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Fides 22 N2 PDF
Fides 22 N2 PDF
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Semestral.
ISSN 1517-5863
CDD 291.2
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Editores Gerais
Daniel Santos Júnior
Dario de Araujo Cardoso
Editor de resenhas
Filipe Costa Fontes
Redator
Alderi Souza de Matos
Editoração
Libro Comunicação
Capa
Rubens Lima
Volume XXII · Número 2 · 2017
Edição ESpEcial
5º cEntEnário da rEforma protEStantE
Pede-se permuta.
We request exchange. On demande l’échange. Wir erbitten Austausch.
Se solicita canje. Si chiede lo scambio.
Artigos
A reforma e os historiadores
Alderi Souza de Matos................................................................................................................... 11
Resenhas
Calvino e a vida cristã (Michael Horton)
Dario de Araujo Cardoso.............................................................................................................. 163
Cuidado com o alemão – Três dentadas que Martinho Lutero dá à nossa época
(Tiago Cavaco)
Tarcizio Carvalho........................................................................................................................... 179
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22
A Reforma e os Historiadores
Alderi Souza de Matos*
RESUMO
A Reforma Protestante, movimento que completa o seu 5º centenário,
tem sido objeto de intenso escrutínio por parte dos estudiosos. Esse interesse
se deve à relevância do fenômeno e suas vastas consequências para o mundo
moderno. Ao mesmo tempo, trata-se de um tema altamente controvertido, no
qual variam grandemente as perspectivas e interpretações. Inicialmente, este
artigo faz algumas considerações historiográficas gerais, passando em seguida
a abordar alguns tópicos que têm sido objeto de divergências e reconsiderações
nas últimas décadas. São eles o caráter múltiplo da Reforma do século 16, suas
fontes intelectuais, sua motivação prioritária e suas consequências. Por últi-
mo, são feitas algumas considerações sobre o legado duradouro desse evento
histórico iniciado há 500 anos.
PALAVRAS-CHAVE
Reforma Protestante; 500 anos da Reforma; Historiografia; Historiadores;
Interpretações da Reforma.
INTRODUÇÃO
Como é natural, o transcurso do 5º centenário da Reforma Protestante
tem suscitado um grande número de reflexões de natureza bíblica, teológica,
litúrgica e pastoral. Embora essas perspectivas sejam altamente relevantes, as
comemorações, por sua própria natureza, remetem em primeiro lugar ao aspecto
histórico. É acima de tudo um evento ou conjunto de eventos – o início do
movimento protestante – que está sendo lembrado. Ao mesmo tempo, o estudo
11
ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES
1. QUESTÕES HISTORIOGRÁFICAS
James Bradley e Richard Muller observam que “antes de meados do
século 18, o estudo da história da igreja era acrítico; ela era quase invariavel-
mente escrita desde uma perspectiva confessional, sendo qualquer coisa menos
desinteressada”.1 Dois exemplos clássicos são encontrados no próprio século 16.
Um deles são as famosas Centúrias de Magdeburgo (1559-1574), escritas por
um grupo de estudiosos liderados por Matias Flacius Illyricus. Essa história
da igreja produzida sob o ponto de vista luterano procurou demonstrar que
o luteranismo era uma afirmação do que havia de melhor na antiga tradição
cristã. Em resposta, o erudito católico César Barônio publicou seus igualmente
volumosos Anais Eclesiásticos (1588-1607), argumentando em favor da conti-
nuidade entre o catolicismo do século 16 e os primeiros séculos da era cristã.2
Em meados do século 18, na esteira do Iluminismo e em certa medida
do Pietismo, duas mudanças básicas de perspectiva foram essenciais para o
surgimento da historiografia crítica: maior preocupação científica com a aná-
lise de documentos originais e liberdade para interpretar as fontes de maneira
mais isenta e objetiva. Surgiu assim uma importante linhagem de historiadores
em moldes científicos, todos eles alemães, a começar de Johann Lorenz von
12
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22
13
ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES
secundárias. Essa história precisará deter-se nos aspectos pontuais, tais como
personagens e eventos, e ao mesmo tempo relacioná-los com o quadro mais
amplo, o contexto religioso-político-social da Europa quinhentista. Essa história
deve buscar a objetividade e a serenidade na análise dos dados, sem deixar
de lado a simpatia pelo assunto, o envolvimento pessoal com os temas sob
estudo. Para os cristãos que creem na ação providencial de Deus, ela também
inclui a busca de significados maiores, muitas vezes não inteiramente óbvios,
que trazem lições para a contemporaneidade.
8 A mais antiga história da Reforma publicada continuamente no Brasil até o presente é História
da Reforma do Décimo Sexto Século, do pastor protestante suíço Jean-Henri Merle D’Aubigné (1794-1872).
O primeiro a traduzir essa obra para o português foi o escritor Júlio Ribeiro.
9 Parte III de: KEE, Howard Clark et al. Christianity: A social and cultural history. Nova York:
Macmillan; Toronto: Collier Macmillan, 1991.
10 LINDBERG, Carter. As reformas na Europa. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2001. Outra ocorrência
do conceito pode ser encontrada em: DOWLEY, Tim (Org.). História do cristianismo: Guia ilustrado.
Venda Nova, Portugal: Bertrand, 1995, p. 410.
14
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22
11 MCGRATH, Alister E. Origens intelectuais da Reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2007; O
pensamento da Reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2014.
15
ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES
o tomismo (de Tomás de Aquino) e o scotismo (de Duns Scotus), os quais não
exerceram maior influência sobre a Reforma. A vertente nominalista também
se dividiu em duas alas, a via moderna e a schola augustiniana moderna, sen-
do a primeira de tendência pelagiana e a segunda alinhada com a teologia de
Agostinho e sua ênfase na plena soberania de Deus na salvação. Esta última
teve um impacto considerável no pensamento de Lutero.
Quanto ao humanismo, McGrath observa: “Dos muitos afluentes inte-
lectuais e culturais que contribuíram para o fluxo da Reforma, provavelmente
o mais importante foi o humanismo renascentista”.12 Os humanistas, ou seja,
os intelectuais do Renascimento, eram indivíduos religiosos e se interessavam
pela renovação da igreja. Seu famoso lema Ad fontes – “de volta às origens” –
dirigiu suas atenções não somente para os textos da antiguidade clássica de
um modo geral, mas para uma obra em particular, a Bíblia, vista como o
instrumento para dinamizar e revitalizar o cristianismo da época. Quem mais
insistiu nisso foi o holandês Erasmo de Roterdã, o “príncipe dos humanistas”,
em seu livro Enchiridion militis christiani (“Manual do soldado cristão”), no
qual exaltou o papel dos leigos e seu direito de amplo acesso à Escritura. Ele
também foi responsável por uma edição do Novo Testamento em grego e latim
(1516), que causou profundo impacto na época, em parte pelo fato de apontar
alguns erros de tradução na Vulgata de Jerônimo. McGrath argumenta que a
influência do humanismo foi muito maior na Reforma suíça do que na alemã.13
Alguns autores, como Pierre Chaunu e Steven Ozment, colocam as reformas
do século 16 num contexto mais amplo de reformas que vinham ocorrendo
desde o século 13.14
16
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22
16 OBERMAN, Heiko A. The Reformation: roots and ramifications. Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1994, p. xii. Minha tradução.
17 CAMERON, Euan. The European reformation. New York: Oxford University Press, 1991, p. 422.
Minha tradução.
18 COLLINSON, Patrick. The late medieval church and its reformation: 1400-1600. In: MCMAN-
NERS, John (Org.). The Oxford Illustrated History of Christianity. Oxford: Oxford University Press,
1992, p. 246. Minha tradução.
17
ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES
Uma conclusão a ser tirada do acúmulo das pesquisas recentes sobre a Igreja
Latina antes da convulsão é que ela não era tão corrupta e ineficaz como os
protestantes tendem a retratá-la, e que ela em geral satisfazia as necessidades
espirituais das pessoas do final do período medieval.19
19 MACCULLOCH, Diarmaid. The Reformation. Nova York: Penguin, 2004, p. xx. Minha tradução.
20 COLLINSON, The late medieval church and its reformation, p. 245. Minha tradução.
21 Ibid. Minha tradução.
22
FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe; WILSON, Derek. Reforma: o cristianismo e o mundo
1500-2000. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 12.
23 Ibid., p. 372, 376. Ao mesmo tempo, o livro procura transmitir uma visão quase benigna da
Inquisição (p. 384).
18
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22
24 Nos anos 60, no contexto do Concílio Vaticano II, autores católicos publicaram avaliações mais
positivas da Reforma. Por exemplo: DANIEL-ROPS, Henri. A igreja da Renascença e da Reforma. São
Paulo: Quadrante, 1996 (1961); DOLAN, John P. History of the Reformation: a conciliatory assessment
of opposite views. Nova York: Desclee, 1965.
25 DAWSON, Christopher. A divisão da cristandade: da Reforma Protestante à era do Iluminismo.
São Paulo: É Realizações, 2014, p. 194.
26 MACCULLOCH, Diarmaid. The Reformation. Nova York: Penguin, 2004, p. xix.
19
ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES
o olhar em volta de si, via no solo mais ruínas que construções”.27 Ele sacudiu o
jugo do papa, mas colocou em seu lugar o jugo ainda mais opressor do Estado.
3. O LEGADO DA REFORMA
Como se pode observar, o juízo dos historiadores seculares, católicos e até
mesmo de muitos protestantes sobre a Reforma Protestante pode ser bastante
severo. No entanto, alguns estudiosos procuram destacar diversos legados
construtivos, como é o caso de Alister McGrath. Falando sobre o impacto da
Reforma na história, ele arrola os seguintes fatores: uma atitude positiva em
relação ao mundo, a ética protestante do trabalho, sua influência sobre o ca-
pitalismo, as mudanças políticas, sua conexão com o surgimento das ciências
naturais.28 No final do seu livro sobre as reformas na Europa, Carter Lindberg
afirma que “os legados das Reformas afetaram cada aspecto da vida e do pen-
samento modernos”.29 Ele menciona, entre outras, as seguintes áreas que foram
atingidas: política, cultura, mulheres, tolerância, economia, educação, ciência,
literatura e artes. O historiador Patrick Collinson observa: “É inevitável que
uma coisa tão ampla como a Reforma tenha sido considerada causa de muitas
coisas... é possível considerá-la causa de quase tudo o que quisermos”.30
É preciso lembrar que, sendo a Reforma acima de tudo um movimento
de natureza religiosa e doutrinária, o seu maior legado se deu nessa área. O
eminente historiador Owen Chadwick, falecido em 2015, observou: “Depois
de Lutero, não era possível, seja aos protestantes ou aos católicos, imitar
algumas das velhas maneiras de negligenciar a graça e a soberania de Deus.
Na medida em que o Protesto consistiu no brado de Lutero de que a salvação
não era por meio do ritual... o Protesto foi triunfante”.31 Mais concretamente,
Lutero insistiu no fato de que o ser humano só pode ser salvo pela graça de
Deus, e não por qualquer mérito, virtude ou esforço pessoal. Somente pela fé,
ela mesma também uma dádiva divina, podemos nos apropriar do que Cristo
fez por nós. Collinson observa: “A doutrina de Lutero de que o homem é re-
dimido exclusivamente por meio da fé libertava o homem da moralidade, mas
também para a moralidade”. E conclui: “Aí se encontra a diferença essencial
entre o que se tornaria o Protestantismo e o Catolicismo, tal como este foi
reconstituído no Concílio de Trento”.32
27 FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. Porto Codex, Portugal: Edições Asa, 1994,
p. 264.
28 MCGRATH, O pensamento da Reforma, p. 286-300.
29 LINDGERG, As reformas na Europa, p. 423.
30 COLLINSON, Patrick. A Reforma. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, p. 229-230.
31 CHADWICK, Owen. The Reformation. The Pelican History of the Church. Londres: Penguin,
1988, p. 444.
32 COLLINSON, A Reforma, p. 75. Minha tradução.
20
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22
CONCLUSÃO
Os exemplos arrolados neste artigo mostram o quanto os compromissos
prévios dos historiadores afetam a maneira como interpretam a história da
Reforma. Assim como alguns deles, principalmente secularistas e católicos
romanos, tendem a relativizar a importância desse movimento, os evangélicos
(no sentido original da palavra) se sentem no dever de apontar os elementos
apreciáveis e construtivos dessa história. Eles não se recusam a admitir que a
Reforma teve suas falhas. O protestantismo gerou uma grande cisão no mundo
cristão e muitas vezes atribuiu importância excessiva aos governantes civis,
praticou ações intolerantes, envolveu-se em guerras, não soube manter a sua
própria unidade interna. Assim, os 500 anos, longe de serem uma ocasião para
celebrações ufanistas, devem ser um convite para a reflexão, para a reafirmação
de princípios, para a gratidão a Deus pela longa caminhada desse movimento,
que, apesar dos percalços, têm produzido frutos extraordinários na vida da
igreja e do mundo.
Fazendo uma avaliação final da Reforma e suas vicissitudes, MacCulloch
fala pelos seus contemporâneos secularizados do início do século 21 ao declarar:
“Nós não temos o direito de adotar uma atitude de superioridade intelectual
ou emocional, especialmente à luz das atrocidades que a Europa do século 20
33 NOLL, Mark A. Momentos decisivos na história do cristianismo. Trad. Alderi S. Matos. São
Paulo: Cultura Cristã, 2000, p. 170-173.
34 Ibid., p. 174.
35 Ibid., p. 176. Ver também: MCGRATH, Alister E. Lutero e a teologia da cruz: a ruptura teológica
de Martinho Lutero. São Paulo: Cultura Cristã, 2014.
21
ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES
ABSTRACT
The Protestant Reformation, a movement that commemorates its fifth
centennial, has been the object of intense investigation by many scholars.
This interest on the topic is due to the relevance of the Reformation and its
vast consequences for the modern world. At the same time, it is a highly
controversial subject, with a wide variety of perspectives and interpretations.
Initially, this article makes some general historiographical considerations about
the Reformation. Then it adresses several aspects that have given occasion
to disagreements and reappraisals in the last decades. They are the multiple
character of the Reformation, its intellectual sources, its primary motivations,
and its consequences. Finally, the author makes some considerations about the
lasting legacy of the Reformation.
KEYWORDS
Protestant Reformation; 500th anniversary of the Reformation; Historio-
graphy; Historians; Interpretations of the Reformation.
22
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41
RESUMO
Destacamos no presente artigo a importância que teve para os refor-
madores a discussão sobre o uso da música na liturgia. Mostramos que tanto
para Lutero quanto para Calvino o poder de mobilização emocional da música
deveria ser utilizado para conduzir os crentes à adoração de Deus. Calvino
destacou-se por defender que esse poder deveria estar a serviço da edificação
e do ensino e incentivou a produção de cânticos de fácil assimilação, cujas
letras conduzissem à meditação em Deus e em suas obras. O cântico de salmos
e outros textos bíblicos metrificados e adaptados ao contexto cristão mostrou-se
o meio mais apropriado para isso e resultou na produção da obra que ficou
conhecida como o Saltério de Genebra.
PALAVRAS-CHAVE
Reforma; Liturgia; Música; Lutero; Calvino; Cântico de Salmos.
INTRODUÇÃO
A liturgia é um dos aspectos primordiais de uma religião. Ela é o elemento
que dá forma e expressão às crenças de determinado grupo. Antes mesmo do
discurso é a liturgia o primeiro aspecto a observar quando da aproximação a
determinada crença. Durkheim demonstrou que as crenças e os ritos são os
* Doutor em Semiótica e Linguística Geral pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Huma-
nas da Universidade de São Paulo, Mestre em Teologia e Exegese pelo CPAJ, Mestre em Ciências da
Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor assistente de Teologia Pastoral no CPAJ.
Coordenador e professor do Departamento de Teologia Exegética do Seminário Presbiteriano Rev. José
Manoel da Conceição. Membro da equipe pastoral da Igreja Presbiteriana do Centenário, em São Paulo.
23
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...
Dessa forma, a consideração dos aspectos litúrgicos não dever ser vista
apenas como subsidiária, mas como elemento essencial para a compreensão e
análise da Reforma. Em particular, o estudo das questões relacionadas ao papel
da música na liturgia e dos instrumentos preparados para este fim servirá de
grande proveito para o desenvolvimento desse campo de pesquisa.
Neste artigo descrevemos o pensamento de Lutero e Calvino sobre o
uso da música na liturgia. Em seguida focalizamos os desdobramentos dos
princípios de Calvino na proposição e confecção do Saltério de Genebra. A
exposição é feita sob o referencial teórico semiológico de Nattiez, que propõe
que a música remete a seu ambiente filosófico, ideológico e religioso, entre
1 DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996,
p. 457.
2 MAAG, K.; WITVLIET, J. D. Worship in Medieval and Early Modern Europe: Change and
continuity in religious pratice. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2004, p. 1.
3 MCKEE, E. A. Reformed Worship in Sixteenth Century. In: VISCHER, L. (Org.). Christian
Worship in Reformed Churches Past and Present. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2003, p. 3.
4 NOLL, Mark A. Momentos decisivos na história do Cristianismo. São Paulo: Cultura Cristã,
2000, p. 206.
24
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41
outros, de modo que seu estudo procura distinguir três tipos de temporalidade:
“o tempo da obra (seu desenrolar no tempo), o tempo dos processos que a ori-
ginaram e das estratégias perceptivas que ela coloca em movimento, e o tempo
da história”.5 Lidaremos especialmente com a segunda forma de temporalidade.
O canto litúrgico medieval era marcado por sua origem monástica, um canto
“clerical”, elaborado e estabelecido para ser entoado por “profissionais” da
religião, que dispunham de tempo e conhecimentos musicais para um apri-
moramento e uma exaustiva complexidade, chegando a ponto de surgir uma
rivalidade entre os diferentes mosteiros na execução destes requisitos, uma forma
deturpada dos levitas bíblicos. A celebração da missa era o lugar da apresentação
do desenvolvimento de suas técnicas e aprimoramento de sua arte. O povo parti-
cipava passivamente, assistindo a um espetáculo musical em que não entendia o
porquê da música, nem o que se cantava, porque não compreendia a letra cujos
arranjos altifônicos sufocavam a compreensão.6
Portanto, [escreveu Lutero] não foi sem razão que os padres da Igreja, e os
profetas, sempre quiseram intimamente juntas a Música e a Igreja; e, por isso,
5 NATTIEZ, J. J. Music and Discourse: Toward a Semiology of Music. Princeton, NJ: Princeton
University Press, 1990, p. 31.
6 SILVA, Jouberto Heringer da. A música na liturgia de Calvino em Genebra. Fides Reformata
VII-2 (2002): 85-104, p. 93.
7 SANTOS, G. Do Salmo 5 ao “Atos 2” – Uma panorâmica sobre salmos e hinos na música
evangélica no Brasil. Ex Corde, 2006, p. 2. Disponível em: http://www.hinologia.org/do-salmo-5-ao-
-atos-2-uma-panoramica-sobre-salmos-e-hinos-na-musica-evangelica-no-brasil-gilson-santos/. Acesso
em: 28 ago. 2017.
8 RAYNOR, H. História social da música: Da Idade Média a Beethoven. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1972, p. 129.
25
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...
temos tantos hinos e salmos. É mediante esse precioso dom, atribuído apenas à
humanidade, que todo homem lembra seu dever de sempre louvar e glorificar
a Deus.9
Assim, Lutero deu grande atenção à estrutura musical. Por isso, chamou
Johann Walther, músico experimentado que chegou a ser Kappellmeister do
eleitor da Saxônia, para realizar minuciosa organização musical da música
luterana.12
Além do aproveitamento de vários elementos musicais na liturgia, Lutero
mostrou-se um profícuo compositor de hinos e corais. Costa registra que ele
compôs 36 hinos e várias melodias.13 A mais conhecida de suas composições
é uma paráfrase do Salmo 46, Ein feste Burg ist unser Gott (“Castelo Forte”),
que se tornou o hino do protestantismo por toda parte. Esse modo de tratar os
salmos para o cântico destacou-se na produção de Lutero, pois outro impor-
tante hino de sua autoria é uma paráfrase do Salmo 130, Aus tiefer Not (“Em
profunda aflição”).
Vemos que Lutero tinha na liturgia um instrumento de instrução e forta-
lecimento doutrinário e que foi pródigo no emprego da liturgia como elemento
propagador da doutrina e da fé. Vemos também que ele tinha no canto um dos
principais elementos da liturgia. O valor que Lutero dava à música era tão
9 Ibid.
10 Ibid., p. 130.
11 Ibid., p. 132.
12 Ibid., p. 130.
13 COSTA, Hermisten M. P. da. Princípios bíblicos de adoração cristã. São Paulo: Cultura Cristã,
2009, p. 185.
26
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41
27
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...
Eles logo descobriram que, embora todos viessem de uma única tradição cristã,
tinham dois espíritos diferentes – que Lutero apontou com cândida observação,
provavelmente a Martin Bucer: “Você tem um espírito diferente do meu”. Lu-
tero representava a velho ensino e piedade. Zuínglio, Bucer, Oecolampadius
representavam o novo ensino e o novo tipo de piedade.18
28
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41
mos, por experiência, que cantar tem grande força, vigor de mover e inflamar
os corações dos homens para envolvê-los em adoração a Deus com mais
veemência e ardente zelo”.23 Isso implica o esforço em insistir que a música
fosse utilizada na liturgia com esse sublime fim: “É preciso haver canções não
somente honestas, mas também santas, que como aguilhões nos incitem a orar
e a louvar a Deus e a meditar nas suas obras para amar, honrar e glorificá-lo”.24
Por isso, a música deveria ter foco no que se cantava, ser simples e apropriada
para ser cantada sem treinamento, e em uníssono.25
23 CALVINO. J. Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, 1543, p. 3. Disponível em: http://
www.monergismo.com/textos/jcalvino/prefacio_salterio_genebra_calvino.htm. Acesso em: 5 ago. 2008.
24 Ibid., p. 5.
25 SILVA, Música na liturgia de Calvino, p. 88.
26 WHITE, Protestant Worship, p. 66.
27 MCNEILL, John T. The History and Character of Calvinism. Oxford: Oxford University Press,
1967, p. 139
29
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...
Calvino foi influenciado de certa maneira pela adoração dirigida por Martin
Bucer em Estrasburgo, durante o período em que lá permaneceu (1538-1541),
pastoreando os franceses banidos que desejavam cultivar sua fé em liberdade.
