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UnB José Francisco Miguel Henriques Bairrão WWW - Psicc.unb - BR Psic - C - C - Contemporanea - 2
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UnB José Francisco Miguel Henriques Bairrão WWW - Psicc.unb - BR Psic - C - C - Contemporanea - 2
Cultura Contemporânea 2
Brasília
2015
PDF
i
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
REITOR
Ivan Marques de Toledo Camargo
DECANO DE PÓS-GRADUAÇÃO
Jaime Martins de Santana
ii
Technopolitik Editora - Conselho Editorial
Ana Lúcia Galinkin - Universidade de Brasília
Ana Raquel Rosa Torres - Universidade Federal da Paraíba
Claudiene Santos - Universidade Federal de Sergipe
Marco Antônio Sperb Leite - Universidade Federal de Goiás
Maria Alves Toledo Burns - Universidade de São Paulo - Ribeirão Preto
Maria Lúcia Montes - Universidade de São Paulo - Capital
Maria das Graças Torres da Paz - Universidade de Brasília
________________________________________________________________________________
Revisão: Maurício Galinkin/Technopolitik
Capa: Paulo Roberto Pereira Pinto/Ars Ventura Imagem & Comunicação
Projeto gráfico e diagramação: Maurício Galinkin/Technopolitik
Capa: Fauno tirando sapato da Ninfa, por Petr Stavasser, Museu Russo, São Petersburgo.
________________________________________________________________________________
Ficha catalográfica (catalogação-na-publicação) Iza Antunes Araújo – CRB1/079
________________________________________________________________________________
P974 Psicologia clínica e cultura contemporânea, v.2 / organizadoras Maria Inês Gandolfo
Conceição, Maria Izabel Tafuri, Daniela Scheinkman Chatelard, – Brasília,
DF : Technopolitik, 2015.
649p. : il.
Títulos, autores e textos sucessivos em português, inglês e francês.
ISBN: 978-85-62313-11-0 PDF
CDU: 159.9
615.851
_________________________________________________________________________________________________
Technopolitik Editora
SRTVS Quadra 701, Cj. L, Lote 38, Bl. 01, sala 709, parte 181-A
CEP 70340-906. Brasília. D.F.
Tel: (61) 8407-8262. Correio eletrônico: editor@technopolitik.com
Sítio eletrônico na internet: http://www.technopolitik.com.br e http://www.technopolitik.com
iii
Prefácio e Sumário
iv
à sua subsunção a relações entre pessoas e coisas subordinadas a padrões de
consumo, e à deserotização da atividade humana na forma de alienação no traba-
lho, torna-se imprescindível não divorciar a clínica psicológica da realidade e meio
social em que ela se exerce. Um efetivo alcance da sutileza de cada singularidade
pessoal não pode prescindir da análise dessa trama, o que por si só seria o suficien-
te para justificar a existência deste Programa de Pós-Graduação e a relevância da
produção científica por ele promovida e bem representada nesta publicação.
A mesma complexidade e diversidade que se encontram nas existências
contemporâneas, a mesma convivência com distintos tempos e o desafio das suas
interconexões, de certa forma, reproduzem-se na pluralidade das abordagens psi-
cológicas que concorrem para compor o mosaico da psicologia contemporânea.
Este volume, na contramão de intentos de impor uma uniformização com base em
ações institucionais, apresenta com maestria essa polifonia, deixando patente a
liberdade de criação científica e a pluralidade teórico-metodológica de que se
goza e que se pode (e deve) usufruir numa instituição de pesquisa psicológica de
ponta como a UnB e, em particular, nesse Programa de Pós-Graduação.
É escusado sublinhar que a psicologia brasileira mais atenta à complexidade
do seu campo e da realidade circundante não pode se aquietar com o manejo con-
vencional de técnicas prontas, requerendo um desafio constante de reflexão e
desenvolvimento. A unidade da ciência psicológica (e deste livro), não se deve
buscar numa homogeneidade de métodos e procedimentos, mas em razões além
das diversas circunscrições teóricas e requer a sabedoria e humildade de, relativa-
mente a cada desafio empírico, admitir a pluralidade de perspectivas e a inter-
veniência de pontos de vista distintos.
A diversidade teórico-metodológica que aqui se encontra combina-se a uma
solidariedade temática cujo eixo nem é propriamente o objeto destes estudos,
mas um acordo de fundo quanto à não redução da clínica a um enclausuramento
em problemas da ordem do individual e uma fina atenção a pungentes questões
sociais, articuladas a uma afiada busca de instrumentos conceituais ou sua depu-
ração. Além das fronteiras da rotina e do convencional, este livro proporciona um
Prefácio e Sumário vi
Tafuri, Zavaroni, Varella, Ribas, Schauder, França, Kollar, Pereira de Souza,
numa espécie de diálogo silencioso com a temática do direito reprodutivo que
mais propriamente se insinua ao raciocínio do leitor do que se explicita no texto,
abordam as dificuldades de Tornar-se pai: uma inquietante estranheza familiar.
Pela omissão ou ausência do pai não seria justo culpabilizar somente indivíduos
empíricos, sabendo-se o quanto culturalmente o conjunto de relações de nomina-
ção que tradicionalmente se suportam na referência paterna e as suas decorrên-
cias no plano do estatuto de si e da definição de quem somos e ao que viemos
têm sido sistematicamente minadas e desconstruídas em décadas recentes; o
que na nossa sociedade uma condição social de imigração intensa e recente, a ex-
propriação territorial de populações nativas que com as suas terras perdem parce-
la substantiva das suas referências identitárias e o deslocamento interatlântico de
populações escravizadas, só podem agravar. O abandono dos pais empíricos a si
mesmos parece se reproduzir no aparente descaso ou omissão relativamente à
sua prole e parceiras, no atinente ao legado e cuidado que expectativas tradicio-
nais de família na nossa cultura neles depositaria.
Ainda sobre a fragilização das relações familiares e pessoais no contexto da
sociedade atual, mas numa perspectiva que privilegia a análise da esfera pública
do trabalho, encontra-se o capítulo Ócio, tempo livre e trabalho: a fragilização do
indivíduo e das relações na sociedade pós-moderna, de autoria de Preuss, Mar-
tins e Maluschke. Já em Formação em saúde, perspectivas históricas e desafios
atuais, Silca, Pedrosa e Polejack procedem a uma revisão sistemática da forma-
ção em saúde no contexto brasileiro, abordada numa perspectiva histórica.
A atenção ao mundo da criança, na sua interdependência com a psicologia
dos seus cuidadores, encontra-se neste volume bem representada pela sua trans-
versalidade com o universo da saúde. É o caso de três capítulos, o primeiro, um
estudo empirico sobre a importância do brincar em situações de hospitalização in-
fantil, O brincar e narrar na hospitalização da criança: um modelo de intervenção
clínica, de autoria de Oliveira e Safra; e o segundo de autoria de Kholsdorf e Cos-
ta Junior, Effects of pre-consultation lists on information provided by pediatricians,
Prefácio e Sumário x
Esta crítica de cariz epistemológico obviamente pode se prolongar numa re-
flexão de cunho ético-político sobre o que se ganha, ou melhor, se perde com
isso. Acento que se explicita e percebe com nitidez numa segunda contribuição
deste tipo, Gênero, feminismos e sua inserção na psicologia clínica, de autoria de
Alves e Diniz, que sumariza de maneira didática e com clareza como questões de
gênero e as problematizações feministas podem e precisam se articular com a psi-
cologia clínica, a par de advogar a inserção de uma perspectiva feminista e de gê-
nero na psicologia clínica brasileira.
Também na mesma linha de estudos epistemológicos que implicam um enfo-
que crítico a respeito de métodos e clínica psicológica mais tradicionais, pode se
arrolar o capítulo Raconter sa vie: avec quels savoirs et pour quoi faire?, de Rhéau-
me, que resgata o protagonismo da narrativa em primeira pessoa, autobiográfica,
para o contexto de uma abordagem clínica, mediante revisão didática e exaustiva
por especialista de grande experiência nesse campo.
Outra contribuição teórica que se propõe a apresentar um modelo capaz de
incluir o paciente como sujeito do seu processo de tratamento e dá destaque ao
sentir e à agência é o capítulo O Pentagrama pathico de Weizsäcker, de autoria de
Martins e Neto, que visa introduzir o pensamento de um autor mal conhecido en-
tre nós.
A diversidade de propostas teóricas, embora dentro de um mesmo espírito
de respeito e valorização dos protagonismos das pessoas e das suas culturas em
dispositivos clínicos, faz-se ainda representar pelo capítulo de Zanello, Hosel, Soa-
res, Afonso e Soares dos Santos, Grupos anônimos de apoio: uma leitura dos fato-
res terapêuticos a partir da análise dos atos de fala, desta feita mediante a utiliza-
ção da teoria dos atos de fala, proposta por Austin e desenvolvida por Searle,
num trabalho de pesquisa empírica.
Também com base numa interlocução com a filosofia, mas de inspiração ra-
dicalmente diversa, interessada em auscultar o sentido para além da linguagem
verbal e decorrentemente para além da esfera linguística e comunicacional, embo-
Prefácio xii
Finalmente, em o Uso diagnóstico do tempo em psicanálise, Dunker, Chate-
lard e Maesso, sugerem convincentemente que seria possível refinar o diagnóstico
psicanalítico lacaniano para além da discriminação entre estruturas, mediante a
consideração do tempo.
Espero ter deixado claro que encontramos neste livro um rico painel de traba-
lhos notáveis pela aguda perspicácia político-epistemológica e cuja primeira voca-
ção é subsidiar pesquisas de ponta e se tornarem bibliografia imprescindível nas
suas áreas de pesquisa. Mas também oportunidades de leitura no campo da psi-
cologia que, pela qualidade e clareza de redação, podem constituir-se em excelen-
tes e bem fundamentadas introduções a vertentes multifacetadas da clínica psico-
lógica contemporânea e seus potenciais desenvolvimentos. Textos resultantes de
estudos conduzidos em sintonia com uma apreensão sensível e inteligente de de-
safios ocasionados pelo sofrimento humano e determinadas em enfrentá-los com
compromisso ético e rigor científico.
Faço votos de que os leitores, a quem me coube a honrosa missão de apre-
sentar o volume, possam usufruir do proveito e prazer com a sua leitura que expe-
rimentei ao preparar estas linhas.
xv
Sumário (continuação)
Capítulo Nome Autoras/es Pág.
Problemas Conceituais e de
Elisa Walleska Krüger Alves da Costa
17 Aplicabilidade da Psychopathy 377
e Ileno Izídio da Costa
Checklist – Revised (PCL-R)
Valeska Zanello, Graciela Hosel,
Grupos anônimos de apoio: uma
Larissa Sorayane Bezerra Soares,
18 leitura dos fatores terapêuticos a 404
Luana Aline Afonso e Mayara Soares
partir da análise dos atos de fala
dos Santos
O corpo que fala: a tatuagem na Luciana da Silva Rodriguez e Teresa
19 419
contemporaneidade Cristina O. C. Carreteiro
Márcia Cristina Maesso,
Escuta psicanalítica do corpo na
20 Ciomara Schneider e Daniela 436
contemporaneidade
Scheinkman Chatelard
xvi
Sumário (final)
xvii
Sobre Autoras e Autores
xviii
tornos e Dificuldades da Alimentação” (2011-2012) e no grupo “Psicodrama e Psi-
canálise”. Bolsista de Extensão-UnB (2012). E-mail: anasamarcos@gmail.com
Ana Massa
Doutora em sociologia pela Universidade Paris Diderot-Paris 7, doutora em psi-
cologia pela Universidade Federal Fluminense, membro associado do Laboratoire
de Changement Social et Politique da Universidade Paris Diderot- Paris 7, mem-
bro do CIRFIP (Centre International de Recherche, Formation et Intervention en
Psychosociologie), Paris. E-mail: anamassa@hotmail.com
Ciomara Schneider
Psicóloga com formação em Psicanálise. Especialista em Educação Especial, mes-
tre em Antropologia Social e doutoranda em Psicologia Clínica pela UnB. Professo-
ra do curso de Psicologia, na graduação e pós-graduação no Centro Universitário
de Brasília (UniCEUB). Área de atuação: clinica. E-mail: ciomarasch@gmail.com
Cristineide Leandro-França
Didier Drieu
Professor Assistente, habilitado a dirigir pesquisas em Psicologia Clínica e Psico-
patologia pelo CERReV, Université de Caen- Basse Normandie. Psicólogo, Psica-
nalista de família grupo e instituições. Pesquisa sobre adolescência e vulnerabilida-
de, nas problemáticas de transmissão nas famílias, nos grupos e nas instituições.
e-mail: didier.drieu@unicaen.fr
Francisco Martin
Gilberto Safra
Professor Titular da Universidade de São Paulo, IPUSP, Psicanalista. Autor dos li-
vros: A face estética do self: teoria e clínica. São Paulo: Unimarco, 2000; A Pro-éti-
ca na clínica contemporânea. São Paulo: Ideias e Letras, 2004, entre outros. E-
mail: iamsafra@yahoo.com
Gláucia Diniz
Mestre em Psicologia e Doutora em Terapia Conjugal e Familiar pela Alliant Interna-
tional University (antiga United States International University), Professora do Pro-
grama de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura do Instituto de Psicolo-
gia da Universidade de Brasília; pesquisadora sobre temas relacionados a gênero,
violência e saúde mental de mulheres em uma perspectiva sistêmica feminista. E-
mail: glauciadiniz13@gmail.com
Graciela Hosel
Psicóloga pela UnB, cursando especialização em Análise Comportamental. Traba-
lha na Clínica. E-mail: gracielahosel@gmail.com
Jacques Rhéaume
Doutor em Sociologia pela Universidade de Montreal, Professor Emérito do Depar-
tamento de Comunicação Pública e Social, da Université du Québec à Montréal.
Ele também é membro do Centro de Treinamento e Pesquisa, localizado no Cen-
tro de Saúde e Serviço Social (CSSS) de Montagne, em Montreal, e membro fun-
dador da Rede Internacional de Sociologia Clínica (Réseau International de Socio-
logie Clinique - RISC). E-mail: rheaume.jacques@uqam.ca
Janaína França
Psicóloga, Doutora em Psicologia Clínica (UnB), pesquisadora do Laboratório de
Psicopatologia e Psicanálise do IP/UnB. E-mail: janainaffc@yahoo.com.br
Larissa Polejack
Psicóloga, Doutora em Processo de Desenvolvimento Humano e Saúde (UnB/
2007), Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Clínica-PCL/IP, membro
do NDAE da Residência Multiprofissional do HUB. E-mail: larissapolejack@unb.br
Marcelo Tavares
Mestre em Psicologia e Doutor em Psicologia Clínica pela Alliant International Uni-
versity (antiga United States International University), Professor do Programa de
Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura do Instituto de Psicologia da Uni-
Marina Kohlsdorf
Psicóloga, Doutora em Psicologia, Professora do Centro Universitário de Brasília -
UniCEUB, Brasília, DF. Psicóloga da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito
Federal. E-mail: marinak@unb.br
Maurício S. Neubern
Doutor em Psicologia (UnB/2003) e Professor Adjunto do Depto. de Psicologia
Clínica da UnB. Seu principal projeto de pesquisa é "Complexidade, Hipnose e
Subjetividade nas Relações Terapêuticas", discutindo o tema da Hipnose em ter-
mos de história e epistemologia da Psicologia, relação entre clínica, transe e cul-
tura, espiritualidade e processos terapêuticos, hipnose e dores crônicas. E-mail:
mauricio.neubern@gmail.com
Priscilla Melo Ribeiro de Lima – Doutora em Psicologia Clínica e Cultura pela Uni-
versidade de Brasília (UnB). Professora adjunta do curso de Psicologia da Faculda-
de de Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG). Coordena o Grupo de
Estudos e Pesquisas sobre Velhice (GEPEV) na Universidade Federal de Goiás. E-
mail: primlima@gmail.com
Richard de Oliveira
Gilberto Safra
Introdução
A hospitalização é uma ocasião potencialmente traumática do ponto vista
psicológico para as crianças (Motta & Enumo 2004; Ribeiro & Pinto Junior, 2009).
Afasta a criança de sua vida cotidiana, do ambiente familiar e promove uma
experiência dolorosa para a criança e seus familiares. Diversos sentimentos
emergem dessa situação, provocando dúvidas, angústias, sofrimento e dor. A
hospitalização da criança costuma ser vivenciada por ela com grande sofrimento
psíquico potencializado pelo distanciamento do ambiente familiar, e por submetê-
la a procedimentos e rotinas hospitalares. Durante a internação, a criança tem o
seu corpo disponível para tratamento e para investigação, a sua privacidade fica
subordinada à dinâmica hospitalar; tor nando-se uma experiência
demasiadamente intrusiva e vivenciada como uma dolorosa situação de
passividade (Oliveira, 2005).
Tendo em vista essas questões, realizamos uma pesquisa na qual, por meio
de intervenções em ambiente hospitalar, investigamos como o brincar poderia vir
35
a contribuir para auxiliar a criança a lidar com as decorrências psicológicas de sua
hospitalização. Para realizar esse trabalho usamos como arcabouço teórico a
contribuição de Winnicott.
Segundo Ribeiro e Pinto Junior (2009), receber um diagnóstico de
adoecimento, enfrentar a situação de hospitalização e se ver diante de
procedimentos invasivos, sejam eles para fins de diagnósticos, terapêuticos ou
cirúrgicos, não é algo simples e exige uma reestruturação psíquica da criança,
bem como dos familiares.
Nessa perspectiva, a promoção do brincar na ocasião da hospitalização
infantil pode mostrar-se uma potente estratégia preventiva e terapêutica,
promovendo melhoras significativas do bem estar físico e psicológico da criança.
Torna-se importante propiciar atividades lúdicas à criança hospitalizada,
especialmente porque ao brincar ela altera o ambiente em que se encontra e
aproxima-se da sua realidade cotidiana. A atividade recreativa, livre e
desinteressada, tem um efeito terapêutico, uma vez que auxilia na elaboração de
emoções e sentimentos e na promoção do bem-estar dos pacientes (Favero,
Dyniewicz, Spiller & Fernandes, 2007; Motta & Enumo, 2004; Mussa, 2008;
Oliveira, 2005).
Entre outras coisas, o brincar possibilita que a criança coloque em jogo a sua
condição e saia do estado psicológico de passividade. Nesse sentido, o brincar
pode ser visto como uma experiência capaz de promover a continuidade do
desenvolvimento infantil e também possibilitar à criança hospitalizada a
elaboração desse momento especial em sua vida.
Essa reconhecida importância do brincar tem gerado pesquisas, baseadas
em diferentes referenciais teóricos, e o consequente desenvolvimento de técnicas
de intervenção, que foram adaptadas às várias variáveis que compõem um
contexto hospitalar (Mitre & Gomes, 2004).
Winnicott (1971/1975) apresenta a noção de brincar como um fenômeno da
expressão humana que acontece em uma zona intermediária da experiência, entre
Sob esse prisma, que identifica o brincar com saúde psíquica, como algo
universal e natural do ser humano, a hospitalização apresenta duas facetas que
imediatamente podemos identificar como potencialmente inibidoras do brincar: o
distanciamento do familiar e a situação de passividade diante dos procedimentos
da rotina hospitalar. Ambas contribuem para que o brincar da criança seja inibido,
pois interferem de modo significativo no cotidiano da criança, impedindo, na
Caso clínico
O pesquisador acabava de sair de um atendimento, quando passou em
frente ao quarto no qual se encontrava a menina. Ela estava bastante pálida, com
suor no rosto, e olhava para o clínico com curiosidade. Encontrava-se deitada em
um leito com a agulha do soro introduzida no braço. O pesquisador entrou no
quarto sorrindo, e ela retribuiu o sorriso.
Ela o olhou com curiosidade, mas seu semblante era abatido. Observou que
a menina tinha, a seu lado, um sapinho de pano bem roto.
Como ela parecia triste, o pesquisador perguntou a ela Qual seu nome? Ela
virou para o outro lado, envergonhada. A mãe, que estava a seu lado, disse que o
nome dela era Fernanda1. Perguntou-se o que a criança tinha. A mãe respondeu
que a menina havia tido febre alta durante toda noite, teve diarreia e vômitos. Por
essa razão, havia trazido a menina para o Hospital. Indagada sobre a idade de sua
filha, respondeu que ela tinha três anos. Fernanda tinha, por ocasião da consulta,
três anos e sete meses de idade.
O pesquisador perguntou para Fernanda se o sapinho era dela. Ela o olhou
timidamente, e rapidamente virou o olhar para o sapinho e o pegou, escondendo
______________
(1) Trata-se de nome fictício, para manter o anonimato da paciente.
O texto propõe uma discussão da "queixa alimentar" trazida pelos pais na clí-
nica psicanalítica com crianças. Segundo Freud, o psiquismo subverte a função
da alimentação e transforma-a no campo por excelência onde o bebê
encontrará os elementos essenciais da sua constituição psíquica e, de modo mais
radical, de sua humanização. As queixas em torno da alimentação vêm compor
uma dinâmica onde o alimento entra como elemento essencial da economia psí-
quica da criança, de seus cuidadores e da relação entre os sujeitos da díade ou
mesmo da tríade.
A queixa alimentar tem sido frequentemente problematizada no contexto da
clínica psicanalítica com adolescentes e adultos. No entanto, ela também tem sus-
tentado inúmeros pedidos de análise na clínica com crianças. Seja como recusa
_______________
(1) Este artigo é uma versão modificada de trabalho apresentado no V Congresso Internacional de
Psicopatologia Fundamental e XI Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental realizado em
Fortaleza, Ceará, Brasil, de 6 a 9 de setembro de 2012.
51
ou como excesso, esta queixa aparece associada a questões que na sociedade
moderna ganharam posição de destaque, como a saúde e o desenvolvimento ade-
quado da criança e a competência de seus cuidadores em possibilitarem que os
alcance. Além disso, com as implicações diretas que a alimentação traz à saúde
da criança, é frequente nos depararmos na clínica com pedidos de atendimento
que conduzam rapidamente a criança a uma mudança frente à alimentação. A ur-
gência da demanda é sustentada por recomendações médicas e nutricionais.
Este é um aspecto importante na clínica psicanalítica onde as queixas alimen-
tares amparam o pedido de atendimento, pois a angústia e a urgência que permeiam
a solicitação dos pais precisam ser escutadas em um setting onde a relação trans-
ferencial possa sustentar o tempo de acontecimento da análise da criança.
A recusa alimentar parece ser particularmente perturbadora para os pais. De
algum modo, a criança que se recusa a comer coloca em xeque o lugar parental
daqueles que se ocupam em oferecer-lhe a alimentação. Nos casos em que existe
uma forte recusa alimentar, ao invés de satisfação e prazer, encontramos crianças
vivenciando o momento da alimentação com sofrimento e angústia. Nestes casos,
se de um lado temos um adulto que oferta, do outro, temos uma criança que recu-
sa. A questão que se coloca de início é o que está sendo ofertado e o que está
sendo negado no “jogo alimentar” que se desenrola entre a criança e seu cuida-
dor?
Em relação à anorexia, alguns autores (Fuks & Campos, 2010; Lacan, 1958/
1998) propõem que o sujeito que se nega a comer lida com sua recusa como um
desejo, como uma tentativa desesperada de se sustentar diante de um outro que
lhe invade e, em última instância, o inviabiliza. Negar aquilo que a mãe lhe deman-
da através da oferta do alimento pode ser um modo de existir, de não desapare-
cer nas demandas imperiosas do outro. Do lado da mãe, na impossibilidade de
confrontar-se com um bebê real que não reafirma o bebê imaginário reparador de
suas próprias vivências traumáticas inconscientes, parece impor-se a demanda de
que esse bebê lhe garanta a posição materna através do acolhimento incondicio-
nal daquilo que ela lhe propõe. Assim, a mãe não consegue, muitas vezes, acolher
Introdução
O presente trabalho é parte integrante dos estudos desenvolvidos no âmbito
da pesquisa internacional “Prevenção em Perinatalidade”, coordenada por Claude
Schauder, da Universidade de Strasbourg, França, em cooperação com a
Universidade de Brasília, a Universidade Paulista do DF e a Universidade Federal
de Pernambuco -CAV. A equipe de Brasília é coordenada pelas Professoras Dras.
Maria Izabel Tafuri, Dione Lula Zavaroni, do Departamento de Psicologia Clínica da
62
Universidade de Brasília, e pela Prof. Dra. Maria do Rosário Dias Varella, da
Universidade Paulista (UNIP). Em Recife, a equipe está sendo dirigida pela
Professora Dra. Maria Cicilia de Carvalho Ribas, da Universidade Federal de
Pernambuco -CAV e sócia fundadora do CPPL (Centro de Pesquisa em
Psicanálise e Linguagem). Participam também da pesquisa mestrandos e
doutorandos do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura, do
Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília.
O objetivo aqui é o de discutir sob o âmbito da prevenção os dados parciais
obtidos da análise de entrevistas dos homens, no primeiro trimestre de gestação
do futuro filho, apresentados em um recente trabalho publicado por Tafuri et al.
(2012). Nesse trabalho iremos nos reportar apenas às questões teóricas e clínicas
oriundas dos dados coletados sobre as expectativas dos homens em relação ao
processo do tornar-se pai. O ponto de partida é o de conhecer as expectativas e
as demandas dos homens, por meio da escuta atenta dessa população, durante o
período perinatal, para elaborar programas de prevenção.
Questões terminológicas
O termo parentalidade foi criado no Brasil, assim como na França (parentalité)
e nos Estados Unidos (parenthood), a partir dos estudos sobre o complexo
processo do tornar-se pai e tornar-se mãe (Solis-Poton, 2004). O neologismo foi
descrito pela primeira vez em 1956, por Therese Benedek, nos Estados Unidos e,
posteriormente, por Paul-Claude Racamier (1961), na França. Paralelamente à
criação desse neologismo surgiu também o de paternalidade para evocar,
especificamente, o aspecto dinâmico e processual da vivência do homem em
tornar-se pai. O processo da paternalidade caracteriza-se pelo confronto
vivenciado diante das transformações profundas de identidade e da revivência de
conflitos arcaicos, caracterizando-se como uma nova fase evolutiva da
personalidade (Benedek, 1959).
Maria I. Tafuri, Dione L. Zavaroni, Maria R. D. Varella, Maria C.C. Ribas, Claude Schauder,
Janaína França, Rosária F. Kollar, Laura A.M. P. Souza 63
Vale considerar que a criação de novos termos em uma dada cultura, como
no presente caso, o neologismo parentalidade, pode trazer consequências das
mais diversas. Nos Brasil, por exemplo, o termo paternidade, oriundo do latim
paternitate, tem a seguinte definição: 1. Qualidade do que é pai. 2. Título que
muitas vezes se dá aos religiosos. 3. Qualidade de autor de uma obra. Utiliza-se
pai adotivo o que resulta de adoção. Pai ilegítimo ou natural, o que provém de
união ilícita. Pai legítimo, o que decorre de casamento legal ou putativo (Weiszflog,
1998). O termo paternalidade refere-se à qualidade de paternal. Como se pode
ver, as definições presentes na cultura brasileira não enfatizam o “processo
psíquico do tornar-se pai”. Portanto, para o contexto dos estudos psicanalíticos e
psicológicos acerca do tema, o termo paternalidade não contempla a
especificidade desejada.
Face às considerações apresentadas, passamos a utilizar a expressão tornar-
se pai, em detrimento dos termos de parentalidade e paternalidade, por espelhar,
de forma mais sensível, o “processo psicológico do vir a ser pai”. A ênfase aqui é
o de refletir o processo psíquico do tornar-se pai.
Maria I. Tafuri, Dione L. Zavaroni, Maria R. D. Varella, Maria C.C. Ribas, Claude Schauder,
Janaína França, Rosária F. Kollar, Laura A.M. P. Souza 65
de chegar para conversar. Pô, o fulano tá cansado, aí do mesmo jeito eu
me sinto (...) Depois dessa gravidez parece que a gente tá se afastando
(P17)
o comportamento dela assim, todo mundo sabe que a mulher quando
engravida, muda o comportamento, né! (...) o que me incomoda é a falta
de paciência dela, em não aceitar os enjôos, gravidez não é doença (...)
os profissionais tinham que aconselhar mais nisso. (P17)
nosso hábito não mudou muito. Eu principalmente, né? Nessa parte eu
estou mais de coadjuvante... eu tento ajudar, mas não tem um reflexo
direto na minha vida ainda, no meu corpo, no meu organismo, mas tem
esse reflexo indireto de ter que ajudar ela um pouco mais em casa, pra
não sobrecarregar... eu não consigo entrar no universo dela, porque eu
não sinto todas as reações que ela sente (P8).
Maria I. Tafuri, Dione L. Zavaroni, Maria R. D. Varella, Maria C.C. Ribas, Claude Schauder,
Janaína França, Rosária F. Kollar, Laura A.M. P. Souza 67
Um dos dados mais significativos da pesquisa realizada com os homens, no
período dos três primeiros meses da gestação, foi a revelação de um sentimento
de mal-estar quando se sentem apenas no lugar de “pai coadjuvante” e
“provedor” (Tafuri et al., 2012). A experiência revelada pela grande maioria dos
homens entrevistados é a de acompanhar a gestante nos serviços de
perinatalidade, consultas médicas e exames de ecografias. E o mais significativo,
a grande maioria dos homens parece resignada à própria sorte, cumprir um papel
social já determinado pela cultura a que estão submetidos. A vivência de pai
provedor, preocupar-se unicamente com as questões práticas, materiais e
financeiras da chegada do filho, é a mais falada pelos homens. Uma pequena
parcela da amostra apresentou o ressentimento de não ser, nem ao menos, visto
como uma pessoa, pelas equipes de saúde, que também passa por ansiedades,
medos e sintomas orgânicos, durante o período da perinatalidade.
Chegamos à conclusão que a grande maioria dos homens entrevistados não
apresenta expectativas em relação ao “si mesmo” diante dos profissionais da
saúde. Ou seja, ser visto, escutado, acolhido e cuidado como futuro pai não
parece ser, nem ao menos, uma expectativa da grande maioria dos homens
entrevistados. O que nos causou uma inquietante estranheza, pois até então os
pesquisadores se queixavam da ausência dos homens para fazerem as
entrevistas. Tanto os pesquisadores brasileiros quanto os dos outros países
(também participam da mesma pesquisa Canadá, Rússia e China) manifestaram a
mesma situação, a pouca participação dos homens como sujeitos da pesquisa.
Começamos então a refletir as queixas das equipes sobre o 'pai ausente' a partir
da demanda reprimida do homem, a de não ser escutado como sujeito
protagonista da gestação. Ao que parece, mais uma vez, o futuro pai se viu
apenas como coadjuvante da cena ao ser convidado para participar da pesquisa.
Desse lugar de coadjuvante, ele tende a responder pela não participação, ele se
exclui. E as equipes tendem a repetir um jargão, socialmente veiculado a longas
décadas, a ideia do “pai ausente”.
O estranho familiar
Propomos a partir da noção freudiana do estranho familiar, percorrer as
diferentes passagens que, na obra do autor, tratam do romance familiar. Mais
propriamente, trataremos de verificar em que medida a noção do estranho permite
refletir o mal estar dos homens no período perinatal face aos profissionais da
saúde. Ou seja, lançaremos mão desta categoria freudiana como um operador na
análise da demanda reprimida dos homens da nossa amostra.
Segundo Freud (1919/1986), a palavra alemã “unheimlich” é obviamente o
oposto de “heimlich” [‘doméstica’], “heimisch” [‘nativo’] - o oposto do que é
familiar. Por ser o oposto, somos tentados a concluir que aquilo que é ‘estranho’ é
assustador porque não é conhecido e, nem tão pouco, familiar. Entretanto, a partir
da leitura das leis do inconsciente, nem tudo o que é novo e não familiar é
assustador; a relação não pode ser, simplesmente, invertida. Freud nos traz uma
novidade fundamental para compreendermos o sentimento de estranhamento,
“algo tem de ser acrescentado ao que é novo e não familiar, para torná-lo
estranho”.
Maria I. Tafuri, Dione L. Zavaroni, Maria R. D. Varella, Maria C.C. Ribas, Claude Schauder,
Janaína França, Rosária F. Kollar, Laura A.M. P. Souza 69
A categoria de estranho oriunda de complexos reprimidos é muito resistente,
pois é oriunda da angústia da castração. Freud nos mostra a ligação da angústia
ao retorno do recalcado. O recalque transforma aquilo que é mais íntimo ao
sujeito naquilo que lhe parece mais estranho. O estranho provém de complexos
infantis reprimidos, do complexo de castração, das fantasias de estar no útero
etc. Como se pode ver, as experiências que podem provocar o sentimento de
estranheza se originam a partir dos complexos infantis. A preocupação com as
questões materiais, as de pai provedor, parecem surgir no lugar de uma realidade
psíquica reprimida. Poderíamos dizer que, o que fora reprimido é a demanda do
pai de ser escutado como uma pessoa também em estado de gravidez, um
determinado conteúdo ideativo e, o retorno do recalcado, estaria relacionado à
realidade material, a do pai provedor. Há de se levar em conta, também, as
crenças animistas das pessoas civilizadas, os papéis sociais a que estão
submetidas, em maior ou menor medida, e que podem ou não ser superados.
Só podemos dizer que aquilo que é novo pode tornar-se, repentinamente,
assustador e estranho, como visto pelo relato dos homens entrevistados sobre o
sentimento deles face à notícia da gravidez. O processo do tornar-se pai passa
inicialmente, para a grande maioria dos pais, por uma situação de espanto, susto,
surpresa e estranhamento. De modo algum os mesmos sentimentos para todos
os homens. Para alguns, o estranhamento pode ser mais impactante que para
outros, dependendo dos conteúdos inconscientes de cada sujeito. Por meio da
análise das entrevistas foi possível observar que o sentimento inicial de
estranhamento começa a se tornar menos ameaçador depois do terceiro mês de
gravidez, para a grande maioria dos pais, pela consideração de ter ultrapassado o
período mais crítico de risco de interrupção da gravidez. O que nos leva a pensar
na proposta de Freud sobre o algo a ser acrescentado ao novo para se tornar
estranho, a angústia de perda. Ao se ter a notícia da gravidez, a grande maioria
dos homens apresenta a reação de susto e o sentimento de estranhamento
proveniente de conteúdos inconscientes referentes à angustia de perda e de
castração. O que se percebe no decorrer dos três primeiros meses é a tendência
Considerações finais
O homem, no período perinatal, por não encontrar escuta às suas
inquietações pessoais pelos profissionais de saúde, se encontra hoje em situação
de risco psicossocial. Por outro lado, pesquisadores e profissionais de saúde
precisam criar uma sensibilidade maior para formar redes de escuta e atenção
para o homem no período perinatal. E o mais importante, um programa que leve
em conta não apenas a oferta de atenção, mas uma mudança de paradigma em
relação à perinatalidade, qual seja, ofertar um espaço de escuta no qual o homem
possa ser acolhido como protagonista da cena, da mesma forma que a mulher.
Uma mudança não apenas profissional, mas também, cultural, social e política.
Maria I. Tafuri, Dione L. Zavaroni, Maria R. D. Varella, Maria C.C. Ribas, Claude Schauder,
Janaína França, Rosária F. Kollar, Laura A.M. P. Souza 71
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Marina Kohlsdorf
Áderson Luiz Costa Junior
Apresentação
O tratamento de neoplasias na infância implica na necessidade de que crianças
e seus cuidadores sejam expostos a protocolos de tratamento prolongados, com
sessões de quimioterapia e a outros procedimentos médicos invasivos. As quei-
xas relacionadas ao intenso sofrimento físico e psicológico, decorrentes de even-
tos de internação hospitalar, bem como às dificuldades de comunicação com mé-
dicos e equipes de saúde, são frequentes. Este capítulo descreve um estudo que
analisou os efeitos de uma intervenção psicológica, breve, sobre a qualidade da
informação fornecida por pediatras a cuidadores e crianças. Dois médicos e 32
díades criança-cuidador participaram da pesquisa, e um total de 103 consultas
médicas de rotina, em onco-hematologia pediátrica, foram gravadas em áudio, ao
longo de duas fases, linha de base e intervenção. Durante a intervenção, crianças
e cuidadores foram entrevistados antes das consultas médicas, sendo solicitado
que referissem dúvidas e questões que gostariam que fossem respondidas pelos
médicos. Todos os temas foram registrados em um protocolo, que era anexado à
capa do prontuário da criança, esperando-se que servissem de guia, ao médico
para conduzir a consulta. O uso do protocolo aumentou significativamente a quan-
73
tidade de informações fornecidas pelo médico aos cuidadores e crianças, com in-
clusão de temáticas relacionadas a atividades escolares, sequelas do tratamento,
risco de recidivas, autocuidado, necessidades de higiene, lazer e alimentação, prá-
ticas educativas parentais e estratégias de enfrentamento. O capítulo ainda desta-
ca as vantagens deste procedimento como facilitador e promotor da relação entre
médicos e usuários do sistema de saúde.
Method
Participants
Two pediatricians (Physician A and Physician B) in a pediatric cancer hospital
participated, respectively with ages 49 and 32 years old and 26 and seven years of
medical practice. Besides those two physicians, 32 dyads caregiver-child partici-
pated, with 29 mothers, two grandmothers and one father. Table 1 shows charac-
teristics from parents and children.
Table 1
Characteristics from parents and children
Characteristics from parents and children Frequency
Children´s age
4 to 6 years old 15
7 to 10 years old 11
11 to 12 years old 6
MEAN (SD) 7,5 years old (2,7)
Diagnosis number
Leukemia or lymphoma 22
Solid tumors 10
Caregivers ages
22 to 35 years old 18
36 to 56 years old 14
MEAN (SD) 35 years old (7,42)
Caregivers´ schooling
Junior high school 15
High school or college degree 17
Patients´ siblings
Zero 5
1 to 2 siblings 21
More than 2 siblings 6
Family income
Low income 18
Medium income 14
Procedure
This study was first approved by Ethics Committee in Health and Science
Foundation in Federal District (FEPECS), under register 301/09, number 289/2009.
All audio recordings or written information are sealed in a confidential archive,
password protected. The research took place in a hospital that receives children
and adolescent for cancer treatment. All participants - physicians, caregivers and
children, on behalf of their parents - were first approached and asked to partici-
pate in this study, by signing an Informed Consent Form, and only three dyads
caregiver-child refused participation. This study is characterized as a single-
subject design concerning the two physicians that took part, and it was divided in
three phases: (1) Baseline 1; (2) Intervention Phase; and (3) Baseline 2, however
Physician B could not be included in the second Baseline. In both Baselines, con-
sultations were audio recorded and directly observed by a researcher, without any
Data analysis
In this study, data analysis was organized in three topics: (1) quantitative
amount of information provided, comparing the three different stages of the study;
(2) content included in information, according to categories in Appendix; and (3) ef-
fects of the pre-consultation list on information provision, based on functional
analysis of behavior - the antecedent event that promoted behavior related to infor-
mation provision by physician was analyzed according to three main events: (a) di-
rect verbal solicitation from caregiver or child; (b) use of pre-consultation list; or (c)
other events.
Direct verbal solicitation from caregiver or child corresponded to questions,
comments or direct demands for information, for example when the caregiver
asked "doctor, when will the treatment end?" or when the child cried and pro-
Results
In the first Baseline, 31 consultations were recorded (15 with Physician A and
16 with Physician B) and in Intervention Phase, 56 consultations were recorded (23
with Physician A and 33 with Physician B). Physician B could not take part in the
second Baseline, therefore there were 16 consultations recorder only with Physi-
cian A. Figure 1 shows the information in average provided by each physician, in
each phase of the study.
Figure 1 highlights the exclusion of children in communication during consulta-
tions, since they received less amount of information from physicians when com-
pared to caregivers. There were relevant differences in each phase of the study. In-
formation provided by Physician A specifically to caregivers increased 120% be-
tween Baseline 1 and Intervention, and decreased 31% between Intervention and
Baseline 2. Comparing both Baselines, information provided by Physician A to
caregivers increased 51% between these two phases. The average amount of in-
formation provided to caregivers by Physician B also showed relevant results,
since it increased 99% between Baseline 1 and Intervention.
In fewer amounts, information provision directed to children also showed re-
markable differences between study phases. Comparing Baseline 1 and Interven-
tion, this behavior increased 199% in Physician A consultations and 35% for Physi-
cian B consultations. However, this change in communication pattern was not
maintained by Physician A, since it decreased 39% between Intervention and
Table 2
Content of information provided to caregivers in consultations (in average).
Information provided Physician A Physician B
Baseline Interven Baseline Total Baseline Interven Total
1 tion 2 1 tion
Exams, evaluations, medical 3.2 6.7 7.56 272* 5.56 11.15 457*
procedures
Self care, hygiene, leisure activities 0.2 1.74 0.63 29 1.56 4.51 174*
School activities - 1.3 - 21** - 2.03 67**
Diet and feeding 0.33 2.96 0.44 53** 1.69 4.20 165*
Hospital admission or treatment 5.87 6.35 6.81 301 11.25 15.36 687*
plan
Medication 2.47 3.91 1.81 147* 3.19 6.36 261*
Coping with side effects, fever, 0.47 2.43 1.00 54* 1.37 7.54 271**
infections
Biological aspects of cancer and 1.13 1.65 0.69 42 3.44 5.88 249*
treatment
Health service information 1.33 2.65 3.06 108 3.25 4.24 198*
How to cope with difficulties in 0.07 1.65 0.19 31* 2.06 2.85 127
treatment
Educative parental practices 0.07 1.39 0.56 27 0.75 2.88 107*
Sequelas or relapses - 0.48 0.06 12 0.12 1.25 43
Table 3
Content of all information provided to caregivers by antecedent events (in per-
centages).
Information provided Physician A Physician B
Other Pre- Caregiver Other Pre- Caregiver
events consulta solicitation events consulta
solicitation
tion list tion list
Exams, evaluations, medical procedures 50* 16* 34* 49** 19** 32**
Self care, hygiene, leisure activities 2* 91* 7* 22 46 32
School activities 13 67 20 6** 64** 30**
Diet and feeding 3* 81* 16* 13** 80** 7**
Hospital admission or treatment plan 42* 35* 23* 47** 22** 31**
Medication 63* 13* 24* 63** 5** 32**
Coping with side effects, fever, infections 23 43 34 33 37 30
Biological aspects of cancer and 2* 77* 21* 28 29 43
treatment
Health service information 34 28 38 62** 12** 26**
How to cope with difficulties in treatment 3 76 21 53** 37** 10**
Educative parental practices 20 74 6 36 43 21
Sequelas or relapses - 100* - 10 41 49
Table 4
Content of information provided to children in each study phase (in average).
