Egipto. As Tríades Divinas
Egipto. As Tríades Divinas
Egipto. As Tríades Divinas
Submetido em Março/2016
Aceito em Maio/2016
José das Candeias Sales1
RESUMO:
O esquema das tríades divinas (associações de três divindades, inicialmente de uma mesma cidade, depois
também em locais geográficos diferentes) é o agrupamento de divindades egípcias mais frequente do antigo
Egipto.
A constituição de uma tríade respondia directamente à intenção e ao interesse do(s) sacerdócio(s) em
estabelecer uma ligação entre os vários cultos de uma determinada localidade ou entre os cultos de regiões
distintas.
As funções dos membros desses agrupamentos dependiam inteiramente do contexto mítico ou ritual em que
eram invocadas e em que justificavam as suas associações, em que, em todos os casos, se procurava «a
unidade na diversidade».
ABSTRACT:
The scheme of divine triads (associations of three deities, originally from the same city, later also from
different geographic locations) is the most frequent group of deities of ancient Egypt.
The formation of a triad resulted directly from the intention and interest of the priesthood(s) in establishing a
link between the various cults of a particular locality or between services of different regions.
The functions of the members of these groups depended entirely on the mythical or ritual context in which
they were invoked and in which they justify their associations that, in all cases, was an attempt for «unity in
diversity».
1
Doutorado em História Antiga – domínio de Egiptologia; Professor Auxiliar com Agregação da
Universidade Aberta (Portugal); Investigador Integrado do Centro de História da Universidade de Lisboa
(CHUL); Investigador Associado do Centro de História d’Aquém e d’Além Mar (CHAM) da
Universidade Nova de Lisboa; Jose.Sales@uab.pt.
«Il est impossible de definir ce qu’est un dieu. Quel que soit notre
commentaire à son propos, il n’en exclut pas une quantité
d’autres.»
Erik Hornung, Les dieux de l'Egypte - Le Un et le Multiple,
Monaco, Éditions du Rocher, 1986, p. 238.
2
O termo é usado, entre outros, por Kákosy (KÁKOSY, 1980, 48). Te Velde, por seu turno, usa a
designação «triadic structure» (Cf. TE VELDE, 1971, 80).
MEMBRO
DEUS-PAI DEUSA-MÃE DEUS-FILHO
LOCAL
DE CULTO
ABIDOS Osíris Isis Hórus
ALEXANDRIA Serápis Isis Horpakhered
ATHRIBIS Min Repit Kolanthés
BUBASTIS Atum Bastet Horhekenu
EDFU Hórus Hathor Harsomtus
FAIUM Sobek Renenutet Hórus
HERMONTIS Montu Tjenenet Harpré
KARNAK Amon Mut Khonsu
KOM OMBO Hor Uer Tasenetnofret Panebtaui
KOM OMBO Sobek Hathor Khonsu-Hor
MENDES Banebdjedet Hatmehyit Horpakhered
MÊNFIS Ptah Sekhemet Nefertum
MÊNFIS Ptah Hathor Imhotep
NAG EL- Montu Rettaui Horpakhered
MADAMUD
NAQA Apedamak Isis Hórus
SAFT EL-HINNA Sah Sopdet Sopedu
------------------------ Geb Renenutet Neheb-Kau
Este esquema («pluralistic triads: the family») admite, todavia, algumas variações:
em Dendera, em Sais, em Behbeit el-Haggar e em Filae, a divindade principal é uma deusa,
embora se mantenha a presença de um deus-menino masculino (Dendera: Hathor-Hórus-
Ihy; Sais: Neit-Set-Sobek; Behbeit el-Hagar e Filae: Isis-Osiris-Hórus). Em Elefantina e em
Esna, o deus-criança é extraordinariamente do género feminino (Elefantina: Khnum-Satet-
Anuket; Esna: Khnum-Neit-Satet). Muitas vezes, como testemunham vários exemplos
iconográficos e literários, é o próprio faraó que é associado ao par divino como seu «filho»,
formando uma tríade de base familiar, pondo em acção do ponto de vista religioso,
simultaneamente, os seus membros humanos e divinos, bem como as «heranças» que dessa
forma se transmitiam e captavam3.
3
Um exemplo paradigmático é o de Ramsés II: faz-se passar como filho de Amon e Mut, Ptah-Tatenen e
Hathor, Ptah e Sekhemet, Ré-Horakhti e Iusas, de Hórus de Miam e Ísis, de Nefertum e Satet, de Khnum
e Anuket (Cf. SALES, 2005, 54; SALES, 2007, 177, 204) – vide figs. 8-10.
Neste sub-grupo das tríades de um deus masculino com um par de deusas são ainda
de mencionar Osíris-Isis-Néftis, Hórus-Isis-Néftis e Atum-Iusas-Nebethetepet. É possível,
portanto, como defendia Te Velde, distinguir nesta primeira categoria tríades que agrupam
dois deuses e uma deusa (qualquer tríade do Grupo I) ou um deus e duas deusas (por
exemplo, a tríade de Elefantina ou as tríades de Karnak mencionadas acima). As tríades de
Menkauré (o faraó entre duas divindades do panteão) podem também ser intregradas neste
sub-grupo4.