Algo que chamava a atenção de Calvino era o entusiasmo com que os franceses
ali exilados cantavam salmos quando se dirigiam ao culto.29
Pois nosso Senhor não instituiu a ordem que devemos obedecer quando nos
reunimos em Seu Nome, somente para entreter o mundo quando este olha e
observa, antes, ele deseja que o culto seja útil para todo o seu povo; como São
Paulo testemunhou, ordenando que tudo que for feito na Igreja seja direcionado
à edificação comum de todos; isto ao servo não teria ordenado, não fosse esta a
intenção do Mestre. Mas isto não pode ser feito, a menos que sejamos instruídos
a usar a inteligência em tudo que foi ordenado para o nosso proveito. 31
28 VAN HALSEMA, Thea B. João Calvino era assim. São Paulo: Vida Evangélica, 1968, p. 100.
29 COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 161.
30 SANTOS, Do Salmo 5 ao “Atos 2”, p. 2.
31 CALVINO, Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, p. 1.
30
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41
O evangelho não é uma doutrina de língua, senão de vida. Não pode assimilar-
-se somente por meio da razão e da memória, senão que chega a compreender-se
de forma total quando ele possui toda alma, e penetra no mais íntimo recesso
do coração. [...] os cristãos deveriam detestar àqueles que têm o evangelho em
seus lábios, porém não em seus corações.33
O método pelo qual, em nossas igrejas, todos oram em comum na língua popular,
e homens e mulheres indiscriminadamente cantam os salmos, nossos adversários
podem ridicularizar se quiserem, aprouve ao Espírito Santo trazer testemunho
a nós do céu, enquanto ele repudia os sons confusos e sem significado que são
pronunciadas em outro lugar.36
31
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...
culto deve ser objeto de especial cuidado e consideração. Calvino registra que
“cantar tem grande força, vigor de mover e inflamar os corações dos homens
para envolvê-los em adoração a Deus com mais veemência e ardente zelo”.39
Por isso, Calvino requer que as músicas tenham peso e majestade, rejei-
tando aquelas que sejam frívolas ou triviais, que haja diferença marcante entre
a música de entretenimento e o que é cantado na igreja e que ela seja usada com
moderação de modo que sirva a coisas honesta e não dê lugar à dissolução ou
se torne instrumento de lascívia ou impureza. Isso não quer dizer que Calvino
queria que a música ficasse restrita aos cultos. Ao contrário, seu intuito era
que ela, como de fato aconteceu, fosse cantada nos campos e nos lares como
o que ocorria na igreja cristã por volta do quarto século.40 Sua preocupação
era precaver-se de futilidades e alegrias tolas e viciosas e conduzir a igreja à
alegria espiritual recomendada nas Escrituras. “É preciso haver canções não
somente honestas, mas também santas, que como aguilhões nos incitem a orar
e a louvar a Deus e a meditar nas suas obras para amar, honrar e glorificá-lo”.41
O cântico de salmos é, dessa forma, o corolário do princípio da utilidade
do culto para a edificação. Ainda que haja outros cânticos apropriados, ne-
nhum deles pode superar os salmos em virtude de que estes foram dados por
inspiração do Espírito Santo. Calvino escreve: “Portanto, quando procuramos
diligentemente, aqui e ali, não iremos encontrar cânticos melhores, por mais
apropriados que sejam os seus propósitos, do que os Salmos de Davi, que o
Espírito Santo falou e preparou através dele”.42
Em confirmação disso, cita Agostinho, que viu no cântico de salmos o
modo de usufruir da música sem pecado, que dizia que “ninguém é capaz de
cantar algo digno de Deus, exceto aquilo que recebemos dele”; e Crisóstomo,
ardoroso defensor do cântico de salmos, que entendia que essa prática nos faz
associados à companhia dos anjos.43
39 Ibid.
40 CARDOSO, Dario A. O cântico de Salmos na Igreja Cristã até a Reforma. Ciências da Re-
ligião – História e Sociedade, v. 9, n. 2 (2011): 26-51, p. 35ss.
41 CALVINO, Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, p. 3-5.
42 Ibid., p. 5.
43 Ibid.
44 COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 161.
32
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41
As riquezas variadas e esplêndidas que compõem este tesouro não são algo
fácil de se expressar em palavras; tanto é verdade que estou bem consciente de
que, seja como melhor me expresse, estarei longe de revelar todas a excelência
do tema.46
“Uma Anatomia de Todas as Partes da Alma”, pois não há sequer uma emoção
da qual alguém porventura tenha participado que não esteja aí representada
como num espelho. Ou, melhor, o Espírito Santo, aqui, extirpa da vida todas
as tristezas, as dores, os temores, as dúvidas, as expectativas, as preocupações, as
perplexidades, enfim, todas as emoções perturbadas com que a mente humana
se agita47.
45 Ibid., p. 290.
46 CALVINO, Pastorais, p. 26.
47 CALVINO, J. O livro dos Salmos. vol. 1. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009, p. 27.
48 Ibid., p. 27.
33
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...
... como invocar a Deus é um dos principais meios de garantir nossa segurança,
e como a melhor e mais inerrante regra para guiar-nos nesse exercício não pode
ser encontrada em outra parte senão nos Salmos, segue-se que em proporção à
proficiência que uma pessoa haja alcançado em compreendê-los, terá também
alcançado o conhecimento da mais importante parte da doutrina celestial.49
49 Ibid.
50 Ibid., p. 29.
51
STEWART, A. João Calvino sobre a Excelência dos Salmos, 2007, p. 4. Disponível em: <http://
www.cprf.co.uk/languages/portuguese_calvinonpsalms.htm> Acesso em: 16 dez. 2010.
34
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41
52 CALVINO, Prefácio, p. 3.
53 Ibid., p. 5.
54 Apud COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 295.
55 CABANISS, A. The Background of Metrical Psalmody. Calvin Theological Journal, v. 20,
n. 2 (1985): 191-206, p. 203.
56 Ibid.
35
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...
57 Essa porção do livro de Daniel foi posteriormente considerada apócrifa, ou seja, não canônica,
pelas igrejas protestantes.
58 KOYZIS, D. T. The Genevan Psalter, 2010. Disponível em: http://genevanpsalter.redeemer.ca/.
Acesso em: 14 dez. 2010.
59 MCNEILL, The History and Character of Calvinism, p. 148.
60 RAYNOR, História social da música, p. 137.
36
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41
37
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...
1
Aleluia!
Louvai, servos do Senhor,
louvai o nome do Senhor.
2
Bendito seja o nome do Senhor,
agora e para sempre.
3
Do nascimento do sol até ao ocaso,
louvado seja o nome do Senhor.
4
Excelso é o Senhor, acima de todas as nações,
e a sua glória, acima dos céus.
5
Quem há semelhante ao Senhor, nosso Deus,
cujo trono está nas alturas,
6
que se inclina para ver
o que se passa no céu e sobre a terra?
38
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41
7
Ele ergue do pó o desvalido
e do monturo, o necessitado,
8
para o assentar ao lado dos príncipes,
sim, com os príncipes do seu povo.
9
Faz que a mulher estéril viva em família
e seja alegre mãe de filhos.
Aleluia!63
63 Sociedade Bíblica do Brasil. Bíblia Sagrada – Almeida Revista e Atualizada, com números de
Strong (Ps 113:1–9). Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil.
64 CABANISS, The Background of Metrical Psalmody, p. 200.
65 VAN HALSEMA, João Calvino era assim, p. 100, 143; COSTA, Ibid., p. 182.
66 CABANISS, The Background of Metrical Psalmody, p. 201.
39
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...
em favor daquelas que ele lhes oferecia”.67 Assim, ao presumir que elas teriam
interesse em canções de amor, ressalta que os salmos falam somente de Amor e
que, de fato, foram compostos por aquele que é o próprio Amor. Então, conclui
o seu apelo dizendo:
67 Ibid.
68 Apud Ibid.
69 Ibid., p. 202.
70 Ibid.
71 BROOKS, J. Les cent cinquante pseaumes de David, mis en musique a quatre parties. 1998, p. 1.
Disponível em: <http://www.thefreelibrary.com/Les+cent+cinquante+pseaumes +de+David,+mis+en+
musique+a+quatre+(et...-a020825591> Acesso em: 18 dez. 2010.
40
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observamos neste artigo o importante espaço que a música ocupou nas
discussões da Reforma. Notamos que de modos diferentes Lutero e Calvino
reconheceram o valor litúrgico da música e empenharam seus melhores es-
forços para que seus benefícios fossem sentidos na vida da igreja. Um ponto
relevante dessa discussão é a ênfase que Lutero deu ao poder de impressão
que a música poderia exercer sobre os crentes, ao passo em que Calvino pre-
feriu investir na música como um meio de expressão da fé e de ensino. Para
Calvino, desde que fosse simples e focada no que se cantava, a música tinha
o poder de envolver os homens na adoração a Deus e na meditação acerca de
suas obras. O reformador encontrou nos salmos o ponto máximo do princípio
da utilidade da música para a edificação. Com isso, um dos grandes projetos
de seu ministério foi a produção de um livro de cânticos composto de salmos e
outros textos bíblicos metrificados e adaptados ao contexto cristão. Essa obra
ficou conhecida como o Saltério de Genebra.
Com Lutero e Calvino aprendemos sobre a importância do investimento
na produção musical para a edificação da igreja. Para isso, não podemos tratar
a questão musical como uma discussão de estética clássica ou contempo-
rânea. Precisamos nos certificar de que a música utilizada no culto reflita a
majestade de Deus, incite os crentes à adoração e mova mentes e corações
para o louvor de Deus e para o compromisso com sua Palavra.
ABSTRACT
This article highlights how important it was for the reformers to discuss
the use of music in liturgy. It shows that for both Luther and Calvin the emo-
tionally mobilizing power of music should be used in order to lead believers
to worship God. Calvin was known for stressing that this power should be
instrumental to upbuilding and teaching. He emphasized the production of songs
that were easy to be learned and whose lyrics led to meditation upon God and
God’s works. The singing of psalms and other biblical passages, metrified
and adapted to the Christian context, proved to be the most adequate means to
meet this goal and it resulted in the production of the work that became known
as the Geneva Psalter.
KEYWORDS
Reformation; Liturgy; Music; Luther; Calvin; Singing of Psalms.
72 Ibid.
41
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65
Lutero e os Antinomistas:
Qual é a visão evangélica da lei?
Heber Carlos de Campos Júnior*
RESUMO
Depois de apresentar os componentes essenciais da doutrina luterana
de justificação em diálogo com os intérpretes de Martinho Lutero, este artigo
introduz a controvérsia antinomista com João Agrícola na qual ele questio-
na se o arrependimento era resultado da exposição da lei ou da pregação do
evangelho. É apresentada como cenário da discussão a estrutura hermenêutica
de lei e evangelho e resumida a oposição de Agrícola aos ensinos de Filipe
Melanchton, seguida da resposta de Lutero e da ratificação da Fórmula de
Concórdia. O propósito em resumir a controvérsia antinomista em contextos
luteranos é suscitar pontos de contato com antinomismos na Inglaterra do
século 17, quando surgiram discussões semelhantes, e consequentes lições
para os dias atuais. Este artigo defende que há uma necessidade de contar essa
história novamente para atender a certas necessidades do cenário evangélico
brasileiro e internacional.
PALAVRAS-CHAVE
Martinho Lutero; Antinomista; Antinomismo; João Agrícola; Justificação;
Lei e evangelho; Arrependimento.
INTRODUÇÃO
É bem sabido que a doutrina da justificação ocupou lugar central na Refor-
ma Protestante do século 16. Utilizando linguagem aristotélica, os historiadores
tendem a denominar essa doutrina o “princípio material” da Reforma, isto é,
* Doutor em Teologia Histórica pelo Calvin Theological Seminary, em Grand Rapids, Michigan;
professor de teologia histórica e teologia sistemática no CPAJ; pastor da Igreja Presbiteriana Aliança,
em Limeira (SP).
43
HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS
1 MCGRATH, Alister E. O pensamento da Reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 113.
Aristóteles desenvolveu uma teoria quanto à causa das coisas no mundo natural, como forma de investi-
gação do mundo ao nosso redor. Esta teoria é descrita de forma praticamente idêntica em Física II.3 e em
Metafísica V.2. Sendo que Aristóteles está buscando uma resposta para a pergunta “por quê?” podemos
pensar na causa como um certo tipo de explicação. Cada uma das quatro causas é a explicação de algo.
Eis as quatro causas: 1) “causa material”, aquilo do qual sai algo, e.g. o bronze de uma estátua; 2) “causa
formal”, o relato do que há de se tornar, o formato da estátua; 3) “causa eficiente”, a fonte primária de
mudança, o artesão; 4) “causa final”, o propósito de algo, o embelezamento de um prédio e a glória
de um imperador. FALCON, Andrea. “Aristotle on Causality”. Stanford Encyclopedia of Philosophy.
Disponível em: http://plato.stanford.edu/entries/aristotle-causality/. Acesso em: 29 ago. 2017.
2 Cf. LULL, Timothy F. Martin Luther’s Basic Theological Writings. 2ª ed. Minneapolis: Fortress,
2005, p. 8-9.
3 GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 64, 66.
44
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65
4 OBERMAN, Heiko A. ‘Iustitia Christi’ and ‘Iustitia Dei’: Luther and the Scholastic Doctrines
of Justification. Harvard Theological Review, vol. 59, no. 1 (Jan. 1966), p. 19.
5 Lutero escreveu: “A justiça que provém de nós não é a justiça cristã, e por ela não nos tornamos
justos. A justiça cristã é bem o contrário, a justiça passiva, que apenas recebemos, em que não agimos,
mas deixamos um outro agir em nós, Deus”. Apud EBELING, Gerhard. O pensamento de Lutero: uma
introdução. São Leopoldo: Sinodal, 1988, p. 96.
6 GEORGE, Teologia dos reformadores, p. 72-73.
7 Ibid., p. 66.
8 CAMPOS JÚNIOR, Heber Carlos de. O lugar da fé e da obediência na justificação: Um histó-
rico das discussões reformadas do século XVII. In: FERREIRA, Franklin (Org.). A glória da graça de
Deus: Ensaios em honra a J. Richard Denham Jr. sobre história, teologia, igreja e sociedade. São José
45
HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS
Em terceiro lugar, Lutero ressaltou que se trata de uma justiça alheia, não
minha. No sermão de 1519 intitulado “Duas espécies de justiça”,9 Lutero fala
de uma primeira justiça que vem de outro (iustitia aliena), que vem de fora.
Essa justiça de Cristo é a fonte da segunda justiça, produzida dentro de nós.
A ênfase primária numa justiça que vem de fora é um ataque à antropologia
pelagiana antes do que um claro pronunciamento da justificação forense, isto é,
legal.10 É bom lembrar que a descoberta das verdades protestantes acontece de
forma gradativa. Nesse sermão, ele ainda sustenta a ideia de justificação como
um processo de santificação: “E assim Cristo expulsa Adão dia a dia, mais e
mais, na medida em que crescem aquela fé e o conhecimento de Cristo; pois
a justiça alheia não é infundida toda de uma vez, mas começa e progride e é
levada finalmente à perfeição com a morte”.11 Em A Liberdade de um Cristão,
de 1520, Lutero expressa a justificação de tal forma que recebemos tudo de
Cristo por estarmos unidos a ele e de que Cristo recebe os nossos vícios.
Essa analogia de união com Cristo e a metáfora do casamento, que Lutero
muito apreciava, tem sido interpretada de forma diversa. Por razões diferentes,
tanto o renomado especialista Karl Holl quanto a escola finlandesa de inter-
pretação de Lutero (Tuomo Mannermaa é um dos intérpretes finlandeses mais
destacados) entendem que Lutero tinha um entendimento mais ontológico de
justificação e, portanto, diferente do conceito mais forense de seu colega Filipe
Melanchton (1497-1560). Holl pende para uma interpretação que ressalte a
natureza ética da justificação em Lutero enquanto a escola finlandesa prefere
associá-la à noção oriental de theosis (deificação ou divinização).12 Alister
dos Campos, SP: Editora Fiel, 2010, p. 355-356. Para uma visão mais detalhada da interpretação de
Lutero de Romanos 3.28 com implicações para a doutrina da justificação pela fé somente, ver os dois
debates sobre o tema em LUTERO, Martinho. Obras selecionadas. Vol. 1: Os primórdios, escritos de
1517 a 1519. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 1987, p. 201-239.
9 Cf. LUTERO, Obras selecionadas, vol. 1, p. 241-248.
10 “O ‘extra nos’ para Lutero é a conexão entre a doutrina da justificação e a antropologia teoló-
gica. Essa expressão, contudo, não deve ser mal-entendida no sentido forense da palavra. O conceito
central de ‘extra nos’ não se coloca ao lado de uma justificação por imputação em oposição a uma
justificação por união. Ela não prova que somos justificados ‘fora de nós mesmos’ perante o trono de
Deus o juiz (in foro Dei), de tal forma que a graça não seria imposta [i.e. colocada dentro] mas ‘somente’
imputada. A intenção do ‘extra nos’ é mostrar que a justificação não é baseada no homem se apropriar do
que é devidamente seu, como numa debitum iustitiae”. OBERMAN, ‘Iustitia Christi’ and ‘Iustitia Dei’,
p. 21. Para uma discussão aprofundada da antropologia de Lutero dentro da estrutura de “dois tipos de
justiça”, ver KOLB, Robert; ARAND, Charles P. The Genius of Luther’s Theology: A Wittenberg Way
of Thinking for the Contemporary Church. Grand Rapids: Baker, 2008, p. 21-128.
11 LUTERO, Obras selecionadas, vol. 1, p. 243.
12 TRUEMAN, Carl. Simul peccator et justus: Martin Luther and Justification. In: MCCORMACK,
Bruce L. (Org.). Justification in Perspective: Historical Developments and Contemporary Challenges.
Grand Rapids: Baker Academic, 2006, p. 88-89.
46
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65
13 MCGRATH, Alister E. Iustitia Dei: A History of the Christian Doctrine of Justification. 3ª ed.
Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 225-226. Se essa avaliação estiver correta, e Cristo
se torna um pecador por união, então Lutero é passível da crítica que Richard Baxter levantou contra
o antinomista Tobias Crisp cerca de 150 anos mais tarde na controvérsia antinomista na Inglaterra. Cf.
CAMPOS JÚNIOR, O lugar da fé e da obediência na justificação, p. 363-364. Todavia, parece prudente
concluir que nos escritos de Lutero não encontramos uma discussão tão clara sobre a natureza da trans-
ferência do nosso pecado a Cristo.
14 TRUEMAN, Simul peccator et justus, p. 77-83.
15 Ibid., p. 90-91. Johannes Brenz descrevia a justificação como dependente do cumprimento da
lei operada pelo Espírito Santo ao invés da imputação de Deus por causa da obra de Cristo; a teologia
de Brenz lhes parecia muito próxima do catolicismo romano. Trueman afirma que o posfácio da carta de
Melanchton, escrito por Lutero, apresenta uma linguagem alternativa, mas não discordante do seu colega
de trabalho em Wittenberg. As diferenças se resumem na ênfase e na escolha de linguagem (p. 91, nota 42).
Martin Brecht, em contrapartida, acredita que o posfácio da carta traz uma ênfase diferente, ainda que
sem criticar Melanchton. Brecht afirma que a visão de Lutero era menos precisa que a de Melanchton,
mas evitava separar a declaração divina da justificação da justificação em si mesma. Algumas páginas à
frente, Brecht afirma que no grande comentário de Gálatas de Lutero (1535), baseado em suas preleções,
os editores, que eram discípulos de Melanchton, adaptaram a doutrina da justificação e as afirmações
sobre a lei feitas por Lutero às ideias de Melanchton. BRECHT, Martin. Martin Luther: Shaping and
Defining the Reformation, 1521-1532. Minneapolis: Fortress, 1994, p. 451, 455. Percebe-se que Brecht
promove a disjunção entre Lutero e Melanchton. Ainda assim, não se pode negar que escrever um pos-
fácio a uma carta de Melanchton não pode significar alguma diferença significativa com Melanchton,
do contrário não faria sentido se unirem na confrontação de um colega.
47
HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS
48
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65
49
HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS
25 WRIEDT, Markus. Luther’s Theology. In: MCKIM, Donald K. (Org.). The Cambridge Com-
panion to Martin Luther. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 106.
26 “A lei é dada para que a graça seja buscada; a graça é dada para que a lei seja cumprida”. De
Spiritu et Littera 19.34.
27 LOHSE, Martin Luther’s Theology, p. 268.
28 João Calvino, por exemplo, cita Agostinho inúmeras vezes no capítulo em que ele trabalha a
graça presente na antiga aliança. CALVIN, John. Institutes of the Christian Religion. Ed. John T. McNeill,
trad. Ford L. Battles. Philadelphia: The Westminster Press, 1960, II.vii (p. 348-366).
29
OBERMAN, Heiko A. The Harvest of Medieval Theology: Gabriel Biel and Late Medieval
Nominalism. Grand Rapids: Baker Academic, 2000, p. 112-119.
50
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65
A distinção sem separação deveria ser mantida com muito zelo. A lei só
pode cumprir a função intentada por Deus quando vista em contraste com o
evangelho, assim como o evangelho é propriamente pregado somente em con-
traste com a lei. A Escritura tem uma natureza dupla. Enquanto lei ela ensina
o que são as boas obras, mas não nos fornece poder para realizá-las. Contudo,
enquanto evangelho, a Escritura nos convida à fé a fim de que a promessa de
Deus realize o que os mandamentos exigem.30 O termo “lei” carrega um sen-
tido mais negativo para Lutero, e seu gosto amargo cessará apenas no porvir,
quando não mais revelará nosso pecado.31
Lutero fala de um “duplo uso da lei”, quando expõe o decálogo em 1523.
O conceito de “usos” da lei em relação às suas várias funções e efeitos, con-
forme Lohse, é sem precedentes na tradição cristã.32 Tal conceito está mais
amadurecido nas palestras sobre Gálatas em 1531, mas Lutero não lhe dá
nenhuma tratativa sistemática mais elaborada. O primeiro uso é o “político”
ou “cívico” e o segundo é “teológico” ou “pedagógico”. O primeiro assegura
ordem na terra e justiça entre os homens. A igreja não deve ensinar as autori-
dades a governar, mas deve lembrá-las da tarefa dada por Deus de assegurar
paz exterior e ordem neste mundo transitório.33 O segundo uso é o espiritual,
para convencer as pessoas de seus pecados. A lei “acusa”, “causa horror”
no pecador culpado. Ela revela a pecaminosidade e a aumenta, mas não pode
assistir no alcance da justiça que vem por meio do evangelho. Este segundo
uso, se não conduzir a Cristo, leva ao desespero ou à autojustiça.
Em continuidade com a tradição cristã, Lutero fala da lei natural encra-
vada no coração de todos os homens. Pessoas de diversas épocas e lugares
reconhecem certos crimes. Todavia, como não se pode tirar conclusões de tal
conhecimento nato, Deus renovou o conhecimento da lei através de Moisés.34
A corrupção da natureza humana também obscurece a cognição natural da lei.
30 WENGERT, Timothy J. Law and Gospel: Philip Melanchthon’s Debate with John Agricola of
Eisleben over Poenitentia. Texts & Studies in Reformation & Post-Reformation Thought. Grand Rapids:
Baker, 1997, p. 17.
31 James Nestingen traz uma citação de Lutero no qual o reformador fala que no futuro a lei não
seria abolida, mas permaneceria ainda a ser cumprida pelos condenados ou já cumprida pelos fiéis. Essa
linguagem histórica de “já” cumprida pelos fiéis e “ainda não” parece reforçar que a lei em Lutero é
“essencialmente” reveladora de pecado. Enquanto Nestingen tenta utilizar essa e outras citações para
distanciar Lutero tanto de Melanchton quanto da Fórmula de Concórdia, não se pode concluir a partir
dessa argumentação que Lutero tinha uma visão consistentemente positiva da lei, nem que ele tenha
proposto algo que foi abandonado pela tradição luterana. Cf. NESTINGEN, James A. Changing the
Definitions: The Law in Formula VI. Concordia Theological Quarterly 69 (2005), p. 262-263.
32 LOHSE, Martin Luther’s Theology, p. 270.
33 Ibid., p. 272.
34 Ibid., p. 274.
51
HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS
2. A OPOSIÇÃO DE AGRÍCOLA
A controvérsia antinomista, despertada em meios luteranos enquanto
Lutero ainda vivia, lidou com duas questões importantes: primeiramente, se a
pregação do arrependimento (poenitentia) pertence teologicamente à exposi-
ção da lei ou deve seguir à pregação do evangelho; em segundo lugar, em que
medida é tarefa da igreja pregar a lei.38 Em relação à segunda questão, Lutero
vigorosamente protestou contra a tese antinomista (não encontrada em Agrí-
cola, mas provavelmente proferida pelos seus adeptos) de que a igreja deveria
pregar o evangelho e o decálogo pertencia ao âmbito político. Lutero cria que
a lei também deveria ser pregada nas igrejas.39
Em relação à primeira, é importante destacar que a falta de sistematiza-
ção teológica de Lutero permitiu interpretações diferentes. No começo de sua
oposição a Roma, Lutero chegou a dizer tanto que o arrependimento pertencia
à esfera legal quanto que “o verdadeiro arrependimento” começa “com o amor
pela justiça e por Deus”.40 Ele disse tanto que a “verdadeira contrição é fruto da
percepção da bondade de Deus em Cristo”, quanto enfatizou a necessidade
da pregação da lei para despertar o senso de pecado como algo preliminar à
pregação do evangelho da graça.41
João Agrícola, de Eisleben, um pupilo de Lutero desde as palestras de
Romanos em 1515-1516, apropriou-se apenas de parte desse ensino e enfatizou
que o arrependimento é um fruto do evangelho já que a lei não conduz à fé.
