêmio, proposição, persuasão, peroração e


epílogo”. Tais partes teriam como equivalentes os termos latinos, sucessivamente, exordium,
propositio, argumentatio, peroratio e conclusio, “exórdio, proposição, argumentação,
peroração e conclusão”.
A partir da seção a seguir, serão verificadas as partes em que Cícero divide,
sucessivamente, seu discurso, iniciando evidentemente pelo exordium, à medida que também
serão feitas as devidas críticas à sua estruturação discursiva, tomando como base os
argumentos acerca da natureza dos deuses, apresentados pelos personagens ao longo dos três
Livros que compõem a obra De Natura Deorum.

92
4. Estruturação Retórica do De Natura Deorum, Livro I

4.1. Exordium

O Exórdio, conforme afirma o autor de Retórica a Herênio, est principium orationis,


per quod animus auditoris constituitur ad audiendum, “é o início do discurso, através do qual
se constitui o ânimo do ouvinte a ouvir”, ou seja, é a apresentação do discurso, a parte que
deve dispor o ânimo do ouvinte para que ele possa escutar o restante da exposição com
interesse e atenção.
Para que isso aconteça, o orador deve ter um bom conhecimento do gênero de causa89
em questão e o orador precisa adotar um exórdio conveniente a cada uma delas, podendo,
pois, ser apresentado por uma insinuação introdutória, que se configura através da
dissimulação e da alusão indireta, sem que o ouvinte perceba; de modo que, mesmo o fato
sendo contrário aos interesses do ouvinte, o orador consegue sua atenção e não o inflama de
hostilidade, o que consiste em uma maneira de mouere et delectare, apesar de muitas vezes a
causa não ser digna de interesse por parte do ouvinte.
Também pode-se apresentar o exordium de maneira indireta, quando se procura aberta
e claramente que o ouvinte se mostre favorável à causa, que sendo digna, pode ser abordada
declaradamente, devendo-se recorrer o orador aos meios que façam com que aumente a
predisposição para a causa já existente no ouvinte. Neste caso, o orador deve fazer clara e
resumidamente a exposição da causa e, no caso de ter sido realizado anteriormente um
discurso por outro orador, dizer em que consiste a controvérsia anterior, pois deve-se
conseguir a atenção da maioria e perceber em quais ouvintes se deve enfatizar o discurso.
No entendimento de Cícero, deve-se dar a devida importância ao exordium, pois ele
afirma que:

Exordium sententiarum et grauitatis plurimum debet habere et omnino


omnia, quae pertinent ad dignitatem, in se continere, propterea quod id
optime faciendum est, quod oratorem auditori maxime commendat;
splendoris et festiuitatis et concinnitudinis minimum, propterea quod ex his
suspicio quaedam apparationis atque artificiosae diligentiae nascitur, quae
maxime orationi fidem, oratori adimit auctoritatem. (De Inuentione, I, 25)

89
Há divergências entre o número das classes de causa apresentado por Cícero, em De Inuentione, e pelo autor
de Retórica a Herênio. Aquele apresenta cinco classes de causas, a saber, digna, extraordinária, insignificante,
duvidosa e obscura; este apresenta apenas quatro classes de causa, a saber, honesta, torpe, dúbia e humilde.

93
O exórdio deve ter grande quantidade de sentenças e de importância e, em
geral, deve conter em si tudo que se refere à dignidade, por isso que se deve
fazer no melhor estilo, o que prepara principalmente o orador ao ouvinte,
com o mínimo de elegância, de artifício e de ornamentação, pois fora disto
algo de excedente e de diligência artificiosa, no conhecimento, nasce, a qual
tira principalmente a fides do discurso e a autoridade do orador.

Relacionando-se a definição de importância do exordium para Cícero e para o autor de


Retórica a Herênio, percebe-se a plena concordância entre os autores, pois Cícero também
comunga da ideia de que o exordium é quod oratorem auditori maxime commendat, “o que
prepara principalmente o orador ao ouvinte”. Além disso, Cícero especifica que a elaboração
do exordium não pode ser artificiosa, pois isso poderia não garantir o que mais se pretende
nesta parte discursiva, ou seja, a atenção do ouvinte. Caso haja uma elaboração muito
rebuscada desta parte, pode-se gerar suspicio quaedam apparationis atque artificiosae
diligentiae, “algo de excedente e de diligência artificiosa”, o que não seria interessante para a
garantia da devida atenção.
Na terminologia grega, a nomenclatura usada para exordium é , “proêmio”,
que é definido por Aristóteles como o início do discurso ou aquilo que vem antes, que
corresponde na poesia ao prólogo e na música de aulo ao prelúdio, dessa forma o
serve para preparar o caminho ao que será apresentado.
Aristóteles afirma que o é proveniente do elogio, da censura, do conselho,
do pedido de desculpas ao ouvinte, neste caso o discurso se estabelece a respeito de algo
contrário, complexo de ser discutido ou já abordado por muitos oradores e que dificilmente
desperta o interesse. O proporciona uma amostra do que será abordado pelo
discurso, a fim de que haja o reconhecimento prévio e de que o entendimento não fique em
suspenso, pois um assunto indeterminado pode gerar dispersão. Sendo assim, Aristóteles
afirma:

(
) (Retórica, 1415a,
22-25)

Sem dúvida a função mais necessária e particular do proêmio (é) demonstrar


algo que o discurso tem por finalidade (porque, caso o assunto seja claro e
diminuto, não há utilidade no proêmio).

94
É evidente que , “caso o assunto seja claro e

diminuto”, não há necessidade de um , pois o orador pode ir direto a narratio.


Sendo assim, pode-se afirmar que o ouvinte ficará mais atento a temas que lhe digam respeito,
que despertem seu interesse ou que lhes sejam agradáveis.
Porém o orador deve ser cauteloso e ter a percepção de quais elementos se relacionam
com o ouvinte, perceber quais momentos são oportunos para suscitar sua benevolência ou sua
cólera, a fim de fazê-lo dar a devida atenção à progressão temática, mesmo nos casos em que
, “o assunto seja breve”.
É exatamente em busca de suscitar a atenção do ouvinte que Cícero procura
primeiramente justificar em De Natura Deorum, Livro I, qual o valor do assunto a ser
abordado, configura seu exordium (Προοίμιον) de uma maneira direta, buscando claramente
que o ouvinte se mostre benevolente à sua causa; demonstrando qual a importância de se
saber se os deuses existem ou não, qual o papel desempenhado por eles junto aos seres
humanos. Questões que até o momento haviam sido tratadas de maneira bastante controversa
pelos filósofos gregos e romanos, sobre as quais o autor pretende apontar as principais
correntes filosóficas de sua época. Para tal justificativa, Cícero utiliza 14 dos 124 parágrafos
que compõem o Livro I, do De Natura Deorum, ou seja, o exórdio, no Livro I, é composto
pelos 14 primeiros parágrafos. O Autor começa por observar que muitos conceitos acerca dos
deuses ainda não foram devidamente explicados:

Cum multae res in philosophia nequaquam satis adhuc explicatae sint, tum
perdifficilis, Brute, quod tu minime ignoras, et perobscura quaestio est de
natura deorum, quae et ad cognitionem animi pulcherrima est et ad
moderandam religionem necessaria. De qua [cum] tam variae sint90
doctissimorum hominum tamque discrepantes sententiae, magno argumento
esse debeat [ea]91 causa, principium philosophiae ad h* scientiam92,
prudenterque Academici a rebus incertis adsensionem cohibuisse. (De
Natura Deorum, I, 1)

Como muitas coisas na filosofia não tenham sido explicadas suficientemente


até aqui, então é muito difícil, ó Bruto, o que tu de modo algum ignoras, e é
muito obscura a questão sobre a natureza dos deuses, que tanto é necessária
para regular a religio quanto é excelente para o conhecimento da alma, sobre

90
: “De qua tam variae sunt(...)”.
: “De qua tam variae sunt(...)”.
91
: “ut magno argumento esse debeat (...)”.
: “ut magno argumento esse debeat (...)”.
92
: “caussam, id est, principium philosophiae, esse scientiam (...)”.
: “causam et principium philosophiae esse scientiam (...)”.
95
a qual existam tão variadas e tão discrepantes sentenças dos homens sábios.
Sobre o nobre argumento, aquela causa deve ser o princípio da filosofia para
o conhecimento e, prudentemente, os acadêmicos contiveram a aprovação
das coisas incertas.

Como se observa, o Livro De Natura Deorum é destinado a Bruto (Marcus Junius


Brutus) por quem Cícero nutria grande amizade, conforme atestam algumas cartas
consagradas a ele e as dedicatórias de De Finibus e de Tusculanae Disputationes. Pode-se
aferir que tal procedimento é marcado por um caráter puramente ideológico, pois tanto Bruto
quanto Cícero compartilhavam de ideias semelhantes, já que eram acadêmicos.
Esses conceitos demonstram que multae res in philosophia nequaquam satis adhuc
explicatae sint “muitas coisas na filosofia não tenham sido explicadas suficientemente até
aqui”, ou seja, havia explicações insatisfatórias dadas pela filosofia acerca dos deuses, e
também que tamanha obscuridade regia a prática religiosa antiga.
Tais considerações introdutórias preparam metaforicamente não apenas Bruto, mas
também os demais personagens que estavam presentes para o discurso que estaria por iniciar,
uma vez que as críticas, que se seguem principalmente à escola epicurista, mostram que o
discurso possui um caráter bem mais amplo e que pode ser considerado mero formalismo
dedicá-lo apenas a um interlocutor.
Sendo a ignorância a causa e o começo da filosofia, o texto sugere mais uma hipótese,
observada em [ea] causa, principium philosophiae ad h* scientiam, “aquela causa deve ser o
princípio da filosofia para o conhecimento”, em que a palavra inscientia, “ignorância”, não
deve ser entendida como pura e simples ignorância, mas com inscitia, “incapacidade”, o que
se baseia na ausência de conhecimento e na incapacidade, com caráter de buscar o
desconhecido, desse modo os homens se dedicam à filosofia para escapar aos tormentos da
ignorância, mesmo que não haja um lugar comum a que se deva chegar, esse é o propósito do
texto de Cícero. O que mostra a diversidade ou a contrariedade das crenças relativas aos
deuses, é que os homens não têm, de certo modo, alguma certeza a respeito da natureza dos
deuses, não se pode afirmar que o desconhecimento íntegro gera a filosofia, mas a ausência de
certezas ou até mesmo a busca delas. A divergência de opiniões mostra a ignorância e que os
filósofos acadêmicos, como Cícero, podem ter razão em discordar das diversas concepções
filosóficas, no decorrer do diálogo.
As divergências são apresentadas primeiramente pela citação de alguns filósofos que
têm pontos de vista diferenciados:

96
Velut in hac quaestione plerique, quod maxime ueri simile est et quo omnes
+sese93 duce natura uenimus, deos esse dixerunt, dubitare se Protagoras,
nullos esse omnino Diagoras Melius et Theodorus Cyrenaicus putauerunt.
Qui uero deos esse dixerunt, tanta sunt in uarietate et dissensione, ut eorum
infinitum sit enumerare sententias. Nam et de figuris deorum et de locis
atque sedibus et de actione94 uitae multa dicuntur, deque is summa 95
philosophorum dissensione certatur. (De Natura Deorum, I, 2)

Como nesta questão muitos disseram que os deuses existem, o que é


extremamente provável e a que todos chegamos, conduzindo a natureza.
Protágoras duvida deles, Diágoras de Melo e Theodoro Cyrenaico
consideraram completamente não existirem. Muitos verdadeiramente
disseram que os deuses existem, tantas coisas estão em grande variedade e
discórdia, que é infinito enumerar as suas sentenças. Pois tanto sobre as
aparências dos deuses, quanto sobre os lugares e as sedes, como sobre o
modo de vida muitas coisas são ditas, e sobre eles se discute com a extrema
discórdia dos filósofos.

Mesmo em relação aos que questionavam a existência dos deuses, havia bastante
divergência de pensamento, como se afirma em deque his summa philosophorum dissensione
certatur, “e sobre eles se discute com a extrema discórdia dos filósofos”. Além de a questão
ser carente de explicações que pudessem tirar os que desejassem saber da obscuridade, em
que também se encontrava Bruto, os filósofos que tentaram explicar algo sobre os deuses
tinham deixado mais dúvidas sobre os seres divinos, já que em muitos aspectos discordavam
uns dos outros. No entanto, a maior indagação, entre os antigos, está associada ao modo de
vida dos deuses, se eles realmente criaram e governavam o mundo, desde as origens, ou se
não exerciam qualquer forma de administração.
Unem-se a essa questão grandes divergências, principalmente as ligadas às práticas
religiosas; de acordo com Cícero, há três tipos fundamentais de pensamentos entre os antigos.
Havendo, deste modo, os que acreditavam que os deuses existiam e regiam o mundo de todo e
qualquer modo; os que afirmavam que eles não existiam verdadeiramente e, ainda, os que
consideravam que eles existiam, mas não se importavam com o mundo e com os seres
humanos.

93
: “quod maxume ueri simile est et quo omnes duce natura uehimus (...)”.
: “quod maxime uerisimile est, et quo omnes duce natura uenimus (...)”.
94
: “et actione (...)”.
: “et actione (...)”.
95
: “deque his summa (...)”.
: “deque his summa (...)”.
97
Considerando esses dois últimos tipos de pensamentos, Cícero questiona como e por
que existiria a pietas e a sanctitas, ou mesmo a própria religião, vejamos:

Sunt enim philosophi et fuerunt, qui omnino nullam habere censerent rerum
humanarum procurationem deos. Quorum si uera sententia est, quae potest
esse pietas, quae sanctitas, quae religio? (De Natura Deorum, I, 3)

Então existem e existiram filósofos que julgaram que os deuses não têm
absolutamente nenhum cuidado das coisas humanas, se a sentença deles é
verdadeira, qual pietas96 pode haver, qual sanctitas, qual religio?

A religião está intimamente relacionada à disciplina e à conduta dos antigos, conforme


Pierre Grimal97. No entanto, não são os deuses que estabelecem a conduta dos homens, apenas
estes entendiam que o cumprimento dos rituais tradicionais garantia a ordem universal, e por
este motivo prestavam-lhes cultos. Segundo a tradição, cada deus era responsável por uma
ação natural benfeitora. Acreditavam ainda que, com os cultos, estariam evitando os perigos
que ameaçavam constantemente a atividade humana.
Cícero quando afirma a Brutus que não é desconhecedor por completo dos deuses,
porque destes pouco se sabe, relaciona este pensamento diretamente à própria palavra religio
que inicialmente tem significado obscuro. Não significava, pois, cultos prestados às
divindades, mas tinha um sentimento vago atribuído a períodos de abstinência por certo temor
regido por entidade sobrenaturais, meramente proveniente de impressões supersticiosas.
De acordo com Pierre Grimal98, a palavra pietas está diretamente ligada ao verbo
piare, que designa uma ação, apagar um mau presságio, um crime. Então, pode-se verificar
que a pietas se condiciona a uma observação das relações no interior do universo, sendo uma
forma de justiça do imaterial capaz de pôr ações espirituais em seu devido lugar, ou mesmo
que o revela, quando ocorre algum tipo de perturbação da ordem. Outras formas de
manifestação da pietas existiam, como a pietas para com os deuses, ou mesmo para com os
membros participantes da sociedade e também para com a própria cidade.
Por outro lado, a pietas em uma de suas manifestações mais antigas denomina-se fides,
que geralmente é traduzida para as línguas modernas por boa-fé, mas que designa um
princípio regulador das relações sociais, como a marcação dos limites territoriais, a relação
em todo e qualquer acordo entre os seres, tratados, contratos, estando estes implícitos ou não.

96
As palavras em itálico não foram traduzidas por não se considerar que haja um correspondente em língua
portuguesa que seja capaz de lhe dar um sentido preciso, para não se conduzir a interpretações equivocadas.
97
A Civilização Romana, p.68.
98
Idem, p.70.
98
O rompimento com essa boa-fé abalava os pilares das instituições sociais, pois,
segundo Pierre Grimal99, a fides constituía uma das virtudes essenciais da moral romana. A
fides garantia, nas batalhas, o atendimento a um pedido de clemência do vencido ao vencedor,
o qual geralmente atendia, pois se tratava de uma questão moral, que não deveria ser
contrariada, e, caso fosse, o cidadão que não atendesse poderia ser denominado impiedoso, já
que pietas e fides estão intimamente relacionadas, muitas vezes, confundem-se, sendo esta
entendida como uma primitiva manifestação daquela.
Basicamente, a construção da moral romana constituía-se em três pilares: pietas, fides
e uirtus. Esta última provém da palavra uir e designa propriamente a qualidade de ser homem,
atribuindo-lhe por excelência o domínio de si mesmo, a conduta pela razão. Desse modo, a
vida social romana está intrinsecamente ligada à conduta religiosa, como atesta Pierre
Grimal100: A religião está longe de se encontrar ausente da vida moral: intervém como um
prolongamento da hierarquia.
Há ainda a sanctitas, que convencionalmente é uma palavra traduzida por santidade;
afastando-se, porém, do ideal romano de respeito pelo caráter da religião romana, os
cumprimentos de todas as obrigações impostas religiosamente. Um sentimento sagrado de que
há uma força maior, um deus que governa e está presente em tudo, o que Cícero tenta definir
por sanctitas autem est scientia colendorum deorum, ou seja, “a sanctitas, no entanto, é a
ciência de louvores dos deuses”.
Todos esses elementos são citados ainda que, com um tom suspeito, pois não há como
saber se os deuses existem ou não. E, em caso de dúvida, por que se deve manter tal culto?
Esse questionamento é repetido em todo o primeiro momento do exordium, porém de maneira
bastante dúbia, já que os conceitos religiosos dos romanos são basicamente calcados em
princípios que também norteiam a vida pública.
Sendo assim, a pietas não pode existir apenas na força do fingimento, o que
ocasionaria a desestruturação dos pilares da moral romana: uirtus, pietas et fides, as quais não
estão fundamentadas na aparência ou mesmo na hipocrisia. A desestruturação religiosa
ocasionaria desordem e confusão, já que os preceitos sociais estão diretamente ligados a
religio. Levantando tais hipóteses, Cícero acrescenta:

99
A Civilização Romana, p.71.
100
Idem, p.68.
99
Atque haut scio, an pietate aduersus deos sublata fides etiam et societas
generis humani et una excellentissuma uirtus iustitia tollatur. (De Natura
Deorum, I, 4)

E não sei se abolida a pietas para com dos deuses, seria extinta também a
fides, e a sociedade do gênero humano, e a uirtus excelentíssima, a justiça.

O tom de dúvida utilizado por Cícero, haud scio, “não sei” mesmo que
hipoteticamente, utiliza-se de um instrumento retórico importante para sustentar seus
argumentos, o , “o silogismo”, baseado nas duas premissas que tentam provar
uma terceira: se não há deuses também não precisa haver pietas, e se não há pietas, a fides
não é necessária, desse modo a justiça tão importante para as relações sociais também não
precisa ser respeitada.
De maneira dialética, ainda no exordium do Livro I, Cícero expõe que muitos filósofos
pensam de modo diferente, que o mundo é governado por uma razão divina. Nesse caso,
como convém, levanta um breve resumo da causa, motivando o interlocutor a se interessar
quer por aquele quer por este ponto de vista, proporcionando uma amostra do que será o
discurso, para que haja um prévio entendimento e que nada fique em suspenso. O autor
objetiva, desse modo, a atração dos mais diversos interlocutores.

Sunt autem alii philosophi, et hi quidem magni atque nobiles101, qui deorum
mente atque ratione omnem mundum administrari et regi censeant, neque
uero id solum, sed etiam ab isdem hominum uitae consuli et prouideri. (De
Natura Deorum, I, 4)

Existem, porém, outros filósofos e, eles são grandes e nobres certamente,


que estimam todo o mundo ser governado e regido pela mente e razão dos
deuses, e certamente não é apenas isto mas também, para vida dos homens,
ser cuidado e provido por eles mesmos.

Para os filósofos que afirmavam que qualquer elemento da terra era providência
divina, todos os fenômenos, fossem esses de cunho natural ou social, eram considerados
regidos por uma força maior, a divina, a qual criara tudo para o usufruto dos seres humanos.
Dessa forma, Cícero introduz argumentos dialéticos que preparam para artifícios posteriores,
aludindo nesta ocasião aos filósofos estoicos, opondo suas crenças às dos epicuristas.

101
: “et hi quidem magni atque nobiles (...)”.
: “et ii quidem magni atque nobiles (...)”.
100
No entanto, leva a crer que, depois de apresentadas as teses propostas, o interlocutor
ficaria sabendo qual das correntes de pensamento é a apropriada. Provoca assim uma
motivação intensa para reter a atenção, pois o tema em questão exerce influência não apenas
nos que acreditam nos deuses como também nos que não acreditam, assim afirma:

Res enim nulla est, de qua tantopere non solum indocti, sed etiam docti
dissentiant; quorum opiniones cum tam uariae sint tamque inter se
dissidentes, alterum fieri profecto potest, ut earum nulla, alterum certe non
potest, ut plus una uera sit. (De Natura Deorum, I, 5)

De fato, nenhuma coisa há sobre a qual não apenas os ignorantes, mas


também os doutos tanto discordem, cujas opiniões como são tão variadas e
tão discordantes entre si, uma pode certamente ser considerada, como
nenhuma delas, outra certamente não pode, para que uma só seja verdadeira.

Nesse fragmento, há uso do , “entimema”, que se fundamenta em premissas


prováveis que, na maioria das vezes, não se concluem por inteiro, como se percebe em
alterum fieri profecto potest, ut earum nulla, alterum certe non potest, ut plus una uera sit,
“uma pode certamente ser considerada, como nenhuma delas, outra certamente não pode, para
que uma só seja verdadeira”.
Disto se vale o autor, quando estrutura o silogismo apresentado sem todas as partes
constituintes, limitando assim as rationes, para que haja sua demonstração. O autor assegura o
interesse do interlocutor, tenta ainda garantir a apresentação da importância temática, gerando
certa expectativa sobre a que ponto iria chegar depois de apresentadas essas contradições, que
ao mesmo tempo podem ser verificadas como opiniões verdadeiras ou, por outro lado, como
falsas.
O interlocutor é conduzido pela faculdade retórica, com base nas premissas
apresentadas: há a existência dos deuses para os incultos, que lhes dedicam rituais constantes;
por outro lado, os homens doutos afirmam que eles não existem. O autor se utiliza desta
dicotomia para construir seu , “entimema” que não se apresenta como uma
conclusão única e verdadeira, mas pelo contrário, dialética.
Ainda no exordium do Livro I, Cícero explica mais especificamente do que trata o
diálogo filosófico:

Sed iam, ut omni me inuidia liberem, ponam in medio sententias


philosophorum de natura deorum. Quo quidem loco conuocandi omnes
uidentur, qui, quae sit earum uera, iudicent. (De Natura Deorum, I, 13)
101
Mas agora para que me libertasse de toda inveja, ponho no centro as
sentenças dos filósofos sobre a natureza dos deuses. Neste lugar, certamente,
parecem dever se reunir todos que julgam qual seja a sua verdade.

O autor colocará in medio sententias philosophorum de natura deorum, “no centro as


sentenças dos filósofos sobre a natureza dos deuses”, para que, desse modo, consiga o que
pretende com o seu método de levar sobre todas as coisas a dúvida e a obscuridade das
incertezas: primeiramente, demonstrando que há muita divergência entre os mais sábios
filósofos; depois, comprovando que é improvável que se chegue a um denominador comum
de natura deorum, “sobre a natureza dos deuses”.
Após a exposição das intenções do autor no exordium da obra De Natura Deorum, o
item a seguir versará sobre as características da narratio em um discurso retórico e quais de
seus princípios podem ser observados nos parágrafos que compõem a narratio do Livro I do
diálogo.

102
4.2. Narratio

Após o exordium ou , tem-se a exposição dos fatos do modo como


ocorreram ou como se supõe que ocorreram, a qual é denominada narratio, ou seja, est rerum
gestarum aut proinde ut gestarum expositio, “é a exposição das coisas que ocorreram ou, por
conseguinte, como ocorreu”. A narratio na terminologia grega é dita , “narração”,
que também pode ser concebida como um conjunto de provas, que supõe uma referência à
causa, que é aparentemente objetiva, mas que sempre segue os preceitos e as necessidades do
orador.
A narratio deve ser clara pelos termos empregados e pela organização discursiva,
deve ter brevidade e eliminar tudo o que não seja útil à argumentação, também deve mostrar
que todos os fatos conduzem àquilo que deseja o orador para ter credibilidade e enunciar o
evento com as suas causas mais importantes.
Desse modo, a forma de apresentação da narratio está diretamente ligada ao gênero a
que pertence o discurso, podendo-se expor o fato acontecido e capturar os detalhes para o
proveito do retor que, conforme a sua necessidade, pode também alterar a posição da narratio.
Em muitos casos, o gênero narrativo apresenta uma digressão externa, o que tem por
finalidade a acusação, a comparação ou a advertência, de acordo com o tema que se discute. A
, “narração”, pode também ser usada para agradar ao ouvinte, conforme observa
Cícero:

Tertium genus est remotum a ciuilibus causis, quod delectationis causa non
inutili cum exercitatione dicitur et scribitur[...] Ea, quae in negotiorum
expositione posita est, tres habet partes: fabulam, historiam, argumentum.
Fabula est, in qua nec uerae nec ueri similes res continentur, cuiusmodi est:
“angues ingentes alites, iuncti iugo”. (De Inuentione, I, 27)

O terceiro gênero está afastado das causas civis, porque a causa de deleite
não se diz e não se escreve com um inútil exercício[...] Aquela, que foi posta
na exposição do assunto, tem três partes: fábula, história, argumento. Fábula
são fatos que (não) se mantêm nem verdadeiros nem verossímeis, é de certa
forma: “enormes dragões alados, atrelados ao jugo.”

A respeito dos narrationum genera tria, “três gêneros de narração”, Cícero afirma que
o unum genus, “o primeiro gênero” é o que inclui a própria causa e os fundamentos da
controvérsia; alterum genus, “o outro gênero”, ou seja, o segundo pode conter uma digressão
externa à causa e tem como finalidade acusar, comparar ou ampliar os fatos em questão; o
103
tertium genus, “o terceiro gênero”, é o que se detém na negotiorum expositione, “exposição
do assunto”, e se divide em três partes, ou seja, fabulam, “fábula”, que é o relato de fatos que
não são verdadeiros nem verossímeis, historiam, “história”, que é o relato de fatos históricos
acontecidos em épocas passadas, e o argumentum, “argumento”, que é um relato de um feito
que não aconteceu, mas que poderia ter acontecido.
As três classes em que está dividido o tertium genus, “terceiro gênero”, quer se apoiem
em exemplos não verdadeiros, quer se apoiem em exemplos que aconteceram ou que
poderiam ter acontecido, servem ao orador como uma alegoria da causa em questão e pode ser
considerado uma técnica própria a esta parte do discurso que tem como finalidade assegurar
uma argumentação persuasiva.
A narração que consiste na exposição da causa deve, para melhor desempenho
discursivo, apresentar alguns requisitos, que são apresentados pelo autor de Retórica a
Herênio, tais como brevidade, clareza, como se verifica em:

Tres res conuenit habere narrationem, ut breuis, ut dilucida, ut ueri similis


sit; quae quoniam fieri oportere scimus quemadmodum faciamus,
cognoscendum est. (Retórica a Herênio, I, 14)

Três coisas convêm ter a narração, que seja breve, clara e verossímil; as
quais sabemos que, depois de ser feito, é preciso conhecer de que maneira
produzir.

Dos três elementos que convém à narratio, “narração”, o fator mais relevante seria
como realizá-los. Sendo assim, para que breuis sit, “seja breve”, a narratio deve estar ligada
diretamente a um ponto específico, sem que se mencionem pormenores ou detalhes
demasiados, não se deve insistir nas palavras que foram ditas anteriormente, também não se
deve retomar o assunto em sua mais remota origem ou mesmo persistir na continuidade até a
sua última consequência.
Mesmo quando os fatores anteriores e posteriores são omitidos na narratio, a
progressão deve ser evidente, fazendo com que o discurso se torne sucinto. Devem-se
respeitar os preceitos da brevidade, pois se os fatos se mostram incompreensíveis é
incumbência maior da prolixidade do que da obscuridade.
Para que dilucida sit, “seja clara”, a narratio deve sempre seguir a ordem cronológica
dos fatos explicitados, para que haja um melhor efeito discursivo. Portanto, deve-se evitar a
digressão, não passando de um tema não concluído a outro. Também não se devem retomar
fatos distantes ou chegar aos últimos, omitindo algo convincente à causa.
104
Ainda para se ter melhor efeito, é necessária tanto a brevidade, quanto a clareza para
que os feitos narrados se unam às características da vida real, estabelecendo-se a
verossimilhança, que explica a causa através dos acontecimentos, mostrando que a situação e
as circunstâncias estavam de acordo ou se ajustavam aos fatos narrados. A essa referência às
circunstâncias como elementos imprescindíveis para a garantia da verossimilhança, artifício
fundamental à narratio, coadunam-se mos, “comportamento”, opinio, “convicção”, e natura,
“estado natural”.
Sobre a narratio, Aristóteles discorre nos gêneros epidítico e deliberativo. Sobre o
epidítico afirma que a , “narração”, não deve ser contínua, e sim dividida em
seções, pois é bastante complexo percorrer todo o conteúdo por que o discurso é composto,
sendo mais conveniente não narrar tudo de forma seguida, visto que é complexo de reter na
memória todo o conteúdo da demonstração.
Por outro lado, Aristóteles afirma que os fatos ligados à tradição não necessitam de
narratio, pois fazem parte do conhecimento do público. No gênero deliberativo, a
tem menor importância já que os fatos estão associados a acontecimentos futuros, porém neste
gênero quando há narração, ela deve estar associada a acontecimentos passados, para que,
sendo recordados, sejam desenvolvidos mais adequadamente os fatos relativos ao futuro.
A , por sua vez, deve ser , “narração ética”, que se liga a
um tipo de finalidade ou a uma expressão de caráter moral associada ao discurso, ou deve ser
, “narração patética”, que narra não apenas as consequências
conhecidas pelos ouvintes como aspectos singulares ligados ao orador ou ao próprio opositor,
mas o mais importante é não dar ênfase a elementos secundários ou mesmo àqueles
conhecidos pela tradição. Deve-se, então, a ter de justa medida, devendo-se falar
apenas o que o assunto precisa para ficar mais claro, segundo afirma Aristóteles102.
Assim como nos proêmios, na narração não deve haver a excesso,

, “pois é preciso que não se exponham longamente”, o melhor nesta

parte do discurso seria , “a moderação”.


