Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

António Gedeão

Fazer download em doc, pdf ou txt
Fazer download em doc, pdf ou txt
Você está na página 1de 17

António Gedeão

A
Amor sem Tréguas
.

É necessário amar,
qualquer coisa, ou alguém;
o que interessa é gostar
não importa de quem.
.

Não importa de quem,


nem importa de quê;
o que interessa é amar
mesmo o que não se vê.

Pode ser uma mulher,


uma pedra, uma flor,
uma coisa qualquer,
seja lá do que for.

Pode até nem ser nada


que em ser se concretize,
coisa apenas pensada,
que a sonhar se precise.

Amar por claridade,


sem dever a cumprir;
uma oportunidade
para olhar e sorrir.

Amar como o homem forte


só ele o sabe e pode-o;
amar até à morte,
amar até ao ódio.

Que o ódio, infelizmente,


quando o clima é de horror,
é forma inteligente
de se morrer de amor.

António Gedeão

Dez Réis de Esperança


.
Se não fosse esta certeza

que nem sei de onde me vem,

não comia, nem bebia,

nem falava com ninguém.

Acocorava-me a um canto,

no mais escuro que houvesse,

punha os joelhos à boca

e viesse o que viesse.


Não fossem os olhos grandes

do ingénuo adolescente,

a chuva das penas brancas

a cair impertinente,

aquele incógnito rosto,

pintado em tons de aguarela,

que sonha no frio encosto

da vidraça da janela,

não fosse a imensa piedade

dos homens que não cresceram,

que ouviram, viram, ouviram,

viram, e não perceberam,

essas máscaras selectas,

antologia do espanto,

flores sem caule, flutuando

no pranto do desencanto,

se não fosse a fome e a sede

dessa humanindade exangue,

roía as unhas e os dedos

até os fazer em sangue.

 .
(António Gedeão)

Desencontro

Que língua estrangeira é esta

que me roça a flor do ouvido,


um vozear sem sentido

que nenhum sentido empresta?

Sussurro de vago tom,

reminiscência de esfinge,

voz que se julga, ou se finge

sentido, e é apenas som.

Contracenamos por gestos,

por sorrisos, por olhares,

rodeios protocolares,

cumprimentos indigestos,

firmes apertos de mão,

passeios de braço dado,

mas por som articulado,

por palavras, isso não.

Antes morrer atolado

Na mais negra solidão.

António Gedeão

Este é o Poema do Amor


 .
Este é o poema do amor.

 .

O poema que o poeta propositadamente escreveu

só para falar de amor,

de amor,

de amor,

de amor,

para repetir muitas vezes amor,

amor,

amor,

amor.

Para que um dia, quando o Cérebro Electrónico

contar as palavras que o poeta escreveu,

tantos que,

tantos se,

tantos lhe,

tantos tu,

tantos ela,

tantos eu,

conclua que a palavra que o poeta mais vezes escreveu

foi amor,

amor,

amor.

 .

Este é o poema do amor.

.
(António Gedeão)
F

Fala do Homem Nascido


Venho da terra assombrada,

do ventre da minha mãe;

não pretendo roubar nada

nem fazer mal a ninguém.

Só quero o que me é devido

por me trazerem aqui,

que eu nem sequer fui ouvido

no acto de que nasci.

 .

Trago boca para comer

e olhos para desejar.

Com licença, quero passar,

tenho pressa de viver.

Com licença! Com licença!

Que a vida é água a correr.

Venho do fundo do tempo;

não tenho tempo a perder.

 .

Minha barca aparelhada

solta o pano rumo ao norte;

meu desejo é passaporte

para a fronteira fechada.

Não há ventos que não prestem

nem marés que não convenham,


nem forças que me molestem,

correntes que me detenham.

Quero eu e a Natureza,

que a Natureza sou eu,

e as forças da Natureza

nunca ninguém as venceu.

 .

Com licença! Com licença!

Que a barca se faz ao mar.

Não há poder que me vença.

Mesmo morto hei-de passar.

Com licença! Com licença!

Com rumo à estrela polar.

(António Gedeão)

Forma de Inocência
 .
Hei-de morrer inocente

exactamente

como nasci.

Sem nunca ter descoberto

o que há de falso ou de certo

no que vi.

 .

Entre mim e a Evidência


paira uma névoa cinzenta.

Uma forma de inocência,

que apoquenta.

 .

Mais que apoquenta:

enregela

como um gume

vertical.

E uma espécie de ciúme

de não poder ver igual.

 .

António Gedeão

L
Lágrima de preta
 .
Encontrei uma preta

que estava a chorar,

pedi-lhe uma lágrima

para a analisar.

 .

Recolhi a lágrima

com todo o cuidado

num tubo de ensaio

bem esterilizado.

 .

Olhei-a de um lado,

do outro e de frente:

tinha um ar de gota

muito transparente.

 .

Mandei vir os ácidos,

as bases e os sais,

as drogas usadas

em casos que tais.

 .

Ensaiei a frio,

experimentei ao lume,

de todas as vezes

deu-me o que é costume:

 .
nem sinais de negro,

nem vestígios de ódio.

Água (quase tudo)

e cloreto de sódio.

  .
(António Gedeão)

Poema do Coração
.
Eu queria que o Amor estivesse realmente no coração,

e também a Bondade,

e a Sinceridade,

e tudo, e tudo o mais, tudo estivesse realmente no coração.

Então poderia dizer-vos:

"Meus amados irmãos,

falo-vos do coração",

ou então:

"com o coração nas mãos".