52
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65
53
HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS
54
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65
3. A RESPOSTA DE LUTERO
A controvérsia antinomista, com a participação de Lutero, é costumeira-
mente datada de 1537 a 1540.58 Depois de uma convivência menos bélica na
década de 1520, Agrícola voltou a Wittenberg em 1536 e Lutero cordialmente
o apontou como seu substituto tanto no púlpito quanto nas palestras da univer-
sidade quando Lutero precisou se ausentar para a Conferência de Esmalcalda
no início de 1537. Meses depois Lutero ficou sabendo por seus amigos que o
seu substituto suscitava inovações em seus sermões. Simultaneamente, algu-
mas teses que atacavam Lutero e Melanchton por abandonar sua teologia em
prol do legalismo circulavam anonimamente.59 A situação se agravou quando
Agrícola burlou a supervisão de Lutero ao submeter uma obra para publicação
cuja introdução argumentava que o arrependimento e o perdão deveriam ser
pregados somente com base no evangelho.60
Lutero não deixou de proferir seus ensinamentos nessa polêmica, primei-
ramente através de debates (disputationes) em 1537 e 1538, e depois através do
tratado Contra os Antinomistas, escrito em 1539. Os debates promovidos por
Lutero foram três e Agrícola esteve presente apenas no segundo deles, quando
admitiu seus erros publicamente. Como Lutero ouviu que Agrícola havia sido
insincero, promoveu um terceiro debate, mas sem a presença de Agrícola. Em
dezembro de 1538, ele aproximou-se de Lutero pedindo que este escrevesse
uma revogação oficial que ele assinaria. A obra de Lutero de 1539 contém uma
frase que funciona como uma revogação, mas em meio a severas críticas con-
tra Agrícola e seus seguidores, colocando-os lado a lado com seus maiores
adversários. Agrícola se sentiu humilhado e, por isso, apelou ao reitor da uni-
versidade, depois ao eleitor da Saxônia, para uma investigação mais imparcial.
Tal atitude qualificou Agrícola como desonesto diante de seus ex-amigos e ele
acabou fugindo para Berlin em 1540 para uma função de pregador na corte
do eleitor Joaquim II. Posteriormente, a pedido de Melanchton, ele removeu
sua reclamação formal contra Lutero, apresentou uma revogação teológica e
55
HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS
61 BRECHT, Martin. Martin Luther: The Preservation of the Church, 1532-1546. Minneapolis:
Fortress, 1994, p. 169.
62 LUTERO, Obras selecionadas, vol. 4, p. 383-384, 392; LUTERO, M. Against the Antinomians.
In: LEHMAN, Helmut T. (Org.). Luther’s Works. Vol. 47: The Christian in Society IV. Philadelphia:
Fortress Press, 1971, p. 110.
63 WENGERT, Antinomianism, p. 52.
64 LUTERO, Obras Selecionadas, vol. 4, p. 407-409.
65 LUTERO, Against the Antinomians, p. 111-112.
66 LUTERO, Obras selecionadas, vol. 4, p. 391, 402, 414-415.
67 Ibid., p. 382-383, 406. A distinção escolástica é que a lei não é necessária “causaliter”, mas é
necessária “materialiter”. LOHSE, Martin Luther’s Theology, p. 182.
68 BRECHT, Martin Luther: The Preservation of the Church, p. 161.
69 LUTERO, Obras selecionadas, vol. 4, p. 395-396; LUTERO, Against the Antinomians, p. 114.
56
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65
70 LUTERO, Obras selecionadas, vol. 4, p. 396, 397, 405; BRECHT, Martin Luther: The Preser-
vation of the Church, p. 159.
71 BRECHT, Martin Luther: The Preservation of the Church, p. 163.
72 MACKINNON, Luther and the Reformation, vol. 4, p. 167-168.
73 MACKINNON, Luther and the Reformation, vol. 4, p. 171-172. Paul Althaus diz que essa citação
vem do Terceiro Debate contra os Antinomistas (até o momento apenas em alemão na coleção crítica
de Weimar) e comprova que o espírito da época exige diferentes tipos de pregação. ALTHAUS, The
Theology of Martin Luther, p. 262, nota 74.
74 BAKER, J. Wayne. Sola Fide, Sola Gratia: The Battle for Luther in Seventeenth-Century
England. The Sixteenth Century Journal, vol. 16, no. 1 (Spring 1985), p. 118.
75 LUTERO, Obras selecionadas, vol. 4, p. 403.
57
HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS
tendimento de Agrícola não foi único. Outros debates em torno desse assunto
surgiriam no mundo luterano e exigiriam uma resposta mais clara e definitiva.
76 TAPPERT, Theodore G. (trad. e org.). The Book of Concord: The Confessions of the Evangelical
Lutheran Church. Philadelphia: Fortress Press, 1959, epitome, V.1 (p. 477-478).
77 Ibid., V.2 (p. 558).
78 Ibid., epitome, V.5-6 (p. 478); V.3-6 (p. 558-559).
79 Ibid., epitome, VI.1 (p. 479-480).
58
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65
maldição e da coerção da lei, não permanecem sem lei, pois foram redimidos
para exercitarem-se a si mesmos na lei. “Da mesma forma nossos primeiros
pais mesmo antes da Queda não viveram sem lei, pois a lei de Deus estava
escrita em seus corações quando foram criados à imagem de Deus”.80
Um dos partidos ensinava que os regenerados não aprendem a nova
obediência a partir da lei, mas somente pelo impulso do Espírito Santo operam
espontaneamente para fazerem o que Deus exige. O outro partido não descartava
a motivação do Espírito e a voluntariedade na obediência, mas compreendia
que o Espírito utiliza a lei escrita para conduzir a uma vida piedosa.81 O se-
gundo grupo está claramente mais próximo da verdade. Por isso, a Fórmula
de Concórdia ainda afirma que a pregação da lei serve não só para descrentes
e impenitentes, mas também para crentes genuínos. Esse documento distingue
as obras da lei e os frutos do Espírito não quanto à matéria (pois ambos obe-
decem a mesma lei), mas quanto à fonte motivadora (o primeiro sob coerção
e ameaça, o segundo espontaneamente).
Com a Fórmula de Concórdia, a ortodoxia luterana foi estabelecida quan-
to aos debates relacionados a lei e evangelho, justificação e santificação. No
entanto, tais debates seriam revisitados na Inglaterra a partir de referenciais
um pouco diferentes, ainda que com resultados semelhantes.
59
HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS
& Stock, 1982; BAKER, Sola Fide, Sola Gratia, p. 115-133; BOZEMAN, Theodore Dwight. The Glory
of the “Third Time”: John Eaton as Contra-Puritan. Journal of Ecclesiastical History, vol. 47, no. 4
(Oct. 1996), p. 638-654; The Precisianist Strain: Disciplinary Religion & Antinomian Backlash in Puri-
tanism to 1638. Chapel Hill: University of North Carolina, 2004, p. 183-210; COMO, David R. Blown
by the Spirit: Puritanism and the Emergence of an Antinomian Underground in Pre-Civil-War England.
Stanford, California: Stanford University, 2004; PARNHAM, David. The Covenantal Quietism of To-
bias Crisp. Church History, vol. 75, no. 3 (Sept. 2006), p. 511-543; John Saltmarsh and the Mystery of
Redemption. Harvard Theological Review, vol. 104, issue 3 (July 2011), p. 265-298; BEEKE, Joel R.
e JONES, Mark. A Puritan Theology: Doctrine for Life. Grand Rapids: Reformation Heritage Books,
2012, p. 135-150, 325-337.
83 HALL, David D. The Antinomian Controversy, 1636-1638: A Documentary History. Middletown,
Conn.: Wesleyan University, 1968; PETTIT, Norman. The Heart Prepared: Grace and Conversion in
Puritan Spiritual Life. New Haven e Londres: Yale University, 1966, p. 125-157; STOEVER, William K.
B. “A Faire and Easie Way to Heaven”: Covenant Theology and Antinomianism in Early Massachusetts.
Middletown, Conn.: Wesleyan University, 1978; BOZEMAN, The Precisianist Strain, p. 211-332.
84 TOON, Peter. Puritans and Calvinism. Swengel, PA: Reiner Publications, 1973, p. 85-106; The
Emergence of Hyper-Calvinism in English Nonconformity. Eugene, OR: Wipf & Stock, 2011, p. 49-69;
DANIEL, Curt. John Gill and Calvinistic Antinomianism. In: The Life and Thought of John Gill
(1697-1771): A Tercentennial Appreciation, ed. Michael A. G. Haykin. Leiden: Brill, 1997, p. 171-190;
RAMSEY, D. Patrick. Meet Me in the Middle: Herman Witsius and the English Dissenters. Mid-America
Journal of Theology 19 (2008), p. 143-164; BRINK, Gert van den. Calvin, Witsius (1636-1708), and the
English Antinomians. Church History and Religious Culture 91, ns. 1-2 (2011), p. 229-240.
85 BOZEMAN, The Glory of the “Third Time”, p. 639. Como segue Bozeman nessa leitura da
crítica antinomista. COMO, Blown by the Spirit, p. 188.
86 BOZEMAN, The Glory of the “Third time”, p. 642.
87 EATON, John, The Honey-Combe of Free Justification in Christ Alone. Londres: Robert Lan-
caster, 1642, p. 44.
60
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65
61
HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS
diferença essencial, mas apenas de grau. Assim como Calvino (ver comentário
de 2Co 3.6-7), Burgess falava que tanto a lei quanto o evangelho condenam.92
Ernest Kevan é outro estudioso que explorou a riqueza de material puri-
tano sobre o papel da lei nos embates contra os antinomistas. Os puritanos não
só entendiam que todo pecado (original ou atual) era inconformidade com a lei,
mas que a habilidade da lei de aparentemente “provocar” o pecado ao invés de
restringi-lo apenas, é um “efeito acidental da Lei” – e não essencial a ela – a
saber, por causa de nossa pecaminosidade.93 Por que a lei funciona como um
espelho que revela nosso pecado, os puritanos enfatizavam a necessidade de se
pregar a lei, já que alguém pode ser convencido do pecado sem o evangelho,
mas nunca sem a lei.94 Inclusive, as promessas do evangelho só poderiam ser
válidas para aqueles que primeiramente haviam sido “sensibilizados” quanto
ao seu pecado. Argumentar que o arrependimento não é produzido pela lei, mas
pelo Espírito é confundir as categorias, pois o evangelho enquanto conteúdo
também é ineficiente para salvar à parte do Espírito.95 Os antinomistas não
deveriam amar o evangelho à parte da lei, pois não há oposição absoluta entre
ambos. O contraste feito por Paulo é entre o uso pervertido da lei efetuado pelos
judeus e o evangelho.96 Afinal, a lei é perene e permanece como parâmetro de
nossa obrigação moral.97
J. Wayne Baker diz que toda a controvérsia envolveu um debate para ver
quem era genuíno seguidor de Lutero. Os pregadores ingleses considerados
antinomistas eram frequentemente comparados com Agrícola por seus opo-
nentes. Em quase 100 páginas que Samuel Rutherford gasta para descrever o
debate entre Lutero e Agrícola,98 o argumento é que os antinomistas não tinham
o direito de apelar a Lutero.99 Por outro lado, John Eaton chegou a citar Lutero
mais de 100 vezes (principalmente seu Comentário de Gálatas) no seu livro
sobre justificação.100 Quando Eaton citava Lutero para rejeitar as “preparações
para a graça” e enfatizar a justiça “passiva” da fé, Lutero parecia tão antino-
62
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65
mista como ele.101 Todavia, David Como demonstrou de modo preciso como
Eaton utilizou Lutero seletivamente, citando principalmente os seus escritos
antilegalistas (v.g, o Comentário de Gálatas) enquanto ignorou as denúncias
de Lutero contra Agrícola e seus seguidores; “Eaton estava em essência des-
pertando o Lutero antinomista”.102 Até o próprio Anthony Burgess, em meio
à controvérsia, perspicazmente observou como no início Lutero destacou os
abusos da lei conforme encontrados na Epístola aos Gálatas, mas que depois
de observar como sua doutrina fora abusada pelos antinomistas, ele se opôs a
eles no seu Comentário de Gênesis (uma de suas últimas obras).103
Em seu artigo, Baker faz críticas muito leves aos antinomistas para
depois considerar Eaton como muito mais preciso do que Rutherford. Além
de demonstrar imprecisão ao colocar Rutherford na mesma categoria de
Baxter,104 Baker ainda desconsidera a linguagem teológica precisa do século
17 ao dizer que foram “menos precisos do que Lutero”,105 quando na verdade
vimos neste artigo que parte da primeira controvérsia antinomista com Lutero
foi decorrente de sua comunicação confusa no início de seu ministério. Nos
debates ingleses houve muita imprudência de termos ou ênfases exageradas
de ambas as partes.106 Eaton chegou a dizer que a expressão “Deus justifica
o ímpio” significa uma justificação não só “judicial” (imputando a justiça de
Cristo), mas também de significado “natural e próprio” (renovando-nos com
o seu Espírito), e conclui dizendo: “Portanto, Deus não justifica nenhum ím-
pio, mas primeiro o torna justo e reto em e por Cristo, e depois ele é contado
como justo”.107 Sua linguagem descuidada se parece muito com o conceito
de transformação do romanismo. Tal deslize ilustra como no afã de destacar
algum aspecto doutrinário ou prático, alguns desses teólogos falhavam em
outras áreas. Não se pode negar que o esforço por corrigir certa tendência pode
trazer o perigo de exageros.
63
HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS
CONCLUSÃO
Essa breve história dos debates luteranos e ingleses quanto ao antinomis-
mo comprova que assuntos como a doutrina da justificação e o entendimento da
graça em relação à lei divina sempre são alvos de questionamentos e confusão.
Os debates se devem não só a diferentes entendimentos de uma doutrina, mas
também a ênfases e omissões quanto ao que é dito. Isso não significa minimizar
a importância do debate. Afinal, ênfases podem e devem ser suscitadas por uma
necessidade específica (como Lutero fez no início de seu ministério), mas as
ênfases precisam ser salvaguardadas pela doutrina. Ênfases são necessárias,
mas não podem ser conceitualmente confusas.
Há uma necessidade de contar essa história novamente para atender a
certas necessidades do cenário evangélico brasileiro e internacional. Por um
lado, há os que fazem uma ligação muito estreita entre aspectos da lei mosaica
e os nossos dias (adventistas, teonomistas), sem considerar as descontinuidades
pertinentes ao que era sombra por conta do papel que a lei operou na história
bíblica. Por outro lado, há quem promova uma rígida separação entre o Anti-
go Testamento e os nossos dias (alguns dispensacionalistas, teólogos da nova
aliança), criando descontinuidade entre a lei de Deus no Antigo Testamento e
a “lei de Cristo” no Novo Testamento. Ambos expressam um desconhecimento
da distinção entre lei e evangelho enfatizada por Martinho Lutero. Enquanto a
primeira tendência é um legalismo teológico, a segunda expressa uma espécie
de antinomismo.
Se algumas das imprecisões acima quanto ao entendimento de lei e
evangelho parecem raras em certas igrejas históricas, outras têm sido muito
comuns. Vemos moralismo em sermões sobre passagens do Antigo Testamento,
nos quais se dá mais ênfase ao que fazemos para Deus do que ao que Deus
fez e ainda faz por nós. Eles perdem de vista a grande história da salvação e
como o evangelho é a grande mensagem de esperança das Escrituras (seriam
fortemente criticados pelos antinomistas e ortodoxos do passado). Por outro
lado, existem aqueles que restringem o “evangelho” à doutrina da justificação,
e falam da “graça” que perdoa sem equilibrá-la com a graça que restaura (um
tipo de antinomismo atual). Estes se esquecem de que o evangelho não só
trata do que Deus fez por nós, mas também do que está fazendo em nós.108 E
tal obra de transformação envolve tanto os indicativos da obra divina em nós
quanto os imperativos do que somos ordenados a fazer.
Portanto, há várias lições que o contingente evangélico precisa aprender
à medida que procura entender o lugar da lei divina na história da redenção.
Há certas lições que são aprendidas com uma visão mais holística da história.
Por exemplo, Lutero não destacou a dinâmica da graça que conduz à lei – uma
64
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65
ênfase presente na tradição reformada a partir de João Calvino e seu apreço pelo
terceiro uso da lei como o “principal” –, mas ele trouxe à tona a importância
da lei e de termos a lei sempre em vista para entendermos o evangelho. Não
é que Lutero não enxergasse a lei como tendo de ser cumprida. Ele cria que
ela seria cumprida pelos crentes no porvir. No entanto, nesta vida a palavra
“lei” significava mais uma ferroada (por causa do segundo uso da lei) do que
um deleite. Foi a tradição reformada que enfatizou a importância de encontrar
deleite na lei do Senhor. Ainda assim, o fato de Lutero não descartar a lei como
parte do processo redentor foi o pontapé inicial para uma visão “evangélica”
da lei. Contudo, tal visão passaria por grande desenvolvimento pelo menos
até o século 17 na Inglaterra e início do século 18 na Escócia, com a Marrow
Controversy (Controvérsia da Medula).
ABSTRACT
After presenting the essential tenets of the Lutheran doctrine of justifi-
cation in dialogue with interpreters of Martin Luther, this article introduces
the Antinomian Controversy with Johann Agricola in which he questions if
repentance was the result of the exposition of the law or the preaching of the
gospel. The law/gospel hermeneutical structure is presented as the scenario
for the debate, Agricola’s opposition to the teachings of Philip Melanchthon
is summarized, followed by Luther’s response and the ratification of the For-
mula of Concord. The purpose in summarizing the Antinomian Controversy
in Lutheran settings is to raise points of connection with Antinomianisms in
seventeenth century England, when similar debates arose, and consequent
lessons for today. This article argues that there is a need to tell this story again
in order to meet certain needs in the evangelical scenario both in Brazil and
abroad.
KEYWORDS
Martin Luther; Antinomian; Antinomianism; Johann Agricola; Justifica-
tion; Law and gospel; Repentance.
65
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83
RESUMO
Existe uma curiosa tensão entre os dois principais fundadores da tradição
luterana: Martinho Lutero e seu colega e sucessor Filipe Melanchton. Embora
tenha nutrido grande amizade e admiração pelo seu mestre ao longo da vida,
Melanchton veio a afastar-se do pensamento do pioneiro em duas questões
importantes: as ações divina e humana na salvação e o entendimento da pre-
sença de Cristo na Ceia. Deixando o seu monergismo inicial, a afirmação da
incapacidade da vontade humana, o Mestre da Alemanha veio a abraçar uma
postura sinergista, insistindo no “consentimento da vontade à palavra de Deus”
como um dos requisitos para a salvação. No que diz respeito ao sacramento
da Ceia, Melanchton afastou-se sutilmente da consubstanciação para uma po-
sição mais próxima de Calvino, com o seu entendimento da presença real no
sentido espiritual. Essas posturas deram origem a um forte e duradouro debate
entre os partidários dos dois reformadores – gnesio-luteranos e filipistas – que
perdura até hoje.
PALAVRAS-CHAVE
Martinho Lutero; Filipe Melanchton; Livre arbítrio; Monergismo; Si-
nergismo; Ceia do Senhor; João Calvino; Consubstanciação; Presença real.
INTRODUÇÃO
“Tempos de Reforma são sempre bem-vindos”. Esta frase agradava aos
que viviam no século 16 e estavam cansados da mesmice e de erros de sé-
culos que eram vigentes na igreja medieval. Todavia, esses tempos não eram
* Doutor em Teologia (Th.D.) pelo Concordia Seminary, Saint Louis, Missouri; professor de
teologia sistemática no CPAJ; pastor auxiliar na Igreja Presbiteriana Paulistana.
67
HEBER CARLOS DE CAMPOS, O PERIGO A SER EVITADO NUMA REFORMA
1 Ver o artigo “The Synergistic Controversy”, The Concordia Lutheran, set.-out. 1995. Disponível
em: http://www.concordialutheranconf.com/clc/cl_articles/CLO_articlePRB_sept1995.cfm. Acesso em:
jul. 2005.
68
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83
Visto que todos os homens que estão perdidos são eternamente condenados
por suas próprias faltas, de modo que Deus não deve ser culpado, mas somente
eles, por rejeitarem a graça de Deus em Cristo Jesus, aqueles que são conver-
tidos devem ao menos receber um pequeno crédito em relação à sua salvação
eterna – talvez uma melhor atitude para com o Evangelho do que aqueles que
são perdidos. Nesse assunto, o sinergismo é evidentemente muito sutil e perigo-
so... visto que ele reduz a cooperação do homem a um mínimo aparentemente
inofensivo que um cristão que não desconfia poderia facilmente aceitar para a
sua eterna destruição.2
2 Ibid.
3 Corpus Reformatorum, 14, apud DRICKAMER, John M. “Did Melanchton Become a Synergist?”
Springfielder, Vol. 40, Nº 2 (abril 1976). Disponível em: http://www.ctsfw.net/media/pdfs/drickamer-
melanchtonsynergist.pdf. Acesso em: jul. 2017. Grifos meus.
69
HEBER CARLOS DE CAMPOS, O PERIGO A SER EVITADO NUMA REFORMA
70
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83
teologia idêntica à de Erasmo), e não pode haver qualquer coisa mais oposta
à nossa doutrina”.7
Melanchton começou a sua primeira grande revisão dos Loci em 1533 e a
publicou em 1535. Nessa época, ele já estava falando de uma real contribuição
da vontade humana no processo da conversão. Ele alterou a apresentação sobre
a necessidade e a liberdade para incluir a ideia de que os homens e demônios
eram livres para se opor a Deus e ao evangelho. Comentando sobre os Loci de
Melanchton de 1535, Paul Tschackert (1848-1911) diz:
Melanchton quer tornar o homem responsável por seu estado de graça. Nem a
vontade humana em razão do pecado original perde a capacidade de decidir-se
quando incitada; a vontade não produz nada novo por seu próprio poder, mas
assume uma atitude para com aquilo que a aborda. Quando o homem ouve a
Palavra de Deus, e o Espírito Santo produz afeições espirituais em seu coração,
a vontade pode tanto assentir como voltar-se contra ela.8
Enquanto Melanchton (em seus Loci de 1543) havia falado de três causas
de uma boa ação (bonae actionis), ele agora publicamente advogava a doutrina
das três causas concorrentes da conversão. Repudiando o monergismo de Lute-
ro, ele esposou e defendeu os poderes da vontade livre em assuntos espirituais.9
7 Ver ibid.
8 Ibid.
9 Ibid., p. 129.
71
HEBER CARLOS DE CAMPOS, O PERIGO A SER EVITADO NUMA REFORMA
Quando perguntado sobre “Por que alguns aceitam e outros não?”, ele
respondeu que a diferença está no homem. Ele cita o exemplo de Saul ter
rejeitado e Davi ter aceito. Há alguma ação dissimilar nos dois.14 Na verdade,
esse pensamento chamado sinergista é do luteranismo conservador, não sim-
plesmente de Melanchton.
72
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83
15 Ibid., p. 98.
16 Ibid.
17 Ibid.
73
HEBER CARLOS DE CAMPOS, O PERIGO A SER EVITADO NUMA REFORMA
18 SCHAFF, Philip. The Creeds of Christendom. 3 vols. Grand Rapids, MI: Baker, 1984, vol. 1,
p. 263.
19 Citado por BENTE, Historical Introductions, p. 175.
20 Ibid.
21 Neste particular Schaff diz que Melanchton foi fortemente influenciado pelo Dialogus de Eco-
lampádio (1530), dirigido contra as suas Sententiae. SCHAFF, Creeds of Christendom, vol. 1, p. 264,
nota 1.
74
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83
Art. 10 – “Com respeito à Ceia do Senhor, eles ensinam que ‘com’ o pão e o
vinho são verdadeiramente exibidos o corpo e o sangue de Cristo àqueles que
comem na Ceia do Senhor”.
75
HEBER CARLOS DE CAMPOS, O PERIGO A SER EVITADO NUMA REFORMA
fato, ela era uma melhora antes do que uma simples alteração. Assim sempre
sentiram os reformados, que vieram a subscrevê-la, sobretudo Calvino.