Em De Natura Deorum, Livro I, Cícero se utiliza de um recurso que não está
sistematizado em seus livros que versam sobre Retórica. O autor dedica dois parágrafos para a

102
Retórica, 1416b, 33-36.

105
apresentação dos personagens, situados entre o exordium e a narratio, ou seja, os parágrafos
de 15 a 17. Como se verifica em:

Quod cum saepe alias, tum maxime animaduerti, cum apud C. Cottam,
familiarem meum, accurate sane et diligenter de dis inmortalibus
disputatumst103. Nam cum feriis Latinis ad eum ipsius rogatu arcessituque
uenissem, offendi eum sedentem in exedra et cum C. Velleio senatore
disputantem, ad quem tum Epicurei primas ex nostris hominibus deferebant.
Aderat etiam Q. Lucilius Balbus, qui tantos progressus habebat in Stoicis, ut
cum excellentibus in eo genere Graecis compararetur. Tum, ut me Cotta
uidit, “Peroportune” inquit “uenis; oritur enim mihi magna de re altercatio
cum Velleio, cui pro tuo studio non est alienum te interesse.” (De Natura
Deorum, I, 15)

O que como já muitas vezes em outras ocasiões observei principalmente,


quando na casa de Cota, meu amigo, foi discutido de fato cuidadosa e
diligentemente sobre os deuses imortais. Durante as férias latinas, pois,
quando fui até ele por seu próprio pedido e chamado, encontrei-o sentado na
exedra, discutindo com o senador C. Veleio que então os epicuristas
declaravam como primeiro dos nossos homens. Estava presente também Q.
Lucílio Balbo, que havia realizado tantos progressos nos estoicos que era
comparado com os excelentíssimos gregos naquele gênero. Então quando
Cota me viu “oportunamente” – disse ele – “vens, surge, pois entre mim e
Veleio uma disputa sobre uma importante questão da qual, de acordo com
teu estudo, não é inapropriado que tu participes”.

É importante a observação de que não há menção histórica para dois dos três
principais interlocutores do diálogo, ou seja, Caio Veleio, o epicurista, e Quinto Lúcio Balbo,
o estoico. Essa criação garante a Cícero atribuir-lhes teorias e pensamentos conforme o que
fosse conveniente para a garantia dos ideais acadêmicos.
Além dos dois personagens mencionados anteriormente, há ainda Cota, o acadêmico,
que é o único que tem lugar na história romana, pois, de acordo com a crítica, nascera em 124
a.C., era de opinião conservadora moderada, desejava o apaziguamento das desavenças civis e
procurava medidas conciliatórias entre os cidadãos. Dos outros interlocutores, Veleio e Balbo,
não se sabe quase nada. Cícero faz menção a Veleio em De Oratore, afirmando que era pouco
motivado a falar em público. Quanto a Balbo, é mencionado no Brutus como um homem
qualificado e instruído, porém em se estabelecendo uma comparação entre os três
personagens, pode-se considerar que as características associadas a Veleio e a Balbo pouco ou

103
: “disputatum sit (...)”.
: “disputatum est (...)”.
106
nada os qualificam, se se levar em consideração o fato de Cota fazer parte da própria história
romana, o que lhe conferia maior credibilidade no discurso.
O autor ainda, neste momento, lamenta, de certo modo, a ausência de Marco Piso,
representante da escola peripatética, para glorificar seu diálogo com os mais célebres
representantes das mais aclamadas correntes filosóficas. No entanto, é defendido por Cota,
mesmo Balbo mostrando-se em desacordo, que tanto os estoicos quanto os peripatéticos usam
palavras diferentes para os mesmos pensamentos, vejamos:

Tum Cotta “Si” inquit “liber Antiochi nostri, qui ab eo nuper ad hunc
Balbum missus est, uera loquitur, nihil est, quod Pisonem, familiarem tuum,
desideres; Antiocho enim Stoici cum Peripateticis re concinere uidentur,
uerbis discrepare”. (De Natura Deorum, I, 16)

Então Cota disse: “Se o livro de nosso Antíoco, que há pouco foi enviado
por ele a este Balbo, fala a verdade, não há nada o que requeiras de Piso, teu
amigo. Os estoicos, pois, com os peripatéticos parecem concordar em
pensamento com Antíoco, discordam em palavras”.

Após a identificação dos personagens do diálogo, há em De Natura Deorum, Livro I, a


apresentação do que se pode considerar como a narratio, que se prolonga pelos capítulos
seguintes do Livro I, mais especificamente, estende-se do parágrafo 18 ao 124.
O primeiro entre os personagens a proferir seu discurso é Veleio, representante da
escola epicurista, que expõe suas ideias ao longo de 38 parágrafos, ou seja, do parágrafo 18 ao
56. Conforme se observa em:

Tum Velleius fidenter sane, ut solent isti, nihil tam uerens, quam ne dubitare
aliqua de re uideretur, tamquam modo ex deorum concilio et ex Epicuri
intermundiis descendisset, “Audite” inquit “non futtilis commenticiasque
sententias, non opificem aedificatoremque mundi Platonis de Timaeo deum,
nec anum fatidicam Stoicorum Pronoeam, quam Latine licet Providentiam
dicere, neque uero mundum ipsum animo et sensibus praeditum, rutundum,
ardentem, uolubilem deum, portenta et miracula non disserentium
philosophorum, sed somniantium”. (De Natura Deorum, I, 18)

Então Veleio sabiamente com audácia como estão habituados esses, tanto
não temendo nada, quanto não parecesse duvidar sobre coisa alguma,
assim como há pouco tivesse descido do concílio dos deuses e dos
intermundos de Epicuro, disse: “Ouvi não fúteis e inventadas sentenças,
nem o autor e edificador do mundo, o deus do Timeu de Platão, nem a
velha profetisa, a Pronoia dos estoicos, que em latim é possível dizer
Providência, nem certamente o próprio mundo provido de alma e
sentidos, redondo, ardente, deus mutável, presságios e coisas
maravilhosas de que não discorrem os filósofos, mas sonham”.
107
É importante observar que há uma inversão na ordem estruturativa do discurso de
Veleio, pois primeiramente o personagem tece críticas a filósofos e a poetas acerca do aspecto
e da natureza dos deuses. Dos 38 parágrafos que o autor disponibiliza ao personagem Veleio,
há 29 parágrafos distinados a tal crítica e apenas 9 parágrafos em que Veleio tenta apresentar
os ideais de Epicuro sobre a concepção divina.
As críticas no discurso de Veleio deveriam se apresentar naturalmente, de acordo com
os princípios retóricos, após a sua narratio, pois há uma terceira parte relativa ao discurso que
é denominada de diuisio, que é per quam aperimus, quid conueniat, quid in controuersia sit,
et per quam exponimus, quibus de rebus simus acturi, “é (o meio) pelo qual esclarecemos o
que convém, o que está em controvérsia, e pelo qual expomos sobre as coisas de que iremos
falar.”
A diuisio é responsável por dar lucidez e clareza à causa, e pode geralmente ser
decomposta em dois aspectos: primeiramente, quid conueniat, quid in controuersia sit, “o que
convém, o que está em controvérsia”, ou seja, quais questões se apresentam de acordo ou em
desacordo com os adversários, desse modo, deve-se assinalar um ponto específico para o qual
o ouvinte deve estar mais atento; per quam exponimus de rebus, “pelo qual expomos sobre as
coisas”, ou seja, expõe-se com brevidade e clareza o assunto a que se vai referir, objetivando
que o ouvinte se atenha a seus pontos específicos.
Verifica-se então no discurso de Veleio que a crítica aos filósofos compõe mais
especificamente a confutatio, “refutação”, que juntamente com a confirmatio, “confirmação”,
compõe a parte do discurso denominada diuisio, “divisão”. A confutatio de Veleio é iniciada
pelas censuras a Platão, filósofo a que o personagem destina maior número de linhas críticas:

Quibus enim oculis animi intueri potuit vester Plato fabricam illam tanti
operis, qua construi a deo atque aedificari mundum facit; quae molitio, quae
ferramenta, qui vectes, quae machinae, qui ministri tanti muneris fuerunt;
quem ad modum autem oboedire et parere voluntati architecti aer, ignis,
aqua, terra potuerunt; unde vero ortae illae quinque formae, ex quibus
reliqua formantur, apte cadentes ad animum afficiendum pariendosque
sensus? Longum est ad omnia, quae talia sunt, ut optata magis quam inventa
videantur. (De Natura Deorum, I, 19)

Com que olhos da alma pôde, pois, vosso Platão observar aquela construção
de tantos trabalhos, através da qual faz o mundo ser construído e edificado
por um deus. Qual esforço, quais instrumentos, quais máquinas, quais foram
os ajudantes de tantos trabalhos? De que modo, porém, o ar, o fogo, a água,
a terra puderam obedecer e produzir a vontade do artífice? De onde
verdadeiramente são provenientes aquelas cinco formas, de quais outras se

108
formam, que se aplicam convenientemente para mover a alma e produzir o
sentido? É demorado diante de tudo, que haja tais coisas, de modo que
pareçam mais escolhidas do que encontradas.

É evidente a construção da refutatio por parte de Veleio, pois ele sugere uma
sequência de interrogações a respeito da teoria platônica de construção do mundo, que
segundo o personagem não foram bem fundamentadas. As críticas de Veleio aparentemente se
apresentam sem fundamento, mas é relevante a observação de que ele se utiliza de termos
usados em diversos textos de Platão, como o termo oculis animi, “olhos da alma”, que é mera
tradução ora da expressão , “o olho da alma”, ora de

, “o olho da mente” o que sugere que o personagem tem conhecimento a respeito


daquilo que critica.
Seguem-se as críticas da teoria platônica, especificamente a respeito da forma que
Platão teria estabelecido como sendo a mais bela:

Admirabor eorum tarditatem, qui animantem inmortalem et eundem beatum


rutundum esse uelint, quod ea forma neget ullam esse pulchriorem Plato: At
mihi uel cylindri uel quadrati uel coni uel pyramidis uidetur esse formosior.
Quae uero uita tribuitur isti rutundo deo? (De Natura Deorum, I, 24)

Admirarei a lentidão daqueles que querem que o ser vivo seja imortal e a
própria natureza seja arredondada, porque Platão nega que alguma forma
seja mais bela do que aquela forma. Mas para mim parece ser mais formosa
ou a de cilindro, ou a de quadrado, ou a de cone, ou a de pirâmide. Qual
vida, na verdade, é concedida a esse deus arredondado?

Nota-se uma clara referência ao diálogo Timeu106, de Platão, e a forma que, segundo o
filósofo, o demiurgo teria dado ao mundo: eundem beatum rutundum esse uelint, quod ea
forma neget ullam esse pulchriorem Plato, “a própria natureza seja arredondada, porque
Platão nega (que) alguma (forma) seja mais bela do que aquela forma”; em que a palavra
rutundum, “arredondada”, seria mera tradução do termo grego , “forma de
esfera”, usado por Platão para definir a forma do mundo, não por ser a mais bela, como afirma
Veleio, mas por ter, a partir do meio, a mesma medida em todas as direções.

104
República, 533d.
105
Banquete, 219a.
106

./ Em sequência concedendo (forma) esferoide, a partir do meio na direção das extremidades igual
em todas (as direções), modou-o circular. (Timeu, 33b)

109
As palavras de Veleio objetivam distorcer os conceitos platônicos, como convém a
confutatio, porém o personagem usa apenas parcialmente a fundamentação teórica do filósofo,
uma vez que propositalmente não explica nem tenta persuadir por que se deve substituir a
, “forma de esfera”, por aquelas sugeridas por ele, ou seja, a forma cylindri uel
quadrati uel coni uel pyramidis, “a de cilindro, ou a de quadrado, ou a de cone, ou a de
pirâmide”. Deixando subentender que o filósofo teria escolhido tal forma aleatoriamente, e
não por considerá-la a mais conveniente, natural e que pudesse conter em si mesma todas as
demais formas existentes, até mesmo as formas citadas por Veleio: o cilindro, o quadrado, o
cone e o triângulo.
Segue-se assim a crítica aos demais filósofos, que se estende de Tales de Mileto ao
estoico Crisipo. Veleio demonstra conhecimento a respeito da teoria defendida por eles, mas
parece distorcê-las ao ponto de torná-las convenientes à sua refutação, à sua livre
interpretação, como se observa em:

Empedocles autem multa alia peccans in deorum opinione turpissume


labitur. Quattuor enim naturas, ex quibus omnia constare censet, diuinas esse
uult; quas et nasci et extingui perspicuum est et sensu omni carere. Nec uero
Protagoras, qui sese negat omnino de deis habere, quod liqueat, sint, non sint
qualesue sint, quicquam uidetur de natura deorum suspicari. Quid
Democritus, qui tum imagines eorumque circumitus in deorum numero
refert, tum illam naturam, quae imagines fundat ac mittat, tum sententiam
intellegentiamque nostram107, nonne in maximo errore uersatur? Cum idem
omnino, quia nihil semper suo statu maneat, neget esse quicquam
sempiternum, nonne deum omnino ita tollit, ut nullam opinionem eius
reliquam faciat? Quid aer, quo Diogenes Apolloniates utitur deo, quem
sensum habere potest aut quam formam dei? (De Natura Deorum, I, 29)

Empédocles, porém, muitas outras coisas errando sobre a opinião dos


deuses, engana-se vergonhosamente. Quer, pois, que haja quatro naturezas
divinas a partir das quais julga que todas as coisas são compostas, as quais é
claro terem nascido e morrido e serem privadas de todo sentido. Na verdade
nem Protágoras, que se nega absolutamente a tratar sobre os deuses, o que
não seja claro: existam, não existam ou quais sejam. Parece suspeitar de algo
sobre a natureza dos deuses. Por que Demócrito, que tanto conta as imagens
e os seus movimentos no número dos deuses, quanto aquela natureza, que
constrói e emite imagens, como o julgamento e nossa inteligência, não
incorre em um grande erro? Quando o mesmo nega absolutamente, já que
nada permanece sempre em seu estado, que haja algo eterno; não gera
absolutamente um deus tal, que faça nula a sua outra opinião? E o ar, que
Diógenes de Apolônia tem como deus, que sentido ou que forma de deus
pode ter?

107
: “tum scientiam intelligentiamque nostram (...)”.
: “tum scientiam intellegentiamque nostram (...)”.
110
Deve-se observar que a enumeração dos equívocos dos filósofos em relação à natureza
dos deuses, à sua existência, ao seu número exato, à sua verdadeira imagem, ao seu estado
eterno e às inúmeras interrogações sugeridas pelo personagem Veleio não lhe garante sucesso
em sua confutatio nem em sua posterior confirmatio, pois ele não as retoma para dar uma
possível explicação, baseando-se nos ideais epicuristas.
Com isso, o autor Cícero parece estar preparando, a partir de Veleio, a disputa
discursiva para a obscuridade dos ideais acadêmicos que serão enumerados pelo personagem
Cota, pois muitas outras interrogações e críticas serão também levantadas nas censuras que
serão feitas às ideias dos poetas a respeito da natureza dos deuses, como se verifica em:

Nec enim multo absurdiora sunt ea, quae poetarum uocibus fusa ipsa
suauitate nocuerunt, qui et ira inflammatos et libidine furentis induxerunt
deos feceruntque, ut eorum bella, proelia, pugnas, uulnera uideremus, odia,
praeterea discidia, discordias, ortus, interitus, querellas, lamentationes,
effusas in omni intemperantia libidines, adulteria, uincula, cum humano
genere concubitus mortalisque ex inmortali procreatos. (De Natura
Deorum, I, 42)

Não são muito mais absurdas, pois, aquelas coisas que difundidas pelas
vozes de poetas com a suavidade própria prejudicaram, os que tanto
inflamados pela ira quanto delirantes de desejo introduziram os deuses e
fizeram com que víssemos suas guerras, combates, lutas, feridas, ódios, além
disso os divórcios, discórdias, nascimentos, ruínas, queixas, lamentações,
espalhadas em toda inteperança, desejos, adultérios, laços, relações com o
gênero humano e mortais gerados de imortais.

Percebe-se uma crítica direcionada aos poetas por terem estes com suas fábulas, através
dos séculos, atribuído aos deuses não apenas a forma física, mas também atributos e
sentimentos tipicamente humanos; poetas qui et ira inflammatos et libidine furentis
induxerunt deos feceruntque, ut eorum bella, proelia, pugnas, uulnera videremus, odia,
praeterea discidia, discordias, “que tanto inflamados pela ira quanto delirantes de desejo
introduziram os deuses e fizeram com que víssemos suas guerras, combates, lutas, feridas,
ódios, além disso os divórcios, discórdias”.
De acordo com Veleio, se os deuses possuíssem tais atributos e sentimentos, nada os
diferenciaria dos seres humanos, pois certamente a verificação desses atributos permitirá a
Veleio a posterior construção, segundo os ideais de Epicuro, de um deus, que em muito se
distancia dos vícios, das discórdias, das lutas, dos divórcios, que são atributos meramente
humanos.
111
A referência das concepções poéticas por parte de Veleio fornecerá ao personagem a
preparação para a sua confirmatio que reúne a essência da argumentação, ou seja, a defesa dos
ideais epicuristas, que são iniciados por aquilo que, segundo Veleio, Epicuro denomina de
, “prolepse”:

Quod in omnium animis eorum notionem inpressisset ipsa natura. Quae est
ennim gens aut quod genus hominum. Quod non habeat sine doctrina
anticipationem quandam deorum, quam appellat Epicurus, id est
anteceptam animo rei quandam informationem, sine qua nec intellegi
quicquam nec quaeri nec disputari potest. (De Natura Deorum, I, 43)

Pois a própria natureza imprimira a noção deles nas almas de todos. Qual é,
pois, a espécie ou qual a raça dos homens, que não tenha sem ensinamento
algum pressentimento dos deuses, o qual Epicuro chama de , que
é certa informação antecipada das coisas na alma, sem a qual nem se pode
entender coisa alguma nem buscar nem discutir.

Sobre a palavra , “prolepse” verifica-se que Veleio se utiliza parcialmente de


sua concepção conceitual, pois afirma que est anteceptam animo rei quandam informationem,
“é certa formação antecipada da coisa na alma”, com a qual, segundo Ivan Gobry108, a
, “sensação”, possibilita a relação do indivíduo com a verdade. Sendo assim, o
personagem retoma os conceitos de Epicuro, mas não os considera em sua totalidade, gerando
propositalmente certa fragilidade conceitual, que será necessária ao autor na apresentação da
personagem Cota.
Veleio reúne ainda em sua confirmatio a essência de sua fundamentação argumentativa,
à procura da unidade teórica estabelecida através das rationes positivas aos preceitos de
Epicuro, podendo-se considerar os trechos seguintes como os mais importantes de sua
argumentação:

Ac de forma quidem partim natura nos admonet, partim ratio docet. Nam a
natura habemus omnes omnium gentium speciem nullam aliam nisi
humanam deorum; quae enim forma alia occurrit umquam aut uigilanti
cuiquam aut dormienti? (De Natura Deorum, I, 46)

E sobre a forma, certamente, parte a natureza nos faz lembrar; parte a razão
ensina. Pois da natureza dos deuses não temos todos de todas as raças
nenhuma outra aparência a não a humana; que outra forma, pois, ocorre em
algum momento ou a alguém atento ou desatento?

108
Vocabulário Grego da Filosofia, p. 122.
112
Nec tamen ea species corpus est, sed quasi corpus, nec habet sanguinem, sed
quasi sanguinem. Haec quamquam et inuenta sunt acutius et dicta subtilius
ab Epicuro, quam ut quiuis ea possit agnoscere. (De Natura Deorum, I, 49)

Porém aquele aspecto não é um corpo, mas um quase-corpo, nem tem


sangue, mas um quase-sangue. Estas coisas já que tanto foram descobertas
mais aguçadamente quanto ditas mais sutilmente por Epicuro do que
qualquer um possa conhecê-las.

O epicurismo buscou combater a concepção de religião antropomórfica e da religião


astral e todas as concepções nela contidas, as quais representavam, de acordo com Epicuro,
um tormento ao homem. Segundo Reinholdo Aloysio Ullmann109, os deuses para os filósofos
epicuristas eram compostos por átomos, mas não estavam sujeitos à mortalidade como os
seres humanos. Esses átomos que compõem os seres divinos estão em constante movimento,
alguns podem ser perdidos pelos deuses, o que leva a uma visão de degeneração e,
consequentemente, à ideia de morte. No entanto, os átomos perdidos eram substituídos por
outros que as divindades recebiam constantemente, garantindo, assim, sua imortalidade.
Para Epicuro, os deuses são inumeráveis e não têm relação com o mundo nem com os
homens, o que provoca a ideia de que não há motivo algum para temê-los, levando à
libertação de possíveis castigos vinculados a eles, a qual seria o primeiro postulado para se
conseguir a felicidade. Apresentam-se os deuses livres de inveja, de ódio, de vingança ou
qualquer atributo mais diretamente relacionado aos humanos, desse modo, poder-se-ia atingir
o , “prazer”, livre de perturbação na alma.
Dos deuses, que vivem na mais completa tranquilidade, provêm simulacros que os
fazem conhecidos como são pelos humanos. Estes simulacros são produzidos pelos átomos
que se desprendem daqueles, segundo Epicuro, penetram pelos poros dos humanos, o que leva
a entender que a matéria que os compõe é de caráter bastante sutil, sendo apresentada por
Veleio por nec tamen ea species corpus est, sed quasi corpus, nec habet sanguinem, sed quasi
sanguinem, “porém aquele aspecto não é um corpo, mas um quase-corpo, nem tem sangue,
mas um quase-sangue”, o que conduz a certo grau de subjetividade, pois após a
fundamentação das críticas, principalmente no que se refere à forma dos deuses, Veleio não
deixa claro o que seria esse “quase-corpo” ou esse “quase-sangue”, fato que seria facilmente
refutado por Cota em sua confutatio.

109
Epicuro: o Filósofo da Alegria, p.72.
113
Quanto ao culto, para os epicuristas, a única forma de reverenciar os deuses deveria
ser a admiração, pois não são suscetíveis da sensibilidade das preces, sacrifícios, ou mesmo
do contrário; não se tornam irados com as atitudes humanas, uma vez que a eles nada falta.
Esse pensamento, em torno do culto dos deuses, conduz ao pensamento de que eles
não se preocupam com o mundo ou com os seres, pois os sentimentos de inquietação, cólera,
bem-querer não se associam à plenitude divina; toda essa preocupação se origina, quando há
dependência de outros seres, o que não estaria associado aos deuses; portanto, eles são livres
de interdependência, segundo os preceitos de Epicuro, dos quais se vale Veleio para a
exposição de sua tese.
Expostas as ideias que compõem a narratio de Veleio, o autor, conforme se verificará
no item a seguir, apresentará através do personagem Cota, seu partidário na defesa dos ideais
acadêmicos, críticas e argumentos passíveis de refutação os quais foram proferidos pelo
epicurista Veleio.

114
4.3. Preparação à confutatio de Cota

A preparação para a crítica do acadêmico Cota aos ideais do epicurista Veleio se


estende, no Livro I, do parágrafo 57 ao 60 em que se observam dois momentos distintos:
primeiramente, há o julgamento do personagem Cota a respeito de Veleio; em seguida, a
enunciação do que viria a ser o discurso que se apresentará ao longo do Livro I. Como se
verifica em:

Nihil fortasse respondeam; quaeras, putemne talem esse, qualis modo a te sit
exposita: nihil dicam mihi uideri minus. Sed ante quam adgrediar ad ea, quae
a te disputata sunt, de te ipso dicam, quid sentiam[...] Ego autem, etsi uereor
laudare praesentem, iudico tamen de re obscura atque difficili a te dictum
esse dilucide, neque sententiis solum copiose, sed uerbis etiam ornatius,
quam solent uestri[...] (bona uenia me audies) in tam leues, ne dicam, in tam
ineptas sententias incidisse. (De Natura Deorum, I, 57-59)

Talvez não responda nada. Queres que eu julgue que seja tal qual
recentemente foi exposta por ti. Digo que nada me parece suficiente. Mas
antes que fale sobre aquelas coisas que foram discutidas por ti, digo o que
penso sobre tu mesmo [...] Eu mesmo, porém, ainda que tema elogiar o que
se faz presente, julgo, todavia, que sobre o obscuro e difícil assunto por ti
tenha sido dito claramente, e não apenas com sentenças em abundância, mas
também com palavras mais ornadas do que costumam os vossos [...] (de bom
grado me ouvirás) não digo que incorresse em tão leves, em tão tolas
sentenças.

Sed Simoniden arbitror (non enim poeta solum suauis, uerum etiam
ceteroqui doctus sapiensque traditur), quia multa uenirent in mentem acuta
atque subtilia, dubitantem, quid eorum esset uerissimum, desperasse omnem
veritatem. (De Natura Deorum, I, 60)

Mas julgo que Simônides (pois se apresenta não só como um suave poeta,
mas também além disso douto e sapiente) – porque viessem à mente muitas
coisas aguçadas e sutis, duvidando do que era verdadeiro entre elas – perdeu
a esperança em toda verdade.

A respeito do personagem Veleio as considerações são um tanto contraditórias, pois no


primeiro momento, afirma-se que - mesmo o assunto em questão sendo difícil de ser
comentado com clareza e com acerto, como se vê em de re obscura atque difficili a te dictum
esse dilucide, neque sententiis solum copiose, sed uerbis etiam ornatius, quam solent uestri,
“o obscuro e difícil assunto por ti tenha sido dito claramente, e não apenas com sentenças em
abundância, mas também com palavras mais ornadas do que costumam os vossos” - as
palavras foram de uma clareza sem igual. A ironia do rápido elogio de Veleio é reforçada pelo

115
uso do advérbio dilucide, “claramente, de maneira clara, limpidamente”, e do superlativo do
adjetivo ornatius, “ornadas, enfeitadas, elegantes”, referente à palavra uerbis, “palavras”.
São palavras bem ornadas e ditas com clareza, mas que serviram apenas, segundo o
acadêmico, para se chegar in tam leues, in tam ineptas sententias, “em tão leves, em tão tolas
sentenças.” Essas observações de Cota seriam a apresentação do que viria a ser o seu discurso,
ou seja, uma crítica fundamenta na concepção de deuses dos epicuristas.
Além de criticar o personagem Veleio, ora por meio de ironias, ora por afirmar que os
conceitos epicuristas não são merecedores de crédito algum, Cota prepara o ânimo dos
ouvintes para o que comporia o seu discurso: uma tentativa de levar a obscuridade não apenas
ao que diz respeito à teoria de Epicuro, mas a todas as coisas relativas aos deuses. Para isso o
personagem se vale da comparação com o poeta Simônides de Ceos (556-468 a.C.), non enim
poeta solum suauis, uerum etiam ceteroqui doctus sapiensque traditur, “pois se apresenta não
só como um suave poeta, mas também além disso douto e sapiente”, pois sempre que o poeta
era indagado sobre os deuses, sempre precisava de mais dias de reflexão sobre o assunto e
nunca chegava a um denominador comum, sempre afirmando que quanto mais pensava sobre
a questão, mais obscura se tornava a esperança de encontrar alguma afirmação concreta, como
se observa em:

“Quia, quanto diutius considero,” inquit “tanto mihi spes uidetur obscurior.”
(De Natura Deorum, I, 60)

Porque quanto mais tempo penso, tanto mais me parece obscura a esperança.

Assim, à semelhança de Simônides, o personagem Cota inicia seu discurso, tentando


levar, conforme convém a um acadêmico, a obscuridade sobre todas as coisas. O item a seguir
abordará a confutatio de Cota propriamente dita.

116
4.4. Confutatio de Cota

Cota, seguindo o modelo sugerido por Cícero em De Inuentione, manifesta que a


argumentação de Veleio pode ser refutada com facilidade, pois várias de suas premissas
apresentam lacunas ou fundamentos mal articulados, mostrando que não se pode concordar
com as ideias proferidas por Epicuro, pois Cota não consegue chegar a uma mesma
conclusão, classificando-a de errônea, então, nega-se a aceitar a competência do que foi
apresentado.
No Livro I, do De Natura Deorum, 63 parágrafos compõem a confutatio de Cota, ou
seja, a sua refutação se estende do parágrafo 61 ao 124. Os argumentos de Cota, como os de
Veleio, também não se apresentam estruturados nos princípios retóricos sugeridos pelo autor
Cícero, pois Cota inicia sua confutatio sem demonstrar quais argumentos serão utilizados, fato
que ocorre apenas 15 parágrafos depois do início de seu discurso, como se percebe em:

Non deest hoc loco copia rationum, quibus docere uelitis humanas esse
formas deorum; primum quod ita sit informatum anticipatum [que] mentibus
nostris, ut homini, cum de deo cogitet, forma occurrat humana; deinde cum,
quoniam rebus omnibus excellat natura diuina, forma quoque esse
pulcherrima debeat, nec esse humana ullam pulchriorem; tertiam rationem
adfertis, quod nulla in alia figura domicilium mentis esse possit. (De Natura
Deorum, I, 76)

Não falta a este ponto abundância de pensamentos, com os quais desejais


ensinar que as formas dos deuses são humanas. Primeiramente, o que tem
sido formado e antecipado assim nas nossas mentes que ao homem, quando
cogita sobre um deus, ocorra a forma humana; segundo, pois, a natureza
divina ultrapassa depois todas as coisas, a forma também deve ser belíssima,
não há nenhuma mais bela do que a humana; como terceiro argumento,
informais que em nenhuma outra figura pode haver a morada da mente.

As críticas de Cota se fundamentam principalmente na concepção da forma divina de


Epicuro e seu discurso basicamente está calcado nos três argumentos extraídos das
concepções epicuristas: quod ita sit informatum anticipatum [que] mentibus nostris, “o que
tem sido formado e antecipado assim nas nossas mentes”, a que se pode vincular o conceito
de , “prolepse”, ou seja, a formação antecipada das coisas na alma; nec esse
humana ullam pulchriorem, “não há nenhuma (forma) mais bela do que a humana”; adfertis,
quod nulla in alia figura domicilium mentis esse possit, “informais que em nenhuma outra

117
figura pode haver a morada da mente”, a que se vincula o conceito de , “sensação”,
que possibilita o discernimento ao indivíduo, podendo relacioná-lo à verdade.
Não é feita uma comparação teórica propriamente entre o estoicismo e o epicurismo,
pois Cota se detém apenas na crítica dos três conceitos fundamentais sugeridos por Veleio, o
que gera uma desestruturação do discurso adversário e mostra por quais motivos esse discurso
é insatisfatório e impertinente.
Tais fatos, além de garantirem maior credibilidade a confutatio, unem-se à ocorrência de
o personagem Cota ter sido nomeado pontifex, termo proveniente do substantivo pons
associado ao verbo facio, que, por extensão, caracteriza aquele que faz a ligação entre o céu e
terra, sendo responsável pela jurisprudência religiosa, tais como sacrifícios e cerimônias.
A desarticulação do discurso de Veleio pode ser atribuída, pois, ao grau de importância
social tanto do personagem, na posição de pontífice, utilizado pelo autor quanto por este, na
posição de áugure, uma vez que muitos cultos religiosos eram presididos por eles. As
considerações de Cota podem ser verificadas, inicialmente, em:

Itaque ego ipse pontifex, qui caerimonias religionesque publicas sanctissime


tuendas arbitror, is hoc, quod primum est, esse deos persuaderi mihi non
opinione solum, sed etiam ad ueritatem plane uelim. Multa enim occurrunt,
quae conturbent, ut interdum nulli esse uideantur[...] Quod enim omnium
gentium generumque hominibus ita uideretur, id satis magnum argumentum
esse dixisti, cur esse deos confiteremur. Quod cum leue per se, tum etiam
falsum est. Primum enim unde tibi notae sunt opiniones nationum? Equidem
arbitror multas esse gentes sic inmanitate efferatas, ut apud eas nulla
suspicio deorum sit. (De Natura Deorum, I, 61-62)

Assim, eu mesmo pontífice, que julgo que as cerimônias e religiões


públicas devam ser defendidas santissimamente, queria com aquelas
coisas ser persuadido nisto, que é o principal: os deuses existirem, não só
em minha opinião, mas também claramente segundo a verdade. Ocorrem,
pois, muitas coisas que confundem, de modo que às vezes nada pareça
existir [...] Pois o que assim parece aos homens de todas as raças e gêneros,
isso disseste satisfatoriamente ser um grande argumento para que
confessássemos que os deuses existem. O que é tanto leviano por si quanto
falso. Primeiramente, pois, de onde foram conhecidas por ti as opiniões dos
povos? Certamente julgo que há muitos povos assim embrutecidos pela
incivilidade, de modo que não haja nenhuma suspeita de deuses segundo
eles.

