Um Estudo Psicanalítico Sobre A Obesidade Rodrigo Tavora Cesar Frohlich Rosa
Um Estudo Psicanalítico Sobre A Obesidade Rodrigo Tavora Cesar Frohlich Rosa
Um Estudo Psicanalítico Sobre A Obesidade Rodrigo Tavora Cesar Frohlich Rosa
PUC-SP
SÃO PAULO
2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
SÃO PAULO
2011
Banca Examinadora
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DEDICATÓRIA
À minha mãe, Ana Carolina, que foi a principal responsável por despertar a
minha curiosidade intelectual, sendo uma presença constante em todas as
épocas do meu crescimento, nunca faltando em seu papel de mãe e modelo
como pessoa.
Ao meu pai, Vicente, que através de sua atuação discreta nunca permitiu que
seu filho fraquejasse nos diversos momentos difíceis, desde o início da vida até
o término da escrita de uma dissertação de mestrado.
RESUMO
INTRODUÇÃO
podem existir para uma doença, coexistir, como conduzir uma pesquisa
científica sobre o assunto sem limitar a compreensão que já existe sobre o
tema? Tal questionamento fez com que esta escrita, com a pesquisa sobre o
assunto, fosse por muito tempo lenta e difusa, enquanto tentava abarcar
diversos campos do conhecimento, desembocando às vezes num beco sem
saída. A limitação de quanto se pode pesquisar e compreender sobre qualquer
assunto, particularmente este, que comporta diversas vertentes de estudo,
obriga que, em determinado momento, é necessário fazer uma escolha e
delimitar claramente o objetivo da pesquisa.
Ao pensar sobre tal dilema, uma metáfora surgiu-me na mente: a de
comparar a obesidade com um tipo específico de formação vegetal, dando
origem assim ao que denomino de ―metáfora da raiz‖. Existem diversos tipos de
plantas, sendo que algumas possuem uma raiz chamada de fasciculada,
composta de ramos de igual tamanho que se unem na base da planta. Quem
observar a planta verá só ela, mas se escavar o solo encontrará uma massa de
raízes de igual tamanho, geralmente três, que se entrelaçam e acabam por
nutrir o produto final, a planta. Agora, se em vez de pesquisador fosse eu um
jardineiro, possivelmente escolheria uma das três raízes para dispensar-lhe
maior cuidado, sem descuidar das outras duas. Resolvi então tratar o tema da
obesidade com base nesse aspecto porque não acredito que esta ou aquela
vertente contenha a explicação, mas sim que as três, histórico-cultural,
biológico-médica e psicológica sejam raízes de igual tamanho que contribuem
para o fenômeno na mesma proporção.
Deste modo surgiu um texto que abordará as três principais vertentes do
estudo da obesidade, todavia com clara predileção pelo aspecto psicológico da
patologia, com a ressalva de que os outros dois aspectos não são, de forma
alguma, considerados menores, mas sim que não cabe, nos limites de uma
dissertação de mestrado, tentar conduzir um estudo aprofundado das três
vertentes. Tal empreitada demandaria não apenas uma dissertação, e ouso
dizer que nem mesmo uma tese, mas na realidade, livros e mais livros sobre o
assunto, pois o material sobre cada tópico é extremamente vasto.
Ainda assim, ao escolher o estudo da obesidade pela vertente
psicológica, encontro outra dificuldade, que é delimitar meu estudo dentro da
Psicologia, também um vasto campo. Como opção teórica e como parte de
11
minha prática clínica escolhi a Psicanálise, com especial atenção para a obra
freudiana – e se o tema já é por demais complexo, acredito que ele se tornaria
ainda mais trabalhoso, senão indecifrável, caso tentasse abordá-lo através de
várias escolas psicanalíticas. Talvez tal abordagem fosse viável em uma tese
de doutorado, possível via de pesquisa futura.
Tendo escolhido a Psicanálise freudiana como leitura teórica principal
para este estudo, acreditava que meus dilemas perante a pesquisa haviam
terminado, mas, na verdade, estavam por começar. Ao consultar três
dicionários de Psicanálise: de Laplanche (2001)1, de Roudinesco (1998)2 e o de
Mijolla (2010)3, não encontrei em nenhum deles uma definição para a palavra
―corpo‖, termo cujo estudo é essencial para uma compreensão da obesidade.
Tal fato causou-me certo espanto, pois tinha na memória os primórdios da
Psicanálise, com as diversas descobertas que o corpo atribulado pela histeria
proporciona ao conhecimento psicanalítico, o que me levou a questionar qual
seria o estatuto do corpo em Psicanálise e o porquê de um termo tão comum,
presente tanto na teoria quanto na prática de um analista, não ser sequer
contemplado em um dos dicionários consultados. A primeira pergunta busquei
responder brevemente no curso desta dissertação, enquanto a segunda ficará
apenas como um questionamento, que talvez um dia possa auxiliar o início de
nova pesquisa.
Em seguida voltei-me à análise de qual mecanismo psíquico poderia ser
utilizado para explicar a questão da obesidade, o que me levou a trilhar um
caminho que teve início com a conversão histérica e terminou no campo da
psicossomática psicanalítica. Entretanto, ciente da limitação de meu estudo,
alerto que muito do trajeto realizado entre tais termos teve que ser conduzido
de maneira resumida porque outra questão se impunha – a de definir qual seria
a especificidade da obesidade dentro da Psicanálise. A pesquisa bibliográfica
inicial não foi animadora, tendo encontrado poucas obras em português, assim
como uma quantidade reduzida de artigos científicos sobre o assunto. Ressalto
que li muitos livros e artigos sobre o tópico, sobretudo da área médica, seguida
pela vertente histórico-cultural, mas pouquíssimos da Psicanálise. Ao conduzir
1
LAPLANCHE, Jean. Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Martins, 2001.
2
ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de Psicanálise. São Paulo: Jorge Zahar, 1998.
3
MIJOLLA, Allain. Dicionário Internacional de Psicanálise. São Paulo: Imago, 2010.
12
4
PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo, Martin Claret: 2003,p.98.
15
5
WRANGHAM, Richard. Pegando Fogo – Como Cozinhar nos Tornou Humanos. São Paulo:
Jorge Zahar, 2009.
16
três milhões de anos, enquanto o segundo teve seu início há 2,5 milhões de
anos, o que situa o homem perante um período de transição de
aproximadamente 500 mil anos, que pode explicar muito em termos evolutivos
e culturais. Se o Australopithecus possuía alguma semelhança com o homem
moderno, seria o seu andar ereto, mas em termos físicos ele se assemelharia
muito mais a outros primatas do que ao que se está acostumado a considerar
como humano. Sua altura era de aproximadamente 1,2 m, seu cérebro era
35% menor que o de um ser humano contemporâneo, e seu domínio da
linguagem era extremamente primitivo. No que, então, tal gênero teria se
diferenciado dos demais primatas de forma a desembocar em uma linhagem de
animais diferenciados dos demais?
Há 2,6 milhões de anos os Australopithecus começaram a produzir
ferramentas de rocha, cujo registro fóssil indica claramente que foram
produzidas com o propósito de gerar instrumentos com a propriedade de corte.
Assim como as facas primitivas foram desenterradas, junto com elas também
surgiram ossos fossilizados de animais que haviam sido caçados, com marcas
de utilização de instrumentos cortantes para a remoção da carne. Acostumadas
como estão à facilidade do consumo da carne, talvez seja difícil às pessoas
imaginar a diferença que tais facas de pedra fariam, mas basta lembrar que
seus ancestrais, pequenos e frágeis perante outros animais da mesma época,
tinham como vantagem basicamente o comportamento em grupo e a
tecnologia, que no caso significava a capacidade de esfolar um animal
rapidamente e transportar a carne de volta para o local de origem do grupo,
evitando assim que a presa recém abatida fosse devorada por outro predador.
Conforme o tempo passava e as diversas espécies de Australopithecus
se sucediam, essas singelas, porém significativas vantagens evolutivas: a
cooperação grupal e o fabrico de instrumentos cortantes e perfurantes,
acabaram por levar ao surgimento do gênero Homo, muito mais próximo do
homem atual em todos os sentidos, visto que além do andar ereto, ele não
mais escalava árvores, mas corria e andava, com muita semelhança ao ser
humano contemporâneo. A análise dos ossos fossilizados dessas diversas
espécies de Australopithecus demonstra que sua dieta era constituída
principalmente por carne, sendo este insumo responsável por mais da metade
das calorias que tais grupos utilizavam para manter suas funções corporais.
17
6
Idem, p.34.
18
exemplo. Em resumo, o ato de consumir alimentos cozidos fez com que todo o
sistema digestório7 pudesse diminuir, de forma a permitir que as calorias
consumidas fossem direcionadas a outras áreas do corpo, em especial o
cérebro. O tempo de vida da espécie começou a aumentar, pela combinação
da melhor alimentação com a maior oferta de alimentos.
Um protótipo de vida em sociedade se formava, com uma fonte de fogo
sempre acesa, ao redor da qual é provável que se concentrassem em sua
maioria mulheres e crianças, enquanto os homens saíam para a caça. Os
homens dedicavam-se à busca de carne e as mulheres mantinham o fogo
continuamente aceso, assim como coletavam vegetais que continuaram a
complementar a dieta desses ancestrais. Iniciou-se dessa forma um período
em que ―as trocas entre mulher e marido permeiam as famílias em todas as
sociedades. (...) os machos, com um excedente de carne, deviam oferecer um
pouco para as fêmeas, que deviam apreciar o presente e retribuir a gentileza
colhendo vegetais para partilhar‖.8
Durante a pesquisa, foram encontrados autores que não concedem ao
fogo o mesmo papel civilizador que Richard Wrangham, contudo parece
eticamente adequado citar que sua teoria não é um consenso antropológico.
De qualquer modo, dentre as diversas teorias avaliadas, considera-se a deste
autor uma excelente contribuição ao estudo da obesidade, pois ela parece
explicar, de maneira convincente, o surgimento da cultura e da humanização
como fatos imbricados ao ato de buscar alimento e consumi-lo, o que torna tal
abordagem antropológica adequada para o estudo dos antecedentes históricos
e culturais da obesidade. Tendo feito esta ressalva, acredita-se que é possível
começar a compreender a fascinação dos povos antigos por corpos femininos
grandes e corpulentos, como se explicará a seguir.
Registros históricos de aproximadamente 30.000 anos atrás foram
localizados, retratando uma figura de mulher extremamente obesa, com
grandes seios, abdômen expressivo e vulva gigante. Tais figuras receberam o
7
A partir de 1998 a Sociedade Brasileira de Anatomia adotou o termo sistema digestório para
designar o que antes era conhecido como sistema digestivo ou aparelho digestivo. Tal fato
advém de uma tradução direta do termo latino digestorium, mas ainda persiste dúvida sobre a
aplicabilidade do termo, se deveria ser restrito ao vernáculo anatômico ou incorporado em toda
a língua portuguesa. Na escrita da dissertação foi feita uma opção pelo termo cientificamente
apropriado, devido ao caráter acadêmico do trabalho apresentado.