O deus de Amarna, Aton, não se une com outras figuras divinas em tríade, no
entanto, há, por vezes, em certos autores, uma certa «obsessão» pela «produção» de uma
«família» para Aton e assim associam-se-lhe Akhenaton e Nefertiti, qual tríade divina
especial (um deus + dois humanos): o rei e a rainha louvavam Aton e o povo louvava a
tríade (SILVERMAN, 1991, 85; ASSMANN, 2001, 107). Outros, procuram construir a
tríade com Ré-Horakhti, Akhenaton e Aton, embora sem uma clara demarcação das suas
«relações familiares». É, compreensivelmente, um «esforço» de equiparar a religião de
Amarna com a de outros grandes centros teológicos egípcios, como Tebas e Heliópolis,
onde o divino se exprimia através dessas configurações em tríade (ZABKAR, 1954, 90, 91).
Em bom rigor, com base na hinologia e na liturgia amarniana, poderíamos falar, quanto
muito, de uma «díade», pela profunda relação entre Aton e Akhenaton. Mesmo neste caso,
estamos a falar de um deus e de um agente humano, que se faz passar por «filho de deus», e
não perante dois deuses.
Em síntese, como afirma Wilkinson, o «divine family models clearly did not
intimate mere plurality in their three-part structure, but each seems to have symbolized
what might be called a unified system, or numerically, a unified plurality» (WILKINSON,
1994, 133).
As tríades da «modalistic Conception» (trindades ou tri-unidades), além de
reflectirem aspectos de uma mesma realidade e de constituírem uma «pluralistic totality»,
consistem em três deuses ou três deusas, não havendo, neste caso, diferenciação sexual no
interior do agrupamento divino. Integram-se nesta categoria, por exemplo, as bau de Pe
4
Em quatro estátuas de xisto (grauvaque), descobertas em 1908, por George Reisner, no Templo do Vale
da mais pequena das três grandes pirâmides de Guiza (três hoje no Museu do Cairo – JE 40678, JE 40679
e JE 46499 – e a outra, representando Hathor no centro, no Museum of Fine Arts of Boston – 09.200),
este faraó da IV dinastia surge, como figura central, entre a deusa Hathor e outra divindade feminina
prefigurando um nomos do antigo Egipto. Este agrupamento de três seres divinizados, posta ao serviço da
ideologia real, tendo por base a concepção do apoio/ /suporte divino como garante do exercício do poder,
desenvolve-se de acordo com o mesmo simbolismo do número três (a unidade expressa pela pluralidade).
5
Os bau de Pe (a capital do reino do Delta) são representados como três deuses com cabeça de falcão e os
bau de Nekhen (antiga capital do Alto Egipto) são três deuses com cabeça de cão selvagem. Em ambos os
casos, trata-se de divindades masculinas que simbolizam os governantes pré-dinásticos das duas regiões e
eram encarados como poderosos espíritos ou divindades que serviam os reis falecidos e assistiam os reis
vivos (WILKINSON, 2003, 89, 90) – vide figs. 12 e 13.
6
A tríade solar de Heliópolis representa as modalidades ou aspectos do Sol durante o dia: Khepri
(escaravelho ou figura híbrida com cabeça de escaravelho) representando o Sol matinal; Ré, o disco solar,
a presença física do Sol do meio-dia; Atum (como ancião ou como figura híbrida com cabeça de carneiro)
representando o Sol do entardecer. Os três momentos da existência do astro-rei (a tri-unidade dos deuses
solares) expressa teologicamente a unidade do próprio Sol (ASSMANN, 2001, 107) – vide fig. 14.
7
A forma composta Ptah-Sokar-Osíris congregava três divindades que zelava pelo bem-estar e segurança
do defunto no Além, podendo, por isso, ser considerada uma divindade funerária que assegurava a
regeneração/ renascimento/ recriação dos mortos. A tríade representava as três facetas da existência: a
criação (Ptah), a morte (Sokar) e a ressurreição (Osíris) – MORENZ, 1977, 191; TRAUNECKER, 1992,
67, 68; SALES, 1999, 347 – vide fig. 15.
8
Os três deuses representados escultoricamente no santuário do Templo Grande de Abu Simbel (a tríade
dos deuses masculinos principais) constituem uma unidade, na medida em que são a representação
essencial dos diferentes e diversos deuses do império egípcio na época de Ramsés II (TE VELDE, 1971,
81; PETERS-DESTÉRACT, 2003, 227). Como se diz no Hino a Amon de Leiden numa expressiva
formulação teológica: «Três são os deuses: Amon, Ré e Ptah; não têm quem se lhes equipare. Amon é o
seu nome (rn), enquanto oculto; Ré é a sua face (Hr) e o seu corpo (D.t) é Ptah» (Hino a Amon de Leiden,
capítulo 300 –in BARUCQ, DAUMAS, 1980, 224). Não pode ser uma coincidência que esta estrofe do
Hino a Amon, que explora a destacada importância do número 3, tenha o número «300». Todo o panteão
é restrito à tríade, como se de um só deus se tratasse. Morenz, na senda de Gardiner, chama a atenção para
a tensão/ dialéctica entre o singular e o plural, «a trinity as a unity». A exacta expressão de Gardiner era
«Amon, Re and Ptah, the three principal gods of the Ramesside time, are represented as a trinity in a
unity» (GARDINER, 1905, 36; MORENZ, 1977, 193). Vide também BAINES, 2009, 123-125 – fig. 16.