Os argumentos de Veleio não são considerados como fortes por Cota, mas insuficientes
para a defesa de sua tese. Apesar de ser professada por este a ideia de que há deuses, mesmo
que ele não acredite insistentemente, pois afirma ego ipse pontifex, qui caerimonias

118
religionesque publicas sanctissime tuendas arbitror, “assim, eu mesmo pontífice, que julgo
que as cerimônias e religiões públicas devam ser defendidas santissimamente”, deveria
acreditar indubitavelmente, pois ocupa uma posição mediadora entre as divindades e os
homens. As indagações feitas a Veleio conduzem a um pensamento contrário acerca das
palavras de Cota, gerando aparentemente certa incoerência de pensamento, como se o
personagem não pudesse expressar abertamente sua opinião, receando uma possível desordem
nas relações sociais.
A confutatio e sua estruturação argumentativa extrapolam os limites de uma simples
crítica ao epicurismo, embora essa seja feita mais abertamente, demonstrando certo grau de
desconforto do personagem em relação ao tema, cuja análise é mais subjetivamente
direcionada a uma desorganização generalizada, mostrando a fragilidade do pensamento
humano sobre a questão. Os povos das mais variadas raças, nas mais diferentes épocas,
possuem as mais diversas possíveis ideias sobre a origem do universo, do caráter divino, de
sua forma e até mesmo de sua existência.
Desse modo, Veleio não poderia saber a maior parte das atribuições, em se
considerando sua diversidade, então, não teria competência para afirmar, na mais completa
certeza, que sua teoria atômica é a mais aceitável. Se os deuses são compostos por átomos,
como todos os elementos o são, conforme assegura Veleio, deve-se entender que nem sempre
existiram, em algum momento nasceram, havendo o nascimento, ocorrerá posteriormente a
morte, o que os torna perecíveis como toda matéria composta por átomos. Assim afirma Cota:

Concedam igitur ex indiuiduis constare omnia; quid ad rem?[...] Deorum


enim natura quaeritur. Sint sane ex atomis; non igitur aeterni. Quia enim ex
atomis, id natum aliquandost; si natum, nulli dei ante quam nati; et si ortus
est deorum, interitus sit, necesse est, ut tu paulo ante de Platonis mundo
disputabas. (De Natura Deorum, I, 67-68)

Concedo, portanto, que todas as coisas sejam estabelecidas a partir de


corpúsculos indivisíveis, o que importa?[...] Procura-se, pois, a natureza dos
deuses. Seriam na verdade de átomos; e assim não eternos. Porque o que foi
gerado de átomos, pois, algum dia; se foi gerado, não havia nenhum deus
antes que tivesse sido gerado; e se há o nascimento de deuses, é necessário
que haja a morte, como tu discutias um pouco antes sobre o mundo de
Platão.

A teoria antropomórfica de Epicuro é questionada por Cota que afirma ser um modo
simplista e cômodo dos epicuristas para a explicação do formato divino. É mais conveniente
associar os deuses aos homens que estes a outros animais como faziam os egípcios, que
119
vinculavam a divindade ao boi sagrado Ápis. Dessa forma, explicita Cota incoerências
relativas tanto ao pensamento de Veleio quanto aos povos considerados como bárbaros pelos
romanos.
Primeiramente, se os deuses possuem forma humana, em que sentido seriam eternos, já
que assumem formato passível de degeneração, se se considera que ex indiuiduis constare
omnia, “todas as coisas sejam estabelecidas a partir de corpúsculos indivisíveis”, indaga-se
Cota, mostrando a fragilidade dos argumentos de Veleio sobre as divindades. Associado às
indagações, que não se mostram insuficientemente resolvidas, Cota explicita o número de
deuses, que para os epicuristas era incalculável, tanto quanto sua denominação, pois um
mesmo deus poderia ser chamado em determinada região por um nome, em outra de maneira
distinta, como, então, atribuir-lhe corretamente os cultos desejados, pergunta-se Cota, sem
entender o porquê de vários nomes, se todos possuem a mesma aparência, a humana.
Segundo, os bárbaros não poderiam estar corretos em considerarem deuses criaturas
menos complexas do que os humanos, incapazes de pensamento, o que conduz ao
atendimento de que as divindades são seres inferiores, uma vez que apresentam estrutura
menos elaborada. Ironicamente, enfatizando o lado negativo do discurso epicurista, o
acadêmico explicita:

Si igitur nec humano, quod docui, nec tali aliquo, quod tibi ita persuasum
est, quid dubitas negare deos esse? Non audes. Sapienter id quidem, etsi hoc
loco non populum metuis, sed ipsos deos. (De Natura Deorum, I, 85)

Se então nem com aspecto humano, o que mostrei, nem como algo
semelhante, o que a ti assim foi dito, por que hesitas em negar que os deuses
existem? Não ousas, sabia e certamente, aquilo, se bem que neste caso não
temes o povo, mas os próprios deuses.

Ao afirmar que ensinou a Veleio qual a forma divina, Cota usa da ironia, pois direciona
ao epicurista palavras que não foram proferidas, como cabe aos ideais acadêmicos, cria uma
contradição de pensamento, pois leva a crer que Veleio havia afirmado que os deuses não
existem, criando uma situação ambígua que conduz a certa contradição e obscuridade,
fazendo com que dialeticamente o diálogo retorne ao seu início, em que os interlocutores
sugeririam as teses apresentadas.
Diante das desavenças argumentativas expostas, há a preparação para a
conclusio,“conclusão”, do discurso de Cota e do Livro I, que é feita de forma sucinta, porém
Cícero segue os preceitos necessários à arte retórica, recapitulando os principais pontos do
120
discurso de Veleio, indagando-se paulatinamente, usando-se de rationes tanto na confutatio de
Cota,quanto dos equívocos da confirmatio de Veleio.
Pode-se dizer que Cota objetiva conduzir Veleio à indignação, valendo-se da utilização
de vários loci, tentando levar o epicurista a ser contrário às próprias ideias proferidas na
confirmatio, mostrando-as como baseadas em princípios frágeis, pois se fosse diferente,
afirma Cota, não poderiam ser refutadas nem mesmo pelo mais hábil orador.
Dessa forma, o acadêmico institui que a causa epicurista defendida por Veleio, tendo
sido mal formulada carece de solução, chegando a admitir, mesmo na posição de pontífice,
que não há evidência alguma da existência dos deuses:

Quaero igitur, uester deus primum ubi habitet, deinde quae causa eum loco
moueat, si modo mouetur aliquando, post, cum hoc proprium sit
animantium, ut aliquid adpetant, quod sit naturae accommodatum, deus quid
appetat, ad quam denique rem motu mentis ac rationis utatur, postremo quo
modo beatus sit, quo modo aeternus. Quicquid enim horum attigeris ulcus
est: ita male instituta ratio exitum reperire non potest. (De Natura Deorum,
I, 104)

Procuro, pois, primeiramente onde habita o vosso deus; depois qual causa o
move de lugar, se ao menos algumas vezes se move; em seguida, já que isto
é próprio dos seres animados, que desejam alguma coisa, que seja próprio da
natureza, o que deseja um deus; para que coisa finalmente usa o movimento
da mente e da razão; por último, de que modo é beato, de que modo é eterno.
Tudo isto é de nenhum valor. Assim um pensamento mal colocado, não pode
encontrar êxito.

Além dessas indagações, Cota propõe ainda uma de suas críticas mais diretas
relacionadas aos epicuristas:

Nullo igitur modo inmortalem deum efficitis. (De Natura Deorum, I, 110)

De nenhum modo então demonstrais um deus imortal.

Essa afirmação do acadêmico Cota sintetiza todo seu discurso no que se refere às ideias
de deuses e aos cultos a eles relacionados, mostrando as dúvidas deixadas pelos principais
filósofos gregos da Antiguidade até os pensadores de sua época que se basearam naqueles,
ajustando-as com teorias mais recentes ou mesmo, como o fez Veleio, distorcendo-as. Desse
modo, Cícero atinge parcialmente seu objetivo, utilizando-se de Cota para a defesa de seus
ideais, sustentando a tese de que se existem os deuses até aquele momento não havia fato
concreto que o pudessem comprovar, o que se pode observar na afirmação mais ferrenha de
121
Cota: nullo igitur modo inmortalem deum efficitis, “De nenhum modo então demonstrais um
deus imortal”.
Já se observa neste momento que, mesmo com a utilização dos preceitos retóricos que
regem uma estruturação discursiva, o discurso não se torna persuasivo ou mesmo convincente
no sentido em que sugere o autor, nas obras referenciadas sobre teorias retóricas. É evidente
que a argumentação capaz de persuadir o mais hábil adversário não se fundamenta única e
exclusivamente em uma boa estruturação discursiva, mas sim em uma abordagem coerente de
teorias das mais diversas áreas de conhecimento, no caso da obra abordada, sobretudo de
conhecimentos filosóficos e conceitos pertinentes acerca das divindades, o que não vai se
verificando ao longo do discurso que caminha para argumentos que não demonstrarm esboçar
uma conclusão plausível sobre a busca da natureza dos deuses pelos personagens.
Para se propor a obscuridade sobre todas as coisas que envolvem os deuses, como
pretende o autor através do personagem Cota, são necessários também argumentos pertinentes
e capazes de retirar a luz dos que são conhecidos e divulgados tanto pela tradição poética,
quanto pela filosófica, mas parece que o autor Cícero não demonstra o interesse em fazer
críticas que se comprovem através de exemplos e provas como ele mesmo sugere para um
discurso que seja capaz de convencer e ensinar, e também que seja Retórico.

122
III. Estruturação Retórica do De Natura Deorum, Livros II e III

O presente capítulo demonstrará a estruturação dos Livros II e III, do De Natura


Deorum, de acordo com os fundamentos da Retórica e buscará se há relação entre essa
estruturação e seu caráter argumentativo. Tem-se por objetivo a busca pela comprovação de
que o autor Cícero, mesmo sendo considerado um exímio orador romano, no diálogo em
questão, não consegue ser persuasivo e não atinge o objetivo anunciado no início da obra
através dos argumentos utilizados: tentar levar a obscuridade sobre todas as coisas, que
envolvem os deuses e seus fundamentos.

123
1. Estruturação Retórica do De Natura Deorum, Livro II

O Livro II compõe a exposição mais ampla do diálogo filosófico De Natura Deorum, é


proferida pelo personagem Balbo, partidário do estoicismo. Dos 168 parágrafos que o
compõem, há basicamente três partes em que pode ser dividido, ou seja, o exordium,
“exórdio”, a narratio, “narração” e a conclusio, “conclusão”. Porém, verifica-se que estão
inseridas nestas outras partes discursivas, como a diuisio, “divisão”, que é composta pela
confirmatio, “confirmação”, e pela confutatio, “refutação”.
A seguir essas partes serão estruturadas e serão também apresentadas críticas a cerca de
tal divisão por parte do autor, sobretudo no que diz respeito aos argumentos utilizados pelo
personagem Balbo os quais não se mostram bem fundamentos.
A ausência de fundamentação argumentativa do discurso, no Livro II, parece
demonstrar bem as intenções do autor ao tentar garantir os seus ideais acadêmicos. Sendo
assim, buscar-se-ão sobretudo as falhas estruturais e argumentativas que proporcionarão o
discurso que será realizado pelo acadêmico Cota, no Livro III.

124
1.1. Exordium

O exórdio do Livro II, composto pelos 2 primeiros capítulos, é apresentado de forma


bem particular, pois não há propriamente a exposição de tudo que a causa contém, ou seja, as
concepções sobre natureza dos deuses. Isso se observa principalmente por dois motivos:
primeiramente, não é a apresentação de todo o diálogo De Natura Deorum, mas apenas de um
dos Livros que o compõem, portanto não haveria necessidade de aplicar todos os preceitos
retóricos que definem a composição do exórdio; em segundo lugar, já foi realizado pelo
personagem Veleio, no Livro I, o discurso sobre a concepção epicurista a respeito da natureza
divina, sendo assim o personagem Balbo fala resumidamente sobre a exposição da causa, de
maneira bem particular, através do diálogo com os outros dois personagens, Veleio e Cota, e
tenta prepará-los para o início de seu discurso. Como se verifica em:

Tu autem, Cotta, utraque re ualuisti; corona tibi et iudices defuerunt. Sed ad


ista alias, nunc Lucilium, si ipsi commodum est, audiamus[...] Tum Balbus:
“Eundem equidem mallem audire Cottam, dum, qua eloquentia falsos deos
sustulit, eadem ueros inducat”. (De Natura Deorum, II, 1-2)

Tu, porém, Cota, foste vigoroso em ambas as coisas; faltaram-te os ouvintes


e os juízes. Mas contra essas ouçamos outras coisas, agora Lucílio, se lhe é
cômodo[...] Então Balbo disse: “Na verdade preferiria ouvir o próprio Cota,
desde que introduza os verdadeiros deuses com a mesma eloquência com a
qual aboliu os falsos.”.

Como o assunto já foi definido no Livro I, está claro do que se trata, pode-se recorrer
aos dizeres do Aristóteles sobre , exordium, “exórdio”, para explicitar a
preferência do personagem por um introdução discursiva tão breve:

(
) (Retórica, 1415a,
22-25)

Sem dúvida a função mais necessária e particular do proêmio (é) demonstrar


algo que o discurso tem por finalidade (porque, caso o assunto seja claro e
diminuto, não há utilidade no proêmio).

É evidente que estando , “o assunto claro”, o personagem Balbo


prefere ir direto à narratio, pois o assunto foi claramente definido, porém demonstra certo
125
receio em explicitar sua tese, pois afirma que eundem equidem mallem audire Cottam, “na
verdade preferiria ouvir o próprio Cota”, conduzindo ao entendimento de que receia abordar a
questão antes de ouvir os ideais acadêmicos do personagem Cota.
Mesmo receando que o seu discurso seja refutado como aconteceu com o de Veleio, no
Livro I, o personagem Balbo prepara os adversários para o que viria a compor a sua narratio,
que se estende por quase todo o Livro II e que será apresentada no item a seguir.

126
1.2. Narratio

A narração do personagem Balbo compõe basicamente todo o Livro II, estende-se do


parágrafo 3 ao 167. Dos três requisitos, que convém à narratio, definidos pelo autor de
Retórica a Herênio, apenas um não é observado no discurso de Balbo, ou seja, o da
brevidade, pois o autor afirma que tres res conuenit habere narrationem, ut breuis, ut
dilucida, ut ueri similis sit110, “três coisas convêm ter a narração, que seja breve, clara e
verossímil”.
Sendo assim, a narração não pode ser considerada breve, pois compõe o maior discurso
entre os três personagens, além disso apenas 4 parágrafos não estão incluídos nesta parte do
discurso de Balbo, porém o personagem tenta explicitar a doutrina estoica de uma maneira
que delucida sit, “seja clara”, apresentando sua teoria organizada e sequencialmente, tentando
evitar a digressão temática e para garantir tal efeito de organização, Balbo se utiliza de um
recurso que precede propriamente o início narratio, conforme se verifica em:

Omnino diuidunt nostri totam istam de dis inmortalibus quaestionem in


partis quattuor. Primum docent esse deos, deinde quales sint, tum mundum
ab his administrari, postremo consulere eos rebus humanis. Nos autem hoc
sermone, quae priora duo sunt, sumamus; tertium et quartum, quia maiora
sunt, puto esse in aliud tempus differenda. (De Natura Deorum, II, 3)

Os nossos separam toda essa questão sobre os deuses imortais inteiramente


em quatro partes. Primeiro, ensinam que os deuses existem; em seguida,
quais são; além disso, que o mundo é governado por eles; finalmente, que
eles se ocupam das coisas humanas. Nós, porém, neste discurso, adotamos as
duas que são mais importantes; a terceira e a quarta, porque são maiores,
considero que devem ser divulgadas em outro momento.

O discurso de Balbo se dispõe conforme o enunciado pelo próprio personagem, mas é


preciso evidenciar que as quatro partes que ele pretende abordar, duas são consideradas mais
relevantes: mundum ab his administrari, postremo consulere eos rebus humanis, “o mundo é
governado por eles; finalmente, que eles se ocupam das coisas humanas”. No entanto,
observa-se que mesmo considerando estas duas partes como sendo as mais importantes, o
personagem não se utiliza de um número muito superior de parágrafos para realizar a sua
exposição, pois são utilizados 71 parágrafos para os dois primeiros argumentos, ou seja, que
os deuses existem e quais sejam sua natureza; e usados 92 parágrafos para afirmar que o

110
Retórica a Herênio, I, 14.

127
mundo é governado pelos deuses e que eles se ocupam das coisas humanas, não há a devida
prioridade na abordagem daquilo que é mais relevante para o personagem.
Acerca do primeiro argumento, esse deos, “existirem deuses”, primeiramente é
demonstrado que o senso comum elevou a deuses homens notáveis pelos feitos e pela fama,
como Hércules, Castor e Pólux, Esculápio e Rômulo, como se afirma em:

Hinc Hercules hinc Castor et Pollux hinc Aesculapius[...] hinc etiam


Romulum, quem quidam eundem esse Quirinum putant. (De Natura
Deorum, II, 62)

Por um lado, Hércules, por outro, Castor e Pólux; de um lado Esculápio, de


outro também Líber [...] por outro lado, também Rômulo que alguns pensam
certamente ser o próprio Quirino.

Balbo, considerando o senso comum, situa entre os deuses não apenas aqueles que são
provenientes da união de dois deuses, conforme é comum à concepção de imortalidade. Seres,
que são provenientes de um genitor mortal e de outro imortal, não deveriam ser considerados
imortais , “que são denominados de semideuses”, por Hesíodo.

Partindo desta definição, os , “semideuses”, seriam apenas metade deuses, não sendo
totalmente providos das qualidades divinas, portanto perecíveis, como os próprios alimentos
que ingerem.
Os deuses nomeados por Balbo possuem características que contrariam os atributos
divinos, sendo assim dão margem a possíveis críticas: como considerar deuses, imortais, seres
que ingerem alimentos perecíveis, não deveriam os deuses, segundo apontam os poetas
épicos, alimentarem-se de néctar, ambrosia e de matéria inorgânica? Claramente o
representante do estoicismo se deixa conduzir pelo senso comum e não reflete sobre suas
afirmações e sobre os que ele considera deuses, como Esculápio que foi, segundo a tradição,
gerado pela união do deus Apolo e da mortal Corônis; Hércules, de Zeus e da mortal
Alcmena; Rômulo, de Marte e de Reia Sílvia; Castor e Pólux, de Zeus e de Leda.
Por Balbo deveria ter sido criticado o senso comum, que se deixa conduzir por uma
tradição que contraria evidentes cultos e ritos destinados aos deuses, como nas oferendas a
queima de gordura que era destinada aos deuses; deve-se perceber que não se acreditava que
os deuses se alimentavam dela, mas da fumaça produzida, que é composta de matéria
inorgânica e não perecível, assim como seriam os deuses, já que são imortais.
111
Trabalhos e Dias, v. 159-160.

128
Após a demonstração dos semideuses, considerados deuses e imortais, Balbo segue sua
tentativa de definição de quais seres poderiam ser considerados deuses, retomando os mitos
habituais divulgados pela tradição, principalmente pelos poetas épicos, e acrescentando uma
explicação etimológica, na tentativa de explicitar por que os deuses possuíam tal ou tal
denominação:

Saturnum autem eum esse uoluerunt qui cursum et conuersionem spatiorum


ac temporum contineret, qui deus Graece id ipsum nomen habet:
enim dicitur, qui est idem id est spatium temporis. Saturnus autem
est appellatus quod saturaretur annis; ex se enim natos comesse fingitur
solitus, quia consumit aetas temporum spatia annisque praeteritis
insaturabiliter expletur[...] Sed ipse Iuppiter, id est iuuans pater, quem
conuersis casibus appellamus a iuuando Iouem. (De Natura Deorum, II, 64)

Porém quiseram que Saturno fosse aquele que conservava o curso e a


revolução dos espaços e dos tempos, deus que na Grécia tem este nome
próprio: é chamado, pois, de , que é o mesmo , isto é, o
espaço de tempo. Porém foi chamado de Saturno porque se alimenta dos
anos; pois é representado acostumado a devorar os nascidos de si, porque a
idade consome os espaços de tempo e se farta insaciavelmente com os anos
passados. [...] Mas o próprio Júpiter, isto é, o pai que ajuda, que chamamos
de Júpiter por ajudar nos casos imprevistos.

Em tradução para língua moderna, é provável que não se consiga perceber a


comparação que Balbo tenta estabelecer entre o nome da divindade, o termo que nomeia as
ações naturais e os atributos associados à divindade, como se percebe em , “Cronos”,

deus do tempo, cujo nome seria proveniente de , “tempo”, termo que designa o tempo
em grego; os mesmos princípios etimológicos são aplicados a Saturnus, “Saturno” - divindade
correspondente na mitologia romana ao deus - cujo nome é proveniente do verbo
latino saturo, usado em sua forma passiva saturaretur, “alimentar-se, fartar-se”, já que
Saturno mitologicamente se alimenta dos filhos e, por extensão, também se alimenta dos anos,
do tempo; o nome do deus Iuppiter, “Júpiter”, provém do verbo latino iuuo, “ajudar, auxiliar,
ser útil”, ou seja, Júpiter é iuvans pater, “o pai que ajuda”, que todos chamam a iuuando,
“para ajudar”.
Seguindo o mesmo raciocínio, aos demais deuses são associados atributos naturais por
comparação com as ações naturais e com as funções exercidas pelas divindades, como se
observa em:

129
Aer autem, ut Stoici disputant, interiectus inter mare et caelum Iunonis
nomine consecratur, quae est soror et coniux Iouis, quod [ei] et similitudo est
aetheris et cum eo summa coniunctio[...] Sed Iunonem a iuuando credo
nominatam[...] Mater autem est a gerendis frugibus Ceres tamquam geres,
casuque prima littera itidem immutata ut a Graecis; nam ab illis quoque
quasi nominata est. Iam qui magna uerteret Mauors,
Minerua autem quae uel minueret uel minaretur[...] Principem in
sacrificando Ianum esse uoluerunt, quod ab eundo nomen est ductum, ex quo
transitiones peruiae iani foresque in liminibus profanarum aedium ianuae
nominantur. Nam Vestae nomen a Graecis (ea est enim quae ab illis
dicitur)[...] Nec longe absunt ab hac ui di Penates, siue a penu ducto nomine
(est enim omne quo uescuntur homines penus) siue ab eo quod penitus
insidente[...] Iam Apollinis nomen est Graecun, quem solem esse uolunt,
Dianam autem et lunam eandem esse putant, cum sol dictus sit uel quia solus
ex omnibus sideribus est tantus uel quia cum est exortus obscuratis omnibus
solus apparet, luna a lucendo nominata sit; eadem est enim Lucina, itaque ut
apud Graecos Dianam eamque Luciferam[...] Venerem nostri nominauerunt,
atque ex ea potius uenustas quam Venus ex uenustate. (De Natura Deorum,
II, 66-70)

Porém o ar, como discutem os estoicos, situado entre o mar e o céu, é


consagrado com o nome de Juno, que é irmã e esposa de Júpiter, porque
tanto há uma semelhança, quanto uma suma união com ele[...] Mas creio que
Juno foi nomeada por ajudar[...] Então todo o reino marítimo foi dado a
Netuno, como queremos o irmão de Júpiter, e o nome produzido, como
Portuno é proveniente de porta, assim Netuno é proveniente de nadar,
mudadas um pouco as primeiras letras. Porém toda força da terra e a
natureza foi consagrada ao pai Dite, que é opulento, de modo que entre os
gregos é dito , porque todas as coisas tanto retornam as terras,
quanto nascem das terras[...] Porém a mãe é Ceres por gerar os grãos como
“geres” e casualmente a primeira letra foi mudada do mesmo modo como
entre os gregos, pois por aqueles foi chamada também de quase
. Já o que destruía grandes coisas, Marte; porém Minerva, a que ou
reduzia ou ameaçava[...] Desejaram que Jano fosse o primeiro ao sacrificar,
porque o nome foi trazido de andar, a partir do qual as passagens acessíveis
são chamadas de arcos e a entrada nas soleiras das casas profanas, portas. Há
pois o nome de Vesta entre gregos (é pois a que por eles é dita [...]
Não se afastam muito daquela força os deuses Penates, tendo o nome trazido
ou de penus (pois penus é tudo por que os homens são nutridos), ou disto,
porque estão postos profundamente[...] Já o nome de Apolo é grego, que
querem que seja o sol, porém pensam que Diana e a Lua sejam a mesma,
enquanto o Sol tenha sido dito, ou porque sozinho entre todos os astros é tão
grande, ou porque quando surge, abscurecidos todos, aparece sozinho, a Lua
tenha sido nomeada por luzir; pois a mesma é Lucina, assim como entre os
gregos invocam Diana e aquela Lucífera[...] Os nossos nomearam de Vênus,
e a elegância vem dela, mais que Vênus, da elegância.

A maior parte dos comentários etimológicos sugeridos por Balbo pode ser considerado
primário, no que se refere à pertinência da análise sugerida. O personagem demonstra certa
fragilidade de conhecimento ao tecer explicações sobre os radicais das palavras que nomeiam

130
as divindades. Este será um dos principais pontos a serem criticados por Cota, no Livro III. A
abordagem etimológica de Balbo é meramente simplista e, muitas vezes, desconsidera o
processo de evolução da palavra, além de estabelecer conexão apenas entre as letras iniciais
das palavras. Conforme se observa nas associações sugeridas pelo personagem.
De acordo com Balbo: Iuno,“Juno”, por ser irmã e esposa de Júpiter, tem suas
características associadas a do seu cônjuge, a quem está vinculado o domínio do Olimpo e do
céu. Sendo assim, nada mais evidente do que associá-la à região situada entre o mar e o céu,
estabelecendo a semelhança e a suma união entre Júpiter e Juno, cujo nome, nos ditos de
Balbo, tem a mesma origem e raiz daquele, pois Iuno também seria proveniente do verbo
iuuo, “ajudar, auxiliar, ser útil”, conforme se afirma que Iunonem a iuuando nominatam, “foi
nomeada por ajudar”.
Já o nome de Neptunus, “Netuno”, deus do mar, provém do verbo latino no, “nadar”, na
concepção de Balbo, ambas as palavras possuem a mesma raiz ne ou no, por isso a região
marítima está associada ao deus, pois o seu nome significa a nando, “para nadar”. Da mesma
forma se explica o nome de Portunus, “Portuno”, deus que preside os portos, cujo radical
port- é o mesmo da palavra porta, “porta, passagem”, já que ambas nomeiam elementos que
basicamente desempenham uma função de acesso, saída e chegada.
Por sua vez , “Plutão”, deus dos mortos e do mundo inferior, nome que é

mera tradução para o Latim do termo grego, seria proveniente do substantivo ,


“riqueza, fortuna”, pois, como especifica Balbo, et recidunt omnia in terras et oriuntur e
terris, “todas as coisas tanto retornam as terras, quanto nascem das terras”. Em uma sociedade
meramente agrária não seria incoerente nomear um deus, que simbolizava a riqueza
proveniente da agricultura e de colheitas abundantes, com a mesma palavra que designa seus
atributos.
Conveniente é a associação e a alterações fonéticas, sobretudo das primeiras letras, que
são demonstradas nos nomes das divindades Ceres, “Ceres”, e , “Deméter”. No
primeiro caso, geres > Ceres, demonstra-se que Ceres seria proveniente do verbo gero,
“levar, incumbir-se, gerir, produzir”, porém é importante observar que a deusa Ceres era
responsável pelas atividades ligadas a terra, à produção de alimentos, às plantações, era a
deusa responsável pelo ensino dos homens no cultivo da terra. Desse modo, deve-se fazer a
ligação, que seria a mais coerente, com o verbo creo, “criar, engendrar, fazer nascer”, ao qual

131
o teônimo, segundo Junito Brandão112, está ligado indiscutivelmente. No caso de Deméter,
observa-se a justaposição de dois radicais distintos113: > > > , “terra”,

acrescido de , “terra”, ou seja, Deméter ou , “Geméter”, seria a Terra-Mãe,


a que nutre os homens com seus alimentos.
A sequência etimológica de Balbo e de suas associações a verbos, que apresentam
caracterização semelhante às atribuídas aos deuses, é quebrada pelo teônimo Mars, “Marte”,
usado em sua forma arcaica Maruors, pois não é feita alusão alguma acerca da palavra de que
teria originado o nome do deus; diferentemente da deusa Minerua, “Minerva”, que tem seu
nome associado ao verbo minuo, “diminuir, ameaçar, reduzir”, e ao verbo minor, “ameaçar”,
verbos indicativos de ações que especificam apenas uma das três funções básicas atribuídas a
Minerva, ou seja, inteligência, técnica nas artes manuais e guerra. Apenas esta última é
retomada por Balbo, para garantir sua suposição etimológica, porém se percebe que as
funções de Minerva estão mais diretamente relacionadas à inteligência, à capacidade
intelectual, e ao radical mens114, “mente, espírito, inteligência”, conforme comenta Festo115:

Hanc enim pagani pro sapientia ponebant. (De Significatione Verborum,


XI, 123)

Pois os camponeses consideravam-na como a inteligência.

Considerações mais coerentes com as características de Minerva, que corresponde na cultura


grega à deusa da inteligência Palas Atena.
Em sequência, Ianus, “Jano”, deus da porta de passagem, tem seu nome associado ao
substantivo ianus, “passagem”, ex quo transitiones peruiae iani foresque in liminibus
profanarum aedium ianuae nominantur, “a partir do qual as passagens acessíveis são
chamadas „iani‟ e a abertura sobre a soleira da porta das casas profanas são chamadas
„ianuae‟”, ao qual também se associa o substantivo ianua, “passagem, entrada, acesso”, pois
este deus que é representado com duas faces, uma direcionada para frente, outra para trás, as
quais representam o fim e, em sequência, o início de um novo ano, daí sua representação
como deus da entrada, do acesso de um novo ciclo anual.

