A Lei Da Boa Razão e A Cultura Jurídica Oitocentista (Sobre Antonio Hespanda) - Thomas Bustamante
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2 Nesse sentido, explica MacCormick: “Para capturar (o sentido de uma obrigação ou uma regra jurídica),
devemos capturar o que nós estaríamos fazendo se fôssemos a pessoa realizando esses juízos e tomando-os a
sério. Isso significa que a explicação que realizamos deve se dar não no nível da observação direta,
experimentação, etc., mas ao contrário no nível da investigação hermenêutica. Devemos interpretar o sentido
desses juízos do ponto de vista de sermos a pessoa que formula esse juízo ao invés do ponto de vista de uma
pessoa que observa esses comportamentos desde fora” (MACCORMICK, 2008, p. 46).
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Uma teoria jurídica suficientemente explicativa deve ser capaz de vislumbrar o Direito
não apenas na perspectiva do observador, que descreve o direito positivo a partir de fora, mas
também na do participante que aceita e emprega as normas jurídicas para fins de encontrar ou
determinar a conduta juridicamente correta. Creio que sem essa “virada hartiana” a teoria
jurídica fica um tanto quanto incompleta, pois vê o Direito apenas como um produto pronto e
acabado que é fruto unicamente da decisão de uma autoridade cujos poderes estão
institucionalizados de alguma maneira na sociedade.
Nesse sentido, Hespanha argumenta que
a criação cultural e, no caso concreto, a criação jurídica não são
obra do acaso – a novidade e a rotina, os temas, os conceitos, o
estilo da argumentação, tudo isto é grandemente condicionado
pelas circunstâncias em que decorre a própria prática de
produção do saber, que, assim, aparece como o princípio
(arque), a sua raiz. Em relação a cada disciplina é, então,
possível uma ‘arqueologia’, ou seja, um estudo das
circunstâncias em que se desenvolve a sua prática; a prática a
partir da qual e para a qual se constitui o seu discurso e que é,
portanto, o ‘princípio’ deste (HESPANHA, 1978, p. 71).
3 De acordo com Lopes, “Todos os cargos da carreira de justiça, por exemplo, eram comuns: o tribunal da
Bahia, o da Goa, ou o do Porto recebiam desembargadores provenientes de qualquer parte do Império. A
Universidade de Coimbra formava todos os letrados do Império. Finalmente, a compilação das Ordenações de
1603 (chamadas Filipinas) vigoraram aquém e além mar, juntamente com o direito comum: nos tribunais criados
no Brasil deveria haver além das Ordenações um jogo completo de Bártolos e do Corpus Iuris Civilis. Portanto,
a despeito das muitas normas, alvarás, regimentos, cartas-régias especialmente feitos para se aplicar ao Brasil, há
uma vida jurídica comum” (LOPES, 2011, p. 215).
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constituem em si a expressão de uma racionalidade imanente. A autoridade decorre, nessa
época, “dos textos ou da revelação ou da razão”, que eram indiscutíveis. Isso tinha, como
explica Hespanha, duas consequências importantes: (1) de um lado, o jurista, “para além de
estar obrigado a observar o texto, estava obrigado a aderir à sua razoabilidade e a demonstrá-
la”; (2) de outro lado, a autoridade desses textos era “independente do poder político e, mais
do que isso, superior a esse poder” (HESPANHA, 2005, p. 114).
Os juristas, nessa sociedade, detinham por conseguinte uma importante parcela do
poder social, na medida em que as suas interpretações não estavam subordinadas, ao menos
na prática, às decisões de autoridade do Poder Real.
A atividade de interpretação do direito, nessa perspectiva, ocupa um lugar central na
cultura jurídica da época. Trata-se de uma tradição, como explica Hespanha, em que a
dinâmica de produção do direito é “agregativa”, de modo que “cada nova interpretação passa
a coexistir com as anteriores”, o que a diferencia profundamente da dinâmica legislativa dos
nossos dias, que é uma dinâmica “substitutiva” porque cada nova lei é vista como uma
derrogação da anterior (HESPANHA, 2005, p. 118).