8
WRANGHAM, op. cit., p.34.
19
nome genérico de ―Vênus de Willendorf‖, pois seu primeiro exemplar foi achado
perto da aldeia de Willendorf, na Áustria, desenterrada em 8 de agosto de 1908
pelo arqueólogo Josef Szombathy. Exemplares semelhantes ao primeiro foram
encontrados próximos ao berço de civilizações antigas importantes, como a
grega, a babilônica e a egípcia. A interpretação mais frequente de tais figuras,
confirmada por Busse9, é que não é possível saber se essas figuras femininas
chegaram a existir de fato, ou se representavam apenas um ideal estético. No
entanto, a preferência por corpos femininos avantajados parece estar ligada ao
fato de que mulheres com maiores reservas corporais de gordura deveriam ser
capazes de sobreviver com mais facilidade a períodos de escassez alimentar,
assim como amamentar por um longo período a prole e também procriar por
mais tempo. É crucial considerar que, nessa época, a expectativa de vida
humana era curta se comparada aos tempos atuais. Fala-se de uma mulher
que iria sobreviver até a metade de sua segunda década de vida, se bem-
sucedida.
A Vênus de Willendorf também pode ser uma demonstração daquilo que
as civilizações primitivas consideravam como uma das poucas armas
disponíveis contra o fantasma da falta de alimento, outro fator que acompanhou
a humanidade desde seu início, o que também auxilia a compreensão sobre o
porquê de mulheres corpulentas terem sido idealizadas milhares de anos atrás.
A Estela da Fome, uma inscrição feita em granito pela civilização egípcia
aproximadamente em 2686 a.C., mostra a imagem de um faraó que clama aos
deuses para que ponham fim a uma seca contínua no reino Nilo, que durava
por anos. Tal imagem retrata fatos que antecederam os relatos bíblicos sobre
os eventos que teriam ocorrido no Egito durante a vida de José 10, que teria
interpretado corretamente um sonho de um faraó que também se referia à
fome, só que, neste caso, um pouco adiante na história humana, o sonho já
falava de sete anos de fartura seguidos de sete anos de fome. A presença de
uma alternância entre fartura e penúria – em contraste com as evidências
anteriores, que mencionavam apenas o pavor da fome – parece dar suporte à
9
BUSSE, Salvador de Rosis. Anorexia, Bulimia & Obesidade. São Paulo: Manole, 2004, p.22.
10
A vida de José, personagem bíblico, é localizada aproximadamente em 1600 a.C., pois
faltam documentos históricos que apontem com maior precisão a época exata de sua
existência.
20
11
BÍBLIA, TRADUÇÃO ECUMÊNICA (TEB). São Paulo. Edições Loyola, 1994.
21
12
BUSSE, op. cit., p. 24.
22
com consequente utilidade para as muitas guerras que tanto a sociedade grega
como a romana empreenderam.
Assim, a cultura que se desenvolvia no mundo greco-romano começava
a prezar o corpo livre da gordura, seja na extrema magreza das mulheres como
no corpo atlético masculino. Seguindo a máxima de Hipócrates e Galeno, o
controle do corpo passou a ser associado com disciplina e autocontrole,
virtudes a serem buscadas. Platão, ao escrever A República, ilustra bem os
aspectos que dominavam o pensamento grego e posteriormente o romano, ao
afirmar que a ginástica era algo em que os cidadãos ―devem ser educados nela
cuidadosamente desde criança, e pela vida afora‖13.
Platão chegou a ser mais explícito quando se referiu à dieta dos
soldados, em trecho que merece ser citado na íntegra, pois poderia
perfeitamente ser transcrito em uma revista contemporânea, desde que
trocadas algumas palavras, demonstrando a semelhança que começava a
existir em relação à exigência sobre o corpo na Grécia, que parece se repetir
hoje:
13 a
PLATÃO. A República. Trad. Maria Pereira. 8. edição. Lisboa: Calouste Gulbenkian.
junho/1996, p.72.
14
Idem, p. 97.
15
CORDÁS, Taki Athanassios. Fome de Cão – Quando o medo de ficar gordo se torna uma
doença. São Paulo: Maltese, 1993, p.14.
23
Busse16 assegura que a Idade Média trouxe a disputa entre duas figuras;
de um lado, a Eva do Gênesis, protótipo da mulher ideal, com um corpo
branco, virginal, delicado, esguio, gracioso, imagem de mulher pura e mulher-
mãe, e de outro, Lilith, a mitológica primeira mulher de Adão, que teria optado
16
BUSSE, op. cit., p. 06.
24
por se rebelar contra Deus e viver em eterno prazer com os demônios, sendo
esta retratada de maneira muito menos cortês que Eva. Essa foi uma época
importante, quando começou historicamente uma separação entre ideal
estético masculino e feminino, sendo o último cada vez mais associado a
padrões de magreza, enquanto aos homens era concedida certa indulgência
com referência ao aspecto corporal. Apesar de Santo Tomás de Aquino (1225
– 1274 d.C.) ter incluído a gula como um dos sete pecados capitais da teologia
católica, nesse período histórico tal preceito era aplicado de forma diferente
entre homens e mulheres, pois aos homens, especialmente os nobres ou
membros do clero, uma estatura corpulenta era considerada sinal de poder e
distinção.
As mulheres, por sua vez, ficavam aprisionadas entre os protótipos de
Lilith e Eva, porém o julgamento sobre a gula feminina, nessa época, parece ter
sido muito mais intenso do que sobre a gula masculina. Brumberg17 comenta
sobre o crescimento dos casos de anorexia nervosa entre as santas medievais,
fenômeno que a autora denominou de anorexia mirabilis, por entender que a
forte motivação religiosa o diferencia da anorexia nervosa contemporânea.
Uma evidência aparentemente forte sobre a diferença de percepção que existia
entre a gordura masculina e a feminina é o fato de que não existe registro de
um único santo que tenha falecido por não comer, enquanto o número de
santas é diverso, tendo como caso clássico o de Santa Catarina de Siena
(1347 – 1380 d.C.) que, segundo registros históricos, insistia em sobreviver por
dias apenas pela ingestão da eucaristia. O contraste entre a magreza das
santas e a corpulência dos santos, incluindo Santo Tomás de Aquino nesse rol,
conhecido por sua obesidade, deve servir como ilustração para a diferenciação
que começava a existir entre homens e mulheres no tocante à gula, à
obesidade e ao como comer e por que comer.
O Renascimento, movimento histórico e cultural que começou a demolir
as estruturas medievais, trouxe consigo um ideal feminino muito mais
proporcional do que a magreza das santas medievais, como fica bem
demonstrado na obra de Agnolo Firenzuola (1493 – 1545), poeta e escritor
italiano que definiu as proporções da mulher com bases clássicas e
17
BRUMBERG, Joan Jacobs. Fasting girls. New York: Vintage publisher, 2000, p. 24.
25
18
BUSSE, op. cit., p. 25.
26
19
A interpretação sobre a ópera de Verdi e os papéis atribuídos a cada timbre de voz na ópera
foram embasados nos escritos de Gilman (2005), que dedica aproximadamente 40 páginas a
explicar em detalhes o significado musical de cada personagem na ópera e sua relação com a
cultura da época.
20
GILMAN, Sander. Fat – A cultural history of obesity. New York: Polity, 2005, p. 95.
27
um corpo que não fosse o corpo magro e subnutrido que as jovens da época
ostentavam, ou lutavam para alcançar.
A transição do século XIX para o XX foi extremamente significativa na
atribuição de diversos significados ao corpo, à obesidade e aos ideais
corporais. O período de 1900 a 1910 pode ser considerado praticamente como
um prolongamento dos ideais do século anterior, mantendo os papéis
masculinos e femininos previamente estabelecidos. Se algo pode ser
mencionado sobre este período é que o corpo feminino, malgrado
rechonchudo, valia-se do uso do espartilho, que acabava por imprimir uma
silhueta denominada de ―mulher-flor‖, com uma cintura considerada ideal de 42
centímetros, que ressaltava os seios e as nádegas. Após 1910 começou uma
verdadeira revolução no estilo feminino: surgiu o sutiã e a subsequente
abolição do uso do espartilho, com vestidos desenhados de forma a permitir
maior mobilidade. O início da Primeira Guerra, em 1914, também obrigava as
fábricas, por questão de economia, a diminuir a quantidade de tecido utilizado
na confecção de vestimentas, o que diminui ainda mais o tamanho das roupas.
A maquiagem se torna mais ousada e a tonalidade de pele clara passa a não
ser o único padrão de beleza, abrindo espaço para o corpo bronzeado ou
moreno.
O espaço entre a Primeira Guerra e a Segunda foi marcado por dois
fatores importantes. A fonte da moda continuava sendo a Europa, apesar da
devastação causada pelo primeiro grande conflito mundial, mas os Estados
Unidos da América (EUA) já ascendiam como poder militar e econômico, o que
gerava uma situação curiosa de poder concentrado em dois focos diferentes, o
norte-americano, marcado pela sua pujança industrial, econômica e militar, e o
europeu, calcado em sua tradição e economia construídas há séculos. Esse
período assistiu a mudanças significativas referentes à forma como o corpo
passaria a ser encarado, sendo que diversas companhias de seguro norte-
americanas começaram a contratar estatísticos com a intenção de aperfeiçoar
a venda de produtos, e descobrir a forma mais eficiente de vender e cobrar de
cada cliente. Um padrão matemático foi descoberto, o de que obesos, em
especial homens, morriam antes ou sofriam de mais doenças crônicas do que
os magros, o que fez com que as empresas patrocinassem as primeiras
tabelas correlacionando altura e peso ideal, instrumento inicialmente utilizado
28
como justificativa para cobrar mais ou menos por um seguro de vida ou saúde.
Entretanto, conforme o tempo passava, médicos começaram a adotar as
tabelas de peso e altura, sendo que rapidamente o padrão do Índice de Massa
Corporal (IMC) acabou sendo adotado pelo consenso médico, numa tentativa
de organizar e padronizar as diversas tabelas que circulavam pelos diferentes
consultórios e hospitais.
Conquanto não parecesse um evento de maiores proporções, a adoção
crescente do IMC entre o período de 1910 e 1940, como a forma mais utilizada
para avaliar o padrão corporal de cada pessoa, representava uma reviravolta
no pensamento médico, pois pela primeira vez um critério específico começava
a ser aceito como padrão universal, tanto de saúde como de doença, assim
como de estética e beleza. Os indivíduos, independentemente de sua origem,
história, e outros fatores que denotassem subjetividade, passavam a ser
avaliados por um critério numérico centralizado, válido para todos. Ao longo da
dissertação haverá mais detalhes sobre o IMC, suas limitações e aplicações,
mas, no momento, basta dizer que estar de posse de um instrumento de fácil
utilização, que poderia ser utilizado até mesmo por um leigo, que em minutos
obteria um número que indicaria se seu corpo estava magro ou obeso,
saudável ou doente, correto ou incorreto perante os padrões da época, foi uma
mudança significativa na forma de tratar o corpo humano e as variações
individuais.