112
Dicionário Mítico-etimológico da Mitologia e da Religião Romana, p.79.
113
Dicionário Mítico-etimológico da Mitologia Grega, p.271.
114
Dicionário Mítico-etimológico da Mitologia e da Religião Romana, p.221.
115
De Significatione Verborum, XI, 123.
132
A etimologia do nome Vesta, “Vesta”, é explicada apenas como sendo a Graecis,
“proveniente dos gregos”, ea est enim quae ab illis dicitur, “a que por eles é dita

”, cujo significado provém do substantivo homônimo , “lareira, morada”, que


representa a parte mais íntima da casa à qual está vinculado o próprio conceito de existência
de vida e de preservação dos cultos no interior do lar, fato que se observa através da
manutenção das chamas da lareira.
Sucessivamente, di Penates, “os deuses Penates”, que, segundo Balbo, a penu ducto
nomine, “nome traduzido de „penus‟”, designavam os deuses protetores do penitus, “que se
encontra no fundo, no interior”, ou seja, como o próprio adjetivo indica esses deuses
garantiam a proteção do interior das casas romanas. Comparando-se as palavras Penates,
penus, penitus e penetrales, verifica-se a proximidade semântica existente entre elas, pois
traduzem o conceito e a importância dos deuses Penates para o homem romano. A
aproximação semântica é evidente, penus é “a dispensa, os viveres, o que enche as mesas de
comida”, penitus é “o que se encontra no fundo, o que vai até o fundo, o interior”, penetrales
é “o que está colocado no lugar mais íntimo da casa, o interior, o secreto”, por sua vez os
Penates são os cultos realizados nos interiores das casas, sacra priuata. Observa-se também
com tal comparação, por um lado a tendência de objetividade e concretude dada à religião
pelos romanos, que associavam os cultos no interior das casas aos objetos e os haveres
contidos nela; por outro, a crença em seus deuses protetores, já que estes, no pensamento
romano, garantiam os subsídios necessários para a sustentação da vida no interior dos lares.
Considera-se que Apollinis nomen est Graecun, “o nome de Apolo é grego”, pois é a
transcrição em caracteres latinos do substantivo grego , “Apolo”; diferentemente
de Diana que não tem seu nome transcrito dos caracteres gregos, apesar de ora apresenta
relação com a deusa grega , “Hera”, a Juno latina, ora com , “Ártemis”. Balbo
explica o nome atribuído à deusa de maneira pertinente, já que, segundo Junito Brandão 116, o
termo Diana é proveniente de dius, “do céu, divino, luminoso”. Sendo assim, Diana seria
eadem est Lucina, “ela mesma Lucina”, a deusa noturna do céu, a que ilumina a noite através
de sua luz, pois ela seria a Lua, a Lucifera, “Lucífera”, palavra composta do substantivo lux,
“luz”, mais o verbo fero, “levar, conduzir”.
Por sua vez o Sol, “sol”, tenha sido assim nomeado uel quia solus ex omnibus sideribus
est tantus uel quia cum est exortus obscuratis omnibus solus apparet, “ou porque sozinho
116
Dicionário Mítico-etimológico da Mitologia e da Religião Romana, p. 90.

133
entre todos os astros é tão grande, ou porque quando surge, abscurecidos todos, aparece
sozinho”. É identificável com facilidade a pseudoanalogia feita por Balbo entre o nome dado
ao Sol e o adjetivo solus, “só, sozinho”, já que o Sol ofusca, faz desaparecer aos olhos os
demais corpos celestes e devido ao seu brilho aparece solus, “só”.
Relação semelhante à do Sol é realizada por Balbo para explicar o nome dado à deusa
Venus, “Vênus”; não é feita, como era comum entre os romanos, relação direta com a deusa
grega , “Afrodite”, mas há uma tentativa de esclarecimento, desconsiderando a
tradição mítica, pois o método empregado pelo personagem é simplório, já que relaciona os
radicais das palavras Venus e uenustas, “elegância, beleza, formosura”, explicando que ex ea
potius uenustas quam Venus ex uenustate, “a elegância vem dela, mais que Vênus, da
elegância”.
Após a enumeração de alguns deuses e a tentativa de explicar etimologicamente os seus
nomes, ora se utilizando da tradição e retomando os nomes gregos, ora tentando explicá-los
meramente por suas relações de uso e de significado com substantivos, adjetivos e verbos da
língua latina, o personagem Balbo dá início à terceira parte de sua narratio, tentando
explicitar que mundum administrari, “o mundo é governado”, pelos deuses e que os estoicos
admitem que tal administração pode ser demonstrada em três argumentos:

Prima pars est, quae ducitur ab ea ratione, quae docet esse deos; quo
concesso confitendum est eorum consilio mundum administrari. Secunda est
autem quae docet omnes res subiectas esse naturae sentienti ab eaque omnia
pulcherrume geri; quo constituto sequitur ab animantibus principiis eam esse
generatam. Tertius est locus, qui ducitur ex admiratione rerum caelestium
atque terrestrium. (De Natura Deorum, II, 75)

A primeira parte é a que é conduzida por aquela razão, que ensina que os
deuses existem; permitido isso, deve-se admitir que o mundo é governado
por seu conselho. Porém, a segunda é a que ensina que todas as coisas são
sujeitas a uma natureza sensitiva e que por ela tudo é criado mais belamente;
constituído isso, segue que ela foi gerada por princípios animados. O terceiro
argumento é o que é conduzido a partir da admiração das coisas celestes e
terrestres.

O primeiro argumento retoma e reforça a primeira parte da narratio de que os deuses


existem e quais são os deuses, como foi explicitado pelo pesonagem, em seguida nada mais
conveniente do que se afirmar que o mundo eorum consilio administrari, “é governado por
seu conselho”.

134
Baseado no argumento de que, além de existirem, os deuses administram as coisas
humanas, Balbo afirma que não há nada mais superior do que uma divindade, uma vez que
esta não é obediente a nada, segue e rege seus próprios princípios, que, ao invés de serem
regidos pela natureza, regem-na.Comenta-se que não se devem ignorar tais princípios de
evidência divina, de modo que eles devam ser tratados com respeito e observados pelos
humanos, pois haveria uma uis, “força”, proveniente dos próprios deuses que comanda não só
a natureza, mas o princípio de inteligência, o ensinamento do justo e do injusto, a prudência e
a própria concepção de mente, a partir da qual a fides, a uirtus e os principais fundamentos
religiosos permanecem presente no gênero humano.
O próprio personagem questiona de onde seriam provenientes tantos fundamentos que
regem tanto a natureza, quanto princípios dos humanos, indagando:

Qua tantas res sustineant et gerant? (De Natura Deorum, II, 77)

Através da qual mantêm e nutrem as coisas mais importantes?

Não poderia um deus administrar as coisas da natureza, se não tivessem um


conhecimento mínimo de seu funcionamento e, segundo Balbo, isso não seria possível, caso
os deuses fossem inferiores à natureza e aos princípios que a regem. No entanto, no decorrer
de seu discurso, o personagem não mostra com clareza se tais argumentos foram entendidos
pelos estoicos, pois o que se anuncia parece estar claro apenas para Balbo, ou seja, muitas
expressões conclusivas são utilizadas, mas as provas não são enumeradas com a mesma
clareza. Tais imprecisões são identificadas no decorrer do discurso, como se verifica em:

Nihil est autem praeclarius mundi administratione; deorum igitur consilio


administratur[...] Ex quo efficitur id, quod uolumus, deorum prouidentia
mundum administrari[...] Nihil autem nec maius nec melius mundo; necesse
est ergo eum deorum consilio et prouidentia administrari. (De Natura
Deorum, II, 76-80)

Porém, nada é mais notável que a administração do mundo, pois é governado


pelo consílio dos deuses[...] A partir disto se mostra o que desejamos: o
mundo ser governado pela providência dos deuses[...] Porém nada é nem
maior nem melhor do que o mundo, portanto é necessário que ele seja
administrado pelo conselho e pela providência dos deuses.

Pode-se questionar, valendo-se dos mesmos recursos retóricos, qual o argumento que
elucida, por exemplo, que o mundo deorum consilio administratur, “é governado pelo
135
consílio dos deuses”, e ainda se há um consílio, quais deuses o compõem? Apenas os citados
pelo estoico ou também aqueles que não estavam presente em sua enumeração? Tais lacunas
parecem ser deixadas propositalmente pelo autor, pois isso garantiria êxito à refutação de seu
partidário acadêmico.
Além disso, a construção apesar de usar de elementos que parecem ter esclarecido a
questão, como o ex quo, “a partir disso”, que conduz a uma falsa impressão de que os fatos
foram comprovados, também levam a conclusões obscuras ou mesmos que não foram
explicadas, como a declaração repetitiva de que o mundo é certamente regido pela
providência divina.
Dando sequência aos seus argumentos, Balbo tenta elucidar que todas as coisas da
natureza foram criadas por princípios animados, sobre os quais certamente ele sobrepõe os
deuses, que, segundo o personagem, carregam em si todo conhecimento para a administração
das coisas naturais, que não apresentam nenhuma casualidade, nem desordem na organização
de seus elementos. Valendo-se disso, o personagem afirma:

Ita si terra natura tenetur et uiget, eadem ratio in reliquo mundo est[...] Sic
naturis is ex quibus omnia constant sursus deorsus ultro citro commeantibus
mundi partium coniunctio continetur. (De Natura Deorum, II, 83-84)

Assim se a terra se mantém pela natureza e vigora, a mesma razão está na


restante do mundo[...] Assim por essas naturezas, das quais todas as coisas
dependem, circulando para cima e para baixo, para lá e para cá, é formada a
união das partes do mundo.

A partir desses argumentos, pode-se questionar se o discurso de Balbo não passa a ser
contraditório em alguns momentos, pois se o mundo é regido pela providência divina, como a
terra pode estar sujeita ao acaso natural, a partir do qual omnia constant, “todas as coisas
dependem”? O personagem não retoma a parte anterior de sua narratio e ainda chega a
afirmar que:

Quorum utrumuis ut sit, sequitur natura mundum administrari[...] Quod si


mundi partes natura administrantur, necesse est mundum ipsum natura
administrari. (De Natura Deorum, II, 85-86)

Qualquer uma delas que seja, segue-se que o mundo é administrado pela
natureza[...] Porque se as partes do mundo são regidas pela natureza, é
necessário que o próprio mundo seja regido pela natureza.

136
Seria então o mundo regido pela natureza ou pelo consílio divino, como afirmara
anteriormente Balbo? Demonstra-se com tais declarações que o personagem não tem clareza
das ideias defendidas, fato que conduz à fragilidade de seus recursos retóricos que com
facilidade poderão ser refutados tanto por Veleio, quanto por Cota. Se natura mundum
administrari, “o mundo é administrado pela natureza”, se necesse est mundum ipsum natura
administrari, é necessário (que) o próprio mundo seja regido pela natureza, qual seria o
intuito de se afirmar que o mundo é regido pelo consílio dos deuses?
O personagem demonstra que não dispõe de ideias bem definidas acerca da concepção
divina, fato que pode ser estendido aos estoicos, já que Balbo seria um dos seus principais
representantes. Ainda podem ser citados outros trechos em que a contradição argumentativa é
visível, pois, mesmo ao afirmar que a natureza rege de modo organizado o mundo e os seus
elementos constituintes, Balbo faz considerações que retomam as primeiras afirmações, como
se verifica em:

Videamus utrum ea fortuitane sint an eo statu quo cohaerere nullo modo


potuerint nisi sensu moderante diuinaque prouidentia. (De Natura Deorum,
II, 87)

Vejamos se elas são fortuitas ou se existem naquele estado ao qual, de modo


algum, poderiam estar ligados, a não ser por um senso moderador e por uma
divina providência.

Mais uma vez o personagem não deixa claro qual seria o princípio regulador do mundo,
se a natureza ou a diuina pruidentia, “a divina providência”. Nem mesmo define de que modo
essa relação se estabelece ou através de quais concepções teria iniciado o modelo de regência
do mundo. Portanto, permanecem muitas questões em aberto, quer pela fragilidade
argumentativa de Balbo, quer pela ausência de argumentos que comprovem o que está sendo
exposto.
Partindo para o argumento de que os homens devem admirar as coisas celestes e
terrestres, Balbo estabelece certa fusão argumentativa do que anteriormente se colocava como
contraditório, pois tenta definir que a natureza seria criação das divindades:

Quae cum uiderent, profecto et esse deos et haec tanta opera deorum esse
arbitrarentur. (De Natura Deorum, II, 95)

Quando vissem isto, certamente julgariam tanto que os deuses existem


quanto que estas tantas coisas são obras dos deuses.

137
Estando de tal modo organizadas, todos deveriam perceber que haec tanta opera deorum esse,
“estas tão grandes coisas são obras dos deuses”, mas parece, segundo identifica Balbo, que o
homem perde paulatinamente a capacidade de admirá-las, pois quando está inserido em
determinado contexto por muito tempo, não consegue valorizar o ambiente que o cerca, como
se percebe em:

Sed adsiduitate cotidiana et consuetudine oculorum adsuescunt animi neque


admirantur neque requirunt rationes earum rerum, quas semper uident,
proinde quasi nouitas nos magis quam magnitudo rerum debeat ad
exquirendas causas excitare.(De Natura Deorum, II, 96)

Mas pela assiduidade cotidiana e pelo hábito dos olhos, os ânimos se


acostumam e não se admiram e nem procuram os motivos daquelas coisas
que sempre veem como se a novidade, por assim dizer, mais do que a
grandeza das coisas deva-nos excitar a procurar as causas.

Deveria o homem buscar o significado e a explicação para os mais variados fatos,


principalmente aqueles que fazem parte de seu cotidiano. Sugerindo tal argumento, Balbo
tenta explicar a existência dos deuses nos ideais estoicos e parte para exemplos mais
concretos retirados da natureza que exaltara anteriormente:

At uero quanta maris est pulchritudo, quae species uniuersi, quae multitudo
et uarietas insularum, quae amoenitates orarum ac litorum, quot genera
quamque disparia partim submersarum, partim fluitantium et innantium
beluarum, partim ad saxa natiuis testis inhaerentium. (De Natura Deorum,
II, 100)

Mas certamente quão grande é a beleza do mar, aquele aspecto do universo,


aquele grande número e variedade de ilhas, aqueles encantos das costas e das
praias, quantos e tão diferentes gêneros de animais, uns submersos, outros
que flutuam e que nadam, outros ainda que estão presos às pedras em
conchas naturais.

Primeiramente, dá exemplos das coisas terrestre, de sua organização, de animais - que


habitam a terra e que, devido ao seu ciclo produtivo, são alimentados por ela - da disposição e
de coordenação em seus mais diversos âmbitos: marinho, terreno, aéreo. Mostrando com tal
exemplificação que não haveria tal possibilidade de organização, se não houvesse uma força
maior que a determinasse, ou seja, uma divindade.
Em segundo lugar, relaciona a organização terrestre à celeste e expande seus
argumentos, levando em consideração os princípios organizadores do cosmos, afirmando que
138
apenas uma mente provida de razão teria capacidade de criar e ordenar o cosmos, e manter os
planetas em seus constantes movimentos, como se verifica em:

Haec omnis descriptio siderum atque hic tantus caeli ornatus ex corporibus
huc et illuc casu et temere cursantibus potuisse effici cuiquam sano uideri
potest? (De Natura Deorum, II, 115)

Toda esta descrição dos astros e este tão grande ornamento do céu podem
parecer a alguém são que puderam ser feitos a partir de corpos correntes por
acaso e sem ordem aqui e ali?

Na concepção de Balbo, apenas um ser, ou seja, um deus provido de mente e de razão


teria a capacidade de estabelecer tal ordenação. Nada podia ser mais belo e admirável ao
homem do que este movimento celeste, pois nenhum artífice jamais o conseguira reproduzir.
Dando sequência à sua narratio, Balbo se detém em explicitar por que os deuses
consulere rebus humanis, “se ocupam das coisas humanas”. Aos ideais estoicos, os animais
terrestres, aquáticos e que voam teriam sido criados para o benefício humano, pois só os
deuses se preocupariam em fornecer os subsídios necessários aos seres humanos para a sua
perpetuação no mundo. Sendo assim, o personagem afirma:

Vt uero perpetuus mundi esset ornatus, magna adhibita cura est a prouidentia
deorum, ut semper essent et bestiarum genera et arborum omniumque rerum,
quae a terra stirpibus continerentur; quae quidem omnia eam uim seminis
habent in se, ut ex uno plura generentur. (De Natura Deorum, II, 127)

Para que o ornamento do mundo na verdade fosse perpétuo, foi empregado


um grande cuidado pela providência dos deuses, de modo que existissem
sempre tanto as espécies dos animais, quanto das árvores e de todas as
coisas, que fossem sustentadas por raízes na terra; todas essas coisas
certamente têm em si a força de semente, de modo que de apenas uma são
geradas muitas.

Esse cuidado ut semper essent et bestiarum genera et arborum omniumque rerum, “de
modo que existissem sempre tanto as espécies dos animais, quanto das árvores e de todas as
coisas”, só poderia ter sido pensado e organizados, do modo como se conhece, pelos deuses,
pois todas as coisas teriam sido criadas e são administradas em função dos homens. Não
haveria sentido, segundo o personagem, na produção contínua da natureza e em sua renovação
constante, se não existissem seres capazes de perceber tal engenhosidade de organização nos
ciclos naturais.

139
O conceito de pecepção dos ciclos naturais é defendido para garantir a exposição dos
argumentos do personagem, pois todo trabalho de criação e administração das coisas terrestres
não teriam fundamento sem a existência de um ser capaz de contemplá-las, ser que
desfrutasse de faculdades mentais semelhantes à dos deuses, capaz de entender, na medidade
do possível, a complexidade do ciclo natural e sua reprodução. Sendo assim se afirma:

Qui primum eos humo excitatos, celsos et erectos constituerunt, ut deorum


cognitionem caelum intuentes capere possent. Sunt enim ex terra homines
non ut incolae atque habitatores, sed quasi spectatores superarum rerum
atque caelestium, quarum spectaculum ad nullum aliud genus animantium
pertinet. (De Natura Deorum, II, 140)

Eles primeiramente os criaram altos e eretos, levantados da terra, para que,


olhando atentamente o céu, pudessem tomar conhecimento dos deuses. Pois
os homens são provenientes da terra não como habitantes e moradores, mas
quase espectadores das coisas superiores e celestes, cujo espetáculo a
nenhum outro gênero de seres animados se estende.

Sendo assim os deuses criaram os humanos ut deorum cognitionem caelum intuentes


capere possent, “para que, olhando atentamente o céu, pudessem tomar conhecimento dos
deuses”, o que comprova, nos ditos de Balbo, a capacidade do ser humano de contemplação
da natureza, de seus ciclos, de sua geração e perpetuação, e o que é mais importante para os
humanos: a identificação e a admiração dos seres divinos que foram capazes de tamanhas
proezas criativas, fator pelo qual os deuses precisam ser honrados e cultuados.
Porém o discurso de Balbo não situa os humanos como simples seres contemplativos e
desprovidos de qualquer mente ou razão. Há a demonstração de que o homem recebe os
devidos cuidados dos deuses, pois estes, além de administrar toda sua criação, seja animal,
mineral ou vegetal, também forneceram ao homem subsídios semelhantes aos que os próprios
deuses apresentam, ou seja, a mente, a razão, a prudência, entre outros elementos que
distinguem os seres humanos dos demais animais presentes do mundo.
A partir desses exemplos, o personagem tenta demonstrar que a natureza do homem
ultrapassa a de todos os outros seres animados e que se deve compreender que nem a forma,
nem a posição dos membros, nem o raciocínio nos humanos podem ter sido criados ao acaso,
mas sim pelas divindades:

Iam uero animum ipsum mentemque hominis, rationem, consilium,


prudentiam qui non diuina cura perfecta esse perspicit, is his ipsis rebus mihi
uidetur carere. (De Natura Deorum, II, 147)

140
Já, na verdade, aquele que não percebe que a própria alma e a mente, a
razão, o conselho, a prudência do homem foram criados pelo cuidado divino,
este me parece ser privado destas mesmas coisas.

Estando o homem provido das mesmas faculdades que estão presentes nos deuses,
rationem, consilium, prudentia, “razão, conselho, prudência”, não haveria motivos para que o
personagem não declarasse que o mundo é o local de comum morada entre os deuses e os
homens, com se verifica em:

Est enim mundus quasi communis deorum atque hominum domus. (De
Natura Deorum, II, 154)

Pois o mundo é por assim dizer a morada comum dos deuses e dos homens.

Com os argumentos apresentados, Balbo tem estruturado sua narratio, porém após esta
parte do discurso, deveria o personagem seguir os preceitos de estruturação retórica e
apresentar uma terceira parte relativa ao discurso, denominada de diuisio, que é per quam
aperimus, quid conueniat, quid in controuersia sit, et per quam exponimus, quibus de rebus
simus acturi117, “é (o meio) pelo qual esclarecemos o que convém, o que está em controvérsia,
e pelo qual expomos sobre as coisas que iremos falar.” Porém o personagem não faz uso dessa
seção discursiva, contrariando assim os princípios teóricos para uma argumentação
persuasiva.
A diuisio é responsável por dar lucidez e clareza à causa, e pode geralmente ser
decomposta em dois aspectos: primeiramente, quid conueniat, quid in controuersia sit, “o que
convém, o que em controvérsia”, ou seja, quais questões se apresentam de acordo ou em
desacordo com os adversários, assim se deve assinalar um ponto específico para o qual o
ouvinte deve estar mais atento; per quam exponimus de rebus, “pelo qual expomos sobre as
coisas”, ou seja, expõe-se com brevidade e clareza o assunto a que se vai referir, objetivando
que o ouvinte se atenha a seus pontos específicos.
Seguido tais princípios, depois de concluída a narratio, a causa deve, primeiramente,
ser apresentada, mostrando em quais pontos estaria o personagem de acordo com o adversário
Veleio, caso houvesse tal possibilidade; do contrário Balbo deveria demonstrar o que restava
de controverso. Após tal estabelecimento, apresentar-se-iam a exposição e a enumeração dos

117
Retórica a Herênio, I, 4.

141
argumentos que elucidariam quais os motivos da divergência ou do acordo entre as partes,
tornando o discurso persuasivo.
A confirmatio e a confutatio são importantes para o discurso, pois todo método para a
persuasão e a possibilidade de se vencer um adversário estão nelas, sendo assim quando se
apresentam os argumentos, há a tentativa de se aniquilar o discurso alheio, e assim tem
cumprido o orador a sua tarefa.
Pode-se então dizer que uma das partes mais importantes do discurso é a confirmatio,
pois ela reúne a essência da fundamentação argumentativa, situando-se naturalmente no
momento anterior à narratio. Na confirmatio utilizam-se todos os recursos argumentativos da
inuentio com uma única finalidade de persuadir mediante docere.
Tanto a confirmatio quanto a confutatio objetivam estabelecer as rationes positivas ou
negativas da causa, uma vez que a confirmatio é nostrorum argumentorum expositio cum
adserueratione118, “a exposição dos nossos argumentos com segurança”, ou seja, é a parte do
discurso em que a causa obtém credibilidade e autoridade por intermédio da argumentação,
pois apresentam regras precisas que se classificam segundo os diferentes gêneros de causa. A
confutatio é contrariorum locorum dissolutio119, “a destruição das provas contrárias”, ou seja,
parte discursiva em que as provas usadas pelos adversários são enfraquecidas, rebaixadas ou
debilitadas com argumentos convincentes.
Sendo assim, na confutatio mostra-se que todos os pontos levantados pelo adversário
não constituem indícios, seja por serem pouco relevantes, seja por favorecerem primeiramente
a um plano oposto antes que o seu próprio. Deve-se demonstrar que os planos do adversário
são absolutamente falsos ou que levam igualmente a outras suspeitas e, por isso, não podem
ser considerados pertinentes.
No entanto, não se verifica, no discurso de Balbo, a estruturação de uma diuisio que
lhe poderia garantir uma melhor argumentação a partir da retomada de passagens do discurso
de Veleio. Balbo apenas cita em sua ampla narratio algumas passagens críticas, que deveriam
compor mais acertadamente uma suposta confutatio, mas que não se configura de tal maneira:

Nam uobis Vellei minus notum est, quem ad modum quidque dicatur; uestra
enim solum legitis uestra amatis, ceteros causa incognita condemnatis, uelut
a te ipso hesterno die dictumst anum fatidicam a Stoicis induci,
id est Providentiam[...] Sunt autem, qui omnia naturae nomine appellent, ut

118
Retórica a Herênio, I, 4.
119
Idem.
142
Epicurus, qui ita diuidit, omnium quae sint naturam esse corpora et inane
quaeque is accidant. (De Natura Deorum, II, 73;82)

Pois por vós, Veleio, quase nada foi verificado, da mesma forma que cada
coisa é dita; pois ledes somente vossas coisas, amais vossas coisas,
condenais os outros por causa desconhecida, como por ti próprio no dia de
ontem foi dito que uma velha profetisa, , foi introduzida pelos
estóicos, isto é, a providência[...] Porém existem aqueles que chamam tudo
pelo nome de natureza, como Epicuro, que assim separa que a natureza de
tudo que há são os corpos e o vazio, e o que lhes acontece.

As palavras de Balbo criticam principalmente os conceitos de Pronoia e da teoria


atômica que foi desenvolvida por Veleio, no Livro I, baseando-se na afirmação de que os
epicuristas não teriam os conhecimentos necessários para falar acertadamente sobre a natureza
divina, pois eles teriam lido apenas os escritos de Epicuro sobre o assunto. Tais críticas
poderiam ter garantido ao estoico a composição de uma exímia confutatio, o que vincularia ao
discurso de Balbo explicações mais detalhadas das ideias estoicas acerca do epicurismo na
Roma do séc. I a.C..
Após a narratio, o personagem Balbo finaliza o seu discurso e, de forma bastante, breve
apresenta sua conclusio, que é composta apenas por um parágafo:

Haec mihi fere in mentem ueniebant, quae dicenda putarem de natura


deorum. Tu autem, Cotta, si me audias, eandem causam agas teque et
principem ciuem et pontificem esse cogites et, quoniam in utramque partem
uobis licet disputare, hanc potius sumas eamque facultatem disserendi, quam
tibi a rhetoricis exercitationibus acceptam amplificauit Academia, potius huc
conferas. Mala enim et impia consuetudo est contra deos disputandi, siue ex
animo id fit siue simulate. (De Natura Deorum, II, 168)

Chegavam-me à mente geralmente aquelas coisas que eu pensava que devem


ser ditas sobre a natureza dos deuses. Porém tu, Cota, se me ouves, defende
o mesmo argumento e pensa que tu és tanto um importante cidadão quanto
um pontífice como, já que vos é permitido discutir ambas as partes, assume
de preferência esta e aquela faculdade de discutir que, recebida por ti de
exercícios retóricos, a Acadêmia ampliou, traze aqui apressadamente. Há,
pois, um hábito mal e ímpio de discorrer contra os deuses, o que se faz ou
verdadeira ou dissimuladamente.

Sabe-se que pelos princípios retóricos da Antiguidade Clássica, a conclusio, como o


próprio vocábulo indica, é a parte final do discurso, ou seja, est artificiosus orationis
terminus120, “é término, segundo os princípios da arte, do discurso” a qual apresenta
essencialmente uma recapitulação.

120
Retórica a Herênio, I, 4.
143
Desse modo, a primeira parte da conclusio é responsável por reunir os mais importantes
argumentos usados nas partes anteriores do discurso que, muitas vezes, já se apresentam
dispersos e disseminados, de modo que seja possível recordar o todo em seu conjunto.
Na conclusio, podem ser utilizados diversos procedimentos para que o ouvinte não a
interprete como proveniente de uma elaboração artificiosa. Seu objetivo é exatamente o
oposto, ou seja, evitar as suspeitas e a sensação de repetição que geralmente o término do
discurso produz.
A conclusio não é a mera repetição das palavras expostas, uma vez que geralmente ao
orador é indispensável a recorrência à uariatio. Sendo assim, para que isso ocorra, ele deve
retomar cada ponto brevemente, recapitulando toda a argumentação com o intuito de conduzir
o ouvinte ao ponto que se deseja. Também podem ser recapituladas as partes mencionadas na
diuisio, através da recordação dos raciocínios que apoiaram cada uma dessas partes, ou ainda
podem ser feitas perguntas aos ouvintes a respeito dos aspectos sobre os quais desejariam que
fossem ampliados ou provados os argumentos usados. Desse modo, os argumentos são
retomados, fato que produz no ouvinte uma sensação de que nada está em falta.
Na recapitulação, podem ser proporcionados os argumentos ou confrontá-los com os
do adversário, acrescentando elementos contrários àqueles que serviram de base ao opositor.
Assim, uma breve comparação recorda aos ouvintes tanto a confirmatio quanto a refutatio.
Para que não haja apenas a retomada do discurso ou mesmo a apresentação com outros
recursos oratórios, é conveniente que se varie na conclusio. O orador pode ainda centrar o
resumo na sua própria pessoa, lembrando o que foi dito, ou apresentar um personagem
qualquer, levantando uma hipótese como se este estivesse interesse na rememoração dos fatos
apresentados, ou ainda sugerir algo inanimado para associar-lhe um resumo inteiro, atribuindo
palavras a objetos como monumento, lei, cidade, lugar.
Sobre a conclusio, Cícero afirma:

Atque hic, item ut in nostra persona, licebit alias singillatim transire omnes
argumentationes, alias ad partitionis singula genera referre, alias ab auditore,
quid desideret, quaerere, alias haec facere per comparationem suarum et
contrariarum argumentationum. (De Inuentione, I, 99)

Contudo aqui, bem como em nosso papel, uma vez será permitido
particularmente modificar todos os argumentos, outra vez restituir a cada
gênero da divisão, outra procurar saber do ouvinte o que ele desejava, outra
fazer isto pela comparação de seu argumento e de argumento contrário.

144
Como norma geral, na recapitulação deve-se eleger o ponto mais importante de cada
argumento, pois não é possível repeti-lo por completo, os pontos importantes devem ser
tratados com a maior brevidade possível, de maneira que resultem evidentes os fatos que se
recordam.
É evidente que Balbo não utiliza todos os recursos cabíveis em sua conclusio. Fato
que se verifica basicamente por três aspectos: o parágrafo, que constitui sua conclusio,
conclui apenas o Livro II, do De Natura Deorum; em segundo lugar, o personagem será
criticado em seguida, no Livro III, pelo partidário da Academia, Cota; por último, o próprio
discurso de Balbo não se utiliza, por exemplo, da diuisio que, segundo os preceitos retóricos,
forneceria pontos relevantes a serem retomados na conclusio.

145
2. Estruturação Retórica do De Natura Deorum, Livro III

O Livro III do De Natura Deorum é composto pelo discurso do personagem Cota,


partidário dos ideais acadêmicos. Este Livro apresenta 95 parágrafos, que basicamente se
propõem a uma arguição das ideias estoicas acerca da natureza dos deuses demonstrada pelo
personagem Balbo no Livro precedente.
Nesta parte do diálogo o autor não lança mão de todas as partes do discurso, como o
exordium, “exórdio”, narratio, “narração”, diuisio, “divisão”, confirmatio, “cofirmação”,
confutatio, “refutação” e conclusio, “conclusão”. Depois de uma célere apresentação do
discurso de Cota, composta pelos 9 primeiros parágrafos, em que os três personagens
dialogam, há basicamente a composição da refutatio, que se estende do parágrafo 10 ao 93,
em que são retomados por Cota os argumentos propostos por Balbo, em seguida o acadêmico
apresenta sua conclusio, de forma sucinta, nos parágrafos 94 e 95.