O que chama a atenção nesse relato, no entanto, é a vocação que a tradição jurídica da
época apresenta para dissociação do comando jurídico concreto em relação ao Poder Político
estabelecido. O direito do Antigo Regime é marcado pela presença de um aparato normativo e
conceitual que atribuía ao aplicador, em cada caso concreto, uma significativa margem de
discricionariedade e de competência para prolatar decisões casuísticas. Nesse sentido, explica
o autor, “a ordem jurídica do Antigo Regime tinha uma arquitetura que desvalorizava a
norma geral” (HESPANHA, 2005, p. 128). Talvez esse seja, na interpretação de Hespanha, o
elemento mais saliente da cultura jurídica da época, que adotava uma estrutura típica da
tópica, valorizando a primazia do problema concreto sobre norma geral, a norma excepcional
sobre a norma geral, e permitindo ainda uma série de distinções conceituais baseadas na
doutrina dos “sábios” e em considerações de “equidade” ou “perdão/misericórdia”, que só
faziam enfraquecer a norma geral e prevalecerem o poder local e a “interpretatio” adotada
pelos tribunais. Nesse sentido, “na lógica de construção do ordenamento jurídico, o direito
especial se impunha ao direito geral, em homenagem às ideias já expostas, de autonomia dos
corpos (jurídicos) e de que a regra comum não era outra coisa senão um equilíbrio correcto
(uma recta ratio) das regras particulares” (HESPANHA, 2005, p. 128-129). Da mesma forma,
o direito comum reconhecia às elites uma série de privilégios e “direitos adquiridos” que
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tinham prevalência sobre a legislação real, fragilizando a normatividade das regras gerais.
No entanto, como explica Hespanha, não era somente a estrutura hierárquica das
fontes do direito (no ius commune) que fragilizava a norma geral. A desvalorização da norma
decorria, também, da própria forma como os juristas da época pensavam a “natureza do
processo intelectual de encontrar o direito” e da relação que se estabelecia “entre a justiça e
outras virtudes” (HESPANHA, 2005, p. 129).
No que concerne ao primeiro aspecto, Hespanha reconhece ao pensamento jurídico
uma estrutura tópica, que é muito próxima da forma como Theodor Viehweg sustenta que
deve ser compreendido o pensamento jurídico “neoconstitucionalista” que se desenvolve na
Europa e na América Latina depois da 2ª Guerra Mundial. Como tive oportunidade de
escrever, Viehweg advogava uma redescoberta da tópica de Aristóteles, em substituição ao
positivismo jurídico, que pode ser condensada nas seguintes linhas gerais:
4 Esse pluralismo era entendido como fenômeno que caráterizava a própria estrutura das fontes do direito,
definindo-se como a “coexistência de distintos complexos de normas, com legitimidades e conteúdos distintos,
no mesmo espaço social, sem que exista uma regra de conflitos fixa e inequívoca que delimite, de uma forma
previsível de antemão, o âmbito de vigência de cada ordem jurídica” (HESPANHA, 2006, p. 97).
5 Nesse sentido, afirma Hespanha que “direito comum, quer o secular, quer o eclesiástico, eram quase
exclusivamente de origem doutrinal; e, por isso, estavam cheios de controvérsias, de argumentos de sentido
diferente, desembocando em soluções contrárias”. O tecido do direito, para o autor, não era feito de regras, mas
de soluções tópicas para problemas particulares (Ibidem, p. 98). Vigorava, em tal contexto, o princípio da
communis opinio, que podia ser compreendido da seguinte forma: segundo esse princípio, se incorria em uma
“violação deontológica, e até em pecado, o jurista que imprudentemente se afastasse da solução mais
frequentemente adoptada. Porém, apesar de se conceber, assim, a prática (local) como uma “ciência digestiva”, a
escolha entre soluções diversas, quaisquer delas justificáveis em direito, criava uma grande margem de liberdade
na altura de decidir. É isto que alimenta a burocracia judicial ou para-judicial: memoriais jurídicos, litígios
judiciais, alegações dos advogados das partes, sentenças contraditórias, recursos ou, puramente, a recusa de
obedecer às ordens mais terminantes do monarca ou dos seus oficiais, mesmo de alto nível, com base numa
opinião jurídica distinta” (HESPANHA, 2006, p. 98-99).