9
Vide HART, 1986, 113.
10
As três formas de Hórus representavam as três grandes regiões da Nubia ou se preferirmos três formas
ou aspectos de um deus (Hórus). Na época de Horemheb, a esta tríade juntar-se-á uma quarta figura: o
Hórus de Meha, formando então a tétrade da Núbia (DESROCHES-NOBLECOURT, 1999, 59, 165).
11
A este grupo, podiam ainda acrescentar-se as tríades Amon-Ré-Montu, Amon-Ré-Horakhti, Amon-Ré-
Atum, Ré-Horakhti-Osíris e Ré-Horakhti-Atum-Osíris (GRIFFITHS, 1973, 29).
12
Esta tríade, tardiamente integrada no panteão egípcio (XVIII Dinastia) e cujas divindades são
originárias da região da Síria-Fenícia-Palestina, onde nunca foram associadas em tríade, simboliza
aspectos (erotismo, prazer sexual, fertilidade) de um mesmo fenómeno: a sexualidade. Vide também
EDWARDS, 1955, 51.
Fig. 14. Três deuses num só: as formas solares Khepri-Ré-Atum (Heliópolis).
13
O capítulo 115 do Livro dos Mortos, naturalmente em contexto funerário, denomina a tríade de
Heliópolis como «os bau de Heliópolis»: «Eu conheço os bau de Heliópolis: é Ré, Chu e Tefnut». Neste
texto, Ré toma o lugar de Atum. Bau é a forma plural de ba, vulgarmente traduzido como a «alma» do
defunto. No entanto, aqui o termo deve ser entendido como «potências» (BICKEL, GABOLDE,
TALLET, 1998, 43, nota 27).
«Atum é aquele que (uma vez) veio à existência, que se masturbou em Iunu, que agarrou o
seu membro com a mão e provocou com ela o orgasmo. Assim foram criados os gémeos Chu e
Tefnut.»( TP 1248)
14
Siegfried Morenz chama à tríade Atum-Chu-Tefnut «une trinité du devenir» («eine Trinität des
Werdens») ou «trinité par émanation» (Morenz, 1977, 195, 197). Te Velde considera-a um «special case»
no âmbito das tríades egípcias (Te Velde, 1971, 83) e Englund «a creative unit» (Englund, 1989, 11).
15
Por vezes, Chu e Tefnut surgem em iconografias idênticas, sendo que na escultura greco-egípcia, ela é
a «irmã» do deus-criança Chu (BUDDE, 2010, 2).
16
Essa oposição binária masculino-feminino só surgirá em Heliópolis com a deificação da «mão
masturbadora» como Iusaas (CLARK, 1978, 53; Sales, 1999, 96).
«Diz Atum: “É a minha filha viva Tefnut; ela está com o seu irmão Chu. Vida é o nome dele;
Maet é o nome dela”.» (TS 80; BICKEL, 2003, 44).
Conclusões
Os deuses egípcios (netjeru) não se revelavam e, assim, para se captar a sua natureza,
atributos, experiências e actuação histórica, é necessário perceber os traços das construções
teóricas humanas desenvolvidas em seu redor (a chamada «langage d’abstraction») e neste
domínio é indesmentível que o «plural que se torna uma unidade» associado à tríade como
método de ordenamento do panteão foi um processo usado para correlacionar divindades e
para transmitir e enfatizar a(s) sua(s) respectiva(s) função(ões). Neste sentido, a tríade
divina soluciona o problema da tensão entre a multiplicidade empírica do panteão e a
unidade do divino (MORENZ, 1977, 191).
A análise dos mecanismos estruturais do pensamento religioso egípcio no que se
refere ao estabelecimento de diversos tipos de agrupamentos de três deuses do panteão
17
Neste caso da Enéade de Heliópolis, a «enéade» tinha nove deuses (embora com algumas variantes
quanto aos seus membros), mas nem sempre uma «enéade» consistia em nove deuses. Em Abidos,
integrava sete deuses; em Karnak, quinze. O importante não é o número definido de deuses, mas a sua
indefinida pluralidade. A pesedjet é a expressão última da pluralidade (TE VELDE, 1971, 82; BILOLO,
1986, 48; TROY, 1989, 59; TRAUNECKER, 1992, 68; WILKINSON, 2003, 78, 79; SALES, 2007, 183,
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civilisation égyptienne, la notion du divin peut avoir pris des caractères propres, proches d’autres
conceptions évoluées, sans pourtant s’identifier nécessairement avec elles» (DERCHAIN, 1970, 78).
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