Transmissão e Laço Social Da Psicanálise
Transmissão e Laço Social Da Psicanálise
Transmissão e Laço Social Da Psicanálise
O artigo que se segue é um breve relato das reflexões que desenvolvi, até
recentemente, a respeito do processo de difusão da psicanálise entre o público leigo e
sua relação com a produção da demanda de psicanálise. A questão das
Weltanschauungen psicanalíticas emergiu ao longo do meu trabalho com um poderoso
articulador da relação difusão/demanda. Por essa razão, a continuidade dessa pesquisa
acerca do campo psicanalítico exige reconstituir, através da análise de revistas,
boletins, periódicos, jornais e coletâneas de artigos editados pelas sociedades de
transmissão da psicanálise uma parte da história das concepções da direção da cura
analítica (ou do fim da análise). Essa reconstituição histórica é importante para dar
prosseguimento aos trabalhos que já realizei (Coelho dos Santos, 81, 82, 27, 88, 89 a,
89 b, 90) sobre o imaginário constituído por meio da difusão da psicanálise (ou as
culturas psicanalíticas), enfocando a produção teórico-clínica das instituições
psicanalíticas e deverá trazer informações importantes sobre as transformações da
produção simbólica do campo analítico entre os anos 60/80, período marcado por
profundas mudanças no processo de recrutamento, formação e legitimação de
psicanalistas. Essas mudanças articulam-se com a abertura das instituições
psicanalíticas ligadas a IPA a candidatos não-médicos (anos 79/80) no Rio de Janeiro,
à multiplicação das sociedades psicanalíticas não vinculadas a IPA, e à difusão do
pensamento de Lacan (especialmente com relação ao problema da transmissão da
psicanálise, e mais especialmente da formação do analista).
Essas informações são necessárias para uma compreensão das mudanças que já
detectamos numa análise do imaginário da psicanálise socialmente difundida (integrado
inclusive por representações da cura analítica), que será preciso para fazer articulação
com as transformações dos “ideais analíticos” que, nesse período, integraram a
produção teórico-clínica.
Nossa hipótese, produzida numa abordagem do saber psicanalítico difundido no
público leigo, aponta para uma mudança de um modelo médico da cura analítica
(regido pelo ideal da liquidação do complexo edipiano, pela oposição pulsão/recalque,
inconsciente/consciente) vigente nos anos 60/70 para um modelo não-médico (regido
pelo ideal da singularidade do sujeito, pela relação desejo/subjetivação, pulsão de
morte/narcisismo), desde o fim dos anos 70 e início dos anos 80.
Essa pesquisa se justifica pelo importante acréscimo de informações sobre as
culturas da psicanálise, ampliando o campo de reflexões sobre a subjetividade
contemporânea e suas relações com o movimento psicanalítico.
Esta questão se coloca desde o ponto de vista de que essa teoria do sujeito e
suas práticas podem funcionar como uma religião para os sujeitos de certos grupos
sociais14, que é preciso definir no sentido largo de sujeito da cultura psicanalítica. Será
preciso ter em conta, nessa referência ao aspecto religioso do laço social em que se
constitui o sujeito da cultura psicanalítica, aquilo que Freud nos diz sobre as
Weltanschauungen e em particular acerca da relação entre desamparo infantil e adesão
aos mais variados ideais.
A questão dos ideais analíticos dos anos 70 não é, como se pode depreender dos
escritos de Birmam (1983, 1987) a esse respeito, um problema cativo da difusão da
psicanálise no público leigo, pois sua análise vem situa-la no centro dos processos de
transmissão ou de formação do psicanalista. A reificação da teoria, sua utilização no
interior do dispositivo analítico como um sistema de crenças ou, nas suas próprias
palavras, um “código explicativo” faculta ao analisando a identificação do analista como
portador de uma teoria universalizante do sujeito. Prescindindo do manejo da
transferência, o analista impulsiona a identificação do analisando como o ego do
analista. Prática que aprisiona e reifica o sentido na palavra do analista reduzindo a
verdade do desejo à verdade científica ou à verdade histórica.
Do final dos anos 70 aos anos 80, o campo psicanalítico no Rio de Janeiro passa
por transformações sensíveis nas definições de sua prática, dos modos de transmissão,
da direção da cura, do lugar da interpretação, da função do analista, entre alguns dos
paradigmas que nos ocorreu relacionar. Um outro aspecto marcante, curioso, desse
campo, foi observado por Figueiredo15, sobre os analisados que acreditavam dever se
reanalisar segundo os novos códigos que vieram a reger a cultura psicanalítica. O início
da difusão lacaniana tem muito a ver com esse fenômeno. Nessa cultura, a
singularidade será o contraponto constante com os analistas cujo ideal de cura é a
identificação do paciente com o ego do analista, que utilizam a teoria como um código
explicativo, que manejam a teoria como um sistema de crenças, do tipo modernizante,
analistas que adaptam o indivíduo à sociedade. Certamente, todas essas críticas não
inocentaram aqueles que abraçaram a psicanálise através do ideal da modernização
social. A reação a essa versão do campo analítico foi condensada na fórmula “isso não
é psicanálise” e que tão freqüentemente é acionada indicando esses seus destinatários.
Notas