Information provided Physician A Physician B
Baseline Interven Baseline Total Baseline Interven Total
1 tion 2 1 tion
Exams, evaluations, medical 2.27 2.13 3.06 118 3.00 9.70 152
procedures
Self care, hygiene, leisure activities 0.07 1.3 0.31 28 1.00 2.06 84
School activities - 0.7 - 11* 0.06 1.09 37*
Diet and feeding - 0.61 0.38 18 0.94 1.07 48
Hospital admission or treatment plan 1.4 3.26 2 104 3.31 2.24 127
Medication 0.13 0.17 0.19 9 0.06 0.07 3
Coping with side effects, fever, - 0.78 0.31 20* 0.19 1.21 43
infections
Biological aspects of cancer and 0.07 0.7 0.25 17 0.19 0.85 31
treatment
How to cope with difficulties in 0.07 1.78 0.69 45* 1.75 2.15 99
treatment
Sequelas or relapses - 0.35 - 8* - 0.33 11
*p< 0.05
Discussion
This paper presents an analysis regarding the effects of pre-consultation lists
on information provided by pediatricians. Results show that this procedure influ-
enced the communication with caregivers and children, contributing to decrease
the lack of graduation training in triadic communication that is referred by literature
(Dubé et al., 2003; Howells et al., 2006; Howells & Lopez, 2008; McGraw et al.,
2012; Nestel et al., 2004; Nobile & Drotar, 2003; Tates & Meeuwesen, 2001).
Specifically, there was a relevant increase in the amount of information pro-
vided by physicians to caregivers during Intervention, and the pre-consultation
lists promoted orientations about some specific issues: school activities, sequelas
or relapses, self care, hygiene and leisure activities, diet and feeding, biological as-
pects of cancer and treatment, educative parental practices and coping with diffi-
culties in treatment. It seems that this intervention may be related to tailored com-
munication that focus on individual demands from caregivers, as desirable accord-
ing to studies in literature (Aburn & Gott, 2011; Coyne & Gallagher, 2011; Coyne &
Harder, 2011; Darby, 2002; Howells & Lopez, 2008; Lambert, Glacken, & McCar-
100
referentes aos dados obtidos nos questionários aplicados à amostra de famílias
do Distrito Federal.
Entendemos a família como parte de uma comunidade, indissociável do con-
texto ao qual pertence, recebendo influências e influenciando, o que não permite
uma visão isolada do seu entorno. Daí a importância do trabalho com família em
seus diferentes ambientes: social, econômico e cultural. Assim, é fundamental con-
siderar as peculiaridades da organização e estrutura familiar em um país tão diver-
so quanto o nosso.
Maria Inês Gandolfo Conceição, Liana Fortunato Costa, Maria Aparecida Penso, Claudia Fukuda e Monique
Guerreiro de Moura. 101
refletem, basicamente, as filiações, as tensões, a hierarquia do poder e os pa-
drões de autoridade.
Maria Inês Gandolfo Conceição, Liana Fortunato Costa, Maria Aparecida Penso, Claudia Fukuda e Monique
Guerreiro de Moura. 103
Conceitos de papéis familiares
O conceito de papéis familiares constitui-se como um dos aspectos princi-
pais, embora não seja o único, da Teoria Sistêmica, em razão da sua importância
para o desenvolvimento dos processos de individuação e pertencimento grupal, e
para a saúde emocional do sistema familiar (Féres-Carneiro, 1998). Um papel só
pode ser definido em um sistema de oposição e complementariedade em relação
com outros papéis; e todos os papéis familiares são interdependentes (Miermont,
1994; Minuchin & Fishman 1990; Simon, Stierlin & Wynne, 1988).
Papéis de pai e mãe - A parentalidade se reveste de características diferentes
para o homem e para a mulher (Bradt, 1995). Se o compromisso da mulher come-
ça com a gravidez, por razões biológicas óbvias, o pai, por sua vez, só começa a
se sentir como um pai após o nascimento ou mais tarde (Minuchin, 1982). Muitos
pais não aceitam o papel de pais até que os bebês crescem o suficiente para co-
meçar a corresponder a eles (Nichols & Schwartz, 1998). Entram aqui também fato-
res ligados à representação social dos papéis de pai e mãe. Estudos mostram que
ainda predomina o modelo tradicional do pai enquanto provedor e da mãe como
cuidadora dos filhos e da casa (Marques, 2001; Trindade, Andrade & Souza, 1997;
Trindade, 1993). Mas alguns estudos já apontam para a atribuição de outras fun-
ções ao pai, como: acompanhar, educar e preparar para a vida e para o futuro,
além de dar carinho, amor e atenção (Trindade & Menadro, 2002).
A possibilidade de assumir papéis de pai e mãe está relacionada também ao
grau de satisfação das suas necessidades nos papéis de filhos vividos nas suas
famílias de origem, no âmbito da diferenciação do eu de cada um (Bowen, 1976,
1991; Castilho, 1994; Jones & Wells, 1996; Simon et al., 1988).
Relações entre parentalidade e conjugalidade - Quando nascem os filhos, os
pais precisam assumir a responsabilidade de criação, ao mesmo tempo em que
tentam manter o seu próprio relacionamento, sendo que uma relação de qualida-
de entre o casal pode ajudar na consolidação da função parental (Bigras & Paquet-
te, 2000; McGoldrick & Gerson, 1995).
Maria Inês Gandolfo Conceição, Liana Fortunato Costa, Maria Aparecida Penso, Claudia Fukuda e Monique
Guerreiro de Moura. 105
que possibilitam relações de intimidade e dependência entre os membros da famí-
lia.
Conceitos de mito familiar, rituais e memória - A noção de que, do mesmo
modo que a sociedade cria mitos que justificam sua existência, a família também
possui um modelo mítico que garante a sua coesão interna e proteção externa, foi
introduzida na Terapia Familiar há quatro décadas por Ferreira (1963):
O mito, como qualquer mecanismo de defesa, protege o sistema contra
a ameaça de destruição e caos. Ele tende a manter, e algumas vezes,
até aumentar, o nível de organização da família pelo estabelecimento de
padrões que se auto perpetuam, com a circularidade e auto-correção ca-
racterística de qualquer mecanismo homeostático (Ferreira, 1963, p.
462).
Maria Inês Gandolfo Conceição, Liana Fortunato Costa, Maria Aparecida Penso, Claudia Fukuda e Moni-
que Guerreiro de Moura. 107
Perpetuando o mito familiar, os rituais contribuem para manter a identidade
familiar, sinalizando as transições normativas do Ciclo de Vida Familiar e ajudando
os membros da família no manejo e resolução dos conflitos, pela possibilidade de
expressão das emoções (Imber-Black, 1994). No entanto, do mesmo modo que os
ritos são importantes e úteis para a sobrevivência do sistema familiar, eles tam-
bém podem ser altamente destruidores, caso se tornem muito rígidos e não passí-
veis de mudanças.
Conceito de lealdades familiares – A lealdade familiar é definida por Boszor-
menyi-Nagy e Spark (2001) como uma trama motivacional, tipicamente dialética,
de raízes multipessoais, que implica na existência de expectativas estruturadas de
grupo, onde todos os membros adquirem um compromisso; possuindo assim um
forte componente de obrigação ética. Portanto, é um conceito fundamental para
compreendermos a estruturação mais profunda das famílias.
Método
Os participantes foram famílias consideradas de classe média por indicado-
res como renda familiar, escolaridade, bens e serviços dos quais dispõem, em to-
das as fases do Ciclo Vital, no território brasileiro. A classificação foi baseada nas
pesquisas das condições de vida (PCV) da Fundação SEADE. A escolha deste gru-
po se justifica por ser considerado socialmente como aquele que mais contribui
para a manutenção dos valores veiculados pelos meios de comunicação de mas-
sa, como os elementos responsáveis pela ascensão social e pertinência ao grupo
dos que “venceram na vida”.
Tomou-se o cuidado, ainda, de entrevistar cerca de 50 famílias pertencentes
a cada uma das quatro etapas do ciclo de vida. Utilizou-se a amostragem de con-
veniência; as famílias pesquisadas pertenciam ao círculo de conhecimento dos alu-
nos do curso de Psicologia de ambas as universidades. O critério de inclusão na
amostra era de pertencer a uma família que se enquadrasse em uma das quatro
etapas do ciclo de vida.
Resultados e discussão
Iniciaremos nossa discussão apresentando as informações que compõem um
perfil socioeconômico das famílias participantes. O questionário sobre o ciclo vi-
tal da família foi respondido no Distrito Federal (DF) por 200 participantes, sendo
74,5% mulheres e 25,5% homens. Mais da metade dos participantes (54%) residiam
em Brasília (composta pelo Plano Piloto e suas imediações) e os demais partici-
pantes residiam em outras Regiões Administrativas ou Entorno do DF (43,5%) ou
não informaram o local de residência (2,5%); em residência própria (74%), aluga-
da (16%), cedida (4,5%), com parentes (4%) e 1,5% não informaram o tipo de resi-
dência. Trata-se, portanto, de uma amostra de classe média, que reside em áreas
nobres do Distrito Federal e em residência própria.
Sendo o DF um estado novo (pouco mais de 50 anos de criação), identificou-
se que 72,5% das famílias foram formadas em outras localidades, porém essas fa-
mílias já residiam no DF há mais de 20 anos (58,3%) e apenas 5% vieram para Ca-
pital do país há menos de 5 anos. O Sudeste é a principal região de origem da
Maria Inês Gandolfo Conceição, Liana Fortunato Costa, Maria Aparecida Penso, Claudia Fukuda e Monique
Guerreiro de Moura. 109
maioria dos homens não nascidos no DF, com 37%, seguido por Nordeste (24%),
Centro-Oeste (22%) e Sul (17%). Quanto às mulheres não nascidas no DF, 47%
vieram do Sudeste, 18,8% do Centro-Oeste, 15,4% do Nordeste, 10,3% do Sul e
8,5% do Norte.
A maioria dos homens tinha idade entre 26 e 45 anos (56,5%) e 28,5% com
idade acima dessa faixa. Quanto à escolaridade, (58,5%) tinham Ensino Superior
completo ou Pós-graduação e eram assalariados (60,5%) ou autônomos (21,5%).
Verificou-se que as mulheres não diferiram muito dos homens nestas característi-
cas: 59% estavam na faixa etária entre 26 e 45 anos e 28% acima dessa faixa; a
maioria possuía Ensino Superior completo ou Pós-graduação (57,5%) e era assala-
riada (54,4%) ou autônoma (20,5%).
A renda familiar de 75% das famílias era igual ou superior a 10 salários míni-
mos, desses 15% tinham renda superior a 30 salários mínimos. O principal respon-
sável pela renda familiar foi o homem ou ele com complemento da mulher (56%),
seguido por ambos igualmente (26%) e a mulher ou ela com complemento dele
(15%). A renda familiar estava comprometida por desemprego em 15 famílias
(7,5%), sendo que em sete famílias o homem estava desempregado, cinco a mu-
lher e três o filho. Porém, para 57% das famílias a renda era suficiente para viver
ou manter o estilo de vida desejado, já para 33%, apesar de suficiente, a renda
era abaixo das expectativas.
Em relação às mulheres que exerciam profissão remunerada, 57% o faziam a
mais de 10 anos em jornada diária de 5 a 8 horas e o motivo de trabalharem era a
necessidade de terem dinheiro (35%) e/ou realização profissional (34%). Já em re-
lação às mulheres que não trabalhavam o principal motivo para não trabalharem
foi dar prioridade ao cuidado da casa e dos filhos (45,5%), e em seguida aparece-
ram os seguintes motivos: atrapalha os estudos (27,3%), dificuldade de encontrar
um emprego (9,1%) e não se sente habilitada (9,1%).
Mais da metade dos participantes informaram que a religião da família era a
Católica (53%). A religião Evangélica foi indicada por 20% das famílias e a Espírita
Maria Inês Gandolfo Conceição, Liana Fortunato Costa, Maria Aparecida Penso, Claudia Fukuda e Monique
Guerreiro de Moura. 111
Brasília é uma cidade essencialmente formada por processos de migração,
pois foi planejada como polo de atração de pessoas para o trabalho. Os dados ob-
tidos apontam na direção de uma diminuição do fluxo migratório, e mostram que,
nessa faixa socioeconômica a migração é mais proveniente do Sudeste. O que po-
demos comentar é que a configuração da organização familiar parece se moldar
pela sobrevivência e manutenção da satisfação das necessidades de continuida-
de da família. Chama a atenção dois aspectos: maior número de casamentos for-
mais e de primeira união, e a ausência de outros membros da família morando
sob o mesmo teto. Compreendemos esses aspectos como vinculados a essa
constatação de que uma cidade construída pela migração ainda se centra nessa
configuração.
Maria Inês Gandolfo Conceição, Liana Fortunato Costa, Maria Aparecida Penso, Claudia Fukuda e Monique
Guerreiro de Moura. 113
regras construídas pelo casal, o que pode ser explicado pelo fato de que a maio-
ria das famílias no Distrito Federal está longe das suas famílias de origem, o que
pode minimizar a sua influência direta nas regras definidas pelas famílias pesquisa-
das.
Quanto às metas da família, foram listadas oito, sendo que cada participante
poderia indicar até duas metas como sendo de sua família na fase de vida em que
estavam. Para esta questão foram consideradas todas as metas indicadas por to-
dos os participantes. Observou-se que promover o estudo e a formação dos filhos
foi a meta mais indicada, seguida por construir um patrimônio familiar e construir
a família. Isto pode ser compreendido, uma vez que a maioria das famílias tinha fi-
lhos adolescentes ou em idade escolar. Além disso, na classe média, educação e
patrimônio são considerados valores primordiais.
Em relação ao que é de melhor em sua família, de forma coerente com o que
há de melhor no casal, 63,5% dos participantes consideraram ser o diálogo, po-
rém foi o respeito (67%) a característica mais indicada pelos participantes. Outra
característica de destaque foi o carinho (60%). Os aspectos menos indicados fo-
ram democracia (4%), sociabilidade (10%), estabilidade financeira (13%), coopera-
ção (16,5%) e flexibilidade (27%).
Quanto às funções exercidas pelos membros da família, identificou-se que a
maioria das tarefas, tais como: dirigir a família (48%), protegê-la (45,5%), educar
os filhos (45%), sustento econômico (42,5%), ser conselheiro (42%) e dar apoio
(41,5%), são compartilhadas pelo casal. Porém, a tarefa de cuidar da organização
da casa ainda foi considerada uma função da mãe pela maioria dos participantes
(54%), por outro lado o sustento econômico, que em épocas anteriores era função
primordial do pai, foi atribuído somente a ele por apenas 36% dos participantes. À
família foi delegada principalmente as funções de alegrá-la (35,5%), de ser compa-
nheiro (33,5%), obedecer as regras (32%) e dar carinho (28,5%). Já aos filhos
cabe somente obedecer às regras (25,5%), cuidar dos pais (22,5%) e alegrar a fa-
mília (13%).
Maria Inês Gandolfo Conceição, Liana Fortunato Costa, Maria Aparecida Penso, Claudia Fukuda e Monique
Guerreiro de Moura. 115
tantes foram manutenção do patrimônio (5,5%), preparação para a velhice (9%),
comemoração de datas significativas (10%) e preservação da privacidade do ca-
sal (12,1%). Quando perguntados sobre os valores que os participantes considera-
vam que eram passados de uma geração para outra em sua família destacaram-
se a honestidade (75,5%) e a importância dos estudos (70,5%), seguidos por cui-
dado com os mais velhos (36,5%), a família em primeiro lugar (26%) e a tradição
do casamento (25%).
As principais coisas que poderiam gerar reclamações na família foram: falta
de tempo (35,5%) e dinheiro (21%), sendo que 36% disseram que não tinham
nada para reclamar. E os assuntos mais evitados eram separação (27,5%), morte
(21%), violência (15%) e sexo (14%). A mãe foi considerada a pessoa mais traba-
lhadora da família (33,5%), a mais birrenta (20,5%) e a mais chata (19%) pela maio-
ria dos participantes. Já o pai foi considerado presente (43%), conselheiro (38%),
amigo (32%) e amoroso (31%). A mãe e o pai foram considerados da mesma for-
ma bonzinhos (22,5% cada) e o casal em conjunto foi considerado o que mais
manda (22,5%). Em relação às dificuldades vivenciadas pela família destaca-se a
falta de tempo para o lazer (37,5%), preocupação com o futuro dos filhos (34,5%),
incerteza quanto a estabilidade familiar (21%) e familiares requerendo cuidados
(19,5%).
Para finalizar...
É preciso atentar para a seguinte observação: a maioria dos respondentes
era mulher e os resultados podem refletir mais a percepção delas que dos ho-
mens. Dito isso, observamos, a partir destas análises preliminares, um retrato da
família brasiliense de classe média: é uma família conservadora, com uma boa
condição socioeconômica, possui casa própria e investe grande parte dos seus
recursos e tempo nos filhos e nas relações familiares. Consideram a honestidade
e a formação profissional como os principais valores a serem transmitidos aos fi-
lhos e o amor entre o casal, o diálogo entre os membros, a valorização do estudo
Maria Inês Gandolfo Conceição, Liana Fortunato Costa, Maria Aparecida Penso, Claudia Fukuda e Monique
Guerreiro de Moura. 117
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Jacques Rhéaume
121
Introduction: des mots pour le dire
Faut-il parler de récits de vie ou des histoires de vie? Histoire de vie, récit de
vie. L’apparente similarité des termes évoque pourtant des modes de connais-
sance devenus fort différents, malgré le sens étymologique commun: histoire, récit
des faits1. L’usage des mots: récit (de réciter: lire à haute voix) désigne simple-
ment un processus, une activité expressive, et l’histoire est un récit d’événements
ou de faits, du grec ‘histaur’, désignant le récitant, celui qui sait (le savoir référant
soit à ‘l’eidonai’ (d’où vient la notion d’idée ou de forme) ou’gnomai’, origine du cé-
lèbre ‘gnoti seauton’, connais-toi toi-même, impliquant une notion de devenir, d’ex-
périence). L’historien dans ce sens primitif, c’est le témoin privilégié ayant une ex-
périence directe des grands événements, de guerres en particulier, dignes d’être
racontés. Il y a depuis tout un développement moderne du champ disciplinaire de
l’histoire comme science rationnelle empirique (empirique quand même!), rigoureu-
sement axée sur l’analyse des faits qui va progressivement quitter cette origine
narrative d’un sujet et acteur social, témoin direct d’expériences, vers un acteur
porteur d’une science dite objective. Distance est prise du récit de l’autre, qui au
mieux peut servir de document pour l’historien, devenu l’observateur externe et
lointain de ce matériau.
Le récit de vie, comme narration subjective à d’autres personnes de sa pro-
pre vie, ou de fragments de sa vie, tel qu’il a pu être développé dans diverses prati-
ques récentes, sera teinté davantage par l’aventure intersubjective de l’accès vécu
au réel. L’histoire de vie, quand elle est autobiographique, est cette posture particu-
lière, sans doute plus proche du sens grec ancien de l’histoire, celle d’être le té-
moin d’événements ‘dignes’ d’être racontés. Il y a référence à des faits, mais vé-
cus et présents dans la mémoire vive. Dans la posture de sociologie ou de psy-
chosociologie clinique que nous adoptons dans ce texte, nous référons à la fois à
la qualité subjective et intersubjective première du récit de vie et à la qualité de ‘té-
moin’ de réalités et d’événements objectivés par les auteurs du récit. Quant à ‘ra-
conter sa vie’, ce terme introduit d’autres nuances. Raconter (de ‘compte’ et du
latin, computare) signifie exposer des faits, mais il y a cette connotation de rendre
_______________
(1) Le nouveau Petit Robert (2002). Rubrique: ‘histoire’.
_______________
(4) Étude comprenant l’analyse de documents: correspondance, documents officiels, contexte d’im-
migration et récit autobiographique.
(5) Sauf à quatre reprises en milieu universitaire où de tels séminaires s’inscrivaient dans des pro-
grammes formels de formation.
L’institutionnalisation
Le savoir scientifique s’inscrit dans des formes de savoirs académiques, à
l’université ou dans des centres de recherche équivalents; le savoir faire spécialisé
se traduit en savoir professionnel, reconnu dans des associations, des ordres de
métier; le savoir d’expérience de tous et chacun dans un groupe social donné,
prend figure de sens commun ou ‘ordinaire’; le savoir esthétique prend forme dans
autant de savoirs artistiques reconnus; enfin, le savoir spirituel, comme quête de
sens ultime trouve son expression dans autant de religions différentes. Ces domai-
nes se déclinent suivant des divisions importantes, multiples. L’univers scientifi-
que-académique est le vaste domaine des disciplines, des plus nobles, logique,
mathématique, philosophique, physiques, aux plus modestes, sciences humaines
et littéraires jusqu’aux hybrides formés des sciences et professions: sciences de
l’éducation, sciences de la gestion, sciences de la médecine. Cette hiérarchisation
se retrouve aussi dans l’ordonnancement des savoirs pratiques, professions et mé-
tiers, de la médecine au droit, du génie jusqu’au mécanicien, du plombier à
l’éboueur. Quand au savoir d’expérience qui s’inscrit dans le sens commun, il
D’autres types de savoir sont aussi impliqués, autant dans la mise en forme
du récit que dans l’analyse. Ce sont les savoirs esthétiques et spirituels. Il est fait
appel souvent, dans les séminaires, à l’expression d’un récit ou partie de récit par
l’image, par un dessin, par l’écriture, par une mise en scène théâtrale ce qui met
en œuvre d’autres modes d’expression que le langage parlé habituel. Mais c’est
aussi la référence fréquente, dans l’analyse, aux savoirs artistiques et littéraires: tel
film, tel peintre, tel opéra… Il arrive d’ailleurs que plusieurs participants soient eux-
mêmes artistes, comme travail principal ou secondaire. Le savoir spirituel est aus-
si présent dans de nombreux récits, en particulier dans sa dimension instituée que
sont les religions. Là aussi, les participants peuvent être plus ou moins porteurs de
croyances, de préoccupations spirituelles voire d’adhésion à des religions, ce qui
intervient dans la compréhension des récits de vie comme une autre source de sa-
voir, bien distinct de la science, du métier, des arts. Et les animateurs participent
également des ces formes de savoirs.
Il reste à préciser l’approche de la pratique des récits de vie que nous privilé-
gions, pour favoriser l’échange de savoirs qui, pour nous, est au cœur du travail
de compréhension et d’analyse de son histoire de vie et des récits de vie. La façon
même de favoriser cette mise en forme et l’échange de savoirs se fait dans le ca-
dre d’un travail clinique, d’un dispositif et d’une forme de conduite des séminaires
qui se veulent cliniques, voire plus spécifiquement de psychosociologie ou de so-
ciologie clinique9.
_______________
(9) La psychosociologie met nommément en cause les apports croisés d’une lecture psychologique
et sociologique, le poids étant mis toutefois sur la sociologie, comme substantif (distincte en
cela de la psychologie sociale, où c’est la psychologie qui domine). Le terme sociologie clini-
que évoque aussi, par l’aspect, ce regard particulier des liens entre l’individu et la société, l’ac-
cent étant plus nettement encore mis sur la sociologie.
146
conjugal (Teicher, Samson, Polcari & McGreenery, 2006). Entretanto, a violência
psicológica é bastante prevalente em todo o mundo. Em estudo realizado na Ará-
bia Saudita, de 14,6 a 17,6% dos 4.467 jovens participantes afirmaram ter viven-
ciado violência psicológica ao longo da vida ou nos últimos 12 meses de vida (Al-
Fayez, Ohaeri & Gado, 2012). Outro estudo realizado com famílias de militares nor-
te-americanos (Slep, Heyman e Snarr, 2011) encontrou que 19% das mães e 23%
dos pais afirmaram ter cometido agressão verbal contra seus filhos no último ano.
No Brasil, os estudos sobre violência psicológica, ainda que escassos, apontam
para uma prevalência de 3,2% a 23% (Bazon, 2008; Costa, 2007). No estudo de
Pinheiro e Williams (2009), 56,6% dos meninos e 54,5% das meninas participan-
tes relataram sofrer violência psicológica por parte do pai, sendo este número mui-
to maior quando o agressor é a mãe da criança: 83,1% dos meninos e 75% das
meninas relataram sofrer violência psicológica por parte da mãe. O estudo de
Abranches, Assis e Pires (2013), aponta que esta forma de maus-tratos não atin-
gem apenas crianças. Dos 229 adolescentes entrevistados pelos pesquisadores,
26,4% sofriam de violência psicológica severa no contexto familiar e apenas cinco
relataram não sofrer qualquer tipo de violência psicológica familiar (Abranches et
al., 2013). Estes dados ressaltam o fato de que, muitas vezes, os dados de preva-
lência de violência estão subestimados, dado as dificuldades metodológicas para
sua mensuração.
A violência psicológica pode ser definida tanto pela omissão (negligência
emocional), como pela ação (abuso emocional) (Tonmyr, Draca, Crain & McMillan,
2011; Williams, 2013). De acordo com o Ministério da Saúde (Brasil, 2002), a vio-
lência psicológica se constitui por toda forma de rejeição, depreciação, discrimina-
ção, desrespeito, cobranças exageradas, punições humilhantes e utilização da crian-
ça ou do adolescente para atender às necessidades psíquicas dos adultos. Todas
essas formas de violência psicológica causam danos ao desenvolvimento e ao
crescimento biopsicossocial da criança e do adolescente, podendo provocar efei-
tos deletérios na formação de sua personalidade e na sua forma de encarar a vida
(Brasil, 2002; Williams, 2013).
Método
Participantes – Participaram do estudo dez Conselheiros Tutelares, sendo quatro
Conselheiros de um município de pequeno porte (106.793 mil habitantes)2 do interior do
Estado de São Paulo (cidade A) e cinco de um município de médio porte (221.950 mil
habitantes)3 do interior do Estado de São Paulo (cidade B).
Local – O estudo foi realizado nas dependências dos Conselhos Tutelares de cada
município.
Instrumento – Foi desenvolvido, pela primeira autora, um Roteiro de Entrevista Se-
miestruturado para Aplicação com Conselheiros Tutelares, com o intuito de investigar o
conhecimento dos mesmos a respeito das características da violência psicológica, as
consequências para a criança e o adolescente e as formas de intervenção quando es-
ses casos são notificados. O Roteiro de Entrevista era composto por 38 questões aber-
tas e fechadas. Como exemplo de perguntas abertas podemos citar a pergunta "Na sua
opinião, quais são os sinais que indicam que uma criança ou adolescente está sendo
vítima da violência psicológica?" e como exemplo de perguntas fechadas podemos ci-
tar "Você teve alguma experiência profissional com violência contra a criança e o adoles-
cente antes de trabalhar no Conselho Tutelar?", sendo as respostas possíveis para as
perguntas fechadas “sim” ou “não”.
Procedimento – Após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Hu-
manos (Processo número 4013.0.000.135-08) e a elaboração do Roteiro de Entrevista,
os Conselheiros Tutelares foram contatados para a solicitação de sua participação na
pesquisa. Diante do consentimento dos Conselheiros Tutelares, realizado por meio da
assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), as entrevistas foram
realizadas, individualmente, nas dependências dos Conselhos Tutelares em cada municí-
pio, de acordo com a disponibilidade de cada participante. Cada entrevista durou cerca
de uma hora, sendo gravada e transcrita. Os dados obtidos foram submetidos à análise
de conteúdo (Bardin, 1979; Manzini, 1991).
_______________
(2) Fonte de Dados: Contagem da População de 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
(3) Fonte de Dados: Contagem da População de 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Oito participantes (PA, PB, PC, PE, PF, PG, PH e PI) apresentaram definições
adequadas e suficientes, sendo que três deles (PB, PC e PE) utilizaram algumas
categorias inadequadas. As participantes PD e PJ forneceram definições insufi-
cientes, porém adequadas à proposta pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2002).
Sinais e sintomas relacionados à violência psicológica – A partir da análise
das entrevistas foram encontradas 13 categorias que descrevem os principais si-
nais e sintomas de que uma criança ou um adolescente está sendo vítima de vio-
lência psicológica. Para análise das categorias foi utilizado o critério adequação
em relação à descrição de sinais e sintomas fornecida pelo Conselho Estadual
dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Paulo (CONDECA-SP), no II Fó-
rum Paulista de Prevenção de Acidentes e Combate à Violência Contra Crianças e
Adolescentes (Mello, 2007).
Figura 2. Porcentagem de utilização de cada categoria adequada para descrição dos princi-
pais sinais e sintomas de violência psicológica, de acordo com o Conselho Estadual
dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Paulo (Mello, 2007)
Discussão
Por meio da análise das categorias, podem ser destacados diversos aspec-
tos referentes ao repertório de informações apresentado pelos Conselheiros Tutela-
res em relação à violência psicológica. Em relação à formação dos Conselheiros
Tutelares, percebe-se, no geral, capacitações insuficientes a respeito da violência
contra crianças e adolescentes, especialmente sobre a violência psicológica. Ape-
sar de a maioria dos participantes relatar ter tido experiência profissional prévia
com crianças ou adolescentes em situação de risco, nenhum relatou ter participa-
do de cursos de capacitação sobre a temática da violência contra a criança ou o
adolescente antes de ingressar no Conselho Tutelar, corroborando a posição de
Caminha (1999) sobre a falta de capacitação dos Conselheiros Tutelares para lidar
com o fenômeno dos maus-tratos infantis. Além disso, apenas dois Conselheiros
Tutelares participaram de cursos sobre este tema após seu ingresso no Conselho
Esse texto tem como objetivo apresentar uma parte dos resultados de uma
pesquisa qualitativa sobre o adolescente que cometeu ofensa sexual. Essa pesqui-
sa qualitativa trata da sistematização do método do Grupo Multifamiliar (GM) volta-
do para essa população. O oferecimento do GM reúne uma instituição acadêmica
e uma instituição pública de atendimento psicológico a adolescentes encaminha-
dos pela Rede de Proteção a Criança e ao Adolescente no Distrito Federal ou pela
Vara da Infância e Juventude (VIJ), para cumprimento de Medida Protetiva (Art.
101 – Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, Brasil, 1990). A parceria entre
esse ambulatório e a universidade visou desenvolver metodologia de atendimento
a vítimas de violência sexual e a adolescentes agressores sexuais. O GM organiza
um contexto de atendimento psicossocial no qual o adolescente é, preferencial-
mente, atendido em família (Fishman, 1989). O texto enfoca as relações familiares
desse adolescente, com ênfase na presença da violência como característica pri-
166
mordial da interação familiar. Busca-se conectar essa violência nas relações fami-
liares desse adolescente ao ato violento contra crianças com as quais esses ado-
lescentes mantinham contato e cuidado intrafamiliar.
Vítima? Algoz? Violências na vida familiar do adolescente que cometeu ofensa sexual 168
É importante indicar que se adota, nesse texto, a especificidade do conceito
de ato infrator baseado no que trata o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) (Brasil, 1990). Os dados (tanto em estatísticas oficiais como na literatura)
(Bianchini & De Antoni, 2012; VIJ, 2012) são coincidentes: a maioria dos adoles-
centes que cometem ofensa sexual são do sexo masculino; grande parte comete
a ofensa na perspectiva intrafamiliar ou com crianças muito próximas; a maior par-
te das vítimas são crianças do sexo feminino. Com relação a esse aspecto, a con-
sulta ao sítio da Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal apresenta
uma mudança na tendência. No ano de 2010, a relação entre vítima do sexo mas-
culino e do sexo feminino era: 13% para o primeiro e 15 % para o segundo. No
ano de 2012, essa proporção já apresenta um quantitativo bem diferente: 41%
para o primeiro e 58% para o segundo. Foram encontradas outras surpresas: no
ano de 2011, o maior número de agressores se encontra na faixa dos 12 aos 17
anos, com 20% de incidência. Da faixa etária de 25 a 29 anos a incidência é de
16%, e dos 30 anos aos 34 anos é de 14%. Essa informação assume um caráter
de alerta e indica uma urgência para que as instituições criem programas de aten-
dimento a esses jovens.
Portanto, esse texto pretende contribuir na ampliação do conhecimento so-
bre o tema da violência sexual contra crianças, abordando as relações familiares
violentas do adolescente que cometeu ofensa sexual, que estão diretamente liga-
das à possibilidade desse adolescente voltar a cometer violência sexual na medi-
da em que ele próprio, além de perpetrador, pode permanecer no papel de vítima.
Método
Trata-se de pesquisa-ação (Barbier, 2002) que associa o oferecimento de pro-
posta de intervenção psicossocial a uma pesquisa que preserva a atenção e os ri-
gores aos procedimentos. A pesquisa foi realizada em um ambulatório público de
saúde mental, Centro de Orientação Médico Psico-Pedagógico – COMPP, unida-
de de Saúde Mental Infanto-juvenil que compõe a Rede de Proteção a Crianças e
Liana F. Costa, Eika L. Junqueira, Fernanda F. F. Meneses e Lucy Mary C. Stroher 169
Adolescentes no que diz respeito ao atendimento às vítimas e vitimizadores sexuais.
A intervenção teve a duração de agosto a dezembro de 2009, e iniciou com uma
entrevista semiestruturada.
Participantes – Compareceram às entrevistas sete adolescentes, que partici-
param do Grupo Multifamiliar, e suas mães. Todos os nomes referidos no texto
são fictícios. Segue abaixo um quadro que explicita informações mais detalhadas.
As informações contidas nesse quadro foram selecionadas no sentido de contex-
tualizar esse adolescente, situando-o e à sua família numa perspectiva socioeco-
nômica.
Tabela 1. Informações sobre os adolescentes
Nome Escolaridade Família – Idade Renda A vítima
fictício e inserção moradores na Adolescente mensal
sistema residência familiar
justiça
Alex 5° série mãe 43a, 15a 830,00 irmã 10a
- sem padrasto 34a,
notificação filha 16a,
adolescente 15a,
filha 10a
Dudu 2° ano do 2° pai 58a, mãe 44a, 17a 1.615,00 sobrinha
Grau irmã 29a, irmão 12a
- processo na 28a, irmão 27a,
VIJ irmã 8a,
adolescente 17a
Alberto 8° série pai 48a, mãe 48a, 15a 920,00 irmã 4a
- denúncia irmã 4a,
feita pelos adolescente 15a
pais
Walmir 6° série mãe 51a, irmão 17a 1.000,00 primo 5a
- denúncia 27a, adolescente
feita pela tia 17a
(avó 81a, avô
77a, tia 43a, tia
51a, primo 5a -
moram no
mesmo terreno)
João 3° ano do 2° mãe 35a, 17a 500,00 (mãe) irmã 7a
Grau padrasto 42a,
- caso com adolescente 17a,
notificação irmã 13a, prima
7a
Vítima? Algoz? Violências na vida familiar do adolescente que cometeu ofensa sexual 170
Instrumento e Procedimento – Antes do início propriamente da intervenção,
todos os adolescentes foram entrevistados para avaliação do comprometimento
com a ação praticada e os riscos de reincidência. Essa entrevista coletou as se-
guintes informações: dados pessoais do adolescente e informações gerais sobre
a família; descrição do caso; organização familiar e genograma; ecomapa; recur-
sos financeiros e sociais da família; situação jurídica do adolescente (denúncia);
informações sobre a vítima. Toda a família foi convocada para estar presente à en-
trevista, mas somente a mãe e o adolescente compareceram a essas entrevistas.
Liana F. Costa, Eika L. Junqueira, Fernanda F. F. Meneses e Lucy Mary C. Stroher 171
1º Núcleo: Violências e rupturas: “Pergunta por que que eu bati nele? Eu não
sei o que é que ele fica fazendo na aula de Inglês!”.
Essa fala da mãe mostra que a violência física está presente na vida desse
adolescente como castigo, correção e educação. A mãe parece querer provar que
ela tem autoridade sobre o adolescente ou que está atenta ao que ele faz ou dei-
xa de fazer. “Antes eu dava uns tapa nela, minha mãe falou que era pra eu fazer
isso, aí ela (a irmã) dizia que ia contar pra ela (a mãe)”. Essa fala é do adolescente
que justifica porque bate na irmã, autorizado pela mãe. E quando a entrevistadora
pergunta em que ocasiões ele batia, ele responde: “Quando ela não fazia nada”.
Agora temos a violência do adolescente com a irmã menor (criança abusada por
ele). Ele conta que quando ela não fazia nada, ou seja, não o ajudava nas tarefas
domésticas, ele batia nela.
Tem-se vários aspectos a comentar. Parece que a família se organiza com um
padrão de comunicação que é violento, substituindo a conversação. Nesse senti-
do, o adolescente aponta:
“Isso num é coisa que pai se faz não, ameaçar o filho de bater com as
coisas não... (chorando muito) sai batendo assim...”
Mãe: “Tem que bater mesmo!”
Adolescente: “Oxi! A senhora tem que conversar primeiro!”.
Mãe: “Quantas conversas mais?”
Adolescente: “Quantas ameaças a mais, também?”.
Mãe: “Quantas puder!”.
Vítima? Algoz? Violências na vida familiar do adolescente que cometeu ofensa sexual 172
lescentes e para a situação de desproteção da criança no lar. As considerações
sobre as intervenções com esse adolescente sempre levam em conta uma avalia-
ção objetiva, quantificando fatores de risco e fatores de proteção, mas se coloca
em relevo uma avaliação dinâmica desses fatores, incluindo uma perspectiva dinâ-
mica e contextual do ambiente do adolescente. E a família passa ter lugar privile-
giado (Mandeville-Norden & Beech, 2006).
Outro aspecto a comentar é a configuração de uma sequência violenta quan-
do a mãe bate no filho, o filho bate na irmã, lembrando um jogo de dominó, no
qual se derruba a primeira peça e as demais vão caindo em seguida. Ramos, San-
tos e Dourado (2009) e Ramos (2010) ao analisarem a violência conjugal em um
projeto de intervenção sob obrigação em um tribunal de justiça, encontraram a
mesma configuração de uma violência conjugal que, aos poucos, vai se estenden-
do para os filhos. Essa configuração inicia na violência entre o casal e atinge os fi-
lhos, na medida em que os pais vão incluindo-os nas interações violentas. E há
ainda a raiva que o adolescente tem da irmã porque ela nada faz. Fazer nada aqui
significa não ajudá-lo nas tarefas domésticas e, assim, poder brincar se quiser, ou
fazer nada. Essa condição de responsável pelo serviço doméstico faz com que ele
se veja em um papel de autoridade sobre a irmã e reproduza a comunicação vio-
lenta que a mãe tem sobre ele. Essas autoras analisam a expressão da violência
em duas situações familiares, na conjugalidade e na parentalidade, indicando que
a violência se instala como fracasso da interação. Considera-se que essa violên-
cia é sempre muito paradoxal, pois tem uma conotação de correção e de preven-
ção, é uma forma de comunicação afetiva e um fracasso da comunicação oral,
como ilustra o diálogo a seguir.
As expressões de violência são múltiplas.
Adolescente: “Doeu. De cinto! Um cinto preto que tem lá em casa!”.
Mãe: “Mas ele apanhou e sabe porque?”.
Adolescente: “Mas ela fica me ameaçando bater com galho de goiaba ai!
(chorando)”.
Liana F. Costa, Eika L. Junqueira, Fernanda F. F. Meneses e Lucy Mary C. Stroher 173
Mãe: “Mas foi só uma vez”.
Adolescente: “Mas a senhora me batia com mangueira! Admite aí! Uma
vez não, a senhora sempre me ameaçava! Para de mentira!”.
Mãe: “Mas é melhor ameaçar de bater do que bater num é?!”.
Adolescente: “Num só ameaçava não, a senhora me batia mesmo! Num
lembra não?”.
Mãe: “Lembro. Quando merecia apanhar, apanhava! Porque é melhor eu
te bater hoje do que você apanhar dos bandidos na rua ou da polícia de
cassetete! Porque o cassetete dói, meu filho!”
Vítima? Algoz? Violências na vida familiar do adolescente que cometeu ofensa sexual 174
em relação à violência. Essa associação se dá entre ter sofrido violência, especial-
mente por parte das figuras parentais, e a expressão de violência nas relações na
vida adulta (Hollist et al., 2009; Lansford et al., 2007).
A mãe mostra-se zangada, sem paciência, irritada com as reações e respos-
tas do filho durante todo o tempo da entrevista: “Eu brigo mesmo! Brigo mesmo!
Eu num tenho medo não...”. Zankman e Bonomo (2004) apontam o ambiente fami-
liar desse adolescente como caótico e com a presença de drogas, alcoolismo e
outras violências, como veremos a seguir.
Mãe: “Mais tarde eu descobri que ele mexia com droga, mas assim, a
gente nunca via, porque ele tava sempre lúcido! No tempo que ele ficou
lá, assim, a gente num viu ele mexendo, mas em São Paulo ele deu traba-
lho pra mãe dele”.
Mãe: “Até onde eu sei, parece que foi roubo de carro, mas até onde eu
sei, porque eles me contam as coisas pela metade, e eu também num
me interessava em saber né!”.
Mãe: “Até onde eu sei, disse que ele pulou de um prédio e saltou”.
Mãe: “Aí, essa avó aí, queria que eu mentisse, dizendo pro Tom que ‘ah
diz que ele ficou doente e morreu’ eu falei ‘que? Ele já é um adolescente
e sabe muito bem quem é ele!’ ” [o pai morreu há 3 anos].
Mãe: “Pra mim era dívida, porque no tempo que ele ficou preso, ele qua-
se morreu dentro da cadeia, porque ele usava droga e chegava no dia
pra pagar os caras ele num tinha, então, a mulher dele, a viúva lá, tinha
que se virar pra arruma dinheiro pra pagar! E eu acho que quando ele
saiu da cadeia, ele continuou mexendo, ou seja, ele tava devendo dinhei-
ro e num quis falar com ninguém! E o quê que ele fez? Se matou”.
Liana F. Costa, Eika L. Junqueira, Fernanda F. F. Meneses e Lucy Mary C. Stroher 175
Zankman e Bonomo (2004) enfatizam a necessidade de se colocar pais e fi-
lhos para conversarem em sessões terapêuticas, para que possamos conhecer o
grau de congruência e/ou incongruência presente nas relações. Afinal o adolescen-
te passa o maior tempo de sua vida em família, e esta precisa de orientação sobre
como lidar com essa violência presente na casa. Esses dois autores observam vio-
lência conjugal, baixa coesão entre os membros da família e uma relação afetiva
pouco calorosa. Os diálogos até agora mostrados confirmam essas indicações. A
situação do pai do adolescente ter sido “envolvido com drogas” (traficante?), pre-
so, e posteriormente se suicidado quando era perseguido pela polícia, constitui-
se numa história de origem problemática e significativa para o adolescente.
Mãe: ... ela gostava de ficar com ele. Mas de repente ela ficava choran-
do, ela grudava em mim. Chorava, chorava, eu falava: coloca ela no bra-
ço, leva ela lá para dentro, vai, dá comida para ela, vai assistir televisão
com ela, para eu poder sair. Mas ela não queria ficar com ele.
