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Mexeriqueira em Flor PDF

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PrOA , 29 de novembro de 2015 10

antonio Prata roberto Romano

Mexeriqueira em flor Favor!


Olivia vem correndo, para na minha frente, mostra o caroço de Além da violência nas falas e atos dos que pios democráticos”) dizia a cartinha. Surge
mexerica e faz a pergunta favorita de seus dois anos e meio de vi- apoiam agrupamentos instalados no poder, o apadrinhamento político dos cargos.
da: “Papai, o que é isso?”. Quase sem tirar os olhos do jornal – com existe o desejo geral de chegar aos postos Wolfgang Sofsky chama a coisa de “Orga-
essa displicência da qual vou me arrepender muito quando ela for (cabos eleitorais) e assessorias (acadêmicos nisations patronage”. Trata-se de invenção
grande e já tiver suas próprias respostas –, digo “É um caroço”. de joelho mole). A senda é atapetada pelo adequada à sociedade de massas e ao modo
favor recíproco. “Se eu te ajudo na eleição, pelo qual ela é conduzida em eleições com
Olivia, porém, continua ali, ansiosa, olhando pro caroço, olhando me ajudas a melhorar a despesa mensal.” partidos burocratizados. Neles, dirigen-
pra mim. Óbvio, “caroço” não significa nada e ela quer, ou me- Favor e lisonja corroem ideais de revolução tes trocam benesses com apoiadores. “Os
lhor, precisa saber que diabo de bolinha é aquela que estava den- ou reforma, alardeados antes da ida aos clientes (os militantes) devem garantir ao
tro da fruta. Abaixo o iPad, explico que se a gente puser aquele palácios. Segundo Norberto Bobbio, nas partido aprovação e apoio. Em troca, são
caroço num vaso nasce uma planta e a planta vira uma árvore praças reina o radicalismo, nos palácios recompensados com recursos de emprego
e a árvore dá um monte de mexerica. Como um céu nublado se os favores. Tal costume vem da Grécia e ou bens materiais” (Jens Ivo Engels). O
abrindo ao sol em efeito “time-lapse”, a curiosidade dá lugar ao a versão clássica surge em Roma, com a sinal distintivo do apadrinhamento organi-
deslumbre. “Papai, vamos plantar o caroço?! Vamos plantar o clientela. O Brasil é a terra daquele hábi- zacional “não é o sumiço do patrão como
caroço?! Vamos plantar o caroço?!”. Vamos plantar o caroço. to. Político eficaz, aqui, ajuda parentes, pessoa: mudou a fonte dos recursos de
amigos e inimigos, garantindo apoio nos apadrinhamento. Eles provêm doravante
Saímos pro jardim, en- apuros. Vejam o caso Sarney: declarado do organismo político, e não mais das for-
fiamos o caroço num inimigo por Luis Inácio da Silva e Fernan- tunas pessoais das famílias ou padrinhos”.
pequeno vaso amarelo, do Collor, aquele suporte do regime ditato-
onde jazem os restos rial conseguiu, graças aos favores, manter Na República de Weimar, a social-de-
semimumificados de uma seu poderio e superar instantes de fraque- mocracia usou o método para empregar
violeta – e só me dou za. Quando usou helicóptero destinado à militantes. Pertencer ao partido era a senha
conta da encrenca em saúde pública em convescotes particulares, para receber cargos. O apadrinhamento
que me meti quando, de Luis Inácio da Silva o socorreu e proibiu os segue o controle das direções partidárias.
volta ao sofá, vejo minha críticos: “Sarney é homem incomum”. Na Na era do Front Populaire francês, a indi-
filha acocorada, imóvel, lá época, recordei em artigo que numa repú- cação para os cargos pertencia à Central
fora. “Olivia, que que cê tá blica todos são comuns. Mas a nossa terra Geral dos Trabalhadores. Os contratos
fazendo aí?”. “Esperando não é república, diria o Padre Vieira. Mas o públicos eram feitos com firmas das coo-
a árvore.” campeonato internacional da corrupção e perativas de trabalhadores. Oferecer um
favor não é brasileiro. posto nas empresas, privadas ou públicas,
Explico que não é assim. Que demora. Que a gente tem que regar foi meio eficaz de recrutamento e fideliza-
e aguardar uns dias, mas a minha suposta calma esconde uma O favor vigora no sistema parlamentar e ção. Nazistas e comunistas não inovam o
ponta de pânico: e se essa semente não brotar? Será, sem dúvida, partidário em horizontes mundiais. Jens apadrinhamento partidário. Os adeptos de