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judicial”6.
Talvez o seguinte fragmento de Hespanha sintetize a compreensão compartilhada
pelos juristas acerca da regra de reconhecimento adotada no direito luso-brasileiro sob o
império do ius commune no Antigo Regime:
7 Para uma discussão teórica sobre o fenômeno da revisão da regra de reconhecimento, à luz de um outro
exemplo de modificação da regra de reconhecimento – o caso Fatortame v Secretary of State for Transport
[1991] A.C. 603, onde a House of Lords britânica reconheceu uma modificação no princípio da “soberania do
parlamento”, para compreendê-lo no sentido de que mesmo as leis posteriores deverão obedecer ao Direito
Comunitário Europeu, enquanto estiver em vigor o European Community Act 1972 –, recomenda-se a leitura de
MacCormick (1998).
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objeto da ciência do direito de maneira taxativa e estrita, essa legislação só foi capaz de
engendrar uma transformação na prática dogmática dos juristas oitocentistas porque a ciência
jurídica da época pôde encontrar condições para constituir “livremente o seu próprio objeto”
na mesma direção desejada pelo legislador (HESPANHA, 1978, p. 72).
O objetivo principal da Lei da Boa Razão foi promover uma “total remodelação das
fontes do direito”, de modo a assegurar o “primado da vigência do direito nacional” em
detrimento do ius commune e da tradição romanística e canonista (HESPANHA, 1978, p. 73).
Era necessário, como se reconhecida na época e era reclamado pelas novas elites burguesas
que despontavam no momento, modernizar o direito e garantir acima de tudo os ideais de
segurança e previsibilidade que se colocavam no centro do direito iluminista.
Mas como poderia isso ser garantido, se os juristas da época estavam fortemente
contaminados pela cultura literária da tradição romanista? Como garantir esses ideais em um
universo jurídico caótico onde imperava o casuísmo e a forma tópica de pensar o direito? Em
suma: como promover a desejada segurança jurídica e a unificação do direito nacional, se não
apenas a arquitetura do sistema jurídico, mas também a prática dogmática dos juristas,
desincentivava a observância da norma geral?
A estratégia das Reformas Pombalinas foi, como já aduzido acima, agir sobre os
conceitos doutrinários existentes na época, de modo a redefinir alguns conceitos importantes
e, com isso colocar os próprios juristas a serviço da modernização e da inovação.
Mais uma vez, Hespanha explica esse fenômeno com maestria:
8 Nesse sentido, Hespanha traz à colação os comentários de Corrêa Teles, segundo os quais entre 1769 e 1800
houve apenas 58 assentos interpretativos, e nenhuma providência legislativa de caráter interpretativo
(HESPANHA, 1978, p. 133, nota 10).
9 Com isso, afirma Hespanha, se estabelece “a ruptura com o direito comum, quer do ponto de vista das opções
normativas nele recolhidas, quer do ponto de vista do instrumental lógico-dogmático que lhe andava associado”
(HESPANHA, 1978, p. 79).
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Reforma Pombalina alterou as condições jurídicas sociais e abriu passo, com isso, para que a
nova autocompreensão social e política promovida pelo Iluminismo pudesse ser trazida para
dentro do discurso jurídico. A hipótese, evidentemente, é de que esse discurso se encontrava
permeável e sensível aos novos argumentos que essa forma de pensar colocava agora à
disposição do jurista prático.
Como explica Hespanha, “a prática científica dos juristas, através dos instrumentos
discursivos e dogmáticos que acciona, contribui, ela própria, para constituir o seu objeto. O
‘direito’, matéria-prima sobre que os juristas laboram, aparece, então e sobretudo, como um
produto da atividade dos juristas; em termos de poder ser mais verdadeiro definir o direito
como ‘aquilo que os juristas tratam’ do que definir os juristas como ‘aqueles que tratam do
direito’” (HESPANHA, 1978, p. 89).