A outra mudança dessa época é que o crescimento econômico norte-
americano e a decadência europeia devido à Primeira Guerra criaram uma
geração de banqueiros e industriais norte-americanos que possuíam um poder
antes reservado apenas àqueles que residiam na Europa, ou seja, uma nova
classe de ricos e poderosos começava a se formar em outra parte do mundo.
As esposas e filhas pertencentes a esta nova classe dominante começaram a
buscar formas de expressar sua posição social, e se valeram da tradição
europeia sobre a indústria da moda, sendo o período 1910 – 1940 marcado por
um verdadeiro desfile de adereços femininos comprados na Europa, e
utilizados pela ascendente classe dominante dos EUA. Tal ocorrência teve
duas consequências importantes, sendo a primeira que Hollywood já começava
a expandir sua influência cultural e acabou por propagar diversos modelos de
roupas, penteados, sapatos, significando que uma mulher bem vestida e
29
trabalhar, como também ter controle sobre seu corpo, no que se referia aos
aspectos reprodutivos. A mistura do feminino com o masculino, que começava
a acontecer com mais e mais frequência em todos os ambientes, podia ser
bem exemplificada pela modelo Twiggy, cujas formas corporais deixavam o
observador na dúvida se estava a ver um menino ou uma menina. A década de
1970 assistiu ao nascimento do movimento hippie, com uma grande liberação
sobre os costumes sexuais, mas com um contraponto alimentar importante,
pois os hippies trouxeram consigo diversas teorias sobre o que seria um corpo
saudável. Assim, conceitos como o corpo saudável, o não-consumo de
alimentos gordurosos ou de origem animal, bem como a prática esportiva
atingiram um valor nunca antes visto.
A década de 1980 demonstraria o crescimento do poder feminino
através da mulher bem cuidada, com o corpo saudável como símbolo de sua
ascensão profissional e social. Os homens também começavam a ser cada vez
mais cobrados pela sua magreza, sendo que ambos, transpirando nas salas de
ginástica, consumiam apenas alimentos saudáveis e se transformavam em um
objeto de desejo para a maior parte das pessoas, e numa figura idealizada,
porém tirânica, para aqueles cujo corpo demonstrava propensão à corpulência.
Encerra-se esta análise em 1990, pois se trata de um momento histórico por
demais próximo desta época, o que dificulta uma análise clara do que tem
acontecido desde então. Todavia, o que pode ser dito é que com o advento da
Internet e a expansão das diversas formas de comunicação, os padrões de
beleza tornaram-se cada vez mais universais, revelando uma verdadeira
mistura de praticamente todos os aspectos aqui citados. Com isso, constata-se
que se vive em uma época que valoriza o magro, com certeza, e que é
obesofóbica, também sem sombra de dúvida, mas que apresenta espaço social
e cultural para diversos modelos corporais. Na contemporaneidade existe
espaço tanto para o homem e a mulher atlética, como para aquela ou aquele
que prefere um modelo mais intelectual e saudável, sem ser necessariamente
atlético.
Contudo, o pavor da gordura parece ser generalizado em todos os
cantos do planeta. Este comentário remete ao início deste capítulo, em que se
diz que a gordura passou a ser ao mesmo tempo objeto de desejo e ódio,
repulsiva mas indispensável. Os alimentos produzidos em massa, sem sombra
31
Existe outra parte da raiz que compõe a obesidade, que são seus
aspectos diretamente relacionados com o corpo como objeto biológico, sua
fisiologia, anatomia e, por consequência, as formas como a Medicina se propôs
a utilizar para tratar a obesidade. Após a leitura do capítulo anterior, espera-se
ter colocado em evidência que nem sempre a obesidade foi considerada um
problema relacionado à saúde, o que leva, em um primeiro momento, a
analisar o debate sobre o que seria saúde e doença, quais seriam as
justificativas para tratar ou não um determinado quadro, com toda a discussão
ética que segue tais debates. O objetivo deste capítulo é apenas de situar o
leitor em alguns dos fatos considerados mais relevantes no que concerne à
obesidade vista como um problema médico, e sua descrição biológica, com a
ressalva de que o tema é extenso e seria necessário muito mais que um
capítulo para abordá-lo de maneira minimamente integral. Entretanto, pela
limitação nas pesquisas e também com as limitações que incidem na
especificidade de uma dissertação psicanalítica, a proposta é de escrever
algumas páginas sobre o acúmulo de gordura visto sob a ótica médica.
21
COHEN, Ricardo. A Obesidade. São Paulo: Publifolha, 2004, p.09.
20
O correto seria utilizar o termo massa, e não peso, pois o primeiro se refere à inércia ou
resistência que um corpo apresenta em relação à aceleração, enquanto o segundo conceito
relaciona a massa de um corpo com a força gravitacional exercida sobre ele. Entretanto, o
termo ―peso‖, para se referir ao conceito de massa, está de tal forma popularizado que parece
preferível utilizá-lo, apesar do erro científico que ocorre ao trocar um conceito pelo outro.
23
BUSSE, op. cit., p.329.
36
25
Não se abordará a questão dos micronutrientes, limitando esta escrita à consideração de que
são elementos químicos necessários em doses baixas, mas essenciais para a ocorrência de
uma série de reações químicas indispensáveis à manutenção da vida.
39
pesquisas parece indicar que tal conceito será incluído nos critérios sobre a
obesidade em um futuro próximo.
A inclusão da obesidade como uma doença representou uma mudança
de paradigma sobre de que modo classificar um fenômeno como patológico,
pois existia uma herança classificatória herdada da medicina grega que
separava as doenças em acidentais (katatyken) e naquelas provenientes do
modo de vida ou do destino da pessoa (katananken), sendo que apenas as
primeiras poderiam ser tratadas pela prática médica, enquanto as segundas
teriam como origem a vida pouco virtuosa levada pela pessoa. A doença, neste
contexto, é vista como antinatural, o oposto da beleza e da virtude. Essa
classificação se manteve por muito tempo e até recentemente, enquanto as
doenças infecciosas eram as grandes causadoras de mortes e pandemias.
Com a introdução dos antibióticos, programas de vacinação e medidas de
higiene, o padrão das patologias que começou a afetar a população em geral
mudou, pois esta, livre das doenças de caráter agudo, começou a viver mais e
a padecer daquelas de caráter crônico, como diabetes, hipertensão, problemas
cardiovasculares, problemas respiratórios, problemas nas articulações, certos
tipos de câncer e alta incidência de dor crônica, entre outras. Conforme as
pesquisas eram conduzidas, um padrão começou a se delinear, que é o que
praticamente todo indivíduo – cujo IMC está acima de 30 – tem a probabilidade
de desenvolver qualquer uma das patologias citadas acima, e conforme a
obesidade se intensifica, também aumenta a probabilidade de cada uma delas
se manifestar.
Outro fator que auxiliou a inclusão da obesidade no quadro de doença
foi a sua taxa de expansão no século XX, que vem se mantendo no século XXI.
Segundo o Center for Disease Control26 (CDC)27, apenas três estados norte-
americanos apresentavam 30% de sua população obesa em 2007, número que
subiu para nove estados em 2010. O mesmo instituto acredita que a obesidade
em geral nos EUA esteja em torno de 35% da população, considerando apenas
a obesidade, isto é, aqui não estão contabilizados os dados referentes às
26
―Centro Para Controle de Doenças‖ em tradução livre.
27
CDC. Overweight. Disponível em: <http://www.cdc.gov/nchs/fastats/overwt.htm>. Acesso em
2 fev. 2011.
42
28
O uso do termo epidemia, para se referir à obesidade, gera controvérsias entre alguns
profissionais da área da saúde, que argumentam que o termo deveria ser reservado apenas
para doenças que contam com um agente que espalhe a infecção, como um vírus ou bactéria,
como seria o caso de uma epidemia de cólera, tuberculose e outras doenças. Gilman (2005,
p.18) rebate tal objeção ao afirmar que o termo epidemia começou a ser utilizado com
frequência na literatura médica a partir do século XVII, exatamente no mesmo momento em
que a obesidade começava a ser tratada como uma condição médica por alguns especialistas,
como no livro de Tobias Venner sobre dieta saudável. Algumas décadas mais tarde, em torno
de 1643, John Milton escreveu um texto criticando a ―epidemia de maus costumes‖ que o
divórcio geraria na sociedade, consagrando o uso metafórico do termo e afastando-o das
doenças estritamente contagiosas.
29
NUNES, op. cit., p.251.
44
30
FERRO, Rogério. Brasil tem 21 sabores sob risco de extinção. Disponível em:
<http://mercadoetico.terra.com.br/arquivo/brasil-tem-21-sabores-sob-risco-de-extincao/>.
Acesso em: 18 jan. 2011.
45
31
LOLI, Maria Salete Arenales. Obesidade como sintoma. São Paulo: Vetor, 2000, p.29.
32
BENEDETTI, Carmen. De obeso a magro – a trajetória psicológica. São Paulo: Vetor, 2003,
p.28.
47
33
LORDELO, Roberta A. et al. Eixos hormonais na obesidade: causa ou efeito?. Arq Bras
Endocrinol Metab, São Paulo, v. 51, n. 1, fev. 2007 . Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-
27302007000100007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 18 jan. 2011.
34
BENEDETTI, op. cit., p.29.
48
35
CLAUDINO, Angélica de Medeiros; ZANELLA, Maria Teresa. Transtornos Alimentares e
Obesidade. Barueri: Manole, 2005, p.198.
49
36
LOLI, op. cit., p.15.
50
como etnias específicas, o IMC continua sendo utilizado mas, é essencial que
ele seja combinado com outras formas de mensuração do tecido gorduroso que
permitam uma avaliação mais precisa do quadro individual. Um método muito
utilizado é a obtenção de medidas com um adipômetro, que é um instrumento
feito para ―pinçar‖ a pele da pessoa em pontos específicos, chamados dobras
cutâneas, e o aparelho fornece uma medida da resistência oferecida pela dobra
cutânea ao pinçamento. Ao medir tais pontos do corpo é possível ter-se uma
ideia aproximada da distribuição da gordura. Tarastchuck37 demonstra a
importância da utilização de dois outros índices para uma obtenção mais exata
de quão obeso um indivíduo é, que é a utilização da medida da Circunferência
da Cintura (CC) e a relação Cintura/Quadril (RCQ). A CC é especialmente útil,
pois existe uma tendência em muitos indivíduos de que o acúmulo de gordura
se concentre na região abdominal, de forma que a CC acaba sendo um
instrumento valioso para, muitas vezes, identificar uma pessoa com acúmulo
excessivo de gordura em uma área específica e significativa do corpo. As
medidas aceitas para a CC atualmente são de 88 cm para mulheres e 102 cm
para homens, sendo que a combinação de um IMC elevado com uma CC
acima do esperado costuma ser um forte indicativo de obesidade. A RCQ é
obtida através de uma conta simples, em que se divide a circunferência da
cintura pela circunferência do quadril, sendo que resultados acima de 0,8 para
mulheres e 1,0 para homens também são considerados indicativos de
obesidade.