Vítima? Algoz? Violências na vida familiar do adolescente que cometeu ofensa sexual 176
As mudanças de conduta são reconhecidas por muitos autores como sinais
inequívocos de que algo está perturbando a criança. É preciso que esses sinais se-
jam valorizados e que sirvam de motivação para que a família possa começar a in-
dagar sobre o que se passa (Habigzang & Koller, 2011).
Após a denúncia, a família apresenta um movimento no sentido de restabele-
cer um apoio e proteção tanto à criança vitimizada como ao adolescente agressor.
Mãe: Aí eu fiquei sem saber o quê fazer. Procurei, cheguei e falei com
meu esposo ... queria ir na delegacia, mas não fui na delegacia ... porque
é dentro da família. Quando é outra pessoa de fora ... você tem outros
pensamentos, você vai procurar a delegacia, você vai se fazer ouvir,
você quer justiça.
Liana F. Costa, Eika L. Junqueira, Fernanda F. F. Meneses e Lucy Mary C. Stroher 177
mente. Isso ocorre em função de reconhecerem uma realidade de instituições de
acolhimento inadequadas que possam receber esse adolescente, além de tenta-
rem preservar seus direitos à convivência familiar, preconizado pelo ECA (Brasil,
1990). Ao ser afastado do lar, esse adolescente corre o risco de perder seus víncu-
los afetivos, o que pode determinar um agravamento das condições de agressivi-
dade e recidiva do ato violento. De certa forma essa profissional corrobora a ideia
de que a família, por si mesma, toma providências conforme suas competências.
Sem dúvida, essa situação ilustra dúvidas e acende um debate que é bem caracte-
rístico de nossa realidade socioeconômica. O que está em jogo aqui é a responsa-
bilização ou não do adolescente, a despeito das péssimas condições que o Esta-
do oferece para a ressocialização daqueles que cometem um ato infracional.
Essa discussão é enriquecida pela posição de Butler e Seto (2002), que distin-
guem dois tipos de adolescentes que cometeram ofensa sexual: os que comete-
ram unicamente ofensa sexual e os que, além dessa ofensa, cometeram atos infra-
cionais causando dano social e não só familiar. Esse segundo tipo tem um com-
prometimento comportamental maior e sua possibilidade de recidiva de conduta é
mais grave, o quer não é o caso desses adolescentes que estamos discutindo,
pois nenhum deles tem histórico de ato infracional. O trabalho com esses adoles-
centes deve levar em consideração essa diferenciação (Penso, Conceição, Costa
& Carreteiro, 2012).
O relato das entrevistas aponta que a violência cometida contra a criança já
existia anteriormente ao abuso sexual, porém era uma violência sancionada pela
família: Adolescente - Antes eu dava uns tapa nela, aí minha mãe falou que era pra
eu fazer isso, aí ela dizia que ia contar pra ela. Havia um sentido para o irmão bater
na irmã. Ele estava, no lugar da mãe, educando-a. Essa constatação traz à discus-
são a posição de Chagnon (2008), quando diz que esses adolescentes cometem
ofensas sexuais em decorrência de práticas educativas erradas, ou seja, o correto
é ensinado por meio da violência, que se perpetua quando o adolescente é insta-
do a educar, também por meio da violência. Dois adolescentes quando pergunta-
dos em que momentos ficavam com grande proximidade com a irmã, responde-
Vítima? Algoz? Violências na vida familiar do adolescente que cometeu ofensa sexual 178
ram: A gente dormia no mesmo quarto. Faleiros (2008) insiste que a organização
da casa pode ser facilitadora da intimidade entre seus membros e, acrescenta-
mos, em circunstâncias nas quais se agrega violência e inversão de hierarquia,
como podemos nos dar conta nas falas desse item. A partir da revelação do abu-
so sexual a família tem de realizar várias transformações, não só subjetivas, mas
concretas e físicas também. Adolescente: Eu tô dormindo no meu quarto ... a sala
lá de casa é grandona (referindo-se à mudança que foi possível pelo tamanho da
sala, que permitiu erguer parede divisória). Minha mãe dividiu um pedaço (local
onde a irmã dorme).
A família ainda adota como estratégia de seguir adiante e não se falar mais
no assunto.
Mãe: Entender eu entendo, mas nem gosto de lembrar. O que passou,
passou, o que passou é passado. Eu não gosto nem de tocar no assun-
to.
Entrevistadora: A família fala nesse assunto? Não? Ninguém toca no as-
sunto, nem a criança, nem a mãe da criança? Mãe: A mãe da criança dis-
se que perdoou ele.
Como foi colocado acima, esse é o modo de conviver com a vítima e o vitimi-
zador sem que seja necessário promover grandes rupturas. Em termos de organi-
zação familiar é o que Minuchin (1982) chama de processo de acomodação que
se instala sempre que uma família vive um momento de mudança muito intenso e
utiliza um tempo para fazer as adaptações necessárias ao novo momento de con-
vivência.
Com relação à mãe, seu sentimento é: Eu fiquei assim: desorientada. Não sa-
bia o que fazer, quem procurar. Aí eu falei assim, né? Se eu ficar com isso, assim,
nós, dentro de casa, não ia ser uma solução para conseguir resolver o problema,
né? É interessante, pois, mesmo com a desorientação, segue-se uma reflexão de
que a manutenção de um segredo, resguardando o fato de outras pessoas, não
Liana F. Costa, Eika L. Junqueira, Fernanda F. F. Meneses e Lucy Mary C. Stroher 179
seria uma decisão positiva. Lima e Alberto (2010) também encontraram relatos se-
melhantes nos quais as famílias, em especial as mães, imediatamente se preocu-
pam em iniciar um processo de resolução ou pelo menos de encaminhamento, vi-
sando a proteção dos filhos. Mãe: E aí, eu conversei com meu esposo, que eu
acho que foi uma coisa muito séria e pode se repetida se a gente não tomar uma
atitude. Faleiros (2008) aponta a necessidade de que a violência seja interrompida
a todo custo. A seu modo essa família caminha nessa direção. E mais, a posição
adotada por esses pais indica uma avaliação contrária a uma postura de negligên-
cia ou de dificuldade de encararem a circunstância.
Pode-se compreender que a violência ocorreu também em função da organi-
zação familiar privilegiar a sobrevivência e a provisão das necessidades materiais.
A mãe foi trabalhar e delegou ao adolescente suas tarefas.
Mãe: Eu trabalhava numa colônia de férias ... em julho. Sempre eu traba-
lhava nessa colônia de férias, eu pensava que ele já tava numa idade
que ele é responsável, já deixava a comida pronta, então eu deixava a
minha filha lá. Ela tem quatro anos. Então eu deixava com ele, porque a
colônia de férias era à tarde. Aí eu saia onze e meia, já dava banho nela,
deixava tudo prontinho.
Marshall (2001) e Oliver (2007) consideram que esse adolescente que comete
ofensa sexual não pode ser rotulado como um agressor contumaz, pois sua ofen-
sa tem que ser vista em um contexto no qual fazem parte outras violências com
justificativa de educação sobre ele, além de se reconhecer que esse adolescente
não possui um ambiente favorável a que seja escutado ou acolhido em suas ansie-
dades. Costa (2012) ainda acrescenta que esse adolescente não recebe orienta-
ção sexual dentro de casa e nem compartilha com os pais suas ansiedades e fan-
tasias sexuais. Em termos de nossa cultura, com relação à faixa socioeconômica
de pertencimento desses adolescentes, é preciso acrescentar que eles assumem
Vítima? Algoz? Violências na vida familiar do adolescente que cometeu ofensa sexual 180
tarefas domésticas que os aproximam mais intimamente de suas vítimas (Costa,
Junqueira, Ribeiro & Meneses, 2011).
Em seguida temos acesso a um relato que é muito detalhado do que se pas-
sou com a mãe, qual seu percurso para confirmação da violência sofrida por sua
filha.
Mãe: a calcinha dela tava saindo uma mancha amarela ... Mas como? As
calcinhas são novas, as calcinhas dela é bem lavada, aí eu falei: gente
era para mim ter levado ao médico faz muito tempo. Aí eu levei na pedia-
tria ... aí encaminhou para a ginecologista ... quando eu chego lá na gine-
cologia, aí foi que ela perguntou quem cuidava. Ela falou que tomasse
mais atenção, ser mais esperta, que pode ser que tivesse acontecendo
alguma coisa. A única pessoa que tem de homem que tem na minha
casa é ele e o pai. Aí você fica numa situação assim, né? A ginecologista
conversou com ela .... que ninguém podia mexer naquele local, só a ma-
mãe, para lavar e tal. Eu saí de lá ... fiquei lá na pracinha com ela. Com-
prei sorvete para ela aí fiquei lá conversando. Eu perguntei: alguém me-
xeu? (...) ela ficou assim: parada. Falou: já. Você tem que confiar na ma-
mãe, ela é a sua melhor amiga. Aí ela pegou e falou assim: Não, mamãe.
Eu não posso falar. Aí eu falei assim: eu tô aqui para ajudar ela, que não
vai acontecer nada com você, você pode falar. Ela: aconteceu alguma
coisa. Eu: o que quê aconteceu? Aí ela: se eu falar, o Go vai brigar comi-
go. Vai bater em mim. Eu falei: não, você fala que a mamãe não vai dei-
xar o Go bater em você. Você é pequena, ele não pode bater em você.
A criança passa, então, a contar como se deu o abuso sexual, e a mãe, com
detalhes, reproduziu para o entrevistador toda a narrativa da criança. Pode-se ima-
ginar o conflito dessa mãe ao acreditar no que a filha estava contando (Lima & Al-
berto, 2012, encontraram mães com essa mesma coragem de buscar e confiar no
relato das filhas). Essa mãe, em particular, não se furtou a voltar atrás e enfrentar
Liana F. Costa, Eika L. Junqueira, Fernanda F. F. Meneses e Lucy Mary C. Stroher 181
sua vergonha sobre o fato que envolve membros da família, inclusive ela primeiro
suspeitou do marido. Tomou providência assertivas e necessárias como levar a
um pediatra e escutou e reproduziu as orientações da ginecologista. Principalmen-
te garantiu à filha que a protegeria. O que chama muito atenção nessa fala da mãe
é a competência em tomar iniciativa e dar seguimento às providências práticas
para que a violência fosse interrompida e houvesse o restabelecimento da prote-
ção à criança. Essa situação não corresponde àquela descrita por autores que en-
contraram mães vacilantes e temerosas de desencadear ações de revelação da
situação de violência (Almeida Prado & Pereira, 2008), porém se alinha com outros
autores que percebem as reações das mães de vítimas de abuso sexual como sen-
do de sofrimento e competência frente a situações críticas (Santos & Dell’Aglio,
2008).
É verdade que a família reorganiza o sistema de acordo com suas possibilida-
des mais ampliadas ou mais limitadas. Houve registro? Pergunta a entrevistadora.
Não, responde a mãe (esse caso chegou à instituição via Conselho Tutelar). Po-
rém, acrescenta: Eu nem fui mais trabalhar. Porque quando eu saia ela grudava em
mim, chorava, gritava .... e ela gostava de ficar com ele. Em princípio, mesmo
com a denúncia feita e providências tomadas, a circunstância da violência fica res-
trita aos membros da família nuclear. No entanto, logo em seguida, visando ajuda
para a resolução de ordem prática das mudanças necessárias, a família vai grada-
tivamente pedindo ajuda ao seu núcleo extenso. A vítima contou para a tia mater-
na que contou para avó materna: adolescente falando sobre essa avó: Ela brigou
comigo .... só brigou. Todos os autores trazidos à discussão nesse texto concor-
dam em um ponto crucial que é a presença da violência constante em relação a
esse adolescente, seja por método educativo, seja por explosão de raiva dos pais
sobre ele. Essa violência já existia antes do abuso sexual intrafamiliar e permane-
ce após.
Vítima? Algoz? Violências na vida familiar do adolescente que cometeu ofensa sexual 182
Mãe: E depois? Na outra semana? Levou uma surra! .(...) porque ele dis-
se que era uma coisa e era outra! Mentiu!
Mãe: Você disse que só tinha passado a mão nela e é mentira! .... você
tinha tentado colocar a mão na bunda dela! .... depois que ela contou a
verdade, porque ela não ia contar. Você tava ameaçando ela!
Adolescente: Não foi! Não foi! Não foi! Não foi! Não foi assim!
O adolescente foi perguntado se ele percebeu que machucou a irmã. Ele res-
ponde que não. Mãe: ... ela falou que ele ficava ameaçando ela se ela contasse,
que ele ia bater nela!
Esse diálogo entre mãe e filho revela que ameaças e violência física permeiam
a vida de todos. Também indica uma concordância entre autores (Chagnon, 2008;
Costa, 2012; Costa et al., 2011; Hollist et al., 2009; Marshall, 2001; Zankman & Bo-
nomo, 2004) sobre a incidência de violência com relação a esse adolescente.
Essa violência aparece antes da violência sexual intrafamiliar e, permanece, às ve-
zes, aumentada após a revelação. Essa constatação é fundamental para que os
programas de atendimento a esse adolescente considerem esse fator e incluam
as famílias como ponto imprescindível nos atendimentos.
Mãe: ... não, nem todo mundo sabe .... minha mãe, a tia dela e o pai
dela .... tem o outro tio também, são dois tios que sabem. Aí ela ficou um
tempo na casa da minha mãe, ela ficou na minha mãe até eu conseguir
uma casa pra nós morar.
Essa fala trata das soluções imediatas que a família providencia para enfren-
tar a descoberta da violência. A revelação envolve membros da família extensa
como avós, tios e tias e mobiliza-os para acolher ou a criança ou o adolescente,
até que a família se restabeleça um pouco e consiga tomar alguma decisão de
Liana F. Costa, Eika L. Junqueira, Fernanda F. F. Meneses e Lucy Mary C. Stroher 183
maior peso. Para o atendimento a situações de violência sabe-se que as interven-
ções em rede (Dabas, 2006) se constituem em uma excelente opção porque reúne
recursos familiares, comunitários e sociais, ampliando o escopo das possibilida-
des. Percebe-se que a própria família inicia esse movimento com a construção de
uma rede de familiares mais próximos um pouco além da família nuclear. Essa
rede familiar visa a proteção e diminuição do estresse familiar frente às decisões
que a revelação de abuso sexual traz, antes que instâncias sociocomunitarias le-
vem a denúncia para o âmbito jurídico. É claro que essa configuração tem um as-
pecto positivo – a solidariedade com o sofrimento da família, porém também pos-
sui uma dimensão negativa que é adiar, ou mesmo impedir, a responsabilização
do autor do ato violento. Nesse acaso, a justiça familiar se faz (com mais violên-
cia) e, depois, a determinação é esquecer.
Mãe: tenho o maior medo de ver a minha filha traumatizada né... ele nem
tanto, porque ele tem mais consciência porque é maior agora. Ela hoje
em dia num quer nem tocar no assunto “Meu irmão num mexe mais co-
migo, e eu sei que ele num vai mais mexer comigo, eu tenho minha avó
e ela num vai deixar ninguém mexer comigo...” Ela tem muita confiança
na avó dela, que o elo dela agora é a avó dela, porque ela sabe que a
avó dela num vai deixar ninguém fazer nada com ela!
Considerações finais
Vítima? Algoz? Violências na vida familiar do adolescente que cometeu ofensa sexual 184
ta dessas crianças, responsabilizando-se pelos seus cuidados físicos, e a violên-
cia acontece com o aval da família (Costa et al., 2011). Não se pode deixar de res-
ponsabilizar o adolescente pela violência cometida, mas há que se reconhecer
sua condição simultânea de vitimização tanto quanto de violentador.
Liana F. Costa, Eika L. Junqueira, Fernanda F. F. Meneses e Lucy Mary C. Stroher 185
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9 Acabou, e agora? Encerramento de
uma pesquisa-ação sobre violência 1
190
2) O planejamento e a realização em espiral, ou seja, de maneira não linear;
3) As técnicas da pesquisa-ação (particularmente a denominada observação
participante predominantemente existencial e o diário de itinerância); e
4) A teorização, a avaliação e a publicação dos resultados.
Uma comunidade pode ser uma família junto a qual é possível desenvolver
um trabalho a partir da perspectiva da Psicologia Social Comunitária. Particular-
mente no trabalho junto a famílias, como é o caso da pesquisa analisada neste es-
tudo, Brandão e Costa (2004) afirmam ser fundamental valorizar as competências
e os recursos que a família possui, mas que muitas vezes são desconhecidos.
Além disso, é importante incentivar o diálogo entre os membros da família para as-
sim acontecerem as mudanças necessárias naquele contexto.
Resultados e discussão
A temática do final das visitas domiciliares esteve presente em diferentes mo-
mentos das visitas nas diversas famílias. Ora anunciada pelos pesquisadores, ora
pelos participantes. Na primeira visita domiciliar, as famílias foram informadas que
o final dos trabalhos ocorreria na oitava visita. Em algumas visitas, o final foi relem-
Considerações finais
É possível afirmar que a visita domiciliar, na perspectiva da pesquisa-ação, é
um espaço privilegiado para a construção de novas relações, bem como para a
prevenção da violência e a melhoria da qualidade de vida das famílias. Em relação
ao final da pesquisa-ação, esse é um momento importante e está relacionado ao
processo de mudança e às demandas apresentadas e trabalhadas durante todo o
processo de pesquisa.
Na pesquisa-ação estudada, que é um trabalho de cunho acadêmico, colo-
ca-se como um desafio constituir uma forma de estudo que tenha como foco cen-
tral a ação e a mudança, mas que não se desprenda das características de um tra-
balho tido como acadêmico, mesmo com a garantia da participação dos atores.
As famílias participaram ativamente do desenrolar das visitas, principalmente en-
tre a primeira e a sétima visita. No entanto, não participaram da elaboração da pro-
posta de pesquisa e intervenção, muito menos da sistematização e análise das in-
formações construídas. Na elaboração do relatório final da pesquisa, os participan-
tes também não estiveram presentes, contrariando o que é previsto no método da
pesquisa-ação.
O processo de desligamento entre as pesquisadoras e as famílias visitadas
aparece como momento sentido pelos que se envolveram no trabalho e pré-pro-
gramado com “data marcada” para terminar. Ao contrário do que acontece duran-
te as visitas – a construção conjunta–, a última visita é padronizada e não parece
levar em conta as necessidades das famílias, mas sim “avaliar” se os objetivos da
pesquisa foram alcançados.
Dessa forma, é necessário construir novas alternativas que considerem as de-
mandas das famílias para assim efetivar o trabalho em rede e a decisão conjunta
214
gias para prevenir esse fenômeno, punir autores desse tipo de violência e oferecer
assistência às vítimas e aos familiares (Bandeira & Thurler, 2009; Brasil, 2007; Car-
neiro, 2003; Griebler & Borges, 2013; Medeiros & Puga, 2007; Melo & Teles, 2003).
A manipulação afetiva, a ameaça de dilapidação do patrimônio, as privações
arbitrárias da liberdade, o espancamento e a tentativa de homicídios conjugais
são atos que podem ser vistos como um continuum de violência que pode variar
em grau de severidade e letalidade. Tais ações pertencem a uma mesma linha de
atos violentos que podem resultar no óbito. O homicídio pode ser o pior dos resul-
tados em situações de violência nas relações íntimas (Garcia, Freitas, Silva &
Höfelmann, 2013; Grams & Magalhães, 2011). Em alguns casos, a escalada de vio-
lência pode resultar na morte de ambos os parceiros, sob a forma de homicídios
seguidos de suicídios (Grams & Magalhães, 2011; Teixeira, 2009).
O homicídio de mulheres é denominado, nos estudos de gênero, como femini-
cídio. Esse termo foi cunhado para diferenciar os assassinatos femininos dos mas-
culinos e destacar que a maioria das mortes de mulheres tem íntima relação com
a lógica sexista marcada pela apropriação dos corpos das mulheres e pelo exercí-
cio da dominação masculina. Analba Teixeira (2009) alerta que os homens que co-
metem feminicídio contra suas companheiras não são considerados perigosos
para a sociedade. Esse tipo de crime, compreendido nas década de 1970 e 1980
como crimes motivados pela defesa da honra, são, frequentemente, entendidos
pelos juristas e pela sociedade civil na atualidade como ação motivada por emo-
ção violenta. Este processo decorre da ideia de posse, poder e controle sobre a
mulher.
Pesquisas revelam a alta ocorrência de feminicídio no Brasil. A pesquisa reali-
zada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostra que, entre os
anos de 2009 a 2011 foram registrados 13.071 feminicídios no Sistema de Informa-
ções sobre Mortalidade do Ministério da Saúde (Garcia et al., 2013). O relatório
“Mapa da violência 2012 – Atualização: homicídio de mulheres no Brasil” (Waisel-
fisz, 2012a) revela que entre os anos de 1980 e 2010 ocorreram 91 mil homicídios
de mulheres. No ano de 1980, a taxa de homicídio foi de 2,3 para cada 100 mil mu-
Desenvolvimento do campo
Considerações finais
Discutimos brevemente a importância e os tipos de avaliação para, em segui-
da, apresentar a necessidade e relevância da inclusão de modelos de avaliação
de risco no contexto do atendimento a mulheres em situação de violência em rela-
ções íntimas. As estatísticas apontam a gravidade da situação, o aumento desse
tipo de violência e o desfecho trágico que põe fim à vida de muitas mulheres.
Apresentamos, também, alguns dos instrumentos que têm sido usados em contex-
tos de violência em vários países do mundo. A intenção foi identificar e discutir es-
tratégias de avaliação de risco de violência contra a mulher nas relações de intimi-
dade.
Este levantamento deixa claro uma mudança de paradigma no processo de
avaliação de risco, com a crescente valorização de abordagens estruturadas que
se baseiam na investigação de fatores de risco identificados por meio de pesqui-
sas científicas. A avaliação de risco é indicada como uma tarefa necessária, que
deve ser realizada nos serviços que compõem a rede especializada no atendimen-
to a pessoas em situação de violência, com objetivo de identificar os riscos e fa-
zer o seu manejo.
O emprego de abordagens estruturadas, que podem ter os resultados da ava-
liação baseados em procedimentos estatísticos ou na combinação destes com o
O conceito de saúde
O conceito de saúde oferecido pela Organização Mundial de Saúde – OMS –,
em 1946, como “um estado de completo bem-estar, físico, mental e social” e não,
somente, ausência de enfermidades ou doenças, tem, segundo Abreu (2012), sus-
citado críticas por meio da comunidade científica, sobretudo no que tange ao esta-
do de completo bem-estar” (p.21).
237
Para muitos estudiosos, como Sclair (2007), a saúde é um conceito por refle-
tir questões de natureza social, econômica, cultural e política, e assim sendo não
representa a mesma coisa para todas as pessoas. Depende da época, do lugar,
de valores individuais, sociais e de concepções científicas, filosóficas e religiosas.
A despeito das questões conceituais, o modelo contemporâneo de saúde
avançou na medida em que abandonou a concepção biomédica e mecanicista, e
adotou a promoção da saúde e o fortalecimento das redes sociais. O novo para-
digma assume a saúde como uma produção social, valoriza os determinantes so-
cioeconômicos e instiga o compromisso político e o fomento de transformações
sociais a partir de ações direcionadas ao coletivo (Bambati, Gussi & Seidl, 2014,
p. 157).
Nessa abordagem, o indivíduo é compreendido como um sujeito ativo em re-
lação com o outro e com as instituições e a saúde como um processo contínuo e
multideterminado. As ações de saúde, dentro dessa perspectiva, deixaram de ser
vistas dentro do parâmetro biomédico com ações individuais e específicas para
serem realizadas a partir de uma perspectiva contextual, histórica, coletiva e am-
pla (Bambati et al., 2014, p. 157).
Para a OMS, “A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o
Estado prover condições indispensáveis ao seu pleno exercício” (SUS citado por
Bambati et al., 2014, p. 159) e promover a saúde é a premissa básica da Primeira
Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde de Ottawa, Canadá (1986),
que introduziu a ideia de que o contexto social determina a saúde.
A partir dessa “Carta de Ottawa”, a Política Nacional de Saúde Mental reorien-
ta o modelo de assistência, concebendo a saúde como um processo de produção
de qualidade de vida, e não como doença. Esse modelo enfatiza ações integrais e
promocionais de saúde.
Para romper a fragmentação na abordagem saúde/adoecimento e vulnerabili-
dade/riscos, a promoção de saúde propõe a articulação entre o sujeito e o coleti-
Maria Lizabete Pinheiro de Souza, Maria Fátima Olivier Sudbrack e Maria Inês Gandolfo Conceição 238
vo, o Estado e a sociedade, o público e o privado, a clínica e a política, o setor sa-
nitário e os outros setores. Desse modo, consiste em um
[...] conjunto de atividades, processos e recursos, de ordem institucional,
governamental ou da cidadania, orientados a propiciar o melhoramento
de condições de bem-estar e acesso a bens e serviços sociais, que favo-
reçam o desenvolvimento de conhecimentos, atitudes e comportamen-
tos favoráveis ao cuidado da saúde e o desenvolvimento de estratégias
que permitam à população um maior controle sobre sua saúde e suas
condições de vida, em nível individual e coletivo (Gutierrez citado por
Bambati et al., 2014, p. 158).
Maria Lizabete Pinheiro de Souza, Maria Fátima Olivier Sudbrack e Maria Inês Gandolfo Conceição 240
VII. Sustentabilidade, que possui um duplo significado quando se propõe
a criar iniciativas consonantes com o princípio do desenvolvimento
sustentável e a garantir simultaneamente um processo duradouro e
forte de sustentabilidade.
Maria Lizabete Pinheiro de Souza, Maria Fátima Olivier Sudbrack e Maria Inês Gandolfo Conceição 242
nejada para pessoas que apresentam os primeiros sinais de alguma doença. A pro-
teção de doenças consiste em vigilância epidemiológica e sanitária, vacinação e
saneamento (identificar problemas de ordem pessoal e familiar).
No Brasil, o SUS, instituído pela Constituição de 1988 e promulgado pela Lei
Orgânica da Saúde (Lei n. 8.080/1990), propõe um sistema integrado de atenção à
saúde baseado nos princípios de universalidade (propõe que todos tenham direito
à saúde), equidade (garante o acesso de qualquer pessoa, em igualdade de condi-
ção, aos diferentes níveis do sistema de saúde), integralidade (propõe a integra-
ção de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde).
A cartilha Estratégia Saúde da Família constitui uma parte do Programa Aten-
ção Básica da Saúde, instituído pela Portaria nº 648/GM, de 28 de março de
2006. As estratégias contidas nessa cartilha definem áreas de abrangência/territó-
rios onde serão implantadas as atividades conjuntas relacionadas à educação e à
saúde do Programa Saúde nas Escolas, as quais constituirão núcleos em equipa-
mentos públicos da saúde e da educação (escolas, centros de saúde, áreas para
lazer e esporte etc.).
O Programa Saúde na Escola (PSE), instituído por Decreto Presidencial
nº 6.286, de 5 de dezembro de 2007, resulta do trabalho integrado entre
o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação, na perspectiva de am-
pliar as ações específicas de saúde aos alunos da rede pública de ensi-
no: Ensino Fundamental, Ensino Médio, Rede Federal de Educação Pro-
fissional e Tecnológica, Educação de Jovens e Adultos (Ministério da Sa-
úde, 2009, p. 10).
Maria Lizabete Pinheiro de Souza, Maria Fátima Olivier Sudbrack e Maria Inês Gandolfo Conceição 244
A prevenção visa formação, capacitação e consciência. Estudos mostram
que os programas preventivos tornam-se mais efetivos quando integram aborda-
gens, setores e instituições (Buchele, Coelho & Lindner, 2009; Moreira et al., 2006;
Sudbrack, 2014b). As intervenções devem ser feitas com planejamento, avaliação
e transparência em comunidades pequenas e específicas. A informação deve ser
considerada como um dos componentes da educação sobre o uso de drogas,
nos moldes da educação afetiva que se dirige à formação da personalidade.
A crise da saúde se reflete nos contextos, epistemológicos, metodológicos,
teóricos (e políticos). O cuidado com a vida deve ser partilhado entre os setores
público, privado e comunitário.
A prevenção atenta para os fatores de risco e proteção existentes nos indiví-
duos, na família, no contexto social e comunitário, dentre eles:
I. Individuais – incluem questões de gênero, idade, escolaridade (como
a defasagem idade/série), abuso de álcool e outras drogas, condi-
ções de saúde, habilidades sociais pobres, estilo de enfrentamento
negativo, baixa autoestima e autoeficácia. Incluem também a satisfa-
ção na vida, expectativas sobre o futuro, injustiça, impulsividade, hi-
peratividade, questões neurológicas, estresse constante, situações
de negligência e maus-tratos, exposição à miséria e violência na co-
munidade, baixo desempenho escolar, tendência a se expor a risco
(gravidez, delinquência, práticas sexuais inseguras etc.).
II. Familiares – referem-se à supervisão parental deficiente, baixa coe-
são familiar, ausência de vínculos fortes, falta de intimidade nas rela-
ções familiares, conflito entre os pais, doenças mentais, problemas
disciplinares – disciplina rígida ou permissiva –, negligências, maus-
tratos, agressões, condições socioeconômicas precárias; famílias adi-
tivas (consumidoras de drogas, álcool ou outras adições: trabalho, te-
levisão, jogo, internet e outras).
Maria Lizabete Pinheiro de Souza, Maria Fátima Olivier Sudbrack e Maria Inês Gandolfo Conceição 246
tores específicos são preditivos de um determinado tipo de violência (sexual, por
exemplo).
A questão do envolvimento dos jovens com as drogas pode ser desencadea-
da por “fatores estressantes como morte, doenças ou acidentes entre membros
da família e amigos; mudanças de escola ou residência; separação, divórcio ou no-
vos casamentos dos pais; problemas financeiros da família” (Schenker & Minayo,
2005, p. 714). O uso ocasional da droga pelos jovens “pode ser entendido como
uma manifestação apropriada para a sua etapa de desenvolvimento e busca de di-
reção para a vida” (Schenker & Minayo, 2005, p. 715).
A escola constitui-se num espaço de proteção e de subjetivação. Muito em-
bora a relação entre os jovens e a escola esteja permeada por ambiguidades e ten-
sões, os alunos confiam na escola e no professor, e valorizam os estudos como
uma promessa futura. Para muitos estudantes, o espaço escolar é considerado
como importante para a inserção no mercado de trabalho e para fazer amigos (so-
bretudo para aqueles que não encontram fora do ambiente escolar possibilidades
de lazer, interação entre pares, consumo e produção cultural) (Abramovay, Cunha
& Calaf, 2009; Spósito, 2005a, 2005b).
Pesquisas indicam alguns fatores que garantem a proteção na escola e pro-
movem a resiliência: (1) clima escolar positivo e afetivo; (2) Prática disciplinar efeti-
va; (3) educadores respeitosos, cuidadosos, atenciosos, consistentes, capazes de
atuar como modelo, de motivar os alunos e de supervisionar suas ações; (4) rela-
ções positivas com os colegas (Solberg, Carlstrom, Kimberly & Jones, 2007).
As ações promocionais podem e devem ser desenvolvidas no contexto esco-
lar, que é prioritário de ações preventivas (uma vez que a escola está frequente-
mente sob a influência de fatores de risco). As chamadas “escolas promotoras de
saúde”, conforme a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP, 2005, p. 6), empe-
nham-se na educação integral para a saúde, na criação de um entorno saudável,
na provisão de serviços de saúde, no desenvolvimento de relações humanas har-
mônicas, saudáveis e construtivas, na construção de aptidões e atitudes voltadas
Maria Lizabete Pinheiro de Souza, Maria Fátima Olivier Sudbrack e Maria Inês Gandolfo Conceição 248
do bullying pelos colegas, sendo 7,9% do sexo masculino e 6,5% do sexo femini-
no (IBGE/PenSE, 2012).
Tendo em vista esse cenário, importa considerar como estão as ações preven-
tivas nas escolas brasileiras e questionar até que ponto as ações propostas estão
sendo efetivadas? Como desenvolver nos agentes educacionais um compromisso
com a promoção da saúde e a prevenção do uso de drogas na comunidade esco-
lar?
Maria Lizabete Pinheiro de Souza, Maria Fátima Olivier Sudbrack e Maria Inês Gandolfo Conceição 250
Tendo em vista os fatores de risco e de proteção do abuso de drogas por es-
colares, vê-se a urgência em propor, mediante instituições de ensino superior, res-
ponsáveis pela formação de profissionais que atuam na área da saúde, a forma-
ção continuada de professores e gestores responsáveis pela condução pedagógi-
ca e política da promoção da saúde e da prevenção do uso de drogas. Essa forma-
ção tem sido propiciada pela Universidade de Brasília desde 2004, no Curso de
prevenção do uso de drogas para educadores de escolas públicas, realizado pelo
Programa de Atenção e Estudos de Dependências Químicas – PRODEQUI -, que
já formou mais de setenta mil pessoas, em todo o país.
O curso de 180 horas/aula, realizado a distância, propõe uma formação am-
pla sobre o tema e o acompanhamento de projetos realizados ao longo desse pro-
cesso formativo.
Os projetos giram em torno de cinco eixos de ação: (1) Participação juvenil e
formação de multiplicadores; (2) Integração da prevenção ao currículo escolar; (3)
O resgate da autoridade na família e na escola; (4) O fortalecimento da escola na
comunidade e como comunidade; e (5) O acolhimento de educandos em situação
de risco.
O retorno dos cursistas sobre os projetos desenvolvidos mostra um cresci-
mento significativo nos projetos implementados, revelando uma adequada com-
preensão dos parâmetros de prevenção ao abuso de álcool e outras drogas e uma
gama de ações preventivas em todos os níveis.
No Distrito Federal, por exemplo, a construção Política sobre Drogas da Se-
cretaria de Estado e Educação do Distrito Federal, alinhada com os pressupostos
do curso acima referido, instituída por meio da Portaria nº 97, de 13 de junho de
2012, “é uma iniciativa pioneira do Governo do Distrito Federal, que visa orientar
os profissionais da educação no desenvolvimento de ações de enfrentamento às
drogas, de modo que toda a Rede Pública de Ensino tenha clareza de seus papel/
papéis no enfrentamento ao uso de drogas”.
Maria Lizabete Pinheiro de Souza, Maria Fátima Olivier Sudbrack e Maria Inês Gandolfo Conceição 252
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Maria Lizabete Pinheiro de Souza, Maria Fátima Olivier Sudbrack e Maria Inês Gandolfo Conceição 256
Clinique des “Situations
12 Extremes” à l'adolescence et
partenariat entre les institutions
du sanitaire et du social 1
Didier Drieu
257
tutions, ce qui nous obligent à la créativité pour entreprendre une réflexion sur nos
échecs nombreux avec ces adolescents et leur environnement. Nous terminerons
par cette question du partenariat dans les prises en charge et donc également sur
quelques pistes de travail face à la souffrance de ces adolescents, leurs proches
mais aussi des intervenants.
Clinique des “Situations Extremes” à l'adolescence et partenariat entre les institutions du sanitaire et du social
259
Si les blessures narcissiques sont au premier plan chez ces jeunes, celles-ci
sont en rapport avec des troubles précoces dans les liens à l’environnement. L’al-
ternance de l’excès et du vide dans les liens à l’objet maternel provoque des atta-
chements très incohérents (insécures). S’ajoute une défaillance et une faiblesse de
l’imago paternelle, des pactes narcissiques (liens pervertis, parfois mafieux) qui les
piégent souvent dans des relations familiales indifférenciées, incestuelles (Raca-
mier, 1995). Ainsi, ce qui dans l’enfance fonde déjà une vulnérabilité narcissique
avec le déséquilibre entre la violence des pulsions et la fragilité des défenses, l’an-
tagonisme entre les attentes narcissiques et la réalité des liens va se creuser aux
temps de la puberté en accentuant la précarité des investissements. Bien sûr, ces
jeunes présentent des défenses primitives qui contribuent à une sorte de dépen-
dance aux agirs aux dépens de la pensée, d’un fonctionnement plus fantasmati-
que, faisant appel à des processus psychiques permettant l’autocritique, l’ambiva-
lence des sentiments. Nous contredisons ici au passage ce terme d’ambivalence
qui revient souvent dans tous les discours car nous sommes plutôt dans des logi-
ques paradoxales (le tout et son contraire; la haine et la dépendance avec une im-
possibilité de vivre la séparation). Cependant, nous sommes face à des adoles-
cents qui doivent composer très tôt dans leur existence avec des tensions trauma-
tiques, surtout des liens instables dans la constitution de leur vie psychique.
Même s’ils sont marqués dans l’enfance par des évènements traumatiques (vio-
lence, abus sexuels), ils ont aussi à faire face à une alternance de trop grande
proximité, de confusion et d’abandon avec leur entourage premier. Ainsi, leurs ac-
tes apparaissent en résonance mais aussi en opposition, en défense face à
l’échec des premières différenciations comme le “non symbolique et joueur” de
l’enfant, des premiers modèles d’attachement, de l’expérience d’un lien à des ob-
jets qui tiennent dans l’épreuve de la destructivité de l’enfant (Jeammet, 1990;
Roussillon, 1991). Nous verrons que c’est sur ce terrain là qu’ils viennent souvent
nous provoquer même plus tard, d’où notre réflexion par rapport à leurs “tendan-
ces traumatophiliques” qui reprend celle de Winnicott face à l’espoir dans les con-
duites antisociales (Drieu, 2004). En effet, ces expériences de souffrance primitive
Telle est la situation de Dylan, (15 ans lors de notre première consultation en
Maison des Adolescents). Il est par ailleurs suivi par la Protection Judiciaire de la
Jeunesse. Il se distingue par de nombreux troubles du comportement dans l’en-
fance: fugues, jeux à risque, bagarres, désinvestissement scolaire. Ainsi, très tôt,
sans qu’il soit véritablement suivi en pédopsychiatrie, Dylan se fait remarquer par
sa grande turbulence, son comportement hyperkinétique, escaladant les toits
etc…
Clinique des “Situations Extremes” à l'adolescence et partenariat entre les institutions du sanitaire et du social
261
Eléments caractéristiques de ces situations extrêmes du côté des univers fa-
miliaux
S’il y a l’existence d’une telle vulnérabilité chez le jeune, c’est aussi parce
que nous sommes en présence d’un environnement très précaire (la famille) qui
n’a jamais pu établir des liens d’attachement sécure, une protection face aux an-
goisses. Cependant, contrairement à ce qui a été longtemps affirmé en protection
de l’enfance, on ne peut pas parler d’absence de liens mais plutôt d’une approche
de ces liens dans une logique très incohérente, paradoxale qui provoque très tôt
des craintes de dépendance contre lequel le jeune doit se protéger. Il y a donc sou-
vent échec dans la constitution des premiers liens avec les parents, ceux-ci étant
trop préoccupés par leur propre sauvegarde narcissique. Toutefois, ces jeunes
n’ont de cesse que de les provoquer directement ou indirectement comme on l’a
vu avec Dylan.
Chez Dylan, par exemple, on retrouve de nombreux antécédents traumati-
ques. Sa mère est lourdement handicapée et très tôt, Dylan va devoir la soutenir,
la suppléant dans toutes ses démarches et ce, dès qu’il vient au monde. Il a dû
aussi se confronter à ses sautes d’humeur, un attachement incohérent (carence et
excitation). Ne pouvant médiatiser le lien entre sa femme et son fils, le père fera
surtout signe d’autoritarisme, de violence, n’intervenant que sur un mode initiati-
que très binaire. Il est pris lui-même dans un rapport identificatoire à un père vio-
lent.
Dans les deux familles, on retrouve une transmission de violences, la maltrai-
tance du côté paternel, l’inceste du côté de la famille maternelle. Ces éprouvés
ont conduit les frères aînés de Dylan, moins marqués par la maladie de leur mère,
a partir très tôt, d’abord en fugue pour deux des frères, en errance pour l’un d’en-
tre eux (SDF au moment de la consultation)
On retrouve l'idée d'une filiation traumatique dominée par une économie
narcissique. Elle s'est installée aux dépens de liens de transmission plus ouverts
au monde symbolique (l'institution de la filiation). Dans une approche parallèle, J.
Clinique des “Situations Extremes” à l'adolescence et partenariat entre les institutions du sanitaire et du social
263
les situations des fils de Harkis comme Ahmed. Enfant de parents d’origine algé-
rienne, Ahmed est le fils de parents qui ont connu deux vies de couple, une pre-
mière en Algérie, puis une autre en France mais surtout la confrontation à la guerre
d’Algérie pour le père très âgé à sa naissance, des trahisons et l’horreur du viol de
sa première épouse. Tous les liens familiaux sont soumis à l’épreuve du déracine-
ment mais aussi de la violence culturelle comme chez sa mère qui a dû se soumet-
tre à deux mariages arrangés avec sa famille et à des liens à des maris beaucoup
plus âgés. Confrontée à une sorte d’arrachement de son village natal, à devoir lais-
ser ses deux premiers enfants en Algérie, à la violence de ses deux conjoints, elle
sera souvent hospitalisée en psychiatrie, surtout au moment de la naissance d’Ah-
med. Très tôt, le couple s’est installé dans la mésentente conjugale.
Ahmed est absorbé dans la problématique de ses parents, devenant une
sorte de monnaie d’échange, ces derniers l’utilisant pour se protéger des violen-
ces toujours actuelles du passé: les meurtres de la guerre chez le père, l’exil, la re-
légation identitaire. Il a été souvent témoin dans sa petite enfance de violences
multiples entre ses parents, de scènes à haut potentiel traumatique comme par
exemple, l’avortement de sa mère sous ses yeux dans la voiture, des violences
conjugales répétitives dans son enfance. Il assiste alors à des scènes d’agression
de la part de son père à l’encontre de sa mère, faisant le lien aujourd’hui avec sa
propre violence, les propos suicidaires de sa mère. Il est placé à 7 ans dans une
famille d’accueil avec son petit frère âgé de 3 ans alors que sa mère est hospitali-
sée en psychiatrie pour des épisodes confusionnels qualifiés de psychotiques.