a maior frustração daqueles 30 meses de vida. Ao deitar a cabeça Ivo Engels, especialista na análise da ladro- Hitler inventaram um jeito de afastar ade-
no travesseiro, relembro minhas palavras com um eco bíblico: agem estatal, indica o favor praticado pelos sões tardias: só indicavam para os cargos os
“Se a gente puser o caroço num vaso... aso... aso... Nasce uma partidos. Em 1842, na Inglaterra, militantes filiados de número anterior a 100 mil… Os
árvore... ore... ore...”. do Partido Conservador enviam carta a dirigentes eleitos ou com influência sobre
Thomas Fremantle, chefe da agremiação. os eleitos são presos aos militantes que
São dias de angústia na Alameda dos Araçás. A cada manhã, Conteúdo da missiva: visto que os Tories exigem emprego e benesses como prêmio
Olivia me faz ir direto do berço ao jardim. Voltando da escola, ganharam as eleições, os seus militantes pela fidelidade. Os empresários fornecem
a primeira parada é o vaso amarelo. Regamos juntos. Olhamos deveriam receber empregos, uma vez que meios e ocupação aos militantes para que
a terra de perto, por minutos a fio. Ela metralha perguntas: que seus interesses sejam defendidos no gover-
tamanho terá a árvore? Vai poder comer mexerica antes do no. Temos a nova ordem do pacto corrup-
almoço? Vai poder levar mexerica pra escola? Respondo sem to. Oligárquicos, os líderes mantêm uma
olhá-la no olho. dupla fidelização dos militantes: nas em-
presas privadas e na administração oficial.
Na terceira noite de tribulação, proponho à minha mulher um A ordem é aprofundar a força do partido
esquema fraudulento. Compramos uma muda. Plantamos na para que ele vença eleições, o que garante
madrugada. Ou arrumamos logo uma mexeriqueira em flor, os clientes, empresários ou trabalhadores.
cheia de frutas, já com balanço e casa na árvore. A Julia só me
faz uma pergunta: “Caso a semente não germine, será que é a Manter a máquina exige muito dos cofres
Olivia quem não vai aguentar a frustração?”. públicos e das empresas, privadas ou go-
vernamentais. As leis são um obstáculo e se
Brigo com a Julia, critico sua psicanálise de botequim e viro pro tornam “invisíveis”para os políticos, em-
lado ciente de que ela tem toda razão. Percebo que, desde o apito presários, militantes. O apadrinhamento do
inicial de Brasil e Alemanha, não acalento nenhuma esperança. partido se firma como ética, postura auto-
De lá pra cá, foi tudo 7 x 1. Sete a um na política. Sete a um na mática. Tal é o código “realista” que burla a
economia. Onde não tem lama, é deserto: uma aridez total. E, de norma em nome dos interesses ideológicos
uma hora pra outra, essa semente que vai virar planta que vai virar ou do “progresso econômico geral”. E
árvore que vai dar um monte de mexerica. Ou não vai? chegamos ao abismo hoje enfrentado por
todos nós, favorecidos ou desfavorecidos
Na quarta manhã, nem tenho coragem de ir lá fora. Abro a porta no mercadejo do favor. Para análise mais
e deixo a Olivia sair correndo. Engulo a seco. Então ouço seus os perdedores também usaram a prerroga- extensa, remeto a um texto meu, no livro
gritos de euforia. Vou apressado até o vaso amarelo: ao lado dos tiva: “government patronage was profusely editado pelo Conselho Nacional de Justiça:
despojos da violeta nasceu, tímida e espalhafatosa, uma Maria showered on any Elector who exhibited Rui Stocco e Janaína Penalva: Dez anos de
Sem Vergonha. “Papai! Você plantou uma flor! Você plantou uma democratic principles” (“o patrocínio do go- Reforma do Judiciário e o Nascimento do
flor! Você plantou uma flor!”. Olivia abraça a minha perna, dá verno foi profusamente derramado sobre Conselho Nacional de Justiça (Revista dos
uns pulos pela grama, depois segue pra sala, com passos decidi- qualquer eleitor que tenha exibido princí- Tribunais, Thomson Reuters, 2015).
dos, para cuidar de outros assuntos.

ANTONIO PRATA É ESCRITOR, AUTOR DE NU, DE BOTAS (2013). ROBERTO ROMANO É PROFESSOR TITULAR DE ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA
ESCREVE SEMANALMENTE NESTE CADERNO DA UNICAMP. ESCREVE QUINZENALMENTE
FOTOS: REPRODUÇÃO, DENATRAN

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