Em 1540 e 1542, Melanchton reescreveu algumas partes da Confissão
a fim de reconciliá-las com a visão calvinista. O próprio João Calvino assi-
naria a Confissão de 1540. Melanchton apresentou uma visão modificada da
presença real ensinada por ele próprio na edição de 1530. Todavia, nunca
gostou da ideia de uma presença simbólica proposta por Zuinglio, nem ado-
tou abertamente a visão calvinista de uma presença real espiritual, mas ficou
bem perto dela, ao ponto de Calvino publicamente ter declarado que ele e
Melanchton eram inseparavelmente unidos nesse ponto.24
Portanto, as diferenças entre Lutero e Melanchton afetaram as futuras
relações entre luteranos e calvinistas, por causa das posições tomadas no
último estágio da vida teológica de Melanchton, especialmente nas matérias
relativas à eucaristia.
Meu caro Brenz, se houvesse qualquer diferença de nós com respeito à Trin-
dade e outros artigos, eu não teria nenhuma aliança com eles... A respeito da
Concórdia, contudo, nenhuma ação foi ainda tomada. Eu somente trouxe as
opiniões de Bucer para cá [Wittenberg]. Mas eu gostaria de falar pessoalmente
com você a respeito da controvérsia. Eu não constituo a mim mesmo um juiz,
e prontamente concedo a você, que governa a igreja, e eu afirmo a presença de
Cristo na ceia.26
24 A frase latina de Calvino é esta: “Confirmo, non magis a me Philippum quam a propriis visce-
ribus in hac causa posse divelli”. Citado por SCHAFF, Creeds of Christendom, vol. 1, p. 264, nota 2.
25 Apud BENTE, Historical Introductions, p. 176-177.
26 Apud ibid., p. 178. Grifos meus.
76
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83
permitiu-se ser guiado pelas autoridades humanas antes do que pela clara Pala-
vra de Deus somente, isto porque Melanchton havia mencionado numa carta a
Lutero que o pensamento de Ecolampádio sobre a ceia era exposto “com maior
exatidão do que ele próprio escreveria”.27
Não peça a minha opinião agora, porque eu era um mensageiro de uma opinião
estranha à minha, embora eu não esconderei o que penso quando tiver ouvido
77
HEBER CARLOS DE CAMPOS, O PERIGO A SER EVITADO NUMA REFORMA
o que os nossos homens responderem. Mas a respeito dessa matéria toda lhe
direi pessoalmente ou quando tiver mensageiros confiáveis.31
Eu não desejo ser o autor ou defensor de um novo dogma na igreja, mas vejo
que há muitos testemunhos de escritores antigos que, sem qualquer ambiguida-
de, explicam o mistério com tipos e tropos, enquanto os testemunhos opostos
são ambos, mais modernos e espúrios. Você também terá de investigar se você
defende a opinião antiga.32
78
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83
Mas não era esse o pensamento dos filipistas. Como sacramentários que
eram, começavam a divergir do radicalismo e do literalismo dos gnesio-lute-
ranos. As acusações dos luteranos radicais contra os filipistas eram que eles
estavam sendo calvinistas nas suas ideias sobre a ceia. A acusação tornava-se
mais ácida porque os calvinistas, segundo os luteranos, não eram nada mais
nada menos do que o zuinglianismo revivido, embora ligeiramente modificado.
Os calvinistas são considerados pelos luteranos radicais como aqueles
que usam palavras parecidas com a teologia luterana, para se aproximar dos
luteranos, mas o conteúdo do que creem é totalmente diferente. Na Fórmula
de Concórdia pode ser lido:
79
HEBER CARLOS DE CAMPOS, O PERIGO A SER EVITADO NUMA REFORMA
3.2 Os criptocalvinistas
A doutrina calvinista da Santa Ceia atraiu muitos territórios luteranos,
especialmente no sul da Alemanha e na Saxônia. Durante as controvérsias
sacramentárias no Palatinado, e na Westfália com Calvino, Melanchton perma-
neceu silencioso, e esta sua atitude valeu-lhe e aos seus seguidores o apelido
de criptocalvinistas. Estes haviam adotado secretamente a doutrina calvinista
e, por isso, foram chamados criptocalvinistas, ou seja, calvinistas mascarados
ou escondidos. Muitos teólogos e leigos que tinham assinado a Confissão de
Augsburgo e haviam expressado lealdade à teologia luterana, ocupando posições
importantes na igreja luterana, faziam propaganda calvinista, esforçando-se por
retirar os livros e doutrinas de Lutero, substituindo-os pelos de Calvino.38 Essa
atitude dos filipistas trouxe muita amargura aos chamados gnesio-luteranos.
Assim, os dois luteranismos, o remanescente de Lutero e o de Melanchton, se
chocavam, embora estivessem rodando na mesma direção, mesmo que sobre
trilhos diferentes que frequentemente se cruzavam. Todos eram luteranos. Isto
ninguém podia negar, mas os desencontros da controvérsia sobre a eucaristia
produziram muitos trens descarrilhados.
36 Ibid.
37 Apud ibid., p. 174. A frase latina original de Calvino é: “Nec vero Augustanam Confessionem
repudio, cui pridem volens ac libens subscripsi, sicut eam auctor ipse interpretatus est” (Corpus Refor-
matorum 37, p. 148).
38 Ibid., p. 175.
80
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83
39 Há pelo menos seis outras controvérsias teológicas que apareceram entre a morte de Lutero em
1546 até 1578: 1) Controvérsia Adiaforística (1548-1555), que versou sobre a reintrodução de ritos e
cerimônias romanos na igreja luterana; 2) Controvérsia Majorística (1551-1562), na qual George Major
e Justus Menius defenderam a frase de Melanchton de as boas obras são necessárias para a salvação;
3) Controvérsia Sinergística (1555-1560) onde vários teólogos luteranos defenderam com Melanchton
que o homem por seus próprios poderes naturais coopera em sua conversão; 4) Controvérsia de Flácio
(1560-1575) na qual Flacius, com apoio de outros, sustentou que o pecado original não é um acidente,
mas a verdadeira substância do homem caído. Os Luteranos, inclusive os Philipistas se opuseram a esse
erro; 5) Controvérsia com Stancarus e Osiander (1549-1566). Osiander negou o caráter forense da jus-
tificação, e ensinou que Cristo é a nossa justiça somente de acordo com a sua divina natureza; Stancarus,
de modo oposto, ensinou que a nossa justiça é somente de acordo com a natureza humana de Cristo; 6)
Controvérsia Antinomística (1527-1556) onde várias idéias sobre a Lei e o Evangelho foram expostas
por João Agrícola, que dizia que o arrependimento não era trazido pela lei, mas pelo evangelho (ver em
BENTE, Historical Introductions, p. 103).
40 Entre outros podemos mencionar Amsdorf, Flacius, Jonas, Westphal.
41 SCHAFF, Creeds of Christendom, vol. 1, p. 267.
42 BENTE, Historical Introductions, p. 172.
43 SCHAFF, Creeds of Christendom, vol. 1., p. 268.
81
HEBER CARLOS DE CAMPOS, O PERIGO A SER EVITADO NUMA REFORMA
CONCLUSÕES
82
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83
tinham a verdade da Escritura em alta conta. Hoje as igrejas não mais punem
pastores por questões teológicas, apenas por questões morais. Hoje as igrejas
não exercem disciplina sobre presbíteros que discordam dos nossos padrões
de fé.
ABSTRACT
There is a singular tension between the two founders of the Lutheran
tradition – Martin Luther and his colleague and successor Philip Melanchthon.
Despite his lifelong friendship with and admiration for the older reformer,
Melanchthon distanced himself from the thought of the pioneer around two
important issues: the role of divine and human actions in salvation and the
understanding of Christ’s presence in the Supper. Leaving behind his initial
monergism, the assertion of the inability of the human will, the Master of Ger-
many came to embrace a synergistic stance by affirming the “consent of human
will to God’s word” as a requirement for salvation. Regarding the sacrament
of the Supper, Melanchthon distanced himself subtly from consubstantiation
to a position closer to Calvin, with his understanding of a real presence in the
spiritual sense. These new views gave rise to a strong and lasting debate between
the followers of the two reformers – Gnesio-Lutherans and Philipists – which
reverberates until today.
KEYWORDS
Martin Luther; Philip Melanchthon; Free will; Monergism; Synergism;
Lord’s Supper; John Calvin; Consubstantiation; Real presence.
83
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 85-98
RESUMO
Uma vez que Calvino não escreveu um comentário bíblico sobre o Apo-
calipse, existe a tendência de acreditar que ele não se importava muito com
escatologia ou que se considerava incapaz de tratar do assunto. Este artigo
mostra que essa posição pode estar equivocada por vários motivos, entre eles o
que Calvino de fato considerava como escatologia, sua preocupação em evitar
especulações e a consciência da limitação da linguagem humana para descrever
o mundo vindouro. A partir de uma análise contextual da obra do reformador
de Genebra, o artigo busca esclarecer que há uma ligação indissociável en-
tre Escatologia e Soteriologia na obra dos reformadores, especialmente em
Calvino, e que embora sempre preocupado em evitar especulações, Calvino
não fugiu do debate em vários pontos que considerava essenciais para manter
a doutrina reformada, especialmente no que diz respeito à ressurreição e ao
estado intermediário.
PALAVRAS-CHAVE
Calvino; Escatologia; Apocalipse, Teoria da acomodação; Ressurreição.
INTRODUÇÃO
Parece evidente para qualquer leitor dos textos da Reforma que a escatolo-
gia não foi um dos assuntos mais importantes para os reformadores. O simples
85
LEANDRO LIMA, O PENSAMENTO ESCATOLÓGICO DE CALVINO
1 No Novo Testamento, apenas 2 e 3 João, além de Apocalipse, não foram contemplados por
Calvino.
2 Embora ninguém possa dizer com certeza qual foi o motivo que levou Calvino a não comentar
o Apocalipse, o fato de que igualmente as cartas de 2 e 3 João não foram comentadas sugere que foi
simplesmente por falta de tempo, tendo morrido um tanto cedo o grande reformador de Genebra, perto
de completar 55 anos.
3 MOLTMANN, Jürgen. Teologia da esperança. São Paulo: Editora Teológica, 2003, p. 22.
4 LIMA, Leandro A. de. Razão da esperança. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 545.
5 VAN GRONINGEN, Gerard. Criação e consumação. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002,
p. 29.
86
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 85-98
diz: “Os ensinos escatológicos dos reformadores protestantes foram para eles
não menos teologicamente centrais que suas respostas ao problema da justifi-
cação; de fato essas duas dimensões de seus pensamentos são inseparáveis”.6
No caso de Calvino, mais do que em qualquer outro, isso é evidente.
1. O PAPA E O ANTICRISTO
Um aspecto bastante estudado sobre a escatologia ou o apocaliptismo da
Reforma7 foi a tendência de interpretar o Apocalipse na ânsia de identificar
suas cenas e personagens com o próprio momento histórico vivido.8 Exceção
deve ser feita a João Calvino (1509-1564), pois, como já foi dito, o Apoca-
lipse foi um dos poucos livros que ele não comentou, nem se encontra nos
seus escritos qualquer uso exagerado ou pictórico desse texto bíblico. Lutero
(1483-1546) interpretou o livro no sentido linear-histórico, entendendo que a
história o capacitava a decifrar o Apocalipse.9 É curiosa a interpretação dos
três “ais” anunciados pela águia em Ap 8.13 por parte do grande reformador
alemão. O primeiro “ai” era o herético Ário, o segundo, o ataque maometano
à Igreja, o terceiro, o império papal.10
87
LEANDRO LIMA, O PENSAMENTO ESCATOLÓGICO DE CALVINO
Não há outro Cabeça da Igreja senão o Senhor Jesus Cristo; em sentido algum
pode ser o papa de Roma o cabeça dela, mas ele é aquele Anticristo, aquele
homem do pecado e filho da perdição que se exalta na Igreja contra Cristo e
contra tudo o que se chama Deus (XXV.6).
Apesar desse último texto parecer apontar para a figura de um papa es-
pecífico como Anticristo, essa não parece ter sido a intenção dos autores da
88
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 85-98
16 CALVIN, John. Commentaries on the Epistles of Paul the Apostle to the Philippians, Colossians,
and Thessalonians. Bellingham, WA: Logos Bible Software, 2010, p. 327.
17 Ibid.
18 Ibid., p. 329.
19 Ibid., p. 333.
89
LEANDRO LIMA, O PENSAMENTO ESCATOLÓGICO DE CALVINO
Pois nos envergonhamos de não superar em nada aos animais irracionais cuja
condição em nada seria inferior à nossa, a não ser que nos restasse a esperança
da eternidade após a morte. Com efeito, se examinares os planos, os esforços,
os feitos de cada um, outra coisa aí não verás senão terra.21
Portanto, para que não se prometam profunda e segura paz nesta vida, ele per-
mite que sejam frequentemente inquietados e molestados ou por guerras, ou por
tumultos, ou por assaltos, ou por outros malefícios. Para que não anelem com
demasiada avidez às riquezas aleatórias e instáveis, ou se arrimem naquelas que
possuem, ora pelo exílio, ora pela infertilidade do solo, ora pelo fogo, ora por
outros modos, os reduzem à pobreza, ou pelo menos os mantém em condição
modesta. Para que não se deliciem em demasiados afagos nos deleites conjugais,
ou faz com que sejam atribulados pela perversidade das esposas, ou os humilha
com uma prole má, ou os aflige com a perda desses membros da família. Pois
se é mais indulgente com eles, em todas essas coisas, contudo, para que não se
entumeçam de vanglória, nem borbulhem de confiança pessoal, lhes põe diante
dos olhos, através de enfermidades e perigos, quão instáveis são e aleatórios
todos e quaisquer bens que estão expostos à mortalidade.22
Ao estilo que soa o mais pessimista possível com relação a esta vida e
suas alegrias, Calvino assevera:
20 CALVINO, João. Institutas da Religião Cristã. Edição Clássica. 4 vols. São Paulo: Cultura
Cristã, 2006, 3.9.1.
21 Ibid.
22 Ibid.
90
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 85-98
aspiração e à meditação da vida futura, a não ser que esteja antes imbuído de
menosprezo da presente vida.23
O ponto específico que Calvino está expondo fica claro quando ele de-
clara: “Quando se chega a esta comparação, então de fato aquela pode não
apenas ser tranquilamente negligenciada, mas diante desta pode ser totalmente
desprezada e desdenhada”.25
A fim de que não reste dúvida de que ele não está falando de um desprezo
ingrato da vida presente, mas em razão da necessidade da comparação que há
com a vida futura, na qual a presente se torna desprezível, Calvino conclui:
Portanto, se a vida celestial for comparada à terrena, não há dúvida de que seja
incontestavelmente não apenas desprezível, mas até mesmo digna de ser calcada
aos pés. Por certo que nunca deve ser tida em ódio, senão até onde ela nos man-
tém sujeitos ao pecado; aliás, esse ódio nem deve voltar-se propriamente contra
ela. Seja como for, convêm, entretanto, de tal modo devemos deixar-nos afetar
por ela, seja de enfado, seja de insatisfação, que, desejando-lhe o fim, também
estejamos predispostos a permanecer nela ao arbítrio de Deus, em termos tais
que de fato nosso enfado esteja longe de toda murmuração e impaciência.26
Mas, nenhum caminho é mais seguro e mais expedito do que aquele que nos
resulta do menosprezo da presente vida e da meditação da imortalidade celeste.
Ora, daqui seguem-se duas regras: primeira, que os que usam deste mundo sejam
dispostos exatamente como se dele não usassem; os que contraem matrimônio,
como se o não contraíssem; os que compram, como se não comprassem, como
23 Ibid.
24 Institutas 3.9.3.
25 Institutas 3.9.4.
26 Ibid.
91
LEANDRO LIMA, O PENSAMENTO ESCATOLÓGICO DE CALVINO
preceitua Paulo [1Co 7.29-31]. Segunda, que saibam suportar a penúria não
menos serena e pacientemente, quando se desfruta de abundância moderada.
Aquele que prescreve que deves usar deste mundo como se dele não usasses,
aniquila não apenas a intemperança da gula na comida e na bebida, a modera-
da indulgência na mesa, na moradia, na indumentária, a ambição, a soberba, a
arrogância, o enfado, como também todo cuidado e predisposição que te afaste
ou impeça do pensamento da vida celeste e do zelo de nutrir a alma.27
E para que nesta corrida seu ânimo não desfaleça, o mesmo Paulo evoca por
companheiros a todas as criaturas [Rm 8.19]. Pois uma vez que se contemplam
por toda parte ruínas disformes, ele declara que tudo quanto há no céu e na terra
luta por sua renovação.29
27 Institutas 3.10.4.
28 Institutas 3.25.2.
29 Institutas 3.25.2.
30 Institutas 3.25.3.
92
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 85-98
em seu todo, a que abarca não só a adoção, mas também a efetuação de nossa
salvação”.31 Por isso, como já foi dito, não é possível dissociar escatologia de
soteriologia na obra do reformador de Genebra.
O próprio Calvino reconhece a brevidade de sua descrição:
Estou a restringir, com parcimônia, coisas que não só poderiam ser tratadas mais
extensamente, mas até merecem ser mais esplendidamente adornadas. E, no
entanto, confio que em minhas poucas palavras os leitores piedosos encontrem
bastante material que seja suficiente para que sua fé seja edificada. Portanto,
Cristo ressuscitou para que nos tivesse como companheiros da vida futura.32
31 Ibid.
32 Ibid.
33 Institutas 3.25.5.
34 CALVIN, Commentaries on the Epistles of Paul the Apostle to the Philippians, Colossians, and
Thessalonians, p. 325.
93
LEANDRO LIMA, O PENSAMENTO ESCATOLÓGICO DE CALVINO
Calvino defende que as almas dos salvos estão com Deus após a morte,
desfrutando das benesses preparadas para elas. No entanto, isso não significa
que Calvino tenha uma posição inegociável a respeito do lugar onde as almas
dos crentes descansam, nem acredita que seja possível definir isso com total
precisão:
35 Ibid., p. 325-326.
36 Ibid., p. 326.
37 Institutas 3.25.6.
94
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 85-98
Em outro lugar das Institutas ele voltaria a afirmar que definir o lugar
exato das almas, ou seja, se estão no céu com Deus, ou em algum outro
lugar também com Deus, não era um assunto central da fé cristã, nem devia
ser causa de divisões:
Há outros pontos em que não concordam todas as igrejas e, contudo, não rompem
a união da igreja. Assim, por exemplo, se uma igreja sustém que as almas são
transportadas ao céu no momento de separar-se de seus corpos, e outra, sem se
atrever a determinar o lugar, diz simplesmente que vivem em Deus, quebrariam
estas igrejas entre si o amor e o vínculo da união, se esta diversidade de opinião
não fosse por polêmica ou por obstinação?39
Enquanto isso, uma vez que a Escritura por toda parte nos ordena que depen-
damos da expectativa da vinda de Cristo e que prorroga a coroa de glória até
esse momento, estejamos contentes com estes limites divinamente prescritos:
uma vez desincumbidas de sua militância, as almas dos piedosos passam para
o bem-aventurado descanso, onde, com feliz alegria, aguardam desfrutar da
glória prometida, e assim todas as coisas sejam tidas em suspenso todas até que
Cristo apareça como Redentor. Os réprobos, porém, não há dúvida de que têm a
mesma sorte que é prescrita a Judas e aos diabos, a saber, são mantidos atados
por cadeias, até que sejam arrastados ao suplício a que foram destinados [Jd 6].40
4. AS LIMITAÇÕES DA LINGUAGEM
O mais próximo que Calvino chega de algum tipo de especulação é no
que tange a definir a natureza do corpo ressuscitado, porém, ainda assim, con-
38 Ibid.
39 Institutas 4.1.12.
40 Institutas 3.25.6.
95
LEANDRO LIMA, O PENSAMENTO ESCATOLÓGICO DE CALVINO
41 Institutas, 3.25.8.
42 Segundo Alister McGrath, Calvino desenvolveu, no século 16, uma teoria incrivelmente sofistica-
da sobre a natureza e a função da linguagem humana. A vida de João Calvino. São Paulo: Cultura Cristã,
2004, p. 154. Para Calvino, quando Deus fala, “ele se acomoda à nossa capacidade”. 1Coríntios. Trad.
Valter Graciano Martins. São Bernardo do Campo, SP: Edições Parákletos, 1996, p. 82 (1Co 2.7). Nas
Escrituras, segundo Calvino, Deus se revela por meio de palavras. Essas palavras humanas conseguem
falar algo sobre Deus, mas são limitadas. Aqui está uma das grandes contribuições de Calvino para o
pensamento cristão: o princípio da acomodação. Ou seja, a palavra divina adapta-se ou acomoda-se à
capacidade humana, para suprir as necessidades da situação. Em outras palavras, Deus se retrata de uma
forma que o homem tinha condições de compreender. LIMA, Leandro de. O futuro do calvinismo. São
Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 183.
96
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 85-98
Mas então, uma vez, finalmente, cumprida a profecia quanto à morte ser tragada
pela vitória [Is 25.8; Os 13.14; 1Co 15.54, 55], tenhamos sempre em mente
a felicidade eterna que é propósito de nossa ressurreição, de cuja excelência,
quanto as línguas humanas pudessem proclamar, seria apenas uma parte in-
significante do que se merece. Ora, por mais que seja verdadeiramente o que
ouvimos, de que o reino de Deus haverá de ser cheio de esplendor, de alegria, de
felicidade, de glória, no entanto, aquelas coisas que se enumeram, permanecem
mui remotas de nosso senso e como que envoltas em obscuridade, até que tiver
chegado aquele dia em que ele mesmo haverá de exibir-nos sua glória para ser
contemplada face a face [1Co 13.12]. Sabemos que somos filhos de Deus”, diz
João, “mas, isso ainda não se fez manifesto. Quando, porém, formos semelhantes
a ele, então o veremos tal qual ele é” [1Jo 3.2]. Por isso é que os profetas, não
podendo exprimir em suas próprias palavras aquela bem-aventurança espiri-
tual, como que simplesmente a delinearam sob a forma das coisas corpóreas.43
Ele descreve sua própria postura particular quanto a esse assunto com as
seguintes palavras:
97
LEANDRO LIMA, O PENSAMENTO ESCATOLÓGICO DE CALVINO
CONCLUSÃO
Vemos, portanto, em Calvino uma escatologia sóbria, inteiramente a
serviço da vida presente, distanciada de especulações, despreocupada em res-
ponder a todas as curiosidades dos homens, focada na ressurreição de Cristo
e intimamente conectada com os conceitos soteriológicos desenvolvidos no
período da Reforma. A linguagem e a concepção da mente humana nos impedem
de entender plenamente o futuro e suas implicações, mas isso não significa
que meditar sobre a vida futura seja algo inútil e infrutífero. Ao contrário, é
uma tarefa sublime e necessária, desde que nos contentemos com o espelho
e aprendamos a desprezar coerentemente a presente vida.
ABSTRACT
Since Calvin did not write a commentary on the book of Revelation, there
is a tendency to believe that he did not care much about eschatology or that he
felt unable to discuss the subject. This article demonstrates that such view can be
wrong for several reasons, such as how Calvin in fact understood eschatology,
his concern to avoid speculations, and his consciousness of the limitations of
human language to describe the world to come. Departing from a contextual
analysis of the Genevan reformer’s works, the article tries to highlight that
there is an unbreakable connection between eschatology and soteriology in
the work of the reformers, especially in Calvin. Despite his constant concern
to avoid speculations, he did not evade the debate around several topics that
he considered essential in order to maintain Reformed doctrine, particularly
concerning resurrection and the intermediate state.
KEYWORDS
Calvin; Eschatology; Revelation; Theory of accommodation; Resurrection.