Nesse âmbito, Hespanha identifica a seguinte atitude do jurista oitocentista perante a
prática jurídica, que levou, como aduzimos acima, à modificação da regra de reconhecimento
do antigo regime:
Hespanha sustenta, com isso, que foram os próprios juristas que permitiram o sucesso
da Reforma Pombalina. Foram eles que atuaram, em razão de convicções que lhes foram
convincentemente implantadas pela proposta (e, obviamente, pelas elites burguesas que
reclamavam um direito dotado de maior segurança e previsibilidade), a serviço da substituição
do direito do antigo regime pelo direito moderno.
A criação do vácuo normativo, com a exclusão do direito anacrônico, encontra
guarida em uma série de conceitos e concepções doutrinários adotados pelos juristas da épica.
De uma parte, na doutrina sobre o desuso, que encontrou ressonância apesar de a Lei da Boa
Razão proibir, expressamente, a revogação do direito pelo costume. De outra parte, pela
revisão empreendida pela doutrina da época quanto à orientação proveniente do direito
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romano segundo a qual o erro ou desconhecimento do direito deveria ser tido como
irrelevante. Como aponta Hespanha, os juristas da época começam a fazer uma inovadora
distinção entre o erro relevante e o erro irrelevante para o direito, que pode ser expressa no
seguinte adágio: “não é relevante o erro sobre o direito natural ou sobre o direito legislado
com uso diuturno, é relevante o erro sobre o restante do direito” (HESPANHA, 1978, p. 91).
Com essa reinterpretação, foi possível ao jurista promover a “exclusão da juridicidade do
direito incompatível com os sentimentos jurídicos em vigor” (HESPANHA, 1978, p. 91).
A extensão e o fortalecimento do direito moderno, por sua vez, se manifesta na
postura interpretativa que dominou o pensamento jurídico da época. De um lado, afirma-se o
primado incondicional da lei moderna (e, muito pouco tempo depois, da codificação), que
deveria ser cumprida sem exceções.10 De outro lado, “a própria teoria da integração adopta
pontos de vista adequados a fazer valer o direito positivo (ou o seu espírito) em todos os casos
juridicamente reguláveis, mesmo aqueles por ele não expressamente previstos. Isto é
conseguido através do dogma da plenitude lógica do ordenamento jurídico e do recurso aos
modernos códigos estrangeiros” (HESPANHA, 1978, p. 91-92).
Nesse ponto específico, o princípio da plenitude (ou completude) do ordenamento
jurídico opera a serviço dos interesses econômicos e sociais dominantes na época, bem como
do espírito modernizador do pensamento iluminista. Nesse sentido,
10 Nesse sentido, afirma Hespanha, “na sua defesa confluem todos os ‘topoi’ do legalismo iluminista:
equiparação do justo ao legal, radicação das leis positivas nas leis naturais, etc.” (HESPANHA, 1978, p. 91).
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moderno e individualista do liberalismo que se estabelecia.
Nesse sentido, recorro-me mais uma vez às explicações históricas de Hespanha:
Uma cadeira de História do Direito, por outro lado, cumpria também a importante
função de diferenciar o direito do Antigo Regime e o novo direito moderno, facilitando a
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formação de uma atitude crítica e reflexiva (no sentido de Hart) em relação a esse novo
direito.
Foi com essas reformas políticas, sociais, educacionais e dogmático-conceituais que se
viabilizou, na prática, a formação de uma nova cultura jurídica e uma nova prática dogmática
no direito luso-brasileiro do final do século XVIII e, principalmente, no início do século XIX.
Indagaremos, a seguir, em que medida essa narrativa nos ajuda a compreender o
direito brasileiro do nosso tempo.
11 Deixarei em aberto, aqui, a questão de saber se essa caracterização do positivismo, feita por parte
significativa da doutrina e dos juízes brasileiros, é ou não correta à luz da teoria do direito. Há fortes evidências
de que não o seja, mas ainda assim essa ideia é interessante para se entender o significado do denominado “pós-
positivismo” ou “neoconstitucionalismo”, que constitui um conceito relativamente obscuro na teoria jurídica
contemporânea.