146
2.1. Apresentação do discurso de Cota

Nos 9 primeiros parágrafos do discurso de Cota, Cícero não se utiliza dos elementos
constituintes do exordium, pois basicamente há um diálogo entre os três personagens que
constituem o discurso. Isso se verifica por duas razões: primeiro, o discurso de Cota é
composto de argumentos contrários aos de Balbo, sendo assim constitui o que nos preceitos
discursivos se chama refutatio; segundo, não haveria necessidade de um exordium, uma vez
que já se estabelecera anteriormente o seu caráter discursivo, portanto apresentar uma
introdução seria redundante, pois a discussão acerca da natureza dos deuses já ficara definida
ao longo dos Livros I e II.
É importante perceber neste momento que Balbo demonstra estar ansioso por ouvir as
palavras de Cota acerca do assunto abordado, não com intuito de refutá-lo, mas com propósito
de compreender melhor, o que se pode considerar como mera ironia por parte do autor, sobre
aquilo que acabara de discursar no Livro II. Assim se pode considerar que o personagem
Balbo, no exordium do Livro III, não demonstra a mesma segurança que apresentara ao
discorrer sobre a natureza dos deuses no Livro precedente. Ainda afirma que talvez seja difícil
que ele entenda aquilo que será explicitado por Cota, como se percebe na seguinte afirmação:
defficile factu est me id sentire, quod tu uelis121, “é difícil sobre o fato (que) eu perceba aquilo
que tu desejas.”
O autor, mesmo que não se utilize dos preceitos convenientes ao exordium, demonstra a
necessidade de explicitar, através do diálogo entre os personagens, quais seriam as ideias
abordadas por Cota, antecipando assim os argumentos que serão expostos:

Nescis quanta cum expectatione, Cotta, sim te auditurus. Iucundus enim


Balbo nostro sermo tuus contra Epicurum fuit; praebebo igitur ego me tibi
uicissim attentum contra Stoicos auditorem. Spero enim te, ut soles, bene
paratum uenire. (De Natura Deorum, III, 2)

Não sabes com quanta curiosidade, Cota, hei de te ouvir. Pois ao nosso
Balbo o teu discurso contra Epicuro foi agradável; então, eu me mostrarei
um ouvinte atento a ti contra os estoicos. Pois espero (que), como costumas,
venhas bem preparado.

Do mesmo modo que Cota havia proferido seu discurso contra o epicurista Veleio, no
final do Livro I, Balbo anseia pelo discurso do acadêmico contra a concepção de deuses dos
121
De Natura Deorum III, 1.

147
estoicos, afirmando: nescis quanta cum expectatione, Cotta, sim te auditurus, “não sabes com
quanta curiosidade, Cota, hei de te ouvir”. Pode-se dizer que tal afirmação por parte de Balbo
garantiria ao autor Cícero, dois fatores importantes: a concretização de sua ideologia e a
tentativa de uso dos conceitos retóricos nos moldes gregos. Se o personagem Cota conseguir a
descontrução do discurso de Balbo por meio dos ideais contrários que serão apresentados em
sua confutatio.
O primeiro se deve ao que é afirmado pelo personagem Balbo, a credibilidade que é
depositada pelo estoico no discurso de Cota, pois aquele anseia por ouvir o discurso do
acadêmico, mesmo que este se mostre contrário a suas concepções sobre a natureza dos
deuses e sobre o que afirmam os estoicos; em segundo lugar, há um posicionamento evidente
do autor em fazer uso dos modelos de composição gregos, sobretudo no que se refere ao
emprego de concepções acerca da Retórica e da Dialética, usadas por Aristóteles, nas quais o
discurso retórico não visa a um fim em si mesmo, ou seja, não almeja a concordância entre os
participantes do discurso retórico, mas apenas pretendem demonstrar a possibilidade de
apresentação de pontos de vistas opostos acerca de um mesmo assunto.
Partindo disso, Cota retoma a diuisio apresentada por Balbo122, a fim de contestar a
teoria exposta pelo estoico:

Et ille “Quadripertita”, inquit, “fuit diuisio tua, primum ut uelles docere deos
esse, deinde quales essent, tum ab is mundum regi, postremo consulere eos
rebus humanis. Haec, si recte memini, partitio fuit.” (De Natura Deorum,
III, 6)

Ele disse: “A tua divisão foi separada em quatro. Primeiramente queres


ensinar que os deuses existem; depois qual seja sua natureza; então (que) o
mundo é regido por eles; enfim (que) deliberam por aquelas coisas humanas.
Esta, se me recordo bem, foi a divisão.”

Conforme os preceitos retóricos, a diuisio basicamente apresenta duas partes, a


confirmatio, “confirmação”, e a confutatio, “refutação”, porém o discurso de Cota apresenta
apenas uma dessas partes, ou seja, a confutatio. Por esse motivo, o personagem reafirma que
quadripertita fuit diuisio tua, “a tua divisão foi separada em quatro”, e não acrescenta nenhum
elemento que não tenha sido apresentado por Balbo, no Livro II, o que demonstra que Cota
está interessado nas ideias de Balbo e que estas serão retomadas a fim de serem refutadas,
conduzindo o personagem adepto do estoicismo ao descredito pelos conceitos abordados.
122
De Natura Deorum, II, 3.

148
Com isso, o personagem prepara o ânimo dos ouvintes, Veleio e Balbo, para o que
seria a sua concepção de deuses ou, mais especificamente, a apresentação de ideias que o
acadêmico percebe que não se coadunam com a escola filosófica seguida por ele. O mais
interessante é que Cota retoma os argumentos expostos por Balbo na mesma ordem de
apresentação, utilizando-se das mesmas palavras.
Tal fato pode ser considerado como um recurso oratório sugerido pelo próprio autor,
pois além de não fazer com que o seu partidário acadêmico exponha suas ideais em primeiro
lugar, também não apresenta com clareza quais seriam as concepções acadêmicas acerca da
natureza dos deuses.
O autor parece, então, sempre afirmar que o seu ideal é a omissão, ou seja, a ausência
de teoria que comprove sua tese, ou mesmo a tentativa de sucessivamente tentar desconstruir
os argumentos levantados pelo estoico e pelo epicurista, e levar à tona a mais completa
obscuridade teórica sobre o assunto. A opção do autor pela desconstrução argumentativa dos
adversários e pela tentativa de conduzir suas teorias à obscuridade conceitual demonstra uma
ausência de concepção acerca do que pretende com seu discurso filosófico, ou seja, a
discussão sobre qual seria a ideia mais coerente associada ao que entende por deuses e suas
naturezas. A obscuridade pretendida pelo autor que se vale do discurso de Cota.
Neste momento, o personagem Cota retoma os ideais epicuristas que tinham sido
considerados relevantes por Veleio em seu discurso no Livro I. Cota reafirma que as
considerações da escola epicurista sobre os deuses contribuíram muito pouco para o
entendimento do que seja um deus imortal, pois de certo modo Veleio apenas negara assim
como os partidários de sua escola a existência de deuses concebíveis ao entendimento humano
ou à compreensão de por que se considerar beata e eterna a existência de um ser desprovido
de alguma necessidade, que lhe garantisse a percepção de sua existência.
Cota ainda observa que não foram apenas as palavras de Veleio desprovidas de
argumentos plausíveis à causa, mas também que há pouca verdade no discurso proferido por
Balbo, como aquele mesmo profere: a Balbo autem animaduertisti, credo, quam multa dicta
sint quamque, etiamsi minus uera, tamen apta inter se et cohaerentia123, “porém observaste,
penso, quantas coisas tenham sido ditas por Balbo e quantas, ainda que pouco verdadeiras,
ligadas, porém, e com coerência entre si”. Aqui se verifica que há inter se cohaerentia,
“coerência entre si”, ou seja, entre os elementos que Balbo tenta explicitar no Livro II, mas é

123
De Natura Deorum III, 4.

149
evidente que Cota não se refere às ideias apresentadas ou mesmo à teoria que teria defendido
o estoico, e sim a estruturação discursiva que Balbo teria dado ao plano expositivo das
concepções estoicas, já que Cota se utilizará da mesma estruturação discursiva na sua
exposição.
A referência à estruturação discursiva de Balbo é importante para a compreensão do
que pretende Cota em seu discurso, mesmo que de maneira irônica, pois este propõe a
retomada dos principais argumentos apresentados com vistas a explicações que seriam dadas
pelo personagem estoico. Balbo se dispõe a responder todas as lacunas deixadas no Livro II,
segundo o personagem Cota, aquele afirma: uel ad singula, quae requires, statim respondebo
uel, cum peroraris, ad omnia124, “ou responderei com firmeza a cada (coisa) que exigirás, ou
a tudo, quando tiveres concluído”.
Cota não faz uma escolha objetiva entre as duas opções sugeridas por Balbo, ou seja,
responder ad singula, “a cada (coisa)”, ou ad omnia, “a tudo”, mas parece demonstrar inicial
que a primeira opção seria a desejável para a refutação de um discurso tão extenso como fora
o de Balbo. No entanto, nota-se que as palavras inicias do acadêmico apenas demonstram, no
que se refere às críticas ao estoicismo, a ironia ciceroniana que começam a se desenvolver no
exordium do Livro III.
É perceptível a crítica que irá ser desenvolvida por Cota e que toda a compreensão
acerca do que Balbo acabara de expor não passa de mera aparência argumentativa, pois Cota
parece ter uma ideia formada e demonstra ser versado no tema em questão, já que declara esse
pontificem125, “ser um pontífice”. O Acadêmico não aparenta estar aberto a novas teorias
sobre a natureza das divindades, conforme ele mesmo declara:

Ego uero eas defendam semper semperque defendi nec me ex ea opinione,


quam a maioribus accepi de cultu deorum inmortalium, ullius umquam
oratio aut docti aut indocti mouebit. (De Natura Deorum III, 5)

Eu mesmo certamente as defenderei e sempre tenho defendido; nunca o


discurso de alguém, quer douto, quer ignorante, me afastaria daquela opinião
que tenho recebido dos antepassados sobre o culto dos deuses imortais.

As palavras de Cota demonstram uma alegoria irônica no que se refere às indagações


feitas a Balbo sobre os esclarecimentos das questões mais obscuras de seu discurso, pois se
aquele não aceitaria qualquer opinião alheia ex ea opinione, “daquela opinião”, com a qual

124
De Natura Deorum III, 4.
125
Idem, III, 5.
150
tinha sido instruído, por que então estar atento às opiniões de partidários de correntes
filosóficas que divergiam da sua? Seria mera especulação retórica? A continuação de seu
discurso, ou seja, sua confutatio mostra exatamente a explanação de conceitos que se
apresentam meramente em sentido oposto aos de seus adversários e que não se utiliza da
Retórica e da Dialética nos moldes aristotélicos, sendo assim basicamente se compõem da
retomada e da negação que se apresentara anteriormente.
Apesar do discurso do Balbo ser o mais extenso do De Natura Deorum, Cota diz com
clareza que aquele ainda não afirmara qualquer pensamento admissível sobre a religio romana
e acredita que demonstração alguma sobre os deuses tenha sido feita. Assim, em se
considerando o diálogo filosófico em questão, tornam-se claras as intenções de Cota:
primeiramente, fazer com que o adversário não se sinta seguro sobre o que havia discursado;
em seguida, pontuar os principais problemas do discurso do estoico, a fim de conseguir sua
aprovação acerca dos equívocos conceituais abordados.
Torna-se relevante, neste momento, a observação de que o autor, que é representado por
Cota, não apenas tenta levar a obscuridade sobre os mais diversos conceitos, mas também que
se mostra obscuro, uma vez que apenas apresenta críticas, mas sequer tece considerações que
sejam capazes de conduzir a uma reflexão mais aguçada do que evidencia.
Vale então destacar a ironia de Cota, que joga com as dúvidas, que no momento surgem
no personagem Balbo, que parece não entender o que conduzia o acadêmico àquela discussão
acerca das divindades, já que este se apresentava inflexível à adoção de novas ideias ou até
mesmo de acrescentar algo ao que considerava de elevado saber. À primeira vista, a seguinte
afirmação de Cota parece contraditória:

“Quia sic adgredior”, inquit, “ad hanc disputationem, quasi nihil umquam
audierim de dis immortalibus, nihil cogitauerim; rudem me et integrum
discipulum accipe et ea, quae requiro, doce.” (De Natura Deorum, III, 7)

“Porque assim me dirijo a esta discussão como se nunca tivesse ouvido nada
sobre os deuses imortais, nada tivesse pensado; receba-me (como) um
discípulo rude e novo, e (me) ensina aquelas (coisas) que procuro.”

Pode-se considerar apenas como contraditória tal afirmação, pois Cota já havia
anunciado seus mestres126 anteriormente, fato que leva ao pensamento de que o personagem

126
Sed cum de religione agitur, Ti. Coruncanium, P. Scipionem, P. Scaevolam pontifices maximos, non
Zenonem aut Cleanthen aut Chrysippum sequor habeoque C. Laelium augurem eundemque sapientem (De
Natura Deorum, III, 5)/ Mas quando se trata da religio, sigo Tibério Coruncânio, Públio Cipião e Públio
151
apenas quer ser considerado um leigo no assunto, a fim de fazer com que seus adversários se
exponham o máximo possível sem se preocuparem com questões possivelmente ambíguas ou
mesmo que não sejam passíveis de comprovação teórica.
Ainda se pode acrescentar a tal afirmação de Cota o fato de que ele não está levando em
consideração as ideias epicuristas apresentadas por Veleio e a expressão ad hanc
disputationem, “a esta discussão”, deve ser entendida apenas como uma referência direta à
disputa entre Cota e Balbo, ou mais especificamente que o autor reforça as desconsiderações
destinadas ao epicurista Veleio.
Ao término do exordium, Cota ainda afirma com ironia:

“Quam simile istud sit”, inquit, “tu uideris. Nam ego neque in causis, si quid
est euidens, de quo inter omnis conueniat, argumentari soleo - perspicuitas
enim argumentatione eleuatur.” (De Natura Deorum, III, 9)

Disse: “Tu tens visto quanto isso é semelhante, pois eu não estou
acostumado a argumentar sobre uma causa se há algo evidente, sobre a qual
haja conveniência entre todos, pois a clareza é enfraquecida pela
argumentação.”

Essas palavras reforçam a ironia empregada para se referir às palavras de Balbo: si quid
est euidens, “se algo é evidente”, qual seria o interesse de Cota indagar sobre as considerações
estoicas que ficaram obscuras, ou mais ainda, qual seria o seu interesse em pretender que
Balbo exponha paulatinamente os pontos que ainda não estão claros para o acadêmico? Cota
apenas demonstra a evidência sobre a causa e ainda sugere que quanto mais se discurse sobre
a natureza divina, menos clara se tornará a questão.
Sendo assim, o acadêmico prefere admitir que o excesso de argumentos torna a causa
pouco convincente, o melhor, em sua concepção, seria não negar o que os antigos ensinaram e
aceitar a existência dos deuses, apresentando apenas um argumento, como diz: unun sat
erat127, “um só era sufuciente”.
Diante de tais evidências, não é difícil perceber a ausência de comprometimento do
autor com a causa que pretende abordar, o que conduz a indagações que, propositalmente, não
serão esclarecidas por ele, já que não há o emprego de um método dialético, além disso leva a
questionar qual a necessidade para o diálogo do discurso de Cota.

Cévola, pontífices máximos; não Zenão, ou Cleantes, ou Crisipo, e tenho (como modelo) Caio Lélio, áugure e
também sábio.
127
De Natura Deorum, III, 9.

152
Tais questionamentos, caso não se compreenda a intensão irônica de Cota, podem
conduzir os interlocutores por caminhos movediços, pois este é um dos objetivos de Cota. Por
outro lado, esses questionamentos levantam questões que não foram ainda solucionadas, pois
há apenas a proposição da retomada da estrutura discursiva, que será criticada paulatimente
nos seguintes 84 parágrafos que constituem a confutatio acadêmica.
A seguir será abordada a parte fundamental do discurso de Cota em que basicamente o
personagem retoma as ideias apresentadas, no Livro II, por Balbo, na mesma ordem de
apresentação, e tenta fundamentar sua confutatio.

153
2.2. Confutatio de Cota

A confutatio de Cota compõe quase todo seu discurso, estende-se por 84 parágrafos
dos 95 que integram o Livro III. Esta parte discursiva está totalmente associada ao discurso do
personagem Balbo, proferido no Livro II. Sendo assim, Cota utiliza-se dos mesmos loci, mas
com argumentos opostos, para apresentar sua confutatio.
No primeiro momento, Cota retoma a diuisio128proposta pelo estoico e, a partir das
ideias expostas nela, tenta lançar mão de argumentos, exemplos, indícios que comprovem que
Balbo estava equivocado em defender ideias que possuem tamanha fragilidade comprobatória.
Porém, é importante observar que Cota não propõe conceitos que substituam os apresentados
por Balbo, fato que conduz ao questionamento de quais seriam os ideas ciceronanos, uma vez
que vários recursos retóricos são utilizados, mas não visam a um fim específico nem mesmo
geram novas possibilidades discursivas, como é conveniente a um discurso dialético.
Sobre o argumento129, retomado de Balbo, acerca de que deos esse, “os deuses
existem”, Cota discorre a esse respeito e podem ser destacados argumentos importantes para a
comprovação de sua tese, como se verifica em:

Primum fuit, cum caelum suspexissemus, statim nos intellegere esse aliquod
numen, quo haec regantur. Ex hoc illud etiam: “Aspice hoc sublime candens,
quem inuocant omnes Iouem.” (De Natura Deorum, III, 10)

Primeiro foi quando tínhamos olhado o céu, imediatamente nós


compreendemos (que) havia algum poder divino com o qual estas (coisas)
são regidas. A partir disto também (citas) aquilo: “Olha este brilhante (céu)
elevado, que todos chamam de Júpiter.”

Cota inicia afirmando que statim nos intellegere esse aliquod numen, quo haec
regantur, “imediatamente nós compreendemos (que) havia algum poder divino com o qual
estas (coisas) são regidas”, mas de modo irônico, retoma as palavras de Balbo, incluindo o
mesmo trecho de Ênio citado pelo estoico130: “Aspice hoc sublime candens, quem inuocant
omnes Iouem”, “Olha este brilhante (céu) elevado, que todos chamam de Júpiter”.
Tal citação conduz ao pensamento de que o acadêmico retomaria as ideias que ele
tivesse considerado pertinentes com a questão abordada pelos personagens do diálogo, porém

128
De Natura Deorum, III, 6.
129
Idem, II, 3; III, 6.
130
Aspice hoc sublime candens, quem inuocant omnes Iouem./ Olha isto (é) sublime, que é ardente, que todos
chamam de Júpiter. (De Natura Deorum, II, 4)

154
logo se verificaria que Cota parece conduzir os interlocutores por locais movediços, pois em
seguida critica severamente a concepção levantada pelo estoico. Assim, faz uso em seu
discurso de estruturas que mais conduzem à ambiguidade informativa ou mesmo a
contradições propositais, a fim de garantir a sua arguição, como se observa em:

Non igitur adhuc, quantum quidem in te est, Balbe, intellego deos esse; quos
equidem credo esse, sed nil docent Stoici. (De Natura Deorum, III, 15)

Até aqui então, quanto certamente haja em teu (argumento), Balbo, não
compreendo (que) existem os deuses, os quais evidentemente creio (que)
existam, mas os estoicos nada ensinam.

Há na afirmação de Cota, acerca da existência dos deuses, oposições evidentes:


primeiramente, as ideias que serão apresentadas pelo acadêmico em nada tentarão comprovar
que os deuses existem, sendo contraditório afirmar que deos esse, “os deuses existem”, e se
eles existem, qual seria o intuito de o personagem afirmar que não crê em sua existência? Em
seguida, há a evidência do que o acadêmico pretende comprovar, ou seja, nil docente Stoici,
“os estoicos nada ensinam”, sendo assim o discurso proferido por Balbo não pode ser
considerado como evidência comprobatória do assunto em questão.
Seguindo a concepção de que nil docente Stoici, “os estoicos nada ensinam”, é
retomado um argumento apresentado que se apresenta um tanto paradoxal ao assunto, como
se verifica em:

Placet igitur tantas res opinione stultorum iudicari, uobis praesertim, qui illos
insanos esse dicatis? (De Natura Deorum, III, 11)

Então vos agrada (que) tantos argumentos sejam julgados pela opinião de
insensatos, sobretudo aqueles que afirmais (que) eram insanos?

A problemática131 envolve aspectos paradoxais na teoria estoica, uma vez que não se
admite com absoluta segurança o envolvimento dos deuses nos elementos que cercam os seres
humanos, como a medicina, a agricultura, por exemplo. Os homens relacionam possíveis
incoerências na administração dos elementos da natureza às divindades, como se todas as
coisas existentes não tivessem sido estabelecidas pelos deuses, confirmando uma espécie de
negligência administrativa ou até mesmo de uma possível elaboração artificiosa.

131
De Natura Deorum, II, 12.
155
A incompatibilidade teórica nesse raciocínio estoico está em admitir uma associação
indevida e buscar a responsabilidade pela ausência de possível discernimento e compreensão
das coisas que envolvem a natureza dos deuses, como se fosse possível associar a fragilidade
de compreensão dos seres humanos a elementos externos àqueles, como os deuses.
Se insanos esse, “eram insanos”, como disse Balbo, os que desconsideravam a
negligência dessa possibilidade, ou seja, da elaboração artificiosa pelo homem, como não
considerar frágil uma teoria que trata da possível compreensão dos seres humanos a respeito
das coisas celestes? Aponta-se que é mais aceitável que se considere a existência dos deuses
porque é um fato evidente e et in animo quasi inscriptum esse deos132, “e por assim dizer
(está) gravado na alma (que) os deuses existem”. Então é mais aceitável que se associe a
impossibilidade intelectiva à conjectura humana, e não a teorias que associam ao acaso a
criação de qualquer elemento presente na natureza.
Assim seria mais aceitável que os estoicos admitissem mais facilmente e tentassem
comprovar o que se verifica presente em toda natureza, ou seja, a existência que divindades
que a organizaram. No entender do acadêmico, o olhar da teoria estoica voltou-se para o que a
questão não exigia, pois não se esperava que a existência ou natureza divina pudesse ser
comprovada a partir da percepção ou de atitudes humanas.
Pode-se dizer que não há necessariamente ligação entre a incapacidade do ser humano
em conseguir entender as ações divinas com a capacidade de fazer uso da mens, mente, que,
segundo o que estabelece, também é fruto da concessão intelectual de uma mens superior.
Não se considerar essa possibilidade, seria associar o mundo e sua organização ao acaso
existencial, pois a organização do cosmos estaria ligada necessariamente ao destino, sendo
este o que teria sido por toda a eternidade.
Ainda sobre a existência das divindades, Cota refere-se ao discurso de Balbo,
retomando outra parte que por aquele também é considerada digna de refutação:

Vnus is modus est, de quo satis dixi, qui est susceptus ex praesensione rerum
futurarum; alter ex perturbationibus tempestatum et reliquis motibus; tertius
ex commoditate rerum, quas percipimus, et copia; quartus ex astrorum
ordine caelique constantia.(De Natura Deorum, III, 16)

O primeiro é aquele modo sobre o qual tenho falado suficientemente, que foi
gerado do pressentimento das coisas futuras; o outro, das perturbações das
tempestades e dos movimentos restantes; o terceiro, da comodidade das

132
Idem.
156
coisas que recebemos e da (sua) abundância; o quarto da ordem dos astros e
da constância do céu.

Tais argumentos aparecem basicamente no Livro II133 e Cota tenta refutá-los a partir de
considerações que ao mesmo tempo desqualificam os exemplos dados por Balbo quanto
afirmam que a teoria sugerida não seria da autoria deste. Ainda afirma o acadêmico que não
se procura sintne aliqui, qui deos esse putent: di utrum sint necne sint, quaeritur134, “se
existem alguns que pensam (que) os deuses existem; procura-se se os deuses existem ou não
existem”. Sendo assim, além de Balbo não ter usado de exemplos próprios que comprovassem
a sua tese, ainda fazia uso de pensamentos de filósofos estoicos que sequer garantiam a
existência dos deuses, mas apenas afirmavam pensamentos prováveis sobre a questão, muitas
vezes exemplificando com elementos que estão mais associados ao plano humano.
Acerca dos argumentos seguintes: ex praesensione rerum futurarum, “do
pressentimento das coisas futuras”; ex perturbationibus, “das perturbações”; ex commoditate
rerum, “da comodidade das coisas”; caelique constantia, “e da constância do céu”, tenta-se a
refutação por argumentos que se encontram dispersos ao longo do Livro II135. Ele parte de
concepções semelhantes e afirma que os pensamentos sobre tais questões não são de Balbo,
mas de filósofos de sua escola, pois Chrysippum dicere aiebas, quoniam esset aliquid in
rerum natura, quod ab homine effici non posset136, “dizias137(que) Crisipo afirmava pois que
na natureza das coisas havia algo que não pudesse ser feito pelo homem”. Assim, Cota tenta
criticar uma natureza que não poderia ser realizada pelo homem, como a relação de constância
dos elementos naturais, e também a extensão de atributos humanos às características celestes
e das divindades.
Como poderiam os homens ter atributos semelhantes e provenientes dos deuses, como a
mente e razão, indaga Cota, se aqueles não seriam capazes de realizar atos e obras com
movimentos constantes como as que se verificam na natureza das coisas celestes? A esse
respeito sobre os quais Balbo havia afirmado tal relação entre os homens e os deuses, Cota
direciona sua crítica à concepção da razão que está presente no mundo e de que o mundo é um
deus.

133
Idem, II, 13, 14.
134
Ibidem, III, 17.
135
De Natura Deorum, II, 13, 14, 49, 54.
136
Idem, III, 18.
137
Verbo referente ao personagem Balbo.
157
O personagem segue a estrutura de sua confutatio e lança mão de mais um argumento
sobre as perturbações observadas na natureza, seu acontecimento e permanência ao longo dos
anos, como se verifica em:

De perturbationibus caelestibus et maritimis et terrenis non possumus dicere,


cum ea fiant, non esse multos, qui illa metuant et a dis inmortalibus fieri
existument (De Natura Deorum, III, 16)

Sobre as perturbações celestes, e marítimas, e terrestres não podemos falar,


já que elas acontecem, não (que) haja muitos, que as temem e pensam (que)
são provocadas pelos deuses imortais.

É importante se verificar neste ponto a incapacidade persuasiva de Cota, na defesa dos


ideais acadêmicos. Como se pode considerar convincente o suficiente o uso de loci
comprobatórios de sua teoria cujo argumento é o de que não se pode falar? Por que non
possumus dicere?, “não podemos falar?”, ou mais propriamente, por que os acadêmicos não
podem falar acerca dos elementos da natureza? De perturbationibus caelestibus et maritimis
et terrenis? “Sobre as perturbações celestes, e marítimas, e terrestres?”. Não seria mais
conveniente a Cota não retomar os argumentos de Balbo, já que aquele não teria explicações
plausíveis a dar? Quais recursos estilísticos ou argumentativos estaria sugerindo o autor? É
evidente que o autor não segue seus próprios conceitos a respeito de estruturação discursiva e
tais indagações, que se mostram sem respostas ao longo do Livro III, comprovam um
problema retórico do acadêmico, pois este propõe argumentos que não se fundamentam nem
são utilizados.

A ausência de ideias a serem defendidas por Cota, que lhe garantam lançar a
obscuridade sobre a teoria estoica, é demonstrada nos dizeres de Balbo:

Itaque maximae res tacitae praeterierunt, de diuinatione, de fato, quibus de


quaestionibus tu quidem strictim (De Natura Deorum, III, 19)

E assim os argumentos mais importantes têm passado silenciosos, sobre a


divinação, sobre o destino, sobre tais questões tu certamente (tens falado)
concisamente.

Cota fala strictim, “concisamente”, de tal modo que até o parágrafo 19 do Livro III foi
incapaz de defender o que pretendia, apenas afirma repetidamente que deos esse, “os deuses
existem”. Além de não demonstrar clareza e objetivos temáticos, também não fez uso no

158
exordium de sugestões que conduzissem ao esclarecimento da questão. Logicamente que esse
parece ser o maior objetivo do autor ao propor um diálogo sobre a natureza dos deuses.
É importante perceber que não é à toa a afirmação do estoico de que maximae res
tacitae praeterierunt, “os argumentos mais importantes têm passado despercebidos”, pois não
são levantadas ideias novas sobre a natureza dos deuses, ou mesmo de diuinatione, “sobre a
divinação”, ou de fato, “sobre o destino”. Cota se limita a retomar os dizeres de Balbo,
criticando-os, mas não se utiliza de argumentos plausíveis e convincentes. Essa ausência de
elementos argumentativos conduz a algumas indagações: será que o acadêmico estava
preparado para a discussão temática em questão? O que pretendia Cícero quando tentou levar
a obscuridade sobre todas as coisas? Isto conduz a evidências de que o autor não utiliza de
recursos retóricos propostos por ele em livros que versam sobre o assunto e que, mais uma
vez, se verifica que não há uso dos conceitos dialéticos proposto por Aristóteles em sua
Retórica.
É evidente que Cota está apenas contrariando o que foi afirmado pelo estoico, sem
mostrar ou discutir questões importantes acerca da natureza dos deuses. Ele se utiliza da
diuisio de Balbo e praticamente usa suas mesmas palavras acrescidas de concepções
negativas.
A maior parte da argumentação de Cota se baseia em demonstrar quales essent, “qual
seja sua natureza”, situa-se entre os parágrafos 20 e 64 do Livro III, basicamente critica os
argumentos138 que Balbo estabelecera a respeito da construção dos deuses pelos seres
humanos, valendo-se do princípio da utilidade e da força natural que era observada em cada
divindade. Além disso, censura o hábito comum de se elevarem aos céus homens ou heróis
considerados ilustres pela tradição, como Hércules, Castor e Pólux, bem como repreende a
pseudoetimologia que os estoicos relacionam às palavras empregadas para nomear os deuses,
muitas vezes valendo-se de raízes fictícias ou de mera suposição.
O princípio argumentativo parte, neste momento, da afirmação de que esse mundum
deum139, “o mundo é um deus”, que insistentemente é retomada por Balbo, pois se considera
que se o mundo é capaz de realizar ações que não podem ser conseguidas por qualquer outro
ser, como o eterno movimento dos astros, então o mundo é superior ao homem que é incapaz
de tal realização, sendo assim o mundo deve ser, na concepção estoica, considerado um deus
em si mesmo.