Todos os métodos citados no parágrafo anterior são importantíssimos
para a avaliação individual da obesidade, mas cada um apresenta sua
desvantagem. De maneira geral, é possível dizer que a aplicação de cada um
deles implica maior custo ou maior treino por parte do profissional que aplica a
metodologia. No caso do adipômetro, existe uma questão de custo, que pode
ser significativa para programas que tenham como ambição alcançar parcelas
37
TARASTCHUK, José Carlos Estival et al. Obesidade e intervenção coronariana: devemos
continuar valorizando o Índice de Massa Corpórea? Arq. Bras. Cardiol., São Paulo, v. 90, n.
5, maio 2000,p.32. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0066-
782X2008000500001&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 18 jan. 2011.
52
38
DAMASO, Ana R. et al. Tratamento multidisciplinar reduz o tecido adiposo visceral, leptina,
grelina e a prevalência de esteatose hepática não alcoólica (NAFLD) em adolescentes
obesos. Rev. Bras. Med. Esporte, Niterói, v. 12, n. 5, Out. 2006. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-
86922006000500008&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 18 jan. 2011.
54
39
NUNES, op. cit., p.290.
55
das tentativas amadoras que quase sempre são inócuas ou acabam por gerar
mais danos que ganhos para aquele que busca a perda de peso. As ―dietas
milagrosas‖ também podem ocasionar a perda de massa magra no indivíduo,
que terá a falsa sensação de ter emagrecido, quando, na realidade, ele pode
continuar com depósitos de gordura e ter perdido tecido muscular, outra
condição preocupante. A desnutrição que tais dietas geram pode ocasionar um
desequilíbrio de eletrólitos no corpo, com consequências que chegam até a
parada completa do funcionamento muscular e cerebral, com morte causada
por parada cardiovascular. O tratamento clássico continua sendo a primeira via
de tratamento que deve ser experimentada; ele envolve dois componentes
essenciais para a perda de peso, que são a prática de atividade física e a
reeducação alimentar, fatores estes que caso sejam adotados e mantidos
ocasionarão não apenas a perda de peso, mas a melhora da saúde como um
todo no indivíduo.
Algumas pessoas tentam utilizar apenas a atividade física ou a
reeducação alimentar, o que pode ocasionar resultados positivos, em especial
em casos de sobrepeso ou obesidade tipo I, mas se for considerada a perda de
peso lenta que a combinação dos dois eventos proporciona, é possível
imaginar que a utilização de um em detrimento do outro prolongará o processo,
com maiores chances de recaídas e ganho de peso. A combinação dos dois
elementos costuma seguir um padrão lógico: aumenta o gasto energético e
diminui a entrada de energia, o que força o organismo a um processo
adaptativo. Optar apenas por um dos dois elementos pode colocar o indivíduo
em uma situação na qual seu balanço energético fique neutro, isto é, nem
positivo nem negativo, com a manutenção do peso atual.
Com a evolução do entendimento sobre os processos químicos,
fisiológicos e anatômicos responsáveis pela sensação de fome e saciedade,
sobretudo no século XX, uma nova forma de tratamento começou a se mostrar
como alternativa viável, que é a farmacológica. Outro fator que estimulou a
busca de medicamentos que auxiliassem a perda de peso foi o alto índice de
fracasso da combinação entre dietas e exercícios, pois ―passados cinco anos,
pelo menos 95% das pessoas que perderam peso com tal combinação
56
40
COHEN, op. cit., p.42.
57
41
FANDIÑO, Julia et al. Cirurgia bariátrica: aspectos clínico-cirúrgicos e psiquiátricos.Rev.
Psiquiatr. Rio Gd. Sul, Porto Alegre, v. 26, n. 1, abr. 2004, p.47. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
81082004000100007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 21 jan. 2011.
60
42
BAGATINI, Airton et al. Anestesia para cirurgia bariátrica: avaliação retrospectiva e revisão
da literatura. Rev. Bras. Anestesiol., Campinas, v. 56, n.3, jun. 2006, p.206.Disponível em:.
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-
70942006000300001&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 21 jan. 2011.
61
limitado, em geral de duas semanas até um mês, mas após este período inicial
a dieta de baixa caloria terá que ser substituída por uma dieta saudável com
restrição de calorias. Tal cuidado mudança do hábito alimentar antes da
cirurgia se justifica pelo fato da maioria dos procedimentos cirúrgicos
possuírem um caráter permanente, ou seja, o paciente precisa estar apto a
controlar a ingestão de alimentos pois seu corpo estará cirurgicamente
impossibilitado de recebê-los na mesma quantidade que anteriormente.
Assim, tendo explicado os critérios de indicação da cirurgia e algumas
de suas complicações, acrescentam-se alguns detalhes que explicam a
complexidade do procedimento. Normalmente os hospitais não possuem
macas cirúrgicas adequadas para suportar um peso maior que 250
quilogramas, o que faz com que alguns pacientes sejam operados utilizando
duas macas ao mesmo tempo, apesar de cada vez mais hospitais estarem
investindo em equipamento específico para obesos mórbidos. Caso haja
alguma complicação durante a cirurgia, a intervenção da equipe médica é mais
complexa, pois mover um corpo que pesa mais do que 200 ou 300 quilogramas
para a realização de um procedimento de emergência não é tarefa simples.
Muitos obesos possuem tamanho acúmulo de gordura no pescoço, que é difícil
realizar uma traqueostomia de emergência, caso seja necessária durante uma
parada respiratória. Estes pormenores devem fornecer uma ideia de quão
delicada e arriscada a cirurgia da obesidade é, e quão preparada deve ser a
equipe que irá realizá-la.
Existem basicamente três tipos de intervenção cirúrgica para a
obesidade, explicados brevemente a seguir. As técnicas podem ser
classificadas em disabsortivas, restritivas e mistas, sendo que cada uma
apresenta vantagens e desvantagens. As técnicas disabsortivas buscam
reduzir a capacidade do organismo para absorver nutrientes, de forma que a
pessoa, apesar de ingerir alimentos, não os absorve e acaba por perder peso.
Em geral tais técnicas retiram um pedaço do intestino delgado ou alteram o
ponto no qual o suco pancreático encontra o alimento, de forma que porções
menores dele são digeridas e, por consequência, absorvidas. O intestino
delgado pode ser reduzido entre 70 e 150 cm, a depender de cada paciente. A
vantagem de tal técnica é que ela não interfere tanto na capacidade de
ingestão de alimento; o paciente pode continuar a ter refeições de tamanho
63
próximo do usual, sendo também uma técnica que costuma levar à perda de
peso rápida, pois os nutrientes não são absorvidos. Como desvantagem existe
um sério risco de desnutrição, devido a pouca absorção de nutrientes e à
necessidade de um comprometimento do paciente com uma dieta adequada,
porquanto sua capacidade de ingestão não foi significativamente alterada. A
manutenção da perda de peso depende principalmente da adoção de uma
dieta adequada, que garanta os nutrientes corretos, sem exageros no campo
dos lipídeos e carboidratos. A cirurgia de Scopinaro ou a técnica de desvio
biliopancreático com derivação duodenal são exemplos desta modalidade
cirúrgica.
As técnicas restritivas têm como ideia principal reduzir a capacidade do
indivíduo para ingerir alimentos. O exemplo mais comum é o da banda gástrica
ajustável, que nada mais é do que um anel de silicone que é aplicado em volta
do estômago, de forma a dividi-lo em duas partes, uma extremidade superior
pequena chamada neoestômago e uma inferior maior. Quando a pessoa ingere
alimentos, estes ―param‖ no neoestômago, que por ser pequeno demora um
tempo considerável para realizar a digestão, até que o conteúdo possa passar
para o restante do órgão. Tal procedimento gera uma sensação de
estufamento no obeso, que não consegue ingerir alimentos com a mesma
rapidez e intensidade que antes. A vantagem de tal técnica é que a banda
gástrica pode ser constantemente ajustada, de acordo com a necessidade da
pessoa. Outra vantagem é que a técnica não interfere na absorção de
nutrientes, e isto reduz o risco de desnutrição. A grande desvantagem da
técnica é que os principais responsáveis pela sensação de fome são os
hormônios emitidos pelo intestino delgado na ocasião da digestão, que não são
alterados neste procedimento, ou seja, apesar de se sentir preenchida, a
sensação de fome não passa, o que pode levar muitos pacientes a
―enganarem‖ a cirurgia, ingerindo alimentos de alto valor calórico e fácil
digestão, que acabam passando rapidamente pelo neoestômago, como leite
condensado, bebidas alcoólicas e até mesmo papinhas feitas com macarrão,
arroz, ou qualquer alimento que já esteja ou em estado líquido ou que possa
ser rapidamente digerido. Apesar de promover perda de peso, o sucesso desta
técnica depende em grande escala de o paciente alterar sua rotina para uma
64
43
BRUMBERG, op. cit., p.161.
44
MEZAN, Renato. Paradigmas em Psicanálise: uma proposta. Disponível em:
<http://www.centrowinnicott.com.br/modules/mydownloads/>. Acesso em: 5 out. 2008.
67
modificou e o que foi esquecido. O segundo princípio que guia este texto é uma
constatação de Brumberg45, que descreve os textos psicanalíticos sobre
transtornos alimentares, escritos entre 1940 e 1969, como dominados pela
percepção de que haveria uma associação simbólica entre a gordura
abdominal e a fantasia de gravidez, constituindo uma espécie de equação
simbólica. Outro tema que supostamente seria recorrente nos artigos era o da
ligação entre fantasias de introjeção fálica e distúrbios alimentares. Foi apenas
mais tarde, com autores como Hilde Bruch 46, que a conjuntura familiar
começou a fazer parte de uma espécie de quebra-cabeça terapêutico.
Portanto, teve-se a intenção de verificar nos artigos do período citado a
presença das fantasias orais, que supostamente dominaram o pensamento
psicanalítico sobre o assunto.
Uma ressalva que deve ser feita é que a amostra de artigos é pequena,
o que não deve impedir o exercício de analisá-los, deixando em aberto a
possibilidade da expansão de textos utilizados. Após um breve resumo dos
artigos, ocorrerá a sua análise segundo os critérios adotados.
45
BRUMBERG, op. cit., p.223.
46
BRUCH, Hilde. Eating Disorders: Obesity, Anorexia and the Person within. New York: Basic
Books, 1978.
68
53
BYCHOWSKI, Gustav. On Neurotic obesity. In: The Psychoanalytic Review. New York: NPAP,
1950.
71
54
PAIVA, Luís. A importância do fator psicanalítico no tratamento da obesidade. Pediat. Prát.
Vol. XXVIII, 1957.
55
Idem, p.29.
56
Idem, p.31.