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plano externo, a “progressiva institucionalização de ‘contextos’ que integram seus poderes em
dimensões supra-estatais”); (ii) a afirmação de uma supremacia constitucional que desloca o
centro de gravidade da lei para um sistema de princípios e valores com caráter não absoluto
(os quais, apesar de entrarem em conflito, aspiram à convivência e à concordância prática); e
(iii) a formação gradual de uma dogmática jurídica fluida “que possa conter os elementos do
direito constitucional de nossa época, ainda que sejam heterogêneos, agrupando-os em uma
construção não rígida que dê cabimento às combinações que derivem não mais do direito
constitucional, mas da política constitucional” (ZAGREBELSKI, 2003, p. 9-14). Nesse
sentido, “a dogmática constitucional deve ser como o líquido de onde as substâncias que se
vertem – os conceitos – mantém sua individualidade e coexistem sem choques destrutivos,
ainda que com certos movimentos de oscilação, e, em todo caso, sem que jamais um só
componente possa se impor sobre ou eliminar os demais” (ZAGREBELSKI, 2003, p. 17).
Esse contexto, no Brasil, apresenta algumas semelhanças importantes com o direito do
Antigo Regime, que era um direito pré-moderno ou pré-positivista. O direito contemporâneo,
denominado por alguns de “pós-moderno” ou “pós-positivista”, tem alguns traços importantes
que lembram o relato que Hespanha faz do ius commune.
De um lado, o modelo “pós-positivista” se acha marcado por um profundo ativismo
judicial que, assim como o direito comum pré-moderno, faz com que a autoridade do direito
seja, em certa medida, independente do poder político. Em tempos de acentuado controle
jurisdicional de políticas públicas, já não cabe mais à autoridade legislativa decidir, por sua
própria vontade, o conteúdo das ações que serão implementadas para a proteção dos direitos
fundamentais. A discricionariedade administrativa e a margem de livre apreciação do
legislador estão cada vez mais limitadas e são cada vez mais sindicáveis pelo poder judicial.
A ascensão hegemônica dos “princípios constitucionais” pode constituir, também, um
relevante incentivo para a desvalorização da norma geral, na medida em que o método da
ponderação de princípios acaba promovendo uma forma de argumentação que guarda algum
tipo de semelhança com a tópica jurídica no âmbito dos direitos fundamentais12.
Como explica Prieto Sanchís, “o constitucionalismo submete a uma profunda revisão
uma das teses mais freqüentemente atribuídas ao positivismo teórico: a supremacia absoluta
da lei como expressão da soberania representada no Parlamento” (PRIETO SANCHÍS, 1999,
p. 34). Essa concepção de fontes do direito é diuturnamente desmentida pela prática das cortes
12 É essa a opinião, por exemplo, de Bonavides (1996).
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supremas (e, obviamente, das cortes constitucionais) dos Estados Constitucionais
contemporâneos.
A ponderação de princípios desempenha um papel relevante tanto para a
deslegitimação das normas gerais emanadas pelo legislador, quando essas não resistam ao
denominado “teste” estabelecido pelo “princípio da proporcionalidade”, como para o
reconhecimento de exceções não escritas na legislação positiva, de modo que não é de todo
desarrazoado, nesse modelo jurídico-teórico, fundamentar decisões contra legem que retém a
pretensão de serem juridicamente válidas.13
Do mesmo modo, o direito “pós-positivista” ou “neoconstitucionalista” apresenta,
assim como o ius commune, um elevado teor de pluralismo jurídico e uma importante vocação
internacionalista, por meio da importação e exportação de doutrinas, conceitos e
interpretações dos direitos fundamentais, pela via das Cortes Constitucionais.14
Tudo isso ocasiona alguns graves problemas de coordenação entre os tribunais,
sendo freqüentes as decisões contraditórias e os câmbios jurisprudenciais inesperados,
inclusive nos Tribunais Superiores, como o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal
Federal.
É nesse ambiente que se pode hipotetizar que se criou, no Brasil contemporâneo, um
contexto em que a prática jurídica enfrenta problemas semelhantes aos que atormentavam os
autores da Reforma de Pombal, na segunda metade do século XVIII. A necessidade de
uniformização do direito e de segurança jurídica não é menor do que a que se verificou em
meados do século XVIII.