138
De Natura Deorum, II, 62-74.
139
De Natura Deorum, II, 16, 21, 30, 36, 45 e 47.
159
Associado ao princípio da capacidade de ação constante está o conceito da
racionalidade que apresenta o mundo, uma vez que se considera que nihil autem mundo
melius; ratione igitur mundus utitur140, “nada, porém, é melhor do que o mundo, então o
mundo se utiliza da razão”, assim se considera que, se há a possibilidade de fazer uso da
razão, o que se utiliza dela é bem superior a qualquer outro ser que seja desprovido de tal
capacidade. Através da razão também parece que o mundo torna-se sensível, beato e,
principalmente, sábio.
Assim é preciso observar que a concepção estoica sobre os deuses se utiliza de
conceitos que muito aproximam os deuses, neste caso especificamente o mundo, dos seres
humanos, e essas afirmações garantem a Cota uma possibilidade de refutação, uma vez que
deixam muitas lacunas sobre o que é afirmado, ou seja, o mundo é um deus, que está muito
acima das possibilidades humanas de realização, mas que possui características que também
estão presentes nos seres humanos. Não surgiriam desse modo falhas nos conceitos que
diferenciem os deuses dos mortais? O personagem Balbo parece não perceber que sua teoria
segue algumas claras contradições.
Além disso, não há possibilidades de ser considerar o mundo como insipiente, fato que
pode ser relacionado aos homens. Os homens podem adquirir o conhecimento, por sua vez, o
mundo, segundo os estoicos, deve ser considerado sábio, mesmo que eles não demonstrem
como o mundo adquiriu sua possível sabedoria, o que é considerada uma falha argumentativa.
É evidente que caso se associasse a aquisição da sabedoria ao mundo, seria necessária
também a possibilidade de se admitirem os seres humanos mais sábios do que o mundo. Isso
geraria uma incoerência argumentativa ainda maior, pois como o deus, chamado mundo,
poderia ter criado uma natureza perfeita e constante.
Pode-se ainda admitir a estruturação silogística do discurso estoico, em se observando
o conceito de deus associado ao mundo, pois parece que sabedoria e virtude ocupam lugares
bem próximos e são concedidas pelo mundo. O mundo sábio e virtuoso, que é um deus,
concede virtude ao homem, que pode fazer uso de sua sabedoria à semelhança do mundo.
Essa problemática corrobora ainda mais a lacuna argumentativa do estoico, pois
afirmar que a sabedoria e a virtude são concedidas ao homem pelo mundo é um fato que pode
ser considerado e que foi explicado por Balbo, pois há o princípio da procedência, porém a
origem da sabedoria do mundo não é evidenciada e sofrerá críticas pertinentes do acadêmico.

140
De Natura Deorum, II, 21.

160
Balbo ainda afirma141 que o problema de entendimento de sua teoria está associado à
fragilidade humana de percepção das coisas, pois o homem é incapaz de separar com acerto o
que os olhos percebem, ou seja, o caráter exterior das coisas. Isso conduziu tanto os
ignorantes quanto os pseudofilósofos a um equívoco que se estendeu por toda tradição, ou
seja, a antropomorfização dos deuses. Através de tal afirmação, o estoico tenta garantir o
argumento de que um deus não deve ter a forma humana, mas uma forma que lhe é superior.
Argumentos como esses abrem precedente para questionamentos importantes a
respeito do que Balbo afirmara anteriormente e que Cota retoma com acerto. Muitas questões
são levantadas: se os homens recebem a razão e a sabedoria do mundo, como se explica a
possibilidade da insipiência humana? Se o ser humano não possui a melhor das formas, por
que Balbo passa grande parte de seu discurso explicando a perfeição de funcionamento do
corpo humano? Se um deus não pode ter uma forma humana, qual seria sua forma?
Esses argumentos são sugeridos por Balbo, ao longo do Livro II, mas o estoico mostra
em muitas passagens uma contradição visível. Ainda usa ao longo de seu discurso a palavra
mundus, “mundo”, de forma indiscriminada, pois esta é usada, ora significando planeta, ora
com o sentido de cosmos.
Tais lacunas argumentativas são retomadas acertadamente por Cota, como forma de
criticar o pensamento do estoico a cerca da concepção de deus. Assim o acadêmico afirma:

Sed cum mundo negas quicquam esse melius, quid dicis melius? Si
pulchrius, adsentior; si aptius ad utilitates nostras, id quoque adsentior; sin
autem id dicis, nihil esse mundo sapientius, nullo modo prorsus adsentior,
non quod difficile sit mentem ab oculis seuocare, sed quo magis seuoco, eo
minus id, quod tu uis, possum mente comprendere. (De Natura Deorum,
III, 21)

Mas quando (tu) negas haver alguma coisa melhor do que o mundo, o que
dizes (ser) melhor? Se (é) mais belo, concordo, se (é) mais adequado às
nossas necessidades, concordo com isto também, mas se dizes isto, nada é
mais sábio do que o mundo, de modo algum concordo inteiramente, não
porque seja difícil separar a mente dos olhos, mas (porque) quanto mais
separo, menos posso compreender com a mente o que tu desejas. “Nada há
de melhor do que o mundo na natureza das coisas.”

Mais uma vez se estabelece a comparação entre elementos distintos apresentados por
Balbo, ou seja, a crítica está baseada em torno da questão da possibilidade de entendimento de
qual intelecto vigora no mundo e qual a capacidade de percepção dos humanos. Cota vai além
141
De Natura Deorum, II, 45.

161
e tenta dar subsídios a seus argumentos, mas mostra certa fragilidade argumentativa quando
afirma que concorda com a beleza do mundo ou com um mundo que sacia nossas
necessidades. Pode-se perguntar: com que outro mundo Cota compara o que é visível a nossos
olhos? O personagem Cota não demonstra interesse em que Balbo se pronuncie sobre o fato e
parece seguir os mesmos passos deste, pois várias lacunas començam a surgir em seu
discurso.
Também é verificável que Cota se insere sem perceber na teoria estoica de que há
muitos seres humanos que são incapazes de separar a razão da visão, uma vez que concorda
com a beleza do mundo, ou seja, Cota para isso leva em consideração o plano da visão, mas
quando passa ao plano do intelecto ou da sabedoria do mundo, o acadêmico é incapaz de
perceber a diferenciação a que pretende chegar o estoico.
Outra parte que se considera censurável na teoria estoica está associada ao conceito de
regularidade que é visível no mundo, como afirma Cota:

Sed non omnia, Balbe, quae cursus certos et constantis habent, ea deo potius
tribuenda sunt quam naturae. (De Natura Deorum, III, 24)

Mas não todas aquelas (coisas), Balbo, que têm os cursos regulares e
constantes que devem ser atribuídos a um deus mais do que à natureza.

Esse argumento vai de encontro ao princípio da regularidade que é observado por


Balbo, pois dos dois movimentos apresentados, unum suum, alterum externum, “um próprio,
outro externo”142, ou seja, um que é produzido pelo próprio corpo que é regular e eterno, o
outro que depende de uma força exterior que age para fazer com que o corpo entre em
movimento. Considera-se mais sublime o movimento próprio, que está presente apenas na
alma, como o mundo é animado, segundo o estoico, então nele se apresenta o movimento
próprio que é regular e eterno.
No entanto, Cota observa que esse princípio de regularidade em nada prova a
existência de uma divindade, pois não se observam corretamente outros elementos da natureza
que parecem também ter um curso regular, como feruore Oceani, “a agitação do Oceano”,
aestus maritimi, “as correntes marítimas”, tertianas febres et quartanas143, “as febres que
voltam de três em três e de quatro em quatro dias”.

142
De Natura Deorum, II, 32.
143
Idem, III, 24.
162
Observa-se que o acadêmico tenta refutar os exemplos de Balbo a partir da
comparação de elementos distintos, já que não se vale mais uma vez da devida correlação
entre os elementos. O estoico cita a regularidade do mundo, considerando-o como um todo na
observação da sua eterna regularidade; Cota, por sua vez, compara o todo, ou seja, o mundo
com as partes que o compõem, como os elementos citados. Nada mais seria feruore Oceani,
“a agitação do Oceano”, por exemplo, do que a concretização do princípio de regularidade da
natureza que observa Balbo.
Assim a crítica é feita com base na observação de elementos distintos, pois Balbo
sobrepõe natureza e mundo, mostrando que este engloba aquela de modo a estabelecer que a
natureza é parte do mundo que ele acredita ser um deus. Por sua vez, o acadêmico distorce
esse princípio associativo ao explicar que o mundo parece estar completamente dissociado de
uma parte de sua natureza, como a agitação do Oceano. Sendo assim, Cota desaprova
visivelmente o conceito desenvolvido sobre a harmonia e a conformidade entre o mundo e a
natureza, e sua ininterrupta correlação. Afirma que seria um argumento aceitável, caso se
considerasse o mundo e a natureza como elementos com um único espírito divino.
Ainda afirma que a harmonia ou o princípio de regularidade que apresenta o mundo é
que se conserva através das forças naturais, considerando-os como algo distinto. Assim se
acredita que quanto maior sua espontaneidade de execução pela natureza, menos se deve
acreditar que seja uma ação divina, portanto o deus e a natureza apenas se relacionam através
de um elo harmônico que há entre eles.
Partindo de tais presupostos, acrescenta-se o conceito de que não houve uma
explicação admissível de Balbo do que seria um ser racional e sensível, sobre isso Cota
afirma:

Omne enim animal sensus habet; sentit igitur et calida et frigida et dulcia et
amara nec potest ullo sensu iocunda accipere, non accipere contraria; si
igitur uoluptatis sensum capit, doloris etiam capit; quod autem dolorem
accipit, id accipiat etiam interitum necesse est. (De Natura Deorum, III, 32)

Pois todo ser animado tem senso, então sente, tanto (as coisas) quentes,
quanto as frias como as doces e as amargas, não pode com algum senso
perceber as agradáveis, não perceber o (seu) contrário; então se percebe o
senso de prazer, percebe também o de dor; o que porém percebe a dor, é
necessário (que) perceba também a morte.

Há nesse pensamento de Cota uma inversão atributiva dos elementos que estão
presentes tanto nas divindades, quanto nos homens. Na concepção estoica omne animal
163
sensus habet, “todo ser animado tem senso”, ou seja, Balbo afirma que tanto os sentidos,
quanto a razão chegam aos homens por concessão divina, porém esse conceito é visto pelo
acadêmico como desencadeador de uma problemática que merece ser refutada. Se os deuses
sentem, eles percebem as mesmas sensações humanas calida et frigida et dulcia et amara,
“tanto (as coisas) quentes, quanto as frias, como as doces e as salgadas”, entre outras tantas.
Isso desencadeia um princípio um tanto contraditório, pois como se entenderia um deus que é
imortal e que sente as mesmas coisas que os seres mortais.
Dessa forma, acredita-se que se um deus sensível, Balbo confitendum est esse
mortale144, “deve reconhecer que é mortal”. Assim o pensamento estoico se apresenta
incoerente em relação princípio da sensibilidade divina, pois um deus, sendo superior, não
pode apresentar sentimentos atribuídos a seres inferiores, não deveria sentir prazer ou dor,
fato que poderia ocasionar uma necessidade de resolução tipicamente humana, pois qual
equilíbrio e organização poderiam ser provenientes de uma divindade que poderia ter
necessidade de, por exemplo, sanar sua própria dor, sendo subjulgado por ela?
Isso pode ser associado ao um princípio de aversão natural típica dos seres animados e
sensíveis, ou seja, naturalmente os seres animados, portanto mortais, têm a necessidade de se
afastarem do que é contra sua natureza ou que podem lhe ocasionar algum tipo de prejuízo.
Esta consideração acerca da natureza afastaria o equilíbrio, que o acadêmico acredita ser
necessário a um deus, pois, além de este estar acima da natureza sensível aos humanos, não
pode ser constantemente subjulgado por ela.
Caso se admita a possibilidade de um deus que sente, deve-se também admitir que
ele está sujeito também a muitas outras sensações típicas dos seres sensíveis, como a morte.
Sendo assim deve-se também aceitar que nullum igitur animal est sempiternum145, “nenhum
ser animado é eterno”. Esse é um dos principais argumentos a que recorre Cota para tentar
provar que o pensamento do estoico é contradório e que fere os fundamentos do que este
pretende com seu discurso.
Em relação ao princípio da sensus presente no deus, mais uma vez deve-se observar
que Cota apenas afirma que a teoria estoica a esse respeito está inteiramente equivocada, e ele
afirma constantemente ao longo de seu discurso que está bastante claro para ele a existência
divina, mas não lança mão de argumentos que a comprovem ou que sejam mais admissíveis
que os de Balbo e os de Veleio.

144
De Natura Deorum, III, 32.
145
Idem, III, 34.
164
Após as dúvidas levantadas acerca do senso e da razão presente no deus, Cota tenta
estabelecer argumentos mais específicos, neste momento do discurso, associando-os às
crenças de diversos povos, como afirma em:

Piscem Syri uenerantur, omne fere genus bestiarum Aegyptii


consecrauerunt; iam uero in Graecia multos habent ex hominibus deos (De
Natura Deorum, III, 39)

Os sírios veneram o peixe, os egípcios consagram quase todo gênero de


animais; já na verdade na Grécia existem muitos deuses (nascidos) de
homens.

Esses argumentos suscitam questões mais específicas que, segundo o acadêmico, não
podem ser aceitas em se considerando os ideais de Balbo. Se não houve vários problemas que
não foram explicados, quando houve a relação comparativa entre a forma divina e a humana,
que se pode pensar a respeito dessa comparação com animais que são considerados inferiores
e irracionais?
Pode-se ainda estabelecer a seguinte indagação entre os argumentos: se o homem
recebe a razão do deus que também é dotado deste mesmo princípio, por que eles não são
capazes de discernir racionalmente o que seja um deus? Veneram os peixes como os sírios e
os egípcios. Fatores como esse, retomam mais uma vez o princípio argumentativo de Cota, ou
seja, a tentativa de estabelecer a obscuridade sobre todos os argumentos apresentadas.
Deve-se ainda atentar para o que sugere o acadêmico, pois ele não fica apenas no
plano do que talvez se pudesse considerar como povos menos desenvolvidos intelectualmente,
mesmo que essa hipótese não tenha sido sugerida pelos seus interlocutores. Ao afirmar que
iam uero in Graecia multos habent ex hominibus deos, “já na verdade na Grécia existem
muitos deuses (nascidos) de homens”, elucida uma inversão de valores presente no
pensamento grego.
Cota não tenta com isso quebrar a tradição grega, que acreditava na possibilidade da
geração de seres provenientes da copulação entre deuses e homens, mas critica a aceitação de
seres humanos quasi nouos et adscripticios ciues in caelum receptos putant146, “que foram
recebidos como cidadãos novos e admitidos no céu”.
Tal argumento não foi levantado por Balbo, fato que conduz a indagações importantes
acerca da crítica e da estruturação discursiva: primeiramente, se Cota anunciou no exordium

146
De Natura Deorum, III, 39.
165
que iria retomar apenas os argumentos apresentados por Balbo, por que houve essas
referências? Depois, por que Cota não explicita os argumentos levantados?
Assim fica explícita uma falha tanto estrutural, quanto conceitual do discurso de Cota,
uma vez que aquela não estava prevista no exordium, como anunciam os ideais retóricos, e
esta sequer é levada em consideração, pois não há seu desenvolvimento. Assim se observa
uma fuga dos objetos anunciados, fato que conduz ao pensamento de que Cota é incapaz de
apenas contrariar as ideias apresentadas, pondo em dúvida a pretensão do autor de levar a
obscuridade sobre todas as coisas.
Depois de ter se desvirtuado um pouco de seus ideais, Cota retoma a sua proposição
inicial e tenta comentar a pseudoetimologia de Balbo, pois assim ela pode ser considerada em
muitas de suas explicitações. Porém, não se deve pensar que aquele tece comentários
realmente significativos e se vale sempre acertadamente dos radicais corretos que compõem
as palavras que nomeiam deuses e deusas.
Antes de tecer propriamente críticas direcionadas à ideia de concessão divina, Cota
repete alguns argumentos que havia apresentado acerca de se considerar como deuses os
filhos gerados entre deuses e mortais. Porém, é necessário observar que grande parte de seu
discurso é destinado a esse fim, ou seja, a crítica à etimologia das palavras que nomeiam os
deuses.
Essa tentativa de crítica se estende por 20 parágrafos147, em que é nítida a percepção
da ausência dos princípios retóricos no discurso de Cota. Primeiramente, há uma proposição
de crítica inicial que é apenas parcialmente cumprida pelo personagem; em segundo lugar, as
explicações que são dadas pelo acadêmico não seguem os mesmos fundamentos explicativos
do estoico ao qual se poderiam associar os conceitos de dialética.
Nos referidos parágrafos148 do discurso de Cota, verifica-se uma maior possibilidade
de crítica ao próprio acadêmico que profere as seguintes palavras:

Sed eo iam, unde huc digressi sumus, reuertamur. (De Natura Deorum, III,
60)

Mas voltemos agora àquilo de onde nos afastamos para este ponto.

147
De Natura Deorum, III, 42-62.
148
Idem.

166
O próprio personagem afirma que se afastou do que objetivava. Assim, pode-se
questionar de qual recurso retórico Cota estava fazendo uso, pois não há a verificação em seu
discurso de que esse afastamento declarado por ele mesmo iria lhe garantir qualquer benefício
argumentativo. Poder-se-ia pensar nesse possível benefício, caso o personagem estivesse
tentando conduzir por um caminho incorreto um personagem que fosse proferir um discurso
posterior ao seu, fato que não acontece.
Esse afastamento está associado a explicações de argumentos, que não são verificados
com tamanha insistência no discurso de Balbo. Cota se limita basicamente a citar variantes de
mitos do nascimento de alguns deuses, acrescenta pouca fundamentação pertinente a um
objeto determinado a que se pretende chegar, ou seja, as falsas etimologias apresentadas no
Livro II.
Algumas palavras que nomeiam os deuses são explicadas etimologicamente, mas à
grande maioria delas há apenas referências rápidas, que são passíveis de questionamento,
como afirma Cota:

Principio Ioues tres numerant ii, qui theologi nominantur (De Natura
Deorum, III, 53)

Primeiramente aqueles que são chamados de teólogos enumeram três


Jupíteres.

Ao explicar que os teólogos Ioues tres numerant, “enumeram três Jupíteres”, não
estaria Cota apresentando um argumento deslocado ou que já devia ter sido apresentado? É
perceptível a pretensão do personagem com tal afirmação, uma vez que tenta expor que não é
claro, quando se cultua Júpiter, qual Júpiter os romanos estariam cultuando. No entanto, o
personagem deveria se direcionar ao que propõe como objeto de crítica nos referidos
parágrafos149.
O mesmo ocorre, quando Cota fala de Vulcano, Mercúrio, Apolo, Dioniso:

Volcani item complures[...] Mercurius unus Caelo patre, Die matre natus[...]
alter Valentis et Phoronidis filius[...] tertius Ioue tertio natus et Maia[...]
Apollinum antiquissimus is, quem paulo antea e Volcano natum esse dixi[...]
Corybantis filius[...] tertius Ioue tertio natus et Latona[...] Dianae item
plures[...] Dionysos multos habemus (De Natura Deorum, III, 55-58)

149
De Natura Deorum, III, 42-62.

167
Do mesmo modo (há) muitos Vulcanos[...] Um Mercúrio (nascido) do pai
Céu, da mãe Dia[...] um outro filho de Valente e de Forônide[...] um terceiro
nascido de Júpiter e de Maia[...] O mais antigo dos Apolos (é) aquele (que)
um pouco antes foi dito ter nascido de Vulcano[...] o outro (é) filho de
Coribante[...] o terceiro, nascido do terceiro Júpiter e de Latona[...] Também
há muitas Dianas[...] Temos muitos Dionisos.

Se a intenção de Cota é questionar ou até mesmo rejeitar as variantes dos mitos


provenientes da tradição grega, pois considera que poderia haver perturbação nas práticas
religiosas romanas, deveria então o personagem explicar qual sua direta ligação com os
radicais formadores das palavras que nomeiam os deuses. Se a crítica a que se propõe nessas
passagens diz repeito à etimologia, então se pode questionar também por que Cota prefere
conceitos que não remotam a ela.
Mais acertadamente estariam seus argumentos se estivessem situados em outro
momento de sua confutatio. Se há a admissão de Volcani complures, “muitos Vulcanos”, seus
argumentos deveriam esclarecer que isso apenas acentua uma crença vulgar em seres que
provavelmente não seriam deuses, ou até mesmo em forças naturais que poderiam ser fruto de
um mesmo deus regente. O mesmo princípio se aplicaria ao que se relaciona a Mercurius,
“Mercúrio”, a Apolo e à deusa Diana. Também se pode considerar que não há crítica alguma
em se retomar a genealogia de deuses presentes na tradição literária grega.
Outro fator problemático neste momento do discurso de Cota é a ausência de uma
crítica bem fundamentada em princípios que comprovem o que ele está demonstrando, pois
seu objetivo está claro desde seu primeiro pronunciamento, no Livro I, ou seja, garantir a
permanência da obscuridade temática. Isso se observa desde suas primeiras palavras, porém a
preservação dessa obscuridade é fragilizada no momento em que o personagem deixa de
refutar os argumentos apresentados por Balbo. Recordar as várias genealogias de um mesmo
deus não lhe garante a fundamentação de seus princípios filosóficos: primeiramente, porque
não explica o que pretende com tais genealogias; segundo, porque tais argumentos não foram
apresentados por Balbo em seu discurso; terceiro, porque o próprio personagem não segue o
enunciado no seu exordium.
Sobre as etimologias das palavras que nomeiam os deuses, há apenas uma passagem,
em que há referência direta, a seu respeito, como Cota afirma:

“Saturnus, quia se saturat annis; Mauors, quia magna uertit; Minerua, quia
minuit aut quia minatur; Venus, quia uenit ad omnia; Ceres a gerendo.”
Quam periculosa consuetudo. In multis enim nominibus haerebitis: quid

168
Veioui facies, quid Volcano? Quamquam, quoniam Neptunum a nando
appellatum putas, nullum erit nomen, quod non possis una littera explicare,
unde ductum sit; in quo quidem magis tu mihi natare uisus es quam ipse
Neptunus. (De Natura Deorum, III, 62)

“Saturno (é chamado assim) porque se alimenta de anos; Marte, porque


destrói grandes (coisas); Minerva, porque diminui ou porque faz ameaças;
Vênus, porque vem em todas as coisas; Ceres, do gerar.” Quão perigosa é
(esta) relação. Pois vos embaraçareis em muitos nomes. Que farás com
Véjove, que (farás) com Vulcano? Contudo, já que pensas (que) Netuno foi
chamado (assim) por nadar, nenhum nome haverá que não possas explicar
com uma só letra, de onde tenha sido derivado; nesta questão certamente tu
me pareces nadar mais do que o próprio Netuno.

Este momento do discurso de Cota pode ser considerado como o de maior fragilidade
argumentativa, o personagem demonstra uma incerteza que é incompatível com a segurança
que apresentara anteriormente. Estabelecendo-se as dividas comparações, é perceptível que o
personagem Cota se estende por 20 parágrafos150 para refutar as ideias que foram
apresentadas por Balbo em apenas 7151, porém seus argumentos, apesar de mais extensos, são
incapazes de produzir o efeito da obscuridade conceitual desejada pelo acadêmico.
Resume-se o discurso acadêmico, em sua maior parte, apenas à mera repetição das
palavras do estoico, como se observa, quando se afirma que Saturno é assim chamado quia se
saturat annis, “porque se alimenta dos anos”; construção semelhante é usada por Balbo, quod
saturaretur annis152, “porque se alimenta dos anos”. Assim, pode-se questionar qual princípio
retórico está sendo aplicado por Cota que se baseia na mera repetição de argumentos de seus
adversários. Com tal atitude, o acadêmico coloca-se na contramão do desejável, ou seja,
confirma que a etimologia usada por Balbo pode ser aceitável, uma vez que não há
explicações que tentem invalidá-las.
Do mesmo modo, age em relação à palavra Marte que acredita ser usada quia magna
uertit, “porque destrói grandes (coisas)”, observa-se então apenas a retomada de qui magna
uerteret153, “que destrói grandes (coisas)”. Assim o acadêmico abre espaço, no que se refere
ao seu discurso, para questionamentos semenhantes aos que fizera ao estoico no início do
Livro III, pois não tece comentários explicativos sobre a etimologia de Marte. Sobre tal
questão, pode-se afirmar que seu discurso fica aquém do desejável e até mesmo que Balbo lhe
é superior neste ponto, uma vez que o estoico ao menos sugere explicitações acerca dos

150
De Natura Deorum, III, 42-62.
151
Idem, II, 64-70.
152
Ibidem, II, 64.
153
Ibidem, II, 67.
169
radicais formadores das palavras que nomeiam os deuses, e Cota, por sua vez, sequer se
posiciona sobre as explicitações do seu adversário.
O acadêmico ainda repete o discurso de Balbo, afirmando que Minerva é assim
chamada quia minuit aut quia minatur, “porque diminui ou porque faz ameaças”, semelhante
aos dizeres de Balbo uel minueret uel minaretur154, “reduzia ou ameaçava”. Nem o
acadêmico, nem o estoico explicam as formas verbais minuo, “reduzir”, e minor, “ameaçar”,
como, em se considerando o processo evolutivo dessas palavras, pode-se chegar ao
substantivo que nomeia a deusa. Assim, não deixam claro se os personagens consideraram,
em sua etimologia, as ações desempenhadas pela deusa e a sua aproximação significativa, ou
se consideraram o processo evolutivo da palavra. Sendo esta afirmação possível, qual dos dois
verbos primeiramente gerou o nome da deusa? Não estando isso claro, também é importante
observar, fato que não foi verificado pelos personagens, a possibilidade de o nome da deusa
Minerva ter originado os verbos minuo, “reduzir”, e minor, “ameaçar”, em um processo de
derivação sufixal.
Afirmações inconsistentes também são feitas em relação à palavra Vênus que é
considerada como parte de todas as coisas, quia uenit ad omnia, “porque vem em todas as
coisas”, o que difere dos dizeres de Balbo, ao afirmar que Venerem nostri nominauerunt,
atque ex ea potius uenustas quam Venus ex uenustate155, “os nossos nomearam de Vênus e
dela (vem) de preferência a elegância do que da elegância, Vênus”.
Muitas indagações podem se relacionar ao que afirma Cota sobre a palavra Vênus,
uma vez que ele não prepara o argumento para o que deseja com a afirmação e o seu
pensamento se mostra vago e sem coesão. Como teria o personagem chegado à conclusão de
que em todas as coisas há a presença de Vênus ou mesmo de uma beleza que seria
proveniente da deusa? Verifica-se também um desvio proposital do personagem Cota, pois ele
mescla as suas palavras com as de Balbo como se objetivasse fazer com que suas afirmações
mais absurdas sejam associadas ao estoico.
Cota também não deixa claro qual pensamento o conduziu a afirmação de uma beleza
que está presente em tudo, já que a palavra omnia, “tudo”, e Venus, “Vênus”, possuem
radicais bastante diferentes. Assim, o personagem tenta induzir ao pensamento de que a
atribuição da beleza seria apenas significativa, conceitual, e não através da raiz que compõe a
palavra.

154
De Natura Deorum, II, 67.
155
Idem, II, 69.
170
Uma tentativa de explicação da palavra Vênus, a partir da aproximação dos radicais
que compõem o substantivo comum uenustas, “beleza, elegância”, e substantivo próprio
Venus, “Vênus”, é feita por Balbo, porém de um modo bastante inconsistente, pois afirmar
que ex ea, “dela (Vênus)”, vem uenustas, “a elegância”, mais do que ex uenustate, “da
elegância”, vem Vênus, não demonstra qual critério foi levado em consideração para se fazer
tal afirmação. Percebem-se os mesmos indícios de incorreção relativos ao radical das palavras
Venus, cujo radical é uener-, e o radical de uenustas, cujo radical é uenustat-. Sendo assim,
pode-se pensar que ambos os personagens levaram em consideração apenas a primeira sílaba
dos dois substativos, Venus e uenustas, e ainda apenas fizeram associações com as ações
desempenhadas e à qual está vinculada a deusa Vênus, ou seja, a beleza e a elegância.
Por sua vez, a palavra que nomeia a deusa Ceres é retomada por Cota e apenas
associada a seus atributos significativos; etimologicamente é dita por Balbo156 como sendo
proveniente do verbo gero, “gerar, produzir”, devido à semelhança entre o substantivo Ceres
e o verbo gero. Segundo o estoico a palavra Ceres seria a mesma que gero, mudada apenas a
primeira letra do radical. Vale salientar que os dois personagens negligenciam explicações
plausíveis que garantam as suas afirmações: o estoico apenas afirma que há a mudança no
início da raiz do verbo; o acadêmico afirma que há nesta associação uma afirmação quam
periculosa, “muito perigosa”. A partir dessas verificações, pode-se dizer que ambos os
personagens não utilizam princípios válidos que garantam suas afirmações, pois observar a
semelhança entre palavras não faz com que o estoico possa ser considerado um etimólogo,
nem o acadêmico, ao questionar que é quam periculosa, “muito perigosa” qualquer que seja a
afirmação, torna-o hábil na arte retórica ou faz dele um filólogo.
Seguindo os mesmos equívocos observados na palavra Ceres, segue-se a análise de
Neptunus, “Netuno”, cujo radical é apresentado157 como sendo proveniente do verbo no,
“nadar”, e é criticado por Cota, pois este afirma que nullum erit nomen, quod non possis una
littera explicare, unde ductum sit, “nenhum nome haverá que não possas explicar com uma só
letra, de onde tenha sido derivado”.
Essa observação certamente se mostra como a que apresenta um princípio satisfatório
de argumentação por parte de Cota, porém ele não aprofunda seus comentários e se limita a
apenas uma observação superficial como fizera com o substantivo Ceres. Seriam os
personagens mais coerentes com a análise acertada do verbo no, “nadar”, caso tivessem

156
De Natura Deorum, II, 67.
157
Idem, II, 66.
171
afirmado que este é proveniente do verbo grego , “nadar”, e depois tentassem demonstrar
se esse radical que origina o verbo latino no apresenta ou não ligação com o substantivo que
nomeia o deus Neptunus.
Apesar de retomar alguns pontos considerados frágeis na argumentação de Balbo,
Cota parece não ter argumentos satisfatórios para estabelecer uma crítica que se sustente
como princípio argumentativo em se considerando a etimologia das palavras que nomeiam os
deuses, pois não retoma outros tantos deuses citados por Balbo e que apresentam explicação
insatisfatória ou equivocada, como Juno, Plutão, Diana, Sol.
Diante disso, pode-se questionar que, não tendo comentado satisfatoriamente tais
palavras, Cota não tenha um conhecimento acerca de suas etimologias ou mesmo que
concorda com os argumentos de Balbo. Assim, qual seria o interesse do acadêmico em
retomar tais passagens do Livro II? Parece evidente que é uma passagem acadêmica em que o
personagem negligencia seus ideais de levar a obscuridade a todas as coisas.
Cota então abre mão de criticar considerações que ferem a tradição e trazem à tona
conceitos equivocados sobre as palavras que nomeiam os deuses, como se observa na palavra
Iuno158, “Juno”, que, segundo Balbo, assim como a palavra Júpiter, é proveniente do verbo
iuuo, “ajudar, auxiliar”.
Considerações como essa se mostram demasiadamente equivocadas, pois é sabido que
a palavra Júpiter é proveniente do grego , “Zeus Pai”, e que a tentativa de
explicação do Iupiter através das sílabas iniciais, como foi feito anteriormente, associando-a
ao verbo iuuo, “ajudar”, é inteiramente deturpada. Na verdade, a sílaba inicial de Iupiter é a
variação da palavra grega Zeus > Zu > Ju-. Sendo assim, pode-se considerar que o
personagem Cota não tece tais críticas, pois desconhece a origem da palavra Júpiter, assim
como demonstra desconhecer também a etimologia de Plutão, Diana, Sol, pois não comenta
os possíveis equívocos de Balbo a respeito da etimologia desses deuses.
É notória a divergência de análise que demonstram os dois personagens, ora tentam
dar explicações pelas raízes das palavras que nomeiam os deuses, ora apelam para as
possíveis ações provenientes deles para explicar de acordo com o que lhes convém os seus
mais variados pensamentos sobre as divindades. Isso mostra que ambos os personagens não
têm conceitos difinidos sobre o assunto que abordam e que não seguem os preceitos retóricos
anunciados em seu exordium.