57
PERESTRELO, Danilo et al. Obesidade. Arquivos brasileiros de endocrinologia e
metabologia. 1963.
72
58
SILVA, Paulo de Paula. Aspectos psicossomáticos da obesidade. Revista Hosp. Clin. Fac.
Med. S. Paulo. 1973.
59
Idem, p.35.
73
60
MARCHEVSKY, Noé. Uma criança em silêncio. Revista brasileira de Psicanálise, 1977.
61
LEON, Gloria. Obesity: psychological causes, correlations and speculations. Psychological
Bulletin, 1977.
74
62
AMARO, Jorge. Aspectos psicodinâmicos da obesidade. Arquivos Brasileiros de
Endocrinologia e Metabologia, 1979.
63
CARTA, Italo. Representation of psychosomatic disturbances: metaphor and metonymy.
Psychotherapy and Psychosomatic, 1986.
75
Diante de uma mãe que responde aos seus anseios apenas pela
comida, o obeso desenvolve um psiquismo que possui um repertório limitado
para lidar com o mundo, exceto por sanar seus problemas através de vivências
de satisfação. Este modo de responder, altamente focado na oralidade,
comporta tanto vivências de incorporação do alimento como algo bom-amoroso
e de destruição do objeto mau-hostil. A voracidade tem um papel importante
em toda esta estrutura de personalidade. A gordura é uma capa de proteção,
que protege o obeso do mundo externo e de seus sentimentos agressivos,
tendo também alguns significados em outros pacientes, como o de ser forte,
fantasia de gravidez e outros. Toda a angústia da pessoa obesa tem uma
localização corporal, que é a sua gordura, pois sua vida se revolve em torno do
tema peso e de nada mais. Esta população apresenta altos níveis
psicopatológicos, sendo a psicose maníaco-depressiva e a depressão os
64
KAHTALIAN, Alexandre. Obesidade: um desafio. Psicossomática hoje. Porto Alegre, 1992.
76
65
OLIVEIRA, Cláudio Tavares Cals. Organização patológica da personalidade. Trieb, n. 5. Rio
de Janeiro, 1997.
77
66
SOUZA, Fernando Pimentel. Como o cérebro se configura. Disponível em:
<http://www.icb.ufmg.br/lpf/revista/revista2/volume2_sobrevoo.htm>. Acesso em: 12 fev 2010.
67
DAVIDOFF, Linda. Introdução à Psicologia. São Paulo: Makron Books, 2000, p.83.
84
68
VARELLA, Drauzio. Plasticidade Cerebral. Disponível em:
<http://www.drauziovarella.com.br/ExibirConteudo/559/plasticidade-cerebral>. Acesso em: 21
jun 2010.
85
69
BRUCH, Hilde. Eating Disorders: Obesity, Anorexia and the Person within. New York: Basic
Books, 1978.
70
No decorrer da dissertação o autor fará referência ao comportamento ―dos obesos‖, mas
deixa claro que está se referindo à sua experiência clínica, que é muito limitada. Se a
afirmação for de cunho amplo, ela estará embasada por algum autor que estudou o fenômeno
em maior profundidade do que uma curta experiência clínica permitiu. Apenas serão utilizados
os termos ―os obesos‖, ―dos obesos‖ e similares, por uma questão de estilo de escrita.
86
(...) quando alguém sente que tudo na sua vida está fora de controle,
ele sente também que os alimentos, o peso, o exercício são coisas
que, em princípio, ele poderia controlar. Tanto faz, aliás, que alguém
consiga seguir um regime à risca, emagrecer ou aumentar de peso e
fazer ginástica regularmente. O que importa é que as consultas, as
propostas, as leituras e as conversas intermináveis sobre dieta e
exercício têm um valor em si: elas mantêm viva a promessa de um
controle que é difícil, mas que é, em tese, possível. À diferença do
que acontece, em geral, com nossa vida amorosa e profissional,
acreditamos (com uma certa razão) que nosso peso e nossa forma
dependem de nós. Nesse campo, podemos não fazer o necessário,
mas sempre se trata de um não fazer "ainda": um dia, faremos e,
quando fizermos o necessário, controlaremos nosso peso e nossa
forma. É tentador propor uma equação: quanto menos estamos em
controle de nossa vida (amorosa, profissional, social e mesmo moral),
tanto mais nos preocupamos com peso e forma, que, bem ou mal,
podem ser controlados.
71
CALLIGARIS, Contardo. Cuidado com o peso e a forma. Disponível em:
<http://contardocalligaris.blogspot.com/2010/04/cuidado-com-o-peso-e-forma.html>. Acesso em
25 ago. 2010.
87
72
BRUCH, op. cit., p.55.
89
73
O uso da palavra apropriada ou inapropriada não deve ser interpretado aqui como sendo
sinal de uma rigidez teórica da autora, pelo contrário, seu modelo de desenvolvimento abre
espaço para diversos tipos de interação entre bebê e cuidador. Apropriado, segundo Hilde
Bruch, seria simplesmente uma resposta que se aproxima, minimamente, da mensagem que o
bebê desejou transmitir ao exibir determinado comportamento. Assim, se o bebê faz
determinada expressão facial para expressar a sensação de fome, uma resposta apropriada
seria aquela que, de uma forma ou de outra, o leve a ser compreendido como um ser que
passa fome. Pode ser que ele necessite de alimentação, ou que ele já tenha sido alimentado e
esteja, na realidade, necessitando de maternagem, onde uma resposta apropriada seria não a
de alimentá-lo novamente, mas sim de acalmá-lo. A castração também é uma resposta
adequada, como ficará explícito mais adiante no texto. Portanto, o termo apropriado significa,
simplesmente, que deve haver um esforço mútuo para a compreensão do que o bebê está
tentando transmitir.
90
74
A referência aqui é a um processo que tem que falhar diversas vezes para produzir algum
efeito prejudicial. É obvio que a probabilidade das primeiras interações bebê-cuidador serem
falhas são gigantescas, mas o que parece assustador é que elas continuem se perpetuando,
apesar de o bebê tentar demonstrar seu descontentamento com a situação presente.
91
75
Fala-se aqui de pessoas que confundem sensações internas, como a de medo, com o fato
de um lugar ser pouco iluminado, por exemplo. Dá-se um exemplo simples, mas que
demonstra a confusão que pode acontecer entre um indicador externo ser confundido com uma
sensação interna, gerando verdadeiro pavor naquele que sente. É provável que tal pessoa
experimente uma angústia profunda por se sentir ―uma‖ com o ambiente que a circunda.
92
tipo. Aqui fica uma nota de que este seria um dos motivos pelos quais várias
psicopatologias eclodem com maior facilidade na adolescência, pois tal período
da vida coloca em xeque a programação robotizada que antes havia
funcionado relativamente bem.
Assim, ao considerar o desenvolvimento humano desta forma,
subscreve-se a teoria de Bruch76, na qual a ênfase recai naquilo que não
aconteceu da maneira que deveria ter ocorrido, numa sequência de eventos, e
não em uma ou outra situação traumática específica. Talvez tal modelo tenha a
vantagem de apresentar a criança como um participante ativo do seu próprio
desenvolvimento, e não apenas como um ser que responde a estímulos de fora
de maneira adequada ou não. Faz parte deste modo de pensar a consideração
sobre as diferenças individuais, como o indivíduo que nasce com mais pulsão
de vida ou menos pulsão de vida, por exemplo, mas tais características inatas
só poderão persistir se ocorrer uma sensação de pertencimento ao próprio
corpo, algo que ocorre através de uma interação contínua e também de
experiências seguidas com o ambiente que circunda a pessoa.
Assim, o infante fornece os seus próprios indicadores de necessidades e
sensações, e adquire um indicativo de adequação e competência ao perceber
que o que sentiu, necessitou ou desejou foi confirmado pelo ambiente. Bruch77
não está a propor um modelo de desenvolvimento totalmente ―feliz‖, pois ela
está se referindo a respostas adequadas, ou melhor, caso uma criança esteja
sendo totalmente inconveniente, mesmo após ter sido alimentada, higienizada,
cuidada, é provável que seja importante que ela receba uma noção de limite
externo, ou seja, uma confirmação do exterior de que seu comportamento está
transbordando e deve ser contido. A falta também pode ser uma resposta
adequada, a depender da situação que está sendo tratada com aquela criança
específica, naquele determinado momento.
Basicamente, ao aderir a este modelo, propõe-se que, pela confirmação
ou pela falta, o cuidador principal seja capaz de confirmar e discriminar as
diversas sensações do bebê desde o início, de maneira que ele saiba a
diferença entre estar com um pouco de fome, muita fome, alguma fome, um
leve desconforto, um grande desconforto, e assim por diante, o que deverá
76
Idem, p.98.
77
Idem.
93
que pode ocorrer muito bem ou muito mal, a depender de diversos fatores que
interferem nas primeiras interações da criança. Ajuriaguerra 81 chama a atenção
para o fato que a região oral possui ligações extensas com a área cortical do
cérebro, desde o nascimento, sendo um indicativo da proporção cerebral que
está destinada ao importante aprendizado sobre o que é conseguir se nutrir
corretamente ou não. Os reflexos de sucção e deglutição também estão
presentes desde o nascimento, o que demonstra o nascimento de um corpo
que está pronto para aprender como se nutrir, pois todo o seu aparato
anatômico e instintual está em grande parte voltado para esta atividade.
Para o mesmo autor, os primeiros contatos que ocorrem entre a criança
e a mãe não formam ainda uma verdadeira relação objetal, mas sim um estado
fusional, no qual a criança se encontra com a ―mãe-alimento‖. Anna Freud82 já
fazia uma distinção entre duas satisfações diferentes geradas pela
alimentação, sendo uma a da fome saciada e a outra sendo uma satisfação
erótica oral. Tal distinção parece fazer apenas sentido quando se considera
que existe um estado no qual a criança ainda tem seu corpo dominado por
pulsões anárquicas, desorganizadas, no qual a ingestão de alimentos apenas
faz com que seu psiquismo oscile entre a tensão da fome e a satisfação
ocasionada pela diminuição de tal tensão. Posteriormente, com maior
desenvolvimento psíquico, é que poderá haver uma diferenciação entre o
alimento, a comida como alimento que é proveniente da mãe e os prazeres que
a oralidade pode gerar por si só, quando, por exemplo, a criança refaz o
percurso alimentar original ao inserir o polegar em sua boca. Exercitar a
atividade oral é, segundo todos os autores citados neste capítulo, incluindo
Bruch, Ajuriaguerra e Anna Freud, uma atividade que tende ao duplo, pois em
pouco tempo deverá se transformar em uma fonte de satisfação e também ser
uma apaziguadora das necessidades biológicas de nutrição.
Portanto, seguindo esta linha de raciocínio, fica em aberto a
possibilidade para considerar que as experiências de nutrição estariam no seio
de dois aprendizados vitais, sendo um que é básico para a existência humana,
que é a capacidade para se nutrir de forma autônoma, enquanto o segundo
81
AJURIAGUERRA, Jean. Manual de Psiquiatria Infantil. São Paulo: Atheneu, 1976, p.98.