46 Ibid.
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RESUMO
Visando convencer intérpretes e pregadores de um modo específico de
encontrar Cristo na leitura do Antigo Testamento, o presente artigo defende
que a maneira como Calvino interpreta o Antigo Testamento é adequadamente
descrita pelo termo “cristotélica”, no sentido de que ele, em contraste com
Erasmo e Lutero, encontrava Cristo no Antigo Testamento com base em uma
teologia bíblica saudável que pressupunha a unidade dos testamentos.
PALAVRAS-CHAVE
Hermenêutica; Cristocêntrica; Cristológica; Cristotélica; Calvino; Lutero;
Erasmo.
INTRODUÇÃO
Nos últimos tempos tem-se falado bastante sobre pregação cristocêntrica.1
Livros, artigos e palestras corretamente procuram convencer os pregadores
de que Jesus Cristo tem que ser o assunto central e o alvo de toda pregação
* Mestre em Antigo Testamento (CPAJ, 2007) e Novo Testamento (Calvin Seminary, 2009),
doutor em Ministério (CPAJ, 2014) e doutorando em Novo Testamento pela Trinity International Uni-
versity. Professor de Novo Testamento no CPAJ. Editor dos websites issoegrego.com.br e yvaga.com.
br. Agradeço a graciosa leitura e revisão feitas pelo amigo Dr. Christian Medeiros, o que evidentemente
não o torna responsável pelos meus equívocos.
1 LAWSON, Steven J. “The Kind of Preaching God Blesses”. Eugene, OR: Harvest House
Publishers, 2013; CARDOSO, Dario de Araújo. Uma abordagem cristocêntrica para os sermões bio-
gráficos. Fides Reformata 15-1 (2010): 57–79; GREIDANUS, Sidney. Pregando Cristo a partir do
Antigo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2006; CLOWNEY, Edmund P. Preaching Christ in All of
Scripture. Wheaton, IL: Crossway Books, 2003; CHAPELL, Bryan. Pregação cristocêntrica: restaurando
o sermão expositivo – um guia prático e teológico para a pregação bíblica. São Paulo: Cultura Cristã,
2002; GOLDSWORTHY, Graeme. Preaching the Whole Bible as Christian Scripture: The Application
of Biblical Theology to Expository Preaching. Grand Rapids: Eerdmans, 2000.
99
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO
100
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101
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO
11 Ibid., p. 41.
12 CHANTRAINE, “The ration veare theologiae (1518)”, p. 182.
13 COMPIER, Don H. “The Independent Pupil: Calvin’s Transformation of Erasmus’ Theological
Hermeneutics”. Westminster Theological Journal 54 (1992), p. 222.
14 “Para Erasmo, Cristo era o centro da Escritura, não, no entanto, como redentor que, hoje, nos
une a Deus, mas, em vez disso, como o grande exemplo do passado que nos instrui nas virtudes que
agradam a Deus”. RUNIA, Klaas. “The Hermeneutics of the Reformers”. Calvin Theological Journal
19 (1984), p. 128-129.
102
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 99-115
Para Lutero, a escritura tem autoridade última porque ela contém a palavra de
Deus, e, em particular o dom mais importante de Deus, o evangelho da justifi-
cação pela fé em Cristo. Ele é muito claro com relação ao conteúdo e propósito
do evangelho: ele comunica a obra salvífica da morte e ressurreição de Cristo
para a humanidade. Sua avaliação da escritura é assim altamente cristocêntrica
103
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO
A real diferença entre a velha e a nova lei [leia-se: evangelho] é esta: a velha
lei diz àqueles que são orgulhosos por sua própria justiça: você deve ter Cristo
e seu Espírito; a nova lei diz àqueles que, humilhados, reconhecem sua total
carência de justiça e procuram a Cristo: Vejam, aqui está Cristo e seu Espírito.
Aqueles, portanto, que interpretam o evangelho como outra coisa em vez “boas
novas”, ainda não entenderam o evangelho. Precisamente isto deve ser dito
àqueles que transformaram o evangelho em lei, em vez de interpretá-lo como
graça e que colocam Cristo diante de nós como um Moisés.22
21 COX, Jillian E. “Martin Luther on the Living Word: Rethinking the Principle of Sola Scriptura”.
Pacifica (2017), p. 13.
22 LUTHER, Martin. Luther: Lectures in Romans. Ed. Wilhelm Pauck. Louisville, KY: Westminster/
John Knox Press, 1961, p. 199.
23 RUNIA, “The hermeneutics of the reformers”, p. 128-29.
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105
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO
Repetindo, somos instruídos por esta passagem que, se quisermos obter o co-
nhecimento de Cristo, devemos buscá-lo nas Escrituras, pois os que imaginam
qualquer coisa que acaso decidam acerca de Cristo, por fim nada terão dele senão
uma sombra fantasmagórica. Antes de tudo, devemos crer que Cristo não pode
ser propriamente conhecido de qualquer outra forma senão nas Escrituras; e se
esse é o caso, segue-se que devemos ler as Escrituras com o expresso propósito
de encontrar Cristo nelas.29
29 CALVINO, João. O Evangelho Segundo João. São José dos Campos, SP: Fiel, 1998, p. 235-36.
Disponível em: http://www.ministeriofiel.com.br/bibliotecajoaocalvino. Embora grande demais para
aparecer no corpo do artigo, vale a pena ler o que Calvino diz mais à frente: “Mas a razão porque a
maioria dos homens é impedida de se beneficiar é que não tem do assunto nada mais que um vislumbre
superficial e displicente. Contudo, ele requer a máxima atenção, e por isso Cristo nos ordena a sondar
diligentemente este tesouro oculto”.
30 KRAUS, Hans-Joachim. “Calvin’s Exegetical Principles”. Interpretation 31 (1977): 17-18.
31 “Oposto à perspectiva radical de Lutero, que claramente separava a lei e o evangelho, Calvino
tentou explicar a dialética entre lei e evangelho apontando para a natureza normativa da própria lei,
que não é diferente do evangelho circa essentiam. Como um cristão que experimentou uma conversão
repentina pela qual o seu coração se tornou ensinável para a verdade de Deus, Calvino concluiu que o
que mudou desde a queda não foi a verdade ou ensino da lei em si, mas a condição e qualidade da hu-
manidade... Portanto, com a vinda de Cristo como mediador, a revelação da lei se tornou perfeita como
uma regra de vida (regula vivendi) e, ainda mais, como uma regra de vivificação (regula vivificandi).
Calvino afirma claramente que Cristo, como a substância da Lei, cumpriu a lei. MOON, Byung-Ho.
Christ the Mediator of the Law: Calvin’s Christological Understanding of the Law as the Rule of Living
and Life-Giving. Milton Keynes, UK: Paternoster, 2006, p. 82.
106
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Mas quando Deus nos atrai de forma tão gentil e graciosa pelas suas promessas,
e além disso nos persegue com os trovões de sua maldição, é parcialmente para
tornar-nos inescusáveis, e, parcialmente para nos deixar despojados de toda
confiança em nossa própria justiça, de modo que podemos aprender a abraçar
seu pacto da Graça, e procurar refúgio em Cristo, que é o fim da lei. Esta é a
intenção das Promessas nas quais ele se declara misericordioso, desde que há
pronto perdão para o pecador, e quando ele oferece o Espírito de Regeneração.
Disto depende aquela sentença de São Paulo de que Cristo é o fim da Lei.33
Ainda nas Institutas, Livro II, capítulo 6, Calvino demonstra que a sal-
vação, o consolo e a esperança nunca deixaram de estar em Cristo, mesmo no
Antigo Testamento. O sétimo capítulo, dedicado à lei, começa assim:
A religião mosaica, fundada sobre o pacto da graça, apontava para Jesus Cristo.
De tudo o que temos exposto se deduz muito facilmente que a Lei não foi dada
32 CALVIN, John. Commentaries on the Four Last Books of Moses Arranged in the Form of a
Harmony. Edinburgh: Calvin Translation Society, 1852, XV. Disponível em: https://books.google.com/
books?id= uYk9AAAAYAAJ.
33 Ibid., XVIII. Mais à frente, no comentário, Calvino afirma: “Além disso, devemos notar que
as gerações do povo antigo foram trazidas a um fim pela vinda de Cristo, porque as sombras da Lei
terminaram quando o estado da Igreja foi renovado e os gentios foram unidos no mesmo corpo” (p. 231).
107
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO
Cristo é a razão de ser de cada um dos três motivos elencados por Calvino.
O princípio cristotélico também fica claro naquilo que Calvino chama os três usos
da lei moral: 1) fazer conhecer a cada um a sua própria injustiça; 2) fazer temer
pela pena aqueles que ficam impassíveis sem uso de força; 3) ensinar a vontade
de Deus aos que anelam conhecê-la (cf. Institutas 2.7.6-12). Para Calvino, tanto
a lei cerimonial quanto a lei moral têm Cristo como sua razão de ser e objetivo.
No comentário de Romanos 10.4, Calvino confirma essa concepção
dizendo que
a lei fora promulgada para guiar-nos pela mão a outra justiça. Aliás, cada dou-
trina da lei, cada mandamento, cada promessa, sempre aponta para Cristo [...]
Esta notável passagem declara que a lei, em todas as suas partes, aponta para
Cristo, e, portanto, ninguém será capaz de entendê-la corretamente, a não ser
que se esforce constantemente por atingir este alvo.34
34 CALVINO, João. Romanos. São José dos Campos, SP: Fiel, 2014, p. 358. Disponível em: www.
ministeriofiel. com.br/bibliotecajoaocalvino.
35 CALVIN, Commentaries on the Four Last Books of Moses Arranged in the Form of a Harmony,
p. 46.
36 Ibid., p. 61, 270.
37 Ibid., p. 93.
108
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A lei aponta para Cristo e Cristo, em certo sentido, nos aponta para a lei
como maneira de viver. Veja o comentário de Moon:
Como uma regra de vida justa e piedosa, a lei nos torna conscientes de nossa
capacidade limitada e nos faz entender a necessidade de um mediador. Além
disso, a lei revela a promessa da vinda de Cristo como o Mediador. Da mesma
forma, Cristo media a lei como o Reconciliador para satisfazer suas exigências,
como Intercessor para restabelecer a comunhão entre Deus e nós e eliminando
a sua maldição, e como Mestre ele revela a sua verdadeira natureza.38
38 MOON, Christ the Mediator of the Law: Calvin’s Christological Understanding of the Law as
the Rule of Living and Life-Giving, p. 119.
39 PARKER, Thomas H. L. Calvin’s Old Testament Commentaries. Edinburgh: T. and T. Clark,
1986, p. 45s; 85s.
40 CALVIN, John. Commentary on Isaiah. Edinburgh: Calvin Translation Society, n.d., XXVI.
Disponível em: https://books.google.com/books?id=Qzi4AxJbzysC. Ainda sobre a lei, nessa mesma
página, Calvino afirma: “Agora, a Lei consiste principalmente de três partes: primeira, a doutrina da
vida; segunda, tratados e promessas; terceira, o pacto da graça, que, sendo fundado em Cristo, contém
em si todas as promessas especiais”.
109
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO
41 Ibid., xxviii.
42 Ibid., xxix.
43 PUCKETT, David Lee. John Calvin’s Exegesis of the Old Testament. Louisville, KY: Westminster
John Knox, 1995), p. 82-88.
44 Ibid., p. 54.
45 Ibid., p. 105s.
46 CALVIN, Commentary on Isaiah, p. 91s.
47 Ibid., p. 485s.
48 CALVINO, João. Comentário Sobre Oséias. Brasília: Monergismo, 2008, p. 70. Disponível
em: http://monergismo.com/joao-calvino/joao-calvino-comentario-sobre-oseias/.
110
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 99-115
111
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO
A marca característica da exposição que Calvino faz dos profetas é a sua visão
de que a profecia tem uma referência tripla. Ele afirma primeiro que ela se
refere a um evento histórico iminente (como o retorno do povo do exílio), em
segundo lugar a Cristo (pelo qual ele pode querer dizer “a encarnação” ou “a
ascensão” ou até mesmo “a era apostólica e a pregação do evangelho”) e o ter-
ceiro ao curso inteiro da história até o Último Dia (base sobre a qual ele aplica
as profecias à igreja do século dezesseis). Assim, ele constrói a história do povo
de Deus pelo menos desde o tempo da volta do povo de Israel do exílio, como
a história do reino de Cristo.56
Quando Paulo [Rm 3.13], ao citar esta passagem, a estende a todo o gênero
humano, tanto judeus quanto gentios, ele não lhe imprime maior amplitude do
abordagem hermenêutica na qual a implicação final de qualquer texto é determinada pelo contexto maior
de promessa, cumprimento e a história contínua do povo de Deus”. Ibid., p. 82.
56 WILCOX, Pete. “Calvin as Commentator in the Prophets”. In: Calvin and the Bible2. Ed. Donald
McKim. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 121.
57 CALVINO, João. O Livro Dos Salmos. São Paulo: Parácletos, 1999, p. 33-35.
58 Ibid., p. 57.
59 Ibid., p. 61.
112
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 99-115
que aquela que o Espírito Santo pretendia imprimir. Visto que ele lhe aplica uma
substância inegável, ou seja, que sob a pessoa de Davi, se encontra descrita a
igreja, tanto na pessoa de Cristo, que é a cabeça, quanto em seus membros...60
Já o Salmo 21, que fala sobre o reino de Davi, tem como objetivo “di-
rigir a mente dos fiéis para Cristo, que era o fim e a perfeição desse reino, e
ensinar-lhes que só poderiam ser salvos sob o Cabeça que Deus mesmo lhes
havia designado”.61 São raros os salmos que Calvino não interpreta como tendo
uma relação com Cristo, seja como uma profecia, seja como uma tipologia de
Cristo, de seu reino ou de sua igreja.62 Uma expressão comum no comentário
de Calvino, após falar do significado histórico de um salmo, é “ao mesmo tem-
po”, e então Calvino mostra o cumprimento tipológico do salmo em Cristo.63
Para de Greef, as maneiras como Calvino relaciona os salmos com Cristo
são quando o Novo Testamento faz referência ao salmo; os salmos como pro-
fecia seja dos sofrimentos, seja do reino de Jesus, e Davi como representante
de Cristo e modelo para os cristãos.64
Em seu afã por uma interpretação literal, algumas vezes Calvino vai
contra a interpretação cristocêntrica de alguns salmos. Isso acontece em sua
interpretação dos salmos 72 e 16, por exemplo.65 Comentando sobre a inter-
pretação calvinista do Salmo 72, Muller afirma:
60 Ibid., p. 117.
61 Ibid., p. 454 (grifo meu).
62 Um pouco diferente em sua avaliação, De Greef comenta assim: “É notável na interpretação dos
salmos de Calvino que ele não tenta relacionar todos e cada salmo com Jesus Cristo. Em sua exposição
de diversos salmos, ele nunca menciona o nome de Cristo. Ainda assim, há salmos que ele conecta com
Jesus Cristo e seu reino; mas somente quando há justificativa real para fazê-lo”. DE GREEF, Wulfert.
“Calvin as Commentator on the Psams”. In: Calvin and the Bible. Ed. Donald K. McKim. Cambridge:
Cambridge University Press, 2006, p. 99.
63 Cf. Comentário de Calvino dos Salmos, p. 22, 45, 47.
64 Ibid., p. 99-103.
65 PUCKETT, John Calvin’s Exegesis of the Old Testament, p. 54.
66 MULLER, “The Hermeneutic of Promise and Fulfillment in Calvin’s Exegesis of the Old Testa-
ment Prophecies of the Kingdom”, p. 77.
113
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO
CONCLUSÃO
Como certamente ficou evidente ao leitor, as análises aqui oferecidas da
hermenêutica de Erasmo, Lutero e Calvino são apenas introdutórias e visam
a fomentar mais pesquisa e discussão sobre esse assunto tão importante, que
certamente tem potencial para gerar diversos livros e teses. O nosso foco pre-
sente, no entanto, além de introdutório quanto a estudos acadêmicos, visa a
prática dos pregadores de nosso país.
Muitos pregadores querem pregar o Antigo Testamento de maneira
cristocêntrica. O problema é que, quando são sérios com relação à exegese e
ao sentido do texto, por vezes é difícil saber onde “encaixar” Jesus Cristo no
sermão. O presente artigo mostrou que esse não é um problema novo, mas já
no século 16 existiam diferentes maneiras de ver Cristo nas páginas do Antigo
Testamento. Erasmo, Lutero e Calvino consideravam a pessoa de Cristo como
central para a interpretação das Escrituras, mas cada um tinha a sua própria
maneira de relacionar os textos específicos à pessoa de Cristo.
Erasmo construiu uma filosofia de Cristo, um amálgama entre a vida e
obra de Cristo e a filosofia clássica e, a partir dessa filosofia, expunha os textos
das Escrituras, lançando mão de uma interpretação alegórica. Lutero lutou por
encontrar um sentido literal, mas ao começar, o objetivo de encontrar Jesus
Cristo por vezes não fazia justiça ao sentido histórico do texto.
João Calvino parte de uma compreensão da unidade das Escrituras em
torno de Jesus Cristo: Cristo é o Mediador tanto no Novo quanto no Antigo
Testamento; a igreja se faz presente no Antigo Testamento; a salvação em ambos
os testamentos acontece mediante a fé; a lei aponta para Jesus Cristo e este é o
mestre e o objetivo da mesma; as profecias apontam para Cristo, sua vinda e
seu reino futuro, tendo, contudo, um significado e cumprimento para a época
da escrita; os salmos e profecias contêm pessoas, ofícios e situações que são
tipos e/ou sombras de Cristo, seu reino e seu povo. Existe, portanto, uma forma
de compreender a Escritura que guia Calvino em sua interpretação cristotélica
do Antigo Testamento. Na interpretação de Calvino, Cristo é o alvo (telos) da
lei, dos profetas e dos salmos e não será encontrado de forma correta, a não ser
que o texto seja interpretado fazendo jus à gramática e ao contexto histórico.
Portanto, com uma compreensão bíblico-teológica influenciada pela
teologia calvinista os intérpretes e pregadores podem ter mais sucesso em sua
busca por Jesus nas páginas do Antigo Testamento, não como quem o traz à
força, mas como quem o encontra naturalmente depois de estudar o texto em
114
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 99-115
seus próprios termos. Isso é praticar, junto com Calvino, uma interpretação
cristotélica da Escritura.67
ABSTRACT
Having in view to convince interpreters and preachers about a specific
way to find Christ in the Old Testament, this article contends that Calvin’s
interpretation of the Old Testament is well defined by the word “Christotelic”,
in the sense that he, unlike Erasmus and Luther, found Christ in the Old Testa-
ment on the basis of a healthy biblical theology that presupposed the unity of
the testaments.
KEYWORDS
Hermeneutics; Christocentric; Christological; Christotelic; Calvin; Luther;
Erasmus.
67 As seguintes notas podem ser úteis para tornar ainda mais clara a utilidade desse conceito para
a pregação: “O termo que eu prefiro usar para descrever essa hermenêutica escatológica é ‘cristotélica’.
Eu prefiro este em vez de ‘cristológica’ ou ‘cristocêntrica’, visto que estes são suscetíveis a um ponto
de vista que eu não estou advogando aqui, qual seja, a necessidade de ‘ver Cristo’ em todas ou quase
todas as passagens do Antigo Testamento. Telos é a palavra grega para ‘fim’ ou ‘conclusão’. Ler o An-
tigo Testamento ‘cristotelicamente’ é lê-lo já sabendo que Cristo é de alguma forma o fim para o qual
a história do Antigo Testamento está se dirigindo”. ENNS, Inspiration and Incarnation Evangelicals
and the Problem of the Old Testament, p. 154. “A abordagem cristotélica habilita o expositor bíblico a
determinar como um texto particular aponta para Cristo de forma a não ter que forçá-lo em cada texto.
Adicionalmente, ele torna o expositor responsável por ser fiel ao significado histórico do texto para a
audiência original”. VINES, Jim S. J. Progress in the Pulpit: How to Grow in Your Preaching. Chicago:
Moody Publishers, 2017.
115
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138
Calvino e o Lapsarianismo:
Uma Avaliação de como Calvino pode ser lido
à Luz da Discussão Supra e Infralapsariana
João Alves dos Santos*
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo analisar alguns dos escritos de
Calvino sobre a soberania de Deus e a responsabilidade do homem, à luz
da discussão atual sobre a ordem que se deve dar aos decretos da eleição e da
reprovação de homens em relação à queda, no cumprimento que Deus faz de
seus propósitos, procurando saber se é possível classificar o reformador em
qualquer das duas principais linhas de pensamento, geralmente conhecidas
como supralapsarianismo e infralapsarianismo. O autor opta pela resposta
negativa, à luz da abordagem que Calvino faz dos textos bíblicos estudados e
do seu pressuposto de que não é dada ao homem a capacidade de entender os
decretos divinos, e o modo como são executados pelo seu criador, por meio do
seu raciocínio finito e limitado de criatura.
PALAVRAS-CHAVE
Calvino; Supralapsarianismo; Infralapsarianismo; Predestinação; Repro-
vação; Queda.
INTRODUÇÃO
Dá-se o nome de “lapsarianismo” à discussão sobre a ordem ou sequência
dos decretos de Deus no que diz respeito especificamente aos decretos da
117
JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO
1 Institutas III. 23.7. O termo latino é horribilis, que significa “horrível”, “terrível”, “assombro-
so”, “surpreendente”. A tradução que lhe é dada geralmente é abrandada, como neste caso, mas o uso
do termo por Calvino mostra como ele via com temor e assombro a natureza desse decreto.
118
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138
E ainda não eram os gêmeos nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal
(para que o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras,
mas por aquele que chama), já fora dito a ela: O mais velho será servo do mais
moço. Como está escrito: Amei Jacó, porém me aborreci de Esaú. Que diremos,
pois? Há injustiça da parte de Deus? De modo nenhum! Pois ele diz a Moisés:
Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia e compadecer-me-ei
de quem me aprouver ter compaixão. Assim, pois, não depende de quem quer
ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia. Porque a Escritura diz
a Faraó: Para isto mesmo te levantei, para mostrar em ti o meu poder e para
que o meu nome seja anunciado por toda a terra. Logo, tem ele misericórdia
de quem quer e também endurece a quem lhe apraz.
Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?! Porventura, pode o objeto
perguntar a quem o fez: Por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro direito
sobre a massa, para do mesmo barro fazer um vaso para honra e outro, para de-
sonra? Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer
o seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados
para a perdição, a fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória
em vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão? (Rm 9.20-23).
2 É verdade que há alguns supralapsarianos que chegam a afirmar que Deus é, de fato, o autor
do mal ou do pecado, ainda que no sentido metafísico, pois esta lhes parece ser a única alternativa
admissível em face da doutrina dos decretos e, em particular, a respeito da origem do mal. Recusam-se
a admitir que a natureza de Deus e os seus decretos não possam ser entendidos em todos os seus aspectos
pela razão humana e, por isso, procuram formular respostas que sejam “compatíveis” e “coerentes” com
o nosso raciocínio lógico. Uma amostra dessa posição pode ser vista em escritos de Vincent Cheung,
publicados no site monergismo.com, tais como “O Autor do Pecado” (http://www.monergismo.com/
textos/problema_do_mal/cheung_autor_pecado.htm) e “Deus, o Autor” (http://monergismo.com/vincent-
-cheung/deus-o-autor/). Acesso em: 28 set. 2017.
119
JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO
Com esta argumentação Paulo nega o direito a quem quer que seja de ques-
tionar a justiça do Deus criador por agir de modo aparentemente incompatível
com o senso de justiça da criatura. O argumento é o de que a soberania de Deus,
como criador, esvazia qualquer pretensão ou questionamento da criatura, dadas
as diferenças entre os dois seres. Assim, não seria arbitrário para Deus eleger
desde o princípio, dentre os homens a serem criados e conforme o conselho
da sua vontade, alguns para a vida eterna e preordenar os demais para a morte
eterna. É o que Paulo diz no texto acima citado: “Terei misericórdia de quem
me aprouver ter misericórdia e compadecer-me-ei de quem me aprouver ter
compaixão. Assim, pois, não depende de quem quer ou de quem corre, mas
de usar Deus a sua misericórdia”. Em outras palavras, Paulo está dizendo que
não temos o direito de medir o padrão de justiça do Deus soberano e criador
infinito pelo nosso padrão de meras criaturas finitas.