Dans l’enfance, de nombreuses aides spécifiques lui sont proposées, tout d’abord
au sein de l’école, puis dans des structures spécialisées. Nous pouvons relever
plus d’une dizaine de propositions restées souvent sans lendemain: hospitalisation
de jour en pédopsychiatrie, consultations auprès de collègues libéraux, d’endocri-
nologie dans un hôpital parisien, CLIS, deux IME à temps partiel,… Il semble
d’ailleurs que ces aides ponctuelles contribuent à rendre de plus en plus difficile le
placement en famille d’accueil2 , ces échecs non discutés donnant une représenta-
Les jeunes qu’il retrouve à l’hôpital ou à l’extérieur sont souvent tous marqués
par les mêmes malaises identitaires causés tout autant par les échecs des investis-
sements que des problématiques de séparation/individuation de l’enfance, d’atta-
chement traumatique. Leurs rites de ralliement, leurs jeux ordaliques témoignent
également de l’importance d’une communauté d’existence autour d’un passé de
situations sociales traumatisantes. Face à des situations de cumul traumatique, ils
peuvent s’enfermer dans des groupes se marginalisant, utilisant l’ambigüité, la pro-
vocation à la manière d’un bouclier pour se défendre des irradiations de ces hérita-
ges de violence traumatique. Individuellement, ce mécanisme d’adaptation peut
provoquer une sorte d’indifférence, une forme de “banalisation du mal”qui amène
le jeune à protéger et à enfermer sa partie vivante (Arendt, 1966/1991). Collective-
ment, ces jeux de clivage vont faire l’objet de “pactes narcissique dénégatifs”,
voire parfois donner lieu à des alliances perverses déclenchant des violences fratri-
cides (Kaës, 1993). En lien avec leurs parcours souvent semé d’échecs, les plus
fragiles risquent alors de s’enfermer dans des formes d’auto-exclusion, des logi-
ques identitaires négatives, leurs expériences masochistes provoquant alors une
_______________
(2) Les familles d’accueil (ou assistantes familiales) ont avec certaines institutions (Maisons d’en-
fants à Caractère Sociale) mission de suppléer dans les placements d’enfants aux carences ou
dysfonctionnements des familles. Les enfants sont alors placés sous mandat d’un juge pour en-
fant.
Clinique des “Situations Extremes” à l'adolescence et partenariat entre les institutions du sanitaire et du social
265
forme d’économie psychique addictive, de dépendance à la voie comportemen-
tale. J. Bordet (1998) qui travaille sur les logiques de bandes en banlieue a bien no-
té les transformations qui amènent ces jeunes à se retrouver piégés dans des logi-
ques englobandes, stigmatisantes là où autrefois, il y avait, malgré la violence, des
possibilités de transformation.
Pourquoi par exemple leur vulnérabilité semble toujours évaluée dans l’ur-
gence, sans que nous puissions retrouver dans les dossiers des bilans plus appro-
fondis par exemple sur la problématique d’attachement, ou sur les traumatismes
précoces, ou sur les liens familiaux? Ainsi, les bilans dans les dossiers apparais-
sent toujours très parcellaires, jamais terminés, dévoilant peu les aspects plus in-
teractifs des tensions traumatiques, des attachements négatifs et des violences
dans la transmission. Derrière les questions d’évaluation des situations de ces jeu-
nes, il se joue des problèmes d’accueil dans les services, des équipes découvrant
souvent dans l’urgence, des échecs, des impensés qui vont les aspirer à leur tour
dans la réaction, voire des formes de “communautés de déni” les installant dans
des projets en impasse (Fain, 1982).
Clinique des “Situations Extremes” à l'adolescence et partenariat entre les institutions du sanitaire et du social
267
mentés, connaissant ces situations de maltraitance et les travaux sur les théories
du transgénérationnel et de l’attachement.
Pour des jeunes comme Ahmed, les hospitalisations arrivent en urgence avec
souvent la volonté cachée de l’équipe précédente de faire table rase de leur expé-
rience ressentie comme un échec. Dans un même mouvement paradoxal, l’équipe
de l’ASE présente le jeune Ahmed comme un “possible pervers” et la famille d’ac-
cueil comme potentiellement séduite par son comportement déviant, susceptible
donc d’être pathogène. Elle maintient pourtant le placement de son petit frère
dans cette famille fonctionnant du coup dans des sortes d’injonction paradoxale
face aux enfants et la famille d’accueil. Elle fait alors le choix par défaut de confier
Ahmed à une autre famille d’accueil à sa sortie de l’hôpital, ce qui ne se fera ja-
mais, vu l’attachement de ce jeune à son milieu de substitution et ses problèmes
de comportement. Pourtant énormément mobilisée dans les projets de placement,
l’équipe apparaît tendue sur un principe de précaution, s’arc-boutant alors sur des
procédures qui vont enfermer la famille d’accueil, voire les parents d’Ahmed, le
jeune lui-même dans des fonctionnements de lutte face à la culpabilité, voire la
honte.
Nous pouvons penser que la situation d’Ahmed, de sa famille et de l’environ-
nement d’accueil réactivent certains traumas du passé dans le secteur de ce dé-
partement. Sur ce territoire rural, on a en effet pendant longtemps exploité le filon
économique des accueils extérieurs au département jusqu’au jour où des situa-
tions scandaleuses se sont trouvée révélées, mettant à jour des scènes de perver-
sion, plus relationnelles, interactives que véritablement structurelles. Au-delà d’his-
toires conjoncturelles, ces modes de placements d’autrefois fonctionnaient dans
une sorte d’idéologie d’hygiénisme social avec l’idée qu’il faille écarter ces enfants
des sources du mal, celui-ci étant lié dans un curieux mélange aux conditions de
vie, à l’hygiène, voire même à un déterminisme héréditaire. Progressivement, un
mouvement inverse s’est opéré pour penser les interventions des familles d’ac-
cueil vers une forme de suppléance familiale. Cette nouvelle orientation va dans le
sens d’un soutien à la parentalité. Il s’agit de les aider à retrouver leurs actes édu-
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269
tôt réussi vers des soins de jours en pédopsychiatrie. Constatant l’enfermement
d’Ahmed dans une forme de psychiatrisation et dans une psychopathologie, les
deux équipes par la voie du directeur vont alors revendiquer que les travailleurs so-
ciaux de l’Aide Sociale à l’Enfance prennent position, la direction de l’hôpital allant
jusqu’à réclamer un remboursement des prix de journée.
Les éléments de changement vont arriver avec la nomination d’une nouvelle
éducatrice dans l’équipe ASE, puis la demande du côté de la psychiatrie faite à no-
tre groupe de recherche de nous saisir de cette situation dans une forme d’ana-
lyse interinstitutionnelle. Progressivement, en résonance avec la capacité de la fa-
mille d’accueil, de l’éducatrice de s’extraire des processus de collusion institution-
nelle, va s’opérer une transformation des éprouvés traumatiques à l’encontre d’Ah-
med, de sa famille, aidant à réattribuer la part prise par chacun dans ces fonction-
nements en escalade. D’autres projets vont alors pouvoir se réamorcer. Pédopsy-
chiatre, éducatrice de l’Aide Sociale à l’Enfance et famille d’accueil vont ainsi ac-
compagner Ahmed et son frère quand le père décède, les aidant à penser à la fois
les liens et une distanciation (projet de réinsertion interculturel pour Ahmed, entre-
tiens familiaux avec la famille d’accueil, visites médiatisées chez la maman,…)
Clinique des “Situations Extremes” à l'adolescence et partenariat entre les institutions du sanitaire et du social
271
rarement à dégager des solutions mais il n’était pas rare de voir des évolutions arri-
ver après-coup comme ce que nous avons tenté avec Dylan, un peu aussi avec
Ahmed. Partageant le non sens, nous arrivions dans nos différences à entendre de
la vie, du relationnel dans les rencontres avec ces jeunes, moments refondateurs
d’un travail d’équipe, redonnant du sens à notre cadre de travail.
Ceci pose une deuxième question particulièrement importante pour ces jeu-
nes. Dans de telles configurations traumatiques, les évènements ne font pas tra-
ces pour les sujets, sinon sous le mode de l'effacement ou celui d'une surpré-
sence. Ni L'histoire est précisément ce qui se trouve en ni défaut d'inscription;
les identifications se trouvent ainsi en position de déséquilibre, voire en faillite
(Gaillard, 2001). Rendus incasables, on ne peut pas dire qu’ils participent à leur ac-
cueil dans les services où ils se trouvent. La fonction d’accueil qui est déjà parfois
mise à mal ailleurs est peu travaillée. Ainsi, est-il rare qu’ils soient accueillis avec
l’intention de travailler à ce qu’ils puissent investir les différents espaces d’un éta-
blissement, plusieurs référents (éducateur, psychologue, médecin,…), qu’ils puis-
sent se mobiliser dans le « don/contre don », dans l’échange sur un projet, ce
sans parler de leur entourage (Niang, 2013). La tendance est grande d’effacer l’his-
toire, soit en la figeant dans le passé ou en la banalisant au point de l’ignorer
Dans le même esprit, se pose le problème de la professionnalité pour les diffé-
rents acteurs de ces établissements. Au niveau des identifications professionnelles
des professions du soin et du travail social, la ni transgression est constitutive de
l'ancrage identitaire. Ces différentes professions donnent en effet accès à la fré-
quentation de situations et à des actes qui, en d'autres contextes, relèvent du ta-
bou et/ou de l'intime. Les professions du soin et du travail social, par exemple, se
configuraient jusqu’alors pour une large part dans un rapport de fascination de ni
l'archaïque avec une possible reprise historisante requise dans les régulations
institutionnelles. En outre via leurs identifications professionnelles, ces soignants
ou éducateurs tentent de réparer et conjointement de masquer leurs propres ni
failles identitaires. La souffrance des adolescents, plus souvent leurs actes, ren-
Clinique des “Situations Extremes” à l'adolescence et partenariat entre les institutions du sanitaire et du social
273
plus difficile, exacerbant ces dynamiques de ni réparation/méconnaissance des
professionnels au travers des "soins" aux différents “usagers”. En effet, face à des
professions devenant davantage techniques (techniciens du social ou du soin), les
différents intervenants aujourd’hui peuvent être tentés au-delà du refoulement
groupal, de se mettre en retrait du travail institutionnel et ce au nom des injonc-
tions qu’ils reçoivent de maîtriser les risques, de prévoir, d’anticiper les fonctionne-
ments. C’est tout le débat qui nous préoccupe actuellement autour de la prédic-
tion et la prévention comme par exemple les consignes en France de la Haute au-
torité de santé de repérer les enfants vulnérables dès l’entrée à l’école maternelle.
Les établissements de soins ou éducatifs, les équipes ont à composer sans
arrêt avec la déliaison affectant le travail d’historicisation nécessaire à la prise en
charge de ces jeunes. Alors dans quels nouveaux partenariats pouvons-nous met-
tre au travail l’échec vécu par les professionnels face à ces jeunes pris dans leur
vulnérabilité.
La complexité des problématiques individuelles et familiales de ces adoles-
cents vulnérables exige pour une meilleure compréhension, d’être discutée, réflé-
chie dans les équipes, en pluridisciplinarité selon un modèle travaillé ailleurs, la plu-
rifocalité de la clinique. Cependant, cette démarche doit pouvoir aller au-delà du
soin esquissé par P. Jeammet à l’Institut Médical Montsouris (Paris), un référent
médical, un référent pour la psychothérapie, parfois d’autres soins en direction de
la famille. Comme pour les prises en charge des conduites de dépendances, il est
ainsi tentant de reprendre le modèle psychiatrique ou psychothérapeutique instau-
ré surtout en milieu hospitalier: ni les dispositifs bi-focaux ou tri-focaux (Jeam-
met, 1992; Slama & Gutton, 1992). L'idée est de pouvoir mieux gérer les excita-
tions, les répliques sismiques qui ne manquent pas de survenir et ainsi de cher-
cher à protéger le travail thérapeutique tout en proposant ni un thérapeute qui
puisse être référent des liens dans la réalité. Toutefois, ces approches focali-
sées sur certaines dimensions thérapeutiques ne tiennent pas compte ni des di-
mensions éducatives et sociales en jeu et surtout de l'importance de penser
Clinique des “Situations Extremes” à l'adolescence et partenariat entre les institutions du sanitaire et du social
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tentatives ultimes de tester notre environnement professionnel, de mettre à
l’épreuve la survie du cadre. Les attaques des cadres éducatifs et psychothérapeu-
tiques étant permanentes, il est impératif de penser des dispositifs à plusieurs ni-
veaux de contenance, offrant la possibilité de replis potentiels à travers les séjours
de rupture, le détour par l'hospitalisation, les entretiens avec un éducateur réfé-
rent, voire le directeur du centre d’hébergement si nécessaire. Bien sûr, ces atta-
ques renvoient à la violence pulsionnelle de ces jeunes mais aussi à une remise en
jeu de l'épreuve de destructivité dans le rapport à l'autre. Face à l'impasse qu'ils
rencontrent précocement dans leur relation à l'objet dans les premiers temps de la
différenciation, ils tentent ainsi d'éprouver la qualité des liens et la fiabilité de la pa-
role de l'adulte. Certes, il est difficile pour ces adultes que nous sommes, surtout
pour les éducateurs, de pouvoir préserver la stabilité du cadre. L'environnement,
les dispositifs de médiation doivent pouvoir alors offrir des relais en mettant en
perspective l'agir et la figurabilité à travers des scènes sociales qui peuvent être
des équivalents du jeu dans le psychodrame. Une attention particulière est ainsi à
porter à la façon dont l’arrivée et le séjour du jeune peuvent être pensés et accom-
pagnés sur le lieu de vie, [i][l'institution pouvant servir de trame pour constituer des
contrats de type initiatique susceptibles de mettre en représentation la trame imagi-
naire des contrats narcissiques et des pactes dénégatifs inconscients dont le jeune
a été l'objet et qui dérégulent son activité métaphorisante préconsciente] (Aula-
gnier, 1989; Kaës, 1993). Dans l’arrivée en foyer, les temps d’observation et de sé-
paration avec le milieu habituel du jeune, suivi d'une période d'épreuves socialisan-
tes, puis de retrouvailles, peuvent s’apparenter à l’approche initiatique des socié-
tés traditionnelles. Or, malheureusement, ce contexte de travail clinique dans la
contenance et les effets pare-excitants est loin d'être en place partout, et notre ex-
périence suggère même que, s'il existe, il n'est pas toujours totalement opérant.
Pour permettre cette constance de travail clinique dans un contexte interdisci-
plinaire, interinstitutionnel, le réseau doit pouvoir proposer des espaces de forma-
tions actions/recherche, déjà en partant de groupes d’analyse de ces situations ex-
trêmes.
Clinique des “Situations Extremes” à l'adolescence et partenariat entre les institutions du sanitaire et du social
277
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Ana Massa
Teresa Cristina O. C. Carreteiro
Introduction
Cet article est issu des réflexions menées dans une recherche dans le cadre
dans d’un doctorat sur la symbolisation dans la construction des jeunes rappeurs
habitants d’une banlieue française et d’une banlieue et d’une favela brésiliennes.
Ici, nous centrerons notre propos sur l’analyse du terrain dans la banlieue
française où nous sommes allés d’octobre 2007 à juin 2009 afin d’examiner les
liens tissés entre les jeunes rappeurs et leurs espaces de vie, pour ensuite
analyser comment ils s’expriment à travers le rap dans la construction de leurs
existences sociales.
Nous discuterons notre hypothèse selon laquelle les pratiques des jeunes
rappeurs et le rap lui-même prennent leur sens et leur signification au sein du
groupe de pairs et dans un contexte social, ce qui contredit les conceptions qui
privilégient l’activité créative dans sa dimension exclusivement individuelle. Nous
analyserons ainsi le rap et le territoire dans la qualité d’enveloppe groupale
_______________
(1) Cet article est un extrait d’une thèse de doctorat intitulée “[La sociologie clinique du rap: la
symbolisation dans la construction des jeunes rappeurs brésiliens et français dans leurs
espaces de vie].” Les noms propres des personnes et de l’association de quartier ont été
modifiés par souci d’anonymat.
281
(Anzieu, 1999) qui créé un intérieur et un extérieur du groupe, au sein du quel le
jeune construit son rapport à soi et à l’autre.
L’appartenance territoriale et l’expression par le Rap- des enjeux existentiels chez les jeunes habitants d’une
banlieue française 283
le lieu où se condense ce double sentiment de désappartenance: il désigne ceux
qui ont quitté leur pays d’origine et ceux qui ne se sentent pas intégrés dans la
société française. Mais le quartier s’affirme également comme l’espace d’ancrage
de la sociabilité du groupe de pairs, où les jeunes expérimentent la “fraternité
d’une famille non constituée”. Si les appartements sont petits pour accueillir les
familles nombreuses et les différences qui se creusent entre enfants et parents,
dans le quartier les jeunes trouvent des espaces géographiques et symboliques
pour l’échange. Le territoire, le jeune et le groupe renforcent mutuellement leurs
existences. Le quartier et le groupe de pairs sont désignés par L.P. comme la
seule chose qui leur appartienne. Le rappeur ne finit pas sa phrase: “Si on t’enlève
ça… T’es… voilà.”. Nous pouvons penser que, dans son imaginaire, la disparition
du territoire et du groupe de pairs en tant qu’enveloppes psychiques ferait tomber
l’individu dans le vide où le sujet ne trouve plus de contenant.
Nous avons pu entendre la force de l’attachement à l’espace social également
chez les jeunes que nous avons rencontrés à Rocinha. Lena, jeune rappeuse de
15 ans nous dit à propos de son vécu dans la favela:
L’appartenance territoriale et l’expression par le Rap- des enjeux existentiels chez les jeunes habitants d’une
banlieue française 285
développera la construction de soi. Chez les jeunes brésiliens et français,
l’appartenance au groupe implique d’emblée l’inscription et l’engagement dans le
territoire. Selon Anzieu, l’enveloppe groupale est
une enveloppe vivante, comme la peau qui se régénère autour du corps,
comme le moi qui s’efforce d’englober le psychisme, une membrane à
double face. L’une est tournée vers la réalité extérieure, physique et
sociale, notamment vers d’autres groupes, semblables, différents ou
antithétiques quant au système de leurs règles et que le groupe va
considérer comme des alliés, des concurrents ou des neutres. Face par
laquelle l’enveloppe groupale édifie une barrière protectrice contre
l’extérieur. (…) L’autre face est tournée vers la réalité intérieure des
membres du groupe. Il n’y a de réalité intérieure inconsciente
qu’individuelle, mais l’enveloppe groupale se constitue dans le
mouvement même de la projection que les individus font sur elle de leurs
fantasmes, de leurs imagos. (Anzieu, 1999, pp. 1-2).
Notre hypothèse est que le territoire, ainsi que le rap, fonctionnent comme une
enveloppe groupale pour les jeunes, dans la mesure où l’activité les rassemble et
pose un contenant pour l’expression et la construction de soi, créant ainsi une
intériorité et une extériorité par rapport à eux. Ces deux enveloppes se renforcent
réciproquement pour la constitution groupale. Nous verrons par la suite que
l’investissement narcissique dans le groupe sera potentialisé par cette expression
artistique, ce qui viendra renforcer et mettre en scène les enjeux socio-psychiques
liés à l’appartenance et à l’inscription du jeune dans le territoire.
Des spécificités locales caractérisent l’articulation entre rap et territoire au
Blanc-Mesnil, objet de notre discussion dans cet article, qui nous examinerons à
travers les dimensions imaginaire et symbolique qui traversent le jeune et le
groupe dans la réalité de leurs pratiques sociales et culturelles.
L’appartenance territoriale et l’expression par le Rap- des enjeux existentiels chez les jeunes habitants d’une
banlieue française 287
A la fin de 2009, la population recensée des ménages du quartier Nord
s’élève à 14.2806. En 2006, la population étrangère était estimée à 26.4 % de la
population7. Au niveau de la formation et de l’emploi, 58,1 % des jeunes de 15 à
35 ans n’ont aucun diplôme au moins égal au baccalauréat contre 32,1 % à Paris.
25,3% des ménages reçoivent une allocation chômage en 2009. Pendant cette
même année, la surface du logement était de 20,7 mètres carrés par personne,
contre 30,0 mètres carrés par personne à Paris. La part des ménages d'au moins
6 personnes est de 12.7 %, tandis que ce pourcentage se limite à 4.1 % à Paris.
Par ailleurs, en 2007, 80,5 % de la population relève de la catégorie des ouvriers
et employés, contre 49,3% à Paris.
D&T réalisait ses activités dans une salle prêtée par le Centre Social du
quartier des Tilleuls. Dans cette salle qui n’avait pas plus de 20 m2, un studio a été
monté pour enregistrer les artistes du quartier. Les jeunes n’avaient rien à payer, il
fallait simplement y venir pendant les horaires de permanence de la salle et
attendre son tour pour s’enregistrer. Un jeune ingénieur de son 17 ans qui habitait
également dans le quartier était responsable de l’enregistrement.
Au Blanc-Mesnil, les pratiques qui gravitent autour du rap ont été assimilées
aux pratiques culturelles locales des cités. D&T se présente comme un local
supplémentaire où les jeunes peuvent se rencontrer et faire du rap. Les jeunes
rappeurs y viennent pour “[poser un morceau]”, qui la plupart du temps a été
composé ailleurs8. Les autres artistes de la cité qui accompagnent celui qui vient
d’enregistrer connaissent par coeur les doublures9 à faire, les refrains à rapper…
_______________
(6) Source des informations qui suivent : http://sig.ville.gouv.fr/zone/1125010. Les chiffres cités sont
publiés par le Secrétariat général du CIV, héritier de la Délégation interministérielle à la ville et
au développement social urbain créée en 1988 (Voir http://www.ville.gouv.fr/?missions,199).
(7) Sources: Insee, Recensement de la Population 2006, Estimations mixtes 2006. http://
w w w. i n s e e . f r / f r / p p p / b a s e s - d e - d o n n e e s / d o n n e e s - d e t a i l l e e s / d u i c q / p d f / f t d /
ftd_z_1125010.pdf, accès le 24/06/2013.
(8) Sauf quand il s’agissait des ateliers thématiques. Dans ce cas, les jeunes étaient encadrés par un
rappeur et écrivaient sur place des paroles de rap pour la réalisation du projet.
(9) Doublures: d’autres rappeurs chantent des passages spécifiques du morceau, pour “doubler la
voix” du rappeur auteur du rap.
L’appartenance territoriale et l’expression par le Rap- des enjeux existentiels chez les jeunes habitants d’une
banlieue française 289
là-bas aussi…”
Combustible: “C’est rare qu’on soit tous parce qu’on salit après… Des
fois on rentre, on est à deux, on joue à la Play, après on écrit ([du rap])
… on met l’instru et on écrit.”
L’appartenance territoriale et l’expression par le Rap- des enjeux existentiels chez les jeunes habitants d’une
banlieue française 291
comme une attaque personnelle. Les jeunes rappeurs nous parlent de ces conflits
lors d’un entretien collectif:
Jordan: “Voilà c’est … Comment dire... Admettons y’a telle personne elle
est venue… on va dire… elle s’est fait frapper par un mec d’une autre
cité, et ben eux y vont s’dire voilà ça c’est ma cité, on est pas des
bouffons, on va aller là-bas et voilà. On va se le faire.”
Antoine : “Règlement de comptes.”
Jordan: “Voilà. Et ça, ça devient des histoires sans fin.”
Kévin: “En c’moment c’est… Y’a qu’ça. Ouais y’a qu’ça. Ha ouais, j’sais
pas c’qui s’passe quoi mais en c’moment c’est… c’est que ça.
Altercations cité, cité, cité, cité…”
L’appartenance territoriale et l’expression par le Rap- des enjeux existentiels chez les jeunes habitants d’une
banlieue française 293
condensent l’affirmation du capital guerrier et la relation fusionnelle avec le
territoire qui doivent être exprimés à l’intérieur du groupe de pairs pour qu’ils aient
des valeurs structurantes pour le jeune. La construction de l’identité masculine
sera soutenue par ces expériences collectives qui produisent de la valorisation de
soi reconnue à travers le regard de l’autre. Point qui nous ouvre aux autres
significations que les bagarres peuvent avoir pour les jeunes, notamment celle
d’une quête d’existence sociale.
Jordan rappelle que la coalescence entre jeune et territoire est une relation
imaginaire: même si leurs vies sont imbriquées avec celle de la cité, celle-ci ne
disparaîtra pas avec eux. Les jeunes entretiennent une fusion imaginaire avec
l’espace qui prend forme dans la construction de frontières symboliques
délimitant, à l’intérieur le territoire d’appartenance et à l’extérieur le territoire rival,
les deux côtés étant engagés dans une pratique groupale en quête de
reconnaissance mutuelle dans la réalité sociale. Néanmoins, Jordan nous montre
que la prise de conscience ne suffit pas et n’est pas à même de changer la force
du rapport imaginaire à l’origine de l’amalgame du jeune avec l’espace, qui revient
à travers l’affirmation qui clôt son propos: “Moins t’es… t’es ici, mieux tu t’portes.”
D’après Anzieu (1999, p. 53):
L’appartenance territoriale et l’expression par le Rap- des enjeux existentiels chez les jeunes habitants d’une
banlieue française 295
Nous pouvons prolonger notre l’hypothèse en avançant que l’attachement
des jeunes à leur banlieue, à leur patrie, se construit en résonnance avec
l’expérience de déracinement du pays d’origine des parents et se prolonge dans
l’impératif de défense de leur territoire dans la cité qui s’impose aux jeunes. Or, à
la différence des jeunes brésiliens qui habitent à Rocinha qui se présentent
comme un groupe homogène et soudé autour de la nationalité, les jeunes du
Blanc-Mesnil sont marqués par l’expérience de l’exil et de l’acculturation vécue à
travers l'éprouvé des parents, expérience qui peut intervenir dans l’exacerbation
d’une défense territoriale et culturelle de la cité. D’où le repli sur la proximité avec
les pairs de la même cité, et la vision d’un extérieur perçu comme persécuteur.
Dans ce sens, la fragilité et l'instabilité des frontières telles qu’elles ont été vécues
par leurs parents, entre dedans-dehors, entre pays d’origine-cité, peuvent avoir
une incidente dans l’irruption des bagarres au Blanc-Mesnil, lesquelles
répondraient à la nécessité de tester, par la provocation, les limites d’une
protection qui, n’ayant pas été intériorisée par les générations précédentes, n’a
donc pas pu être transmise et n’est alors jamais assurée. Ainsi, la défense
topographique de ce qui représente la cité est d'autant plus importante pour les
jeunes que leurs parents ont été obligés de quitter leur propre territoire d'origine,
les jeunes devant eux-mêmes s'ancrer quelque part pour ne pas répéter la
douloureuse expérience de dépossession. Par ailleurs, ces jeunes, malgré leur
nationalité, sont renvoyés à la figure de l’immigré. L’étranger n’est pas un citoyen
(Kristeva, 2004). Dans ce sens, les bagarres dans les cités génèrent un événement
qui affirme leur existence sociale.
Les frontières symboliques du quartier sont rappées par les jeunes. Les
jeunes utilisent fréquemment la formule “je représente” la cité dans l’univers du
rap. L’appartenance territoriale est télescopée par l’appartenance aux crew, et les
codes d’honneur et de fidélité au territoire sont transposés dans le rap:
“Sinon, il y a des très bons rappeurs, même ici aux Tilleuls. Il y a le
Locodafrique, Maydi… tout ça, vous l’avez déjà vu! Celui qui avait le
rasta Ekimasta… ils vont sortir un cd dans pas très longtemps. Il y a
aussi des gens de mon quartier que je trouve qui rappent bien, mais
même dans mon quartier, je vais pas vous mentir que je trouve qu’ils ne
_______________
(10) Crew: groupe de rappeurs.
L’appartenance territoriale et l’expression par le Rap- des enjeux existentiels chez les jeunes habitants d’une
banlieue française 297
rappent pas très bien. C’est mon point de vue. Je n’irai pas jusqu’à dire
toi, t’es nul… c’est un peu de l’arrogance. Mais je trouve qu’il y a
beaucoup de rappeurs à Blanc-Mesnil qui veulent rapper, mais qui ne
savent pas rapper.” (Souligné par nous)
L’appartenance territoriale et l’expression par le Rap- des enjeux existentiels chez les jeunes habitants d’une
banlieue française 299
mesure où elle introduit du recul et une expression médiatisée. Néanmoins,
l’impossibilité de symbolisation pourrait conduire à un passage à l’acte violent du
sujet contre lui-même ou contre l’autre (Barus-Michel, 2004). Cette hypothèse
initiale s’inscrit selon nous dans la suite de recherches qui ont mis en lumière la
“positivation” ou la “pacification” opérées à travers l’expression par le hip-hop,
hypothèse qui prend ancrage par ailleurs dans l’histoire du mouvement hip-hop,
au Bronx dans les années 1970, et dans la figure d’Afrika Bambaataa, qui a
rassemblé les jeunes pour transformer l’affiliation aux gangs en une expression
positive appuyée sur les cinq éléments de la culture hip-hop. S’appuyant sur
l’adage “Peace, Love, Unity and Having fun”, le hip-hop était un moyen d’apaiser
les conflits entre les gangs du Bronx en les transformant en expression artistique.
Dès lors, notre objectif était d’identifier comment ce mouvement culturel urbain
avait influencé les jeunes des banlieues françaises et brésiliennes et comment il
pouvait faire l’objet d’une appropriation dans d’autres localités pour assurer
l’expression des conflits vécus par les jeunes. Cette hypothèse de recherche
initiale se situait ainsi à l’opposé du discours médiatique qui présente le rap
comme une expression qui inciterait à la violence des jeunes des quartiers.
L’expression par le rap ne neutralise pas la violence, et ce n’est pas sa fonction
car le rap se présente comme un moyen de l’exprimer autrement. Néanmoins,
notre rencontre avec les jeunes rappeurs au Blanc-Mesnil nous a conduit à
problématiser davantage cette hypothèse initiale. Si les jeunes rappeurs brésiliens
et français sont unanimes à récuser cette image de violence assimilée au rap, qui,
dans leur expérience, se présente comme un espace de créativité et de partage,
nous avons été amenés à déconstruire cet idéal de pacification, pour essayer
d’accompagner les jeunes au plus près de cette frontière fragile inscrite entre leur
expression par les paroles de rap et les bagarres entre les cités.
Nous avons rapidement constaté les réticences des associations locales du
Blanc-Mesnil qui s’occupent de la jeunesse à proposer des scènes de rap lors des
fêtes de quartier. De façon quasiment systématique, les scènes de rap étaient
suivies de scènes de bagarres. En juin 2008, lors du Festival Transit, une scène de
L’appartenance territoriale et l’expression par le Rap- des enjeux existentiels chez les jeunes habitants d’une
banlieue française 301
Les bagarres participent à la scène de rap. Il s’agit d’une performance
collective, dont le but est d’assurer le prestige du plus fort et l’honneur du quartier.
En l’absence d’autres signes de citoyenneté, les rivalités entre les cités permettent
aux jeunes d’accéder à une identité générée par un événement ancré dans leur
appartenance territoriale. Le corps est investi comme moyen d’accéder au pouvoir
et de se faire remarquer dans le groupe, le rap étant lui-même instrumentalisé
pour donner force et vitalité à ces combats, à travers les paroles qui mettent en
avant la force du quartier d’appartenance du rappeur.
Lors de la réalisation de l’atelier, dont le titre “Unité sur Blanc-Mesnil”
explicite clairement les intentions de D&T, Combustible, jeune rappeur de 15 ans a
chanté :
“Bienvenue dans ma ville Blanc Blanc Blanc Blanc-Mesnil
C’est cruel, la vingtième c’est ma ruelle
Ma ville, je la présente
En même temps je me présente
En chantant, enchanté
Vois le quartier Tilleuls, les 4 tours
Viens, viens faire un tour ici
C’est toujours la même histoire
Où le Nord remporte la victoire.”
L’appartenance territoriale et l’expression par le Rap- des enjeux existentiels chez les jeunes habitants d’une
banlieue française 303
eux, ils ne sont pas violents. Mais Combustible me dit également qu’il utilise le rap
pour provoquer son rival, ce qui va déclencher une bagarre. L’analyse de cet
extrait montre que je suis malhabile dans la conduite de l’entretien, l’extériorité de
mon regard sur la banlieue et ce qu’on nomme “violence” est évidente, je suis
encore trop éloignée du vécu des jeunes pour pouvoir saisir les enjeux
symboliques des bagarres entre les cités. Le lien qui assure le passage du rap aux
bagarres et vice versa m’échappe, ce qui m’empêche de suivre le jeune dans ce
qu’il me dit.
Nisu et Combustible montrent que la bagarre et le rap ont ici la même
fonction: désigner celui qui est le plus fort, le plus téméraire. Si nous pensons la
performance du rappeur comme une expression de l’ethos guerrier, nous pouvons
appeler “scène” le moment d’une présentation de rap ou le moment d’une
bagarre. La scène étant le lieu où le jeune fait preuve de sa force et de sa virilité,
où sera jouée l’existence sociale du sujet. Il fallait ainsi sortir de la réflexion qui
oppose acte versus parole, bagarre versus rap pour comprendre comment les
jeunes peuvent exprimer la violence de leurs conditions d’existence qui se reflète
dans les comportements, les actes et les paroles.
Le rap se situe à un premier niveau de symbolisation de ce qui traverse la vie
des jeunes. Ils peuvent socialiser leur vécu par le biais d’un rap, qui s’affirme
comme un passeur entre ce que le jeune ressent et l’autre, collectivisant par le
biais de cette expression leurs sentiments et leur vécu. Le rap se présente à ce
niveau comme une enveloppe groupale, contenant de l’expression de la vie chez
ces jeunes. Il crée un univers de partage à l’intérieur duquel les jeunes peuvent
échanger à propos de leurs expériences dans la banlieue. Il est un objet de
médiation qui met en mots, créant un espace d’éloignement avec l’action qui a la
prévalence dans l’ethos guerrier. Ici, la force du rap se trouve dans sa fonction
symbolique qui peut s’affirmer comme une place tierce. Le rap n’est pas
l’expression d’un acte banal, il est un acte de création qui introduit le partage
d’une mise en scène des atouts du corps qui chante. Performance et pouvoir
peuvent ainsi être vécus par les rappeurs comme un acte créateur et l’expérience
Cassin (2010) évoque dans son article la différence faite par Lacan entre le
passage à l’acte et l’acting out: si le premier est “défini comme une rupture de la
trame symbolique”, le dernier “est adressé à l’Autre du symbolique”. Le passage à
l’acte introduit une séparation radicale avec l’Autre, le socle du lien social. Il crée
un avant et un après et provoque une mutation subjective et un bouleversement
social. Le passage à l’acte se produit du fait de la rencontre de l’“embarras” du
sujet, lequel ne sait plus que faire de lui-même, au sommet de la difficulté et de
l’“émotion” qui renvoie au mouvement qui se corrompt, au catastrophique.
L’acting out serait occasionné par la jonction de l’“empêchement”, qui est de
l’ordre du narcissisme du sujet attaché à sa propre image et de l’“émoi”, qui,
différent de l’émotion, renvoie à la perte du mouvement, du pouvoir et de la force
du sujet. Selon l’auteur,
Le terme d’acting out est une référence au théâtre, c’est un “en scène!”
que l’on dit aux acteurs pour les inviter à jouer. L’acting out a volontiers
l’allure d’un scénario. Le sujet joue son rôle sur la scène symbolique.
C’est une monstration qui reste voilée pour le sujet. Il la joue pour l’Autre
qui le regarde. Il la joue parce qu’il ne peut pas la dire. Il ne peut pas la
dire comme il le faudrait parce qu’il en est empêché. (…) L’acting out est
une monstration par le sujet de ce qu’il est empêché de dire. L’émoi
signe l’impotence. (Cassin, 2010, pp.167–168)
L’appartenance territoriale et l’expression par le Rap- des enjeux existentiels chez les jeunes habitants d’une
banlieue française 305
avec l’autre par le biais du jeu, pour lui transmettre un message par le biais de la
mise en scène. Ce qui se passe sur la scène symbolique a un sens parce qu’il y a
l’autre qui regarde et parce qu’il y a un message qui lui est adressé et qui doit être
compris. Le lien social se renforce dans et par la mise en scène.
La trame symbolique dans laquelle se déroulent les bagarres au Blanc-Mesnil
est mise en évidence par les éléments qui composent le scénario: les frontières
invisibles entre les territoires, le corps investi comme capital symbolique et la
présence de l’autre, rival ou soutien, qui participe à la performance comme acteur
ou spectateur. Tout cela entre dans la construction du sens pour celui qui
s’engage dans une scène. Les bagarres seraient, en tant qu’acting out, une quête
de symbolisation du jeune qui se construit. Il n’est pas capable de dire, mais il est
en “voie de”, il joue dans une scène qu’il adresse à l’autre. Ces analyses nous
permettent de distinguer les bagarres entre les cités du passage à l’acte violent
qui a “une connotation juridique et une tonalité délinquante” (Cassin, 2010). Dans
ce cas, il y a une séparation avec l’Autre et le lien social ne tient plus.
Ces performances collectives impliquent une prise de risque et une
exposition au danger, ce qui fait qu’elles peuvent avoir des issues tragiques. En
juin 2009, un jeune est décédé lors d’une bagarre après la Fête des Associations
au Blanc-Mesnil. La scène de rap a été proscrite de la programmation de la
journée, les organisateurs craignant qu’elle ne provoque un “échauffement” de
l’ambiance, car la rencontre entre les jeunes peut toujours générer un climat
d’affrontement.
Cette fois-ci, la dispute opposait la Cité des Tilleuls et la Cité du 212. Réunis
à l’occasion de la journée festive, les jeunes étaient nombreux. Après la fête, les
jeunes des Tilleuls sont venus dans le 212, scénario qui, comme nous l’avons
évoqué, pose une invitation au combat. Parmi ces jeunes, plusieurs ont suivi le
groupe, dans la foulée de l’agitation de la journée, pas forcément décidés à
s’engager dans un corps à corps avec l’autre, mais plutôt pour être “spectateurs”
de la scène. Medhi faisait partie de ces jeunes: les habitants du Blanc-Mesnil
étaient tous d’accord pour dire que le jeune ne se mêlait jamais aux disputes entre
L’appartenance territoriale et l’expression par le Rap- des enjeux existentiels chez les jeunes habitants d’une
banlieue française 307
“J’ vis à Blanc-Mesnil, tu connais l’nom d’ma ville
J’dis pas qu’elle est magnifique, mais tous nos flows14 sont magiques
Depuis tout petit elle me voit grandir
D&T c’est le son sans violence
Tu connais mon apparence, mon pays c’est la France
Ma ville c’est Blanc-Mesnil, Paul Cézanne15 où je vis,
Tu sais que PHL16 c’est là où je traîne…
Pour D&T, j’ viens rapper sans haine”
Même si l’association n’a jamais affiché l’objectif d’intervenir pour pacifier les
cités rivales, le souhait de dépassement des conflits entre les cités du Blanc-
Mesnil était rendu explicite par le titre de l’atelier. Le but avancé par l’association
était de proposer un espace où les jeunes pourraient développer leurs projets
artistiques, seraient soutenus dans leurs démarches, pourraient créer un réseau,
en résumé, un lieu de rencontre. Mais certaines paroles de rap font néanmoins
apparaître que les jeunes saisissaient ce qui, à l’atelier, était contenu entre les
lignes.
L’encadrement des activités de D&T devait ainsi éviter les dérapages des
bagarres qui s’associent à la scène de rap. Dans ces enjeux, Ali joue un rôle
central: grand frère de la cité, auparavant professeur de judo dans le quartier, il
connaît plusieurs jeunes qui fréquentent l’association depuis qu’ils sont petits. En
tant que coordinateur des activités de l’association, il se porte garant de son
existence et du bon déroulement des ateliers. Il incarne ainsi une fonction
symbolique, habitée par la stature imposante d’un corps grand, fort, musclé. Les
_______________
(14) Le flow caractérise de mode de rapper du rappeur, sa diction, son rythme, le timbre de sa voix
et l’association réalisée entre les sonorités des mots.
(15) Paul Cézanne: Nom d’une rue au Blanc-Mesnil.
(16) Place Hassan Larrage: Nom d’une place au Blanc-Mesnil.
Les paroles du jeune rappeur nous laissent penser que D&T aurait à travers
les ateliers de rap le potentiel d’introduire un déplacement des bagarres et d’en
faire la voie privilégiée pour que les jeunes puissent conquérir leur existence
sociale sur la scène locale. Dans le premier vers du morceau, Moussa annonce
une ouverture par le biais de son rap pour ensuite inviter ses auditeurs à se calmer
avant de prendre la parole. Il précise que sa colère se dirige contre l’État (nous
L’appartenance territoriale et l’expression par le Rap- des enjeux existentiels chez les jeunes habitants d’une
banlieue française 309
pouvons entendre: pas contre les autres jeunes du quartier, les protagonistes des
bagarres), pour enfin poser une injonction aux autres jeunes de la cité: arrêter les
conduites déviantes, sous peine de recevoir des claques. Le geste de “mettre des
que-cla” se situe sur une frontière: si l’acte exige un contact entre les corps, le mal
physique qu’il peut produire est relatif, sa portée est symbolique, il est destiné à
toucher le moral. Le rap de Moussa se donne ainsi comme l’expression de la rage
médiatisée par la parole et par la musique, en phase avec les attentes de
pacification dans les cités. Mais le rap doit-il pour autant être conçu comme un
“agent pacificateur”?
La réponse ne peut pas se réduire à une simple affirmation ou négation,
exigeant une pluri-dimensionnalité qui dépasse des répartitions binaires. Si la
médiation de l’expression du conflit est une potentialité du rap, le rap ne peut pas
être voué à combler la manifestation de tous les conflits que vivent les jeunes
dans les cités. Tout d’abord, parce qu’il demeure associé aux codes
d’appartenance de la cité et à l’expression de l’ethos guerrier. Mais ensuite, et
dans une perspective plus large, en tant que médiateur artistique, il n’a pas pour
fonction d’apaiser les jeunes qui manifestent leur révolte, mais de les soutenir
dans une expression capable de donner un élan à leur écoute. La difficulté à faire
tenir la tension qui est au cœur du rap et qui produit le basculement de
l’expression par l’action et par la musique que nous observons chez les jeunes
rappeurs blanc-mesnilois donne lieu à des analyses qui produisent un clivage au
niveau de la pratique liée à cette expression artistique qualifiée de “positive” ou de
“négative” en fonction de sa capacité de contenant et du type de message
transmis. L’aspect “positif” permet de protéger le rapport idyllique avec le rap,
dépositaire de l’espoir d’un meilleur avenir pour les jeunes des banlieues et le
versant “négatif” veut exclure de l’univers du rap, ce qui par ailleurs explicite les
difficultés qui traversent l’existence des rappeurs. Le clivage des analyses autour
du rap marque largement les formulations avancées par certains auteurs. Selon
Dayrell (2005, p. 73), “le rap peut signifier un repère de valeurs et comportements
positifs, au point de les éloigner du monde du crime et de la mort précoce”,
L’appartenance territoriale et l’expression par le Rap- des enjeux existentiels chez les jeunes habitants d’une
banlieue française 311
concevoir les ambivalences dans l’univers du rap, c’est par ailleurs reconnaître
que cette expression artistique ne peut pas être la seule solution à apporter à
l’ampleur des problèmes que les jeunes affrontent et qu’ils dénoncent par ce biais.