82
FREUD, Anna. Infância Normal e Patológica. Rio de Janeiro: Guanabara, 1976, p.55.
95
83
PALLADINO, Ruth Ramalho Ruivo; CUNHA, Maria Claudia; SOUZA, Luiz Augusto de Paula.
Problemas de linguagem e alimentares em crianças: co-ocorrências ou coincidências? Pró-
Fono R. Atual. Cient., Barueri, v. 19, n. 2, jun. 2007, p.210. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
56872007000200009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 24 Jan. 2011.
96
parece dar suporte à ideia de que a função alimentar, que pode ser dividida em
um primeiro momento no estabelecimento da sensação da fome e da
saciedade, que posteriormente também se ramificará entre necessidade e
desejo, é profundamente dependente da interação com outro ser humano, que
moldará aos poucos o que, em um primeiro momento, não deixava de ser um
impulso instintual. A confusão que ocorre entre as diversas sensações que
vários obesos relatam, entre elas a de trocar este ou aquele sentimento por
comida, parece confirmar bem a afirmação de Freud:
84
FREUD, Sigmund. (1905) A sexualidade infantil. São Paulo: Imago, 1969, p.195. Edição
Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (ESB), v. 5. Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade.
97
85
FERNANDES, Maria Helena. Corpo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 200, p.18..
86
BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p.21.
87
Idem.
88
Idem, p.58.
89
Idem.
98
Eu, pelo contrário, afirmo que a lesão nas paralisias histéricas deve
ser completamente independente da anatomia do sistema nervoso,
pois, nas suas paralisias e em outras manifestações, a histeria se
comporta como se a anatomia não existisse, ou como se não tivesse
conhecimento desta.90
90
FREUD, Sigmund.. (1893) Estudos sobre a Histeria. São Paulo: Imago, 1969, p.59. Edição
Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (ESB), v. 2.
99
91
FREUD, Sigmund, op. cit.
92
Idem.
93
LAPLANCHE, Jean. Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Martins, 2001, p.389.
100
94
FREUD, Sigmund. (1916) Conferências Introdutórias sobre Psicanálise. São Paulo: Imago,
1969, p.159. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (ESB), v. 16.
101
95
FREUD, Sigmund. (1912) O Caso Schreber, Artigos sobre a Técnica e Outros Trabalhos.
São Paulo: Imago, 1969. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud
(ESB), v. 12.
96
VERHAEGHE, Paul. Psychoanalisis, Psychotherapy and Hysteria. New York: The letters,
1994, p.06.
102
Aqui estamos mais uma vez fazendo uma distinção correta entre dois
casos: o caso no qual ocorre algo no id que ativa uma das situações
de perigo para o ego e que o induz a emitir o sinal de ansiedade para
que a inibição se processe, e o caso no qual uma situação análoga
ao trauma do nascimento se estabelece no id, seguindo-se uma
reação automática de ansiedade. Os dois casos podem ser mais
aproximados, se se ressaltar que o segundo corresponde à situação
de perigo mais antiga e original, ao passo que o primeiro corresponde
a qualquer um dos determinantes ulteriores de ansiedade que dela se
tenha originado; ou, conforme aplicado a perturbação com que de
fato nos defrontamos, que o segundo caso é atuante na etiologia das
neuroses ‗atuais‘, ao passo que o primeiro permanece típico para o
das psiconeuroses. 97
97
FREUD, Sigmund. (1925) Além do Princípio de Prazer, Psicologia de Grupo e Outros
Trabalhos. São Paulo: Imago, 1969, p.136. Edição Standard Brasileira das Obras Completas
de Sigmund Freud (ESB), v. 18.
103
98
FERNANDES, op. cit.
99
FREUD, Sigmund. (1900) A Interpretação dos Sonhos. São Paulo: Imago, 1969, p.327.
Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (ESB), v. 5.
104
100
FERNANDES, op. cit., p.55.
101
ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de Psicanálise. São Paulo: Jorge Zahar, 1998, p.370.
105
102
O nervo ulnar é uma ramificação do plexo braquial, mais exatamente do fascículo medial.
Ele pode ser apalpado na parte medial do cotovelo, entre o epicôndilo medial do úmero e o
olécrano (pertencente à ulna). A inervação dele é responsável por metade do 4º dedo e todo o
5º dedo, além do músculo flexor ulnar do carpo e parte medial dos músculos flexores profundos
dos dedos.
103
―A Imagem e Aparência do Corpo Humano‖ em tradução livre.
106
104
DOLTO, Françoise. Imagem Inconsciente do Corpo. São Paulo: Perspectiva, 2004, p.09.
105
Idem, p.37.
106
Idem, p.38.
107
107
Idem, p.43.
108
108
Idem.
109
FERNANDES, op. cit., p. 145.
110
NASIO, Juan David. Meu Corpo e suas Imagens. São Paulo: Zahar, 2008, p.29.
109
111
DOLTO, op. cit., p.177.
110
112
VERHAEGHE, op. cit., p.8.
113
FERNANDES, op. cit., p. 27.
112
114
FREUD, Sigmund, op. cit.
115
Idem.
113
116
VOLICH, Rubens Marcelo. Psicossomática – de Hipócrates a Freud. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2010, p.69.
117
FERNANDES, op. cit, p.56.
114
118
BRUCH, op. cit., p.125.
119
LOLI, op. cit., p.20.
117
120
BRUCH, op. cit., p.127.
121
Idem.
118
122
Idem, p.179.
119
externo, ela ainda não tem a menor segurança sobre como e quando será
alimentada.
O histórico do paciente com obesidade de desenvolvimento costuma
trazer familiares com algum tipo de doença mental que ou está ou já esteve em
tratamento. Tal fato não está sendo associado a nenhuma questão genética
relacionada à obesidade, mas sim à grande possibilidade de que esta criança
seja cuidada por adultos que já apresentam deficiências simbólicas
significativas na sua própria constituição psíquica. Não é incomum que tais
famílias sejam também confusas (esquizofrênicas) quanto à forma como
percebem a função alimentar, pois a comida é, em geral, o único veículo de
transporte de afetos, mesmo quando a criança já adentrou o mundo da
linguagem. Assim, ao invés de abraços, elogios ou broncas por algo que não
deveria ter ocorrido, a criança recebe mais ou menos comida, conforme o
estado que se quer ―elogiar‖ ou ―desvalorizar‖. Não é raro que haja um
imperativo para que a comida seja sempre compartilhada ou consumida em
conjunto, ou seja, a unidade narcísica familiar se fortalece principalmente no
momento da nutrição. Como a comida é forma quase única de punição ou
gratificação, não é incomum que as demandas sobre o corpo sejam diferentes
das que são feitas sobre a comida, uma vez que o corpo magro pode ser
extremamente desejado e buscado, com mãe e filha/o em constante busca por
regimes e dietas, enquanto a própria dupla quebrará o tratamento em
momentos de angústia ou alegria extrema.
Indivíduos com obesidade de desenvolvimento costumam apresentar
sobrepreso ou obesidade desde a infância, mas sua condição psicopatológica
pode permanecer escondida por muito tempo, em especial se ele continuar
vivendo dentro do ambiente da família com funcionamento esquizofrênico.
Nesse contexto, é perfeitamente possível que tal indivíduo passe pela
adolescência sem demonstrar sinais acentuados de psicopatologia, pois aqui
se fala de um adolescente que vai à escola, tem pouco contato com seus
colegas, mas estes provavelmente não lhe chamam tanto a atenção assim,
porque ao final do dia ele poderá retornar ao ambiente aconchegante de sua
família. Esse tipo de paciente, ao ser submetido a qualquer espécie de
emagrecimento, corre um risco sério de desorganização psíquica, com alta
120
123
Idem, p.192.
124
Idem, p.221.
121
125
Idem, p.195.
126
Idem.
127
Idem, p.196.
122
128
Idem.
123
129
Idem.
130
Idem, p.335.
124
131
Idem, p.336.
125
132
BRUCH, op. cit.
126
133
LOLI, op. cit., p. 75.
134
Bruch, op. cit.
127
135
MACIEL, Salvio Ferreira. Obesidade, uma doença do afeto. São Paulo: Health, 2001, p.97.
136
SPADA, Patrícia Vieira. Obesidade e Sofrimento Psíquico. São Paulo: Unifesp, 2009, p.115.
137
Idem.
128
138
SANCHES, Giselle Domingues et al. Cuidados intensivos para pacientes em pós-operatório
de cirurgia bariátrica. Rev. Bras. Ter. Intensiva, São Paulo, v. 19, n. 2, jun. 2007, p.27.
Disponível em: . <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
507X2007000200011&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 30 jan. 2011.
129
139
SPADA, op. cit., p.88.
140
BENEDETTI, Carmen. De obeso a magro – a trajetória psicológica. São Paulo: Vetor, 2003,
p.89.
130
141
Idem.
131
Silmara buscou ajuda psicológica com uma queixa que não parecia
indicar, necessariamente, um problema relacionado à obesidade. Sua queixa
inicial era de que ela não conseguia estabelecer relacionamentos amorosos,
tendo no máximo ―ficado‖ com alguns rapazes, mas não conseguia
compreender o porquê de nunca conseguir um relacionamento fixo, assim
como o fato de nunca ter tido um admirador secreto ou ter sido cortejada.
A seguir, o analista142 que atendeu Silmara, autor desta dissertação,
explica como se deu esse tratamento:
―Seu processo analítico começou de maneira usual, ela parecia muito
cooperativa no início, ao ouvir tudo o que eu tinha para dizer e ficar admirada
com minha capacidade para ‗dar sentido a tudo o que ela estava sentindo‘
(palavras da paciente). Aqui comecei a perceber que as sessões estavam
assumindo um contorno diferente do usual, pois eu falava mais do que ela
durante as sessões, o que começou a gerar em mim uma sensação de
estranhamento. Ao perceber tal dinâmica que estava a se instalar nas sessões,
apontei a minha percepção e questionei o porquê de ela não falar mais e
simplesmente me ouvir. Silmara respondeu que durante toda a sua vida ela
sempre preferiu que lhe dissessem o que fazer ou pensar, porque se ela
falasse algo dela ou sobre ela, poderia acontecer o que ela temia muito, que
era o fato de não ter controle sobre o que o outro pensaria sobre o que ela
dissera.
Ainda não havia compreendido o que realmente estava a ocorrer com
Silmara, até que em outra sessão ela disse que tinha vontade de me diminuir,
me colocar dentro de sua bolsa e me levar para cima e para baixo, para que eu
pudesse interpretar o mundo para ela, sempre que ela precisasse. Foi neste
momento que comecei a ficar pensativo sobre a sua dinâmica, o seu modo de
se relacionar comigo, e a queixa inicial de não conseguir estabelecer
relacionamentos amorosos. Sua obesidade não me chamara a atenção em
142
Houve uma escolha pelo termo ―analista‖, sem a pretensão de querer sugerir que completei
minimamente os requisitos para a formação de um analista pleno. A escolha do termo se deve
a uma questão de estilo e para evitar a mistura de termos como analista, psicólogo e
psicoterapeuta, que poderiam tornar a leitura do texto confusa. O termo, em minha dissertação,
apenas foi utilizado para designar um profissional da saúde mental que trabalha com uma
abordagem psicanalítica e almeja utilizar o referencial psicanalítico em seus atendimentos.