.
Mas o meu coração é como o dos compêndios

Tem duas válvulas (a tricúspida e a mitral)

e os seus compartimentos (duas aurículas e dois ventrículos).

O sangue a circular contrai-os e distende-os

segundo a obrigação das leis dos movimentos.

Por vezes acontece

ver-se um homem, sem querer, com os lábios apertados,

e uma lâmina baça e agreste, que endurece

a luz dos olhos em bisel cortados.

Parece então que o coração estremece.

Mas não.

Sabe-se, e muito bem, com fundamento prático,

que esse vento que sopra e que ateia os incêndios,

é coisa do simpático.

Vem tudo nos compêndios.

Então, meninos!

Vamos à lição!

Em quantas partes se divide o coração?

.
(António Gedeão)

"Poema da malta das naus"


.
Lancei ao mar um madeiro,
espetei-lhe um pau e um lençol.
Com palpite marinheiro
medi a altura do Sol.
.
Deu-me o vento de feição,
levou-me ao cabo do mundo.
pelote de vagabundo,
rebotalho de gibão.
.
Dormi no dorso das vagas,
pasmei na orla das prais
arreneguei, roguei pragas,
mordi peloiros e zagaias.
.
Chamusquei o pêlo hirsuto,
tive o corpo em chagas vivas,
estalaram-me a gengivas,
apodreci de escorbuto.
.
Com a mão esquerda benzi-me,
com a direita esganei.
Mil vezes no chão, bati-me,
outras mil me levantei.
.
Meu riso de dentes podres
ecoou nas sete partidas.
Fundei cidades e vidas,
rompi as arcas e os odres.
.
Tremi no escuro da selva,
alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
mulheres de todas as cores.
.
Moldei as chaves do mundo
a que outros chamaram seu,
mas quem mergulhou no fundo
do sonho, esse, fui eu.
.
O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo-me a sal.
Não se nasce impunemente
nas praias de Portugal.
.
.
António Gedeão in "Teatro do Mundo", 1958

Pedra Filosofal
 .
Eles não sabem que o sonho

é uma constante da vida

tão concreta e definida


como outra coisa qualquer,

como esta pedra cinzenta

em que me sento e descanso,

como este ribeiro manso,

em serenos sobressaltos,

como estes pinheiros altos,

que em verde oiro se agitam,

como estas aves que gritam

em bebedeiras de azul.

 .

Eles não sabem que o sonho

é vinho, é espuma, é fermento,

bichinho alacre e sedento,

de focinho pontiagudo,

que força através de tudo

num perpétuo movimento.

 .

Eles não sabem que o sonho

é tela, é cor, é pincel,

base, fuste, capitel,

arco em ogiva, vitral,

pináculo de catedral,

contraponto, sinfonia,

máscara grega, magia,

que é retorta de alquimista,

mapa do mundo distante,

rosa dos ventos, Infante,


caravela quinhentista,

que é cabo da Boa Esperança,

ouro, canela, marfim,

florete de espadachim,

bastidor, paço de dança,

Colombina e Arlequim,

passarola voadora,

pára-raios, locomotiva,

barco de proa festiva,

alto-forno, geradora,

cisão de átomo, radar,

ultra-som, televisão,

desembarque em foguetão

na superfície lunar.

 .

Eles não sabem, nem sonham,

que o sonho comanda a vida.

Que sempre que um homem sonha

o mundo pula e avança

como bola colorida

entre as mãos de uma criança.

  .
(António Gedeão)

PAISAGEM DO OUTRO LADO


-
Somos confusos como as florestas.
-
Tu, e eu (e todos nós),
temos enredos na voz,
armaduras e espessuras
que nos encobrem de nós.
-
Anda.
Percorre-me sem desvios,
inteira, plena, despida,
infância desprevenida
-
Anda.
Rasga esta verde espessura
com teus gestos afiados.
Insinua-te, procura,
derrama a tua brancura
nos trilhos enviesados.
Progride e canta. Penetra
neste matagal bravio,
desembrulhada e erecta
como a vela de um navio.
Singra, desliza suave
como gota que escorresses,
como luar que batesses,
penugem que esvoaçasses.
-
Entra e serve-te. Verás,
ou caídos ou suspensos,
frutos de aromas intensos
que em silêncios morderás.
Teus dentes lhes darão sumo,
teus lábios lhes darão gosto
e o veludo que presumo
macio como o teu rosto.
-
Tuas mãos os farão belos
e alegres como facetas,
verdes, azuis, amarelos,
vermelhos e violetas.
-
De um arrepio, na espessura,
toda a floresta estremece.
-
Eu dou-te a minha loucura.
Dá-me o canto que a adormece.
-
António Gedeão
(Máquina de Fogo)

R
Rio Triste
 .

Longuíssimos braços têm


os olhos que tudo abraçam.
Somente, só os olhos vêem
os olhos que por mim passam.
.

Clandestinamente os lanço,
braços de mar, olhos de água.
Longo ser líquido avanço,
abraço a vida, e alago-a.

Destino do amor triste


que não se ouve nem se vê.
Ama apenas porque existe.
Não sabe a quem nem porquê.

Nesta obrigação de estar


que a cada um de nós cabe,
coube-me esta de amar.
E ninguém sabe.

António Gedeão

V
Vidro Côncavo»

Tenho sofrido poesia


como quem anda no mar.
Um enjoo.
Uma agonia.
Saber a sal.
Maresia.
Vidro côncavo a boiar.
.

Doi esta corda vibrante.


A corda que o barco prende
à fria argola do cais.
Se vem onda que a levante
vem logo outra que a distende.
Não tem descanso jamais.

António Gedeão

Você também pode gostar