Ainsi, accompagner les jeunes à travers le rap, signifie accepter de se heurter à un
objet complexe qui concentre l’expression des espoirs, les projets, les rêves mais
qui aussi donne à voir les arêtes vives de la dureté d’une réalité sociale. Il faut
ainsi pouvoir les suivre sur un terrain glissant, dérapant, fait de réussites mais
aussi de fatalités.
Les ambivalences qui traversent cette expression artistique interpellent
également les institutions qui soutiennent les pratiques liées au rap, et exigent un
positionnement sans équivoque de leur part. Cette exigence est devenue explicite
après le décès de Medhi, suite à une bagarre entre le 212 et la Cités des Tilleuls
en juin 2009, lequel a mis à jour la crise qui traverse ces institutions destinées à
accompagner les jeunes dans les banlieues. Medhi est mort le jour de la Fête des
Associations, où D&T a tenu un stand pour ses présenter ses activités artistiques.
Encore que les jeunes blanc-mesnilois ne confondent pas le Centre social des
Tilleuls avec D&T, la dépendance de la dernière association vis-à-vis de la
première est sue et reconnue, du fait que le déroulement de ses activités dépend
de la salle prêtée par le centre social. En effet, D&T est à la fois dépendante et
concurrente du CST dans la mesure où ses activités pointaient du doigt ce que le
CST n’arrivait pas à réaliser: des activités pour la jeunesse. Suite au décès de
Medhi, la tension entre les deux cités a augmenté et le climat dans les Tilleuls est
imprégné d’un esprit vengeance. Le directeur du CST reçoit des menaces
anonymes par téléphone, disant que si la salle de D&T reprenait ses activités, elle
brûlerait. Même si la salle est également fréquentée par les jeunes des Tilleuls, elle
symbolise la présence du 212 dans leur quartier, ainsi que la possibilité de réaliser
des projets ensemble, à un moment où les jeunes veulent déclarer la guerre. Ali
devient également une cible des deux cités, il est le représentant de D&T. Il se fait
discret. Le jeune homme qui a toujours une présence imposante est fragilisé. La
suite des activités de D&T dépendent du soutien des institutions du Blanc-Mesnil.
L’appartenance territoriale et l’expression par le Rap- des enjeux existentiels chez les jeunes habitants d’une
banlieue française 313
l’impossibilité de l’expression et de l’écoute. Mais en même temps, la situation
révélait que la médiation ne peut opérer en l’absence de construction d’un cadre
exigeant la présence des fonctions symboliques, qui, dans ce cas, aurait du être
assurés par les instances politiques locales.
Le conflit entre le CST et D&T se présente comme un analyseur de l’ensemble
des contradictions des institutions. Créées pour soutenir les échanges entre les
acteurs sociaux en favorisant la médiation à travers la circulation de la parole et le
respect de l’écoute, elles se retrouvent elles-mêmes en défaillance vis-à-vis de ce
qu’elles devraient promouvoir. La mort du jeune est saisie non seulement comme
le symbole de la rupture entre les jeunes des deux cités, mais aussi de la rupture
entre les institutions qui devaient oeuvrer pour la médiation du conflit entre les
cités. Censées mettre les conflits en mots, les institutions se taisent et se
déclarent la guerre entre elles. Nous assistons à une exacerbation de la violence
sociale, de la crise des institutions et de la défaillance de la médiation symbolique
dans la société, “les institutions n’aiment pas les conflits” (Gaulejac & Leonetti,
1994, p. 15) surtout quand ils mettent en cause leur mode de fonctionnement et
pointent leur fragilité. Elles mettent ainsi en place un “système défensif” pour se
protéger et se mettre à distance. La mort de Medhi redonne du sens à l’existence
du CST, mais l’institution est trop affaiblie pour pouvoir tenir son rôle qui consiste
à travailler à partir du conflit et sur lui, si bien qu’elle se limite à le gérer.
Ali et les autres membres de l’association décident de rompre le partenariat
avec le CST et de quitter ses locaux en juin 2009. Le départ est difficile, aucun
accord n’est trouvé sur les investissements qui ont été réalisés dans la salle. Pour
les membres, le départ du CST ne signifiait pas la fin de l’association, même si,
dans l’immédiat, les activités ont été arrêtées, dans l’attente d’autres locaux.
Avant d’obtenir la salle au CST, ils avaient attendu trois ans.
Le 10 février 2011 une nouvelle salle de D&T a été inaugurée au Château
d’eau, à côté de la Médiathèque du Blanc-Mesnil, dans le centre ville. La salle est
beaucoup plus grande et elle a été aménagée spécialement pour les activités de
l’association. Elle a été obtenue avec le soutien de l’adjointe au maire,
Conclusion
Le rap se présente à la fois comme un analyseur de la vie des jeunes
rappeurs, et comme un support les soutenant dans leur existence sociale. Les
analyses réalisées à partir de notre expérience au terrain montrent que les
pratiques autour du rap prennent leurs sens au sein du groupe de pairs, en tant
que manifestation collective. Si le groupe se présente comme un espace propice à
la construction de soi à l’intérieur de son enveloppe, il fonctionne également
comme une protection vis-à-vis de l’extérieur menaçant, soutenant le jeune dans
son héritage social. Le groupe de pairs introduit de nouveaux modes de
socialisation traduits en pratiques groupales qui, dans leurs dimensions
imaginaires, symboliques et culturelles se présentent comme une quête
d’appartenance et de construction de soi. Le rap ainsi que le territoire serviront de
trames symboliques, d’enveloppes contenantes au sein desquelles le groupe de
jeunes pourra faire de expériences face à l’altérité.
Ainsi, le rap, en tant qu’activité artistique et médiation symbolique, devient de
plus en plus investi par les pouvoirs publics et par le milieu associatif comme un
mode d’intervention sociale ciblant la jeunesse défavorisée. L’expression artistique
étant fréquemment présentée comme un mode d’occupation, de façon à
combattre l’oisiveté produite par le chômage et la déscolarisation qui touche cette
jeunesse, mais aussi comme un mode de pacification, un moyen de contenir le
“potentiel violent” associé ces jeunes. Ces objectifs empêchent de suivre les
jeunes dans les ambivalences et les contradictions qui traversent leur quête
L’appartenance territoriale et l’expression par le Rap- des enjeux existentiels chez les jeunes habitants d’une
banlieue française 315
d’existence sociale.
Du côté français, l’arrêt des activités de D&T au CST n’a pas entraîné la
disparition de l’association. La mort de Medhi a remis de la violence là où nous
avions pensé que le rap pourrait l’arrêter, mais si la violence existe toujours, et si
sa fin demeure un combat, le rap prouve aussi qu’elle ne le fera pas disparaître.
L’ouverture de la nouvelle salle de D&T au centre-ville du Blanc-Mesnil fait
apparaître que l’expression artistique peut remettre de la vie, de l’activité, de la
création à travers la constitution d’un nouveau lieu d’échange, mais également à
travers l’arrivé de Pac, jeune rappeur de 18 ans, qui a pris la responsabilité des
activités de l’association après l’éloignement d’Ali. Le fait que le “flambeau” soit
repris par un jeune, et que l’association trouve le soutien des pouvoirs locaux
nécessaires pour continuer ses activités révèle la vivacité de ce projet qui s’est
montré capable d’inciter à l’engagement de nouveaux jeunes, de nouveaux
partenaires. La suite des activités après la fin de notre recherche montre que
malgré les achoppements qui peuvent le traverser, le rap renaît à chaque fois,
sous d’autres formes, et que le travail effectué ne sera jamais perdu.
L’appartenance territoriale et l’expression par le Rap- des enjeux existentiels chez les jeunes habitants d’une
banlieue française 317
Mauger, G. (2009). La sociologie de la délinquance juvénile. Paris: La Découverte.
Sauvadet, T. (2006). Le capital guerrier. Concurrence et solidarité entre les jeunes
de cités. Paris: Armand Colin.
Shusterman, R. (2003). Pragmatisme, art et violence: le cas du rap. Mouvements,
5(26), 116-122.
319
sões técnicas (como a abrangência do cuidado, abarcando as diversas demandas
de saúde), interpessoais (como as habilidades de comunicação dos profissionais),
éticas (como cuidados com confidencialidade, privacidade e não discriminação) e
culturais (como a sensibilidade à cultura adolescente). Adicionalmente, para se tor-
narem acessíveis, tais serviços de saúde devem ser implementados em diferentes
espaços, como em meio urbano e rural, em centros de saúde, centros comunitários,
escolas, universidades e locais de trabalho. Devem também selecionar diferentes
canais que sejam apropriados para comunicação em saúde com o adolescente,
para além da comunicação face-a-face, como a mídia interativa (ex.: jogos e CD
ROMs) e a internet (World Health Organization, 2004).
De fato, devido ao crescente convívio do adolescente com as tecnologias
computadorizadas, seu uso como canal para comunicação em saúde é altamente
pertinente para este público. Em vista disso, diversos pesquisadores em saúde
têm se ocupado, nos últimos anos, com o desenvolvimento de programas compu-
tadorizados, inovadores e específicos para educação em saúde para adolescen-
tes (Ezendam, Brug & Oenema, 2011; Goold et al., 2006; Prins, Empelen, Bee-
nackers, Brug & Oenema, 2010; Rushing & Stephens, 2011; Schwinn, Schinke &
Di Noia, 2010) e adultos, notadamente em centros de pesquisa europeus. Em con-
traste, no Brasil, pesquisas acerca desta modalidade de intervenção ainda são ra-
ras (Gomide, Martins & Ronzani, 2013).
Algumas intervenções via computador foram desenvolvidas no Brasil muito
recentemente e concentram-se na redução de tabagismo entre adultos (Gomide,
2014). Em uma revisão narrativa acerca de intervenções comportamentais compu-
tadorizadas, Gomide et al. (2013) encontraram em estudos internacionais evidên-
cias de eficácia destas intervenções para outras condições além de problemas re-
lacionados ao consumo de álcool e tabagismo, como no tratamento à depressão,
ansiedade, transtornos alimentares e dor. A ampliação do acesso à internet e aos
serviços de telefonia celular, como argumentam estes autores, constituem condi-
ções encorajadoras para o desenvolvimento de intervenções para educação em
saúde oferecidas via internet para a população brasileira. Estas intervenções, se
Sheila Giardini Murta, Karinne Leissa Torres Bezerra e Cristineide Leandro-França 320
encontradas evidências de efetividade para o contexto nacional, podem ser ferra-
mentas complementares nos serviços de saúde, sobretudo os de caráter educati-
vo e preventivo para adolescentes, que podem buscar e receber orientações por
meio de uma estratégia adequada à cultura juvenil e com potencial de alcance de
grandes segmentos populacionais, a um custo relativamente reduzido.
O presente capítulo tem por objetivo discutir, a partir da literatura especializa-
da, o uso do computador como ferramenta para educação em saúde, com ênfase
na adolescência. Serão abordados os tipos de intervenções computadorizadas
para este fim, os modelos teóricos de suporte, o processo de desenvolvimento e
a efetividade destes programas.
Sheila Giardini Murta, Karinne Leissa Torres Bezerra e Cristineide Leandro-França 322
Caracterização de intervenções computadorizadas personalizadas
A personalização, termo chave na caracterização das CTIs, significa criar
uma comunicação em que as informações do próprio indivíduo são utilizadas para
determinar que orientação este irá receber, os contextos e formatos usados para
apresentar tal conteúdo, por quem ele será apresentado e por meio de quais ca-
nais será oferecido. Para se personalizar a comunicação ao indivíduo, torná-la rele-
vante e atrativa, diferentes estratégias são usadas: a personalização, o feedback e
o ajuste do conteúdo (Hawkins et al., 2008). A personalização inclui procedimen-
tos como identificar o destinatário pelo próprio nome, fazer uso de informações
pessoais (como data de nascimento), explicitar que a orientação dada foi planeja-
da especificamente para o destinatário e explorar elementos do seu contexto
(como papéis familiares, aspectos culturais, étnicos ou geracionais). Podem ado-
tar várias formas: descritiva, comparativa e avaliativa. Feedbacks descritivos reafir-
mam informações já dadas pelo usuário sem qualquer inferência (e.g., “você disse
que fuma uma cartela de cigarro por dia”). Feedbacks comparativos oferecem con-
trastes entre a situação do usuário e a da população geral (e.g., “comparando-se
sua situação à de pessoas de sua idade, você fuma mais do que a maioria dos
adolescentes de sua idade”). Feedbacks avaliativos são os que fazem julgamentos
e interpretações com base no que já se sabe acerca do usuário e podem conter
inferências (e.g., “a quantidade de cigarros que você fuma por dia, se continuada
ao longo dos anos, pode dificultar sua respiração e o colocar em risco de graves
problemas pulmonares”). Por fim, o ajuste do conteúdo se dá na construção de
orientações que considerem o conhecimento, as expectativas de resultados, as
crenças, a autoeficácia, o estágio de mudança, os recursos e habilidades demons-
tradas pelo indivíduo em sua avaliação prévia (Hawkins et al., 2008). Por proverem
feedbacks e orientações individualizadas, as comunicações personalizadas con-
têm menos informação desnecessária, são processadas com maior atenção e per-
cebidas como mais relevantes e mais atrativas por quem as recebe (Lustria et al.,
2009).
Sheila Giardini Murta, Karinne Leissa Torres Bezerra e Cristineide Leandro-França 324
de risco ou a múltiplos fatores de risco. Neste último caso, são substancialmente
mais complexas. Quanto ao canal, há uma variedade expressiva neste quesito,
desde o uso de cartas enviadas via correio tradicional até mensagens via email.
Neville et al. (2009) sumarizam a evolução das CTI em três gerações, de acordo
com o canal usado para oferta de feedbacks e orientações. A primeira geração in-
clui intervenções oferecidas por meio de material escrito, como cartas, folders e
panfletos. A segunda geração inclui intervenções oferecidas através de tecnolo-
gias interativas, como websites, email e CD-ROM. A terceira geração inclui o uso
de telefone celular e computadores de mão que aumentam a chance de
feedbacks com agilidade. Para oferta dos feedbacks e orientações, a mediação de
um profissional (como professores em escolas para adolescentes ou profissionais
de saúde em hospitais), com interações face a face, pode ocorrer ou não.
A população-alvo das intervenções computadorizadas personalizadas, em
sua maioria, inclui usuários de serviços de saúde, localizados em instituições
onde recebem tratamento, e trabalhadores, recrutados em programas de promo-
ção de saúde no ambiente de trabalho. CTIs para adolescentes são, comparativa-
mente, menos frequentes (Lustria et al., 2009). Neste caso, a escola é usualmente
o contexto escolhido para se acessar o adolescente (Ezendam et al., 2011). É fato
que as CTIs têm sido utilizadas com populações instruídas e com fácil acesso ao
computador. Características raciais e de gênero também chamam a atenção. Em
CTIs para promoção de hábitos alimentares saudáveis, mulheres brancas e bem
instruídas têm sido o público usual (Neville et al., 2009).
Em se tratando do cenário nacional, a viabilidade de se conduzir CTIs precisa
ser vista com cuidado, uma vez que variáveis socioeconômicas são determinan-
tes. Enquanto em alguns contextos esta modalidade de intervenção poderia ser
bem aceita e viável, como em escolas, universidades e órgãos públicos, em ou-
tros seria impraticável, como em comunidades e famílias ainda sem acesso a es-
tas tecnologias, ou junto a indivíduos analfabetos ou com pouco contato com a es-
crita e leitura. Portanto, a inclusão digital e a educação formal são pré-requisitos
para o amplo uso de CTIs no país (Gomide et al., 2013). No caso específico de
Sheila Giardini Murta, Karinne Leissa Torres Bezerra e Cristineide Leandro-França 326
Tabela 1
Modelos teóricos e construtos de interesse na pesquisa em CTIs
Modelos Teóricos Principais construtos de interesse
Sheila Giardini Murta, Karinne Leissa Torres Bezerra e Cristineide Leandro-França 328
meta promover os seguintes comportamentos de saúde: cessação ou prevenção
ao tabagismo, vacinação contra gripe, alimentação saudável, atividade física, exa-
mes para detecção precoce de câncer, uso de cinto de segurança no trânsito, pre-
venção a acidentes com crianças, prevenção à exposição indevida ao sol e uso
de camisinha. Os resultados foram favoráveis à eficácia das CTIs, sobretudo as
que (a) focavam em práticas preventivas, (b) consideravam pelo menos quatro
construtos (derivados de embasamento teórico) na construção das mensagens
para orientação, (c) usavam teorias de apoio que exploravam construtos como ati-
tudes, autoeficácia, estágios de mudança, processos de mudança e influências so-
ciais, (d) adotavam múltiplos contatos para feedbacks e orientações e (e) tinham
períodos mais curtos entre a intervenção e o follow-up. Estes achados encon-
tram-se alinhados aos de Neville et al. (2009) ao apontarem o embasamento teóri-
co e os feedbacks múltiplos como favorecedores da eficácia nos resultados e a li-
mitação quanto aos efeitos de longo prazo.
Em outra revisão sistemática de literatura conduzida por Krebs et al. (2010),
foram encontrados 88 estudos, publicados entre 1988 e 2009, de avaliação de
efeitos de CTIs, focadas em quatro alvos: cessação de práticas de fumar, prática
de atividade física, práticas alimentares saudáveis e exame de mamografia. Todos
os estudos descreviam delineamentos com grupos de comparação com uso de
mensagens não personalizadas e não faziam uso de profissionais para mediação
face a face. A meta-análise revelou tamanhos de efeito estatisticamente significati-
vos em cada um dos quatro alvos (fumo, atividade física, alimentação e mamogra-
fia). Na mesma linha das revisões anteriores (Neville et al., 2009; Noar et al., 2007),
os efeitos mais expressivos foram observados a curto prazo e em intervenções
com feedbacks múltiplos. Não se identificou qualquer associação entre a eficácia
e o tipo de canal usado (se cartas, e-mail ou outro) e o número de comportamen-
tos-alvo (se apenas um ou múltiplos comportamentos). Assim, parece ser indife-
rente o tipo de canal usado e a complexidade da intervenção quanto aos seus fo-
cos.
Sheila Giardini Murta, Karinne Leissa Torres Bezerra e Cristineide Leandro-França 330
do o objetivo final da intervenção: aumentar em 10% o número de adolescentes
que atendem às diretrizes holandesas quanto à atividade física, por pelo menos
60 minutos ao dia, seis meses após a intervenção. A atividade física foi trabalhada
em termos de três subcomportamentos (locomoção ativa, atividade física associa-
da a lazer e prática de esportes), para os quais foram descritos objetivos específi-
cos de desempenho e identificados seus determinantes mais importantes e modifi-
cáveis (incluindo: conhecimento, autoconsciência, atitudes, autoeficácia e normas
subjetivas). Tais objetivos e determinantes foram integrados em matrizes que defi-
niram objetivos de mudança – aquilo que os participantes precisariam aprender
ou fazer para atingir os objetivos de desempenho. Para cada objetivo de mudan-
ça, foram selecionados métodos, procedentes da literatura, para modificar os de-
terminantes. Os métodos foram traduzidos em estratégias práticas para interven-
ção, personalizadas às necessidades dos adolescentes.
O programa pôde ser implementado no contexto escolar, consiste em três au-
las de 35 minutos, com tarefas a serem realizadas entre as aulas, e desenvolve-se
nas cinco fases da Teoria da Autorregulação. No monitoramento, feedback com-
portamental e normativo são utilizados para aumentar a consciência dos compor-
tamentos de atividade física e o adolescente escolhe um dos subcomportamentos
para aprimorar. Em seguida, são utilizadas estratégias interativas para trabalhar au-
toeficácia, atitudes e o ambiente percebido a fim de reforçar a motivação. Na fase
de estabelecimento de meta, os adolescentes são guiados para estabelecer uma
meta e desenvolver um plano para atingi-la, o que tentam realizar na fase de bus-
ca ativa da meta. Na avaliação, as conquistas são avaliadas e os adolescentes po-
dem revisar suas metas ou escolherem outro subcomportamento.
Concluindo que pouco se sabe sobre a eficácia das intervenções computado-
rizadas personalizadas entre adolescentes, os autores destacam a necessidade
de conduzir um estudo de avaliação. Como plano de avaliação propõem que se-
jam avaliados os resultados e os mediadores/moderadores cognitivos envolvidos,
com o uso de questionários preenchidos pelos adolescentes e medidas como o
índice de massa corporal e a circunferência da cintura, em três tempos: ao final da
Sheila Giardini Murta, Karinne Leissa Torres Bezerra e Cristineide Leandro-França 332
toimagem e autoeficácia). Completando as sessões de intervenção e os testes, as
participantes podiam ganhar brindes ou recompensas em dinheiro.
As medidas de follow-up mostraram que as meninas do grupo de intervenção
descreveram menos uso de substâncias, em efeitos considerados maiores que os
encontrados em estudos não interativos e baseados unicamente em conhecimen-
tos. As medidas de pós-teste, entretanto, não revelaram efeitos da intervenção. A
partir dessas evidências, os autores sugerem que há uma necessidade de tempo
e oportunidades da vida real para que os participantes apliquem as habilidades
aprendidas. Tal argumentação vai de encontro às intervenções que se utilizam de
tarefas de casa, como em Prins et al. (2010), e que podem estar representando
um avanço significativo na transferência das habilidades aprendidas para o dia-a-
dia dos participantes.
Noar et al. (2011) direcionaram seus esforços para o desenvolvimento de uma
CTI com informações sobre sexo seguro, motivados pelas limitações encontradas
nas intervenções em saúde e comportamento sexual (em especial a necessidade
da presença de um facilitador, que é dificultada pela restrição de recursos nas co-
munidades). Objetivou-se aumentar o uso consistente e correto de camisinha com
todos os parceiros sexuais da população-alvo: afro-americanos heterossexualmen-
te ativos, entre 18 e 29 anos. O modelo ASE (Attitude- Social Influence -Efficacy),
que embasou o desenvolvimento da intervenção, sugere que três fatores proxi-
mais – atitudes, influências sociais e autoeficácia – são determinantes críticos da
mudança de comportamentos de saúde, influenciando a progressão através dos
estágios do Modelo Transteórico de Mudança. Negociação para uso da camisinha
e tipo de parceiro sexual foram outros fatores considerados na intervenção, visto
que apontados pela literatura da área de sexo seguro.
Em estudo prévio, os autores encontraram relações significativas entre as variá-
veis do modelo ASE e os estágios de mudança, sustentando que a teoria provê
um sistema explicativo válido para o uso de camisinha pela população-alvo. Além
de testarem o modelo teórico, os autores utilizaram de grupos focais para emba-
sar e testar a intervenção desenvolvida. Exploraram tópicos em sexualidade, relacio-
Sheila Giardini Murta, Karinne Leissa Torres Bezerra e Cristineide Leandro-França 334
Noar et al. (2011) apontam para a enorme complexidade no processo de desen-
volvimento de intervenções computadorizadas personalizadas. A despeito disso,
Goold et al. (2005) destacam que uma vez que a intervenção baseada no computa-
dor é desenvolvida, seu custo de implementação é baixo, o que pode levar a uma
maior facilidade de disseminação.
Conclusão
É crescente o uso de intervenções computadorizadas, personalizadas ou
não, para educação em saúde. Trata-se de uma estratégia de intervenção com ba-
ses teóricas claras, procedimentos de intervenção bem estabelecidos para diver-
sos focos em saúde e evidências de efetividade, majoritariamente obtidas em estu-
dos conduzidos em países europeus. Sua aplicação para adolescentes tem sido
crescente, embora ainda predominem estudos dirigidos a adultos voltados para a
promoção de saúde física.
Percebe-se um potencial de aplicação desta tecnologia como ferramenta edu-
cativa e preventiva no âmbito da saúde do adolescente no Brasil, em particular na
saúde mental. Achados de uma revisão sistemática da literatura em programas
preventivos nacionais indicam que adolescentes constituem um dos principais al-
vos de programas de prevenção primária em saúde, embora em amostras peque-
nas, o que revela a necessidade de expansão de estratégias efetivas para alcance
de fatias maiores da população adolescente (Oliveira, 2012). Neste sentido, o uso
do computador como meio de disseminação de informações cientificamente em-
basadas e ajustadas para adolescentes pode vir a somar esforços aos já existen-
tes, e fortalecer a área de pesquisa em educação em saúde e prevenção primária
em saúde mental do adolescente entre nós.
Estudos interdisciplinares se fazem necessários para a construção de inter-
venções computadorizadas que sejam elaboradas, implementadas, avaliadas e
disseminadas entre adolescentes. Pesquisadores e profissionais das áreas de tec-
nologia da informação (Gomide et al., 2013), design (Noar et al., 2011), educação,
psicologia e saúde podem se revelar grandes parceiros na elaboração de interven-
ções oferecidas via computador, personalizadas ou não. Estudos futuros, devida-
mente embasados na regulamentação nacional (Gomide et al., 2013), devem se
ocupar do desenvolvimento de intervenções para focos diversos na saúde do ado-
Sheila Giardini Murta, Karinne Leissa Torres Bezerra e Cristineide Leandro-França 336
gismo mediada por internet (Dissertação de mestrado, não publicada). Universi-
dade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora.
Gomide, H. P., Martins, L. F. & Ronzani, T. M. (2013). É hora de investirmos em in-
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Introdução
Abordar o tema educação em saúde, seu desenvolvimento, concepções e
práticas no Brasil implica em contextualizar, refletir o tema como a articulação en-
tre os setores da saúde e da educação no campo sociohistórico, das políticas públi-
cas e entre as áreas do conhecimento científico da educação dos profissionais de
saúde.
Educação em saúde, conforme Costa e López (citado por Alves, 2005), se
constitui de um conjunto de saberes e práticas orientados para prevenção de doen-
ças e promoção da saúde, trata-se de um recurso por meio do qual o conhecimen-
to cientificamente produzido no campo da saúde, intermediado pelos seus pro-
fissionais, atinge a vida cotidiana das pessoas e oferece subsídios para adoção
de novos hábitos e condutas de saúde.
Diante da complexidade e amplitude do tema foi preciso fazer escolhas e um
recorte no vasto material. Potencializamos nosso tempo para discussão aprofun-
340
dando as questões que envolvem a formação dos profissionais do ensino superior
em saúde, sem deixar de reconhecer a importância, o acúmulo, as contribuições e
as especificidades da formação dos profissionais do nível médio (escolas técni-
cas). Para essa reflexão fizemos um recorte da dissertação de mestrado intitulada
“Formação e trabalho em saúde: os desafios na convergência entre o saber e o fa-
zer no processo de ensino-aprendizagem no SUS”, apresentada no programa da
pós-graduação em ensino na saúde, no Instituto de Psicologia da Universidade de
Brasília.
Anterior ao século XIX, a Medicina era uma prática fundamentada essencial-
mente na observação e na experiência, desprovida de fundamentos científicos. A
relação do médico com o enfermo era intensa e perpassava todo o processo de
diagnóstico e cura. Durante os séculos XIX e XX, o olhar do médico cientista deslo-
ca-se do cuidado do doente para a investigação da doença. Nesse sentido, a edu-
cação dos profissionais da saúde, de modo geral, privilegiou o paradigma biologicis-
ta que colocou os hospitais como lugar da doença, da cura, o mais adequado
para a formação em assistência à saúde. Buscava-se também, no século XX, unir
de maneira sistêmica modelo de educação superior e pesquisa experimental emer-
gente, razão médica e racionalidade científica moderna. Nesse período, os cursos
de formação em saúde se destacavam nos currículos, em regra, nas disciplinas
biológicas.
Muitos dos cursos de graduação na área da saúde passavam a maior parte
do tempo apregoando a partir de olhar fixo, focado num corpo inerte, sem história
e descontextualizado da vida daquele sujeito um dia dono do corpo. Os sentidos
e a subjetividade dos sintomas e sinas de adoecimento, nesse caso, eram deixa-
dos no segundo plano. O estudante observava, tocava, analisava os músculos,
dos nervos, das disposições orgânica e fisiológica, em detrimento das implica-
ções da história de vida e da subjetividade do sujeito. A doença, enquanto objeto
de estudo, define-se como um problema, devendo este ser fragmentado em tan-
tas partes quantas forem necessárias para permitir sua compreensão e resolução.
Maria Delzuita de Sá Leitão Fontoura Silva, Regina Lucia Sucupira Pedroza e Larissa Polejack 341
Esse caminho nos levou a diferentes e cada vez mais especializados projetos for-
mativos.
A Medicina moderna, ao substituir o ideal de cura pelo da reparação do mau
funcionamento de uma estrutura determinada, transforma os processos diagnósti-
cos.
Nessa direção o paradigma positivista estende a divisão das ciências naturais
à especialização médica. A formação médica e em todas as outras profissões de
saúde espelham esta realidade. Em certa medida este modelo contribuiu para me-
lhorar a saúde dos indivíduos com a descoberta de antibióticos, vacinas, o desen-
volvimento do conhecimento sobre a fisiopatologia, bem como os avanços tecno-
lógicos das ferramentas diagnósticas foram significativas no incremento da forma-
ção dos profissionais de saúde (Campos & Aguiar, 2002). O paradigma positivista
impregnou a escola médica e, dialeticamente, por ela é perpetuado, até o momen-
to.
Assim, a educação superior dos profissionais de saúde tem seu marco para-
digmático no primeiro esforço conceitual e prático a partir da concepção de ensi-
no resultante do Relatório Flexner, documento que continha diretriz para a forma-
ção de base biologicista, orientado pela especialização e pela pesquisa experi-
mental, centrado no modelo hospitalar. A partir de 1910 este relatório norteou o en-
sino médico nos Estados Unidos e ganhou hegemonia na profissionalização pelo
ensino universitário (Namen, Galan & Cabreira, 2007).
Campos, Aguiar e Belisário (2008) afirmam as conquistas resultantes da ado-
ção deste paradigma no que se refere em especial à mudança do panorama de
adoecimento e morte, fenômeno conhecido como transição epidemiológica, ao
mesmo tempo em que apontam problemas importantes decorrentes da manuten-
ção desse modelo. Alguns problemas seriam o aumento sem limites do consumo
(complexo industrial) e dos custos com a saúde, que ocorrem sem haver melhores
resultados, fortalecendo o modelo hospitalar e das especialidades, salientando a ne-
cessidade da adoção de um novo paradigma que abarque em grandes áreas estra-
Maria Delzuita de Sá Leitão Fontoura Silva, Regina Lucia Sucupira Pedroza e Larissa Polejack 343
tos teóricos, técnicos e operacionais relacionados à produção de bens e serviços,
quer esses processos sejam desenvolvidos nas escolas ou nas empresas.
A formação profissional designa processos históricos que dizem respeito à ca-
pacitação para e no trabalho, bem como a política de integração do trabalhador
nos projetos empresariais. Essa qualificação profissional pode ser entendida
como uma articulação entre os fatores que compõem a força de trabalho e utiliza-
das em atividades voltadas para valores de uso.
Entendendo a qualificação profissional como educação, como processo edu-
cativo que é parte da formação humana, não poderíamos nos furtar de sinalizar
que, como instrumento contra-hegemônico ao capitalismo, ela necessita ser vis-
lumbrada também na sua relação com a cultura.
No que tange à relação entre conhecimento, capitalismo e qualificação/forma-
ção dos trabalhadores, Savianni (2003) coloca de maneira didática que no mundo
regido sob o capital o conhecimento científico é incorporado ao trabalho produti-
vo, convertendo-se em potência material, ou seja, o conhecimento se transforma
em força produtiva e, portanto, em meio de produção.
No mundo regido pelo capital, a produção de bens, sua acumulação, a explo-
ração e a expropriação dos trabalhadores são características que dão sustenta-
ção à propriedade privada. Sua força provoca um movimento que determina o
aparecimento de diferentes classes sociais, uma subjugada à outra e em constan-
tes conflitos de interesses. O capital cria mecanismos através dos quais expropria
o conhecimento dos trabalhadores e os fazem operar de forma parcelada; o que
nos coloca desde já diante de uma importante fragmentação no campo do traba-
lho e do conhecimento. Nessa perspectiva apresenta distinções entre o trabalho
intelectual e manual, tornando-os excludentes.
O taylorismo, desenvolvido por Frederick Winslow Taylor, definiu a administra-
ção como um processo de planejar, organizar, dirigir e controlar os tempos e os
movimentos executados pelos trabalhadores da indústria automotiva, permitindo
a fixação dos tempos-padrão para a execução das tarefas (Silva, 2000). O tayloris-
Maria Delzuita de Sá Leitão Fontoura Silva, Regina Lucia Sucupira Pedroza e Larissa Polejack 345
acabada. Podemos observar que espaços de qualificação diferentes não podem
ser analisados da mesma forma. Logo esses espaços de qualificação profissional
devem ser pensados também nas suas singularidades.
Maria Delzuita de Sá Leitão Fontoura Silva, Regina Lucia Sucupira Pedroza e Larissa Polejack 347
de, a criação do Sistema Único de Saúde – regulamentado nos anos 1990– foi, do
ponto de vista da saúde, o grande momento de expressão da reforma sanitária.
Os avanços no campo da saúde se deram em tempos diferentes com relação
à educação; o amadurecimento do movimento de reformas do setor colocou a for-
mação como um grande fator crítico de sucesso para a implementação da mudan-
ça necessária e desejada. O setor da saúde, concretamente, não se ocupou de
pensar a educação dos profissionais em outra lógica que não fosse a vigente, e
apostando nas transformações no campo da gestão administrativa como indutor
de mudanças da formação, a partir de uma visão aplicada da educação, concei-
tuada como da ordem do treinamento (Ceccim, 2008).
A educação, pouco articulada com a saúde e a natureza das revindicações
da reforma sanitária, não atendeu às necessidades para a formação dos profissio-
nais a luz do novo paradigma. A necessidade do encontro da saúde com a educa-
ção foi premente, e nos últimos anos vêm se delineando movimentos/discussões
em torno da educação em ciências da saúde. Em 1988, a Constituição Federal
Brasileira determina no seu arcabouço que o setor da saúde seja ordenador da for-
mação de seus recursos humanos. Articulados o Conselho Nacional de Educação
e Conselho Nacional de Saúde (CNS), lançam a formulação de Diretrizes Curricula-
res Nacionais em substituição ao currículo mínimo.
A ideia corrente nesse período, que permanece até os dias de hoje, era a de
que ao Ministério da Educação cumpria somente o papel de normatizar currículos
mínimos profissionalizantes, nem sempre referenciados no processo de trabalho
em saúde. A criação de escolas de formação de trabalhadores de saúde nas insti-
tuições de saúde, associada à revisão dos currículos em coerência com o quadro
socioepidemiológico brasileiro, proposta pela 9ª Conferência Nacional de Saúde,
foi uma tentativa de enfrentar esses desafios.
As reformas nos projetos de graduação e pós até hoje ainda têm como diretri-
zes elementos internos às instituições de ensino, e pouco dialogam com a implica-
ção da formação nas transformações e especificidades do trabalho em saúde,
Maria Delzuita de Sá Leitão Fontoura Silva, Regina Lucia Sucupira Pedroza e Larissa Polejack 349
Então, educar para o trabalho em saúde deveria deixar de ser a transferência
de recursos cognitivos e tecnológicos aos profissionais para efetivar “a formação
de um quadro de intelectuais do setor da saúde na execução de um projeto de so-
ciedade e de um projeto tecnoassistencial correspondente a esse projeto de socie-
dade” (Ceccim, 2008, p. 21), profissionais, detentores de conhecimentos e habili-
dades, nas dimensões técnica, científica, pedagógica, ética, humanística e política
capazes de fazer acontecer o SUS.
As iniciativas como o aprenderSUS, Promed e Pró-saúde buscaram recorrer
ao aprendizado acumulado ao longo do caminho percorrido pelos profissionais de
saúde, gestores do sistema e usuários, identificando necessidade de instituir rela-
ções orgânicas entre as instituições de ensino, pesquisa, instâncias gestoras, ser-
viços de saúde e comunidade.
Sabemos que para ser um profissional de saúde é necessário e importante
ter conhecimento científico e tecnológico, mas também é preciso conhecimento
das dimensões da natureza humana e social, bem como o território em que vivem
os indivíduos e as coletividades. O acúmulo nesse campo também nos faz refletir
que o caráter das intervenções nesse processo converge e diverge ao longo da
história conforme os interesses políticos e ideológicos, que se apresentam na or-
dem social, haja vista os diferentes programas direcionados a saúde da mulher, da
saúde da criança, entre outros.
Apesar dessas evidências, as instituições de ensino continuam a realizar cur-
sos que oferecem procedimentos sofisticados, tecnologias e fármacos de ultima
geração, sem se ocupar do cotidiano dos serviços e da gestão, apartadas de qual-
quer escuta dos usuários ou do contato com a alteridade.
No campo do ensino na saúde, vários autores (Carvalho & Ceccim, 2008; Cec-
cim, 2008; Luz, 2010; Pinheiro, Ceccim & Mattos, 2006) apontam o modelo da saú-
de coletiva como estratégia potente para estabelecer cruzamentos com diferentes
áreas sociais, estruturar práticas interdisciplinares, fomentar políticas, técnicas, e
A prática docente
Maria Delzuita de Sá Leitão Fontoura Silva, Regina Lucia Sucupira Pedroza e Larissa Polejack 351
Somos ou nos tornamos docentes? O fato de termos uma profissão e titula-
ção pós-graduada nos habilita a exercer a docência? Será que por termos uma
formação docente ou por dispormos de teorias da educação ou do ensino-apren-
dizagem, isto nos torna um educador?
Para contribuir com essa reflexão é preciso recordar que uma das particulari-
dades do processo brasileiro de reformas na saúde é o seu encontro com os movi-
mentos populares. Nesse encontro, destacamos a educação popular que partici-
pou da redução da mortalidade infantil/materna, ajudou a reduzir custos com a as-
sistência e, ao mesmo tempo, promove condutas protetoras do adoecimento e
morte, contribuindo para a elevação da consciência social e sanitária da popula-
ção.
Essa educação em saúde alocou-se, designou-se e justificou-se na orienta-
ção a comunidades, não ao ensino dos profissionais em cursos em níveis da gra-
duação ou da pós, e nem ao debate da pedagogia universitária e da educação.
Esta modalidade caminhou à margem da academia, trazendo contribuições estru-
turantes para se pensar a formação para os trabalhadores (Brasil, 2007).
Nesse jogo de forças, emerge a proposta Educação Permanente em Saúde:
conceito âncora dos pressupostos e das diretrizes do Sistema Único de Saúde e
busca promover o encontro com a educação neste campo da saúde (educação
formal, educação em serviço, educação continuada), trabalho (gestão setorial, prá-
ticas profissionais, serviço) e cidadania (controle social, práticas participativas, al-
teridade com os movimentos populares, ligações com a sociedade civil).
As diretrizes da Educação Permanente em Saúde como política foram a da
articulação intersetorial e interinstitucional de base locorregional para o desenvolvi-
mento do trabalho e do ensino da saúde, de interação ensino-serviço, gestão-con-
trole social para a formulação, implementação e avaliação (Brasil, 2009).
A vivência da Educação Permanente nos coloca diante das contribuições do
processo formativo no campo da saúde: buscar a potência, levantar questões, in-
Considerações Finais
Maria Delzuita de Sá Leitão Fontoura Silva, Regina Lucia Sucupira Pedroza e Larissa Polejack 353
Os autores consultados neste trabalho expressam certo consenso em afirmar
que os importantes marcos para os avanços que podemos citar no campo do ensi-
no na saúde, foram: as Diretrizes Curriculares Nacionais, a postura pedagógica
que assume o conceito do estudante como sujeito de seu conhecimento, a proble-
matização como uma das estratégias privilegiadas, e a Educação Permanente
como caminho potente para apoiar e facilitar o desenvolvimento dos trabalhado-
res em diferentes contextos (Batista & Batista, 2008; Carvalho & Ceccim, 2008;
Ceccim, 2008).
O ensino na Saúde como campo é marcado por intensas transformações nas
dimensões político, econômico, cultural e social, exigindo um docente mais conec-
tado com sua prática didática e pedagógica, amparada por uma ideia de proces-
so.
Ressalte-se que o domínio teórico sobre um determinado tema não é mais
“suficiente” para o ensinar. É preciso estabelecer diálogos, interações e conside-
rar saberes prévios e acumulados para ampliar as possibilidades de construção
de conhecimento, a partir das diferentes vozes de alunos, professores, gestores e
usuários dos serviços.
Pode-se ainda afirmar que a educação dos trabalhadores na saúde é compos-
ta por projetos contraditórios, interessados, conflitantes e em luta por uma visão
de mundo. Apesar da hegemonia herdada de uma política de educação profissio-
nal que concebe a educação como forma de adaptação dos trabalhadores ao exis-
tente, às condições objetivas da produção e reprodução do próprio capitalismo,
também se formou um projeto contra-hegemônico de formação dos trabalhadores
da área da saúde em nosso país, cuja meta é entender as condições históricas
que produzem e reproduzem o próprio sistema capitalista periférico e dependen-
te, como é o caso do Brasil, assim como apontar para formas de luta e de supera-
ção dessa mesma sociedade brasileira injusta e desigual, no passado e no presen-
te.
Maria Delzuita de Sá Leitão Fontoura Silva, Regina Lucia Sucupira Pedroza e Larissa Polejack 355
gógico é para poder quebrar o que está dado, ampliar as noções de autonomia
do outro e constituir espaços criativos e sensíveis na produção de saúde e de su-
jeitos.
Maria Delzuita de Sá Leitão Fontoura Silva, Regina Lucia Sucupira Pedroza e Larissa Polejack 357
http://portal.saude.gov.br/portal/saude/profissional/visualizar_texto.cfm?idtxt=3
2571
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16 Tecnologias sociais em saúde:
contribuições para redução da
mortalidade materna e infantil em
Ceilândia - DF
Introdução
Este capítulo abordará, primordialmente, a aplicação de tecnologias sociais
na Educação em Saúde, dando ênfase ao campo da Saúde Materna e Infantil no
Brasil. De modo mais específico, focalizaremos possíveis contribuições dessa mo-
dalidade de intervenção educativa para prevenção de óbitos maternos e infantis.
Para tanto, primeiramente, traçaremos um panorama dessas tecnologias na área.
Em seguida, analisaremos a problemática da Mortalidade Materna e Infantil no
mundo e em nosso país, realçando a comunidade de Ceilândia, Distrito Federal.
Desenvolveremos, também, uma breve discussão sobre a relevância do tema nos
planos científico e profissional, no intuito de fundamentar o estudo conduzido no
Setor Habitacional Sol Nascente durante o curso de Doutorado da primeira auto-
ra, os quais se inscrevem em um conjunto de projetos de ensino, extensão e pes-
quisa realizados pela faculdade do Campus de Ceilândia da Universidade de Brasí-
lia (UnB).