133
não confirmar sua posição passiva. Por enquanto a obesidade como fator
central era ainda uma suspeita distante.
Aos poucos a paciente começou a demonstrar desespero por não obter
mais respostas (interpretativas) da minha parte, pois ela queria ouvir alguém,
afinal ela estaria me pagando para isso, para que eu a ensinasse como se
comportar. Comecei a questionar o porquê de ela não poder falar o que
pensava, assim como também o porquê do seu visual, que estava sempre
impecável, sendo que a própria paciente demonstrava poucas alterações em
sua expressão facial ou corporal. Ela repetiu seu raciocínio de que não gostaria
de falar algo para mim e perder o controle sobre a informação, que preferia do
‗outro jeito‘, no qual ela falava um pouco e eu completava toda a informação.
Também explicou que ela não poderia modificar sua imagem do corpo, pois as
pessoas poderiam pensar ‗coisas sobre ela‘, então ela tinha que viver em um
constante estado de perfeição.
Comecei a pensar nesta paciente em termos de ser ou não uma estátua,
pois ela se comportava como uma. Se nada lhe fosse perguntado, ela nada
falaria; se ela fosse escolher suas roupas e como arrumar o cabelo, ela sempre
estaria vestida como que pronta para um desfile de moda. Tal modo de ser e
funcionar, como se fosse uma estátua, começou a chamar minha atenção.
Conforme a paciente começou a descrever seus poucos encontros amorosos,
que acabavam em fracasso, ela disse que ao sair com um rapaz ela não
escolhia o restaurante, o filme que seria assistido, o horário, ou seja, ela não
escolhia nada, pois poderia desagradar a pessoa. Após o evento que motivara
a saída, ela não expressava sua opinião sobre o filme assistido, o sabor da
pizza escolhido e assim por diante, pois preferia que o outro falasse, para não
magoá-lo ou para que ele não compreendesse de forma errada o que ela
queria dizer.
Ao utilizar várias sessões como exemplo, demonstrei que ela também
fazia o mesmo comigo, que ela nunca discordava do que eu dizia, que ela
preferia que eu escolhesse o tópico da conversa, e questionei se tal tipo de
relacionamento poderia realmente ser considerado um relacionamento. Ao
perguntar o porquê da minha pergunta, eu respondi que um relacionamento
entre dois indivíduos implicava reciprocidade, ou seja, se você toca algo este
algo também lhe toca, e as duas partes acabam modificadas pelo contato.
135
Expliquei que no meu caso o contato era parte de um vínculo terapêutico, mas
que não parecia que ela fizesse de forma diferente com as outras pessoas do
mundo. Aqui a paciente complementou que ela sempre teve ‗uma‘ melhor
amiga, com quem estabelecia uma relação muito próxima e íntima, e que esta
amiga acabava funcionando como um faz-tudo em sua vida, chegando até
mesmo a acompanhá-la em encontros românticos para que a amiga ‗pudesse
falar por mim, para que os dois ficassem dando risada e eu não tivesse o
trabalho de ter que inventar o que falar‘.
Perguntei se tal estratégia tinha alcançado algum grau de sucesso até o
momento, e comecei a questionar como ela gostaria de estar com alguém se a
pessoa não tinha nenhum indicativo sobre o que ela pensava ou sentia. Foi aí
que ela começou a falar que sempre fora assim em sua vida, que na casa dela
ninguém falava nada e todos estavam felizes e se relacionando. Questionei o
que ela queria dizer com isso e ela respondeu que seus familiares falavam
pouco mas que todos se entendiam, informação que não fez sentido em um
primeiro momento, mas que depois ajudou a compreender o quadro. Ao
começar a falar sobre a família, a paciente permitiu que eu questionasse sobre
sua interação familiar, e alguns detalhes interessantes surgiram.
Ela explicou que ela era a irmã mais velha, e que considerava que havia
sido criada como filha única até os sete anos de idade, quando sua irmã
nasceu, e um ano depois nasceu seu irmão caçula. Sua vida teria sido perfeita
até o nascimento dos irmãos, mas ela insistia, na descrição, não sentir nenhum
tipo de sentimento negativo em relação aos irmãos. A vida familiar começou a
ser descrita como um compartilhamento intenso de tudo como comida, ou seja,
se uma pessoa comprasse uma barra de chocolate ela não poderia comê-la
sem avisar o resto da família, para que todos desfrutassem do chocolate. Caso
alguém fizesse isso, a reação familiar era de bastante desagrado, ou seja, toda
a comida deveria ser compartilhada. A cozinha foi descrita como o grande
ponto de encontro da família, onde todos se viam e trocavam palavras,
enquanto os outros cômodos da casa eram verdadeiras prisões, nas quais
cada indivíduo se trancava e parecia viver uma existência quase que
autônoma, fora os momentos em que ‗algum cheiro, algum barulho, avisasse
todos que havia comida na casa‘.
136
143
Bruch, op. cit.
139
aparecia quando todos tinham que saber o que todos estavam comendo, sendo
que o não cumprimento desta regra parecia ser a ofensa suprema dentro
daquele ambiente familiar. A posição passiva em que Silmara se colocava,
sempre aguardando que a nutrição, o cuidado e o conhecimento viessem de
fora, também parece típico.
Cabe ressaltar que Silmara possuía uma estrutura psíquica
razoavelmente boa, o que lhe permitiu permanecer no trabalho psicanalítico,
experimentar tudo o que era conversado em sessões e buscar uma autonomia
em relação aos pais. Após o início do trabalho, Silmara deixou de ter apenas
uma amiga, representante fusional máxima, e passou a ampliar seu círculo de
relações sociais. Em uma das últimas sessões ela relatou, muito feliz, que pela
primeira vez um admirador secreto deixara um presente sobre sua mesa de
trabalho, algo que nunca antes acontecera. Sim, eu completaria, porque ela
finalmente começou a falar, a expressar suas sensações, então finalmente
alguém pode conhecê-la e desenvolver sentimentos por ela.‖
141
dados exatos para fazer cálculos, posso afirmar com segurança que apenas
uma das refeições de Rodolfo provavelmente já excederia as necessidades
máximas de um ser humano de sua idade e altura em diversos elementos,
como quantidade de calorias, sódio e gorduras, por exemplo.
Entre as refeições Rodolfo possuía um comportamento de ―beliscar‖,
pois tanto em casa quanto no trabalho ele sempre possuía à sua disposição
alimentos de fácil ingestão, como bolachas recheadas, salgadinhos, e a
descrição de tais atos de ―beliscar‖ também beirava quantidades gigantescas,
como dois pacotes de bolacha recheada devorados em 5 minutos, por
exemplo. O sedentarismo de Rodolfo também era patente, pois ele descrevia
todas as tentativas de realizar um exercício físico como frustrantes. O fato de o
paciente possuir uma inteligência e cultura acima da média se transformaram
em um obstáculo, pois a sua real passividade ficava disfarçada nas muitas
palavras que ele despejava para justificar seus atos. Assim o não fazer
exercícios era algo relacionado à liberdade de ser no mundo, sendo que tal
conceito seria justificado por algum autor renomado, o que escondia o fato de
que, na realidade, Rodolfo estava paralisado.
O caso de Rodolfo foi mais explícito que o anterior, pois a obesidade já
era um problema declarado para ele, apesar de ele utilizar diversas
racionalizações para justificar que o corpo não era uma questão principal para
ele. Ao citar filósofos como Santo Agostinho e Santo Thomás de Aquino, ele
dizia que o importante era realmente seu cérebro, pois o cérebro representava
a proximidade com o mundo da alma, enquanto o corpo era apenas um
acessório periférico. O cérebro também era seu órgão preferido para sintomas
hipocondríacos, pois o paciente tinha uma grande propensão a ingerir carne de
porco e, em seguida, ao sentir uma dor de cabeça ou um pensamento fora do
esperado, ele já acreditava estar com seu cérebro sendo devorado por
cisticercos provenientes da carne de porco. O paciente já havia feito várias
ressonâncias magnéticas para se certificar da integridade estrutural de seu
cérebro.
Um fator que pode ter auxiliado a psicoterapia psicanalítica de Rodolfo
foi o fato de que ele já havia passado por diversos psicólogos antes de se
consultar comigo, o que lhe fornecera um repertório de percepções e
interpretações, apesar de superficiais. Uma das primeiras coisas que lhe
143
comuniquei é que o trabalho com ele envolvia uma dose grande de sofrimento,
pois o contato com os outros terapeutas lhe dera uma boa ideia de como era
seu funcionamento mental, mas não sobre o porquê e de como prosseguir.
Assim ele sofria ao perceber certos comportamentos dos quais não conseguia
se desvencilhar.
Talvez por já ter tido contato com outros profissionais da saúde mental,
Rodolfo começou a contar a história da sua infância, desde o início, como se
esta fosse a sua obrigação ali. Apesar de ter explicado que não era
estritamente necessário começar por esta via, o paciente parecia preso a tal
modelo analista – analisando, o que parece significativo da posição passiva em
que ele se colocava perante todos. Entretanto, já que ele estava disposto a
fornecer tais informações, pude trabalhar com elas desde o início, o que foi de
grande auxílio. Rodolfo é filho único, sendo que seu pai e mãe se uniram mas
não puderam casar oficialmente em uma cerimônia religiosa, pois o pai de
Rodolfo já havia casado anteriormente. Como a mãe de Rodolfo era
extremamente religiosa, e sua avó materna também, ele nascera como fruto de
uma ―união proibida‖.
Tal fato começou a ficar aparente no fato de que a mãe de Rodolfo, após
engravidar, pediu para que seu pai se retirasse do quarto pois agora ela já teria
um companheiro para cuidar dela. Portanto, desde o útero Rodolfo já ocupava
no imaginário materno a posição daquele que completaria a mãe, que viveria
em fusão com ela, suprindo todas as suas necessidades. A fraqueza do pai
não precisa ser explicitada, pois ele não apenas aceitou a situação como se
distanciou progressivamente, primeiro da esposa grávida e depois do filho, até
que, quando Rodolfo tinha 9 anos de idade, os pais se separaram em caráter
definitivo.