A corrente infralapsariana também parte de textos das Escrituras, mas
daqueles que se referem à causa da condenação do homem como ligada não
diretamente ao decreto da criação, mas ao da queda, ou seja, ao pecado como
sua consequência.
O próprio texto de Romanos 9.22-23, acima citado, também pode ser
usado para defender esse ponto de vista. Se, por um lado Paulo apresenta a so-
berania de Deus como a causa justificadora da feitura de vasos de ira e vasos de
misericórdia, a própria qualificação desses “vasos de ira” pressupõe o pecado:
Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu
poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a
perdição, a fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória em
vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão?
120
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138
dos vasos. Para os vasos de ira, nos quais Deus tem como propósito “mostrar
a sua ira e dar a conhecer o seu poder”, ele usa o verbo katarti,zw (“preparar”,
“adequar para um determinado fim”) na voz passiva, sem identificar quem é
o agente da ação. Já para os vasos de misericórdia, cuja finalidade é “dar a
conhecer as riquezas da sua glória”, ele usa o verbo proetoima,zw (“preparar
de antemão”, “preparar para seu próprio uso ou propósito”, conforme traduz
o léxico de Liddell e Scott)3 Paulo usa a voz ativa para indicar claramente
que o agente nesse preparo dos vasos de misericórdia é Deus.
Claro que se ambos os “preparos” fazem parte do eterno decreto de Deus,
como todas as demais coisas que acontecem, é inescapável reconhecer que
Deus é o autor de ambas as predeterminações. Essa é a conclusão natural de
nosso raciocínio lógico. Daí a ênfase do supralapsarianismo na predestinação
tanto para a vida como para a morte eternas, por ser inescapavelmente lógica.
Mas Paulo tem o cuidado de não atribuir diretamente a Deus a responsabi-
lidade pela perdição dos não eleitos, como parece ficar claro deste texto das
Escrituras. Como conciliar, então, a lógica do raciocínio com este ensino
das Escrituras? Como conciliar a soberania de Deus com a responsabilidade
humana? É o que se pretende considerar a seguir.
3 Liddell e Scott apresentam esse verbo como sendo usado, neste segundo sentido, na medicina, por
Heródoto. Friberg acrescenta em seu dicionário que ele é usado neste sentido de “preparar de antemão”,
no Novo Testamento, apenas para obras de Deus. O outro uso que encontramos no NT é feito também
por Paulo, em Ef 2.10, referindo-se às “obras que Deus preparou de antemão” para que andássemos
nelas.
121
JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO
122
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138
É um só ato da mente divina e não muitos. Este ponto de vista é, pelo menos,
sugerido pela Escritura, que fala dele usualmente como uma pro,qesij, “um
propósito”, “um conselho”. Ele decorre da natureza de Deus. Como o conheci-
mento natural de Deus é totalmente imediato e contemporâneo, não sucessivo
como o nosso, e sua compreensão de todo o seu propósito sempre infinitamente
completa, fundada sobre ele próprio, esse propósito tem que ser um só ato, todo
abrangente e simultâneo. Além disso, o decreto inteiro é eterno e imutável. Tudo,
portanto, deve coexistir sempre junto na mente de Deus. Por fim, o plano de
Deus é mostrado, em sua realização, como sendo um só. A causa é ligada ao
efeito e o que era efeito torna-se causa; influências de eventos sobre eventos se
entrelaçam entre si, descendo em fluxos estendidos para eventos subsequentes, de
modo que todo o seu complexo resultado é interligado por todas as suas partes.
Como os astrônomos supõem que a remoção de um planeta de nosso sitema
modificaria de alguma forma o equilíbro e as orbitas de todo o resto, também a
falha de um evento neste plano desarranjaria o todo, direta ou indiretamente. O
plano de Deus nunca é produzir um resultado à parte de sua causa, mas sempre
por meio de sua própria causa. Como o plano de Deus é, desta forma, uno em sua
realização, também o deve ser em sua concepção. A maioria dos erros que têm
surgido na doutrina tem vindo do equívoco de imputar a Deus a compreensão
de seu propósito em partes sucessivas, à qual a limitação de nossa mente nos
conduz, em sua concepção.4
4 DABNEY, Robert L. Lectures in Systematic Theology. Grand Rapids, MI: Zondervan, 1972,
p. 214. Minha tradução.
123
JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO
Desde toda a eternidade, Deus, pelo muito sábio e santo conselho da sua própria
vontade, ordenou livre e inalteravelmente tudo quanto acontece, porém de modo
que nem Deus é o autor do pecado, nem violentada é a vontade da criatura, nem é
tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias, antes estabelecidas”
e que “pelo decreto de Deus e para manifestação da sua glória, alguns homens e
alguns anjos são predestinados para a vida eterna e outros preordenados para
a morte eterna.5
Observa-se que ela usa a expressão “predestinar para a vida eterna” como
aplicada para alguns homens e alguns anjos e “preordenar para a morte eterna”
para os outros.
Embora tragam a mesma ideia de predeterminação desde toda a eternidade,
o uso de verbos diferentes revela o cuidado para não atribuir a Deus a mesma
volição com respeito a ambas as classes referidas. Continuando a formulação, ela
volta a fazer a diferenciação entre esses dois aspectos do decreto, ao dizer que
“esses homens e esses anjos, assim predestinados e preordenados, são particular
e imutavelmente designados; o seu número é tão certo e definido, que não pode
ser nem aumentado nem diminuído”6. Aqui ambos os verbos (predestinados e
preordenados) são usados para os eleitos para a vida. Mais adiante a Confissão
usa o verbo “preordenar” para se referir aos meios que Deus usa para condu-
zir à fé os que são “eleitos” ao dizer: “assim como Deus destinou os eleitos
para a glória, assim também, pelo eterno e mui livre propósito da sua vontade,
preordenou todos os meios conducentes a esse fim”7 e, mais adiante ainda,
ela faz referência ao texto de Romanos 9, já visto acima, no que diz respeito à
soberania de Deus em conceder ou recusar misericórdia, contemplando assim
a situação pecaminosa de todos, em que a alguns ele revela sua misericórdia
e aos demais a sua justiça. Aqui são usados dois verbos com repeito aos não
eleitos para a vida eterna. O primeiro, em forma negativa, “não contemplar” ou
“preterir”, e o segundo, em forma positiva, “ordenar” ou “destinar”. O primeiro
refere-se àquilo que é chamado pelo sistema infralapsariano de “preterição” ou
“não escolha” e o segundo é sinônimo de “destinar” e, dentro do contexto da
afirmação anterior, “preordenar para a morte eterna”. Ela diz:
Segundo o inescrutável conselho da sua própria vontade, pela qual ele concede
ou recusa misericórdia, como lhe apraz, para a glória do seu soberano poder
sobre as suas criaturas, o resto dos homens, para louvor da sua gloriosa justiça,
foi Deus servido não contemplar e ordená-los para a desonra e ira por causa
dos seus pecados.8
5 A Confissão de Fé. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1991, III.1,3. Destaques meus.
6 Ibid. III, 4. Destaques meus.
7 Ibid. III.6. Destaque meu.
8 A Confissão de Fé, III.6. Destaques meus.
124
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138
... em Cristo, escolheu alguns homens para a vida eterna... e também, segundo o
seu soberano poder e o conselho inescrutável da sua própria vontade (pela qual
ele concede, ou não, os seus favores conforme lhe apraz) deixou e preordenou
os mais à desonra e à ira, que lhe serão infligidas por causa dos seus pecados,
para a exaltação da glória da justiça divina.9
Os Cânones de Dort são mais explícitos ainda nesta questão de não atribuir
a Deus a responsabilidade pela condenação dos ímpios, mesmo conferindo
ao seu decreto eterno o conceder a fé a alguns e a outros não. Eles dizem nos
seus artigos 4-6 do 1º capítulo da doutrina: A Divina Eleição e Reprovação:
A ira de Deus permanece sobre aqueles que não creem no Evangelho. Mas
aqueles que o aceitam e abraçam a Jesus, o Salvador, com uma fé verdadeira e
viva, são redimidos por ele da ira de Deus e da perdição, e presenteados com
a vida eterna (Jo 3.36; Mc 16.16). Em Deus não está, de forma alguma, a causa
ou culpa dessa incredulidade. O homem tem essa culpa, assim como a de todos
os demais pecados. Mas a fé em Jesus Cristo e também a salvação por meio dele
são dons gratuitos de Deus, como está escrito: Porque pela graça sois salvos,
mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus... (Ef 2.8). Semelhantemente,
Porque vos foi concedida a graça de ... crer em Cristo (Fp 1.29).
Deus nesta vida concede a fé a alguns enquanto não concede a outros. Isto
procede do eterno decreto de Deus. Porque as Escrituras dizem que ele “faz
estas coisas conhecidas desde séculos” e que ele “faz todas as coisas conforme
o conselho da sua vontade” (At 15.18; Ef 1. 11). De acordo com este decreto,
ele graciosamente quebranta os corações dos eleitos, por duros que sejam, e
os inclina a crer. Pelo mesmo decreto, entretanto, segundo seu justo juízo, ele
deixa os não‑eleitos em sua própria maldade e dureza de coração. E aqui espe-
cialmente nos é manifesta a profunda, misericordiosa e ao mesmo tempo justa
distinção entre homens que estão sob a mesma condição de perdição. Este é
o decreto da eleição e reprovação revelado na Palavra de Deus. Ainda que os
homens perversos, impuros e instáveis o deturpem, para sua própria perdição,
ele dá um inexprimível conforto para as pessoas santas e tementes a Deus.10
E continuam a dizer no artigo 15 desse mesmo capítulo:
9 O Catecismo Maior. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1991, pergunta 13, p. 173. Destaques
meus.
10 Os Canones de Dort. Org. Cláudio Antônio Batista Marra. São Paulo: Editora Cultura Cristã,
sem data, p. 18-19. Itálicos no original.
125
JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO
Citamos apenas três desses documentos, mas é sabido que a maioria dos
demais segue a mesma linha de pensamento, qual seja, a de usar uma lingua-
gem que, ao mesmo tempo em que contempla o beneplácito da vontade de
Deus como a causa última de todas as coisas, não atribui a ele a origem ou a
agência do mal.
... para que tenhamos aqui bom equilíbrio, devemos examinar a Palavra de Deus,
na qual temos excelente regra para o entendimento firme e correto. Porquanto,
a Escritura é a escola do Espírito Santo, na qual, assim como nada que seja útil
e salutar conhecer é omitido, assim também não há nada que nela seja ensinado
que não seja válido e proveitoso saber.12
A mente piedosa [...] contempla somente o Deus único e verdadeiro, nem lhe
atribui o que quer que à imaginação haja acudido, mas se contenta com tê-Lo tal
qual Ele próprio Se manifesta...”. Deus, acomoda-se ao nosso modo ordinário
de falar por causa de nossa ignorância, às vezes também, se me é permitida a
expressão, gagueja.13
11 Ibid., p. 22.
12 CALVINO, João. As Institutas. Edição especial. Trad. Odayr Olivetti. Vol. 3, Cap. 7. São Paulo:
Editora Cultura Cristã, 2004, p. 42.
13 CALVIN, John. Commentary on the Gospel According to John (Calvin’s Commentaries,
vol. XVIII), p. 229. Calvino, As Institutas, I.2.2.
126
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138
127
JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO
Com esta visão em mente, Calvino não se atrevia a dar explicações sobre
os fatos decretados por Deus e revelados nas Escrituras que estivessem acima
de sua capacidade de compreensão e nem se envergonhava de reconhecer que
não tinha essas explicações. Sua abordagem foi sempre a de expor o ensino
das Escrituras em seus diferentes aspectos e em toda a sua extensão, ainda que
parecessem contraditórios à nossa razão. É como ele trata a questão da soberania
de Deus e da responsabilidade humana relacionadas com a sua providência.
Falando sobre o modo como Deus decreta e dirige todas as coisas, não
titubeia e nem usa meias palavras para atribuir a Deus, no seu trato com o
homem, ações que, ao nosso raciocínio parecem ser contrárias ao conceito da
livre agência humana, mas que são ensinadas nas Escrituras. Ele diz:
17 Ibid. III.21.3.
18 Ibid. I.18.2.
128
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138
Calvino usa o caso de Faraó para mostrar como ambos os aspectos, tanto
o da soberania de Deus como o da responsabilidade do homem, estão presentes
na sua obra da Providência, usando os seguintes argumentos:
Está escrito que ele endureceu o coração de Faraó [Ex 9.12]; de igual modo,
que o fez pesado [Ex 10.1] e o enrijeceu [Ex 10.20, 27; 11.10; 14.8]. Alguns
contornam essas formas de expressão através de sutileza insípida, porquanto
nessas referências a vontade de Deus é posta como a causa do endurecimento,
enquanto em outro lugar [Ex 8.15, 32; 9.34] se diz que o próprio Faraó havia
endurecido o coração. Como se, na verdade, se bem que de modos diversos, não
se harmonizem perfeitamente bem entre si estes dois fatos: que o homem, quando
é acionado por Deus, contudo ele, ao mesmo tempo, está também agindo. Eu,
porém, lanço contra eles o que objetam, porque, se endurecer denota permissão
absoluta, o próprio impulso da contumácia não estará propriamente em Faraó.
Com efeito, quão diluído e insípido seria interpretar assim, como se Faraó
apenas se deixasse endurecer! Acresce que de antemão a Escritura corta a asa a
tais subterfúgios: “Mas eu”, diz Deus, “lhe endurecerei o coração” [Ex 4.21].19
Mesmo quando ações são atribuídas a Satanás, Calvino não foge às Es-
crituras para mostrar que também tais ações são o modo de Deus cumprir os
seus decretos e de administrar aquilo que está de acordo com o seu desígnio.
É como diz:
Sem dúvida, confesso que frequentemente Deus age nos réprobos pela inter-
posição da ação de Satanás, contudo de modo que, por seu impulso, o próprio
Satanás execute seu papel e avance até onde lhe foi concedido. Um espírito ma-
ligno atormenta a Saul; diz-se, porém, que é da parte de Deus [1Sm 16.14], para
que saibamos que a insânia de Saul procedia da justa vingança de Deus. Diz-se
ainda que o mesmo Satanás ‘cega o entendimento dos incrédulos’ [2Co 4.4]; mas
donde vem isso senão que do próprio Deus promana a operação do erro, para
que creiam em mentiras os que se recusam a obedecer à verdade? [2Ts 2.11].
Conforme a primeira noção, assim se diz: “Se qualquer profeta houver falado
enganosamente, eu, Deus, o enganei” [Ez 14.9]; conforme a segunda, porém,
diz-se que ele próprio entrega os homens a uma disposição réproba e os lança a
vis apetites [Rm 1.28], porquanto de sua justa vingança ele é o principal autor;
Satanás, na verdade, é apenas seu ministro... Seja esta a síntese: uma vez se diz
que a vontade de Deus é a causa de todas as coisas, a providência é estatuída
como moderatriz em todos os planos e ações dos homens, de sorte que não apenas
comprove sua eficiência nos eleitos, que são regidos pelo Espírito Santo, mas
ainda obrigue os réprobos à obediência.20
19 Ibid.
20 Ibid.
129
JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO
Paulo, então, chega à segunda parte, ou seja: a rejeição do ímpio. Visto haver
aqui, aparentemente, certo fator menos racional, ele se empenha muito mais para
esclarecer como Deus, ao rejeitar a quem ele quer, não só permanece irrepreen-
sível, mas também permanece excelsamente maravilhoso em sua sabedoria e
retidão. O apóstolo, pois, extrai seu texto-prova de Êxodo 9.16, onde o Senhor
declara que foi ele mesmo quem levantou Faraó precisamente para aquela fina-
lidade, com o propósito de provar por meio de sua imperfeição e subjugação,
ao empenhar-se obstinadamente por destruir o poder divino, quão invencível
é o braço de Deus. Nenhuma força humana é capaz de detê-lo, muito menos
quebrá-lo. Note-se o exemplo que o Senhor quis oferecer no caso de Faraó.
Portanto, consideremos dois pontos aqui: primeiro, a predestinação de Faraó
para a destruição, a qual se relaciona com o justo e secreto conselho de Deus;
segundo, o proposito desta predestinação, que era o de proclamar o nome de
Deus. É sobre este que Paulo particularmente insiste. Se o endurecimento do
coração de Faraó foi de tal vulto que trouxe notoriedade para o nome de Deus,
então é blasfemo acusá-lo de injustiça.21
21 CALVINO, João. Comentário à Sagrada Escritura, Exposição de Romanos. Trad. Valter Gra-
ciano Martins. São Paulo: Editora Paracletos, 1997, p. 335-336. Destaques meus.
22 Nem todos concordam que esta seja a ênfase principal de Paulo nesta passagem, por razões que
não cabe discutir aqui, algumas das quais estão apresentadas em nota de rodapé pelo editor e tradutor do
seu comentário para o inglês, John Owen. Ver: Commentary on The Epistle of Paul the Apostle to the
Romans by John Calvin, traduzido e editado por John Owen. Grand Rapids: Baker Book House, 1981
(volume XIX da série Calvin̕ s Commentary – Acts 14-28 – Romans 1-16), p. 360-361).
130
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138
A história sacra repete isso algumas vezes, para que o admirável segredo da
graça de Deus se patenteie melhor nesta mudança. Reconheço que Ismael, Esaú
e outros foram alijados da adoção por sua própria falha e culpa, porquanto
se opuseram à condição de que cumprissem fielmente o pacto de Deus, o qual
violaram perfidamente. No entanto, este foi um benefício singular de Deus, ou,
seja, que se dignara preferi-los aos demais povos, como se diz no Salmo: “Ele
não agiu assim com nenhuma outra nação, nem lhes manifestou seus juízos”
[Sl 147.20].23
Contudo, nem por isso Deus se põe em conflito consigo mesmo, nem se muda
sua vontade, nem o que quer finge não querer; todavia, embora nele sua vontade
seja uma só e indivisa, a nós parece múltipla, já que, em razão da obtusidade de
nossa mente, não aprendemos como, de maneira diversa, o mesmo não queira
e queira que aconteça. Paulo, onde disse que a vocação dos gentios era “um
mistério escondido [Ef 3.9], acrescenta, pouco depois [Ef 3.10], que nela mani-
festara a polupoi,kilon [multiforme] sabedoria de Deus. Porventura porque, em
decorrência da lerdeza de nosso entendimento, a sabedoria de Deus se afigura
múltipla, ou, como a verteu o tradutor antigo, multiforme, deveríamos nós, por
isso, sonhar no próprio Deus qualquer variação como se mudasse de plano ou
divergisse de si mesmo? Antes, quando não apreendemos como Deus queira
que se faça o que proíbe fazer, venha-nos à lembrança nossa obtusidade, e ao
mesmo tempo consideremos que a luz em que ele habita não em vão se chama
inacessível [1Tm 6.16], já que de trevas é rodeada.24
... Se Deus não só se serve da operação dos ímpios, mas inclusive lhes governa
os desígnios e intenções, é ele o autor de todas as impiedades e, consequente-
mente, os homens são imerecidamente condenados, se estão a executar o que
Deus decretou, uma vez que estão a obedecer-lhe à vontade?25
131
JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO
E nesse ponto ele faz uma diferenciação entre vontade e preceito, quando
diz:
Ora, erroneamente, eles confundem sua vontade com seu preceito, a qual de
inúmeros exemplos transparece diferir dele desmedidamente. Pois, visto que,
enquanto Absalão violou as concubinas do pai [2Sm 16.22], Deus quis com esse
ato infamante punir o adultério de Davi, entretanto nem por isso preceituou ao
filho celerado cometer o incesto, senão que o preceituou talvez com respeito a
Davi, como este mesmo fala acerca das insultuosas acusações de Simei. Pois,
enquanto confessa [2Sm 16.10] que aquele amaldiçoava por injunção de Deus,
de modo algum lhe recomenda a obediência, como se aquele cão insolente es-
tivesse obedecendo ao imperativo de Deus, mas, reconhecendo que a língua era
o azorrague de Deus, se deixa pacientemente castigar. Isto nos cabe realmente
sustentar: enquanto por instrumentalidade dos ímpios Deus leva a bom termo o
que decretou em seu juízo secreto, não são eles escusáveis, como se estivessem
obedecendo a seu preceito, o qual deliberadamente violam em sua desregrada
cupidez.26
E mais adiante conclui: “A não ser que esteja enganado, já antes expliquei
claramente como, em um mesmo ato, tanto se manifesta o delito do homem,
quanto refulge a justiça de Deus”27
Mas, já que o pacto de vida não é pregado entre todos os homens igualmente,
e entre aqueles a quem é pregado não acha a mesma receptividade, quer qua-
litativa, quer continuativamente, nessa diversidade se manifesta a admirável
profundeza do juízo divino. Pois não há dúvida de que esta variedade serve
também ao arbítrio da eterna eleição de Deus. Porque, se é notório que pelo
132
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138
Ninguém que queira ser tido por homem de bem e temente a Deus se atreverá a
negar simplesmente a predestinação, pela qual Deus adota a uns para a espe-
rança da vida, a outros destina à morte eterna, porém, a envolvem em muitas
cavilações, sobretudo os que fazem da presciência sua causa. E nós, com efeito,
admitimos que ambas estão em Deus, porém o que agora afirmamos é que é to-
talmente infundado fazer uma depender da outra. Quando atribuímos presciência
a Deus, queremos dizer que ele tem sempre e perpetuamente permanente sob
as vistas, de sorte que, ao seu conhecimento, nada é futuro ou pretérito; ao
contrário, todas as coisas estão presentes, e de fato tão presentes que não as
imagina como meras ideias – da maneira como imaginamos aquelas coisas das
quais nossa mente retém a lembrança –, mas as visualiza e discerne como se
estivessem verdadeiramente diante dele. E esta presciência se estende a todo o
âmbito do mundo e a todas as criaturas”.29
Chamamos predestinação o eterno decreto de Deus pelo qual houve por bem
determinar o que acerca de cada homem quis que acontecesse. Pois ele não quis
criar a todos em igual condição; ao contrário, preordenou a uns a vida eterna;
a outros, a condenação eterna. Portanto, como cada um foi criado para um ou
outro desses dois destinos, assim dizemos que um foi predestinado ou para a
vida, ou para a morte.30
133
JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO
Tampouco se pode tolerar a obstinação dos que não permitem que se lhes po-
nha um freio com a Palavra de Deus, tratando-se de um juízo incompreensível
dele, o qual até mesmo os próprios anjos adoram. Com efeito, já ouvimos que
o endurecimento está não menos na mão e no arbítrio de Deus quanto depende
de sua misericórdia. Aliás, como o exemplo a que me referi previamente, tam-
pouco Paulo se esforça ansiosamente por isentar a Deus de falsidade e mentira;
apenas adverte que não é lícito à coisa modelada contender com seu modelador
[Rm 9.20]. Ora, aqueles que não admitem que alguém seja reprovado por Deus,
como se desvencilharão dessa sentença de Cristo: “Toda árvore que meu Pai não
plantou será arrancada?” [Mt 15.13]. Ouvem expressamente que aqueles que o
Pai celestial não teve por bem plantar em seu campo, como árvores sacrossan-
tas, estão evidentemente destinados à perdição. Se negam ser este um sinal de
reprovação, não há nada tão claro que lhes possa ser provado.31
A história sacra repete isso algumas vezes, para que o admirável segredo da
graça de Deus se patenteie melhor nesta mudança. Reconheço que Ismael, Esaú
e outros foram alijados da adoção por sua própria falha e culpa, porquanto
se opuseram à condição de que cumprissem fielmente o pacto de Deus, o qual
violaram perfidamente.32
31 Ibid. III.23.1.
32 Ibid. III.21.6. Destaques meus.
134
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138
que se salvem, e também àqueles que quer que se percam. Este desígnio, no que
respeita aos eleitos, afirmamos haver-se fundado em sua graciosa misericórdia,
sem qualquer consideração da dignidade humana; aqueles, porém, aos quais
destina à condenação, a estes de fato por seu justo e irrepreensível juízo, ainda
que incompreensível, lhes embarga o acesso à vida. Da mesma forma ensinamos
que a vocação dos eleitos é um testemunho de sua eleição; em seguida, a justi-
ficação é outro sinal de seu modo de manifestar-se, até que se chega à glória, na
qual está posta sua consumação. Mas, da mesma forma que pela vocação e pela
justificação o Senhor assinala seus eleitos, assim também ao excluir os réprobos,
seja do conhecimento de seu nome, seja da santificação de seu Espírito, mostra
com esses sinais qual será seu fim e que juízo lhes está preparado.33
Os fanáticos torcem esta palavra “mal” como se Deus fosse o autor do mal, isto
é, do pecado; mas é bem óbvio quão ridiculamente eles abusam dessa passa-
gem do profeta. Isto é suficientemente explicado pelo contraste, cujas partes
devem concordar entre si; pois ele contrasta a “paz” com o “mal”, ou seja, com
aflições, guerras e outras ocorrências adversas. Se ele comparasse a “justiça”
com o “mal”, haveria alguma plausibilidade em seus raciocínios, mas este é
um claro contraste de coisas opostas entre si. Por conseguinte, não devemos
rejeitar a distinção natural de que Deus é o autor do “mal” da punição, mas não
do “mal” da culpa.34
A vontade de Deus é a tal ponto a suprema regra de justiça, que tudo quanto quei-
ra, uma vez que o queira, tem de ser justo. Quando, pois, se pergunta por que o
Senhor agiu assim, há de responder-se: Porque o quis. Porque, se prossigas além,
indagando por que ele o quis, buscas algo maior e mais elevado que a vontade
de Deus, o que não se pode achar. Portanto, contenha-se a temeridade humana
e não busque o que não existe, para que não venha, quem sabe, a acontecer que
aquilo que existe não ache. Afirmo que, com este freio, bem se conterá quem
quer que queira com reverência filosofar acerca dos mistérios de seu Deus.35
135
JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO
... à guisa de resposta lhes indaguemos, por nossa vez, se pensam que Deus
deve algo ao homem, caso o queira estimar por sua própria natureza? Como
estamos todos infeccionados pelo pecado, não podemos deixar de ser odiosos a
Deus, e isso não por crueldade tirânica, mas por razão de justiça mui equitativa.