Algumas das principais inovações da Lei da Boa Razão foram, inclusive, recentemente
experimentadas no direito brasileiro, sendo apresentadas como grandes novidades para dar
conta da complexidade da vida moderna.
Uma das mais notáveis é, sem dúvida, a preferência pela interpretação autêntica dos
tribunais superiores, que se faz acompanhar de uma vinculação estrita dos juízes das
instâncias inferiores.
Do ponto de vista estrutural, político e hermenêutico, a denominada súmula
13 Eu mesmo sustentei, em escrito anterior, a possibilidade de decisões contra legem dotadas de validade
jurídica, caso se adote como método de aplicação do direito a teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy.
Ver Bustamante (2005).
14 Sobre esse fenômeno, com interpretações distintas, há valiosa literatura jurídica contemporânea,
exemplificada nos estudos de Marcelo Neves (2009), no Brasil, e Jeremy Waldron (2012), no estrangeiro.
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vinculante é rigorosamente idêntica aos assentos da Casa da Suplicação, que pretendiam
criar um privilégio para esta Corte no âmbito da interpretação do direito.15
No Brasil, aliás, o legislador foi muito além disso, pois toda a sistemática de
julgamento dos Recursos Especiais “representativos de controvérsias” (ou simplesmente
“repetitivos”) e dos Recursos Extraordinários (que passam a ser julgados segundo a técnica da
“Repercussão Geral”) implica uma espécie de monopólio dos tribunais superiores para a
interpretação do direito. As regras processuais em vigor estabelecem, inclusive, a suspensão
do julgamento de todos os processos na segunda instância até que o tribunal possa se
pronunciar definitivamente sobre o mérito da tese controvertida nos tribunais.
Não é absurdo se pensar, inclusive, que o direito brasileiro de hoje foi mais além da
Lei da Boa Razão, pois previu inclusive as denominadas “Reclamações Constitucionais” para
garantir a eficácia da interpretação do Supremo Tribunal Federal contra qualquer interpretação
“protestante” dos juízos inferiores.
Os princípios jurídicos, por outro lado, exercem basicamente a mesma função que o
direito natural exerceu no período de formação do Direito Moderno e, em particular, no final
do século XVIII e no início do século XIX em Portugal. Eles hoje se prestam às mesmas
funções de “exclusão da obrigatoriedade do direito desatualizado” e de “extensão do
complexo normativo moderno”. E essa atividade, naturalmente, é desempenhada pela ação
dos juristas dogmáticos, e não do legislador.
Nesse sentido, as duas teorias do direito mais influentes do Brasil parecem trabalhar,
segundo a hipótese que se cogita, como importantes ferramentas para a eliminação do direito
indesejado e para a expansão do direito constitucional. De um lado, a teoria dos princípios de
Robert Alexy, com o método da ponderação, contribui em importante medida para a
flexibilização do direito anacrônico (muitas vezes proveniente ainda da ditadura militar) e
para a construção de exceções na lei indesejada. De outro lado, o modelo de “direito como
integridade”, de Ronald Dworkin, desempenha um papel semelhante ao postulado da
plenitude lógica do ordenamento jurídico, fazendo com que o próprio sistema jurídico decida,
por meio dos princípios “subjacentes à ordem jurídica” e nela implícitos, a forma como serão
solucionados os casos não previstos textualmente na legislação.
A teoria de Dworkin, ao negar a existência de lacunas no direito e sustentar a tese da
15 Tive oportunidade de refletir sobre a súmula vinculante em Bustamante (2013), onde é feito um breve
excurso histórico sobre a súmula do Supremo Tribunal Federal.
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única resposta correta, produz efeitos práticos próximos, em parte, aos postulado da
plenitude lógica do direito, pois permite que o jurista prático desenvolva o direito sem
recorrer a elementos transistemáticos e preservando a coerência interna da ordem jurídica.16
Finalmente, o ensino jurídico no Brasil enfrenta hoje problemas muito semelhantes
aos que os Estatutos da Universidade de Coimbra pretenderam resolver, como, por exemplo, a
pretensão enciclopedista e vã de “ensinar”, pela via da memorização, todo o conteúdo da
ordem jurídica, sem uma investigação adequada sobre os métodos de interpretação e
desenvolvimento do direito. Nesse sentido, a vanguarda da educação jurídica no Brasil de
2015 tem um importante número de elementos e pretensões comuns à Reforma Pombalina no
século XVIII.