360
Tecnologias sociais em saúde materna e infantil: relevância das intervenções
educativas para redução de mortes
Denominados “determinantes sociais em saúde”, diversos fatores – de ordem
social, econômica, cultural, étnica/racial, psicológica e comportamental – influen-
ciam a cadeia de eventos que levam à morte infantil e à morte materna (Buss &
Pellegrini Filho, 2007; Duchiade, 1989; Frias & Navarro, 2013; Jannotti, Silva & Pe-
rillo, 2013). Segundo Trevisan (2002), muitos dos desafios permanentes no atendi-
mento à população brasileira não decorrem somente da disponibilidade e do aces-
so aos serviços no âmbito do sistema de saúde. Na opinião desse autor, o alcan-
ce das metas previstas para o desenvolvimento social está intrinsecamente associa-
do à capacidade de autocuidado da população e, por conseguinte, de suas condi-
ções socioeducacionais. Particularmente, no que tange às mulheres grávidas, Tre-
visan (2002) alerta que subsiste uma falta de conscientização acerca da importân-
cia da adesão precoce e contínua ao acompanhamento pré-natal, alicerçado em
cuidados orientados ao longo das consultas. De acordo com o autor, de um lado
identificam-se barreiras de natureza educacional, as quais não foram superadas
pelas pacientes estudadas e por seus companheiros (por exemplo: baixa escolari-
dade); e, de outro, constatam-se barreiras assistenciais geradas pela carência de
atividades educativas oferecidas pelas equipes responsáveis pela atenção pré-na-
tal.
Nesse contexto, é interessante destacar que, desde o ano 2000, a Organiza-
ção Mundial em Saúde (OMS) difunde a campanha “Tornar a Gravidez mais Segu-
ra” com a finalidade de fortalecer o programa “Maternidade Segura”. Tal iniciativa
foi tomada tendo em vista que a oferta de serviços de saúde qualificados não pro-
duz os efeitos desejáveis, naquelas circunstâncias em que não há possibilidade
de uma pessoa ter opções saudáveis e ser capaz de decidir por ser/estar saudá-
vel. Diante disso, defendem-se ações – em nível individual, familiar e comunitário
–, que contribuam para a participação ativa e o empoderamento dos usuários de
saúde, em consonância com a linha da promoção da saúde, assim definida na
Carta de Otawa: processo de capacitação da comunidade para que atue em prol
Tecnologias sociais em saúde: contribuições para redução da mortalidade materna e infantil em Ceilândia - DF
362
ça, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição" (Emenda constitucional nº 64, de 4
de fevereiro de 2010). Portanto, considerando que toda mulher e criança têm direi-
to à segurança na gestação, no parto e ao nascimento, a morte materna ou fetal
evitável – mas que venha a ocorrer –, representa uma violação dos direitos huma-
nos e reprodutivos.
No Brasil, o Conselho Nacional de Saúde (1993) estabeleceu que Educação
em Saúde é uma estratégia imprescindível para a promoção da saúde, prevenção
das doenças e consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS). Na
concepção de Stotz (2004), educação popular em saúde é um campo de teoria e
prática – enraizado em diferentes matrizes (humanista cristã e socialista) e
ancorado no pensamento de Paulo Freire – que se contrapõe ao autoritarismo
vigente na cultura sanitária e ao modo tradicional de definir as intervenções,
técnica e politicamente. De fato, a educação popular em saúde deve se nortear
por modos alternativos e bastante diferenciados de lutar pela transformação das
relações de subordinação e de opressão, favorecendo a autonomia e a
participação dos usuários, bem como o intercâmbio de práticas e saberes
populares e especializados. Fundamentada nessa ótica, a atual Política Nacional
de Educação Popular em Saúde (PNEPS), apresentada na Portaria nº 2.761, de 19
de novembro de 2013, definiu alguns princípios básicos para elaboração de
programas (Ministério da Saúde, 2013a):
Diálogo é o encontro de conhecimentos construídos histórica e
culturalmente por sujeitos, ou seja, o encontro desses sujeitos na
intersubjetividade, que acontece quando cada um, de forma respeitosa,
coloca o que sabe à disposição para ampliar o conhecimento crítico de
ambos acerca da realidade, contribuindo com os processos de
transformação e de humanização.
Amorosidade é a ampliação do diálogo nas relações de cuidado e na
ação educativa pela incorporação das trocas emocionais e da
Tecnologias sociais em saúde: contribuições para redução da mortalidade materna e infantil em Ceilândia - DF
364
ções de acolhimento, vínculo, autonomização e gestão. As tecnologias leves-du-
ras correspondem aos saberes estruturados, tais como a Clínica, a Epidemiologia
e a Psiquiatria. As tecnologias duras englobam os equipamentos, as normas e as
estruturas organizacionais. Uma vez que o trabalho em saúde é fortemente influen-
ciado pelas relações entre sujeitos, o autor propõe que se tome como eixo analíti-
co dos modelos tecnoassistenciais as tecnologias leves e seu modo de articula-
ção com as demais.
Assim sendo, reafirma-se a centralidade das tecnologias sociais na área de
saúde, destacando-se as intervenções de caráter educativo e psicossocial, a
exemplo de oficinas em dinâmica de grupo, desenvolvidas há muitas décadas no
Brasil e em outros países. Amplamente difundidos, tais recursos têm sido confir-
mados quanto ao seu interesse para promover saúde e prevenir doenças (Afonso,
2010; Afonso et al., 2010; Anzieu & Martin, 1982; Gurung, 2010; Heller, Muston, Si-
dell & Lloyd, 2001; Spink, 2003; Straub, 2005). Recentemente instituída, a Rede
Cegonha almeja reduzir a mortalidade materna e infantil por meio de estratégias
de comunicação social e programas educativos relacionados à saúde sexual e à
saúde reprodutiva no período pré-natal, fixando-se quatro reuniões educativas por
gestante (Ministério da Saúde, 2011a, 2011b). Em convergência com esses esfor-
ços governamentais, também foi divulgado o manual técnico intitulado “Pré-Natal
e Puerpério: Atenção Qualificada e Humanizada”, com uma seção dedicada a
ações educativas no pré-natal, na qual são enfatizadas atividades grupais (Ministé-
rio da Saúde, 2006).
Tecnologias sociais em saúde: contribuições para redução da mortalidade materna e infantil em Ceilândia - DF
366
Quanto à taxa de mortalidade infantil mundial, verifica-se declínio progressi-
vo: 63 mortes por 1.000 nascidos vivos, em 1990, para 34 mortes por 1.000 nasci-
dos vivos, em 2013. A mortalidade infantil representou, em termos de número de
óbitos infantis, uma diminuição de 8,9 milhões, em 1990, para 4,6 milhões, em
2013. O risco de uma criança morrer antes de completar o primeiro ano de idade
foi mais elevado na região africana: aproximadamente seis vezes maior do que na
região europeia (World Health Organization, 2015b).
No que se refere à mortalidade infantil nacional, observou-se avanço significa-
tivo, já que a meta era de 15,7 óbitos infantis por 1.000 nascidos vivos no ano de
2015 e computaram-se 15,3/1.000, em 2011 (Ministério da Saúde, 2013b; Progra-
ma das Nações Unidas, 2015). Em 2013, ocorreram 38.850 óbitos infantis, em con-
traposição às 57.540 mortes notificadas de menores de um ano de idade em
2002, o que confirma a tendência de queda contínua. Em outros termos, percebe-
se que a taxa de mortalidade infantil (por 1.000 nascidos vivos) declinou de 26,1,
em 2000, para 14,6, em 2012 (Ministério da Saúde, 2014; Ministério da Saúde,
2015b). Mas é preciso ponderar que essa taxa se distribui desigualmente nas re-
giões e 69% dos 38.850 óbitos infantis ocorridos no país, em 2013, foram classifi-
cados como evitáveis, dos quais 39% reduzíveis por adequada atenção ao parto.
Ou seja, a situação do país ainda impõe desafios.
No Centro-Oeste, o Distrito Federal acompanha a tendência de declínio da
mortalidade infantil, verificada no mundo e no Brasil, com taxas que variaram de
15,8 em 2001 a 12,9 em 2013 (Companhia de Planejamento do Distrito Federal,
2015; Ministério da Saúde, 2014). Merece destaque que a Companhia de Planeja-
mento do Distrito Federal (2015) – por meio de seu Anuário Estatístico de 2014 e
tendo como fonte os dados da Secretaria da Saúde do Distrito Federal – divulgou
que, de 2009 a 2013, a taxa de mortalidade infantil foi de 11,9; 12,6; 11,5; 11,7 e
12,9 óbitos infantis por 1.000 nascidos vivos, respectivamente para cada ano pes-
quisado.
Fonte: Esta tabela foi elaborada a partir dos dados do Anuário Estatístico de 2014 da Codeplan/DF.
Nota. Taxa de mortalidade infantil de Ceilândia foi calculada pelas autoras a partir dos dados absolu-
tos do Anuário Estatístico de 2014 da Codeplan/DF.
Tecnologias sociais em saúde: contribuições para redução da mortalidade materna e infantil em Ceilândia - DF
368
Nos últimos anos, pesquisas vêm sendo desenvolvidas na Faculdade de Cei-
lândia da UnB em Saúde Materna e Infantil. Citamos o Programa de Educação
pelo Trabalho (PET) para a Saúde/Vigilância em Saúde - Projeto de Fortalecimento
da Rede de Atenção à Saúde de Ceilândia, no qual participam integrantes da Regio-
nal de Saúde de Ceilândia da Secretaria da Saúde do Distrito Federal, e cujo foco
é formação e o cuidado em saúde. Em um dos projetos, denominado Discussões
e Reflexões sobre Saúde Materno-Infantil: Subsídios para Intervenção na Atenção
Básica/SUS, empreendeu-se o monitoramento da assistência pré-natal direciona-
da a gestantes residentes no Setor Habitacional Sol Nascente (SHSN), localizado
na Região Administrativa de Ceilândia. Vale mencionar que inexistem estatísticas
oficiais das taxas de mortalidade infantil e do número de óbitos maternos dessa
localidade. Outro projeto de pesquisa se insere no âmbito do curso de Doutorado
da primeira autora e foi igualmente executado no SHSN.
Figura 1. Localização das unidades básicas de saúde referenciadas pela população do SHSN.
Tecnologias sociais em saúde: contribuições para redução da mortalidade materna e infantil em Ceilândia - DF
370
Assim, em razão da vulnerabilidade social e do quadro sociossanitário desfa-
vorável, previamente identificados em ações anteriores da UnB no SHSN, elegeu-
se essa comunidade para aplicação de tecnologia social visando reduzir os riscos
de morte materna e infantil. Adotou-se o método de intervenção educativa e psi-
cossocial, na forma de oficinas em dinâmica de grupo para compartilhar e constru-
ir conhecimentos sobre a saúde da mulher e da criança. Foram formados três gru-
pos de gestantes residentes no SHSN. As participantes indicaram temas de livre
escolha relativos à atenção humanizada à gravidez, trabalho de parto, parto, nasci-
mento e puerpério. Quatro meses depois, em um segundo momento de interven-
ção, desenvolveram-se dois grupos focais, cada um com uma composição inicial
de 15 mulheres no seu período pós-parto, sendo que algumas haviam participado
da etapa anterior e outras não. Uma avaliação comparativa de ambos os grupos
está sendo conduzida para ampliar nossa compreensão acerca do empoderamen-
to como aporte da promoção da saúde. Após avaliação das intervenções educati-
vas, busca-se propor um modelo para aplicação pelas equipes multiprofissionais
de saúde (médico, enfermeiro, sanitarista, nutricionista, psicólogo da saúde, entre
outros) em nível de atenção básica.
Considerações finais
Ao reunirmos os dados preliminares do estudo aqui apresentado, podemos
reafirmar a importância da implantação de programas que acelerem a redução da
mortalidade materna e infantil. Recomendamos a adoção de tecnologias inovado-
ras em saúde – especialmente intervenções educativas –, as quais devem ser
mais investigadas para aprimoramento do sistema de saúde. Sugerimos, igualmen-
te, que as propostas sejam adaptadas às especificidades dos contextos sociocul-
turais.
Tecnologias sociais em saúde: contribuições para redução da mortalidade materna e infantil em Ceilândia - DF
372
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Tecnologias sociais em saúde: contribuições para redução da mortalidade materna e infantil em Ceilândia - DF
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17 Problemas conceituais e de
aplicabilidade da Psychopathy
Checklist – Revised (PCL-R)
377
O que é "Psicopatia"?
De acordo com Hauck Filho, Teixeira e Dias (2009), a classificação como “psi-
copatia” utiliza conceitos que abrangem características e significados diversos.
Na tentativa de categorizá-los, estudos foram realizados juntamente aos prisionei-
ros e usuários de instituições psiquiátricas. Portanto, o conceito de psicopatia sur-
giu ligado à medicina legal, que se deparou com criminosos que não possuíam os
elementos clássicos de insanidade.
Morana (2006), responsável pela validação da PCL-R no Brasil, afirma que
“enquanto o transtorno de personalidade anti-social (sic) é um diagnóstico médi-
co, pode-se entender o termo ‘psicopatia’ (grifo da autora), pertencente à esfera
psiquiátrico-forense, como um ‘diagnóstico legal’” (p. 91). Nesta definição é possí-
vel encontrar alguns problemas: a autora localiza o Transtorno de Personalidade
Antissocial (TPAS) na área dos diagnósticos médicos enquanto o de "psicopatia"
(grifo da autora) seria da área psiquiátrico-forense que, também, pertence à área
médica. E classifica-o como algo tanto inexistente quanto confuso, o "diagnóstico
legal".
As duas principais classificações que referem-se à correlatos da "psicopatia"
são desenvolvidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela Associação
Psiquiátrica Americana (APA).
A OMS (1993) utiliza, na Classificação de Transtornos Mentais e de Comporta-
mento, do CID-10 (Classificação Internacional de Doenças, décima revisão), o ter-
mo Personalidade Dissocial (F60.2). Esta seria uma categoria dos Transtornos de
Personalidade, a saber:
Transtornos de Personalidade: agrupamento que compreende diversos
estados e tipos de comportamento clinicamente significativos que ten-
dem a persistir e são a expressão característica da maneira de viver do
indivíduo e de seu modo de estabelecer relações consigo próprio e
com os outros. Alguns destes estados e tipos de comportamento apa-
recem precocemente durante o desenvolvimento individual sob a influên-
Conclusões
O diagnóstico de psicopatia é algo extremamente grave que não pode ser reali-
zado de forma imprecisa e leviana, uma vez que pessoas com tais características
serão marcadas pelo resto de suas vidas. A “psicopatia” horroriza e fascina, pois
a monstruosidade reside dentro e fora de todos nós. Segundo Rabinovitch (2001):
À exclusão corresponderá a reclusão, que localiza o estranho e fixa a
sua errância. Temos que velar a cicatriz do exílio e localizar o estranho
no exterior de nós, nos asilos; essa necessidade contém o desejo não-
sabido de construir um interior para o que está aberto aos quatro ventos.
Porque os loucos são externados em seu confinamento fora, nós os inter-
Enquanto não aceitarmos que o sofrimento é inerente aos humanos e que sua
expressão necessita de escuta e não de silêncio, será necessário criar classifica-
ções cada vez mais complexas e que deem conta de tudo o que habita o interior
dos sujeitos?
Necessitamos “capacitar os verdadeiros incapacitados”: os profissionais de
saúde que lidam com o humano. A psicologia e a psiquiatria, enquanto “diagnosti-
cadoras” dos “bons e maus” seres humanos, colocam-se tal qual o Tribunal do
Santo Ofício da Idade Média, na posição de aliadas ao poder judiciário, decidir en-
tre a vida e a morte de pessoas (é necessário lembrar que, em vários lugares do
mundo, ao diagnóstico de “psicopatia” pode corresponder a pena de morte des-
tas pessoas (Hare, 1996), vez que são consideradas “intratáveis e um perigo para
a sociedade”). Fossem estes diagnósticos/sentenças uma certeza, não veríamos
tantos casos de pessoas que não sobreviveram às fogueiras da Santa Inquisição
nem ao Corredor da Morte americano, para apenas algum tempo mais tarde se-
rem descobertas inocentes. De Jesus Cristo, passando por Galileu Galilei, até ca-
sos recentes e de destaque mundial na mídia, são inúmeros, espantosos e perver-
sos os processos onde pessoas que um dia foram consideradas “um perigo para
a sociedade” são hoje consideradas vítima de um sistema “jurídico-psi” tão perigo-
so, manipulador e que tanto falta com a verdade quanto o mais perigoso dos “psi-
copatas”. A ciência médica, a religião e os tribunais penais antigos são hoje moti-
vo de piada devido à suas conclusões arcaicas e sobrecarregadas das “interpreta-
ções selvagens” apontadas por Wittgenstein. Não sejamos nós, pesquisadores de
hoje, aqueles que continuaram a construir sua “ciência” baseando-se em mitos,
enganos, falácias e sobretudo, num rastro perverso e cruel de danos irreversíveis
àqueles que deveriam ser beneficiados por ela.
Valeska Zanello
Graciela Hosel
Larissa Sorayane Bezerra Soares
Luana Aline Afonso
Mayara Soares dos Santos
404
bernética de Maxwell Maltz, el psicodrama de Jacob L. Moreno, la psico-
logía de las profundidades de Ira Progoff, la integración estructural o Rol-
fing de Ida Rolf, além de “el realismo estético, el entrenamiento para la
asertividad, la proyección astral, Meher Baba, el método de Bates, modifi-
cación del comportamiento, bioritmo, terapia de danza, Esalen, terapia
familiar, el método de Kelley, terapia zonal, terapia de grupo nudista, la
meditación trascendental y, por supuesto, las importaciones orientalizan-
tes: yoga, zen, I Ching, y las artes marciales que, al decir de sus partida-
rios, paradójicamente fomentarían el pacifismo (Sampson, 2001, p. 359-
368).
Valeska Zanello, Graciela Hosel , Larissa S. B. Soares, Luana A. Afonso e Mayara S. dos Santos 405
ter prejudicado outras pessoas; deve-se admitir perante o grupo os erros cometi-
dos naquele período conturbado; deve-se pedir ao “Poder Superior” ajuda para
superar os “defeitos” relacionados à doença que ainda estão presentes; deve-se
reparar, da maneira que for possível, os danos que se causou às pessoas por cau-
sa da doença; deve-se lembrar que a recuperação nunca é definitiva; deve-se
orar, como forma de contato com o “Poder Superior”; e, por último, deve-se levar
a mensagem para aqueles que sofrem da mesma doença mas ainda não conhe-
cem o grupo.
Segundo Roehe (2005), os critérios mais utilizados nestes grupos são: auto-
sugestão, independência de instituições e profissionais de saúde, participação vo-
luntária, nenhum interesse financeiro, foco (são dirigidos para um único problema)
e têm as experiências pessoais como principal fonte de ajuda. As relações simétri-
cas são possíveis pela similaridade das experiências dos membros do grupo e por
não haver hierarquias, tais como aquelas presentes na relação do paciente e do
terapeuta, na maior parte das psicoterapias tradicionais2. Há um rodízio do papel
de mediador dos encontros entre os próprios membros, sobretudo dentre aqueles
que estão há mais tempo no grupo ou que têm mais experiência.
O anonimato é um dos pilares do funcionamento do grupo e possui duas fun-
ções (Loeck, 2009): de um lado, permite a identificação entre os participantes atra-
vés do problema comum, compartilhado (não há necessidade de dar detalhes da
vida pessoal); por outro, aponta a necessidade de sigilo (tanto do que se ouviu,
quanto acerca da identidade de outros membros) fora dos limites grupais. No gru-
po, há também regras em relação a falar: não se deve referir ao depoimento de ou-
tra pessoa, nem devem ser dados conselhos, opiniões, sugestões ou consolo.
Não são permitidas interrupções durante o depoimento de um dos membros.
Cada um deve esperar a palavra ser aberta pelo mediador e solicitar a permissão
para falar.
_______________
(2) Nas psicoterapias de grupo a igualdade de status (simetria) entre os membros também se mos-
tra como um aspecto importante e indispensável (Ver Bechelli & Santos, 2005)
Grupos anônimos de apoio: uma leitura dos fatores terapêuticos a partir da análise dos atos de fala 406
Segundo Roehe (2005), entrar em um GAA significa comprometer-se com a
mudança pessoal. Neste sentido, o sujeito deve assumir um protagonismo em rela-
ção à sua recuperação ou mudança.
Apesar de não ser uma psicoterapia de grupo, os grupos anônimos de apoio
parecem possuir alguns fatores terapêuticos presentes naquela, podendo constituir-
se como importante objeto de pesquisa para a própria psicologia clínica. Como
afirma Roehe (2005, p. 12), “psicólogos tendem a manter-se afastados e a ter pou-
co conhecimento a respeito dos GAA”. O autor aponta a necessidade de se pes-
quisar os GAA: “O profissional pode realizar estudos sobre temas tais como efetivi-
dade, mecanismos de funcionamento, formas de organização e liderança e mu-
danças produzidas nos integrantes, assim como no próprio grupo” (Roehe, 2005,
p. 14)
As pesquisas sobre eficácia e efetividade das psicoterapias bem como os fa-
tores terapêuticos envolvidos no processo de melhora ou cura principiaram, sobre-
tudo, a partir da crítica de Eysenck, em 1950, o qual afirmou que as mudanças
ocorridas durante uma psicoterapia eram devidas a própria passagem do tempo e
não às técnicas utilizadas (Sales, 2009).
A partir destas pesquisas, houve concordância de que boa parte dos efeitos
se dava ao uso de técnicas específicas, próprias a cada abordagem, e, por outro
lado, a fatores comuns ou inespecíficos, presentes em todas as abordagens (Cor-
diolli, 2008; Salles, 2009). Os fatores comuns ou inespecíficos abarcariam uma sé-
rie de elementos, os quais parecem estar presentes também em outras etnotera-
pias, que não apenas a psicoterapia, como é o caso dos GAA.
Para Cordioli e Giglio (2008) pode-se classificar os fatores comuns/ inespecífi-
cos em quatro grandes grupos: os de natureza cognitiva; os fatores comportamen-
tais (aprendizagem); os fatores inerentes à relação terapêutica (experiência afeti-
va); e, por último, os fatores sociais, grupais ou sistêmicos. Dentre os fatores de
natureza cognitiva, teríamos: a psicoeducação, a reestruturação cognitiva e a ocor-
rência de insight. Já dentre os fatores comportamentais haveria o processo de
Valeska Zanello, Graciela Hosel , Larissa S. B. Soares, Luana A. Afonso e Mayara S. dos Santos 407
aprendizagem implícita em toda e qualquer terapia, levando a mudanças compor-
tamentais. Na relação terapêutica encontramos a importância do vínculo afetivo,
da aliança de trabalho, da identificação com o terapeuta, do apoio e da catarse. E,
por último, os fatores sociais, os quais valorizam o contexto grupal como fator de
mudança.
Fernández, Mella, Chenevard, García, Cáceres e Vergara (2008) classificam
os fatores comuns/inespecíficos ao redor de três grandes eixos: o paciente, o tera-
peuta e a relação entre ambos. Os fatores do paciente seriam: variáveis demográfi-
cas (como por exemplo, gênero, idade e nível socioeconômico); diagnóstico clíni-
co, tais como características de personalidade, tipo de transtorno e complexidade
do sintoma; crença e expectativa de melhora; e disposição pessoal. As variáveis
do terapeuta seriam: a atitude (acolhimento aceitação, autenticidade, congruên-
cia); habilidades; personalidade; nível de experiência e bem estar emocional.
Já segundo Frank (1982), os elementos comuns (inespecíficos) seriam: esta-
belecimento e manutenção de uma relação significativa; confiança e esperança de
aliviar o sofrimento; obtenção de novas informações; ativação emocional de cer-
tos fatos; aumento da sensação de domínio e autoeficácia.
Além dos fatores comuns/inespecíficos encontrados nas psicoterapias em ge-
ral, há aqueles encontrados especialmente nas psicoterapias de grupo. Vinogra-
dov, Cox e Yalom (2003) apontam os fatores comuns/inespecíficos típicos das tera-
pias de grupo: instilação de esperança (acreditar que é possível superar os proble-
mas), a universalidade do problema (perceber que não se é o único a ter estes pro-
blemas); compartilhamento de informações; altruísmo (sentir-se ajudando aos de-
mais); socialização; comportamento imitativo (pela observação do comportamen-
to dos outros); catarse (ventilação das emoções); recapitulação corretiva (possibili-
dade de rever/recapitular no grupo comportamentos que apresenta com seus fami-
liares); fatores existenciais, coesão grupal; e aprendizagem interpessoal.
Como sublinhamos anteriormente, alguns dos fatores inespecíficos ou co-
muns apontados nas psicoterapias em geral, e nas psicoterapias de grupo em es-
Grupos anônimos de apoio: uma leitura dos fatores terapêuticos a partir da análise dos atos de fala 408
pecial, parecem estar presentes nos grupos anônimos de apoio, dentre os quais
poderíamos citar:
a) um foco (universalidade do problema);
b) compartilhamento de informações;
c) catarse (é esperado que cada pessoa relate sua experiência dolorosa);
d) crença e expectativa de melhora (a escuta do relato de outras pessoas que
já superaram ou lidam com o problema de forma menos destrutiva leva à
instilação de esperança);
e) disposição pessoal, presente no protagonismo exigido no funcionamento
destes grupos. Neste sentido, o participante precisa responsabilizar-se por
sua melhora;
f) obtenção de novas informações e psicoeducação;
Valeska Zanello, Graciela Hosel , Larissa S. B. Soares, Luana A. Afonso e Mayara S. dos Santos 409
dos usos da fala, a(s) técnica(s) utilizadas, bem como os fatores terapêuticos que
ocorrem nestes grupos.
Metodologia
Foram escolhidos quatro grupos em uma capital brasileira: MADA (Mulheres
que Amam Demais Anônimas), CCA (Comedores Compulsivos Anônimos), NA
(Narcóticos Anônimos), AA (Alcoólicos Anônimos). Foram gravados, com a anuên-
cia dos participantes, 16 encontros, quatro em cada grupo, com duração média
variável entre 80 a 120 min, dependendo do número de participantes presentes no
dia. As gravações foram transcritas e as falas foram analisadas e categorizadas
de maneira separada entre grupo e mediador.
Para a classificação, utilizou-se a teoria dos atos de fala (Austin, 1990; Searle,
1984) e as categorias que levam em consideração sua força elocucionária (o que
se faz ao dizer) em cinco grandes grupos (Searle, 1995), a saber:
- Assertivos: atos de fala que têm o propósito de comprometer o falante com
o fato de algo ser verdadeiro, com a verdade da proposição expressa; po-
dendo ser verdadeiro ou falso;
- Diretivos: atos de fala que se constituem como tentativas (em graus varia-
dos) de levar o ouvinte a fazer algo;
- Compromissivos: atos de fala que têm o propósito de comprometer o falan-
te a alguma linha de ação futura;
- Expressivos: atos de fala que têm o propósito de expressar um estado psi-
cológico;
- Declarações: atos de fala nos quais o estado de coisas representado na pro-
posição é realizado ou feito existir pelo dispositivo indicador de força elocu-
cionária.
Grupos anônimos de apoio: uma leitura dos fatores terapêuticos a partir da análise dos atos de fala 410
Os atos de fala foram classificados em relação ao total das reuniões observa-
das (ou seja, juntou-se todos os atos de fala realizados pelos mediadores nos 16
encontros observados, ainda que em GAA diferentes) e, por outro lado, juntou-se
os atos de fala realizados pelos participantes (também nos 16 encontros observa-
dos), procedendo a uma análise da distribuição média da fala nestes grupos, bem
como da ocorrência média dos tipos de atos de fala proferidos tanto pelos media-
dores, quanto pelos participantes. Esta opção foi realizada com objetivo de des-
cartar qualquer particularidade que porventura pudesse haver em qualquer um
destes grupos.
Resultados e Discussão
No total, foram registrados 12.250 atos de fala. Destes, 3.624 foram proferi-
dos pelos mediadores (29,57%) e 8.626 pelos participantes (70,43%). No gráfico
abaixo podemos comparar a quantidade total dos tipos de atos de fala entre me-
diadores e participantes, em relação ao número total de atos de fala que ocorre-
ram nos 16 encontros (12.250):
Valeska Zanello, Graciela Hosel , Larissa S. B. Soares, Luana A. Afonso e Mayara S. dos Santos 411
Dentre os atos de fala realizados pelos mediadores, encontramos a seguinte
distribuição média (em relação ao total de atos de fala proferidos apenas pelos me-
diadores): prevalência de atos de fala assertivos (82%), atos de fala diretivos
(10,8%), atos de fala expressivos (3,3%), atos de fala declarativos (2,7%), atos de
fala compromissivos (1,2%).
Dentre os atos de fala realizados pelos participantes, encontramos a seguinte
distribuição média (proferidos apenas pelos participantes): prevalência de atos de
fala assertivos (93%), atos de fala diretivos (3%), atos de fala expressivos (2,7%),
atos de fala compromissivos (1,3%). Não houve proferimento de atos de fala de-
clarativos. No gráfico abaixo podemos observar a comparação entre a média de
atos de fala proferidos pelos mediadores e pelos participantes:
Figura 2. Comparação da frequência média dos tipos de atos de fala entre media-
dores e participantes
Grupos anônimos de apoio: uma leitura dos fatores terapêuticos a partir da análise dos atos de fala 412
disso, cabe a ele dar início ao momento dos depoimentos e ao fechamento dos
encontros, daí a ocorrência de atos de fala declarativos, ocorridos apenas dentre
os mediadores (e inexistente dentre os participantes), como por exemplo, “A pala-
vra está aberta”.
Os diretivos ocorreram, sobretudo, na fala dos mediadores e visavam ao “cui-
dado” de manejo com o grupo e à sua orientação. Um exemplo trata-se da per-
gunta comumente repetida no início de cada encontro: “Tem alguém que esteja
aqui pela primeira vez?”. Outro é o convite feito para realizar a oração: “Convido a
todos para reunirmo-nos no centro da sala para fazer a oração da serenidade!”,
ou “Vamos dar as mãos!”. Já nas falas dos participantes, os diretivos visavam a
incentivar o outro a falar/conhecer ainda mais sobre seu problema/sofrimento,
como no exemplo: “Quando você reconheceu pela primeira vez que sua forma de
se relacionar era autodestrutiva?”
Os atos de fala expressivos ocorreram com baixa frequência. No caso dos
mediadores, foram representados, sobretudo, pelo desejo de uma ótima semana
a todos ou expressões equivalentes. Já na fala dos participantes, apareceram, so-
bretudo, na forma de agradecimento ao grupo ou outras pessoas (“Obrigada pela
oportunidade!”).
Os atos de fala compromissivos apareceram tanto na fala dos mediadores
quanto na dos participantes em uma frequência semelhante (tanto em relação ao
parcial mediadores/participantes, quanto em relação ao total de atos de fala). Isto
se deu porque o mediador não é um elemento diferenciado, apartado do grupo,
mas antes é um elemento do próprio grupo que fica incumbido de orientar o funcio-
namento do mesmo. Neste sentido, participa de quase todos os atos de fala com-
promissivos que são proferidos em conjunto, sobretudo o “Só por hoje!” (prometo
não beber, prometo não buscar uma relação autodestrutiva, prometo não comer
compulsivamente, prometo não me drogar). Como sublinha Martins e Zanello
(2000) e Martins (2003), o prometer é um verbo altamente importante nos mais di-
versos processos (psico)terápicos, pois aponta para o engajamento do sujeito no
próprio tratamento e, também, com uma linha de ação futura que, neste caso, diz
Valeska Zanello, Graciela Hosel , Larissa S. B. Soares, Luana A. Afonso e Mayara S. dos Santos 413
diretamente respeito ao problema que o levou a frequentar o grupo anônimo.
Como vimos, “A pessoa que freqüenta um GAA assume responsabilidade por seu
processo de recuperação ou mudança” (Roehe, 2005, p. 6). Há necessidade, as-
sim, de que o participante se comprometa com a mudança pessoal, o que é relem-
brado a cada encontro do grupo. Segundo Cordiolli (2008), Bechelli e Santos
(2002, 2005), o engajamento do sujeito no processo terapêutico é um dos fatores
(comuns/inespecíficos) preditivos mais importantes na efetividade terapêutica.
Os atos de fala mais frequentes, tanto dentre os mediadores quanto dentre
os participantes, foram os assertivos. No entanto, o tema do conteúdo proposicio-
nal foi bastante diferente: no caso dos mediadores, tratou-se, sobretudo, da leitu-
ra e repetição das regras de funcionamento dos grupos anônimos de apoio (como
por exemplo, “o silêncio faz parte do tratamento”, proposições para lembrar a ne-
cessidade do sigilo, do não julgamento do outro etc.), enquanto que no caso dos
participantes houve o predomínio de narrativas pessoais acerca dos problemas vi-
venciados e que, neste caso, tornavam-se partilhados.
A predominância dos atos de fala assertivos dentre os participantes, no tem-
po geral das reuniões, nos faz pensar no papel fundamental do compartilhamento
como elemento inespecífico, ligado à própria técnica de espelhos. Aqui pode-se
perceber dois usos diferentes dos assertivos. De um lado, os novatos ou os partici-
pantes em crise que chegam ao grupo transbordando sofrimento. Neste caso, os
assertivos têm claramente uma função catártica (ventilação das emoções), marca-
da pela necessidade de nomear, narrar e “purificar” o mal estar. Além disto, traz a
oportunidade de ocorrência da recapitulação corretiva, um fator terapêutico co-
mum/inespecífico importante (presente de modo geral nas narrativas dos partici-
pantes do grupo). Por outro lado, dentre os mais experientes ou em processo de
recuperação mais avançado, os assertivos têm como função espelhar possibilida-
des de melhora para os demais (provocando sentimentos de altruísmo nos próprios
narradores) e instilação de esperança naqueles que o escutam. Como afirma
Loeck (2009), “O fato de alguém estar se recuperando é positivo não apenas para
Grupos anônimos de apoio: uma leitura dos fatores terapêuticos a partir da análise dos atos de fala 414
ele próprio, mas para o grupo como um todo, já que esta pessoa se torna uma
prova viva da eficácia do programa” (p. 65).
Além disto, ouvir de outras pessoas o relato de experiências semelhantes, já
superadas ou em outra fase de negociação (menos destrutiva), serve para, além
de instilar sentimentos de esperança, ver-se espelhado em outros relatos, que pos-
sibilitam alternativas de percepção do problema bem como podem levar à aprendi-
zagem de diferentes estratégias práticas. Tal como lembra uma proposição cons-
tantemente repetida pelos mediadores, relacionada à “técnica de espelhos”: “O
tratamento se baseia em espelhos e não em conselhos”. Ou seja, há a facilitação
da aprendizagem interpessoal, com a possibilidade de comportamento imitativo
(pela observação do comportamento dos outros), ambos fatores terapêuticos co-
muns/inespecíficos presentes também em outras formas de (psico)terapias, e es-
pecialmente, nas psicoterapias de grupo (Bechelli & Santos, 2002, 2005).
Como se pode perceber, apesar dos grupos anônimos de apoio não serem
estritamente uma psicoterapia, constituem uma alternativa importante, enquanto
etnoterapia, que se utiliza de fatores comuns a várias abordagens das psicotera-
pias. Alguns destes fatores associam-se à melhora apresentada pelo paciente no
início de qualquer psicoterapia (Wolberg, 1988).
Conclusão
O conceito de ato de fala traz para as terapias em geral, e para a psicoterapia
em específico, rico manancial teórico que pode nos instrumentar nesse campo, a
refletir sobre as especificidades do uso da linguagem e sua relação com a especifi-
cidade da técnica adotada em cada terapia (ainda que de forma irrefletida), bem
como a ocorrência de fatores terapêuticos específicos e inespecíficos.
A partir das análises apontadas, parece-nos evidente que os Grupos Anôni-
mos de Apoio constituem-se como alternativas etnoterápicas importantes em nos-
sa cultura. Não é à toa o crescimento do número de pessoas que a elas recorrem,
bem como o aumento do número de focos grupais (Neuróticos Anônimos, Gasta-
Valeska Zanello, Graciela Hosel , Larissa S. B. Soares, Luana A. Afonso e Mayara S. dos Santos 415
dores Compulsivos Anônimos etc.) disponíveis no mercado, que se organizam sob
os mesmos preceitos de regras de funcionamento surgidos no AA. O processo te-
rapêutico que ocorre nestes grupos é marcado pelo uso de fatores comuns/ines-
pecíficos presentes também na maior parte das psicoterapias em geral e, especial-
mente, nas psicoterapias grupais. Neste sentido, trata-se de pensar, de um lado,
as psicoterapias como pertencendo ao mundo das etnoterapias e, por outro, abrir
uma campo de conversação, diminuindo eventuais preconceitos em relação aos
GAA. Os GAA apresentam-se, assim, não como terapêuticas antagônicas às psico-
terapias (profissionais), mas antes podem ser um novo recurso etnocultural de
apoio, pois como aponta Roehe (2003), levando em consideração a precariedade
do serviço público de saúde e a pobreza da maior parte da população do Brasil,
“os GAA podem ser importantes aliados de uma eficiente rede de serviços de saú-
de” (p. 13). Pesquisar e compreender os fatores terapêuticos presentes na prática
destes grupos pode ser uma importante tarefa e contribuição da psicologia clíni-
ca.
Grupos anônimos de apoio: uma leitura dos fatores terapêuticos a partir da análise dos atos de fala 416
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Grupos anônimos de apoio: uma leitura dos fatores terapêuticos a partir da análise dos atos de fala 418
19 O corpo que fala: a tatuagem
na contemporaneidade1
419
Se essas práticas reforçam a centralidade da problemática "corpo", no senti-
do de que é palco para diversas modificações, levando, muitas vezes, ao limite do
esgarçamento da carne, dos músculos, da pele, em que medida se pode, por ou-
tro lado, escapar da serialização, do molde, da superficialidade da aparência?
Esse é um questionamento que conduzirá as discussões deste texto. Seria
um grande risco reduzir as discussões sobre o corpo, tratando-o como puros re-
produtores de subjetivações em voga. Se aposta, ao contrário, que ele é suporte
para diferentes agenciamentos, de potência criativa e emancipação. No rol das
modificações corporais, interessa, neste texto, a tatuagem. Parte-se da ideia que
ela não deve ser tomada no singular, tendo em vista que só pode ser verificada à
medida que está encarnada em sujeitos com histórias particulares e que dão um
lugar à tatuagem realizada. Sendo assim, contamos com trechos de algumas en-
trevistas realizadas com adultos tatuados na cidade do Rio de Janeiro.
_______________
(2) Lacan aponta que irreal não quer dizer imaginário. Ele “se define por se articular ao real de um
modo que nos escapa, e é justamente o que exige que sua representação seja mítica (...) Mas,
por ser irreal, isso não impede um órgão a se encarnar” (1964/1998, p. 195).
Sendo assim, no que se refere à pulsão de ver, Freud (1915/2010, p. 67) con-
cebe três estágios: a) “olhar como atividade dirigida a um outro objeto” ; b) “o
abandono do objeto, a volta da pulsão de olhar para uma parte do próprio corpo,
e com isso a reversão em passividade e a constituição da nova meta: ser olhado”
(p. 67-68); c) “a introdução de um novo sujeito, ao qual o indivíduo se mostra,
para ser olhado por ele” (p. 68). Teríamos em Freud a constituição de um circuito
em três vias: a ativa – olhar; a passiva – ser olhado; e a reflexiva fazer-se ser olha-
do.
436
não pode ser recordado com outra coisa. Nesse artigo, Freud situou as mudanças
transcorridas na técnica psicanalítica, distinguindo três momentos:
- No primeiro, com auxílio da hipnose, a técnica visava à ab-reação, reprodu-
ção dos processos mentais envolvidos na formação do sintoma, rememora-
ção pela hipnose;
- No segundo momento a hipnose foi abandonada, instaurou-se a regra fun-
damental da associação livre, por meio da qual o analista poderia interpretar
o que o paciente deixava de recordar, oferecendo-lhe o resultado da interpre-
tação sobre os elementos formadores do sintoma;
- No terceiro momento, equivalente à nova técnica criada por ele, o foco do
sintoma é abandonado, não é mais demandado ao paciente que fale sobre
os acontecimentos que possivelmente o teria provocado, mas que fale so-
bre qualquer assunto que lhe vier à mente, sem censura prévia. Coerente-
mente, a escuta do psicanalista, não deve privilegiar nenhum assunto para
atingir uma meta pré-estabelecida de decifrar do sintoma.
Como toda educação marca, isso tem consequências, ou seja, o corpo fabri-
cado por um padrão estético, um corpo mal falado e mal tratado vai precisar de
O corpo e o Outro
O corpo fala porque está inscrito na e pela linguagem. A criação de Freud do
conceito de trieb, traduzido por pulsão, possibilitou situar o corpo humano na psi-
canálise, rompendo com a dicotomia entre corpo e alma disseminada pela propo-
sição cartesiana. O corpo cartesiano identificado com a coisa extensa (res exten-
sa) e separado da coisa pensante (res cogitans) que seria a única garantia da exis-
tência (penso, logo existo), ficou excluído da dimensão simbólica e da dimensão
real de gozo, identificado com os atributos de largura, comprimento e profundida-
de (Pollo, 2012).
Com a escolha do termo trieb Freud (1915/2004) considerou haver uma força
constante que emana do corpo, fonte pulsional, em direção à satisfação que só
pode ser parcial, por apenas contornar o objeto desejado, que é indefinido e ine-
xistente, incapaz de satisfazer completamente a excitação corporal. O termo trieb,
elevado à categoria de conceito psicanalítico por Freud, na língua alemã, designa
as determinações da natureza incluindo as determinações psíquicas, enquanto ins-
tinkt refere-se à articulação entre o biológico e o fisiológico como determinantes
(Hanns, 2004). Freud (1915/2004) inventou o conceito de pulsão (trieb) fundamen-
tando a exigência de representação psíquica dos estímulos provenientes do cor-
Sobre a Trieb
Convém parar na palavra trieb, em alemão, designa algo que impele, coloca
em movimento. Para Freud, a pulsão sexual é a energia própria da libido. A sexua-
lização de um tipo de pulsão encontra sua primeira base na noção de zona eróge-
na. De uma pulsão saída de fontes de impulso não sexuais – simplesmente moto-
ras –, tem sua distinção em efeito sob as espécies de pulsões parciais, a contribui-
ção de um órgão receptivo de excitação (pele, mucosa, órgão de sentidos), e, as-
sim, podemos descrever enquanto zona erógena o órgão cuja excitação se em-
presta à pulsão um caráter sexual. Pulsão é este conceito fundamental da psicaná-
lise, destinado a dar conta das formas pelas quais o sujeito se relaciona com o ob-
jeto, a força que o motiva nesta busca e a satisfação nela adquirida. Esta busca
da satisfação pode ter múltiplas e variadas formas, assim, podemos falar antes
de pulsões, que da pulsão.