Rodolfo possuía uma série de teorias sobre o porquê de ser da forma
como era, pois todos os seus traços de comportamento indesejados eram ditos
como sendo provenientes ―da genética paterna‖. Apesar do grau de cultura e
inteligência, tanto do paciente quanto de sua família, que faziam com que
soubessem, conscientemente, que a genética paterna não poderia ser
responsabilizada por tantos fatores, o discurso materno sobre o filho
predominava nesta direção. Comecei a explorar a infância de Rodolfo e ele
contou que não dispunha de informações sobre sua amamentação, mas que
144
ele sabia que quando as papinhas foram introduzidas na sua dieta, ocorria algo
curioso, que era o revezamento entre mãe e avó para que ele não sentisse
fome. Assim, uma fruta era cortada ao meio, e enquanto a mãe dava comida
para Rodolfo, a avó já estava raspando a fruta em paralelo, pois quando ele
engolisse a fruta fornecida pela mãe, ele já receberia o alimento da avó. Ao ser
questionado sobre o porquê disso ocorrer, ele apenas disse que sua mãe não
queria que ele chorasse. Portanto, fica claro aqui que Rodolfo não aprendeu a
lidar com a sensação de fome e saciedade, desde o início. Tal fato parece ser
confirmado pela forma como sua avó cuidava dele, pois como pai e mãe
trabalhavam fora, a avó materna era responsável pelos cuidados diários com o
garoto. A avó materna era descrita como extremamente funcional, mas
pouquíssimo afetiva, o que parece autorizar o pensamento de que ela deve ter
cuidado do garoto de acordo com o que ela considerava cuidar, sem considerar
os sinais emitidos por ele. Evidência disso é que Rodolfo sempre estava
agasalhado, mesmo em dias de intenso calor, pois sua avó, que já faleceu, lhe
havia ensinado que ele ficaria resfriado. O paciente parecia completamente
desconectado de suas sensações corporais, pois era possível observar seu
corpo todo suado em um dia de verão, mas ele afirmava não sentir desconforto
algum, que havia crescido estando sempre agasalhado.
Ao nascer Rodolfo continuou a ocupar o espaço privilegiado perante a
mãe, pois dormia no mesmo quarto e na mesma cama que ela. A justificativa
materna para tal fato é que assim seria mais fácil cuidar do menino, mas a
própria mãe admitiu mais tarde para Rodolfo, que diversos profissionais da
saúde haviam incentivado que o garoto tivesse seu próprio quarto, incluindo
pediatra e outros médicos, conselhos que foram ignorados. Rodolfo era
descrito pela mãe como o bebê mais chorão, pois ela ‗nunca mais conseguiu
dormir direito após meu nascimento‘. A única forma de acalmar Rodolfo era a
comida, inicialmente leite materno, depois diversas substâncias para bebês,
mas o leite materno foi utilizado até os quatro anos de idade, ou seja, toda vez
que Rodolfo demonstrava algum desagrado, ele recebia o seio materno como
compensação. Não ficava claro na descrição do paciente se a mãe ainda
possuía leite materno ou se apenas o seio lhe era oferecido como apaziguador,
mas o fato em si demonstra o uso da função alimentar de forma perversa.
145
Rodolfo não poderia ser frustrado, e não era. A boa condição econômica
de sua família fazia com que ele tivesse todos os brinquedos, pudesse
começar qualquer atividade para depois desistir, sem nenhuma consequência
prática. A única demanda familiar que parecia ser feita para ele, fora a de
ocupar o espaço de companheiro da mãe, era a de apresentar um
desenvolvimento intelectual acima da média. Por tal motivo Rodolfo foi
alfabetizado e estimulado intelectualmente de forma bem precoce, mas como
tais atividades eram ministradas pela mãe, elas não pareciam incomodá-lo,
pelo menos não no início. Conforme Rodolfo cresceu, seu apetite era voraz,
mas extremamente seletivo, recusando todo tipo de comida que se
assemelhasse a legumes ou vegetais. Sua alimentação se baseava em muitos
carboidratos, alimentos processados e muita carne ou fontes de proteína, como
leite e ovos.
Rodolfo viveu em uma espécie de palácio de cristal até a entrada em
sua adolescência, quando começou a desenvolver uma sombra de interesse
por garotas. A primeira menina da qual se aproximou o rejeitou, e tal fato o
deixou em uma profunda confusão mental, pois, segundo ele, ‗era inconcebível
que alguém não gostasse de mim‘. A primeira rejeição da adolescência pode
ser considerada como a primeira grande experiência de frustração de Rodolfo,
mas ele não obteve suporte algum para lidar com a experiência. O pai, figura
extremamente enfraquecida, nem sequer tocava no tópico ‗mulheres‘ ou
‗paquera‘ com o filho. A partir desta rejeição Rodolfo desenvolveu uma aversão
por garotas, sendo incapaz de cumprimentar uma moça, mesmo que através
de um simples aperto de mão.
A experiência de rejeição foi tão intensa para Rodolfo, que ele começou
a comer ainda mais e a se envolver com cultos místicos, nos quais
desenvolveu a fantasia de ser um enviado divino, um emissário de Deus que
iria purificar o mundo e que tinha uma missão especial neste planeta. Ao
mesmo tempo, já com seus 16 anos, ele continuava a dormir na mesma cama
que a mãe, e seus delírios religiosos eram acompanhados de fobias, como
medo do escuro, medo de que o quarto fosse enchido por demônios caso ele
ficasse sozinho à noite, ou seja, angústia crua e generalizada, expressa
através da linguagem religiosa típica da família. Foi nessa época que Rodolfo
buscou ajuda psiquiátrica e começou a ser medicado. Apesar do relativo
146
para as pessoas o que sentia e começou a perceber que havia uma eficácia
interna no que ele dizia. Algo muito importante a ser trabalhado com Rodolfo foi
o fato de que o controle obsessivo que ele tentava exercer sobre as situações
era ilusório, pois diversos fatores escapavam ao seu suposto poder. O paciente
começou a valorizar mais sua capacidade para realizar integralmente uma
ação, no sentido de unir razão e emoção no mesmo ato, ao invés de tentar
prever o desfecho do ato.
A perda efetiva de peso começou quando Rodolfo reconheceu que os
sentimentos que nutria pela garota eram maiores do que ele costumava admitir,
e que sua atual noiva havia sido escolhida apenas por critérios racionais.
Conforme ele admitia seu amor pela outra mulher, diversas fantasias
começaram a surgir, em especial a de que ele não seria grande o suficiente,
bom o suficiente, suficiente no geral para uma moça tão especial quanto
aquela. Aqui foi o momento de trabalhar a separação eu – não eu, até que
Rodolfo compreendeu que quem poderia julgar se ele era ou não suficiente
para a moça seria a moça, e não ele. Parece que Rodolfo ficou impressionado
com a ideia de que ele era onipotente ao tentar prever a escolha da moça, pois
tal ato retiraria o poder de decisão dela.
Ao optar por uma nova mulher, escolhida por critérios que envolviam
corpo e mente, sensação e razão, Rodolfo começou um lento processo de
desligamento da figura da mãe todo-poderosa, que começou a dar espaço para
a nova mulher que agora ocupava seu psiquismo. Ao mesmo tempo, Rodolfo
intensificou o contato com seu pai, e começou a ouvir a versão paterna dos
fatos que haviam ocorrido na sua infância, o que foi muito importante, pois
desconstruiu alguns mitos criados pela versão unicamente materna sobre a sua
vida. Rodolfo começou a controlar a ingestão de alimentos, iniciou atividade
física com frequência e teve a coragem de buscar uma nova mulher para
ocupar o espaço de seu psiquismo, antes preenchido apenas pela figura
materna. Não se pode dizer que Rodolfo emagreceu, mas ele conseguiu sair
da obesidade mórbida e, na última vez que o vi ele estava a caminho da
obesidade tipo I, o que já é um ganho considerável. Seus exames médicos
melhoraram em todos os sentidos, assim como os psíquicos, pois o desejo de
ser ativamente suficiente para uma nova mulher que não a mãe fez com que
148
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, existem aqueles que sofrem em sua luta com a obesidade, que
tentam de diversas formas abordar o problema e não conseguem resolvê-lo,
vítimas de dezenas de tentativas frustradas, em geral devido ao despreparo
dos profissionais que os atenderam. A obesidade refratária a tratamentos não
pode e não deve ser tratada por apenas um profissional da Saúde, mas sim por
um grupo, que se comunica e estabelece estratégias em conjunto. Infelizmente
a formação de tais grupos multidisciplinares é algo que existe muito mais em
teoria do que na prática, pois o que se tem percebido na prática clínica e lido
em artigos científicos é a constituição de abordagens encasteladas, que
buscam cada vez mais estabelecer seu domínio sobre o corpo obeso.
Aqui reside outro dilema ético, porquanto a obesidade é uma patologia
que causa considerável sofrimento, e seu tratamento implica o investimento de
grandes quantias de dinheiro, o que pode gerar um conflito de interesses entre
as diversas entidades que se dedicam ao seu estudo e tratamento. Se por um
lado uma cura é buscada, a cura definitiva significa o fim de uma fonte
significativa de renda. Talvez tal fato ajude a explicar o porquê de tantos
obesos demorarem tanto tempo para chegar até serviços de saúde que
realmente possam tratar sua condição.
Estabelecido um diagnóstico seguro de obesidade multifatorial, ou seja,
que não pode ser atribuído a apenas uma ou outra causa, os programas de
tratamento já estão bem definidos pela comunidade científica.
Independentemente do tipo de obeso com que se está lidando, parece
apropriado que ele tenha contato com um profissional da área psicológica, pelo
menos durante alguns momentos de seu tratamento. Caberá a este profissional
detectar se o processo de emagrecimento está sendo acompanhado de
sofrimento psíquico desproporcional ao que é esperado.
Caso tal suspeita se confirme, torna-se imperativo que o tratamento
deste tipo específico de obeso tenha um acompanhamento psicológico e
psiquiátrico intenso, pois para este grupo de obesos emagrecer pode significar
a perda das defesas psíquicas melhor construídas e mantidas durante anos e
anos. Sua retirada súbita pode trazer angústia leve, moderada, ou um
verdadeiro sentimento de desintegração que beira a psicose, sendo que as três
situações exigirão abordagens individualizadas. Para tais pacientes considera-
se a contribuição de Hilde Bruch indispensável, por propor uma forma de
154
144
FERNANDES, Maria Helena. Transtornos Alimentares. São Paulo: Casa do Psicólogo,
2006, p.39.
156
145
Idem, p.40.
146
VARELA, Ana Paula Gramacho. Você tem fome de quê?. Psicol. Cienc. Prof., mar. 2006,
vol.26, n.1 [citado 12 fevereiro 2008], pp.82-93. Disponível em: <http://pepsic.bvs-
psi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932006000100008&lng=pt&nrm=iso>.
ISSN 1414-9893. Acesso em 31 jan. 2011.
157
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York: Basic Books, 1978.
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FERRO, Rogério. Brasil tem 21 sabores sob risco de extinção. Disponível em:
<http://mercadoetico.terra.com.br/arquivo/brasil-tem-21-sabores-sob-risco-de-
extincao/>. Acesso em: 18 jan. 2011.
----------------. (1893) Estudos sobre a Histeria. São Paulo: Imago, 1969. Edição
Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (ESB), v. 2.
LOLI, Maria Salete Arenales. Obesidade como sintoma. São Paulo: Vetor,
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