A hipótese que se cogita, em conclusão, é a de que a teoria dos princípios desempenha
a mesma função a um só tempo “conservadora” e “reformadora” que o direito natural
desempenhou no século XVIII. Do mesmo modo, as Reformas do Processo realizadas no
Brasil ao longo dos últimos 20 anos têm um propósito bastante semelhante aos da Lei da Boa
Razão: o propósito de, por um lado, ajustar o direito nacional às exigências da racionalidade
prática e aos pressupostos necessários para o desenvolvimento de uma sociedade capitalista,
e, por outro lado, estabelecer uma “separação de funções” no interior do judiciário, dando aos
tribunais superiores um poder quase ilimitado de interpretar e desenvolver o direito, que se
mantém por meio de uma cultura de precedentes judiciais necessária para atingir esses
objetivos políticos e evitar os elementos caóticos e imprevisíveis do “pós-positivismo”, que
muito se assemelham ao direito “pré-positivista” do Antigo Regime.
Cogita-se, ainda, que apesar de priorizar a interpretação autêntica da cúpula do
judiciário, por meio da técnica de precedentes judiciais, o Novo Código de Processo Civil
Brasileiro deixa para os juízes inferiores e para a doutrina uma importante margem de
construção jurídica, e reflete uma cultura jurídica que também coloca os juristas dogmáticos a
16 É claro que a comparação não é perfeitamente exata. Dworkin sustenta que o direito seria um “ramo” da
moral, devidamente institucionalizada, e prevê uma “leitura moral da constituição” tendo como guia os
princípios de moralidade política nela expressos. Essa leitura moral da constituição tem o efeito, também, de
promover uma abertura do direito aos princípios de moralidade política que promovem a sua justificação
politico-filosófica. Poder-se-ia contra-argumentar, no entanto, que no Brasil contemporâneo esses princípios
estão positivados e que a teoria de Dworkin segue, ao menos em parte, viabilizando a um só tempo o
desenvolvimento do direito e a sua diferenciação funcional da política e da economia. A rights thesis, nesse
contexto, desempenha um relevante papel ao reivindicar a prioridade dos princípios (“principles”) sobre as
políticas públicas (“policies”).
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serviço da inovação e da transformação do paradigma jurídico atual.17
Se essa hipótese está ou não correta é algo que eu não tenho condições de responder
no presente momento. Fica a conclusão, porém, de que não há nada melhor do que o
cuidadoso método de análise jurídica utilizado por Antônio Manuel Hespanha para testar a sua
plausibilidade.
Referências:
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.
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LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011.
17 A extensão da mudança em vigor, contudo, é algo sobre o qual ainda não se pode prever. Mesmo se a nossa
hipótese estiver correta, só a história dirá se o alcance das reformas do processo brasileiro que têm ocorrido nos
últimos 25 anos terá ou não importância semelhante às Reformas Pombalinas.
Revista Estudos Filosóficos nº 14/2015 – versão eletrônica – ISSN 2177-2967
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DFIME – UFSJ - São João del-Rei-MG
Pág. 92 - 116
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ZAGREBELSKI, Gustavo. El derecho dúctil. Trad. Marina Gáscon, 5. ed. Madrid: Trotta,
2003.
The “Lei da Boa Razão” (Good Reasoning Act) and 18th Century Legal
Culture: Prolegomenon to a proposal to an account of the contemporary
Brazilian legal culture based on the works of Antônio Manuel Hespanha
Abstract: I attempt in this essay to reconstruct the theoretical and philosophical assumptions,
undertaken by Antônio Manuel Hespanha, concerning the historical analysis of the Ancient Regime's
Law and the Modern Law in Portugal and Brazil, with the purpose to apply this method to understand
contemporary Brazilian Law and to compare the structure of the ‘Lei da Boa Razão’ (Good Reasoning
Act, 1769) with the Brazilian Code of Civil Procedure of 2015.