A descoberta do objeto é na verdade uma redescoberta:
“A psicanálise nos ensina que existem duas vias para a descoberta do
objeto, em primeiro lugar a do escoramento sobre os modelos infantis
precoces e, em segundo, a via narcísica, que procura o eu moi próprio e
o encontra no outro” (Freud, 1905/1987, pp. 164-165)1.
Com o artigo Além do princípio de prazer, no qual afirma que “a maior parte
do desprazer que sentimos é, com efeito, desprazer provocado por percepções”,
vindas do impulso da pulsão ou do exterior, como um perigo ou um sinal qualquer
(Freud, 1920/1981, p. 48), e Freud acabava de explicar e descrever o funcionamen-
to do aparelho psíquico regrado pelos dois princípios de prazer e desprazer, intro-
duzindo o ponto de vista econômico, associado a dois outros fatores: o tópico e o
dinâmico. A relação deles é por causa da diminuição ou do aumento do quantum,
da quantidade de energia presente na vida psíquica. Wiederholungszwang: a com-
pulsão de repetição na vida psíquica inconsciente, a que está ligada a pulsão em
seu caráter constante, Triebesanpruch, a exigência pulsional. Freud constrói sua
teoria ressaltando, antes de qualquer coisa, a sexualidade infantil e enfatizando a
importância do próprio corpo da criança e de seus movimentos motores. Dedica-
se, então, ao estudo e à leitura do corpo orgânico, neurológico, até a leitura do
corpo pulsional.
_______________
(2) Esse modelo topológico chamado O Esquema L, foi trabalhado e retomado muitas vezes por La-
can no seu ensino, com a função de descrever a relação do sujeito com o grande Outro, atra-
vessada pela relação imaginária do eu (moi) com o pequeno outro. É considerado um “esboço
da subjetividade” (Dor, 1985, p. 183), que inicia no Estádio do Espelho.
Ele permite tratar a relação entre (S) e Outro (A), quando o primeiro se dirige
ao segundo, ele não irá atingi-lo de uma forma direta, pois entre eles há o que La-
can chama de “muro da linguagem”. Porém, se a fala verdadeira se dirigir ao gran-
de Outro e lá ele encontra um espelho vazio e não um espelho vivo de identifica-
ção, daí o Sujeito propriamente dito poderá advir e com isso usufruir do seu pró-
prio corpo. A essa operação podemos chamar de registro simbólico (Dor, 1985).
O sujeito, esse que não é o “eu”, nem é o indivíduo (o que não pode ser
dividido), pois a unidade que envolve este indivíduo foi subvertida pelo conceito
de inconsciente, ele não é uma pessoa, um nome, nem um corpo determinado bio-
logicamente, não tem substância. O sujeito é o furo no real, a falta que surge no
“tudo é possível” do real e, por isso mesmo, torna-se difícil dizer dele. É daí que a
psicanálise se diferencia da ciência, uma determinada concepção de ciência que
deixa de fora o sujeito, uma vez que elabora um saber sobre o mesmo, trazendo-
lhe uma suposta verdade, que lhe é externa, tornando-o objeto e deixando-o fora-
Daí a forte influência dessa “fábrica do corpo” (Soler, 2012) que a sociedade
produz e o afã de encontrar respostas prontas para o dilema da angústia, colocan-
do o corpo no mais-de-gozar (mais valia) com tantas opções de estética e de saú-
de impecáveis, para que se atinja a completude (falta tamponada), assim como
para aqueles que se encontram (existindo) em diagnósticos e tratamentos ofereci-
dos pelo saber científico.
_______________
(3) Uma paciente (45 anos) diagnosticada com dor crônica em ambos os braços que a impediam de
realizar seu trabalho. Após passar por vários exames, sem descobrir a causa, procurou o atendi-
mento orientada por um fisioterapeuta. Aos poucos passou a falar de suas dificuldades conju-
gais, dos filhos adolescentes e da perda de uma vida no passado – "quando era mais nova e
tinha saúde" (sic). Durante o tempo da análise revelou uma infância árida de carinho e pautada
na violência, o pai “bebia”, bem como seu marido "bebe" e não lhe da atenção, tratando-a com
grosseria e os filhos não a respeitam mais. Quando chegou para análise foi porque as dores fo-
ram piorando e ela já não mais sabia o que fazer, não conseguia trabalhar, relatava sentir medo
de sair de casa – "Parece que alguma coisa me puxa, tenho medo de cair" (sic). A paciente foi
escutada em análise durante dois anos, aproximadamente, sem que sua queixa fosse desconsi-
derada ou desqualificada, era acolhida, mas não era mais o foco depois de um tempo. Aos pou-
cos livrou-se da dor, passou a se relacionar melhor com os filhos e aprendeu a lidar com o mari-
do. Reorganizou sua vida, desocupando o lugar da dor, em várias ocasiões pensava em desis-
tir, mas acabava voltando, o que possibilitou-lhe enfrentar a dor de existir.
458
Aos moços dou um conselho: não fiquem velhos. Verdade que as op-
ções são poucas – morrer, ou lutar contra a velhice. E morrer não seria
opção, mas entrega; e a luta? Bem, a luta resulta sempre numa batalha
perdida e inglória. Entre os processos cruéis da natureza, é a velhice o
mais cruel. Implacável, insidiosa, ataca por todos os lados, abre a porta
a todas as moléstias mortais. (...). Te ataca o coração, o pulmão, todas
as demais vísceras (...). E mais a fiação arterial e venosa; e a coluna! E
não falei na atividade cerebral. E também esqueci os ossos, a infame os-
teoporose, que te rói os ossos pelo tutano (...). Os moços compadeci-
dos, os quarentões assustados e os próprios velhos, apelando para
tudo, inventaram ultimamente essas bobagens de ‘terceira idade’, clubes
e associações que trabalham contra o isolamento e as tristezas da velhi-
ce (...). Você contempla no espelho, vê as rugas do seu rosto, do seu pes-
coço, como se olhasse uma máscara que se desfaz. Vê bem, sabe como
está velho, embora não sinta que está velho. Sua alma, seus sentimen-
tos, sua cabeça, nada disso confirma a palavra ou a imagem do espelho.
Mas os outros só veem de você o que o espelho vê (...). Contudo, o pior
é quando você, com honesta sinceridade, lamenta diante de alguém os
estragos que lhe traz a velhice, e esse alguém protesta com veemência:
“Eu queria, quando chegar à sua idade, ter essa sua lucidez!” Lucidez?
O que é que esse cara esperava? Que você já estivesse caduco?
O Corpo e o Velho
A expressão “terceira idade” parece provocar no imaginário a necessidade de
abandono do desejo. A imagem dos velhinhos tentando dançar tango argentino
em roupas da década de 1920, descrita por Rachel de Queiroz, nada tem de obje-
to de desejo. O olhar do Outro indica isso. O sofrimento surge quando o sujeito
deixa de ser objeto de desejo, cujo corpo é segregado do amor e negado em seu
desejo. Rubem Alves desabafa em “A pior idade” (2009, pp. 53-55):
“Deve ter sido um demônio zombeteiro disfarçado de anjo que inventou
que a velhice é a “melhor idade”. Chamar velhice de “melhor idade” só
pode ser gozação, ironia, dizer o contrário do que se quer dar a enten-
der. (...). A coisa mais humilhante da velhice é quando a gente começa a
ser tratado como objeto de respeito e não como objeto de desejo. Não
quero ser respeitado. Quero ser desejado”.
Sentado num dos primeiros bancos do ônibus número 15, vejo surpreso,
e logo com crescente espanto, minha imagem refletida no retrovisor,
com traje e movimentos que não são meus. Para afastar a possibilidade
de uma alucinação, faço, como prova, exaustivos gestos propositada-
mente exagerados, que a imagem refletida não repete. – Um sósia? Mas
esse é semelhante, jamais idêntico. Meu desassossego, meu espanto
crescem. O outro, com roupa e movimentos diferentes, permanece tran-
quilo, impassível, alheio à minha presença e parece nem se importar em
ser réplica. – Ele não me terá visto? Impossível, estamos próximos. Ele
talvez ocupe um assento à minha frente. Não sei. A ideia do indivíduo ser
dois apavora. Já agora preso de um terror incontrolável, soo a campai-
nha do coletivo e desço precipitado, sem olhar para trás, sem sequer ou-
sar localizá-lo: falta-me coragem para ver o outro que vive fora de mim.
O luto pelo corpo torna-se, portanto, necessário para que novos investimen-
tos, que não sejam por vias regressivas, possam acontecer. Na adolescência, o
luto pelo corpo infantil abre caminho para a assunção do corpo adulto, desejado e
festejado. Na velhice, entretanto, o corpo que se destaca, além de não ser valori-
zado e cultuado, não traz promessas de novos ganhos (Mucida, 2009). Contraria-
mente, aponta para o fim de tudo. As palavras de Alves sobre o modo como um
olhar sem desejo pode afetar o velho são, mais uma vez, bastante pertinentes: “A
coisa mais humilhante da velhice é quando a gente começa a ser tratado como ob-
jeto de respeito e não como objeto de desejo. Não quero ser respeitado. Quero
ser desejado” (2009, p. 55). Ao deixar de ser objeto de desejo, a sexualidade do
velho é negada e barrada. Assim, os rearranjos libidinais se tornam mais difíceis.
Contudo, vias elaborativas são possíveis para que uma estética da velhice seja
construída e o velho possa obter prazer a partir de novas tramas libidinais.
A velhice pode ser uma fase em que o sujeito consiga se libertar da opinião
alheia como guia de suas decisões. Evidentemente que o olhar do Outro continua-
rá refletindo sua imagem e os ideais de Eu permanecerão pautando a busca pelo
reconhecimento e despertamento do desejo do Outro. Mas para que a velhice
seja experimentada como fase agradável e prazerosa é necessário construir essa
liberdade de que Alves fala. Tornstam (2003), sobre a velhice dos 80 anos, ressalta
a possibilidade de o velho desenvolver uma visão mais flexível acerca de si e dos
outros, transcender as limitações corporais e experimentar nova compreensão do
tempo, de si mesmo e das relações sociais. Liberdade que vem através do (re)co-
nhecimento das próprias limitações e elaboração das perdas. (Re)encontrar-se em
seu próprio corpo e (re)construir o caminho para novos investimentos, talvez me-
nos audaciosos e mais realistas, apontam para formas salutares de encontrar a fe-
licidade, mesmo que “apenas em horinhas de descuido”, como afirmou Guima-
rães Rosa (1967/2001, p. 60).
Introdução
Na história da humanidade o trabalho teve diferentes conceitos e
desempenhou um papel fundamental na construção da civilização. No entanto,
neste momento da Pós- modernidade passamos por um grande questionamento
sobre a relação entre homem e trabalho. As transformações ocorridas impõem ao
indivíduo grandes pressões, como a desmedida competição pelo sucesso, pela
realização pessoal e por uma identidade própria em meio a padrões estabelecidos
por uma sociedade paradoxal, onde é necessário destacar-se mas não fazer-se
muito diferente. Essa constante vertente ambígua promove enorme disfunção
estrutural em todos os âmbitos do ser humano. Mais do que nunca, no pós-
modernismo o homem é produto do homem, contudo a falta de sentido na
procura por um bem-estar e realização que está sempre por chegar, acaba por
provocar exatamente a ausência dessa significação.
490
A palavra de ordem é competir, concorrer e superar, destacando-se na
sociedade globalizada econômica, tecnológica e culturalmente. No entanto, essa
busca tornou-se sem sentido à medida em que já não é possível definir o ponto
de chegada dessa procura imposta. As relações que são sacrificadas nessa
corrida e as experiências que deixam de ser vividas resultam em perdas
irreparáveis para a sociedade e para o indivíduo.
O termo globalização, muito comum nos últimos tempos, está associado às
discussões que envolvem o capitalismo em seu momento presente e suas
influências não só no âmbito econômico mas também social. Para Bauman
(2000), o capitalismo, que se apresenta de forma diferenciada entre leve e pesada,
traz o modelo de industrialização na forma mais intensa, a acumulação e a
regulação onde o capital, a administração e o trabalho estariam extremamente
ligados, interlaçados pela combinação de grandes fábricas e força de trabalho
maciça. Dessa forma, o capital estaria tão enraizado ao solo quanto os
trabalhadores que emprega, sem no entanto apresentar força nessa relação que
mostra suas fragilidades ao ponto de que “ao buscar rochas suas âncoras
encontraram areias movediças” (p. 70).
O capitalismo leve, segundo Bauman (2000), aparece como uma nova
representação do sistema e apresenta-se como a marca registrada da pós-
modernidade. É vista nas relações onde se quer “viver num mundo cheio de
oportunidades, cada uma mais apetitosa e atraente que a anterior, cada uma
compensando a anterior e preparando o terreno para a mudança da próxima” (p.
74). Os laços que prendem o capital ao trabalho apresentam um enfraquecimento,
instaurando uma nova liberdade de movimentos impensáveis no passado. “A
reprodução e o crescimento do capital, dos lucros e dos dividendos e a satisfação
dos acionistas se tornaram independentes da duração de qualquer
comprometimento local com o trabalho” (p. 171). O novo capitalismo é
demasiadamente apressado, evita o enraizamento, não permitindo que a
sobrecarga supostamente advinda da formação de laços ou comprometimentos
prejudique os seus objetivos e as oportunidades que possam se apresentar.
Ócio, tempo livre e trabalho: a fragilização do indivíduo e das relações na sociedade pós-moderna 492
estudiosos da área e interligando as relações das transformações vividas e suas
consequências. As discussões são fundamentadas por autores pesquisadores da
temática na Europa, como Bauman (2007) enfatizando a fragilização do tempo e
as relações e sociedade-moderna, Cuenca (2004), Beriain (2008), Gomez (1987),
Domenico De Masi (2000) e outros estudiosos do ócio, trabalho e tempo livre. No
Brasil, Clerton Martins (2009), Viktor De Salis (2004), Ieda Rhoden (2004) e outros,
indicando a importância das experiências vividas como fortalecimento do sujeito.
Sobre as relações familiares e suas transformações nessa interação com a
sociedade atual, nos fundamentamos dos estudos de Salvador Minunchin (1980)
e Rifkin (1995).
Ócio, tempo livre e trabalho: a fragilização do indivíduo e das relações na sociedade pós-moderna 494
sábado seguinte; muitos se casam e a lua-de-mel é adiada para quando houver
um espaço na agenda.
Hoje o prazer de viver resume-se em ganhar dinheiro, mas, ironicamente,
nunca se tem tempo para gastar; e quando o fazemos é de forma
atabalhoada e desvairada. Queremos aproveitar de modo atropelado
tudo que uma viagem ou um tempo de ócio pode nos oferecer, e nessa
pressa novamente corremos demais, comemos demais, bebemos
demais, enfim queremos ter prazer com pressa. São irônicos, se não
tristes, os congestionamentos que tantos enfrentam nos finais de
semana na ilusão de aproveitar algum feriado. [...] O desvario é total e,
no dia seguinte, mal se lembram do que fizeram (Salis, 2004, p. 79).
Ócio, tempo livre e trabalho: a fragilização do indivíduo e das relações na sociedade pós-moderna 496
perder tempo numa sociedade de aumento constante das forças produtivas e
com anseios de maiores crescimentos. O progresso anda rápido e é preciso
correr agora contra o relógio. Tempo é mercadoria, tempo é eficiência.
Para o maior aproveitamento das horas foram criados cada vez mais
acessórios, que então fizessem tudo mais fácil e mais rápido. Dentro da hora
cronometrada podemos, assim, desenvolver mais tarefa e sobrar mais tempo. Ou
não? Ou à medida que podemos realizar mais atividades em um menor período
temporal, podemos nos ocupar ainda mais e agregar um pouquinho mais aqui, ir
mais rápido até lá, desempenhar mais tarefas simultaneamente? Chegamos à
modernidade! E aqui estamos nós... Cada vez mais ágeis e cada vez mais
ocupados. As coisas não tomaram o rumo que pensamos.
O relógio agora tem ponteiros que giram rápido demais e que não nos dão
horas suficientes para realizar todas as atividades planejadas. Estamos movidos
pela constante necessidade de mais tempo. Gostaríamos que o dia tivesse 30
horas e temos o comércio que abre 24 horas, a lanchonete que serve lanche de
madrugada, as pessoas que trabalham demasiadamente e terminaram por
abandonar o relógio, que já não acompanha os seus ritmos e insiste em dizer que
o tempo está acabando.
As relações fragilizadas
É reconhecido que o ser humano não vive apenas do trabalho, e que precisa
ter horas de lazer (em que sai totalmente da agitação de uma organização), do
tempo livre (em que se tem total liberdade sobre seu uso), e do ócio (onde o
prazer é o seu meio e o seu fim). Esse último, que teve sua definição
erroneamente compreendida no passar dos anos, volta a ter defendida sua
importância na construção do indivíduo, trazendo de volta seu conceito genuíno.
Masi (2000) afirma que “é necessário aprender que o trabalho não é tudo na vida
e que existem outros grandes valores: o estudo para produzir saber; a diversão
Ócio, tempo livre e trabalho: a fragilização do indivíduo e das relações na sociedade pós-moderna 498
mudança nos ambientes de trabalho ou até mesmo os locais onde as atividades
são realizadas, ou seja, a ampliação do tempo livre à disposição das pessoas é
visto como fundamental ao bem-estar do indivíduo. O tempo de liberdade do
trabalho, normalmente utilizado para o lazer (exercício de autonomia individual ou
estado mental de liberdade), está passando a ser necessário enquanto prioridade
social.
Equilibrar trabalho, lazer, tempo livre e ócio está se tornando uma questão de
suma importância para os pais de família. Pesquisas realizadas com famílias
americanas indicam que um grande número de trabalhadores vem mostrando
cada vez mais interesse em trocar salário por mais tempo livre, para se dedicar às
obrigações familiares e necessidades pessoais. Com a maioria das mulheres
atualmente participando da força de trabalho, as crianças estão cada vez mais
sem atenção em casa. Mais de sete milhões ficam sozinhas em casa durante uma
parte do dia. Algumas pesquisas descobriram que chega a um terço o número de
crianças que cuidam de si próprias. Para Rifkin (1995), o declínio da supervisão
dos pais criou a “síndrome do abandono”. Psicólogos, educadores e um número
crescente de pais preocupam-se com o grande aumento das doenças emocionais
ou psicossomáticas. É crescente o número de casos de depressão infantil,
transtornos alimentares, de delinquência, de crimes violentos, de abuso de álcool
e drogas e do suicídio entre adolescentes, causados em grande parte pela
ausência dos pais nos lares.
O fenômeno do trabalhador workaholic, presente na sociedade já há algumas
décadas, produto da associação da remuneração aos ganhos de produtividade,
também resulta em consequências no campo psicossocial. O excesso de trabalho
se apresenta dentro dessa dinâmica em detrimento das relações afetivas e
vínculos relacionais. O sujeito workaholic vive uma grande dificuldade em se
desligar do trabalho (Serva & Ferreira, 2006) sacrificando o tempo com a família,
os momentos de lazer e a vivência de experiências fundamentais para o
fortalecimento dos vínculos.
Ócio, tempo livre e trabalho: a fragilização do indivíduo e das relações na sociedade pós-moderna 500
O homem não vive apenas do trabalho. É certo que precisamos dele para
podermos desfrutar de inúmeros benefícios sociais e pessoais, mas é preciso
haver também um tempo para sair totalmente da agitação de uma organização e
podermos experienciar um encontro, desprovido de interesses, conosco mesmo.
Esse tempo não precisa necessariamente também ser desvinculado do trabalho.
O que precisamos é de uma consciência e uma organização para explorar esse
encontro.
Essa consciência quanto à importância das experiências vivenciadas parece
ainda não estar presente na vida dos indivíduos. Um estudo realizado por
Robinson e Godbey (1997), durante três décadas, com a população dos Estados
Unidos, para identificar como o americano utiliza o tempo, mostra que apesar do
indivíduo ter mais tempo livre, a percepção é de que haja uma falta de tempo para
realizar todas as atividades. Essa realidade paradoxal, sugere o estudo, talvez
esteja ligada à falta de satisfação pessoal na realização das atividades que não
são percebidas como de sentido profundo, verdadeiramente de ócio.
À medida que vamos nos acostumando com a falta de espaço em nossas
vidas para descansar a mente, fazer planos ou simplesmente viver esse momento,
estamos também nos acomodando com o que resta, ou seja, a sobra de um dia
tenso e cheio de preocupações, e deixamos de lado coisas simples como cuidar
de nós, do jardim, da casa ou passear com os filhos. Gastamos nossas energias
no trabalho e esquecemos que precisamos também de energia para nós mesmos,
seja ela encontrada na leitura de um livro, na quietude do recanto, na atividade
física ou nas relações pessoais.
Como afirma Salis (2004), cuidamos tão bem das nossas máquinas e tão mal
de nós mesmos. “São poucos os que se dão conta de isso lhes custa não só a
saúde, mas, principalmente, brinda-os com uma vida vazia e sem sentido” (p. 78).
Focalizamos tanto em ganhar dinheiro, em preencher nosso tempo vago sempre
com outras atividades, que não nos resta tempo. Nos perdemos de quem somos,
tornamos-nos reféns de trabalhos escravizantes e rompemos nossos vínculos -
porque “eu não tenho tempo”.
Ócio, tempo livre e trabalho: a fragilização do indivíduo e das relações na sociedade pós-moderna 502
vivências. Segundo Bofarull (2005), as famílias mais fortes, que superam os
conflitos e dificuldades, são as que alcançam um nível emocional inteligente
saudável. Nesse sentido, o ócio pode fortalecer as relações pessoais, permitindo
uma interação mais aprofundada entre os indivíduos quando esses partilham
experiências e encontram tempo para conhecer e perceber o outro, vivendo
portanto, “um ócio familiar significativo”. Assim, a proposta de educação para o
ócio o trata como algo “que não seja puro entretenimento, mas sim o eixo de uma
família com competências racionais, cognitivas e sociais. Um ócio que busque ser
um meio de formação para os filhos e de encontro para os pais”. (p. 13)
É preciso uma estruturação, a partir da crise e da conscientização, mediada
pela educação para o ato e a experiência do ócio. Essa modificação de atitude se
daria a partir de uma diferente estruturação surgida do desequilíbrio, da crise, e
posteriormente da conscientização mediada pela educação para o ato e a
experiência do ócio. Esse desequilíbrio tem sido concreto no mal-estar e
sofrimento psíquico presente da sociedade contemporânea, que vive a urgência e
o imediatismo na busca pelo sucesso e felicidade, e que, no entanto, encontra-se
cada vez mais vazia e perdida.
As demandas aumentaram, as pressões cresceram e as expectativas são
cada vez maiores. Quando não damos conta de alcançar todos esses objetivos,
nos culpamos. A imposição da demanda social nos força à conformidade das
regras ditadas como padrões. No entanto, também desejamos a individualidade e
o direito de nos constituir com características próprias. Usamos as novas
tecnologias, os últimos conceitos de moda, mas quem somos sem o celular, sem
o vestido? Se nos despimos desses acessórios, apetrechos impostos por padrões
sociais, editoriais de moda, grupinho da escola, círculo de amigos, quem nos
resta? Em que estado esse indivíduo desnudo se encontra? Fragmentado?
Inteiro? Perdido? As consequências são drásticas e é necessário pensar sobre a
qualidade de vida atual e sobre as relações construídas (ou arruinadas) nesta
realidade. É preciso encontrar a reequilibração.
Ócio, tempo livre e trabalho: a fragilização do indivíduo e das relações na sociedade pós-moderna 504
Referências
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http://www.mariopersona.com.br/domenico.html
Ócio, tempo livre e trabalho: a fragilização do indivíduo e das relações na sociedade pós-moderna 506
23 Retomando a ideia de arcaico em
psicanálise: uma exigência dos
casos limites
507
do em evidência a atividade pulsional e o intrapsíquico, ora privilegiando as rela-
ções de objeto e o interpsíquico.
Enquanto a atividade pulsional está intimamente relacionada à sexualidade
infantil recalcada pelas vias edípicas ou pelas vias das pulsões de destruição, as
relações de objeto redirecionam o foco para a própria constituição do psiquismo
humano e a importância do ambiente como fator fundamental para que tal consti-
tuição aconteça. Nesse sentido, tanto a sexualidade infantil quanto o processo re-
lacional, aquele que permite a constituição do inconsciente e do Eu, buscam com-
preensões acerca do que é o mais arcaico na e da vida psíquica. Enquanto a pri-
meira fala de sexualidade, a segunda parece dela se distanciar.
Desse modo, as questões dos pacientes neuróticos advindas da angústia de
castração e do complexo edípico, que sempre nortearam e ainda norteiam as prá-
ticas psicanalíticas ocupadas com o que está pressuposto nas tópicas freudianas,
têm exigido olhares para os adoecimentos que evidenciam as questões narcísi-
cas, privilegiando um olhar sobre os primórdios da vida psíquica. Como, então,
discorrer sobre o arcaico em psicanálise?
Retomando a ideia de arcaico em psicanálise: uma exigência dos casos limites 509
aberta: há de se pensar teoricamente sobre o intrapsíquico mediado pelo pai e o
intrapsíquico mediado pela mãe. Há de se pensar que pai e mãe possuem fun-
ções diferenciadas na constituição da vida psíquica e na constituição das diferen-
ças dos sexos e das gerações, há de se pensar na sexualidade infantil fálica, e há
de se pensar no intrapsíquico em interação com o interpsíquico.
Um dos grandes teóricos dos casos limites nos diz que uma das característi-
cas que mais chama a atenção na descrição dos casos borderline está no fato de
que eles “aparentemente funcionam segundo um sistema duplo, parece que eles
têm uma espécie de dupla inscrição das experiências: numa se levam em conta a
realidade e o princípio da realidade, na outra não, é completamente delirante” (Gre-
en, 1976/2012, p. 10). As duas inscrições se apresentam em conjunto, e uma não
predomina sobre a outra. E continua: “se o princípio da realidade fosse o predomi-
nante, a parte delirante da personalidade seria apenas uma parte fantástica, ao
passo que se a parte delirante dominasse, não estaríamos diante de um borderli-
ne, mas de um psicótico” (Green, 1976/2012, p. 10).
Retomando a ideia de arcaico em psicanálise: uma exigência dos casos limites 511
Do intra e do interpsíquico ao atravessamento de paradigmas nos casos limites
Atravessamento de paradigmas é uma expressão usada por Figueiredo
(2009) para introduzir o que ele chama de teoria geral do cuidar de base psicanalíti-
ca. Atravessar o paradigma dominante que privilegia a sexualidade recalcada signi-
fica enfrentar o desafio teórico e epistemológico de fazer dialogar o “modelo estru-
tural-pulsional” (modelo freudiano) e o “modelo das relações de objeto” (expres-
sões usadas por Figueiredo, 2003).
Trata-se de uma clássica oposição entre relações de objeto e sexualidade,
onde cada um dos termos se associa a “específicos métodos de tratamento
(holding, regressão, ou, diferente deste, interpretação da transferência, atenção
privilegiada à contratransferência etc.), em contraste com outro (fala, associação
livre, linguagem, interpretação do desejo etc.)” (Celes, 2006, p. 3). Se em um mo-
delo é priorizada a teoria do recalque, no outro a priorização está focada nas ci-
sões, dissociações e evitações da constituição dos conflitos psíquicos.
Figueiredo (2009) trabalha no sentido de “conceber uma metapsicologia em
que o intersubjetivo encontre seu lugar no intrapsíquico. Trata-se de conceber um
mundo interno a partir da transferência e na medida das intervenções analíticas,
seja em termos de interpretação, seja em termos de manejos relacionais” (p. 188).
Fazer dialogar posicionamentos teóricos diferenciados em psicanálise tem aberto
espaço para as questões referentes aos processos de identificação e diferencia-
ção e à importância do outro na constituição do Eu.
Celes (2006) também busca possíveis articulações para fazer dialogar a teoria
da libido e a teoria das relações de objeto. E nesse sentido propõe
pensar no argumento segundo o qual a realização do prazer na concep-
ção da teoria libidinal refira-se à adequada utilização e adaptação do ob-
jeto e, portanto, não propriamente diga respeito à desimportância de rela-
ções com objetos na teoria da libido em Freud, como se costuma indicar
seu limite(Celes, 2006, p.11).
Retomando a ideia de arcaico em psicanálise: uma exigência dos casos limites 513
de. Trata-se de um processo que conjuga trauma e prazer. E ambos os aspectos
se referem a um arcaico.
Esse outro lugar está nas Conferências introdutórias XXIII (Freud, 1916-17/
1996) e no estudo clínico denominado O homem dos lobos (Freud, [1914]1918/
1996). Segundo Jorge (2008), a fantasia da cena primária, que diz da origem do in-
divíduo, bem como a da castração, que diz da origem da diferença sexual, e a da
sedução, que diz da origem da sexualidade, têm a ver com a origem da história in-
dividual do sujeito. O autor salienta, no entanto, que todas as fantasias originárias
Retomando a ideia de arcaico em psicanálise: uma exigência dos casos limites 515
bem como todas as fantasias têm como denominador comum o enigma da sexuali-
dade. As marcas mnêmicas carregam vestígios de um enigma: o da sexualidade –
origem do indivíduo, de sua diferença sexual e de seu modo de se relacionar se-
xualmente.
Retomando a ideia de que o arcaico, o nascimento psíquico, para Freud res-
ponde a duas ordens de realidade - a da presença pulsional e a da presença do
outro – Celes (2004) desenvolve o argumento de que o mais originário para Freud,
quando nos referimos ao nascimento, é o processo de reconhecimento que a mãe
faz de seu bebê e, também, a angústia do bebê, desencadeada pelo excesso de
excitação proveniente da experiência primeira de satisfação de uma necessidade
atendida pela presença do outro (a mãe).
A falta psíquica se expressa no corpo por intermédio da angústia, cuja função
é a de evidenciar uma exigência de trabalho para dar caminho à pulsão nascente
e ainda sem trânsito. À satisfação da necessidade associa-se um prazer, caracteri-
zado pelos primeiros traços mnêmicos de satisfação alcançada e anunciando os
primeiros esboços do psiquismo. À pulsão é dado um valor de ser uma coisa natu-
ralmente dada ou constituída desde o início a exigir trabalho. O autor nos lembra
a ideia freudiana de que o nascimento físico deixa o bebê numa condição de de-
samparo, de dependência absoluta.
O nascimento psíquico é, desse modo, medida de proteção contra a própria
morte, contra a quantidade e intensidade de excitações que invadem o corpo do
bebê. Diz ainda o autor: “a exigência da constituição psíquica para o trânsito da
pulsão evitando a angústia, revela uma ação de Eros, de vida: um esforço de liga-
ção” (Celes, 2004, p. 48). A mãe fornece, por meio de seus cuidados, uma delimi-
tação corporal e a constituição da sexualidade autoerótica. “O auto-erotismo deve
então ser entendido como uma situação secundária, sendo a originária a presença
do outro na satisfação” (p. 53).
Concluindo seu pensamento, o autor nos diz que o nascimento do eu e o nas-
cimento da sexualidade dizem do nascimento psíquico e estão profundamente li-
Se for verdade que o inconsciente está marcado pela inscrição dos me-
canismos psíquicos mais primitivos, próprios dos começos da vida psí-
quica, e que ignora o tempo, é razoável pensar que as estruturas edifica-
das sobre as inscrições originárias não se limitaram a superpor-se sobre
elas. Não se constituíram sobre o arcaico, senão contra ele. Tentaram
modificar seu funcionamento por meio da ligação, da simbolização, da
diferenciação etc. Em suma: leiamos o arcaico em posterioridade, única
maneira de nos referirmos a ele. O adivinharemos ou o deduziremos à
posteriori, por trás ou debaixo dos parapeitos que foram erigidos contra
sua potência ameaçadora. (Green, 1986, p. 737, grifos do autor, tradu-
ção nossa).
Retomando a ideia de arcaico em psicanálise: uma exigência dos casos limites 517
fusão entre o pulsional, o objeto e o eu. Mas podemos falar de um supereu arcai-
co, pois ele é o arcaico por excelência.
Segundo Green (1986), só podemos alcançar a relação do supereu com aqui-
lo que liga o eu do filho a seus pais por meio da função do ideal. O ideal é para o
supereu o que a pulsão é para o id. Para o autor, o par Supereu e ideal do eu tem
dado material para diversas distinções, mas parece existir um acordo sobre suas
relações: enquanto o Supereu é o herdeiro do complexo de Édipo, o ideal do eu é
o herdeiro do narcisismo primário.
O Supereu como conceito só aparecerá formalmente na obra freudiana em
seu texto O Eu e o Id (Freud, 1923/2007), embora possamos vê-lo claramente es-
boçado em seu texto À guisa de introdução ao narcisismo (Freud, 1914/2004).
Cabe ao Supereu zelar pela satisfação narcísica, atuando a partir do ideal do Eu.
Freud fala que o ideal do Eu foi imposto inicialmente a partir de fora e a satisfação
é obtida agora pela realização desse ideal. Sua não realização se transforma em
consciência culpada. O que inicialmente era medo de castigo dos pais ou medo
de perda do amor deles transforma-se num modo de relação com o mundo e, em
casos adoecidos, num modo de relação persecutória com o mundo.
Lazzarini (2011) afirma que a atualidade, inclusive as teóricas, trouxe à cena a
prevalência dos sentimentos de vergonha sobre os sentimentos de culpa. A auto-
ra nos diz que a expressão da vergonha na obra freudiana coloca em evidência a
insuficiência do sujeito e suas inseguranças, “pois o que o narcisismo vai reforçar
são as questões referentes à ilusão da união incondicional, à ilusão da perfeição,
mas também a perda do amor e do desamparo” (Lazzarini, 2011, p. 10). Nesse
contexto, o sentido da vergonha, para além de uma formação reativa secundária à
ação do recalcamento, traz as marcas de uma “emoção narcísica por excelência”
(p. 11) e, portanto, suscita defesas do sujeito que são “com frequência da ordem
da cisão, da recusa e do retraimento, mais do que da repressão” (p. 20).
Para Green (1986), os nexos estabelecidos entre Supereu e ideal do Eu mos-
tram que uma mesma instância toma sobre si dois tipos de relação com o objeto:
Retomando a ideia de arcaico em psicanálise: uma exigência dos casos limites 519
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523
sente em Joyce (Lacan, 1975/2008). Sugere-se que há mais de uma forma de con-
sideração do tempo em Lacan e que, portanto, seria equívoco considerar apenas
uma diagnóstica do tempo. Argumenta-se que há que se considerar a função diagnós-
tica do tempo como experiência da duração (hóra), como lógica da certeza (lo-
gos), como historicidade da palavra (epos) e como acontecência (kairós). Conclui-
se que o reconhecimento desta multiplicidade de incidência diagnósticas permite
refinar o diagnóstico psicanalítico para além da separação estrutural.
Christian Ingo Lenz Dunker, Daniela Sheinkman Chatelard e Márcia Cristina Maesso 524
va da passagem do tempo (diferente da desorientação temporal). A dimensão nar-
císica da experiência do tempo fica um pouco obscurecida pelo fato de que o mo-
delo lacaniano do narcisismo é um modelo essencialmente espacial ou topológi-
co. O modelo óptico sob o qual se erige a noção de estádio do espelho contém
apenas uma referência ao tempo: a experiência de antecipação. As patologias nar-
císicas do tempo dispõem-se, desta maneira, no espectro que vai da formação do
juízo ao ato. São lentificações, precipitações, suspensões ou irrealizações que se
verificam entre estes dois polos.
Mas entre estes exemplos de fracassos da função narcísica as ilusões de me-
mória são o fato clínico mais difícil de verificar. Aimée declara que havia lido um ar-
tigo de jornal no qual seus perseguidores afirmavam que matariam seu filho como
vingança por sua maledicência. Ela diz, com convicção, que havia visto uma foto-
grafia de sua casa natal junto da reportagem. Ocorre que Aimée não conseguia en-
contrar o referido artigo. Assim como no caso dos esquecimentos examinados em
Psicopatologia da Vida Cotidiana (Freud, 1901/1980), não se trata apenas de am-
nésia ou bloqueio bruto da função da memória, tal como se verificaria nas demên-
cias e demais síndromes neurológicas. Há esquecimento, mas há também lem-
brança de que o esquecimento está em curso, há a “sensação de que algo está
sendo esquecido”. Esta incerteza quanto ao fato, esta indeterminação de sua reali-
dade, levava Aimée a ir constantemente à sede do jornal para comprar números
atrasados. Ela estava convicta de sua lembrança (de que havia visto a foto de sua
casa no jornal), não obstante parecia não acreditar na realidade desta mesma lem-
brança. Sua casa fica entulhada de jornais e ela mantém a certeza de que havia
lido o artigo e visto a fotografia. Ora, na neurose esta divisão entre certeza e cren-
ça, esta separação entre saber e verdade, articula a própria transferência como
operação de um sujeito suposto ao saber (esquecido). Na psicose, ao contrário,
há uma atribuição de saber daí a dimensão de prova, de advertência ou de confir-
mação que os atos de Aimée tomam em relação à sua própria lembrança. Temos
aqui a segunda incidência do tempo na diagnóstica psicanalítica, a saber, o tempo
na transferência. Quando Lacan afirma e insiste que o manejo da transferência em
Christian Ingo Lenz Dunker, Daniela Sheinkman Chatelard e Márcia Cristina Maesso 526
de familiaridade e de respeito. Tanto as ilusões de memória quanto os sonhos pro-
tetores não são interpretações retrospectivas, mas argumentam em favor de que
o aparelho psíquico reconhece a presença (um ruído) ou a ausência (uma fotogra-
fia) e simultânea ou sucessivamente reconhece seu próprio reconhecimento, con-
ferindo-lhe realidade, familiaridade e temporalidade. A função de presentificação
nada mais é do que a articulação destas duas formas de reconhecimento. Para
que ela possa operar, induzindo a orientação temporal do sujeito, é importante
que ela mesma não se manifeste como função de reconhecimento. Daí que a fun-
ção de presentificação defina-se duplamente: (a) por seu alcance para o ato e
pelo efeito de certeza e (b) por sua dimensão de desconhecimento e pelo efeito
de crença.
O complexo fenômeno das ilusões de memória apresenta-se de forma reduzi-
da no caso dos sonhos que incorporam um aspecto da realidade, de tal forma a
manter o sono. Em vez de acordar com o toque do despertador, o sonhador o
transforma no apito de um trem, em vez de reagir ao safanão este se transforma
no balançar de um navio. Isso ocorre em sonhos que parecem ter uma longa dura-
ção significativa antes de se interromperem com o reconhecimento da realidade
própria do ruído. Na verdade, o ruído estava lá desde o início. O sonho cumpre
sua função de manter o sono até o ponto limite em que o ruído que estava no iní-
cio faz acordar, mas também dilata a experiência do tempo. Quando isso ocorre,
o que o sujeito se lembra é que o ruído estava no fim do sonho, não em seu início.
Ora, a sensação de longa duração é apenas um efeito retroativo da antecipação
do acordar. Ou seja, uma parte da realidade foi reconhecida, suprimida e substituí-
da por uma imagem, tendo por efeito uma inversão temporal da experiência subje-
tiva em relação à percepção objetiva. Considerando-se o isomorfismo entre sonho
e sintoma chegamos assim à quarta dimensão diagnóstica do tempo em Lacan: a
dimensão do sintoma. Nela o tempo é tomado, principalmente, como orientação,
sentido ou ainda como um nó de significação. Lembrando que Lacan traduz as no-
ções freudianas de progressão e de regressão em termos de movimentos discursi-
vos, podemos dizer que o sintoma representa um nó temporal, um compromisso
Christian Ingo Lenz Dunker, Daniela Sheinkman Chatelard e Márcia Cristina Maesso 528
da presença ou ausência, acrescida do sentido da transição entre um e outro, são
a condição elementar do tempo como alternância. Contudo estas são condições
do tempo como espacialização do objeto. Os exemplos de Lacan são muito típi-
cos a este respeito: o dia e a noite, os meteoros, o retorno nos planetas a uma
dada posição.
Este tipo de temporalidade aparece em apresentações da transferência nas
quais ela polariza-se entre o amor ou o ódio, entre a aceitação e a recusa. São
transferências que parecem duplicar a estrutura da demanda. Ela é típica no dis-
curso no qual se acentua a alternância entre a presença e a ausência do sintoma.
Pacientes que trazem um fenômeno psicossomático, certas depressões, bem
como situações próximas da toxicomania ou da erotomania, organizam transferên-
cias baseadas nesta alternância. Neste caso a relação de objeto e o próprio obje-
to encontra-se em sobreposição. São, portanto, teoricamente transferências em
estrutura de perversão. Não se trata aqui de uma estrutura perversa, mas de uma
transferência em estrutura de perversão. Baseamo-nos, para tanto na afirmação
de Lacan: “O fantasma na perversão é apelável, ele está no espaço, ele suspende,
não sei qual relação essencial; ele não é propriamente atemporal, ele está fora do
tempo.” (Lacan, 1958/2002, p. 232).
A situação seria inteiramente diferente e, portanto, dotada de valor diagnósti-
co diferencial, no caso da neurose:
A relação do sujeito ao tempo, na neurose, é justamente este algo do
qual se fala muito pouco e que é, entretanto, a própria base das relações
do sujeito com seu objeto ao nível do fantasma. Na neurose, o objeto se
carrega desta significação, que está para ser buscada no que chamo de
hora da verdade. O objeto aí está sempre na hora do antes, ou na hora
do depois. (Lacan, 1958/2002, p. 332)
Christian Ingo Lenz Dunker, Daniela Sheinkman Chatelard e Márcia Cristina Maesso 530
As voltas da demanda
Na perversão, o tempo aparece espacializado porque se trata da posição ter-
minal da fantasia. Na neurose, o tempo está articulado ao modo de relação e cons-
tituição dos objetos porque nele a temporalidade equivale aos processos de identi-
ficação, característicos da segunda fase da fantasia. Finalmente, na psicose, a ex-
periência intersubjetiva do tempo nos mostra a temporalidade como ela é, ou
seja, um conjunto fragmentário de experiências cujo efeito, e não a causa, é a uni-
dade do tempo (hóra).
A situação clínica que deve ser chamada para explicar este problema é justa-
mente aquela na qual a fantasia está ausente ou substituída por outra estrutura.