158
De Natura Deorum, II, 66.
172
Dando continuidade a sua confutatio, Cota anuncia a refutação dos dois últimos
argumentos de Balbo, ou seja, a regência do mundo pelos deuses e sua deliberação pelas
humanas:

Tum ab is mundum regi, postremo consulere eos rebus humanis. (De Natura
Deorum, III, 6)

Então (que) o mundo é regido por eles; enfim (que) deliberam por aquelas
coisas humanas.

Estes argumentos são demonstrados concomitantemente, diferentemente da refutação


dos dois argumentos anteriores de Balbo sobre a existência dos deuses e a sua natureza, os
quais Cota apresentara separadamente. Pode-se dizer que a escolha por tal estruturação
discursiva ao término de seu discurso demonstra a possibilidade de ausência de argumentos
que contrariem acertadamente os ideais estoicos sobre eles.
São evidentes os princípios de contradição que apresenta Cota, como se pode verificar
em:

Haec enim mihi ex tua partitione restant duo; de quibus si uobis uidetur,
accuratius disserendum puto. (De Natura Deorum, III, 65)

Pois estas duas (partes) para mim restam de tua divisão, sobre as quais se
vos agrada, penso (que) deve ser discutido com mais cuidado.

Se este momento do discurso accuratius disserendum, “deve ser discutido com mais
cuidado”, há de se questionar por que Cota usa apenas cerca de 27 parágrafos para refutar
argumentos que foram apresentados por Balbo em cerca de 92 parágrafos. Isso conduz ao
falso pensamento de que o acadêmico se utiliza de um discurso extremamente persuasivo e
que a sua preferência por fazer uso de uma estrutura argumentativa, que representa apenas
cerca de um terço da que foi exposta por Balbo, lhe garantiria uma refutação com um mínimo
de argumentos.
Tal observação por parte do acadêmico é problemática, uma vez que além de tentar
refutar argumentos, que foram apresentados com uma estrutura mais bem definida pelo
estoico, também apresenta uma argumentação bastante reduzida em número que elementos
que lhe garantam a superioridade do que tenta comprovar, ou seja, que os estoicos sempre
estiveram equivocados em relação ao que pensam sobre a natureza dos deuses.

173
Assim Cota parte da observação do princípio da ratio, “razão”, utilizado por Balbo
que afirma que esta está presente nos seres humanos por uma concessão divina, a partir disso
o acadêmico afirma:

Quamobrem si mens uoluntasque diuina idcirco consuluit hominibus, quod


iis est largita rationem, is solis consuluit, quos bona ratione donauit, quos
uidemus, si modo ulli sint, esse perpaucos. (De Natura Deorum, III, 70)

Por isso é que: se a mente e a vontade divina por isto tem zelado pelos
homens, por que concedeu a eles a razão; tem zelado apenas por aqueles a
que deram uma boa razão, os quais vemos haver muito pouco, se ao menos
há alguns.

Este seria o mais aceitável argumento do acadêmico: o questionamento a respeito de


uma ratio, “razão”, que é concedida pelos deuses, mesmo àqueles que se utilizam dela para
causar qualquer espécie de prejuízo, como se observa: na literatura159, Medeia e Atreu, que
trucidaram seus irmãos; no direito160, o pretor que julga as causas em benefício próprio; no
cotidiano161, sicae, uenena, peculatus, testamentorum162, “os homicídios, os envenenamentos,
os peculatos, as questões de testamentos”.
Que razão seria esta, que é concedida pelos deuses e pode causar algum dano? Isso
conduz ao pensamento silogístico: se algo mau é concedido por uma divindade, esta
divindade também o traz em si mesma, se o traz em si, então esta mau razão também faz parte
dessa divindade. Além disso, em se considerando os argumentos do estoico, pode-se
acrescentar a possibilidade de verificação do mal também nos deuses, uma vez que se o bem,
a razão, a intelecção e tantos outros componentes do caráter humano são ditos como
provenientes dos deuses, não seria absurda a aceitação de erros, malícias e delitos também
provenientes deles.
Por outro lado, se se consideram todas as ações negativas como sendo fruto do mau
uso da razão pelo homem, é como se considerasse uma consequência que foi produzida
mesmo com a ausência de uma causa, como afirma Cota:

159
De Natura Deorum, III, 71.
160
Idem, 74.
161
Ibidem.
162
Ibidem.

174
“In hominum uitiis ais esse culpam: eam dedisses hominibus rationem, quae
uitia culpamque excluderet.” Vbi igitur locus fuit errori deorum? (De
Natura Deorum, III, 76)

“Dizes (que) a culpa está nos vícios dos homens, se tivesses dado aos
homens aquela razão, que excluísse os vícios e a culpa”. Onde houve, então,
o erro dos deuses?

Isso conduz à ideia de que a razão no homem poderia ter desenvolvimento próprio, o
que levaria ao princípio da inexistência de deuses que, segundo Cota, não é um fato passível
de discussão, pois sua existência é mais que evidente, apesar de ele não a ter comprovado com
exemplos e argumentos.
Mesmo não se considerando a possibilidade de uma razão humana própria, poderia se
sugerir que a razão que está presente nos deuses não é satisfatória em si mesma, pois não é
capaz de eliminar nos homens vícios e culpas que seriam verificáveis apenas em seres
desprovidos de razão, e que a razão presente nos deuses não seria digna do que se espera de
um ser superior, pois também estaria repleta de vícios e falhas, e por isso os homens a
receberiam mesmo sem a capacidade de discernimento entre o bem e o mal, pois os deuses
também não teriam a capacidade de separá-los.
Sendo assim, pode-se questionar qual seria a intenção de uma divindade em dar a
razão a seres como os humanos, mesmo sabendo que eles a utilizariam para fins causadores
de males a seus semelhantes e também a si mesmos. Essa reflexão põe em xeque os
argumentos de Balbo de que os deuses não seriam capazes de saber que isso poderia
acontecer, levando a crer que eles seriam incapazes de fazer uso da sua própria razão cuja
pequena parcela seria atribuída aos humanos.
Demonstrar que a razão nos homens não é fruto da vontade de um deus, é um
argumento plausível a fim de garantir a ideia de que os deuses não prezam pelos seres
humanos, pois se o fizesse, poder-se-ia considerar que prezariam por homens tanto bons,
quanto maus indistintamente, já que se observam vários exemplos de tiranos que não tiveram
pietas para com os deuses, mas que prosperaram e não sofreram nenhum tipo de punição ou
infortúnio, como afirma Cota:

Dies deficiat, si uelim enumerare, quibus bonis male euenerit, nec minus, si
commemorem, quibus improbis optime. (De Natura Deorum, III, 81)

175
Faltaria tempo, se (eu) quisesse enumerar quais (homens) bons receberam o
mal, nem mesmo (daria), se (eu) recordasse quais (homens) ímprobos
(receberam) o bem.

Em se considerando tal afirmação, verifica-se que se não há benefícios em relação à


prática de feitos notáveis pelos homens, nem punição para eles por parte dos deuses, não se
pode afirmar que as considerações de Balbo acerca das divindades e seu cuidado pelas coisas
humanas sejam coerentes, pois se mostra indiferente a crença nos deuses ou, até mesmo, a sua
existência, o que torna possível a negligência de ambas as partes, tanto dos deuses em relação
aos seres humanos, quanto dos seres humanos em relação aos deuses, fato que, em sendo
considerado, põe em xeque toda fundamentação da religio romana.
Esses argumentos indicam a possibilidade de que os deuses parecem tanto não ter
conhecimento sobre o seu poder de execução em todas as coisas, incluindo a concessão da
razão nos humanos, quanto eles não demonstram interesse algum sobre as causas e
necessidades dos homens, como também parecem não poder julgar o que seja melhor, no que
se refere ao que é concedido aos homens e ao que os homens são capazes de executar com a
razão que é proveniente dos deuses.
Este final da confutatio de Cota evidencia mais uma vez que o acadêmico não situa
seu discurso no objeto que é anunciado, pois havia dito em sua diuisio que abordaria e
estabeleceria críticas acerca dos ideais estoicos sobre regência do mundo pelos deuses e que
comprovaria que eles não deliberam pelas coisas humanas. No entanto, apenas um argumento
é basicamente criticado por Cota, o de que a razão presente nos homens não é proveniente dos
deuses.
A obscuridade temática que é anunciada pelo acadêmico torna-se evidente também em
seus argumentos, já que nada é explicado, nem é criticado com objetividade por ele, fato que
se torna evidente em suas próprias palavras:

Haec fere dicere habui de natura deorum, non ut eam tollerem, sed ut
intellegeretis, quam esset obscura et quam difficiles explicatus haberet. (De
Natura Deorum, III, 93)

Mais ou menos isto (é o que) tenho a dizer sobre a natureza dos deuses, não
para destruí-la, mas para que vós compreendêsseis quanto é obscura e quanto
fosse difícil o esclarecimento.

É interessante se observar que esses dizeres de Cota são claramente marcados por uma
ironia em que se desenrola o seu discurso, afirmar que isso é o que ele tem a falar sobre a

176
natureza dos deuses, mesmo sem ter demonstrado o mínimo interesse em se manisfestar com
clareza sobre a questão, é minimamente questionável, porém esse fato não se verifica como
algo que não tenha sido anunciado pelo personagem, pois desde o início do diálogo, é
retomada com frequência quam esset obscura et quam difficiles explicatus haberet, “quanto é
obscura e quanto fosse difícil o esclarecimento”, sobre a natureza dos deuses.
Tentando reforçar o que é proposto desde o início do diálogo De Natura Deorum, o
autor Cícero o finaliza deixando em aberto a questão, como se retornasse ao ponto de partida,
ou seja, não propondo conclusões evidentes ou esclarecedoras acerca da questão, também
reforça a sua ironia. Sendo assim, ironia e fim do discurso, que se mostra em aberto, podem-
se verificar em:

Sed quoniam aduesperascit, dabis nobis diem aliquem, ut contra ista


dicamus[...] Haec cum essent dicta, ita discessimus, ut Velleio Cottae
disputatio uerior, mihi Balbi ad ueritatis similitudinem uideretur esse
propensior. (De Natura Deorum, III, 94-95)

Mas porque se aproxima a noite, nos darás um (outro) dia para que falemos
contra estes (argumentos). Quando foram ditas estas (coisas), nos retiramos,
assim como para Veleio parecia estar a argumentação de Cota mais próxima
da verdade; para mim, a de Balbo.

Desse modo é finalizado o diálogo filosófico De Natura Deorum, com a ideia de que
está em aberto, pois há a proposição entre os personagens de que haveria a continuação da
discussão acerca do assunto abordado e também com a confirmação da ironia ciceroniana, que
está presente em todo discurso, uma vez que tanto os personagens quanto o autor,
ironicamente, afirmam que seus opositores desenvolveram melhor a questão e se colocaram
mais próximos da verdade.

177
Conclusão

São facilmente identificáveis, nos textos de comentadores acerca da oratória latina,


notas e observações sobre a excelência discursiva presente nas obras do orador romano
Cícero, que sempre foi tido como modelo a ser mimetizado por todo e qualquer orador, que
objetivasse atingir o máximo do fundamento da argumentação através dos recursos retóricos.
É notória a tentativa de retomada dos modelos gregos de composição retórica por parte
de Cícero em suas obras oratórias, que fazem referência quase constante aos mais
proeminentes escritores gregos do gênero, sobretudo Aristóteles em sua Retórica.
No entanto, nos três Livros que compõem o diálogo filosófico De Natura Deorum,
apesar de o autor tentar usar do método dialético nos moldes gregos, fazendo com que os
personagens busquem se utilizar de argumentos que produzam a necessidade de contra-
argumentação convincente e que, ao mesmo tempo, não feche o ciclo argumentativo - o que
poderia gerar sempre a necessidade de um novo argumento por parte do interlocutor, como
em uma disputa retórica - é perceptível a inabilidade de Cícero em tentar a produção de tal
efeito dialético em seu diálogo filosófico De Natura Deorum.
Essa inabilidade dialética que se observa no diálogo está diretamente relacionada à
temática abordada, pois na obra analisada se demonstra claramente que, quando se trata de
aplicação de teorias retóricas, a complexidade do assunto em questão se sobrepõe à mera
estruturação do discurso. Assim, para se tratar de questões que envolvem a natureza dos
deuses, verificou-se que é necessário mais que um discurso bem estruturado e que faça uso
das seções que o compõem, como exordium, narratio, diuisio, confirmatio, confutatio e
conclusio.
Além da ausência de argumentos pertinentes à temática abordada, observou-se que,
mesmo no âmbito da mera estruturação discursiva, houve identificação de certa fragilidade
conceitual, pois o diálogo De Natura Deorum, quando é submetido a uma estruturação
retórica, nos moldes sugeridos pelo autor como exemplo de um texto argumentativo,
demonstra também sua fragilidade estrutural.
O problemática sugerida pelo autor no início do diálogo se mostrou superior à
capacidade de seu desenvolvimento argumentativo, isso é verificado sobretudo por dois
aspectos principais: primeiramente, Cícero propõem elementos que precisam ser esclarecidos
sobre a natureza divina, como a forma dos deuses, a composição de seus corpos, a sua relação
com a eternidade, o seu surgimento, a sua existência, os mundos em que eles habitam, a sua
178
relação com os seres humanos, questões que são discutidas ao longo do diálogo, mas que não
direcionam a uma conclusão possível acerca de qual escola filosófica, epicurista, estoica ou
acadêmica, teria uma opinião mais acertada sobre a natureza dos deuses; em segundo lugar,
Cícero propõe submeter todos os ideais do epicurista Veleio e do estoico Balbo aos
argumentos de seu partidário acadêmico Cota, mas o discurso deste personagem se baseia
meramente na repetição e negação das ideias expostas por aqueles, ou seja, contrapõem
duplamente os conceitos de Dialética apresentados, uma vez que Cota não expõe argumentos
dignos de refutação, nem mesmo apresenta as ideias de sua escola filosófica.
A ausência de argumentos capazes de comprovar a obscuridade temática e de conduzir
os interlocutores ao que pretende o autor é verificada sobretudo em suas próprias palavras,
quando ele afirma163 que para o epicurista Veleio o discurso mais pertinente tenha sido o do
acadêmico Cota e para o próprio Cícero, o do estoico Balbo.
Verificou-se com essa tentativa irônica do autor a comprovação do que foi sugerido
como um dos principais elementos a serem observados na análise, ou seja, a inabilidade do
orador romano em desenvolver argumentos pertinentes e esclarecedores sobre a natureza dos
deuses. Como se demonstrou, no capítulo I, a religião, até o momento em que foi escrita a
obra, desempenhou constante e grande influência sobre o cotidiano da sociedade romana e, na
proposição da obra De Natura Deorum, o autor assegura que iria desenvolver a questão para
que vários fatores fossem esclarecidos ao longo do diálogo, fato que não se comprovou, ao
término da análise.
Associados aos problemas de desenvolvimento temático, também se verificou a
ausência da devida disposição do discurso retórico nos três Livros que compõem a obra, o que
pode ter conduzido à falta de uma estrutura discursiva que produzisse o efeito argumentativo
desejado e a falhas no próprio âmbito do discurso retórico, uma vez que o próprio autor não
estrutura o diálogo de acordo com o que rege a Retórica, ou seja, nem mesmo utiliza das
partes que devem compor um discurso que pretenda se mostrar bem estruturado, como
exordium, narratio, diuisio, confirmatio, confutatio e conclusio, pois se observou a ausência
de algumas dessas seções ao longo da obra.
Assim, observou-se que a tentativa de argumentação e de sobreposição dos ideais do
acadêmico Cota se mostrou problemática, pois o autor não atinge o objetivo anunciado no
início do De Natura Deorum, ou seja, o de levar a obscuridade sobre todas as coisas que

163
De Natura Deorum, III, 95.

179
envolvem a concepção divina, fato que também está associado à ausência estruturação
discursiva pertinente e coerente com os objetivos pretendidos pelo autor.

180
Apêndice

Apresentação da Tradução e Notas para um Estudo Filológico do De Natura Deorum

181
O original latino utilizado na tradução é basicamente o texto apresentado por Otto
Plasberg, do ano de 1917 ( ), na edição: M. Tullius Cicero. De Natura Deorum. O. Plasberg.
Leipzig. Teubner. 1917. Foram consultados também os seguintes textos latinos: Otto
Plasberg, do ano de 1993 ( ), presente na edição: Cicerone. La Natura Divina; a cura de
Cesare Marco Calcante, texto latino a fronte. 6.ed. Milano: BUR, 2007. Joannes Davisius, do
ano de 1723 ( ), presente na edição: M. Tulli Ciceronis. De Natura Deorum, Libri Tres;
cum notis integris Paulli Manucii, Petri Victorii, Joachimi Camerarii et alii. Editio secunda.
Cantabrigiae: typis academicis, MDCCXXIII. Società Editrice Dante Alighieri, do ano de
1984 ( ), presente na edição: M. Tullio Cicerone. De Natura Deorum; texto, costruzione
versione letterale e note. 3.ed. Roma: Società Editrice Dante Alighieri, 1984. Não há
indicação nessa edição (1984) do manuscrito utilizado.
As edições e apresentam o diálogo filosófico De Natura Deorum dividido em três

Livros, compostos por 44, 62 e 60 partes, respectivamente. As edições e apresentam-no


em três Livros, compostos por 124, 168 e 95 partes, respectivamente.
Apesar da discrepância entre o número de partes do diálogo, o texto apresentado tem a
mesma extensão em todas as edições consultadas. Tal discrepância de partes é observada
devido à preferência das edições e em subdividirem os Livros em seções maiores.

Preferiu-se, como texto base, a edição , porém há várias passagens presentes nas outras três

edições consultadas que divergem da .

As edições e são respectivamente de datas distintas (1917 e 1993) e apresentam,


em se estabelecendo as devidas comparações, algumas variações entre os textos no âmbito da
pontuação, do vocabulário,da grafia eda fragmentação textual.

Divergências de pontuação:
: “et eos, quos maiorum institutis accepimus.” (I, 30) e : “et eos quos maiorum

institutis accepimus (...)” (I, 30); : “secuntur, quae futura sunt (...)” (III, 14) e : “secuntur

quae futura sunt (...)” (III, 14); : “uno modo; quem, quoniam, quid diceret (...)” (III, 35) e :
“uno modo, quoniam qui diceret (...)” (III, 35).

Divergências vocabulares:

182
: “et in animo quasi inscriptum esse deos.” (II, 12) e : “et in animo quasi

insculptum esse deos.” (II, 12); : “quae duobus dis avis (...)” (III, 48) e : “quae duobus

‹dis› avis (...)” (III, 48); : “Melampus et Tmolus, Atrei filii, qui Pelope natus fuit. Iam

Musae primae quattuor Iove altero, Thelxinoe (...)” (III, 53-54) e : “Melampus †euiolus,
Atrei filii, qui Pelope natus fuit. Iam Musae primae quattuor [natae] Iove altero †nata et
Thelxinoe† (...)” (III, 53-54); : “quare autem in iis vis deorum insit, tum intellegam, cum ex

te cognovero (...)” (III, 61) e : “quare autem in is vis deorum insiti tum intellegam cum

cognovero.” (III, 61); : “discere possim, quoniam, qualis tu eos esse vis, agnoscere non

possum. Videamus ea (...)” (III, 64-65) e : “discere possim, qualis tu eos esse vis **.

Videamus ea (...)” (III, 64-65); : “mortuus tyranni dis non invitis in rogum inlatus est

eamque potestatem (...)” (III, 84) e : “mortuus in † tyrannidis rogum inlatus est, eamque

potestatem (...)” (III, 84); : “quas perlucidas fecit (...)” (II, 142) e : “quas primum
perlucidas fecit (...)” (II, 142).

Divergências de grafia:
: “nisi diligenter adtenderis (...)” (II, 149) e : “nisi diligenter attenderis (...)” (II,
149).

Fragmentos textuais:
: “quae sunt, e quibusdam rebus constant, et si ea, e quibus cuncta Constant (...)” (III,

30) e : “quae sunt ** e quibus cuncta constant (...)” (III, 30); : “Melampus et Tmolus, Atrei
filii, qui Pelope natus fuit. Iam Musae primae quattuor Iove altero, Thelxinoe (...)” (III, 53-54)
e : “Melampus †euiolus, Atrei filii, qui Pelope natus fuit. Iam Musae primae quattuor [natae]

Iove altero †nata et Thelxinoe† (...)” (III, 53-54); : “quare autem in iis vis deorum insit, tum

intellegam, cum ex te cognovero (...)” (III, 61) e : “quare autem in is vis deorum insiti tum

intellegam cum cognovero.” (III, 61); : “discere possim, quoniam, qualis tu eos esse vis,

agnoscere non possum. Videamus ea (...)” (III, 64-65) e : “discere possim, qualis tu eos esse

vis **. Videamus ea (...)” (III, 64-65); : “mortuus tyranni dis non invitis in rogum inlatus est

183
eamque potestatem (...)” (III, 84) e : “mortuus in † tyrannidis rogum inlatus est, eamque
potestatem (...)” (III, 84).
Comparando-se o texto base, , com as edições e , observam-se maiores variações
no âmbito da pontuação, do vocabulário, da grafia, da fragmentação textual,do emprego dos
verbos e da sintaxe. No entanto, verifica-se que as edições e estão em concordância na
maioria dos trechos referidos.

Divergências de pontuação:
: “In quo non vidit neque motum sensu iunctum et [in] continentem infinito ullum

esse posse (...)” (I, 26), : “in quo non vidit, neque motum sensui junctum et continentem,

infinito ullum esse posse (...)” e : “in quo non vidit motum sensui junctum et continentem in
infinito nullum esse posse.”; : “Xenocrates in hoc genere prudentior est, cuius in libris (...)”
(I, 34), : “Xenocrates in hoc genere prudentior: in cuius libris (...)” e : “Xenocrates in hoc
genere prudentior, cuius in libris (...)”; : “At Persaeus eiusdem Zenonis auditor eos esse
habitos deos, a quibus aliqua magna utilitas (...)” (I, 38), : “At Persaeus eiusdem Zenonis

auditor, eos dicit esse habitos deos, a quibus magna utilitas (...)”e : “At Persaeus, eiusdem
Zenonis auditor, eos dicit esse habitos deos, a quibus magna utilitas (...)”; : “in secundo
autem volt Orphei, Musaei, Hesiodi Homerique fabellas (...)” (I, 41), : “in secundo autem

volt Orphei, Musaei, Hesiodi, Homerique fabellas (...)” e : “in secundo autem vult Orphei,
Musaei, Hesiodi Homerique fabellas (...)”; : “animus et formam et vitam et actionem mentis
atque agitationem in deo.” (I, 45), : “animus et formam, et vitam, et actionem mentis atque

agitationem in deo.” e : “animus et formam et vitae actionem mentisque agitationem in


deo.”; : “alia aspera, rutunda alia, partim autem angulata et hamata, curvata quaedam et
quasi adunca (...)” (I, 66), : “alia aspera, rotunda alia, partim autem angulata, curvata

quaedam et quasi adunca (...)” e : “alia aspera, partim autem angulata, hamata quaedam et

quase adunca (...)”; : “Nihil horum nisi +valde (...)” (I, 70), : “Nihil horum, nisi calide (...)”

e : “Nihil horum nimis callide (...)”; : “quam vos inter vos risum tenere possitis?” (I, 70), :

“quod vos inter vos risum tenere possitis.” e : “quod vos inter vos risum tenere possitis.”; :

“deinde cum, quoniam rebus omnibus (...)” (I, 76), : “deinde, ut, quoniam rebus omnibus

184
(...)” e : “deinde quod, quoniam rebus omnibus (...)”; : “quae funditus gens vestra non

novit, [angustia] argumenti sententiam conclusisti.” (I, 89), : “(quae funditus gens vestra non

novit) argumenti sententiam conclusisti.” e : “que funditus gens vestra non novit, argumento
sententiam conclusisti (...)”; : “feminibus, cruribus. Si ut inmortalis sit, quid haec ad vitam
membra pertinent (...)” (I, 99), : “feminibus, cruribus. Si ut inmortalis sit, quid haec ad vitam

membra pertinent?” e : “feminibus, cruribus. Quia haec ad vitam membra pertinent (...)”; :

“Non arbitror te velle similem esse Epicureorum reliquorum (...)” (I, 111), : “Non arbitror te,

Vellei, similem esse Epicureorum reliquorum (...)” e : “Non arbitror te, Vellei, similem esse
Epicureorum reliquorum (...)”; : “nulli viri vocantur, ex quo in procinctu testamenta perierunt
(...)” (II, 9), : “nulli viri vocantur, ex quo in procinctu testamenta perierunt.” e : “nulla, cum
viri vocantur, ex quo in procinctu testamenta perierunt.”; : “vel maximam aequabilitatem
motus [constantissimamque] conversionem caeli, solis lunae siderumque omnium
distinctionem, utilitatem (...)” (II, 15), : “vel maxumam, aequabilitatem motus,

conversionem caeli: solis, lunae, siderumque omnium distinctionem, varietatem (...)” e : “vel
maximam, aequabilitatem motus conversionumque caeli, solis, lunae siderumque omnium
distictionem, varietatem (...)”; : “tamen id ipsum rationibus physicis, id est naturalibus,
confirmari volo.” (II, 23), : “tamen id ipsum rationibus physicis confirmare volo.” e :
“tamen id ipsum rationibus physicis confirmare volo.”; : “ut ecum vehendi causa (...)” (II,
37), : “ut equum, vehendi caussa (...)” e : “ut equum, vehendi causa (...)”; : “quae cum est

aquilonia aut australis, in lunae (...)” (II, 50), : “quae tum aquilenta, tum australis. In lunae

(...)” e : “quae tum est aquilonia, tum australis. Itaque in lunae (...)”; : “diligenter
retractarent et tamquam relegerent, [i] sunt dicti religiosi ex relegendo, [tamquam] elegantes
ex eligendo, [tamquam] [ex] diligendo diligentes (...)” (II, 72), : “diligenter retractarent et
tamquam relegerent, sunt dicti religiosi ex relegendo, ut elegantes ex eligendo, ex tamquam a
diligendo diligentes (...)” e : “diligenter retractarent et tamquam relegerent, sunt dicti
religiosi ex relegendo, ut elegantes ex eligendo, ex diligendo diligentes (...)”; : “quacumque
enim imus qua movemur (...)” (II, 83), : “quacumque enim imus, quacumque movemur (...)”

e : “quacumque enim imus, quacumque movemur (...)”; : “„Sicut inciti atque alacres rostris
perfremunt delphini‟ – Item alia multa – „Silvani melo consimilem ad aures cantum et

185
auditum refert.‟” (II, 89) e : “„Sicut inciti alacres rostris perfremunt dephini:‟ item alia multa.
„Silvani melo consimilem ad aures cantum et auditum refert.‟”; : “Graiugena: de isto aperit
ipsa oratio.” (II, 91) e : “Grajugena de isto aperit ipsa oratio.”; : “Propter quae Centaurus/
'cedit Equi partis properans subiungere Chelis./ Hic dextram porgens, quadrupes qua vasta
tenetur'./'tendit et inlustrem truculentus cedit ad Aram./ Hic sese infernis e partibus erigit
Hydra',/ cuius longe corpus est fusum,/ 'in medioque sinu fulgens Cretera relucet./ Extremam
nitens plumato corpore Corvus/ rostro tundit, et hic Geminis est ille sub ipsis/ Ante Canem,
Procyon Graio qui nomine fertur.” (II, 114) e : “Propter quae Centaurus/ „Cedit, Equi partis
properans subjungere Chelis.‟/ „Hic dextram porgens, quadrupes qua vasta tenetur,‟/ „Tendit,
et inlustrem truculentus caedit ad aram.‟/ „Hic sese infernis de partibus erigit Hydra:‟ cujus
longe corpus est susum. „In medioque sinu fulgens Cratera relucet.‟/ „Extremum nitens
plumato corpore Corvus‟/ „Rostro tundit: et hic Geminis est ille sub ipsis‟/ „Ante Canem,
Procyon Grajo qui nomine fertur.‟”; : “plenissumae terrae, artes denique innumerabiles (...)”
(II, 132), : “plenissimae terrae: artes denique innumerabiles (...)” e : “plenissimae terrae,
utilitates denique innumerabiles (...)”; : “non egeremus, ut qui tamquam involuti quiescerent
(...)” (II, 143), : “non egeremus, ut qui, tamquam involuti, quiescerent (...)” e : “non
egeremus, tamquam involuti quiescerent (...)”; : “uno modo; quem, quoniam, quid diceret
(...)” (III, 35), : “uno modo: qui quoniam, quid diceret (...)”, O. Plasberg (1993): “uno modo,

quoniam qui diceret (...)” e : “uno modo: qui quoniam quid diceret (...)”; : “Melampus et
Tmolus, Atrei filii, qui Pelope natus fuit. Iam Musae primae quattuor Iove altero, Thelxinoe
(...)” (III, 53-54) e : “Melampus, Emolus, Atrei filii, qui Pelope natus fuit. Iam Musae
primae quattuor, natae Jove altero, Thelxiope (...)”; : “Camiri, Lindi, unde Rhodii; quintus,
qui Colchis fertur (...)” (III, 54), : “Camiri, et Lindi: quintus, qui Colchis fertur (...)” e :
“Camiri et Lindi; quintus, qui Colchis fertur (...)”; : “De quibus habeo ipse, quid sentiam
(...)” (III, 64), : “de quibus habeo ipse, quid sentiam (...)” e : de quibus habeo ipse quod

sentiam (...)”; : “ni ob rem? Parumne ratiocinari videtur (...)” (III, 65-66), : “Niobe

parumne ratiocinari videtur (...)” e : “Parumne ratiocinari (...)”; : “tamen ridiculi: 'Quis

enim te adhibuisset', dixerit quispiam, 'si ista non essent.' Contra deum (...)” (III, 76), :
“tamen ridiculi. Quis enim te adhibuisset, dixerit quispiam, si ita non esset? Contra deum (...)”
e : “tamen ridiculi. Contra deum (...)”; : “Iam mensas argenteas de omnibus delubris iussit

186
auferri, in quibus, quod more veteris (...)” (III, 84), : “Idemque mensas argenteas de omnibus

delubris jussit auferri: in quibus quod more veteris (...)” e : “Etiam mensas argênteas de
omnibus delubris iussit auferri, in quibus cum more veteris (...)”.