Porque, se todos são passíveis de juízo de morte, por condição natural, os que
o Senhor predestina à morte, pergunto de que iniquidade sua para consigo, se
hajam de queixar-se?36
36 Ibid. III.23.1.
37 Institutas III.23.1, 2 ou 3.
136
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138
CONCLUSÃO
Calvino pode ser lido e interpretado de diferentes maneiras. Normalmente
ele é tido como um supralapsariano quando seus escritos são comparados com
as proposições e ênfases que são apresentadas pelos defensores dessa linha de
pensamento. Poucos veem traços do infralapsarianismo em suas obras, pro-
vavelmente porque, de fato, a ênfase na soberania de Deus e na incapacidade
do homem para conhecê-lo através do seu próprio raciocínio lógico é a que se
ressalta na sua volumosa obra. Também essa ênfase é a que encontramos na
própria Bíblia, pois seu propósito principal é apresentar quem Deus é e revelá-lo
através dos seus atributos e obra.
A coerência com essa ênfase é que leva Calvino a afirmar que “a Palavra
de Deus é uma espécie de sabedoria oculta, a cuja profundidade a frágil mente
humana não pode alcançar. Assim, a luz brilha nas trevas, até que o Espírito
abra os olhos ao cego”.40
Para que o leitor pudesse ter uma visão mais clara dessa ênfase e da
abordagem que Calvino faz sobre temas que hoje são discutidos na questão
lapsariana, optamos por fazer citações mais longas do que seria recomendável
para um trabalho meramente acadêmico. Assim, o leitor pode ter um quadro
maior do contexto em que Calvino faz suas observações e análises das Escri-
turas, sem ficar dependendo apenas da interpretação do autor desse ensaio.
À luz do que foi visto neste trabalho, não é possível classificar Calvino
em qualquer dessas duas linhas de pensamento (infra ou supralapsarianismo),
pois ele tanto defende que a causa da reprovação está na secreta vontade de
Deus (seu beneplácito) como no pecado do homem. Em razão dessa dupla
38 Ibid. III.23.4.
39 Ibid.
40 Exposição de 1 Coríntios, p. 89.
137
JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO
abordagem é que Fred H. Klooster, analisando o seu ensino, conclui que para
Calvino Deus é a “causa última que opera soberanamente, segundo seu bom
prazer”, e a mancha e a culpa do pecado que residem no homem são a “causa
próxima”, “pois o homem peca voluntariamente e é responsável por rejeitar
a bondade de Deus”.41
Como já foi dito anteriormente, no desenvolver dessa discussão, o com-
promisso de Calvino é com as Escrituras, independentemente de ser tido
como contraditório ou não. É a autoridade das Escrituras que tem valor e deve
ser aceita, e não a sabedoria humana, conforme deixa bem claro aquele que é
conhecido como o “príncipe dos exegetas bíblicos”.
ABSTRACT
The purpose of this article is to analyze some of Calvin’s writings on
the sovereignty of God and the responsibility of man in light of the present
discussion of the order to be given to the decrees of election and reprobation
of men in relation to the fall in God’s fulfillment of his purposes. It tries to
ascertain whether it is possible to classify the reformer in any of the two main
lines of thought, generally known as supralapsarianism and infralapsarianism.
The author chooses the negative answer in light of Calvin’s approach to the
biblical texts studied and his assumption that is not given to man the ability
to understand the divine decrees, and how they are performed by his Creator,
through the creature’s finite and limited reasoning.
KEYWORDS
Calvin; Supralapsarianism; Infralapsarianism; Predestination; Reproba-
tion; Fall.
138
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162
ABSTRACT
Since the nineteenth and the early twentieth century, mission historians
such as Gustav Warneck and Kenneth Scott Latourette have tended to portray
the Protestant reformers as indifferent to foreign missions or world missions. The
author describes the reasoning of such historians and argues that they and several
of their more recent disciples do not deal adequately with the primary sources.
All too often, many of them simply rely on secondary sources and do not make
the effort to evaluate the original documentation that might provide a different
perspective on the subject. In so doing, they help to perpetuate an unjustified bias
against the reformers and missions. It is imperative to assert the importance the
reformers attributed to the universal spread of the gospel and the reasons they were
not so emphatic about missions as compared to later generations of Protestants.
KEYWORDS
Protestant reformers; Foreign missions; Martin Luther; John Calvin;
Gustav Warneck; Kenneth S. Latourette.
INTRODUCTION
The purpose of the previous article and this article is to investigate the
statements and the reasoning of Warneck, Latourette, Neill, Kane, Winter, and
* Elias dos Santos Medeiros earned his master (M.A., Th.M.) and doctoral (D.Min., D.Miss.,
Ph.D.) degrees from Reformed Theological Seminary, in Jackson, Mississippi. He is a lecturer of
Missions at this seminary and a visiting professor at Andrew Jumper Graduate Center. He authored the
book Evangelization and Pastoral Ministry. The first part of the article was published in Fides Reformata
XVIII-1 (2013).
139
ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS
Tucker regarding the reformers and “missions.” This present article continues
the study of the subject in the previous article (Part 1), highlighting Warneck’s
arguments against the apparent “silence” of the reformers, and adding final
comments on the main arguments of the other mission historians and on their
own silence regarding the necessary documentation to support their claims
against the reformers.
1 Numerous Lutheran scholars have already addressed the issue of Martin Luther and missions.
See, for instance, Klaus Detlve Schulz, “Lutheran Missiology of the 16th and 17th Centuries,” in Lutheran
Synod Quarterly 43:1 (March 2003), 4-53; Ingemar Öberg, Luther and World Mission: A Historical and
Systematic Study with Special Reference to Luther’s Bible Exposition, translated by Dean Apel (Saint
Louis: Concordia Publishing House, 2007); James A. Scherer, “Luther and Mission: A Rich but Untested
Potential,” in Missio Apostolica: Journal of the Lutheran Society of Missiology 2 (May 1997): 17-24,
reprinted in Luther Digest: An Annual Abridgement of Luther Studies 5 (1997): 62-68; Rhonda J. Hoehn,
“Martin Luther and Mission....”
2 Gustav Warneck, Outline of a History of Protestant Missions from the Reformation to the Present
Time. 3rd ed. New York: Fleming H. Revell, 1906, 8-23.
140
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162
nor maintained by the industry of men, but this is the work of God alone.”3 Under
the historical instances Warneck includes the attempt of “the planting of a French
colony in Brazil” in 1555. He does not, however, consider this undertaking to
be a church initiative, explaining it instead as part of “the ecclesiastical duty of
the civil authority; in particular, of the colonial civil authority.”4
Warneck concluded that the reformers were silent concerning the work of
missions (the sending of “missionaries” to non-Christians) and that the primary
causes were their theological beliefs and their interpretation of the “missionary”
texts. Under the biblical arguments, Warneck asserts that the reformers, with
the exception of Adrianus Saravia,5 held the following views regarding the
“Great Commission” texts: they always thought of “ in the sense of
the Christian nations who have sprung from the heathen;” even when they
6
3 Ibid., 20. The doctrines of predestination and the sovereignty of God were one of the key
doctrinal issues behind Warneck’s arguments against the reformers and their “silent” regarding “the
Christianization of the world,” as Warneck defines it.
4 Ibid., 23. Unfortunately Warneck does not use a primary source that reports the “missionary”
journey of Reformed ministers sent from Geneva. He instead uses William Brown’s The History of the
Christian Missions of the Sixteenth, Seventeenth, Eighteenth, and Nineteenth Centuries, 3 Volumes (Lon-
don: Ober Against Charterhouse, 1864). His quotation from page 7 of Brown’s first volume appears to
be a mistake, since that page does not deal with the mission enterprise in Brazil. The first chapter, pages
1-6, of Brown’s work discourses on the “Propagation of Christianity by the Swiss: Brazil.” Warneck’s
statement that “four clergymen ... actually made the journey” (Warneck, Outline of a History, 23) is
also a mistake based on an apparent superficial reading of Brown on Jean de Léry’s document. This
shows that Warneck’s critique of the “French colony in Brazil,” besides being very superficial, does not
represent the reality of that “missionary” endeavor.
5 Warneck comments on Adrianus Saravia’s treatise of 1590, De diversis ministrorum evangelii
gradibus, sic ut a Domino fuerunt instituti [Concerning the different orders of the ministry of the Gospel,
as they were instituted by the Lord], by saying that “it is not indeed a directly missionary treatise, but it
deals with missions in a special chapter, in which he adduces proof that the Apostles themselves could
only have carried out the missionary command in a very limited measure, and therefore this command
applied not merely to them personally, but to the whole Church in all subsequent times” (Warneck,
Outline of a History, 20). Warneck recognizes that Saravia was defending “the episcopal constitution
over against the Calvinistic” and that Saravia speaks of “missions” when he argues for the planting of
new churches beyond “the maintenance and strengthening of existing” ones (Warneck, Outline of a
History, 21).
6 Warneck, Outline of a History, 12.
7 Ibid., 12.
8 Ibid., 14.
9 Ibid., 17.
141
ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS
“Go into all the world” raises a question ... as to how it is to be understood and
held fast, since verily the Apostles have not come into all the world, for no
Apostle has come to us, and also many islands have been discovered in our day
where the people are heathen and no one has preached to them: yet the scripture
saith their voice has sounded forth into all lands. Answer; their preaching has
gone out into all the world, though it has not yet come into all the world. That
outgoing has been begun and gone on, though it has not yet been fulfilled and
accomplished; but there will be further and wider preaching until the last day.
When the Gospel has been preached, heard, published through the whole world,
then the commission shall have been fulfilled, and then the last day shall come.10
Warneck even declares that “these and similar sayings... are repeatedly
found” throughout Luther’s writings. After quoting Luther, however, and
making such statements regarding his writings, Warneck immediately dismis-
ses the Reformer’s commitment to the preaching of the gospel to the nations
by claiming “here again there is no reference to any systematic enterprise.”11
Another clear example of his preconceived attitude toward the reformers
is observed in Warneck’s comments on Zwingli’s position. Warneck quotes
the reformer: “[There are apostles still, and] their office is ever to go among the
unbelieving, and to turn them to the faith, while the bishop remains stationary
by those committed to his care.”12 He also highlights Zwingli’s express assertion
that the New Testament apostles “did not go everywhere; and he [Zwingli]
infers from this that the work of world-missions which was begun by them
must be continued.”13 Saying that Zwingli “does not draw the conclusions”
(perhaps, to send missionaries?), the German missiologist then offers the
following theoretical conclusion:
At best his view can be thus explained: if in the present time messengers are
willing to go at their own risk beyond the bounds of Christendom, they ought to
be certain that they have the call of God to their mission, but in what he says there
is not a word as to the duty on the part of the church to send out missionaries.14
Warneck falls prey to one of his own criticisms toward scholars who
defend the missionary ideas of the reformers. He earlier dismisses scholars
10 Ibid., 14
11 Ibid., 14.
12 Ibid., 19.
13 Ibid., 19.
14 Ibid., 19.
142
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162
who try “by isolated quotations, principally from the writings of Luther ... to
disprove” the theory that the reformers were not interested in missions. Warneck
continues his reasoning by saying,
On closer examination these quotations do not bear out what they are meant
to prove; and less and less has the fact come to be called in question that the
insight into the permanent missionary task of the church was really darkened
in the case of the Reformers.15
Does not Warneck do that as well? Does not he use some isolated quotations
without serious exegetical consideration of the contexts and doctrinal presuppo-
sitions, to make startling claims against the reformers? The same occurs when
he considers the case of the Huguenots in Brazil, failing to explore the original
work of Jean de Léry and others, but merely assuming the report and conclu-
sions of the nineteenth century mission historian and pastor William Brown.
One of Warneck’s main criticisms of Calvin is for the reformer’s view
that the apostolate is a munus extraordinarium (extraordinary office) “which
as such has not been perpetuated in the Christian church”16 and that “the King-
dom of Christ is neither to be advanced nor maintained by the industry of men,
but this is the work of God alone.”17 Warneck then turns back to the argument
of silence, contending that such silence is one factor that led the reformers
to view any “special institution for the extension of Christianity among non-
-Christians” as “needless.”18
Warneck, however, does not take into account the controversies of Calvin’s
time. Part of George Robson’s editorial comments on Warneck’s criticism of
Calvin reveals some nuances within the context of the reformer. Robson writes:
The sound exegesis, historic insight, largeness of view, and fine regard to the
general scope of the passage, which distinguished Calvin as a commentator,
have not failed him in his exposition of these words of the Risen Lord; but they
are polarised by the controversies of his time. And so the words of our Lord are
shown to be in clear and broad antagonism to certain Romish and Anabaptist
teachings.19
15 Ibid., 9.
16 Warneck, Outline of a History, 19.
17 Ibid., 20.
18 Ibid., 20.
19 Robson’s editorial comment in a footnote. Warneck, Outline of a History, 20.
143
ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS
“Teach all nations.” Here Christ, by removing the distinction, makes the Gentiles
equal to the Jews, and admits both, indiscriminately to a participation in the
covenant. Such is also the import of the term: go “out;” for the prophets under
the law had limits assigned to them, but now, “the wall of partition having been
broken down” (Ephesians 2:14), the Lord commands the ministers of the gospel
to go to a distance, in order to spread the doctrine of salvation in every part of
the world. For though, as we have lately suggested, the right of the first-born
at the very commencement of the gospel, remained among the Jews, still the
inheritance of life was common to the Gentiles. Thus was fulfilled that prediction
of Isaiah (49:6) and others of a similar nature, that Christ. was “given for a light of
the Gentiles, that he might be the salvation of God to the end of the earth.”20
“Even to the end of the world.” It ought likewise to be remarked, that this was
not spoken to the apostles alone; for the Lord promises his assistance not for a
single age only, but “even to the end of the world.” It is as if he had said, that
though the ministers of the gospel be weak and suffer the want of all things: he
will be their guardian, so that they will rise victorious over all the opposition
of the world. In like manner, experience clearly shows in the present day, that
the operations of Christ are carried on wonderfully in a secret manner, so that the
gospel surmounts innumerable obstacles.21
Even though the reformers were not explicit in the application of Matthew
28:18-20 due to their anti-Catholic and anti-Anabaptist postures, it would not
necessarily and logically follow that they were silent or anti-mission at all. A
person’s opposition to the creation or establishment of missionary organizations
or mission agencies for the recruiting, supporting, and sending of “missiona-
ries,” does not imply that he or she opposes the preaching of the gospel to all
nations nor the planting of churches among all peoples. It may simply mean
that the person believes the church is the only means instituted by God for that
endeavor and that ordained ministers of the gospel are the ones to preach the
gospel everywhere according to God’s sovereign choosing and leading. After
all, that was the case in the church of Antioch of Syria:
Now in the church that was at Antioch there were certain prophets and teachers:
Barnabas, Simeon who was called Niger, Lucius of Cyrene, Manaen who had
been brought up with Herod the tetrarch, and Saul. As they ministered to the
Lord and fasted, the Holy Spirit said, “Now separate to Me Barnabas and Saul
for the work to which I have called them.”22
144
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162
What ought to be noticed is that neither Erasmus nor Saravia, to whom Dr. War-
neck afterwards refers, saw the missionary duty of the church in such a light as
to make it matter of a special treatise or of a distinct call to action. Their views
on missions were expressed incidentally, by the one in a treatise dealing with
homiletics, by the other in a treatise dealing with Church polity.23
23 See footnote 1, page 9, of Warneck’s Outline of a History. Adrianus Saravia was not criticizing
the reformers. The title of Chapter XVII of Saravia’s book is this: “The command to preach the gospel
to all nations is still binding on the church, although the apostles are removed to heaven: and apostolic
authority is necessary thereto” (1840, 161). When carefully read, we immediately realize that he follows
the same exegetical principle of John Calvin when dealing with Matthew 28:20. Saravia writes: “The
command to preach the Gospel and the mission to all nations were so given to the Apostles, that they
must be understood to be binding on the Church also. The injunction to preach the Gospel to all nations
of unbelievers had respect not only to the age of the Apostles, but to all ages to come till the end of
the world” (161). Saravia’s 276-page tract appeared in 1590 and was first printed in England in 1591.
On July 9, 1590, Saravia was “incorporated at Oxford being before D.D. of the University of Leyden”
(Preface of the translator, v). This treatise was about ecclesiastical polity or church government. Saravia
was not criticizing the reformers regarding the subject of missions.
24 See George Robson, footnote 1, page 20, in Warneck’s Outline of a History.
145
ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS
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ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS
commandment, and, by thus giving to the newly awakened life of faith a missio-
nary direction, brought about the present age of missions.”36 That was precisely
what the reformers were praying and waiting for. Such commandments had
never been forgotten by the reformers, especially John Calvin and the Puritans
in general. This subject has been extensively dealt with by scholars such as De
Jong, Rooy, and Murray.37
Latourette comes to the same conclusion, but there is a nuance in his report
that distinguishes it from the underlined critiques of Warneck. Latourette un-
derstands that the Great Century of Mission was preceded by a constant attempt
of the Protestants to evangelize the world. He does not say, as Warneck does,
that only now the “missionary commandment” was taken seriously by the Pro-
testants. He instead uses terms like “more vigorous” or “increased” to describe
the development of the expansion of the Protestants. He, therefore, assumes that
such initiatives had been present since the beginning, even at the time of the Re-
formation. Latourette had always been very condescending toward the reformers
and their involvement and commitment to the spread of the gospel worldwide
during the Reformation.3389 Latourette believes that, with the eighteenth century
Protestant revival (awakening), “interest of Protestants in extending their faith to
non-Christian peoples increased with each century and did not, like that of the
Roman Catholics, have a brilliant rise followed by a discouraging and prolonged
decline.”39 Latourette seems to assume that the desire and attempts to evangelize
the world were already present during the Reformation.
Latourette also states that “as the eighteenth century wore on religious
awakenings brought new life to British Protestantism, both in the British Isles
and in North America.”40 He becomes more explicit, however, regarding the
role and the place of the awakenings in world evangelization when he conclu-
des in his fourth volume that “the new Protestant missionary movement was
largely the outgrowth of the awakenings of the seventeenth and especially of
the eighteenth century and was to be reinforced by the many revivals of the
nineteenth century.” Also significant is his statement that “it was chiefly an
36 Ibid.
37 See James A. De Jong’s doctoral dissertation, As the Waters Cover the Sea: Millennial Expec-
tations in the Rise of Anglo-American Missions 1640-1810 (Laurel: Audubon Press, 2006), original
publication by J. H. Kok N. V. Kampen, Netherlands, 1970; Sidney H. Rooy’s doctoral dissertation,
The Theology of Missions in the Puritan Tradition: A Study of Representative Puritans: Richard Sibbes,
Richard Baxter, John Eliot, Cotton Mather & Jonathan Edwards (Laurel: Audubon Press, 2006), original
publication by Eerdmans, 1965; and Ian H. Murray, The Puritan Hope: Revival and the Interpretation
of Prophecy (Edinburgh: The Banner of Truth, 1991), first published in 1971.
38 See chapter 5 of my Ph.D. dissertation.
39 Kenneth Latourette, A History of the Expansion of Christianity: Three Centuries of Advance
A.D. 1500-1800, Vol. 3 (New York and London: Harper & Brothers Publishers, 1939), 50. Bold added.
40 Ibid., Vol. 3, 49.
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FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162
41 Kenneth Latourette, A History of the Expansion of Christianity: The Great Century A.D. 1800-A.D.
1914: Europe and the United States of America, Volume 4 (New York and London: Harper & Brothers
Publishers, 1941), 65.
42 Psalm 85:6. See also Psalm 71:20; 80:18; 119:25, 37, 40, 88, 107, 149, 154, 156, 159; 138:7;
143:11.
43 Warneck, Outline of a History, 23.
44 Primary sources include Calvin’s correspondence, Calvin’s commentaries, Jean de Léry’s ethno-
graphic report to the Genevan’s Reformed group to Brazil, Jean de Léry’s account of the deaths of three
of his Huguenot’s friends under Villegaignon, the register of the Company of Pastors of Geneva in the
time of Calvin, just to mention some. Warneck could not access the sources which are now available and
relatively easy to obtain through inter-library loans, online resources, and microfilms. Numerous other
research in English, German, French, Portuguese, Dutch, and Spanish has been done and published on
this topic in the past hundred years (since Warneck’s death). Most are available in libraries and bookstores
throughout the world.
45 Statement attributed to Richier according to William Brown and quoted by Warneck (Outline
of a History, 23).
46 Warneck, Outline of a History, 23.
149
ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS
was the final evaluation and judgement of Warneck regarding the Calvinist
undertaking to reach the non-Christians in South America.
Warneck then comes to his final comments and explanation for the lack
of any “real missionary activity” after the Reformation, especially in Ger-
many.47 “The reason of this,” states Warneck, “did not lie only in the fact that
the world beyond the sea had never as yet come within the purview of Ger-
man Protestantism,” nor in the fact “that the political conditions, chiefly the
unhappy Thirty Years’ War, did not allow missionary enterprise to be thought
of.”48 The main reason for such silence towards any “real missionary activity”
among the reformers and especially after the Reformation, according to War-
neck was this: “The reason still lay in the theology which either did not permit
missionary ideas to arise at all, or, if these began to find desultory expression,
most keenly combated them.”49 In other words, after everything is said and
done, Warneck’s main bias toward the reformers comes to one single point:
he disliked and misrepresented their theology, especially the doctrine of the
sovereignty of God and election.
I discussed Warneck’s doctrinal argument in Chapter 5 of my Ph.D. dis-
sertation. It is sufficient to keep in mind that the doctrines of the sovereignty of
God and predestination are the ultimate theological card sustained by Warneck.
The other has to do with his historical reasoning in order to dismiss the Genevan
and Dutch missions to South America where Reformed pastors and other mem-
bers of the Reformed community were sent to plant churches and to establish
Protestant colonies in the New World. Let us now turn to how Latourette, Neill,
Kane, Winter, and Tucker have ostensibly assumed and appropriated Warneck’s
arguments and propagated them through their works.