Este é, exatamente, o caso teórico representado pela psicose. Ora, a primeira
constatação que se pode fazer então é que a expressão três tempos da fantasia é
bastante aproximativa, tanto quanto a expressão os três tempos do Édipo. Trata-
se afinal de três modos de relação (constituição de objeto), postos em uma suces-
são baseada em uma condicionalidade lógica, não de três formas distintas de fa-
zer a experiência do tempo. Três tempos quer dizer aqui três modos. Em cada um
destes modos se poderiam reencontrar a temporalidade da fantasia, mas isso não
significa que o conjunto responda à mesma forma temporal.
Christian Ingo Lenz Dunker, Daniela Sheinkman Chatelard e Márcia Cristina Maesso 532
Joyce: o tempo da acontecência
Quando Joyce relata esta experiência de ter apanhado de dois colegas, de
tal maneira que ele teria saído de si, “como uma casca sai de uma fruta madura”
(Lacan, 1975/2008), temos um destes enclaves temporais de valor diagnóstico.
Ele diz que nada sentiu, nem dor, nem raiva, nem desejo de vingança nem humilha-
ção. Ou seja, falta o sentimento social, a integração subjetiva desta experiência
que fica assim indeterminada do ponto de vista temporal. Assim como o artigo
que Aimée lera sobre os perseguidores de seu filho, Joyce conseguia datar o acon-
tecimento. Este fazia parte de uma história capaz de ser narrada. Mas fazia parte
como uma espécie de indeterminação existencial: teria ocorrido? Teria sido imagi-
nado? Teria acreditado ter acontecido? Ele é o nome de um estranhamento, de
uma identificação e de uma ausência de si. É um nome, não um significante.
O tempo da acontecência pertence ao regime da epifania, ou seja, da revela-
ção imprevista de algo, da aparição de um não-antecipável (kayrós). Há uma epifa-
nia narcísica da qual o desencadeamento da psicose geralmente nos dá indícios.
Há uma epifania que Lacan chamou de “instante do fantasma”, ou seja, o momen-
to de descolamento entre a tela e a janela que esta recobre. Há, ainda, o momen-
to de epifania da transferência, quando esta se revela farsa, furo e equívoco do su-
jeito suposto saber.
Esperamos ter apontado como nestes quatro momentos distintos da obra de
Lacan o problema do tempo tem uma implicação diagnóstica constante, referida
ao narcisismo, à transferência, à fantasia e ao sintoma. Evitamos, propositadamen-
te, examinar aquele que poderia ser considerado o texto mais importante de La-
can sobre o tempo, a saber, o tempo lógico e a asserção da certeza antecipada.
Isso se deve tanto ao fato de que há bons comentários sobre este trabalho quanto
ao interesse em mostrar os limites deste modelo no interior da diagnóstica psica-
nalítica. Restaria, portanto, saber como estas diferentes formas de temporalidade,
assim ditas, não lógicas ou pós-lógicas (epos, kairós e hóra), se comportariam à
luz das teses do referido artigo.
Christian Ingo Lenz Dunker, Daniela Sheinkman Chatelard e Márcia Cristina Maesso 534
(re)corrente da saúde mental, de que o sintoma é o mal, a doença mental, localiza-
do espacialmente no indivíduo, de modo a ser tratado e eliminado com substân-
cias químicas.
Retomando Lacan (1932/1987), quando apresentou o caso Aimée, à medida
que eliminava as hipóteses diagnósticas acerca do delírio de sua paciente cabí-
veis no discurso psiquiátrico vigente, também afastava a hipótese orgânica, para
defender a tese de uma psicose que se exprime “através de sintomas psíquicos”.
Considerou que Aimée teve seu delírio suspenso não por causa do ato de atacar a
atriz tomada como perseguidora, mas devido à consequência do seu ato, pelo
qual teria atingido a si mesma, realizando a autopunição por meio do Outro da lei.
Ao abordar o delírio de Aimée, Lacan identificou em seus escritos ideias de perse-
guição com sentido de autoacusação, que são por ela explicados: Sua certeza so-
bre a existência dos perseguidores deve-se à punição eminente de uma “mãe ma-
ledicente, que não faz o que deve”. Lacan não deixou de mencionar o estado po-
tencial do delírio da mãe de Aimée, que eclodiu em função dos acontecimentos
com a filha depois do ato de agressão contra a atriz, tampouco deixou de assina-
lar “o problema da psicose com a situação familiar infantil” e a “frequência dos de-
lírios a dois, que reúnem mãe e filha, pai e filho” (Lacan,1932/1987, p. 249-287).
Partindo das sutilezas de Lacan em torno do caso Aimée, apresentadas na
tese de 1932, Allouch (1977) propôs lê-lo a partir dos conceitos que o próprio La-
can formulou posteriormente, fazendo uma análise minuciosa e exaustiva do
caso, na qual nos deteremos apenas pontualmente na questão da passagem ao
ato. Tomando Lacan (1967) no seminário O ato psicanalítico, a respeito da dupla
face do ato, que alude que há uma face de ato e uma face significante do ato, por-
tando uma dimensão linguageira, Allouch aponta a sincronia do fim do delírio de
Aimée, com a instalação de sua mãe na própria loucura, a partir da notícia recebi-
da pelos jornais do atentado cometido pela filha. Como Lacan, Allouch considera
a consequência do ato e não o ato em si na suspensão do delírio, não como auto-
punição, mas como advertência endereçada a sua mãe, de que ela era a mãe que
deveria ser punida, porque embora estivesse presente, faltou no tempo de socor-
Christian Ingo Lenz Dunker, Daniela Sheinkman Chatelard e Márcia Cristina Maesso 536
Nada, nadador!
Se não, que restará de ti, nadador?
Nada, nadador.
Christian Ingo Lenz Dunker, Daniela Sheinkman Chatelard e Márcia Cristina Maesso 538
que ela durará, é uma prática de palavrório" e mais adiante, prossegue: "Isto não
impede que a análise tenha conseqüências: ela diz alguma coisa". O que quer di-
zer: “dizer”?
“Dizer” tem algo a ver com o tempo. Este tempo que nodula-se ao dizer é o
tempo necessário para parir o ser; para que algo do ser aceda à fala, ao fala-ser. É
preciso tempo para que o "inconsciente articula-se daquilo que do ser vem ao di-
zer" (Lacan,1998/1953, p. 80). Podemos, assim, nos remeter à clínica, ao desejo
do analista. O desejo do analista implica escutar o que o tempo a-posteriori vivido
no presente traz como efeito retroativo da antecipação que traçou o destino do su-
jeito a partir da escrita deixada em seu ser de objeto do desejo do Outro.
Considerações finais
Assim, essa assunção falada da história do sujeito permite que ele “reordene
as contingências passadas dando-lhes o sentido das necessidades por vir” (La-
can, 1953/1998, p. 257). É preciso tempo! Lacan já nos dizia: é preciso tempo
para se chegar ao momento de concluir! Estamos falando do surgimento de uma
subjetividade que vai acontecendo segundo os tempos futuro anterior e a posterio-
ri.
O sujeito vive num sistema de discurso cuja dinâmica, em seu duplo movi-
mento sincrônico e diacrônico, remaneja a fixação de uma ficção mítica pela insta-
lação de um sintoma criado e fundido à fantasia. Desse mito resta um real cujo
operador simbólico, o funcionamento da linguagem, fará seu contraponto. O trau-
mático, por ser na origem aquilo que fere o ser, é também a percepção da diferen-
ça perante o Outro sexo. Nesse sentido, é o que a experiência da perda introduz e
engendra como consequência da alteridade do homo. A incidência de uma alteri-
dade introduz a singularidade, a diferença no ser, introduzindo-o no universo do
desejo. Assim, a estrutura que ordena o desencadeamento de uma história do vivi-
do, seja pela vertente da tragédia, seja pela vertente da comédia; uma ou outra
Christian Ingo Lenz Dunker, Daniela Sheinkman Chatelard e Márcia Cristina Maesso 540
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Christian Ingo Lenz Dunker, Daniela Sheinkman Chatelard e Márcia Cristina Maesso 542
25 Grupo como modalidade de
atendimento psicoterápico
na clínica-escola:
formação do aluno, efetividade no atendimento
Introdução
543
condições que ela nos proporciona. Há grupos grandes e grupos pequenos, aglo-
merados de pessoas e conjunto de pessoas.
Os primeiros passos
A literatura sobre grupos, de maneira geral, mas principalmente a proveniente
dos Estados Unidos da América do Norte, atribui a Joseph Pratt a primeira experiên-
cia grupoterápica no início do século XX. Precisamente em 1905, em uma enferma-
ria de hospital na cidade de Boston, com mais de 50 pacientes tuberculosos, Pratt
desenvolveu um programa de assistência aos doentes incapacitados de arcarem
com o custo de uma internação hospitalar. Ele os recebia em grupos de 15 a 20
participantes, uma vez por semana, com o propósito de promover o que ele deno-
minava de “reeducação emocional”. Seus grupos tinham caráter mais educativo.
Porém, e a despeito de não ser intencional, eles acabavam promovendo uma aju-
da para além da questão didática, pois o compartilhamento de experiências entre
os participantes os ajudava a não se sentirem isolados, o que acabava contribuin-
do para a melhora do paciente. Pratt, apesar de ser fisiologista e não psiquiatra,
atuou muito próximo a este ramo da medicina, porquanto seu trabalho se baseava
no que hoje podem ser considerados fatores terapêuticos (Bechelli & Santos,
2004) como a universalidade, a aceitação e a instilação de esperança. Pratt obser-
vava que a troca de informações entre os pacientes promovia sensíveis melhoras
no quadro clínico e situação geral da vida de cada um, o que demonstrava que o
tratamento grupal era extremamente proveitoso.
Apesar de sua atuação ter surtido um grande efeito junto aos pacientes, ele
Osório (2003) salienta que o mais promissor campo de atuação dos grupos
com o referencial dos grupos operativos seja o institucional, pois tal referencial teóri-
co enriquece com o aporte psicanalítico fazendo com que os grupos terapêuticos,
ou não, ganhem outra dimensão e ampliem o leque de suas possibilidades opera-
cionais na abordagem dos problemas institucionais decorrentes dos fatores huma-
nos.
Para Zimerman e Osório (1997), dos autores que tratam das questões grupais
a grande maioria se refere ao campo grupal como uma “galeria de espelhos”, a
qual é resultante de um intenso e recíproco jogo de interações. A psicoterapia de
grupo pode ser considerada uma modalidade que favorece o surgimento de víncu-
los entre os membros, assim como é propícia ao espelhamento. A questão do
campo grupal como “galeria de espelhos” se sobressai na psicoterapia de grupo.
Tal expressão, observam Zimerman e Osório, revela a ação terapêutica do grupo
que se processa através da possibilidade de cada um se mirar e se refletir em seu
companheiro e, especialmente, de poder reconhecer no outro os aspectos seus
que estão sendo negados em si próprio.
Considerações finais
Maurício S. Neubern
570
medida descaracterizados ou até irreconhecíveis, em outros excluídos e tidos
como interesse de pessoas ignorantes e pouco sérias (Carroy, 1991; De Martino,
1948/1999).
Tal cenário traz à tona a necessidade da reflexão sobre a clínica como uma
possibilidade relevante de estudo das experiências espirituais. Partindo-se de
uma ótica ethnopsy (Nathan, 2001; 2007; Neubern, 2012a, 2013), o presente traba-
lho procura contemplar uma nova possibilidade de estudo de tais experiências
que as considere a partir de suas próprias referências culturais, da especificidade
de suas exigências ontológicas e dos saberes e práticas que as constituem. Para
tanto, inicialmente, abordam-se aqui as contradições presentes nas tentativas de
estudo pela via moderna e, particularmente experimental, de estudo das experiên-
cias espirituais, onde o método científico, elevado à condição de revelador da reali-
dade por excelência, acaba por se constituir como um procedimento tirânico, por
tentar impor a tais processos as mesmas exigências ontológicas dos fenômenos
comumente estudados por seus procedimentos. Daí a ideia de uma pergunta im-
possibilitada de obter respostas, por remeter a uma perspectiva que situa as expe-
riências espirituais como objetos de estudo que deveriam obedecer às mesmas
condições metodológicas da ciência moderna. Em seguida, procura destacar
como uma proposta clínica ethnopsy pode contemplar com mais abrangência e
relevância a especificidade das experiências espirituais, destacando as atitudes
epistemológicas, os processos de construção de pensamento e as questões éti-
cas implicadas nesta proposta de pesquisa. Se tais experiências não respondem
aos dispositivos modernos tradicionais de pesquisa, a proposta é a de reconhecê-
las em suas próprias especificidades ontológicas e metodológicas, considerando
alguns princípios importantes, como levantados a seguir.
Primeiramente, as visões de seres espirituais, os rituais de comunicação com
tal mundo, as técnicas passadas de geração em geração, as mensagens transmiti-
das a certas pessoas, as regras de iniciação em tais práticas, dentre outros, são
concebidas como processos que remetem a saberes culturalmente situados que
Em segundo lugar, tais saberes são situados diante do pesquisador para que
este possa colocar suas próprias afirmações em risco, no sentido moderno do ter-
mo, num processo de recalcitrância, isto é, o jogo de forças que traz questiona-
mentos sobre a coerência das afirmações do pesquisador (Nathan, 2007). De fato,
o pesquisador representa uma classe de cientistas, uma tradição teórica e meto-
dológica e necessita fazer afirmações sobre aquilo que lhe compete para poder
desenvolver sua pesquisa, como a experiência subjetiva das pessoas (Neubern,
2012b; 2013). No entanto, ao mesmo tempo em que reconhece que suas constru-
ções não podem invadir outras alçadas, como as de domínio espiritual, para a
qual não possui nem formação, nem competência, ele compreende que afirmar
algo sobre os outros deve necessariamente implicar a existência de algo que cons-
tranja suas afirmações, que as submeta à crítica, em suma, à uma resistência que
o leve a refleti-las e construí-las de modo mais coerente. Do contrário, o mero ato
de tecer afirmações sobre os outros pode fazer com que sua relação fuja ao jogo
de forças preconizado pela ciência e se constitua como simples relação de poder,
na qual ele sabe sobre o outro, mas nada mais o sustenta nesse saber a não ser
A pesquisa clínica como alternativa para o estudo das experiências espirituais 572
sua autoridade. Daí o porquê de suas construções serem submetidas aos sujeitos
de sua pesquisa, discutidas com eles, negociadas em vários sentidos, não como
gesto de submissão a um outro externo, mas como condição que transforma tais
sujeitos em parceiros e favorece a ele, pesquisador, mais elementos de legitimida-
de sobre aquilo que afirma. Parte-se aqui do pressuposto segundo o qual a ex-
periência com espíritos, deuses, daimons e orixás deve ser muito melhor represen-
tada por aqueles que vivenciam na própria carne semelhantes contatos, que lhes
conhecem as nuances na própria vida do que com aqueles que os conhecem pro-
tegidos pela distância cautelosa do saber moderno.
A pesquisa clínica como alternativa para o estudo das experiências espirituais 574
(Monroe, 2008; Sharp, 2006), todos deveriam responder às exigências do método,
sob a pena de não terem sua existência reconhecida.
No tocante aos estudos das experiências espirituais, semelhante hegemonia
do método científico moderno e seus dispositivos, na qual sua racionalidade deve-
ria se impor sem piedade aos demais campos de estudo, ignorando suas lógicas
e peculiaridades nativas, redundou em duas grandes consequências. Por um
lado, buscavam-se abordar as experiências espirituais tendo como perguntas nor-
teadoras a existência ou não de espíritos, tal como relatado por médiuns e viden-
tes, ou a comprovação de fenômenos espirituais e extra-sensoriais como a clarivi-
dência, a materialização de espíritos, a telepatia, a ectoplasmia, a movimentação
de objetos, as possessões, para não se alongar mais a lista (Bensaude-Vincent &
Blondel, 2002; Carroy, 1991; Monroe, 2008; Sharp, 2006; Treitel, 2004). Nesse sen-
tido, houve diversas situações de constatações inicialmente favoráveis à compro-
vação dos fenômenos espirituais que, no entanto, foram seguidas de considerá-
veis e agressivas polêmicas nas comunidades científicas, que acabaram por não
favorecer à continuidade de tais investigações, como se deu, particularmente,
com célebre físico inglês William Crookes, cujos ousados estudos de materializa-
ção com a médium Florence Cook, além de despertarem críticas acirradas de
seus pares, não garantiram a continuidade em experimentos por parte de outros
pesquisadores (Ferreira, 2004; Méheust, 1999). Semelhante tentativa, posterior-
mente transformada na parapsicologia, contou com adeptos renomados (como
William Crookes, William James, Cesare Lombroso e Frederick Zölner) e contradi-
tores não menos ilustres (como Wilhelm Wundt, Von Hartmman e Michael Fara-
day), mas não pôde evitar um considerável processo de marginalização nas comu-
nidades científicas, principalmente no tocante a disciplinas como a Psicologia, na
qual o policiamento contrário a tal interesse atingiu proporções muito elevadas
(Méheust, 1999; Neubern, 2013).
Por outro lado, houve propostas de teor reducionista nas quais as experiências
espirituais foram, de antemão, concebidas a partir de alguma dimensão já coloni-
zada pela ciência, como os processos cognitivos e a psicopatologia, tal como se
A pesquisa clínica como alternativa para o estudo das experiências espirituais 576
facetas acabaram por se distanciar cada vez mais das possibilidades de com-
preensão do pesquisador. A visão de um ser espiritual, portanto, comum em dife-
rentes culturas, não era compreendida dentro de um conjunto de indagações que
remetessem a sua realidade numa materialidade cultural que lhe fosse própria
(Nathan, 1999), mas como algo inexistente em termos ontológicos que talvez pu-
desse ser concebido apenas em termos de imaginação, produção inconsciente ou
alucinação. Mesmo a particularidade dos sentidos simbólicos, tão ressaltados por
William James (1902/1987), frequentemente se viu esmagada pela imposição nar-
rativa dos pesquisadores que lhes atribuíam significados relevantes às suas teorias,
e não ao mundo das pessoas que vivenciavam tais experiências (Neubern, 2013).
Não seria exagero afirmar que, em função da própria constituição do paradig-
ma moderno dominante (Santos, 2000), as investigações que tomaram por base a
existência dos seres e experiências espirituais igualando-os à realidade dos obje-
tos materiais talvez já estivessem fadadas a um estrondoso fracasso. Isso porque,
a partir do século XIX, as tentativas de diálogo entre a racionalidade científica e a
dimensão espiritual já estavam perpassadas em larga medida por um princípio bá-
sico enraizado no paradigma moderno: a solidão do homem moderno (Nathan,
1999). Ele seria a única potência inteligente e explicativa na relação com a nature-
za, num mundo desencantado por ser desvencilhado de seres invisíveis como deu-
ses, santos e espíritos. Não que não existisse um outro mundo espiritual, mas
que, segundo o próprio Wundt (citado em De Martino, 1948/1999), o mundo gran-
dioso e sublime da gravidade, da ação da luz, da constituição psico-fisica do ser
humano, perpassado pelo pensamento de gênios como Newton, Leibnitz e Kant,
era o que de fato deveria ser alvo do interesse dos homens sérios, posto que seria
capaz de responder adequadamente ao rigor das indagações científicas. A puerili-
dade e a superstição ligadas à experiência de médiuns e mágicos é o que deveria
ocupar a mente de pessoas vulgares e quase sempre histéricas, ou ainda de pes-
quisadores equivocados como Charle Richet.
O impacto de semelhantes processos na Psicologia apontava para um cami-
nho pouco favorável de pesquisa, ora marcado por profundas distorções reducio-
A pesquisa clínica como alternativa para o estudo das experiências espirituais 578
Contudo, embora as estratégias de desqualificação sejam constituintes cen-
trais da ciência moderna (Stengers, 1995), elas não deixaram de se configurar
como elementos problemáticos no estudo das experiências espirituais. A simples
consideração de um campo como algo pueril e digno de pessoas vulgares, noção
que se tornou dominante entre a maioria dos psicólogos, já implicou problemas
epistemológicos e éticos de dificuldades muito acentuadas para tal proposta de
pesquisa. Isto porque se um campo é concebido de antemão em torno de signifi-
cados como pueril, histérico e vulgar, há uma imposição narrativa da parte dos
pesquisadores sobre seus fenômenos que dificilmente poderão acessar a visibili-
dade de outros aspectos desse campo que estejam fora de uma estrutura prévia
de significados. E a questão não se restringe à produção de significados, uma vez
que estes proporcionam a exclusão de facetas da experiência espiritual que po-
dem ser relevantes para sua compreensão, mas que acabam por ser desprezadas
pela pesquisa, ficando de fora de importantes momentos da construção de pensa-
mento do pesquisador. Aventurar-se em tal campo de pesquisa arriscaria situar o
psicólogo numa cruzada impossível, como um novo Don Quixote moderno, ou até
no ostracismo frente a seus colegas, oscilando entre o ridículo e a marginalidade.
A pesquisa clínica como alternativa para o estudo das experiências espirituais 580
çam frente às diferentes facetas da realidade, da construção de seu pensamento
que as acompanhe e de certos aspectos éticos aí implicados.
_______________
(2) Assim como a ciência moderna possui seus seres (como o elétron, a molécula de NaCl, a gravi-
dade), que existem a partir de dispositivos específicos, os sistemas espirituais também possu-
em os seus, a partir de dispositivos específicos.
A pesquisa clínica como alternativa para o estudo das experiências espirituais 582
nais e éticos, que podem ser facilmente notados nas denúncias veiculadas aos
conselhos profissionais.
A relação entre cético e diplomata deve ser compreendida como a interação
entre duas atitudes epistemológicas que se caracterizam como as faces da mes-
ma moeda, mas jamais como uma solução de compromisso. Isso porque o teor
conflituoso desta relação aponta muito mais para caminhos e possibilidades do
que para soluções prontas que, pelo conforto desejado por muitos pesquisado-
res, possam resolver e liquidar o problema, como também a reflexão a ele integra-
da. O encontro entre aquele que representa um saber laico (ao menos pretensa-
mente laico, posto que possui seus próprios deuses!) que se aventura por um
mundo desencantado e aquele que vem, muita vezes impactado, de um mundo
de intenso comércio com a espiritualidade não costuma ser tão simples, nem des-
provido de desencontros e problemas. Contudo, para que esse caminho de pes-
quisa se torne possível, concebe-se que a delimitação dos papéis de cada um es-
teja intimamente atrelada aos modos como as realidades às quais se endereçam
são concebidas e sob quais condições devem ser abordadas. Se a tradução não
é aqui aceita, tal como entre os modernos, e se a colonização se configura neces-
sariamente como um risco, tais papéis precisam ser delimitados e concretizados a
partir de propostas específicas de construção do pensamento, tais como a inter-
pretação e a recalcitrância.
Esse duplicidade de atitudes, por sua vez, apresenta dois grandes problemas
em termos da própria relação com a realidade. Considera-se, na sequência ao pio-
neirismo de William James (1902/1987), que a realidade contemplada pelo cético
seja a de uma produção simbólica e subjetiva a respeito da experiência espiritual,
algo sobre o qual ele pode teorizar e exercer seu métier de pesquisa com certa de-
senvoltura. A questão aqui é a de como o sujeito produz subjetividade (Gonzalez
Rey, 2007), ou seja, como subjetiva suas experiências espirituais em termos emo-
A pesquisa clínica como alternativa para o estudo das experiências espirituais 584
samento de sua pesquisa. Não é sem razões que, não raro, certas comunidades
religiosas e espiritualistas não aceitam mais receber pesquisadores por se senti-
rem traídas por suas desrespeitosas conclusões e por não terem recebido deles
uma devolutiva que envolvesse o diálogo aberto, franco e face-a-face sobre o que
ele pensou a respeito de seu íntimo convívio em tais grupos (Neubern, 2013).
Daí que a figura do cético, por si só, é insuficiente para tal empreitada e pode
mesmo se degenerar no risco de se tornar dogmática, doutrinária e resistente a
tudo aquilo que não seja contemplado pela frieza de seu olhar teórico, que é ca-
paz de hipertrofiar o alcance de suas categorias centrais a ponto de embeber-se
da pretensão de se estender sobre zonas de sentido de realidades sobre as quais
nada pode explicar. Os símbolos, portanto, como a própria subjetividade em sua
diversidade de produções, não esgotam, nem explicam por completo a complexi-
dade das experiências espirituais comumente vividas pelas pessoas em seus coti-
dianos, assim como a figura do cético, enquanto atitude epistemológica, não é su-
ficiente para o estudo de tais experiências.
Semelhante cenário coloca o pesquisador num grande dilema. Isto porque
ele não é capaz de tecer afirmações sobre o que seja um ser espiritual, por exem-
plo, nem pode reduzi-lo a dimensões com as quais já esteja familiarizado. Ele tam-
bém não pode explicar a dimensão numinosa ou sagrada da experiência espiritual
(Otto, 1917/2007), que, por sua própria ontologia, não é apreensível pelas pala-
vras, nem se deixa domar pelos saberes e desejos humanos. Diante de uma pes-
soa que relata uma indefinível vivência de êxtase no encontro com Nossa Senhora
(Neubern, 2013), encontro este profundamente marcado por essa dimensão sagra-
da, resta-lhe apenas conceber os impactos simbólicos e vividos sobre a vida des-
sa pessoa o que, mesmo assim, possui suas limitações, como acima destacado.
Caso permaneça atrelado à condição do cético, ele pode se sentir destituído da
condição do herói moderno (Santos, 2000), aquele que, com seu saber, poderia se
colocar na postura pretensiosa de conhecer melhor e criticar, com um saber supe-
rior a qualquer outro. O campo da espiritualidade pode, desse modo, parecer-lhe
inóspito a ponto de desinteressar-lhe por completo enquanto cientista, seja por-
A pesquisa clínica como alternativa para o estudo das experiências espirituais 586
corpo de uma pessoa por um espírito ou deus (Heusch, 1993) e que é apreciado
em diferentes comunidades científicas que o adotam e lhe conferem uma impor-
tância considerável como referência explicativa. O que a conversação recalcitran-
te com os representantes de muitos grupos religiosos mostra (Neubern, 2013), por
outro lado, é que tal termo, tão central na cosmovisão de muitos pesquisadores,
de onde podem mesmo emanar outros conceitos e explicações, parece inadequa-
do para grande parte dos processos de comunicação espiritual que envolvem o
transe corporalmente uma vez que supõe uma imposição que não considera o li-
vre-arbítrio da pessoa. Para eles, a ideia de uma posse poderia se aplicar apenas
em alguns casos que, mesmo assim, atingem esse nível de imposição apenas por
ter havido, inicialmente, uma espécie de consentimento da pessoa possuída. As-
sim, o pesquisador pode se dar conta de que o que é um termo chave para ele
nada mais é do que uma variação muito específica da experiência espiritual no
seio de um largo espectro de transes, nos quais a participação da pessoa precisa
ser levada em consideração como um dos elementos fundamentais de tais proces-
sos. E, sem tal compreensão sobre o que tal termo quer dizer para os sujeitos no
seio de um contexto sociocultural específico, ele poderia facilmente distorcer suas
interpretações referentes às próprias produções de sentido subjetivo das pessoas
do grupo que vivenciam as diferentes experiências de contato espiritual por meio
do transe.
Daí que a recalcitrância exige que a voz dos sujeitos, que confrontam e discu-
tem com os pesquisadores em torno de assuntos como a possessão, seja tomada
como representante de um saber espiritual, e não apenas como a opinião de um
indivíduo (Nathan, 2001, 2007). A compreensão do termo possessão, desse
modo, não se restringe à produção subjetiva particular de um sujeito, mas envolve
e abrange a cosmovisão partilhada na subjetividade social do grupo. Por tal ra-
zão, o pesquisador necessita buscar outras fontes de indicadores além dos indiví-
duos, como a conversação com as demais pessoas que experimentam o transe, a
leitura de textos sagrados (quando existem), a frequência a práticas e rituais e a
supervisão de especialistas competentes nativos do contexto que lhe proporcio-
A pesquisa clínica como alternativa para o estudo das experiências espirituais 588
por razões de poder, como muitas vezes ocorre com o sigilo profissional que pro-
tege mais o poder do profissional do que a cidadania do usuário (Nathan & Zadje,
2012). Há aqui, no entanto, uma proposta de democratização do espaço relacio-
nal que preconiza a busca de uma confiabilidade no contrato clínico, na qual os
segredos tendem a ser esvaziados em nome de um diálogo aberto entre saberes
e protagonistas que ocupam posições diferentes em termos de papel, mas não de
hierarquia (Nathan & Zajde, 2012). Se o pesquisador é o representante de um sa-
ber moderno, ele o coloca em pauta para a discussão, refletindo em conjunto com
as demais pessoas sobre a implicação deste saber em suas vidas, que relações
cria, que consequências podem dele advir; ao mesmo tempo, o saber espiritual
também é colocado em pauta, como portador de uma cosmovisão e legitimidades
próprias, também ouvido atentamente em suas especificidades técnicas e teóri-
cas, nas realidades que gera na vida das pessoas, no que significa esse contato
com o mundo invisível. Como ambos os saberes tomam assento nessa conversa-
ção, há uma espécie de parlamento (Latour, 1996; Nathan, 2001) em que os sabe-
res, com os respectivos seres que neles ganham vida, possuem voz na negocia-
ção de sentido a respeito daquilo que se discute, que influi diretamente na vida
das pessoas implicadas.
O saber espiritual em questão não é visto como algo a ser um dia decifrado
pela ciência moderna, como um campo sobre a qual esta terá, por fim, a última pa-
lavra em termos do que de fato ali tem lugar: ele é visto como um saber que pos-
sui dispositivos e maquinários próprios, capazes de fazer emergir seus próprios se-
res, com rigores técnicos, éticos e ideias particulares que, além de fazerem senti-
do para seus protagonistas, possuem uma forma própria de acessar e lidar com a
realidade (Nathan, 2001, 2007). Essa maneira de levar o saber dos outros a sério,
pode ser um caminho para sanar ou ao menos flexibilizar incômodas contradições
da pesquisa e do métier clínicos, como os problemas de alteridade e democracia,
sempre presentes na relação com os usuários. Como seria possível, por exemplo,
considerar-se o tema da alteridade numa relação se é o pesquisador, enquanto re-
presentante moderno, quem sabe sobre o outro, quem possui a última e mais fide-
A pesquisa clínica como alternativa para o estudo das experiências espirituais 590
flito com uma polifonia presente nas raízes culturais de muitos pesquisadores, por
colocar a ciência moderna como a melhor ou até mesmo a única alternativa pen-
sante sobre o mundo, a vida e o destino das pessoas. Entrar em contato com tais
experiências, presentes no seio de suas próprias origens culturais e sociais, con-
siste na perspectiva aqui adotada, num caminho fundamental, um caminho que o
coloca e o re-integra ao próprio ethos e o coloca disponível para uma relação
mais aprofundada com o outro, uma relação onde existe uma possibilidade distin-
ta de compartilhamento, posto que é conhecida e familiar a ambos os implicados
(Neubern, 2012a, 2013). Contraria-se, assim, que o pensamento de Wundt, ainda
inspirador de muitos psicólogos na atualidade, para quem “psicologia e religião
não se misturam”, cede lugar para a adoção de uma postura na qual a espirituali-
dade, assim como outros temas presentes em sua subjetivação (como a sexualida-
de, o gênero, a classe social, a etnia) pode se tornar um dos pontos diferenciais
da sensibilidade clínica, um dos momentos de sua experiência que também esteja
na pauta da relação a se construir com o outro, sem romper com seu papel de
pesquisador.
A questão, evidentemente, não é a de uma imposição ditatorial na qual os
pesquisadores de tais culturas obrigatoriamente devessem cultivar sua espirituali-
dade, religando-se com suas raízes culturais de modo a assumi-las como missão
em suas vidas de cientistas. Não se questiona a proposta de liberdade e emanci-
pação do pesquisador nesse sentido. Contudo, concebe-se que o problema é o
questionamento de outra forma de ditadura que se impõe sob o pretexto de um
conhecimento superior aos outros, sob uma perspectiva de profunda desqualifica-
ção dos saberes culturais presentes na própria subjetividade social de muitos pes-
quisadores, que abrange seus diferentes cenários de inserção social, como as uni-
versidades, centros de pesquisa e laboratórios. O diálogo e a integração das expe-
riências de sua própria cultura não devem, a priori, ser concebidos como possí-
veis entraves à pesquisa, como escolhos a serem necessariamente evitados, mas
como matérias primas relevantes que dizem do lugar humano deste pesquisador
face aos outros e aponta para suas possibilidades de estabelecer relações e com-
A pesquisa clínica como alternativa para o estudo das experiências espirituais 592
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596
Feminismos e gênero
O feminismo pode ser entendido como uma filosofia que luta para que ho-
mens e mulheres sejam reconhecidos como equivalentes nas suas diferenças, a
partir de problematizações acerca das relações de gênero (Scott, 1995). Como mo-
vimento social, o feminismo surge no contexto das ideias iluministas, das ideias
das Revoluções Francesa e Americana. Mobilizou mulheres de muitos países da
Europa, dos Estados Unidos e depois de alguns países da América Latina. Em um
primeiro momento o feminismo se espalhou em torno da demanda por direitos so-
ciais e políticos, tendo seu auge na luta sufragista. Essa etapa foi cunhada de “pri-
meira onda dos feminismos”. O movimento teve um período de relativa desmobili-
zação e ressurgiu com nova força e potencial reflexivo nos anos de 1960 (Costa,
2006; Medeiros, 2007; Narvaz, 2005, 2009; Narvaz & Koller, 2006).
O ressurgimento do feminismo nesse período traz em sua bandeira de luta a
afirmação de que o “pessoal é político”. Esta afirmação significa que a vida pessoal
reflete valores e dimensões da cultura, assim como esses valores e a cultura são
impactados pelas experiências de vida das pessoas. Questões até então vistas e
tratadas como específicas do mundo privado, ou seja, relacionadas à vida domés-
tica, familiar e sexual, e identificadas com o pessoal, foram trazidas para o espaço
da discussão política e social. A ideia central era apontar o caráter político da
opressão sofrida pelas mulheres que a vivenciavam de forma isolada e individuali-
zada (Costa, 2006; Evans, Kincade & Seem, 2011). Esse processo é conhecido
como a “segunda onda dos feminismos”.
Cabe ressaltar que não existe apenas um feminismo. Os feminismos atuais
problematizam múltiplos pontos de vista, o que torna mais correto pensar em femi-
nismos, no plural. Movimento social cuja proposta inicial foi desvelar o sexismo e
os impactos da opressão sexista, os feminismos foram geradores de reflexões so-
bre a divisão sexual de papéis e atribuições sociais de homens e mulheres. As lu-
tas dos movimentos feministas ocidentais têm sido fundamentais para dar visibili-
dade a essas discussões. Problematizam as relações entre homens e mulheres,
Diniz (2003) aponta que a crença de que papéis de gênero são derivados de
características biológicas resulta na construção de uma “camisa de força” (p. 19)
que aprisiona homens e mulheres a um repertório restrito de atitudes, expectati-
vas e comportamentos. A generificação da identidade e da experiência relacional
humana precisa, portanto, ser problematizada. A autora ressalta que a psicologia,
e de modo especial a psicologia clínica como ciência que trabalha com a saúde
mental e com o sofrimento psíquico, não pode prescindir dessas reflexões e consi-
derações nas suas teorizações e práticas.
Terapias feministas
Worell e Johnson (2001) apontam seis princípios básicos que são interpreta-
dos de acordo com referencial teórico adotado e, assim, aplicados na prática. São
eles:
Ser terapeuta feminista não implica apenas em usar técnicas feministas. O fun-
damental é a postura e a reflexão complexa acerca da realidade no sentido de se-
guir as filosofias da terapia feminista.
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Francisco Martins
Alexandre Costa Neto
617
pathicas são representadas pelos verbos substantivados querer, dever, permitir, ne-
cessitar e poder, e se apresentam tanto na interlocução quanto na intralocução.
O objetivo deste trabalho é fornecer uma visão panorâmica e introdutória do
pensamento de Viktor Von Weizsäcker. Embora pouco conhecido fora da Alema-
nha, suas contribuições para a clínica justificam uma retomada de suas ideias de
forma a torná-las mais acessíveis para os leitores em português. Dentre elas desta-
cam-se a sua concepção da saúde e do adoecer, a valorização da noção pathica
no homem e no seu círculo da estrutura exemplificada pelas categorias pathicas.
Weizsäcker (1886-1957) nasceu em Stuttgart, Alemanha, e morreu em Heidel-
berg, exercendo a cátedra de professor emérito de clínica médica geral da Univer-
sidade de Heidelberg, onde chefiou o Departamento de Neurologia. Influenciado
pela pesquisa em neurologia e filosofia, teve o seu legado marcado por uma luta
para, além do rigor científico, compreender o homem na sua relação com a saúde
e a doença. Essa busca o levou a considerar a moral como uma questão es-
sencial para entender a pessoa, dando uma dimensão antropológica e fenomeno-
lógica às suas concepções de adoecimento. Mais ainda, esboçou e iniciou uma
teoria geral da clínica.
Precursor da medicina antropológica e da medicina psicossomática,
Weizsäcker além da sua formação em neurologia, estudou filosofia com Rickert,
Windelband, ambos da escola neo-kantiana de Baden, e Husserl, dos quais rece-
beu influências sobre o seu pensamento no que se refere à clínica e ao adoecer.
Foi um dos primeiros professores na Alemanha a dar na academia atenção às ideias
de Freud (Binger, 1957) e vemos sua contribuição como essencial para uma formu-
lação renovada daquilo que entendemos como sendo o Supereu.
Clínica e ciência
Weizsäcker teve como objetivo geral de sua obra a introdução da pessoa na
clínica médica e psicológica. Dentre as suas obras destacam-se: “O Círculo da Es-
trutura” (1940) e “Pathosofia” (1956), nas quais tenta estabelecer uma filosofia do
Esses cinco verbos querer (wollen), dever (müssen), poder (können), dever mo-
ral (sollen) e poder moral (dürfen) têm na frase uma função modalizadora, que nas
línguas latinas podem ser condensados em três verbos: querer (wollen), poder
(können e dürfen) e dever (müssen e sollen). Isso ocorre, pois na língua portuguesa
os verbos poder e dever condensam tanto o sentido deôntico, como o epistêmi-
co. Caso queiramos uma sinonímia poderíamos apontar o wolllen como o querer
como a vontade voluntária; o müssen como necessitar; sollen como dever ser; dür-
fen como permitir ou ousar; können como conseguir. Weizsäcker descreve um pen-
tagrama formado por esses verbos no qual vemos aparecer um homem enquanto
pessoa singular, como um ente insuficiente e incompleto, defeituoso e indefeso
(Dörr, 2006). Isto é, um sujeito potencialmente sempre em mutação e, portanto,
Esse teorização é relevante uma vez que supõe uma mente que é dialética e
que decide, mesmo que nem sempre de maneira consciente, mas que ao mesmo
tempo está sujeita a aspectos intra e intersubjetivos tais quais moral, necessida-
de, obrigação, capacidade, vontade, permissão.
Assim, a clínica deve ser uma clínica do contato ancorada no sentir. Dizer não
à doença não faz sentido, uma vez que ela é uma tentativa de autocura. Dizemos
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(1) “Ich angere mich, wenn ich etwas will, was ich nicht kann, wenn ich etwas soll, was ich nicht will,
und am maisten, wenn ich etwas wollen soll, was ich nicht kann, oder nicht darf” (Weizsäcker,
1947/2008, p. 96).
Conclusão
Para Weizsäcker (1962), pathico é “a faceta da existência biológica na qual
esta existência não é dada como algo que é, mas sim que é confiado à decisão”
(p. 31). Ou seja, toda e qualquer decisão é eminentemente pathica e é tomada a
partir de um eu quero, eu posso, eu devo. É a decisão tomada a partir dessas ca-
tegorias que vai propiciar uma ordem nova e o desaparecimento do estado de ten-
são característico da ordem antiga, da situação de crise. Pathico implica questões
como propósito, previsão, surpresa, perigo, ameaça, segurança, arbitrariedade e
liberdade, decisão e limitação (Weizsäcker, 1962). São questões concernentes ao
sofrer, à vida humana como tal, envolvendo o querer, o poder, o dever ser, o permi-
tir-se, o necessitar e se manifestam tanto no aspecto físico como no psíquico. Por-
tanto, para Weizsäcker (1947/1987) as categorias pathicas não são algo que se
tem, mas sim algo do qual se padece (erleidet).
Este trabalho busca valorizar a extensa produção de Weizsäcker, que muito ca-
rece de traduções e reconhecimento fora da Alemanha. Assim, nos pautamos por
traçar algumas ideias centrais ao pensar clínico proposto pelo autor. Nele desta-
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diadora. No pensamento grego, símbolo (бιμβολον) é tomado como sinal de reco-
nhecimento entre, por exemplo, membros de uma mesma seita, formado pelas duas
metades de um objeto partido, que se aproximam, constituindo um par, ligados
por um pacto de aliança, no qual reconhecer um campo reenvia a outro que é alia-
do. Nessa noção tem-se a concepção de que é a ligação que faz o sentido.
Na linguagem, o ato de enunciação traz um mundo de forças que afeta aquele
que fala, aquele a quem se endereça e aquele de quem falamos. A palavra se dá e
se toma, ela é ligada à promessa (dom) que obriga, segundo a fórmula de Marcel
Mauss, e introduz essa forma particular de ligação que inclui os modos de dinami-
zação do tempo e da experiência humana (Delaunay, 1980).
O ritmo e a Gestaltung
O nascimento da consciência estética como fundamento de toda simbólica
já é apontado por Nietzsche no Nascimento da Tragédia, obra na qual tenta des-
crever o surgimento do espírito enquanto metáfora de qualquer outra coisa, um
O sentir e a simbolização
Seguindo a linha de Cassirer, Langer (1941/1989) apresenta a noção de sim-
bolização como uma “nova chave” na discussão filosófica. Situa a simbolização
como objeto do pensamento filosófico investigando as raízes do pensar reflexivo,
objeto extensivo e matéria da filosofia, bem como da compreensão da constru-
ção do conhecimento humano.
Essa proposição coloca de forma central para a epistemologia a questão da
origem do conhecimento, que relaciona dimensões muitas vezes não abordadas
de forma intercambiável pela filosofia e pela psicologia. Aponta-se, aqui, as rela-
ções entre o sentir (os registros sensoriais) e o pensar (o registro conceitual).
A direção apresentada na reflexão de Langer (1941/1989) leva a uma posição
conceitual que tem ressonância na discussão lógica e epistemológica sobre a ori-
gem do conhecimento. Nessa perspectiva, os dados sensoriais são primariamen-
te simbólicos, no sentido de que a mente tende a dar uma organização aos dados
Distribuição gratuita.
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