Divergências vocabulares:

: “De qua [cum] tam variae sint (...)” (I, 1), : “De qua tam variae sunt(...)” e : “De

qua tam variae sunt(...)”; : “magno argumento esse debeat [ea] (...)” (I, 1), : “ut magno

argumento esse debeat (...)” e : “ut magno argumento esse debeat (...)”; : “causa,

principium philosophiae ad h* scientiam (...)” (I, 1), : “caussam, id est, principium

philosophiae, esse scientiam (...)” e : “causam et principium philosophiae esse scientiam

(...)”; : “et de actione (...)” (I, 2), : “et actione (...)” e : “et actione (...)”; : “deque is

summa (...)” (I, 2), : “deque his summa (...)” e : “deque his summa (...)”; : “in primis

[quae] magna dissensio est (...)” (I, 2), : “In primis quoque magna dissensio est (...)” e : “in

primis magna dissensio est (...)”; : “et hi quidem magni atque nobiles (...)” (I, 4), : “et hi

quidem magni atque nobiles (...)” e : “et ii quidem magni atque nobiles (...)”; : “tam

auctoritatis (...)” (I, 10) e : “tam auctores (...)”; : “his quattuor (...)” (I, 11) e : “iis quattuor
(...)”; : “In quo non vidit neque motum sensu iunctum et [in] continentem infinito ullum esse
posse (...)” (I, 26), : “in quo non vidit, neque motum sensui junctum et continentem, infinito

ullum esse posse (...)” e : “in quo non vidit motum sensui junctum et continentem in infinito

nullum esse posse.”; : “tum sententiam intellegentiamque nostram (...)” (I, 29), : “tum

scientiam intelligentiamque nostram (...)” e : “tum scientiam intellegentiamque nostram

(...)”; : “eos, quos maiorum institutis accepimus.” (I, 30), : “et eos, quos maiorum institutis

accepimus (...)”; : “quo porro modo mundus moveri carens corpore (...)” (I, 33) e : “Quo
porro modo mundus moveri potest carens corpore (...)”; : “et tamen modo mundum (...)” (I,
34), : “et tamen modo mundum (...)” e : “et modo mundum (...)”; : “At Persaeus eiusdem

Zenonis auditor eos esse habitos deos, a quibus aliqua magna utilitas (...)” (I, 38), : “At
Persaeus eiusdem Zenonis auditor, eos dicit esse habitos deos, a quibus magna utilitas (...)” e
: “At Persaeus, eiusdem Zenonis auditor, eos dicit esse habitos deos, a quibus magna utilitas
187
(...)”; : “tum fatalem +umbram et necessitatem rerum futurarum (...)” (I, 39), : “tum fatalem

vim et necessitatem rerum futurarum (...)” e : “tum fatalem vim et necessitatem rerum

futurarum (...)”; : “nec ad numerum (...)” (I, 49) e : “Nec sit ad numerum (...)”; :

“imaginum species (...)” (I, 49) e : “imaginum [series] (...)”; : “et ad deos adfluat (...)” (I,

49) e : “et ad nos adfluat (...)”; : “tanto mihi spes videtur obscurior.” (I, 60), : “tanto mihi

res videtur obscurior.” e : “tanto mihi res videtur obscurior.”; : “alia aspera, rutunda alia,

partim autem angulata et hamata, curvata quaedam et quasi adunca (...)” (I, 66), : “alia

aspera, rotunda alia, partim autem angulata, curvata quaedam et quasi adunca (...)” e : “alia
aspera, partim autem angulata, hamata quaedam et quase adunca (...)”; : “deinde cum,
quoniam rebus omnibus (...)” (I, 76), : “deinde, ut, quoniam rebus omnibus (...)” e : “deinde
quod, quoniam rebus omnibus (...)”; : “quod nulla in alia figura domicilium mentis esse
possit.” (I, 76), : “quod nulla in alia figura domicilium mentis esse possit.” e : “quod nulla
alia figura domicilium mentis esse possit.”; : “[Primum] omnium quis tam caecus in
contemplandis rebus umquam fuit (...)” (I, 77), : “Omnium quis tam caecus in contemplandis

rebus umquam fuit (...)” e : “Omnino quis tam caecus in contemplandis rebus umquam fuit

(...)”; : “Si igitur nec humano (...)” (I, 85), : “Si igitur nec humano visu (...)” e : “Si igitur
nec humano visu (...)”; : “quae funditus gens vestra non novit, [angustia] argumenti
sententiam conclusisti.” (I, 89), : “(quae funditus gens vestra non novit) argumenti

sententiam conclusisti.” e : “que funditus gens vestra non novit, argumento sententiam
conclusisti (...)”; : “feminibus, cruribus. Si ut inmortalis sit, quid haec ad vitam membra
pertinent (...)” (I, 99), : “feminibus, cruribus. Si ut inmortalis sit, quid haec ad vitam membra

pertinent?” e : “feminibus, cruribus. Quia haec ad vitam membra pertinent (...)”; : “Non

arbitror te velle similem esse Epicureorum reliquorum (...)” (I, 111), : “Non arbitror te,

Vellei, similem esse Epicureorum reliquorum (...)” e : “Non arbitror te, Vellei, similem esse

Epicureorum reliquorum (...)”; : “et in animo quasi inscriptum esse deos.” (II, 12), : “et in

animo quasi insculptum, esse deos.” e : “et in animo quase insculptum esse deos.”; : “vel
maximam aequabilitatem motus [constantissimamque] conversionem caeli, solis lunae
siderumque omnium distinctionem, utilitatem (...)” (II, 15), : “vel maxumam, aequabilitatem
motus, conversionem caeli: solis, lunae, siderumque omnium distinctionem, varietatem (...)” e
188
: “vel maximam, aequabilitatem motus conversionumque caeli, solis, lunae siderumque

omnium distictionem, varietatem (...)”; : “quorum aliud a terra sumpsimus (...)” (II, 18), :

“quod aliud a terra sumpsimus (...)” e : “quod aliud a terra sumpsimus (...)”; : “autem

conclusae rationis (...)” (II, 20), : “autem conclusae orationis (...)” e : “autem conclusae

orationis (...)”; : “nam solis calor et candor inlustrior (...)” (II, 40), : “Nam solis candor

inlustrior (...)” e : “Nam solis et candor illustrior (...)”; : “medioque tantum absit extremum,

quo nihil fieri potest aptius (...)” (II, 47), : “medioque tantum absit extremum, quantum idem

a summo: quo nihil fieri potest aptius.” e : “medioque tantum absit extremum, quantum idem
a summo, quo nihil fieri potest aptius.”; : “quae cum est aquilonia aut australis, in lunae (...)”
(II, 50), : “quae tum aquilenta, tum australis. In lunae (...)” e : “quae tum est aquilonia, tum

australis. Itaque in lunae (...)”; : “et oriuntur e terris, +Cui Proserpinam (...)” (II, 66), : “et

oriantur e terris. Is rapuit Proserpinam (...)” e : “et oriuntur e terris. Cui nuptam dicunt

Proserpinam (...)”; : “Quos deos (...)” (II, 71), : “hos deos (...)” e : “hoc eos (...)”; :
“diligenter retractarent et tamquam relegerent, [i] sunt dicti religiosi ex relegendo, [tamquam]
elegantes ex eligendo, [tamquam] [ex] diligendo diligentes (...)” (II, 72), : “diligenter
retractarent et tamquam relegerent, sunt dicti religiosi ex relegendo, ut elegantes ex eligendo,
ex tamquam a diligendo diligentes (...)” e : “diligenter retractarent et tamquam relegerent,
sunt dicti religiosi ex relegendo, ut elegantes ex eligendo, ex diligendo diligentes (...)”; :
“quacumque enim imus qua movemur (...)” (II, 83), : “quacumque enim imus, quacumque

movemur (...)” e : “quacumque enim imus, quacumque movemur (...)”; : “Utque ille apud

Accium pastor (...)” (II, 89), : “Atqui ille apud Attium pastor (...)” e : “Atqui ille apud

Accium pastor (...)”; : “Cuius/ 'propter laeum genum'/ 'Vergilias.” (II, 112), : “„At propter

laevum genus omni ex parte locatas‟/ „ParvasVergilias.‟” e : “„Cuius propter laevum genus
omni ex parte locatas‟/ „Parvas Vergilias.‟”; : “Propter quae Centaurus/ 'cedit Equi partis
properans subiungere Chelis./ Hic dextram porgens, quadrupes qua vasta tenetur'./'tendit et
inlustrem truculentus cedit ad Aram./ Hic sese infernis e partibus erigit Hydra',/ cuius longe
corpus est fusum,/ 'in medioque sinu fulgens Cretera relucet./ Extremam nitens plumato
corpore Corvus/ rostro tundit, et hic Geminis est ille sub ipsis/ Ante Canem, Procyon Graio
qui nomine fertur.” (II, 114) e : “Propter quae Centaurus/ „Cedit, Equi partis properans

189
subjungere Chelis.‟/ „Hic dextram porgens, quadrupes qua vasta tenetur,‟/ „Tendit, et
inlustrem truculentus caedit ad aram.‟/ „Hic sese infernis de partibus erigit Hydra:‟ cujus
longe corpus est susum. „In medioque sinu fulgens Cratera relucet.‟/ „Extremum nitens
plumato corpore Corvus‟/ „Rostro tundit: et hic Geminis est ille sub ipsis‟/ „Ante Canem,
Procyon Grajo qui nomine fertur.‟”; : “cursu leones (...)” (II, 127), : “morsu leones (...)” e

: “morsu leones (...)”; : “plenissumae terrae, artes denique innumerabiles (...)” (II, 132), :

“plenissimae terrae: artes denique innumerabiles (...)” e : “plenissimae terrae, utilitates

denique innumerabiles (...)”; : “a corde tractae et profectae (...)” (II, 139), : “a corde tracti

et profecti (...)” e : “a corde tracti et profecti (...)”; : “Quae primum oculos membranis

tenuissimis vestivit et saepsit; quas perlucidas fecit (...)” (II, 142), : “quas primum perlucidas

fecit (...)” e : “quas primum perlucidas fecit (...)”; : “nisi diligenter adtenderis (...)” (II,

149), : “nisi diligenter adtenderis (...)” e : “si diligenter attenderis (...)”; : “deorum

prudentia (...)” (II, 162), : “deorum providentia (...)” e : “deorum providentia (...)”; : “A

consuetudine oculorum animum (...)” (III, 20), : “A consuetudine enim oculorum animum

(...)” e : “A consuetudine enim oculorum animum (...)”; : “quae sunt, e quibusdam rebus

constant, et si ea, e quibus cuncta Constant (...)” (III, 30), : “quae sunt, e quibus cuncta

constant (...)”, : “quae sunt ** e quibus cuncta constant (...)” e : “quae sunt, e quibus cuncta

constant (...)”; : “uno modo; quem, quoniam, quid diceret (...)” (III, 35), : “uno modo: qui

quoniam, quid diceret (...)” e : “uno modo: qui quoniam quid diceret (...)”; : “Romulum

nostrum (...)” (III, 39), : “Romulum nostri (...)” e : “Romulum nostri (...)”; : “quae duobus

dis avis (...)” (III, 48), : “quae duobus avis (...)” e : “quae duobus avis (...)”; : “et ob eam

speciem, quia causam habeat admirabilem (...)” (III, 51), : “et ob eam caussam,quia speciem

habeat admirabilem (...)” e : “et ob eam causam quia speciem habeat admirabilem (...)”; :
“Melampus et Tmolus, Atrei filii, qui Pelope natus fuit. Iam Musae primae quattuor Iove
altero, Thelxinoe (...)” (III, 53-54) e : “Melampus, Emolus, Atrei filii, qui Pelope natus fuit.
Iam Musae primae quattuor, natae Jove altero, Thelxiope (...)”; : “Camiri, Lindi, unde
Rhodii; quintus, qui Colchis fertur (...)” (III, 54), : “Camiri, et Lindi: quintus, qui Colchis

fertur (...)” e : “Camiri et Lindi; quintus, qui Colchis fertur (...)”; : “Opas, ut Aegyptii

appellant (...)” (III, 55), : “Phthas, ut Aegyptii appellant (...)” e : “Phthas, ut Aegyptii
190
appellant (...)”; : “quare autem in iis vis deorum insit, tum intellegam, cum ex te cognovero.”
(III, 61), : “Quare autem in his vis deorum insit, tum intelligam, cum cognovero.” e :

“quare autem in iis vis deorum insit, tum intellegam, cum cognovero (...)”; : “De quibus

habeo ipse, quid sentiam (...)” (III, 64), : “de quibus habeo ipse, quid sentiam (...)” e : de
quibus habeo ipse quod sentiam (...)”; : “discere possim, quoniam, qualis tu eos esse vis,
agnoscere non possum. Videamus ea (...)” (III, 64-65), : “discere possim; quam qualis tu eos

esse vis. Videamus ea (...)” e : “discere possim... Videamus ea (...)”; : “ni ob rem? Parumne

ratiocinari videtur (...)” (III, 65-66), : “Niobe parumne ratiocinari videtur (...)” e :

“Parumne ratiocinari (...)”; : “hominibus dii dedissent (...)” (III, 71), : “hominibus dedissent

(...)” e : “hominibus dedissent (...)”; : “at se Q. Sosius (...)” (III, 74), : “At se Q. Sosius

(...)” e : “Id se Q. Sosius (...)”; : “Atque homo acutus (...)” (III, 83), : “Atque homo acutus

(...)” e : “Idque homo acutus (...)”; : “cum id esse ad omne (...)” (III, 83), : “cum id esse

ad omne (...)” e : “cum id esse aptum ad omne (...)”; : “Iam mensas argenteas de omnibus

delubris iussit auferri, in quibus, quod more veteris (...)” (III, 84), : “Idemque mensas

argenteas de omnibus delubris jussit auferri: in quibus quod more veteris (...)” e : “Etiam
mensas argênteas de omnibus delubris iussit auferri, in quibus cum more veteris (...)”.

Divergências de grafia:
: “causa, principium philosophiae ad h* scientiam (...)” (I, 1), : “caussam, id est,

principium philosophiae, esse scientiam (...)” e : “causam et principium philosophiae esse

scientiam (...)”; : “quod maxime veri simile est et quo omnes +sese (...)” (I, 2), : “quod

maxume veri simile est et quo omnes duce natura vehimus (...)” e : “quod maxime verisimile

est, et quo omnes duce natura venimus (...)”; : “res tam gravis (...)” (I, 7) e : “res tam graves

(...)”; : “tum facillume (...)” (I, 9), : “Tum facillime (...)” e : “Tum facillime (...)”; :

“Atqui mihi quoque videor (...)” (I, 16), : “Atque mihi quoque videor (...)”; : “maxumas

regiones (...)” (I, 24) e : “maximas regiones (...)”; : “In quo non vidit neque motum sensu

iunctum et [in] continentem infinito ullum esse posse (...)” (I, 26), : “in quo non vidit, neque

motum sensui junctum et continentem, infinito ullum esse posse (...)” e : “in quo non vidit
motum sensui junctum et continentem in infinito nullum esse posse.”; : “per omnium
191
naturam rerum (...)” (I, 36), : “per omnem naturam rerum (...)” e : “per omnem naturam

rerum (...)”; : “de deis inmortalibus dixerit (...)”, : “de dis inmortalibus dixerit (...)” e : “de

deis immortalibus dixerat (...)”; : “Naevos in articulo pueri delectat Alcaeum (...)” (I, 79), :

“Naevus in articulo pueri delectat Alcaeum.” e : “Naevus in articulo pueri delectat


Alcaeum.”; : “quae funditus gens vestra non novit, [angustia] argumenti sententiam
conclusisti.” (I, 89), : “(quae funditus gens vestra non novit) argumenti sententiam

conclusisti.” e : “que funditus gens vestra non novit, argumento sententiam conclusisti (...)”;

: “quo modo aeterne?” (I, 109), : “quo modo aeternae?” e : “quo modo aeternae?”; :

“Eundem equidem mallem audire Cottam (...)” (II, 2), : “Eudem equidem mallem audire

Cottam (...)” e : “Eudem equidem malim audire Cottam (...)”; : “nulli viri vocantur, ex quo

in procinctu testamenta perierunt (...)” (II, 9), : “nulli viri vocantur, ex quo in procinctu

testamenta perierunt.” e : “nulla, cum viri vocantur, ex quo in procinctu testamenta


perierunt.”; : “vel maximam aequabilitatem motus [constantissimamque] conversionem
caeli, solis lunae siderumque omnium distinctionem, utilitatem (...)” (II, 15), : “vel
maxumam, aequabilitatem motus, conversionem caeli: solis, lunae, siderumque omnium
distinctionem, varietatem (...)” e : “vel maximam, aequabilitatem motus conversionumque
caeli, solis, lunae siderumque omnium distictionem, varietatem (...)”; : “ut ecum vehendi
causa (...)” (II, 37), : “ut equum, vehendi caussa (...)” e : “ut equum, vehendi causa (...)”; :

“nam solis calor et candor inlustrior (...)” (II, 40), : “Nam solis candor inlustrior (...)” e :

“Nam solis et candor illustrior (...)”; : “Utque ille apud Accium pastor (...)” (II, 89), :

“Atqui ille apud Attium pastor (...)” e : “Atqui ille apud Accium pastor (...)”; : “Graiugena:

de isto aperit ipsa oratio.” (II, 91) e : “Grajugena de isto aperit ipsa oratio.”; : “hoc caput

hic paulum sese subitoque recondite (…)” (II, 108), : “Hoc caput hic paullum sese subitoque

recondit.” e : “Hoc caput hic paulum sese subito aequore condit.”; : “Propter quae
Centaurus/ 'cedit Equi partis properans subiungere Chelis./ Hic dextram porgens, quadrupes
qua vasta tenetur'./'tendit et inlustrem truculentus cedit ad Aram./ Hic sese infernis e partibus
erigit Hydra‟,/ cuius longe corpus est fusum,/ „in medioque sinu fulgens Cretera relucet./
Extremam nitens plumato corpore Corvus/ rostro tundit, et hic Geminis est ille sub ipsis/ Ante
Canem, Procyon Graio qui nomine fertur.” (II, 114) e : “Propter quae Centaurus/ „Cedit,

192
Equi partis properans subjungere Chelis.‟/ „Hic dextram porgens, quadrupes qua vasta
tenetur,‟/ „Tendit, et inlustrem truculentus caedit ad aram.‟/ „Hic sese infernis de partibus
erigit Hydra:‟ cujus longe corpus est susum. „In medioque sinu fulgens Cratera relucet.‟/
„Extremum nitens plumato corpore Corvus‟/ „Rostro tundit: et hic Geminis est ille sub ipsis‟/
„Ante Canem, Procyon Grajo qui nomine fertur.‟”; : “plenissumae terrae, artes denique
innumerabiles (...)” (II, 132), : “plenissimae terrae: artes denique innumerabiles (...)” e :
“plenissimae terrae, utilitates denique innumerabiles (...)”; : “secuntur, quae futura sunt (...)”
(III, 14), : “Sequuntur, quae futura sunt.” e : “Sequuntur, quae futura sunt.”; : “et ob eam

speciem, quia causam habeat admirabilem (...)” (III, 51), : “et ob eam caussam,quia speciem

habeat admirabilem (...)” e : “et ob eam causam quia speciem habeat admirabilem (...)”; :
“Melampus et Tmolus, Atrei filii, qui Pelope natus fuit. Iam Musae primae quattuor Iove
altero, Thelxinoe (...)” (III, 53-54) e : “Melampus, Emolus, Atrei filii, qui Pelope natus fuit.

Iam Musae primae quattuor, natae Jove altero, Thelxiope (...)”; : “Valentis et Phoronidis

filius (...)” (III, 56), : “Valentis et Phoronidis filius (...)” e : “Valentis et Coronidis filius

(...)”; : “cuius Eli delubrum vidimus (...)” (III, 59), : “cujus Elide delubrum videmus (...)” e

: “cuius Elide delubrum vidimus (...)”.

Fragmentos nos textos:


: “causa, principium philosophiae ad h* scientiam (...)” (I, 1), : “caussam, id est,

principium philosophiae, esse scientiam (...)” e : “causam et principium philosophiae esse

scientiam (...)”; : “quod maxime veri simile est et quo omnes +sese (...)” (I, 2), : “quod

maxume veri simile est et quo omnes duce natura vehimus (...)” e : “quod maxime verisimile

est, et quo omnes duce natura venimus (...)”; : “qualia vero* est (...)” (I, 25), : “qualia vero

alia sint (...)” e : “[Qualia vero sint](...)”;a: “tum fatalem +umbram et necessitatem rerum

futurarum (...)” (I, 39), : “tum fatalem vim et necessitatem rerum futurarum (...)” e : “tum

fatalem vim et necessitatem rerum futurarum (...)”; : “alia aspera, rutunda alia, partim autem

angulata et hamata, curvata quaedam et quasi adunca (...)” (I, 66), : “alia aspera, rotunda

alia, partim autem angulata, curvata quaedam et quasi adunca (...)” e : “alia aspera, partim

autem angulata, hamata quaedam et quase adunca (...)”; : “Nihil horum nisi +valde (...)” (I,

193
70), : “Nihil horum, nisi calide (...)” e : “Nihil horum nimis callide (...)”; : “feminibus,

cruribus. Si ut inmortalis sit, quid haec ad vitam membra pertinent (...)” (I, 99), : “feminibus,

cruribus. Si ut inmortalis sit, quid haec ad vitam membra pertinent?” e : “feminibus,

cruribus. Quia haec ad vitam membra pertinent (...)”; : “An Atti Navi lituus ille, quo ad

investigandum suem regiones vineae terminavit, contemnendus est?” (II, 9), : “An Atti Navi

lituus ille, quo ad investigandum suem regiones vineae terminavit, contemnendus est?” e :

“An Atti Navii lituus ille contemnendus est?”; : “tamen id ipsum rationibus physicis, id est

naturalibus, confirmari volo.” (II, 23), : “tamen id ipsum rationibus physicis confirmare

volo.” e : “tamen id ipsum rationibus physicis confirmare volo.”; : “nam solis calor et

candor inlustrior (...)” (II, 40), : “Nam solis candor inlustrior (...)” e : “Nam solis et candor

illustrior (...)”; : “medioque tantum absit extremum, quo nihil fieri potest aptius (...)” (II,

47), : “medioque tantum absit extremum, quantum idem a summo: quo nihil fieri potest

aptius.” e : “medioque tantum absit extremum, quantum idem a summo, quo nihil fieri potest

aptius.”; : “et oriuntur e terris, +Cui Proserpinam (...)” (II, 66), : “et oriantur e terris. Is

rapuit Proserpinam (...)” e : “et oriuntur e terris. Cui nuptam dicunt Proserpinam (...)”; :
“diligenter retractarent et tamquam relegerent, [i] sunt dicti religiosi ex relegendo, [tamquam]
elegantes ex eligendo, [tamquam] [ex] diligendo diligentes (...)” (II, 72), : “diligenter
retractarent et tamquam relegerent, sunt dicti religiosi ex relegendo, ut elegantes ex eligendo,
ex tamquam a diligendo diligentes (...)” e : “diligenter retractarent et tamquam relegerent,

sunt dicti religiosi ex relegendo, ut elegantes ex eligendo, ex diligendo diligentes (...)”; :

“Cuius/ 'propter laeum genum'/ 'Vergilias.” (II, 112), : “„At propter laevum genus omni ex

parte locatas‟/ „ParvasVergilias.‟” e : “„Cuius propter laevum genus omni ex parte locatas‟/

„Parvas Vergilias.‟”; : “quin etiam a caulibus brassicae, si propter sati sint (...)” (II, 120), :

“Quin etiam a caulibus, [brassicisque,] si propter sati sint (...)” e : “Quin etiam a caulibus, si

propter sati sint (...)”; : “Quae primum oculos membranis tenuissimis vestivit et saepsit;

quas perlucidas fecit (...)” (II, 142), : “quas primum perlucidas fecit (...)” e : “quas primum

perlucidas fecit (...)”; : “non egeremus, ut qui tamquam involuti quiescerent (...)” (II, 143),

: “non egeremus, ut qui, tamquam involuti, quiescerent (...)” e : “non egeremus, tamquam

194
involuti quiescerent (...)”; : “quae sunt, e quibusdam rebus constant, et si ea, e quibus cuncta

Constant (...)” (III, 30), : “quae sunt, e quibus cuncta constant (...)” e : “quae sunt, e quibus

cuncta constant (...)”; : “discere possim, quoniam, qualis tu eos esse vis, agnoscere non

possum. Videamus ea (...)” (III, 64-65), : “discere possim; quam qualis tu eos esse vis.

Videamus ea (...)” e : “discere possim... Videamus ea (...)”; : “tamen ridiculi: 'Quis enim te

adhibuisset', dixerit quispiam, 'si ista non essent.' Contra deum (...)” (III, 76), : “tamen

ridiculi. Quis enim te adhibuisset, dixerit quispiam, si ita non esset? Contra deum (...)” e :

“tamen ridiculi. Contra deum (...)”; : “mortuus tyranni dis non invitis in rogum inlatus est

eamque potestatem (...)” (III, 84), : “mortuus, in Tympanidis rogum inlatus est; eamque

potestatem (...)” e : “mortuus est eamque potestatem (...)”.

Divergências nos empregos verbais:


: “De qua [cum] tam variae sint (...)” (I, 1), : “De qua tam variae sunt(...)” e : “De

qua tam variae sunt(...)”; : “quod maxime veri simile est et quo omnes +sese (...)” (I, 2), :

“quod maxume veri simile est et quo omnes duce natura vehimus (...)” e : “quod maxime

verisimile est, et quo omnes duce natura venimus (...)”; : “disputatumst.” (I, 15), :

“disputatum sit.” e : “disputatum est.”; : “ducenda sunt (...)” (I, 24), : “dicenda sunt (...)”

e : “dicenda sunt (...)”; : “qualia vero* est (...)” (I, 25), : “qualia vero alia sint (...)” e :

“[Qualia vero sint](...)”; : “de ipsa mente item reprehendetur (...)” (I, 28), : “de ipsa mente

ita reprehenditur (...)” e : “de ipsa mente item reprehenditur (...)”; : “continentem ardorum

lucis orbem, qui cingit caelum (...)” (I, 28), : “continentem ardore lucis orbem, qui cingit

caelum (...)” e : “continente ardore lucis orbem, qui cingat caelum (...)”; : “quae de

Platone dicimus.” (I, 31) e : “quae de Platone diximus.”; : “designarit deum (...)” (I, 33) e

: “designavit deum.”; : “quae infixa caelo sint (...)” (I, 34), : “quae infixa caelo sunt (...)”

e : “quae infixa caelo sunt (...)”; : “in secundo autem volt Orphei, Musaei, Hesiodi

Homerique fabellas (...)” (I, 41), : “in secundo autem volt Orphei, Musaei, Hesiodi,

195
Homerique fabellas (...)” e : “in secundo autem vult Orphei, Musaei, Hesiodi Homerique

fabellas (...)”; : “quae pulcherrimast omnium.” (I, 48), : “quae pulcherrima sit omnium (...)”

e : “quae pulcherrima sit omnium (...)”; : “non modo videat animo (...)” (I, 49), : “non

modo viderat animo (...)” e : “non modo viderit animo (...)”; : “longeque peregrinatur (...)”

(I, 54) e : “longeque peregrinatus (...)”; : “Quia enim ex atomis, id natum aliquandost (...)”

(I, 68), : “quia enim ex atomis sit, id natum aliquando sit (...)” e : “Quod enim ex atomis, id

natum aliquando est (...)”; : “quae effervescunt subiectis ignibus.” (II, 27), : “quae

effervescunt subditis ignibus.” e : “quae effervescunt subditis ignibus.”; : “qui esset mundi

pars, quoniam rationis esset particeps (...)” (II, 32), : “qui est mundi pars, quoniam rationis

est particeps (...)” e : “qui est mundi pars, quoniam rationis est particeps (...)”; : “Itaque

nihil potest indoctius (...)” (II, 48), : “Itaque nihil potest esse indoctius (...)” e : “Itaque nihil

potest esse indoctius (...)”; : “quae cum est aquilonia aut australis, in lunae (...)” (II, 50), :

“quae tum aquilenta, tum australis. In lunae (...)” e : “quae tum est aquilonia, tum australis.

Itaque in lunae (...)”; : “et oriuntur e terris, +Cui Proserpinam (...)” (II, 66), : “et oriantur e

terris. Is rapuit Proserpinam (...)” e : “et oriuntur e terris. Cui nuptam dicunt Proserpinam

(...)”; : “hoc caput hic paulum sese subitoque recondite (…)” (II, 108), : “Hoc caput hic

paullum sese subitoque recondit” e : “Hoc caput hic paulum sese subito aequore condit”; :

“quae Constant (...)” (II, 136), : “quae constat (...)” e : “quae constat (...)”; : “si illum

aedificatum, non, quemadmodum docebo (...)” (III, 26), : “si illum aedificatum, non,

quemadmodum docebo (...)” e : “si illum aedificatum esse, non (quem ad modum docebo)

(...)”; : “cuius Eli delubrum vidimus (...)” (III, 59), : “cujus Elide delubrum videmus (...)” e

: “cuius Elide delubrum vidimus (...)”; : “quare autem in iis vis deorum insit, tum

intellegam, cum ex te cognovero.” (III, 61), : “Quare autem in his vis deorum insit, tum

intelligam, cum cognovero.” e : “quare autem in iis vis deorum insit, tum intellegam, cum
cognovero (...)”.

Divergências sintáticas:

196
: “aut infixus aut infusus esset in mundo?” (I, 28), : “aut infixus aut infusus esset in

mundo?” e : “infixus infususque esset in mundo?”; : “Xenocrates in hoc genere prudentior

est, cuius in libris (...)” (I, 34), : “Xenocrates in hoc genere prudentior: in cuius libris (...)” e

: “Xenocrates in hoc genere prudentior, cuius in libris (...)”; : “vel maximam


aequabilitatem motus [constantissimamque] conversionem caeli, solis lunae siderumque
omnium distinctionem, utilitatem (...)” (II, 15), : “vel maxumam, aequabilitatem motus,

conversionem caeli: solis, lunae, siderumque omnium distinctionem, varietatem (...)” e : “vel
maximam, aequabilitatem motus conversionumque caeli, solis, lunae siderumque omnium
distictionem, varietatem (...)”; : “quae cum est aquilonia aut australis, in lunae (...)” (II, 50),

: “quae tum aquilenta, tum australis. In lunae (...)” e : “quae tum est aquilonia, tum
australis. Itaque in lunae (...)”.

Divergências de grafia:
: “continentem ardorum lucis orbem, qui cingit caelum (...)” (I, 28), : “continentem

ardore lucis orbem, qui cingit caelum (...)” e : “continente ardore lucis orbem, qui cingat
caelum (...)”.

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Anexo

Imagens

198
Imagem I

199
Imagem II

200
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acesso: 11/01/2013

Imagem III

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acesso: 11/01/2013
Imagem IV

202
Imagem V

203
Imagem VI

204
Imagem VII

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Imagem VIII

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