47 Ibid. Warneck had already generalized this final thesis in Chapter I of his book when he dealt
with selective writings of both Lutheran and Calvinist theologians.
48 Ibid., 25.
49 Warneck does not see any other explanation but that “it was still essentially the views of the
Reformers which determined the attitude of orthodoxy to missions, only these views assumed a much
more systematic and polemical cast” (Ibid., 25).
50 David J. Bosch, Transforming Mission, 244. For more information regarding the literature on
this thesis, see Chapter 2.
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FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162
51 Latourette was commissioned at the annual meeting of Yale-in-China at the “Yale Commence-
ment” in 1910. He calls those years in China, “The Missionary Years” in his autobiographical work
Beyond the Ranges: An Autobiography (Grand Rapids: Eerdmans, 1967), pages 37-46. He hoped to
return to China “In March, I left for the United States, hoping that a long summer in my old home in
Oregon would bring complete restoration. So confident was I of resuming my work in Changsha that I
purchased a round-trip ticket on a Yangtze steamer” (page 45). He was never able to return to Changsha.
52 Ibid., 25-27.
151
ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS
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FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162
56 John H. Leith, “Reformed Theology,” in Donald K. McKim, ed. Encyclopedia of the Reformed
Faith (Louisville: Westminster/John Knox Press; Edinburgh: Saint Andrew Press, 1992), 367. Other
statements have appeared with similar connotation: “theology divides but love unites,” “Jesus unites,
theology divides,” or “theology divides but love unites.”
57 Neill admits that “the whole situation underwent radical alteration in the seventeenth century,
when Holland and England became great maritime powers” (Neill, History of Christian Missions, 188).
But he insists that such geographical alteration did not affect the theological climate.
58 The church of an independent state (land or region); a “national church.” According to John Miller,
“During the Reformation era the churches were organized on the territorial principle (Landeskirche),
whereby the prince or ruler of a state in the then-existing Holy Roman Empire determined the confes-
sion of his subjects” in Missionary Zeal and Institutional Control: Organizational Contradictions in the
Basel Mission on the Gold Coast, 1828-1917. Foreword by Richard V. Pierard. Grand Rapids: Eerdmans,
2003, xii.
59 “Whose the region, his the religion” was a principle adopted by the Religious Peace of Augsburg
(1555) by which the rulers decided the religion of their realms See Thomas M. Lindsay, A History of
the Reformation: The Reformation in Germany from Its Beginning to the Religious Peace of Augsburg
(New York: Charles Scribner’s Sons, 1906), 397.
60 Neill, History of Christian Missions, 188.
61 Ibid., 189. The source used by Neill is a quote from Robert Bellarmine’s book Controversiae,
Book IV. This quote was mentioned by Carl Mirbt in his book: Quellen zur Geschichte des Papsttums
und des Römischen Katholizismus (3rd ed., 1911).
62 Ibid., 189.
63 Ibid.
153
ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS
He concludes: “Yet, when everything favourable has been said that can be said,
and when all possible evidences from the writings of the Reformers have been
collected, it all amounts to exceedingly little.”64 Some phrases in this previous
quote would surprise any researcher. Consider, for instance: “when everything
favourable has been said,” or “when all possible evidences have been collected,”
and “all amounts to exceedingly little.”65 These statements ignore or at least
diminish the relevance of the historical data (facts and texts).
1. “During the period of the Reformation, there was little time for thought
of missions [because] until 1648 the Protestants were fighting for their lives.”
2. “Protestants everywhere wasted their strength, with honourable but
blind and reckless zeal, in endless divisions and controversies.” Neill called
it an “inner weakness.”
3. “The Protestant powers [Holland, England, Germany] were not in touch
with the wider world outside Europe.”
4. “The Germans mostly stayed at home. And the geographical limitations
were strongly reinforced by the psychological limitations of the concept of the
regional church.”
5. “The Protestants tended to say: “Missions are neither obligatory nor
desirable, and our lack of them cannot be held against us as blindness or unfai-
thfulness.” The interesting words are simply the fruit of Neill’s interpretation
of Lutheran theology, most of which is based on some of Johan Gerhard’s
writings and a few passages of Luther’s commentaries.66
64 Ibid.
65 Neill comments, “Everything that can be said is carefully set out by H. W. Gensichen in his
Missionsgeschichte der neueren Zeit (1961), pages 5-7.” (Neill, footnote 4, 189).
66 Cf. Neill op. cit., 189; Warneck, op. cit., 28-32; and Verkuyl op. cit., 20.
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FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162
67 J. Herbert Kane, A Global View of Christian Missions: From Pentecost to the Present (Grand
Rapids: Baker Book House, 1971 [1972]), 73. And A Concise History of the Christian Mission: A
Panoramic View of Missions from Pentecost to the Present. Rev. ed. (Grand Rapids: Baker Book House,
1978 [1982]), 73.
68 Robert Hall Glover, The Progress of World-Wide Missions, revised and enlarged by J. Herbert
Kane (New York: Harper & Row, Publishers, 1960) 40.
69 Ibid., 40.
70 Glover dedicates two pages of the five to “missionary” work of the Roman Catholic church
through Francis Xavier (1506-1552), one page of which is a four-paragraph quote from Arthur T. Pierson’s
appreciation for Xavier’s career as the “Romish Apostle to the Indies.”
71 Ibid., 44.
72 Kane, A Concise History, 73.
155
ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS
73 Kane takes apocalypticism in its basic meaning as the belief that the end of the world is eminent.
For a more detailed historical explanation on the origin and meaning of the term, see David E. Aune,
The New Testament in Its Literary Environment (Cambridge: James Clarke and Co, 1988), 226-252.
74 As already stated, most of these mission historians exegetical precision regarding the texts and
the contexts in which the quotes were issued by the Reformers.
75 Kane, A Concise History, 74.
76 Ibid.
77 Ibid.
78 Ibid.
156
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162
Africa, and the New World were under the power of Spain and Portugal – both
Roman Catholic countries. Pointing to the Dutch East India Company, founded
in 1602, which “stated that one of its objectives was to plant the Reformed
Faith in its territories overseas,” Kane asserts, “seldom did they work at it.”79 This
again is a bold conclusion for which Kane offers no documentation, nor gives
any indication of having researched even the secondary literature dealing with
the primary sources about the work of the Dutch companies (East and West).80
Kane’s fourth factor is “the absence in the Protestant churches of the re-
ligious orders which played such prominent role in the spread of the Catholic
faith throughout the world.”81 Just as Neill accepted Bellarmine’s critique, so
Kane simply quotes a critique from Joseph Schmidlin, a Roman Catholic mis-
sion historian.82 To put Kane’s argument in contemporary terms, a key reason
for the supposed indifference of the reformers towards the evangelization of
the world was the lack of para-church organizations. Do the Scriptures ever
teach or encourage any other group outside or parallel to the church to carry
out the evangelization of the world. Kane, along with some other mission
historians, downplays the fundamental place of “pure doctrine” and especially
ecclesiology – the doctrine of the church – presented, defended, and lived by
reformers like John Calvin.
Here we go again – despite the fact that the Protestants [during the Reformation
period] won on the political front, and to a great extent gained the power to
formulate anew their own Christian tradition and certainly thought they took
the Bible seriously, they did not even talk of mission outreach.83
79 Ibid., 75.
80 Part of the work of the Dutch West India Company has been well researched by Frans L.
Schalkwijk. The work of the Dutch India companies will be considered in the reply to the mission his-
torians presented in chapter 5.
81 Kane, A Concise History, 75.
82 Schmidlin’s critique of the leaders of the Reformation has already been addressed by Samuel
Zwemer when he commented on the literature already available in the German language in Theology Today
7 (July 1950) 2:206. For an extended commentary on Zwemer, see the chapter of my Ph.D. dissertation
dealing with the “Contemporary Mission Historians and the Reformation Period: A Literature Review.”
83 Ralph D. Winter, ed., “The Kingdom Strikes Back: Ten Epochs of Redemptive History” in
Perspectives of the World Christian Movement: A Reader (Pasadena: William Carey Library, 1999),
chapter 33; 211. This document is available online at: http://www.uscwm.org/mobilization_division/
resources/perspectives_reader_pdf’s/B01_Winter_ TheKingdom.pdf.
157
ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS
But why did the Protestants not even try to reach out? Some scholars point to
the fact that the Protestants did not have a global network of colonial outreach.
Well, the Dutch Protestants did. And, their ships, unlike those from Catholic
countries, carried no missionaries.84
84 Ibid.
85 Winter’s article is easily accessed and can be downloaded from several webpages. Check,
for instance, the following webpages: http://www.undertheiceberg.com/wpcontent/uploads/2006/04/
SodalityWinter%20on%20Two %20Structures1.pdf; http://resources.campusforchrist.org/images/4/48/
The_Parachruch.pdf; http://pcmsusa.org/ articles/The%20Two%20Structures%20of%20God%27s%20
Redemptive%20Mission.pdf.
86 Ralph D. Winter, “The Two Structures of Redemptive Mission” in Perspectives of the World
Christian Movement: A Reader, Ralph Winter ed. (Pasadena: William Carey Library, 1999), chapter
35; 226.
87 Winter, “The Two Structures,” 226. Italics added.
88 Ibid., 227.
158
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162
89 See Ralph Winter’s articles, books, and essays published since Lausanne I, 1974. Winter is a
prolific writer and a hard working brother. He has started, inspired, and supported numerous projects and
movements. See for example the “Perspectives on the World Christian Movement” course; the magazine,
Mission Frontiers (the magazine can be directly accessed through its webpage: http://www.missionfrontiers.
org/); Caleb Project webpage: http://www.calebproject.org/main.php/about_us (Caleb Project produces
the Perspectives courses as well); and the US Center for World Missions--http://www.uscwm.org/.
90 Ruth A. Tucker, From Jerusalem to Irian Jaya: A Biographical History of Christian Missions
(Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1983), 67.
91 See the subheading on Kane in this chapter.
159
ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS
the New Testament apostles,” and “the doctrine of election that made missions
appear extraneous if God had already chosen those he would save.”92 All of
these arguments take less than one page of Tucker’s work.
The Roman Catholic Counter-Reformation forced the Reformed churches
to just hold “their own in the face of Roman Catholic opposition and breaking
new ground in Europe.”93 Therefore, the Reformers had “little time or per-
sonnel for overseas ventures.”94 The Protestants lacked opportunities because
the Roman Catholics had “dominated the religious scene in most of the sea-
faring nations.”95 As for the para-church groups, “the Protestants did not have
a ready-made missionary force like the Roman Catholic monastic orders.”96
According to Tucker, the reformers’ theological beliefs by practical
implication cut any meaningful initiative of the Protestants toward missions.
Without further explanation or comment regarding the available literature that
has dealt with these theological arguments, Tucker reasons as follows:
Martin Luther was so certain of the imminent return of Christ that he overlooked
the necessity of foreign missions. He further justified his position by claiming
that the apostles...had fulfilled their obligation [the Great Commission] by
spreading the gospel throughout the known world, thus exempting succeeding
generations from responsibility. [And] Calvinists generally used the same line of
reasoning, adding the doctrine of election that made missions appear extraneous
if God had already chosen those he would save.97
160
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162
de Léry’s report about the voyage to South America in 1556. The church in
Geneva sent two ministers of the gospel, not four, and they were never called
“missionaries” but “ministers of the Word of God.” By using the biblical
term “minister of the Word,” when referring to those sent with the responsibility
of preaching the gospel, Calvin preserved the Scriptural terms and did not fall
into the temptation to reason from alien terminologies.
Tucker concludes with this sad note: “None of these ventures had real
staying power.”99 Does that mean then that martyrdom does not count as
“missionary” success? Does it mean then that we only call it “missions” if it
succeeds in terms of church planting and church growth?
99 Ibid., 68.
100 The prolific missiological writings of Warneck and Latourette have a limited audience, but the
mission histories of Neill, Kane, Winter, and Tucker have reached a broader and more popular audience,
even Sunday School classes.
161
ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS
RESUMO
Desde o século 19, historiadores de missões como Gustav Warneck e
Kenneth Scott Latourette, têm revelado a tendência de retratar os reformadores
protestantes como indiferentes às missões estrangeiras ou missões mundiais.
O autor descreve o raciocínio desses historiadores e argumenta que eles e
diversos de seus discípulos mais recentes não tratam as fontes primárias de
modo adequado. Com frequência, muitos deles simplesmente se apoiam em
fontes secundárias e não se esforçam por avaliar a documentação original que
poderia fornecer uma perspectiva diferente sobre o assunto. Ao fazê-lo, eles
ajudam a perpetuar um preconceito injustificado contra os reformadores e mis-
sões. É imperativo afirmar a importância atribuída pelos reformadores à difusão
universal do evangelho e as razões pelas quais eles não foram tão enfáticos
acerca de missões em comparação com gerações posteriors de protestantes.
PALAVRAS-CHAVE
Reformadores protestantes; Missões estrangeiras; Martinho Lutero; João
Calvino; Gustav Warneck; Kenneth S. Latourette.
162
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 163-168
Resenha
Dario de Araujo Cardoso*
* Doutor em Semiótica e Linguística Geral pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu-
manas da Universidade de São Paulo, Mestre em Teologia e Exegese pelo CPAJ, Mestre em Ciências
da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor assistente de Teologia Pastoral no
CPAJ.
163
CALVINO E A VIDA CRISTÃ
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FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 163-168
165
CALVINO E A VIDA CRISTÃ
de Deus. Por meio dela, Deus não apenas anuncia, mas realmente produz a
vida da igreja. Destaca, no entanto, que a pregação da palavra não se resumia
ao sermão, mas estava presente em todo o culto por meio das leituras, orações
e cânticos. No pensamento de Calvino, as bênçãos comunicadas pela palavra
eram distribuídas pelos sacramentos. Eles são, portanto, um ato primariamente
de Deus e não dos homens. Através do batismo, Deus confirma que nos fez
participantes da morte e da ressurreição de Cristo. Na Ceia do Senhor, Cristo
se faz presente dando-se a si mesmo com todos os seus benefícios. Por fim,
Horton demonstra que os benefícios espirituais da piedade cristã são experi-
mentados na vida comunitária.
Diante disso, o culto público é o tema do capítulo 8 – O culto público como
um “teatro celestial” da graça. Para Calvino, no culto público a igreja militante
e a igreja triunfante se reúnem para apreciar as obras de Deus e compartilhar
as dádivas que recebemos dele. Em seguida, Horton faz uma descrição do
pensamento do Calvino acerca do uso das artes visuais e da música no culto.
Em ambos, a principal preocupação de Calvino era que o foco do crente não
fosse desviado da verdadeira adoração a Deus.
O capítulo 9 – Aceso com ousadia: oração como “o exercício principal
da fé” – tem a oração como foco. Aqui é mostrado que a oração é tanto um
exercício público quanto particular e que essas esferas não devem ser separa-
das. A oração é descrita como o primeira e principal parta de piedade. Todas
as demais ações piedosas derivam de invocar o nome do Senhor. Para Calvi-
no, a oração precisa ser cheia de emoção e de confiança no Senhor e deve ser
reconhecida como o meio pelo qual Deus realiza os seus propósitos e mostra
sua generosidade para conosco.
Lei e liberdade na vida cristã é o título do capítulo 10. Aqui o problema
da relação entre lei e evangelho é tratado sob a perspectiva dos três usos da lei
propostos por Melanchton e adotados por Calvino. Dessa forma, a salvação
somente pela graça e por meio da fé não entra em conflito com uma vida de
santidade movida pela gratidão e orientada pelos mandamentos da Palavra
de Deus.
No capítulo 11 – A nova sociedade de Deus – o tema é a igreja. Para os
reformadores, o que caracteriza a igreja não é o seu vínculo institucional, nem
a santidade dos seus membros (afirmação que à primeira vista nos surpreende),
mas o evangelho que, como foi visto no capítulo 7, é a manifestação visível
de Deus na palavra pregada e nos sacramentos. Horton mostra que na visão de
Calvino a verdadeira igreja é aquela que está transformando e não afastando
pecadores. Para Calvino, a disciplina não era uma marca da igreja, mas uma
aplicação da palavra e dos sacramentos promovida por pastores e presbíteros.
Discussão polêmica que vale a pena ler. Nela encontra-se também uma palavra
aos contemporâneos desigrejados. O capítulo traz uma boa apresentação do
pensamento do Calvino sobre generosidade e hospitalidade dos crentes, unidade
166
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 163-168
167
CALVINO E A VIDA CRISTÃ
confortável. A nota negativa fica para a capa escura que dá um tom soturno
(fruto de um estereótipo) que destoa da perspectiva ampla e luminosa que a
obra apresenta sobre a piedade de Calvino. Expressamos nossos cumprimentos
à Editora Cultura Cristã pela iniciativa e nossa expectativa pela publicação de
outras obras na série Teólogos e a Vida Cristã.
168
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 169-173
resenha
Filipe Costa Fontes*
Uma das maiores críticas sofridas pelo calvinismo é a de que ele seria
uma postura teológica que desestimula a evangelização e as missões. O argu-
mento é que a doutrina da soberania de Deus, com suas implicações soterioló-
gicas – as doutrinas da eleição incondicional e da expiação limitada –, seria
um impedimento ao engajamento da igreja com sua tarefa missionária. O
Legado Missional de Calvino lida com essa crítica. Seu objetivo é “enterrar
finalmente a acusação de que ser calvinista significa deixar de ser missional”
(p. 15), mostrando que Calvino foi um defensor das missões, tanto em seus
escritos quanto em sua prática ministerial.
A introdução apresenta a crítica que mencionamos no parágrafo anterior,
mostrando alguns exemplos da mesma na literatura teológica. Embora a divisão
não esteja marcada, o livro pode ser dividido em duas partes, ambas compos-
tas por três capítulos. A primeira trabalha com Calvino e seu pensamento, e a
segunda, com o pensamento de calvinistas posteriores.
Na primeira parte, o capítulo 1 (Deus amou ao mundo) examina o trabalho
de Calvino como exegeta, teólogo e pregador. Ele traz citações das Institutas e,
principalmente, de alguns de seus comentários e sermões. É dada certa ênfase
à interpretação que Calvino faz dos “textos universais” da Escritura – aqueles
que falam da salvação em referência a “todos” – e à maneira como o refor-
mador genebrino trata o chamado universal do evangelho à luz da doutrina
da predestinação.
* Mestre em Teologia Filosófica pelo CPAJ e em Educação, Arte e História da Cultura pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie; licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário Assunção;
graduado em Teologia pelo Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição; professor assistente
de Teologia Filosófica no CPAJ.
169
O LEGADO MISSIONAL DE CALVINO
170
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 169-173
mundo, mediante a redenção lavrada por teu Filho Jesus Cristo, permita que
aqueles que ainda se encontram alheios ao conhecimento de Cristo, na escuridão,
e cativos ao erro e à ignorância, possam ser conduzidos, pela iluminação de teu
Santo Espírito e da pregação do evangelho, para o justo caminho da salvação,
que é conhecer a ti, o único Deus verdadeiro, e Jesus Cristo, a quem enviaste.1
1 MCKEE, Elsie. Calvin and Praying for “All People Who Dwell on Earth”. Apud HAYKIN e
ROBINSON, O legado missional de Calvino, p. 69.
171
O LEGADO MISSIONAL DE CALVINO
Bem, meu irmão, revelarei o meu segredo, se assim devo fazê-lo. No preciso
momento em que eu estava prestes a voltar ao meu assento, pensando ter fina-
lizado o sermão, abriu-se a porta, e vi entrar um pobre homem, um operário. A
julgar pelo suor na sua testa e pela aparência de cansaço, presumi que ele havia
andado algumas milhas para comparecer a esse sermão matinal, mas fora incapaz
de chegar a tempo. Um pensamento momentâneo cruzou minha mente – esse
pode ser um homem que nunca ouviu o evangelho, ou pode até ser alguém que,
no evangelho, se deleite enormemente. Em todo caso, o esforço de sua parte me
172
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 169-173
2 COX, F. A. History of the Baptist Missionary Society, from 1792 to 1842. Apud HAYKIN e
ROBINSON, O legado missional de Calvino, p. 119.
173
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 175-177
resenha
Filipe Costa Fontes*
* Mestre em Teologia Filosófica pelo CPAJ e em Educação, Arte e História da Cultura pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie; licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário Assunção;
graduado em Teologia pelo Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição; professor assistente
de Teologia Filosófica no CPAJ.
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O PENSAMENTO DA REFORMA
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Resenha
Tarcizio Carvalho*
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CUIDADO COM O ALEMÃO – TRÊS DENTADAS QUE MARTINHO LUTERO DÁ À NOSSA ÉPOCA
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não volta vazia, o que torna a Escritura no idioma do povo uma ferramenta de
transformação sem precedentes.
Creio que a segunda obra mais importante foi o seu Breve Catecismo.
Lutero percebeu que o povo da Alemanha vivia uma religião baseada em mérito,
e com muitos ensinos extrabíblicos que obscureciam o ensinamento geral da
Palavra de Deus. Havia fervor religioso, mas pouco ou nenhum conhecimento
da Bíblia. Em resposta a essa necessidade, Lutero escreveu o catecismo, apre-
sentado em formato de perguntas e respostas. Era um resumo da verdade cristã
que até mesmo as crianças poderiam absorver. Concluído em 1529, cobria os
Dez Mandamentos, o Credo dos Apóstolos, a Oração do Senhor, o batismo,
a confissão, a Ceia do Senhor e as maneiras pelas quais um chefe de família
cristã deveria liderar sua casa.
E a terceira obra que considero mais importante, e que me impactou no
tempo de Seminário, foi o Servo Arbitrio. Lutero continuamente confrontava o
uso que a Igreja fazia da abordagem aristotélica à teologia. Para ele, isso fazia
com que a razão humana fosse exaltada acima das Escrituras. Para combater
esse erro Lutero escreveu o De servo arbitrio, concentrando-se especialmente na
Diatribe, um livro de um sacerdote católico holandês chamado Erasmo. Erasmo
acreditava que a hierarquia da Igreja tinha autoridade sobre a verdade, enquanto
Lutero afirmava que a verdade tem autoridade sobre a Igreja. Erasmo argu-
mentava que se deveria buscar a paz na Igreja mais do que a verdade, enquanto
Lutero ensinou que a verdade está acima da paz, e que muitas vezes a verdade
pode trazer divisão. Erasmo ensinava que a tradição tinha autoridade sobre as
Escrituras, enquanto Lutero ensinava que a tradição deve se submeter à Escritura.
Foram muitas disputas de Lutero com a Igreja, e as questões de poder
político sempre fizeram parte do processo, mas a verdadeira batalha era sempre
sobre a suficiência e autoridade da Palavra de Deus.
O que eu não sabia ainda era que Tiago Cavaco existia. Por razão diferente
da de João Miguel Tavares, diria: “Cuidado com o Tiago”. João corretamente
olha para o efeito de alguma coisa sobre a vida de Tiago e de sua família, mas
deixa de ver para onde Tiago está apontando: para a suficiência e autoridade
da Palavra de Deus manifesta em Jesus Cristo.
A editora Vida Nova acertou “na mosca” ao entregar esse título ao povo
de Deus. Creio que todo tipo de leitor se beneficiará da obra. Entretanto, alguns
se beneficiarão mais. Por quê? Porque Cavaco consegue “ler” o mundo depois
de ter sido lido pela Escritura. Ele certamente sabe de cor que cada centímetro
quadrado da existência pertence a Cristo, mas para ele não é somente um shi-
bolete teológico. Ele estabelece relações com as produções culturais antigas,
com as de sua época, além daquelas com o seu cotidiano.
Tiago Cavaco sempre fala de si mesmo como um pregador, e acho que
também testemunhei isso em sua obra. Por isso, diria que ela é de grande valor
para duas áreas específicas: homilética e educação. Salvo melhor juízo, foram
suas melhores reflexões junto com o tal alemão.
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Excelência e Piedade a Serviço do Reino de Deus
Impressão e acabamento
Nywgraf Editora Gráfica Ltda.